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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE
POLÍTICA
EXTERNA E POLÍTICA
INTERNACIONAL
CNPEPI
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota
FUNDAÇÃO A LEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
Instituto de Pesquisa
de Relações Internacionais
Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada
ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil
informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática
brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os
temas de relações internacionais e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411-6033
Fax: (61) 3411-9125
Site: www.funag.gov.br
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Brasília, 2009
III Conferência Nacional de
Política Externa e Política
Internacional – CNPEPI
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170-900 Brasília – DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme
Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Capa:
Aldemir Martins, Sertão de Timbaúba
OST, 1973
in Odorico Tavares a minha casa baiana sonhos e
desejos de um colecionador.
Equipe Técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Erika Silva Nascimento
Juliana Corrêa de Freitas
Júlia Lima Thomaz de Godoy
Programação Visual e Diagramação:
Juliana Orem e Maria Loureiro
Impresso no Brasil 2009
CDU 327(81)
Conferência Nacional de Política Externa e Política
Internacional : (3 : Rio de Janeiro : 8 e 9 de dezembro de
2008) III CNPEPI : O Brasil no mundo que vem aí. -
Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
440p.
1.Política externa - Brasil. 2. Política internacional -
Brasil. I. Título. III. Título: o Brasil no mundo que vem aí.
Abertura
Apresentação, 9
Embaixador Jeronimo Moscardo
Palestra do Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 11
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
Primeira Sessão: Estados Unidos
O Brasil e a Política Externa dos EUA no Governo Obama, 19
Antonio de Aguiar Patriota
A Configuração Mundial do Poder, a Nova Hegemonia Norte-
Americana e Novo Governo Obama, 33
Gilberto Dupas
Segunda Sessão: América Latina e Caribe
A América Latina e o Caribe; e o Brasil, 53
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
América Latina no presente Sistema Internacional, 61
Helio Jaguaribe
América Latina e Caribe : Nova Fronteira da Política Externa Brasileira, 73
Marcel Biato
Sumário
Terceira Sessão: Europa
Uma Europa mais Transparente, 89
Franklin Trein
Brasil - União Europeia: Uma Parceria Estratégica, 121
Maria Edileuza Fontenele Reis
Quarta Sessão: África e Oriente Médio
Instabilidade Política Moderna nos Países que Correspondem aos Últimos
Impérios Coloniais Europeus. Exemplos do Oriente Médio e Comparação
com a África, 141
Affonso Celso de Ouro Preto
A África entre o Atraso e o Desenvolvimento no Período Pós-Crise Global, 157
José Flávio Sombra Saraiva
Cooperação Sul-Sul: a Experiência de Cooperação Internacional em Saúde
do Brasil com Países da África, 171
Paulo M. Buss e José Roberto Ferreira
Quinta Sessão: Rússia
A Nova Rússia sob Medvedev e Putin, 191
Angelo Segrillo
Considerações sobre a Situação Atual da Rússia: Desafios, Perspectivas, 203
Daniel Aarão Reis
Sexta Sessão: China, Índia e Japão
China, Índia e Japão no mundo que vem aí, 227
Amaury Porto de Oliveira
BRICS, the Chinese Engine, and the Humbling of Market Fundamentalism,245
Glauco Arbix
7
Sétima Sessão: Amazônia
Amazônia : os Desafios de uma Região Complexa e Dinâmica, 263
Adalberto Luis Val
Amazônia: Políticas e Estratégias, 277
Adherbal Meira Mattos
A Ocupação da Amazônia, 293
Adriano Benayon
Manaus, Cidade Mundial para Prestação de Serviços Ambientais: Uma
Proposta, 317
Bertha K. Becker
Amazônia: Desafios e Soluções, 339
Eduardo Dias da Costa Villas Bôas
Reflexões sobre Cultura, Soberania e Patrimônio Genético na Amazônia, 359
Ennio Candotti
Amazônia, 375
Ives Gandra da Silva Martins
Objetivos de uma Política Externa do Brasil em Relação à Amazônia: Proposta
para Discussão, 385
José Alberto da Costa Machado
Amazônia: Reflexões sobre sua Problemática, 407
Leonidas Pires Gonçalves
Lista de Participantes, 421
9
Apresentação
A Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional "O
Brasil no Mundo que vem aí" tem como objetivo promover o diálogo sobre
nossa agenda de política externa, com a participação da comunidade
acadêmica, diplomatas, jornalistas e representantes da sociedade em geral.
Na sua III edição, a Conferência tratou dos seguintes temas: Estados
Unidos, América Latina e Caribe, Europa, África e Oriente Médio, Rússia,
China, Índia, Japão e Amazônia.
A Conferência sob menção pretende transformar-se nos estados-gerais
das relações internacionais no Brasil e inspira-se na convicção de que a
sociedade sabe mais e pode mais que a burocracia governamental.
Embaixador Jeronimo Moscardo
Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
11
Palestra do Senhor Secretário-Geral das
Relações Exteriores, Embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães
Bom dia a todas e a todos. É um prazer muito grande estar aqui hoje
para a Abertura da III Conferência sobre Política Externa e Política
Internacional, organizada pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo Instituto
de Pesquisa de Relações Internacionais, com um tema muito oportuno: “O
Brasil no mundo que vem aí”. Eu fui convidado para dizer algumas palavras e
prometo não me alongar muito para que possam logo ouvir os debatedores.
Vou falar um pouco sobre aquilo que possa ser chamado de “saída para
a crise”, a saída pela política. Primeiro, eu queria falar sobre a dinâmica
internacional dos últimos 20 anos porque é preciso ter algum tipo de visão
histórica para a situação que nós vivemos no momento. A situação que nós
vivemos no momento não caiu do céu, não é algo inesperado que, de repente,
cai do céu sobre nós e ficamos perplexos. Não é isso. As diversas crises
atuais são fruto de um processo de evolução nos últimos anos, nas últimas
décadas. Nós podemos caracterizar esse processo por alguns aspectos.
Primeiro, nesses últimos anos, houve um processo de liberalização e
desregulamentação da economia no nível dos países e no nível internacional.
Houve um profundo processo de desregulamentação. Essa desregulamentação
ocorreu, por uma sucessão de rodadas internacionais que reduziram os
obstáculos ao comércio de bens em todo o mundo. Ocorreu também no
nível interno europeu. Com a formação da Comunidade Econômica Europeia,
depois União Europeia, houve um processo de liberalização do comércio
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
12
entre aqueles países membros. Há outros aspectos, mas esse é um aspecto
importante. Temos os processos regionais, como o Mercosul e outros, e
também processos bilaterais. Nesse caso, houve o esforço dos Estados Unidos
de celebrar acordos de livre comércio com países, não só na área das
Américas, mas também de outros continentes, com a Austrália, com a Nova
Zelândia, com a Jordânia e vários outros. Houve, enfim, um processo de
desregulamentação e liberalização na área de comércio bens.
Depois, houve também um grande processo de desregulamentação e
liberalização na área dos capitais. Nessa área, a partir das modificações das
legislações internas, principalmente, nos Estados Unidos e também na
Inglaterra, houve uma desregulamentação dos fluxos de capitais, que passaram
a fluir. Naturalmente, isso foi ajudado com o fim do papel do FMI, quando
os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro e passou a existir, no mundo,
um sistema de taxas de câmbio flexíveis. Houve também a desregulamentação
do movimento de capitais em todo mundo através das chamadas
“privatizações”, que foram movimentos de desregulamentação, com a abertura
de áreas que, antes, estavam fechadas ao capital estrangeiro.
Naturalmente, isso não ocorreu na área do trabalho. Nós falamos
nos bens, no capital e nos serviços, embora numa escala menor, mas não
ocorreu na área do trabalho. Houve uma grande movimentação de pessoas
a nível internacional, mas de forma muito restritiva. Nós temos grandes
contingentes de brasileiros, por exemplo, que não tínhamos no exterior.
Hoje, são cerca de três ou quatro milhões de brasileiros no exterior, mas
há um número muito grande de outras nacionalidades, de outras origens e
um grande número de deslocados, por conflitos. Nesse caso, naturalmente,
não houve um processo de desregulamentação. Pelo contrário, tem havido
um processo de regulamentação, de restrição aos movimentos do trabalho
dos seres humanos.
Esse é um processo de globalização e de criação de interdependência,
cada vez maior, entre as economias e as sociedades. O resultado desse processo
também é uma enorme concentração de poder que ocorreu ao longo desses
anos. Já havia uma concentração de poder enorme, logo após a II Guerra
Mundial, mas ela prosseguiu, tanto uma concentração de poder político, como
de poder militar, econômico e tecnológico. Se nós tomarmos a área do poder
político, nós temos a expansão das atribuições do Conselho de Segurança, a
expansão informal, porém, uma expansão, e de novos instrumentos de exercício
do poder político, como é o caso da OTAN, e de outras formas de intervenção,
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
13
outros instrumentos de intervenção. Na área militar, é a mesma coisa, ou seja,
há uma série de acordos que limita o acesso a certas armas a países considerados
“imaturos”, inferiores. É óbvio que isso não é colocado assim; isso é colocado
em nome do bem da humanidade, mas o fato é esse. A premissa que está por
detrás é que há países de uma civilização superior, de um nível cultural superior,
que têm o direito de ter certos tipos de armas; e outros países são inferiores,
são países instáveis, que podem colocar em risco a paz e a segurança internacional
e, portanto, não podem ter armas. Há uma série de tratados que foram sendo
celebrados de forma a restringir, cada vez mais, o acesso às armas de destruição
em massa e também a qualquer outro tipo de armas, mesmo as armas
convencionais. Na área econômica, essa concentração de poder pode ser
medida de várias formas, como pela diferença de renda per capita que existe
entre os países altamente desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. Essa
diferença tem aumentado com o tempo entre os países. Na área tecnológica, é
a mesma coisa. O número de patentes registradas todos os anos é
predominantemente, esmagadoramente, de patentes registradas por países
altamente desenvolvidos. Aproximadamente metade das patentes internacionais
é registrada pelos Estados Unidos, segundo as informações da Organização
Mundial da Propriedade Intelectual.
Enfim, esse período todo também se caracterizou por uma questão
ideológica importante, que foi o chamado “fim do socialismo” e da vitória
ideológica das doutrinas neoliberais e a derrota das doutrinas coletivistas, de
toda a natureza, como o comunismo, socialismo e assim por diante. Foi a
vitória do neoliberalismo em todo o seu esplendor que correspondeu a teorias,
por exemplo, como o fim das fronteiras, o fim dos Estados e assim por diante.
Hoje, naturalmente, isso está um pouco superado pela própria mudança de
política econômica nos países altamente desenvolvidos, em que há uma política
de profunda intervenção do Estado, de profunda preocupação coletiva com
o destino das sociedades, como a aquisição de bancos, ajuda a empresas e
assim por diante. Isso mostra um pouco um renascimento dessa questão do
individualismo versus coletivismo, preocupações coletivas da sociedade. Não
quero chamar de “socialismo”, nem de “comunismo”, mas de políticas que
prevêem, principalmente, uma maior intervenção do Estado em defesa da
organização da sociedade, tanto do ponto de vista econômico, quanto do
ponto de vista social. Enfim, esse é um processo que nos leva, com suas
diferentes características, ao que eu chamaria de “grandes crises atuais” e
todas elas são um desafio para o Brasil.
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
14
A primeira delas, que está mais na imprensa, é a crise financeira e, hoje
em dia, cada vez mais, uma crise produtiva porque a crise está passando da
área financeira para a área produtiva, nos países altamente desenvolvidos. A
segunda delas, que é uma crise mais estrutural, é a crise ambiental. Nós temos,
seguramente, uma crise ambiental de proporções extraordinárias, hoje já
reconhecida por todos os países, e que terá profundo impacto na organização
das sociedades porque essa crise ambiental é vinculada à crise energética,
pela escassez de energia, pela mudança dos padrões de consumo de energia,
por sua vez, ligadas a questões do Oriente Próximo, mas, sensivelmente, se
pode identificar como uma questão dos padrões de consumo do individualismo.
O fato de que certas sociedades são baseadas na ideia de que é possível
consumir qualquer tipo de produto, de uma forma totalmente livre e com
enorme grau de desperdício. Há uma crise energética, mas há também uma
crise de recursos naturais de uma forma geral. Há algo muito perigoso, que é
uma ideia formulada assim: “O que seria se todos os chineses tivessem um
automóvel? O que seria se todos os chineses comessem carne?”. Há uma
ideia por detrás de que certos países têm direito a ter certos níveis de consumo
e outros, por terem chegado atrasados, não teriam esse direito porque isso
criaria um problema, um desafio, um dilema internacional. Isso é algo
extremamente preocupante para países em desenvolvimento. E se todos os
brasileiros tivessem um automóvel? E se todos os brasileiros tivessem níveis
de consumo dos países altamente desenvolvidos? Isso geraria uma demanda
enorme sobre os recursos da terra. Só que nós temos seguramente o direito,
tanto ou mais do que qualquer outro país, de ter níveis de consumo adequados
para cada cidadão brasileiro. Todos os cidadãos brasileiros têm esse direito.
Como eu já mencionei de passagem, temos a questão da crise energética, da
reorganização da matriz energética do mundo, que envolve a questão da
energia nuclear, que envolve a questão dos biocombustíveis e assim por diante.
A questão alimentar também é um pouco esta, ou seja, saber como enfrentar
o desafio de fazer com que todas as populações do mundo tenham o direito
a níveis adequados de nutrição. E finalmente, temos uma crise de natureza
político-militar, que é a da emergência da China, ou seja, como acomodar a
China no sistema internacional. Qual é o papel que a China deve ter no sistema
internacional? Como acomodá-la nas diferentes instituições, nos diferentes
temas? Como reacomodar a Rússia na sua nova fase de reafirmação nacional?
Diante desses temas todos, dessas crises, dessa evolução, certamente,
para a política externa brasileira, se colocam grandes desafios. O grande desafio,
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
15
em minha opinião, é a luta pela desconcentração do poder internacional. Nós
temos interesse em que haja um processo de desconcentração desse poder. É
muito difícil se falar de uma completa democratização das instituições. Isso é
extremamente difícil. Eu acredito mais num processo de maior democracia, de
maior participação nos grandes organismos. Isso passa pelo Conselho de
Segurança, pelos organismos financeiros e econômicos internacionais, como a
reforma do Fundo Monetário Internacional, como a reforma, em curso, da
Organização Mundial de Comércio, na medida em que, o G-20, na OMC é
um fato totalmente novo. Quer dizer, a participação dos países em
desenvolvimento, em que o Brasil tem desempenhado a função de coordenador,
é realmente uma vitória brasileira. Ninguém se impõe como coordenador de
nada. É necessário que os outros convoquem o país para essa função. Nenhum
país, em nenhum lugar, diz: “Eu vou ser o coordenador de tal grupo”. Isso
simplesmente não existe na prática. O que existe é o consenso, entre um grupo
de Estados, para que um deles seja o seu porta-voz, o seu coordenador, o seu
articulador. Então, essa luta pela desconcentração do poder é extremamente
importante em todos os níveis. Segundo, temos a luta para que, em seu conjunto,
as normas que vêm sendo organizadas a nível internacional, nos diferentes fóruns
e organizações multilaterais, regionais etc., sejam as mais favoráveis ao
desenvolvimento da sociedade brasileira, para resolver os problemas das
desigualdades sociais, das vulnerabilidades externas, e da realização do potencial
da sociedade brasileira, da economia do Estado Brasileiro. É necessário que
essas normas internacionais não nos criem obstáculos e sim sejam favoráveis
ao desenvolvimento interno, i.e., que preservem o grau de autonomia do Estado.
Nesse processo de desenvolvimento interno, a função do Estado é essencial.
Nós não podemos imaginar que haja desenvolvimento econômico e social no
Brasil sem uma função do Estado de promoção desse desenvolvimento, para
garantir que todas as potencialidades da sociedade brasileira sejam
desenvolvidas. Não é possível imaginar de outra forma. Muitas vezes, a
normatização internacional tende a coibir a ação do Estado, a dificultar a ação
do Estado. No âmbito da política externa, é necessário fazer com que essas
normas venham a ser favoráveis ao desenvolvimento econômico, político e
social do Brasil.
Como fazer isso? Primeiro, do ponto de vista internacional, é necessária
a articulação com os grandes Estados da Periferia, que são a Índia, a China,
a África do Sul, a Argentina, porque esses Estados têm um nível semelhante
de aspiração à do Brasil. Outros países menores tendem a ser absorvidos
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
16
pelos grandes polos de poder que se organizam no sistema internacional.
Eles acabam sendo absorvidos, muitas vezes cooptados. É com esses grandes
Estados – que têm aspirações semelhantes às do Brasil, e que já atingiram
um certo nível de desenvolvimento – que nós temos que nos articular no
processo de negociação das normas internacionais e da desconcentração de
poder. É por isso que nós estamos juntos com a Índia, por exemplo, no G-4;
estamos junto com a Índia, com a China e com a África do Sul nas áreas de
programas de desenvolvimento tecnológico, como na área de satélites, e há
muitas outras áreas ainda não exploradas, mas que necessariamente devemos
explorar.
Em segundo lugar, temos a questão da articulação regional. O sistema
internacional é um sistema de grande interdependência e onde surgem grandes
blocos de países, como é o caso da União Europeia e da América do Norte.
Na América do Norte, se forma uma grande economia, com características
diferentes das da União Europeia e que inclui: o Canadá, os Estados Unidos,
o México, a América Central depois dos acordos de livre comércio, e alguns
estados da América do Sul. Os acordos de livre comércio que foram
celebrados, na realidade, criam uma área econômica integrada, livre de tarifas,
com a mesma regulamentação. É necessária uma articulação regional brasileira
para que possamos participar melhor das negociações internacionais e das
disputas internacionais. Além das negociações, temos também algumas
situações de fato, onde os países são arregimentados para se pronunciar.
Nesse processo de articulação regional, a União das Nações Sul-americanas
- UNASUL é de grande importância nos seus diferentes aspectos –
econômicos, políticos, militares –, com o Conselho de Defesa Sul-americano.
O Mercosul, naturalmente, é o centro da política exterior na América do Sul.
Finalmente, uma palavra sobre a questão da articulação interna. É
necessário que haja, dentro do Brasil, uma articulação das forças progressistas;
aquelas forças que têm o Brasil como parâmetro e não apenas a livre ação
dos indivíduos. É necessária uma articulação entre aquelas forças que
consideram que o Brasil é uma sociedade humana, não é um mercado; o
Brasil não é um mercado, o Brasil é uma sociedade de indivíduos muito além
dos seus interesses puramente econômicos, mas os seus interesses de toda a
ordem. Nesse momento de crise, é necessário que as forças políticas e sociais,
que têm essa preocupação, estejam unidas na defesa de políticas que permitam
a superação do desafio que nós enfrentamos, a começar pela manutenção da
demanda interna, manutenção dos investimentos para construirmos a infra-
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
17
estrutura do país e para não cairmos na armadilha de que é necessário reduzir
a demanda. Nenhum país do mundo está nessa armadilha. Todos os países
estão preocupados em manter o seu nível de demanda, e tentar manter o seu
nível de investimentos. Não podemos cair na armadilha de alguns que dizem
que é necessário reduzir a demanda no Brasil para enfrentarmos essa situação.
É justamente a saída errada.
Finalmente, uma questão que eu acho extremamente positiva é que,
historicamente, foi em períodos de crise que o Brasil se desenvolveu na
realidade. Foi no grande período da grande depressão até ao final da II
Guerra Mundial que houve uma grande expansão do desenvolvimento industrial
brasileiro e, mais tarde, com as diferentes crises econômicas que tornaram
real e vital a ideia do desenvolvimento econômico brasileiro, baseado na
indústria. Na verdade, 85% da população brasileira vive nas cidades. Nas
cidades, não há agricultura. Duvido que os senhores consigam plantar alguma
coisa dentro de uma cidade. O emprego na cidade é o emprego industrial e
na área de serviços. Então, é muito importante que haja a possibilidade do
desenvolvimento industrial, que essa crise seja uma oportunidade de afirmação
da indústria. Não é que a agricultura e o agronegócio não tenham importância.
É óbvio que têm, mas, certamente, não é possível desenvolver uma ação
com as dimensões e perspectivas do Brasil com base apenas numa visão
agrícola do mundo e da sociedade. Na minha opinião, isso não é correto. Eu
sei que muitos criticariam esse ponto de vista, mas de uma coisa eu tenho
certeza: não há emprego de natureza agrícola nas cidades. Isso eu posso
garantir aos senhores. Se quiserem, podem plantar alguns pés de soja no seu
apartamento, para ver se isso é possível. Se for, eu me considero derrotado.
Finalmente, acredito que uma situação como a atual é uma situação que
permite renovar a ideia da participação do Estado como um agente de
desenvolvimento econômico num momento de crise. Eu acho que a situação
internacional é muito importante porque, certamente, se todos os Estados
mais desenvolvidos do mundo estão utilizando a sua administração, o seu
Estado para enfrentar a crise, nada mais conveniente que um país como o
nosso também possa, e deva, usar o seu Estado para enfrentar essa situação
de grandes dificuldades e de grandes desafios, no processo em que todos
estão interessados e empenhados de construir uma sociedade mais justa,
mais democrática e mais próspera. Muito obrigado pela atenção.
19
O Brasil e a Política Externa dos EUA no
Governo Obama
Antonio de Aguiar Patriota
1
Em artigo publicado na Política Externa de junho/julho/agosto de
2008 (“O Brasil e a política externa dos EUA”), examinei a evolução da
política externa norte-americana no segundo mandato do Presidente Bush
(2005-09) e o desenvolvimento das relações bilaterais. Com a posse do
Presidente Barack Obama, em 20/1/2009, que tantas esperanças
despertou nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, proponho
um exercício de natureza mais prospectiva, ao considerar como será
possível, sem perder os avanços realizados, abrir novas áreas de
cooperação entre as duas grandes democracias multiétnicas das Américas.
Há, hoje, virtual consenso entre os Governos Lula e Obama de que
não é necesssário “reinventar a roda” nas relações bilaterais, mas sim
acrescentar, àquelas áreas específicas de convergência já identificadas,
novos temas, iniciativas e mecanismos, tornados possíveis pela maior
compatibilidade entre os momentos políticos vividos pelos dois países.
Tal aproximação ocorrerá no contexto de grave crise financeira
internacional, a qual, ao mesmo tempo em que traz problemas novos e
acentua alguns antigos, poderá favorecer a remoção de obstáculos –
notadamente certos preconceitos e modos rígidos de pensar, cuja
obsolescência ficou patente nos últimos meses.
1
O autor é Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América.
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
20
As Relações Brasil-EUA no Final do Governo Bush
Sem pretender repetir o artigo de junho passado, recapitulo alguns
marcos importantes a partir de 2005:
- a Cúpula da Granja do Torto de novembro de 2005 entre os Presidentes
Lula e Bush, com ênfase nos biocombustíveis;
- o hábito de consulta e cooperação no apoio à estabilização, democracia
e desenvolvimento do Haiti, que demonstrou estarem os EUA e o Brasil
sintonizados em relação a uma questão de paz e segurança;
- a consulta intensa, praticamente permanente, sobre comércio
internacional, no âmbito das negociações da Rodada de Doha da OMC;
- o abandono, pelo Governo Bush, da ênfase na ALCA, “colocada
entre parênteses”, decisão que não impediu, nos anos seguintes, o
crescimento robusto do comércio e dos investimentos entre Brasil e
EUA;
- o estabelecimento de “diálogo estratégico” regular entre as Chancelarias,
no nível de Subsecretários para Assuntos Políticos – mecanismo que os EUA
mantêm apenas com um punhado de países;
- as duas Cúpulas bilaterais de março de 2007 – São Paulo e Camp
David – que produziram, entre outros resultados, o Memorando de
Entendimento sobre Biocombustíveis e o Fórum de Altos Executivos Brasil-
EUA;
- a criação do Diálogo de Parceria Econômica, por iniciativa do Ministro
Celso Amorim e da Secretária de Estado Condoleezza Rice, que vem dando
frutos concretos, tais como a intensificação dos vôos comerciais entre os
dois países, com a inclusão de rotas novas ligando o Nordeste brasileiro a
cidades do sul dos Estados Unidos;
- o convite para que o Brasil – juntamente com Índia e África do Sul –
participassem da Conferência de Annapolis sobre o Oriente Médio, em
novembro de 2007;
- a assinatura do Plano de Ação Conjunta para a Eliminação da
Discriminação Étnica e Racial e a Promoção da Igualdade pela Secretária de
Estado Rice e o Ministro Edson Santos;
- a aprovação, pela Câmara de Representantes dos Estados Unidos
(com maioria democrata desde as eleições de 2006) de resoluções unânimes
de apoio ao fortalecimento das relações entre Brasil e EUA.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
21
Em 2008, várias dessas iniciativas continuaram a render frutos. Uma crescente
confiança recíproca fez que os Estados Unidos procurassem o diálogo com o
Brasil em relação a questões regionais, inclusive em momentos de tensão, como
na controvérsia Colômbia – Equador e durante as perturbações políticas na
Bolívia. Houve apoio de Washington a iniciativas brasileiras, como a União das
Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Conselho de Defesa da América do
Sul. Até mesmo a Cúpula da América Latina e do Caribe, realizada na Costa do
Sauípe, em dezembro de 2008, terá sido vista como o evento construtivo que foi
– não obstante certa incompreensão em setores mais conservadores do Congresso
norte-americano.
Também em sinal de ambiente mais cooperativo, o diálogo bilateral estendeu-
se a área por muito tempo excluída da agenda bilateral, a de defesa. Em 2008, o
Ministro da Defesa Nelson Jobim visitou os Estados Unidos em três ocasiões
distintas, duas vezes para reunião com o Secretário da Defesa Robert Gates e
uma para conhecer a sede do Comando Sul (SouthCom). Foi possível, assim,
conversar com transparência e franqueza sobre novas iniciativas de cada lado: do
Brasil, o Conselho Sul-Americano de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e
os planos de capacitação tecnológica na indústria de defesa; dos Estados Unidos,
entre outros temas, a polêmica criação da IV Frota, cujo anúncio repentino
provocara reações na opinião pública latino-americana e pedidos de
esclarecimentos provenientes de vários Governos da região. Destacou-se
positivamente o comportamento norte-americano, que sugeriria estar ficando para
trás a época das objeções a programas em esferas como a espacial e a nuclear.
No mesmo espírito, os Estados Unidos começam a sinalizar que poderão ser um
parceiro em projetos de capacitação tecnólogica de interesse brasileiro.
O ano de 2008 encerrou-se com uma manifestação emblemática do crescente
papel global do Brasil, na Cúpula de Washington do G20 financeiro. A convite do
Presidente George W. Bush, o Presidente Lula desempenhou papel de destaque,
como um dos principais oradores do almoço de trabalho organizado pela Casa
Branca em torno do tema comércio internacional. No exercício da Presidência
do G20, o Brasil pode, ademais, pôr à mostra sua capacidade de diálogo com
todas as correntes políticas e proveniências geográficas.
A Campanha Eleitoral de 2008
O ano de 2008, nos Estados Unidos, foi dominado por uma eleição
presidencial que provocou uma mobilização raramente vista da sociedade
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
22
norte-americana. A candidatura de Barack Obama trouxe forte conteúdo
transformador. A perspectiva de eleição do primeiro Presidente afro-
americano representava a culminação histórica de longo processo de
integração social, superação da discriminação e ampliação da democracia,
que data da Guerra Civil norte-americana e se mantivera incompleto por
mais de um século.
Agregou-se o efeito de mudança generacional: Obama, com seus 47
anos, não participou das controvérsias políticas e culturais dos anos 1960 e
do começo dos anos 1970. A Guerra do Vietnã, a explosão do consumo de
drogas, os distúrbios raciais que se seguiram ao assassinato do Dr. Martin
Luther King e o escândalo de Watergate provocaram divisões profundas,
mas não deixaram cicatrizes no futuro Presidente, cuja infância transcorria,
no Havaí e na Indonésia, em lar multirracial e aberto para o mundo.
Tudo isso fez com que a campanha de Obama, primeiro na primária
democrata e em seguida na eleição geral, atraísse a juventude e as minorias
étnicas. Com organização moderna, em rede, tornada possível pelo uso
inovativo da internet, e provando ser possível conciliar iniciativa e disciplina,
Obama logrou promover um verdadeiro movimento nacional em torno da
ideia de mudança.
Ao mesmo tempo, a crise financeira, que se tornou aguda em meados de
setembro, após a falência do banco Lehman Brothers, culminou processo de
erosão gradual de todo um conjunto de falsas certezas que se havia propagado
desde os anos 1990. A noção de que exista um conjunto pronto de receitas
políticas e econômicas com aplicação universal, concebido em Washington e
pronto para exportação aos quatro cantos do mundo, ruiu como castelo de
areia em face da maré alta. As elites políticas, financeiras e econômicas que
haviam pontificado nas duas décadas anteriores passaram a ser apontadas
como responsáveis por catástrofe que, ao contrário de crises anteriores,
começou no centro do mundo desenvolvido e daí se espalhou pelo globo. Se
consenso há sobre causas e remédios da crise, foi no sentido de que país
algum detém o monopólio da sabedoria sobre como enfrentá-la, e de que é
preciso esforço comum e cooperação mais eficaz para que o árduo trabalho
de superação tenha perspectivas de êxito.
O Brasil teve condições de diálogo e acesso às principais campanhas
eleitorais, que apresentaram, cada uma, aspectos inéditos. Somos cada vez
mais vistos como um parceiro importante na busca de soluções para as grandes
questões políticas e econômicas da região e da comunidade internacional.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
23
Representantes do Governo brasileiro, nas mais diversas áreas, tiveram acesso
aos assessores das campanhas eleitorais, em particular as dos três principais
candidatos, os Senadores Barack Obama, Hillary Clinton e John McCain.
Foi possível não só recolher informações, mas também prestar esclarecimentos
sobre o Brasil e apresentar a perspectiva brasileira sobre os grandes temas
regionais e globais.
Barack Obama
A facilidade de diálogo entre os Presidentes Lula e George W. Bush, até
certo ponto surpreendente, em vista de trajetórias pessoais e posturas políticas
muito distintas, foi fator relevante na reaproximação entre Brasil e Estados
Unidos, a partir de 2005. Alguns observadores chegaram a levantar dúvidas
sobre a possibilidade de manutenção desse clima favorável com Barack
Obama na Casa Branca.
Argumentos sólidos, porém, permitem prever que Brasil e Estados Unidos
continuarão a encontrar novas áreas de cooperação nos próximos anos, além
de prosseguir nas já existentes. Entre Lula e Obama, podem ser identificadas
afinidades em pelo menos três campos: trajetória pessoal, temperamento e
valores.
No campo da trajetória pessoal, o traço mais marcante de ambos os
percursos foi a superação do preconceito. Enquanto a eleição de Lula marcou
a ampliação da democracia no Brasil, pela elevação de um representante do
operariado ao cargo de Presidente, Obama representou a derrubada de uma
barreira racial que muitos ainda julgavam fora de alcance nos Estados Unidos.
Quando Obama nasceu, em 1961, o casamento entre seus pais ainda
seria proibido por lei em vários Estados norte-americanos (não, porém, no
seu Estado natal, Havaí, de cultura mais tolerante e mestiça). O próprio
Presidente Obama mencionou em seu discurso de posse, no Capitólio, que
sessenta anos antes talvez os restaurantes da capital norte-americana não
aceitassem que seu pai, o economista queniano Barack Hussein Obama
(mesmo nome do filho), se sentasse à mesa para almoçar. Sua autobiografia,
lançada em português como “A origem dos meus sonhos”, escrita aos 33
anos, contém uma reflexão comovente sobre a decepção do jovem Barack
diante do pai, cuja carreira promissora terminou em impasse, e cuja vida,
depois de diversos casamentos e filhos, desembocou em alcoolismo e
depressão. O jovem Barack seria visto pela sociedade norte-americana como
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
24
afro-descendente, pela aparência física, mas conviveu na infância quase que
unicamente com a mãe e os avós brancos.
Sua mãe, a antropóloga Ann Durham, personagem criativa e progressista,
casou-se novamente com um cidadão indonésio. Obama passou parte da
infância, dos 6 aos 10 anos, numa rua de terra batida da periferia de Jacarta,
correndo atrás de galinhas e cachorros, junto com os outros meninos da
vizinhança, como relata na autobiografia. Que entre aqueles meninos, quase
todos de família muçulmana, soltando pipas na Indonésia nos idos de 1970,
estivesse um futuro Presidente dos Estados Unidos, é cenário que só a
combinação de momento histórico, uma grande autoconfiança individual e
uma pitada de destino pode explicar.
O resultado dessa genealogia e, mais tarde, do casamento com Michelle
LaVaugh Robinson, de família afro-americana tradicional do South Side de
Chicago, é uma “primeira família” única em seu universalismo. Uma das meio-
irmãs quenianas de Obama é casada com inglês; outro meio-irmão por parte
de pai vive na China e é casado com chinesa; sua meia-irmã por parte de
mãe é indonésia e casada com cidadão canadense de ascendência também
chinesa. Mesmo na família de Michelle, de perfil menos internacional, há um
primo que se converteu ao judaísmo e é rabino, sobrepondo em uma só
aliança familiar as três fés abraâmicas.
Uma segunda convergência se observa nas semelhanças entre os
temperamentos dos ocupantes do Alvorada e da Casa Branca. Obama, que
passou toda a vida construindo pontes entre negros e brancos, desenvolveu
capacidade natural de conciliação e diálogo. Na Faculdade de Direito da
Universidade Harvard, embora participasse de grupo de estudantes mais à
esquerda, foi eleito editor da prestigiosa revista “Harvard Law Review” com
o voto dos conservadores. No Partido Democrata, embora suas raízes estejam
na ala progressista, foi sempre capaz de atrair apoios de centristas e mesmo
de membros da ala mais conservadora. Durante a campanha eleitoral, além
do apoio praticamente unânime dos setores progressistas, apareceu o
fenômeno curioso dos “Conservadores por Obama”, ou “Obamacons”,
dotados de sua própria página web.
Em política externa, essa disposição se manifesta na política de “mão
estendida” em relação dos adversários dos Estados Unidos, bastando apenas
que eles “descerrem o punho”, na fórmula empregada no discurso de posse
e frequentemente citada desde então. A capacidade de diálogo e conciliação
se reflete também, em Obama, numa preferência pelo multilateralismo, visto
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
25
como mecanismo inclusivo, de vocação universal, e não como mero
agrupamento dos que pensam igual (like-minded). Na conferência de
imprensa em que apresentou sua equipe de política externa e segurança
nacional, Obama anunciou, como uma das três prioridades principais do
Departamento de Estado, o fortalecimento das instituições internacionais (as
outras duas são a não proliferação nuclear e a paz no Oriente Médio). Também
classificou as Nações Unidas de organização “indispensável”, qualificativo
que não se escutou em Washington, em relação à ONU, nem durante o
Governo George W. Bush, nem no de seu antecessor democrata.
Um terceiro campo de convergência, o dos valores, revela coincidência
no compromisso com a eliminação da pobreza e com a justiça social. Obama
demonstrou, com base em sua vivência na Indonésia e no Quênia, em seu
trabalho como assistente social nos bairros mais pobres de Chicago e em seu
temperamento de construtor de pontes, capacidade de compreender esses
problemas do ponto de vista dos pobres. Obama estudou na melhor escola
particular do Havaí, sobretudo graças aos sacrifícios dos avós. Ao terminar
seus cursos universitários, porém, abandonou a perspectiva de empregos
bem-remunerados em Wall Street ou em escritórios de advocacia, e optou
por oportunidades como organizador comunitário em uma das regiões mais
deprimidas de Chicago.
Desde então, Obama estabeleceu como plataforma central de sua atuação
a solidariedade social. A situação dos jovens afro-americanos em bairros
pobres nas grandes cidades, como Chicago; a geração de empregos; a
universalização da cobertura por seguro-saúde; e a melhoria da educação
pública, como detalhado em seu livro de campanha, “A audácia da esperança”,
foram a tônica de sua atuação política e de sua campanha presidencial. Durante
a campanha eleitoral, Obama ironizou o lema do ultraliberalismo, ou
fundamentalismo de mercado, a chamada “sociedade de proprietários”
(ownership society), dizendo que para os ricos isso parecia significar “cada
um por si” (you are on your own). Em seu discurso de posse, sintetizou sua
visão de futuro: “uma nação não pode prosperar, se dedicar atenção apenas
aos mais prósperos”.
O Momento Histórico e as Relações Bilaterais
Além das afinidades entre os Presidentes Lula e Obama, acima apontadas,
fatores de ordem estrutural contribuem para uma consolidação dos progressos
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
26
realizados em várias vertentes do relacionamento bilateral e para a abertura
de novas frentes de aproximação.
Por muito tempo, a política externa dos Estados Unidos mal disfarçava
veleidades de tutela informal sobre as nações latino-americanas. Tal era o
sentido da “Doutrina Monroe” (a responsabilidade pela liderança da defesa
da América Latina contra “ameaças extracontinentais” caberia aos Estados
Unidos, que exerceriam, para tanto, supervisão sobre as relações dos países
latino-americanos com Estados de outros continentes) e do chamado
“Corolário Roosevelt” (Theodore, não Franklin: a responsabilidade pela
estabilidade política interna dos países latino-americanos competiria, também,
a Washington).
Tais políticas fizeram-se sentir com mais peso, ao longo do século XX,
na América Central e no Caribe, mas não deixaram de repercutir também
mais ao Sul. Para o Brasil, desde a consolidação das fronteiras com os vizinhos
– obra concluída por volta de 1910 – a tarefa principal da política externa,
formulada com diferentes matizes em cada geração, tem sido a criação de
condições externas favoráveis para o desenvolvimento econômico e social
do país. Para tanto, o pré-requisito essencial era a busca da autonomia
decisória na promoção do desenvolvimento, sem ingerências nem submissão
a interesses externos.
Nos anos 1950, atitudes dos Estados Unidos em relação à criação da
Petrobras, por exemplo, convenceram muitos brasileiros de que prevenir ou
impedir o desenvolvimento industrial do Brasil constituía parte da agenda não
declarada de Washington. As objeções aos programas nuclear e espacial,
nos anos 1970 e 1980 e as divergências sobre propriedade intelectual, a
partir dos anos 1980, foram fontes de desentendimento. As dificuldades iniciais
dos Estados Unidos com a formação do Mercosul também geraram alguma
tensão.
Ao mesmo tempo, outro conjunto de fatores nunca deixou de aproximar
os dois países, e conduziu a momentos de relação estreita e mutuamente
proveitosa – seja a “aliança não escrita” da época de Rio Branco (na expressão
do historiador norte-americano E. Bradford Burns), seja a participação do
Brasil na II Guerra Mundial (quando fomos o “aliado esquecido”, segundo o
historiador Frank McCann). O investimento e o capital norte-americanos
nas mais diversas áreas tiveram participação positiva na industrialização do
Brasil, em processo simbolizado pela Companhia Siderúrgica Nacional,
construída com financiamento e bens de capital dos Estados Unidos.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
27
Controvérsias subsequentes fizeram com que alguns se esquecessem de que
os primeiros passos dos programas nuclear e espacial do Brasil, entre os
anos 1950 e 1970, em muito beneficiaram-se da cooperação com os Estados
Unidos. E até hoje os fluxos de comércio e investimento revelam
complementaridades entre os dois países.
É possível afirmar, em suma, que Brasil e Estados Unidos podem manter,
em certos momentos e temas, políticas divergentes, no nível dos Governos,
mas sem chegar a ter conflitos fundamentais de interesse, no nível dos Estados.
A ambos interessa, primordialmente, a paz, estabilidade e prosperidade nas
Américas e no mundo.
Hoje, Brasil e Estados Unidos intensificam seus contatos políticos em
contexto histórico de grandes transformações. O Brasil está em trajetória
ascendente, com estabilidade econômica, progresso social e democracia
consolidada. Cada vez mais nosso ponto de vista é global, de país contribuinte
para o aperfeiçoamento do sistema internacional. Os Estados Unidos, por
sua vez, continuarão pelo futuro previsível a demonstrar vitalidade econômica,
científica e tecnológica, sem falar no poderio militar. Como aponta Fareed
Zakharia em “O Mundo Pós-Americano”, com a ascensão relativa de outros
países, os Estados Unidos vão sendo levados a aceitar mais naturalmente a
ideia de que vivem em mundo crescentemente multipolar, como admitiu
recentemente o Secretário da Defesa Robert Gates. A tentação do
unilateralismo conduziu, no Iraque, a resultados que falam por si; a crise iniciada
em 2008 tornou ainda mais patentes os limites do poder unilateral dos Estados
Unidos e a necessidade de cooperação internacional.
Restam, é verdade, no estamento de política externa norte-americana,
personalidades que acreditam na possibilidade de um retorno aos anos 1990,
quando os Estados Unidos viveram seu “momento unipolar”, na consagrada
expressão de Charles Krauthammer. Para os que duvidam, porém, da
orientação da atual liderança política, recomenda-se a leitura do Capítulo 8,
dedicado à política externa, do livro de campanha do então candidato
presidencial Barack Obama, “A audácia da esperança”. De forma talvez
inédita, constata-se a capacidade de um Presidente dos Estados Unidos de
enxergar a realidade internacional não apenas da perspectiva de seu próprio
país, mas também, a partir de uma vivência que incorpora contatos importantes
com o mundo em desenvolvimento (Indonésia e Quênia em particular). Entre
outras muitas observações de Obama que soam naturais aos brasileiros,
destaco as seguintes:
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
28
“Nosso desempenho tem sido inconstante, tanto na Indonésia quanto
no resto do mundo. Algumas vezes, a política externa norte-americana
foi previdente, servindo simultaneamente nossos interesses nacionais,
nossos ideais, e os interesses das outras nações. Outras vezes, as
políticas norte-americanas foram mal-orientadas, baseadas em
premissas falsas que ignoram as aspirações legítimas de outros povos,
diminuem nossa própria credibilidade e tornam o mundo mais perigoso
(...) (Na América Latina,) os Estados Unidos não chegaram a
empreender a colonização sistemática praticada pelas nações europeias,
mas perderam quaisquer inibições a respeito da ingerência nos assuntos
internos de países que julgavam estrategicamente importantes. Theodore
Roosevelt, por exemplo, acrescentou um corolário à Doutrina Monroe,
declarando que os Estados Unidos interviriam em qualquer país latino-
americano ou caribenho de cujo Governo não gostassem (...) No
começo do século XX, portanto, os motivos que guiavam a política
externa dos Estados Unidos pareciam dificilmente distinguíveis daqueles
das demais grandes potências, guiadas pela realpolitik e pelos interesses
comerciais”.
Perspectivas para as Relações Brasil-EUA no Governo Obama
As preocupações sociais de Obama harmonizam-se com muitos temas
de interesse da nova Secretária de Estado. Hillary Clinton estreou no cenário
nacional, ainda no começo do mandato do ex-Presidente Bill Clinton, com
uma campanha pela universalização do acesso à saúde que esbarrou no
obstrucionismo dos republicanos, mas que – reconhece-se hoje – teria
beneficiado os Estados Unidos se tivesse ido adiante. A competitividade da
indústria norte-americana, como se sabe, é prejudicada pela necessidade de
que cada empresa arque com grande parte dos custos de saúde e aposentadoria
de seus empregados. A privatização da saúde levou a um sistema que é o
mais caro entre os países desenvolvidos, mas que deixa sem cobertura médica
quase 50 milhões de norte-americanos, segundo o Bureau do Censo dos
EUA.
Hillary Clinton, em sua carreira como Senadora por Nova York e em sua
campanha presidencial, destacou-se, também, pela defesa dos direitos da
mulher, da infância, dos idosos e das populações mais vulneráveis. O primeiro
discurso do Presidente Obama no Congresso e o primeiro projeto de
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
29
orçamento refletem essas prioridades, com ênfase em saúde, educação e
energias limpas. Emerge, assim, quadro em que vários entre os principais
tomadores de decisão dos Estados Unidos – não só o Presidente e a Secretária
de Estado, mas também outros integrantes do Governo, como os Secretários
da Educação, Arne Duncan, Trabalho, Hilda Solis, e Saúde, a ex-
Governadora do Kansas Kathleen Sebelius – demonstram preocupação com
temas similares aos que captam a atenção do Governo brasileiro.
Com a posse do novo Governo, os Estados Unidos voltam a se engajar
com o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações
Unidas, objeto de ressalvas norte-americanas ainda recentemente, durante o
processo de preparação da 60ª Assembléia Geral, em 2005. Abre-se, assim,
espaço para a troca de experiências e a cooperação em temas sociais, entre
dois países com semelhanças não negligenciáveis: grandes, multiétnicos,
democráticos, federativos e preocupados com a superação da desigualdade.
Os Estados Unidos, como aponta o Ministro Roberto Mangabeira Unger, são
o país mais desigual entre os desenvolvidos e o Brasil, apesar dos significativos
progressos dos últimos anos, ainda está entre os mais desiguais, entre os países
em desenvolvimento. Isso pode ser encarado como uma oportunidade, na
medida em que o diálogo se dê, como tudo indica que ocorrerá nos próximos
anos, em ambiente de respeito pelas diferenças entre as experiências de um e
de outro país, tanto em âmbito federal, como Estadual e municipal.
Outra das prioridades reiteradas por Obama em seus planos de Governo
é a energia, em particular o desenvolvimento de fontes renováveis, a
conservação, a sustentabilidade e a diversificação das fontes de suprimento,
com a concomitante redução de dependências externas. Também nessa área,
o Brasil é visto como líder mundial. As conquistas do Brasil na esfera energética
são admiradas nos Estados Unidos e o desejo de parceria é perceptível,
tanto no Executivo como no Congresso e no setor privado. Note-se que uma
das nomeações mais ousadas e bem-recebidas do Governo Obama foi
justamente para o Departamento de Energia, para qual foi escolhido o físico
Steven Chu, o primeiro Prêmio Nobel a ocupar um posto ministerial nos
Estados Unidos. A indicação de Chu, comprometido com as fontes renováveis
e limpas de energia, foi geralmente interpretada como indicadora de nova
postura, mais cooperativa, no tema da mudança do clima.
As relações econômicas entre os dois países também se beneficiarão do
impulso positivo dos últimos anos. Entre 2000 e 2008, as exportações
brasileiras para os Estados Unidos passaram de US$ 13,2 bilhões para US$
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
30
27,4 bilhões (crescimento de 108%), ao passo que as importações foram de
US$ 12,9 bilhões para US$ 25,6 bilhões (crescimento de 98%), desempenho
mais dinâmico que o do intercâmbio com diversos países com os quais os
Estados Unidos mantém acordo de livre comércio. Em 2008, os Estados
Unidos foram o maior investidor externo no Brasil (US$ 7 bilhões) e também
o maior receptor de investimento externo brasileiro (US$ 4,8 bilhões). Os
estoques de investimento entre os EUA e o Brasil são significativamente maiores
que entre os EUA e os demais BRICs (China
2
, Índia e Rússia). Tanto o
Presidente Obama quanto a Secretária Clinton manifestaram interesse em
relações mais estreitas com o Brasil no plano econômico e comercial, como
se depreende, por exemplo, do apoio demonstrado por ambos à manutenção
do Fórum de Altos Executivos.
No tema prioritário do fortalecimento das instituições internacionais –
singularizado, como vimos, pelo Governo Obama como central – abre-se
espaço mais amplo de coordenação. Obama elevou a posição de
Representante Permanente junto às Nações Unidas ao nível ministerial, como
fora em alguns governos anteriores (mas não no de George W. Bush). A
indicada, Susan Rice, foi uma de suas colaboradoras mais próximas ao longo
da campanha eleitoral. Já em seu primeiro pronunciamento após a confirmação
no cargo, Rice indicou quatro prioridades: combate à pobreza, mudança do
clima, operações de paz e não proliferação. Em cada das áreas apontadas, o
Brasil é ator significativo. A cooperação entre os dois países nas Nações
Unidas poderá adquirir maior relevância em vista da projetada eleição do
Brasil para nosso nono mandato como membro eletivo do Conselho de
Segurança, em 2010-11. A participação do Brasil nos círculos decisórios
internacionais, proposição que vem ganhando apoio em Washington, abrirá
dimensões inéditas para o relacionamento bilateral.
O Presidente Lula recebeu telefonema do Presidente Obama, poucos
dias após sua posse, ocasião em que foi convidado para ser um dos primeiros
Chefes de Estado a visitar Washington. Obama foi convidado, na mesma
ocasião, a visitar o Brasil. Lula e Obama também estarão juntos na Cúpula
de Londres do G20 e na Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. O
Ministro Celso Amorim e a Secretária de Estado Hillary Clinton conversaram
por telefone logo após a confirmação de Clinton pelo Senado norte-americano
e, em 24 de fevereiro, mantiveram uma reunião de trabalho que permitiu o
2
Excluído Hong Kong.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
31
mapeamento de áreas para futura intensificação do diálogo e da cooperação:
energia, mudança do clima, combate à pobreza, Haiti, Cuba, Oriente Médio,
fortalecimento e reforma das Nações Unidas, entre outras. A cooperação
triangular para a promoção do desenvolvimento em terceiros países,
aproveitando as capacidades complementares do Brasil e dos Estados
Unidos, já foi iniciada nas áreas de etanol e saúde e poderá estender-se a
outros campos, permitindo atuação conjunta em favor do progresso regional
e global.
Nada disso implica alinhamento automático ou coincidência absoluta de
posições. Não é impossível que ocorram dificuldades, por exemplo, na agenda
comercial, abalada no mundo inteiro pelo agravamento da recessão econômica
e pelo ressurgimento de tendências protecionistas. A finalização da Rodada
do Desenvolvimento de Doha, os subsídios agrícolas, a tarifa do etanol, a
relação entre propriedade intelectual e acesso à saúde, a renovação anual do
Sistema Geral de Preferências (SGP): todos esses são temas que continuarão
a merecer, como tem ocorrido, atenção e esforço da diplomacia brasileira.
Recentemente, tive acesso a duas análises sobre o relacionamento entre
os Estados Unidos e o Brasil, encomendadas a dois especialistas em relações
internacionais sediados em Washington. Ambos assinalam o momento de
oportunidade que se abre com a eleição de Barack Obama, em contexto
internacional no qual o Brasil emerge como uma democracia sólida e uma
economia em expansão. Com a multiplicação de contatos governamentais no
mais alto nível, a crescente interação dos setores privados e o envolvimento
da sociedade civil, as perspectivas que se abrem são efetivamente
promissoras. Ao beneficiar-se de ambiente de crescente respeito mútuo e de
novas afinidades políticas, a relação entre Brasil e Estados Unidos poderá,
nos próximos anos, trazer ganhos para as duas sociedades e, como propõe
David Rothkopf, constituir “uma das parcerias estratégicas internacionais que
serão chave” para o equacionamento das grandes questões de paz,
desenvolvimento e sustentabilidade da agenda internacional.
33
A Configuração Mundial do Poder, a Nova
Hegemonia Norte-Americana e Novo Governo
Obama
Gilberto Dupas
1
Vamos investigar aqui algumas das questões fundamentais quando se
discute as condições cada vez mais complexas de governabilidade mundial
neste novo século. Apesar do duro legado do governo W. Bush, agora
dramatizado pela crise econômica mundial, parece claro que o mundo global
não pode prescindir das eventuais virtudes hegemônicas de sua maior potência,
até porque tão cedo não haverá quem possa substituí-lo. A maior qualidade
hegemônica é favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendo
diferenças, mediando crises e confrontos e possibilitando gestos simbólicos
em direção às nações e povos atingidos por excessiva exclusão e precariedade.
Se o novo governo Barak Obama não conseguir que os EUA assumam o
papel condizente com seu próprio poder, o que inclui antes de tudo a tolerância
com as diferenças e a busca permanente de consensos, teremos grandes
probabilidades de um século marcado pelas dores de um duro retrocesso.
Não temos razões sólidas para supor que estaríamos no limiar de um abalo
mais profundo que ferisse os fundamentos do sistema capitalista, os famosos
1
Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente
do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor de vários livros, entre os
quais O Mito do Progresso; Atores e Poderes na Nova Lógica Global e Ética e Poder na
Sociedade da Informação. Foi professor visitante da Universidade de Paris (II) e da Universidade
Nacional de Córdoba e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior
(CONAES). É também editor da revista Política Externa.
GILBERTO DUPAS
34
“sinais do outono”. Mas parece ter crescido progressivamente o número de
tensões que vão se acumulando em meio ao caminho, e pretendemos aqui
analisá-las.
A postura internacional dos EUA durante o governo W. Bush teve efeitos
complexos com relação ao futuro de sua condição hegemônica. A ação
terrorista de 11 de setembro, destruindo símbolos de seu poder econômico,
militar e político, foi um trauma imenso para os norte-americanos. Mas, para
além da brutal e humilhante surpresa de um ataque ao coração da grande
potência mundial, haveria suficiente inovação no grande atentado para justificar
que, a partir dele, o mundo teria mudado? E que seria necessária uma nova e
dura doutrina hegemônica de segurança? A suposição de uma privatização
das armas de destruição em massa por grupos não estatais pode ser muito
assustadora. Mas o 11 de setembro não parece diferir muito de um atentado
clássico. As armas foram aviões de companhias aéreas norte-americanas,
em vôo regular. Atos kamikases também não são novidades. No entanto, o
impacto dos atentados foi tão violento que justificou o brado guerreiro “os
que não estão conosco, estão contra nós”. Tratou-se de uma enorme escala
retórica se a compararmos com a frase que Madeleine Albright gostava de
repetir no governo Clinton: “Nós voamos mais alto, vemos de cima, e sabemos
o que é melhor para o mundo”. O trauma do 11 de setembro foi tão profundo
que não houve nenhuma resistência interna ao aumento massivo do orçamento
da defesa implementado pelo governo. O forte apelo patriótico e a
solidariedade resolveram a questão. No entanto, se olharmos um pouco para
trás, desde os anos 1990 certa arrogância tem predominado naquele país,
acentuada pela fantasia de Francis Fukuyama de que o fim da história – sob
a égide do triunfo americano – levaria o mundo inteiro a agir segundo seus
preceitos e valores. Mas o período de unanimidade está terminando. Da
mesma maneira que a economia americana é regida por ciclos mais amplos e
brutais que os dos países europeus, o espírito público americano passa também
por fases de grande arrebatamento seguidas por ondas de pesada autocrítica,
como foi a guerra do Vietnã, agora culminando com a eleição de Obama.
A doutrina W. Bush: origens e contradições
O maniqueísmo do bem e do mal sempre foi poderoso entre os norte-
americanos. Por sua longa tradição democrática, os políticos precisam justificar
seus objetivos de política externa primeiro dentro do país. E a manipulação
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
35
da questão do inimigo, do poder imoral e quase satânico que ameaçaria os
valores e a segurança da América vem sendo uma prática tradicional, como
se viu na Guerra Fria. O discurso fundamentalista da equipe de W. Bush tem
raízes mais profundas, até porque – após o colapso do império soviético – é
inverossímil acreditar que Afeganistão, Coreia do Norte, Iraque e Irã pudessem
de fato ameaçar os EUA. É preciso lembrar que as escolhas estratégicas dos
EUA pós-11 de setembro já estavam a caminho na campanha eleitoral para
a sucessão de Clinton. Basta ler ensaios de Condoleezza Rice e Robert B.
Zoellick, ainda em 2000, para verificar que aqueles conceitos republicanos
para uma nova política externa norte-americana estavam todos presentes em
artigo do secretário da defesa Donald H. Rumsfeld, que justificava a guerra
contra o terrorismo. É claro que os atentados provocaram a campanha contra
o Afeganistão e o Iraque, com modificações consequentes no equilíbrio da
Ásia Central e do Sul. Porém, o intervencionismo e o isolacionismo já eram
claras tendências nas duas décadas finais do século passado. Vários conceitos
vêm do governo Clinton. O “eixo do mal” (Iraque, Irã e Coreia do Norte)
são os mesmos “Estados bandidos” (rogue States) de Clinton. Com a questão
terrorista tendo centrado seus atos, Bush pôde mostrar-se de corpo inteiro.
Em artigo ao The New York Times, Bill Keller fez um balanço do que achavam
de Bush seus pares conservadores. Eles o julgavam essencialmente um
moralista, cujos ataques de setembro trouxeram à tona o missionário,
“convertido do álcool e da vida desregrada, para Deus e para a vida
doméstica”, o qual achava que todos são capazes de fazer o mesmo. Keller
classifica o moralismo de Bush ambicioso e messiânico, “convencido de que
o maior projeto dos EUA é combater o mal e implantar o que chama de
‘valores universais’ em todo o mundo”. Norman Podhoretz, influente autor
conservador, acredita que o objetivo estratégico do presidente era “mudar o
regime de seis ou sete países e criar condições que levassem à reforma interna
e à modernização do mundo islâmico”. Tratar-se-ia, obviamente, de um
objetivo arriscado e prepotente, que nos remete a uma discussão sobre
responsabilidades hegemônicas que farei mais tarde.
O que o 11 de setembro permitiu foi a aceleração de um rumo já traçado
pela administração Bush, juntando republicanos e democratas para apoiar as
escolhas estratégicas mais agressivas da administração republicana e
acelerando a “guerra contra o terrorismo”. Nessas novas ações ofensivas,
Washington preferiu ter o suporte de uma coalizão; mas enfatizou que isso
não era um pré-requisito para a operação. A “Estratégia de Segurança Nacional
GILBERTO DUPAS
36
dos Estados Unidos” encaminhada ao Congresso por Bush deixava claro
que seu governo pretendia agir preventivamente contra atos de terrorismo e
que “não vamos hesitar em agir sozinhos”. É o que, de alguma forma, já havia
ocorrido na Guerra do Golfo e no Afeganistão. Alguns falcões do Pentágono
– mas, principalmente Rumsfeld e Wolfowitz – eram contra uma colaboração
européia, com envolvimento da OTAN, que introduziria considerações
diplomáticas ou políticas em detrimento da eficácia operacional. No entanto,
uma parte dos militares achava que as restrições às ineficiências das operações
de campo vinham do próprio Pentágono e de sua imensa burocracia. Essa é,
aliás, a opinião de Eliot A. Cohen. Ele analisa as dificuldades de promover
mudanças quando está em jogo o conservadorismo militar. Mostra, também,
que a designação de funcionários civis sem preparo e especialização deixa o
Pentágono excessivamente nas mãos da estrutura militar, que defende suas
respectivas Forças em detrimento de uma ação estratégica conjunta.
O ataque aos EUA deixou à mostra as condições das alianças norte-
americanas na região de influência islâmica. Paquistão, Egito e Arábia Saudita,
que forneceram o grosso dos militantes do Al-Qaeda, eram considerados
aliados dos EUA; o Irã, que aparentemente não forneceu nenhum, foi acusado
de principal suporte do terrorismo. A China, considerada a ameaça do século
XXI, deixou de sê-lo. Além do mais, a radicalização do terrorismo parece
mais um fenômeno também interior ao Ocidente e a seus aliados próximos
(Arábia Saudita e Paquistão) do que exportação do “eixo do mal”. A maior
parte dos integrantes do Al-Qaeda são re-islamizados ou vieram do Ocidente;
encontram-se santuários terroristas em New Jersey e nas periferias londrinas
e parisienses.
As reflexões sobre as raízes profundas do terrorismo continuam
bloqueadas entre os americanos. São sumariamente rejeitadas associações
com a humilhação vivida pelos árabes, o conflito Israel-Palestina e a ação
norte-americana contra o Iraque. Havia duas ideias fixas: o suporte absoluto
a Israel e a obsessão de derrubar Saddam Hussein acertando velhas contas,
ainda que ao preço de levar a região ao caos e promover hostilidades entre
europeus. A relação entre terrorismo e pobreza também sempre foi rejeitada,
já que ele tem vindo de classes médias ocidentais. Não se cogita da ideia da
solidariedade ideológica com os pobres, das cicatrizes da colonização, da
imigração e da marginalização, nem das realidades presentes no Oriente
Médio. Como o radicalismo se alastrou entre muçulmanos que vivem no
Ocidente, também foi eliminada a hipótese de que o apoio a regimes autoritários
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
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(Argélia, Arábia Saudita e Tunísia) bloqueia o desenvolvimento de um Islã
moderno e liberal. Sobrou, então, a questão culturalista do tipo “o problema
é o Islã”. Os americanos achavam, de maneira simplista, que a solução pode
ser alcançada, em alguns anos, com o uso da força e de ações políticas
concretas. A tese principal seria a incompatibilidade do Islã com os valores
da América. Daniel Pipes, por exemplo, fazia ligação entre imigração e
terrorismo, apoiava as medidas anti-imigração europeias e introduziu a questão
do crescimento demográfico palestino e da comunidade muçulmana nos EUA.
São teses assemelhadas às da extrema direita francesa e austríaca.
A doutrina W. Bush assumiu parte dessas ideias ao radicalizar o discurso
contra os “inimigos”, como consta da “Estratégia de Segurança Nacional dos
Estados Unidos” enviada rotineiramente pelo governo ao Congresso. Assumiu
o terrorismo como tão ilegítimo quanto a “escravidão, a pirataria e o
genocídio”, e deu-se ao direito de “agir sozinho” de maneira preventiva e
antecipada em qualquer lugar no mundo, deixando claro que “nunca permitirá
que outro país desafie sua superioridade militar (...) ameaçada agora pelos
países mais fortes do que pelo mais fracos”. Por outro lado, falava em “apoiar
os governos moderados, especialmente no mundo muçulmano, para assegurar
que as condições e ideologias que promovem o terrorismo não encontrem
terreno fértil em nenhuma nação”. O que permitiu espaço não para atacar
indiscriminadamente o Islã, mas para apoiar o “bom” Islã contra o “mau”. O
problema central está contido no maniqueísmo ultra-redutor e implícito à
definição de “bem” e de “mal”, associado a atitudes belicosas unilaterais. A
respeito da nova doutrina, em editorial de setembro de 2002, o The New
York Times advertia que “quando essas estratégias belicosas se convertem
no tema dominante da conduta americana, a nação corre o risco de afastar
de si os amigos e solapar justamente os interesses que Bush procura proteger.
Líderes fortes e confiantes não precisam ser arrogantes. Na verdade, a
arrogância subverte a liderança eficiente. (...) Bush precisa tomar cuidado
para não converter os EUA em uma fortaleza que inspire a inimizade, em vez
de inspirar a inveja ao mundo”.
Usando uma retórica alternativa, eventualmente mais sutil, Richard Haass,
Ex-Diretor de Planejamento do Departamento de Estado, propôs “integrar
países e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com os
interesses e valores americanos”. O pressuposto é que esses “valores
americanos” coincidiam com o de outros países, na medida em que são
supostos universais, impondo-se sem necessidade de negociação. Essa ideia
GILBERTO DUPAS
38
foi também defendida por Paul Wolfowitz, ex-secretário-adjunto da Defesa:
“Para ganhar a guerra contra o terrorismo e ajudar a construir um mundo
pacífico, devemos falar às centenas de milhões de pessoas tolerantes
moderadas do mundo muçulmano, já que elas vivem e aspiram usufruir os
benefícios da liberdade, da democracia e da livre iniciativa. Esses valores são
descritos como ocidentais, mas, de fato, são uma aspiração comum da
humanidade”.
A proposta de Wolfowitz era desenvolver um Islã moderado e liberal,
compatível com as aspirações dos que vivem no Ocidente. São ideias que se
oporiam ao crash de civilizações, no pressuposto de que haveria uma só
civilização, sendo o resto barbárie. Wolfowitz dizia que é preciso pôr de pé o
Islã moderado, isolando o radical, e mover uma guerra ideológica contra os
radicais – como foi feita contra o comunismo – envolvendo intelectuais, artistas
e sindicatos. Tratava-se de uma nova guerra de propaganda e de uma
engenharia social que promoveria os valores da administração americana:
democracia, direitos dos homens, livre comércio, livre iniciativa. O pressuposto,
mais uma vez, é que o monopólio da verdade faz esses valores universais.
Clinton colocou, então, a seguinte questão: “Podemos ser donos da verdade
inteira, ou devemos nos unir a outros na busca pela verdade?”
A constituição de um Islã moderado, made in West, tinha como premissa
que vários dos quadros radicais mais importantes são formados no Ocidente,
não nos mollahs; que eles vinham dos moldes ocidentais, não das madrasas.
E que a radicalização não brotaria necessariamente de um ensinamento
religioso, mas seria consequência das complexas frustrações que afetam tanto
intelectuais laicos como nacionalistas. Os radicais seriam também um produto
das decepções, marginalizações e diluições de identidades, fruto da
globalização e da ocidentalização do mundo. Eles buscariam uma forma
desesperada de romper com o consumismo desenfreado, a sociedade
performática e o sentimento de exclusão. Esses radicais adorariam suas teses
de corpo e alma; e captavam ampla simpatia e solidariedade, especialmente
quando se mostram dispostos a pagar o preço do martírio.
Apesar de aparentemente bem articulada em torno da “nova doutrina de
segurança”, a política dos EUA nos anos W. Bush – examinada de maneira
mais rigorosa – parece uma colcha de retalhos de decisões anteriores ao 11
de setembro, envolvendo considerações ideológicas, interesses contraditórios
e voluntarismo moralizante. Ocultando-se sob um discurso de valores, ela se
apresentava revestida de uma coerência que não se sustentava. Esse discurso
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
39
tentava mascarar e conciliar componentes contraditórios. Com isso, induzia
os outros países e forças públicas a ratificar certos princípios difíceis de rejeitar
de imediato e tenta criar espaço para a força bélica norte-americana – logística
e financeiramente auto-suficiente – operar livremente em qualquer parte do
mundo em intervenções pontuais. O rescaldo da ocupação, política e
operacionalmente muito complexo, era deixado – sempre que possível – a
cargo dos europeus ou de organizações internacionais. É o caso do Kosovo,
do Afeganistão e da Palestina. E, talvez agora, no Iraque.
A nova moral hegemônica definia os campos com muita clareza. De um
lado, “o direito e a democracia”; de outro, “as forças do mal”. O que significa
a volta a uma retórica maniqueísta que redivide o mundo entre “bons” (aqueles
que estão com os EUA) e “maus” (aqueles que estão contra ou hesitam). Na
realidade, para além do aparente monolitismo desses conceitos, essas
categorias transitórias são fortemente impregnadas de Realpolitik em função
dos “interesses superiores da nação”. Essa situação tem criado espaços e
margem de manobra para os atores regionais acomodarem seus objetivos.
Um triste exemplo é a situação do Oriente Médio. Em todo o período
subsequente à criação do Estado de Israel e ao início do conflito entre palestinos
e israelenses, os EUA mantiveram grande influência sobre a região na condição
de grandes operadores da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial e fiel
depositário do novo equilíbrio ocidental em torno das instituições de Bretton
Woods. Embora mais identificados com os interesses de Israel – e acusados
disso muitas vezes pelos grupos palestinos –, ainda assim sucessivos governos
norte-americanos tinham se empenhado para evitar uma situação muito crítica
na região, inclusive na época da Guerra Fria. Bill Clinton esteve prestes a
arrancar um acordo que poderia ter posto fim ao conflito. Ehud Barak havia
quebrado um tabu ao oferecer a divisão de Jerusalém, mas Yasser Arafat –
pressionado no seu front interno e com pouco espaço de manobra – acabou
não viabilizando um entendimento. No entanto, a situação internacional norte-
americana após os atentados de setembro foi profundamente danosa para a
situação no Oriente Médio. A radicalização do discurso de Bush sobre a
questão terrorista deu pretexto a um brutal endurecimento do regime de Israel,
perdendo os EUA legitimidade para funcionar – senão como árbitro – pelo
menos como capaz de conter os impulsos agressivos de parte a parte,
especialmente de Israel. Sharon considerou-se, então, livre para tentar liquidar
– a sua maneira – a autoridade palestina. Na realidade, vários atores regionais
imediatamente procuraram adaptar seus interesses a essas novas circunstâncias
GILBERTO DUPAS
40
da lógica do poder mundial. Alemães e japoneses aproveitaram a
oportunidade para se livrar das últimas restrições dos acordos de pós-guerra
que limitavam investimento militar. A Inglaterra movimentou-se rapidamente
para o espaço de grande aliado dos EUA na Europa, deixando claro a franceses
e alemães que não aceita um papel secundário nas discussões centrais na
nova Europa. E a Rússia, enquanto flerta com o “eixo do mal” fazendo acordos
comerciais com o Iraque e a Coreia do Norte, negociava “apoio” norte-
americano para suas estratégias agressivas na Tchetchênia e na Geórgia.
Na verdade, o sentimento de brutal fragilidade despertado pelos
atentados aos EUA revelou um país violentamente defensivo e sem projeto
sistêmico ou de governança global, papel inalienável da sua condição
hegemônica. Mas há outra importante faceta dessa questão. A nova doutrina
W. Bush também foi uma resposta à globalização. Fazendo desaparecer o
espaço de ação dos Estados nacionais, a globalização destruiu o conceito
de espaço estratégico. Sobrou muito pouco a negociar em termos de
territórios, de esferas de influência ou de interesses vitais com a perda de
autonomias nacionais. Como se pode negociar – ou dissuadir – os novos
terroristas se eles não representam Estados e não têm nada a perder e nem
senhores a quem dar satisfação?
Os complexos caminhos da hegemonia norte-americana
Nações hegemônicas sempre defenderam teses que interessam mais a si
próprias que ao sistema de nações sobre o qual exercem seu controle. Mas
é condição de exercício da hegemonia que os países que são parte do sistema
achem que essas teses também lhes interessam de alguma forma. Caso
contrário, a hegemonia teria que ser substituída por coerção. É esse o perigo
que os EUA e o mundo correm no momento em que teses unilaterais parecem
dominar as ações da grande potência mundial. Assim, recoloca-se a questão
do papel hegemônico.
Analisando os ciclos hegemônicos, Fernand Braudel constatava que,
sempre que os lucros do comércio e da produção se acumulavam além dos
canais possíveis de investimento, este era um “sinal do outono”. As expansões
financeiras daí decorrentes provocavam duas tendências complementares:
hiperacumulação e competição intensa por capital. Expansões do comércio
e da produção muito rápidas e lucrativas geravam forte concorrência e, por
sua vez, tenderam a acumular lucros superiores à capacidade de investir. A
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
41
consequência era o crescente acúmulo de rendimentos e a criação de uma
grande liquidez. As taxas de retorno em queda na atividade comercial e de
produção geravam restrições orçamentárias que aumentavam a competição
pelo capital e poderiam elevar as taxas de juros. Nesses processos, fortes
redistribuições de renda aconteciam a favor dos detentores da liquidez,
sustentando uma atividade financeira divorciada da produção.
As expansões financeiras inflavam temporariamente o poder do Estado
hegemônico em declínio, já que ele mantinha o acesso privilegiado da liquidez
que se acumulava nos mercados financeiros mundiais. Essas expansões de
liquidez, no entanto, acabavam transferindo o capital para novos sistemas
emergentes com maiores perspectivas de segurança e lucro que os dominantes
até então. Na transição, a crescente desorganização sistêmica diminuía o poder
de ação da potência hegemônica em crise e aumentava a demanda por
governabilidade mundial a quem pudesse oferecê-la. Se surgissem novas
estruturas governamentais e empresariais com maior competência organizacional,
estariam abertas as condições para uma nova hegemonia. Esses padrões de
repetição – hegemonia levando à expansão, expansão ao caos e caos à nova
hegemonia – verificaram-se nas transições hegemônicas do passado.
Os holandeses haviam construído a sua liderança como mercadores e
não como soldados. No entanto, três guerras sucessivas contra os ingleses
entre 1652 e 1674 os obrigaram a aceitar o monopólio britânico na navegação
e ceder o controle do tráfico de escravos na África Ocidental. Isso fez os
portos ingleses superarem Amsterdã; e suas indústrias cresceram rapidamente
com a ajuda do mercado triangular no Atlântico (escravos, matérias-primas e
manufaturas). Derrotada a ameaça francesa nos mares e depois em terra –
na desastrada campanha russa de 1812 – o espaço estava livre para a
imposição da Pax Britannica com o Tratado de Viena (1815), que conduziu
a Europa a uma paz de cem anos (1815-1914). A concepção inglesa de
equilíbrio do poder foi construída devolvendo parte das Índias Orientais e
Ocidentais à Holanda e França, colocando-se como protetora do comércio
marítimo, liberalizando unilateralmente o seu comércio, barateando o custo
de produtos essenciais e criando meios de pagamento para a compra de
produtos industrializados ingleses. Com isso, um número crescente de países
pôde se encaixar numa benéfica divisão internacional de trabalho que
preservava a centralidade comercial inglesa.
A derrota de Napoleão já havia alterado radicalmente as relações de
força na América do Norte, permitindo aos colonos abrirem mão da proteção
GILBERTO DUPAS
42
inglesa e preparar sua independência. Nas guerras do final do século XIX,
por sua vez, técnicas de produção em massa foram aceleradas, a partir da
Guerra da Crimeia, com uso do sistema de fabricação americano de usinagem
automática, exibido na Grande Exposição de Londres em 1851. O navio a
vapor mudou a lógica militar. E o mundo ficou repleto de nações industrializadas.
Já no século XX, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o custo
das vitórias que contiveram a Alemanha precipitou o declínio inglês em favor
dos EUA. Assim que liquidaram sua dívida com a receita das armas, a liquidez
americana se converteu em empréstimos domésticos e internacionais em
grande escala. A Segunda Guerra fez despertar o poder mundial centrado
nos EUA, liquidados temporariamente Alemanha e Japão e enfraquecidas a
Inglaterra e a França. Concebida por Roosevelt, a ordem mundial norte-
americana pós-guerra estava imbuída da mesma ideologia de segurança que
havia impregnado o seu New Deal interno. A ONU e o FMI tornaram-se o
núcleo de um governo mundial dominado pelos EUA. Truman conseguiu
utilizar-se plenamente do pretexto da Guerra Fria para concretizar uma visão
“livre-mundista” voltada contra o perigo soviético. A partir de 1970, com a
humilhante derrota no Vietnã e sintomas de crise no sistema monetário centrado
em Bretton Woods, a hegemonia americana apresentou alguns sinais de perda
de dinamismo. Mas a surpreendente derrocada soviética deu-lhe novo ímpeto.
Cada reorganização do sistema de poder mundial havia acarretado
mudanças nas relações entre o capital e o Estado. A concessão de monopólio
esteve na base da enorme acumulação tanto nas companhias de comércio e
navegação holandesas do século XVII como nos fabricantes ingleses do século
XIX. Já a grande empresa verticalizada vinda da tradição fordista do início
do século XX sofreu uma revolução a partir dos anos 1980, com a tecnologia
da informação permitindo o fracionamento das cadeias produtivas globais e
a flexibilização da produção a partir das parcerias e terceirizações utilizando
os novos conceitos de redes. A empresa transnacional norte-americana, tal
como sua ancestral mercantil, tem desempenhado papel fundamental na
ampliação e manutenção do poder dos EUA. As análises sobre a natureza
do enorme deficit comercial norte-americano deixavam claro que ele é
provocado pela imensa dispersão da atividade produtiva das empresas
sediadas no país – que exportam mais a partir de suas filiais externas do que
de sua sede continental – e não, obviamente, por problemas de
competitividade. A vitalidade das corporações globais é intensa. Mas a enorme
concentração e a transnacionalização dessas empresas e do sistema financeiro
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
43
geraram um sistema global pouco sujeito à autoridade estatal e com poder
sobre as nações mais poderosas do mundo, diminuição dos empregos, piora
do perfil de renda e deficits externos estruturais crescentes nos grandes países
da periferia. Os graves problemas dos cidadãos, que provocam demanda
locais, vão se distanciando cada vez mais da possibilidade de ação dos
mecanismos estatais, ocasionando crescente perda de capacidade reguladora
desses Estados nacionais.
A anatomia do capitalismo e suas crises
Os conflitos entre capital e trabalho são estruturais e permanentes. Em
Bretton Woods aceitou-se que os governos usassem políticas monetárias
como instrumento de redução do desemprego. Truman acreditava que o
conflito capital-trabalho poderia ser domesticado pela aplicação vigorosa
dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos.
No passado, como lembram Beverly J. Silver e Eric Slater, as transições
hegemônicas haviam convivido com crescentes conflitos sociais. Eles
moldavam, em meio aos colapsos, os pactos sociais que sustentariam a nova
hegemonia. Atualmente, os EUA controlam o poder militar; o Japão e os
chineses de além-mar detêm a liquidez; e a República Popular da China
possui a mão de obra barata, alta produtividade industrial, grandes reservas
e é sócia essencial do capitalismo global. Esse arranjo estrutural sem
precedentes, que parecia manter em relativo equilíbrio as estruturas de poder
mundial, foi atropelado pela crise econômica global e torna mais complexa a
investigação do eventual declínio hegemônico norte-americano.
Mas uma questão de fundo se sobrepõe a essa análise. Há sinais de crise
sistêmica e estrutural no capitalismo global? Sabemos que estudar o
capitalismo é investigar a morfologia dos seus ciclos e crises. Sua história é
uma alternância entre otimismo e desalento, crescimento e recessão, a
depender da qualidade das regras e instituições presentes em cada uma dessas
etapas. A proposta do pós-guerra, influenciada por ideias keynesianas, era
constituir uma nova ordem internacional propiciando amplo raio de manobra
para políticas nacionais de desenvolvimento. Seguiu-se a era dourada das
décadas 1950 e 1960. Em 1971, no entanto, Nixon suspendeu a
conversibilidade do dólar em ouro. Uma de suas consequências foi a profunda
redução do poder de compra dos países exportadores de petróleo, em função
da erosão do dólar. A alta de preços provocada pelo cartel do petróleo em
GILBERTO DUPAS
44
1973, e agravada em 1979, provocou ondas depressivas na economia
mundial, especialmente nos importadores de petróleo que tiveram que arcar
com um forte endividamento para manter equilibradas suas reservas. A
abundância dos chamados petrodólares facilitou a reciclagem financeira desses
países mediante crédito fácil. Mas a adoção da taxa de juros flutuantes, junto
com o crescimento das dívidas, introduzia um fator importante de instabilidade
no cenário.
O declínio do “consenso keynesiano” resultou na elevação das taxas de
juros americanas em outubro de 1979. A partir daí, cresceu o patamar
inflacionário geral, criou-se o euromercado pelo excesso de dólares e
finalmente substitui-se o regime de taxas fixas de câmbio pelo câmbio flutuante.
A primeira grave crise internacional dos anos 1980, iniciada com o colapso
da dívida externa latino-americana, tem a ver, pois, com o novo nível de
estoque dessa dívida, agravada, principalmente, pela decisão dos EUA de
aumentar fortemente os juros. No período 1981-1990, por conta de
profundos ajustes recessivos, o crescimento da renda per capita da América
Latina foi negativo. No final da década, reconhecendo a incapacidade de
pagamento de vários países, os EUA lideraram no G-7 os planos Baker e
Brady e operaram descontos no valor nominal e nos juros dos empréstimos
contraídos durante a década.
Os anos 80 inauguraram a era dos mercados financeiros livres. A
afirmação da supremacia dos mercados gerou uma onda de crises que varreu
as duas décadas seguintes e permanece até hoje. Ela iniciou com o crash da
Bolsa de Valores em 1987, continuou com a quebra dos mercados imobiliários
em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em 1990, os ataques especulativos
às moedas fracas europeias em 1992 e 1993 e a crise dos bônus americanos
em 1994. Nesse mesmo ano, a grande volatilidade dos fluxos internacionais
acabou tendo um duro teste na crise cambial mexicana no final de 1994,
provocando efeitos regionais perversos na Argentina e no Brasil. Mais para o
final da década, veio a crise asiática, provocada por uma reversão do fluxo
internacional de recursos aos países da região, abundantemente irrigados por
financiamentos e investimentos em função de seus desempenhos econômicos
considerados até então diferenciados. Seguiram-se desvalorizações intensas
na Tailândia, Malásia e Coreia, com repercussões em toda a área. Em seguida
veio a crise russa, que se superpôs à segunda fase da crise asiática, e foi
coroada com a moratória de 1998. Finalmente, a década terminou com nova
crise brasileira. Em 2001 estourou o colapso argentino, após anos de estrito
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
45
cumprimento das recomendações das instituições internacionais, obrigando
o país a abandonar a paridade, provocando uma desvalorização de 200%
em sua moeda e o desmoronamento do seu sistema financeiro. Ao mesmo
tempo a Turquia entrava em forte declínio, exigindo rápido suporte do FMI
para controlar uma situação precária da qual não saiu até agora. Depois o
Brasil passou a ser a grande fonte de preocupação mundial, não só pela
fragilização dos seus fundamentos mas, principalmente, por efeito da turbulência
das eleições presidenciais que elegeram Lula e que levantavam suspeitas que
mostraram-se sem sentido.
As grandes questões sem resposta
Hobsbawm acha que a doença ocupacional de uma superpotência é a
megalomania; e que os EUA terão que aprender as limitações de poder,
como os ingleses fizeram no século XIX. Mas a crise econômica que sucedeu
ao estouro da “bolha tecnológica” na Bolsa de Valores norte-americana, com
repercussões em todo o mundo, acrescenta um ingrediente novo e faz algumas
questões de fundo se colocarem. Estaríamos diante de sinais de declínio da
hegemonia norte-americana, tal como ocorreu com a holandesa no século
XVII, ou com a britânica ao final do século XIX? Por outro lado, será que o
mesmo modelo de nação hegemônica, organizadora e reguladora do espaço,
continuará a prevalecer na era da informação? Estaria a despontar da atual
turbulência global uma nova estrutura hegemônica? Ela seria da mesma
natureza da que foi rompida?
Fernand Braudel dizia que não há capitalismo vigoroso sem um Estado
forte que esteja a seu serviço. Atualmente, os imensos fluxos de capital privado
e a lógica dos blocos regionais impõem restrições cada vez mais rigorosas às
políticas econômicas. No entanto, teria sido muito diferente de hoje a relação
básica entre Estados e grandes corporações nos ciclos hegemônicos
anteriores? Mais do que em qualquer outro período da história econômica,
as tentativas de estabilizar o crescimento econômico estão severamente
limitadas por uma total anomia e pela perda de capacidade regulatória das
instituições internacionais. E a confiança na inovação tecnológica como motor
da acumulação capitalista foi temporariamente posta em dúvida pelo colapso
do preço das ações das empresas de ponta tecnológica, que havia justificado
expectativas absurdas de taxas de retorno de investimentos, criando um estado
de exaltação inconsequente quanto ao futuro do capitalismo. Será possível
GILBERTO DUPAS
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aos EUA – com a ajuda dos órgãos internacionais fortemente dependentes
de sua influência (ONU, OMC, BIRD e FMI) – reconstruir um poder
regulatório da ordem mundial, incluindo nesse poder os fluxos financeiros
globais que, em sua brutal autonomia, movimentam-se aos solavancos,
provocando enormes danos e tumultos nos países mundo afora?
A crise, o novo Governo Americano e a configuração mundial do poder
A crise sistêmica desencadeada a partir de setembro questionou alguns
dos fundamentos do capitalismo global. A partir dos anos 1980, o fim da
polarização ideológica e a acesso aos mercados globais haviam levado a
uma profunda transformação na política e na economia. Os Estados nacionais
tornaram-se atores mais frágeis e as grandes corporações globais impuseram
o seu estilo de busca de lucro a qualquer preço, operando nas zonas cinzentas
do mercado e fragmentando sua produção mundial. Esse foi, aliás, o caminho
da incorporação da China ao processo capitalista, do qual se tornou parceira
muito relevante e a mais recente florescência do modelo americano. As
questões relativas à regulação passaram a ser rejeitadas como indesejáveis
resíduos arcaicos que tentavam limitar o vigor do capitalismo vencedor. A
crise atual provocou uma reviravolta momentânea nesses conceitos.
Neoliberais viraram keynesianos e governos democráticos dos países líderes
mundiais alocaram volumes equivalentes a quase 20% dos respectivos PIBs
para socorrer bancos e empresas submetidas a gestão temerária, sob a
justificativa parcialmente verdadeira de que estão protegendo casas, poupanças
e empregos da população. Enquanto isso, Alan Greenspan, pedia desculpas
ao mundo por não ter percebido que o mercado tinha virado um cassino e
exigia controles.
A erosão da confiança dos cidadãos em seus dirigentes e nas instituições
políticas é o principal problema das democracias atuais. O individualismo se
exacerbou, a esfera pública se erodiu e os interesses privados se impuseram
nos altares do mercado. As segundas hipotecas e os subprime só ocorreram
porque os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao consumo conspícuo
pela propaganda, supondo que a escalada absurda de preços dos seus imóveis
seria permanente. O mundo macroeconômico havia entrado numa fase de
alta complexidade onde dominam opiniões tecnocráticas muito distantes da
sensibilidade do cidadão-consumidor; o capitalismo financeiro global
aproveitou-se disso e vendeu-lhe fantásticas miragens.
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
47
A crise também tem a ver com o mundo vivendo acima dos seus meios.
A era da abundância em recursos naturais já havia terminado há dez anos.
Cientistas respeitáveis alertavam que mais alguns passos da humanidade na
direção errada - e a degradação ecológica poderia ser irreparável, vitimando
gerações futuras. Mas o poder econômico continuava garantindo que as novas
tecnologias “dariam um jeito”. A questão é de quem são as escolhas; e a
quem elas beneficiam. Como conseguir uma mudança radical de modelo de
produção, com a redução do consumismo desenfreado e do sucateamento,
se o mercado livre é a lei e os grandes atores econômicos têm total liberdade
de definir a direção dos vetores tecnológicos? Alguém acredita que o próprio
mercado possa se auto-regular? Quem vai ser capaz de enfrentar a batalha
gigantesca de reconversão da lógica privada de produção em nome do futuro
da civilização?
Howard Davis, diretor da Escola de Economia de Londres, descreve o
kafkiano conjunto de uma centena e meia de entidades e comitês internacionais
que até aqui faziam de conta que controlavam o sistema financeiro
internacional. E defende regras duras para amarrar as partes soltas do sistema,
incluindo seus buracos negros, e a exigência aos bancos de comportamentos
contra cíclicos como capitalização obrigatória quando os preços de mercado
atingem valores acima das médias.
A crise iniciada em 2008 pelo colapso do sistema financeiro pode, de
fato, gerar uma nova era de regramento do lado desenfreado do capitalismo
global? Quem serão seus agentes? Políticos movimentam-se de forma
hiperativa, outorgando-se poderes de épocas de guerra; mas ainda estão tão
perdidos como os economistas e intelectuais. Suas posições oscilam entre a
antevisão “das folhas de outono” do fim do capitalismo até a assunção de
que esta é uma mera crise de ajuste e será resolvida com certa socialização
de prejuízos e alguma regulação. Mas a sua verdadeira natureza é tão
complexa que conduz a uma cegueira relativa. Ulrich Beck diz que o
comportamento atual das autoridades mais lhe parece a daquele bêbado que
procura sua carteira perdida em meio à noite escura com o facho de uma
lanterna. Ao ser perguntado “É mesmo aqui que você a perdeu?” ele responde:
“Não; mas a luz dessa lanterna me permite ao menos continuar procurando”.
Beck lembra que risco e dano não significam necessariamente catástrofe,
mas que a percepção dos seus efeitos futuros em áreas críticas como clima,
finanças ou terrorismo, instaura um estado de exceção ilimitado que transcende
a escala nacional para a dimensão universal. O problema é que a legitimidade
GILBERTO DUPAS
48
de uma ação cosmo-política face às crises globais depende muito do foco
das mídias, que só as abordam quando elas viram catástrofes.
Em suma, essa crise tanto pode ser de fundamentos quanto de forma; ou
de ambos. Muitas águas ainda rolarão sobre as escoras do capitalismo global;
e algumas dessas escoras ainda podem cair com a força das correntes.
Estruturas e equilíbrios de poder irão se alterar tanto na política como na
economia, e muito exigirão de seus atores principais. Especialmente de Barack
Obama, tido como analista frio e construtor de consensos. Porém sua equipe
é apenas uma reconstituição completamente da época Clinton, com alguns
toques do Bush e dos jovens seguidores de Obama. Esperava-se por
mudanças mais radicais, mais a ética da convicção outra vez cede à ética da
responsabilidade. Bastará para o tamanho do desafio? Obama já respondeu
às críticas de sua ala mais à esquerda que clamava por mudanças com uma
frase emblemática: “a mudança sou eu!”
E o que pode mudar no papel estratégico da América Latina? Em editorial
recente, o NYT falava de uma oportunidade única para o novo governo
incrementar laços com uma região que supre os EUA com um terço das suas
importações de óleo, a maioria dos seus imigrantes e quase toda a cocaína
que consome. Os líderes latino-americanos querem saber se Washington vai
agora falar a sério sobre política de energia, integração econômica, imigração
e tráfico de drogas. O NYT propõe acabar com o embargo sobre Cuba e
aproveitar o enfraquecimento de Chávez com políticas ativas de ajuda
envolvendo também Nicarágua, Honduras e toda a região. Finalmente, pede
tarifa zero ao etanol brasileiro.
O relatório do National Intelligence Council, preparado a cada quatro
anos pelo núcleo duro do establishment de segurança dos EUA está pronto
para ser entregue a Obama e diz que “o país ainda joga um papel
proeminente nos eventos globais”, dramática diferença com o anterior
que falava numa contínua dominância dos EUA. A tendência geral da
intelectualidade do país é o chamado “new declinism” – a sensação de
que a mais poderosa nação do mundo está em declínio. O oposto da
agressiva confiança dos anos Bush e do momento unipolar. Três razões
principais são apontadas: Iraque e Afeganistão são a certeza de que a
supremacia militar não se converte automaticamente em vitória política; o
crescimento da China e Índia como novos atores de peso; e a percepção
vinda da crise de que os EUA estão vivendo acima de suas possibilidades
e de que há alguma coisa errada no modelo americano. O respeitado
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
49
General Brent Scowcroft declarou outro dia “O exercício do nosso poder
nos revelou que ele é efêmero”. No livro de Fareed Zakaria, que consta
ter sido o único sobre política externa lido por Obama em 2008, ele
conclui que os anos Bush foram o apogeu do poder americano. Richard
Haass, Chairman do Council on Foreign Relations é enfático: “O momento
unipolar dos EUA se foi”. No entanto, William Wohlforth adverte que já
houve outros momentos de crise de confiança seguidos de recuperação,
como após a derrota no Vietnam.
O fato é que, salvo crise político-social de grandes proporções na China,
a estagnação dos próximos anos trará definitivamente uma mudança de patamar
no poder chinês. Nada ainda para ameaçar a hegemonia norte-americana. Mas
com China crescendo a 7%, Europa e Japão estagnados e EUA a passo de
cágado, em 5 anos, os chineses terão um PIB de US$ 5 trilhão, tendo
ultrapassado largamente França, Inglaterra e Alemanha e ligeiramente o Japão,
transformando-se na segunda maior economia do mundo. Só que os EUA
ainda estarão com US$ 15 trilhão, 3 vezes mais que a China!
Assim, gostemos ou não, teremos que continuar convivendo com a
hegemonia norte-americana. Mas ser hegêmona é mostrar competência em
fazer um discurso e praticar ações que, embora interessando mais ao próprio
hegêmona, possam ser compreendidos pela comunidade internacional como
interessando razoavelmente a todos. Conforme já lembramos, do “voamos
mais alto e sabemos o que é melhor para o mundo” de Madeleine Albright
(na era Clinton) ao “quem não está conosco está contra nós” do
fundamentalista Rumsfeld (nos tempos de Bush) houve uma escala imensa da
hegemonia em direção a uma quase tirania. O que nos resta é cobrar da
potência norte-americana o exercício de uma hegemonia benévola que leve
cada vez mais a consensos multipolares que aliviem as tensões mundiais e
gerem condições de governabilidade sistêmica. Esse é o grande desafio e o
papel esperado do governo de Obama.
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53
A América Latina e o Caribe; e o Brasil
**
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
*
*
Embaixador, Diretor do Departamento da América Central e do Caribe, do Ministério das
Relações Exteriores.
**
Texto apresentado na Sessão sobre América Latina e Caribe da “III Conferência Nacional de
Política Externa e Política Internacional - CNPEPI - O Brasil no mundo que vem aí”,
realizada no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 8 e 9 de dezembro de 2008, sob os
auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão e do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais.
Não se fala de Europa latina e muito menos de África latina como se fala
de América latina. Por quê?
O Haiti é América latina? E Guadalupe? Martinica?
O que se costuma chamar de América latina, na verdade, é a América
ibérica. É a América que os portugueses e espanhóis construíram. É a América
que fala português e espanhol. É a América que herdou um comportamento
cultural ibérico, uma predominância cultural católica mas, sobretudo, uma
mestiçagem cultural e social que se quis aberta, através de sua história, a
outras influências, mas aberta com a condicionante da predominância da
chamada cultura ocidental.
O que se convencionou chamar de América latina é esse espaço geográfico
e histórico onde a cultura européia, filtrada pela visão de mundo ibérica,
construiu sociedades novas a partir de uma abertura a outras sociedades que
incluía a miscigenação. É o lugar aonde veio o português Martin, onde ele se
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
54
juntou com a índia Iracema e onde nasceu Moacir. Onde as filhas dos incas e
dos astecas se casaram com castelhanos e galegos, onde um índio esculpiu,
cheio de fé, a imagem de Nossa Senhora de Copacabana.
Ao contrário da América inglesa, do norte, a América latina nasceu e
cresceu como continuação da sociedade constituída em Portugal e na
Espanha. Não houve, por parte dos que de lá para cá vieram, aquele desejo
protestante ou algo cátaro de cortar vínculos e fundar uma sociedade nova e
diferente, uma sociedade de eleitos, que orientou muitas das principais levas
de homens que foram para a América do norte e que terminaram por fundar
os Estados Unidos. A única tentativa semelhante nesta nossa América foi a
dos jesuítas nas Missões, que fracassou rotundamente, talvez até porque não
contemplou a miscigenação.
Os portugueses e espanhóis que para cá vieram queriam enriquecer e, se
possível, voltar nobres para sua terra e a ela se reincorporar. Aos poucos,
porém, foram ficando. Mas foram ficando e, ao mesmo tempo em que
mantinham sempre presente a referência a seu país de origem, davam vida,
aqui, a algo novo, algo mais variado, algo mais aberto, que a convivência
íntima com os índios despertara e a convivência íntima, logo mais, com os
negros, iria consolidar. O produto dessa interação não foi, quase nunca,
consciente e se deu mesmo, muitas vezes, por baixo de uma exclusão
consciente; mas construiu esta sociedade de aberturas e circunscrições que é
a de nossa América ibérica.
Em alguns lugares mais, em outros menos, o traço que talvez mais nos
caracterize seja o desta convivência constante com o outro e o da abertura
constante ao outro. Não apenas ao outro físico mas, também, ao outro cultural.
E um outro muito outro, se podemos dizer assim, pois o ibérico e o índio
nada tinham em comum ; e ambos, nada em comum com os africanos. Dessa
convivência com o outro nasceram nossas sociedades, e dessa convivência
elas ainda vivem, ora gregárias, em maior ou menor grau, ora alijadoras. Até
mesmo ao ponto de, vez por outra, nos sentirmos outros e alguns quererem,
por exemplo, tirar um passaporte italiano ou adotar comportamentos africanos.
O que têm, então, em comum a Bahia e o Chile? Ou Cuzco e Buenos
Aires? Um representante minimamente educado da classe média, mesmo da
classe média baixa, do Rio de Janeiro, digamos, tem mais em comum com a
Itália ou a França do que com o Equador, por exemplo, ou talvez até mesmo
do que com um borracheiro do Acre. O que faz, então, com que Quito e o
Rio de Janeiro sejam mais uma mesma coisa, que o Rio de Janeiro e Roma?
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
55
Talvez o fato de que ambos incorporaram Roma mas incorporaram, também,
algo mais, incorporaram outras visões de mundo que se somaram à de Roma
para entender ou tentar explicar o mundo e passaram a se pautar por este
comportamento que permite ou supõe a constante possibilidade de outras
incorporações.
Portugal e Espanha vieram à América e aqui miscigenaram. Miscigenaram
em todos os sentidos. Mas esta miscigenação ficou aqui, na América; e só a
partir da América o pensamento e o comportamento português ou espanhol
se modificaram em sua maneira de ver o mundo e de estar no mundo, que é
hoje a nossa maneira, não mais a deles. Os dois países trouxeram para cá
sua visão de mundo mas aqui operaram uma abertura daquela visão de mundo
que incorporou o fato novo da criação de uma sociedade que incluía - mesmo
que excluindo - o outro: o índio, primeiro e o negro, depois; e depois o
quibe, o suchi e por aí a fora.
Esta América, onde também o português e o espanhol viraram outro, é o
que nós chamamos de América latina. É um conceito eminentemente cultural
e nada político. Não existe a América latina política, a não ser como expressão
parcial - uma das expressões - da América latina cultural.
E mesmo essa América latina cultural e, conseqüentemente, a política,
será que são mesmo latinas? Ou serão, simplesmente, América?
Se atentarmos bem, a Guiana, o Suriname e os pequenos países do Caribe
insular anglófono e francófono, fazem parte, também, daquele conceito cultural
de miscigenação que é o da América latina ibérica. Foram eles, também,
países forjados nessa construção de uma sociedade de que o outro faz parte,
constante e intimamente, seja por inclusão seja por exclusão, e sempre com
a condicionante da preponderância da chamada cultura ocidental, neste caso
filtrada pela Grã-Bretanha, pela Holanda e pela França.
A América do norte também começou assim e uma grande parcela de
sua população ainda é assim mas, logo, a direção social, política e histórica
que tomaram, em suas relações com o mundo e com os outros que por lá
encontraram, enveredou pelo caminho do egoísmo messiânico; mas do
significado disso tratarei mais adiante.
Nossas sociedades nesta América são sociedades de estrangeiros e
constantemente abertas. Os ibéricos chegaram estrangeiros, os africanos
e depois os japoneses, indianos, árabes, europeus, todos estrangeiros; e
os índios viraram estrangeiros nas sociedades que criamos, mas também
vieram. Os europeus se mudaram para a América como não se mudaram
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
56
para nenhum outro Continente e na América criaram, junto com os outros
que aqui encontraram e com os outros que para aqui vieram, o que não
criaram em nenhum outro Continente. Criaram a convivência com o outro,
de que já tinham perdido há muito tempo a memória. Curiosamente, os
estertores dessa convivência, na Europa, deram-se exatamente na
Península Ibérica e Portugal e Espanha foram construídos, também, com
uma razoável dose de convivência com o outro, o norte-africano e o
judeu.
Essa convivência é nossa herança, que já não é mais ibérica nem latina
porque foi construída por todos: é americana. Pois nosso temperamento já
não é o francês ou italiano ou espanhol ou português ou africano ou índio ou
sírio ou japonês: é americano.
Existe um samba do grande compositor Miguel Gustavo, cantado pelo
extraordinário Moreira da Silva e escrito para ele, que se chama “Moreira
da Silva contra 007” e que mostra muito claramente o que estou dizendo
aqui. O samba conta como o 007 vem ao Brasil acompanhado da Cláudia
Cardinale e os dois se hospedam na concentração do time do Santos, com
a intenção de raptar o Pelé para que não jogue contra a Inglaterra. A
Cláudia Cardinale é a arma do 007 para capturar o Pelé. Na piscina da
concentração do Santos, a Cardinale fica se oferecendo ao Pelé, fica se
oferecendo e o Pelé vai chegando, vai chegando, vai chegando e, diz o
samba: “a bonitinha não percebe a tabelinha que ele faz / Pelé controla a
Cardinale, dá-lhe um beijo e avança mais; / gol do Brasil!” E, então,
comentando aquela atitude ousada do Pelé, o samba conclui: “
Temperamento latino é fogo! ”
Mutatis mutandis, é uma situação semelhante a quando o extraordinário
orador que foi José do Patrocínio dizia, em seus inflamados e cativantes
discursos: “ nós, os latinos...”.
Aquele temperamento “latino” do Pelé, no samba e a “latinidade” de
José do Patrocínio, em seus discursos, já não são mais latinos: são, como
nós somos, americanos.
Por isto, a América latina não existe, existe esta nossa América que é
latina e índia e negra e tudo o mais e que tem algo novo e dela para mostrar
ao mundo. Que vai da Patagônia ao México e engloba todo o Caribe insular
e tem, dentro dela, o Brasil.
Mas por que pára no México? E o que é este algo novo e como se situa,
nele, o Brasil?
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
57
II
É fundamental recuperarmos a palavra América. Pois nós somos a América
que pode ser algo novo na História, nós sul-americanos, centro-americanos
e caribenhos. Os outros, a república da América do norte, viram passar a
História por eles e não souberam dar-lhe nada de diferente no que diz respeito
à relação com os outros povos; apenas terão representado, para a História,
ao final de seu poderio, o terem-se constituído em uma cabeça de império a
mais oprimindo, com a empáfia de seu discurso messiânico, de uma maneira
ou de outra, outros povos, como já o fizeram diversos, desde a aurora dos
tempos, enquanto aguardavam por outros mais fortes que, implacavelmente,
lhes tomariam o bastão invocando com a mesma empáfia o mesmo
salvacionismo.
Não é assim que nos vemos, nós americanos desta nossa América. Não
é isto o que devemos querer de nós. Não é este o papel que devemos querer
para nós no mundo, na História. Porque não foi assim que surgimos, não foi
assim que nos constituímos, não é assim que nos relacionamos.
O que poderemos nós, então, representar para a História? O que seremos
nós que, ultimamente, o império de turno, a República do norte, como os que
lhe antecederam, não soube ser, ou não pôde ser? Porque a América do
norte não fez história, ela repetiu a história. Mas e nós, que eu gostaria de
chamar simplesmente América, o que será de nós?
Nós, esta América nossa, este punhado de sociedades que se constituíram
feitas de outros e que continuam hoje abertas aos outros, não apenas aos
outros físicos, que cheguem imigrantes, mas aos outros que cheguem para
incorporar visões novas, esta América é a única região do mundo que pode
ter algo de novo a oferecer à História. E, dentro dessa América, o Brasil tem
um papel fundamental a desempenhar, na construção daquele algo novo.
Trata-se do que se poderia entender como a transposição para as
sociedades - os países, os governos, os estados, as nações, como queiram
- daquela intuição genial de Ortega y Gasset de que o homem é ele e sua
circunstância : “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me
salvo yo”. As circunstâncias dos países são os outros países, as outras
sociedades, os outros povos.
A consciência de que nós somos nós e também os outros faz com que
vejamos de uma maneira totalmente diferente a nossa relação com os outros.
A alteridade do outro passa a adquirir uma identidade conosco que transforma
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
58
muitas diferenças em similitudes. A prática disso é a extrapolação para os
outros países daquele sistema de incorporação do outro que regeu a
constituição de cada uma de nossas sociedades. É o estabelecimento de
relações com base na aceitação, na incorporação dos interesses do outro
mas, também, na negação, mantendo sempre, entretanto, o outro como parte
de si.
Somente esta nossa América, que engloba, como disse, do Rio Grande
à Patagônia e o Caribe e que se formou pela incorporação constante e aberta
ao outro, pode estar preparada para iniciar a prática deste novo relacionamento
entre os povos no âmbito da História. Só esta nossa América criou ou quis
criar uma sociedade nova, aberta e abrangente, mas despida de qualquer
veleidade salvacionista ou de qualquer missão messiânica auto-outorgada.
Uma sociedade despida de qualquer desejo de exportar modelos de excelência,
que pretendesse impor como solução definitiva aos problemas dos outros.
Até pelo contrário, vejam bem, esta nossa América experimentou de peito
aberto já todos os sistemas e se abriu a todas as fórmulas tidas em seus
momentos como exemplares.
O que podemos ter a oferecer ao mundo - e talvez só nós - é esta ideia
e esta prática de nos relacionarmos com o outro e de incorporarmos o outro
a nós e de nos incorporarmos ao outro.
Vejam esta curiosa enumeração, algo caótica, de nomes de Presidentes
das várias repúblicas desta nossa América, do Rio Grande do Norte à Terra
do Fogo: Bachelet, Kirchner, Sanguinetti, Geisel, Fox, Mahuad, Lindley,
Aylwin, William, Frondizi, Michalski, Goulart, Alessandri, Bosch, Banzer,
Stroessner, Terry, Soublette, Dorneles, Wasmosy, Fujimori, Saca, Menen,
Bucaram, Kubitschek.
Nós somos todos eles e seremos muitos outros mais.
E o papel do Brasil nisso tudo é fundamental. É fundamental porque,
para sê-lo, deve ser semelhante ao de todos os outros e isto é o que lhe dará
grandeza.
O Brasil é grande, cresce inexoravelmente e será cada vez maior, mesmo
que aos trancos e barrancos, como lembrou um de nós que muito o pensou.
Não creio que alguém tenha dúvidas quanto a isto. Seria, então, relativamente
fácil para o Brasil, almejar atingir, no futuro, uma situação de superioridade
sobre estes que são os nossos outros e se arvorar em potência regional, ou,
em breve, até um pouco mais, pois nós temos, também, uns outros nossos na
África. Seremos potência, seremos ricos, teremos submarinos e fronteiras
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
59
seguras, poremos e disporemos.
Mas . . . e daí? Seremos grandes, nos imporemos pelo mundo a fora,
eventualmente alguns queimarão umas bandeiras nossas aqui e ali, talvez
explodam umas bombas em Copacabana e, assim, aos poucos estaremos
cercados ineludível e implacavelmente de estrangeiros. Depois, quando
estivermos então entrando em nossa decadência, a História registrará, em
sua longa lista de impérios, o nosso, como um a mais que o egoísmo dos
homens gerou.
III
O Brasil não pode ser isso. Se quisermos ter um papel e uma presença
no mundo, temos que ser outra coisa. E podemos, pela nossa história, pela
nossa formação, pelas lutas e pela índole de nosso povo e por nossa
circunstância, podemos ser outra coisa.
Esta outra coisa é a solidariedade, a verdadeira cooperação, o altruísmo
que incorpora e se incorpora ao outro; esta outra coisa é o Amor.
Escândalo! Falar de amor em relações internacionais! Em política externa
e política internacional falar de amor! Mas sim, se nós não formos capazes
de crescer juntos e em estreita intimidade com nossa circunstância, com nossa
América e, como disse, já agora também com um pedaço da África, se não
formos capazes de desenvolver este novo tipo de relação com os outros em
torno de nós, se não soubermos ser iguais a eles, muito em breve passaremos
a ser, nós, o Brasil, por nossa grandeza ineludível, os Estados Unidos da
América do Sul; e nossa passagem pela História terá sido tão melancólica
quanto foi, apenas para referir os mais recentes, a passagem do Império
Britânico ou, até agora, a dos Estados Unidos do norte, que sempre mais
contribuíram para a discórdia e o desentendimento entre os homens do que
contribuíram para fazer caminhar a humanidade na direção de um
desenvolvimento comum e geral, de uma solidariedade nas alegrias e nas
misérias, na direção do Amor.
O papel do Brasil, assim, é fundamental e único. A desproporção de
nossa grandeza com a de todos nossos vizinhos, da Patagônia ao Rio Grande,
passando pelo Caribe, é notável. Por isso nossa responsabilidade e nosso
papel podem ser únicos na História. Trata-se de saber se quereremos ser um
império a mais ou se quereremos deixar na História uma presença nova. Se
quereremos consolidar nosso crescimento sobre a dominação dos próximos
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
60
ou criar uma nova relação de crescimento solidário. Se quereremos criar
uma nova relação entre os povos, uma relação de cooperação verdadeira,
ou apenas ocupar o espaço de tirano de turno.
Não! O Brasil não pode vir a ser um dia o tirano de turno. O Brasil
padeceu as tiranias alheias e não quererá impor a sua a ninguém. Pelo contrário,
justamente porque se encontra nessa posição singular nas Américas, o Brasil
tem a oportunidade única na História de poder desempenhar um papel novo
e desejado, o papel de motor da solidariedade e da verdadeira igualdade
entre as diferentes nações. Só quem tem pode dar. O Brasil tem muito e,
portanto, pode dar muito.
O possível não é limitado pelo impossível, pelo contrário, o possível é
quem determina as fronteiras do impossível. E sempre mais o impossível se
faz possível, do que o possível impossível.
Meu convite, portanto, não é para pensarmos o Brasil no mundo que
vem aí, mas para pensarmos o mundo num Brasil que pode vir aí.
61
América Latina no presente Sistema
Internacional
Helio Jaguaribe
1. Introdução
Uma satisfatória análise da posição da América Latina em geral e da
América do Sul, em particular, no presente sistema internacional, requer que
se leve em conta não somente, como usualmente se procede, a medida em
que os Estados Unidos, única superpotência remanescente, alcançaram
incontrastável supremacia mundial mas, também, a medida em que dois
processos originariamente independentes, o processo de globalização e o
processo de expansão do poder e da influência dos Estados Unidos vieram a
tornar-se crescentemente interconectados.
O corrente processo de globalização constitui a terceira e decisiva fase
de um processo que se iniciou com os descobrimentos marítimos do século
XV e subseqüente Revolução Mercantil, que se expandiu e acelerou com a
Revolução Industrial, a partir de fins do século XVIII e adquiriu suas presente
características, com o que se poderia denominar de Revolução Tecnológica,
depois da Segunda Guerra Mundial, notadamente no curso do último terço
do século XX.
A principal característica do atual processo de globalização é sua
dependência da eletrônica, à semelhança da dependência da máquina a vapor,
por parte da Revolução Industrial. Os recursos proporcionados pela
informática, por telecomunicações quase instantâneas, pela rapidíssima
HELIO JAGUARIBE
62
interconexão aérea de todas as áreas do planeta, pela energia nuclear e por
um contínuo progresso científico, que vai da cosmologia à biologia molecular,
modificaram decisivamente as características sociais e individuais do mundo
contemporâneo. Sem prejuízo da importância que continuam detendo os
recursos naturais (e.g. crescentemente água e ainda por algum tempo petróleo)
se tornaram menos importantes que os tecnológicos.
É nesse quadro que se processa a crescente interconexão entre
globalização e americanização. O processo de continuada expansão do poder
e da influência dos Estados Unidos, a partir da Primeira Guerra Mundial,
mais ainda depois da Segunda e, sem competidores externos, com o final
colapso da União Soviética em 1991, levou aquele país a dispor de condições
particularmente favoráveis – deliberadamente as empregando – para se valer,
em atendimento de seus interesses, desse outro processo em expansão ainda
mais acelerada, o da globalização.
Detêm os EUA a maior capacidade internacional de tecnologia,
particularmente em suas diversas dimensões cibernéticas. A informatização
do mundo passou, assim, a se processar sob o prático monopólio dos EUA.
O idioma inglês se substituiu definitivamente ao francês, a partir do segundo
terço do século XX e tornou-se à língua universal, favorecendo, naturalmente,
aqueles de que é língua materna. O sistema financeiro internacional, que
constitui o núcleo central do processo de globalização, se tornou, por um
lado, majoritariamente controlado por empresas americanas e, por outro lado,
o que mais importa, veio a se pautar integralmente pelos métodos financeiros
dos EUA e tem o inglês como seu próprio idioma. O processo de globalização
se converteu, assim, no processo de americanização do mundo.
Esse mesmo processo se tornou, também, equivalente ao processo de
modernização. Central, no mesmo, é o completo predomínio da razão
instrumental, nas múltiplas formas pelas quais se desenvolve o “know how”.
Colateralmente, se universalizaram os valores do modo de vida americano e
seus objetivos de poder e de consumo, pelo cinema, pela televisão, pela
música, pela indumentária dos jovens e, de um modo geral, pelo “estilo
jovem”.
Como todos os precedentes históricos da universalização de uma cultura
hegemônica – oposição sassânida à cultura helênica, judaica e germânica, à
cultura romana, britânica, à cultura francesa – a expansão da cultura americana
está encontrando crescentes resistências. Haveria que distinguir, a esse
respeito, resistências de tipo autonomizantes como, no âmbito do Ocidente,
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
63
o mundo latino e, no do Oriente, o chinês, de resistências de tipo
antagonizantes, como no mundo islâmico. Estas últimas tendem a reforçar as
dos primeiro tipo.
Algo imprevistamente, para os ocidentais, o Islam se tornou, notadamente
a partir do último terço do século XX, o principal fator de oposição aos
Estados Unidos e à americanização do mundo. Essa oposição, diversamente
do que se entende em certos setores, não é primordialmente uma oposição
religiosa ao cristianismo, como na Idade Média, ou à democratização das
sociedades como predominantemente se pensa nos EUA. Essa oposição é
ao modo americano de modernização e, por decorrência, às formas ocidentais
de modernização.
O fenômeno é complexo e comporta diversas dimensões e aspectos. O
núcleo dessa oposição se encontra, sem dúvida, nas características integristas
do Islam, como religião e como cultura. Importa recordar a esse respeito
que, embora em termos menos radicais, o cristianismo, tanto em sua versão
ortodoxa como na católica, também foi integrista. A civilização bizantina,
que prevaleceu no Ocidente do século VII a meados do século XIII, era
integrista e unia, no mesmo sistema de valores, cristianismo e patriotismo
bizantino. Na vertente católica do cristianismo se desenvolveu, do século
XII ao XIII, um conflito de vida e morte entre o Império e o Papado, cada
qual pretendendo unificar, sob sua hegemonia, o conjunto dos valores culturais,
políticos e cívicos. Foi precisamente porque esse conflito, embora perdido
pelos imperadores Hohenstaufen, conduziu, igualmente, à desmoralização do
Papado, com sete décadas de Avignon, que o mundo ocidental se livrou do
integrismo religioso-político e foi levado, no curso do tempo, com o
Renascimento e a Ilustração, à independente formação, na sociedade global,
de quatro subsistemas: civil, cultural, político e econômico. É precisamente
contra a independentização dos subsistemas que se insurge o islamismo. Este
se funda na indissolúvel unidade da “umma”, a sociedade dos crentes, a
primeira das quais foi fundada por Maomé em Medina em 622, na qual estão
submetidas ao mesmo regime as dimensões religioso-cultural, política,
econômica e civil da sociedade global.
Num fenômeno tão complexo como o que conduz ao fundamentalismo
islâmico intervêm vários outros fatores e circunstâncias, notadamente os que
produzem ou manifestam a profunda frustração decorrente da dominação do
mundo islâmico pelo ocidental, particularmente o americano. O fato é que
as desastradas políticas do presidente Bush, relativamente à questão palestina
HELIO JAGUARIBE
64
e, de um modo geral, ao mundo muçulmano, exacerbadas com a decisão
unilateral de invadir e ocupar o Iraque, suscitaram uma imensa reação
fundamentalista no mundo islâmico, gerando um gravíssimo problema mundial.
2. Império Americano
A incontrastável supremacia dos Estado Unidos, ora exacerbada pelo
unilateralismo do governo Bush, tem levado muitos analistas a descrevê-la
em termos da formação de um novo império mundial, o “Império Americano”.
É certo que são inegáveis os aspectos imperiais da supremacia americana.
Isto não obstante, uma análise mais cuidadosa da forma pela qual se exerce
essa supremacia revela características que a diferenciam completamente dos
impérios históricos, do romano ao britânico. Estes consistiam no exercício de
uma dominação formal da metrópole sobre suas províncias ou colônias, dirigida
por um pró-cônsul ou vice-rei, apoiado por guarnições militares e equipes
burocráticas da metrópole. Nada disso ocorre com o “Império Americano”.
Este preserva os aspectos formais da soberania dos países sob sua
predominância: bandeira, hino, exércitos de parada, inclusive, nas sociedades
democráticas, eleições “livres” de seus dirigentes.
O predomínio americano não se exerce sob a formal modalidade de um
império e sim através de um conjunto de poderosos constrangimentos, de
caráter financeiro, econômico-tecnológico, cultural, político e apenas
excepcionalmente por intervenções militares, como no recente caso do Iraque.
O “Império Americano” é um “campo”, em sentido análogo ao que
empregamos quando falamos de “campo magnético” ou “campo
gravitacional”. Esse sistema de poderosos condicionamentos, precedentemente
referido, opera de sorte a compelir os dirigentes locais, lhes agrade ou não, a
atuar de forma compatível com os interesses do sistema financeiro internacional,
das grandes multinacionais que endogenamente controlam a economia desses
países e, exogenamente, de Washington.
Os constrangimentos precedentemente referidos se reforçam
reciprocamente. De um modo geral, o constrangimento principal é de caráter
financeiro. Frequentemente, porque o país controlado depende, para o
equilíbrio de suas contas, de financiamentos proporcionados, direta ou
indiretamente, pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, ademais de por
agências como o Eximbank, o Banco Mundial e outras. De um modo geral,
porque, para manter seu acesso ao mercado financeiro internacional – e
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
65
também ao tecnológico – esses países têm de atuar de conformidade com
suas regras. Por outro lado, as grandes multinacionais, que estão
crescentemente assumindo o controle da economia dos países
subdesenvolvidos, neles dispõem de condições para orientar sua política.
Mencione-se, entre estas, a predominância do financiamento, não
necessariamente ostensivo, que as multinacionais têm nas campanhas políticas
desses países, assim decisivamente influenciando a escolha de seus dirigentes
e a conduta destes.
Extremamente relevante, nesse processo, é a influência cultural dos
EUA. Esta se exerce através das mais diversas formas que vão, nos países
subdesenvolvidos, do absoluto predomínio americano no cinema, na
televisão e no regime de informações, até a medida em que, nos últimos
trinta anos, é cada vez maior e mais decisivo o número de economistas
desses países formados por universidades americanas. Nestas, a boa ciência
econômica que lhes é ensinada vem indissoluvelmente embutida numa
ideologia neoliberal, que se apresenta como condição da boa técnica
econômica (vide o “Consenso de Washington) e como tal é absorvida por
esses discípulos. Daí a orientação neoliberal de quase todas as competentes
equipes econômicas assessorando governos da periferia, o Brasil sendo
uma das ilustrações do caso.
Decisiva influência, nesse processo, é exercida pelo fato de o processo de
modernização ter crescentemente assumido, a partir da segunda metade do
século XX, características de uma americanização. Isto se torna particularmente
visível na juventude e se faz sentir mesmo em países como a China, que busca
séria e eficazmente modalidades próprias de desenvolvimento, mas onde a
juventude urbana, de calças jeans, dança o rock.
A supremacia americana, embora de alcance mundial, ainda não é uma
completa hegemonia internacional, dada a existência de outros centros de
poder que, embora sujeitos a essa supremacia, a ela oferecem variados
graus de resistência. Cabe, assim, constatar que o atual sistema internacional
apresenta quatro distintos níveis.
(1) Nível de supremacia: exclusivamente ocupado pelos Estados Unidos;
(2) Nível de autonomia interna: União Europeia;
(3) Nível de resistência: China, Índia, Rússia e, potencialmente, Brasil,
caso se consolidem Mercosul e o Sistema Sul-americano de Cooperação e
Livre Comércio;
HELIO JAGUARIBE
66
(4) Nível de dependência: os demais países.
3. Alternativas Históricas
O quadro internacional precedentemente indicado é bastante instável e
tende, a largo prazo, ou seja, no curso da primeira metade deste século,
senão mais cedo, a se modificar. Duas são as principais alternativas do sistema
internacional e da ordem mundial dele decorrente: (1) consolidação do
“Império Americano” ou (2) formação de um novo regime multipolar.
A primeira alternativa resultaria da completa consolidação e
universalização da hegemonia americana. Essa hipótese apresenta, por sua
vez, duas possibilidades. A menos provável seria a de uma dura hegemonia
unilateral dos EUA, no estilo do governo Bush, lograr e se consolidar e se
impor universalmente. O que torna improvável essa hipótese é o fato de que,
para prevalecer, teria de empregar meios coercitivos extremamente violentos,
como por exemplo, entre outras medidas a preventiva aniquilação, por mísseis,
das instalações atômicas da China. Constrangimentos domésticos, nos
próprios Estados Unidos, além de outras formas de resistência, tornam
improvável esse desfecho.
A segunda possível modalidade de uma consolidada e universal hegemonia
americana, bem mais viável, seria a de se constituir por via cooptacional. O
melhor exemplo histórico dessa modalidade de hegemonia é dado por Felipe
II da Macedônia e sua “Liga Helênica”. Em 337 aC, depois de haver
militarmente se sobreposto a todos os outros Estados gregos, Felipe reuniu
em Corinto um congresso panhelênico e nele, nominalmente como preparativo
para a guerra contra a Pérsia, inimiga comum de todos os gregos (leia-se,
hoje, guerra contra o terrorismo), se constituiu a Liga Helênica. Nela, cada
Estado grego participava de sua assembleia com um peso proporcional à
respectiva importância, cabendo, entretanto, à Macedônia, o comando militar
e a liderança da Liga.
Os Estados Unidos poderão, eventualmente, construir um sistema análogo
à Liga Helênica, incorporando a sua liderança mundial os outros principais
centros de poder, como União Europeia, China, Rússia, Índia e eventualmente
alguns outros. Em tal caso, formar-se-ia um sistema hegemônico mundial
susceptível de muito longa duração.
A outra alternativa histórica é a formação, até meados do século, de outros
centros de poder dotados de satisfatória equipotência com os EUA. A China
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
67
é, reconhecidamente, a principal candidata a essa posição. Tendo mantido
continuamente, desde Deng Xiaoping, a partir de 1978, impressionantes taxas
anuais de crescimento econômico, não inferiores a 7% e se modernizado
vertiginosamente, a China tenderá a superar o PIB americano em 2045,
alcançando, segundo estimativa de Goldman Sachs (“paper” 99 de 2003)
US$34,8 trilhões, contra os US$30,9 trilhões dos Estados Unidos. Essa
possibilidade, embora realista, depende, entre outras circunstâncias, de duas
principais condições: (1) capacidade de sustentar, a partir de 2015, taxas
anuais de crescimento não inferiores a 6% e (2) atitude, por parte da liderança
chinesa, de proceder, pacífica e tempestivamente, aos ajustes institucionais que
correspondam às necessidades de uma China moderna.
Outra candidata à condição de novo centro internacional de poder é a
Rússia, na medida em que as reformas que vêm sendo introduzidas por
Wladimir Putin tenham continuidade e persistência. Herdando do passado
soviético o segundo maior arsenal nuclear do mundo, a Rússia dá indicações
de se encaminhar para recuperar sua antiga condição de superpotência até
meados do século. Estima Goldman Sachs, no referido estudo, que a Rússia,
cujo PIB per capita, em 2000 era apenas cerca de 10% do americano, alcance
60% deste em 2050.
O sistema internacional tende a experimentar, no curso da primeira metade
deste século, outras importantes modificações. Consistem estas na provável
emergência de um novo tipo de protagonista internacional que, não alcançando
a condição de superpotência, atinja, estável e auto-sustentavelmente, a
condição de grande interlocutor independente.
Essa possibilidade se apresenta para o provável caso de que se formem, na
União Europeia, subsistemas políticos diferenciados entre si e do conjunto da UE
como sistema econômico. A Europa dos 25 acentuou, provavelmente de forma
definitiva, as dificuldades que já observavam na Europa dos 15 de esse grande
sistema econômico alcançar satisfatória unidade política. Isto não significa que a
UE não venha a adotar uma Constituição comum, o que provavelmente virá a
ocorrer. Significa, entretanto, que essa Constituição incluirá normas que requeiram
unanimidade, ou algo de próximo, para a adoção de posições comuns em matéria
de política externa e de defesa, assim as inviabilizando. A UE, em seu conjunto,
continuará sendo um gigante econômico e um anão político.
Nesse quadro, entretanto, já se pode discernir uma forte tendência para
que, no âmbito da UE, se formem subsistemas políticos diferenciados. Dois
já se encontram claramente em formação: (1) um subsistema atlanticista,
HELIO JAGUARIBE
68
liderado pelo Reino Unido e apoiado pelos nórdicos, estreitamente vinculado
aos EUA e (2) um subsistema europeista, liderado por França e Alemanha,
tendente a ser apoiado pelos países latinos, adotando uma posição
independente dos EUA, embora vinculada aos valores ocidentais. Resta a
ver como se posicionarão, face a esses dois subsistemas, os povos eslavos
recém-admitidos na UE. De imediato, esses novos membros inclinam-se para
a posição atlanticista, como decorrência de sua histórica resistência à URSS
e, portanto, à Rússia. Existem, todavia, importantes vínculos históricos e
econômicos que aproximam a Europa central da Alemanha e a Polônia da
França. Até que ponto, no curso do tempo, esses vínculos não tenderão a
aproximar os eslavos do subsistema franco-germanico?
Independentemente de como venham a se alinhar os eslavos europeus,
no curso do primeiro terço deste século, tudo indica que o sub-sistema político
europeista tenderá a se consolidar e a se constituir como um grande interlocutor
internacional independente. Essa condição de grande interlocutor internacional
independente terá outro protagonista, a Índia, que já a está adotando e cujo
PIB, conforme o mencionado estudo de Goldman Sachs, tenderá a ultrapassar
o maior PIB europeu, o da Alemanha, em 2025.
Um terceiro candidato à condição de grande interlocutor internacional
independente é o Brasil. Referindo, uma vez mais, o mencionado estudo de
Goldman Sachs, o Brasil tenderá a ultrapassar o PIB da França em 2035 e
em 2040, o da Alemanha. No caso do Brasil, todavia, é importante levar em
conta a necessidade de que se ressente, para assegurar sua autonomia
internacional, de manter uma estreita aliança com a Argentina e de operar no
âmbito do Mercosul e de um sistema sul-americano de cooperação e livre
comércio. Essas circunstâncias, todavia, podem e tendem a ser mantidas
pelo Brasil, o que o qualifica como potencial grande interlocutor internacional
independente no horizonte de meados do século.
Uma análise mais abrangente dessa questão requeriria se contemplasse
o caso dos países islâmicos e algumas outras situações, o que, entretanto,
ultrapassaria as estreitas dimensões deste estudo. Baste se mencionar, assim,
que a alternativa multipolar, para meados deste século, conduz à formação
de três grandes sistemas de poder – EUA, China e Rússia – e de, pelo menos,
de três grandes interlocutores internacionais independentes, Índia, subsistema
europeista e sistema Brasil-Mercosul-Sulamérica.
O quadro resultante desse possível futuro regime internacional é
extremamente complexo porque envolverá, por um lado, um renovado risco
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
69
de hecatombe nuclear, como durante o período da Guerra Fria e, por outro
lado, um difícil relacionamento entre EUA e China, mediatizado por Rússia e
pelos grandes interlocutores internacionais.
Na verdade, contemplando-se o processo histórico no seu muito longo
prazo, pode-se dizer que tende a duas consequências finais: o suicídio nuclear
da humanidade ou a formação, como previa Kant, de uma estável Pax
Universalis. Caso venha a se formar um novo regime multipolar, em meados
do século, o sentido de sobrevivência tenderá mais uma vez, como no curso
da Guerra Fria, a evitar um confronto nuclear. Este, não obstante, como
quase ocorreu no período precedente, pode vir a se desencadear de forma
não expressamente deliberada. Se o mundo evitar o suicídio nuclear, tenderá
a formas crescentemente institucionais de regulação de seus interesses,
culminando numa forma satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa
de administração mundial. É interessante observar que, por caminhos distintos,
a hipótese de uma durável hegemonia americana, nos termos precedentemente
analisados, também tenderá, a longo prazo, a desembocar uma
satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa administração mundial.
4. América Latina e Brasil
As considerações precedentes permitem concluir as presentes reflexões
considerando a situação, nesse quadro, da América Latina, em geral e do
Brasil, em particular.
A evolução da América Latina, no curso da segunda metade do século
XX, conduziu a uma significativa diferenciação econômica entre o norte e o
sul da região. O norte, que já vinha se caracterizando por sua crescente
gravitação em torno dos Estado Unidos, veio, com a adesão do México à
NAFTA, a se constituir, institucionalmente, em parte do sistema econômico
americano. A América do Sul, não obstante a grande influência que, sob
múltiplas formas, sobre ela exercem os Estados Unidos, mantém significativa
margem de autonomia e encontra em países como Brasil e Argentina e,
decorrentemente, em Mercosul, um núcleo duro de resistência a sua absorção
pelo sistema econômico americano.
Cabe, assim, nas presentes condições, diferenciar na América Latina
três distintos círculos: o econômico, o cultural e o político. Economicamente,
a região está dividida, por um lado, entre México, América Central e Caribe,
gravitando em torno dos EUA e por outro lado, América do Sul, sob
HELIO JAGUARIBE
70
predominante influência de Brasil e Argentina, diretamente e por intermédio
de Mercosul. Culturalmente, a América Latina apresenta significativa unidade,
não obstante as diferenças entre hispanofonos e lusófonos. As comuns
características ibero-americanas de América Latina superam, de muito, suas
particularidades lingüísticas e outras. Caberia mencionar o fato de que, num
país como a Espanha, as diferenças entre um castelhano e um andaluz são
possivelmente maiores que as que separam hispanofonos de lusófonos. O
circulo político, finalmente, apresenta diferenciações conforme as opções
políticas tenham motivação econômicas, caso em que se manifesta o dualismo
norte-sul, das opções de motivação cultural, tão ou mais freqüentes que as
precedentes, caso em que se manifesta a unidade cultural de América Latina.
Uma análise satisfatoriamente abrangentes de América Latina requereria,
relativamente ao norte da região, diferenciar-se os casos de México, da
América Central e do Caribe. Requereria, em relação ao sul da região, uma
diferenciação entre Mercosul, por um lado e, por outro, Chile e os países
andinos. Os restritos limites deste estudo impõem uma simplificação. Nele
se considerará, por um lado, o eixo Argentina-Brasil-Mercosul e sua influência
sobre o restante da América do Sul e, por outro lado, o caso do México.
Reduzindo uma questão complexa a seus aspectos mais fundamentais
pode-se dizer que o que está em jogo, na América Latina é, por um lado, a
medida em que países como Brasil e Argentina logrem estabelecer uma durável,
confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica, a partir da qual possam
consolidar Mercosul e instituir um sistema sul-americano de cooperação e
livre comércio, assegurando à América do Sul a possibilidade de se constituir,
até meados do século, como um dos grandes interlocutores internacionais
independentes do mundo. Por outro lado, a questão que se apresenta é a de
como assegurar ao México a preservação de sua identidade nacional, no
âmbito de NAFTA e da supremacia americana. As duas questões estão inter-
relacionadas, embora de forma não simétrica. Se não se constituir de forma
estável, confiável e reciprocamente benéfica, uma aliança estratégica entre
Brasil e Argentina, não somente Mercosul deixará de se manter e não se
logrará instituir um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio
como, ademais, os dois grandes países da América do Sul perderão,
isoladamente, a capacidade de manter sua autonomia internacional e se
converterão em segmentos do mercado internacional e em “províncias” do
Império Americano. Tudo, assim, depende dessa aliança. Por outro lado,
ainda que esta se consolide e gere os esperados efeitos na América do Sul, a
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
71
manutenção da identidade nacional do México é condição, para este, da
preservação de seu destino histórico e, para a América Latina, da sustentação
de um de seus pilares fundamentais. Com efeito, não obstante a relativa
importância da contribuição cultural centro-americana e cubana, por um lado,
e de países como Chile e dos andinos, por outro, a cultura latino-americana
repousa, no fundamental, sobre o tripé constituído, de norte a sul, por México,
Brasil e Argentina. Sem México, essa cultura se veria terrivelmente mutilada.
O problema com que se defronta a América Latina, face ao incipiente
século XXI, é a medida em que, seja qual for a alternativa que venha a ser
assumida pelo sistema internacional, no curso da primeira metade do século,
a possibilidade de que os latino-americanos tenham voz e peso, nesse sistema,
depende da medida em que logrem fazer de América do Sul um grande
interlocutor internacional independente. Se lograrem alcançar essa
interlocução, México, embora submetido a uma vinculação econômica com
EUA, preservará sua identidade nacional e condições para optimizar seu
próprio relacionamento econômico com o vizinho do norte.
Seria desnecessário reconhecer o fato de que, para a América do Sul, a
alternativa multipolar, na evolução do sistema internacional, seria de longe a
mais favorável e a única em que lhe seria possível o exercício de um importante
e independente interlocução internacional. É pouco, mas não irrelevante, o
que um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio possa fazer
para contribuir no sentido da formação de um futuro regime multipolar.
Observe-se, entretanto, que mesmo no caso de vir a se configurar uma longa
hegemonia mundial americana, a formação de uma séria aliança entre o Brasil
e a Argentina, com suas múltiplas decorrências na América do Sul, constituiria
algo de decisivo para que a inserção desses países, e dos demais da região,
no sistema imperial americano, se faça sob a forma de uma província de
primeira classe, como ocorrerá com os países europeus, e não como resíduos
indiferenciados do Terceiro Mundo.
73
América Latina e Caribe: Nova Fronteira da
Política Externa Brasileira
Marcel Biato
Integração regional ou “descolamento”?
Neste início de século XXI, quando começa a consolidar-se como país
com interesses e alcance globais, o Brasil está se voltando mais intensamente
para sua vizinhança imediata. Por que haveria de fazê-lo, arriscando distrair-
se do esforço primordial de esquadrinhar as potencialidades e riscos que a
globalização abre para uma potência emergente? Seria recomendável ao Brasil
atribuir prioridade a aglomerado disperso de países de dimensões econômicas
contrastantes e tradições sociais e políticas igualmente díspares? Discrepâncias
e divergências que só parecem aumentar e que negariam qualquer possibilidade
de consolidar-se um bloco regional apto a integrar-se de forma coesa e
competitiva numa economia mundial cada vez mais integrada?
A América do Sul e, mais genericamente, a América Latina e Caribe foi
a primeira fronteira do Brasil. Os limites físicos, lentamente consolidados ao
longo de décadas e séculos, reforçavam o fosso que nos separava e
diferenciava de um entorno continental do qual nos sentíamos existencialmente
apartados pela língua, por rivalidades dinásticas, pelo regime político e por
aspirações derivadas de nossas dimensões demográfica e territorial. Desde
os primórdios da luta pela independência continental no início do século XIX,
eram mútuos e crescentes os sentimentos de desconfiança e mesmo inimizade
entre as repúblicas herdeiras do Império Espanhol e o então Império luso-
MARCEL BIATO
74
brasileiro. O regime brasileiro representava o continuísmo monárquico,
escravocrata e expansionista contra o qual os próceres Bolívar e San Martín
haviam-se batido. Não é de estranhar, em contrapartida, que o Barão do Rio
Branco, responsável pela consolidação definitiva das fronteiras brasileiras
um século mais tarde, tenha sido um dos poucos heróis populares do país.
Por muitas décadas, “descolar” da América Latina e de sua multiplicidade
de repúblicas, frequentemente instáveis politicamente e frágeis
economicamente, era um objetivo nacional tão intensamente ansiado quanto
mal-disfarçado. Nada pior para quem se via como o “país do futuro” do que
ter sua capital confundida com Buenos Aires. No momento em que empresas
e interesses brasileiros vêm galgando latitudes e conquistando horizontes,
muitos ainda arguirão que para tornar-se um global player o Brasil deveria
minimizar seus vínculos com vizinhos sem projeção política ou relevância
econômica no cenário internacional, países aparentemente condenados à
eterna condição de “quintal” dos Estados Unidos. Já nos atuais tempos de
globalização, a região passou a ser vista como “canteiro” de matéria prima
para o novo pólo dinâmico da indústria mundial, que estaria migrando
inexoravelmente em direção à Ásia. Nesse cenário, caberia ao Brasil
posicionar-se estrategicamente como um daqueles poucos países que, por
sua massa crítica demográfica e escala de produção industrial, poderia escapar
a esse modesto destino. O que se vê, no entanto, é algo bem diverso. O
Brasil está firmemente engajado em múltiplas iniciativas voltadas para fomentar
a integração regional. Hoje, ambiciosos projetos viários encurtam distâncias
continentais, esquemas de interconexão energética reforçam uma
interdependência natural e instituições supranacionais começam a tornar
realidade a retórica secular da solidariedade regional. Como se deu essa
metamorfose? Terá o Brasil abandonado sua ambição de desgarrar-se do
seu entorno para realizar sua vocação de ator global?
Do imperialismo aos três “Ds”
A resposta para essa transformação começa, sim, com um sonho de
grandeza – mas não do Brasil. A noção de América Latina, incorporando
aqui também o Caribe, nasceu em associação à ambição imperial de Napoleão
III. Num momento de forte competição expansionista entre as potências
europeias, essa expressão foi cunhada para valorizar a presença mundial da
França e de sua civilização. O final trágico da aventura de Maximiliano I, no
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
75
México, e o inexorável recuo cultural francês puseram fim a esses grandiosos
devaneios. Entretanto, vingou a expressão que Napoleão III ajudou a
popularizar. Uma sobrevivência improvável, para não dizer surpreendente,
pois pretende qualificar região que jamais se havia imaginado como
conformando uma unidade geográfica, étnica e, muito menos, política.
Na virada do século XX, prevaleciam na região outras perspectivas
geopolíticas. Argentina, Brasil e Chile se viam como potências sul-americanas
e disputavam entre si a liderança do continente. Argentina e Brasil também se
arvoravam como próceres das grandes causas hemisféricas. O Brasil o fazia,
a partir de certo momento, na expectativa de selar uma aliança preferencial
com os Estados Unidos. A Argentina, com o objetivo oposto. Já a América
Central era comumente enxergada – inclusive por si própria – quase como
um protetorado norte-americano. Quanto ao Caribe, não passava de uma
dependência colonial, como que a lembrar a todos os demais de um passado
recente que ainda buscavam exorcizar.
O único elemento verdadeiramente unificador era o fato de a América
Latina e Caribe reunir países herdeiros dos impérios europeus que se
constituíram ao sul do Rio Grande. Em outras palavras, unia-lhes o fato de
serem nações ainda lutando para desvencilhar-se das amarras que os atavam
econômica e culturalmente às praças metropolitanas. Nesse sentido, a
expressão América Latina foi quase que uma imposição de fora, dentro da
melhor prática colonialista.
Talvez tenhamos aí uma chave para a persistência da noção de América
Latina. Consolida-se em paralelo a consciência, sobretudo a partir do pós-
guerra, de que a região vivia uma relação de dependência periférica, seja
com as ex-metrópoles, seja com outras nações avançadas. A expressão mais
nítida desse sentimento de subordinação foi formulada pioneiramente por
Raúl Prebisch, um dos mentores da CEPAL. Arguiu haver tendência,
aparentemente inexorável, de deterioração do poder de compra no mercado
internacional dos produtos primários, principal fonte de divisas dos países
latino-americanos. Em contraste, os bens industrializados, de maior valor
agregado, que necessitavam importar dos países desenvolvidos, tornavam-
se cada vez mais valorizados e, portanto, inaccessíveis. Esse quadro tornou-
se ainda mais dramático ao final da Segunda Guerra Mundial, com a retomada
dos fluxos comerciais entre os mercados europeu e norte-americano e suas
colônias africanas e asiáticas. A competição dessas exportações primárias
com produtos latino-americanos acelerava a depreciação da produção latino-
MARCEL BIATO
76
americana. O resultante desequilíbrio nas contas externas, após a curta
bonança do período da guerra, pareceria condenar os países latino-americanos
a sistemáticas crises de balanço de pagamento, com o inevitável impacto
sobre a atividade econômica e, mais particularmente, sobre projetos
ambiciosos de industrialização – já então vista como o atalho mais curto para
o desenvolvimento. Nascem nesse contexto os famosos três “Ds” do chanceler
brasileiro Araújo Castro. Discursando na abertura da Assembleia-Geral das
Nações Unidas em 1963, pregou reformas estruturais ao sistema internacional.
Somente com o Desarmamento – liberando maciços recursos para financiar
a industrialização – e com a Descolonização – trazendo autodeterminação
aos povos da África e Ásia – poder-se-ia almejar o Desenvolvimento dos
países do agora denominado Terceiro Mundo. Parecia à diplomacia brasileira
ser essa a única fórmula capaz de romper o círculo vicioso de dependência
periférica, formulado teoricamente por, entre outros, Fernando Henrique
Cardoso.
Comércio versus desenvolvimento
Como então estruturado, o comércio parecia aumentar os desníveis entre
países e condenar irremediavelmente os países subdesenvolvidos a assim
permanecer. Nasce nesse momento ideia que, décadas mais tarde, desembocaria
na criação do G-20, foro negociador dedicado a melhorar os termos de troca
das exportações agrícolas dos países já agora denominados em desenvolvimento.
A própria demora na fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC)
1
– assim como os limitados recursos à disposição de entidades multilaterais de
financiamento – como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, reflete a modéstia dos avanços em direção à criação do que se
esperava seria uma Nova Ordem Econômica, capaz de atender às aspirações
dos países em desenvolvimento. Não por coincidência, surgem grosso modo
nesse período os primeiros movimentos em direção à integração regional. Ficara
claro que dos países industrializados do Norte – indiferentemente se do campo
socialista ou capitalista – não viriam nem as concessões nem a generosidade
almejadas. Caberia aos países do Sul se unirem para exigir reformas.
Há claro paralelismo entre o movimento pela descolonização na África e
na Ásia e os primeiros passos na América Latina em direção à integração
1
Foi preciso esperar até 1994.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
77
regional. Caberia aos povos então denominados “subdesenvolvidos” tomar
seu destino em suas próprias mãos e deixar de simplesmente esperar respostas
e propostas advindas dos países desenvolvidos. A experiência, a partir de
1960, da ALALC e, posteriormente, da ALADI
2
contribuiu para aumentar o
comércio inter-regional e para preparar os países da região latino-americanos
para o processo de globalização que adviria décadas mais tarde. A mera
redução de barreiras alfandegárias revelou-se, entretanto, de limitado impacto.
Na medida em que não tocou nas condicionantes estruturais da atividade
econômica em cada país, a política de fomentar a constituição de uma união
aduaneira continental terminou por reproduzir, em certa média, dentro da
América Latina a relação assimétrica que já caracterizava as trocas da região
como um todo com os países desenvolvidos. Sintomático dessa dinâmica
perversa é o fato de que, em momentos de retração do comércio e dos
investimentos internacionais – como na atual crise, os fluxos entre os países
da América Latina caem em ritmo ainda maior, contribuindo para reforçar –
ao invés de minorar – o impacto recessivo. Essa realidade, essa dinâmica
espelha uma preocupante constatação. A falta de competitividade e
complementaridade produtiva das economias menores frustrava seu principal
interesse em aderir aos arranjos comerciais regionais: o acesso prioritário ao
mercado consumidor das maiores economias da região. Muitas vezes, vê-se
exatamente o contrário – o predomínio avassalador nos mercados menores
de empresas e investimentos oriundos das economias maiores. O resultado é
a consolidação de um superávit estrutural nas contas comerciais,
particularmente do Brasil, com a maioria de seus vizinhos latino-americanos.
A “invasão” brasileira nesses mercados acaba por favorecer rancores e
temores nacionalistas que militam contra o próprio projeto integracionista.
Não estranha, portanto, que o aprofundamento dos mecanismos regionais
de integração seja retardado por suspeitas e acusações por parte dos parceiros
menores de que apenas as economias maiores do Bloco estariam auferindo
os benefícios do acesso privilegiado a um mercado de escala continental. Na
verdade, permanecem vigentes para a maioria dos países da região as
limitações estruturais já apontadas por Araújo Castro, a saber, falta de acesso
à capacitação técnica e tecnológica e aos investimentos necessários à
industrialização desenvolvimentista.
2
A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), lançada em 1960, foi sucedida
pela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) em 1980.
MARCEL BIATO
78
Como superar esse ciclo vicioso? Na era da globalização, essa indagação
ganha tinturas de especial urgência. A livre circulação de idéias, de bens e
tecnologia tornou a todos mais interligados, por força da crescente
dependência mútua – para melhor ou pior – em matéria econômica, ambiental
e de segurança. Em princípio, isto deveria servir de poderoso incentivo para
países e indivíduos buscarem mais cooperação, maximizando os benefícios
da interdependência e mitigando seu lado adverso. No entanto, aquelas
mesmas forças desencadeadas pela globalização ajudam a exacerbar as
disparidades pré-existentes em padrão de vida dentro de países e entre eles,
ao mesmo tempo em que magnificam os contrastes sociais e econômicos
decorrentes. Afinal de contas, os movimentos de crenças, imagens e pessoas
fomentam não apenas admiração e emulação, mas por vezes inveja e
frustração.
Globalização ou democratização?
Da perspectiva de um país em desenvolvimento, esse dilema é
especialmente severo. Para a maioria, o preço inevitável para unir-se à
economia global que está emergindo pode significar perda considerável de
controle e capacidade regulatória soberana sobre amplos espectros de política
pública, à medida que se impõe a lógica de um mercado de massa globalmente
integrado. No entanto, demandas opostas para reverter a forte redução da
presença do Estado marcaram os anos 80 em diante. A subseqüente crise
financeira global do fim da década dos 90, que atingiu os países em
desenvolvimento com especial virulência, só fez reforçar essas demandas.
Calou fundo a percepção do papel insubstituível do Estado no provimento
de planejamento estratégico, de políticas econômicas anticíclicas e de serviços
públicos de primeira necessidade, sobretudo em momentos de grande
turbulência econômico e desassossego social.
Na América Latina, mais do que em qualquer outra região, essas forças
contraditórias se entrechocaram com contundência. Em nenhuma região o
chamado Consenso de Washington foi aplicado com maior vigor e fracassou
com maior retumbância. Em nenhuma outra parte houve reação mais vigorosa,
na forma de movimentos de democracia popular que expressavam
nacionalismo econômico – e especialmente energético – e sentimento anti-
globalização. Rechaçou-se a falsa confluência entre a modernização do Estado
e sua destituição como instrumento estratégico de formulação e execução de
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
79
políticas públicas. Entendeu-se que fortalecer as instituições capazes de gerar
governabilidade transparente e legítima não é a mesma coisa que se submeter
de forma acrítica às forças impessoais do mercado. Exige-se que a democracia
seja também econômica e social, isto é, que se traduza em bem-estar e
prosperidade para todos. Em alguns países, busca-se mesmo a “re-fundação”
das instituições nacionais, de forma a coaduná-las ao surgimento na cena
política nacional de segmentos sociais antes sem representação. A convocação
de Assembleias Constituintes expressa uma confiança fundamental no sistema
democrático. Na medida em que as instituições públicas logrem atender às
demandas mínimas, sua credibilidade sai fortalecida. A própria América Central
vive uma espécie de “sul-americanização“, na medida em que também ali têm
assumido governos favoráveis a um maior engajamento do Estado em políticas
de promoção de inclusão social. A dinâmica dessas mudanças segue uma
trajetória complexa e muitas vezes imprevisível. Podem, num primeiro
momento, acirrar tensões que as instituições estão mal-equipadas a absorver.
É notável, portanto, que, dos muitos grupos de esquerda que há 20 anos
defendiam a recurso às armas, apenas as FARC, na Colômbia, não foram
incorporados ao processo democrático.
Compatibilizar as forças da globalização e da soberania nacional e popular
passa, num aggiornamento da linguagem de Araújo Castro, por um sistema
internacional de tomada de decisões que promova o desenvolvimento
sustentável global, protegendo direitos adquiridos, mas também respeitando
aspirações e realidades emergentes. A crise econômica atual, assim como a
ameaça ambiental que vivemos, são apenas manifestações mais óbvias de
um realinhamento crucial de forças. A irrupção na cena mundial dos países
“emergentes”, que passam a rivalizar política e economicamente com as
tradicionais potências industrializadas, dá conotações cada vez mais claras
ao desequilíbrio fundamental da sociedade global contemporânea: de um lado,
o desejo dos países ricos de preservar um padrão de consumo insustentável
e, de outro, a aspiração dos países em desenvolvimento de alcançar níveis
equivalentes de bem-estar.
As implicações dessa realidade foram suscitadas pelo então Secretário
Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório “In Larger Freedom”,
de 2005. Pela primeira vez num documento oficial, reconheceu explicitamente
não se poder garantir a segurança e bem-estar para alguns se não houver
desenvolvimento para todos. O desafio para a comunidade internacional está
em adequar o sistema internacional a essa transição de poder que,
MARCEL BIATO
80
paradoxalmente, termina por atingir mais duramente os setores mais vulneráveis
dos próprios países em desenvolvimento. Alguns exemplos, são esses mesmos
países os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas são os mais
diretamente atingidos pelas intempéries. Ao mesmo tempo, são os que menos
recursos financeiros e tecnológicos dispõem para enfrentá-las. De igual modo,
como bem demonstra a atual crise financeira, as nações pobres são as mais
duramente atingidas por turbulências financeiras para as quais pouco ou nada
contribuíram. Nem por isso estão em condições de influir adequadamente
nas determinações do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial,
agências cruciais para o encaminhamento da crise. Para não falar no Conselho
de Segurança das Nações Unidas, cada vez mais desmoralizado e incapaz
de responder ao desafio dos conflitos que hoje dominam as manchetes
internacionais.
A opção latino-americana
Nunca as instituições multilaterais foram tão demandadas. No entanto,
vemos que nunca estiveram tão ausentes e incapazes de responder às demandas
e ameaças de um mundo em profunda e acelerada transformação. A
multiplicação de iniciativas unilaterais ou por meio de grupos auto-selecionados
de países motivados por critérios que não são universalmente reconhecidos
ou compartilhados contribui para agravar tensões e incertezas. Em meio à
crescente interdependência e conectividade, defrontamos o desafio de construir
um novo modelo de governabilidade global, centrado em mecanismos
atualizados de cooperação e coordenação. Nesse esforço, os países da
América Latina e Caribe estão tomando a dianteira. Consolida-se a
consciência de que a região necessita projetar-se de forma coesa e unida em
defesa de uma agenda de interesses claramente definidos.
O Brasil engaja-se nesse esforço a partir de um enfoque pragmático de
seus interesses – não de uma fé romântica em ideais distantes dos interesses
objetivos do país. A experiência prática tem se incumbido de fazer dissipar a
falsa dicotomia entre as aspirações brasileiras de projetar-se como ator global
– por força de suas dimensões demográficas e potencialidades econômicas –
e o projeto de integração regional no qual está fortemente engajado. Pela
escala e competitividade de seu parque produtivo, nenhum país tem mais a
ganhar com a criação de um espaço econômico regional integrado do que o
Brasil. Demonstração eloquente disso é a presença crescente de empresas e
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
81
produtos brasileiros nos mercados vizinhos. A América Latina já é o primeiro
destino para as exportações brasileiras de produtos manufaturados e serviços
tecnológicos. Esses empreendedores formam a ponta de lança de uma
agressiva estratégia de internacionalização de empresas brasileira, passo
indispensável para a inserção competitiva do Brasil na economia globalizada.
A construção desse espaço integrado passa necessariamente pela
consolidação de uma infra-estrutura de transportes, comunicações e energia
que dê real conectividade e, portanto, competitividade à economia regional.
Trata-se de superar definitivamente, no plano físico, uma pesada herança de
sociedades de costas umas para as outras, voltadas historicamente para as
ex-metrópoles. Para viabilizar as obras de infra-estrutura que romperão essa
lógica herdada do pacto colonial, estão disponíveis volumes crescentes de
financiamento público brasileiro, por meio do BNDES e do Programa Proex
do Banco do Brasil. Por outro lado, já estão em curso negociações para a
criação de um Banco do Sul, capaz de multiplicar os recursos já disponíveis
para esse fim no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e na
Corporación Andina de Fomento (CAF).
Consolidar esse processo exige, como já referido, que as vantagens de
acesso a um mercado consumidor integrado de escala continental possam
estender-se a todos. Minorar as enormes assimetrias entre as economias
nacionais é o objetivo do Fundo para a Convergência Estrutural e
Fortalecimento da Estrutura Institucional do Mercosul – o FOCEM,
constituído para colocar recursos financeiros e capacitação técnica à
disposição de empresas de países de menor desenvolvimento relativo. A
integração de mercados também passa pela harmonização progressiva dos
distintos regimes aduaneiros na região. Já há importantes acordos de
complementação comercial entre o Mercosul, o Chile e a Comunidade Andina.
Uma nova institucionalidade e o papel do Brasil
O trabalho de aprofundamento institucional vai além das esferas
econômica e comercial. As dificuldades que a União Europeia vem
enfrentando para consolidar seu projeto
3
de integração apontam para a
importância de evitar-se, também na América Latina, o risco de “déficit
3
A rejeição por referendo popular na Dinamarca do Tratado de Lisboa suspendeu a vigência
desse instrumento decisivo para o aprofundamento institucional da União Européia.
MARCEL BIATO
82
democrático”. O processo de construção da unidade regional deve dar ao
cidadão comum a sensação de dispor de voz ativa nos processos decisórios
que afetam sua vida. No âmbito do Mercosul, está-se consolidando conjunto
de mecanismos voltados não apenas para o alargamento do Bloco – como
o ingresso da Venezuela – mas também para seu aprofundamento, com o
Foro Consultivo de Cidades e Regiões, o Fórum Social e, em particular, o
Parlamento. Tenciona-se estender progressivamente todas essas iniciativas
à esfera da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, que servirá de
guarda-chuva institucional para o conjunto de ações de integração em escala
continental sendo postas em prática para realizar o pleno potencial das
notáveis vantagens comparativas da região: ausência de sérias tensões de
índole étnica, religiosa ou nacionalista; considerável unidade linguístico-
cultural; amplos recursos naturais minerais e agrícolas, inclusive um terço
da água potável do mundo.
Esse arcabouço almeja estimular as condições políticas e institucionais
necessárias para reverter, na esfera continental, o distanciamento entre países
estruturalmente voltados para parceiros do além-mar, seja as antigas
metrópoles seja novos sócios privilegiados dentre os países industrializados.
Essa lógica do afastamento – quando não da competição antagônica – entre
países vizinhos se expressa de forma especialmente visível em matéria de
segurança e defesa
4
. Assim como é necessário superar barreiras físicas à
integração, a construção de uma identidade regional passa pela superação
de rivalidades históricas e tensões e desconfianças que desestimulam uma
visão comum dos interesses coletivos de região.
É nesse contexto que ganha especial relevância a criação recente do
Conselho de Defesa. Ele estimulará mecanismos de diálogo e coordenação
para encaminhar soluções pacíficas e mutuamente acordadas para
situações regionais de conflito. O encaminhamento pacífico da crise que,
em meados de 2008, ameaçava levar a Bolívia ao borde de uma guerra
4
Reproduziram-se, no processo de definição de fronteiras dos estados herdeiros do esfacelamento
do império espanhol as forças centrífugas herdadas do nexo colonial. O temor permanente de
ingerência externa via-se potencializado por uma identidade nacional fragilizada em meio à
insegurança de uma elite branca desenraizada e à marginalização de um substrato de massas
indígenas e mestiças politicamente não confiáveis. Explica-se assim que, apesar – ou talvez
mesmo por causa – de a maioria de vizinhos limítrofes hispano-americanos partilharem estreitas
afinidades étnicas, culturais e históricas, o processo de diferenciação das nacionalidades tenha
sido tão conflituoso. Isto ajuda a explicar também a ligação entre a questão limítrofe e o
processo de consolidação da identidade nacional e, por conseguinte, a importância dos princípios
de não intervenção e de intangibilidade de fronteiras consagrados no direito panamericano.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
83
civil, foi um passo notável nessa direção. Já as deliberações durante a
Cúpula do Grupo do Rio, em São Domingo, também em 2008 –
posteriormente referendadas pela OEA – evitaram que o episódio de
violação fronteiriça envolvendo o Equador e a Colômbia degenerasse em
um enfrentamento bélico.
A consolidação de uma visão generosa do potencial dos países da região
alcançar objetivos comuns, por encima das suspeitas históricas e rivalidades
contemporâneas, tem relevância especial para o Brasil. A multiplicação da
presença de empresas e investimentos brasileiros nas economias vizinhas tem
sido acompanhada, em anos recentes, pela multiplicação de gestos de
incômodo e mesmo hostilidade, de conotação frequentemente nacionalista.
Em contrapartida, também surgem oportunidades para demonstrar as
vantagens da acrescida capacidade de ação e de mobilização que o país hoje
detém. Exemplo nesse sentido foi o recente convite do Governo boliviano
para o Brasil substituir os Estados Unidos como mercado preferencial para
suas exportações de têxteis
5
.
Talvez o mais trunfo de que dispõe o Brasil esteja, no entanto, no campo
institucional. Oferece cooperação, entre outros, no combate a doenças e no
desenvolvimento agrícola. Mas sua vantagem comparativa está, sobretudo,
no campo da modernização do Estado em favor do planejamento de longo
prazo para promover crescimento com distribuição de renda. Programas de
combate à AIDS, de fomento à agricultura familiar e de inclusão social, como
o programa Bolsa Família.
A vez da América Central e do Caribe
A consolidação de um bloco coeso e integrado sul-americano não exclui
uma aproximação com a América Central e Caribe. Pelo contrário, oferece a
plataforma para consolidar um espaço integrado em escala ainda maior. Foi
esse o sentido da incorporação dos países do Caribe como membros-plenos
do Grupo do Rio, mecanismo tradicional de concertação e consulta política
da região. Se é verdade que a América Central e Caribe não comparte a
mesma coerência geográfica e unidade linguística do continente sul-americano,
trás outros trunfos e possibilidades.
5
A recente rescisão do acordo de cooperação entre a Bolívia e os EUA na repressão ao cultivo
à coca levou Washington a suspender o acesso privilegiado de exportações têxteis bolivianos ao
mercado norte-americano.
MARCEL BIATO
84
Numa economia cada vez mais globalizada, esse agrupamento de países
dispõe de localização privilegiada para acessar as principais praças comerciais
e motores econômicos do século XXI. Trata-se de região situada
estrategicamente próxima ao maior mercado do mundo – os Estados Unidos.
Já por meio do Canal do Panamá, tem-se acesso em condições vantajosas
às economias emergentes da China e do Sudoeste Asiático. Não por acaso a
Agência Brasileira de Promoção às Exportações (APEX) abriu no Canal do
Panamá um centro distribuidor de produtos.
No âmbito energético, o Brasil vem desenvolvendo, em colaboração
com os EUA, programas triangulares que permitem a países centro-americanos
e caribenhos beneficiarem-se de tecnologia e insumos brasileiros para exportar
etanol ao mercado norte-americano. Ao mesmo tempo, esses países
incorporam uma fonte energética renovável e barata que os ajudará a reduzir
a dependência do petróleo importado. A internacionalização de empresas e
investimentos brasileiros na região se dá em vários ramos, como por exemplo,
o têxtil. Por sua vez, a Embrapa abrirá um escritório regional para cooperar
na melhoria da produtividade e competitividade da produção agropecuária.
Como estímulo a essas iniciativas, está em curso a negociação de acordos
de associação do Mercosul com o Mercado Comum Centro-Americano e
com a Comunidade do Caribe (CARICOM). Expressão concreta do
compromisso brasileiro com essa aproximação foi o recente pedido brasileiro
para ingressar no Banco Centro-Americano de Integração. Ao mesmo tempo,
o Brasil vem aprofundando o diálogo com o CARICOM e com o Sistema de
Integração Centro-Americana (SICA).
Com o México, o aumento do comércio e dos investimentos bilaterais
demonstra que diferenças de regimes comerciais
6
não devem constituir uma
barreira. Uma parceria no desenvolvimento de tecnologia de prospecção de
petróleo a alta profundidade poderá ajudar ambos os países a maximizar os
benefícios de suas potencialidades energéticas.
Talvez a expressão maior da convicção da importância de a região chamar
a si a solução da complexa multiplicidade de interesses e desafios que se
apresentam está na decisão brasileira de convocar, em dezembro de 2008,
na Bahia, a primeira Cúpula da América Latina e Caribe. Foi a primeira vez
que os 33 países se reuniram para discutir uma agenda verdadeiramente
6
O México forma parte do NAFTA, regime de livre comércio congregando também os Estados
Unidos e o Canadá.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
85
regional. O compromisso coletivo em buscar soluções próprias para as
questões da região foi sublinhado pela reafirmação do apoio à missão das
Nações Unidas no Haiti, composta majoritariamente por latino-americanos.
Uma agenda comum e o diálogo com os EUA
Talvez o mais importante resultado do encontro tenha sido a declaração
de que diante da crise global, a América Latina e Caribe se sairão melhor se
unirem esforços. Sobretudo em momento em que se questionam os
fundamentos e as instituições do sistema financeiro internacional, a região
não poderá defender seus interesses enquanto continuar mero espectador
das grandes decisões. Somente identificando interesses compartidos e
vantagens comparativas coletivas poderá a região moldar as condições em
que se integrará a esse novo mundo em gestação.
Em qualquer cenário futuro, Washington seguirá sendo um interlocutor
imprescindível. A eleição de Obama suscitou grandes expectativas. A chegada
ao poder em Washington do primeiro afro-descendente serve de metáfora
para a capacidade de reinvenção e renovação do modelo norte-americano
sob o signo da tolerância e diversidade? É essa a pergunta que se fizeram os
líderes reunidos em Sauípe, ao avançar propostas inovadoras que desafiam a
Administração Obama a deixar para trás uma agenda hemisférica
historicamente unilateral e impositiva, centrada no conhecido trinômio: livre
comércio, terrorismo e narcotráfico.
Nenhum tema será mais definidor das perspectivas de moldar-se um
diálogo equilibrado e construtivo do que a normalização plena das relações
de Cuba no hemisfério. Foi esse o sentido do recente ingresso, por decisão
unânime, de Havana no Grupo do Rio. Investimentos brasileiros estão
ajudando a melhorar a infra-estrutura e a competitividade de parque produtivo
cubano e, dessa forma, as chances do país incorporar-se, sem maiores traumas
econômicos e sociais, à comunidade hemisférica.
A suspensão do embargo norte-americano contra Cuba tem uma carga
simbólica que muito além da simples superação de uma das últimas
confrontações remanescentes da Guerra Fria. Tem a ver com a luta pelo
direito à autodeterminação e pelo direito de decidir seu próprio futuro, sem
temores de intervenções ou ingerências externas, questão que – como já
vimos, marca de forma profunda a história e a psique da região. A consciência
da necessidade e do direito de assumir maiores responsabilidades pelo próprio
MARCEL BIATO
86
destino está à raiz do amadurecimento institucional que a região vive. Assim
deve-se interpretar a proposta do Presidente Calderón, durante a Cúpula de
Sauípe, de lançar-se, já em 2010, uma Organização dos Estados Latino-
Americanos.
Superar a lógica da submissão e da dependência abre caminho para
fundar uma verdadeira parceria com os Estados Unidos. A proposta, adiantada
pela Secretária de Estado, de um programa hemisférico em matéria de energias
renováveis pode ser um bom começo. Abre perspectivas de aprofundar-se a
cooperação já existente nesse campo, com benefícios palpáveis em matéria
de acesso a mercados e transferência de tecnologia. Não hesitaremos em
cobrar essas promessas se o elevado custo de introduzir tecnologias “verdes”
for pretexto para Washington abandonar negociações para reduzir sua emissão
gases de efeito estufa ou para rever as tarifas alfandegárias que atualmente
incidem sobre as exportações de etanol brasileiro.
No momento em que a economia global atravessa grave crise, a América
Latina e o Caribe esperam dos EUA não iniciativas grandiosas, mas uma
disposição de coordenar respostas consensuais. Isto implica, de um lado,
que os EUA resistam à tentação de recorrer ao protecionismo para proteger
mercados e empregos locais. De outro lado, significa evitar adotar programa
de socorro financeiro doméstico que “sugue” todo o crédito disponível nos
mercados internacionais, em prejuízo das necessidades de financiamento das
economias em desenvolvimento.
Exigiremos que a demanda norte-americana por estupefacientes, e não
apenas sua produção na América Latina – seja combatida com vigor e
tenacidade. No tratamento de imigrantes em condição irregular,
demandaremos respeito a princípios elementares de direitos humanos. Também
devemos insistir em que programas regionais de cooperação e abertura
comercial – e não a construção de um muro sobre o Rio Grande – sejam
nossa resposta coletiva à aspiração de muitos latino-americanos a emprego e
vida dignos. Apoiamos o compromisso do Presidente Obama de recuperar o
papel do Estado como agente de promoção de políticas públicas estratégicas,
ainda mais neste momento em que a globalização mostra sua face mais sinistra.
Estaremos prontos a colaborar em ações anticíclicas, sobretudo nos setores-
chave de saúde e educação, para proteger empregos e os mais vulneráveis.
A V Cúpula das Américas, a realizar-se em abril próximo, em Trinidad e
Tobago, será um primeiro e decisivo teste dessa determinação de nossa região
de não esperar, mas de avançar propostas concretas para uma aliança
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
87
hemisférica que reconheça os avanços econômicos e sociais da região, assim
como o imperativo do diálogo e da cooperação em um mundo cada vez mais
interdependente.
Conclusão
Na tentativa de realizar o sonho de um Novo Mundo na América tropical,
os próceres da independência latino-americana buscaram regulamentar todos
os aspectos das relações regionais. Desde amplos acordos comerciais até a
uniformização do direito público, passando por mecanismos de conciliação e
arbitramento obrigatórios de litígios. Permaneceu, no entanto, no papel o
sonho de uma “pátria grande” hispano-americana, capaz de cristalizar numa
unidade política panamericana os anseios libertários e proto-democráticos
das nações que emergiam da sombra dos impérios ibero-americanos.
Hoje, o conceito de América Latina e Caribe exprime sobretudo a
convicção de que somos unidos pela busca do desenvolvimento sustentável
com inclusão social, pela valorização de nossa diversidade e pela certeza de
que podemos contribuir decisivamente para moldar neste hemisfério um espaço
de convivência pacífica e prosperidade comum. Isto não invalida que cada
país identifique formas próprias e historicamente condicionadas de alcançar
esses alvos nacionais e regionais. Superamos uma visão mercantilista do
processo de integração para compreender que a resposta está em forjar uma
moldura institucional que traga transparência e previsibilidade às ações
coletivas, mas também comparta experiências, capacitações e recursos.
No momento em que a globalização cobra solidariedade e coordenação
de todos, a América Latina e Caribe estão dando um exemplo e se
credenciando para opinar na construção de uma nova ordem mais equitativa.
É essa a convicção que motiva o Presidente Lula a afirmar que de nada
adianta ao Brasil avançar e progredir se estiver cercado por vizinhos atrasados
e ressentidos. Assim, mais do que nunca a América Latina e Caribe continuam
a ser a primeira fronteira do Brasil e a linha de frente de sua política externa.
89
Uma Europa mais Transparente
Franklin Trein
*
1. Breve introdução histórica
Não é uma tarefa simples conhecer o processo histórico que vem sendo
cumprido pelo demorado e complexo movimento que constitui a União Europeia.
A integração entre um pequeno grupo de países do Velho Continente, ao ter sido
iniciada em um período de recuperação da grave crise econômica, social e política
em que se encontrava a Europa no final da Segunda Guerra, estabeleceu princípios
e metas que se tornaram rapidamente insuficientes para dar respostas aos desafios
impostos pela construção de um destino comum entre Estados e Nações. Naquele
momento, quando foram retomadas as desgastadas idéias de unir os europeus
sob um mesmo projeto de desenvolvimento, as relações entre as sociedades
nacionais europeias estavam marcadas profundamente pelos conflitos, que ao
longo de séculos, levaram a sucessivas destruições de parte a parte.
A paz era a recompensa de todos os sacrifícios e das intermináveis
negociações que deviam conduzir ao estabelecimento de uma confiança mútua,
capaz de fazer convergir os esforços de reconstrução das economias e das
sociedades nacionais, destruídas e destroçadas pela Guerra. Assinado pelos
seis países fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
1
*
Coordenador do Programa de Estudos Europeus da UFRJ.
1
Os seis países signatários do Tratado de Paris são: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo
e República Federal da Alemanha.
FRANKLIN TREIN
90
CECA –, em 18 de abril de 1951, o Tratado de Paris tinha objetivos bastante
limitados. Contudo, através da habilidosa escolha do carvão e do aço, insumos
indispensáveis à guerra, postos sob a supervisão de uma Alta Autoridade
completamente independente dos governos nacionais, ele serviu de ponto de
partida seguro para o processo de integração que se iniciava.
Os Tratados de Roma (25 de março de 1957) reuniram os mesmos seis
signatários do Tratado de Paris, estabelecendo a Comunidade Econômica
Europeia – CEE – e a Comunidade Europeia da Energia Atômica –
EURATOM. Aqueles dois Tratados continham projetos muito mais
abrangentes e audaciosos do que o primeiro passo dado em 1951. Eles
incluíam dimensões importantes das economias nacionais de cada Estado
membro, influenciando diretamente o cotidiano das sociedades envolvidas.
Os Tratados de Roma, a exemplo do Tratado de Paris, continuavam a
apostar numa integração que se apoiava principalmente nas relações
econômicas. Os dois projetos de integração de caráter eminentemente político
– a Comunidade Europeia de Defesa
2
– CED – e a Comunidade Política
Europeia – CPE – não tiveram seguimento depois que a Assembleia Nacional
francesa recusou-se a ratificar o Tratado que criava a CED em 30 de agosto
de 1954.
Apesar de todos os obstáculos enfrentados e dificuldades a serem
superadas, desde os primeiros anos de sua implantação o êxito das três
Comunidades Europeias tornou-se sensível mesmo para aqueles que viam a
integração com grande ceticismo. Talvez, o melhor exemplo neste sentido
seja a mudança ocorrida na posição do Reino Unido a respeito de sua
participação naqueles projetos. Depois de recusar por reiteradas vezes o
convite para ser signatário do Tratado de Paris e dos Tratados de Roma,
seguindo o exemplo da Irlanda, que apresentou a Bruxelas o seu pedido de
adesão à Comunidade Econômica Europeia em 31 de julho de 1961, Londres
formalizou o seu primeiro pedido para fazer parte da CEE em 9 de agosto de
1961. O mesmo fez a Dinamarca no dia seguinte
3
.
O desenvolvimento positivo da integração comprovava o acerto das
decisões de ampliação das relações econômicas dos Estados membros, ao
2
O Tratado que criava a Comunidade Europeia de defesa foi assinado no dia 27 de maio de
1952. Foram seus signatários: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e República Federal
da Alemanha. Este último país devia observar restrições quanto ao armamento que estaria à
disposição de suas Forças Armadas.
3
A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a Comunidade Europeia no dia 1
o
de janeiro de 1973.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
91
mesmo tempo em que indicava a necessidade de que a integração fosse
ampliada para as relações políticas. Pois, sem que isto acontecesse, a economia
encontraria rapidamente os seus limites como fator de aproximação entre as
sociedades nacionais envolvidas no processo. Assim, Christian Fouchet
4
recebeu a tarefa de coordenar o grupo de trabalho encarregado de redigir
um projeto de União Política da Europa. Ainda que o Plano Fouchet
5
, como
foi chamado aquele projeto, não tenha produzido ao resultado esperado, ele
serviu para marcar a necessidade do debate em torno da integração política
da Europa.
Pouco antes de ingressar em um momento de grandes dificuldades em
consequência da crise que se estabeleceu na economia mundial no início da
década de 70, na reunião de cúpula de Haia – 1
o
e 2 de dezembro de 1969
– as Comunidades Europeias decidiram a dar um passo importante no sentido
de atingir metas correspondentes a uma maior integração. Definiram então
como objetivo a realização gradual de uma União Econômica e Monetária –
UEM – até 1980. O plano para implantação da UEM, também conhecido
como Plano Werner
6
, foi apresentado pela Comissão Europeia ao Conselho
Europeu em 8 de outubro de 1970. Ele definia, entre outras coisas, um
programa de convergência das políticas macro-econômicas e, em especial,
um rígido controle sobre as taxas de câmbio entre as moedas dos Estados
membros, o que deu origem ao que ficou conhecido como a “serpente
monetária”
7
.
A condução de Sicco Leendert Mansholt
8
, então Comissário para a
Agricultura, ao cargo de Presidente da Comissão Europeia – 22 de março
de 1972 – marcou a radicalização de um importante debate político-
econômico em Bruxelas. A discussão liderada por Mansholt, que envolveu
não só os membros da Comissão, levou ao estabelecimento das bases daquela
que, seja pela sua complexidade, seja pelos seus custos para o conjunto dos
4
Christian Fouchet (1911 – 1974), diplomata francês, estudou direito e economia política. Foi
deputado na Assembleia Nacional e ministro de Estado nos Gabinetes de Pierre Mendes France
e Georges Pompidou.
5
O Plano Fouchet foi apresentado na reunião de Chefes de Estado e de Governo dos Estados
membros da Comunidade Econômica Europeia em julho de 1961, em Bonn.
6
Pierre Werner (1913 – 2002), embora nascido na França, era cidadão luxemburguês. Foi
Ministro de Finanças e da Cultura e por duas vezes Primeiro Ministro do Ducado de Luxemburgo.
7
A “serpente monetária” foi um sistema concebido para controlar as relações cambiais entre as
moedas dos países da CEE dentro de um regime mais estrito do que o então existente.
8
Sicco Leendert Mansholt (1908 – 1995), político holandês, membro do Partido Social Democrata
dos Trabalhadores. Mansholt foi Presidente da Comissão Européia em 1972 e 1973.
FRANKLIN TREIN
92
Estados membros, se tornaria a política de integração mais expressiva por
um período de vários anos: a Política Agrícola Comum – PAC. A PAC
converteu-se em um paradigma da integração, tanto pelos efeitos internos ao
mercado comunitário, como por suas consequências para as relações bilaterais
e multilaterais da CEE.
Rumo à união econômica e monetária, como base indispensável ao
mercado único, um momento importante na agenda de integração foi a adoção
em 13 de março de 1979 da unidade monetária europeia, o “ecu”
9
; uma
moeda contábil, de referência para o orçamento e prestação de contas de
toda as instância comunitárias e ainda disponível para as contas públicas e
privadas dos Estados membros. Naquele mesmo ano, nos dias 7 a 10 de
junho, os eleitores dos Estados membros elegeram, pela primeira vez pelo
voto direto, os seus eurodeputados, ou seja, os seus representantes no
Parlamento Europeu em Estrasburgo
10
. Aquele acontecimento teve um
extraordinário valor, não somente no sentido simbólico da construção de
uma comunidade de nações, mas na dimensão prática de consolidação de
uma infra-estrutura democrática capaz de discutir e decidir coletivamente
sobre o destino de milhões de europeus irmanados pelo diálogo, pela paz e
pela vontade de um desenvolvimento solidário.
As sucessivas elevações do preço do petróleo ao longo da década de
70 e a consequente desordem das contas públicas, principalmente dos países
em desenvolvimento, levaram a economia mundial a uma crise sem precedentes
no pós- Guerra. Assim, no início dos anos 80 a integração europeia enfrentou
grandes problemas e passou a ser vista com enorme ceticismo pela opinião
pública e mesmo por expressivas lideranças políticas da Europa. Para transpor
o horizonte negativo que se abatia sobre a Comunidade, em 6 de janeiro de
1981, o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Hans-Dietrich
Genscher
11
apresentou em uma reunião em Stuttgart o que foi chamado de
“Apelo a Epifania”. Em seu discurso o ministro alemão preconizava uma
retomada urgente da cooperação política entre os dez Estados membros.
Pouco depois, no dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, em Florença, Emilio
9
O ecu foi substituído pelo euro em 1
o
de janeiro de 1999.
10
O Parlamento Europeu se reuniu pela primeira vez em março de 1958, em Estrasburgo. Os
142 eurodeputados que ali compareceram representavam os Parlamentos nacionais dos Estados
membros.
11
Hans-Dietrich Genscher (1927 - ) estudou economia e direito, foi deputado no Parlamento
Federal alemão, Ministro do Interior e depois Ministro de Relações Exteriores da Alemanha
entre 1974 e 1992.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
93
Colombo, Ministro de Relações Exteriores da Itália, retomava as palavras
de seu colega alemão para conclamar a todos os países comunitários a um
esforço sem par no sentido da integração política. Aqueles discursos somados
deram nascimento a um programa de trabalho que ficou conhecido como
Plano Genscher-Colombo, apresentado ao Conselho Europeu na reunião de
cúpula realizada em Londres nos dias 26 e 27 de novembro de 1981.
O Plano Genscher-Colombo tornou-se assim precursor do Ato Único
Europeu. Naquele documento – assinado em 17 e 28 de fevereiro de 1986
em Luxemburgo e em Haia, respectivamente, que tem o escopo de um Tratado
– pela primeira vez os europeus declaram a intenção de construir juntos uma
União Europeia. Neste sentido, o Ato Único define as modificações
institucionais a serem empreendidas, trata do alargamento das competências
comunitárias, examina a cooperação política europeia com terceiros países,
estabelece as condições de construção de um espaço social europeu
12
e cria
um programa de pesquisa científica amplo e acessível a todos os Estados
membros.
A partir da assinatura do Ato Único, superado o que ficou conhecido
como o euroceticismo, o processo de integração retomou seu curso positivo.
O Relatório Delors
13
, apresentado em 12 de abril de 1989, cuidou da
superação de importantes obstáculos que dificultavam o avanço da União
Econômica e Monetária. Em poucas palavras, Jaques Delors recuperou o
que já havia sido estabelecido pelo Plano Werner em 1970. Porém, reiterou
a necessidade da convertibilidade completa e irreversível das moedas entre
os Estados membros, da completa liberação do movimento de capitais, da
fixação de paridade entre as moedas europeias e, em conclusão, asseverou a
necessidade da adoção de uma moeda única. A União Econômica e Monetária
proposta por Delors deveria ser realizada em três etapas. A primeira se resumia
a concluir a construção do mercado único, o que implicava, entre outras
coisas, que todas as moedas aderissem ao mecanismo de trocas do Sistema
Monetário Europeu – SME. O segundo momento teria como principal tarefa
estabelecer um Sistema Europeu de Bancos Centrais – SEBC – que coexistiria
12
Ao tratar da livre circulação de pessoas entre os Estados membros, como um princípio
fundamental da União Europeia, o Ato Único Europeu reforça as decisões e os parâmetros
contidos no Acordo de Schenguen, entre a Alemanha, Bélgica, França Holanda e Luxemburgo, de
14 de junho de 1985, válidos para o controle da circulação de pessoas sobre as fronteiras dos
países signatários.
13
Jacques Delors (1925 - ) estudou economia, foi Ministro de Economia e Finanças da França,
Presidente da Comissão Européia por dez anos – 1985 a 1995 –, é membro do Partido Socialista.
FRANKLIN TREIN
94
com os Bancos Centrais nacionais dos Estados membros. Um Instituto
Monetário Europeu – IME – coordenaria as decisões coletivas e cuidaria da
definição da estrutura do futuro Banco Central Europeu - BCE. Na terceira
e última etapa haveria a transferência da competência das políticas monetárias
da esfera nacional dos Estados membros para a competência da União e,
dentro do possível, a adoção de uma moeda única em substituição as moedas
nacionais.
As autoridades comunitárias e, entre elas principalmente a Comissão
Europeia, manifestaram em muitas ocasiões, o convencimento de que a
solução dos problemas da integração estava no avanço do processo e nunca
num retorno às condições anteriores. Movidos por esta percepção, em 15
de novembro de 1990, em Roma, tiveram lugar duas Conferências
Intergovernamentais. Uma dedicada a União Econômica e Monetária, a outra
voltada para a União Política dos europeus. Em última instância, os debates
voltados para a União Econômica e Monetária concluíram que no campo
econômico a união consistiria na coordenação das políticas nacionais pelo
Conselho de Ministros de Economia e Finanças, permanecendo, contudo,
com os Estados membros a responsabilidade por suas respectivas políticas
econômicas; já no campo monetário a união se completaria com a adoção de
uma moeda única sob a autoridade de um Banco Central Europeu – BCE.
Aquela era mais uma das muitas rodadas de discussão ocorrida entre os
representantes dos doze Estados membros, mas foi, provavelmente, a que
tratou de forma mais direta e com maiores consequências das questões que
permitiram chegar a um acordo sobre o futuro da integração na forma do
Tratado de Maastricht. Elaborado ao longo de pouco menos de dois anos o
Tratado sobre a União Europeia
14
recolhe um dos resultados mais positivos
e, por isso mesmo, dos mais expressivos da vontade e da capacidade daqueles
que, mesmo diante dos maiores e mais difíceis obstáculos, nunca desistiram
da integração.
Entre 1986 e 1992 a Comunidade Internacional em geral e a Europa em
particular foram sacudidas por acontecimentos que mudaram a história do
século XX. A crise que envolveu a União Soviética e todo o seu entorno
14
Tratado sobre a União Europeia e não Tratado da União Europeia. Esta pequena diferença,
não percebida por muitos é, no entanto, de grande significado. Ela indica que o documento
assinado em Maastricht não pretende ser definitivo nas definições sobre a União Europeia,
senão que, muito antes, encaminhar o processo para um novo patamar no qual a ideia de uma
união dos europeus possa ser discutida e construída em bases mais sólidas e abrangentes.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
95
geopolítico, marcada, principalmente, pela queda do muro de Berlim, em 9
de novembro de 1989, e que culminou com a dissolução formal da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 8 de dezembro de 1991, significou
um desafio para Bruxelas e para todas as autoridades nacionais dos Estados
membros. Naquele momento a Europa vivia numa realidade para o qual não
havia sido elaborada qualquer previsão, nem política e nem teórica. Nos
Bálcãs
15
, a partir de 1989, a rápida desintegração da República Federal da
Iugoslávia acrescentava problemas de dimensões incalculáveis a já
sobrecarregada agenda dos principais órgãos da Comunidade Europeia: a
Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu. As decisões impunham-se
sem dar tempo para reflexões mais profundas ou demoradas. O melhor
exemplo das tensões em que se viram submersos, além da Comissão Europeia,
todos os governos nacionais da Europa comunitária foi, provavelmente, aquele
produzido pelas intensas negociações que levaram à decisão de reunificação
da Alemanha em 9 de agosto de 1990. Dois países signatários dos Tratados
fundacionais, ou seja, aqueles que intituiram as Comunidades Europeias, Itália
e França não só não apoiaram a condução dada por Bonn às negociações
com Berlin Oriental e com Moscou, como, nas palavras do presidente francês,
François Mitterrand
16
, criticaram frontalmente a perspectiva de uma Alemanha
restaurada em seu território e população correspondendo ao período anterior
à Segunda Guerra Mundial, ou seja, de uma Alemanha reconduzida à condição
de maior país da Europa.
As discussões sobre a formulação do Tratado de Maastricht enfrentaram
inúmeros problemas, uma vez que a integração devia ser levada a uma
perspectiva realmente inovadora. A continuidade do processo de integração
exigia rupturas e cobrava a ousadia de trazer para o núcleo central da união
entre os europeus uma convergência política, tentada tantas vezes no passado
e, sabidamente, com tão poucos êxitos. O modo de expressar a centralidade
da união política era vista por muitos negociadores na forma de definir as
15
A crise nos Bálcãs, por sua extensão e complexidade foi o maior desafio enfrentado pela União
Europeia em toda a sua História. A desintegração da Iugoslávia, uma Federação de Estados
nacionais com relativa autonomia, que manteve a região em condições de cooperação razoáveis
entre 1945 e o início dos anos 80, significou a quebra do período de paz mais longo conhecido
pela Europa. Os conflitos políticos, étnicos, religiosos e culturais naquela região mostraram a
Bruxelas as suas limitações como ator na Comunidade Internacional enquanto a UE não for
capaz de falar com uma só voz política e de respaldar suas decisões com uma força militar
européia de dissuasão à altura de suas dimensões econômicas, geográficas e demográficas.
16
François Miterrand (1916 – 1996) foi Presidente da França entre 1981 e 1995.
FRANKLIN TREIN
96
bases de sustentação da União Europeia. Por isto mesmo, talvez, dias e noites
de discussões ininterruptas não foram suficientes para produzir o consenso
da unidade. As maiores dificuldades encontradas diziam respeito às questões
de defesa e de política social. O Reino Unido, como sempre, resistiu a toda
e qualquer formulação que pudesse ser interpretada como cessão de soberania
em suas decisões políticas e exigiu que se mantivesse de forma muito explicita
a distância entre as competências comunitárias e as competências de simples
cooperação bilateral e multilateral entre os Estados membros.
Esgotada toda a pauta de negociações e pressionados por uma conjuntura
interna à Comissão Europeia, e externa, relativa à opinião pública dos europeus, o
consenso possível só foi alcançado em 17 de abril de 1991, na base de um projeto
de tratado que se sustentava em três pilares. Aquele era um resultado que deixava
evidente que os partidários da unidade haviam sido derrotados. O primeiro pilar
estava representado pela Comunidade Europeia, o segundo pela política estrangeira
e de segurança comum – PESC – e o terceiro pela cooperação nos assuntos dos
negócios do interior e da justiça. Havia uma clara dificuldade, os dois primeiros
pilares são de natureza comunitária e o terceiro intergovernamental
17
. De qualquer
forma, o primeiro pilar, ao estar representado pela Comunidade Europeia e não
pela Comunidade Econômica Europeia, ao excluir o adjetivo “econômica”, deixou
marcado que a integração deixava de ser une affaire de marché.
O Tratado sobre a União Europeia foi assinado em Maastricht em 7 de
fevereiro de 1992 e, após grandes dificuldades para ser ratificado pelos países
comunitários, entrou em vigor em 1
o
de novembro de 1993. A Europa julgava
superada uma fase importante e difícil de sua história e declarava-se preparada
para seguir ampliando o número de seus participantes ao abrir espaço para
novos Estados membros. Porém, reconhecia que em prazo não muito distante
deveria voltar a ocupar-se da definição de sua estrutura institucional, sem o
que não seria possível seguir avançando com a integração
18
.
17
Sendo correto se entender que questões comunitárias são questões interestatais, evoluindo,
em muitos casos, para um nível supraestatal, então é permitido dizer que um dos problemas
mais centrais do processo de integração dos europeus é o de realizar a transição das relações
intergovernamentais para as relações comunitárias. Este movimento terá sempre como
pressuposto a perspectiva não de cessão de soberania, mas de ampliação da soberania como
soberania compartilhada.
18
O Tratado de Maastricht estabeleceu em seu artigo N que: “Em 1996 será convocada uma
Conferência de representantes dos governos dos Estados membros para analisar, de acordo com
os objetivos enunciados nos artigos A e B das Disposições Comuns, as disposições do presente
Tratado em relação às quais está prevista a revisão.”
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
97
A Conferência Intergovernamental – CIG – de 29 de março de 1996,
em Turim, deu início a revisão do Tratado sobre a União Europeia no seu
todo e de alguns pontos presentes nos Tratados fundacionais. A CIG cuidou
especialmente das questões que se mostravam mais sensíveis diante da opinião
pública. Assim, receberam destaque problemas relacionados a uma maior
transparência de toda a infra-estrutura comunitária, seu funcinamento e a
participação democrática em suas decisões. Também foram consideradas as
condições necessárias a ampliação do espaço de liberdade, segurança e justiça
para os cidadão dentro da UE. A política externa e de segurança comum foi
reforçada em seus princípios e objetivos. Eram todos temas recorrentes das
Conferências Intergovernamentais, que naquele momento só estavam
recebendo um tratamento especial. Porém, um novo tema se acrescentava
àqueles com grande urgência. Era o que tratava das condições de alargamento
da UE, com a hipótese de admissão de um número expressivos de países da
Europa Central e do Leste e ainda Malta e Chipre
19
. A perspectiva das
dificuldades de administrar tantos Estados nacionais dentro de uma mesma
comunidade, a ser formada por sociedades com histórias, culturas, línguas,
religiões, etnias tão diversas, sugeria ainda mais um tema: a possibilidade de
se instituir uma integração a velocidades diversas, ou como se chamou em
muitas oportunidades anteriores, uma Europa de geometria variável.
As questões relativas ao Acordo de Schenguen
20
e a posição especial
do Reino Unido de rejeição das políticas sociais adotadas pela União Europeia,
paricularmente a partir do Tratado de Maasticht, contribuiram muito para os
resultados pouco expressivos obtidos em Amsterdam. De fato, o Tratado de
Amsterdam ficou bastante limitado nas questões institucionais em geral e na
criação de novos instrumentos políticos e jurídicos que pudessem intervir
positivamente nas negociações que levariam à ampliação do número de
19
O ingresso de Chipre na União Europeia, como é de amplo conhecimento, por sua situação
complexa, exigiu grande habilidade política das autoridades de Bruxelas. Aquela pequena ilha do
Mediterrâneo, habitada por duas comunidades, uma greco-cipriota, ao Sul, e outra turco-cipriota,
ao Norte, é só mais uma herdeira dos malefícios deixados pelo colonialismo inglês em todos os
lugares por onde passou. Atualmente, com o nome de República de Chipre, os greco-cipriotas,
que formaram um país autônomo e independente, reconhecido como legítimo pela Comunidade
Internacional desde 1992, participam como mais um Estado membro da UE.
20
O Acordo de Schenguen é uma convenção entre os países da EU, com exceção do Reino Unido
e da Irlanda, pela qual são definidas as condições da livre circulação de pessoas no espaço
geográfico dos países signatários. O Acordo foi assinado em 14 de julho de 1985, tendo,
originalmente, a participação de cinco países: Alemanha Bélgica, França, Holanda e Luxemburgo.
FRANKLIN TREIN
98
estados membros da UE. Assinado em 2 de outubro de 1977, o Tratado
entrou em vigor em 1
o
de janeiro de 1999.
O alargamento da União Europeia, que teve inicio no começo dos anos
90, pôs em evidência a necessidade de novas bases para a integração, o que
também pode ser visto como as limitações das instituções comunitárias para
abrigar uma diversidade tão grande de países. Pressionados pelo debate
público sobre a ampliação das fronteiras da UE, várias lideranças europeia
romperam o silêncio e passaram a tomar parte ativa nas discussões. De maneira
geral foram vozes que falaram em favor de uma Federação de Estados
nacionais, na qual deveria ser possível conciliar interesses comuns a todos e
interesses individuais de cada país. Entre as principais personalidades que se
manifestaram estava Helmut Schmidt
21
, ex-chanceler federal alemão, Valéry
Giscard d’Estaing
22
, antigo presidente francês e Jaques Delors, aquele que
permaneceu por mais tempo na presidência da Comissão Europeia. Mas
coube ao então Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Joschka
Fischer
23
, em uma conferência na Universidade Humboldt, em Berlim, em 12
de maio de 2000, expressar oficialmente e com todas as letras qual seria o
formato de uma Federação para a Europa. Guardadas as diferenças, a
estrutura federativa da Europa, na proposta de Fischer, era muito parecida
com a da República Federal da Alemanha, preservando-se para os Estados
nacionais, evidentemente, muito mais autonomia do que dispõem os Länder
na Federação Alemã.
A resposta francesa ao desafio de criação de um Federação de Estados
Europeus veio nas palavras do Presidente Jaques Chirac
24
, que em um discurso no
Bundestag – Parlamento Alemão, declarou aceitar a formação de um grupo pioneiro
franco-alemão, aberto à adesões, com a finalidade de impulsionar a integração,
mas que não estava de acordo com qualquer forma de superestado. É dispensável
dizer que a reação dos britânicos aos termos daquele debate foi de enfática rejeição.
21
Helmut Schmidt (1918 - ) estudou economia, foi governador da cidade-estado de Hamburgo,
deputado no Parlamento Federal alemão, Ministro de Defesa, Ministro de Finanças e Primeiro
Ministro de 1974 a 1982.
22
Valéry Giscard d’Estaing (1926 - ) nasceu em Koblenz, Alemanha, uma cidade situada na foz
de rio Mosel junto ao rio Reno. Cidadão francês, ele foi Ministro de Economia e Finança e mais
tarde presidente da França, de maio de 1974 a maio de 1981.
23
Joseph Martin Fischer – “Joschka”(1948 - ) foi Ministro de Relações Exteriores da Alemanha
de 1998 a 2005.
24
Jacques Chirac (1932 - ) estudou na Escola Nacional de Administração, foi Ministro da
Agricultura, Primeiro Ministro e Presidente da França.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
99
Se o debate sobre uma reforma profunda na estrutura da União Europeia
se mostrava impossível, a realidade dos fatos não economizava evidências de
que algo deveria ser feito, sob pena de se instaurar uma crise imprevisível,
capaz de comprometer todo o futuro da integração. Foi em meio a uma atmosfera
de grande tensão, a exigir soluções urgentes e de grande envergadura, que se
realizou a Conferência Intergovernamental de Nice, nos dias 7, 8 e 9 de
Dezembro de 2000. A mais longa e talvez mais difícil reunião do Conselho
Europeu até aquela data. As divergências entre as autoridade presentes sobre
a reforma das instituições pareciam instransponíveis.
O exame da agenda cumprida pela CIG de Nice permite algumas
observações indispensáveis ao entendimento do processo que se inaugura
com a disposição da UE de ampliar o número de seus Estados membros,
passando de quinze para vinte e sete em um breve transcurso de tempo. Em
primeiro lugar é possível identificar que, mesmo diante de tantas divergências,
no âmbito das questões jurídicas, foi relativamente fácil chegar a um consenso
sobre a reforma proposta para o sistema jurisdicional comunitário, com o
propósito de evitar o crescimento descontrolado do número de demandas
levadas à Côrte de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância das
Comunidades Europeias em Luxemburgo. O que se propôs como solução
foi a criação de Câmaras Juridicionais adjuntas ao Tribunal de Primeira
Instância, em condições de dar soluções aos processos sem a necessidade
da intervenção direta daquela Côrte e do Tribunal.
Outra questão que exigia uma solução ou pelo menos estruturas mais
condizentes com uma comunidades ampliada para quase três dezenas de
membros era o próprio sistema comunitário. Para aquele momento o sistema
comunitário podia ser resumido às atribuições do Presidente da Comissão
Europeia e aos mecanismos de cooperação entre os Estados membros. A
prática havia demonstrado que a autoridade do Presidente da Comissão
deveria ser sensivelmente reforçada, sob pena de graves prejuízos nas tomadas
de decisões e suas implementações. Após muitos debates, ficou estabelecido
que o Presidente passava a dividir suas atribuições com os demais Comissários
segundo seus critérios e poderia remanejar aquelas responsabilidades,
chegando até mesmo ao caso de pedir a demissão de um integrante da
Comissão. Ao Presidente foi dada ainda a competência de indicar seus Vice-
Presidentes.
A cooperação entre os Estados membros envolvia problemas ainda mais
difíceis para a construção de um consenso. O tratado de Amsterdam havia
FRANKLIN TREIN
100
deixado aberta a hipótese de certos Estados, em comum acordo com os
demais, estabelecerem processos mais acelerados de integração bilateral ou
mesmo multilateral, sem que isto implicasse na participação de todos os
Estados membros. Foi o que tomou o nome de cooperação reforçada
25
.
Porém, as restrições levantadas por aqueles que discordavam dessa solução
acabaram por impedir, naquele momento, qualquer ação nesse sentido. Ao
término de muito esforço o Conselho de Nice conseguiu progressos
significativos. Ficou estabelecido que a cooperação reforçada, ainda que com
restrições e procedimentos estritos, poderia ser praticada nos assuntos do
primeiro e terceiro pilares do Tratado sobre a União Europeia, ou seja, nas
questões comunitárias e referentes à justiça e à problemas internos,
respectivamente, mas por força das objeções levantadas pelo Reino Unido,
Irlanda e Suécia não poderia se praticada nos assuntos do segundo pilar, isto
é, aquele que diz respeito à PESC.
A composição da Comissão Europeia foi outro tema que gerou grandes
debates. A lógica aplicada até então – dois comissários para os países maiores
e um para os menores, assegurando pelo menos um comissário para cada
Estado membro – deveria ser mudada, sob pena de aquele órgão se tornar
completamente inoperante em suas decisões. Não foi possível qualquer forma
de solução e o problema foi postergado para um momento futuro, quando a
UE já tivesse assimilado todos os países candidatos a integrá-la.
Ao revisar questões pendentes de reuniões anteriores da CIG o Conselho
de Nice teve o cuidado de buscar temas que permitissem algum consenso sem as
intermináveis discussões ocorridas em oportunidades anteriores que acabavam
bloqueando o avanço do processo de integração. Assim puderam ser tratados os
seguintes problemas: o acordo sobre o estatuto das sociedades anônimas europeias
operando em mais de um Estado membro; as medidas necessárias ao reforço da
segurança marítima; a criação de uma autoridade europeia com funções consultivas
para cuidar dos problemas dos alimentos em geral; uma agenda social para a
Europa com clara definição de seu escopo; o reforço do espaço dito de liberdade,
segurança e justiça pelo reconhecimento mútuo das decisões judiciais; a adoção
de um plano de ação para estimular a mobilidade de estudantes, professores e
pesquisadores entre os Estados membros; uma declaração sobre o esporte,
buscando evitar a forte interferência do mercado nas atividades esportivas.
25
A importância da chamada “cooperação reforçada” para a integração fez com que o Tratado de
Lisboa tenha dedicado um Título inteiro, o IV, a definição de suas condições, finalidades e
objetivos.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
101
A perspectiva de ampliação do número de participantes do processo de
integração impunha um problema ao Parlamento Europeu que exigia urgente
solução. O Tratado de Amsterdam havia estabelecido um número máximo
de eurodeputados – 700 – que, se mantidas as regras vigentes de composição
do Parlamento para a União Europeia com 27 Estados membros, seria
ultrpassado, chegaria a 732. A solução não satisfez a todos, mas obteve um
consenso provisório
26
. O que talvez tenha sido mais relevante naquele momento
foi a decisão de ampliar a competência do Parlamento, e com isso reforçar
as suas atribuições legislativas.
As regras para as decisões do Conselho Europeu também foram objeto
de discussão. O objetivo era tornar aquele órgão mais ágil e fugir da facilidade
do veto individual ou mesmo de uma pequena minoria. Os avanços foram
difíceis. Em consequência o Tratado de Nice tornou ainda mais complexa as
discussões no âmbito do Conselho, pois as deliberações, para serem válidas,
devem contar com a maioria qualificada de votos, o que significa a maioria
numérica referente aos Estados membros e ainda representar a maioria da
população da União Europeia.
Resumidamente, se em decorrência das decisões que puderam ser
tomadas na CIG de Nice o Tratado, assinado em 26 de fevereiro de 2001,
criou condições para o alargamento, ao mesmo tempo deixou claro, mais
uma vez, a insuficiência dos mecanismos de negociação da própria CIG. De
qualquer forma, para evitar problemas ainda mais graves, ficou definido e foi
cumprida a data da entrada em vigor do Tratado de Nice: 1
o
de fevereiro de
2003.
2. A Convenção e o futuro da União Europeia
As limitações do tratado de Nice impuseram, já nos meses seguintes a
sua assinatura, a tomada de medidas urgentes relacionadas à reforma do
conjunto das instituições comunitárias. Deste modo, o Conselho Europeu
reunido em Laeken, em 15 de dezembro de 2001, decidiu convocar uma
Convenção sobre o futuro da Europa que, em primeiro lugar, deveria elaborar
26
Na intenção de resolver o problema do número de eurodeputados no Parlamento Europeu e
a distribuição da representação por país, a ata de adesão da Bulgária e da Romênia, assinada em
25 de abril de 2005, estabeleceu em seu artigo 9
o
que O Parlamento não teria mais do que 736
cadeiras. Naquele momento também ficou decidido que haverá uma nova repartição da
representação por país a partir do início da legislatura de 2009 – 2014.
FRANKLIN TREIN
102
um projeto de tratado constitucional para a União Europeia. A Declaração
de Laeken, além de definir a instalação de uma Convenção, estabeleceu os
termos de sua composição, seus objetivos, seu método de trabalho, dando
prazo para o cumprimento de suas tarefas: até 1
o
de março de 2003. Com a
finalidade de servir de roteiro para o trabalho da Convenção, os Chefes de
Estado e de Governo reunidos na CIG de Laeken formularam sessenta
questões relacionadas ao futuro da União Europeia. Aquelas perguntas se
distribuiam por quatro grandes temas: divisão e definição de competências;
simplificação dos Tratados; estrutura institucional e o caminho até uma
Constituição para os cidadãos europeus. A data de encerramento dos
trabalhos não pode ser cumprida. Um esforço concentrado, porém, tornou
possível chegar a bom termo em 10 de julho de 2003.
Indicado pela CIG de Laeken, Valéry Giscard d’Estaing presidiu a
Convenção, auxiliado por dois vice-presidentes: Giuliano Amato
27
e Jean-
Luc Dehaene
28
. Os demais integrantes foram eleitos ou indicados. Em seu
conjunto representavam os órgãos comunitários, dos Estados membros e as
organizações da sociedade civil europeia mais diretamente envolvidas com a
construção da União. Os representantes dos países candidatos a participar
da UE ganharam assento nos debates da Convenção com direito à voz, porém
sem direito a voto. As reuniões, realizadas nas instalações do Parlamento
Europeu em Bruxelas, foram abertas ao público e acompanhadas pela
imprensa em geral. Um total de pouco menos de cem e até um pouco mais de
duzentos integrantes participaram diretamente dos debates em plenário e
votaram nas decisões sobre os princípios ou sobre as formulações do texto.
No transcurso dos trabalhos a Convenção teve que superar uma
dificuldade conceitual básica: seu mandato não era o de uma Assembleia
Constituinte e nem sequer o de substituição de uma CIG. A Declaração de
Laeken dizia expressamente que o mandato da Convenção era “para garantir
uma preparação, o mais transparente possível, da próxima Conferência
Intergovernamental.” Contornadas as pretenções constituintes dos muitos
participantes da Convenção, os trabalhos puderam ser iniciados e os debates
ganharam o seu ritmo próprio. Entre as questões examinadas, as principais
27
Giuliano Amato (1938 - ), cidadão italiano, é jurista, foi Ministro do Interior, do Orçamento,
da Reforma e do Tesouro da Itália. Entre 1992/93 e entre 2000/01 exerceu a Presidência do
Conselho de Ministros.
28
Jean-Luc Dehaene (1940 - ) nasceu em Montpellier, uma cidade situada no sul da França.
Cidadão belga, foi por duas vezes, entre 1995 e 1999, Primeiro Ministro da Bélgica.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
103
foram: a Carta dos Direitos Fundamentais do Cidadão Europeu; a
subsidiariedade; o papel do Poder Legislativo dos Estados membros; a
governança política e econômica; a política exterior; a política de segurança e
de defesa comuns; a simplificação dos procedimentos administrativos em
todos os níveis; o espaço de liberdade, de segurança e justiça no interior da
UE, a Europa social.
As questões institucionais, começando pela personalidade jurídica da
União, no entanto, foram as de mais difícil consenso. França, Reino Unido e
Espanha insistiram na necessidade de um Conselho com um presidente estável,
um responsável europeu para os assuntos exteriores e uma Comissão com
um menor número de membros. A Alemanha, por sua vez, punha sua ênfase
no reforço da autoridade do presidente da Comissão. Bélgica, Holanda e
Luxemburgo preiteavam um presidente da Comissão eleito pelo Parlamento
Europeu com funções também de presidente do Conselho de Ministros.
Paralelamente, a proposta de natureza completamente federalista, elaborada
pelo então Presidente da Comissão Romano Prodi
29
sequer foi examinada
pelos convencionais.
A dificuldade de ver aceita uma estrutura federativa fez com Giscard
d’Estaing tenha optado em manter a forma tradicional da Comunidade, ou
seja, os três pilares representados pelo Conselho, Comissão e Parlamento.
Ainda por sua iniciativa o texto do tratado constitucional incluiu a definição do
cargo de presidente do Conselho como função exclusiva, eleito para um mandato
plurianual com duração de dois anos e meio. Os assuntos exteriores seriam
responsabilidade exclusiva de um ministro, que acumularia ainda as funções de
vice-presidente da Comissão, a qual teria seu número de integrantes menor do
que o de Estados membros, sendo seu presidente eleito pelo Parlamento Europeu.
Por fim, as decisões do Conselho se fariam com base no princípio da maioria
qualificada, ou seja, considerando tanto a necessidade da maioria simples entre
os Estados membros como um mínimo de 66% do total da população da UE.
O Conselho Europeu examinou o texto elaborado pela Convenção e,
após algumas dificuldade iniciais, deu a conhecer o seu consenso sobre o
mesmo. O Tratado que estabelece uma Constituição para Europa, e que
assim deveria inaugurar uma nova fase de sua história, foi assinado pelos 25
Chefes de Estado e de Governo, em Roma, no dia 29 de outubro de 2004.
29
Romano Prodi (1939 - ) Cidadão italiano, economista, foi Primeiro-Ministro da Itália por
duas vezes: de 1996 a 1998 e de 2006 a 2008. Presidiu a Comissão Européia de 1999 a 2004.
FRANKLIN TREIN
104
O processo de ratificação do Tratado Constitucional teve início logo a
seguir e as dificuldades em ver o texto aprovado pelos eleitores europeus ou
por seus representantes nos Parlamentos nacionais também apareceram
imediatamente. De qualquer modo, quando a França, em 29 de maio de
2005 e a Holanda, em 1
o
de junho de 2005, através de consulta direta aos
seus eleitores disseram não à Constituição, a mesma já havia sido aprovada
por 18 países – Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslováquia,
Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Letônia,
Lituânia, Luxemburgo, Malta e Romênia – os demais, que ainda não haviam
se manifestado decidiram suspender o processo de ratificação.
O não dos franceses e holandeses provocou uma grande crise política
nas relações internas da União Europeia. Era como se um portal para o futuro
tivesse sido fechado, interrompendo uma trajetória da qual muitos esperavam
a realização da grande oportunidade histórica para a Europa recuperar sua
posição de ator de primeira linha no cenário da Comunidade Internacional. A
saida para o impasse veio da Presidência alemã do Conselho que, com grande
interesse e muita habilidade conseguiu um acordo entre os seus pares, na
CIG de 21 e 22 de junho de 2007. A proposta feita por Berlim permitiu
reabrir as discussões sobre o processo constitucional na forma de um mandato
de revisão do Tratado que estabelecia uma Constituição para Europa,
rejeitado pela França e pela Holanda. De alguma forma a proposta da
Chanceler Angela Merkel
30
havia sido objeto de uma sugestão do Presidente
francês Nicolas Sarkozy quando este se referiu à hipótese de ser elaborado
um Tratado mais simples, que recolhesse as reforma estruturais estritamente
necessárias ao bom funcionamento da UE. De qualquer modo, a fórmula
conseguida pela Chanceler alemã foi muito mais ampla e contemplou todo o
texto da Constituição, abrindo a oportunidade para a elaboração de um
Tratado completamente novo.
3. O Tratado de Lisboa
Os estudiosos que acompanham o dia a dia da integração europeia e
entre eles em particular aqueles que observam a evolução de sua estrutura
político-jurídico coincidem na avaliação de que, apesar de todas as dificuldades
30
Angela Merkel (1954 -) foi Ministra da Mulher e da Juventude e Ministra do Meio Ambiente
antes de assumir o cargo de Primeira Ministra da República Federal da Alemanha.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
105
enfrentadas desde a crise criada pela negativa ao Tratado que estabelece
uma Constituição para a Europa em 2005, a União Europeia entrou numa
fase de constitucionalização de suas relações internas da qual não tem mais
como recuar. A constatação desta realidade histórico-política da UE não
significa, de maneira alguma, a solução de seus problemas, que ainda poderão
ser muitos com a não aprovação do Tratado de Lisboa por parte da Irlanda.
Esta é uma dificuldade real a ser enfrentada para a qual parece não existirem
muitas alternativas de solução a não ser o avanço em direção a uma nova
ordem jurídica, política e estrutural de toda a União. Diante de suas dimensões
atuais e da perspectiva, que se torna cada dia mais uma imposição, ou seja,
a de ter que admitir novos países, como é o caso da Croacia e, apesar de
todas as suas dificuldades, também o da Turquia, a União Europeia não dispõe
de muitas hipóteses, se não quiser renunciar ao seu projeto original. Ainda,
em outros termos, o que lhe resta é encontrar forças para assumir soluções
radicais para os seus problemas, o que não é uma tarefa simples.
Vejamos, brevemente, alguns elementos do Tratado de Lisboa que dão
à Europa a oportunidade de seguir com o seu propósito de integração. Em
primeiro lugar a CIG de Lisboa buscou encontrar, com o Tratado, uma forma
de superar a resposta negativa à Constituição. Isso significou, de um lado,
reestabelecer as bases institucionais necessárias às reformas inadiáveis da
UE, e, de outro, preservar aqueles ganhos extraordinários que o texto
constitucional havia recolhido. Tudo dentro do rígido princípio de que sem a
assinatura de todos os 27 Estados membros e a posterior homologação
unânime, nada acontecerá.
O exame comparativo do Tratado de Lisboa e do Tratado que
estabelece uma Constituição para a Europa revela que muitos pontos
fundamentais, bem como alguns princípio e normas complementares, mais
de conteúdo político do que de forma jurídica, reunidos pela Convenção,
encontram-se preservados no texto aprovado em Lisboa. Assim, o texto
aponta claramente para a necessidade de superação do déficit de
democracia que acompanha a construção da unidade da Europa desde a
sua origem. Da mesma forma faz referência à necessidade de a UE se
estruturar para desenvolver uma atuação global, porém com respaldo
não só de suas lideranças políticas mas também de sua base social, ou
seja, a sociedade civil europeia. Com uma estrutura tão
extraordinariamente grande e complexa, diante de uma realidade
internacional globalizada e de grande dinamismo é dispensável dizer que
FRANKLIN TREIN
106
as decisões devem ser ágeis, consistentes e consequentes. Tais
pressupostos implicam na necessidade de uma nova ordem e nenhuma
será melhor, até o presente momento histórico, do que aquela de natureza
federativa. Por isso mesmo, o Tratado de Lisboa preserva no seu interior
a trama federativa da Constituição. O conceito de democracia assume
assim uma nova dimensão, deixando de ser só representativa para ser
também participativa. O princípio de subsidiariedade ganha mais
consistência, uma vez que, com base numa ordem federativa os
Parlamentos nacionais passam a atuar de forma muito mais próxima das
atividades e das decisões dos órgãos da UE.
O que, de fato, muda completamente no Tratado de Lisboa em
comparação ao Tratado Constitucional é a relação entre as partes
signatárias, os Estados membros. Para encontrar uma solução para a
crise jurídico-política, resultante da negativa de aprovação da França e
da Holanada, a União Europeia se viu diante de uma única hipótese,
que foi a de continuar recorrendo à fórmula jurídica de “tratado
internacional” para regulamentar as suas relações internas, entre os
Estados membros, e ipso facto renunciar aos vínculos muito mais
estreitos e estritos que seriam criados por uma Constituição, a qual
estabeleceria entre todos uma estrutura jurídico-política de natureza
claramente federativa.
A diferença entre os dois Tratados pode ser identificada no próprio texto.
O Tratado Constitucional esta concebido como um “contrato” entre cidadãos,
enquanto que o Tratado de Lisboa é um texto que estabelece normas de
relacionamento interestatais. Por outro lado, o Tratado de Lisboa é de leitura
muito mais difícil do que o texto constitucional. Em Lisboa desaparecem as
simplificações. Retornaram ao texto as intrincadas referências a outros
ordenamentos jurídicos da UE, a exemplo do que pode ser encontrado em
todos os demais Tratados, como os de Maastricht, de Amsterdam e de
Nice. O texto que recebeu aprovação da CIG em 2007, na sua condição de
tratado, não contribui para resolver o emaranhado jurídico resultante da
sucessão dos Tratados, desde aquele que criou a CECA até o de Nice e que
hoje constituem a base institucional da União Europeia. O cidadão, não
especializado em questões político-jurídicas, para se situar dentro do espaço
comunitário, encontra-se agora, muito mais do que anteriormente, distante
da necessidade de entender não só a estrutura como a dinâmica de
funcionamento dos órgãos da UE. Neste sentido, as reclamações sobre a
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
107
intransparência da União Europeia são mais legítimas do que em qualquer
momento no passado.
O texto aprovado em Lisboa em 2007 deixa alguns prejuízos com relação
aquele aprovado em Roma em 2004. Não consta mais do seu arcabouço a
“Carta dos Direitos Fundamentais da União”, que compunha a Parte II do
Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Na intenção de
descaracterizar qualquer vínculo mais estreito que pudesse ser interpretado
como expressão de relações supranacionais, foram suprimidas do texto de
Lisboa todas as referência aos símbolos da União, tais como a bandeira, o
hino, o dia da Europa, etc. O preâmbulo do texto constitucional também foi
modificado, restando somente as referências a elementos que reforçam o
caráter interinstitucional do Tratado. Por fim, o texto tomou uma forma pela
qual passou a ser somente mais uma revisão dos Tratados anteriores, a
exemplo do que aconteceu com a sucessão de revisões ocorridas ao longo
das décadas de 80 e 90 do século passado.
Contudo, a leitura atenta do Tratado de Lisboa permite alguns
esclarecimentos importantes. Lisboa reafirmou a dimensão politicada UE de
forma incontestável. Acentuou os mecanismos da democracia representativa
e participativa, abrindo novos espaços para a participação direta dos cidadãos,
como o princípio de intervenção legislativa através de petição com um milhão
de assinaturas. Inovou ainda em um ponto fundamental ao criar condições
jurídico-políticas que permitem a um Estado membro por decisão voluntária
e soberana, solicitar seu desligamento da União. Desta forma as relações dos
países integrantes da Comunidade com o conjunto comunitário ganha novas
dimensões, reforçando tanto os mecanismos do princípio de subsidiariedade
como as competências preestabelecida para os Parlamentos nacionais nos
assuntos de interesse bilaterais e multilaterais de interesse geral. Ao mesmo
tempo o Parlamento Europeu tem suas funções legislativas ampliadas,
tornando-se rotina a sua participação nas decisões em assuntos de relevância
para os Estados membros e a sociedade civil como um todo.
As mudanças funcionais dos órgãos comunitários também são visíveis.
Em primeiro lugar é possível identificar aquelas referentes ao Conselho
Europeu, que passa a ter uma estrutura permanente. A presidência deixa de
ser rotativa, trocando de titular a cada seis meses, e ganha um mandato
exclusivo. Outra função que recebe destaque é a do Alto Representante da
União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política de Segurança. Seu
titular tem assento tanto no Conselho, onde preside o Conselho de Relações
FRANKLIN TREIN
108
Exteriores,
31
como na Comissão, onde é um dos seus Vice-Presidentes
32
. O
Conselho de Ministros como um todo assume uma nova dinâmica interna, ou
seja, passa a ter uma presidência rotativa, composta por três membros que
se sucedem ao longo de 18 meses, trocando de titular ao fim de cada
semestre. Ficam fora desta regra o Conselho de Relações Exteriores e o
Eurogrupo
33
. O primeiro terá como presidente permanente o Alto
Representante, enquanto que o segundo elegerá o seu respectivo presidente.
Ambos exercerão mandato de dois anos e meio, ou seja, coincidindo com o
mandato do Presidente do Conselho Europeu.
O Tratado de Lisboa não deu à Comissão Europeia nada de especialmente
novo. Talvez a mais expressiva de todas as novidades seja o estabelecimento
da regra que determina que o seu Presidente deve pertencer ao partido político
com o maior número de votos nas eleições para o Parlamento Europeu. Esta
foi uma decisão que pode ser entendida no sentido de dar à Comissão, o órgão
com atribuições executivas mais amplas na União Europeia, um pouco mais de
conteúdo democrático. O fato de que composição da Comissão se faz sempre
por indicação e não através de um processo eleitoral tem sido alvo de críticas
permanentes da opinião pública. Assim, esta pode não ter sido a melhor solução,
mas foi a forma encontrada neste momento para diminuir a distância entre a
Comissão Europeia e o cidadão eleitor.
Com o propósito de tornar mais eficaz e eficiente as suas tomadas de
decisão a Comissão teve acrescentadas mais competências as suas já extensas
atribuições. Complementarmente, desde uma outra perspectiva, é possível
observar ainda que a Comissão ganha um expressivo reforço institucional
quando o texto do Tratado define os atos jurídicos da União. O Tratado de
Lisboa qualifica os atos legislativos e executivos, distinguido uns e outros e
estabelecendo uma clara hierarquia entre eles.
O texto do Tratado aprovado em Lisboa tem o firme objetivo de resolver
um problema que ficou pendente quando da assinatura do Tratado de
31
O Conselho de Relações Exteriores é formado pelos Ministros de Relações Exteriores dos
Estados-Membros.
32
A função do Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política
de Segurança como Vice-Presidente da Comissão Europeia está definida no Artigo 18
o
, inciso 4
do Tratado de Lisboa.
33
Denomina-se Eurogrupo o Conselho formado pelos Ministros titulares de Economia e Finanças
dos Estados membros. Suas atribuições se estendem às questões relativas as suas pastas para
os países que fazem parte da Eurozona, ou seja, aqueles que adotaram o euro como moeda
nacional.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
109
Maastricht, isto é, o da segmentação da infra-estrutura que sustenta a União
em três pilares: o comunitário, o da PESC e o da cooperação no domínio da
justiça e dos assuntos internos. Isto está consubstanciado nas definições de
competências para o desenvolvimento das políticas econômicas e sociais e
na melhor definição do que se deve entender por cooperação comunitária,
especialmente quando diz respeito diretamente à construção do que passou
a se chamar de “espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. O Tratado
de Lisboa trata de dar à União Europeia uma unidade que o Tratado de
Maastricht não conseguiu construir.
Um elmento importante desta unidade definida em Lisboa pode ser
identificado na nova Política Externa Comum. Em primeiro lugar há um esforço
muito consistente de definir a personalidade jurídica, com direitos e deveres
da União Europeia, frente a países terceiros e aos organismos internacionais
34
.
Os primeiros beneficiados, neste caso, são os seus vizinhos, estejam eles nas
suas fronteiras junto à Europa Oriental, no Oriente Médio ou na Bacia do
Mediterrâneo. O Mercosul, que já mantém com a UE longos anos de
negociação de um acordo bilateral de cooperação poderá ter facilitado o seu
entendimento com os europeus, uma vez que as decisões dos representantes
europeus agora poderão se concentrar em questões mais básicas e de maior
densidade, deixando de lado detalhes, que muitas vezes foram a causa de
dificuldades insuperáveis no decorrer das discussões. Em outras palavras, o
Alto Representante, que responde pela política externa do Conselho e da
Comissão, juntamente com o Serviço Europeu de Ação Exterior
35
, que lhe
dá assistência, terá mais autoridade e autonomia para decidir nas questões
bilaterais e multilaterais de interesse da União Europeia.
O CIG de Lisboa não aprovou só um tratado. Na verdade, foram dois:
o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União
Europeia. São tratados distintos e complementares.
34
Se os Tratados fundacionais da União Europeia – CECA, CEE e EURATOM – proviam suas
respectivas Comunidades de personalidade jurídica internacional, isto não aconteceu quando
foi redigido o Tratado sobre a União Européia, assinado em Maastricht em 1992. Ou seja, de
acordo com os termos daquele texto a União Européia não está habilitada a assinar trados,
convênios, convenções ou qualquer outro instrumento jurídico com terceiros países. Para sanar
este problema o Tratado de Lisboa estabelece explicitamente o estatuto jurídico da União
Europeia, que assim pode representar legalmente o conjunto de países que lhe são signatários.
Diz o seu Artigo 47
o
“A União tem personalidade jurídica.”
35
O Serviço Europeu de Ação Exterior foi instituído pelo Tratado Constitucional em seu Artigo
III-296.3.
FRANKLIN TREIN
110
O primeiro, da União Europeia, em seu Artigo 1
o
declara:
“Pelo presente Tratado, as ALTAS PARTES CONTRATANTES instituem
entre si uma UNIÃO EUROPEIA, adiante designada por “União”, à qual
os Estados-Membros atribuem competências para atingirem os seus
objectivos comuns.
O presente Tratado assinala uma nova etapa no processo de criação de
uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as
decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao
nível mais próximo possível dos cidadãos.
A União funda-se no presente Tratado e no Tratado sobre o Funcionamento
da União Europeia (a seguir designados “os Tratados”). Estes dois Tratados
têm o mesmo valor jurídico. A União substitui-se e sucede à Comunidade
Europeia.”
O segundo Tratado, sobre o Funcionamento da União, define os seus
objetivos em seu Artigo 1
o
nos seguintes termos:
“1. O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os
domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências.
2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os
Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo
valor jurídico, são designados pelos termos “os Tratados”.
O Tratado da União Europeia dedica todo o seu Título V ao que denomina
de “ação exterior e política exterior e de segurança comum”. Além de definir de
forma extensa e detalhada a Política Exterior e de Segurança Comum - PESC
- ficam estabelecidas ali as relações de trabalho entre o Alto Representante da
União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, como membro do
Conselho, e a própria Comissão. No Artigo 24
o
se pode ler:
“1. A competência da União em matéria de política externa e de segurança
comum abrange todos os domínios da política externa, bem como todas
as questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual
de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa
comum.”
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
111
Em outras palavras, o que a CIG aprovou em Lisboa significa que a UE
se propõe a assumir progressivamente a responsabilidade por todos os
assuntos que digam respeito às relações internacionais de seus Estados
membros, incluídos aí os relacionados à defesa e segurança coletiva da União.
Isto pode ser ainda melhor entendido se for acrescentado o que ficou
estabelecido no Tratado sobre o Funcionamento da União, em seu Artigo
222
o
, ao texto do Tratado da União Europeia, onde estão nomeadas as
“Tarefas de Petersberg”
36
e o compromisso decorrente da Declaração de
Laeken. O conjunto de compromissos expressos naqueles documentos dão
a dimensão e a perspectiva a partir da qual Bruxelas entende como sendo da
sua responsabilidade cuidar dos interesses da União em tudo que diga respeito
às relações com países terceiros e com a Comunidade Internacional, tendo o
Alto Representante como elemento de ligação entre o Conselho e a Comissão.
O interesse da CIG em destinar à União a competência pelas questões
de política externa e de segurança comum pode ser identificado ainda em um
outro contexto do Tratado de Lisboa. Mesmo que na letra do Tratado tenha
desaparecido o nome do Ministro de Assuntos Exteriores da União Europeia
37
suas funções e responsabilidades permaneceram completamente preservadas.
Contudo, a denominação de Alto Representante da União Europeia para
Assuntos Exteriores e de Política de Segurança pode não ter sido a mais
feliz. O nome dado a esta função de um membro da Comissão, um de seus
Vice-presidentes, já mostrou que ela pode ser confundida facilmente com a
do Alto Representante para a Política Exterior e de Segurança Comum, função
acumulada pelo Secretário Geral do Conselho.
A Política Exterior e de Segurança Comum – PESC – foi instituída pelo
Tratado sobre a União Europeia – TUE – (1992) e completada pelo Tratado
de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001). O Artigo 17
o
do
TUE, consolidado, não só define o que são as atribuições da PESC, como
36
As «Tarefas de Petersberg» fazem parte integrante da política europeia de segurança e de
defesa (PESD). Foram incluídas expressamente no Tratado da União Europeia (artigo 17.º) e
abrangem: as missões humanitárias ou de evacuação dos cidadãos nacionais; as missões de
manutenção da paz e as missões de forças de combate para a gestão das crises, incluindo
operações de restabelecimento da paz. Estas missões foram instituídas pela Declaração de
Petersberg, adotada na sequência do Conselho Ministerial da União da Europa Ocidental –
UEO – realizado em Junho de 1992. Nos termos daquela declaração, os Estados membros da
UEO decidiram colocar à disposição daquela organização e igualmente da NATO e da União
Europeia, unidades militares provenientes dos diversos ramos das suas Forças Armadas
convencionais.
37
Artigo III-195
o
do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.
FRANKLIN TREIN
112
estabelece ainda que ela contemple uma política de defesa comum, que poderá
conduzir a uma defesa comum. O texto sublinha que, para tanto, a definição
progressiva da política de defesa comum estará respalda pela cooperação
entre si dos Estados membros no setor de armamentos
38
. O Artigo seguinte
(18
o
) estabelece que o Presidente do Conselho será o responsável pela
PESC em representação da União. Ainda no âmbito da PESC um Comitê
Político e de Segurança
39
acompanhará a situação internacional e através de
suas análises e relatórios contribuirá com as decisões do Conselho. Desta
forma o Comitê Político e de Segurança se soma ao conjunto das autoridades
da União Europeia responsáveis pela formulação da Política Exterior de
Segurança e Defesa – PESD.
Desde a entrada em vigor do Tratado sobre a União Europeia no início
da década de 90 o dia a dia das atividades do Alto Representante da Política
Exterior e de Segurança Comum mostrou, tanto para o interior da UE como
para a Comunidade Internacional, a relevância daquela função. Numa e noutra
direção a atividade do Alto Representante serviu tanto para fazer convergir
as políticas dos Estados membros como para dar uma dimensão de unidade
e coerência à UE. Assim, a PESC, como talvez nenhuma outra política comum,
cumpriu com o objetivo de construir uma imagem unificada da Europa,
superando até mesmo a Política Agrícola Comum – PAC, instituída duas
décadas antes. Isto contribuiu para que o Tratado de Lisboa tenha mantido
integralmente as tarefas inerentes àquela política concentrando ainda nas
funções do novo Alto Representante as atribuições que cabiam ao Comissário
para as Relações Exteriores e Política Europeia de Vizinhança.
As questões de política externa, defesa e segurança estão definidas no
Tratado de Lisboa nos Títulos III e V. No primeiro, em seu Artigo 18
o
, inciso
1, está dito: “O Conselho Europeu nomeará por maioria qualificada, com
a aprovação do Presidente da Comissão, o Alto Representante da União
para Assuntos Exteriores e Política de Segurança.” O mesmo Artigo
estabelece ainda que o Alto Representante estará à frente da Política Exterior
e de Segurança Comum – PESC – da União e atuará, do mesmo modo, em
relação a política comum de segurança e defesa.
38
Para promover a integração de suas respectivas Forças Armadas os Estados membros que
assim desejarem podem se valer das disposições sobre as cooperações reforçadas, previstas no
Título IV do Tratado de Lisboa.
39
As tarefas do Comitê Político e de Segurança estão bem definidas no Artigo 38 do Tratado de
Lisboa, que assume o conteúdo do Artigo 25 da TUE.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
113
No Título V, que trata das “Disposições gerais relativas à ação exterior
da União e disposições específicas relativas à política exterior e de segurança
comum”, em seu Artigo 24
o40
, como já foi observado, dispõe que a política
exterior e de segurança comum será executada pelo Alto Representante da
União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança acrescentando os
Estados membros como co-responsáveis
41
. Em outras palavras, compete ao
Alto Representante coordenar o diálogo político com terceiros países como
representante da União Europeia, tarefa que divide, é necessário observar,
com o Presidente do Conselho Europeu, assim como compartilha com o
Presidente da Comissão Europeia as responsabilidades nos assuntos
pertinentes às relações exteriores.
O Artigo 27
o
, em seu inciso 3, determina que o trabalho do Alto
Representante seja apoiado pelo Serviço Europeu de Ação Exterior – SEAE
– em colaboração com os Serviços Diplomáticos dos Estados membros. O
texto do mesmo inciso esclarece ainda que a composição do SEAE se fará a
partir de funcionários dos serviços competentes da Secretaria-Geral do
Conselho e da Comissão e por pessoal em comissão de serviço do Serviço
Diplomáticos nacionais.
O tratado da União Europeia contribui decisivamente para o
esclarecimento das relações internas à União quando se trata de questões de
política externa, defesa e segurança. Ao resgatar os ganhos alcançados pelo
Tratado, que estabelecia uma Constituição para a Europa, foi possível manter
os ordenamentos que preservam o lema da UE: “unidade na diversidade”.
Assim, as questões de âmbito comunitário, de responsabilidade da Comissão,
passam a ser tratadas em sintonia com as questões de responsabilidade
intergovernamental, ou seja, da esfera do Conselho. Isto permite à Europa,
pela primeira vez de forma consistente e consequente, falar de uma Política
Externa Comum – PEC.
O problema de uma PEC não é novo para a UE e sua principal dificuldade
estava sempre relacionada à cessão de soberania. O que agora fica redefinido
é que, a exemplo da política interna
42
, ao passar da esfera intergovernamental
40
Este Artigo recupera todo o conteúdo do Artigo 11
o
do TUE.
41
Ao estabelecer esta parceria entre a União e os Estados membros o Tratado de Lisboa elege,
claramente, não só a co-responsabilidade pelos assuntos de política externa, defesa e segurança,
mas ainda a dupla intervenção: interestatal e intergovernamental.
42
Pelos termos do Tratado da União Européia qualquer cidadão de um Estado membro, ao
assumir a cidadania europeia, passa a somá-la a sua cidadania nacional, uma vez que a aquisição
do status de cidadão europeu não implica na renúncia de sua cidadania de origem.
FRANKLIN TREIN
114
para a comunitária o que acontece, de facto e de jura, é a ampliação da
soberania dos Estados-membros, uma vez que passa a ser compartilhada,
ou seja, a soberania nacional de um Estado se amplia para os demais Estados.
Dito de outra forma, isto só é possível na medida em que admite compartilhar
suas decisões sobre política externa, defesa e segurança. Ou seja, nenhum
Estado está renunciando as suas responsabilidades.
O Tratado da União Europeia permite que a União passe a atuar de
forma coerente e convergente em questões que estiveram dispersas e mesmo
contraditórias em muitos momentos. A UE ganha unidade para a sua política
de comércio internacional, para a sua política de desenvolvimento e para a
política ambiental, resolvendo assim conflitos e inconsistências não só entre
os Estados membros, mas também entre as ações dos Comissários,
responsáveis por cada uma daquelas áreas
43
.
Concluindo, vale a pena lembrar as declarações “13 e 14”, anexas ao
Tratado de Lisboa, que ampliam as responsabilidade e co-decisões e assuntos
de política externa, de segurança e defesa da UE. A primeira refere-se à
importância da participação e cooperação entre os Parlamentos nacionais e o
Parlamento Europeu e a segunda conclama à formação de uma “Conferência
dos Parlamentos” como instrumento de participação mais efetivo dos órgãos
legislativos dos Estados membros e da União nas questões relativas à integração.
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121
Brasil-União Europeia: Uma parceria estratégica
Maria Edileuza Fontenele Reis*
No dia 4 de julho de 2007, na Cúpula de Lisboa, durante a Presidência
de Portugal do Conselho da União Europeia, com a participação do Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, do Primeiro-Ministro de Portugal, José Sócrates
Carvalho Pinto de Sousa, do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel
Durão Barroso e do Primeiro- Ministro da Eslovênia, Janez Jansa, foi lançada
a Parceria Estratégica entre o Brasil e a União Europeia. Trata-se de iniciativa
de grande envergadura para o aprofundamento e a dinamização do
relacionamento entre o Brasil e a União Europeia. A Parceria Estratégica
representa a elevação do diálogo ao mais alto patamar para o tratamento não
só da ampla gama de iniciativas na pauta bilateral, mas também para a
cooperação em temas afetos às respectivas conjunturas regionais e em assuntos
de interesse global, efetivo reflexo do aprofundamento das relações bilaterais.
A parceria estratégica Brasil-UE insere-se, assim, no contexto de
dinamização da cooperação em diferentes áreas de interesse mútuo, entre as
quais se situam novas iniciativas em energia/biocombustíveis, ciência e
tecnologia, meio ambiente, cooperação técnica, temas sociais,
desenvolvimento regional e transportes marítimos. Reflete também a
dinamização do relacionamento político bilateral, consubstanciada na
formalização, em 30 de abril, do Diálogo Político de Alto Nível Brasil-UE,
*
Embaixadora. Diretora do Departamento da Europa.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
122
mecanismo que se reuniu em Brasília, no dia 03 maio de 2007, em Luibliana,
em 06 de junho de 2008, e em Praga, em 24 de março de 2009. Nessas
ocasiões, foram abordados temas da agendas bilateral e regional, bem como
assuntos multilaterais de interesse comum.
A Parceria Estratégia não é uma panacéia – nem para um lado, nem
para o outro. Recorda-se nesse particular que o termo “estratégia”, tomado
de empréstimo do vocabulário militar, pode ser definido em linguagem
diplomática como a arte de aplicar meios disponíveis com vistas à
consecução de objetivos específicos – de explorar condições favoráveis
com o fim de alcançar metas. Nesse entendimento, a Parceria Estratégica
Brasil-União Europeia traduz a disposição de dois grandes parceiros, com
interesses consolidados, de buscar novas formas de cooperação lastreadas
no respeito mútuo e no reconhecimento da crescente importância de ambos
os atores na conformação de uma ordem internacional multipolar. A Parceria
Estratégica é, portanto, o mecanismo formal ao amparo do qual serão
desenvolvidas, de forma orgânica, sistêmica e consistente, as possibilidades
de maior interação entre o Brasil e a União Europeia nos campos político,
econômico-comercial, científico e tecnológico, cultural, de migrações, e da
cooperação em benefício de terceiros países. Conforme afirmou o Presidente
Lula em seu pronunciamento na Cúpula de Lisboa, com a Parceria
Estratégica “estamos elevando nossa relação à altura de suas
potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo
em transformação. Comungamos de princípios democráticos e do respeito
aos direitos humanos. Respaldamos as Nações Unidas como principal
instrumento da defesa da paz e da segurança internacionais. Confiamos no
sistema multilateral para a promoção do desenvolvimento com justiça social.
O grande desafio que temos é o de operacionalizar esses valores, mediante
propostas concretas, ou pelo menos coordenadas. Para isso deve servir
nosso diálogo”.
1
As relações entre o Brasil e a União Europeia são quase tão antigas
quanto os Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade
Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica
(EURATOM)
2
. Foram formalizadas em 1960, quando estabelecemos relações
1
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula de Lisboa, 4 de julho de
2007. Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social.
2
Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia (CEE)
e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM).
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
123
diplomáticas, e implementadas já a partir do ano seguinte, com a instalação,
em Bruxelas, de nossa representação junto à CEE.
O Brasil acompanhou com grande atenção a evolução do complexo
processo de constituição da União Europeia desde sua gênese, com a criação
da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1952, assim
como os Tratados de Roma, de março de 1957, e a instituição do Ato Único
Europeu, de 1968, que reunia as três Comunidades, lançando as bases para
a conformação, em 1992, do mercado comum com livre circulação, na então
Europa dos 12, de bens, capital e serviços.
Acompanhamos também a evolução institucional da UE, engendrada na
esteira de seu processo de alargamento e de aprofundamento, mediante a
criação de ampla e complexa rede de instituições gestadas no processo de
integração europeu. Nesse quadro, destaca-se o Tratado de Maastricht
(1992), também chamado de Tratado da União Europeia, que lançou as
bases para a política monetária, moeda única (e criação do Banco Central
Europeu), e cidadania comunitária, definindo os três pilares que passariam a
orientar a integração Europeia: a dimensão comunitária; a política exterior e
de segurança; e assuntos de Interior e Justiça. Da mesma forma, observamos
o processo de aperfeiçoamento institucional da UE, em que desempenha
papel de relevo o Tratado de Amsterdã, o qual amplia o escopo do interesse
comunitário ao introduzir o tratamento de temas sociais e direitos humanos,
bem como o Tratado de Nice (2001), que introduz adaptações especialmente
na composição do Parlamento Europeu, com vistas à absorção de 10 novos
membros.
Com a mesma atenção, acompanhamos os movimentos em direção à
ambiciosa empreitada de elaboração de uma Constituição Europeia, como
propunha o Tratado de 18 de julho de 2004
3
, malogrado com sua negação
pela França e pelos Países Baixos. Seguimos agora o processo de ratificação
do Tratado de Reforma da União Europeia (Tratado de Lisboa), 2007,
especialmente à luz de disposições relativas a uma maior convergência em matéria
de política externa. O aperfeiçoamento jurídico e institucional da UE, com seu
contínuo processo de integração política, econômica e comercial, certamente
traz conseqüências que transcendem os limites de seu próprio espaço geográfico.
Nesse contexto, identifica-se também o desejo europeu de maior protagonismo
político na conformação de uma ordem internacional multipolar.
3
Tratado Constitucional para a União Europeia, assinado em Roma, em 29 de outubro de 2004.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
124
Certamente, como experiência sem precedentes na história, a
conformação da União Europeia nos serviu como fonte privilegiada de
inspiração na concepção do nosso próprio mecanismo de integração regional.
Mas no que diz respeito ao relacionamento bilateral propriamente dito, é
forçoso reconhecer que muito pouco desenvolvemos em quase cinquenta
anos. Essa percepção é ilustrada de forma eloquente pelo fato de que entre
1960 e 2006 nunca houve uma visita ao Brasil de um Presidente da Comissão
Europeia – e até 2007, jamais um Presidente do Brasil havia visitado
oficialmente a Comissão Europeia. A relação bilateral ao longo de todo esse
período era rarefeita e marcada por disputas em torno de tarifas, imposição
de padrões e de posições sobre os mais diversos temas.
Cabe, contudo, recordar aqui o diálogo birregional que tem caracterizado
o relacionamento político entre a Europa e a América Latina, iniciado ainda
na década de oitenta, quando a Comunidade Europeia promoveu, em 1984,
em São José da Costa Rica, reunião com vistas à promoção do processo de
paz na América Central, em associação com o Grupo de Contadora, integrado
por México, Colômbia, Venezuela e Panamá. Com a posterior formação do
Grupo do Rio, em 1986, através da fusão do Grupo de Contadora com o
Grupo de Apoio a Contadora, formado por Brasil, Argentina, Peru e Uruguai,
foi institucionalizado, em 1990, o diálogo político regular entre a tróica Europeia
e os Ministros das Relações Exteriores do Grupo do Rio, mecanismo que,
desde então, se reúne bienalmente, alternando seus encontros com aqueles
das Cúpulas América Latina e Caribe-União Europeia, instituídas em 1999,
quando se realizou a sua primeira cimeira, no Rio de Janeiro. As reuniões
ministeriais Grupo do Rio-UE e os encontros em nível de Chefes de Estado
e de Governo no contexto das Cúpulas América Latina e Caribe-UE têm
sido os principais foros de diálogo político birregional.
Mas a análise do relacionamento da União Europeia com a América Latina
e Caribe também envolve forte vertente econômica, com evolução histórica
passando pelo sistema de preferências tarifárias aplicadas aos países ACP
(notadamente do Caribe – acordos de Cotonou, Lomé e Iaundê), até as
negociações de acordo de parceria econômica com a CARICOM, com a
Comunidade Andina, os Acordos de Associação firmados com Chile e México
(e seu sucesso na ampliação da pauta comercial bilateral) às negociações de
Acordo de Associação Mercosul-UE, lançadas em 1999 e ainda não concluídas.
Ainda no final de 2005, quando me preparava para assumir a direção do
Departamento da Europa, unidade no Ministério das Relações Exteriores
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
125
encarregada do relacionamento bilateral com a União Europeia, verifiquei
em minhas leituras, que, em paralelo ao aprofundamento de seu processo de
integração, Bruxelas tecia também rede de parcerias extra-regionais com
países relevantes na cena internacional. Nesse quadro, sobressaem a relação
privilegiada com os Estados Unidos da América e, na sua seqüência, com o
Canadá, atores tradicionais no eixo euroatlântico; com o Japão, expressivo
parceiro econômico da EU; com a Rússia, vizinho de importância estratégica
no contexto geopolítico e da segurança energética da União Europeia; e com
a China e a Índia, economias emergentes com mercados altamente atraentes
para a economia Europeia.
Saltava aos olhos a ausência do Brasil nesse conjunto de parcerias,
sobretudo quando consideramos que entre os BRICs faltava apenas o “B”.
Essa percepção também já permeava pronunciamentos de autoridades
comunitárias, que identificavam no Brasil ator de crescente importância no
cenário global. De fato, a partir do início do Governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, após consolidadas importantes conquistas da sociedade
brasileira, como o fortalecimento de suas instituições democráticas e a
estabilidade política e econômica, o Brasil passou a assumir crescente
protagonismo em temas de interesse global. O empenho do Brasil na
promoção do desenvolvimento com justiça social, o pioneirismo na produção
e no uso de fontes limpas de energia, o compromisso com a preservação do
meio ambiente, o respeito aos direitos humanos e os esforços em prol na
integração regional são elementos da voz forte do Brasil em diferentes tabuleiros
políticos, econômicos e sociais.
Com efeito, em janeiro de 2006, em reunião no Itamaraty com o
Representante da Comissão Europeia em Brasília, Embaixador João Pacheco,
deu-se início às tratativas com vistas ao estabelecimento da relação de Parceira
Estratégia entre o Brasil e a União Europeia
4
. Nesse contexto, realizou-se a
primeira visita ao Brasil de um Presidente da Comissão Europeia, o Dr. José
Manuel Durão Barrroso, em fins de maio de 2006. No diálogo mantido naquela
ocasião entre o Presidente da República e o Presidente da Comissão Europeia
evidenciou-se vasto potencial de cooperação em novas áreas de interesse
mútuo, bem como de aprofundamento das relações em iniciativas já em curso.
Foi naquele encontro que o Presidente da Comissão Europeia, animado pelo
4
Despacho Telegráfico número 23, de 26 de janeiro de 2006, para a Missão junto à Comunidade
Europeia em Bruxelas.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
126
entusiasmo do Presidente Lula com o desenvolvimento brasileiro dos
biocombustíveis e sua conseqüente contribuição para mitigar os efeitos da
mudança do clima, incluindo também importante dimensão social ao propiciar
sustento para áreas mais pobres do planeta, convidou-o para ser palestrante
de honra da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis que se propunha
organizar em 2007, e de fato realizada em Bruxelas, em 5 de julho daquele
ano.
No processo de lançamento da Parceria Estratégica, a Comissão
Europeia publicou, no dia 30 de maio de 2007, nota à imprensa com o seguinte
teor: “A Comissão Europeia propôs lançar uma Parceria Estratégica com o
Brasil na primeira Cimeira UE-Brasil que se realizará em Lisboa em 4 de
Julho. Numa Comunicação hoje adotada, a Comissão sublinha o papel
crescente desempenhado pelo Brasil na cena internacional, o seu peso a nível
regional e os fortes vínculos bilaterais que existem entre o país e a Europa e
propõe um certo número de iniciativas para reforçar as relações entre as
duas partes no quadro de uma Parceria Estratégica. A Comunicação identifica
um vasto espectro de sectores e atividades em que a UE tem um interesse
fundamental em reforçar a cooperação e em desenvolver um diálogo mais
aprofundado com o Brasil”
5
. A Comunicação sublinha igualmente a importância
de um diálogo reforçado para apoiar a conclusão de um Acordo de Associação
UE-Mercosul.
Elaborada na perspectiva da realização da Cimeira UE-Brasil, a referida
Comunicação foi discutida com os Estados-Membros e constituiu base para
a Agenda da Cúpula de Lisboa. Naquele documento, o Presidente da
Comissão Europeia expressou que: “O Brasil é um parceiro importante para
a UE. Não só partilhamos laços históricos e culturais estreitos, valores, e um
forte empenhamento nas instituições multilaterais, mas também a capacidade
para dar uma contribuição decisiva para o tratamento de muitos desafios
globais como as alterações climáticas, a pobreza, o multilateralismo, os direitos
humanos e outros. Ao propor um estreitamento destes laços, reconhecemos
o estatuto do Brasil como protagonista fundamental para integrar o clube
restrito dos nossos parceiros estratégicos.” A Comissária de Relações
Exteriores e Política Europeia de Vizinhança Benita Ferrero-Waldner, por
sua vez, referiu: “Existe um enorme potencial por explorar nas nossas relações
com o Brasil a nível multilateral, regional e bilateral. Esta Parceria Estratégica
5
Comunicação interna da Comissão Europeia, datada de 30 de maio de 2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
127
permitir-nos-á desenvolver ainda mais a nossa cooperação em sectores-chave
como a energia, os transportes marítimos e o desenvolvimento regional, e
estabelecer novas relações duradouras entre os nossos povos”.
A Comunicação “Para uma Parceria Estratégica UE-Brasil”
6
propunha
uma vasta gama de áreas e setores para uma cooperação e uma parceria
mais estreita. As áreas prioritárias de ação incluem o reforço do
multilateralismo, com vistas à construção de um sistema das Nações Unidas
mais eficaz e a promoção dos Direitos Humanos. A Comissão propõe cooperar
estreitamente em relação a desafios globais como a pobreza e as desigualdades,
as questões ambientais (em especial as alterações climáticas, as florestas, a
gestão dos recursos hídricos e a biodiversidade), energia, reforçar a
estabilidade e a prosperidade na América Latina e a cooperação em matéria
de integração regional com o Mercosul, bem como a determinação conjunta
de concluir um acordo UE-Mercosul.
Ao salientar que o Brasil é o mais importante mercado da UE na América
Latina, a Comissão propunha tratar as questões relativas ao comércio e ao
investimento de relevância bilateral específica que complementam as
discussões UE-Mercosul e sugeria reforçar a cooperação em setores e áreas
de interesse mútuo como as questões econômicas e financeiras, a sociedade
da informação, os transportes aéreos, os transportes marítimos, a ciência e
tecnologia, a navegação por satélite, as questões sociais e o desenvolvimento
regional. Por último, sugeria igualmente ações para aproximar os povos através
do sistema de intercâmbio de estudantes universitários Erasmus Mundus,
do diálogo cultural e de uma Mesa Redonda de empresas a realizar-se
paralelamente à Cimeira. Cabe aqui, no entanto, o registro do entendimento
do Governo brasileiro de que a Parceria Estratégica Brasil-União Europeia
tem caráter estritamente bilateral e não constitui instância negociadora do
Acordo de Associação Mercosul-UE, que tem seus foros próprios de diálogo.
A Parceria, contudo, poderá representar um impulso político às negociações
Mercosul-UE, em sintonia com os objetivos compartilhados pelos países do
Mercosul
7
.
A Comunicação incluía duas recomendações principais aos Estados-
Membros da UE: lançar com o Brasil uma Parceria Estratégica na Cimeira
6
Documento da Presidência do Conselho da União Europeia, de 2 de junho de 2007, que dispõe
sobre o estabelecimento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.
7
Circular Telegráfica nº 6.4149, de 31.05.2007, a todas as Embaixadas brasileiras no exteriores,
com esclarecimentos sobre o lançamento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
128
de Julho em Lisboa; e convidar o Brasil a apresentar sua posição sobre o
alcance desta Parceria Estratégica. Na base dessas recomendações estava a
percepção europeia de que “Brazil is an increasingly important partner
for the EU and also a highly competitive player in regional and global
issues. It is a key actor in Latin America both because of its political and
economic weight and as a result of its leadership role in the region (eg
leading the UN stabilization mission in Haiti). It plays a lead role in
Mercosur and in other South American regional processes. Brazil seeks
to promote effective multilateralism and is one of the most important
and articulate countries within the developing world. As leader of the
G-20, it will continue to play a crucial role in multilateral trade
negotiations (WTO) and because of the richness of its natural environment
and biodiversity will be a key partner on environmental issues. The EU
is the first largest investor and trade partner of Brazil. The fifth largest
country in the world, Brazil has become such an important part of the
international architecture that many issues of the international agenda
require that we work in partnership. For all these reasons, the EU has a
strong interest in strengthening its dialogue with Brazil.”
8
A Chancelaria brasileira, por sua vez, emitiu, em Nota à Imprensa
expressando que o Governo brasileiro acolhera, de forma altamente positiva,
a proposta da Comissão Europeia de lançar relação de Parceria Estratégica
com o Brasil, como uma decorrência natural do relacionamento bilateral do
Brasil com a União Europeia. A proposta encontra também sintonia com as
parcerias estratégicas que o Brasil já mantém com vários Estados-Membros
da União Europeia, entre os quais a Alemanha, França, Reino Unido, Portugal,
Espanha e Itália, países que estão entre os nossos mais importantes parceiros
comerciais e entre os maiores investidores no Brasil, além de serem importantes
as relações em ciência e tecnologia. Harmoniza-se, ainda, com interesse do
Brasil de aprofundar com a União Europeia não só o relacionamento bilateral,
mas também o diálogo sobre temas de interesse global.
Dada a elevada sintonia dos interesses de ambas as partes, o processo
negociador avançou rapidamente, culminando com a formalização da Parceria
Estratégica na Cúpula de Lisboa, em 4 de julho de 2007, durante a presidência
portuguesa do Conselho da UE. Cabe aqui também registrar o empenho de
8
Draft Preparation Document of the Lisbon Summit – Comunicação da Comissão Europeia à
Presidência do Conselho e ao Parlamento Europeu. Documento interno da Comissão Europeia
para a preparação da Cúpula de Lisboa. Bruxelas, 30 de maio de 2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
129
Portugal no lançamento da Parceria durante sua Presidência do Conselho da
UE, expresso em suas gestões junto a outros Estados-Membros da UE e na
organização da Cúpula de Lisboa. Conforme palavras do então embaixador
de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, “resolvemos propor que
fosse atribuído ao Brasil o estatuto de interlocutor privilegiado. É uma espécie
de quadro referencial de interlocução nas mais diversas áreas, desde a política
externa até questões ambientais. Um quadro em que se integrarão não só
todos os modelos de cooperação que já existem entre o Brasil e a União
Europeia, mas também futuros modelos, porque pensamos que o Brasil é um
ator no quadro internacional que justifica maior atenção do que tem tido até
agora”
9
. Portugal também se empenhou para fazer da Cúpula de Lisboa um
evento de natureza singular, tendo convidado para o evento outros Chefes de
Governo europeus. Assim, ao ato comemorativo do lançamento da Parceria
Estratégica Brasil União-Europeia, sob a condução do Presidente Aníbal
Cavaco Silva, juntaram-se ao Presidente Lula, além dos Primeiros-Ministros
de Portugal, Eslovênia e o Presidente da Comissão Europeia, formando a
tróica da UE, também o Presidente da França, Nicolas Sarkozy, o Presidente
do Governo da Espanha, Jose Luís Rodríguz Zapatero, o Presidente do
Conselho de Ministros da Itália, Romano Prodi, entre outros líderes europeus.
No contexto do lançamento da Parceria Estratégica, foi também organizado
o I Foro Empresarial Brasil-União Europeia, com expressiva participação de
representantes das áreas de comércio e de investimentos dos dois lados.
A importância daquele evento encontra-se refletida no parágrafo 3 da
Declaração Conjunta da Cúpula de Lisboa, que assim dispõe:
“No momento histórico da sua primeira Cúpula, o Brasil e a UE decidiram
estabelecer uma Parceria Estratégica abrangente, baseada nos seus
estreitos laços históricos, culturais e econômicos. Ambas as partes
partilham valores e princípios essenciais, como a democracia, o primado
do Direito, a promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais
e a economia de mercado. Os dois lados concordam com a necessidade
de identificar e promover estratégias comuns para enfrentar os desafios
mundiais, inclusive em matéria de paz e segurança, democracia e direitos
humanos, mudança do clima, diversidade biológica, segurança energética
e desenvolvimento sustentável, luta contra a pobreza e a exclusão. Estão
9
Francisco Seixas da Costa, entrevista à Radiobras/Agência Brasil, em 5 de junho de 2007.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
130
também de acordo quanto à importância de cumprir as obrigações
decorrentes dos tratados internacionais vigentes em matéria de
desarmamento e não-proliferação. O Brasil e a UE concordam em que a
melhor forma de abordar as questões de ordem mundial se dá pela via de
um multilateralismo efetivo centrado no sistema das Nações Unidas. Ambas
as partes se congratulam pelo estabelecimento de um diálogo político Brasil-
UE, iniciado sob a Presidência alemã da União Europeia”
10
.
Naquela ocasião, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso
por ocasião da Cúpula de Lisboa, sublinhou
“Hoje nos reunimos para dar início a uma nova era do relacionamento
entre o Brasil e a União Europeia. Estamos lançando uma parceria
estratégica, estamos elevando nossa relação à altura de suas
potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo
em transformação. As grandes questões globais como comércio, mudança
do clima, segurança energética, não podem ser discutidas em círculos
restritos que não levem em conta as posições dos grandes países em
desenvolvimento. Se quisermos verdadeiramente construir um mundo
melhor, temos que estimular o diálogo e a cooperação entre o Sul e o
Norte sobre os principais temas da agenda global”
11
.
A referida Declaração Conjunta já estabelecia as principais áreas que as
duas partes se propunham a aprofundar, entre as quais listavam o fortalecimento
do diálogo político com vistas ao tratamento dos principais desafios mundiais,
a cooperação no plano birregional no contexto das Cúpulas América Latina e
Caribe-União Europeia; o fortalecimento das relações econômicas e comerciais
nos âmbitos bilateral e birregional; o fortalecimento dos Diálogos Setoriais
bilaterais já estabelecidos em matéria de transportes marítimos, ciência e
tecnologia e sociedade da informação; meio ambiente e desenvolvimento
sustentável, e acolhem com satisfação o lançamento de novos diálogos sobre
energia, emprego e questões sociais, desenvolvimento regional, cultura e
educação, bem como o mecanismo de consulta para as questões sanitárias e
fitossanitárias; ciência e tecnologia; e a intensificação das relações envolvendo
10
Declaração Conjunta da Primeira Cúpula Brasil-União Europeia, Lisboa, 4 de julho de 2007.
11
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula de Lisboa, Lisboa, 4 de julho de
2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
131
entre a sociedade civil. A Declaração Conjunta reflete, assim, a agenda da
reunião plenária da Cúpula de Lisboa, quando foram abordados três blocos de
temas: Relações Brasil-União Europeia: o lançamento da Parceria Estratégica;
Temas regionais: situação na Europa e situação na América Latina e Assuntos
Globais: Rodada de Doha, Fortalecimento do multilateralismo, Mudança do
clima, Combate à pobreza e à exclusão social e Energia.
Entre o lançamento da Parceria Estratégica e a II Reunião de Cúpula Brasil-
UE, realizada no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 2008, as duas partes
estiveram empenhadas em, ao mesmo tempo, dinamizar as áreas de cooperação
já estabelecidas e negociar o Plano de Ação Conjunto da Parceria Estratégica.
A Cúpula do Rio de Janeiro, que ocorreu sob a Presidência Francesa do
Conselho da União Europeia, contou com a participação do Presidente Nicolas
Sarkozy e do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
Sua agenda privilegiou o debate das questões de interesse global, o tratamento
da crise financeira internacional à luz a reunião ministerial do G-20 Financeiro,
realizada em São Paulo, em novembro de 2008, bem como no contexto da
coordenação com vistas à Cúpula do G-20, realizada em Londres, em abril de
2009. Também nesse bloco de temas foi dada continuidade à discussão da
agenda de Lisboa com o aprofundamento da discussão sobre o fortalecimento
do multilateralismo nos planos político econômico, quando foram discutidas a
reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, bem como a
Rodada de Doha da OMC; além que questões afetas à mudança do clima e
energia, tendo presente a realização no Brasil, em novembro de 2008, da
Conferência Internacional sobre Biocombustíveis e as Metas de
Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. Também foram intercambiadas
visões sobre os cenários regionais europeu e latino-americano e abordados
temas bilaterais da Parceria Estratégica Brasil-UE, consubstanciados no Plano
de Ação Conjunto, então adotado.
O Plano de Ação constitui-se em documento amplo que passa a
estabelecer a moldura central das relações do Brasil com a União Europeia.
Inclui as áreas de cooperação já em andamento, bem como novas vertentes
de atuação conjunta, em forma de programa de trabalho a ser avaliado
anualmente nas reuniões da Comissão Mista Brasil União Europeia.
12
12
Comissão Mista Brasil-União Europeia, instituída pelo Acordo-quadro de cooperação entre
a Comunidade Econômica Europeia e a República Federativa do Brasil, assinado em 29 de junho
de 1992. A Comissão realizou em Brasília, em 17 de março de 2007 sua 10ª reunião, estando o
próximo encontro previsto para ralizar-se em Bruxelas, entre os dias 07 e 09 de julho de 2009.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
132
O Plano de Ação consolida como metas centrais da Parceria Estratégica
a promoção da paz e da segurança abrangente por meio de um sistema
multilateral eficaz; a promoção da parceria econômica, social e ambiental
para o desenvolvimento sustentável; a promoção da cooperação regional; a
promoção da ciência, da tecnologia e da inovação; e a promoção do
intercâmbio entre os povos. O Documento está, assim, estruturado em cinco
grandes blocos de temas agrupando as principais ações que as partes se
comprometem a implementar ao longo dos próximos três anos. Ao final desse
período, o Plano será objeto de avaliação, com vistas a definição de novos
rumos para a parceria.
1. Promoção da paz e da segurança
Propõe atuação conjunta, inclusive no contexto do Diálogo Político de
Alto Nível, com vistas ao fortalecimento do sistema multilateral, com ênfase
na reforma das Nações Unidas, incluindo o Conselho Econômico e Social
(ECOSOC), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e o Conselho
de Segurança (CSNU), assim como consultas e ações conjuntas nas áreas
de direitos humanos e democracia, justiça internacional (inclusive no âmbito
do Tribunal Penal Internacional – TPI), desarmamento e não proliferação,
prevenção de conflitos e gestão de crises, construção da paz, e luta contra o
terrorismo, crime organizado e corrupção, drogas ilícitas.
Como desdobramento da implementação desse capítulo do Plano de
Ação, os representantes do Brasil e da União Europeia em organismos
internacionais nas áreas acima citadas estão instruídos a intensificar a
coordenação em foros multilaterais. À luz da ativa participação do Brasil
e da União Europeia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, missões
das duas partes intensificarão o diálogo nessa área, especialmente no
tocante à construção da paz e à assistência pós-conflito, com vistas a
projetos conjuntos no Haiti, com reuniões já marcadas para ocorrer em
Brasília, no início de junho de 2009. As partes também assumiram o
compromisso de dar prosseguimento à coordenação sobre a reforma das
Nações Unidas. Destacam-se, nesse capítulo, os trabalhos do Diálogo
sobre Desarmamento e Não-Proliferação, instituído ainda em 2002, com
reuniões anuais de consultas entre o Brasil e a Tróica da UE sobre temas
de desarmamento e não-proliferação, em nível de altos funcionários, de
periodicidade anual.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
133
Com base no princípio da responsabilidade compartilhada e em uma
abordagem equilibrada entre a redução da oferta e da demanda de drogas, e
tomando em consideração as realidades de ambas as Partes, a cooperação
entre Brasil e UE nessa matéria deve centrar-se no intercâmbio de experiências
e de boas práticas, atividades de capacitação e treinamento, intercâmbio de
informações operacionais e jurídicas, entre outras.
2. Aperfeiçoamento da parceria econômica, social e ambiental para
a promoção do desenvolvimento sustentável
Trata–se de área particularmente relevante, em que as partes se
comprometem a trabalhar em diferentes níveis com vistas à conclusão da
Rodada de Doha. Também institui o Diálogo Brasil-União Europeia sobre
Temas Agrícolas (aspectos sanitários e fitossanitários), mecanismo de grande
importância para o encaminhamento de questões relativas ao comércio bilateral;
o Diálogo sobre Temas Macroeconômicos e Financeiros – a ser em breve
estruturado com vistas inclusive ao debate sobre a crise financeira
internacional; o reforço de ações em comércio e investimentos, com vistas à
ampliação e diversificação do intercâmbio bilateral (criação de Grupo de
Trabalho sobre Comércio e Investimentos); intensificação da cooperação
entre o BNDES e o Banco Europeu de Investimentos (BEI) em áreas como
mudança do clima, energia e infra-estrutura. Dispõe sobre o relacionamento
nas áreas de propriedade intelectual, transportes marítimo e aéreo e sociedade
da informação.
Além dos novos Diálogos Setoriais propostos nesse capítulo, cabe menção
ao Diálogo sobre Sociedade da Informação, já institucionalizado, ao amparo
do qual são tratados temas relacionados à tecnologia da informação, bem
como sobre governança da Internet, tema em que a experiência brasileira
desperta o interesse da Comissão Europeia, que deseja ainda conhecer os
projetos do Governo brasileiro em matéria de inclusão digital (programas
federais “Um Computador por Aluno” e “Plano Nacional de Banda Larga”).
Dispõe ainda sobre a consecução da Metas do Milênio; sobre o diálogo
sobre desenvolvimento global e cooperação triangular; sobre questões sociais
e de emprego; sobre redução de disparidades regionais e a instituição do
Diálogo sobre Governança do Setor Público. Nesse quadro, será dinamizado
o Diálogo sobre Desenvolvimento Social, firmado em abril de 2008, orientado
para a implementação de projetos na área social, objetivando a promoção
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
134
do emprego pleno, livremente escolhido e produtivo para mulheres e homens;
o fortalecimento da agenda de trabalho decente, em particular quanto a
princípios fundamentais, salários justos e direitos no trabalho; o combate ao
trabalho infantil e o trabalho forçado; o estímulo a orientação profissional e
oportunidades de aprendizagem continuada; a cooperação na área de saúde
e segurança no ambiente de trabalho; o fortalecimento do diálogo no campo
dos sistemas de seguridade social; o apoio ao intercâmbio de melhores práticas
na área de responsabilidade social corporativa e códigos de conduta justa
em empresas; o intercâmbio de melhores práticas em inclusão social, em
particular com relação a minorias.
Também merece destaque o Diálogo sobre Políticas de Integração
Regional, concluído em novembro de 2007, ao amparo do qual já estão em
andamento projetos bilaterais sobre redução das assimetrias intra-regionais
no Brasil. As partes se comprometem, no contexto desse Diálogo, a
intercambiar experiências em coesão territorial, bem como em governança
em múltiplos níveis e em parcerias que envolvam atores regionais e locais, o
setor privado e a sociedade civil; a trocar experiências sobre planejamento
estratégico e sobre a organização de estratégias de desenvolvimento territorial
voltadas para a redução de disparidades sociais e regionais; a buscar o
desenvolvimento de capacidade administrativa, coordenação e comunicação
interinstitucional e capacidade de monitoramento e avaliação; a desenvolver
esquemas de cooperação entre regiões, inclusive cooperação transfronteiriça;
a estimular o apoio técnico para o desenvolvimento e a consolidação de
políticas regionais, inclusive a possível implementação de projetos-piloto em
áreas-chave da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) do
Brasil e da política regional da Comissão Europeia.
Esse capítulo do Plano de Ação trata também do desenvolvimento
da parceria no contexto do Diálogo sobre a Dimensão Ambiental do
Desenvolvimento Sustentável e Mudança do Clima, instituído em maio
de 2006. Brasil e UE cooperarão no processo abrangente lançado em
Bali a fim de permitir a implementação integral, efetiva e sustentada da
Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
(UNFCCC) por meio de ações de cooperação de longo prazo, agora,
até e após 2012. Trabalharão em conjunto para procurar alcançar um
resultado acordado ambicioso e global até 2009 com vistas ao
fortalecimento da cooperação internacional sobre a mudança do clima
por meio de um esforço global nos marcos da UNFCCC e do Protocolo
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
135
de Quioto. Com esse objetivo, sublinham a importância de se alcançarem
resultados com relação a todos os componentes do Plano de Ação de
Bali adotado em dezembro de 2007 (entre outros, visão compartilhada,
mitigação, adaptação, tecnologias, financiamento), tomando seriamente
em consideração os cenários ambiciosos do Painel Intergovernamental
sobre Mudança do Clima (IPCC) e levando em conta o princípio da
eqüidade. Assinalam a necessidade de que todos os países desenvolvidos
assumam a liderança, comprometendo-se com metas de redução de
emissões mandatórias, ambiciosas e comparáveis, e de que os países em
desenvolvimento tomem medidas de mitigação apropriadas em nível
nacional, no contexto do desenvolvimento sustentável, apoiadas e
viabilizadas por tecnologia, financiamento e capacitação, de forma
mensurável, reportável e verificável. Brasil e UE ressaltam a necessidade
de ação tempestiva do Grupo de Trabalho Ad Hoc do Protocolo de
Quioto de modo que conclua seu programa de trabalho até o fim de 2009.
Reconhecem que o progresso substantivo nessa área deve ser baseado
no objetivo último da Convenção e no princípio das responsabilidades
comuns porém diferenciadas e das respectivas capacidades.
O Plano de Ação Conjunto dispõe, ademais, sobre a implementação
do Diálogo sobre Política Energética, criado por ocasião da visita do
Presidente da República à Comissão Europeia, em 5 de julho de 2007,
tendo realizado sua primeira reunião ministerial à margem da Conferência
Internacional sobre Biocombustíveis (São Paulo, 17-21/11/2008). No marco
do diálogo sobre política energética, Brasil e União Europeia pretendem
fortalecer a cooperação em políticas voltadas para aperfeiçoar a segurança
energética, inclusive a diversificação da oferta e de rotas de abastecimento;
em questões regulatórias para mercados de energia competitivos, incluindo
oportunidades de investimento; em eficiência energética e gestão da
demanda, incluindo iniciativas conjuntas e trabalhos conjuntos para a
promoção do acesso à energia e da eficiência energética em nível
internacional; em tecnologias de menor teor de carbono, incluindo, inter
alia, gás e carvão limpo, bem como pesquisa na área da energia nuclear e
cooperação em segurança nuclear, com atenção especial às tecnologias
seguras e sustentáveis; no desenvolvimento e na disseminação de tecnologias
de energia renovável, inclusive biocombustíveis de segunda geração; na
promoção da consolidação de mercados nacionais, regionais e internacionais
para biocombustíveis; em padrões técnicos internacionais para
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
136
biocombustíveis; sustentabilidade para biocombustíveis de forma a garantir
que produção de bioenergia, não afete a produção de alimentos e a
biodiversidade. Ainda com respeito a biocombustíveis, estão em curso entre
o Brasil e a União Europeia entendimentos para a cooperação trilateral
com países de menor desenvolvimento para promover a produção de
biocombustíveis e bioeletricidade, compatíveis com as normas e os padrões
exigidos pelo mercado internacional.
3. Promoção da Cooperação Regional
Dispõe sobre a intensificação da cooperação ALC-UE, Grupo do Rio-
UE e da agenda Mercosul-UE. Para tanto, as partes se comprometem a
apoiar iniciativas interregionais que aprofundem a integração regional, em
particular o processo ALC-UE; a estimular o intercâmbio regular de opiniões
sobre a situação em ambas as regiões; a implementar os compromissos
gerados pelas Cúpulas ALC-UE; a intensificar o intercâmbio sobre políticas-
chave voltadas para a promoção da inclusão social e para a redução da
pobreza e desigualdade. A Parceria Estratégica Brasil-UE apresenta grande
potencial de impacto positivo sobre o Brasil e a UE, bem como sobre as
relações entre a UE e o Mercosul em seu conjunto. Brasil e UE atribuem
grande importância ao fortalecimento das relações entre ambas as regiões e
têm compromisso com a retomada e a conclusão do processo de negociação
de um Acordo de Associação birregional equilibrado e abrangente. Para tanto,
as partes se comprometem a dar prosseguimento às negociações com vistas
à conclusão de um Acordo Mercosul-UE equilibrado e abrangente; a apoiar
o diálogo político e outras iniciativas a fim de fortalecer o desenvolvimento e
a cooperação econômica entre as duas regiões; a fortalecer o diálogo
regulatório e industrial birregional, a fim de aperfeiçoar o ambiente de negócios
e superar obstáculos desnecessários ao comércio; e a estimular o intercâmbio
entre o Parlamento do Mercosul e o Parlamento Europeu.
4. Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação
Atribui ênfase à intensificação das atividades do Comitê Diretivo sobre
Ciência e Tecnologia, com prioridade para as áreas de biotecnologia,
nanotecnologia, meio ambiente, energia e mudança do clima. Nesse particular,
merece destaque a intensificação dos trabalhos do Diálogo sobre Ciência e
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
137
Tecnologia, especialmente a partir da entrada em vigor, em dezembro de
2006, do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, ao amparo do
qual foi instituído o Comitê Diretivo de Cooperação Científica e Técnica
Brasil-União Europeia (CDC), em nível ministerial. O Plano de Ação
contempla a intensificação do desenvolvimento de projetos de pesquisa no
Brasil e na União Europeia em temas de energia (biocombustíveis e energia
nuclear), agricultura e biotecnologia, meio ambiente e mudança do clima,
espaço, saúde, nanotecnologia, transportes, mobilidade de pesquisadores,
ciências sociais e humanas e tecnologias da informação e comunicações. O
Plano de Ação dispõe também sobre o desenvolvimento da cooperação no
campo do espaço exterior e da navegação por satélite, em particular com
vistas a intensificar o diálogo e o intercâmbio de informações relativos aos
Programas Europeus de Navegação por Satélite (Galileo e EGNOS); o
fortalecimento da cooperação entre a CE e o Brasil na área de observação
da Terra, em especial mediante a participação na Iniciativa GEO (Grupo de
Observação da Terra); a exploração de oportunidades de cooperação em
pesquisas para o uso pacífico da energia nuclear, em particular as negociações
de um acordo de cooperação no campo da pesquisa em energia de fusão
entre o Brasil e a EAEC (EURATOM), com vistas ao acesso do Brasil ao
projeto do Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER).
5. Intercâmbio Cultural e entre as sociedades
Nesse capítulo do Plano de Ação, merece relevo o tratamento do tema
migrações, os contatos entre as sociedades civis e questões consulares,
assuntos que adquirem crescente importância no contexto da globalização,
tendo como base os laços históricos, culturais e humanos que unem os povos
do Brasil e da Europa. O Brasil e a União Europeia reconhecem o papel
positivo da migração como fator de intercâmbio humano e econômico nos
países de origem e de destino e se comprometem a continuar a tratar toda a
gama de questões de migração, tais como migração regular, migração irregular
e os vínculos entre migração e desenvolvimento, no marco das relações
bilaterais e dos foros internacionais de que participam Brasil e UE, tomando
em conta os direitos humanos e a dignidade de todos os migrantes. Para
tanto, acordaram fortalecer o diálogo sobre questões de migração nos foros
Brasil-UE existentes e propõem-se a trabalhar mais especificamente na área
das remessas, a fim de facilitar suas transferências e encontrar mecanismos
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
138
apropriados para a redução de seus custos; aumento da cooperação
operacional a fim de combater o tráfico de imigrantes, o tráfico de pessoas e
a exploração dos migrantes; a facilitação de viagens sem necessidade de
visto, com respeito integral à conclusão dos respectivos procedimentos
internos, parlamentares e outros, com base na reciprocidade, mediante a
negociação e conclusão em futuro próximo de acordo(s) sobre isenção de
vistos de curta duração entre a CE e o Brasil; o prosseguimento da cooperação
sobre assuntos consulares, especialmente aqueles relativos a acesso consular,
assistência e proteção; atenção especial a que sejam garantidas aos consulados
informações em casos de prisão, detenção ou transferência de seus nacionais;
a assegurar a prestação de assistência consular a pessoas detidas em postos
policiais, aeroportos e postos de fronteira.
O Plano de Ação também contempla o fortalecimento da cooperação
nos campos da educação e da cultura. Para tanto, as partes comprometem-
se a criar um diálogo setorial sobre educação, juventude e esportes, que
abrangerá temas de interesse comum, tais como a cooperação e o intercâmbio
em educação superior e a mobilidade de estudantes, professores e
pesquisadores mediante a implementação de programas como o Erasmus
Mundus, em consonância com o espírito do Espaço Comum de Educação
Superior ALC-UE; o intercâmbio de informações e de experiências com
vistas ao aperfeiçoamento de sistemas de avaliação acadêmica; a troca de
boas práticas e informações com vistas à identificação de métodos bem-
sucedidos para o ensino e o aprendizado de ciências, a fim de aumentar a
participação na educação científica e no treinamento vocacional e técnico-
profissional; a colaboração entre instituições de alto nível (universidades,
institutos de pesquisa, academias diplomáticas, think tanks e outras) nas
áreas de estudos brasileiros e europeus especializados e de Relações
Internacionais; a estimular a promoção do multilingüismo nos sistemas
educacionais e universitários de ambas as Partes e facilitar o ensino dos idiomas
da outra Parte.
Na esfera cultural, o Brasil e UE estão comprometidos com a preservação
e a promoção da diversidade cultural, com o aperfeiçoamento do diálogo
intercultural e com a promoção das indústrias culturais e criativas. As Partes
procurarão tratar conjuntamente essas questões em nível institucional, bem
como no nível dos setores público e privado e das organizações da sociedade
civil. Nesse sentido, as partes estabelecerão o diálogo regular sobre políticas
culturais, inclusive as indústrias culturais e criativas com vistas ao trabalho
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
139
conjunto para a promoção da cooperação em instâncias internacionais, a fim
de facilitar a implementação eficiente da Convenção da UNESCO de 2005;
a promoção da inclusão social e do desenvolvimento sustentável por meio do
acesso à cultura, inclusive mediante o uso de tecnologias de informação e
comunicação e das novas tecnologias digitais; a adoção de medidas voltadas
para a promoção do intercâmbio cultural e possíveis iniciativas conjuntas a
fim de divulgar a cultura brasileira na Europa e a cultura Europeia no Brasil; o
estímulo à cooperação e intercâmbio no campo do patrimônio cultural, inclusive
no setor de museus, com vistas à preservação de bens e expressões culturais;
a facilitação do trânsito da arte e de artistas do Brasil e da UE; o
desenvolvimento de políticas públicas no setor audiovisual.
Cientes da importância da consolidação dos instrumentos democráticos
de consulta à sociedade civil, em particular as instituições que representam
organizações da sociedade civil nas esferas econômica e social, o Brasil e a
União Europeia se comprometem a estimular a cooperação entre o Conselho
de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) do Brasil e o Comitê
Econômico e Social Europeu (EESC). Decidiram, assim, estimular a
organização de Mesa Redonda DCES-EESC, que constituirá a arquitetura
institucional do relacionamento Brasil-UE na promoção da cooperação e do
intercâmbio de experiências e de boas práticas entre associações empresariais,
sindicatos, agricultores e outras organizações da sociedade civil de ambas as
Partes.
Em complemento à interação ente as sociedades, o Plano de Ação
também se propõe a estimular o intercâmbio entre os Parlamento Europeu e
o Congresso Nacional brasileiro. As duas partes estabeleceram, em abril de
2009, o Diálogo Parlamentar, que já realizou sua primeira seção de instalação.
A Parceria Estratégica Brasil-UE também deverá promover a cobertura de
imprensa e o intercâmbio jornalístico recíprocos; a organização de conferências
e cursos de curta duração para jornalistas, entre outras iniciativas.
A elevação do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia ao
patamar de Parceria Estratégica resultou de uma convergência de
interesses, fundada nos valores e princípios que compartilhamos e
defendemos nos foros internacionais, e no reconhecimento recíproco do
potencial de nossa coordenação e cooperação. Desde a Cúpula de
Lisboa, em julho de 2007, o diálogo bilateral ganhou maior dinamismo
em todos os níveis, o que ratifica as elevadas expectativas quanto ao
futuro promissor da Parceria Estratégica.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
140
A face mais visível dessa relação, até mesmo por ser mais facilmente
mensurável, se traduz nas cifras de investimento e intercâmbio comercial.
Com efeito, a União Europeia tem tradicionalmente ocupado lugar de relevo
entre os principais parceiros econômicos do Brasil. A corrente comercial em
2008 superou a casa dos US$ 77 bilhões de dólares. Essa cifra representa
cerca de 22,2% do comércio total do Brasil, e um crescimento de cerca de
26% sobre o mesmo período em 2007. Somente em 2007, o ingresso de
investimentos diretos dos 27 países-membros da UE no Brasil somou US$
18,4 bilhões, o que representa 54,6% do total de investimentos que o Brasil
recebeu naquele ano.
Mas a apresentação acima do Plano de Ação da Parceria Estratégica
Brasil-União Europeia buscou mostrar, de forma resumida, a diversidade e
amplitude do relacionamento moderno entre o Brasil e a União Europeia. O
Plano completo consta de documento de 23 páginas, onde se estruturam as
múltiplas ações que as duas partes acordaram desenvolver ao longo dos três
anos de sua validade, com vistas à sua reavaliação em 2011.
Trata-se de agenda ambiciosa, de importância que transcende quaisquer
interesses econômicos imediatos. O Plano de Ação traduz a abrangência e o
caráter diversificado do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia,
que envolve não apenas agentes governamentais, mas também instituições
acadêmicas, o empresariado, os meios científico e cultural e tantos outros
segmentos das sociedades do Brasil e da Europa. O Plano de Ação reflete,
assim, a disposição compartilhada de imprimir ao relacionamento enfoque
verdadeiramente estratégico e humanista, voltado para as grandes questões
de nosso tempo. Encerra, portanto, a perspectiva de dois parceiros
empenhados na construção de uma ordem internacional multipolar, lastreada
no respeito mútuo, na confiança compartilhada, e na determinação de trabalhar
não só pela prosperidade e bem estar dos povos do Brasil e da União
Europeia. O sentido verdadeiramente estratégico da Parceria Brasil-União
Europeia se traduz na capacidade de trabalhar com olhar solidário sobre os
mais pobres e excluídos para a construção de um mundo mais justo e melhor.
141
Instabilidade política moderna nos países que
correspondem aos últimos impérios colônias
europeus. Exemplos do Oriente Médio e
comparação com a África
Affonso Celso de Ouro Preto
Berço das três grandes religiões monoteístas, ponto de contato entre o
Ocidente e o Oriente, área de conflito e também de síntese cultural, centro
estratégico próximo às maiores riquezas petrolíferas do planeta, o Oriente
Médio se mantém, ainda hoje, como a região por excelência das confrontações
e das crises modernas.
Uma observação inicial é conveniente.
Em primeiro lugar, o Oriente Médio, desde as Cruzadas e a conquista
otomana – com a exceção da tentativa de conquista francesa durante a
Revolução, no final do século XVIII – viveu durante séculos, contrastando
com os distúrbios de hoje, numa relativa paz e num clima próximo à tolerância,
como parte do império otomano. Outras partes do império haviam sido
marcadas pela violência mas não foi o caso do Oriente Médio propriamente
dito.
A segunda observação seria que os estados, hoje existentes, na região,
constituem entidades políticas relativamente modernas, na medida em que
representam a divisão levada a cabo, em proveito próprio, após a primeira
guerra mundial, pela Grã-Bretanha e pela França, das províncias árabes do
império otomano.
As crises que marcam o Oriente Médio moderno – conflitos do Líbano,
guerra no Iraque, tensões com a Síria, confrontação palestino – israelense,
não devem, por outro lado, ser examinados como fenômenos estanques sem
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
142
nenhuma relação de casualidade entre si (ainda que esse princípio de
causalidade não tenha sido aceito por todos os observadores e por todos os
matizes de opinião).
Um conflito específico, efetivamente, deve ser examinado, com
particular atenção. já que repercutiu, intensamente, não só em toda a
região mas também, globalmente, fora do Oriente Médio. Trata-se da
confrontação entre o nacionalismo árabe, mais especificamente, o
nacionalismo palestino, e o Estado judeu de Israel. Pode-se afirmar
que uma eventual pacificação da região dependerá da solução que
puder ser alcançada (se essa solução for possível um dia...) para esse
problema.
Sem tentar desenvolver uma análise histórica da criação do Estado de
Israel e de sua evolução ou um exame pormenorizado dos nacionalismos
árabes da região, em particular o palestino, cabe verificar, hoje, que a
complexa colisão (israelo-palestina) se expressa em dois ou mesmo em
três níveis.
Trata-se, em primeiro lugar de um conflito pela posse de um território. A
expansão da colonização israelense entrou em choque com as populações
árabes residentes na Palestina. Esse choque teve início com o desenvolvimento
da emigração judaica, a partir do século XX na Palestina. O Holocausto
nazista conferiu uma nova legitimidade a essa colonização que levou à criação
do Estado de Israel em 1948.
Em segundo lugar, a confrontação é também religiosa, na medida em que
o país – Israel-Palestina – é considerado terra sagrada tanto para a tradição
religiosa judia quanto para o Islam – (o país, como se sabe, também já foi
Terra Santa também para o cristianismo).
Enfim, em terceiro lugar, existe um conflito que opõe uma luta pela
emancipação de um povo – o palestino – a uma preocupação de segurança
de outro povo, o israelense, que se julga gravemente ameaçado pelos
fundamentalismos islâmico e mesmo pelos simples nacionalismo de seus
vizinhos palestinos.
Após uma série de guerras que se traduziram por vitórias israelenses –as
quais expressavam a superioridade técnica e militar de uma sociedade do
Primeiro Mundo (ainda que pequena) sobre os seus vizinhos do Terceiro
Mundo – em 1967 haviam sido ocupadas os últimos territórios palestinos,
até então, sob soberania árabe, ou seja a Jerusalém Oriental, a Cisjordânia e
a Faixa de Gaza.
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
143
A última confrontação entre estados, a de 1973 constituiu uma tentativa
por parte, dos vizinhos de Israel, de recuperar territórios perdidos em
guerras anteriores. A partir de então o conflito torna-se mais político do
que militar.
O nacionalismo palestino frente à ocupação israelense, expressou-
se, inicialmente, sobretudo pelo movimento “OLP” – Organização pela
Libertação da Palestina. Vários partidos e movimentos participavam e
participam da Organização. O principal deles foi o “El Fatah” cujo
líder, Yasser Arafat, tornou-se o principal dirigente do movimento
palestino.
A situação da Palestina ocupada após a guerra de 1967 levou ao
desenvolvimento da violência que se alastrou pelo território palestino
com as acusações mútuas de terrorismo e de repressão da força
ocupante.
Em 1992, teve início um diálogo OLP – Estado de Israel. Em 1993,
94 em Oslo uma serie de acordos, celebrados graças à mediação
norueguesa, levaram, pela primeira vez, ao reconhecimento mútuo. A
OLP reconheceu o Estado de Israel, cuja existência, nos seus
programas, não havia sido considerada como legítima até então, Israel,
por sua vez, reconhecia, pela primeira vez, o nacionalismo palestina
(a comunidade palestina havia sido considerada, antes, como apenas
parte do mundo árabe: a existência de uma nação palestina, ainda,
não era aceita nos EUA e em Israel) abrindo caminho para um futuro
Estado palestino – cujas fronteiras e condições de existência, no
entanto, estavam longe de estar determinadas. No entendimento
palestino (e do resto do mundo árabe), essas fronteiras deveriam
estender-se aos limites de 1967 e incluir Jerusalém Oriental, futura
capital do novo Estado.
Os acordos de Oslo de 1992-93 abriram caminho para a criação
da Autoridade Palestina, com base na cidade de Ramalah, sob a
presidência de Yasser Arafat, do partido Al Fatah, com uma soberania
sobre os “Territórios Ocupados” (ou seja a Cisjordânia e a Faixa de
Gaza, conquistados por Israel na guerra de 1967).
Um movimento palestino, de base religiosa, se opôs ao projeto de
criar dois Estados – o judeu e o palestino – e defendeu o ideal de fundar
apenas um, povoado, de israelitas e árabes mas, no seu entendimento,
com uma maioria muçulmana. Tratava-se do Hamas.
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
144
Vale registrar que a OLP, tanto quanto outros movimentos nacionalistas
árabes, predominantes até o fim da década dos noventa, como o Bath
sírio-iraquiano ou movimento egípcio dos coronéis, representavam ideais
laicos.
Esses nacionalismos expressavam a ambição, sobretudo de classes
médias, de identificar-se com modelos ocidentais de modernidade e visavam
introduzir o progresso do Ocidente nas tradicionais sociedades do Oriente
Médio. O próprio conceito de nacionalismo, aliás, é ocidental e só apareceu
e consolidou-se no mundo árabe a partir do início do século XX. O partido
Baath, por exemplo, foi fundado na Síria, por árabes cristãos parcialmente
ocidentalizados.
No mundo árabe, todavia, após as sucessivas derrotas militares frente a
Israel, bem como com o desgaste de governos nacionalistas laicos,
frequentemente acusados de incompetência e ou de corrupção, fortaleceu-
se, a partir dos anos noventa, um novo nacionalismo: o religioso.
Partidos nacionalistas religiosos, às vezes antigos, como os Irmãos
Muçulmanos do Egito (fundado em 1926), ganharam importância. Criou-se
o Hezbollah no Líbano, no seio da comunidade xiita, com apoio iraniano
(após a invasão israelense de 1982). O movimento dos Irmãos Muçulmanos
ganhou uma nova dimensão, no seu país de origem, o Egito, e inspirou, na
Palestina, o Hamas. Essa tendência refletia também o impacto da grande
Revolução Islâmica Iraniana (fora do mundo árabe) de 1979. O movimento
radical islâmico, mas não apenas árabe, Al Queda (condenado por vários
partidos nacionalistas), constitui um desdobramento dessa tendência de
retorno às raízes do Islam.
Verifica-se que as classes médias arábes, até recentemente
parcialmente ocidentalizadas, tendem a retornar a uma procura de
identidades próprias que levariam a ideais islâmicos, afastadas das
influências da cultura ocidental. O movimento atinge tanto as áreas de
tradição xiita, amplas áreas do Iraque e do Líbano e alguns países do
Golfo, além do Irã de cultura persa, bem como o resto do mundo árabe,
em geral, sunita. O caráter religioso de certos movimentos do Oriente
Médio alterou o caráter dos conflitos registrados na região, tornando
mais difíceis os mecanismos de negociação.
Convém, aliás, lembrar que o papel crescente da religião na política, não
constitui fenômeno restrito ao mundo árabe islâmico. Em Israel cresce a
importância dos partidos religiosos (de direita ou de extrema direita).
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
145
Esvaziam-se, no Estado judeu, os partidos tradicionais laicos, como o
trabalhista, que desempenharam um papel decisivo na criação do Estado
hebreu como o Partido Trabalhista.
Em 2005 havia sido eleito para a presidência da Autoridade Palestina, o
Presidente Mahmoud Abbas (após o falecimento de Arafat, o primeiro
Presidente) do movimento nacionalista laico o Al Fatah, considerado
moderado. Um ano depois, o Hamas islâmico, definido em Israel, e nos EUA
como movimento essencialmente terrorista, alcançou a maioria absoluta das
cadeiras da Assembleia Legislativa. Cabia-lhe formar o Governo, de acordo
com a legislação vigente.
Diante da impossibilidade de formar uma coalizão, constitui-se um governo
formado apenas pelo Hamas. Criara-se uma situação delicada na medida
em que, oficialmente, o Hamas não reconhecia Israel e o Governo israelense,
por sua vez, mantinha a sua definição do movimento Hamas como organização
terrorista cujo objetivo seria destruir Israel.
Israel exigiu de seus interlocutores palestinos, as conhecidas três
condições: reconhecimento do Estado de Israel, aceitação oficial dos acordos
já concluídos (Oslo por exemplo), renúncia à violência enfim. O Quarteto
EUA, UE, Rússia e Nações Unidas, criado para prestar assistência ao
processo de paz, também aceitou endossar as chamadas três condições,
para iniciar uma negociação, atendo a pressão sobretudo norte-americana
(ainda que todos os membros do Quarteto, como o russo, não expressassem
seu apoio às três condições com a mesma intensidade).
O criticado Governo do Hamas, todavia, havia sido eleito, num pleito que
não foi posto em dúvida por nenhum observador. Gerou-se uma situação pela
qual a comunidade internacional (a maior parte) não quis negociar com um
Governo ainda que este tivesse sido democraticamente eleito (segundo todos
os observadores), com o argumento de que o partido vitorioso não havia
oficialmente renunciado à violência. A exigência das chamadas três condições,
cobradas do Hamas, se traduzia numa recusa de negociar com o mais poderoso
e, aparentemente, mais representativo (pelo menos então), movimento palestino.
Toda a importante assistência internacional (sobretudo europeia) e, por outro
lado, o repasse dos impostos por Israel, foram suspensos.
No início de 2008, o Hamas assumiu o controle da Faixa, eliminando,
na área, a presença do El Fatah. O nacionalismo palestino consagrava a sua
divisão com duas administrações – a primeira, a do Hamas, com o controle
de Gaza pelo Hamas e, a segunda na Cisjordânia com o Fatah. A primeira
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
146
repudiada por Israel e pela maior parte da comunidade internacional e a
segunda, oficialmente definida como moderada, aceita como parceira para
negociações.
Apesar das rodadas de negociações, Israel e moderados palestinos da
Administração de Ramallah não se verificaram verdadeiros progressos. Não
se registram, na sociedade israelense, sinais de que seria viável uma aceitação
de concessões mútuas, necessárias a qualquer verdadeiro entendimento.
Israel continua dominado pela prioridade conferida ao problema de sua própria
segurança, principal ou quase única tema de sua vida política. De maneira
simplificada, poderia afirmar-se que a história do povo judeu, diante das
inúmeras perseguições sofridas que culminaram no Holocausto nazista, levou
ao fortalecimento, na sociedade israelense, da mentalidade de que não haverá,
em caso de perigo, qualquer auxílio exterior e de que o país constitui uma
fortaleza sitiada, em perigo, rodeada de inimigos, cujo fanatismo é irremediável
e com os quais qualquer forma de verdadeiro diálogo é impossível.
Registraram-se, todavia.
A sua evidente superioridade militar, baseada inclusive em armas nucleares,
permitirá a Israel evitar a necessidade de quaisquer concessões. O
fortalecimento da extrema direita e dos partidos religiosos, expressa já pelas
eleições de 2006 afastam Israel de uma rota de concessões inevitáveis para
qualquer negociação. Nas eleições de 2009, o eleitorado israelense resvalou
ainda mais para a direita, com uma maioria absoluta para os partidos
conservadores e ultraconservadores.
O futuro Primeiro Ministro, aparentemente, no momento em que se redige
esta tentativa de análise, seria Benjamin Netanyahu, líder do Partido
conservador Likud, ainda que o seu principal adversário, a Chanceler Tzipi
Livni alcançado, para o seu partido centrista Kadima, uma maior votação,
sem, conseguir, com seus aliados, uma maioria na Assembleia, a Knesset.
Benjamin Netanyahu, durante a campanha eleitoral, expressou oposição
ao projeto de criação do estado palestino. A sua liderança no próximo governo
israelense significaria, ao que tudo indica, um sensível recuo no processo de
paz (que se encontrava já passavelmente paralisado....).
Teve início, ainda com o presente governo, antes das eleições, no começo
do presente ano de 2009, por parte das forças israelenses, em retaliação ao
disparo de mísseis, uma campanha de violentos bombardeios, seguida de
uma invasão parcial de Gaza. Certos observadores atribuíram os ataques ao
fato de que as eleições israelenses estavam convocadas para fevereiro e que
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
147
o Governo israelense, controlado por partidos centristas, desejava demonstrar
os seus compromissos com a segurança do país.
Complica-se a situação diante do desenvolvimento de um novo projeto
na Palestina. Trata-se da defesa do Estado binacional. Seria abandonada
a idéia de criar um Estado palestino em favor da luta pelos direitos políticos
das populações árabes sujeitas ao controle ou a ocupação israelense. Os
palestinos de Israel propriamente dito – cerca de 20% população total
do país – com os palestinos da Cisjordânia e de Gaza, alcançariam, a
médio prazo, devido a sua alta taxa de aumento de população, uma maioria
nos territórios controlados por Israel. Seria criada a difícil situação para
o público e para as autoridades israelenses de escolher entre o
estabelecimento de um estado que se afastaria, com a consequente perda
de legitimidade, de um modelo democrático ou então, de um país que
deixaria de ser judeu, o que significaria o fim da sociedade israelense tal
como ela existiu até hoje.
A opção do Estado binacional é defendida apenas (por enquanto ) por
uma minoria dos palestinos, mas a hipótese passa a ser lembrada, com
crescente freqüência, como elemento de pressão contra Israel.
Diante do clima de impasse, a única possibilidade de abertura ou início
de abertura política, poderá decorrer de uma eventual pressão internacional,
mais precisamente dos EUA. Todavia, a política norte-americana, com raras
exceções, até hoje, se recusou a exercer essa verdadeira pressão. É
perceptível, na opinião pública, e nos meios governamentais, dos EUA, uma
identificação com Israel onde se vê uma sociedade engajada na luta contra
os fundamentalismos islâmicos adversários também dos EUA. Israel, seria o
aliado fiel, necessário numa região estrategicamente importante,
particularmente rica em petróleo, onde são claros os interesses norte-
americanos.
Durante o Governo Bush, após os atentados de setembro 2001, a
prioridade da política exterior, no Oriente Médio (e não só no Oriente Médio)
passou a ser a luta na “guerra contra o terror” – “the war on terror” – o que
levaria a um fortalecimento, ainda maior, das relações com os estamentos
militares israelenses.
Notou-se, no entanto, no último ano do Governo Bush, uma inflexão de
sua política frente à crise Israel – Palestina. Por iniciativa norte-americana foi
convocada a Conferência de Anápolis, onde foi aceito o princípio de uma
negociação, sem precondições (core issues) e foram marcadas, inclusive,
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
148
datas para o processo negociador. O Governo Bush terminou, no entanto,
sem um sensível progresso no processo de paz.
Os conflitos e crises do Oriente Médio continuaram a ser vistos pelos
EUA durante administração Bush, separadamente, como crises especificas
de cada país, como foi dito no início desta tentativa de análise. O fenômeno
moderno do nacionalismo árabe e as repercussões, em toda a região, das
humilhações decorrentes do conflito israelo-palestino, o seu caráter religioso
e sua dimensão simbólica, não foram levados em conta. A luta contra o “Mal”
da administração Bush ou seja a guerra contra o terror, expessa em termos
ideológicos, se mantinha como objetivo principal ou único nas demais áreas
de crise do Oriente Médio – Líbano, Iraque ainda em conflito interno, relações
com a Síria, preocupações frente ao Irã persa, definido como Estado fora da
lei ou “rogue state”. A política norte-americana passou a adquirir um caráter
frequentemente maniqueísta, definido às vezes como “islamófobo”.
No contexto do clima de indignação e de exaltação patriótica que se
difundiu, nos EUA, com os atentados do setembro 2001, foi decidida a invasão
do Iraque. O país, dirigido, com mão de ferro, por Sadam Hussein, não
mantinha qualquer relação com as redes de terrorismo se julgava ameaçar os
EUA nem desenvolvia um programa de armas de destruição de massa. O seu
regime era laico.
Tentou-se, ali, no Iraque após a ocupação do país, em 2003, promover
a instalação de um regime que expressaria os ideais de uma democracia de
modelo norte-americano. Uma experiência mais ou menos semelhante foi
tentada no Afeganistão.
Desenvolvia-se efetivamente uma estratégia de criar e encorajar, no
Oriente Médio, democracias de tipo ocidental as quais constituiriam um fator
de paz e estabilidade na região.
No Líbano continua a manter-se uma sociedade única na sua composição
e sua organização. Num território menor do que o da Bélgica, existem várias,
comunidades, pertencentes ao mundo árabe, mas de culturas diferentes,
seguindo, cada uma, a sua legislação específica. O poder, oficialmente
compartilhado entre os diversos grupos, havia sido exercido, na prática, até
os anos setenta, pela fortemente ocidentalizada comunidade cristã maronita
que formava a maior parte da classe média. O poder político e econômico
dos maronitas foi contestado, cada vez mais, com êxito crescente, mais pelas
comunidades islâmicas, sobretudo os xiitas, representados pelo partido
Hezbollah, aliado do Irã.
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
149
Na fronteira com Israel, parcialmente controlada do lado libanês pelo
Hezbollah, desenvolveram-se incidentes, quase rotineiramente, até que um
conflito em 2006, levou a ou justificou uma invasão levado a cabo pelo
Estado judeu.
O conflito que opôs Israel ao Hezbollah prolongou-se por 33 dias e
surpreendeu todos os observadores pela resistência demonstrada pela milícia
xiita frente ao que sempre se considerara a maior força militar da região ou
seja, o Exército israelense. Indubitavelmente, a milícia xiita do Hezbollah
sem conseguir uma vitória militar, alcançou, pela sua resistência, um claro
êxito político que repercutiu em todo o mundo árabe.
A suspensão das hostilidades levou a uma precária paz. Na complexa
sociedade libanesa, o Hezbollah havia consolidado uma presença poderosa.
A Síria, dirigida pelo Presidente Assad, líder de uma das duas vertentes
do partido Bath, foi definida também, pelos EUA, como “rogue state” por
acolher, no entendimento movimentos considerados terroristas pelo Governo
norte-americano permitir, na sua fronteira com o Iraque, a passagem de forças
ligadas aos movimentos de resistência iraquianos bem como por manter
relações estreitas com o Irã.
A Síria reclama de Israel, a devolução das colinas do Golã conquistadas
durante a guerra de 1967. Teve início, em 2008, um processo de negociação,
por meio de uma intermediação o turca, entre a Síria e Israel para discutir a
eventual devolução do território reclamado....
No Iraque, após a invasão norte-americana e britânica, com alguns outros
aliados, de 2003 (invasão não autorizada pelo CSNU), a vitória militar e a
derrubada do regime Saddam Hussein foram rápidas e fáceis. A consolidação
dessa vitória e a pacificação do país constituíram, no entanto, objetivos mais
difíceis.
Apesar da eleição legislativa, celebrada em fins de 2005 as complexas
negociações que levaram à instalação do Governo xiita do primeiro-ministro
(em princípio moderado) Al Maliki, com o Presidente curdo Talabani, verificou-
se que o fortalecimento do recém instalado regime parecia complexo. Tornou-
se necesário combater simultaneamente várias oposições: dissidências
religiosas, partido Bath, puro banditismo. Surgiu o Al Queda que nunca existira
anteriormente no país. Parecia ameaçada a unidade do país, dividido entre as
comunidades curda no norte, sunita no centro e xiita no sul. O fortalecimento
da presença militar norte-americana, verificada no final do Governo Bush
levou, apesar de perdas militares elevadas, a uma estabilização crescente
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
150
vários aliados dos EUA como a Espanha ou mesmo a Grã-Bretanha passaram
a diminuir ou retirar os seus respectivos contingentes militares.
As tentativas de instalar um governo no Iraque ou melhor, de criar um
novo Estado, em princípio democrático, inspirado em ideais do
conservadorismo norte-americano, depararam-se com dificuldades
inesperadas. Descobria-se ou redescobria-se o que os estudiosos da área já
haviam assinalado. O Iraque é um Estado frágil, artificial dirão muitos,
constituído apenas após a Primeira Guerra Mundial, quando se uniram sob
controle britânico, populações e culturas heterogêneas que nunca haviam
formado um Estado soberano, anteriormente. A unidade havia sido mantida,
após a independência com dificuldades, por regimes autoritários ou tirânicos,
enriquecidos pelo petróleo o último dos quais havia sido o de Sadam Hussein
da comunidade sunita.
Criara-se, um vácuo de poder gerado pela eliminação do regime Baath
pelos EUA e pela incapacidade de instalar ou consolidar um Estado sucessor.
Paradoxalmente, a guerra do Iraque parecia haver sido vencida, em
termos políticos, pelo Estado vizinho e adversário, o Irã xiita. O Irã tornou-
se a verdadeira potência regional cuja sombra se projeta em todo o Oriente
Médio (a apesar de não pertencer geograficamente à região) novo peso do
Estado xiita constitui fator político ainda não assimilado. Os EUA, os principais
países ocidentais, continuam a ver com preocupação esse novo poder regional,
alheio à influência política do Oeste e cujas ambições nucleares preocupam,
sobretudo Israel, e, cuja retórica parece assustadora. Por outro lado, cresce
o número de observadores que acredita ser necessário estabelecer um diálogo
com essa nova potência regional. Seria, com cautela, o caso da nova
administração dos EUA.
A paz no Oriente Médio parece distante, mais distante do que em outras
oportunidades. As experiências de uso da força no Líbano em 2006 contra
o Hezbollah, os ataques contra o Hamas na Faixa de Gaza no início de
2009, as incertezas ainda existentes no Iraque, onde a própria existência
do Estado é posta em dúvida, apesar de uma apregoada crescente
pacificação, o quadro sempre confuso do Líbano onde as várias
comunidades ainda demonstram uma incapacidade de alcançar uma
verdadeira reconciliação, os problemas decorrentes do crescimento político
do Irã com um possível projeto de armamento nuclear contra o qual, num
clima de nervosismo, o establishment israelense e amplos setores
conservadores da opinião norte-americana, pedem um ataque armado
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
151
preventivo, bem como a Palestina, constituem fatores que reforçam o
pessimismo quanto à eventual paz no Oriente Médio.
Os últimos acontecimentos políticos de fevereiro 2009 reforçam esse
pessimismo. As eleições israelenses de fevereiro 2009, constituiram,
indubitavelmente, um êxito para os setores conservadores e ultra-
conservadores do país – laicos e religiosos – os quais, em princípio, seriam
contrários ao conceito da criação de um Estado palestino.
Nota-se, sobretudo, a falta de verdadeiros líderes na região para levar a
cabo um verdadeiro processo de paz o qual, necessariamente, implicaria
numa capacidade de admitir concessões e de conter setores radicais.
A eleição norte-americana, todavia, desperta no Oriente Médio
esperanças (não só no Oriente Médio evidentemente....). Não está clara ainda,
qual será a política da nova administração. Parecem delinear-se, no entanto,
no Governo Obama, sinais de que serão menos intensas as avaliações de
cunho ideológico e as prioridades concedidas à guerra “contra o terror”
expressas pela administração anterior.
Tentativa de comparação dos conflitos e da instabilidade atual do Oriente
Médio com os da África sobretudo os da África subsaárica.
Examinar a África implica na necessidade de uma definição.
Existem, efetivamente, para efeitos de uma tentativa de análise política,
duas Áfricas. A África do Norte, o Ocidente árabe conhecido como o Magreb,
em oposição ao Oriente Médio bem como a outra África a subsaárica. A
tentativa de comparação que se tentará aqui se concentrará com a parte
subsaárica do continente.
A África do Norte, cultural e politicamente, pertence ao universo árabe
ainda que uma parcela de sua população seja de língua berbere falada antes
da conquista islâmica. O Oriente Médio, todavia, está relativamente longe e
seus conflitos, ainda que repercutam intensamente, no Magreb, não constituem
uma razão básica de instabilidade da região .
Os Estados já delineados antes da conquista europeia, confirmaram-se
com o processo de independência e sua existência não foi posta em dúvida.
As fronteiras coloniais foram aceitas com algumas exceções como o problema
do Saara espanhol que opõe a Argélia ao Marrocos. A colonização, ainda
que breve, deixou profundas marcas na região ao formar ou desenvolver
uma classe média de cultura francesa.
O principal problema que a África do Norte enfrenta é o da confrontação
dos regimes existentes com movimentos fundamentalistas islâmicos,
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
152
particularmente na Argélia, onde o conflito adquiriu contornos de muito
acentuada violência. Essa confrontação reflete, a rigor, o choque de uma
parcela considerável das populações contra classes médias, parcialmente
ocidentalizadas, as quais controlam os respectivos estados, inclusive as suas
forças armadas. Trata-se de fenômeno difundido no só no mundo árabe mas
no mundo islâmico de modo geral (como no Irã). Na África do Norte, até
agora, os Estados mantiveram o seu controle fazendo todavia concessões
aos ideais islâmicos e à cultura árabe.
A África subsaárica, tema básico da parte africana desta tentativa de
análise, constitui um universo profundamente diferente.
Essa África encontra-se num estágio de desenvolvimento muito mais
incipiente do que o Oriente Médio (ou a Ásia). Havia sido usada, durante
séculos, pela Europa, sem uma tentativa de colonização, com o único objetivo
do desenvolvimento do trafego de escravos para continente americano.
No final do século XIX, após a abolição do tráfico, o continente africano
havia sido partilhado entre países europeus. As colônias europeias, então
criadas, não se definiam por critérios étnicos, culturais ou religiosos.
Correspondiam simplesmente a um equilíbrio de forças registrado na Europa
no momento da partilha ou respeitavam (parcialmente), uma antiguidade na
ocupação de feitorias, no litoral, como teria sido o caso de Portugal. A
ocupação das colônias africanas foi justificada, na época, como a expressão
da “missão civilizadora” da Europa ou seja o “white man´s burden”. Na
África subsaárica, as fronteiras, após as respectivas independências registradas
a partir do fim dos anos cinqüenta, foram respeitadas, apesar de seu caráter
artificial, no que diz respeito às etnias ou as religiões (a alternativa teria sido o
caos). Registraram-se raras a exceções a esse entendimento, como o conflito
que opôs a Etiópia à Eritreia. Desenvolveram-se, no entanto, no continente,
no seio dos novos Estados (mas não em todos nem na maioria), após a
euforia dos anos que se seguiu à independência, guerras e confrontações de
extraordinária violência.
Conflitos sacudiram Angola em 1992, Ruanda e Burundi em 1993/94
com contornos de genocídio, mais recentemente Serra Leoa e Costa do
Marfim. Hoje, novamente, o Congo enfrenta a violência. No Sudão, onde o
conflito que opõe o Governo central à região ocidental de Darfur, não está
ainda solucionado apesar das promessas e compromissos em contrário e a
presença de contingentes reduzidos de forças internacionais. No mesmo país,
o norte e o sul, após muitos anos de violenta confrontação, mantém uma paz
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
153
precária. A Somália se encontra ainda em situação caótica e a Nigéria enfreta
certas desordens na região do Delta. As desordens e guerras foram seguidas,
em várias áreas, pelo drama da fome que assolou vastas regiões.
Esses conflitos possuiam duas características. Representavam, em
primeiro lugar, guerras tribais nos estados artificiais criados pela colonização
europeia. Podem ser considerados como tentativas de estabelecer novas elites
dirigentes ou novas formas de distribuição de poder em países com identidades
incertas. Correspondem a extrema dificuldade da criação de Estados
modernos em sociedades que mantiveram o seu caráter tribal aesar da
experiência.
Em segundo lugar, essas guerras apesar de um custo humano de, às
vezes, milhões de vítimas, repercutiram apenas em áreas limitadas e nos países
vizinhos, sem alcançar uma dimensão de confrontações globais ou sequer
continentais, com desdobramentos em todo o continente ou fora dele. A
sociedade internacional, apesar de sinais (modestos) de solidariedade ou de
preocupação, diante da violência verificada, não se sentiu atingida. As crises
africanas, em suma, apesar de sua intensidade dramática, mantiveram um
caráter, acentuadamente, local.
A última observação seria a de que, após anos de confrontação, 2000,
a África subsaárica, depois de 2000, passou a beneficiar-se de taxas de
desenvolvimento, relativamente elevadas. O continente aproveitou os altos
preços de commodities. Beneficiou-se de uma massa crítica crescente de
investimentos chineses e até certo ponto indianos. A influência chinesa, em
particular ganhou importância. A África subsaárica afastou-se econômica e
politicamente das antigas metrópoles .
Esse desenvolvimento, ainda frágil, evidentemente, não foi uniforme em
todos os estados do continente. Concentrou-se em alguns países (entre outros)
como Angola, Moçambique, Botsuana, até certo ponto Quênia e Tanzânia e
mesmo Serra Leoa. Esses países partiram de patamares modestos e estão
ameaçados, hoje, pela queda dos preços das commodities. O seu progresso,
todavia, poderia indicar que a terrível fase da violência interna, foi ultrapassada.
Ao mencionar a parte do subsaárica do continente é necessário registrar
uma grande exceção: a África do Sul. Examinar o país exigiria uma análise
especial. Cabe aqui lembrar que se trata de nação com problemas específicos,
referentes à integração de suas várias comunidades, diferentes dos que se
registram no resto do continente. Será necessário acrescentar ainda que a
África do Sul, definida como estado “emergente”, alcançou um elevado nível
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
154
tecnológico e desenvolveu um importante parque industrial únicos no
continente.
Comparar a África subsaárica com o Oriente Médio, – além da
exceção sul africana, constitui um exercício interessante.
As duas regiões enfrentam, como foi visto, crises e confrontações
graves.
Os seus conflitos se distinguem por dois motivos. Em primeiro lugar,
os choques verificados na África tiveram lugar em sociedades essencial
ou puramente tribaisque se encontravam, como foi dito, num estágio
incipiente de desenvolvimento. Os choques conflitos expressaram o
esforço, após as euforias das respectivas independências, de criação ou
consolidação, de Estados modernos. Igualmente as extraordinárias
dificuldades, encontradas nessa rota. Demonstram ainda o fato de que as
colonizações, na África, haviam sido breves, sem marcar, profundamente
as sociedades, exceto no que diz respeito às suas pouco numerosas elites.
Em segundo lugar, como se disse, na África subsáarica, apesar da
violência que ali se verificou, o seu alcance, e pouco repercutiu além das
fronteiras nacionais.
Já o Oriente Médio apresenta um quadro profundamente diferente.
Os Estados possuíam bases sólidas, ainda que constituíssem também
entidades artificiais, formadas que foram com base nos entendimentos
que se seguiram à primeira guerra, e com fronteiras às vezes contestadas
como as do Líbano com a Síria ou as de Israel com o futuro Estado
israelense. As sociedades locais, todavia, com algumas exceções – por
exemplo, o Iraque – não são tribais mas representam partes de um
conjunto maior, ainda que dividido, hoje, em nações, que seria o mundo
árabe, unido pela mesma cultura e pela consciência de uma afinidade
histórica.
As guerras internas, ainda que violentas como as do Líbano, o
setembro negro jordaniano, ou os conflitos frente a Israel, não chegaram,
nem de longe, ao grau de violência que se verificou na África subsaárica
e não podem ser consideradas como conflitos tribais.
Por outro lado, apesar de constituir dramas menos intensos, os
conflitos do Oriente Médio, muito mais do que os africanos, repercutiram,
globalmente, fora da região, em todo o mundo e não só nos meios
islâmicos. O Oriente Médio tornou-se uma das principais áreas de
confrontação onde se concentram as atenções internacionais e onde é,
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
155
claramente visível, uma presença dos EUA e uma contestação, hoje
sobretudo política, a essa presença.
A violência foi menor no Oriente Médio do que na África subsaárica,
mas ela preocupa mais o mundo....
157
A África entre o atraso e o desenvolvimento no
período Pós-Crise Global
José Flávio Sombra Saraiva*
O objetivo central do presente capítulo é apresentar algumas das ideias
por mim defendidas oralmente nos debates que da Terceira Conferência
Nacional de Política Externa e Política Internacional, organizada pelo Instituto
de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI) e Fundação Alexandre de
Gusmão (FUNAG), do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, realizado
em dezembro de 2008, no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro.
Redigido posteriormente ao contexto da conferência, ainda que recupere
parte da minha exposição, o presente texto incorpora naturalmente fatos e
processos que se espraiaram a posteriori, em especial os aspectos atinentes
ao impacto da crise econômica global iniciada na segunda metade do ano de
2008, além da chegado à presidência dos Estados Unidos da América do
Presidente Barack Obama, fenômenos que se debruçaram sobre o mundo
em 2009, com consequências para os Estados, as economias e as sociedades
africanas.
Nesse sentido, o documento está divido em quatro problemas centrais.
O primeiro aborda a adaptação do continente africano ao período posterior
à década de bonança econômica de fins da década de 1990 em grande parte
do continente, até o ano de 2008. O segundo se refere aos temas
*
PhD, Universidade de Birmingham, Inglaterra; professor titular em Relações Internacionais
da UnB e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
158
estruturalmente recorrentes na África, com ou sem crise global. Avalia alguns
desafios, de caráter mais novo, para o melhor engajamento da África nas
mudanças sistêmicas que vislumbra o sistema internacional da passagem da
primeira para a segunda década do século 21. O terceiro aborda a disputa e/
ou a cooperação sino-americana na África depois da chegada do presidente
Obama ao poder. Finalmente, na conclusão, uma palavra de confiança é
conferida aos esforços brasileiros ao buscar manter base logística de operação
no continente africano.
Depois da bonança, o ônus?
As condições internacionais da passagem do século 20 para o século
atual foram favoráveis à inserção internacional da África. Os anos que separam
1999 ao ano atual configuraram quase uma década de superação, comparada
com as quatro décadas anteriores de baixa continuidade econômica, fraturas
na formação dos Estados nacionais, péssimos índices sociais. O crescimento
econômico em ciclo recente trouxe alguma consistência estrutural à
modernização daquele continente de 30 milhões de quilômetros quadrados,
gerador de fato inédito à história recente dos jovens Estados africanos,
nascidos do primeiro ciclo de independências no fim dos anos 1950 e início
da década de 1960.
Os registros quantitativos e qualitativos produzidos pelas agências
internacionais e pelos próprios gestores dos 54 Estados africanos produziram
evidências empíricas do argumento inicial. Economistas, governos e empresas
chinesas e norte-americanas, e mesmo balanços brasileiros de empresas e
órgãos de governo, confirmaram a quadra histórica alvissareira que assistimos
recentemente.
Os atuais 680 milhões de africanos que habitam as paragens continentais,
depois de décadas de agruras, assistiram, mesmo com crises estruturais e
dificuldades históricas no campo da assimetria social e dependência econômica
das metrópoles de antes, um sopro de esperança de normalização de suas
vidas. Apresentada como a última fronteira do capitalismo global, a África
atraiu a atenção da sociedade internacional. Abria-se a oportunidade para,
por meio do crescimento econômico, buscar-se a normalização política e a
pacificação dos conflitos domésticos.
Observei, na edição anterior da Conferência Nacional de Política Exterior
e Política Internacional (II CNPEPI), dimensões que animaram o ambiente
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
159
positivo na África e em torno dela. Interna e externamente induzidas, as
sociedades africanas caminharam para um novo estágio civilizatório. As
expectativas que elevaram o lugar da África no sistema internacional são
relevantes para um continente povoado por Estados que têm apenas meio
século de autonomia formal, depois do ciclo colonial:
“O sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os primeiros do
novo século, a África vem superando o drama histórico das guerras intestinas
e internacionais. O número de países africanos com conflitos armados
internos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da dramaticidade
do caso do Darfur. Os conflitos foram a mais importante causa imediata da
pobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar que
os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitos
entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução da
pobreza e da miséria.”
1
As novas condições da temperatura e pressão das relações internacionais
do segundo semestre de 2008 e primeira metade de 2009, especialmente as
de ordem econômica, fizeram tremer lideranças africanas. A preocupação
inicial era a de que a crise econômica global se espraiaria nas periferias do
capitalismo, portanto na África, de forma sequencial, em efeito dominó, a
seguir o compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo norte-
americano e seus pares europeus.
A crise originada na toxidade dos capitais, fato global mais relevante da
segunda metade de 2008, ao migrar para as atividades produtivas já no final
do mesmo ano, aprofundou-se e alastrou-se geograficamente. Quase não
houve surpresa, para o observador comum dos fatos globais, seu
aprofundamento nos primeiros meses de 2009.
A crise atingiu a todos? A lógica da divulgação diária de cada novo índice
econômico apresentado pelas autoridades governamentais em diferentes
partes do planeta deprimiu a esperança. O fatalismo é tão intenso que alcançou
em proporção a outra lógica perversa que presidiu quadra histórica
relativamente recente: a da euforia triunfalista dos que decretaram o fim da
História no início dos anos 1990 e o início do paraíso liberal.
1
SARAIVA, José Flávio Sombra Saraiva, “A África na ordem internacional do século XXI:
mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?”, Revista Brasileira de Relações
Internacionais, 51(1), 2008, pp. 87-104.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
160
Exemplos não andam escassos. Recessão no Japão de hoje nos níveis
dos anos 1970. Inoperância e lentidão do governo Obama, nos seus
primeiros meses, no encaminhar o espinhoso detalhamento dos planos
práticos para mover os Estados Unidos para o desejado ciclo industrial.
Uma Europa cambaleante e com emprego declinante, a empurrar o projeto
comunitário para a xenofobia de direita. A China, vulnerável diante da
dependência das exportações como vetor central do seu PIB, parecia que
iria crescer lentamente. Seus satélites asiáticos ajudariam a pagar a conta.
A Rússia morreu na praia com a depreciação de sua commodity energética
e crise cambial.
A América Latina não foi exceção. Diante das enxurradas de balanços
negativos na área do emprego em grande parte dos países da região, e da
barragem dos financiamentos do ciclo virtuoso do capitalismo perdulário e
das fontes de investimento internacionais, os cidadãos comuns já entenderam
que a fase áurea já passou. O Brasil, e alguns outros países da região, no
entanto, já mostram capacidade de retomada do crescimento, ainda que de
forma discreta.
Na África houve pânico. Mas logo se percebeu que o contexto poderia
não ser tão ruim. A África não foi atingida, plenamente, pelo pessimismo
congênito daquele primeiro momento. Lá a tendência parece ter sido um
pouco diferente daquelas vislumbradas nas áreas tradicionais do capitalismo
e na parte mais proeminente dos países emergentes do Sul.
A África ainda não barrou seu ciclo de crescimento na década em curso.
Os índices de normalização macroeconômicos são positivos, a gestão pública
melhorou e as economias africanas não se abateram como nos grandes do
centro do capitalismo. O continente assiste e continua a assistir a ciclo de
crescimento. É o mais sustentável desde as independências do início dos
anos 1960. Parece estar em melhor posição ante o ciclo de crescimento
anual em torno de 5% que vem mantendo desde 2002, embora tenha caído
tal percentual em uma grande parte de países nos últimos meses de 2008 e
início de 2009, especialmente aqueles mais ligados às empresas e comércio
com países europeus.
A África naturalmente não está imune. A retração chinesa teve algum
impacto no continente. No entanto, o avanço dos capitais do Golfo Pérsico,
compensou o crédito e o financiamento infra-estrutural dos novos projetos
do NEPAD, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentável e de
incorporação social dos mais vulneráveis.
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
161
Apesar do efeito do contágio da febre pessimista, a África é a parte do
planeta que menos fala em crise no momento. Em parte porque a crise já é
paisagem duradoura da geografia africana. O continente foi um laboratório
de modelos os mais inadequados ao desenvolvimento, à cidadania e à
autonomia decisória internacional do continente por muito tempo. Agora
desejam eles uma África para os africanos, uma espécie de Doutrina Monroe
do outro lado do Atlântico Sul.
Para os pessimistas, só é possível falar da África nos termos das
tragédias humanitárias. Ou de governos corruptos. Sim, esses temas
merecem toda a atenção e cuidado da opinião pública internacional. Mas
há outras Áfricas. Há aquelas que, reconhecidas pelos relatórios norte-
americanos da Freedom House, reduziram os conflitos interestatais de 14
para 5 na presente década.
Para além do drama de Darfur, do Congo, dos piratas da Somália ou do
regime antigo do Zimbábue, ou mesmo dos problemas de corrupção na África
do Sul, mais da metade dos governos africanos do presente são democráticos
ou estão em processos de normalização democrática. Obama sabe disso e já
tem plano para a África. O Brasil de Lula começou antes sua inflexão correta
na direção africana.
O outro lado da crise é, portanto, uma África que fez, de fato, da crise
uma oportunidade. Há um sopro de esperança no ar. Alto ao fatalismo que
embrutece a capacidade de reagir às crises.
Há lições advindas da África. O crescimento econômico angolano, como
aquele que se notou permanecer na faixa de 7%, é fato auspicioso. Tal
crescimento é seguindo, na África oriental, pela Etiópia, e no golfo atlântico
da Guiné por Gana. O mesmo pode-se dizer, no norte da África, para o caso
argelino, ancorado no petróleo e no projeto de liderança econômica e política
da chamada África do Norte.
Os velhos desafios na nova ordem africana
Apesar da crise não ter se abatido sobre o continente como os arautos
da desesperança pregaram, persiste na África o problema dos velhos desafios
que não se alteram com a mesma velocidade da sua integração na sociedade
global. Quatro desafios, entre outros, podem ser enumerados e desdobrados
em temas para a reflexão com mais vagar ao longo dos próximos anos na
África.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
162
O primeiro deles é a baixa alternância de poder no continente. A
perpetuação de governantes não é tema novo, mas ganha nova proporção na
passagem da primeira para a segunda década do século 21, mesmo para
países relativamente estáveis como Angola, em processo de desenvolvimento
notável. Há também os casos de países relativamente tranquilos há anos,
estáveis e economicamente viáveis, como o Gabão, mas governado por um
Bongo envelhecido e sem criatividade. Há governantes no poder para além
de 20 a 30 anos, sem abertura real a reformas democratizantes. Há eleições
de fachada em vários países.
Tais regimes dúbios e governos em lenta democratização, mesmo que
apresentados como em processo de institucionalização, substituem muito
lentamente os velhos donos do poder por outras elites, mais renovadas e
modernas. O caso do Zimbábue é simbólico, um país que bem regrou a
convivência da presença do crescimento econômico com a permanência do
ex-colonizadores e organizou a infra-estrutura social e econômica. Vê-lo da
maneira que Robert Mugabe o vê é certamente um retrocesso. Há novas
elites no país, ligadas ao mundo contemporâneo, mas não encontram meios
para permanecer no próprio país, que fenece por razões que se originam na
natureza e na perpetuação do poder.
O segundo desafio é a penetração na África, na formação de parte das
novas elites e de setores médios das populações urbanas das grandes
metrópoles do continente, do tema narcotráfico internacional. Esse é um
aspecto relativamente novo, com raízes nas velhas resource wars na África,
ou das guerras do blood diamond, como aquelas na África ocidental e em
Angola, agora em suas novas versões.
Expandiram-se essas preocupações ante a ponte que vem se realizando,
entre a América Latina e a Europa, em torno do tráfico de drogas e pessoas.
Há notícias de corredores de tráfico internacional de ilícitos que vinculam
produtores de pasta de coca na América do Sul, ao transporte e preparação
de novos produtos na África ocidental, e seu processamento entre a África e
a Europa.
Existem ainda poucos dados disponíveis acerca dessa matéria, mas já
suficientes para supor que tais interesses espúrios, da realidade da economia
política internacional, estão presentes na economia e na política africanas do
momento. Emergem Estados parasitas, vinculados a essa ameaça internacional.
Os golpes e contra-golpes que foram assistidos recentemente na Guiné-Bissau,
desde março de 2009, expressam exatamente o aprisionamento do Estado
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
163
por interesses econômicos poderosos, multinacionais e desestabilizadores
de jovem Estado na África ocidental, país de língua portuguesa, membro da
CPLP e que recebeu a primeira visita de chefe de Estado do Brasil, em fim
dos anos 1970, do então presidente Figueiredo. O presidente Lula também
já esteve lá, em um dos seus périplos africanos.
O terceiro desafio está no campo exclusivo das políticas públicas para
manter e ampliar o ganho econômico dos últimos anos, advindos da cola do
maior crescimento do capitalismo em sua história. Já se sabe que essa onda
quebrou e que o crescimento econômico global está voltando, mas ainda
modesto, e tenderá a seguir modesto por muitos anos. Isso tem uma grande
implicação nas políticas públicas africanas voltadas para o desenvolvimento
sustentável e a inclusão social.
A ordem que se eleva diante do fim da década de ouro, com crescimento
econômico mais modesto, exigirá escolhas importantes dos líderes e das
sociedades africanas. Se em 2007, antes do impacto da crise econômica
global, 37 países africanos, quase dois terços dos países continentais, cresciam
acima de 4% ao ano, e 34 foram classificados pela Freedon House como
“livres” ou “parcialmente livres”, como seguiu esse compasso na quadra
histórica de menos capital disponível para investimento na África?
Subsistem em 2009, portanto, além dos velhos desafios que subsistem
na história recente da inserção internacional dos países africanos no sistema
mundial, as dificuldades vinculadas às próprias transformações em curso na
ordem econômica e política mundial. A África necessitará de uma elite africana
mais comprometida com a autonomia decisória e a boa integração do
continente aos processos econômicos globais.
Constatam os economistas africanos ou africanistas que o crescimento
econômico que assistiu a África na primeira década de ouro do século 21
não tende a seguir no molde anterior. Apesar da África, segundo a OCDE,
ter passado a receber mais recursos advindos de investimentos que de ajuda
internacional, essa equação poderá se inverter se não houver responsabilidade
dos seus governantes nesse importante capítulo de normalização econômica
já iniciada na África a muitos custos internos.
Controle inflacionário e responsabilidade fiscal foram movimentos
importantes de normalização macroeconômica encabeçados por governos
responsáveis no continente africano em fins dos anos 1990 e início dos atuais.
Uma regressão nessas áreas e a retomada de ciclo de endividamento externo
seriam nefastas para os avanços parciais conquistados nos últimos anos.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
164
O quarto e último desafio que enfrentarão os africanos nos próximos
anos é a tentação para, diante de novas dificuldades que chegam do front
internacional, recorrer ao velho discurso de vítimas. Esse discurso, de grande
eficácia política para as elites perversas africanas, não serve aos africanos
que constróem no dia a dia seu futuro.
A África vinha provando que mesmo intervenções humanitárias, com
aquelas que os anos 1990 foram pródigos, trouxeram poucos resultados
práticos para as populações e reforçaram, ao final, os esquemas de poder
das elites perversas. Ajuda externa carimbada de laços com as elites que
perpetuam as diferenças sociais, econômicas e políticas é conspiração contra
a África, que tende a permanecer infantilizada em alguns setores graças a
esse tipo de falsa piedade.
O desafio psicológico e social é, portanto, o do princípio clássico do
ensinamento do pescar, e não comer o peixe pescado por outros. Se pela
primeira vez na história o continente recebe mais investimento que ajuda, e
avançou tão bem, o modelo que deve dirigir a relação da África com o mundo
é o modelo do investimento, não da esmola.
Os novos olhares sobre a África: o governo Obama e a nova
ofensiva chinesa
Embora filho de queniano, o presidente Obama manteve discreta
apreciação acerca dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais nos
primeiros meses de seu governo. Para especialistas norte-americanos
interessados em uma estratégia mais delimitada de contenção dos avanços
chineses no continente africano, o novo governo ianque pareceu reticente a
por em marcha aspectos do documento preparado, anos antes, pela Professora
Samantha Power e o ex-subsecretário para assuntos africanos no governo,
Chester Chocker, conhecedores dos problemas e possibilidades africanas.
A manutenção de uma pauta velha na África, marcada pela preocupação
no campo quase exclusivo da segurança internacional, com ênfase ao tema
do terrorismo, obstruiu, ao lado das preocupações mais domésticas norte-
americanas no campo econômico, a formulação de uma política mais assertiva
em relação ao continente ancestral do presidente dos Estados Unidos da
América.
A evolução, nos últimos meses, vem sendo, no entanto, positiva, com a
retomada dos contatos mais diretos do presidente Obama e da secretária de
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
165
Estado Hillary Clinton com matérias atinentes a África. Obama e Clinton
viajaram a África em 2009. Emergem quatro áreas de interesse dos Estados
no continente. São quase quatro áreas de engajamento, a saber:
i. O fortalecimento das instituições democráticas;
ii. A prevenção de conflitos;
iii. O incentivo ao crescimento econômico;
iv. A parceria para o combate de ameaças globais como o terrorismo.
2
Esse último problema foi tratado na visita da Secretária de Estado ao
continente africano no mês de agosto de 2009, em torno de sete países
visitados. A preocupação especialmente com os temas do chifre da África,
com a pirataria nas águas territoriais da Somália, o desgoverno na região e a
fissuras abertas que permitem a penetração dos grupos terroristas, segue
sendo área de preocupação, seguindo a tendência da política externa norte-
americana para o continente desde os dois governos Bush.
O tema democratização dos regimes, associados aos temas de
investimento direto dos Estados Unidos na África foi direta e claramente
tratado pela Secretária de Estado:
“O verdadeiro progresso econômico na África depende de governos
responsáveis que rejeitam a corrupção, reforcem a lei e entreguem
resultados a seu povo. Isso não é apenas sobre boa governança, isso é
sobre bons negócios.”
3
Antes mesmo, na visita do presidente Obama a Gana, em julho de 2009,
chamou a atenção para o fato de que os africanos têm razão para se orgulhar
mais do que para se humilhar diante de sua história. Lançou seu discurso
contra o velho pano de fundo, já roto, em torno da pobreza endêmica, e
preferiu avançar um discurso de sucesso e de elevação do patamar africano
pelo binômio bom governo – investimentos econômicos.
2
Esses pontos foram apresentados recentemente pelo subsecretário para assuntos africanos do
presidente Obama, Johnnie Carson, e relembrados no discurso da Secretária de Estado Hillary
Clinton no discurso pronunciado em Cabo Verde, dia 14 de agosto de 2009, no palácio presidencial
de Praia, na última fase da sua visita a sete países africanos (Quênia, África do Sul, Libéria,
Nigéria, Congo, Angola e Cabo Verde)
3
Discurso da Secretária de Estado Hillary Clinton na África, conforme nota anterior.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
166
De Fareed Zakaria, amigo e influente colunista nas ideias internacionalistas
do presidente Obama, aos grandes institutos norte-americanos que vêm se
dedicando a ensaiar a nova aproximação dos Estados para a África, aparece
um contendor do outro lado, ora visto como competidor, ora como
colaborador da retomada do interesse dos Estados Unidos da América no
continente. É a China, que veio para ficar na África.
O peso da China na África já foi por mim tratado no texto que publiquei
na Segunda Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional,
mas creio que vale anotar alguns elementos de interesse da China na África
para o contexto pós-crise global. Defendo que a África é cada vez mais
importante para o desenvolvimento chinês.
A base da operação chinesa na África não sofreu a descontinuidade dos
norte-americanos nem foi contaminada pelo tema do terrorismo como uma
ameaça. Ao contrário, os chineses aproveitaram a brecha aberta pela retirada
norte-americana relativa da África no contexto pós-Guerra Fria. Depois de
1989, ante o isolamento chinês diante das desconfianças do mundo em relação
massacre do governo chinês na Praça da Paz Celestial, os chineses buscaram
apoio dos governos ditatoriais da África em troca de cooperação, que triplicou
em dois anos, e investimento, necessário ao projeto chinês de crescimento
do seu capitalismo de exceção.
Desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum de
Cooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foram
levados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem o
colosso do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, em
novembro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural. É
difícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que não
seja povoada por produtos chineses. Estão os investimentos chineses nos
mais importantes projetos de infra-estrutura do continente africano, de
aeroportos a estradas expressas, passando por palácios e grandes campos
de acesso às extrações minerais.
A estratégia chinesa é um pouco, ou muito mais, afoita que a proposta do
presidente Obama para a África. Pode ser esquematicamente apresentada em
torno dos seguintes pontos, como o fiz para o caso norte-americano antes:
i. Exportação para a África do modelo chinês de tratamento dos temas
da agenda internacional, apresentando-se como uma representante natural
dos países em desenvolvimento;
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
167
ii. Exportação de bens industriais e armas e importação de produtos
primários;
iii. Exploração de todas as fontes possíveis e necessárias de recursos
minerais, estratégicos e de energia que garanta a sustentabilidade do
crescimento econômico chinês.
4
Se a China voltou bem da crise global, como demonstram os dados de
crescimento econômico do gigante asiático, em torno de 8% do PIB
anualizado de julho de 2008 a julho de 2009, é o capitalismo chinês o maior
agente de modernização econômica do continente africano.
Os investimentos do banco de desenvolvimento na África já superam,
nos últimos quatro anos, o total dos investimentos europeus no seu
conjunto, e é muito superior ao que países em desenvolvimento como o
Brasil podem fazer, apesar dos financiamentos e investimentos do nosso
BNDEs. Os norte-americanos não possuem meios objetivos para superar
a capacidade logística e infra-estrutural, financeira e comercial, montada
pelos chineses.
A continuidade do crescimento econômico chinês, associado aos capitais
do Golfo Pérsico, poderá trazer a oportunidade de continuação do ciclo
virtuoso que os africanos ainda possuem, em termos de investimento externo
direto. Os dados ainda são favoráveis a essa equação sino-africana. Os norte-
americanos podem optar por se juntar aos chineses no campo do investimento,
mas terão dificuldades de compartilhar os métodos chineses, mais pragmáticos
no que se refere ao tema da boa governança interna das débeis democracias
africanas.
Em todo caso, segue a China seu projeto de criar mais duas Chinas até
2050, a incluir mais 400 milhões de seus habitantes nos meios da sociedade
de consumo de massa nos moldes ocidentais, por meio da extração energética,
mineral e das riquezas naturais da África. A respeito desse projeto já não há
mais muita dúvida.
O que poderão fazer os norte-americanos em torno desse projeto? Pouco
parece. O que poderão fazer os europeus, em fase de cadência econômica
endêmica? Certamente nada. Será esse um capítulo importante para o estudo
da economia política internacional dos próximos cinquenta anos. A África
será o centro dessa disputa e/ou cooperação nas novas disputas do capitalismo
global.
4
SARAIVA, José Flávio S., op. cit., p. 97
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
168
À guisa de conclusão: o Brasil ainda tem seu lugar na África
O Brasil, na década de ouro do crescimento econômico na África, não
substituiu nenhum outro ator estatal internacional em seu peso relativo no
investimento, na presença comercial nem no peso geoestratégico ou político
no continente transatlântico. No entanto, avançou posição em sua fronteira
oriental. Substituiu o período de silêncio nas relações do Brasil com a África
por um ciclo virtuoso de cooperação e desenho de projetos para o continente
africano.
5
A recuperação, no governo Lula, da política africana, permitiu ao Brasil
certa participação nessa área do planeta, fronteira atlântica do Brasil, e proveu
funcionalidade aos interesses brasileiros, além de certos valores, à projeção
internacional do país. A África recebeu algum investimento brasileiro, empresas
estão presentes, jovens de todo o país, mesmo de pequenas cidades, trabalham
hoje em empresas brasileiras e internacionais em países em canteiros de obra
como Angola.
A diplomacia brasileira esteve próximo aos africanos em temas de
interesse comum como o protecionismo comercial das economias centrais,
em foros internacionais e compartilhou a ideia de um Atlântico sul de
cooperação econômica e social e não de conflitos ou de militarização nuclear.
A agenda de apoio ao desenvolvimento da África é certamente uma
contribuição do Brasil ao programas de combate a pobreza e inclusão social
na África.
A criação dos novos postos na África foi rapidamente devolvido pela
boa reciprocidade africana. Brasília já abriga 34 embaixadas ou missões
permanentes de países africanos. É caso único na América Latina, superado
nas Américas apenas pelos Estados Unidos.
Esses avanços são, portanto, importantes, associados à pauta comercial
que se expandiu percentualmente para ordem de 6% do intercâmbio do Brasil,
aproximando-a de valores em torno de US$ 20 bilhões no ano presente, o
que não é desprezível.
O Brasil vem, assim, contribuir aos projetos de desenvolvimento africanos.
Esses projetos, que são e devem ser africanos, merecem a contribuição da
5
Escrevi cinco livros acerca das oscilações, o ir e vir, nas relações do Brasil com o continente
africano. O que melhor analisa o vai e vem e, em especial, o período afônico de África na política
externa do Brasil nos anos 1990 está no seguinte livro: SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar
da África: a dimensão atlântica da política externa do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1996.
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
169
experiência brasileira. Reconciliamo-nos, por meio de uma política africana
do Brasil, com os brasileiros todos, os descendentes ou não de africanos,
pois o Brasil é um país de alcance global. Não pode escolher parceiros e
países para cooperar apenas pelo grau de desenvolvimento alcançado. Esse
é o valor da política externa do Brasil para a formação do próprio país.
171
Cooperação Sul-Sul: a Experiência de
Cooperação Internacional em Saúde do Brasil
com Países da África
1
Paulo M. Buss
2
José Roberto Ferreira
3
“The responsibility for the development of
the South lies in the South,
and in the hands of the people of the South”
Julius Nyerere (1990)
Introdução
O presente artigo traz uma reflexão sobre as iniciativas de cooperação
internacional em saúde que a FIOCRUZ tem desenvolvido em conjunto com
os Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores com países da África,
área amplamente priorizada no contexto da política externa brasileira.
A ‘saúde’ tem sido priorizada na política externa brasileira, em função
das constantes demandas por cooperação e apoio nesta área, que recebe o
Presidente da República nas suas viagens internacionais, particularmente a
países do Continente africano, demandas estas que decorrem do
reconhecimento internacional que goza o Brasil pela qualidade e pelo perfil
inovador do Sistema Único de Saúde brasileiro e pela reconhecida capacidade
1
Documento revisado e ampliado, originalmente apresentado à III Conferência Nacional de
Política Externa e Política Internacional (CNPEPI): ‘Brasil no mundo que vem aí’, realizada
pela Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, no Rio
de Janeiro, dias 8 e 9 de dezembro de 2008.
2
Professor e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública; Diretor do Centro de Relações
Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz e ex-presidente da Instituição; Membro
Titular da Academia Nacional de Medicina.
3
Professor Honoris Causa da Escola Nacional de Saúde Pública; Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Fundação Oswaldo Cruz; ex-Diretor de Recursos Humanos da
Organização Panamericana da Saúde, Washington D.C., de 1970 a 1995.
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
172
das instituições cientificas nacionais na área da saúde. De outro lado, os muitos
estudantes africanos de diversos países que passaram por graduações
universitárias e cursos de pós-graduação do país vêm difundindo a qualidade
do ensino e da ciência brasileiras no Continente Africano, contribuindo para
esta demanda crescente.
Outro fator para explicar a forte presença da saúde na política externa
brasileira é o prestígio que goza o Brasil, suas instituições e profissionais do
setor saúde entre as organizações internacionais que, muitas vezes, são as
responsáveis por selecionar instituições ou consultores para a cooperação
internacional em saúde.
Como a FIOCRUZ tem sido constantemente acionada pelo Governo,
através dos mencionados Ministérios – Saúde e Relações Exteriores – para
colaborar na resposta às reiteradas demandas de cooperação em saúde,
fomos acumulando uma série de reflexões, análises e também práticas no
trabalho com a África.
Assim, vamos apresentar inicialmente nossa visão sobre alguns ‘contextos
africanos’ fundamentais para o planejamento e a implementação das atividades
institucionais de cooperação internacional em saúde. Tais reflexões advêm
de análises sistemáticas de documentação disponível na literatura especializada
e na imprensa mundial sobre a África, bem como das visitas a diversos países
e entrevistas com líderes políticos e acadêmicos africanos que temos feito
nos últimos anos.
Em seguida, apresentaremos a experiência concreta que vem sendo
desenvolvida na cooperação internacional em saúde no Continente, com ênfase
nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), integrantes,
junto com Brasil, Portugal e Timor-Leste, da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP).
Contextos Africanos
A África é o terceiro maior continente da Terra e o segundo mais populoso,
possuindo cerca de 945 milhões de habitantes (2007), distribuídos em 54
países, o que representa cerca de 1/7 da população do mundo, mas que
responde por apenas 2,1% do PIB mundial. Dos 54 países independentes
da África, 48 são continentais e 6 são insulares. Quando falamos de África é
preciso considerar, no mínimo, suas duas grandes macro-regiões, muito
distintas quanto aos quadros humano e econômico. Ao norte, na África
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
173
mediterrânea, encontra-se uma organização sócio-econômica muito
semelhante à do Oriente Médio, compondo o mundo islâmico, no qual
predominam os povos caucasóides, principalmente berberes e árabes,
totalizando cerca de ¼ da população africana. Na área subsaariana, temos a
chamada África negra, assim denominada pela predominância de povos de
pele escura, que concentra a grande massa de pobreza do continente,
representando cerca de 70% dos habitantes do continente.
A população urbana alcança cerca de 368 milhões (39%) e a rural ao redor
de 577 milhões (61%). A taxa de crescimento demográfico (2005-2010) está
estimada em 2,3% e a densidade demográfica é de 31,4 habitantes/km
2
(2007).
A população tem crescido exponencialmente ao longo do último século
(duplicou nos últimos 28 anos e quadruplicou nos últimos 55 anos). É uma
população muito jovem, apresentando uma média de idade em torno de 19
anos (2003). A expectativa média de vida (EV) encontrava-se, em 2006,
abaixo dos 50 anos em 28 países, e abaixo de 60 anos em 43 países. Em
Lesoto, Botsuana e Suazilândia, a EV estava abaixo de 35 anos.
Estima-se que a população alcançará 1 bilhão de pessoas em torno de
2010. Os países mais populosos, em 2007, eram: Nigéria (137,2 milhões),
Etiópia (81,2 milhões) e Egito (76,9 milhões); existem 45 aglomerações
urbanas com mais de 1 milhão de habitantes no Continente. O analfabetismo
alcança 40,3% da população adulta (2005).
Economia
Dos 53 países africanos, 34 estão entre os menos desenvolvidos do
mundo. No Mapa 1, apresenta-se um panorama do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) nos diversos países do continente: a maioria dos países da
África subsaariana tem baixo IDH (abaixo de 0,499), região na qual quase
metade da população vive abaixo da linha da pobreza. O PIB total do
Continente é de USD 1,635 trilhões (2007), o que corresponde a um PIB
per capita médio de US$ 1.730 (2007), mas com variações de USD 4.770
na África do Sul a USD 100 no Burundi e USD 170 na Etiópia.
A maioria dos países africanos tem sua economia centrada na agricultura
e na exploração de minérios. Com isto, desenvolveu-se um sistema de
economia de intercâmbio comercial, que continua coexistindo com a economia
de subsistência. O continente participa de apenas 2% das transações
comerciais que acontecem no mundo.
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
174
Embora 1/4 do território africano seja coberto por florestas, grande parte
da madeira só tem valor como combustível. Costa do Marfim, Libéria, Gana
e Nigéria são os maiores exportadores de madeira de lei. A pesca marítima,
muito difundida mas voltada para o consumo local, adquire importância
comercial apenas no Marrocos, Namíbia e África do Sul. As indústrias de
extração mineral são o setor mais desenvolvido em boa parte da economia
africana, respondendo por cerca de 90% da receita total de exportação,
com destaques para a África do Sul, Líbia, Nigéria e Argélia. Além disso,
Serra Leoa tem a maior reserva conhecida de titânio.
A nação mais industrializada do continente é a África do Sul, que alcançou
relativa estabilidade política e desenvolvimento, possuindo sozinha 1/5 do
PIB de toda a África. Porém, também já foram implantados centros industriais
de envergadura no Zimbábue, Egito e Argélia. O principal bloco econômico
é o SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, na sua
denominação em português), formado por 14 países do sul da África, que se
firma como o pólo econômico mais promissor do continente.
Questões políticas relevantes
Além de informações físico-naturais e populacionais, para compreender
melhor o tema da saúde e da cooperação, é importante que se analise, ainda
que sumariamente, a situação política da África. Em primeiro lugar, há que se
reconhecer a extrema juventude de uma África politicamente autônoma. Os
processos de independência têm entre 35 e 60 anos, contra mais de 175
anos do Brasil, por exemplo. Segundo, há que se registrar a irresponsabilidade
das potências ocidentais ao abandonarem seus espólios do século XX e a
incapacidade das Nações Unidas de lidarem com a avalanche de demandas
políticas e sociais decorrentes do processo de descolonização. O mundo
estava mais preocupado com a Guerra Fria entre as superpotências e os
próprios processos de descolonização foram manipulados muitas vezes de
forma imoral e aética pelas potências em confronto.
As guerras civis e tribais que ocorreram na pós-independência de diversos
países, a maioria delas decorrentes da divisão territorial artificial imposta pelas
potências européias e/ou estimuladas no contexto da Guerra Fria, contribuíram
na maioria dos países para corroer as bases de um processo social pacífico e
acabaram por destruir grande parte da infra-estrutura dos mesmos, inclusive
a de saúde.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
175
A pós-colonização também se caracterizou pelo êxodo maciço de
recursos humanos qualificados, além do que inexistiam ou foram fechadas
universidades e escolas de nível superior nas ex-colônias; ademais, por um
longo período os ex-colonizadores impediam o envio de quadros mais
qualificados às ex-colônias. Os esforços de criação de universidades e escolas
de nível superior, por outro lado, foram até agora insuficientes para suprir as
necessidades de técnicos em quase todos os países africanos. Tal falta de
recursos continua até os dias de hoje, com tamanha gravidade na África que
a OMS tomou o problema dos recursos humanos em saúde como tema do
seu informe mundial de 2006 (OMS, 2006), apontando problemas que
acabaram por gerar um grande pacto mundial para o desenvolvimento dos
recursos humanos (OMS, 2007) e a regulação de migrações de profissionais
(OMS, 2008), com ênfase nos esforços de bloqueio ao brain drain.
Inspirados na União Europeia, os países do continente criaram, em 2002,
a União Africana (www.africa-union.org), sucedendo a Organização da
Unidade Africana (OUA) (1963) (ver quadro correspondente). Sua sede
localiza-se em Adis Abeba (Etiópia) e tem como principais objetivos a unidade
e solidariedade africanas; a eliminação do colonialismo; a defesa da soberania
dos Estados; a integração econômica; e a cooperação política e cultural no
Continente.
Saúde
Se a coordenação política cabe, na África, à União Africana, a parte de
saúde é conduzida pelo Escritório da OMS para a África, localizado em
Brazzaville, Congo, mas reúne apenas os países do subsaara, pois os países
do Norte e do Corno da África reúnem-se na região da OMS denominada
“Leste do Mediterrâneo”, junto com os países árabes do Oriente Médio
4
.
As péssimas condições sócio-sanitárias e ambientais da África acabaram
gerando um terreno muito favorável a uma severa deterioração das condições
de vida e saúde da maioria da população africana, nos diversos países. Uma
situação marcante é a iniquidade em saúde entre países e no interior dos
mesmos, com severos impactos negativos sobre os países mais pobres e
entre os mais pobres no interior dos diferentes países. Ademais, vive-se o
4
As seis regiões de saúde da OMS são África, Américas, Sudeste da Ásia, Europa, Leste do
Mediterrâneo, e Pacífico do Oeste (ou, em inglês, como são mais conhecidos: Africa, Americas,
South-East Asia, Europe, Eastern Mediterranean e Western Pacific).
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
176
paradoxo de que sobre aqueles em piores condições e, portanto, maiores
necessidades, é que recaem também as maiores dificuldades de acesso aos
programas sociais, em geral e de saúde, em particular.
O primeiro (mas também mais recente) amplo Relatório sobre Saúde
na África, publicado em 2006, mostra inequivocamente as péssimas
condições de vida e saúde vigentes no continente (OMS/AFRO, 2006).
Baixa expectativa de vida; altas taxas de mortalidade materna e de crianças
menores de 5 anos; alta prevalência de doenças infecto-parasitárias, entre
as quais se destacam a malária, a AIDS, a tuberculose e outras doenças
negligenciadas; desnutrição infantil e fome severas em muitos países e em
quase todo subsaara imediato; elevadas perdas de vida por conflitos
violentos sem resolução à vista ou em fase de eclosão e re-eclosão;
ambiente físico hostil e degradado ou em degradação, secas e/ou
inundações derivadas das importantes mudanças climáticas globais estão
entre alguns dos muitos problemas de saúde ou de situações identificadas
que impactam sobre a saúde.
Os governos nacionais não dispõem de recursos necessários e/ou
suficientes para enfrentar a avalanche de problemas sociais e de saúde, porque
as economias são frágeis e dependentes e porque os governos de muitos
países também não dispõem, nem de institucionalidade apropriada, nem de
recursos humanos qualificados.
O mencionado relatório afirma que sua mensagem central é:
African countries will not develop economically and socially
without substantial improvements in the health of their people.
The health care interventions – treatments, diagnostic and
preventive methods – that are needed in this Region are known.
The challenge for African countries and their partners is to
deliver these to the people who need them, and the best way to
do this is establish well-functioning health systems” (WHO/
AFRO, 2006).
O fortalecimento dos sistemas de saúde em todas suas diversas e
complexas dimensões, mais do que apenas o enfrentamento de problemas
ou doenças específicas (entre as quais sempre se destacam HIV/AIDS,
malária e tuberculose), como tem sido a regra até aqui, deve ser o
componente dominante da ajuda internacional em saúde na África.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
177
África e a Cooperação Internacional
Há um consenso absoluto entre os países africanos e na comunidade
global sobre a necessidade de ajuda internacional para o desenvolvimento
do Continente, em diversos campos da vida econômica e social, entre os
quais certamente a saúde, como defende a União Africana com sua estratégia
de New Partnership for Africa’s Development/Nova Parceria para o
Desenvolvimento da África (NEPAD, 2001). Mas ajuda que lhes assegure
compartilhamento, afirmação de soberania, protagonismo. E, portanto, uma
imensa esperança na ‘cooperação Sul-Sul’ ou ‘cooperação entre países em
desenvolvimento (CTPD)’ (ver quadro correspondente). Os africanos com
frequência tem sido ‘ignorados’ pelas cooperações de países ou blocos de
países desenvolvidos e por diversas ONGs, que chegam com ‘pacotes
prontos’ e, muitas vezes, até com territórios em que vão atuar já definidos,
sem considerar os eventuais planos de desenvolvimento ou saúde vigentes
nos países. Estes aceitam tais programas de ajuda muitas vezes por falta de
melhores opções, razão pela qual a ‘cooperação Sul-Sul’ corretamente
desenvolvida – como, no geral, tem sido orientada a abordagem brasileira –
poderia substituir a cooperação dominante, com evidentes vantagens para as
nações africanas.
A ‘cooperação para a saúde’ não tem como ser desarticulada da
“cooperação para o desenvolvimento”. Quer dizer, sem saúde seguramente
não haverá desenvolvimento e sem desenvolvimento, as condições de vida e
saúde – que são entes interdependentes – também não melhorarão. Portanto,
qualquer apoio internacional que pretenda ser eficaz precisa ser intersetorial,
quer dizer, combinar harmonicamente ajuda para o desenvolvimento
econômico com apoio para setores sociais como saúde, educação e agricultura
e a promoção da democracia e estabilidade política, incluindo a construção
da institucionalidade do Estado em geral e do setor saúde em particular. Em
síntese, a articulação intersetorial é a chave para uma cooperação resolutiva
na África.
Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs) (UN, 2000),
por exemplo, que são eminentemente intersetoriais, dariam conta de algumas
questões africanas. Eles são resultantes do pacto universal, intergovernamental,
firmado na Cúpula do Milênio, no ano 2000, e apresentam metas claras, que
cobrem campos intersetoriais vitais, como são o enfrentamento da pobreza,
alimentação e nutrição, educação, equidade de gênero, ambiente sustentável
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
178
e diversos objetivos de saúde, como saúde materna e infantil e as principais
doenças infecto-parasitárias. Além do mais, para atingí-los, propõe a criação
de uma “aliança para o desenvolvimento”, que é o Objetivo 8.
As críticas severas às formas vigentes de ajuda para o desenvolvimento
propiciada pelos países desenvolvidos e organizações multilaterais, levou-os
a realizarem um Fórum de Alto Nível, em 2005, em Paris, para “reformar” a
ajuda para o desenvolvimento, procurando torná-la mais eficaz, na perspectiva
da revisão qüinqüenal da Declaração do Milênio e dos ODMs, que ocorreria
mais tarde, no mesmo ano. Deste evento, surgiu a “Declaração de Paris sobre
a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento” (OECD, 2005) que, firmada por
centenas de paises e dezenas de instituições globais, inclusive da sociedade
civil (OECD, 2009), reitera a necessidade de ampliar a ajuda para o
desenvolvimento, mas também melhorar sua eficácia, através das estratégias
de:
Apropriação, através da qual os países parceiros exercem liderança
efetiva sobre as suas políticas e estratégias de desenvolvimento e asseguram
a coordenação das ações de desenvolvimento;
Alinhamento, pela qual os doadores baseiam todo o seu apoio nas
estratégias nacionais de desenvolvimento, instituições e procedimentos dos
países parceiros;
Harmonização, isto é, as ações dos doadores são mais coordenadas,
transparentes e coletivamente eficazes;
Gestão centrada em resultados.
A excelente Declaração e as adesões de inúmeros países e organizações
às suas propostas, fariam supor um aumento na ajuda externa para o
desenvolvimento e práticas mais adequadas, com repercussões positivas sobre
os ODMs. Contudo, as conclusões dos dois últimos Relatórios sobre os
ODMs em geral, incluindo o objetivo 8, são muito preocupantes. O Informe
de 2007 (UN, 2007) afirma que a ajuda para o desenvolvimento vem
decrescendo, apesar da renovação (retórica) dos compromissos dos países
doadores; que os doadores se comprometeram a dobrar suas ajudas para a
África, embora pouco tenha sido feito até o momento; e que o acesso
preferencial aos mercados de países desenvolvidos reduziu-se para a maioria
dos países em desenvolvimento. Já o Relatório de 2008 (UN, 2008a)
acrescenta que a ajuda para o desenvolvimento caiu pelo segundo ano
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
179
consecutivo, afetando os compromissos para 2010; que os subsídios agrícolas
domésticos dos países ricos superam em muito o dinheiro usado na ajuda
para o desenvolvimento; e que a baixa disponibilidade e os preços elevados
são barreiras para o acesso a medicamentos essenciais em países em
desenvolvimento.
Em setembro de 2008, realizou-se em Acra, Gana, o 3º. Fórum de Alto
Nível sobre a Eficácia da Ajuda, que veio a gerar a ‘Agenda de Ação de
Acra’ (UN, 2008b), bem como em Doha, em dezembro de 2008, realizou-
se a Reunião de Análise do Financiamento para o Desenvolvimento, que
produziu a ‘Declaração de Doha sobre o Financiamento para o
Desenvolvimento’ (UN, 2008c), todas com referências específicas e ênfase
especial na cooperação com a África.
Todos estes elementos devem necessariamente ser tomados em conta
pela cooperação brasileira em saúde com países da África, principalmente
para evitar os erros crassos já cometidos por países que antes do nosso se
aventuraram no apoio econômico e social ao continente.
Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com a África
A cooperação técnica internacional em saúde do Brasil tem como focos
principais a América do Sul e a CPLP, incluindo PALOP. Além dos PALOP,
a cooperação tem focado alguns outros países na África, como África do Sul
(no contexto de IBAS), Nigéria e, na África francofônica, Mali e Burkina
Faso, exatamente dois países nos quais muito recentemente o Brasil abriu
embaixadas.
A cooperação Sul-Sul segundo o Brasil
Antes de enfocar propriamente a cooperação internacional do Brasil com
a África, cabe contextualizar a “Cooperação Sul-Sul” ou “Cooperação entre
Países em Desenvolvimento” na política externa brasileira, segundo o Ministério
das Relações Exteriores (MRE, 2008). No ano de 1987, com a criação da
Agência Brasileira de Cooperação (ABC), no MRE, estabeleceu-se
efetivamente uma coordenação (CGPD) para tratar da Cooperação entre
Países em Desenvolvimento (CTPD), também conhecida como Cooperação
Sul-Sul ou Horizontal, com o objetivo de coordenar, negociar, aprovar,
acompanhar e avaliar a cooperação para o desenvolvimento, em todas as
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
180
áreas do conhecimento, recebida de outros países e organismos internacionais
e aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento.
A partir de 2004, a cooperação brasileira entre países em
desenvolvimento foi significativamente ampliada, pautando-se desde então
pelas seguintes diretrizes:
Priorizar programas de cooperação técnica que favoreçam a
intensificação das relações do Brasil com seus parceiros de maior interesse
para a política exterior brasileira;
Apoiar projetos vinculados sobretudo a programas e prioridades
nacionais de desenvolvimento dos países recipiendários;
Canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior repercussão
e âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso;
Privilegiar projetos com maior alcance de resultados;
Apoiar, sempre que possível, projetos com contrapartida nacional e/
ou com participação efetiva de instituições parceiras;
Estabelecer parcerias preferencialmente com instituições genuinamente
nacionais.
À luz destas orientações governamentais, a CGPD concentrou suas
ações com base nas seguintes prioridades: 1) Compromissos assumidos
em viagens do Presidente da República e do Chanceler; 2) Países da
América do Sul; 3) Países da África, em especial os PALOP, e Timor Leste;
4) Demais países da América Latina e Caribe; 5) Apoio à CPLP; e 6)
Incremento das iniciativas de cooperação triangular com países
desenvolvidos (através de suas respectivas agências) e organismos
internacionais.
A cooperação internacional em saúde do Brasil na África e no
âmbito da CPLP
Como sabemos, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)
está composta de oito países, distribuídos em quatro Continentes. Cinco países
estão na África e constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP): Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe. O Brasil, nas Américas, Portugal, na Europa e Timor-Leste, na
Ásia, completam a CPLP.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
181
Os países integrantes da CPLP apresentam grandes assimetrias entre si,
como se pode verificar no quadro 1.
Tais assimetrias existem não só em relação às suas populações, que variam
de cerca de 189 milhões no Brasil a 155 mil em São Tomé e Príncipe, mas
também nas suas economias: a renda per capita, por exemplo, varia de USD
21,5 mil em Portugal a apenas USD 729 no Timor-Leste, USD 830 em
Guiné-Bissau e USD 1.200 em Moçambique. Verificam-se também grandes
variações nos indicadores de saúde, como na mortalidade de crianças abaixo
de 5 anos (260 por mil em Angola a 5 por mil em Portugal) e na expectativa
de vida ao nascer (ao redor de cerca de 70 anos no Brasil e Portugal e
abaixo de 50 anos em Angola e Moçambique).
O modelo de cooperação em saúde adotado, mais recentemente, pelos
Ministros da Saúde da CPLP – com a decisiva inspiração da FIOCRUZ,
como instituição articuladora da cooperação internacional em saúde do Brasil
– foi a elaboração compartilhada de um Programa Estratégico de
Cooperação em Saúde da CPLP (PECS/CPLP), cuja estrutura é mostrada
no quadro 2.
A estrutura da cooperação em saúde da CPLP compreende o
Conselho de Ministros da Saúde dos países membros, que indicaram
‘pontos focais’ para a elaboração do PECS/CPLP, cuja coordenação é
feita pela Secretaria Executiva da CPLP, com o apoio técnico formal da
Fundação Oswaldo Cruz (Brasil) e do Instituto de Higiene e Medicina
Tropical (Portugal). O Conselho de Ministros da Saúde reuniu-se em
Praia, Cabo Verde (abril, 2008) e determinou a elaboração do Plano. Os
“pontos focais” são as instâncias responsáveis por levantar a demanda e
a possível oferta de cooperação em saúde dos países membros. Tal etapa
já se realizou entre abril e setembro de 2008. Reunidos no Rio de Janeiro
(setembro, 2008), os Ministros examinaram a versão preliminar do Plano
(Anexo), baseado nas necessidades, demandas e ofertas e na pactuação
entre os países através dos pontos focais, e o examinarão para aprovação
final em maio de 2009, em Lisboa, Portugal, após o que o PECS/CPLP
passará a ser implementado.
O Plano tem o propósito central de fortalecer, através da cooperação
técnica, a institucionalidade do setor saúde, vale dizer, os sistemas de saúde
dos países membros, nomeadamente os Ministérios da Saúde (com a estratégia
da “atenção primária em saúde” [WHO, 2008] como principal orientação
política), assim como as chamadas ‘instituições estruturantes dos sistemas de
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
182
saúde
5
’, entre as quais encontram-se os Institutos Nacionais de Saúde (INSP),
as Escolas Nacionais de Saúde Pública (ENSP), as Escolas Politécnicas de
Saúde (EPS) (para a formação de pessoal de nível médio, importantíssimos
no contexto de saúde da África), outros Institutos Nacionais (como o de
saúde da mulher e da criança, por exemplo) e as escolas de graduação em
saúde (medicina, enfermagem, etc.).
Os conjuntos de atividades de cooperação pactuados estão agrupados
nos seguintes eixos temáticos:
Desenvolvimento da força de trabalho em saúde;
Fortalecimento das ‘instituições estruturantes’ dos sistemas nacionais de
saúde: Ministérios da Saúde, INSP, ESP, ETS, graduações em saúde e outras;
Informação e comunicação em saúde;
P&D para saúde e desenvolvimento;
Complexo produtivo da saúde;
Vigilância epidemiológica e controle de doenças;
Emergências e desastres;
Promoção e proteção à saúde: Determinantes sociais da saúde e
ações intersetoriais;
Diplomacia da saúde.
O modelo PECS vem sendo considerado bem sucedido, levando a CPLP
a anunciar que vai adotar modelo semelhante para as demais áreas de
cooperação social: educação, ambiente, etc.
Cooperação em saúde da Fiocruz com países da África em anos recentes
Apenas para exemplificar a cooperação em saúde do Brasil com países
africanos apresentamos à seguir a experiência e algumas das iniciativas recentes
da Fundação Oswaldo Cruz naquele Continente.
5
Instituições estruturantes dos sistemas de saúde são aquelas capazes de fazer operar de forma
eficaz, eficiente e sustentável os sistemas e serviços de saúde, principalmente pela capacidade
de autoridade sanitária, reitoria e prestação de serviços (Ministérios da Saúde, p.ex.) e de
formação de recursos humanos, geração de evidências para a tomada de decisões, através de
atividades de P&D e formação de recursos humanos essenciais para a saúde (Institutos Nacionais
de Saúde, Escolas de Saúde Pública, Escolas Técnicas de Saúde, outros Institutos públicos e
escolas de graduação das profissões da saúde, p.ex.) (Buss, 2008 – texto não publicado).
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
183
• Inauguração do Escritório permanente da Fiocruz para a África,
fisicamente localizado em Maputo, Moçambique, mas acreditado
diplomaticamente junto à União Africana, para coordenar as atividades de
cooperação em ensino, pesquisa, serviços de referência laboratoriais e
assistências da Instituição junto à países e instituições de países africanos.
• Desenvolvimento institucional – Apoio ao estabelecimento dos
Institutos Nacionais de Saúde de Moçambique e Guiné-Bissau, em parceria
com a Associação Internacional de Institutos Nacionais de Saúde Pública
(IANPHI, em sua sigla em inglês); da Escola Nacional de Saúde Pública de
Angola; das Escolas Técnicas de Saúde de Cabo Verde, Moçambique e
Guiné-Bissau; do Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança de
Moçambique; da Universidade de Cabo Verde, com orientação dirigida às
profissões da saúde; e de uma companhia pública e estatal de medicamentos
em Moçambique para produzir drogas anti-retrovirais e outras.
• Desenvolvimento de recursos humanos – Implantação de dois
Cursos de Mestrado, respectivamente em Angola (Saúde Pública) e
Moçambique (Ciências de Laboratórios); treinamento de pediatras, obstetras
e pessoal de enfermagem, em Moçambique; treinamento de técnicos de saúde,
em Cabo Verde.
Esta intensa atividade de cooperação internacional levou a Presidência
da FIOCRUZ a estabelecer o Centro de Relações Internacionais em
Saúde, vigente e operacional à partir de Janeiro de 2009, com staff
próprio, constituído de profissionais de saúde e de relações internacionais.
O Centro opera assessoria à Presidência da Instituição nesta área e como
coordenação da Câmara Técnica de Cooperação Internacional da
Fiocruz, que reúne representantes das dezessete Unidades Técnico-
Científicas da Instituição.
Reflexões finais sobre a Cooperação Internacional em Saúde do
Brasil
As reflexões finais que seguem abaixo devem ser tomadas pelos leitores
não como críticas, mas como contribuições construtivas decorrentes do
profundo comprometimento dos autores com a política externa brasileira e a
cooperação internacional do Brasil, ambas vitais para a afirmação de nossos
melhores e mais nobres interesses na política internacional.
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
184
Não vemos ainda o Brasil fazer a articulação inter-setorial da sua
cooperação internacional – tampouco setorial, no interior do próprio setor
saúde. Assim, no mais das vezes as cooperações estabelecidas resultam
desarticuladas, fragmentadas e, desta forma, perdemos muita potência. O
atendimento tem sido predominantemente da demanda “de balcão” ou
“espontânea”, quando, sem ignorar tais demandas, a cooperação
internacional do Brasil deveria ser predominantemente “programática”, vale
dizer articulada internamente e consentânea aos planos de saúde e
desenvolvimento dos países participantes. Os gastos excessivos de tempo
e dinheiro em transações gerenciais e administrativas, assim como processos
ainda muito burocráticos, diminuem a agilidade e a qualidade da cooperação
brasileira. Não temos desenvolvida, ainda, uma legislação para a
cooperação internacional, o que impede a ação mais efetiva dos agentes
da nossa política externa. Tampouco nossas Embaixadas ou a ABC têm
estrutura para fazer a necessária articulação. É preciso dotar estes dois
preciosos “elos diplomáticos” da cadeia de cooperação para extrair dela o
máximo que se poderia esperar.
Sem abandonar a “cooperação bilateral”, que o Brasil tem praticado ao
longo das últimas décadas, é preciso reconhecer a realidade política
contemporânea, que repousa na construção de “blocos de países”, como
concretamente ocorreu com a constituição da CPLP e do MERCOSUL,
nos anos 90, e da União Sul-Americana de Nações (UNASUL), para além
do MERCOSUL e da Comunidade Andina, muito recentemente, no ano de
2008. Sobre esta estratégia política mais ampla, toca-nos na cooperação
setorial em saúde, por exemplo, a construção de networks, tomadas no seu
sentido literal em inglês, de “redes que [efetivamente] trabalham” e não apenas
amontoados formais de instituições mais ou menos afins quanto a objetos e/
ou processos de trabalho.
No concerto das nações estamos ainda engatinhando no campo do
intercâmbio internacional. O Brasil tem uma história de importantes conquistas
na diplomacia internacional, mas é bastante recente sua incursão nos esforços
de cooperação com países de menor desenvolvimento. Parafraseando Pinheiro
Guimarães (2005), consideramos que,
“a estratégia da política brasileira deva ser fundada na defesa da paz, no
multilateralismo, no direito internacional e na não hegemonia; em normas
internacionais que propiciem o desenvolvimento e não que consagrem e
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
185
aprofundem os hiatos econômicos e tecnológicos entre o centro e a periferia
do sistema internacional; na construção de uma sociedade próspera,
dinâmica, democrática e não hegemônica (....) e deve ser a base do sucesso
do projeto de superação do subdesenvolvimento e da construção de um
mundo multipolar, em que se realize o ideal de justiça, democracia e
prosperidade”.
O Brasil está no caminho absolutamente certo. Mas precisamos fazer
reformulações conceituais, bem como na forma de articular e operar a
cooperação internacional em saúde, de forma a colocar o Brasil na posição
que aspira no concerto das Nações.
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PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
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COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
187
Anexo I
Cooperação Sul-Sul
O conceito e as práticas da ‘Cooperação Sul-Sul’ surgiram fundamentalmente nas esferas
política e econômica durante os anos de Guerra Fria. No campo político, os países do então
chamado ‘Terceiro Mundo’ se uniam para fazer frente à bipolaridade, constituindo o
‘Movimento Não-Alinhado’ e procurando negociar o estabelecimento de uma nova ordem
econômica. Em assuntos econômicos propriamente ditos, a cooperação Sul-Sul voltava-se ao
estímulo aos intercâmbios comerciais inter-hemisféricos, assim como ao compartilhamento
de tecnologias de produção. Com o fim da bipolaridade e as mudanças ocorridas no regime
internacional de desenvolvimento, o foco colocado sobre o desenvolvimento humano e sobre
a erradicação da pobreza permitiu o fortalecimento da cooperação Sul-Sul no âmbito social.
Há 30 anos, em 1978, no contexto da descolonização das nações (predominantemente
da África e algumas da Ásia e Caribe), foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre
Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD); suas recomendações foram
aprovadas na forma do ‘Plano de Ação de Buenos Aires’, marco na história da cooperação
internacional por se ter constituindo na base da autonomia da cooperação externa dos países
em desenvolvimento.
Uma Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul (SU/SSC), localizada no PNUD, foi
estabelecida pela Assembléia da ONU no mesmo ano, com o objetivo de promover, coordenar
e apoiar as Cooperações Sul-Sul e triangular em âmbito global e com base no sistema das
Nações Unidas como um todo. A SU/SSC recebe direcionamento político e orientações e
funciona como Secretariado do Comitê de Alto Nível sobre Cooperação Sul-Sul da Assembléia
das Nações Unidas.
Em 1983, a Assembléia estabeleceu o Fundo Fiduciário Pérez Guerrero, gerenciado pela
SU/SSC, com o propósito de apoiar atividades de CTPD do Grupo dos 77, destinado a
financiar estudos de pré-investimento e viabilidade e facilitar a implementação de projetos
desta natureza.
Em 1987 cria-se a Comissão do Sul, formada por 30.
Em 1993, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em resolução ratificada
pela Assembléia Geral, enfatizou que todos os agentes do processo de desenvolvimento
deveriam redobrar seus esforços para utilizar amplamente a CTPD como modalidade preferida
na preparação e execução de projetos e atividades de desenvolvimento, superando sua aplicação
de forma marginal.
Na X Sessão do Comitê de Alto Nível das Nações Unidas sobre a CTPD (1997),
identificou-se que era necessário contribuir ao desenvolvimento de políticas e procedimentos
institucionais para a completa otimização de CTPD, sendo recomendado que os países em
desenvolvimento incorporem CTPD como elemento central da estratégia nacional de
desenvolvimento e que as instâncias nacionais e pontos focais da CTPD contem com recursos
humanos e financeiros para seu efetivo funcionamento. Foi ainda recomendado que o
financiamento da CTPD fosse aumentado substancialmente pelos próprios países em
desenvolvimento, assim como pelos países cooperantes e agências multilaterais.
O dia 19 de dezembro foi consagrado pelas Nações Unidas como ‘Dia Mundial da
Cooperação Sul-Sul’.
Fonte principal do conteúdo deste quadro: OPS, 1998
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
188
Quadro 1. CPLP
União Africana/African Union/ í
Union africaine/Umoja wa Afrika
ÓRGÃOS CONSTITUTIVOS
Assembléia da UA – Chefes de Estado e de Governo dos Estados Membros (EM); órgão
supremo da União.
Conselho Executivo da UA – Ministros ou outras autoridades designadas pelos governos
dos EM.
Comissão da UA – Órgão responsável pela execução das decisões da Assembléia; Presidente,
Vice-Presidente e oito Comissários, cada um responsável por uma área de atividade.
Comitê de Representantes Permanentes da UA – Preparação das sessões do Conselho
Executivo; composto por Representantes Permanentes dos EM.
Comitê de Paz e Segurança da UA – Cúpula de Lusaka (Julho de 2001), em processo de
ratificação pelos EM.
Parlamento Pan-africano – 265 parlamentares, eleitos pelas legislaturas dos EM.
Conselho Econômico, Social e Cultural da UA – Órgão consultivo; Estatutos submetidos
à Cúpula de Maputo.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
189
Quadro 2. Programa Estratégico de Cooperação em Saúde da CPLP
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
190
191
A nova Rússia sob Medvedev e Putin
Angelo Segrillo
1
1
Angelo Segrillo é professor de história contemporânea na Universidade de São Paulo. Com
doutorado pela Universidade Federal Fluminense e mestrado pelo Instituto Pushkin de Moscou,
é autor de “O Declínio da URSS: um estudo das causas” (ed. Record), “O Fim da URSS e a
Nova Rússia” (ed. Vozes) e “Rússia e Brasil em Transformação” (ed. 7Letras).
O ano de 2008 foi um importante marco divisório na história recente da
Rússia, marcando uma nova fase. No campo político, Putin saiu da presidência
e passou-a a Dmitry Medvedev, ficando com o posto de primeiro-ministro.
Sendo o país considerado uma república de presidencialismo forte, muitos se
perguntavam se e como Putin manteria seu grande poder pessoal. No campo
econômico, o final do ano trouxe para a Rússia a reverberação da crise financeira
mundial detonada pelo crash imobiliário dos EUA. Como grande parte do
apoio popular de Putin tem sua base na boa fase econômica do país sob sua
presidência, como ficará esse apoio caso a situação da economia se deteriore?
Questão relacionada a essa é o grau em que a Rússia será afetada pela crise.
São essas e outras perguntas que examinaremos neste ensaio, cujo fio condutor
será examinar as origens e contornos iniciais desta nova fase na história do país.
Background
Antes de examinarmos a fase atual, precisamos analisar como chegamos
a ela. Nosso ponto de partida deve ser a desintegração da URSS no final de
ANGELO SEGRILLO
192
1991. Ela lançou os russos da época numa situação totalmente nova para
eles. A Federação Russa era agora um país independente e separado das
outras 14 repúblicas da ex-União Soviética. O país recém-criado nascia dentro
de um turbulento e acelerado processo de passagem de uma economia
socialista para um regime capitalista. A novidade da situação e a escolha da
estratégia de transição (“terapia de choque”) levaram a que a década de
transição sistêmica fosse, em sua maior parte, um período de grande contração
da economia. Pela tabela 1 podemos ver que, de 1991 a 1998, com exceção
apenas de 1997, todos os anos foram de queda do Produto Interno Bruto.
Para se ter uma idéia do que isso significa, basta dizer que a queda do PIB da
Rússia nos anos 1990 foi maior que a dos EUA na Grande Depressão da
década de 1930. Esse é um fator fundamental para se entender a popularidade
de Putin. Ele assumiu o poder como primeiro-ministro de Yeltsin em 1999 e,
com a renúncia deste, tornou-se presidente em 2000. Se olharmos a tabela 1
constataremos que a partir de 1999, quando Putin chega ao governo, o PIB
da Rússia deixou de cair e passou a crescer em altas taxas. Ou seja, a
população associou a figura de Putin à melhoria econômica do país. E esta
melhoria se revelou não apenas nos índices macroeconômicos, mas também
no bolso do cidadão comum. Os salários e aposentadorias estatais, que sob
Yeltsin eram pagos com atraso até de meses, foram regularizados em menos
de um ano após Putin assumir, os salários reais da população tiveram constante
e forte alta de 1999 até hoje (mais que quadruplicaram em termos de dólar
do início da década de 2000 até 2007) e o índice de pobreza despencou de
um pico de 41,5% em 1999 para 19,6% em 2002 e para abaixo de 15% em
2007. (Iradian, 2005, p. 35; World Bank, 2005, p. 70; World Bank Russia
Country Office, 2008, p. 33 e 45; ver também a tabela 3).
Com uma mudança tão radical para melhor após o período de depressão
econômica sob Yeltsin, não é de se admirar que Putin tenha sido elevado à
condição de ídolo por grande parte da população russa.
Politicamente Putin escolheu uma estratégia de centralização com
elementos de autoritarismo após as tendências algo caóticas e centrípetas da
era Yeltsin (que envolveram até uma guerra de independência da Chechênia).
Este aspecto centralizador e mesmo autoritário tem lhe valido críticas dentro
e fora da Rússia, mas não parece ter afetado seu prestígio junto à população
(ao contrário, algumas camadas dela, acostumadas a governos autoritários
passados do país, sentiram-se mais confortáveis com Putin aparentemente
“colocando ordem na casa”).
A NOVA RÚSSIA SOB MEDVEDEV E PUTIN
193
Assim, após o fim da URSS, a Rússia passou por duas fases bem distintas.
A presidência Yeltsin (1991-1999), politicamente liberal, mas com profunda
crise econômica; e os dois mandatos presidenciais de Putin (2000-2008),
marcados por forte recuperação econômica, mas com um estilo político algo
autoritário. A grande pergunta é: como fica a situação agora que Medvedev é
presidente e Putin primeiro-ministro?
Medvedev iniciou seu mandato em março de 2008 e, portanto, já temos
alguma visão retrospectiva para arriscarmos nossos diagnósticos iniciais.
Antes de começarmos a fazê-lo, entretanto, é preciso chamar a atenção
para um ponto importante pouco notado neste tipo de discussão. Que Putin
manteria seu prestígio e poder para além de 2008 era indubitável. A questão
era como ele faria isso sendo primeiro-ministro, já que a Federação Russa é
considerada como uma república de presidencialismo forte. Aqui é importante
chamarmos a atenção para uma falácia generalizada. Formalmente a Rússia
não é uma república presidencialista, e sim semipresidencialista. O
semipresidencialismo (cujo grande modelo é a França) é um regime em que
existe um presidente e um primeiro-ministro e os dois tem poderes
constitucionais distintos, mas relativamente equilibrados em termos de
poder. De maneira geral, na Rússia (como na França) o presidente cuida da
segurança nacional (forças armadas) e das relações exteriores enquanto o
primeiro-ministro é responsável pela política interna. Assim, a questão de
como Putin poderia manter seu poder sendo “apenas” primeiro-ministro era
um falso dilema, já que o primeiro-ministro, em termos constitucionais, tem
fortes poderes também. Assim como na França (lembram o famoso problema
da “co-habitação” entre presidente e primeiro-ministro de diferentes
partidos?), a questão de qual dos dois, na prática, se sobressairá depende
do contexto político (principalmente quem tem maioria no parlamento) e não
da divisão constitucional de poderes a priori.
Assim, como Putin e Medvedev pertencem ao mesmo campo, era
perfeitamente possível o funcionamento de uma diarquia, com Medvedev
cuidando da área externa e da segurança nacional e Putin dominando a política
interna do país.
Passado já cerca de um ano da inauguração de Medvedev, como vemos
retrospectivamente o funcionamento desta diarquia? Na prática, já podemos
verificar que Putin continua como a figura dominante na política russa. Não
houve necessidade de nenhuma mudança constitucional para que isto
acontecesse. Apesar de Medvedev estar exercendo seu papel formal nas
ANGELO SEGRILLO
194
relações exteriores e nas forças armadas ficou claro que Putin ainda é o
dirigente principal. No episódio da guerra da Rússia contra a Geórgia por
causa da Ossétia do Sul (questão dentro das atribuições do presidente), Putin
teve um papel de destaque, sendo o primeiro a ir visitar as tropas e
permanecendo ativo ao longo da crise. Assim, a diarquia parece estar
funcionando na base da camaradagem. Medvedev é um antigo colaborador
leal de Putin. Trabalhou com ele em São Petersburgo nos anos 1990 e foi
chamado nos anos 2000 para exercer diversos cargos no governo Putin,
incluindo chefe da casa civil e vice primeiro-ministro. Medvedev, um tecnocrata
nunca eleito para cargos políticos anteriormente, parece ter aceitado bem a
condição de parceiro menor na diarquia.
Uma outra indagação corrente antes da inauguração do novo presidente
era a questão da liberalidade de Medvedev. Medvedev era considerado mais
liberal que Putin. Isso se refletiria em uma maior abertura do sistema sob sua
presidência? Até agora não há sinais disso. Apesar de uma forte retórica
legalista durante a campanha eleitoral, Medvedev não tem assumido posturas
que visam a arejar o sistema e dar maior espaço à oposição livre. Ao contrário,
premido pelo agravamento da crise econômica internacional no final de 2008,
Medvedev assinou uma lei e uma mudança constitucional que, segundo os
opositores, representam um perigo de fechamento maior do sistema. Foram
alterados os prazos de mandato do presidente e dos membros do parlamento
de 4 para, respectivamente, 6 e 5 anos. Como os presidentes russos não
podem exercer mais de dois mandatos consecutivos, isso significaria que
Putin poderia voltar à cadeira presidencial em 2012 e permanecer nela até
2024. Medvedev também assinou uma lei, passada pelo parlamento, que
extingue o tribunal por júri para os casos de terrorismo, insurreição e outros
distúrbios públicos. Isso poderá afetar a transparência em casos de
insubordinação política.
Este processo de tensionamento parece estar associado ao agravamento
da crise econômica internacional e suas conseqüências na política interna.
Nas duas últimas eleições, o partido que apóia Putin (o Rússia Unida) obteve
vitórias esmagadoras e, juntamente com aliados, conseguiu maioria
constitucional na Duma. O Partido Comunista da Federação Russa (PCFR),
outrora o maior do país, foi relegado ao plano de segunda força. Os liberais
foram simplesmente aniquilados nas últimas eleições parlamentares. Devido
ao aumento da barreira eleitoral (de 5 para 7% dos votos) em uma Duma
agora eleita totalmente por voto proporcional (e não por sistema distrital
A NOVA RÚSSIA SOB MEDVEDEV E PUTIN
195
misto, como antes), os dois partidos liberais (Yabloko e SPS) não conseguiram
eleger nem um deputado. Com tal quadro, o diagnóstico era que Putin seria
imbatível enquanto a situação econômica continuasse de vento em popa.
Mas e se a presente situação econômica desembocar numa crise que
coloque a população descontente? Como ficará a popularidade de Putin nesse
novo contexto? Os críticos vêem as medidas acima como uma resposta e
uma preparação preventiva para a necessidade de um fechamento autoritário
do sistema frente a protestos generalizados trazidos por um possível
agravamento da crise.
A questão da crise econômica
Pelo que vimos anteriormente, a Rússia vinha surfando em uma onda de
crescimento econômico desde 1999. Esta onda foi enormemente ajudada
pelo fato de que exatamente em 1999/2000 os preços do petróleo começaram
a disparar. Passaram de 16 dólares o barril em janeiro de 1999 a um pico de
147 dólares em julho de 2008. Como a Rússia é um dos maiores produtores
mundiais deste mineral, o país recebeu uma grande contribuição extra para
sua riqueza. É importante dar crédito ao governo Putin por ter sabido utilizar
corretamente esta fonte extra. Além de ter mantido a mudança de curso de
um primeiro-ministro anterior (Yevgeny Primakov, que após a crise financeira
russa de 1998, reorientara a economia da especulação financeira para o setor
real, produtivo, da economia), o governo Putin também criou um Fundo de
Estabilização para o caso de futuras oscilações no preço do petróleo. Por
este fundo, caso o preço do petróleo subisse acima de um certo nível (gatilho)
as rendas advindas não seriam gastas imediatamente pelo governo e sim
poupadas para uso em caso de que no futuro o preço do petróleo caia. Este
fundo de estabilização (agora sob outros nomes) está sendo fundamental na
situação atual, pois de um ápice de 147 dólares o barril em julho de 2008, os
preços despencaram para cerca de 37 dólares em dezembro de 2008.
Assim, quando analisamos a possibilidade do impacto da crise econômica
internacional na Rússia temos que observar dois aspectos diferenciados. A
situação em si do país no momento em que este artigo está sendo redigido
(início de 2009) é relativamente confortável. No tempo das vacas gordas
sob a presidência Putin, a Rússia colocou sua casa financeiramente em ordem.
De um país com déficits no orçamento e parcas reservas em dólares nos
anos 1990, o país passou a ter orçamentos superavitários e atingiu a posição
ANGELO SEGRILLO
196
de ter a terceira maior reserva em dólares do mundo (596,6 bilhões de dólares
no seu ápice em julho de 2008). (World Bank Russia Country Office, 2008,
p. 45). Como colocou um relatório do Banco Mundial no final de 2008:
Os fundamentos macroeconômicos fortes, a política fiscal prudente,
e a não-exposição à crise do mercado subprime americano da Rússia
têm protegido parcialmente sua economia e ajudado a limitar o
impacto da crise financeira global. Graças à dívida externa soberana
baixa, a dois grandes superávits gêmeos (fiscal e da conta corrente
externa), a uma das maiores reservas internacionais do mundo e a
avaliações favoráveis das agências de classificação, até meados
de 2008 os investidores viam a Rússia como um “porto seguro”,
bastante “descolada” do deteriorante ambiente financeiro global.
Ao criar amortecedores fiscais e de reservas significativos em
relação a outros mercados emergentes, a Rússia tem conseguido
adiar e limitar o impacto da crise global. Na verdade, está claro
agora que se a Rússia não tivesse entrado na crise financeira global
corrente com superávits fiscais fortes e grandes recursos acumulados
nos fundos de estabilização e nas reservas estrangeiras, o impacto
da crise teria sido muito mais rápido e severo do que o é
correntemente. Igualmente importante é o fato de que o governo
teria tido menos tempo, recursos, opções políticas e espaço para
manobrar e limitar o impacto da crise na economia real. (World
Bank Russia Country Office, 2008, p. 2)
Este é o lado positivo da posição russa na presente crise. O principal
ponto fraco, entretanto, é a grande importância da exportação de petróleo
(e minerais em geral) na sua economia. A questão não é apenas do peso
relativo da mercadoria, e sim da volatilidade de seu preço no mercado.
Um mercado petrolífero com volatilidade tão severa a ponto de duplicar
ou triplicar os preços para cima e para baixo em questão de meses é uma
ameaça severa ao mais prudente dos planejamentos. A queda do preço
do petróleo será um forte teste para saber se a economia da Rússia pode
ou não ter um crescimento sustentado a longo prazo sem preços de
petróleo altos. Afinal, petróleo e gás natural representam um pouco acima
de 60% de todas as exportações russas e cerca de 20% de seu PIB total.
(Russia, 2008)
A NOVA RÚSSIA SOB MEDVEDEV E PUTIN
197
Assim, no momento atual a situação da Rússia é mista. Por um lado as
sólidas bases macroeconômicas fiscais e de reservas lhe dão uma posição de
relativa segurança em termos próprios. Por outro, alguns sinais de alarme quanto
à potencial severidade da crise nos obrigam a uma posição de cautela. Por exemplo,
as reservas ainda estavam altas no final de 2008, mas tinham sofrido uma forte
queda em poucos meses de seu auge em julho de 2008 (US$ 596,6 bilhões)
para cerca de 484 bilhões em novembro. Para se ter uma idéia do que essa
queda de mais de 100 bilhões de dólares significa, basta notar que ela representa
cerca de metade das reservas totais do Brasil em 2008. Essa sangria de reservas
tem parcialmente a ver com a tentativa do governo de impedir a queda do valor
do rublo, que, mesmo assim, se desvalorizou em 15% no mesmo período (e
continua caindo). A produção industrial também começa a mostrar desaceleração.
A crise se aprofundará gravemente ou não na Rússia? No momento atual
em que este artigo está sendo redigido a resposta não é clara, assim como
não é claro, em termos mundiais, qual será a profundidade da crise em 2009.
Mas, de maneira geral, a Rússia está relativamente mais bem posicionada,
em termos fiscais e financeiros, que a maioria dos países industrializados e
mesmo emergentes do mundo.
A grande pergunta que se coloca é: quais serão as conseqüências políticas
da crise no país? Essa é a questão que afeta tanto os governistas como a
oposição. Para ela a resposta ainda não está clara. No momento da redação
deste artigo (início de 2009), a popularidade de Putin ainda é muito alta de
acordo com as pesquisas de opinião, mas fatos sintomáticos já aconteceram
que demonstram o potencial perturbar da crise econômica. Na cidade de
Vladivostok, um protesto de automobilistas contra o aumento das taxas de
importações de veículos estrangeiros (uma importante fonte de renda naquele
porto) acabou gerando pedidos pela queda do governo. Isto foi sintomático,
pois foi a primeira vez que em um protesto de massa não organizado
especificamente pelos partidos políticos de oposição foram ouvidos pedidos
diretos pela destituição de Putin.
A questão é: este será um incidente isolado ou esta atitude se espalhará
em caso de agravamento da crise?
A relação da Rússia com o Ocidente
Um problema muito abordado na imprensa mundial é o tensionamento
das relações entre o Ocidente (leia-se EUA e Europa) e a Rússia. Este
ANGELO SEGRILLO
198
problema geralmente é colocado na seguinte forma. Após um período de
boas relações sob Yeltsin, a chegada de Putin, um ex-agente do KGB, ao
poder levou a uma deterioração neste relacionamento.
Esta narrativa é simples demais para dar conta das complexidades
(históricas, inclusive) da relação entre a Rússia e o Ocidente. Algumas
qualificações devem ser feitas a ela.
Primeiro de tudo, não é verdade que assim que Putin tenha assumido o
governo as relações com o Ocidente tenham piorado. Na verdade, no primeiro
mandato do presidente americano Bush as relações foram relativamente boas,
principalmente depois dos atentados de 11 de setembro, quando a luta contra
o terror aproximou os dois países. Quem não se lembra da famosa frase de
Bush: “Olhei nos olhos de Putin e vi alguém com quem posso fazer negócios?”
A deterioração nas relações entre Rússia e EUA ocorreu principalmente no
segundo mandato Bush.
Um outro fator, este de caráter mais teórico, aponta na direção de
descartar a hipótese de que Putin fosse, a priori, antiocidental. A questão do
ocidentalismo e antiocidentalismo na Rússia é antiga e proporciona um dos
debates ideológicos mais importantes dentro dela. A partir do século XIX
dois campos se formaram no país a respeito da herança das reformas
modernizantes e ocidentalizadoras que Pedro, o Grande realizou na virada
para o século XVIII: os ocidentalistas são aqueles que aprovam as reformas
de Pedro e acham que a Rússia deve seguir o caminho da modernização
ocidental enquanto os eslavófilos defendem que a sociedade do país é única,
nem europeia nem asiática, e, portanto, deve seguir um caminho próprio.
Freqüentemente os eslavófilos se revelam antiocidentais na sua luta por
preservar um caminho próprio e único para a nação. Putin foi classificado
por muitos observadores estrangeiros como eslavófilo por suas posições bem
menos pró-ocidentais que Yeltsin, mas isto não é verdade. Putin vem de São
Petersburgo, fundada por Pedro, o Grande, uma das cidades mais
“ocidentalizadas” da Rússia. Pedro, o Grande, é um dos ídolos de Putin e
este, em suas “memórias” ditadas em longa entrevista a um grupo de jornalistas,
afirmou que a Rússia é um país europeu (uma posição típica dos ocidentalistas).
(Gevorkyan et al., 2000, p. 155-56). Putin difere de Yeltsin em dois aspectos,
nesse sentido. O grau de ocidentalismo de Putin é menor que o de Yeltsin, daí
a impressão que Yeltsin era pró-ocidental e Putin não. Por outro lado, se o
passado de Putin como agente no KGB e dirigente da FSB (serviço de
segurança que sucedeu o KGB na Rússia pós-soviética) não significa
A NOVA RÚSSIA SOB MEDVEDEV E PUTIN
199
necessariamente que ele é antiocidental, por outro lado fez com que Putin
desenvolvesse um alto senso de defesa da segurança e dos interesses
nacionais. Putin é um pragmático. Sabe que não pode (nem deve) alienar o
Ocidente, mas por outro lado, no novo contexto mais bem fortalecido
economicamente da Rússia dos anos 2000, assumiu uma política de defender
estes interesses nacionais de maneira bem mais assertiva que Yeltsin,
governante que, devido à crise dos anos 1990, não tinha grande poder de
barganha frente aos países ocidentais.
O que estou querendo chamar a atenção é que os problemas atuais no
relacionamento entre Rússia e Ocidente não são unicamente por Putin ser
antiocidental ou são culpa unicamente da Rússia. Na verdade, o Ocidente
(especialmente os EUA do segundo mandato Bush) tem tido atitudes
condescendentes, paternalistas, e, muitas vezes, confrontadoras frente a Rússia.
A principal delas é a expansão da OTAN em direção à Rússia. Para os
russos isso é um contra-senso ameaçador. Se a Guerra Fria terminou, e os
EUA insistem que não são mais inimigos dos russos, que sentido faz avançar
uma aliança militar em direção ao país? O lógico num tempo pós-Guerra
Fria seria diminuir, e não expandir, uma organização militar criada exatamente
contra o país.
Assim, para melhorar as relações entre a Rússia e o Ocidente, é preciso
que os dois lados aproximem suas posições e não apenas que a Rússia se
torne mais maleável. Nesse sentido, a saída de Bush e a eleição do presidente
Obama nos EUA abrem uma janela de oportunidade para que este país adote
uma política menos confrontadora e mais cooptadora frente aos russos. Se
esta janela será realmente aproveitada, só o futuro dirá.
Conclusão
A Rússia passou por duas fases completamente distintas em sua época
pós-soviética. O governo Yeltsin foi marcado pela profunda depressão
econômica da transição sistêmica do socialismo para o capitalismo, ao mesmo
tempo que mantinha um regime relativamente liberal na política interna. Nos
dois mandatos presidenciais de Putin a dinâmica se inverteu, com uma grande
recuperação econômica e um certo fechamento político. Os observadores se
dividiam em como ficaria a situação na nova fase, em que Putin não seria
mais presidente e sim “apenas” primeiro-ministro. Chamamos a atenção neste
artigo para o fato de que esse era um falso dilema, pois a Rússia, ao contrário
ANGELO SEGRILLO
200
do que normalmente se pensa, não é, pela constituição de 1993, uma república
presidencialista e sim semipresidencialista. Assim, Putin pode manter sua
notável influência mesmo na posição primeiro-ministro. O fato de novo
presidente, Dmitry Medvedev, ser um antigo colaborador seu facilita o trabalho
conjunto que os dois têm realizado até agora e onde Putin continua a ser a
peça principal.
Toda essa dinâmica favorável a Putin tem, porém, um senão. A crise
econômica mundial se aproxima da Rússia. Dependendo de suas repercussões
no país, o prestígio de Putin poderá ser abalado. Se realmente o prestígio de
Putin for abalado ao ponto de ter seu poder ameaçado, a democracia russa
passará por um grande teste. Putin largará o poder e permitirá que a oposição
(seja o Partido Comunista, o segundo maior do país, ou os liberais, agora
alijados do parlamento) assuma o poder? Este poderá ser um momento
definidor para a democracia russa semelhante ao que o Brasil passou com a
eleição de Lula à presidência, pois uma alternância eleitoral normal para o
campo completamente oposto na divisão direita/esquerda é um dos sintomas
de uma democracia consolidada.
A NOVA RÚSSIA SOB MEDVEDEV E PUTIN
201
Anexo de Dados e Tabelas
Tabela 1: Percentagem de crescimento anual do Produto Interno
Bruto real da Rússia
Nota: ano de 2008 = projeção
Fonte: World Economic Outlook, maio 2000, abril 2007 e outubro 2008
Tabela 2: Percentagem anual de inflação de preços na Rússia
Nota: ano de 2008 = projeção
Fonte: World Economic Outlook, outubro 2001, abril 2007 e outubro 2008.
Tabela 3: Indicadores trabalhistas e de reservas externas
Fonte: World Bank Russia Country Office, 2008, p. 45
ANGELO SEGRILLO
202
Bibliografia
GEVORKYAN, N., KOLESNIKOV, A., TIMAKOVA, N. Ot Pervogo
Litsa: razgovory s Vladimirom Putnym. Moscou: Vagrius, 2000.
IRADIAN, Garbis. Inequality, Poverty and Growth: cross-country evidence
(working paper WP 05/28). Washington, DC: International Monetary Fund,
2005.
Russia. Energy Information Administration (U.S. Government). Disponível
online em http://www.eia.doe.gov/cabs/Russia/Background.html (acessado
15 jan. 2008).
SEGRILLO, Angelo. O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
SEGRILLO, Angelo. O Fim da URSS e a Nova Rússia. Petrópolis: Vozes,
2000a.
SEGRILLO, Angelo. Rússia e Brasil em Transformação: uma breve história
dos partidos russos e brasileiros na democratização política. Rio de Janeiro:
7Letras, 2005.
WORLD BANK. Russian Federation: reducing poverty through growth
and social policy reform. Washington, DC: World Bank, 8 fev. 2005.
WORLD BANK RUSSIA COUNTRY OFFICE. Russian Economic
Report No. 17. Moscou: World Bank Russia Country Office, 2008.
World Economic Outlook. Washington, DC: International Monetary Fund,
diversos números.
203
Considerações sobre a situação atual da Rússia:
Desafios e Perspectivas
Daniel Aarão Reis
1. Introdução
O artigo terá início com um esboço panorâmico da trajetória da Federação
russa nos últimos vinte anos, tentando oferecer um quadro das relações sociais
em que se movem neste momento as lideranças e forças que marcam a
paisagem política do país. Num segundo momento, será objeto de
consideração a questão do regime político em construção, por alguns já
apelidado de tandemocracia, fundamentada numa estrutura formalmente
bicéfala. Em seguida, o texto se ocupará de examinar, em três ítens, os desafios
políticos, internacionais e econômicos (agravados, estes, pela crise que assola
o mundo e a Rússia, desde meados do semestre passado), que o país enfrenta
na conjuntura presente. O texto se encerra com uma avaliação das perspectivas
que podem ser entrevistas no quadro geral desenhado.
2. Dois decênios contrastantes: a trajetória da Federação Russa
nos últimos vinte anos
Desde o processo da surpreendente desagregação da União Soviética,
em fins dos anos 1980 e começos dos anos 1990, a Rússia, refundada como
estado nacional independente, conheceu dois períodos bem contrastados
1
.
1
Cf. para uma análise mais extensa, D. Aarão Reis, 2007, especialmente o posfácio; A. Segrillo,
2000 e 2008 e M. Lorraine, 2008.
DANIEL AARÃO REIS
204
Uma primeira década, marcada pela liderança política de B. Ieltsin, foi
caracterizada pela desordem econômica, aproximando-se o país, em certos
momentos, de uma situação considerada, não sem razão, caótica.
Queda livre dos indices econômicos (produção, investimento, arrecadação
fiscal, comércio interno e externo, emprego), inflação alta, desvalorizações
repetidas do rublo, salários e pensões defesados e pagos com atraso, gerando
inquietação, desespero e diluição das estruturas do funcionalismo civil e mesmo
das forças armadas.
Neste contexto, um enfraquecimento decisivo do Estado central,
avantajando-se as margens de arbítrio dos governos locais e regionais,
gerando, mesmo nos grandes centros urbanos, a formação de verdadeiras
milícias privadas no quadro de ascensão das chamadas máfias e fazendo
também emergir o fantasma de um novo processo de desagregação política
(conflitos armados e guerras no Cáucaso, na esteira da proclamada
independência da Tchetchênia, ameaças de secessão de regiões orientais
2
).
No plano cultural, dimensão decisiva para a avaliação dos níveis de
expectativa e da confiança depositadas no regime político e no país,
indispensáveis, no limite, para a sua própria existência, a Rússia conheceria,
ao longo da última década do século XX, dois momentos bem diferenciados:
num primeiro, uma esperança desmedida em que o país encontraria, pelo
simples acionar dos mecanismos de um mercado livre, entrelaçado agora
com as grandes potências do mundo capitalista, indices de prosperidade
comparáveis aos das sociedades mais ricas do planeta. Foi um tempo de
planos ultraliberais, oferecidos como poções mágicas, gerando euforia e uma
atitude geral de subserviência aos modelos e receitas liberais que chamei de
embasbacamento
3
. A Rússia e os russos, retomando os antigos debates
entre ocidentalistas e eslavófilos, e inclinando-se então claramente pela
superioridade ocidental, assumiam-se como bárbaros diante da civilização
ocidental
4
.
Este ângulo de visão cedo decantou-se. Não haveria milagres, embora
não escasseassem na Rússia de então os conhecidos mercadores de ilusões
que costumam aparecer em situações críticas. Quando se aperceberam da
crítica situação em que se encontravam, frações importantes da sociedade
2
Cf. D. Aarão Reis, 1996.
3
Cf. op. cit. na nota 1.
4
Análises clássicas desta polêmica que, a rigor, remontam aos séculos XVII e XVIII, podem ser
encontradas em A. Herzen, 1974; F. Venturi,1972; e A. Walicki ,1979.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
205
mergulharam em profunda depressão, suscitando uma imensa crise de
referências culturais. Uma débâcle. Um deslizar para a desordem e para o
caos que, em certo momento, pareceram realmente inexoráveis
5
.
Entretanto, na primeira década do novo século, a sociedade russa e seus
atores políticos conseguiram construir um cenário radicalmente diferente,
evidenciando, mais uma vez, as margens de liberdade das opções e ações
humanas nas circunstâncias que são as suas.
É verdade que determinadas condições foram particularmente favoráveis,
como, por exemplo, e em lugar de destaque, a alta permanente e espetacular
dos preços internacionais do petróleo e do gás, principais produtos russos
de exportação, beneficiados pela crescente demanda internacional,
combinada com uma desenfreada especulação nas principais bolsas de valores
mundiais. Mas tais circunstâncias, por favoráveis que o fossem, e o foram,
não bastariam, em si mesmas, para desenhar um quadro de recuperação e de
superação das características do decênio anterior.
Desempenharam papel relevante aí, sem dúvida, certas políticas que foram
implementadas, com firmeza por um novo governo, entronizado ainda no
apagar das luzes do século XX, liderado por V. Putin, mais tarde confirmado
no cargo de presidente em duas eleições diretas sucessivas.
Entre estas políticas, merecem ênfase uma nova abordagem das relações
entre poder central e poderes regionais e locais, com um notável recentramento
do poder político no âmbito do governo da Federação, sediado em Moscou.
Enfraqueceram-se, em consequência, e no mesmo movimento, os poderes
locais e regionais. Também foram atingidos os proprietários de grandes
empresas privadas e estatais, verdadeiros potentados, como se barões
fossem, que haviam emergido no processo de desagregação da União
Soviética, assenhorando-se, através de processos obscuros, de fabulosas
riquezas construídas em décadas pelo trabalho do conjunto da sociedade.
Toda esta gente perdeu poder, quando não as próprias propriedades e mesmo
a liberdade, acusados de desmandos e irregularidades de todo o tipo (evasão
fiscal, fraudes diversas, etc.).
Com o Estado nacional fortalecido, numa conjuntura de
prosperidade, estimulada pela referida alta das matérias-primas
5
Um dos mais expressivos índices, e dos mais aterradores, desta débâcle é a drástica redução da
esperança de vida, que chegou a atingir 59 anos para os homens (73 para as mulheres), quase dez
anos a menos em relação aos patamares alcançados no quadro da extinta União Soviética. Um
declínio só imaginável em situações de catástrofes naturais ou guerras...que, como se sabe, não
existiram na Rússia de então.
DANIEL AARÃO REIS
206
energéticas, foi possível ao governo central fazer vibrar novamente as
cordas nacionalistas e patrióticas, profundamente enraizadas nas
tradições russas
6
. A reconstrução de São Petersburgo, os festejos do
tricentenário da bela cidade, em 2003; as comemorações dos 60 anos
do fim da II Guerra Mundial, em 2005, reacionando-se a memória sobre
a importância decisiva da Rússia e dos russos no esmagamento dos
regimes nazi-fascistas; a destruição brutal dos movimentos de secessão
na região do Cáucaso
7
; um papel afirmativo, ascendente da Rússia nas
relações internacionais, todas estas são referências para compreender
a recuperação da auto-estima e do orgulho nacionais russos e, na
sequência, o crescente prestígio e a popularidade de V. Putin, atestados
em múltiplas pesquisas de opinião pública e em sucessivas vitórias
eleitorais.
Um contraste: em duas décadas sucessivas, de um período de
desagregação, de ilusões perdidas, de desmoralização e desespero a
um momento de afirmação, recoesionamento e prosperidade.
É este o quadro da evolução recente da Rússia. Nele inserem-se os
desafios políticos, internacionais, econômicos e culturais que passaremos
agora a avaliar.
3. A formação de um novo regime político: a tandemocracia
Desde fins dos anos 1990, quando, depois de muitos zig-zagues e
hesitações, V. Putin foi, afinal, designado como sucessor de B. Ielstin, a
Rússia, como já referido, passou por um processo crescente de afirmação
do poder central.
De certo modo, o reaparecimento no cenário político de um traço forte da
história russa: o poder centralizado, encarnado na figura carismática de um
líder, ou de um chefe. Muitos não deixaram de ver no episódio a reconfirmação
de um destino: à alma russa , para retomar um termo recorrente na historiografia
do século XIX, mas não ausente, embora com outras roupagens, de textos
6
A história russa é marcada, periodicamente, pelo reformismo estatal, empreendido pelo alto,
uma tradição desde Pedro, o Grande, em fins do século XVII, inícios do século XVIII. Cf. D.
Miliutin, 1950 e 1919; e N. Miliutin, 1863, cujas trajetórias foram extensamente avaliadas em
W.Bruce Lincoln, 1977,1982 e 1990; M. Raeff, 1969; e em D. Aarão Reis, 2006. A tradição
voltaria a ser acionada por ocasião da perestroika, mas aí, sem êxito. Cf. A. Aganbeguian, 1989;
M. Gorbatchev, 1987 e T. Zaslavskaya, 1989.
7
Para uma visão critica, cf. Y. Yuzik, 2006.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
207
atuais, aparentemente mais sofisticados, corresponderia uma determinada forma
de regime político, centralizado, enfeixado o poder nas mãos de chefe todo-
poderoso, fosse ele um tsar, ou um secretário-geral do partido comunista
8
.
Desta construção genérica e atemporal, muitos não hesitam em chegar à
elaboração da ideia de que V. Putin não passaria de um novo Tsar, e de que
predominam agora, e como sempre, na Rússia, e sem apelação, tendências
ditatoriais inexoráveis. Retomada de forma recorrente, a formulação adquire
foros de senso comum, o que é quase inevitável quando se está diante da
reiteração excessiva de uma mesma ideia.
No entanto, a avaliação objetiva das evidências históricas e das
características da situação presente aconselham propósitos mais nuançados.
Primo, a Rússia e os russos, assim como qualquer outra nação e povo,
não têm uma única alma, nem um destino pré-determinado. Um truísmo,
mas é necessário começar por ele, tendo-se em vista a força de determinadas
ideias consagradas pelo senso comum. Trata-se de uma sociedade plural,
atravessada por tendências diferenciadas, e com um passado também marcado
por alternativas diversas.
As tradições centralistas e autoritárias são inegáveis, da autocracia tsarista
à ditadura revolucionária, embora entre estas formas de poder existam
substanciais distinções. Não é o caso de analisá-las neste momento, mas
bastaria assinalar quatro aspectos relevantes: o tsarismo era de caráter divino,
autocrático, apoiado na nobreza, e radicalmente excludente
9
. As ditaduras
soviéticas eram laicas, republicanas, apoiadas em amplas frações do povo,
portanto, plebeias, e participacionistas
10
.
Por outro lado, é preciso não esquecer que, ao longo de sua trajetória
histórica, em muitos momentos, a sociedade russa foi capaz de construir
experiências e organizações democráticas, além de projetos reformistas
8
Para a historiografia do século XIX, cf. a obra clássica de A. Leroy-Beaulieu, 1990 (reedição
da obra original, de 1898). A historiografia liberal anglo-saxônica retoma frequentemente seus
ângulos de avaliação, embora não necessariamente com os mesmos termos: cf. R. Aron, 1965,
L.Schapiro, 1967 e M. Malia, 1961. Para a história da tradição centralista russa, cf. nota 6,
acima. Para uma avaliação mais nuançada das tradições centralistas russas, cf. N. Riazanovsky,
1993; M. Lewin, 1988, 1995 e 2005.
9
A própria nobreza, como estrato ou classe social, era frequentemente excluída de cruciais
decisões políticas. Depois da abolição da servidão, em 1861, sua importância, social e política,
declinaria sem cessar ao longo da segunda metade do século XIX. Cf. D. Aarão Reis, 2006 e M.
Raeff, 1982.
10
Para o caráter plebeu e o participacionismo popular na construção das ditaduras soviéticas,
também pluralizadas, porque diversas, cf. D. Aarão Reis, 2007 e 2008; M. Ferro, 1980; K.
Maidanik, 1998; e M. Lewin, 1985 e 2005.
DANIEL AARÃO REIS
208
igualmente animados por propósitos e referências democráticas
11
. Se não
foram cabalmente vitoriosos, nem por isso perdem expressividade, inclusive
porque deixaram marcas sensíveis, incorporando-se às memórias e às culturas
politicas existentes na sociedade.
Secundo, desde a refundação da Rússia, em começos dos anos 1990,
até o momento atual, o processo político tem sido marcado por eleições
regulares, das quais participam diversos partidos, dispondo de meios para
apresentar candidatos e divulgar ideias e programas. Além disso,
registram-se importantes avanços na afirmação de um Judiciário
independente. A existência de restrições de ordem diversa à livre
expressão do pensamento e de manifestações públicas, a força
preponderante do Estado no controle dos meios de comunicação, o
emprego de métodos violentos, são questões relevantes que evidenciam
que ainda há muito a fazer para que se tenha na Rússia um regime
democrático aperfeiçoado. Mas não que inexista ali um regime
democrático em construção
12
.
É de se assinalar, mais uma vez, que Putin e Medvedev, atuais primeiro-
ministros e presidente do país, foram eleitos por amplas maiorias e que
pesquisas de opinião pública livremente realizadas atestam o prestígio e a
popularidade dos atuais governantes e dos partidos que os apoiam e os
sustentam.
É com estas referências em mente que se pode analisar com objetividade
a construção da chamada tandemocracia na Rússia atual.
O regime, instituído com amplo apoio político, referendado em eleições,
tem um caráter formalmente bicéfalo, distribuindo-se o poder entre as figuras
do presidente (D. Medvedev) e do primeiro-ministro (V. Putin), avantajando-
se as atribuições e prerrogativas do segundo, embora sem anular a importância
do primeiro, cujas funções não são meramente decorativas, fazendo lembrar,
de modo invertido, o experimento da V República gaullista, um regime
11
Cf. K. Maidanik, op. cit.; M. Lewin, 1988 e 2005; O. Anweiller, 1972 e P.Avrich, 1972.
12
Nos anos 1950 do século passado, não era muito comum o questionamento do caráter
democrático do regime político estadonidense, embora os negros, maciçamente, continuassem
politicamente excluídos e civilmente discriminados em grande parte dos Estados do Sul do pais.
Também a existência de regimes fortes e centralistas, como a França da V República, a permanência
prolongada de determinados governantes no poder político (várias experiências européias),
usando e abusando do controle de meios de comunicação, sem falar no uso do poder econômico,
ou da tortura como política de Estado (Inglaterra e Alemanha/RFA no combate ao chamado
terrorismo revolucionário nos anos 60 e 70), raramente conduziram ao questionamento ou à
negação do caráter democrático destas experiências.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
209
introduzido através de um golpe de estado, em 1958, mas depois ratificado
democraticamente pela sociedade francesa
13
.
Como ocorreu no caso francês, a fórmula encerra potenciais contradições,
mesmo quando reúne associados ou correligionários de longa data, como
costuma ser o caso, e o é, na Rússia de hoje, ou mesmo quando reúne
lideranças de estaturas, experiências e prestígio diferenciados (ninguém discute
ainda a primazia de V. Putin, garantida por lei, mas fundamentada
politicamente).
Como se sabe, as condições políticas de quaisquer alianças são
essencialmente mutantes, e metamorfoses, às vezes imprevistas, porque
improváveis, podem ocorrer, principalmente em conjunturas marcadas por
extraordinárias turbulências, como as que se avizinham em virtude das múltiplas
crises que ponteiam no horizonte desde o ano passado.
São estes múltiplos desafios que passaremos agora a avaliar.
4. Os desafios políticos da tandemocracia
As eleições gerais de março de 2008 confirmaram o prestígio de V.
Putin, do partido que o sustenta, Rússia Unida, e das políticas associadas ao
líder político russo
14
. Uma vitória consagradora.
Com efeito, parece muito claro que amplos segmentos da sociedade
atribuem a Putin a responsabilidade pelo conjunto de políticas que,
beneficiando-se de circunstâncias favoráveis, foram implementadas nos últimos
dez anos, permitindo à Rússia uma notável recuperação econômica, a
consolidação de uma situação de paz interna, uma nova reinserção no cenário
das relações internacionais e, muito mais do que isto, um processo de
reconquista da auto-estima, profundamente abalada, ou mesmo perdida, em
meados da última década do século passado. Tais referências, sem dúvida,
tendem a configurar um quadro de estabilidade.
13
No caso francês, embora a gestão dos negócios correntes estivesse concentrada nas mãos do
primeiro-ministro, a figura do presidente mantinha marcada preponderância, dispondo da
prerrogativa de definir as grandes linhas das políticas a serem implementadas. Para a apreciação
do regime bicéfalo russo, cf. Russian Analytical Digest, nº 49: How Russia works: an assessment
of the Medvedev-Putin System.
14
V. Putin, apesar de receber o claro apoio do referido Partido (que alguns preferem caracterizar
como uma frente política), e de articular politicamente suas relações com o mesmo, inclusive
participando como liderança, como o fez por ocasião da última campanha eleitoral, mantém-se
formalmente distante do dia-a-dia do partido, numa perspectiva de se preservar dos eventuais
desgastes inerentes às funções e atividades político-partidárias.
DANIEL AARÃO REIS
210
Entretanto, para além dos riscos embutidos na crise econômica que ora
se desdobra em todo o mundo, e na Rússia em particular, que serão analisados
em momento próprio, há sinais de tensões, ainda pouco explicitadas, mas já
visíveis, no interior do regime e do duo responsável pela condução dos
assuntos políticos.
V. Putin ainda é um homem consensualmente vinculado ao antigo regime,
tendo tido o essencial de sua formação profissional e política num dos esteios
principais do defunto sistema soviético, os serviços de informação , o atual
FSB, portanto, um homem do aparelho de segurança, embebido em cultura
política específica, conformando maneiras próprias de conceber o mundo,
seus problemas e soluções. Desta cultura não está ausente o emprego da
maneira forte, o recurso à truculência e até mesmo, se for o caso, ao
assassinato político, embora, até o momento, nada se tenha podido comprovar
quanto ao envolvimento, direto ou indireto, do atual primeiro-ministro nos
crimes políticos ocorridos nos últimos anos, e que tanto traumatizaram a
opinião progressista na Rússia e no mundo
15
.
Já o presidente recentemente eleito, D. Medvedev, tem formação jurídica,
nada valorizada na antiga União Soviética. Ele aparece como filho legítimo
dos novos tempos, pós-desagregação da URSS. Ao analisar problemas e
soluções é provável que formule propostas diferentes, ou, no mínimo, com
ênfases diferenciadas daquelas imaginadas por um homem como Putin.
Distintas formações, diferentes estruturas originais de sociabilidade, gerando,
sem dúvida, diferentes sensibilidades.
Não deixa de ser sintomático o fato que, desde fins do ano passado, e
com ênfase crescente, o presidente tenha vindo a público para exigir das
instituições judiciárias maior empenho, e maior rigor, na apuração, julgamento
e condenação de crimes praticados contra a ordem legal. Na sua linha de
mira, não apenas o chamado nihilismo legal, o costume bem russo de driblar
as determinações legais, consideradas absurdas e irracionais
16
, mas também
15
Entre outros, os assassinatos de Alexander Litvinenko e da jornalista Anna Politkovskaia,
crítica acerba do regime, tendo sido este, até hoje, incapaz de identificar e condenar os mandantes
ou os responsáveis diretos pelos crimes. Para as criticas sem retoques, e também sem nuanças,
dirigidas a Putin e ao governo russo pela jornalista assassinada, cf. A. Politkovskaia, 2003 e
2004.
16
Entre muitos e muitos outros, é o caso, por exemplo, da registratsia, uma herança soviética
não abolida, um registro obrigatório dos cidadãos nos postos policiais próximos do lugar onde
vivem e que se converte numa fonte permanente de aborrecimentos na tradição típica das
burocracias corruptas de criar dificuldades para vender facilidades.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
211
a tendência em politizar os procedimentos e as instituições jurídicas, seja
para condenar, seja para fechar os olhos, ou absolver
17
.
Apesar destas diferenças, digamos, de enfoque, ou de concepção, o
presidente e o primeiro-ministro podem se complementar, sem dúvida. Têm
se complementado, é fato. O presidente fez toda a sua carreira política sob
os auspícios de Putin, membro que foi de seu entourage em São Petersburgo.
Ou seja, o presidente, em larga medida, é criatura do primeiro-ministro. Mas
a história de qualquer sociedade, e a história russa em particular, conhece
inúmeros episódios de rebeldia de criaturas em relação a criadores. Para
ficarmos em dois grandes exemplos russos, historicamente emblemáticos:
Stalin-criatura vencendo Lenin-criador que, num último combate, tentaria,
em vão, deslocar o secretário-geral do poder
18
; N. Khruchtchev versus
Stalin, o primeiro, um homem de Stalin, destruindo impiedosamente, em seu
famoso informe, de fevereiro de 1956, o mito do guia genial dos povos
19
.
Por outro lado, convém não esquecer que Medvedev foi eleito presidente
da Federação Russa com mais de 70% dos votos, diretamente atribuídos a
sua pessoa, o que lhe confere uma legitimidade bastante substancial, atestada
por interessantes pesquisas recentes de opinião pública. Diante da questão
de quem, no tandem, exercia efetivamente o poder político, 48% dos
entrevistados responderam que o viam equânimemente compartilhado entre
Medvedev e Putin; 28% apostaram no controle de Putin e uma proporção
não negligenciável, de 16%, atribuíram a preponderância ao presidente. Os
8% restantes consideraram que era difícil ter uma opinião a respeito o que,
de certo modo, os aproximaria do primeiro grupo. Ou seja, somando as
respostas do primeiro ao último grupo, bem mais da metade dos entrevistados,
cerca de 56% , não distingue quem efetivamente tem preponderância no
17
Em registros diferentes, assinalem-se, de um lado, a absolvição dos acusados do assassinato
de Anna Politkovskaia, por falta de provas e/ou inconsistência das acusações, em fevereiro
último. De outro lado, o rumoroso caso envolvendo o bilionário M. Khodorkovsky: preso em
2003, e condenado por crimes fiscais, o rigor da lei parece tê-lo alcançado menos pelas ilegalidades
que cometeu e mais pela imprudência de ter se lançado em ambiciosas manobras políticas
visando questionar ou enfraquecer a liderança política de V. Putin. Nos dois casos, dois pesos
e duas medidas, gerando a impressão de que a Lei só se aplica contra os adversários ou os
inimigos do regime.
18
O conflito seria retratado em obra conhecida de M. Lewin. Beneficiando-se do acesso a
arquivos recentemente abertos, Lewin confirmou e enriqueceu avaliações anteriores. Cf. M.
Lewin, 2005, especialmente o capítulo 2: “Autonomization versus federation” (1922-1923),
pp 19-31.
19
Cf. N. Khruchtchev, 1991.
DANIEL AARÃO REIS
212
exercício do poder. Por outro lado, apenas menos de um terço atribui a Putin
a condução efetiva dos negócios públicos, o que não deixa de ser bastante
surpreendente, tendo em vista o senso comum de um domínio incontrastável
de Putin. Finalmente, cabe reiterar que parcela menor, mas importante (16%)
atribui a Medvedev a condição de cabeça do tandem
20
.
Em suma, resultados nem um pouco desfavoráveis ao jovem presidente,
visto correntemente, por muitos analistas, como uma mera criatura de Putin.
E que apontam, ao contrário deste senso comum, para a hipótese, não
ainda provável, mas não também descartável, de eventuais disputas
(conflitos?) entre os dois homens que lideram atualmente a Federação Russa.
5. A Federação Russa e o cenário das relações internacionais
A crise e a guerra entre a Rússia e a Geórgia, em agosto de 2008,
recolocaram em outros termos a inserção da Rússia no cenário internacional.
Outros dois conflitos tinham já ocorrido entre os dois estados, em 1991/
1992 e em agosto de 2004.
Desta vez, entretanto, mudou a qualidade da intervenção russa, não
apenas fazendo retroceder a intervenção da Geórgia na Ossétia no Sul, como
também, e principalmente, avançando tropas no interior do país vizinho e, na
sequência, implementando, de fato, pela força militar, e de direito, através de
tratados já assinados (embora não reconhecidos pela comunidades
internacional), o desmembramento da Geórgia, com o reconhecimento da
autonomia da Abkhazia e da Ossétia do Sul, garantidas agora, e desde o ano
passado, por exércitos russos que não dão a menor impressão de estar
planejando próximas retiradas
21
.
A aventura político-militar do presidente georgiano, estimulada por ação
ou omissão do governo estadonidense de G. Bush, resultou deste modo num
imenso desastre para o Estado georgiano, oferecendo, no mesmo movimento,
excelentes pretextos para que se tornassem visíveis determinadas evoluções
já enunciadas mas ainda não de todo explicitadas.
Elas poderiam ser resumidas numa tripla asserção: primo, o governo
russo não mais permanecerá inativo, ou passivo, frente a evoluções
20
Cf., para os resultados completos da pesquisa e comentários a respeito, Russian Analytical
DigestNo. 50: Social Movements and the State in Russia.
21
O que se anuncia é que Moscou se apresta a estabelecer bases militares na Abkhazia e na
Ossétia do Sul, uma forma de consolidar situações que ainda são, formalmente, instáveis.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
213
significativas em sua periferia próxima (near abroad), ao contrário,
reivindicará doravante um papel ativo na determinação destas evoluções. Em
outras palavras, não aceitará mais alterações do statu quo em sua periferia
próxima sem seu expresso consentimento. Secundo, se for o caso, a Rússia
está disposta a empregar a força militar para deter evoluções consideradas
indesejáveis. Tertio, e finalmente, sempre em relação ao near abroad, a
Rússia, segundo as circunstâncias, não hesitará ela mesma em efetuar, manu
militari, se for o caso, mudanças no statu quo se estas forem consideradas
indispensáveis a sua segurança.
Para os tantos que se recusavam a avaliar adequadamente as mudanças
em curso na inserção da Rússia no cenário internacional, e, em particular, na
sua periferia próxima, foi uma surpresa. Na tentativa de controlar a situação,
e revertê-la, chegaram a agitar o fantasma de uma guerra fria rediviva. A
manobra, porém, não convenceu.
Por várias razões.
De um lado, ficou muito patente a irresponsabilidade política do presidente
georgiano, massacrando as populações da Ossétia do Sul, perdendo, com
sua ofensiva aventureira, qualquer credibilidade. De outro lado, e esta é uma
referência bastante importante, pelo fato de que os demais estados do near
abroad não se mexeram ao longo do conflito, permanecendo mudos ou
sinalizando apoio, discretamente. Esta foi a atitute dos governos do
Cazaquistão, da Belarus e da Armênia. E também dos da Ucrânia, Azerbaijão
e Moldávia, acompanhados por quase todos os Estados com algum peso na
cena internacional. Em terceiro lugar, é preciso ainda enfatizar que a guerra
contra a Geórgia tornou-se imediatamente popular, recebendo amplo apoio
da opinião pública russa
22
. Na medida em que a guerra foi curta e vitoriosa,
consolidou-se, como acontece nestes casos, a adesão das maiorias.
Mesmo entre as potências ocidentais, e a União Europeia, em particular,
para além de declarações retóricas de praxe, nenhum gesto. Finalmente, o
próprio governo Bush, apanhado na última quadra do seu mandato, e em
queda livre nos indices de popularidade e prestígio, não teve outra alternativa
senão reconhecer o fait accompli.
22
Pesquisas de opinião pública evidenciaram que 75% dos entrevistados atribuíam o início do
conflito ao governo georgiano e aos EUA. Também amplas maiorias condenaram as políticas
discriminatórias da Geórgia em relação aos abkhazes e aos ossetas e manifestaram temor de que
uma eventual conciliação da Russia frente à Geórgia poderia conduzir a um aumento indesejável
da influência estadonidense nos estados fronteiriços.
DANIEL AARÃO REIS
214
Após a posse do novo presidente dos EUA, Barak Obama, confirmando
estas evoluções, retomaram-se as relações e conversações com a Rússia,
sem que exigências sobre a Geórgia estejam aparecendo como preliminares
à construção de uma amplo entendimento.
O que o governo russo deseja, e o tem explicitado com muita clareza, é,
em primeiro lugar, ter reconhecido seu papel especial nas relações com a
periferia próxima. Em segundo lugar, a revogação, ou, no mínimo, a atenuação
da política expansionista da OTAN que, no apagar das luzes do governo
Bush, além de continuar reiterando a decisão de instalar escudos anti-mísseis
na República Tcheca e na Polônia (e no próprio Azerbaijão), tendia a
considerar com certa prioridade a inclusão da Ucrânia e da própria Geórgia
em sua área de proteção, apesar de ambos os movimentos serem
denunciados como inaceitáveis provocações pela Rússia.
Os sucessos russos na guerra com a Geórgia estão sendo reforçados
também por um quadro geral de condições favoráveis às intenções e propósitos
do governo de V. Putin.
As reservas russas, que, em meados de 2008, chegavam a mais de 500
bilhões de dólares
23
e mais a situação privilegiada de grande produtor de
petróleo e gás, conferem ao país condições de provedor dos vizinhos carentes
de divisas e de energia. O processo de integração com a Belarus, medidado
por vultosos empréstimos (cerca de 2 bilhões de dólares) e mais fornecimento
de energia a preços baixos, segue o seu curso. A registrar igualmente a
aproximação com a Khirguizia, explicitada em dois episódios recentes, ambos
ocorridos em fevereiro passado: a visita a Moscou do primeiro ministro,
Kurmanbek Bakiev, resultando em perdão de dívidas anteriores e concessão
de novos empréstimos e investimentos no valor total de mais 2 bilhões de
dólares e a anulação do acordo, firmado em 2001, que concedia a base de
Manas ao trânsito de tropas estadonidenses em direção ao Afganistão
24
.
Mesmo a Ucrânia, com quem a Rússia teve e tem problemas em várias áreas
(energia, Crimeia, frota russa do Mar Negro, etc.), empreende negociações
com vistas à obtenção de um crédito de 5 bilhões de dólares. A crise econômica
na Ucrânia assume proporções de catástrofe: de setembro de 2008 para cá,
23
Dados oficiais registraram um pico de 591 bilhões de dólares em 31 de julho de 2008.
24
A visita do presidente da Khirguizia ocorreu no início de fevereiro de 2009. O Parlamento
aprovou a anulação do acordo em 19 do mesmo mês, pela expressiva maioria de 78 dos 81
deputados presentes. As tropas estadonidenses presentes em Manas já receberam um aviso
prévio de 6 meses para partir.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
215
houve uma queda da produção industrial de 34% e uma desvalorização da
moeda local, a hrivna, de 40%. Além disso, a companhia nacional de gás
anuncia dificuldades para pagar as contas da energia importada da Rússia.
No horizonte, a sombra de um novo conflito…ou a admissão de concessões
substanciais…
Da capacidade que o governo russo demonstrar para gerenciar
construtivamente estes problemas, depende, em larga medida, a eficácia de
sua política intervencionista no near abroad e mesmo seu lugar da cena
das relações internacionais.
Quanto ao novo governo estadonidense, ao emitir recentes sinais de
que suas prioridades são a redução dos estoques nucleares e a guerra contra
os talibãs e o Al-Quaeda, parece abrir portas para uma ampla negociação
em que a Rússia surja como parceiro confiável, o que é, acima de tudo, e em
resumo, o que reivindica o governo de V. Putin e de D. Medvedev.
6. Os desafios da crise econômica global
A crise global, já anunciada por críticos mais argutos, mas sempre
subestimada pelo senso comum e pelos dirigentes políticos, explodiu afinal a
partir de meados de 2008. Suas dimensões e consequências ainda são
largamente ignoradas, embora ninguém mais negue seu caráter estrutural e
suas profundas implicações em todos os níveis da vida social.
O processo, em curso, e ele ainda se desdobrará por muitos anos,
evidencia fatos alarmantes, e cada vez mais inquietantes. Basta comparar
diagnósticos e previsões formulados ao longo dos meses. Se o presente artigo
fosse encerrado em dezembro último, é certo que estaria já completamente
ultrapassado. Terminado agora, em março de 2009, é mais do que provável
que os dados com que lida, embora recentes, estejam também defasados
nos próximos meses
25
.
É dizer da dimensão internacional, global, e da velocidade e da
profundidade da atual crise.
No caso da Rússia, aos primeiros anúncios da atual crise, como seria de
se esperar, retornou o espectro dos graves problemas ocorridos em 1998.
25
Pertencem ao vice-governador do Banco da Inglaterra, John Gieve, as seguintes palavras,
pronunciadas nos começos de março de 2009: “a crise ainda não acabou, não sabemos quão
profunda e prolongada será esta recessão, e quanto tempo precisarão os mercados financeiros
para se recuperarem”. É realmente notável a profunda ignorância da situação e de suas tendências
que demonstram os principais dirigentes do mundo.
DANIEL AARÃO REIS
216
As falências em cadeia, a moratória da dívida, a queda vertiginosa do rublo
(cerca de 75%), o colapso dos bancos privados, a perda colossal das
poupanças, a derrubada dos preços do petróleo, marcados por persistente
declínio entre 1986 e 1998.
As condições da Rússia para enfrentar o impacto da crise são, entretanto,
sensivelmente diferentes: entre outras, o montante expressivo de reservas
acumuladas, a relação entre os compromissos a curto prazo e o total destas
últimas
26
, a criação dos fundos soberanos, a capacidade de intervenção e
regulamentação adquirida pelo Estado central no curso do último decênio.
O governo tratou logo de sublinhar estas referências, com o cuidado de
controlar ou atenuar eventuais ondas de pânico.
E tomou uma série de medidas anti-recessivas, num padrão que se vai
tornando típico em outras regiões do mundo: injeções maciças de recursos
para manter ou desenvolver programas sociais, ajuda financeira ao sistema
bancário, empréstimos a grandes empresas consideradas estratégicas,
desvalorização do rublo, auxílios emergenciais a trabalhadores que perderam
empregos, admissão de déficits orçamentários relativamente elevados
27
.
Serão estas medidas, porém, suficientes para enfrentar os efeitos da crise?
A Rússia, sem dúvida, está muito melhor preparada para enfrentá-los do
que em 1998. A questão é que a crise atual é, como se disse, muito mais
profunda e estrutural do que em fins do século passado.
Convém recordar, embora sejam conhecidos, alguns dados básicos.
O barril de petróleo, com peso decisivo na estrutura do comércio exterior
da Rússia
28
, chegou a ser cotado a 150 dólares em julho do ano passado,
despencou para 65 dólares em outubro, menos de 50 dólares, em novembro,
quase 40 dólares em fevereiro de 2009, já se cogitando em certas áreas
cotações ainda mais baixas…
26
Os compromissos a curto prazo chegam a 28% das reservas acumuladas, uma proporção
considerada razoável e sob controle.
27
O governo pretende irrigar a economia com 2 trilhões de rublos (no câmbio atual, um dólar/25
rublos), ou seja, cerca de 55 bilhões de dólares. O rublo foi desvalorizado, de setembro de 2008
a março de 2009 em cerca de 30%, alavancando ganhos de 800 bilhões de rublos (cerca de 22
bilhões de dólares), segundo estimativas do ministro da Fazenda, A. Kudrin. Para a indústria de
armamentos foram anunciados empréstimos no valor de 56 bilhões de rublos para ajudar 68
empresas em dificuldades. Segundo estimativas oficiais, cerca de 30% das empresas do setor
apresentavam sinais de falência. O déficit orçamentário evidentemente vai crescer, tendo sido
revisto para um patamar de 8% em 2009.
28
O petróleo é responsável por 65% das exportações e por 37% das rendas orçamentárias
(dados oficiais referentes, respectivamente, a 2006 e a 2005).
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
217
Como grande parte destas exportações direciona-se aos estados da União
Europeia e à Europa central, que estão entrando em processos de recessão,
é de se prever uma queda brusca também dos volumes brutos exportados
29
.
Com a diminuição brusca das rendas estatais, começaram os cortes: o
orçamento da defesa vai ser podado em 15%, segundo anunciou em começos
de março o presidente do Comitê de Defesa da Duma, M. Babich Said,
ressaltando que é bastante possível que novos cortes sejam anunciados ao
longo do ano. Já a estatal gigante do petróleo, a Gazprom, reduziu os
investimentos programados em 200 bilhões de rublos (cerca de 5,6 bilhões
de dólares)
30
.
A previsão do governo, também comunicada em começos do mesmo
mês, é de um crescimento em 2009 de 0%, abrindo-se a hipótese de um
crescimento negativo de menos 0,2%, com queda estimada de 30% nas
receitas orçamentárias. Outras fontes, não oficiais, já estimam um crescimento
negativo da ordem de 3%
31
. O Ministro das Finanças, A. Kudrin afirmou
que, mesmo o barril se mantendo numa faixa em torno de 55 dólares, o
produto global cairá nos próximos três anos
32
. Em janeiro de 2009, uma
advertência: em comparação com o mesmo mês do ano anterior, registrou-
se um recuo de 8,8%. As autoridades alegaram que se tratava de um resultado
atípico, mas o dado gerou alarme e inquietação, como não poderia deixar de
ser. No mesmo mês deixaram a Rússia, repatriados, cerca de 40 bilhões de
29
A Comissão Européia anunciou em fins de fevereiro um crescimento negativo do produto
global de 1,4% em média para os 27 países da União Europeia, e de menos 0,6% para a zona
euro. Na semana seguinte, no entanto, o presidente do FMI, Dominique Strauss-Khan admitia
que a instituição que preside já trabalhava com a hipótese do crescimento zero para a zona euro
em 2009.
30
Para uma análise recente do gigante estatal russo do petróleo, cf. V. Paniouchkine e M. Zygar,
2008.
31
Estimativas da economista chefe do Banco Alfa, Natalya Orlova, publicadas também em
março de 2009, informando que lida com a hipótese do preço do barril de petróleo chegar a 25
dólares...Outras previsões, mais otimistas,e aparentemente mais realistas, do Instituto Francês
do Petróleo, sustentam que a cotação do barril tenderá a estacionar a um preço médio entre 30
e 40 dólares, não ultrapassando em nenhuma hipótese a marca dos 60 dólares, tudo dependendo,
evidentemente, da amplitude da crise, dos conflitos no Oriente Médio, e das decisões da OPEP.
Já o Center for Global Energie Studies (CGES) aposta numa cotação média no ano em torno de
45 dólares, mas ressalvando igualmente que a situação geral não permite formular garantia de
espécie alguma...Interessante observar que o orçamento da Federação Russa para 2009, formulado
em novembro de 2008, previa uma cotação média para este ano de...95 dólares o barril.
32
Há controvérsias neste particular. Economistas do próprio governo sustentam que seria
possível manter índices positivos de crescimento econômico com uma cotação média de 41
dólares...
DANIEL AARÃO REIS
218
rublos, enquanto as principais ações cotadas na Bolsa de Moscou
despencaram, desde o início da crise, em 80% do seu valor.
O governo procura acalmar as gentes garantindo que os investimentos
sociais não sofrerão cortes. As brechas seriam preenchidas pelo acionar dos
Fundos Soberanos, o Fundo de Reserva e o Fundo para o Bem-Estar Social,
que disporiam de reservas de 2,7 trilhões de rublos (75 bilhões de dólares) e
de 225 bilhões de rublos (cerca de 7 bilhões de dólares). Mas tais fundos,
embora relativamente poderosos, não seriam ilimitados. Segundo argumentos
do Ministério das Finanças, um uso imoderado dos Fundos poderia levar à
sua exaustão num prazo de três anos, obrigando a Rússia a voltar a recorrer
ao mercado e às agências internacionais.
O Departamento Federal do Trabalho e do Emprego registrou aumento
substancial da taxa de desemprego, embora ela ainda se situe, pelos dados
oficiais, num patamar insignificante (0,57% da população economicamente
ativa). Mas ninguém ignora os sinais preocupantes que vêm sendo emitidos
pelo setor de construção civil, grande empregador e notoriamente abalado
pela crise. Numa política emergencial de auxílio, as autoridades federais
estabeleceram um auxílio-desemprego de 4.900 rublos mensais, incentivando
as autoridades locais a complementarem e a reforçarem a soma. A prefeitura
de Moscou, por exemplo, criou um adicional mensal de 1.700 rublos. Tais
somas, porém, não chegam a ser alentadoras, considerando-se que o salário
médio é de cerca de 40 mil rublos...
As pequenas empresas também começam a estrilar. Embora contribuam
com quase 50% das vendas e do emprego, observam, com razão, que as
operações de salvamento do Estado privilegiam apenas os grandes bancos e
empresas, estatais e privadas
33
. O governo respondeu com medidas para
incentivar desempregados a se transformarem em pequenos empresários,
abrindo-se uma linha de crédito de até 60 mil rublos para a criação de micro-
empresas, uma gota d’água no oceano....
Mas o quadro se torna decididamente sombrio quando se observam as
evoluções na Europa central. Desde o início da crise, a cada mês, pioram os
índices.
As economias dos países bálticos, que haviam passado por um
crescimento considerado altamente satisfatório nos últimos anos, estão em
33
Um estudo oficial revelou que 80% das solicitações de financiamento das pequenas empresas
junto aos bancos são simplesmente recusadas.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
219
queda livre: as previsões para 2009 apontam crescimento negativo para a
Estônia (-10%), a Letônia (-12%) e a Lituânia (-5,5%). A Ucrânia não terá
sorte melhor, com previsão de menos 10%. Também não escapam de
previsões pessimistas os três países considerados mais estáveis e promissores
da área: Polônia, República Tcheca e Hungria com estimativas de crescimento
para 2009 de de 0%, - 2% e – 6%, respectivamente
34
.
É visível o crescimento da insatisfação social e a incapacidade de oferecer
perspectivas confiáveis já levou à queda de três governos na área: os da
Letônia, da Hungria e da República Tcheca.
Observando-se a situação da Europa central, e embora as circunstâncias
sejam diferentes, é impossível não pensar nos últimos anos de 1980, quando
um outro tipo de crise na área, com seus efeitos de ricochete, conduziu à
decomposição da outrora todo-poderosa União Soviética...
35
7. A Rússia e os seus desafios: perspectivas
A crise, como já se disse, é global. Em meio às previsões mais
desencontradas, até mesmo uma aposta moderada, como a apresentada pelo
FMI na última reunião ministerial do G-20, realizada na Inglaterra, não deixa
de ser inquietante: queda do PIB mundial de 0,5% em 2009, caindo os
produtos brutos dos EUA, área euro e Japão em 2,6%, 3,2% e 5,8%,
respectivamente
36
.
A Organização Internacional do Trabalho, a OIT, prevê cerca de 50
milhões de desempregados no fim do ano em curso. Nos EUA já se encontram
desempregados mais de 3,5 milhões de pessoas.
Em face da crise, impõe-se a perspectiva de “redesenhar os sistemas
financeiro e bancário e a governança das empresas”, como admitiu na última
edição do Fórum de Davos o insuspeito Klaus Schwab, fundador do evento.
34
Todas as moedas nacionais na área registraram importantes desvalorizações, o que não bastou
para tirar as economias do marasmo e da recessão. O zloty polonês perdeu mais de metade do
valor, caindo igualmente o valor do florim (Hungria), do leu (Romênia) e da coroa (República
Tcheca).
35
Na época, os efeitos desagregadores da crise na Europa Central limitaram-se à extinta URSS,
em virtude das evidentes conexões então existentes entre as regiões. Agora, implicada também
se encontra a União Europeia: basta lembrar que 84% dos investimentos estrangeiros na área
vinculam-se a bancos seis países europeus: Áustria, Itália, França, Bélgica, Alemanha e Suécia.
Por outro lado, 1/3 das exportações da UE têm como destino os países da Europa central.
36
Cf. Paulo Nogueira Batista Jr.: O lado positivo da crise. Globo, 21 de março de 2009, p. 7. Os
referidos dados são moderados considerando-se a cacofonia das previsões sombrias em curso.
DANIEL AARÃO REIS
220
Do que se trata, a rigor, é muito mais do que “redesenhar sistemas”, mas
de reformular em profundidade os dispositivos que regem os fluxos de capitais
no mundo, de pensar numa regulamentação de novo tipo dos chamados
“paraísos fiscais” e de outras instituições que floresceram no ambiente deletério,
e totalmente descontrolado, do mercado global (centros offshore, hedge
funds, etc.). Torna-se urgente conceber dispositivos de controle
internacionalmente garantidos e, talvez, uma nova moeda internacional de
reserva que retire o mundo da posição de refém em que se encontra face às
decisões, frequentemente arbitrárias e unilaterias, dos governos dos EUA
(proposta da China e do comitê criado pela ONU)
37
.
Em alternativa à desmedida confiança atribuída pelos teóricos liberais ao
mercado, até há pouco, e idealmente, considerado como soberano e auto-
regulamentado, cresce em toda a parte a expectativa de políticas
intervencionistas, renascidas agora das cinzas a que tinham sido destinadas
pelos adoradores do mercado.
A Rússia e seus governantes, empenhados no último decênio em
reconstruir um Estado nacional forte, capaz de intervir na, e controlar e planejar
a, economia, encontram-se reforçados em suas opções.
A opinião pública russa parece aprovar o caminho percorrido. Em pesquisa
realizada sobre o melhor regime, o que seria mais capaz de enfrentar os
desafios das circunstâncias atuais, apenas 20% manifestaram-se pela
democracia ocidental, cerca de 65% inclinando-se pelas tradições soviéticas
ou pelo regime atual, sendo o sistema de economia estatal e planejada
preferido por 55% dos entrevistados
38
.
Talvez como conseqüência disso, e apesar dos efeitos catastróficos da
crise, ou por causa deles, no referido Fórum de Davos, apareceram como
duas grandes estrelas, os governantes russo e chinês, V. Putin e Wen Jiabao,
líderes políticos identificados com propostas nacional-estatistas de intervenção
e regulamentação.
Há diversas maneiras, entretanto, de afirmar políticas de controle e
regulamentação. Enfatizar unilateralmente o Estado, como na tradição corrente,
ou associar a sociedade ao Estado, num quadro de revigoramente e
37
Cf. Joseph Stiglitz: Falhas na ressurreição. Globo, 20 de março de 2009, p. 7.
38
Tais pesquisas, realizadas desde os anos 1990, assinalam um declínio do prestígio da democracia
ocidental (de 30% para 20%) e também do regime soviético (queda de 40/50% para 35%),
registrando-se uma ascensão do que os russos chama de regime atual: de 10% para cerca de 30%.
Cf. Russian Analytical Digest, nº.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
221
desenvolvimento de organizações autônomas, capazes de supervisionar e
controlar o próprio Estado.
A Rússia e os seus desafios.
Que escolhas farão seus governantes face aos diferentes modos de
enfrentar a crise? Deixando predominar os demônios do protecionismo, de
um patriotismo exacerbado, do exclusivismo nacionalista? Ou articulando-se
no plano internacional de modo a construir soluções coletivas, que beneficiem
a todos os envolvidos e atingidos pelas ondas destrutivas que desabarão
sobre o mundo no futuro próximo?
A Rússia, assim como os demais grandes Estados do mundo, não têm
caminhos pré-determinados, nem estão condenados pela História a escolher
seus caminhos. Haverão de escolher, exercitando suas margens de liberdade
e de opção. E de suas escolhas dependerá o futuro da humanidade.
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227
China, Índia e Japão no mundo que vem aí
Amaury Porto de Oliveira
Para o interesse nacional dos EUA – acentuou James P. Pinkerton em
artigo na revista “The American Conservative” – “a melhor Ásia seria aquela
em que China, Índia e Japão briguem entre si pelo poder, enquanto gozamos
do luxo afortunado dos terceiros que só assistem”. O artigo de Pinkerton
insere-se no debate ainda não esgotado na mídia americana, em torno do
rejuvenescimento econômico da China e de como os EUA devem encarar
esse fenômeno histórico (ameaça ou oportunidade?) e comportar-se diante
dele. Para alguns participantes do debate, a opção mais recomendável é
precisamente jogar um país asiático contra o outro e gozar da posição de
tertius gaudens, o terceiro que apenas ri. Mas essa é situação da qual a
China vai sabendo escapar com mestria.
No presente trabalho, procurarei determinar como China, Índia e Japão
vêm, por sua vez, se comportando diante de ordem internacional, que talvez
mais do que vir por aí já terá começado a chegar. Para definir de forma
sintética o mundo que está nascendo, direi que ele representa o desmonte de
três séculos de hegemonia dos anglo-americanos.
Foram os holandeses que, no século XVII, assentaram sobre o domínio
dos mares o sistema mundial de comércio, de investimentos e de poder militar.
Mas no século seguinte os ingleses criaram versão mais eficiente desse sistema,
levada pelos americanos, no século XX, a um grau sem precedentes de
expansão e poderio. Com apoio no seu controle incontestável dos mares, os
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
228
EUA instalaram no pós-Segunda Guerra Mundial a Pax Americana,
construção hegemônica desafiada durante algum tempo (a Guerra Fria) pelo
bloco URSS-RPC. O colapso da União Soviética e as alterações no jogo de
forças doméstico da própria China levaram Pequim a redefinir seus
relacionamentos internacionais, em particular diante dos EUA, e o
entrosamento financeiro e tecnológico entre esses dois países tornou-se tão
intenso, que um economista brasileiro (Luiz Belluzzo) pôde referir-se ao
rejuvenescimento da economia chinesa como a última floração do capitalismo
americano.
Na Ásia do século XIX, China e Japão tinham recebido atenção especial
dos anglo-americanos. A Inglaterra, após reduzir a colônia todo o Subcontinente
Indiano, estivera conduzindo quase sozinha a espoliação do erário da China,
através da difusão do vício do ópio, droga importada da Índia pelos ingleses.
Tudo assegurado por crescentes e impiedosas violações da autonomia do
Estado chinês, num modelo em que a incorporação econômica precedia a
incorporação política. Resistências do governo ou da população eram
quebradas pela diplomacia da canhoneira ou pela guerra ostensiva (as duas
Guerras do Ópio), com seu suplemento de tratados que ampliavam e
consolidavam o saqueio econômico.
O Japão não tinha riquezas que despertassem a cobiça europeia. Foram
os EUA, num movimento ancilar à expansão asiática dos ingleses, que
decidiram forçar as portas desse país (o ultimato do Comodoro Perry, em
1853), mas no intuito de apenas obter portos de escala para o comércio com
a China, conforme pode ser lido em documentos americanos. Disso resultou
que o modelo de incorporação do Japão tenha seguido a ordem inversa da
adotada para com a China, ou seja, as violações da autonomia política vindo
antes dos atentados à autonomia econômica. O Estado japonês dispôs, assim,
do que os historiadores chamam “uma pausa para respirar”. Quando as
potências ocidentais se voltaram para o Japão como terreno para comércio e
investimentos, já encontraram a modernização do país sendo conduzida por
forças nacionais (a Restauração Meiji). Tiveram de tratar os japoneses em
pé de igualdade, e o Primeiro-Ministro inglês, Joseph Chamberlain, propôs a
Tóquio um tratado de cooperação, assinado em 1902 e que vigoraria por
vinte anos. A Inglaterra usou a aliança com o Japão nos seus confrontos com
a Rússia czarista, e os japoneses dela se serviram para obter liberdade de
ação no tocante à Península coreana, logo reduzida a colônia nipônica. Da
mesma época é a troca de notas entre Tóquio e Washington, conhecida como
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
229
memorando Taft-Katsura, pela qual os EUA fecharam os olhos diante da
investida japonesa em direção à Coréia e o Japão fez o mesmo em relação
ao interesse dos EUA pelas Filipinas.
O Estado desenvolvimentista criado pelos nacionalistas da Restauração
Meiji impulsionou a primeira industrialização do Japão, assegurando que ele
permanecesse como o único país de substância, na Ásia, a não sucumbir sob
o colonialismo europeu. Mas a tentativa do regime Meiji de equiparar-se às
potências ocidentais não prosperou, decaindo melancolicamente numa cópia
da barbárie nazista, da qual foi alvo principal a China. Num segundo surto de
industrialização, já sob a Pax Americana, pôde parecer que o Japão, liberado
de preocupações e gastos militares, iria difundir no mundo um modelo de
desenvolvimento superior ao fordismo americano. Essa expectativa veio a
ser frustrada, contudo, em boa parte por ações dos próprios EUA, que
reagiram vigorosamente ao desafio japonês. Particularmente irritantes para
os americanos eram os avanços da indústria civil japonesa dos semicondutores.
Em 1987, um relatório da Junta Científica de Defesa erigiu em causa nacional
a salvaguarda da indústria americana dos semicondutores, com o Pentágono
passando a investir pesadamente no setor, inclusive com a adoção de medidas
de política industrial em princípio anátema para o liberalismo americano. Essa
entrada em cena do Pentágono afetou a correlação de forças políticas no
Japão, abrindo as comportas para as correntes ultranacionalistas.
Opunham-se tais correntes, sobremaneira, às políticas pacifistas e
mercantilistas, conhecidas em conjunto como a Doutrina Yoshida, e que tinham
sido a grande facilitadora do progresso japonês nas décadas de 1970 e 1980.
A investida do Pentágono encontrou eco entre os adversários japoneses da
Doutrina Yoshida, dando impulso ao que se chamou a economia nichibei,
um estreito entrosamento das forças mais conservadoras dos EUA e do Japão,
ajudado pelo grande entendimento entre o Presidente Ronald Reagan e o
Primeiro Ministro Nakasone. Uma outra área da pressão americana foi a
política do iene forte, imposta ao Japão pelos seus colegas do “Grupo dos 7”
(Reunião do Hotel Plaza, NY, em 1985). As pressões políticas sobre o velho
modelo mercantilista e o “estouro da bolha financeira” nascida do ataque ao
iene levaram ao impasse, de que ainda não soube liberar-se o Japão, entre o
sistema cultural e político do país e a eclosão da globalização. Enquanto a
China veio caminhando destemerosamente para integrar-se na economia
globalizada, a elite empresarial e burocrática japonesa não consegue romper
com hábitos e concepções tornados obsoletos. O país segue perdendo peso
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
230
político e estratégico, embora continue a figurar entre as grandes economias
do mundo, apto ainda a proporcionar excelente nível de vida para a sua
população, graças aí sobretudo à permanente capacidade de inovação
tecnológica das firmas japonesas.
Essa capacidade inovadora tem, inclusive, ajudado o Japão a marcar
pontos no seu entorno asiático. A indústria japonesa vai podendo manter-se
competitiva em artigos digitais de consumo, ou em setores como a
nanotecnologia, e serve-se disso para abrir mercado em países vizinhos, ou
mesmo distantes como a Índia. Com a China, embora as relações políticas e
estratégicas sejam problemáticas, o intercâmbio econômico vai muito bem,
puxado pela transferência de tecnologias para o uso limpo do carvão. Isso
permite à China, por exemplo, atacar seu problema de chuva ácida, do qual,
aliás, é grande vítima o próprio Japão.
O notável progresso do Japão nos idos dos 1970-1980 devera muito
à “inversão de curso” da diplomacia dos EUA, que diante da vitória
comunista na China (1949) decidira esquivar-se aos compromissos
assumidos na Conferência de Potsdam pelos aliados da coalizão anti-
nazista. Em vez de assegurar a destruição do poderio industrial e militar
do Japão, Washington erigiu aquele país na coluna dorsal da Pax
Americana no Pacífico Norte. O modelo desenvolvimentista japonês foi
deixado projetar-se pela orla asiática do Pacífico (o fenômeno dos “Tigres
Asiáticos”), mas de maneira a excluir a China. Foi Deng Xiaoping, com
sua política de modernização da economia chinesa e de abertura ao
mercado internacional, que transtornou nos anos 1980 os planos
americanos, contribuindo para o declínio do Japão e a retomada pela
China da posição histórica de dínamo da Ásia Oriental. O novo século
abriu-se em Tóquio com a instalação do carismático Junichiro Koizumi
na direção do governo, e durante algum tempo pareceu que ele seria
capaz de superar as mazelas da ”década perdida”, assegurando ao Japão
a condição de “país normal”, isto é, liberado das restrições ao exercício
da guerra impostas pela Constituição aprovada durante a ocupação
americana. Quando Koizumi encerrou, em 2006, sua controvertida
passagem pelo poder (marcada, por exemplo, por uma forte deterioração
das relações diplomáticas com a China), o Japão aparentava estar a
caminho da tão esperada modernização. Dois anos mais tarde, no entanto,
reinstalou-se a ciranda de primeiros ministros ineficientes e voltaram as
dúvidas e contradições conhecidas.
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
231
Enquanto isso, a China prossegue na consolidação do seu papel de centro
estruturador das vastidões asiáticas, na era da globalização. Tenha-se em
conta que o conceito de Ásia como unidade continental é, na verdade, uma
criação dos geógrafos ocidentais. Ao longo dos séculos, entidades distintas
pela cultura e a política, inclusive com pouca interação entre si, ocuparam
espaços que é mais correto e producente especificar como Ásia Oriental,
Central, Meridional, etc. Desde 1999, está a China empenhada em montar,
na Ásia Oriental, uma economia nacional de dimensões continentais,
coesamente assentada sobre moderníssimas malhas de telecomunicações e
transportes. Repetir, em suma, em versão moderna, o feito dos EUA no final
do século XIX. Se a China levar a bom termo esse plano, dentro de mais
duas ou três décadas terá o mundo, a seu dispor, um outro pólo de influência
global, alternativo aos EUA. Para chegar lá, precisa a China seguir construindo,
com paciência e pertinácia, um colar de bons relacionamentos com as diversas
Ásias.
Na própria Ásia Oriental, é preciso acertar os ponteiros com dois
conjuntos de importantes e agitados vizinhos, que por sinal ocupam as duas
extremidades da “Esfera Oriental de Comércio”, o arco geopolítico que os
EUA tentaram montar na margem asiática do Pacífico, sob comando do Japão
e a fim de manter contidos os comunistas chineses. Trata-se das sub-regiões
conhecidas como Sudeste e Nordeste Asiáticos. Na primeira, aglomeram-se
os dez membros da ANSEA (Associação das Nações do Sudeste Asiático),
egressos na quase totalidade de impérios coloniais europeus. A ANSEA foi
fundada em 1965, com um claro viés anti-China e anti-Vietnam, mas cedeu
ao paciente e positivo trabalho de Pequim, tendo vindo a transformar-se no
grande ponto de apoio da linha chinesa que promove a idéia da Ásia para os
asiáticos. Vale dizer, sem subordinação a projetos estratégicos dos EUA.
Um resquício das opções pró-EUA ainda pode ser detectado nos esforços
do Japão por obter a simpatia de forças do Sudeste Asiático para com arcos
de cooperação estratégica, ligando por exemplo Tóquio-Hanói-Nova Délhi,
ou Tóquio-Cingapura-Canberra. No Nordeste Asiático vem tendo a China
de ajustar-se, milenarmente, com duas formações nacionais, de peso cultural
próprio, o Japão e a Coréia. O Japão é o grande rival, com um histórico de
alternância com a China no predomínio naquele canto do mundo. O pós-
Segunda Guerra Mundial é, na verdade, a primeira vez em que China e Japão
mostram-se igualmente fortes. A Península Coreana exerceu tradicionalmente
o papel de ponte por sobre a qual chineses e japoneses trocaram influências
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
232
culturais e viram transitar tropas de combate. Nos dias de hoje, China, Japão
e a metade sul da Coréia estão podendo fazer da Bacia do Mar Amarelo,
área por eles enquadrada, o epicentro talvez da economia asiática na era da
globalização. Três dos maiores centros políticos e financeiros do continente
(Pequim, Xangai e Seul) ficam no interior dessa bacia, e Tóquio está logo ali.
A Rússia, que incorpora quase sozinha a Ásia do Norte (Ásia siberiana),
participa também do jogo diplomático e estratégico do Nordeste Asiático,
no qual têm presença importante os EUA. Mas a grande interação russo-
chinesa processa-se através da Organização de Cooperação de Xangai,
aliança construída em torno das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central
e que vem tendo peso crescente na utilização, pelos asiáticos, dos recursos
de hidrocarbonetos da área e na neutralização de investidas econômicas e
estratégicas dos EUA. A OCS começa a irradiar poder por todo o coração
da Ásia, e países como o Irã, Índia e Paquistão vêm participando como
observadores dos trabalhos da organização. Vem a propósito, aqui, uma
volta ao projeto chinês de Marcha para o Oeste, com o seu empenho de
estender o progresso da faixa costeira do país até os lindes com a Ásia Central.
Uma das peças magnas dessa estratégia de desenvolvimento é a consolidação
de moderna rede de transportes na região do Tibete. A Região Autônoma do
Tibete (RAT) era uma das áreas mais isoladas da RPC, a única não servida
por trens até a recente construção da Estrada de Ferro Qinghai-Tibet. Esforço
considerável está sendo aplicado na instalação de um sistema de rodovias,
descrito como “três linhas verticais e duas horizontais”, destinado a funcionar
como o núcleo de malha viária estendendo-se da Ásia Central até a Ásia
Meridional por sobre as alturas himalaias.
A Ásia Meridional, evidentemente, é o Subcontinente Indiano, onde a
Índia se destaca como o terceiro país de peso da presente recensão. William
H. Overholt, especialista em Ásia da RAND Corporation, acentua em livro
recente
1
como é útil comparar de forma sistemática China e Índia, se se
deseja obter uma boa compreensão do presente e do futuro próximo das
relações internacionais. No rol dos países, Índia e China ocupam lugar à
parte pelo tamanho das respectivas populações, pela extensão territorial e
pela projeção cultural milenar que ambos carregam. Tal como a chinesa, a
civilização indiana exerceu importante e permanente influência na história
1
OVERHOLT, William H. Asia, America and the Transformation of Geopolitics. The Rand
Corporation (2008).
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
233
humana. Nos dias de hoje, Índia e China estão convergindo política e
diplomaticamente, graças à emergência dos dois como baluartes da economia
globalizada. Num quadro Westphaliano clássico, com o comportamento dos
Estados reduzido a motivações de segurança econômica e militar, a Índia
deveria figurar entre os países com que mais teria de preocupar-se a China.
E não faltam, na verdade, análises de especialistas mostrando a Índia
empenhada em não deixar que a China se torne a potência dominante na
Ásia ou no Oceano Índico, análises que encontram eco na mídia indiana e em
círculos dos EUA. Mas é interessante verificar que as análises chinesas do
mundo multipolar não costumam incluir a Índia como pólo de importância.
Para os chineses, a Índia simplesmente não reúne capacidade nos terrenos
econômico, militar, tecnológico, político e diplomático, nos níveis julgados
necessários, em Pequim, para dispor um país de “força nacional abrangente”.
2
O fim da Segunda Guerra Mundial, momento histórico da transferência
pelos ingleses aos americanos do manto de líder hegemônico mundial,
encontrara os EUA não apenas como o país mais poderoso do mundo, mas
também como o grande repositório do que havia de mais avançado no quadro
da ciência e da tecnologia. A própria vitória militar fora alcançada graças à
concentração, no território americano, da energia científica e tecnológica das
forças mobilizadas contra a coalizão nazista. Com a liberdade de expansão
transnacional assegurada às grandes firmas americanas, uma ampla e complexa
rede de atividades e serviços foi sendo estendida pelo globo, para a qual
acabaram sendo atraídos países em desenvolvimento, em função aí de duas
práticas econômicas peculiares, que no Brasil, por exemplo, eram consideradas
subalternas, mas foram adotadas sem relutância por China e Índia. O colossal
surto manufatureiro que está levando a economia chinesa ao segundo lugar
no mundo apoiou-se, maiormente, na deslocalização (offshoring), prática
segundo a qual empresas de um determinado país deslocam, para outro,
unidades de produção, a fim de lá fabricar de maneira mais competitiva seu
produto habitual ou componentes dele. Calcula-se que dois terços das
exportações chinesas chegaram a provir, em certos momentos, das
implantações de firmas estrangeiras. A outra prática, dita terceirização
(outsourcing), consiste na contratação por uma empresa dos serviços de
outra, que pode estar nos antípodas, para a realização de tarefa cujo resultado
2
MALIK, J. Mohan. China-India Relations in the Post Soviet Era: The Continuing Rivalry.
em The China Quarterly (June, 1995).
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
234
é recuperado pela firma contratante. A existência na Índia de um importante
segmento da população com fluência na língua inglesa, além dos estreitos
laços da classe empresarial do país com a colônia indiana dos EUA, deu
margem ao florescimento de próspera economia apoiada na terceirização
eletrônica. Hoje, manifesta-se uma grande complementaridade entre firmas
chinesas e indianas no plano da globalização. Bom exemplo é a Lenovo,
estrela dos semicondutores chineses, que instalou seu departamento global
de comercialização na cidade indiana de Bangalore.
A Lenovo foi por sinal destacada, juntamente com o Tata Group indiano,
para ilustrar o tema do suplemento de 20.09.08 do semanário The Economist,
dedicado à “globalidade”, designação que começa a ser dada à nova fase da
globalização: grandes firmas de toda parte competindo com todo mundo em
todos os setores de negócios. Digno de nota é o aumento no número de
firmas de países emergentes que vão aparecendo na lista das “500 Maiores”,
da revista Fortune. Eram 31, em 2001, chegaram a 62 em 2007 e poderão
ocupar um terço da lista, no final da próxima década. Multiplicam-se, por
outro lado, os livros voltados para o novo peso de China e Índia na era da
globalidade. Cito três deles para o leitor interessado: CHINDIA, How China
and India Are Revolutionizing Global Business. Edited by Pete Engardio. (New
York: McGraw-Hill, 2007); Robyn Meredith, The Elephant and the Dragon.
(New York: W.W. Norton, 2007); Tarun Khanna, Billions of Entrepreneurs.
(Boston: Harvard Business School Press, 2007). Ou numa visão institucional:
International Monetary Fund, China and India. Learning from Each Other.
(Washington,DC, 2006); The World Bank, Dancing with Giants. (Washington,
DC, 2007).
O despertar desses dois gigantes asiáticos, em estreita interação com as
grandes firmas transnacionais (da eletrônica em particular), está no centro da
globalidade e pode ser analisado por uma infinidade de ângulos, como
comprovam os muitos livros que vão surgindo em torno do fenômeno. Vou
focalizar uma pequena faixa, onde as duas grandes massas demográficas de
China e Índia estão revolucionando o quadro, forçando inclusive as
transnacionais a evoluírem para o que Sam Palmisano, executivo-chefe da
IBM, descreveu numa conhecida palestra de 2006 como “empresa
globalmente integrada”.
3
As transnacionais começam a funcionar como
3
PALMISANO, Samuel F. “The Globally Integrated Enterprise” Foreign Affairs (May/June
2006).
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
235
entidades de amplitude global, com o trabalho fluindo no interior da firma
para a unidade onde será mais bem feito. Na IBM, as operações na América
Latina são agora comandadas do escritório da firma em Xangai. O ingresso
de algumas centenas de milhões de chineses e indianos no mercado global do
trabalho, concomitantemente com os avanços nos dois países, vêm alterando
também a problemática dos empregos. De pouco serve, hoje, dispor um país
de grande oferta de trabalhadores baratos. É preciso que eles sejam baratos
e crescentemente bem preparados. Na faixa superior da oferta estão os
“trabalhadores do conhecimento”, designação cunhada por Peter Drucker
para abarcar os técnicos e gerentes habilitados a fazer girar os setores de alta
tecnologia. Para atingir tal nível já não basta o diploma de alguma universidade,
como os distribuídos aos milhões na China e Índia. É importante o treinamento
prático, de preferência nos laboratórios e unidades produtivas que firmas
como a Microsoft, a Dell e congêneres instalam em países emergentes.
Evidentemente, do ponto de vista da firma, o objetivo é usar o talento local
para ampliar as respectivas carteiras de patentes, mas hospedeiros alertas
sabem usar o fato para ampliar seus contingentes de “trabalhadores do
conhecimento”, ou a massa de jovens empreendedores que aproveitam a
experiência adquirida para abrir seus próprios negócios. Em Bangalore, por
exemplo, a rotatividade dos técnicos locais chega a 25% por ano, nas grandes
transnacionais. Na China, onde todos esses problemas alcançam grande
dinamismo, já há mais de um milhão de “trabalhadores do conhecimento”.
Para além dessas convergências no nível tecnológico, China e Índia
atravessam uma fase de bom entendimento diplomático. Nos anos 1950, no
impulso da independência indiana (1947) e da revolução comandada por
Mao Zedong (1949), os dois países foram grandes promotores do “espírito
de Bandung”, a utopia de um mundo de congraçamento geral. Não tardou
que se impusesse a realpolitik, e em 1962 sobreveio um conflito armado
entre eles, a propósito de definição de fronteiras. As relações sino-indianas
atravessaram período glacial sob a Guerra Fria, em função do conflito
ideológico RPC-URSS. Paradoxalmente, foi Mikhail Gorbatchov quem
ajudou a quebrar o gelo entre Pequim e Nova Délhi, incitando Rajiv Ghandi
a visitar a capital chinesa. Depois da pioneira viagem de Rajiv, não cessou a
troca de visitas de alto nível, até uma particularmente importante, em junho
de 2003, quando o Primeiro-Ministro Atal Behari Vajpayee, líder do BJP (o
partido nacionalista que rivaliza com o velho Partido do Congresso), deu
partida em Pequim a uma “cooperação abrangente” entre os vizinhos. As
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
236
boas intenções aí reveladas iriam ganhar contornos práticos dois anos mais
tarde, quando o Primeiro-Ministro Wen Jiabao efetuou visita de Estado a
Nova Délhi (abril de 2005), evento saudado pela imprensa indiana como
“um dos mais importantes da década, na agenda diplomática da Índia”. E
houve quem visse essa visita como um primeiro passo para China e Índia
começarem a encarar seu relacionamento mútuo, como mais importante do
que as relações de cada uma com os EUA.
O seminário The Economist registrou, certa vez, a opinião de ex-
Embaixador da China na Índia, para quem era perfeitamente normal e até
desejável a rivalidade entre os dois países. O importante – dizia o diplomata –
é que seja uma rivalidade virtuosa, não viciosa. As conquistas econômicas da
Índia são reais e ela está podendo firmar-se como a força predominante no
subcontinente não pelo poder das armas, e sim através da sua estabilidade
política e das vantagens econômicas que vai acumulando, sobre o Paquistão e
o Bangladesh. Mas a Índia ainda não superou a ânsia por preeminência militar,
num comportamento que lhe dá ares de mandão. Invadiu e absorveu Goa.
Firmou presença no Sikkim. Conduziu duas guerras contra o Paquistão e esteve
à beira de um conflito militar com esse vizinho. Interveio para assegurar a
separação do Bangladesh do Paquistão. Enviou uma força expedicionária para
controlar a guerra civil no Sri Lanka. Consta que Nova Délhi teria requerido
dos EUA o reconhecimento dos interesses da Índia, numa “faixa estratégica”
que se estende do Canal de Suez ao Estreito de Malaca. Essa pretensão indiana
coincidiu, aliás, com visões do Governo Bush-II, cujo relatório sobre a “National
Security Strategy”, para 2002, explicitava: “partimos hoje da verificação de
que a Índia está em vias de transformar-se numa potência global, com a qual
possuímos interesses estratégicos comuns”. É a visão da Índia como baluarte
de um arco geoestratégico, estendendo-se de Suez ao Japão, que sem dúvida
explica a decisão de George W. Bush de passar por cima de todas as objeções
domésticas e internacionais, a fim de ajudar o programa nuclear indiano. Em
abril de 2005, a Secretária de Estado Condoleezza Rice visitaria Nova Délhi
para botar em marcha os entendimentos que levaram ao acordo de transferência
nuclear, assinado em visita do próprio Bush (março de 2006). Mas é importante
registrar que a ida à Índia do Primeiro-Ministro chinês sobreveio semanas depois
da passagem de Miss Rice, com a clara intenção de pelo menos neutralizar o
trabalho da Secretária de Estado americana. À medida que os EUA vão
impulsionando a Índia para posições mais contundentes no plano internacional,
a China aparece puxando os indianos para o jogo econômico.
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
237
Embora as aspirações globais de China e Índia exibam boa dose de
competitividade, as pressões nascidas da fase de acelerado crescimento dos dois
países fazem com que se afirme uma competição virtuosa. Aos indianos agrada, por
certo, o empurrão recebido dos americanos no tocante à indústria nuclear, mas
alarma-os a tendência de Washington de subordinar suas atividades na Ásia ao
reforçamento da aliança militar EUA-Japão. Nova Délhi prefere, também, explorar
com Pequim a complementaridade que a globalização está trazendo para as
respectivas economias. Quando o Primeiro-Ministro Manmohan Singh visitou o
Japão, em fins de 2006, foi-lhe sugerido que a Índia aderisse a um “concerto
democrático quadrilateral”, envolvendo ainda EUA e Austrália. Em agosto seguinte,
Abe Shinzo retornou a visita do colega indiano e voltou a insistir na idéia da
cooperação quadrilateral. A Índia tem-se esquivado, porém, ao mesmo tempo em
que toma iniciativas que a aproximam de posições chinesas e aborrecem os EUA.
Como a compra de gás natural no Mianmar e no Irã, com a consequente negociação
de gasodutos com países da lista negra de Washington. China e Índia começam a
estabelecer parcerias em projetos energéticos internacionais, em particular na África.
Elevam, também, o grau de cooperação entre seus estabelecimentos militares, com
vistas à segurança do transporte de material energético no Oceano Índico e partes
do Pacífico. Em maio de 2006 assinaram um Memorando de Entendimento para o
Aprofundamento da Cooperação de Defesa, que serviu de moldura para o primeiro
exercício militar sino-indiano, em dezembro de 2007.
* * *
Tendo em vista a perspectiva em que foi inicialmente colocado este
trabalho, cabe ainda examinar como vai sendo a Ásia afetada pela
desmontagem da era anglo-americana. O assunto é vasto e complexo e eu
terei de limitar-me a dois aspectos do grande quadro. O problema do
terrorismo, com ênfase na Ásia Meridional. E o problema da salvação
ecológica do planeta, que toca diretamente a China.
Os recentes e trágicos atentados na cidade indiana de Mumbai (antiga
Bombaim) são um bom ponto de partida para considerar o problema do
terrorismo. Eu não tenho formação, nem disponho de dados para analisar em
profundidade esse tema, mas por mais que procure fugir à conclusão simplista
de atribuir toda a culpa ao velho colonizador, a mim me parece irrecusável não
começar pela verificação de que o terrorismo moderno está ligado, de perto, à
desmontagem do Império Britânico. O colonizador inglês deixou um rastro de
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
238
conflitos insolúveis e de incitação à violência pelas terras de onde foi se sentindo
compelido a sair. Irlanda, Palestina, Subcontinente Indiano são amostras
gritantes. A partilha do Subcontinente ou a ajuda na criação de Israel foram
soluções ad hoc, encontradas por Londres para lavar as mãos de imbróglios
de proporções históricas, que seus prepostos mundo afora tinham deixado
surgir ou mesmo contribuído para que surgissem. Sob a Pax Americana, o
herdeiro do manto hegemônico inglês deu continuidade às embrulhadas do
irmão mais velho. Ao referendar, por exemplo, o Programa de Biltmore,
promovido por Ben Gurion em 1942, Washington assumiu a tutela do
Movimento Sionista e nunca mais logrou desligar-se do conflito na Palestina.
Na Ásia Meridional, o momento de passagem da responsabilidade pode ser
datado, talvez, da decisão dos EUA, em fevereiro de 1954, de iniciar um
programa de ajuda militar maciça ao Paquistão. Foi a primeira intervenção
aberta de uma superpotências no subcontinente, onde os dois Estados surgidos
sete anos antes, em virtude da partilha endossada pelos ingleses, ainda nem
tinham tido tempo de posicionar-se no quadro da Guerra Fria. Não tardou a
tomada do poder, em Islamabad, pelos militares (1958). Atentado à democracia
que não prejudicou a ajuda americana; ela foi, ao contrário, aumentada em
1959. Alarmada com o fluxo de armas para o vizinho e rival, a Índia foi-se
deixando cair na dependência estratégica da União Soviética.
Tal como iria fazer no ano seguinte na Palestina, a Inglaterra em 1947
abandonou o Subcontinente Indiano à própria sorte. Embora vitoriosa, em
princípio, na Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra saíra do conflito
empobrecida, incapaz de manter planeta afora seus amplos compromissos
imperiais. O pavilhão britânico começou a ser arriado, sob a retórica da
descolonização, mas na realidade como o abandono de terreno diante do
avanço tumultuado de forças e interesses locais. Tal como na Palestina, no
Subcontinente multiplicaram-se comissões mandadas de Londres para tentar
soluções equilibradas, mas o tumulto local foi-se impondo. Não se pode
dizer que o imperialismo britânico tenha criado o Paquistão, mas como observa
Robert Stern
4
, a Inglaterra ajudou a montar o contexto para essa criação.
Outro autor que tem muito a dizer sobre esse tema, é Edward Luce
5
.
Apoiando-me nele e em Stern, lembrarei em traços rápidos que o nascimento
4
STERN, Robert W. Changing India. Cambridge, UK. Cambridge University Press (2003). V.
especialmente o cap 5: “British imperialism, Indian naturalism and Muslim separatism”.
5
LUCE, Edward. In Spite of The Gods: The Rise of Modern India. New York (2007).
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
239
da ideia do Paquistão remonta a 1909, quando o Vice-Rei, Lorde Munro,
estabeleceu na Índia “eleitorados comunais”, reservando alguns distritos para
grupos religiosos. Entre 1909 e 1947, os ingleses empenharam-se em desligar
do Partido do Congresso os filiados mulçumanos, garantindo assim que surgisse
um partido de definição mulçumana. E a política de dividir para reinar
formalizou-se em 1939, quando um outro Vice-Rei, Lorde Linlithgow, em
função da atitude em relação à entrada da Inglaterra na Segunda Guerra
Mundial, reconheceu a Liga Mulçumana de Mohammad Ali Jinnah como a
porta-voz única dos mulçumanos na Índia, enquanto Ghandi e Nehru eram
postos na prisão. Em 1946 foram realizadas as últimas eleições gerais no
Subcontinente sob a égide inglesa. A partilha não foi tema eleitoral, mas a
Liga Mulçumana teve expressiva votação. Uma derradeira missão ministerial
britânica acorreu a Nova Délhi, sem obter entendimento com os líderes da
Liga e os do Partido do Congresso. Jinnah convocou um Dia de Ação Direta
dos Mulçumanos, sendo atendido por sangrentos motins em Calcutá.
Começara o horror da partilha, que iria ser implementada pela ação direta
dos interessados – os hindus e os mulçumanos. Cada comunidade tomaria
para si a província em que fosse majoritária, respeitando o mais possível a
contigüidade das províncias. Este cuidado não pôde ser totalmente mantido,
e o Paquistão surgiu repartido em duas seções (ocidental e oriental), origem
do Bangladesh. Também na Caxemira mostrou-se impraticável, até hoje, definir
a repartição eqüitativa da província. Em dezembro de 1946, em todo caso, a
violência intercomunitária tomara conta do Penjab e da Província da Fronteira
Norocidental. O Primeiro Ministro inglês, Atlee, anunciou no Parlamento
(20.02.47) que a Inglaterra ia retirar-se da Índia. Ninguém sabe, realmente,
quantas pessoas morreram nos confrontos da partilha, ou em consequência
de enfermidades e fome associadas a esses confrontos. As cifras vão de
centenas de milhares a um milhão, com predominância de algo em torno de
meio milhão. O certo é que o massacre provocou um dos maiores
deslocamentos populacionais da História, calculando-se que cinco milhões
de mulçumanos migraram para os territórios destinados ao Paquistão,
enquanto outros cinco milhões de hindus e sikhs moviam-se no sentido
contrário. Entrematando-se quando as colunas de migrantes se cruzavam.
Meu propósito ao rememorar esses fatos é contestar a ideia de que o
terrorismo nasce, automaticamente, de algum “choque de civilizações”. Ele
é, na verdade, produto de situações e escolhas políticas e sociais bem
concretas. A destituição econômica e educacional em que são mantidos amplos
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
240
setores da população de certos países. Condições de gueto, prepotentemente
impostas a corpos populacionais, aos quais se negam os direitos elementares
de ir e vir e de ganhar o próprio sustento. É interessante verificar como o
tumulto da partilha do Subcontinente Indiano pode ter legado ao mundo
fibrilhas de migrantes, que não se acomodaram no destino original, e
continuaram a se movimentar. Para o Golfo Pérsico, a Grã-Bretanha ou a
América do Norte. John Keay
6
lembra que o primeiro voo transatlântico a
ser explodido (1985) foi um jumbo da Air India, abatido por separatistas
sikhs sediados no noroeste do Canadá. Mais recentemente, militantes
islâmicos paquistaneses, radicados na Inglaterra, montaram ataques em Israel.
Sessenta anos após a partilha, é desolador verificar que a Índia voltou a ter
minoria mulçumana equivalente a toda a população do Paquistão, e que a
determinante básica do processo, a ideia de que as duas comunidades
precisavam separar-se para prosperar, resultou perversamente numa rivalidade
com ameaças de choque nuclear. Índia e Paquistão falharam lamentavelmente
diante do próprio atraso. Olhando um indicador, apenas, cite-se relatório do
Banco Mundial, dizendo que metade das crianças indianas não atingem o
tamanho normal, por desnutrição. O dobro da taxa de desnutrição da África
subsaariana.
Os indianos tendem a apresentar-se como vítimas indefesas de terroristas
predominantemente paquistaneses. Mas o fato é que a própria Índia é um
grande viveiro de violência e terrorismo, em geral provocados por divergências
políticas contra um fundo de cena de discordâncias religiosas. Gandhi foi
morto por um terrorista hindu; Indira Gandhi, por militar sikh da sua escolta;
seu filho Rajiv foi assassinado por militante tamil. Na verdade, a fração mais
tranquila da população indiana talvez sejam os mulçumanos, que vêm sendo
no entanto atiçados por dois tipos de pressões. De um lado, os nacionalistas
hindus congregados no BJP, um de cujos líderes comandou em 1992 a
demolição da famosa mesquita de Ayodhya, provocando um massacre de
hindus e, em tréplica, um pogrom de mulçumanos. De outro lado, há uma já
longa campanha de militantes islâmicos do Paquistão e do Bangladesh,
estimulando a criação do movimento terrorista dos Mujahedins Indianos. A
estes foi atribuída uma série de atentados que matou 140 pessoas nas cidades
de Jaipur, Ahmedabad, Bangalore e Délhi, no verão de 2008, antes do violento
episódio de Mumbai, com suas características de terror internacional. A
6
KEAY, John. The Great Arc: The Dramatic Tale of How India was Mapped. (2000).
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
241
empresa Political & Economic Risk Consultancy, de Hong Kong, apontou a
Índia como o país mais arriscado da Ásia Meridional, nas suas projeções de
terrorismo para 2009. Segundo essa empresa, passou de quatro mil o número
de mortes em atentados na Índia, entre 2004 e meados de 2008. Foram
quase mil mortos só em 2007.
Para encerrar esta rápida incursão pelo terreno da violência e do
terrorismo, no quadro das Ásias Meridional e Sudocidental durante a
desmontagem da era anglo-americana, cumpre assinalar a estreita ligação de
ingleses e americanos com um dos mais preocupantes processos em curso
naquelas regiões – o movimento taliban. É preciso voltar ao século XIX, ao
“Grande Jogo”, no qual a Rússia tzarista e a Inglaterra, esta através dos seus
prepostos na Índia, buscavam ampliar as respectivas presenças no continente
asiático. O Afeganistão foi um dos terrenos desse embate, e a Inglaterra
logrou transformá-lo num Estado-tampão, sob a forma de reino independente
e neutro, separado da Índia inglesa por fronteira traçada (1893) por um
servidor público britânico, Sir Mortimer Durand. A “Linha Durand” dividiu
calculadamente as populações pashtuns, deixando uma boa parte delas aos
cuidados do novo monarca e colocando sob a responsabilidade britânica
umas quantas tribos. Foram estas distribuídas num colar de sete agências
tribais, a FATA (Federally Administered Tribal Áreas), e duas regiões maiores:
a Província da Fronteira Norocidental e o Baluquistão. Os pashtuns destas
duas regiões viviam sedentariamente, em cidades e aldeias, enquanto as tribos
da FATA precisavam ser mantidas com mão-de-ferro. Após a criação do
Paquistão, o novo regime pensou que ia continuar dando as cartas entre os
pashtuns, mas tem tido ao contrário de defrontar-se com movimentação no
sentido da criação de um Pashtunistão independente. Em todo caso, o grande
empenho do Paquistão, nos seus sessenta anos de existência, tem sido anexar-
se a Caxemira. Um dos mais de 500 principados a que os ingleses reconheciam
autonomia, e que, na partilha do Império, foram atribuídos ao Paquistão ou à
Índia, em conformidade com sua definição religiosa.
A Caxemira, principado de população majoritariamente mulçumana,
governado por um príncipe hindu, transformou-se em problema, que já
motivou duas guerras indo-paquistanesas e segue irresoluto. O
comportamento da Índia na querela não merece encômios, e o Paquistão a
tem usado como justificativa para tentar transformar o Afeganistão num
Estado-cliente, alegando precisar dotar-se de “profundidade estratégica”
no confronto militar com a Índia, territorialmente bem maior. A luta pela
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
242
Caxemira forneceu também a base para a consolidação do Exército como
a instituição-chave do Paquistão e para o fortalecimento, dentro dele, da
ISI (Inter-Services Intelligence Agency), como a cabeça estratégica do
regime. O Afeganistão, um dos países mais pobres do mundo, registrava
276 dólares de renda per capita na altura de 1978, quando um golpe
militar o transformou em república. Seguiu-se uma fase digna do velho
“Grande Jogo”. A União Soviética de Brezhnev invadiu o Afeganistão e os
saxões, representados já aí pelos americanos, com a sua CIA, mobilizaram
o que puderam para restabelecer o equilíbrio anterior, vale dizer, pôr fim ao
avanço dos russos. O Paquistão foi cooptado para ser o grande aliado dos
EUA nessa empreitada e a CIA iniciou intensa cooperação com o ISI para
recrutar, financiar e armar as milícias que iriam combater no terreno. Com
a ajuda em vários níveis da Arábia Saudita, financiadora e ideóloga da rede
paquistanesa de escolas corânicas (madrassas) em que se moldam desde a
infância os “combatentes de Alá”, CIA e ISI vêm cozinhando, desde o
início dos anos 1980, o caldo de cultura do qual foram saindo Osama Bin-
Laden, a Al-Quaeda e os talibans. Não poderei descrever essa marcha,
que a partir de 2001 se desdobrou na “guerra ao terrorismo”, do Governo
Bush, concretizada nas Guerras do Afeganistão e do Iraque.
Entra-se agora num período de correção dos desmandos acima. Numa
das iniciativas prometidas na sua campanha eleitoral, Barack Obama parece
determinado a puxar, pelo Afeganistão, o fio que desmanchará a meada de
erros deixada pelos neo-conservadores de Bush. Um diplomata de grande
experiência, Richard Holbrooke, foi designado Representante do Presidente
para Afeganistão e Iraque, com o encargo imediato de levar adiante as
recomendações de relatório da Asia Society, da qual o próprio Holbrooke é
chairman, propondo abordagem abrangente e com o apoio a ser buscado
da Índia, China, Rússia e Irã, para os problemas do Sudoeste Asiático. Na
sua primeira entrevista coletiva à imprensa (09.02.09), Obama referiu-se
especificamente à missão do Embaixador Holbrooke, e à necessidade de
deslindar criativamente os nós políticos que estiveram a acumular-se, ao longo
da Linha Durand, nas áreas tribais da FATA. Um primeiro reforço, de 17 mil
homens, está a ponto de ser enviado para tomar posição ao longo dessa
linha, que hoje divide uma população pashtun calculada em 40 milhões de
indivíduos. Com apoio nessa comunidade, os talebans têm ampliado sua
presença no Afeganistão, onde o governo de Cabul mal controla 30 por
cento do território nacional.
CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM
243
De Barack Obama se está esperando, com muito otimismo, que possa
reequilibrar as contas do EUA e da economia capitalista mundial. Será uma
tarefa hercúlea, que poderá estender-se por alguns anos. E que não fará
sentido, se não enfrentar de forma positiva o processo convergente do
rejuvenescimento da China. É este o segundo aspecto da desmontagem da
era anglo-americana que eu prometi pôr em foco. A necessidade de abrir
espaço para a China, de maneira a evitar uma catástrofe ambiental. O governo
Bush procrastinou perigosamente a aceitação, pelas governanças mundiais,
da dura realidade de que a Terra está ameaçada no seu saudável
funcionamento. E que a causa maior desse fato reside nas opções energéticas
feitas pelos anglo-americanos, desde a Revolução Industrial no século XVIII,
com a queima do carvão fóssil para as manufaturas e o transporte e, mais
tarde, a produção de eletricidade. E no século XX, a Sociedade do Motor,
criada pelos americanos em cima do emprego avassalante dos
hidrocarbonetos. À medida que moderniza e amplia sua economia, a China
tem-se tornado um grande foco de poluição planetária, passando os EUA
em termos absolutos, haja vista a enormidade da sua população. Em termos
per capita, os EUA seguem imbatíveis. Mas a China vem simplesmente
repetindo os modelos industriais criados pelos anglo-americanos, que
egoisticamente pensaram um sistema na medida das ambições de bem-estar
deles próprios, mesmo se à custa do uso desperdiçado dos recursos naturais
do planeta.
O Professor Francisco Teixeira, que lidera na UFRJ um laboratório de
pesquisas de teor prospectivo, costuma afirmar que o prazo médio, 2030
digamos, já chegou, como resultado das decisões que estaremos todos
tomando nos próximos três ou quatro anos (2009-2012). Isso dá particular
importância ao primeiro mandato do Presidente Barack Obama, que assumiu
a Casa Branca a tempo de dialogar com a dupla Hu Jintao-Wen Jiabao,
governantes formados em intenso contato com as profundas necessidades
do povo chinês e, como Obama, dotados de grande sentido de justiça humana
e social. O mandato deles também vai até 2012.
Na verdade, o diálogo sino-americano já começou. Hillary Clinton, a
Secretária de Estado do governo Obama, acaba de passar dois dias em
Pequim, em conversas com os dirigentes e contatos com a sociedade local.
Ela insistiu o tempo todo em que as duas economias estão tão interconectadas,
que China e EUA não têm alternativa a cooperarem para tirar o mundo da
atual crise econômica. Hillary deixou claro que a base dessa cooperação
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
244
residirá na busca conjunta de soluções para a salvaguarda do meio ambiente
e a edificação de uma nova matriz energética para a economia mundial. A
este último respeito, é válido enfatizar a preocupação que Obama tem
demonstrado para com o aumento da produção, nos EUA, das energias
renováveis já bem desenvolvidas, como a eólica e a solar, além do uso mais
eficiente das grandes quantidades de energia que a economia americana tem
de continuar a consumir. O Presidente reafirmou sua determinação nesse
sentido ao dar posse, como Secretário de Energia, ao Professor Steven Chu,
Prêmio Nobel de Física em 1997 e conhecido batalhador pela causa das
energias renováveis.
A necessidade de cooperar com a China em matéria de salvaguarda do
meio ambiente já não é mais uma decisão a ser tomada, ou não, de acordo
com a visão de mundo do governante americano em posto. O fato é que,
apesar de a Quarta Geração de dirigentes chineses poder ser vista como o
governo mais conscientemente atuante no presente na defesa do meio-
ambiente, a imperiosidade de usar energia – na maneira desperdiçada e pelos
métodos desenvolvidos durante a Era anglo-americana – nas proporções
exigidas pelo tamanho populacional da China cria uma situação, na qual se
torna visível o risco potencial de catástrofes humanas de grande dimensão.
No interior do território chinês, mas também para lá das fronteiras do país.
Essa verificação do potencial transfronteiriço da deterioração do meio-
ambiente chinês vem tomando corpo desde o início dos anos 1990, e já se
reflete nas relações comerciais com o Japão, que se tornou importante
fornecedor, à China, de tecnologias para o uso limpo do carvão. Mais
recentemente, tem-se tornado patente o efeito danoso da crise ambiental
chinesa para as condições climáticas na Califórnia
7
. Diante da
impraticabilidade, nos novos tempos, de resolver problemas desse tipo pela
guerra ou, simplesmente, brecando o desenvolvimento chinês, vai-se mostrar
inevitável a busca de acomodações entre EUA e China, nas quais parece
certo que os EUA terão de fazer mais da metade do caminho. Essa busca
será a substância dos três ou quatro anos de toma lá dá cá, entre Washington
e Pequim, a que acaba de dar partida Hillary Clinton.
7
Uma análise muito atual da problemática chinesa em relação ao meio-ambiente nos seus
aspectos positivos e negativos pode ser encontrada em: Morton Katherine “China and
Environmental Security in the Age of Consequences” em Asia Pacific Review, n 15 (2008).
245
BRICs, the Chinese Engine, and the Humbling
of Market Fundamentalism
Glauco Arbix
1
If two people make out a shape in the distance and one says it is
a man and the other that it is a horse, before jumping to the
conclusion that neither of them are capable of telling the
difference between a man and a horse, it is legitimate to postulate
that what they have seen is a centaur (then again, it could be
argued that since centaurs do not exist, both of them were
mistaken).”
(Bobbio, The Future of Democracy)
The present economic crisis is not a regional or local crisis, but a systemic
one, which originated and expanded at the core of developed countries. In
the 1980s, a debt crisis shook Latin America and Africa. Another one then hit
Asia, Russia and again Latin America at the end of the 90s. Many countries
had their trajectories momentarily interrupted, even though they were able to
recover rapidly in tune with the global economy.
In the current recession, it is the developed countries that are under the
eye of the hurricane. Nevertheless, the impact on the emerging countries will
be strong. Both for those that grew rapidly and benefited from a global
environment marked by liquidity and low interest rates, a weak dollar and the
rise of commodity prices; as well as for the more fragile countries, who will
be, once again, the big losers.
1
Professor at the Dept. of Sociology, University of São Paulo (USP - Brazil). General Coordinator,
Observatory for Innovation at the Institute of Advanced Studies (USP). O presente texto foi
elaborado a partir das ideias apresentadas na III Conferência Nacional de Política Externa e
Política Internacional – “O Brasil no mundo que vem aí” – promovida pela Fundação Alexandre
de Gusmão e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) nos dias 8 e 9 de
dezembro de 2008, no Palácio Itamaraty Rio de Janeiro. Agradecemos o Institute for Latin
America Studies da Columbia University (EUA), assim como a FAPESP e o CNPq pela acolhida
e apoio.
GLAUCO ARBIX
246
The crisis will not leave developing world unscathed. However, I argue
that the current financial crisis will not sound the death knell for developing
countries’ recent economic success, as the debt crisis of the 1980s sounded
for import substitution industrialization (ISI). They will suffer a strong downturn,
but some of them could emerge stronger from the crisis.
Exuberant trajectories
In 2001, Jim O’Neill, Goldman Sachs´ economist, coined the term BRIC
to encapsulate the energy exerted by Brazil, Russia, India and China, the
world’s most promising emerging markets.
Over the past 50 years, for instance, China, India, Russia and Brazil have
followed a wide range of recipes, created tools, and experienced different
models of development. Sometimes they have failed strikingly, as during the
Cultural Revolution, the glasnost tentative to keep socialist experience going,
the Indira Gandhi’s 1965-75 statist planning, or even in the inward and
protectionist bias the Brazilian national-developmental model has introduced.
But sometimes, they have thrived, and often learned a great amount from
stumbling.
The BRIC economies have been studied from different angles and
dimensions, and economists in general have stressed they would together
be larger than the G7
2
by 2035 or 2027 according to a more optimistic
view
3
. However, I claim the main lesson they have learned that deserves a
more accurate scrutiny is about the interactions and synergies between
markets and states. Not from a general point of view, but in concrete
terms, translated by a set of domestic new institutions, technological efforts,
pro-business policies, and social policies, aimed at mitigating poverty
and inequality, and, simultaneously, at boosting economic growth. Some
of these countries are again pushing through these experiments in
democratic environments, in contrast with their recent pasts, what is of
major significance.
Something out of the ordinary is afoot in developing countries. This group
of developing countries is undergoing deep social and economic changes.
2
The first G7 meeting was in 1976, with the finance ministers from the United States, Germany,
Japan, United Kingdom, France, Canada, and Italy.
3
In dollar terms.
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
247
According to the World Bank, more than 400 million people have been pulled
above the poverty line over the past 25 years. This has occurred mainly
because of China’s outstanding growth. But there was poverty reduction all
over the world, basically due to the global growth, and the striking developing
countries’ economic performance.
Developing countries´ economies have been growing at a rate of roughly
7% for years, clearly unsustainable during the current crisis. Skeptics argued,
before the crisis, that their striking performance represented only an upswing
in the business cycle. There are signs, however, that it represented an upward
trend in the growth rate, interrupted only momentarily by the crisis. If that
interpretation is correct, and growth in China, India, Russia and Brazil is can
be sustained, BRIC countries will recover from the crisis more solid than
before.
Some indications have been clear.
GLAUCO ARBIX
248
In 2006 and 2007, the combined output of emerging economies
accounted for more than half of total world GDP (PPP).
As China, India, Russia and Brazil opened up their economies during the
1990’s, the global labor force doubled. Over the past decade, almost a billion
new consumers entered the global marketplace. In 2008, China alone
accounted for more than 10% of world trade (4% in 2000, purchasing power
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
249
parity terms). There was an increasing vitality in emerging economies, which
positively affected global growth, not substituting for output elsewhere.
And, even more relevant, stronger growth in emerging economies has changed
the relative returns to labor and capital all over the developed world, shifting relative
prices and incomes, altering labor and capital costs, prices and manufacturing
conditions.
In the present days it seems much easier to regard the acronym BRIC, and
discard the “decoupling” hypothesis with disdain, given the strong impact provoked
by the financial crisis all over the world. But the exuberant BRIC economic figures
and numbers previous to 2009 – both in terms of growth, exports, net reserves,
and even in science and technology – keep calling for reflection.
GLAUCO ARBIX
250
BRIC countries have built their savings based on years of exports
bonanza. But most of them have diversified their export-destiny and
export-mix. More important, they rely increasingly on internal markets
what allows them to grow even while the United States economy slows.
How sustainable could be that movement remains controversial. But
there are clear signs of a major rebalancing in their domestic markets
altering the global consumption features. Differently from Europe, Japan
and the U.S., BRIC consumers contribution increases slowly, but
continuously.
If the BRICs succeed in improving their redistributive set of policies,
even under lower economic growth but with major impact in family
income – as already happened in Brazil in recent years –, the trend line
will continue toward a greater economic autonomy. Chinese consumers
are at the heart of this shift, and what will happen inside China is crucial
for the world and, specifically for developing countries future. The new
programs aimed at supporting medical insurance to rural communities
linked to a huge public infrastructure spending, announced to be
implemented until 2011 by the Chinese government, reinforce the relative
BRICs consumption weight, and their key position in the world economy.
Every step forward taken by the BRICs to rebalance their economy
and to overcome poverty and inequality exerts positive impact on the
world economy, allowing the decoupling hypothesis emerge from the
ashes.
Uneven economic and social performance
In spite of some similarities, the biggest developing countries differ
in many ways. Brazil, Russia, India and China compete with each other,
yet sometimes appear acting together. Within the acronym BRIC there
is much more heterogeneity than the label may suggest, both in terms of
their history and civilization, and in terms of their institutional, military,
geopolitical, cultural and social affairs.
Measured by GDP, the label BRIC would be CBRI, in dollar terms, or
CIRB, in PPP (Purchasing Power Parity).
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
251
Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008
CIRB would be more accurate to designate the block when compared
to other countries, and groups.
Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008
Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008
These countries differ deeply in performance and weight in the world
economy. China grew more than twice the world average and one third more
than the other emerging markets.
GLAUCO ARBIX
252
IRC (India, Russia amd Brazil)
Source: IMF/WEO (PPP), 2008
A 2003 Goldman Sachs study suggested that total BRICs GDP would
surpass the current G7 in 2035, but China alone was projected to overtake
every developed country, the U.S. included, by 2040. Actually, China has
distinguishing traits while compared to the other BRIC countries. Size, net
reserves, domestic market, population, technology, entrepreneurship, nuclear
weapons, and a command economy make China the only developing country
candidate to be a global power.
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
253
As emphasized by Ferguson and Schularick (2007), over the past ten
years, to understand the world economy the most important phenomenon has
been the relationship between China and America, dubbed Chimerica.
Differently from many scholars that identified only signs of “crony capitalism”
in China, Ferguson (2008) gave prominence to the Chinese concrete deeds
compared to the prescriptions emanated – but not necessarily followed by –
from Washington to be embraced by the rest of the world. In fact, according
to his view, Chimerica was the real engine of the world economy.
But Chimerica was deeply unbalanced as the Chin did the saving, and
Merica the spending. The divergence in savings set off a remarkable explosion
of debt in the United States. To be expected, not only China but other Asian
and developing countries around the world accumulated net reserves, run
surpluses, and kept their exports affordable. Essentially, developing countries´
savings stimulated a huge expansion in spending in the United States, made
possible by negligent lending and sometimes deceiving financial environment,
loosely controlled by national and international institutions.
In geopolitical terms, the implications are:
1. As a certainty, the combination of a financial collapse with a huge
recession will change the world;
2. The balance of global power will change; yet it is early to conclude that
the U.S. power will decline irreversibly: the outcomes of the crisis have just
started to come up, and what will happen depends on the unknown
consequences and decisions still unmade;
3. The legitimacy of the market will weaken, and the credibility of the US
will be damaged;
4. The authority of many developing countries, mainly China, will rise;
5. China will make efforts to decouple from the U.S., relying less on
exports, and looking for other spheres of global influence;
6. The global arena will be rocked by the crisis, and the BRICs could be
politically reinvigorated.
Maybe China is coming back to the place it lost since the Industrial
Revolution, as some analysts predicted. Yet there are huge problems to face,
both in terms of democracy, and social inequality.
GLAUCO ARBIX
254
Side 1
The other side of the coin
Brazilian democracy and inequality reduction
What about the quality of economic growth?
Figures regarding income inequality around the world inspire no
enthusiasm, yet we have astonishing advances coming from the Brazilian society.
Although Brazil still exhibits very high rates of poverty and inequality, both
rates have dropped dramatically over the past eight years, and they keep
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
255
dropping. Behind that fall, there is a new combination of economic growth
and a reasonably efficient and focused social safety network.
Developing countries states are facing challenges that require a new style
of public action. For instance, the Brazilian state under President Lula is more
pro-active, for sure. Some market assumptions asserted during the 1990s
have been reoriented or even interrupted; industrial policies are back in the
public and private agenda, and the idea of having a national development
project gained momentum.
But at the same time, to mitigate social costs of markets and to take
necessary economic measures related to misguided regulation, and market
failures, the Brazilian state interferes only modestly, in a quasi-reactive style.
Actually, some market reforms could undermine the developmental and
crisis-solving potential of the state. For instance, the de facto autonomy of
the Brazilian Central Bank reveals loss of state power, previously concentrated
in the Ministry of Finance. By the same token, lowering export-import barriers
made the economy more open than in the 1990s.
Simultaneously, such political decisions reinforced the state social-
structuring power, since the importance of domestic institutions has been
enhanced, resulting in positive externalities to the economy and more legitimacy
to the government.
The changes happen at different levels and spheres, and there is a new
mix of synergies between public and private, translated by a set of new
institutional arrangements and policies, aimed at supporting a dialogue between
civil society, business sector, and the state.
In Brazil, differently from China, and even Russia, this stream flows from
democracy; that is why the Brazilian experience under Lula functions as a
barrier, a real political obstacle, to the temptations to return to the old days
that have marked negatively Latin America
4
.
Two tales could put the whole issue in a nutshell: (i) New multinational
companies, and (ii) Inequality reduction.
(i) New multinational companies. For years, statism has been
associated with ultimately unsuccessful, inward-oriented development
strategies, placing the notion of public intervention into question. The public
interventions at the foreign relations level diversified the Brazilian trade mix,
4
As insinuated by Chavez, for example.
GLAUCO ARBIX
256
its export-destinies and enlarged its markets. At the sectoral level, the state
intervened through taxes, and influenced credit, input, risk, information,
and distribution markets; the state also promoted economic reorientation
– along the lines of international comparative advantage – more rapidly
and at lower costs than market forces would achieve on their own. Recent
data released by the Institute for Applied Economic Research (IPEA,
2007) show that companies in Brazil remain strong competitors in global
markets in standardized agricultural and industrial goods.
However the data show also that a small, but important group of
Brazilian companies – responsible for more than 25% of industrial sales –
is participating in international markets via exports of medium and high-
technology goods. This group of highly competitive Brazilian firms
generates positive growth spillovers in terms of wage and productivity.
Contrary to expectations in Brazil about a regressive specialization in
terms of export products following liberalization (and Dutch disease), the
new competitive environment is unleashing new business perspectives
associated with innovation.
The Brazilian industrial elite’s ability to successfully compete in the
global economy is rooted in improved innovative capacity. In response to
international and domestic conditions, these innovative firms have changed
their business strategies and also their attitudes towards technology,
innovation and employment. That is, public action to promote specific
new exports sectors has been combined with a gradually declining and
sectorally differential tariff regime as part of an industrial policy aimed at
export orientation. In doing so, traditional and nontraditional exports
sectors can be supported while adjustment (not deindustrialization) in
manufacturing is promoted. The Brazilian companies, exposed to fierce
completion during the 1990s, and stimulated by public policies dealing
with credit, infrastructure etc., started imitating, mimicking, copying and,
at the same time, improving their knowledge-creation systems. It was not
a matter of public policy or of a more competitive climate per se, but a
new combination that nurtured a concrete transformation inside companies.
They have adjusted themselves to the new global competition, benefited
from government incentives, and developed innovative capacities,
processes, organizational forms, strategies, new-type networks, and
business models. In the process, they might be giving birth to a new
entrepreneurship in South America’s largest economy.
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
257
(ii) Inequality reduction. Brazilian recent growth is being felt in nearly
all parts of the economy. Most importantly, Brazil has fueled growth through
a combination of respect for markets, state intervention in the economy, and
targeted social programs, which are lifting millions out of the poverty line.
Historically famous for its unequal distribution of wealth, Brazil has shrunk
its income gap by six percentage points since 2001, more than any other
country in South America this decade, as recognized by the World Bank, and
in contrast to China, India, Russia and most OECD countries, where inequality
is raising.
GLAUCO ARBIX
258
While the top 10 percent in Brazil saw their cumulative income rise by
7% from 2001 to 2006, the bottom 10% shot up by 58% percent (Neri,
2009). The government has deepened and unified many existing social
programs, created new ones, and developed a microloans system across the
country.
Other programs, like Bolsa Família, transfer cash directly to millions of
poor Brazilians. Bolsa Família, which reaches more than 11 million families
nationwide (around 45 million people), with an annual budget of about US$ 2
billion, has been far more effective at raising per capita incomes than recent
increases in the minimum wage, which has risen 36 percent since 2003. Each
family is entitled to receiving the benefits only if their children go to school and
meet doctors regularly.
The bottom-up nature of such social programs has helped expand formal
and informal employment. Actually, the combination of different social policies
under low inflation growth – substantially helped by cash transfers and minimum
wage level improvement –sustains the current poverty and inequality reduction
virtuous cycle in Brazil. The number of people under the poverty line — about
US$ 2 per day — fell by 32% from 2004 to 2006.
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
259
Six preliminary conclusions
1. Under the acronym BRIC there are different economies, markets,
military and technological powers. Besides their traditional cultural and historical
differences, the four BRICs occasionally appear acting together in the world
scenario, but usually they compete for markets and international positions.
Beyond their contrasts, BRIC could survive only as a political artifact.
2. Emerging economies have been growing faster than developed countries
for several decades, and promoting a deep impact on developed countries´
inflation, interest rates, wages and profits. At the heart of this shift are the
BRIC countries, which have been propelled by a Chinese engine. Due to its
dimension and global weigh, what happens to China is crucial for the BRICs,
for all developing countries, and the world. Actually, China is the only emerging
country which is able to become a global power.
3. Maybe the global recession put a stop in their growth. However, there
are signs telling that it should happen only momentarily, as the downturn is
shrinking the richest economies, but only slowing the emergent giants.
Apparently, in both cases the “symbiotic relationship” between the U.S. and
China, christened Chimerica by Fergunson and Schularick, is about to end.
If the BRICs restore their growth rapidly, they could play an active political
role to push the global economy out of the crisis, and providing the biggest
repositioning of nations in the world arena since the industrial revolution.
4. Recent developing countries trajectory has raised many questions
about the conditions and state of the state. The old debate about the declining
state has shifted, as has the view that free-markets are simply expanding. No
doubt developing countries states have altered dramatically their real policy
capacities, institutions, and political powers. Since the 90´s, most emergent
economies, mainly in Latin America, are no longer seen to wear the straitjacket
suggested by neo-classic orthodoxy. Actually, almost everywhere, states have
never been really in retreat, though they have definitely changed.
5. There is a new political animal, asking for theory-building; it is different
both from the free-market friendly state proposed by the World Bank and
IMF in the last quarter of the 20th century, and the developmental state Asian
Tiger style. National states have responded to globalization pressures through
domestic institutions, and according to their interests, passions and values
historically structured. As some other developing countries, Brazil is renewing
institutions, promoting interactions between the public and private sector, and
GLAUCO ARBIX
260
expanding social safety networks. These processes go through – and are
enabled by – democracy.
6. The old-style developmental state is dead, but this does not mean
that the role of the state is declining. States have lost the ability to solely
define the necessary development policies, but they are capable of building
new institutions, molding the economic environment, and promoting new
interactions between the public and private sector. For instance, it is true
that the role of the states has increased in Latin America since 2000. But,
in an apparent paradox, their economies are much more open than before.
Larger states such as the BRIC countries play a new and important role in
facilitating market reforms, as pointed out by Weiss (2005: 352):
“globalization reinforces and augments the state’s centrality to social life”.
Social scientists need to elaborate more on these change processes. There is
a long road ahead for developing countries. Most of them, like Brazil, are strongly
committed to democracy, and are heavily investing in strengthening their social-
security networks, in order to alleviate poverty and reduce inequality. If the current
crisis permits, they might meet new and superior development syntheses.
References
De Negri João & Turchi, Lenita, Technological Innovation in Brazil and
Argentine Firms. IPEA: Brasília (2007).
Economist Intelligence Unit, BRICs Report (2008).
Ferguson, Niall, “Geopolitical Consequences of the Credit Crunch”. Posted
on September 21
th
at: http://www.niallferguson.com (2008).
Ferguson, Niall & Schularick, Moritz, “´Chimerica´ and global asset markets”.
International Finance, 10-3 (2007).
Neri, Marcelo, Center for Social Policies, Getúlio Vargas Foundation: Rio de
Janeiro (2009).
O’Neill, Jim, “Building Better Global Economic Brics”, Global Economics
Paper # 66. Goldman Sachs: November (2001).
BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM
261
Paes de Barros, Ricardo, Carvalho, M., Franco, S., and Mendonça, R., “A
dinâmica da desigualdade no Brasil e seus principais determinantes”. Rio de
Janeiro, Preliminary Version, mimeo (2009).
UNDP, World Income Inequality Database, WIID (2005).
Weiss, Linda. “The State-augmenting Effects of Globalisation”. New Political
Economy, Vol. 10, No. 3 (2005).
World Economic Outlook Database, IMF. April (2008).
Projections on BRICs performance in the global economy have been based
on Depec-Bradesco contribution.
263
Amazônia: os desafios de uma região complexa
e dinâmica
1
Adalberto Luis Val
2
“A bacia amazônica é uma dessas grandezas tão
grandiosas que ultrapassam as percepções do homem.”
Mário de Andrade, O turista aprendiz, 1927
A Amazônia continua sendo um desafio. Desafio de todas as ordens
para todos os países que têm uma parte desse bioma. Poderia ser diferente
nesse momento se tivéssemos acumulado informações adequadas que
permitissem intervenções seguras. Em função da dimensão gigantesca dos
recursos necessários, mesmo para uma primeira visita e, simultaneamente,
da escassez desses recursos, as ações para conhecer a região sempre foram
tímidas e incompatíveis com as suas necessidades. Isso foi um erro
estratégico pretérito para com a Ciência, Tecnologia e Inovação,
particularmente em decorrência da atual demanda por informações que
permitam o domínio e a soberania sobre os recursos naturais e sociais
existentes na região. Além disso, ressalte-se que muitas vezes a informação
existe, mas não é reconhecida globalmente. Não faltam exemplos gerais e
mesmo específicos que vão desde a eterna disputa sobre a invenção do
avião
3
até o patenteamento recente de produtos da flora e da fauna da
Amazônia, respectivamente. Na Amazônia há que se associar a isso, ainda,
1
Texto preparado para a III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional –
CNPEPI, O Brasil no mundo que vem aí, realizada na cidade do Rio de Janeiro nos dias 8 e 9 de
dezembro, sob os auspícios da Fundação Alexandre Gusmão e Instituto de Relações
Internacionais, Ministério de Relações Exteriores do Brasil.
2
Pesquisador e atual Diretor-Geral do INPA, e-mail: [email protected].br
3
CGEE (2008). Brasil: a economia do conhecimento. Brasília, DF.
ADALBERTO LUIS VA L
264
a eterna presença tênue do Estado, que fragiliza ainda mais o atendimento
às demandas da sociedade.
A presente abordagem sobre a Amazônia inclui três recortes que
entendemos ser de vital importância para a definição de alguns dos desafios
a serem prontamente enfrentados. O primeiro refere-se ao ambiente e seus
recursos naturais; o segundo envolve o dilema desenvolvimento e
desflorestamento e, o terceiro, o papel da Ciência e da Tecnologia como
caminho possível para processos de inclusão social com a manutenção da
floresta em pé. De pronto, antecipamos que o texto não se propõe a esgotar
o assunto tendo em vista a dimensão e a complexidade dos problemas.
O ambiente amazônico e seus recursos naturais
A questão de escala é importante no caso da Amazônia. O bioma
amazônico se estende por todos os países da parte norte da América do Sul,
ocupando uma área total de 7,7 milhões de quilômetros quadrados. Observe
que a Guiana Francesa faz parte desses números, o que do ponto de vista
econômico contrasta com os demais países, já que a França faz parte do
grupo dos países ricos. Essa área é maior do que a Europa continental (Figura
1). O Brasil detém a maior parte do bioma amazônico, cerca de 5,08 milhões
de quilômetros quadrados, aproximadamente 60% do território, avançando
sobre nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso,
Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima. Nestes estados vivem cerca de 23
milhões de brasileiros que geram algo em torno de 8% do PIB (Produto
Interno Bruto) do Brasil. Evidentemente, o desenvolvimento desses estados
é desigual tanto no que se refere à riqueza que geram quanto aos recursos
naturais que usam para gerá-la. Disso resulta uma pressão ambiental
diferenciada, com taxas de desmatamento significativas em alguns desses
estados. Essa dimensão tem sido raramente considerada nos planejamentos
diversos e tem profundos reflexos negativos na infra-estrutura relacionada à
comunicação, distribuição de energia, malha viária, saúde, ciência e tecnologia,
sistemas de proteção contra o desflorestamento, entre outros. Ainda que
com frações menores da Amazônia, os demais países amazônicos têm em
relação à floresta os mesmos desafios ambientais, sociais e econômicos e já
é devida, de longa data, uma agenda comum, que inclua compromissos
multilaterais em relação a Amazônia. Ainda que várias tentativas nesse sentido
tenham sido desencadeadas, a exemplo da OTCA (Organização do Tratado
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
265
de Cooperação Amazônica), nenhuma alcançou o sucesso inicialmente
previsto
4
.
Ao lado da escala espacial, há que se considerarem outros recortes
igualmente importantes para a Amazônia. Assim, os recortes temporal,
jurisdicional, institucional, de gestão, das redes sociais e de conhecimento,
como destacado por Cash e colaboradores em 2006 são igualmente
importantes
5
. Alguns desses recortes estão sendo comentados ao longo desse
texto.
O ambiente amazônico, ao mesmo tempo complexo e de relações bióticas
e abióticas muito delicadas, vem sendo construído ao longo dos tempos
geológicos e produzindo as bases para a evolução de uma flora e uma fauna,
ainda não dimensionadas e sem paralelo na parte do planeta Terra que
conhecemos. Estas flora e fauna, ao interagirem e co-existirem em ambientes
dinâmicos, dinamizam ainda mais os processos evolutivos, testando novas
formas adaptativas. As condições reinantes na Amazônia poderiam estar
rivalizadas, apenas, num dos outros três Eldorados, ainda igualmente
desconhecidos: a Antártica, o Fundo do Mar e o Espaço Sideral
6
.
A complexidade do ambiente amazônico vai desde os microelementos
presentes nos solos e nas águas até as diferentes espécies de plantas e animais
que se organizam de forma diferenciada nos diversos ambientes da Amazônia.
A área de captação hidrográfica da bacia estende-se desde 79
o
W (Rio
Chamaya, Peru) a 46
o
W (Rio Palma, Brasil), de 5
o
N (Rio Cotingo, Brasil) a
17
o
S (alto Araguaia, Brasil)
7
. Isto faz da Amazônia o maior e mais tropical
dos ecossistemas, comparável em tamanho apenas aos ecossistemas africanos.
Neste espaço as águas brancas, pretas e claras misturam-se e interagem com
o solo e a floresta local dando origem a uma infinidade de tipos de água
8
. A
realidade inclui, ainda, um caos de ilhas, um mosaico fluido de pequenos
4
Machado, J.A.C. (2009) Objetivos de uma política externa do Brasil em relação à Amazônia:
proposta para discussão. Presente volume.
5
Cash, D.W.; Adger, W.N.; Berkes, F.; Garden, P.; Lebel, L.; Olsson, P.; Pritchard, L. & Young,
O (2006) Scale and cross-scale dynamic: Governance and information in a Multilevel worold.
Ecology and Society, 11(2): 8.
6
A comparação com o Fundo do Mar e com a Antártica foi inicialmente feita por Bertha Becker
na Conferência Preparatória para a IIICBCTI, em Março de 2005. Durante a conferência, em
novembro de 2005, a comparação com o Espaço Sideral foi feita por Armando Dias Mendes.
7
Revisto por Val, A.L. & Almeida-Val, V.M.F. (1995) Fishes of the Amazon and their
environments. Physiological and biochemical features. Springer Verlag, Heidelberg.
8
Sioli, H. (1991). Amazônia. Fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais.
Vozes, Petrópolis.
ADALBERTO LUIS VA L
266
igarapés, rios desmedidos, pequenos e grandes lagos que resistem à oscilação
natural do nível de água da região (figura 2), árvores de todos os tamanhos e
peixes de todas as formas. A Amazônia, como bem assinalou Avé-Lallemant
em seu livro Rio Amazonas de 1859, é “um mar de florestas num oceano de
água doce”.
É equivocado antever a Amazônia como uma região homogênea no
espaço e estável no tempo. A região é dinâmica – não apresenta nenhum dia
igual ao outro. O sobe e desce das águas, o silêncio ensurdecedor que
evidencia em algumas áreas sons esquecidos, o cair das árvores, o pôr-do-
sol, o vento, a friagem, a chuva, a ilha que se move continuamente, as migrações
do homem e dos bichos, o abraço-da-morte, o peixe que “anda” de um lago
para outro, o peixe que morre afogado, o tubarão que confunde o tipo de
água, mas não sua imensidão, criam a cada dia, um desenho novo para o
Eldorado Amazônico
9
que demanda conhecimento para sua conservação e
desenvolvimento.
Sem dúvida, a água representa a maior riqueza natural desta região, não
só por ser ela própria diversa, mas também pela quantidade existente. A
bacia Amazônica lança no Oceano Atlântico cerca de 20% de toda a água
doce lançada nos Oceanos no planeta. Isso representa cerca de 18 bilhões
de metros cúbicos de água por dia ou o equivalente a 80% da água doce
superficial do Brasil. Contudo, o Rio Amazonas recebe 78% de seu volume
em território brasileiro, a partir de nascentes localizadas, em boa parte, nos
países vizinhos, o que impõe a necessidade de uma agenda comum para o
aproveitamento desse bem natural. Essa agenda é particularmente relevante
no caso da ampliação do número de reservatórios para a geração de energia
elétrica na Amazônia.
Ao lado da água, a biodiversidade existente na Amazônia se constitui num
patrimônio natural especialmente relevante. O conceito moderno de
biodiversidade inclui todos os níveis de variação natural, desde o nível molecular
até o nível das espécies, nos seus ambientes
10
. Entender como essa variabilidade
se dá requer entender como processos ecológicos, geológicos, biogeoquímicos
e evolutivos interagiram e determinaram as qualidades específicas de cada lugar,
em cada momento. A complexidade dessas interações é tamanha que
9
Val, A.L. (2000) Amazônia – da Pangeia à Biologia Molecular. Comciência. 10/Nov/2000.
http://www.comciencia.br
10
Val, A.L. & Almeida-Val, V.M.F. (2003) Biopirataria na Amazônia – a recorrência de uma
prática antiga. Comciência. 10/Abr/2003.
http://www.comciencia.br
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
267
possivelmente não tenha se repetido e, portanto, a diversidade biológica nas
suas vertentes diversas é endêmica e específica. É exatamente essa variação
natural que desperta interesse e se constitui num potencial inexplorado na
Amazônia. Essa variação, escondendo as estratégias usadas por cada um dos
organismos para responder aos desafios do meio com o qual interagem, reflete
a habilidade adaptativa desses organismos e permite desenhar ações para
intervenção ambiental bem como explorar novos produtos e processos de
importância social. Em números gerais, na Amazônia vivem quase metade das
aves conhecidas no planeta, mais de 1600 espécies, entre 10 e 15 milhões de
insetos, cerca de 1000 espécies de anfíbios e répteis, além de caranguejos,
camarões e um sem número de microrganismos. Contudo, este patrimônio está
duplamente não dimensionado: as plantas, os animais e os microrganismos
existentes na Amazônia não são integralmente conhecidos da ciência e as
tentativas todas para dar um valor à biodiversidade têm esbarrado na falta de
informações acerca de suas aplicações.
Por exemplo, no que se refere aos peixes, valendo o paralelo para outros
grupos de organismos, são mais de três mil espécies descritas, com
representantes desde os grupos taxonômicos mais primitivos até os mais
recentes. Em relação à ictiofauna de água doce da América do Sul, a Amazônia
apresenta pelos menos 75% do total de espécies conhecidas. Em apenas um
dos inúmeros rios da região, como o Negro, o Madeira ou o Trombetas, não
menos que 400 espécies de peixes são descritas, número esse superior ao
descrito para todos os rios da Europa. Apesar dessa imensa diversidade, a
pesca amazônica está centrada num número restrito de espécies – não mais
que 20 espécies são responsáveis por mais de 80% de toda a produção
pesqueira. Isso provoca problemas graves de manejo, podendo desestruturar
as populações naturais ao levar os estoques naturais mais visados à depleção
11
,
particularmente nesta região em que o peixe se constitui na principal fonte de
proteína. Do ponto de vista econômico-social, merece destaque também a
produção de peixes ornamentais em vários subsistemas amazônicos, com
destaque, na Amazônia brasileira para a bacia do Rio Negro. Nesta bacia
sobressai a exploração de duas espécies: o cardinal, Paracheirodon axelrodi,
e o acará-disco, Symphysodon spp (figura 3). O cardinal se notabiliza pela
grande quantidade explorada: são mais de 20 milhões de exemplares por ano.
11
Santos, G.M.; Ferreira, E.J. & Val, A.L. (2008) Amazônia, o universo dos peixes. Scientific
American, Amazônia, 64-71.
ADALBERTO LUIS VA L
268
Contudo, a biologia dos peixes da Amazônia inclui dois aspectos que
interessa à pauta de discussões com outros parceiros interessados na
região ou que compartilham o bioma: a relação que mantêm com a floresta
e as migrações de longa distância. Os peixes amazônicos mantêm estreita
relação com a floresta, especialmente na época da cheia, quando as águas
deixam o leito principal do rio e alcançam as terras mais baixas ou mesmo
mais distantes, onde a floresta inundada provê parte do alimento. As
várzeas dos rios de água branca e os igapós dos rios de água preta são
ambientes vitais para a vida dos peixes amazônicos. O desmatamento
que é particularmente danoso quando ocorre na cabeceira dos rios, resulta
na destruição desses ambientes, causando desequilíbrios importantes nas
populações de peixes da Amazônia. Além disso, o desmatamento resulta
ainda numa maior exposição dos animais aquáticos à radiação ultravioleta,
impondo-lhes os efeitos já amplamente conhecidos tanto no nível genético
quanto morfológico. As migrações de longa distância dos peixes
amazônicos são consideradas as mais extensas entre os peixes de água
doce do mundo. Elas são realizadas pelos grandes bagres da região, como
a dourada, Brachyplatystoma rousseauxii (figura 3), e a piramutaba,
Brachyplatystoma vaillantii que desovam nas cabeceiras dos grandes
rios nos sopés andinos, de onde os ovos e larvas são carreados rio abaixo
até a foz do Amazonas. No estuário as formas jovens se desenvolvem e
repetem o ciclo de migração rio acima com deslocamentos superiores a
três mil quilômetros. Assim, qualquer distúrbio na foz do Amazonas pode
ter reflexos ampliados até o sopé andino e vice-versa
12
. Da mesma forma,
qualquer restrição física à movimentação desses animais se refletirá na
dinâmica populacional dessas espécies de peixes.
É importante, ainda neste quesito, lembrar que na Amazônia vive uma
população humana igualmente diversificada e grande. São cerca de 23 milhões
de pessoas que vivem apenas na Amazônia brasileira, boa parte nos principais
centros urbanos. Portanto, a Amazônia não é uma região só de bichos e
plantas; é também urbana, com os mesmos desafios das grandes metrópoles,
já que inclui pelo menos três cidades com mais de um milhão de habitantes.
Todas as discussões sobre conservação ambiental devem incluir a presença
humana, suas necessidades e anseios.
12
Santos, G.M.; Ferreira, E.J. & Val, A.L. (2008) Amazônia, o universo dos peixes. Scientific
American, Amazônia, 64-71.
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
269
Desenvolvimento & Desmatamento
A Amazônia ocupa posição estratégica para o desenvolvimento dos
países do norte da América do Sul, particularmente em função de seu imenso
patrimônio natural, compartilhado por vários países. Essa condição coloca
os países dessa região em condições similares para discutir os rumos para o
desenvolvimento e conservação desse patrimônio, condição que contrasta
com aquelas existentes entre países que compõem outros blocos econômicos.
Sem dúvida, a Amazônia ocupa posição central para o desenvolvimento da
região, ainda que a dicotomia “desenvolvimento versus conservação” apareça
nesse caso de forma maiúscula. Isso se explicita pela clara necessidade de
ampliação da oferta de energia elétrica, de integração viária entre os centros
urbanos dos países que compõem a região, de profunda reforma do sistema
de comunicação, de sistemas de transporte de gás e petróleo, entre outros.
De novo, a escala é fundamental e, no caso em tela, não só a dimensão
geográfica é importante, mas também a escala temporal, já que a
sustentabilidade se correlaciona com o tempo.
O bioma amazônico abriga uma extensa população que, com raras
exceções guarda estreita relação com o meio ambiente e dele depende para
a geração de recursos para sua sobrevivência. Entre as exceções destaca-se
a Zona Franca de Manaus, que baseada em vários ramos industriais, emprega
um considerável número de pessoas e tem reduzida dependência de recursos
naturais da Amazônia. De qualquer forma, há um grande desequilíbrio entre a
qualidade de vida da população amazônica, senso amplo, e aquela que vive
nos centros desenvolvidos dos diversos países amazônicos. No caso brasileiro,
isso se expressa pela reduzida renda per capita dos brasileiros que vivem na
região, que é cerca de 40% menor. Esse desequilíbrio resulta numa pressão
sobre a floresta e é, em boa parte, razão dos muitos conflitos existentes. Isto
é, nossa capacidade de monitoramento do desmatamento, valendo-se de
tecnologia moderna e associada a uma rigorosa e moderna legislação ambiental
que impõe severas restrições às ações que resultam em degradação ambiental,
contrasta com a inexistência simultânea de ações em dimensões adequadas
voltadas para a inclusão social e geração de renda.
Essa escala sócio-econômica é essencial. Enquanto não houver
alternativas, as explicações para a degradação ambiental virão de números
sólidos: a Amazônia legal já é responsável pela produção de 20% da soja
nacional, tem 11% do rebanho bovino, 13,5% da produção mineral e é
ADALBERTO LUIS VA L
270
responsável por aproximadamente 8% do PIB (Produto Interno Bruto)
brasileiro. O custo ambiental desses números está refletido nos cerca de 15%
de alterações ambientais em ecossistemas da Amazônia e na ausência de
benefícios para o povo da região, que concorre com o Nordeste brasileiro
para os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)
13
.
A produção de soja, de carne e de minérios, para se ater as três
commodities relevantes para a Amazônia, ocorre, em boa parte, no arco do
desmatamento, ou seja, no sul da Amazônia, envolvendo principalmente os
estados do Pará e do Mato Grosso. Isso corrobora o que aprendemos para
os demais ecossistemas do mundo. A Mata Atlântica deu lugar, por exemplo,
às condições para geração da maior parte do PIB nacional e à instalação das
cidades; as florestas alemãs, ao posicionamento da Alemanha entre os países
desenvolvidos, e assim por diante. A rigor, não há nenhum país desenvolvido
que tenha mantido seus recursos naturais intactos. Também, não há nenhum
país tropical desenvolvido. Portanto, os modelos até aqui existentes permitem
inferir uma ampla incompatibilidade entre desenvolvimento e conservação de
floresta. Então, quais os caminhos possíveis que compatibilizam
desenvolvimento e a manutenção da floresta em pé? Estamos muito longe de
uma resposta razoável para esta questão, mas podemos nos permitir algumas
inflexões.
Em primeiro lugar, precisamos rever o posicionamento global em relação
ao valor da floresta em pé. Se a floresta em pé representa sustentabilidade, é
evidente que precisamos definir valores. O atual modelo político internacional
pode até propor e impor pressões para que a Amazônia seja preservada,
mas se isso representa um serviço internacional, deve ter seu custo
dimensionado, particularmente pelo fato de a Amazônia ser um ambiente que
abriga, como mencionado, uma extensa população humana que depende da
floresta. Também, e em segundo lugar, não há evidências de que os povos da
Amazônia queiram viver de tais serviços ambientais. Na realidade, será
necessário desenvolver e implantar sistemas produtivos limpos que permitam
a inclusão social com geração de renda e manutenção da floresta em pé. Sem
dúvida, este é o desafio que está posto para a Ciência, Tecnologia e Inovação.
Não será necessário acabar com a pecuária ou a plantação de soja na
Amazônia. O que será necessário é desenvolver mecanismos para ampliar a
13
Clement, C.R.; Val, A.L. & Oliveira, J.A. (2003) O desafio do desenvolvimento sustentável
na Amazônia. T&C Amazônia, 1(3): 21-32.
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
271
produção nas áreas degradadas e impor severas limitações para o avanço
dessas atividades econômicas sobre áreas novas de floresta nativa. Ainda, o
uso da terra deve ser disciplinado e socialmente justo, de tal forma a reduzir
o conflito velado que decorre da existência de grandes propriedades privadas
em conjunto com uma imensa população sem espaço para sobreviver. E
aqui, mais uma vez a falta de informações facilitou o adiamento das ações; só
muito recentemente as questões de uso da terra, a diversidade cultural, as
questões antropológicas, entre outras, passaram a fazer parte da agenda da
região, mesmo assim de forma tímida.
Algumas tecnologias novas podem ter um papel decisivo neste conflito
“desenvolvimento versus desmatamento”. A biotecnologia emerge como uma
ferramenta de destaque. Não há dúvidas que a interação de plantas e animais
com o ambiente igualmente diverso existente na Amazônia ao longo de milhões
de anos resultou num conjunto de informações de grande relevância para o
homem. Estas informações estão escondidas nos milhares e milhares de
genomas desses organismos da Amazônia. A análise da expressão de genes
induzida por condições ambientais específicas revela que estamos tocando
na ponta de um iceberg de oportunidades. São genes envolvidos com a
produção de altos níveis de vitamina C em algumas espécies de frutos, com o
rápido crescimento de algumas espécies de peixes, com a resistência de peixes
a fungos e vírus; com a reprodução de espécies nativas de peixes de
importância comercial, com o ciclo de vida de algumas doenças amazônicas,
com processos de resistência a condições de baixa disponibilidade de oxigênio
em algumas espécies de plantas, entre outros. Essas informações precisam ir
da bancada do laboratório para as fábricas, as chamadas bioindústrias.
Algumas iniciativas poderão acelerar esse processo e ajudar a gerar as bases
para a redução dicotômica “desenvolvimento versus desmatamento”. Entre
elas destacamos o Centro de Biotecnologia da Amazônia, a Rede Bionorte e
os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, estes recém-criados pelo
Governo brasileiro.
Sem dúvida, outras ações são igualmente importantes e ajudariam a reduzir
a pressão sobre a floresta e, por conseguinte, os conflitos na região. Estão
em voga: a produção manejada de madeira, o ecoturismo, os produtos não
madeireiros, o sequestro de carbono e outros serviços ecológicos. Com
exceção da madeira e dos serviços ecológicos, nenhum outro tem escala
para atender um mercado mundial. E mesmo assim, no que se refere à madeira,
é preciso urgentemente organizar o processo produtivo, já que não há dúvida
ADALBERTO LUIS VA L
272
que o manejo tradicional não é economicamente sustentável na Amazônia. É
necessária, também, uma conscientização no sentido de abrir mercados apenas
para a madeira manejada, já que uma parte considerável da madeira hoje
comercializada vem de atividades espúrias e desorganizadas
14
. No que se
refere aos serviços ambientais, um novo direcionamento merece atenção: o
REDD (Reduced Emissions from Deforestation and Degradation). A redução
dos níveis de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e da
degradação florestal é, definitivamente, um assunto de grande relevância
15
.
Contudo, é necessário que os recursos do REDD sejam investidos no
desenvolvimento e reestruturação do setor madeireiro de tal forma a evitar
ações predatórias e valorizar ações sustentáveis, com inclusão social.
O Ecoturismo é uma opção muito razoável porque a “contemplação
da natureza” é de longa data uma das mais sustentáveis atividades
econômicas e pode ser importante para gerar condições satisfatórias para
inclusão social. Entretanto, é necessário um rápido processo de
organização dessa área, com treinamento de pessoal para atividades de
conservação e interação com os visitantes, em sua maior parte, vindos de
países desenvolvidos, com a capacitação de pessoal para a gestão de
reservas ambientais, com a melhoria da infra-estrutura, entre outros. Talvez
parte dos recursos do REDD pudesse ser aplicada nessas ações. Além
disso, é necessário ter-se em conta que tanto o Ecoturismo quanto as
demais opções seriam viáveis, em tese, nos centros mais desenvolvidos e
com uma população ativa em número significante, já que boa parte dos
turistas, os consumidores e os agentes de negócios buscariam estes
centros. Alguns centros de mineração, os centros produtores de peixes
ornamentais, algumas cidades fronteiriças, Alter-do-Chão, entre outros
são exceções.
Enfim, estamos muito longe da posse de um conjunto de ações que permita
contornar a dicotomia “Desmatamento versus Desenvolvimento”. Por todos
os ângulos que analisemos essa questão deparamos com dois aspectos
relevantes: i) faltam informações científicas e tecnológicas robustas que
permitam intervenções seguras; e ii) as estratégias dos jogadores não são
inteiramente conhecidas já que muitas delas têm significação econômica.
14
Val, A.L. & Clement, C. (2009) A future Amazonia. Live Better Magazine, in press.
15
Higuchi, N. & Soares, V. (2009) Carbon Dynamics of Amazon Forests. Proposal to the
Japan-Brazil International Scientific Collaboration.
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
273
O papel da Ciência e da Tecnologia
Transformar o capital natural da Amazônia em ganhos sociais, nestes
incluídos, evidentemente, os ganhos econômicos e, ao mesmo tempo, proteger
os sistemas de suporte à vida na Terra, é um desafio que requer ações
integradas de governos locais, regionais, nacionais e internacionais, de
sociedades conscientizadas, de empresários e dos cientistas e tecnologistas.
O papel da Ciência e Tecnologia se tornou muito mais evidente nessa última
década que assistiu movimentos sociais efetivos para que se encontrem
caminhos seguros em direção a sustentabilidade das ações que envolvem o
meio ambiente. O ponto de partida para esse movimento se deu a partir da
constatação de que há limites definidos para o desenvolvimento, que são
impostos pelos limites ambientais do planeta
16
. Isso envolve mudanças de
costumes e, mais desafiador, envolve mudanças de costumes das parcelas
que mais se valem dos recursos naturais. Por isso, acredita-se que “ciência e
tecnologia (C&T) devem desempenhar um papel mais central para o
desenvolvimento sustentável. Porém, pouco conhecimento sistemático existe
sobre como criar instituições para efetivamente utilizar C&T para a
sustentabilidade”
17
.
No caso amazônico, ainda que um volume considerável de informações
sobre a região esteja disponível, é necessário ampliar os esforços para além
da descrição da biodiversidade. É necessário aprender com ela, é necessário
entender a dinâmica da região em relação ao ambiente e seus diversos
componentes, incluindo o homem e suas demandas. Contudo, o uso do que
já conhecemos sobre a região está limitado pela tênue interação e cooperação
entre atores sociais, isto é, da socialização da informação em níveis adequados
e compatíveis com as dimensões da região.
Os dados existentes mostram claramente que há uma relação direta entre
o PIB e o número de doutores fixados em uma dada região. Isto é de certa
forma previsível, já que a geração de renda depende primariamente de
informações seguras. Nos nove estados amazônicos juntos há pouco mais
16
Clark, A.C. & Dickson, N.M. (2003) Sustainability science: the emerging research program.
Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 100 (14);
8059-8061.
17
Cash, D.W.; Clark, W.C.; Alcock, F.; Dickson, N.M.; Eckley, N.; Guston, D.; Jäger, J. &
Mitchell, R. (2003) Knowledge systems for sustainable development. Proceedings of the
National Academy of Sciences of the United States of America, 100 (14); 8086-8091.
ADALBERTO LUIS VA L
274
que três mil pesquisadores com doutorado nas instituições de ensino pesquisa.
Boa parte desses profissionais está envolvida com atividades administrativas,
com reduzida dedicação às atividades de pesquisas e treinamento de novos
mestres e doutores. A consequência disso é a baixa capacidade da região em
alavancar investimentos mais significativos e duradouros para a região. Em
termos gerais, os investimentos das agências federais na Amazônia estão
limitados a aproximadamente 2,5% do total de investimentos nessa esfera
setorial no país.
Diversas iniciativas para o fomento da Ciência e Tecnologia (C&T) na
Amazônia foram pensadas e, em parte colocadas em prática, nos últimos 30
anos
18
. Programas, planos e projetos foram concebidos e inseridos numa
agenda amazônica sempre fragmentada. Entre eles, e para citar apenas alguns,
temos: o Programa do Trópico Úmido – PTU, o documento da Comissão
Coordenadora Regional de Pesquisas na Amazônia – CORPAM, o Programa
Norte de Pesquisa e Pós-Graduação – PNOPG, o Programa Norte de
Interiorização – PNI, o Protocolo de Integração das Universidades da
Amazônia Legal – PIUAL, e o fórum das Universidades da Amazônia –
UNAMAZ. É consenso que todos esses instrumentos focaram, de alguma
forma, nos esforços de criação de uma base institucional mais forte com
preocupações voltadas para a identificação de prioridades em C&T, acesso
aos financiamentos e qualificação de pessoal. Esses esforços são caracterizados
por uma fase de expansão, seguida de estagnação e declínio. Não houve até
aqui ações de longo prazo que tenham criado as bases para a auto-suficiência
da região para produzir em suas instituições a capacitação de pessoal pós-
graduado necessário para atender a demanda atual por informações sobre
seus recursos naturais. Contudo, é necessário reconhecer que está em curso
um alinhamento político importante envolvendo diversos ministérios, agências
(CNPq, CAPES e FINEP) e governos estaduais, estes por meio de suas
Fundações de Amparo à Pesquisa, que tem um forte conteúdo de capacitação,
um claro reconhecimento de que a intervenção na Amazônia requer
informações. A seguir, é preciso desenhar mecanismos para fixar o pessoal
treinado nas instituições amazônicas, dando-lhe as condições para que
imediatamente possam ampliar a capacidade da região para conhecer-se.
Não há dúvida quanto ao papel da Ciência & Tecnologia para gerar as
informações e trabalhar a sua socialização, já que a informação é a única
18
Mecanismos Estratégicos de C&T na Amazônia - MECTA, 2005
AMAZÔNIA: OS DESAFIOS DE UMA REGIÃO COMPLEXA E DINÂMICA
275
forma segura que compatibiliza a almejada conservação ambiental com a
inclusão social e a geração de renda. Assim, a Ciência e a Tecnologia têm,
também, um papel importante para a ampliação da soberania de cada um
dos países que detêm parte do bioma amazônico.
Em síntese, ao mesmo tempo em que a Amazônia está sob variadas
pressões antrópicas locais, é vulnerável aos processos de mudanças climáticas
de dimensões globais que está em curso. A mitigação desses efeitos depende
de ações baseadas em informações robustas, planejadas e executadas de
acordo com as dimensões da Amazônia, reconhecendo sempre que na floresta
há cidades, grandes e pequenas, e um grande número de cidadãos que têm
demandas e buscam condições de vida mais adequadas. A floresta não é um
vazio social.
Figura 1. Comparação da área da Amazônia brasileira com a Europa
ocidental. Extraído de http://www.amazonia.org.br
ADALBERTO LUIS VA L
276
Figura 2. Pulso regular dos níveis de água do Rio Negro durante os
anos 90. Fonte: Schöngart, J. & Junk, W. J (2007), Journal of
Hydrology 335, 124– 132.
Figure 3. Peixes de importância comercial da Amazônia. (a) acará-
disco, Symphysodon spp, peixe ornamental da região de Barcelos, AM,
foto A. L. Val; (b) piramutaba, Brachyplatystoma rousseauxii, com
tamanho máximo de 1500 mm, fonte: natureplanet.blogspot.com/2007/
10/manifesto.html
277
Amazônia: políticas e estratégias
Adherbal Meira Mattos
*
Introdução
Os elementos determinantes do futuro da Amazônia compreendem, inter
alia, o sistema ecológico e a potencialidade de recursos naturais, já que a
Amazônia detém a maior reserva de recursos naturais do mundo; a
continentalidade, em face da enorme dimensão territorial da Região e também
a desarticulação e reorganização do espaço amazônico, com base na
constituição de subespaços diferenciados e determinados eixos dinâmicos.
Entre estes, podem ser citados o Núcleo Eletro-Eletrônico de Manaus, o
Triângulo de Carajás, compreendendo projetos no setor mínero-metalúrgico;
o Polo Agro-Industrial de Rondônia, que aglutina pequenos agricultores e
colonos; e o Eixo Agropecuário do Centro-Oeste e Sudeste Amazônico, no
tocante à agricultura e à pecuária.
Outros determinantes do futuro da Área são a limitação da infra-estrutura
econômica e da capacidade científico-tecnológica, principalmente, quanto a
transportes, comunicações e energia. A geopolítica e a estratégia nacional
(segurança), o que exige a revisão do Tratado de Cooperação Amazônica a
despeito da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e
a real implantação do Projeto Calha Norte e do SIVAM/SIPAM. A
*
Titular de Direito Internacional da UFPa.
ADHERBAL MEIRA MATTOS
278
heterogeneidade e complexidade sócio-cultural da Região em termos de
produção, valores e hábitos. Conflitos sociais decorrentes de problemas
migratórios e da posse da terra, etc.
Os atores (patrocinadores) de um Cenário Desejado (Possível), para a
Área, são exógenos e endógenos. Entre os exógenos, temos os grupos
multinacionais e os grupos empresariais nacionais urbanos e rurais. Os agentes
financeiros internacionais. O empresariado do setor financeiro privado
(serviços bancários, etc.). Instituições e movimentos religiosos, ligados à
estrutura fundiária. Movimentos ecológicos nacionais e internacionais,
governamentais e não governamentais (ONGs), Instituições Internacionais
de preservação e de conservação ambiental, inclusive, Institutos de Pesquisa
em alta tecnologia, Instituições Científicas Nacionais, Organismos
Internacionais (ONU, através da UNESCO, PNUD e PNUMA), além dos
que atuam em pontos centrais, de apoio, de bloqueio e de vigilância, tanto no
plano logístico, como no plano de combate. Entre os endógenos, podem ser
incluídos o grande e o médio empresariado urbano e rural. O pequeno produtor
rural. A tecnoburocracia regional. O pequeno empresário urbano.
Trabalhadores rurais e urbanos. Profissionais liberais, etc.
Cenário Desejado
O Cenário Desejado baseia-se em quatro grandes hipóteses: avanço
acelerado de ciência e tecnologia em escala internacional, com destaque para
a biotecnologia; Retomada do crescimento da economia brasileira; Reequilíbrio
do Estado, com base na recuperação da capacidade de investimento, e
crescente consciência ecológica mundial.
Nota-se, paralelamente, que o sucesso do plano depende da preservação
e da conservação do potencial de recursos naturais renováveis da
biodiversidade da Amazônia e da capacidade política dos atores regionais
articularem alianças com vistas a grandes decisões sobre o futuro da Área.
No contexto desse cenário, podemos incluir os seguintes itens:
• Modelo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente auto-
sustentado.
• Zoneamento econômico-ecológico, compreendendo áreas demarcadas
(atividade extrativista, empresas, garimpeiros, indígenas e reservas ecológicas);
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
279
exploração mineral controlada pelo Estado; exploração mineral, através,
preferencialmente, do capital nacional; e tecnologias que não degradem a
natureza.
Amplo sistema de comercialização, para o escoamento da produção
regional dentro e fora do país. O Pacto Amazônico jamais atingiu tal
desideratum, pois não ensejou a criação de um MERCONORTE, detendo-
se, apenas, num pequeno comércio a varejo de produtos locais.
Articulação da Amazônia com o resto do País, gerando maior equilíbrio
econômico-social, mudando o quadro da Região de mera exportadora de
matérias-primas e de importadora de produtos industrializados.
• Ocupação demográfica, através de brasileiros, de forma planejada,
gerando uma intensa rede de serviços sociais (educação, saúde, saneamento,
etc.).
• Exploração dos recursos naturais em harmonia com o ecossistema,
com vistas à preservação e à conservação ambiental. Isto implica na não-
depredação das florestas; na recuperação das áreas devastadas ou em
processo de devastação; na obrigatoriedade de estudos de impactos
ambientais; em pesquisas tecnológicas para articular desenvolvimento com
meio ambiente; num sistema de divulgação de conhecimento científico; na
diversificação da agricultura; no desenvolvimento da agroindústria; na
modernização da pecuária; e em novas técnicas de extrativismo e de pesca
artesanal, além da exploração mineral racional.
• Parque industrial dinâmico, com o aproveitamento de matérias-primas
regionais, adotando modernas tecnologias, sem agressão ao meio ambiente,
gerando emprego e renda, desenvolvendo o comércio e um sistema de
transporte multimodal, através de hidrelétricas sem impacto ambiental.
O Cenário Normativo (ou Desejado) é um cenário estratégico, um projeto
articulado de Amazônia futura e o desejo viável para a Amazônia. Um desejo
tecnicamente plausível e politicamente sustentável pelos atores da Região, a
qual, no ano 2010 – segundo os Macrocenários elaborados pela então atuante
ex-SUDAM – será definida como uma sociedade coerente com a sua base
sócio-cultural e ecológica, moderna e aberta mundialmente, com um espaço
garantido de assimilação dos avanços da ciência e tecnologia mundiais para
o seu próprio desenvolvimento. Sua trajetória denota positivas modificações
nas variáveis População, PIB, Processo Tecnológico, Exploração de Recursos
ADHERBAL MEIRA MATTOS
280
Naturais e Controle Ambiental, Situação Indígena, Situação Social e Qualidade
do Meio Ambiente. Por exemplo, quanto à situação indígena, passando-se
de conflitos para a autonomia das nações indígenas, e quanto ao processo
tecnológico, passando-se de uma modesta transferência para uma elevada
transferência de tecnologia (de produção e de projetos), com alta capacitação
e inovação endógena seletiva.
O Cenário Normativo (Desejável) exige ainda, justa distribuição de renda,
um sistema de saúde descentralizado, um sistema de educação ampliado,
novos pólos agropecuários, desenvolvimento integrado e, logicamente,
segurança. Isto envolve aumento de emprego, melhores salários, maior renda
per capita, erradicação do analfabetismo, ampliação do ensino
profissionalizante, universalização do ensino básico, unidades sanitárias móveis
no interior, saneamento na cidade e no campo, superação de deficits
habitacionais, planejamento, coordenação, controle, cooperação e integração.
Enfatizando a atividade de mineração, o mapeamento do subsolo da
Amazônia revela importantes Projetos de diversas substâncias minerais: Cia.
Brasileira de Bauxita (bauxita refratária); Caulim da Amazônia (caulim);
Mineração Rio do Norte (bauxita); Salobo Metais (cobre); Ferro Carajás
(ferro); Itamaguari (gipsita); Rio Capim (caulim); Calcário de Aveiro (calcário
para cimento e calcário dolomítico); Manganês/Carajás (manganês);
Mineração Sta. Elina (ouro); etc. no plano da exploração mineral, a rápida
expansão do garimpo trouxe, todavia, conseqüências negativas, tais como,
degradação ambiental; conflitos com as populações indígenas e, no caso da
mineração organizada, condições precárias de trabalho; descaminho do ouro;
depredação dos depósitos; emissão de mercúrio para o meio ambiente;
assoreamento dos rios, lagos e igarapés, etc.
A maior degradação, porém, é a que ocorre no meio social, pois o
garimpo não tem relação de emprego, não tem moradia, não tem saneamento
básico, está sujeito a toda a espécie de doenças, com destaque para a
contaminação mercurial. Na indústria extrativa mineral (mineração organizada)
as agressões sociais são menores, em face do controle das leis trabalhistas.
O problema se agrava pelos impactos ambientais causados pela exploração
madeireira, tais como na qualidade do solo, na alteração na flora, na fauna e
na socioeconomia, com destaque para os conflitos com as populações
indígenas.
Daí emana a necessidade de novas tecnologias para permitir a exploração
de recursos naturais, sem agressão ao meio ambiente, que compreendem
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
281
fatores endógenos potencializadores da penetração do capital na Região
(minérios, terra, água, gás natural, petróleo e toda a biodiversidade tornam a
Amazônia disponível para a capital); o sistema produtivo regional gerador de
economias (exploração de recursos já conhecidos e descobertas de novas
reservas gerando um novo potencial de recursos); e necessidade de novas
tecnologias e de um novo modelo de desenvolvimento.
A Amazônia carece de incorporação tecnológica ao seu processo
produtivo, contando o sistema regional de C&T com poucas instituições
voltadas a pesquisas. Urge um novo modelo de desenvolvimento com
mudanças na estrutura produtiva, no padrão tecnológico e na distribuição
espacial e social dos custos e benefícios do crescimento econômico, para
promover o desenvolvimento regional, com equidade social e conservação
dos recursos naturais. A estratégia adotada combina a vocação natural da
Região com as mais avançadas fronteiras do conhecimento, regulando o acesso
internacional ao banco genético da Área, através de um sistema de controle
das pesquisas sobre a biodiversidade amazônica, dominando os
conhecimentos gerados na própria Região, utilizando-os, produtivamente,
para transformar, na própria Região, o material biótico em produtos de alto
valor agregado e elevada demanda internacional.
Daí, a necessidade de um programa coerente de pesquisa em C & T e
de extensão de serviço à comunicação, para o que é indispensável a
participação das Universidades da Região. Os reflexos sociais dessa parceria
são positivos, não apenas para prestar contas à sociedade dos investimentos
realizados, mas, também, para servir de orientação na correção de distorções
e na definição de novas estratégias de atuação. Além disso, novas profissões
técnicas surgirão, com larga oferta de emprego, inaugurando um sistema realista
de ensino para o desenvolvimento.
Pressões e Programas
A Amazônia tem sido objeto de inúmeras pressões internacionais, a
exemplo do Instituto da Hileia Amazônica/48 ou do Projeto dos Grandes
Lagos/60, do Hudson Institute. O Tratado de Cooperação Amazônica/78
normatizou os aspectos materiais, formais e organizacionais da Panamazônica
– zelando pelo meio ambiente, soberania e desenvolvimento – mas não
conseguiu desenvolver uma estratégia efetiva para a Região, como um todo
ou para a Amazônia Brasileira, o que ora integra os objetivos da OTCA. O
ADHERBAL MEIRA MATTOS
282
Projeto Calha Norte/85 procurou complementar, como norma nacional, aquele
pacto intra-regional, analisando os fatores adversos (vazio demográfico,
contrabando), as necessidades fundamentais (marcos limítrofes, política
indigenista), os espaços diferenciados (Faixa de Fronteira, Núcleo Regional
e Zonas Ribeirinhas) e projetos especiais (consulados) da Amazônia Brasileira.
Também não atingiu seus objetivos fundamentais. Falta, também, a total
implantação do SIVAM/SIPAM. E as pressões internacionais continuam,
vindas do BIRD, do BID, de ONGs, de Instituições, de países integrantes
do G-7 e de conferências e convenções internacionais, procurando atingir a
soberania nacional através de noções como a de patrimônio comum da
humanidade para a Amazônia ou das noções de soberania relativa ou soberania
repartida.
Diversos Programas foram elaborados, sem chegar, contudo, a uma real
efetivação, sendo que, muitos, não saíram, sequer, do papel: Programa
Regional de Reforma Agrária; Programa Regional de Levantamentos Básicos;
Programa de Apoio ao Desenvolvimento Urbano da Amazônia; Programa
de Apoio às Migrações Internas e Programa Regional de Crédito Rural e
Industrial. Entre os Programas Sub-Regionais: Programa de Proteção às
Comunidade Indígenas e Preservação do Meio Ambiente na Área de
influência da BR-364 (Porto Velho-Rio Branco); Programa de Apoio ao
Estado do Acre (PLANACRE); Programa de Desenvolvimento da Zona
Franca de Manaus; Programa de Desenvolvimento do Vale do Rio Araguari;
e Programa Minero-Metalúrgico de Roraima.
Entre os Programas inter-regionais, temos: Programa de Desenvolvimento
Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins, Programa Grande Carajás,
Programa de Pólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia. Programa
Nossa Natureza, destinado a rever a legislação ambiental do País, a criar
novas reservas florestais, a rever incentivos fiscais e a estabelecer um plano
de educação ambiental. Programa FLORAM – de caráter mais amplo –
tratando do reflorestamento para reversão do efeito estufa e do uso energético
da madeira, Programa de Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE), para a
proteção ao meio ambiente e redução das diferenças regionais do País.
Operação Amazônia, para controle de queimadas e do desmatamento,
Operação Yanomami-Selva Livre, sobre as populações indígenas, suas terras,
culturas e condições sanitárias e atualmente, o PAS/2004.
A antiga SUDAM traçou uma estratégia de desenvolvimento regional
nos “Macrocenários da Amazônia – 2010”, através de uma Política Regional,
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
283
fortalecimento dos órgãos de planejamento e desenvolvimento regional,
articulação dos instrumentos financeiros existentes e atração de novos
investimentos, de uma Política Ambiental (ZEE, novas reservas biológicas
e extrativistas e controle do desmatamento) e de uma Política de Ciência e
Tecnologia (centros de pesquisa e recursos humanos). Tal estratégia continua
atual e capaz de criar um Plano de Desenvolvimento, através de Diretrizes
Globais (preservação e conservação do meio ambiente, integração nacional
e crescimento econômico, de políticas Centrais (ambiental, espacial e sócio-
antropológica) e de Programas Prioritários (emprego, investimentos e elevação
da renda). Trata-se de Projetos Estratégicos que envolvem regulamentação
ambiental, desenvolvimento científico e tecnológico, infra-estrutura econômica
e setores produtivos, exigindo gestão ambiental nacional, hidrovias, portos
fluviais, estradas (Br-163, Br-364, Br-317 e Br-369), matrizes energéticas,
hidrelétricas e termoelétricas e turismo ecológico.
Tais Programas incluem desenvolvimento global – principalmente hoje,
no atual mundo globalizado – em Áreas-Programas, tanto nos Estados
membros da Federação, como nas Fronteiras nacionais, nos seguintes termos:
1 – Estados
• Acre (Sub-Região Sudeste Acreana – Sub-Região do Cruzeiro do
Sul);
• Amapá (Sub-Região Centro Leste do Vale do Araguari – Sub-Região
Sul do Amapá – Sub-Região Norte-Oeste do Amapá);
• Amazonas (Sub-Região Polo Gasopetrolífero Juruá – Sub-Região
Polígono Presidente Figueiredo Axinin-Silvas – Sub-Região Polígono
Parintins-Barreirinha-Nhamundá);
• Maranhão (Polígono Barra do Corda-Estreito-Amarante – Corredor
da Estrada de Ferro Carajás - Polo Agrícola Sul Maranhense);
• Mato Grosso (Polígono Tangará da Serra – Cárceres-Vila Bela-Sub-
Região Sudeste Matogrossense – Eixo Alta Floresta Sorriso);
• Pará (Polígono Almerim-Faro-Aveiro – Sub-Região Baião – Sub-
Região Nordeste do Pará – Sub-Região Campos do Marajó – Sub-Região
Marabá-Carajás – Sub-Região Eixo Pa-150 – Sub-Região Itaituba – Sub-
Região Altamira);
• Rondônia (Sub-Região Ariquemes Vilhena – Sub-Região Noroeste
de Rondônia);
ADHERBAL MEIRA MATTOS
284
• Roraima (Sub-Região norte de Roraima – Sub-Região Centro Sul de
Roraima);
• Tocantins (Sub-Região norte do Tocantins – Sub-Região Sudeste
Tocantinense).
2 - Fronteira
• Brasil/Bolívia (Brasileia – Plácido de Castro – Guajará-Mirim – Costa
Marques – Cárceres);
• Brasil/Colômbia (Tabatinga);
• Brasil/Peru (Assis Brasil);
• Brasil/Venezuela (Boa Vista);
• Brasil/Guiana Francesa (Oiapoque).
Eixos Dinâmicos
Passa-se, a seguir, com base na conservação, respeitada a preservação,
a analisar hipóteses de cenários positivos para a Amazônia Brasileira. Temos,
vg, o problema de ciência e tecnologia ligado ao setor de serviços, que envolve
investimentos diretos, nossa infra-estrutura, a questão do emprego (inclusive
o emprego informal), trabalho escravo (hoje condenado pelo Estatuto de
Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional – TPI), fato negativo que ora
estamos vivenciando, em geral, na Amazônia Brasileira.
Há também, a criação e manutenção de um amplo sistema de
comercialização para o escoamento da produção regional, o que leva em conta
a revisão do Pacto Amazônico, principalmente agora, com o estabelecimento
da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Lembro
também, o desenvolvimento da Região Amazônica junto ao MERCOSUL e
futuramente dentro de uma ALCA democraticamente planejada e não aquele
draft norte-americano, sem falar no CARICOM e Grupo Andino.
Outro ponto trata da maior articulação da Amazônia Brasileira com o
restante do Brasil, o que importa em sua maior participação do comércio
mundial. Daí adviria, no Pará, meu Estado, a integração geográfica de sub-
regiões riquíssimas, como Marajó, Carajás, Itaituba, Altamira e Marabá, entre
outras, no sentido de maior ligação do Estado com o País e com o Mundo,
como hoje impõe, a Nova Ordem Mundial, alimentada pela Globalização,
envolvendo países e empresas.
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
285
Cogito, ainda, de alavancar os eixos dinâmicos da Região, como a
mineração, desenvolvimento de nossos projetos de bauxita, caulim, cobre,
ferro, calcário, ouro, manganês, estanho e nióbio, garantindo, inclusive, nossa
Soberania e a Segurança. Acredito que todos esses projetos precisam de
novos investimentos diretos para a produção e de pesquisas geológicas, além
de um diálogo mais enérgico com certos países do G-7.
Outro eixo dinâmico é o da pesca. O Pará, vg, é o maior produtor de
pescado do Brasil, com 17% do total do País e 60% da Região Norte. Urge
maior investimento no setor, para desenvolver a criação do pirarucu em
cativeiro, para combater a exportação ilegal de pescado e para amparar e
socorrer nossos pescadores, de frágil perfil e em geral, analfabetos, por isso
mesmo alvo de atravessadores. Espera-se que o CEPNOR, ligado ao IBAMA
e o Projeto Beira-Ribeirinha ligado á EMBRAPA e à ENASA tragam positiva
contribuição para solucionar o impasse.
Outro setor visceral é o madeireiro, sendo paradoxal que, com toda a
madeira da Amazônia, o Brasil só ocupe 2% do mercado mundial de madeira.
Nesse contexto, dedico algumas palavras ao problema do desmatamento,
lembrando que existe um desmatamento ilegal (objeto de desrespeito e de
corrupção) e um desmatamento legal (para auto-sustento, criação e expansão
de cidades), valendo salientar que, ás vezes, a própria legislação interna
propicia o aumento do desmatamento, como ocorreu com a alteração do
Código Florestal Brasileiro, que aumentou de 65% para 80% o percentual
de áreas que podem ser devastadas.
Grave, também, é que esse desmatamento acaba propiciando uma
pecuária extensiva predatória, afirmando o IBAMA não possuir meios de
fiscalização, exemplificando com a Operação Feliz Ano Velho, em que
autorizações de transportes para produtos florestais foram falsificadas. O
setor madeireiro envolve, também, a questão da infra-estrutura dos portos,
das rodovias e das hidrovias. O porto Cargil, de Santarém, por exemplo,
necessita, urgentemente, de ampliação e o mesmo acontece com Belterra,
Alenquer e Monte Alegre. Por outro lado, merecem revisão as hidrovias
Araguaia-Tocantins e Teles Pires-Tapajós, as rodovias Cuiabá-Santarém (BR
163) e a Transamazônica (BR 320).
Os recursos hídricos precisam ser objeto de maior controle por parte da
União, a quem está afeto seu gerenciamento, nos termos da Constituição
Federal, principalmente agora, que a OMC declarou que a água é uma
commodity e, portanto, tem preço. A Amazônia detém um terço dos recursos
ADHERBAL MEIRA MATTOS
286
mundiais de água doce e possui rios de água clara que são tremendamente
piscosos, além de rios navegáveis que vão até à Guiana e o Suriname, motivo
por que o problema da água adquire inúmeras facetas, tanto no plano
econômico, como no plano estratégico.
A última observação é sobre o Programa de Zoneamento Econômico
Ecológico (ZEE). Considero válida a realização de zoneamentos regionais,
mas creio que todos eles deverão constar de um zoneamento nacional, a
nível federal, para permitir novos investimentos, novas tecnologias e novas
medidas técnicas, políticas e estratégicas. A razão está em que esse zoneamento
trata da racionalização da ocupação de espaços, estando subordinado a várias
normas internas, inclusive, ao próprio Código Florestal, levando em
consideração, variáveis que envolvem território, população, governo, PIB e
até mesmo as Forças Armadas.
Claro que tal visão global não deve elidir visões regionais, mas equilibrá-
las, até para evitar determinadas falácias, como a de Novembro/03, em que
o G-7 criou um mecanismo internacional para prevenção de desmatamento
com 90% de pesquisadores dos EUA e apenas 10% de pesquisadores do
Brasil. O absurdo está não apenas nessa desigualdade percentual, como no
fato de que o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), vinculado ao
Protocolo de Kioto – de que o Brasil é parte, ao contrário dos EUA – trata
de poluição, enchentes, aquecimento e desertificação. O ZEE é fundamental
ao desenvolvimento do privilegiado bioma amazônico, levando-se em conta,
inter alia, recursos energéticos, o potencial hidrelétrico, a piscicultura, a
cobertura vegetal, agricultura, pecuária e direitos humanos, através de coleta
de dados ambientais e da definição de critérios, sintetizados em um mapa
geral.
Dessa forma, creio que o cenário desejado e desejável para a Amazônia
Brasileira está no somatório dessas observações, resguardando nossa
Soberania e cuidando de nosso Desenvolvimento, através de um processo
dialógico e estrutural. Daí decorrem preciosos itens, tais como saneamento
básico, emprego e incentivos fiscais, sobre o problema do emprego informal,
com a perda de mais de sete mil postos de trabalho, o que está influindo,
inclusive, da produção de castanha, que, de 22 mil toneladas, passou para,
apenas, mil toneladas. Portaria do IBAMA contribuiu muito para isso, quando
autorizou a retirada de castanheiras mortas e, com isso, propiciou a venda de
castanheiras não-mortas e nada constou do recente Seminário Macro e Micro
da Economia, realizado no Rio de Janeiro, cuidando-se, apenas, de medidas
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
287
para o Nordeste, para os cerrados, para a soja e para a transposição das
águas do São Francisco.
Um Plano Nacional para a Amazônia Brasileira
Recentemente, o Plano Amazônia Sustentável (PAS) constituiu uma
esperança de defesa dos interesses da Amazônia Brasileira, tanto em seu
Diagnóstico, como em sua Estratégia. Quanto ao Diagnóstico, por defender
os patrimônios biológico, hidrológico e geológico da Região, sua produção
florestal, e sua infra-estrutura, além da própria dinâmica regional, com
fundamento na soberania territorial da Área e do País. Quanto à Estratégia,
ao apresentar soluções nacionais para problemas infraestruturais, ao tratar
da coordenação institucional da Região e do financiamento do desenvolvimento
regional, inclusive, através da Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica, (OTCA) o que envolve Amazônia Brasileira e Panamazônia.
O PAS, efetivamente, trouxe uma nova visão sobre a Amazônia Brasileira
e sobre a Panamazônia, tanto ao insistir no respeito à Soberania, quanto em
sua aversão a qualquer tipo de privatização, recebendo, contudo, investimentos
internos e externos, todos, devidamente coordenados, comandados e
controlados pelo País. Além disso, sua atuação junto à OTCA é de grande
validade em termos materiais, organizacionais e formais.
Realmente, a OTCA cuida dos aspectos materiais da Área, a exemplo
da defesa territorial, recursos naturais, equilíbrio ecológico, recursos humanos,
pesquisa, comércio (a varejo, o que requer competente ampliação) e turismo.
Além disso, em termos organizacionais, temos o diálogo nacional com a
Reunião dos Ministros das Relações Exteriores da Entidade, com o Conselho
de Cooperação Amazônica e com suas Comissões, tanto Nacionais, como
Especiais. Finalmente, quanto aos aspectos formais, temos o problema do
veto, das reservas, da ratificação e da denúncia.
Há mais um detalhe, nesse particular, que merece ser colocado. Trata-se
do seguinte: o Pacto Amazônico é de 1978 e, na Declaração de Belém, de
1980, os países da Região, conscientes da necessidade de seu desenvolvimento
integral, de sua conservação e de sua preservação, trataram, através do
Conselho de Cooperação Amazônica, do relacionamento do Pacto com
entidades Internacionais e Regionais. Trata-se do diálogo com o Banco
Mundial (BIRD), com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e
ADHERBAL MEIRA MATTOS
288
com o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), ante à dimensão do
imenso desafio pan-amazônico.
Logo a seguir, o Projeto de Lei nº 4776, de 2005 (o PAS é de 2004),
hoje, Lei nº 11284, de 2006, regulamentada pelo Decreto nº 6063, de 2007,
sobre Gestão de Florestas Públicas, numa tentativa de estruturação do manejo
florestal, dispôs sobre ocupação onerosa, até quarenta anos, de cerca de
40% do território nacional – envolvendo Amazônia, Mata Atlântica e outras
áreas – elogiada por alguns e criticada por outros, temerosos de algum tipo
de cessão de soberania nacional.
Os defensores da Lei afirmam que ela propiciou importantes medidas, a
exemplo da criminalização do desmatamento, da presença de empresas
nacionais nas concessões e da obrigação do governo de definir áreas para
unidades de conservação. Ocorre, porém, quanto ao primeiro item, que o
desmatamento já era considerado crime pela Lei sobre Crimes Ambientais;
quanto ao segundo item, certo é que a partir da reforma constitucional de
1995, houve um enlarguecimento do conceito de empresa nacional, incluindo
elementos estrangeiros; e, finalmente, quanto ao terceiro item, as áreas para
unidades de conservação já eram definidas, anteriormente à Lei, pelo SNUC,
afirmam os seus opositores.
No Senado houve tentativa de melhoria do texto da Lei, conforme, ainda,
seus opositores, pelo sem-número de Emendas apresentadas por Senadores,
principalmente do Nordeste, quase todas elas, vetadas, porém, pelo
Presidente da República. É o caso da prévia aprovação pelo Congresso
Nacional da concessão de florestas públicas com área superior a dois mil e
quinhentos hectares. É também o caso da composição do Conselho Gestor
(que comanda o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo Nacional de
Desenvolvimento Florestal), que, ao invés de ser representado apenas por
um representante do Ministério do Meio Ambiente, deveria, também, contar
com representantes de outros Ministérios, vg, do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio Exterior; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; da Defesa;
da Saúde; do Desenvolvimento Agrário; da Integração Nacional; e da Ciência
e Tecnologia. Temos a final, a hipótese de nomeação dos membros do
Conselho Diretor pelo Presidente da República sem a prévia aprovação do
Senado Federal.
Conforme análise do Instituto dos Advogados Brasileiros, a Lei fere o
conceito de Soberania (institucional e territorial), como o Princípio de
Precaução (impacto ambiental proveniente das TNC´s), a Sustentabilidade
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
289
(que não é apenas ambiental, mas também política, econômica, social e
cultural), e o conceito de Desenvolvimento, ao confundir preservação com
conservação, na Amazônia Brasileira. Além disso, deixa de aproveitar o
comércio de crédito de carbono emanado da Convenção sobre Mudanças
Climáticas, também da ECO/92, para desenvolvimento nacional e favorece
– direta ou indiretamente – as empresas transnacionais, ao dispor sobre melhor
tecnologia, empresas essas (TNCs) expressamente mencionadas na Nova
Lei de Falências do País (Lei nº 11.101, de 09-02-05), isentas, em geral, do
pagamento de impostos pela Lei Kandir, no setor de exportação.
Acredito que a fusão dos elementos normativos constantes do Tratado
de Cooperação Amazônica (Pacto Amazônico) – hoje convertido em
Organização Regional: OTCA – do Projeto Calha Norte, do Projeto SIVAM/
SIPAM, do ZEE, do contido nas Convenções da ECO/92 (Biodiversidade e
Mudanças Climáticas) e de projetos pontuais a exemplo dos Macro-Cenários
da Amazônia (SUDAM/1994) possa gerar uma política regional
(investimentos), uma política ambiental (controle da biodiversidade) e uma
política de ciência e tecnologia (recursos humanos e pesquisa). Todas,
enriquecidas das soluções racionais do PAS (Plano da Amazônia Sustentável),
do fortalecimento do IBAMA, da regularização fundiária e da tentativa de
estruturação do manejo florestal da Lei nº 11.284 com reflexos sociais
(educação, saúde, emprego), articulando a Amazônia Brasileira com o restante
do País, com a Panamazônia e com o Mundo, no intuito de fazer da Área não
mais uma Região-Problema, mas uma Região-Solução para o desenvolvimento
nacional.
Trata-se de meios válidos para impedir eventual internacionalização da
Amazônia (tanto Brasileira, como Global), com ênfase no Social, detendo-se
não apenas em problemas de desmatamento e de mudanças climáticas, mas
abandando idéias espúrias tipo “patrimônio comum da humanidade” e visando
remédios efetivos contra trabalho escravo, trabalho infantil, indigência, pobreza
e pauperismo, ao lado de endemias, violência rural e urbana, assassinatos,
desentendimentos entre proprietários, posseiros e grileiros, etc. Nada justifica,
contudo, a perda (ou diminuição) da soberania territorial ou a ingerência
(inclusive humanitária), que contraria a lei (interna e internacional), e o bom
senso. Daí emana a necessidade de proposição e de efetivação de Diretrizes
Globais, de Políticas Centrais e de Programas Prioritários para a Região
Amazônica Brasileira, aproximando-a do mundo integrado e globalizado dos
dias atuais. Algo semelhante ocorre, aliás, na Lei de Gestão Florestal da
ADHERBAL MEIRA MATTOS
290
Alemanha, com vistas ao uso racional de florestas, pesquisa, investimentos,
desenvolvimento tecnológico e respeito às comunidades locais. Tudo, sem
agressão à Constituição e à Lei, em termos de desenvolvimento e de segurança,
no contexto de uma política essencialmente regional e de uma estratégia
exclusivamente nacional.
O aproveitamento dos Planos e Programas retro mencionados, por outro
lado, poderá efetivar a divisão interregional do trabalho, combater
desigualdades sociais, fortalecer a cidadania, respeitar reservas indígenas,
gerar áreas de livre comércio, elevar a renda per capita, investimentos e
poupanças, reduzir a mortalidade infantil, vencer o analfabetismo e proteger
o meio ambiente, tanto em termos de preservação, como em termos de
conservação, na exata linha de um desejado desenvolvimento sustentável.
Conclusão
Daí emana um Plano Nacional para a Amazônia Brasileira, respeitador
da Soberania e dos Direitos Humanos, através, conforme retro, de
instrumentos básicos de caráter geral (zoneamento econômico ecológico,
políticas públicas nacionais, pesquisa) e de caráter fiscal (fundos nacionais de
meio ambiente, royalties, financiamentos internos e externos). Além, de
cooperação técnica nacional e internacional para cuidar de desenvolvimento,
tecnologia, pesquisa, recursos humanos, transporte, abastecimento de água,
tratamento de resíduos sólidos, controle de doenças transmissíveis, elevação
do nível educacional, redução do índice de analfabetismo, melhoria da
qualidade de ensino e formação profissional, evitando, inclusive, uma irracional
migração rural-urbana.
Tal Plano – dentro de uma estrutura dialógica – incentivará o Social sem
ferir a Soberania, numa linha de pleno desenvolvimento, atuando, na prática,
dentro de uma articulação política regional, federal, internacional, transnacional
e supranacional, aperfeiçoando a legislação das áreas desmatadas – impedindo
sua propagação – por meio de programas de educação ambiental, manejo
florestal, assentamentos, uso racional de recursos biológicos hídricos, de
financiamento, evitando a bio-pirataria, a degradação do solo e a
desertificação.
Trata-se, enfim de uma Aliança Nacional, com vistas a positivas decisões
sobre o futuro da Amazônia Brasileira (inclusive, em suas relações com a
Panamazônia), sem clientelismo, numa estratégia de participação que garanta
AMAZÔNIA: POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
291
a efetivação compulsória dos Direitos Humanos na Área, respeitando sua
Soberania, alavancando sua Economia e sustentando seu Desenvolvimento,
fortalecendo “o Brasil no Mundo que vem aí”...
É dentro desse Mundo, profundamente complexo, que se hão de efetivar,
compulsoriamente, a Soberania, os Direitos Humanos e o Desenvolvimento.
Dentro de um Mundo repartido entre “relativistas”, que, em nome do
absurdo, recusam todo sentido da História e não sabem o que fazer de sua
liberdade muitas vezes conquistada a tão duras penas, e “totalitários”, que
dificultam o desabrochar dessa mesma liberdade, em nome de um sentido
deificado da História.
Dentro de um Mundo que ainda comporta, todavia, um sentido de
História: o da personalidade do Homem e da Sociedade; de desenvolvimento
da verdadeira liberdade, que é conhecimento e prática da lei e da norma; do
desabrochar das possibilidades presentes na natureza humana; da possibilidade
de ser sempre mais e melhor Homem, isto é, livre e amante.
Dentro de um Mundo, onde, em épocas normais, o Estado, como protetor
do bem comum, garante o exercício das liberdades individuais fundamentais.
Dentro de um Mundo, onde, em épocas excepcionais, dilata-se a
prerrogativa estatal, em detrimento das liberdades individuais, pois, em
contrapartida, maior será também seu dever de proteção, provendo ou
modificando a ordem jurídica, sempre, com base no princípio da legalidade
e da legitimidade.
Dentro de um Mundo, enfim, que a despeito disso tudo – ou por causa
disso tudo – como pontificou Teilhard de Chardin, não é nem absurdo e nem
acorrentado....
293
A ocupação da Amazônia
Adriano Benayon
*
1. Objetivos do Brasil
A Amazônia brasileira vem sendo objeto de crescente ocupação por
entidades estrangeiras. De há muito, políticos, militares e quadros vinculados
ao sistema mundial de poder contestam a plena soberania do Brasil sobre a
região. Ora, a soberania, ou é plena, ou não existe.
Para citar alguns: Al Gore, vice-presidente dos Estados Unidos, 1989;
François Mitterrand, presidente da França, 1989; John Major, primeiro-
ministro da Inglaterra, 1992; Mikhail Gorbatchev, presidente da URSS, 1992;
General Patrick Hugles, chefe do órgão central de informações das Forças
Armadas dos Estados Unidos, 1998; Pascal Lamy, da Comissão da União
Europeia, 2005, atual diretor-geral da OMC.
Há poucas ONGs em atividade para atenuar as ingentes dificuldades em
que vivem dois terços da população do Nordeste e do Centro-Sul, mais de
100 milhões de pessoas. Entretanto, centenas de milhares de organizações
estrangeiras agem na Amazônia, onde a densidade demográfica é mínima,
não há fome, nem problema em obter água, comida e abrigo.
Não move este trabalho antipatia pelas nacionalidades cujas oligarquias,
movidas por ilimitada cobiça, fazem do Brasil um país conquistado, não de
*
Adriano Benayon é Doutor em Economia. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”,
editora Escrituras. [email protected]
ADRIANO BENAYON
294
hoje e não só na Amazônia. Interessa-nos o destino dele e, em consequência,
ter presentes os objetivos que se deve buscar em relação à Amazônia: primeiro,
conservá-la integralmente como território nacional e com pleno exercício da
soberania sobre ela; segundo, utilizá-la em benefício da sociedade brasileira
e da humanidade.
Esses objetivos são compatíveis e, mais que isso, complementares. Mas,
para ter o Brasil futuro na Amazônia, terá de encontrá-lo em todo o território
nacional. A perspectiva de perder, aos poucos, a Amazônia só se tornou
possível, porque, desde há mais de 50 anos, o País foi perdendo o comando
de sua própria economia.
A premissa básica é a autodeterminação do País. Dela deriva o conceito
de sociedade aberta aos que a ela se desejem incorporar e, ao mesmo tempo,
consciente de que não lhe convém guiar-se por conselhos, nem por
imposições, do exterior.
2. Vulnerabilidades
Não há como realizar a autodeterminação sem se liberar de três
vulnerabilidades, advindas de ideologias, e não, de realidades objetivas: a
dívida pública; o ambientalismo; as reservas indígenas. Esses temas são objeto
de intensa manipulação, com o fito de condicionar a opinião e o governo
brasileiros a ceder aos desígnios de grupos financeiros e grandes potências
de dominar a biodiversidade e os recursos minerais e energéticos da
Amazônia.
Antes de examinar cada vulnerabilidade per se, consideremos as
interações entre as três. 1) a penúria financeira imposta ao setor público
assegura que a Amazônia não seja ocupada senão esparsamente por
brasileiros; 2) o ambientalismo predominante – financiado por grandes
poluidores mundiais – inculca a ideia de deixar intocada a região,
coibindo aproveitamentos infra-estruturais ou econômicos por
brasileiros; 3) imensas reservas indígenas segregam do território
efetivamente nacional zonas estratégicas por sua riqueza mineral,
agrupando-se nelas tribos arregimentadas por fundações e entidades
religiosas internacionais estipendiadas por membros da oligarquia
financeira mundial.
Em suma, as três vulnerabilidades decorrem de um móvel comum: afastar
os brasileiros da região. Além disso, a 2ª e a 3ª envolvem pôr sob o controle
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
295
de fundações, ONGs e entidades a serviço da geopolítica imperial imensas
terras designadas para alegadamente preservar o meio ambiente e a identidade
de etnias indígenas.
3. Dívida pública. Penúria de recursos
Por que a dívida pública e seu serviço, i.e., juros e amortizações?
Porque esse serviço tem sido o principal fator impeditivo de se realizarem
no País investimentos suscetíveis de valorizar os excepcionais recursos
naturais do País em proveito da economia nacional, em lugar de serem
exportados sob forma primária ou com baixo grau de transformação
industrial e incorporação de tecnologia local, com isenções e benefícios
fiscais.
De fato, a penúria derivada da política econômica condicionada pela
primazia do serviço da dívida tem implicado a indisponibilidade de finança
para alimentar iniciativas de interesse nacional em qualquer parte do País.
Tem também servido de desculpa para descartar ou inviabilizar projetos
de ocupação racional da Amazônia, como o Projeto Calha Norte, apesar
de estes não requererem senão recursos extremamente modestos.
A dívida pública, a dívida externa e, a partir dos anos 80, também a
interna, tem sido usada como instrumento para determinar as políticas
econômicas. Assim, as condicionalidades impostas por meio de acordos
com o Fundo Monetário Internacional, das normas aplicadas nos contratos
com o Banco Mundial e com o BID, bem como dos acordos com governos
estrangeiros, inclusive no âmbito do Clube de Paris, sem falar nos acordos
de renegociação de créditos junto a bancos do exterior.
A promulgação, por instância do FMI, da lei dita de Responsabilidade
Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 04.05.2000, consolidou a prioridade
absoluta às despesas financeiras no Orçamento da União e dos demais
entes federativos, além de enquadrar Estados e Municípios recalcitrantes
na política da miséria administrada.
3.1 Sangria através dos juros
Essa linha de abdicação ao desenvolvimento, cumprindo critérios
estabelecidos por banqueiros estrangeiros, havia sido contrabandeada para
dentro da Constituição de 1988, através da inserção, por meio de fraude, do
ADRIANO BENAYON
296
dispositivo que excetuou o “serviço da dívida” de restrições a que estão
sujeitas outras despesas orçamentárias.
1
Combinada com a desarrazoada política de juros elevados a pretexto de
conter a inflação, essa norma constitucional espúria acarreta efeitos depressivos
sobre a economia brasileira, de cujo impacto se pode formar ideia
considerando os dispêndios desde então realizados pela União a título do
serviço das dívidas interna e externa.
Dados oficiais mostram ter a União Federal despendido, de 1988 a 2007,
R$ 4,5 trilhões (valor atualizado a preços de 2007) por juros, encargos e
amortizações, não contadas as referentes a rolagem de dívidas.
2
Comparando-se as cifras de 1986 com a média anual de 1989/1990
constata-se o enorme salto das despesas com o serviço da dívida após a
Constituição. Elas se elevaram, a preços de 2005, de R$ 50,5 bilhões para
R$ 564,1 bilhões, ou seja, mais que decuplicaram.
Dados elaborados pelo IPEA referentes à dívida externa registrada,
inclusive do setor privado, mostram ter ela ascendido de US$ 43,5 bilhões
em 1978 a US$ 195,6 bilhões em 2002, aumentando, pois, US$ 152,1
bilhões. Nesses 24 anos o Brasil pagou US$ 156,4 bilhões a mais por juros
e amortizações que a cifra dos desembolsos de créditos. O desgaste soma,
assim, só nesse período, US$ 308,5 bilhões, quantia que atualizada em dólares
de 2007, corresponde a US$ 2,2 trilhões.
A quase totalidade do endividamento corresponde a juros capitalizados,
taxas e comissões nas rolagens e reestruturações de dívidas, sem praticamente
novos financiamentos à infra-estrutura ou à produção. Cabe considerar ademais
daquela cifra astronômica os ganhos cessantes, i.e., os que deixaram de ocorrer
em razão de não ter havido o investimento dos recursos perdidos com o
serviço injustificado da dívida.
3.2 Origem da dívida
A dívida externa proveio do financiamento dos déficits de transações
correntes com o exterior, os quais, por sua vez, decorre da estrutura industrial
e econômica dependente. Esta já condenara o Brasil a pesadíssimo serviço
1
O modo como foi esse dispositivo inserido na Carta Magna é exposto em: Adriano Benayon
e Pedro Rezende - Anatomia de uma Fraude à Constituição, agosto de 2006, na página http://
paginas/terra.com.br/educacao/adrianobenayon.
2
SIAFI,STN (Secretaria do Tesouro Nacional). Despesas da União por grupo.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
297
da dívida ao longo do Império e da República Velha (até 1930). A partir de
setembro de 1954 criaram-se novamente condições para a deterioração
estrutural, ao se subsidiar, de modo cada vez mais intenso os investimentos
diretos estrangeiros.
O modelo assim construído sob dependência financeira e tecnológica
acarretou sucessivas crises de balanço de pagamentos, em função das
transferências de recursos para o exterior. Em 2008, a remessa oficial de
lucros, somente a ponta do iceberg, deverá ascender, segundo o Banco
Central, a US$ 33 bilhões. Essas remessas somaram US$ 27,5 bilhões de
janeiro a setembro, mais que as do ano de 2007 todo (US$ 22,4 bilhões).
O grosso das transferências procede da fixação dos preços de
exportações e importações (transfer-pricing) e de despesas por serviços
pagos às matrizes das transnacionais. As subsidiárias transferem juros,
pagamentos por serviços superfaturados e até fictícios, a diversos títulos,
como assistência técnica, uso de marcas, tecnologia, comissões de
comercialização e de agentes, fretes, seguros etc.
Os déficits externos foram agravados, nos anos 70, por dois choques
nos preços do petróleo, em 1973/74 e 1979, comandados pelo cartel anglo-
americano das finanças e do petróleo.
3
Quando dos pretensos milagres econômicos (1955-1960 e 1968-1977),
a dívida pública cresceu, em parte, em função do financiamento de infra-
estrutura e insumos básicos em pacotes fechados, sob desnecessária
dependência financeira e tecnológica, gerando importações inadequadas e
excessivamente caras de bens de capital e insumos.
4
Desde 1977/1978 o endividamento externo destinou-se a rolar dívidas
anteriores. Do esgotamento da capacidade de endividar-se no exterior surgiu
a dívida interna, em elevação exponencial a partir de 1980. Do montante
atual desta, R$ 1,3 trilhão, cerca de 90% procedem da capitalização de
juros, não obstante terem as despesas de juros e amortizações ultrapassado
um trilhão de reais de 2000 ao presente.
A decisão do Federal Reserve dos EUA, de elevar os juros nos EUA
para acima de 20% aa., em agosto de 1979, agudizou a crise externa brasileira.
3
O público está desinformado de que a City de Londres tem influência muito maior do que a
OPEP no preço do petróleo. Ademais, países de peso na OPEP agem em consonância com a
finança anglo-americana, junto a qual aplicam seus haveres.
4
O Banco Mundia (BM), o BID e as agências e bancos oficiais de países exportadores favorecem
os fornecimentos de cartéis formados por transnacionais, que determinavam as especificações
das licitações internacionais.
ADRIANO BENAYON
298
Apesar de os investimentos públicos minguarem, a dívida externa registrada
mais que dobrou de 1977 a 1982, de US$ 32 bilhões para US$ 70 bilhões.
De 1982 a 1987, na “década perdida”, essa dívida cresceu mais 53%,
atingindo US$ 107,5 bilhões.
De 1987 a 1991, caiu para US$ 93 bilhões, devido ao quantum brutal
das amortizações após a promulgação da Constituição de 1988, ademais de
ter a União assumido dívidas privadas por imposição dos bancos estrangeiros.
O resultado de tudo isso foi o brutal declínio, depois dos anos 1980, da taxa
de investimentos fixos em relação ao PIB no Brasil:
Os investimentos públicos, e notadamente os do governo federal,
tornaram-se insignificantes. Em 2007 estes totalizaram R$ 10 bilhões, o que
equivale a 4,2% do gasto no serviço da dívida (R$ 240 bilhões).
3.3 Alavanca para pressões
As lições da História são claras ao mostrar que somente países
enfraquecidos econômica e militarmente sofrem intervenções políticas ou
armadas. No Brasil o modelo econômico e os consequentes vieses políticos
inviabilizaram investimentos destinados a ocupar espaços amazônicos.
Os propugnadores da intervenção nos negócios de países sem poder de
dissuasão invocam, em apoio a suas metas geopolíticas, causas simpáticas à
opinião pública, tais como proteção ao meio ambiente, direitos dos indígenas,
democracia, direitos humanos, autoderminação, igualdade racial, defesa de
minorias etc. Omitem, como é claro, os desígnios de controlar imensas terras
dotadas de água, insolação, biodiversidade, madeiras, minerais preciosos e
estratégicos.
O favorecimento, a partir do golpe de 1954, ao capital externo culminou
em ter este controlado a economia do País, cuja política econômica se
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
299
subordinou ainda mais a interesses estrangeiros após a inadimplência na dívida
externa em 1982 e as subseqüentes reestruturações ditadas pelos bancos
credores. A consequência foi a deterioração socioeconômica, tendo
“remédios” do gênero das privatizações agravado ainda mais os males.
Data justamente de 1983 a declaração da então primeira-ministra britânica:
“Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas, que
vendam suas riquezas, seus territórios.”
Esteve subjacente nas “renegociações da dívida” o pressuposto aceito
por governantes brasileiros de não admitir ruptura com a “comunidade
financeira internacional”, como se essa expressão fosse mais que um
eufemismo denotativo da oligarquia do poder mundial. Recusar alguma
imposição dessa oligarquia é considerado sacrilégio contra a globalização,
ideologia totalitária intensamente fomentada pela mídia e por outros meios
formadores de opinião, inclusive acadêmicos.
Os subsídios em favor de transnacionais da indústria, acoplados à restrição
ao crédito, elevados juros e encolhimento de mercado pesando sobre o capital
nacional – acentuaram o controle dos oligopólios comandados do exterior
sobre o mercado interno e o comércio exterior.
Precisamente isso havia resultado nas crises de balanço de pagamentos
que culminaram com o desenlace da dívida externa, e este, por sua vez,
facilitou manipular a dívida para retirar dos brasileiros o pouco que lhes restava
de poder decisório sobre a economia nacional. A radicalização desse processo
foi feita por meio das privatizações.
5
4 – Vendas de terras
As condições econômicas e sociais deterioraram-se em função do
colossal serviço das dívidas, da concentração econômica e da prática de
taxas de juros abusivamente elevadas. A indústria sofreu grau extremo de
desnacionalização. A indústria da defesa, em expansão nos anos 70, foi forçada
a regredir. A EMBRAER e outras estatais foram desnacionalizadas.
Elas foram alienadas, sem que os adquirentes ou seus prepostos (laranjas)
despendessem senão somas irrisórias, ademais compensadas por subsídios
e benesses fiscais exuberantemente prodigalizados. Perdeu assim o País o
5
Baseadas na Lei de Desestatização (8.031, de 12 de abril de 1990), promulgada sob Collor e
mantida sob governos subseqüentes.
ADRIANO BENAYON
300
controle sobre empresas estratégicas, dotadas de imensos patrimônios e de
apreciável tecnologia, como as dos sistemas elétrico, siderúrgico (aços planos
e especiais) e de telecomunicações. A Vale do Rio Doce deveria ser decisiva
para o desenvolvimento da Amazônia, mas, sob direção voltada para o lucro
acionário, segue como instrumento de extração e exportação desenfreada de
recursos minerais.
A desnacionalização foi exponenciada ao terem sido alijadas do mercado
centenas de pequenas e médias empresas fornecedoras de produtos, insumos
e serviços às estatais. Isso porque os cartéis passaram a fazer as encomendas,
sem concorrência, a firmas coligadas do exterior.
Alienaram-se, ademais, o BANESPA e o BANERJ, dois dos maiores
bancos estaduais do mundo, sem falar na desnacionalização de grandes bancos
privados, para o que União gastou mais de R$ 100 bilhões. Em parte
desnacionalizou-se também o petróleo, pela Lei nº 9.478/1997, a qual facilita
às transnacionais se apropriarem de jazidas descobertas pela Petrobrás, de
resto, em parte, também desnacionalizada.
6
São, para esse fim, as
transnacionais coadjuvadas pela ANP, como as demais agências ditas
reguladoras, uma instituição criada para esvaziar a autoridade do Estado.
A economia marcha em direção à especialização em bens intensivos de
recursos naturais (primarização), voltada para as exportações, o que acentua
a síndrome colonial, por exemplo, com o agronegócio, controlado por
tradings estrangeiras. O grosso dos investimentos fixos vem da Petrobrás e
de ex-estatais, como as siderúrgicas e da colossal Vale Rio do Doce, em boa
parte, dependentes da demanda mundial.
Tendo-se intensificado a desnacionalização dos espaços pluridimensionais
da indústria e dos serviços e do espaço imaterial do poder, centrado na finança,
não foi difícil aos concentradores estrangeiros penetrar no espaço
bidimensional das terras, inclusive na Amazônia.
A razia que já devastava pequenas e médias empresas, autônomos
e assalariados, ganhou impulso com as “reformas” empurradas goela
abaixo do Congresso a instâncias de instituições como o Diálogo
Interamericano, o FMI e o Banco Mundial. Notadamente, em 1995,
com a “reforma” do Capítulo Econômico da Constituição. Suprimiu-se
a distinção dos arts. 170, IX, e 171, entre empresa de capital nacional
6
São para esse fim, as transnacionais coadjuvadas pela ANP, como as demais agências ditas
reguladoras, uma instituição criada para esvaziar a autoridade do Estado.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
301
e de capital estrangeiro, passando a definir-se como nacional qualquer
empresa registrada no País.
Considera-se, assim, inaplicável a pessoas jurídicas estrangeiras a Lei nº
5.709 de 1971. Segundo parecer do advogado-geral da União, não subsiste
a necessidade, prevista na citada Lei, de autorização para empresas estrangeiras
com sede no Brasil comprarem imóveis rurais.
Em 19.03.2006, The Sunday Times, de Londres, publicou reportagem
do jornalista Maurice Chittenden, intitulada “É minha floresta, agora. Sem
mais exploração de madeira”, reproduzida em O Estado de S. Paulo de
21.03.2006: “Ricos criam o colonialismo verde”. A matéria informa da compra
por milionários britânicos de extensas terras em países do Terceiro Mundo,
para “impedir que as árvores sejam cortadas”.
Avaliava o repórter ser essa uma abordagem nova do movimento
conservacionista internacional, que tradicionalmente usa agências públicas e
privadas e ONGs para levar governos de países em desenvolvimento a reservar
terras públicas a parques nacionais e reservas naturais. Na verdade, aquela
abordagem complementa a mais antiga.
Em 1º de outubro de 2006, o então ministro do Meio Ambiente britânico,
David Miliband, discursando na 2ª Reunião Ministerial do Diálogo de Gleneagles
sobre Mudanças Climáticas, em Monterrey, referiu-se, conforme o Daily
Telegraph, de 01.10.2006, a um plano, considerado pelo gabinete do primeiro-
ministro Tony Blair, para promover a “privatização completa da Amazônia”.
Pretexto: formar vasta área “protegida”, a ser confiada à administração
de uma comissão internacional, a fim de evitar emissões de gases de efeito
estufa provocadas pelo desmatamento da floresta equatorial. A fala de
Miliband repercutiu na imprensa brasileira, tendo depois o governo britânico
negado ter tais planos.
7
Como mostro adiante, o pretexto, de tão falto de
sentido, lembra os usados pelo lobo, na fábula, ao anunciar a intenção de
devorar o cordeiro.
Pouco depois da manifestação do ministro britânico, a mídia noticiou
declaração de Johan Eliasch, segundo a qual US$ 50 bilhões seriam suficientes
para comprar toda a Amazônia. Trata-se de milionário sueco, executivo-chefe
da empresa de equipamentos esportivos Head e co-presidente da ONG Cool
Earth, uma das mais atuantes na Amazônia. Ele teria, em 2005, adquirido 160
mil hectares de florestas na Região Norte do Brasil, por R$ 30 milhões, e
sugerido a milionários e a companhias de seguros fazer investimentos semelhantes.
7
Informativo do Movimento de Solidariedade Ibero-americana, de 11.10.2006.
ADRIANO BENAYON
302
Ligado a altos círculos do Establishment político do Reino Unido, Eliasch
é vice-tesoureiro do Partido Conservador e assessor de William Hague, o
“chanceler-sombra”, além de dirigente do Centre for Social Justice, um dos
principais think-tanks conservadores britânicos.
Se considerarmos o preço pago por Eliasch, cerca de US$ 93,75 por
hectare, seria viável comprar 400 milhões de hectares, i.e., quase metade do
território nacional, por US$ 37,5 bilhões. Essa quantia não chega sequer a
0,4% dos ativos financeiros em vias de ser apagados dos discos rígidos do
sistema (US$ 100 trilhões), e 0,06% do estoque de derivativos ali
contabilizados (mais de US$ 600 trilhões).
Os insiders, de há muito, sabem da hiperinflação que se está formando,
e vêm, em consequência, empregando frações desprezíveis das astronômicas
cifras que manejam para comprar muitas das melhores terras do mundo, no
Pampa argentino e no centro-sul do Brasil.
A riqueza da Amazônia é incomensurável e deveria enquadrar-se no conceito
jurídico de bem fora do comércio. Entretanto, em conformidade com as “leis
do mercado” e com a Constituição, mutilada pela supressão de seu Capítulo
da Ordem Econômica, grandes extensões amazônicas podem ser adquiridas
por estrangeiros, por quantias ridículas em moedas em vias de derretimento.
Matéria do jornalista Vasconcelo Quadros, no JB de 28.09.2007, informa não
ter o governo controle sobre quem são os estrangeiros proprietários, nem quantos
milhões de hectares de terras lhes pertencem. Há notícias de que eles estão investindo
pesado na compra de terras no Oeste da Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso,
Tocantins, Maranhão, Pará e São Paulo. Eis excertos da notícia:
Faltam dados precisos ao cadastro do INCRA, porque os estrangeiros
não são obrigados a identificar sua nacionalidade. Entre os capitalistas
internacionais atuantes na compra de terras estão empresas ligadas à
Fundação Soros, Microsoft, Google, as suecas Precius Woods e Stora
Enso e até seitas religiosas, como a Igreja Unificada, do reverendo Monn
Sun Myung, já dona de extensas áreas em Mato Grosso do Sul. Moon
estaria adquirindo mais terras no Centro-Oeste e Amazônia. Também
chamam atenção os grandes investimentos em terras e gado de Daniel
Dantas, do Opportunity,
8
cujo estoque teria alcançado mais de 100 mil
hectares na região de Marabá, no Sul do Pará.
8
Laranja de bancos norte-americanos.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
303
O presidente do INCRA, Rolf Hackbart, teria proposto estabelecer
limites por questão de soberania nacional, não de xenofobia. Teria
lembrado a intensificação da compra de terras por grupos estrangeiros
em função do plantio, em grande escala, da cana de açúcar, mas
também do apelo ecológico propagado por ONGs internacionais, a
pretexto de proteger a região. Uma delas, hospedada no site Cool
Earth, vem, há tempos, disponibilizando áreas pela internet. Outras
divulgam ofertas pela internet ou publicam anúncios em jornais
brasileiros.
O registro do INCRA é modesto diante da realidade e da explosão do
mercado. Até julho de 2007, 31.194 imóveis estavam em nome de
pessoas físicas estrangeiras e outros 2.039 em nome de empresas.
Segundo Hackbart, o número de proprietários deve ser bem maior, em
decorrência da falta de definição de empresa estrangeira e do limite que
ela deve ter na aquisição de terras nacionais. “Basta abrir um escritório
ou estar associado a um brasileiro, que pode comprar o que quiser de
terras. É isso que precisamos consertar...”
5. Meio Ambiente
5.1 Desmatamento
A compra de terras não é o único meio de os concentradores financeiros
mundiais se apropriarem da Amazônia e, assim, explorar a flora, a fauna e os
recursos minerais da região. A isso se agregam as concessões de florestas
possibilitadas pela Lei nº 11.284, de 02.03.2006. Há mais tempo vem-se
estendendo e aprofundando a presença estrangeira unidades de preservação,
as quais já ocupam cerca de meio milhão de quilômetros quadrados do
território nacional. Antes de tratar desses temas, convém desfazer equívocos
sobre a questão ecológica.
1º) especialistas põem em dúvida a realidade do aquecimento global.
Esclarecem que as alterações no clima são determinadas por fatores
independentes de ações humanas. Durante a Conferência sobre Mudanças
Climáticas em Bali, 2007, cem destacados cientistas de 19 países divulgaram
carta ao secretário-geral da ONU e aos Chefes de Estado, na qual afirmam
que deveriam ser abandonadas as “fúteis tentativas de combater as
ADRIANO BENAYON
304
mudanças climáticas.” Essa mensagem, desagradável para os lobbies
ambientalistas, não despertou o interesse da mídia.
2º) conforme o Dr. William Gray, professor emérito da Universidade do
Colorado, autoridade mundial em ciclones tropicais e autor de precisas
previsões sobre furacões, o ciclo natural de variação da temperatura do mar,
associada à quantidade de sal nas águas, é o responsável pelo aquecimento.
Ele qualificou de ridícula a teoria que ajudou Al Gore a ganhar o Prêmio
Nobel da Paz: “ela é produto de gente que não sabe como a atmosfera
funciona.” Aduziu: “estão fazendo lavagem cerebral na juventude.” E:
“Incomoda-me que meus colegas cientistas não levantem suas vozes
contra algo que sabem estar errado, mas também sabem que não
conseguiriam financiamentos para pesquisas se dissessem o que
pensam...”. Faltou dizer que Gore é um político ligado, de longa data, à
indústria do petróleo anglo-americana.
3º) o eminente professor Luiz Carlos Molion, de São Paulo, sustenta
que a temperatura do Planeta não está subindo e que a ação do homem, com
a emissão crescente de gás carbônico (CO2) e outros poluentes, não tem
relação com as variações térmicas.
9
4º) isso não quer dizer não serem nocivas à saúde as emissões de CO2
e de outros gases altamente tóxicos. O grosso delas decorre das indústrias
do carvão e do petróleo e seus derivados, das indústrias químicas e
metalúrgicas. Os plásticos, derivados do petróleo, causam gravíssima poluição
nos oceanos, e os fertilizantes químicos e petroquímicos levam à esterilização
dos solos. As sementes transgênicas constituem a maior ameaça direta à vida
no Planeta.
5º) fica claro, portanto, que o pretenso desmatamento da Amazônia nada
tem que ver com qualquer dessas terríveis fontes de deterioração do Planeta.
Ademais, é falsa a idéia de que a floresta amazônica intacta contribua para o
equilíbrio ecológico. Este depende dos oceanos, que, de resto, estão sendo
contaminados por aquelas indústrias poluidoras, as mesmas que financiam
fundações e ONGs ambientalistas.
6º) além de o desmatamento não ter relação com os flagelos apontados,
são as plantas em crescimento que seqüestram o óxido de carbono da
9
Molion é Pós-doutor em meteorologia com formação na Inglaterra e nos Estados Unidos,
membro do Instituto de Estudos Avançados de Berlim e representante da América Latina na
Organização Meteorológica Mundial.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
305
atmosfera, por meio da fotossíntese. Ora, para que as plantas cresçam, há
que abater árvores, muitas naturalmente substituídas por seus filhotes. O
importante para realizar a captação do carbono é o plantio de novas árvores
e o conseqüente crescimento de suas folhas.
5.2 Energia renovável e ambiente
O cultivo de plantas para produzir energia renovável, principalmente o
dendê, na Amazônia, combinaria as vantagens ecológicas do seqüestro de
carbono com a substituição dos derivados de petróleo e carvão, causadores
de emissões de gases venenosos. As duas coisas resultam em melhora, de
enormes proporções, para o meio ambiente.
No quadro de pequenas e médias unidades produtivas, em cooperativas,
com lavouras alimentares entremeadas com as árvores ou em áreas próprias,
e utilizando subprodutos das plantas energéticas como alimento para animais
e adubo, garantir-se-ia o assentamento, de milhões de brasileiros na região
em condições de prosperidade.
O dendê dá 6.000 litros de óleo por hectare/ano, i.e., quinze vezes mais
que a soja. Seu cultivo faria economizar grande parte das terras do País
ocupadas na pecuária extensiva (mais de três vezes o total das lavouras) e
faria reduzir a área plantada com soja, que usa 43% das terras empregadas
na agricultura.
Em síntese, a proposta ensejaria: a) substanciais benefícios econômicos,
sociais e ambientais; b) transformar a Amazônia na principal região do Mundo
em energia renovável; c) elevar a produção agropecuária do País; d) reflorestar
áreas usadas na pecuária extensiva e na produção de soja.
Para produzir óleo em quantidade suficiente para substituir todo o atual
consumo do País de óleo diesel, bastariam 7,5 milhões de hectares, num total
de 10 milhões de ha., levando em conta as produções agropecuárias
associadas. Tornar-se-ia disponível para reflorestamento área bem maior,
resultando, portanto, redução líquida na ocupação de terras graças à liberação
de áreas de soja e de pecuária extensiva.
6. Lei de Florestas. Concessões
A Lei nº 11.284, de 02.03.2006, considerada por observadores a “lei
de privatização” da Amazônia, permite licitar concessões por 40 anos,
ADRIANO BENAYON
306
prorrogáveis por outro tanto, para a exploração de florestas públicas num
espaço de 40% do território brasileiro.
A Lei não estabelece limite de extensão das áreas a ser concedidas,
nem restringe a habilitação de estrangeiros. Essa restrição seria, de resto,
inconstitucional até que se restabeleça na CF a distinção entre empresas
de capital estrangeiro e de capital nacional.
Quem pagar mais terá direito a explorar a floresta de acordo com o
plano de manejo anualmente aprovado, não havendo dúvida de que o
Banco Mundial velará para que grandes grupos internacionais sejam bem
atendidos nos editais referentes às áreas oferecidas.
Na realidade, está-se discriminando contra a sociedade nacional, uma
vez que são totalmente díspares as condições de acesso aos mercados e
às concorrências públicas das transnacionais e de produtores brasileiros
médios e pequenos. Essa é a experiência verificada na indústria, no
comércio e nos serviços, inclusive financeiros, e em curso no agronegócio.
As empresas mundiais praticamente não precisam investir senão
quantias ínfimas de seus recursos para apropriar-se, de modo cada vez
mais exclusivo, dos meios de produção existentes no Brasil. Além de seu
poder financeiro e de lhes serem propiciadas as regalias de dominar o
mercado interno e o comércio exterior do País, elas são beneficiadas
com desmedidos subsídios pelos poderes públicos nos três níveis da
Federação.
Nesse quadro, os mercados de alguma importância ficam dominados
por transnacionais, seja sós, seja junto com pequeno e declinante número
de empresas nacionais de grande porte. Em todo o Mundo, as pequenas
e médias empresas são o suporte essencial das economias que mostram
dinamismo e sustentam o equilíbrio social. Ora, no Brasil esse segmento
vem encolhendo e sendo relegado a atividades de menor produtividade.
Claro que na atividade florestal, além de poder fornecer garantias
para obter as concessões, as firmas mundiais gozarão das vantagens dadas
à exportação e importação de bens e serviços e às movimentações
financeiras relacionadas com a mineração, o agronegócio etc.
Sob o modelo pró-concentração econômica, que agora se estende
às florestas, não há, portanto, como dinamizar a economia brasileira e
realizar seu desenvolvimento com as necessárias interações entre
produtores e consumidores e entre os níveis da produção: primário,
industrial, tecnológico, de serviços e financeiro.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
307
Se grandes grupos mundiais já determinam o curso das políticas
públicas do Brasil antes de se terem implantado em grande escala em
atividades de exploração florestal, que situação se pode imaginar para
após 80 anos de posse sobre as áreas a lhes ser outorgadas?
O artigo 11 da Lei 11.284 determina que o Plano Anual de Outorga
Florestal (PAOF) considerará: III - a exclusão das unidades de
conservação de proteção integral, das reservas de desenvolvimento
sustentável, das reservas extrativistas, das reservas de fauna e das áreas
de relevante interesse ecológico; IV - a exclusão das terras indígenas,
das áreas ocupadas por comunidades locais e das áreas de interesse para
a criação de unidades de conservação de proteção integral.
Em suma, praticamente todas as terras vão sendo postas fora do
alcance da sociedade brasileira, condenada assim a viver sem terras,
embora seja a do país com o maior território no Mundo de terras
aproveitáveis.
A Lei das Florestas prevê, no art. 67, a autonomia de um órgão gestor,
a saber, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), financiado por taxas pagas
pelos concessionários da floresta.
Aponta Adherbal Meira Mattos, professor titular de direito internacional
da Universidade Federal do Pará, que a Lei 11.284, de 2006, a de Florestas,
fere os artigos 49 (competência do Congresso Nacional) e 91 (competência
do Conselho de Defesa Nacional) da Constituição Federal, além da Lei nº
6938/81 (SISNAMA) e da Lei nº 9985/00 (SNUC). Aduz que a gestão
ali contemplada pode caber a representantes de organismos não nomeados,
através de convênios com terceiros ignorados.
Acrescenta Meira Mattos que os critérios para as licitações tendem a
afastar empresas nacionais e regionais, o que concentrará a comercialização
de produtos florestais nas mãos de grandes corporações financeiras
internacionais, virtualmente privatizando as florestas e as próprias funções
do Estado.
O Instituto dos Advogados Brasileiros repudiou, por unanimidade, o
projeto daquela Lei, nos seguintes termos:
Projeto de Lei que pretende a criação de Órgão para Gestão dos Recursos
Florestais Públicos mediante cessão de uso e direitos. Direito de exploração
comercial por terceiros através de licitação. Flagrante inconstitucionalidade.
Transferência de função exclusiva do Congresso Nacional e do Conselho
ADRIANO BENAYON
308
de Defesa Nacional a Órgão do Poder Executivo atípico, dotado de autonomia
administrativa e financeira que não se sujeitaria a qualquer controle da
sociedade. Riscos evidentes à Soberania Nacional em zonas isoladas do
território nacional onde o ingresso de órgãos fiscalizadores dependeria de
autorização prévia do órgão cuja criação se propõe. Afronta aos princípios
participativos do SISNAMA, limitações inconstitucionais à fiscalização de
condições de trabalho, afronta aos incisos XVI e XVII do Artigo 49, inciso
III do Artigo 91 além de tantos outros princípios constitucionais e
infraconstitucionais. Projeto que merece pronta rejeição.
7. Unidades de conservação
Em visita à Inglaterra, o então presidente F. Cardoso teria, conforme
noticiado, prometido ao príncipe Philip destinar 10% do território brasileiro
a unidades de conservação ambiental. A oligarquia inglesa é líder na
concentração de riquezas naturais nos cinco continentes, e a família real
britânica tem estado à frente de iniciativas e pressões para fazer governantes
brasileiros cederem áreas da Amazônia.
Em 1999, em seminário de ONGs ambientalistas em Macapá (AP),
foram previstos 50 milhões de hectares de florestas da Amazônia a ser
“conservados”. Em março de 2000, o GEF (Global Environment Facility),
fundo gerido pelo Banco Mundial, aprovou a primeira fase de projeto
conservacionista, com duração programada para quatro anos e a alocação
de 18 milhões de hectares a novas unidades de conservação na Amazônia
Legal, bem como a instituição de fundo para financiar o custeio das “novas
áreas protegidas”.
Em agosto de 2002, foi assinado o decreto que criou o maior parque
de florestas tropicais do mundo, o Parque Nacional das Montanhas de
Tumucumaque, com 3,9 milhões de hectares, no Amapá, abrangendo a
faixa de fronteira com a Guiana Francesa.
O Brasil foi assim oficialmente engajado ao projeto do Banco Mundial
e do World Wildlife Fund (WWF), gestado desde 1998, patrocinado pela
Alliance for Forest Conservation and Sustainable Use, uma parceria
entre o Banco Mundial e o WWF, instituição ligada à família real britânica.
Surgiu então o projeto “Amazonian Regional Protected Areas”
(ARPA), com o objetivo de manter conservados mais de 40% da Amazônia,
ao custo estimado de 395 milhões de dólares em dez anos.
10
O ARPA visa
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
309
implantar e consolidar, nesse prazo, as 14 reservas ambientais já criadas,
10 em fase de implantação e outras a ser criadas.
Os dólares captados para o projeto ARPA pelo Banco Mundial, pelo
WWF e pelo KfW (Kreditanstalt für Wiederaufbau), o Banco de
Reconstrução, da Alemanha, têm contrapartida do governo federal do
Brasil, também em dólares, a ser congelados no ARPA. O governo deixa
o País à míngua de investimentos da União, sacrifica o próprio custeio, e
inexplicavelmente obriga-se a co-financiar projetos segregacionistas que
tornam indisponíveis aos brasileiros imensas porções do território
nacional.
11
O ARPA, junto com a Mata Atlântica, é objeto do “Acordo entre o
Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Federal
da Alemanha sobre cooperação financeira para a execução de projetos na
área de preservação das florestas tropicais”, promulgado pelo Decreto nº
5.160 de 28.07.2004.
Esse acordo estabelece que a Deutsche Gesellschaft für Technische
Zusammenarbeit (GTZ) desempenhará as funções de consultora
independente em relação à aplicação dos recursos providos pelo KfW.
12
O ARPA recebe dinheiros de numerosas Fundações. Entre elas, a Gordon
and Betty Moore Foundation, sediada em São Francisco, Califórnia, que lhe
fez, em 2002, duas doações totalizando US$ 18 milhões, e mais uma, de U$
7,168.00 em 2007. As doações da Fundação Moore a projetos na Amazônia
brasileira somam US$ 96,6 milhões, de 2002 a agosto de 2008. As unidades
de conservação patrocinadas por essa Fundação no Estado do Amazonas
chegam a 4 milhões de hectares.
O WWF é, de longe, o maior donatário da Fundação Moore. Outros,
com somas vultosas, são a Fundação Djalma Batista, do Amazonas, o Instituto
do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia e o Instituto Internacional de
Educação do Brasil. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
recebeu doação de US$ 2,136 milhões, para elaboração de estratégias. Há,
ainda, doação de US$ 251,5 mil à Universidade Federal do Acre – projeto
10
Atualizava assim o Banco Mundial a temática da “troca de dívida por natureza”.
11
Alegam-se compromissos que o País teria assumido em função da Convenção Quadro das
Nações Unidas sobre Mudanças de Clima, ratificada em 1994.
12
A GZT é empresa vinculada ao governo da Alemanha, que gere e realiza a cooperação técnica
desse país.
ADRIANO BENAYON
310
Bioma, que, embora pequena, é sugestiva quanto à influência da pecúnia
forânea numa universidade de diminuto Estado brasileiro.
13
A conexão entre as potências hegemônicas e “autoridades” brasileiras faz-
se por meio de n fundações, ONGs etc. Essa dependência de recursos externos
contamina órgãos oficiais. Segundo informe do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (INESC), já em 2000, 51% do orçamento Ministério do
Meio Ambiente e da Amazônia Legal eram provenientes de “doações”
internacionais, cerca de R$ 520 milhões.
8. Reservas indígenas
Tal como as áreas de preservação, as reservas indígenas seguem em grande
expansão. Somente a reserva dita ianomâmi, demarcada em faixa contínua, por
decreto de 1991, mede 94 mil km
2
, para só 4.000 a 5.000 índios, de quatro
grupos étnicos para ali importados, por vezes, hostis entre si. A demarcação foi a
culminação de vergonhosas capitulações a pressões das potências.
A área da reserva Serra Raposa do Sol mede 17 mil km
2
. Somada à
ianomâmi são 111 mil km
2
(11,1 milhões de hectares), e há mais reservas
colossais por toda a Amazônia, como a do rio Javari, com mais de 8 milhões
de hectares para 3.600 índios.
No total, as reservas indígenas já ocupam quase 1,1 milhão de quilômetros
quadrados, i.e., 110 milhões de hectares, cerca de 13% do território nacional,
para abrigar pouco mais de 400 mil indígenas. Toda a Região Sudeste, a
mais populosa do País, com mais de 75 milhões de habitantes, não chega a
928 mil quilômetros quadrados.
Em abril de 2005, a portaria 534/05 do Ministério da Justiça, contra
pareceres da Justiça Federal e da Estadual, do Senado, da Câmara de
Deputados e da ABIN, mandou demarcar, em faixa contínua, a reserva Raposa
Serra do Sol, pendente de decisão no STF. Ali há menos de 20.000 índios,
contando mestiços e aculturados. O CIR [Conselho Indigenista de Roraima,
vinculado ao CIMI,
14
] representa 20% dos índios, entre os quais há aldeias
13
Essa se destina a pesquisa sobre áreas de proteção ambiental, para elevar programas ao nível
de doutorado, passo para que a UFAC siga obtendo fundos governamentais para a pesquisa
aplicada sobre esse tema.
14
O CIMI (Conselho Indigenista Missionário), teve, entre outras fontes de financiamento,
US$85 milhões da “Fundação Nacional para a Democracia”, dos EUA, mantida pelo governo e
subordinada ao Congresso desse país.
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
311
inteiras trazidas da Guiana pelo falso padre Giorgio Dal Bene em conluio
com funcionário da FUNAI.
15
A característica comum com a área ianomâmi é a dotação inusitadamente
rica em ouro e diamantes e em minerais estratégicos para a indústria e o
poder bélico, como nióbio, tântalo, berílio, terras raras, titânio e zircônio.
16
A integridade da Nação exige que sejam anuladas as demarcações em
faixa contínua. Além disso, a prevalência dessas demarcações pisotearia os
direitos dos “não índios”, que estão sendo alvos de operação de limpeza
étnica, do tipo que as potências hegemônicas têm promovido nos Bálcãs. Há
na Raposa Serra do Sol mais de 450 famílias “não índígenas”, de há muito ali
assentadas. Expulsá-las é atuar conforme antigo conceito racista, um vírus
em proliferação nas mentes locais globalizadas, ao introjetar valores imperiais
como sujeito passivo destes.
As potências hegemônicas, ávidas de tornar absoluto seu controle sobre
populações ditas indígenas, por meio de fundações, ONGs, conselhos de
igrejas e outras entidades, insistem em erradicar todos os que se possam
integrar à sociedade brasileira, qualificando-os de não índios.
Que quer dizer “não índio”? Se for uma questão de etnia, admitir a distinção
atenta contra a Constituição, cujo art. 3º proscreve esse tipo de discriminação:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
.... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Lembre-se também o art. 5º, que garante o direito à igualdade de
tratamento e define, em seu inciso XLII, a prática do racismo como crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
Um indivíduo pode ser geneticamente 100% “indígena” e não desejar
viver segregado pela fronteira da demarcação. Na Raposa, a maioria dos
não enquadrados pelas entidades estrangeiras prefere fazer parte da
comunidade local e nacional. Eles têm o direito de escolher seu modo de
vida, e seus direitos não estão sendo respeitados.
Desde as revoluções norte-americana e francesa, da 2ª metade do Século
XVIII, pertencer a uma nação não é estar vinculado à soberania de “direito
divino” dos monarcas. Passou a decorrer de um ato de vontade por parte de
15
Fregapani, Gélio: comunicação pela internet em 28.02.2008.
16
Exemplificando, foi comprovada, em 1987, a maior jazida mundial de nióbio e titânio em São
Gabriel da Cachoeira, AM, no Morro dos Seis Lagos, a 60 km da fronteira com a Venezuela.
ADRIANO BENAYON
312
quem se constitui cidadão de uma sociedade. Como assinalou Ernest Renan,
não é a raça, nem a língua, nem a origem cultural, que determina a
nacionalidade, mas, sim, o desejo de viver em comunidade sob valores
coletivamente respeitados.
Os direitos dos silvícolas que assim querem permanecer podem ser
assegurados sem a atribuição a eles de megalatifúndios. Não há isso
nos EUA. Além de as reservas serem lá de dimensões modestas, os
territórios não são ricos em minérios. Ademais, os “pregadores” dos
direitos dos indígenas, têm histórico nacional tachado pela dizimação
de tribos locais.
É inaceitável o critério étnico para amputar do território pátrio enormes
áreas, riquíssimas em minérios estratégicos e preciosos. As demarcações em
faixa contínua convergem com a Declaração dos Direitos Indígenas, aprovada
pela Assembleia-Geral da ONU, sobre a autodeterminação de comunidades
indígenas, para propiciar que tribos troquem a tutela disfarçada pela tutela
declarada das potências hegemônicas.
A declaração é incompatível com o direito de países soberanos a
conservar a integridade de seu território. Editorial da Folha de São Paulo, de
30.08.2008 assinala: “O acervo constitucional brasileiro não abriga o
conceito de “povos” nem de “nações” indígenas. A lei fundamental
admite apenas uma nação, um território e uma população, a brasileira.”
Aponta o editor: “Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia ...
perceberam a esparrela e não assinaram a declaração da ONU.” Mostra,
ainda, outro ponto insustentável do documento da ONU: restringir ações militares
em terras indígenas. “As áreas ocupadas por índios no Brasil são propriedade
da União e, para fins de defesa nacional, estão sujeitas à presença permanente
das Forças Armadas.” E: “Na [zona de] fronteira, definida como a faixa de
150 km até a divisa com outros países, a presença militar é obrigatória.”
Isso é disposto no art. 20, § 2º da CF. Na prática, o controle das Forças
Armadas está sendo usurpado pelos que comandam líderes indígenas, por
meio de cooptação e corrupção.
Incoerentemente, o editor da Folha entende ser constitucional o decreto
presidencial que homologou a terra indígena Raposa/Serra do Sol. Se condena
a adesão do Brasil à Declaração, deveria repudiar também o decreto,
provavelmente ainda mais danoso.
Com efeito, caso mantido pelo STF, o decreto assegura, no terreno, a
exclusão dos brasileiros de todas as raças e oriundos de todas as
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
313
miscigenações, acarretando a expulsão dos “não índios” e a dos índios que
não querem ser excluídos da comunidade brasileira. Recorde-se que a Polícia
Federal fora mobilizada para essa expulsão, agora sub judice.
A situação no terreno é determinante, pois o direito não costuma
prevalecer sem a capacidade, inclusive militar, de o fazer respeitar. O essencial,
no momento, para as potências hegemônicas é garantir que saiam das áreas
demarcadas os brasileiros não engajados a seu serviço direto ou por ONGs
e entidades religiosas interpostas.
Com ou sem o voto do Brasil a favor da Declaração, as potências
hegemônicas já obtiveram tantas capitulações de governos do País e já o
fizeram enfraquecer tanto, que, para desencadearem o processo de
“independência” de pretensas nações indígenas, só falta a demarcação em
faixa contínua.
Essas potências levaram o governo a criar o PPTAL, na FUNAI/Ministério
da Justiça – Projeto Integrado de Proteção das Populações e Terras Indígenas
da Amazônia Legal. Conforme assinalou Rui Nogueira, a própria FUNAI
divulgou, em cartaz, os gestores, controladores e financiadores do projeto
para toda a Amazônia Legal, i.e., metade do território nacional: KfW (Banco
de Reconstrução, da Alemanha), Banco Mundial, Ministério Federal de
Educação e Pesquisa da Alemanha, PNUD e GTZ.
17
A GTZ, a empresa de cooperação técnica da Alemanha, vinculada ao
Ministério da Cooperação desse país é quem determina a demarcação de
reservas indígenas.
18
9. Conclusão
Data de longe e intensifica-se a reserva, na Amazônia, de espaços
subtraídos ao território accessível aos brasileiros. Os métodos usados para
isso são convergentes: 1) a livre aquisição de terras por estrangeiros; 2) as
concessões da Lei de Florestas; 3) as unidades de conservação, sob
orientação e cooperação técnica e financeira de entidades estrangeiras; 4) o
estabelecimento de reservas indígenas, sob os mesmos princípios.
Tornou-se comum, na direção de agências e outros órgãos reguladores,
a nomeação de pessoas ligadas aos grupos privados interessados. O Ministério
17
Nogueira, Rui: “Quem manda na Amazônia”, publicado na Tribuna da Imprensa, em 02.09.2008.
18
A GTZ tem escritório em Brasília e salas na sede da FUNAI, dentro da qual estão presentes
também o Banco Mundial e outras entidades públicas estrangeiras.
ADRIANO BENAYON
314
do Meio Ambiente, o IBAMA, FUNAI e outros órgãos têm introjetado
ideologias que absolutizam o meio ambiente e os direitos indígenas,
menosprezando os demais interesses da sociedade brasileira.
Ademais da intensa propaganda, da cooptação de formadores de
opinião e do viés da mídia, o establishment oligárquico mundial aplica
verbas em fundações, ONGs e entidades ambientalistas e indigenistas.
Logrou, desse modo, inculcar na mente de muitos brasileiros a ideia de que
não temos competência para gerir e preservar a Amazônia, formando, em
âmbito mundial, a concepção da Amazônia como “patrimônio da
humanidade”, além da imagem dos países “desenvolvidos” como padrões
de civilização.
Ilustrativo disso foi o comentário colaboracionista, à Folha de São Paulo
(04.10.2006) por Tasso Azevedo, diretor do Serviço Florestal Brasileiro,
sobre a insolente sugestão do ministro britânico Miliband, referida no item 4:
Os interessados em ajudar a proteger as florestas da região poderiam
contribuir para o fundo do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia
(ARPA). Até agora, apenas empresários brasileiros colaboraram com essa
iniciativa. Recursos estrangeiros também seriam muito bem vindos.
A realidade é destorcida, ainda, pela mentalidade de desprezo para com
nossa sociedade, um componente do complexo coletivo de inferioridade,
exacerbado pela ideia de que o País é pobre, quando só o é na medida em
que dirigentes seguem iludidos pelo canto de sereia do capital estrangeiro e
manietando o desenvolvimento por meio da política econômica.
O exposto ao longo deste trabalho denota ser impulsionada por interesses
oligárquicos situados nas potências hegemônicas a tendência à ocupação da
Amazônia sem brasileiros, a não ser como contratados ou massa de manobra
delas ou de instituições prepostas.
Isso não é de admirar, uma vez que os brasileiros, em todo o País, vêm
sendo excluídos, pelo modelo e pela política econômica, de direitos
constitucionais, como o direito ao trabalho, decentemente remunerado, à saúde
e à educação e o de propriedade.
Só há um meio de livrar o Povo brasileiro de ficar banido de espaços
capazes de assegurar-lhe sobrevivência digna. É reorganizar a sociedade e o
Estado, de forma a viabilizar políticas como as realizadas por Lincoln nos
EUA há 143 anos; no âmbito de esquemas como o delineado sobre energia
A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA
315
renovável em 4.2, prover milhões de brasileiros da posse de glebas, na média
de 40 hectares, sendo 2,5 hectares por produtor.
Os assentados habilitar-se-iam à propriedade após 15 anos de produção
em alta e solo melhorado. Apoiados por investimentos públicos em hidrovias,
ferrovias, transporte local, extensão rural e financiamento, 40 milhões de
brasileiros estariam empregados em 100 milhões de hectares, 27% dos 370
milhões julgados aptos à agricultura pelo IBGE, sem tocar nos outros 480
milhões. Resultariam, 120 milhões de empregos, contando os indiretos, o
dobro do atual número de desempregados e subocupados.
A defesa da Amazônia não é viável sem mudança institucional profunda.
Só um sistema político não governado pelo dinheiro concentrado pode realizar
a indispensável autodeterminação nacional, que exige criar estruturas
econômicas, políticas e culturais distintas das presentes.
Sem retomar o controle da economia e das finanças onde elas se
encontram (São Paulo, Rio de Janeiro etc.), não haverá como manter a
Amazônia brasileira. Ademais, o poder militar, indispensável para isso, só
tem possibilidade de ser construído com a reconquista desse controle.
317
Manaus, Cidade Mundial para prestação de
serviços ambientais: uma proposta
Bertha K. Becker
A expressão Cidade Mundial refere-se a processos dos mais avançados
na sociedade contemporânea, e Serviços ambientais constituem uma fronteira
de ciência e uma fronteira econômico-política de apropriação e uso da
natureza. Como propor que Manaus, metrópole regional de uma periferia
nacional, alcance tal nível avançado de urbanização?
A hipótese que sustenta tal proposta, é que os serviços ambientais devem
ter valor econômico e estratégico equivalente a serviços para a produção, e
que Manaus tem condições potenciais para utilizar os serviços ambientais –
serviços especializados de tipo único, não disponível às grandes cidades
mundiais – projetando-se como cidade mundial tropical, centro de comando
quanto à prestação de serviços ambientais.
O patrimônio natural amazônico adquire novo valor econômico e
estratégico na dinâmica mundial contemporânea como fronteira do capital
natural. Acelera-se o processo de mercantilização da natureza com a
valorização de novos elementos em que os serviços ambientais vem sendo
privilegiados. Os mercados para serviços ambientais, sobretudo o do carbono,
se expandem rapidamente sem que o país tenha ainda conhecimento pleno e
um quadro institucional adequado para efetuar a valoração dos serviços.
Os serviços ambientais podem abrir grande oportunidade para o
desenvolvimento da Amazônia. Mas os serviços ambientais (SAs) só poderão
contribuir par ao desenvolvimento regional se for superado o padrão histórico
BERTHA K. BECKER
318
primitivo de apropriação destrutiva de recursos naturais, utilizando-os num outro
patamar, o do século XXI, com novas formas de produção capazes de utilizar
o capital natural sem destruí-lo, e de gerar riqueza para a região e o país.
Trata-se de investir num grande esforço – científico, econômico e político
– para atribuir valor econômico e estratégico à floresta em pé, para que
possa competir com as commodities e ser utilizada em bases inovadoras.
Significa tirar partido das extensões florestais da Amazônia brasileira e Sul-
Americana e da presença de Manaus com posição estratégica frente às
florestas e dotada de um embrião de instituições de pesquisa.
O objetivo deste texto é discutir essa proposta. Numa primeira sessão
busca-se a compreensão do significado histórico dos SAs a partir das
contribuições de pensamento econômico; a segunda sessão recorre às ciências
sociais para ampliar o conceito de serviços e explicitar o de cidade mundial.
Na terceira sessão analisa-se potencialidades e desafios a enfrentar para
capacitar Manaus a comandar a prestação de serviços em nível global;
finalmente, propostas estratégicas são apresentadas numa quarta sessão.
1. Serviços Ambientais: Novidade Histórica na apropriação e uso
da natureza
Durante séculos a sociedade vem utilizando o estoque de matérias-primas
dos ecossistemas para sua sobrevivência e para produzir riqueza. A grande
novidade histórica é que hoje se tenta mercantilizar não apenas as matérias-
primas, mas as funções dos ecossistemas. A explicação dessa inovação
repousa nas mudanças do contexto mundial para o que se recorre ao
pensamento da economia e das ciências sociais.
1.1. O Pensamento Econômico
A economia domina nessa área de conhecimento e enfrenta o desafio –
não superado – de atribuir valor e preço às funções da natureza, até agora
não inseridas na esfera econômica. Os estudos de Herman Daly são básicos
para economistas ambientais e ecológicos dedicados à questão.
Considerando a natureza como capital natural, entendem a estrutura dos
ecossistemas (constituída de elementos bióticos e abióticos) como estoque
de onde se obtém fluxos de matérias-primas e as funções ecossistêmicas,
resultantes da interação dos elementos estruturais, como fundo-serviços.
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
319
A dificuldade em tratar dessa novidade transparece nas variações
conceituais de SAs: são “funções com valor para o homem” (Mattos, L.
2008); são “todos os benefícios prestados pela natureza” (Milênio, 2003) ou
ainda o “conjunto de serviços dos ecossistemas caracterizados pelas
externalidades” (FAO, 2007).
Parece haver, portanto, uma concepção que considera SA intrínsecos
aos ecossistemas, e outra que os define somente em interação com os homens.
Vale a pena um olhar sobre como as organizações internacionais se posicionam
quanto à questão.
Marcos na tentativa de esclarecer a questão são os estudos da Avaliação
de Ecossistemas do Milênio
1
, e da FAO. O milênio estabelece quatro
categorias de serviços dos ecossistemas:
i) serviços prestados (produtos obtidos dos ecossistemas);
ii) serviços de regulação (benefícios obtidos da regulação de processos
de ecossistemas);
iii) serviços culturais (benefícios intangíveis obtidos dos ecossistemas);
iv) serviços auxiliares necessários à produção de todos os demais serviços
de ecossistemas. Coroando esses serviços, situa-se a vida na terra, expressa
na biodiversidade.
Nessa proposição os serviços ambientais são definidos como “os
benefícios que a população obtém dos ecossistemas”. Compreendem, assim,
todos os produtos das atividades humanas, incluindo produtos tão diversos
como a produção de alimentos e a regulação do clima.
Muito mais restrita é a definição da FAO, concebida em função do
interesse direto para os agricultores (FAO, 2007). Os serviços de
ecossistemas se criam através das interações dos organismos vivos, incluindo
os seres humanos. Se produtos como alimentos se produzem intencionalmente
e seus agentes podem influir na sua elaboração através dos preços, muitos
outros serviços de ecossistemas são prestados unicamente como
externalidades, na medida em que geram consequências negativas ou positivas
e as pessoas por elas afetadas não podem influir na produção. Por essa
razão, consideram como SA, especificamente, o conjunto de serviços de
1
Ecosystems and Human Well-being: a Framework for Assessment, Island Press, Washington
D C, 2003.
BERTHA K. BECKER
320
ecossistemas caracterizados pelas externalidades. Benefícios devem, assim,
ser pagos aos prestadores de SA para reduzir as externalidades negativas e
aumentar as positivas.
O problema da valoração, contudo, persiste. Segundo a FAO, a maneira
mais comum de estimar valores ambientais é o conceito de “valor econômico
total”, que inclui todo o conjunto de valores ecossistêmicos atribuídos pelas
pessoas a cada uma das formas de uso da terra.
Distinguem-se, assim:
i) os valores de uso direto, originados por bens e serviços comercializados,
que normalmente geram benefícios privados. Correspondem à categoria de
serviços prestados na Avaliação do Milênio;
ii) os valores de uso indireto, benefícios que se obtém indiretamente das
funções ecológicas realizadas, correspondendo à última categoria de benefícios
de grupo de serviços normativos e auxiliares do milênio;
iii) os valores de opção, se baseiam no benefício de preservar a
possibilidade de um uso direto ou indireto no futuro;
iv) os valores de não uso, ou de existência, são benefícios totalmente
desvinculados de qualquer uso pessoal de um ecossistema. Os benefícios
compreendem o valor de assegurar a permanência dos ecossistemas para a
sobrevivência das espécies e habitats (FAO, 2004c).
O Quadro 1 retrata essa classificação, indicando a abrangência geográfica
dos benefícios.
Fonte: FAO, 2007 (Adaptado de FAO, 2004).
No Brasil, aos esforços para conceituar e valorar os serviços ambientais
no Brasil soma-se a iniciativa, em discussão, de uma legislação mais ampla
num Projeto de Lei nº 792, de 2007 – que dispõe sobre a definição de
serviços ambientais e dá outras providências. Apenso a esse PL encontra-se
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
321
o PL 1.190/07 que cria o Programa Nacional de Compensação por Serviços
Ambientais – Programa Bolsa Verde, destinado à transferência de renda aos
agricultores familiares beneficiários do Programa Nacional de Agricultura
Familiar (PRONAF).
Até o momento (abril de 2008) a proposta para o PL 792 distingue os
objetivos dos SA intrínsecos aos ecossistemas e os objetivos do pagamento
por SA. Os SA são definidos como “funções inestimáveis e imprescindíveis
oferecidas pelos ecossistemas para a manutenção de condições ambientais
adequadas para a vida na Terra, incluindo a espécie humana”. Já o pagamento
ou a compensação por SA tem como principal objetivo transferir recursos,
monetários ou não, a aqueles que voluntariamente ajudam a conservar ou a
produzir tais serviços. (Deputado Jorge Khoury, relator do PL à Comissão
de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, 2007).
1.2. A Instituição do Preço não é Natural
Atribuir valor e preço econômico à vida e identificar o direito à
propriedade dos seres vivos dificultam – mas não impedem – sua
transformação em mercadorias fictícias e a institucionalização de um mercado
real para controle da natureza.
Enquanto os pesquisadores brasileiros se esforçam para conceituar,
valorar e chegar a valores monetários concretos dos serviços ambientais
visando beneficiar o país com essa nova riqueza, a prática mercantil avança
rapidamente.
O sequestro de carbono é o instrumento econômico mais utilizado para
os serviços ambientais brasileiros, mas atuando em nível global e não restrito
ao território do Brasil. Os certificados de Redução de Emissões (CER) e
gases de efeito estufa, ou créditos de carbono como mais conhecidos,
constituem o instrumento de organização de um mercado financeiro em rápida
expansão, ainda mais impulsionado com o problema do aquecimento global.
O mercado do carbono tem origem no Protocolo de Quioto (1997) e no
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), este proposto pelo Brasil.
A lógica do MDL é a de beneficiar projetos onde ocorram reduções de
emissões de gases de efeito estufa, envolvendo aterros sanitários, energias
renováveis e eficiência energética, e reflorestamento. Podem ser vistos como
créditos que autorizam o direito de poluir aos países que são grandes
emissores. As agências de proteção ambiental reguladoras emitem certificados
BERTHA K. BECKER
322
autorizando emissões de toneladas de dióxido de enxofre, monóxido de
carbono e outros gases poluentes. Indústrias mais poluidoras de um país são
selecionadas e a partir daí são estabelecidas metas para redução de suas
emissões; elas recebem bônus negociáveis, cada um cotado em dólares ou
euros, equivalente a uma tonelada de poluentes.
Tem sido grande a expansão do mercado de carbono. Os volumes desse
mercado têm estimativas das mais variadas e, na maioria, não concordam,
variando desde US$ 500 milhões até US$ 80 bilhões.
Duas grandes bolsas regem esse mercado: a Bolsa do Clima de Chicago
(CCX) e a Bolsa de Negócios de Carbono da EU (ECX). Vale ainda registrar
a Divisão de Contratos Futuros da Bolsa de Chicago (CCFE), muito ativa.
E multiplicam-se empresas e agências especializadas em projetos para
negociação dos CERS.
A bolsa europeia negociou mais de 908.000 contratos futuros entre
janeiro-novembro de 2007, representando um crescimento anual de 133%,
e a de clima de Chicago aumentou em 97 % no mesmo ano (Carbono Brasil,
2008). E no início de 2008, créditos de redução de efeito estufa alcançaram
alta de 80%.
Desde fevereiro de 2008, revelou-se uma tendência de queda associada
ao risco de desaceleração da economia dos E.U.A. e seus impactos globais
e, hoje, à crise financeira global. Trata-se, pois, de um mercado incerto.
Segundo a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, o
futuro das negociações de emissões depende muito de como o novo tratado
climático for desenvolvido.
Grupos se organizam para pesquisa e sua aplicação nos serviços
ambientais, neles sobressaindo as ONGs, e muitas de âmbito global. No
Brasil, a Vitae Civilis foi uma das ONGs pioneiras no setor da compensação
por serviços ambientais; tem parceria com PRISMA, organização de São
Salvador, e colaboração de várias ONGs brasileiras.
Iniciativas de maior abrangência em relação aos dispositivos legais
existentes, estão emergindo no país. Destaca-se o Estado do Amazonas
criando a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) em dezembro de 2007
com base no potencial econômico da venda de créditos de carbono das 34
Unidades de Conservação do estado que somam 17 milhões de floresta.
Com base em estudo feito pela INPA, cada hectare de floresta estoca 0,6
tonelada de carbono por ano que, a um pagamento de US$ 3,8 por tonelada
de carbono evitada, podem render US$ 100 milhões por ano. A FAS,
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
323
entidade privada criada por lei estadual com recursos do estado e parceria
com o Bradesco para reunir recursos visando a proteção ambiental tem os
direitos dos serviços e produtos ambientais gerados pelas 34 UCs. Planeja
realizar até o fim do ano a primeira venda de crédito de carbono de uma das
34 Unidades de Conservação, a reserva de desenvolvimento Juma.
No início de abril de 2008, a Comissão de Meio Ambiente aprovou a
organização e a regulação do mercado de carbono em bolsas de valores por
meio da emissão de CERs em projetos de MDL que podem ser negociados
nos mercados à vista e de liquidação futura. As confusões conceituais a falta
de informação e orientações no Brasil tem ocasionado distorções e
especulações desnecessárias nesse mercado, dificultando o acesso de
pequenos produtores à legislação estabelecida.
Trata-se, portanto, claramente da consolidação do mercado de carbono.
Na ausência de valoração estabelecida pela ciência e de regulação nacional
consolidada, é o mercado que dá o preço à essa commodity e, como qualquer
mercado, é regulado pela demanda dos países industrializados que nele tem
a expectativa de um grande negócio financeiro, e cujas crises tem sobre ele
um forte impacto. E, como é de costume, o mercado internacional estabelece
um baixo preço para a tonelada de carbono, à semelhança dos baixíssimos
preços pagos pelas commodities exportadas como matéria prima do estoque
da natureza sem agregação de valor. O mercado formal (Europeu) paga
EUR 27,55/tCO
2
, o MDL em torno EUR 20,00/t CO
2
, mas o paralelo, de
Chicago, apenas US$ 6,50tCO
2
.
A dificuldade em regulamentar a comercialização dos CERs está na grande
diferença entre a economia e a legislação dos países poluidores em relação à
economia extrativa latino-americana. Concordamos com outros autores – é
importante que o congresso elabore normas para regular o mercado de
carbono que estejam em consonância com a legislação internacional para o
setor.
Há, portanto, o risco dos CERS se transformarem apenas em uma
operação financeira para dar lucros aos seus investidores sem gerar vantagem
para o meio ambiente, e muito menos para as comunidades envolvidas. E
ainda sujeita às crises nos mercados de ações e às fraudes bilionárias que
caracterizam o sistema financeiro (El Khalili, 2008). Enquanto isso, os
pequenos produtores permanecem à margem desse grande negócio, bem ao
contrário do que o apenso ao PL que dispõe sobre os serviços ambientais
que se propõe.
BERTHA K. BECKER
324
Tem razão, portanto, (Polanyi, 1944). A mercadoria fictícia carbono
está organizando um mercado real. Mas sem que se estabeleçam instituições
nacionais capazes de regulá-lo e cerceá-lo. E o reconhecimento do processo
de institucionalização do preço indica a necessidade de recorrer às ciências
sociais para a compreensão dos SAs.
2. Serviços para a Produção, Redes e Cidades Mundiais: Inovações
na Estrutura Produtiva
A globalização da atividade econômica gera um novo tipo de estrutura
organizacional, cuja análise teórica e empírica requer um novo tipo de
arquitetura conceitual em que os serviços constituem importante elemento.
Motriz impulsionando a conectividade através de redes e embasando a
formação de cidades mundiais.
2.1. A Categoria Serviços nas Ciências Sociais Contemporâneas
Rica literatura científica produzida nos últimos vinte e cinco anos
demonstra que os serviços, e não mais a industria, são hoje o motor da
expansão econômica globalizada. E uma grande transformação ocorreu no
setor alterando o seu conceito convencional; emergiu uma nova categoria de
serviços para produtores (SP) que, com destaque para os serviços financeiros,
tem papel central na economia dos países industrializados mais importantes e
na internacionalização dessas economias. Em outras palavras, esses serviços
tornam-se um fator chave na ampliação da escala da mercantilização.
A grande transformação nos serviços tem, assim, dois significados
associados. Um deles, refere-se às mudanças que vem ocorrendo rumo ao
capitalismo pós-industrial, em que os serviços substituem a indústria como
motor da globalização. O segundo significado refere-se às mudanças no
setor de serviços em si, no novo contexto econômico.
Até a década de 1980, o setor de serviços era concebido como uma
categoria residual, não enquadrado no setor primário nem no secundário. E
os serviços eram vistos como não transportáveis, impossíveis de serem
estocados, e não sujeitos à acumulação e exportação. A grande transformação
ocorrida nos serviços reside, justamente, na reavaliação dessas características.
Há evidência significativa que “serviços para produtores” não correspondem
a esses critérios (Daniels, 1985; 1995; Marshall et al. 1986); hoje, por meio
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
325
digital são transportáveis, estão sujeitos à acumulação e exportação, e
referem-se, inclusive, a processo desmaterializados.
Dentre as várias mudanças ocorridas no setor, a grande inovação é a
emergência dessa nova categoria, “os serviços para produtores” (SP),
sobretudo os financeiros, pilares das transformações contemporâneas.
Os SP constituem, assim, uma categoria distinta de outros serviços,
particularmente dos serviços para consumidores. Trata-se de serviços
altamente especializados essenciais às funções crescentemente complexas
das firmas, dentre os quais destacado-se os financeiros, de seguro, jurídicos
e legais, de contabilidade, imobiliários, associações profissionais e os
associados à gestão complexa, inovação, design, comunicação.
Seu traço distintivo crucial, portanto, reside nos mercados que serve:
organizações – sejam firmas do setor privado ou entendidas governamentais
– e não consumidores finais. Em outras palavras, são produtos intermediários
especializados integrantes de uma economia intermediária mais ampla
(Greenfield, 1966; Sassen, 2003).
Duas transformações básicas impulsionam a expansão dos serviços. O
primeiro é o setor financeiro internacionalizado que tem papel nevrálgico nos
SP. Foi a inovação institucional constituída pela desregulação que permitiu a
globalização financeira.
O impulso das finanças em se globalizar, digitalizar, liquefazer ativos até
então não líquidos, foi crucial para induzir a produção de inovações no setor,
particularmente nos serviços financeiros e serviços especializados que servem
às finanças, como os serviços legais, de contabilidade, design, software e
seguros.
A Inovação Tecnológica com Novo Patamar de Informação foi o segundo
motor da expansão. As novas tecnologias de informação (TICs) foram
condição chave facilitadoras da dispersão geográfica das atividades
econômicas mantendo a integralidade do sistema, e engendram novos tipos
de serviços. Uma distinção se estabelece entre informação facilmente
disponível e barata, e informação que é difícil de obter e cara constituída pela
infraestrutura social capaz de produzir uma informação de ordem mais elevada.
A conectividade horizontal de funções especializadas dispersas através
de redes transfronteiriças assegura a integração da nova estrutura produtiva
globalizada. A simultaneidade de dispersão geográfica/integração das
atividades é um fator chave no crescimento, importância e complexidade das
funções centrais corporadas, constituindo o sustentáculo das grandes firmas.
BERTHA K. BECKER
326
O modo pelo qual essas firmas ganham o domínio nos serviços corporados
avançados, não é a integração vertical, mas, sim, horizontal através de redes
complexas de supridores e contratantes.
Em tal contexto, o poder não se resume ao controle exercido pelas grandes
corporações sobre os serviços e as inovações financeiras, nem sobre a economia
e o governo; tampouco se resume ao controle supracorporado concentrado
através de organizações globais. O foco da análise da mudanças globais deve
ser a produção e não os agentes. É a produção de insumos necessários para
produzir e reproduzir o poder formal dos agentes que constitui a capacidade
para controle global. Hoje, são as externalidades e as instituições que
reproduzem o poder formal.
A análise das contribuições da economia e da sociologia quanto aos serviços
ambientais, permite clarificar o significado dos SA com as seguintes proposições:
1. Serviços ambientais constituem uma nova categoria de análise gerada
pela complexidade e aceleração do capitalismo pós-industrial, em que os serviços
superam a manufatura como motor da expansão econômica. É a complexidade
de uma produção diferenciada em nível global, inclusive da indústria, que
demanda insumos crescentemente especializados, passando a incluir os SA.
Define-se, assim, os SA como uma função imaterial que o trabalho humano
transforma em insumo especializado da produção.
2. Os serviços ambientais são socialmente produzidos de dois modos.
Um deles é o reconhecimento de funções ecossistêmicas com “valor” para o
homem; constituem SA produzidos pela natureza per se, agora valorizados e
valorados. O outro são SA produzidos através do manejo e intervenção nos
usos da terra, isto é, através da transformação da natureza, ainda não
devidamente valorados. Tenta-se, assim, atribuir valor de uso direto a funções
dos ecossistemas até agora consideradas como tendo valor de uso indireto. E
tenta-se gerar externalidades positivas.
Os SA produzidos pela natureza per se ou por sua transformação tem
valor porque, assim como os serviços para produtores, “influem no ajuste de
uma economia em resposta a circunstâncias econômicas em mudança,
constituindo um mecanismo que organiza e estabelece trocas econômicas por
um pagamento”. São insumos intermediários de uma economia intermediária
mais ampla.
3. A proposição de SA como insumos intermediários especializados tem
respaldo nas análises de Herman Daly já referidas sobre capital natural. Partindo
de Aristóteles e Geogescu-Roegen, o autor distingue estoque-fluxos (estrutura),
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
327
que é materialmente transformado no processo produtivo, e fundo-serviço
(funções) que é usado na produção, mas não se torna parte do que é produzido.
Transformar inferências e interpretações em “informação” exige um mix
de talentos e recursos.
2.2. Cidades Mundiais
É Saskia Sassen quem mais avançou no estudo das cidades globais, ou mundiais
(1998, 2003). O enorme desenvolvimento das telecomunicações e das industrias
de informação, permitiu a realocação dos escritórios e fábricas em áreas menos
congestionadas e de custo mais baixo, e levou pesquisadores e políticos a pensar
que o lugar não tenha mais importância e a proclamar o fim das cidades.
Na verdade, a dispersão das atividades econômicas corresponde apenas
à metade do que ocorre no processo de globalização. Novas formas de
centralização territorial surgiram relativas à gestão no nível dos altos escalões e
ao controle das operações. Os mercados nacionais e globais, bem como as
operações globalmente integradas requerem lugares centrais onde se exerça o
trabalho de globalização.
O conceito de economia global entranhou-se nos círculos econômicos e
políticos do mundo inteiro baseado em imagens de fluxos instantâneos de dinheiro
e de informação para todo o globo. Essas imagens constituem representações
parciais e abstratas da globalização, excluindo processos, atividades e infra-
estrutura material que são fundamentais para sua implementação. Em suma, o
processo de globalização deve ter foco na produção dos fatores que o
implementam.
Dentre os processos e atividades que implementam a globalização destacam-
se: a) mobilidade do capital, que acarreta grandes mudanças na produção de
manufaturas e na rede dos mercados financeiros, gerando também demanda
por tipos de produção necessários a garantir a gestão, o controle e a prestação
de serviços especializados da nova organização das finanças e da industria; b)
os serviços especializados colocados à disposição das empresas e das transações
financeiras, e os mercados complexos que ambos implicam. Os tipos de
produção em questão possuem padrões próprios de localização e tendem a
níveis elevados de aglomeração.
Em outras palavras, as transformações ocorridas na composição da economia
mundial nas três últimas décadas do século XX, acompanhando a mudança
constituída pela expansão da prestação de serviços e das instituições financeiras,
BERTHA K. BECKER
328
renova a importância das cidades como locais destinados a certos tipos de atividades
e funções. Na fase atual da economia mundial, é precisamente a combinação da
dispersão global das atividades econômicas com a integração global, mediante uma
concentração continua do controle econômico e da propriedade, que tem contribuído
para o papel estratégico desempenhado por algumas grandes cidades – as cidades
globais (Sassen, 1998) ou mundiais.
Cidades mundiais são portanto (Sassen, 1998):
1. Pontos de comando da organização da economia mundial;
2. Lugares e mercados fundamentais para as atividades de destaque do atual
período, isto é, as finanças e os serviços especializados destinados às empresas;
3. Lugares de produções fundamentais para essas atividades, incluindo a
produção de inovações.
É possível, portanto, definir as cidades mundiais como unidades territoriais
que comandam a economia global contemporânea que lhes atribuem vantagens
competitivas para exercer tal função.
3. Potencialidades e Desafios para Conversão de Manaus em
Cidade Mundial
O potencial de Manaus para constituir-se como cidade mundial
prestadora de serviços ambientais corresponde a fatores naturais e sociais;
desafios a enfrentar são todos de ordem social.
3.1. Potencialidades
3.1.1. O valor estratégico do capital natural Amazônico
São as estruturas-funções ecossistêmicas interdependentes, com todos os
serviços de suporte, de regulação e existencial, que têm valor como complexo
articulado para afirmação da vida, finalidade maior da natureza.
Trata-se de um complexo dotado de atributos e “práticas” que lhe conferem
não só valor econômico como poder, que não deve ser esquecido em sua valoração.
Significa que o valor dos serviços ecossistêmicos só deveriam ser
estabelecido a partir do valor agregado do conjunto de elementos que os
produzem e sustentam a existência da vida. Mercados segmentados para
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
329
valorar elementos individuais dos ecossistemas tem pelo menos dois efeitos
perversos; a) a exploração predatória de um dos elementos do estoque de
capital natural tal como a destruição da floresta historicamente realizada no
Brasil; a) a redução do valor dos ecossistemas, suas funções e serviços, tal
como vem ocorrendo hoje com o mercado de carbono.
3.1.2. Posição geográfica estratégica de Manaus frente ao capital
natural
A posição geográfica de Manaus, de mediação entre os ecossistemas
florestais interioranos e o mundo atlântico é, sem dúvida, o potencial chave a
ser explorado. No passado, o valor estratégico da cidade adivinha, sobretudo
de sua posição na confluência das redes de drenagem amazônicas. Hoje, soma-
se a esse potencial, a posição frente às florestas amazônicas sul-americanas.
Em que pese o desflorestamento na borda da Hileia, ampliada no Pará,
ela persiste em sua fantástica magnitude na maior parte da Amazônia brasileira
e, sobretudo, na Amazônia sul-americana (Fig. 1).
Figura 1
BERTHA K. BECKER
330
Nesse imenso domínio dos ecossistemas sistemas amazônicos não há
uma cidade que possa competir com Manaus, em termos populacionais e de
dinâmica econômica. A densidade demográfica é extremamente baixa, o
povoamento concentrando-se nas suas bordas, com incursões apenas, para
o interior da floresta, correspondendo a povoamentos localizados ou a
fronteiras em expansão (Fig. 2). Dentre essa áreas destaca-se a cidade de
Iquitos no Peru, importante centro de comando da exploração madeireira no
Peru e na fronteira com o Brasil, mas que não se compara a Manaus em
termos de população e de dinâmica econômica.
Figura 2
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
331
3.1.3. Embrião de C/T&I da cidade de Manaus
É sabido que a Região Norte detém os mais baixos índices de recursos
humanos e de investimentos em C&T&I, que correspondiam até 2007 a 3%
do total nacional, e vem subindo a partir de então.
Belém e Manaus metrópoles regionais concentram os recursos humanos
e os investimentos em C&T&I, seguidos de Cuiabá. Centros de comando
dos surtos econômicos que caracterizaram o povoamento da Amazônia, Belém
e Manaus acumularam com o tempo uma ampla base de conhecimento sobre
o trópico úmido calcada em pesquisas de inventario e classificação. A criação
do Museu Paraense Emilio Goeldi ainda no século é simbólica para essa
tradição de pesquisa.
Desde meados do século XXI diferencia-se a dinâmica econômica das
duas metrópoles. Enquanto Belém é articulada à Brasília por estradas e por
elas dinamizada, Manaus, sem ligações rodoviárias, passa ser sede de uma
iniciativa industrial estratégica: a Zona Franca que implanta a industria nas
fronteiras da região norte, domínio da economia comercial.
O sucesso da Zona Franca, subsidiada pelo Governo Federal, estimulou
a criação do Polo Industrial de Manaus (PIM) e da C&T a ele associada.
Uma infraestrutura de pesquisa e de serviços desenvolveu-se associada a
essa função da cidade.
Em fins do século XX, a valorização da natureza no processo de
globalização impulsionou a pesquisa na região em novos moldes: grandes
projetos em parceria internacional sobre temas da fronteira da ciência, com
grande impacto sobre a pesquisa de inventário tradicional. É o caso dos
projetos LBA, Geoma e PPBio, desenvolvidos sob a coordenação da SEPED,
MCT.
Simultaneamente, para vencer o déficit em P&D foi idealizado e construído
em Manaus o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) que,
lamentavelmente, até hoje não conseguiu superar os entraves políticos para
sua dinamização. Pequenas e médias empresas e incubadoras nascidas na
Universidade, emergem como promissoras no fortalecimento de P&D apoiada
pelos fundos setoriais.
Por sua vez, novos atores representam novas oportunidades. É o caso
das Secretarias de C&T, a do estado do Amazonas sendo a mais dinâmica
da Região Norte, bem como das Universidades privadas que se multiplicam
e, mesmo, de algumas ONGs que realizam pesquisas no estado.
BERTHA K. BECKER
332
Enfim, um conjunto de atores e atividades já significativo responde pela
presença de um embrião de C&T, liderado até agora pela dinâmica industrial.
O CT-PIM oferece a oportunidade de viabilizar o potencial de Manaus como
polo na interface com os procedimentos industriais mais sofisticados e
produtivos do planeta com baixo impacto ambiental. Face à dinâmica mundial,
incluiu em seu planejamento a associação com o CBA e a microbiologia,
criando bases para o desenvolvimento da nanotecnologia.
Porque não fortalecer a pesquisa dos serviços ambientais e sua
descentralização em uma rede de cidades necessária também para estimular
a produção industrial de produtos florestais?
3.2. Desafios a enfrentar
Os SAs constituem, certamente uma oportunidade para a implementação
de um modelo de desenvolvimento inovador na Amazônia. Mas só o serão se
puderem romper com a trajetória histórica colonialista de uso dos recursos
naturais da região. Para tanto, há que enfrentar desafios econômicos e políticos.
3.2.1. As imposições do contexto internacional
A observação dos valores atribuídos aos diferentes tipos de serviços
em sua abrangência geográfica no documento de FAO, sugere que para a
Amazônia deveria ser excluído o valor de uso direto, a ela se atribuindo os
valores de uso indireto, de opção ou não uso. Entende-se a Amazônia como
uma grande unidade de conservação mundial. Os benefícios locais desses
usos são apenas de proteção e conservação para o futuro, mas eles geram
grandes benefícios em nível global.
Quem decide o uso dos SA e a quem beneficiam é o mercado
financeiro internacional, com privilegio ao sequestro de carbono transformado
em commodity. Os projetos do MDL (Kioto) pretendidos não ocorreram
significativamente na região, onde se destaca o da Fundação Amazônia
Sustentável (FAS) do estado do Amazonas.
O mercado estabelece um preço baixo para a tonelada de CO
2
como
sempre fez com as demais commodities sem agregação de valor. O mercado
formal europeu paga EUR 27, 55 t CO
2
, o MDL EUR 20,00, mas o paralelo
de Chicago – o mais utilizado – apenas US$ 6,50 t CO
2
(Cotações em
meados de 2008).
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
333
A riqueza gerada beneficia, sobretudo o setor financeiro privado, um
pouco o público, no caso o governo estadual, pouco ou nada restando para
a população regional. Trata-se de um processo em grande contradição com
o Apenso ao Projeto de Lei sobre os SAs segundo o qual os beneficiários
deveriam ser, sobretudo, os produtores familiares.
3.2.2. Políticas equivocadas
Praticados também na escala internacional, elas são adotadas nos
diferentes países. Trata-se, dominantemente, de políticas com foco nos agentes
e na redução das emissões.
Pesquisas no estado Pará (Costa, 2007; Mattos et AL 2008) demonstram
que: a) esquemas de compensação centrados exclusivamente nos agentes e
focados na redução da produção acarretarão perdas sistemáticas para a
economia local; b) as regras do MDL privilegiando um único produto dentro
numa propriedade ignoram que a lógica do manejo integrado considerando
múltiplos serviços eleva a linha de base do carbono. Em suma, pesquisas
teórica e in loco demonstram que é necessário pensar políticas de contenção
do desmatamento e de seqüestro de carbono indissociavelmente ligadas à
políticas de produção.
3.2.3. Carências de serviços especializados necessários a organizar
a prestação de serviços ambientais em Manaus
Como visto, existe em Manaus um potencial científico-tecnológico
significativo e de serviços ligados ao PIM. A organização da prestação de
serviços ambientais capaz de tornar Manaus numa cidade mundial exige,
contudo, pesquisas e serviços altamente especializados que a cidade não
tem. Dentre os serviços, os serviços financeiros (não apenas bancos), de
informação, jurídicos, de seguros, marketing.
Vale a pena frisar a importância da informação. Dois tipos de informação
se diferenciam nesse processo: a) os dados, que são uma informação
complexa, mas estandartizada, facilmente disponível para as firmas; b) a
informação não estandartizada, que é muito mais difícil de obter, porque requer
interpretação/avaliação/julgamento, visando produzir um tipo de informação
de ordem mais elevada. O acesso ao primeiro tipo de informação é hoje
global e imediato graças à revolução digital. Mas é o segundo tipo que requer
BERTHA K. BECKER
334
uma mistura complexa de elementos – não só técnicos, mas também sociais
– que pode ser pensada como infraestrutura social para a conectividade global.
É esse tipo de infra-estrutura social que atribui aos maiores centros financeiros
seu papel estratégico. Em princípio, a infra-estrutura técnica para a
conectividade pode ser reproduzida em qualquer lugar, mas a conectividade
social não pode, necessita de pessoas com talento.
4. Propostas Estratégicas
A partir das conclusões da análise efetuada, é possível, a seguir sugerir
ações necessárias para organizar a prestação de serviços em que Manaus
tem papel central.
1. Reconhecer que os SA não têm apenas valor econômico, mas também
estratégico. O valor estratégico da natureza não é previsto nem no pensamento
econômico nem no sociológico. Esse valor existe, é crucial, mas de difícil
mensuração porque é um dado de relações complexas referentes ao valor de
existência. O valor estratégico qualifica o capital natural da Amazônia como
um componente de poder; poder pela concentração de estoque e de serviços
sem equivalente no planeta sob soberanias nacionais. Coloca-se para o Brasil
e demais países amazônicos a questão política de como fazer reconhecer
esse valor estratégico de “pura existência” da natureza no cenário global.
2. Produzir para conservar e permitir à Amazônia inteira se beneficiar
com os SA. Os SA são socialmente produzidos por duas modalidades: a)
valor atribuído pelo homem a funções ecossistêmicas; b) transformação da
natureza pelo homem. O que se propõe é uma estratégia que tire partido
dessa duplicidade que já é inerente à vida regional. Na Amazônia com mata,
dominam os SA produzidos pela natureza per se, mas o manejo florestal
pode gerar SAs da natureza transformada; na Amazônia sem mata dominam
os SA da natureza transformada.
Tal estratégia é essencial para multiplicar os SA rompendo o monopólio
do carbono e valorizando a natureza em conjunto e, sobretudo, para criar
acesso dos produtores à uma dupla riqueza: a da produção e à dos SA.
3. A inovação institucional é chave para viabilizar os SA como fator de
desenvolvimento. Até agora só o mercado institucionaliza o carbono como
commodity, e só ele estabelece seu preço. E se trata de uma valoração não
só baixa como extremamente limitada do capital natural amazônico. Pelo
MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA
335
menos três inovações institucionais são necessárias para valorar os SA mais
justamente.
A primeira e mais urgente é estabelecer e difundir o quadro regulatório,
claro, consistente com os interesses nacionais e regionais, e considerando as
regras do jogo internacional.
Uma segunda diz respeito à atribuição de valor ao conjunto de serviços
que a natureza oferece. Considerando a impossibilidade de realizá-lo até o
momento, cabe utilizar múltiplos SAs e estender ao maior número possível
da população regional o acesso à riqueza gerada. O que requer a
disseminação de plataformas para sua habilitação e instituições que as
promovam.
Outra refere-se à criação de instituições ativas para negociar a forma de
constituição do mercado e a fixação do preço dos SA. Na sociedade moderna
a C&T com seus porta vozes constituem uma instituição chave para essa
negociação, fortalecendo a autonomia do Estado no contexto da globalização.
Ao Estado cabe criar condições para o surgimento e/ou fortalecimento
de instituições capazes de negociar decisões tomadas em âmbito global com
base na consideração dos contextos territoriais nacionais, regionais e locais.
E assim incorporar definitivamente o capital natural amazônico como capital
fixo.
4. Manaus como cidade mundial tropical
Para tanto, há que contar com as cidades. Serviços tornam-se fator
crucial para o desenvolvimento da Amazônia no século XXI; serviços
ambientais; serviços convencionais para atender às necessidades básicas da
população bem como para capacitá-las; serviços especializados para valorar
SAs. E as cidades são o lócus dos serviços.
Manaus deve vir a ser uma cidade mundial tropical com base na
organização da prestação de serviços ambientais. Como visto, a cidade tem
posição estratégica em relação aos SAs da Amazônia Sul-Americana, um
SA de tipo único.
Tamanha conversão exige vontade política para investir:
• Na criação de uma bolsa de valores para serviços ambientais na
cidade, visando fortalecer o poder de decisão e a autonomia nacionais quanto
à prestação de SAs;
• Em equipar a cidade com conhecimentos e serviços especializados
adequados;
BERTHA K. BECKER
336
• Em criar uma rede de cidades apoio, equipando algumas das já
existentes, com pesquisa e serviços que gerem riqueza através da produção
– convencional e de SAs.
A conclusão dos autores é enfática: “os instrumentos e mecanismos
econômicos do Estado brasileiro precisam ser repensados para contemplar
novos princípios de produção”. E as regras do MDL precisam ser rediscutidas,
deixando de se basear em valores especulativos da tonelada do carbono
definidos no mercado financeiro distante dos custos locais para considerar
os reais custos de oportunidade de mudanças qualitativas de uso da terra e
dos recursos naturais, isto é, determinando o valor do crédito de carbono
com base nas particularidades do contexto territorial local.
Referências
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Amazônica: É Possível identificar Modelos para projetar Cenários?
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v. 20, n. 2, p. 621-652.
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________. 2003. The Global City. Princeton: Princeton UP.
339
Amazônia: Desafios e Soluções
Eduardo Dias da Costa Villas Bôas
*
“... se não te apercebes para integrar a Amazônia na tua civilização,
ela, mais cedo ou mais tarde, se distanciará, naturalmente, como se
desprega um mundo de uma nebulosa – pela expansão centrífuga
de seu próprio movimento.”
(Euclides da Cunha)
Euclides da Cunha, dez anos depois de voluntariamente dar baixa do
Exército, foi nomeado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão
Brasileira de Limites com o Peru, que de abril a novembro de 1905 percorreu
o Rio Purus. Essa atividade era ainda parte dos trabalhos por meio dos quais
o Brasil buscava consolidar as fronteiras onde mais tarde seria criado o Estado
do Acre.
Em meio às vicissitudes inerentes a um trabalho dessa natureza, mormente
se considerarmos os recursos disponíveis à época, Euclides fez largo uso de
seus apurados conhecimentos de ciências naturais, próprios da formação de
cunho positivista que a Escola Militar da Praia Vermelha lhe havia proporcionado.
Registrou com impressionante riqueza de detalhes o que encontrou, produzindo
uma radiografia detalhada da região, no que se refere às características
zoobotânicas, mineralógicas, topográficas, hidrográficas e humanas.
Todo esse material foi reunido e apresentado no livro Amazônia Paraíso
Perdido
1
, onde Euclides antecipou uma preocupação hoje ainda pertinente,
a respeito de um possível desmembramento da Amazônia, caso ela não fosse
*
O autor é especialista em combate em selva, comandou o 1º Batalhão de Infantaria de Selva e
foi chefe do Estado Maior do Comando Militar da Amazônia. Atualmente, é Subchefe de
Estratégia do Estado Maior do Exército.
1
Amazônia – Um paraíso perdido – Euclides da Cunha. Manaus: Editora Valer – 2003.
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
340
articulada ao restante do país. Sugeria ele, dentre outras medidas, a construção
de uma ferrovia que ligasse as cidades de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, para
romper o isolamento e conectar as Bacias do Purus e do Juruá, antecipando
em quase um século o que somente agora está em vias de ser assegurado por
meio do asfaltamento da BR 364.
As impressões de Euclides colhidas em sua jornada amazônica foram
expressas também no prefácio do livro “Amazônia Inferno Verde”, escrito
por seu companheiro de Escola Militar, Alberto Rangel. Da compreensão de
que aquele era um mundo ainda em formação, disse ele: “Realmente, a
Amazônia é a última página ainda a escrever-se, do Gênesis.”
Parafraseando Euclides da Cunha, diríamos que para o Brasil, a
ocupação, a integração e a incorporação da Amazônia à dinâmica de
desenvolvimento nacional constituem-se também numa página de nossa história
ainda por ser escrita. Trata-se territorialmente da grande tarefa que a nação
brasileira tem ainda por empreender, cabendo ao seu povo definir os
parâmetros sob os quais essa empreitada será levada a cabo.
O momento em que vivemos é crucial, pois algumas das escolhas que
necessitamos fazer acarretarão consequências possivelmente irreversíveis,
legando às gerações futuras os benefícios ou os prejuízos delas
decorrentes. A ocupação seguirá sendo extensiva e empreendida
livremente como consequência natural de fluxos migratórios ou será
conduzida pelo Estado? Privilegiaremos a preservação do meio ambiente
ou colocaremos o ser humano como centro e razão de ser dos processos?
Seria possível obter o equilíbrio entre ambas as condutas? Os brasileiros
de origem indígena serão protagonistas ou permanecerão à margem dos
processos? Que prioridade terá a exploração dos recursos naturais?
Prevalecerão os interesses nacionais ou permitiremos que posturas
internacionalistas a eles se sobreponham? Chamaremos a participar os
demais países condôminos da enorme bacia, inclusive no que diz respeito
às ações relativas à segurança e ao combate aos ilícitos? Em suma, que
modelo a sociedade brasileira pretende adotar para balizar o enfrentamento
dessa jornada histórica?
É essencial que a nação brasileira se conscientize da grandeza desse desafio,
tornando-se necessário que se busque visualizar o que, concretamente, a Amazônia
representa para o Brasil e que papel no futuro lhe está destinado cumprir.
Geograficamente, a Amazônia corresponde a mais da metade do território
brasileiro e basta contemplarmos um mapa para entendermos que, sem ela,
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
341
perderíamos as dimensões continentais, podendo até mesmo modificar traços
importantes da identidade nacional e da auto-estima dos brasileiros.
A consciência cívica nacional já atribui à Amazônia o caráter de um dos
mais indiscutíveis símbolos da nossa soberania. Contudo, em pleno século
XXI, nosso país não completou sua expansão interna, tendo ainda metade
de seu território aguardando por ser ocupado e integrado à dinâmica nacional
brasileira. Não logramos consolidar a base física de nossa nacionalidade,
tarefa essencial para a qual o Brasil permanentemente canaliza parcela
considerável de suas energias. Provavelmente isso explique parte de nossas
dificuldades para darmos um sentido de projeto unificador às aspirações
nacionais e para a formulação e integração de nossas concepções relativas à
defesa, ciência e tecnologia, desenvolvimento econômico e relações exteriores,
por exemplo.
Daí decorre também a indefinição de parâmetros para orientar a sociedade
brasileira em como escrever o capítulo referente à Amazônia na história do
Brasil.
A Amazônia e seus três papéis a desempenhar
Para que se processe uma adequada abordagem sobre as questões da
Amazônia, é necessário que se olhe para o mapa do Brasil segundo uma
perspectiva de quem lá se encontra. A partir dessa posição, avultam realidades
que tornam explícitos papéis fundamentais que a região tem a cumprir para o
Brasil, para a América do Sul e para o mundo, impulsionados por dinâmicas
que se originam em sua geografia e que projetarão o Brasil a um patamar
muito mais destacado no sistema de poder mundial.
O primeiro será o de provocar a elevação, em escala exponencial, do
poder nacional a partir do momento em que o país tiver consolidado sua
expansão interna, trazendo a Amazônia ao contexto da vida nacional e
efetuando a exploração racional de seus recursos naturais, que ainda aguardam
uma completa identificação, delimitação e quantificação. Os dados mais
recentes, relatados pela revista Exame, edição de trinta de junho de 2008,
em matéria da jornalista Ângela Pimenta, indicam que os recursos naturais da
região podem chegar à impressionante cifra de vinte e três trilhões de dólares;
quinze deles decorrentes dos recursos minerais e oito proporcionados pela
biodiversidade. Vê-se que o Brasil dispõe de riquezas capazes de elevá-lo à
condição de potência mundial e, principalmente, de solucionar os problemas
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
342
que afligem nossa população, não só nos livrando da pobreza como, também,
eliminando as desigualdades sociais e os desequilíbrios regionais.
O segundo, de larga contribuição para a vocação natural de liderança
continental, da qual não nos podemos furtar, repousa na condição de
plataforma física em cujo entorno se consolidará a integração sul-americana.
A Amazônia Brasileira faz fronteira com sete países, tem acesso a três oceanos
Atlântico, Mar do Caribe e, dentro em pouco, ao Pacífico – e conecta-se
com o Altiplano Boliviano e, no Brasil, com as Regiões Nordeste e Centro-
Oeste.
Esse processo, à medida que avance, por meio da construção de uma
indispensável infra-estrutura de transporte e de comunicações, provocará o
crescimento exponencial da importância relativa da Amazônia no contexto
continental. É previsível ainda que cidades como Belém e Manaus, em função
da localização, a primeira como porta de entrada da densa malha fluvial e a
segunda pela posição geográfica central, venham a consolidarem-se como
pólos industriais, tecnológicos, logísticos e de serviços em geral.
O terceiro, por fim, decorre das condições e da vocação que a Amazônia
ostenta de proporcionar solução para os principais problemas que afligem a
humanidade e que já adquirem dimensões de verdadeiras crises mundiais:
mudança climática, meio ambiente, energia e água.
Esses três papéis, por si só, ensejam razões de sobra para que o Brasil
passe a enfocar de forma mais concreta e objetiva as questões relativas à região.
Um projeto para a Amazônia
Ao sugerirmos um “Projeto para a Amazônia”, torna-se necessária a
consideração de algumas premissas relativas a uma possível metodologia a
ser observada em sua formulação.
Em primeiro lugar, que esse projeto seja expresso por meio de uma
política, a ser elaborada a partir de amplo debate que envolva todos os atores
envolvidos, a fim de que se obtenha a convergência de esforços e o máximo
de capacidade de mobilização do potencial nacional. Deve servir de referência
geral, balizando estratégias e as ações operacionais decorrentes. O objetivo
a ser buscado é o de proporcionar foco e potencializar os efeitos no sentido
de oferecer alternativas sócio-econômicas à população que não sejam as de
explorar extensivamente a natureza, logrando assim diminuir a pressão sobre
o meio ambiente.
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
343
Em segundo lugar, em razão de a área amazônica possuir dimensões
continentais, onde a aparente uniformidade abriga uma enorme diversidade
de contextos geográficos, humanos, econômicos e ambientais, é importante
que sejam levadas em consideração as condicionantes geopolíticas. Vários
estudiosos já se debruçaram sobre o tema e há, em nosso país, uma abundante
literatura a respeito da problemática geopolítica da Amazônia.
Dentre as muitas variáveis geopolíticas a serem consideradas, nos parece
que duas merecem especial atenção.
A primeira diz respeito à necessidade de se levar em conta a abrangência
da Panamazônia, que transcende até mesmo aos limites naturais da bacia
fluvial, já que a rigor as Guianas dela não fariam parte. Contudo, em razão de
outros fatores geográficos, como posição, forma, fisiografia e vegetação, são
consideradas como a ela pertencentes.
Para concretizar o potencial de integração sul-americano e consolidar
sua liderança regional, o Brasil não pode desconsiderar a realidade e as
necessidades dos países vizinhos, já que existe uma uniformidade entre os
problemas independentemente do lado da fronteira em que ocorrem. As
carências sociais e econômicas acentuadas, os ilícitos, os problemas
ambientais, a precária rede de transporte, de comunicações e de serviços
básicos e o espraiamento de grupos étnicos indígenas por dois ou mais países,
farão com que soluções pontuais, levadas a efeito sem considerar a realidade
vizinha, acabarão por provocar o surgimento de um fluxo migratório em busca
de melhores condições. Consequentemente, estaremos sobrecarregando a
nossa infra-estrutura, a exemplo do que já ocorre em alguns pontos da
fronteira.
Até mesmo as legislações ambientais necessitam ser uniformizadas, para
que a biopirataria e outros ilícitos não encontrem em alguns países o santuário
que lhes permita obter legalização de produtos florestais e de exemplares da
fauna regional.
A outra variável geopolítica a ser considerada, esta com abrangência
interna, diz respeito às características peculiares e às vocações naturais das
diferentes mesorregiões que compõem a nossa Amazônia. Grau de
humanização, nível de preservação ambiental, potencial econômico,
comunidades indígenas e seu grau de integração com a sociedade nacional,
infra-estrutura e outros estabelecem necessariamente critérios bastante
diferenciados para a elaboração das estratégias e dos projetos a serem
implementados.
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
344
O exame aleatório de algumas delas ilustra essa conceituação.
O Estado do Acre, por exemplo, está em vias de sofrer um forte impacto
em consequência da iminente conclusão da rodovia interoceânica, associada
à ligação por asfalto entres as cidades de Rio Branco e de Cruzeiro do Sul e
à construção das represas de Jirau e Santo Antônio, ambas no Rio Madeira.
Uma vez consolidados esses projetos, o Acre ter-se-á constituído tanto em
corredor de exportação para toda a bacia do Pacífico, como, ele próprio,
dispondo de energia e transporte, transformar-se-á em plataforma de
exportação para importantes mercados, como a região da Ásia-Pacífico,
inclusive China e Japão e a costa oeste dos Estados Unidos, sem contar as
pressões decorrentes de eventuais fluxos migratórios de populações asiáticas,
principalmente chinesas, que poderão trazer para localidades como Assis
Brasil, no Acre, características semelhantes às de Foz do Iguaçu no Paraná.
Já a região do Alto Rio Negro, também conhecida como a Cabeça do
Cachorro, apresenta realidade totalmente distinta. Afastada das frentes de
desmatamento, tem como principal centro urbano e sede do único e extenso
município a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Do ponto de vista ambiental,
praticamente mantém-se intacta e abriga a maior diversidade étnica do país.
São 22 grupos distribuídos em mais de 600 comunidades espalhadas em
seus 109 mil Km
2
. Dispõe de enorme riqueza mineral e, em contrapartida,
carece de caça e pesca em quantidades suficientes para suprir as necessidades
alimentares da população indígena.
Assim como o Acre e o Alto Rio Negro, cada uma das demais
mesorregiões amazônicas devem ser consideradas em função de suas
especificidades, requerendo, em consequência, medidas totalmente distintas
entre si, em relação aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e de defesa.
Estratégia
Em terceiro lugar, a metodologia requer uma concepção estratégica, para
assegurar tanto o atingimento coordenado dos objetivos políticos, como para
garantir uma visão de longo prazo e a indispensável abordagem multidisciplinar.
Encontramos no Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus um
exemplo acabado de projeto com essas características. Seu alcance vai muito
2
Amazônia: geopolítica na virada do III milênio – Bertha K Becker. Rio de Janeiro: Garamond
– 2004.
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
345
além dos benefícios econômicos diretos que um aglomerado de indústrias
possa proporcionar. Contudo, além da SUFRAMA, restam poucos projetos
com enfoques estratégicos, a exemplo do Programa Calha Norte, que tantos
benefícios têm trazido aos municípios da faixa de fronteira, desde sua
implantação em 1986, e o projeto SIVAM, que baseado em uma infra-
estrutura de alta tecnologia vem proporcionando benefícios que vão bem
além da simples vigilância militar. Preservação ambiental, previsões
meteorológicas, combate a ilícitos, segurança e controle do tráfico aéreo,
comunicações e projeção internacional do Brasil ilustram a variedade de efeitos
positivos alcançados.
A excelente iniciativa representada pelo Plano Amazônia Sustentável
poderá perder efetividade exatamente por não respaldar-se em um projeto,
expresso por uma política, e também por carecer de uma concepção
estratégica para orientar suas ações.
Papel central do Governo Federal
Uma condição de êxito essencial repousa no papel central que o Governo
Federal tem a desempenhar na elaboração e na execução desse processo.
Nenhum outro órgão governamental dispõe da força política necessária para
assumir a condução dos planejamentos, exercer a função de indutor,
regulador, coordenador e fomentador e, se necessário, até mesmo de executor,
bem como para enfrentar as pressões de toda ordem internas e externas. O
importante, contudo, está no fato de que o governo federal é a única instância
capaz de abrigar sob sua esfera de atribuições todas as instituições com
responsabilidade e interesse de atuar na área.
Este requisito decorre também da extensão territorial, do valor das
riquezas naturais, da complexidade de seus problemas e também do fato
de que toda e qualquer ação, independentemente de sua natureza, trará
reflexos para a segurança da área e, por extensão, para a segurança
nacional.
Ademais, há que se considerar ainda a repercussão internacional que as
questões amazônicas suscitam, sem contar as necessárias ligações com os
países vizinhos, o que constitui atribuição exclusiva do Executivo, quer
bilateralmente, quer no contexto da Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica. Essas questões materializam-se, por exemplo, nas obras relativas
à infra-estrutura de integração.
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
346
O Executivo Federal é também o único órgão com capacidade de suprir
carências próprias da população de determinadas regiões da Amazônia. Seus
vinte e três milhões de habitantes representam apenas 12% da população
brasileira, o que faz com que mais da metade do território nacional conte
com apenas esses mesmos 12% de representação no congresso nacional.
Sua rarefação e dispersão provocam a incapacidade de expressar suas
demandas, quer sejam econômicas, sociais ou até mesmo políticas. Em
consequência, é pouco provável que sem a atuação de órgãos públicos, as
milhares de comunidades espalhadas pela vastidão amazônica possam ter
acesso aos benefícios proporcionados pela infra-estrutura e pelos serviços
essenciais.
Pragmatismo
Culminando, é necessário que todo esse processo se respalde em um
patamar mínimo de pragmatismo, para livrá-lo de condicionantes ideológicos,
alheios à realidade e aos interesses da população amazônica.
Presentemente, há um generalizado desconhecimento da realidade
amazônica por parte da população brasileira em geral. Como resultado, a
sociedade torna-se suscetível à desinformação que se processa por meio da
ampla difusão de um discurso “politicamente correto”, calcado em idéias
estereotipadas e geradas em outros contextos históricos, econômicos e sociais,
o que nos conduz a uma compreensão incorreta das opções a adotar com
vistas ao equacionamento de seus inúmeros problemas.
Como consequência, em qualquer tipo de abordagem sobre a Amazônia
prevalece a vertente ambientalista, ensejada por verdadeiro fundamentalismo
ambiental calcado na intocabilidade, sem levar em consideração os mais de
vinte milhões que lá vivem e lutam pela sobrevivência com enormes dificuldades
para assegurar o atendimento de suas necessidades básicas. A indigência
social e econômica retira da população local a capacidade de discernir sobre
a legalidade ou ilegalidade das poucas opções disponíveis para a garantia do
sustento próprio e das famílias. É-lhes negada a perspectiva de uma natural
evolução e o direito de sonhar com o rompimento da severa realidade que os
cerca. Estão condenados a sobreviver apenas da extrema generosidade do
meio ambiente, mas que ao mesmo tempo lhes inviabiliza a obtenção de
qualquer excedente para, pelo menos aos filhos, proporcionar um futuro que
não seja o de escravos da natureza.
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
347
Cabe investigar de onde vem e decifrar o como e o porquê de essas
correntes de pensamento terem dogmaticamente adquirido condição de
verdades irrefutáveis em nosso país, com capacidade de impedir que soluções
concretas aflorem da superfície do pensamento nacional, sobre a qual flutuam
como uma nata estagnada, resultante da condensação desses preceitos
politicamente corretos.
Será para o Governo um verdadeiro desafio superar o potencial inibidor
da previsível discussão que inexoravelmente se estabelecerá em torno dos
projetos, enfocando mais seu conteúdo ideológico do que os benefícios
concretos que poderão proporcionar.
Quatro dimensões para um Projeto Amazônico
Vistos os requisitos a serem observados na elaboração de um
planejamento para a Amazônia do ponto de vista metodológico, cabe definir
agora as dimensões principais que deverão balizar o processo de implantação.
São elas: a dimensão humana ou social, a ambiental, a da ciência e tecnologia
e a do desenvolvimento econômico. Essas quatro ideias-força, aplicadas com
a ênfase requerida por cada contexto, permitirão que se compatibilize todas
as diferentes visões e se atenda às necessidades dos múltiplos atores
envolvidos.
Dimensão humana
A primeira delas deve ser a dimensão humana ou social, decorrente da
necessidade fundamental e urgente de recolocar a pessoa humana como foco
e razão principal de ser de todas as ações e de todo e qualquer projeto
voltado para a Amazônia.
Há cem anos, quando a Amazônia e suas populações encontravam-se
ainda totalmente livres de ameaças ambientais, Euclides da Cunha já observava
que “... entre as magias daqueles cenários, há um ator agonizante, o homem.”
Desde o advento do conceito de desenvolvimento sustentável, surgido
na ONU, na década de 1980, o ser humano foi perdendo a importância
relativa frente aos demais fatores que o compõem. Os valores politicamente
corretos adquiriram enorme poder de inibir outras visões, a ponto de impor
um verdadeiro pensamento único, suprimindo da sociedade um mínimo de
pragmatismo capaz de promover a alteração das realidades. O resultado é
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
348
que vivemos um verdadeiro fundamentalismo ambiental, aplicado com caráter
de intocabilidade.
Necessitamos resgatar os fundamentos da cultura e da mentalidade
nacionais, compatíveis com nossa história, tradições e fundamentos religiosos,
mormente diante de uma população que não consegue a satisfação de suas
necessidades mais elementares. Nenhuma ação, independente de sua natureza,
terá garantida a sustentabilidade se não for acompanhada da implantação
das ações de caráter social e econômico que gerem uma expectativa de
progresso para essas pessoas. A capacidade de que desfrutam os meios de
comunicações para chegarem aos mais remotos rincões provoca o surgimento
de expectativas e de novas demandas principalmente entre as gerações mais
novas. Com isso, os projetos que não contemplarem ensino, saúde, lazer,
transporte e comunicações, acabarão por despertar, principalmente entre os
mais jovens, o desejo de deslocar-se para onde lhes seja possível o acesso a
esses benefícios.
Iniciativas altamente meritórias, em todos os sentidos, visando a
proporcionar algum tipo de sustento a comunidades de natureza diversa, tem
pecado por não conter em seu bojo, na perspectiva das pessoas teoricamente
beneficiadas, a possibilidade de uma evolução integrada.
No tratamento que se tem dado às questões indígenas, fica muito nítida
essa inversão que se processa em relação ao ser humano, pois ele perde o
papel de principal protagonista que, em contrapartida, passa a ser ocupado
pela cultura a que ele coletivamente pertence. Como consequência, os
indivíduos são sacrificados em prol da preservação da intocabilidade cultural,
como se essa condição pudesse ser assegurada pela colocação de uma
redoma sobre as comunidades a que pertencem. Os exemplos pontuais que
se colhem por meio do convívio com aquelas realidades são inúmeros e acabam
por demonstrar a existência de uma situação generalizada.
A comunidade Yanomami de Surucucu, no Estado de Roraima, junto à
fronteira com a Venezuela, bem demonstra essa realidade. Moram em maloca
circular, fechada lateralmente por madeira e coberta com palha, em cujo
interior as famílias delimitam seu espaço com redes em torno de um fogo.
Nesse ambiente, respiram um ar carregado de fumaça, que associado à
inexistência de hábitos de higiene, ainda que elementares, e submetidos ao
clima relativamente frio e úmido peculiar da altitude da Serra de Surucucu,
resulta num alto índice de doenças respiratórias, mormente entre as crianças.
A expectativa de vida entre aquela população pouco ultrapassa os trinta anos.
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
349
Uma prática comum em meio a aquela comunidade é a do infanticídio.
Como é próprio da cultura original, as índias se dirigem para o interior da
mata quando vão dar a luz. Por força de hábito cultural, é comum o sacrifício
do recém nascido se ele apresentar alguma deformidade, ou se nascerem
gêmeos ou ainda se o primeiro filho for do sexo feminino.
Esse “relativismo cultural” foi denunciado pela revista Veja, em sua edição
de 16 de agosto de 2007 acompanhada da informação de que nos anos
entre 2004 e 2006 cerca de duzentas crianças Yanomamis teriam sido
sacrificadas e que esta prática ocorre em pelo menos treze etnias nacionais.
Foi, também, bastante divulgada a estória da indiazinha HAKANI, da
etnia Suruaha, do sul do Estado do Amazonas, que, em 1995, por ter nascido
com uma deformidade foi condenada à morte. Salva por uma ONG, que a
retirou da aldeia, hoje vive em Brasília, onde realiza tratamento psicológico
para aliviar os traumas das sevícias que lhe foram dispensadas. Esses fatos,
denunciados pela revista Veja, podem ser confirmados no site hakani.org,
disponível pela internet. (acesso em sete de fevereiro de 2009).
Reconhecendo a extrema importância que a preservação da identidade
cultural indígena requer, em razão de sua fragilidade quando em contato com
outras culturas, a pergunta que se faz é: “não teriam as ciências sociais
desenvolvido alguma metodologia capaz de proporcionar àquelas populações
um nível mínimo de hábitos, que lhes permitam evoluir em sua qualidade de
vida sem que necessariamente ocorra a perda da identidade cultural?”
O que a realidade tem demonstrado é que a tentativa de manter intocados
os universos culturais indígenas resulta em uma prática falaciosa, inviável e
contraproducente, pois o contato acaba inexoravelmente acontecendo e, caso
não seja assistido e orientado, sempre ocorre por meio do descaminho ou de
atividades ilícitas, ensejando, via de regra, o vício da embriaguez entre os
homens, a prostituição entre as mulheres jovens, o garimpo irregular, a extração
ilegal de madeiras e o envolvimento em ilícitos de outras naturezas.
Por outro lado, o tratamento dado à questão indígena, em nosso país
tem sido marcado por um forte viés geopolítico. Além da demarcação das
reservas, não é proporcionado aos índios o desenvolvimento de atividades
econômicas que lhes dêem sustentação. Permanecem abandonados no interior
das reservas e é comum vermo-los ameaçados em sua sobrevivência física e,
por consequência, também em sua sobrevivência cultural.
Essa conjuntura fica muito clara quando se visita a comunidade Yanomami
de Maturacá, aos pés do pico da Neblina, poucos quilômetros ao sul da
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
350
fronteira com a Venezuela. Os cerca de mil e seiscentos habitantes, embora
já não vivam em malocas e sim em residência familiares, restringem seu
consumo de proteínas ao que obtém por meio da caça e da pesca, por não
terem ainda alterado o traço cultural de não criar animais. Trata-se de uma
região em que os rios apresentam muito baixo índice de piscosidade e a caça
já começa a rarear, exigindo dos homens vários dias de caminhada para
obter um bom rendimento nesta prática, sendo necessário que o pouco que
conseguem seja moqueado (tipo de defumação realizada pelos índios) para
que chegue em condições de consumo às famílias. Essa carência tende a se
agravar, tanto pelo crescimento da população como pelo escasseamento
natural da caça disponível.
Um dado importante a ressaltar é o de que aquela região tem seu bioma
absolutamente preservado, não tendo até então sofrido qualquer tipo de dano
pela ação de não índios. A tendência que se verifica é a de que, caso não se
introduzam alterações nos hábitos regionais por meio de alguma atividade
que lhes supra as necessidades, em médio prazo sérios problemas necessitarão
ser administrados.
Ironicamente, a consequência do agravamento dessa situação produzirá
argumentos que irão engrossar o coro dos que advogam em favor da
manutenção das comunidades indígenas em situação de total isolamento,
criando-se assim um círculo vicioso.
Por outro lado, não há limites físicos e nem distâncias que impeçam o
contato eventual entre índios e não índios, principalmente coletores de grande
mobilidade como os seringueiros e os garimpeiros. Nesses contatos fortuitos,
é comum algum tipo de escambo, no qual, em troca de alimentos, o não índio
oferece seus utensílios. Se for, por exemplo, uma panela, a índia vai com
certeza incorporá-la aos seus hábitos, sem conhecer a necessidade de lavá-
la. A consequência, em pouco tempo, será a ocorrência de uma inexorável
epidemia de diarréia na comunidade.
Esses e outros numerosos exemplos, frequentemente testemunhados por
quem tem algum tipo de contato com as comunidades indígenas, exemplificam
as dificílimas condições de vida a que estão sendo relegadas aquelas
populações e que dificilmente serão revertidas caso não se restabeleça,
também em relação a esses brasileiros, sua condição de seres humanos, acima
de ideologias ou de doutrinas de qualquer natureza.
É chocante, após conviver com essas realidades, constatar o quanto elas
são distorcidas quando trazidas à opinião pública nacional e que rarissimamente
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
351
são divulgadas manifestações, por parte dos índios, se elas não estiverem
alinhadas com os argumentos ideologicamente filtrados.
Resumindo, no afã de preservar a cultura, sacrificam-se as pessoas.
Dimensão ambiental
Também a política ambiental entre nós adquiriu um caráter essencialmente
geopolítico, pois as principais medidas nessa área sempre passam pela
tentativa de neutralização de grandes extensões de terra, sem nem mesmo
contarem, muitas vezes com o correspondente plano de manejo. Aspectos
ambientais muito mais impactantes e com consequências mais sérias sobre as
condições sanitárias, de higiene e de saúde das populações locais têm recebido
pouca, se não nenhuma, atenção por parte do pensamento ambientalista.
Como consequência, não se realiza a implementação das medidas
necessárias para fazer frente a problemas graves como a inexistência de rede
de coleta de esgotos e a precariedade dos sistemas de coleta de lixo. É
comum assistir-se nas comunidades ribeirinhas o banho ser tomado no mesmo
local onde são lançados os dejetos e se colhe a água para o consumo
doméstico, bem como é assustador constatar-se a enorme quantidade de
detritos de toda ordem que permanentemente são lançados à natureza,
especialmente sobre os rios.
A posse da Amazônia proporciona ao Brasil uma estatura que escapa
normalmente à percepção de nós brasileiros. Externamente, nos coloca na
posição de quinta maior extensão territorial do mundo, o que nos proporciona,
segundo a Professora Bertha Becker, a condição de detentores da soberania
de maior parte um dos três únicos grandes ecossistemas do planeta ainda por
explorar (os outros dois são a Antártica e o fundo dos oceanos).
Vivendo uma época em que as preocupações relativas ao meio ambiente
e às mudanças climáticas ocupam lugar proeminente entre os temas que
sensibilizam a opinião pública mundial, temos que estar conscientes de que
seremos sempre cobrados, justificadamente ou não, pelas condições com
que estivermos tratando dos problemas amazônicos.
Internamente, é fácil imaginar sobre o rigor com que seremos julgados
pelas gerações futuras caso escrevamos o capítulo sobre a história da
Amazônia de maneira imprópria ou irresponsável.
Ademais, conforme citado anteriormente, não podemos perder de vista
o valor econômico que o bioma amazônico representa, além de constituir-se
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
352
em uma espécie de caixa preta a ser aberta e desvendada em seu conteúdo
pelas ferramentas atuais e as futuras que a ciência vier a proporcionar, contendo
provavelmente um universo enorme de informações científicas a serem
difundidas em proveito da sociedade brasileira e da humanidade.
O Brasil não pode admitir ser colocado no banco dos réus pela opinião
pública internacional sob a acusação de incapacidade de gerenciar seus
ecossistemas, pois absolutamente nenhum país do mundo teria autoridade
para fazê-lo. Somos ao mesmo tempo uma potência agrícola e uma potência
ecológica. Somos capazes de produzir alimentos para uma parcela significativa
da população mundial e de preservar 70 % de nossas florestas originais.
Esses e outros dados constam de estudos realizados pelo Dr. Evaristo
Eduardo de Miranda, da Embrapa Monitoramento por Satélites, com sede
em Campinas, expressos nos quadros abaixo.
http://desmatamento.cnpm.embrapa.br/conteudo/resultadoquat.htm 16/01708
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
353
A data inicial (8000 anos antes de Cristo) faz referência ao período em
que o homem passou a exercer a agricultura e, em consequência, pôde
sedentarizar-se, dando início ao processo de derrubada das florestas originais,
quer seja para abrir espaços aos cultivos ou para obter matéria prima para a
produção de energia, ou ainda para a construção de edificações, ou fabricação
de ferramentas, armas, utensílios domésticos, meios de transporte, armamentos
etc. Ao longo de toda essa trajetória, algumas civilizações desenvolveram
suas estruturas de poder às custas de seus ecossistemas, algumas vezes até
mesmo esgotando-os. Muitas delas modernamente abrigam sociedades cujas
populações e elites tentam impor restrições a que o Brasil desenvolva seus
projetos próprios, exigindo de nós padrões de comportamento que
historicamente não observaram.
Contudo, do outro lado dessa moeda está a pergunta: até quando
poderemos ostentar essa autoridade moral? Destruímos 90% da Mata
Atlântica usando como ferramenta o machado e como meio de transporte o
carro de boi; o que não será feito da Amazônia onde se empregam a moto-
serra e o trator de esteira?
A respeito da derrubada das matas, três aspectos merecem preocupação.
O primeiro vem da falta de critérios com que ela se processa, não
respeitando parâmetros técnicos, econômicos, sociais, e até mesmo aspectos
http://desmatamento.cnpm.embrapa.br/conteudo/resultadoquat.htm 16/01708
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
354
concretos tais como a natureza do solo, a proximidade de áreas sensíveis, a
existência de mananciais, matas ciliares, ecossistemas importantes e a presença
de comunidades originais.
O segundo decorre da velocidade com que ele vem ocorrendo. Se hoje
foram perdidos quase 20 % da floresta amazônica, em 1970 apenas 1 %
havia sido derrubado. O quadro abaixo apresenta a série histórica das taxas
de desmatamento, demonstrando que as medidas até então adotadas para
contê-lo têm sido capazes apenas de promover flutuações, mas estão longe
de demonstrar real capacidade de inverter a tendência reinante.
O terceiro vem do fato de que, geralmente, as medidas implementadas
pelos órgãos responsáveis têm apenas caráter repressivo, sem capacidade
de promover alterações estruturais, o que, se não for alterado, resultará em
que todos os esforços se mantenham inócuos, contraproducentes e
desgastantes.
A história demonstra que as frentes de desenvolvimento agrícola costumam
ser desorganizadas e até mesmo violentas, quando os governos não se
antecipam por meio de medidas de planejamento integrado, estabelecendo
parâmetros, estímulos e limites capazes de canalizar toda a energia segundo
critérios que ofereçam alternativas de desenvolvimento e bem estar para a
população, proporcionando, subsidiariamente maiores possibilidades de êxito
às ações de repressão.
É preocupante o fato de que o processo de desflorestamento já tenha
avançado em relação ao traçado geral do que se convencionou chamar de
arco do fogo, que basicamente corresponde, em sua parte mais ocidental,
aos limites nortes dos Estados de Mato Grosso e Rondônia, passando agora
a afetar o Estado do Amazonas em torno da Rodovia Transamazônica.
Ressalte-se que também as ações empreendidas pelos órgãos
responsáveis pela preservação ambiental têm se revestido de caráter
predominantemente geopolítico, restringindo-se em geral à delimitação e à
neutralização de extensas áreas, a exemplo do que acontece em relação às
terras indígenas, sem o acompanhamento de medidas sócio-econômicas com
o intuito de oferecer alternativas às populações afetadas.
Constata-se, portanto, que é inadiável o estancamento do processo de
desflorestamento, mas para tal será necessária a adoção de uma postura
pró-ativa, marcada por atitudes responsáveis, pragmáticas e construtivas,
não só pelo pelos governos, mas também pela sociedade brasileira como um
todo.
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
355
Ciência e tecnologia
A pesquisa e o desenvolvimento científico e tecnológica são
ferramentas essenciais para a garantia de duas capacidades fundamentais
para o Brasil na Amazônia: garantia da soberania e obtenção do
conhecimento para compatibilizar a ocupação com o desenvolvimento e
a preservação ambiental.
No ano 2000 causou forte impacto sobre a opinião pública a notícia de
que no Japão havia sido patenteada a marca CUPUAÇU, ficando as empresas
brasileiras impedidas de utilizar comercialmente um produto tipicamente
brasileiro. Como consequência, sentimo-nos espoliados, e foi inevitável a
comparação com o contrabando de sementes de seringueira para a Malásia,
efetuado no século XIX pelos ingleses, e que acabou provocando o declínio
do Ciclo da Borracha e o início de um período de estagnação econômica que
durou até a criação da Zona Franca de Manaus no Governo Castelo Branco,
durante a década de 60.
Esse episódio deixou claro que estávamos permitindo a ocorrência de
um vazio tecnológico em área de enorme potencial, acarretando um déficit
de soberania brasileira sobre a região. Temos que ter em mente que não há
outra maneira de revertermos esse quadro que não seja por meio do
desenvolvimento científico- tecnológico, abrangendo desde a pesquisa de
base até o registro de patentes.
Vê-se, portanto, que a valorização dessa área constituir-se-á em
verdadeira afirmação de soberania brasileira sobre a região, mas que, apesar
do incremento que a atividade vem experimentando, estamos longe de metas
que possibilitem reverter o quadro acima descrito. Durante a III Conferência
Nacional de Política Externa e Política Internacional promovida pela Fundação
Alexandre de Gusmão em 8 e 9 de dezembro de 2008, foram citados dados
da COPPE segundo os quais, em 70 % dos trabalhos de pesquisa realizados
no Brasil sobre a Amazônia, há a participação de estrangeiros.
A Professora Bertha Becker afirma que “há que se atribuir valor
econômico à biodiversidade, para que ela possa competir com as demais
commoditys”. A C&T será a ferramenta para que, partindo-se da pesquisa
básica e considerando-se o conhecimento popular, chegue-se ao registro de
patentes e à concretização de produtos, tecnologias e técnicas, capazes de
apontar os caminhos para que se compatibilizem na Amazônia a ocupação, o
desenvolvimento e a preservação ambiental.
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
356
Desenvolvimento econômico
Uma longa, sistemática e maciça campanha mundial incutiu na opinião
pública internacional, e encontrou eco no Brasil, tanto entre a população em
geral como, especialmente, em alguns setores da elite nacional, a visão de
que o desenvolvimento econômico representa séria ameaça à preservação
ambiental. Essa teoria, curiosamente, não encontra respaldo na realidade,
pois a prática demonstra que pobreza e degradação ambiental estão
intimamente associados.
Pesquisadores do BNDES elaboraram o IDH Ambiental, associando os
índices do IDH tradicional, criado pelo Prêmio Nobel de Economia, Amartya
Sen, com o Índice de Sustentabilidade Ambiental, concebido nas
Universidades de Yale e de Colúmbia. Embora tenham chegado à conclusão
de que “a relação entre renda e preservação ambiental não ocorre de forma
direta” (Jornal O Globo, edição de 25 de março de 2007), constata-se uma
clara associação entre pobreza e péssimas condições ambientais. Este dado
fica claro ao compararmos a lista dos países melhores posicionados nesse
ranking com os que ocupam as últimas posições. De um lado estão Noruega,
Finlândia, Suécia, Islândia, Canadá, Austrália, Suíça, Áustria, Irlanda e Nova
Zelândia, enquanto do outro encontramos Moçambique, Haiti, Etiópia,
Burundi, Burkina Faso, Níger e Serra Leoa.
O Distrito Industrial da SUFRAMA produz um efeito demonstração
sobre como um projeto de desenvolvimento intensivo pode contribuir para a
preservação ambiental. Abriga cem mil empregos diretos o que, segundo
dados estatísticos, resulta em outros trezentos mil indiretos. Se considerarmos
a existência de uma família de quatro pessoas em média para cada um desses
postos de trabalho, teremos uma população de um milhão e seiscentas mil
pessoas, o que corresponde à população atual da Cidade de Manaus. Como
resultado, o Estado do Amazonas é ao mesmo tempo o mais desenvolvido e
o mais preservado entre todos os da Região Norte.
Compare-se com o modelo de desenvolvimento até hoje praticado nos
Estados do Pará e de Rondônia, onde predominam as atividades primárias, e
encontraremos as áreas proporcionalmente mais desflorestados e que abrigam
os maiores e mais sérios problemas e conflitos sociais.
No ano de 2005, quando do assassinato da freira norte-americana,
Dorothy Stang, o Exército e outros órgãos de governo foram empregados
na região da Terra do Meio, no Pará, por cerca de dez meses, numa operação
AMAZÔNIA: DESAFIOS E SOLUÇÕES
357
cujo objetivo era realizar o desarmamento e a pacificação da área. Essa ação
resultou na paralisação das atividades econômicas principais, causando uma
forte perda de empregos – cerca de sessenta mil – com ocorrência de protestos
nas principais cidades. Três anos depois, no primeiro trimestre de 2008, após
a divulgação de dados que indicavam um crescimento das taxas de
desmatamento, os municípios mais afetados receberam uma fiscalização
especial, que contou inclusive com o emprego da Força Nacional de Segurança
Pública. No Município paraense de Tailândia, novamente produziu-se a perda
de empregos em razão da paralisação da única atividade econômica disponível,
qual seja a extração de madeira. A realidade não se havia alterado, pois, no
espaço de três anos decorridos entre os dois episódios, nenhuma nova
atividade econômica havia sido introduzida, para servir de alternativa e evitar
o envolvimento em atividades ilícitas por parte daquela população.
Associando-se produtos regionais como base para o desenvolvimento
de cadeias produtivas, com forte aplicação de conhecimento tecnológico,
dispondo de infra-estrutura que lhe dê suporte, focadas em áreas já
degradadas, – sul do Pará, Mato Grosso e Rondônia – será possível o
estabelecimento de polos de desenvolvimento intensivo, capazes evitar que a
população dependa essencialmente da natureza para seu sustento. Estar-se-
iam criando condições para a fixação de um contingente populacional, o qual,
caso contrário, iria engrossar e aumentar a pressão sobre as frentes de
desmatamento.
A preservação da Amazônia só será assegurada a partir da consolidação
de um processo de desenvolvimento econômico, integrado e intensivo, que
ofereça alternativas à população que não seja a de depender da exploração
da natureza para garantir seu sustento.
Ideias finais
Nesse rápido passeio pela Amazônia, em torno de seus problemas e das
possíveis soluções, verifica-se uma realidade complexa, que, contudo, exige
soluções simples, mas não simplistas, com visão multidisciplinar, concebidas
com pragmatismo e aplicadas com forte dose de vontade política e tendo o
Governo Federal como agente central.
Estaremos, assim, aumentando as possibilidades de que as páginas da
história do Brasil, no capítulo referente à Amazônia, ao serem lidas pelas
gerações futuras, despertem nelas os sentimentos de respeito e orgulho. Que
EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS
358
as façam sentirem-se descendentes de quem soube ocupar, desenvolver e
garantir-lhe a segurança, mantendo-a preservada e íntegra, fonte de riquezas,
combustível permanente e inesgotável do desenvolvimento nacional, ao mesmo
tempo capaz de assegurar-nos a condição de potência ecológica, exemplo
para todo o mundo e que, sobretudo, seja capaz de proporcionar a seus
habitantes condições para a realização de seus sonhos e aspirações.
359
Reflexões sobre cultura, soberania e patrimônio
genético na Amazônia
Ennio Candotti
Ocorrem-me três perguntas desafiadoras que, a meu ver, deveriam
encontrar resposta nesse seminário que, entre outros temas da política de
relações exteriores internacionais, trata da questão da Amazônia, da soberania
nacional e da defesa do patrimônio genético que se encontra nesta região.
A primeira refere-se ao papel que ocupa nos foros internacionais a função
da floresta como reguladora do clima e as questões relacionadas com o
sequestro e a emissão do CO
2
. Tema que hoje ganha dimensões econômicas
além de ambientais e que polariza a discussão sobre a Amazônia nos foros
internacionais. Pergunto: serão estas as características mais importantes no
cenário da política de C&T no que se refere à floresta amazônica?
A segunda é uma indagação sobre o grau de conhecimento e
desconhecimento “sólido” que alcançamos no que se refere aos biomas
amazônicos e as línguas e as culturas das comunidades que os habitam.
Conhecemos o suficiente para definir políticas públicas, que atendam aos
direitos das populações e nos permitam avaliar o valor científico e cultural da
sócio e biodiversidade que lá encontramos e, também, estabelecer programas
de exploração sustentável dos recursos naturais da região?
A terceira refere-se à atual legislação que regulamenta o acesso aos
laboratórios naturais e controla a pesquisa científica nos ambientes naturais:
ela atende aos imperativos da soberania nacional e, ao mesmo tempo, contribui
para o necessário progresso do conhecimento dos biomas amazônicos?
ENNIO CANDOTTI
360
Vamos examinar por partes estas três perguntas:
1. O papel da floresta tem sido insistentemente associado à sua função
reguladora do clima do planeta. Tendo sido verificado que o aumento da
concentração de CO
2
na atmosfera está relacionado com a perturbação
dos equilíbrios climáticos, o papel da floresta amazônica tem sido
considerado importante por duas razões:
i. pelo saldo de absorção de CO
2
da floresta “em pé” medido através
de modelos que estimam o volume de crescimento da massa arbórea na
região, que sabemos ser formada principalmente por carbono.
ii. pelas emissões de CO
2
que ocorrem sempre que a cobertura vegetal
é queimada e são medidos através de detectores in situ e indiretamente,
através de modelagens dos efeitos destas emissões na atmosfera.
Se há outros fatores que contribuem para a absorção ou a emissão
de CO
2,
na formação do efeito estufa, pouco se sabe. Não há, por
exemplo, até agora, dados confiáveis sobre o volume de gás metano,
absorvido ou que é liberado para a atmosfera, durante a decomposição
do material orgânico. Sabemos que ele é continuamente depositado, em
grande quantidade, no solo da floresta e que contribui para o efeito estufa
em uma proporção 20 vezes mais intensa do que o próprio CO
2
.
Cabem aqui portanto, duas novas perguntas:
a) Caso a taxa de absorção de CO
2 ,
ou de gases de efeito
equivalente, não fosse positiva a floresta deveria ser sacrificada para
atender aos reclamos dos países centrais, recorrentes nos foros climáticos
internacionais?
b) Se pesquisas revelarem a viabilidade do desenvolvimento em larga
escala de processos capazes de absorver CO
2
, e assim mitigar o efeito
estufa, a custos energéticos aceitáveis, a floresta perderia boa parte de
seu interesse “bioclimático” no cenário mundial?
A resposta é obviamente não, mas devemos reconhecer que a
avaliação do valor da floresta, científico, sócio-ambiental e cultural, tanto
para o Brasil como para o planeta, não tem sido objeto de políticas
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
361
públicas, nacionais e internacionais, de dimensões semelhantes às pensadas
para estimar, e mitigar, os impactos climáticos ou mesmo das ações voltadas
a coibir o incêndio das florestas.
I – A floresta amazônica como laboratório de ciência e cultura
Examinemos com um pouco mais de atenção este laboratório de ciência
e tecnologia, de culturas e conhecimentos tradicionais.
Sabemos que a bacia amazônica, em boa parte coberta por floresta,
constitui um ecossistema de intensa biodiversidade que ocupa parte de nove
países. No Brasil o bioma amazônico se estende por cerca de metade do
território nacional.
Trata-se de um laboratório único no planeta pela extensão, variedade de
espécies e processos de interação, únicos no planeta, entre a biota e os
ambientes naturais.
Para conservar o equilíbrio destes ecossistemas e a sua rica biodiversidade
é necessário preservar a floresta amazônica, seus rios e várzeas. Para tanto é
imperativo conhecer a física e a ecologia dos solos, águas e biomas em suas
dimensões estruturais, dinâmicas e funcionais.
Pesquisas científicas na Amazônia têm sido realizadas nos últimos cem
anos por instituições nacionais instaladas na região e fora dela, mas de forma
pouco sistemática, tanto que, ainda hoje, é dominante o número de trabalhos
(cerca de 70%) sobre o tema, conduzidos – e propostos – por pesquisadores
de instituições científicas de fora do país
1
. Mais grave contudo é o fato que
o conhecimento acumulado em biologia, meteorologia e geologia da região é
considerado inferior a 20% do desejável
2
.
Entendemos por “desejável” o nível de conhecimento que permita
reconhecer os processos fundamentais físicos e biológicos que lá ocorrem,
para que sejam estabelecidas com razoável clareza as políticas de estudo,
conservação e exploração sustentável dos ecossistemas conforme determina
a Constituição Federal (Artigos 218 e 225) e a Convenção da
Biodiversidade de 1994.
1
Adalberto Val, III Congresso Nacional de Ciência e Tecnologia CNCTI, CGEE MCT , Brasília,
2006.
2
Outcomes and recommendations of the meeting Biodiversity and the megascience in focus,
COP8 associated meeting, Curitiba março de 2008.
ENNIO CANDOTTI
362
É importante notar que há espécies e interações, entre elas e delas, com
os ambientes que somente encontramos na Amazônia. Interações e
adaptações cuja compreensão é fundamental para entender os modos que
os seres vivos (humanos e não humanos) encontraram para sobreviver (e
continuar sobrevivendo) na Terra.
Se foi graças ao estudo do Sol, dos átomos e das estrelas que hoje
conhecemos os segredos da fusão nuclear e sabemos quais reações são
responsáveis pelo funcionamento do Sol, a ponto de sermos capazes de
reconstruir uma fusão nuclear em laboratório, a partir de elementos
conhecidos, não sabemos como reconstruir, em laboratório, uma folha sequer
de uma árvore, a partir de luz, oxigênio, carbono etc.! Uma folha capaz de
fazer fotossíntese! Ou mesmo compreender como a seiva alcança o topo
das árvores de grande porte.
Há muitas questões abertas portanto no campo da biologia, na botânica
e na zoologia, e são recentes as pesquisas nas florestas tropicais, que utilizam
detectores e equipamentos amplificadores de grande porte. Ainda são tímidas
as iniciativas de “big science” na biologia dinâmica (em física utiliza-se a
expressão de “big science” para caracterizar a pesquisa realizada com grandes
máquinas e equipamentos como aceleradores, telescópios etc.).
Um exemplo de timidez: nos últimos dez anos realizou-se, através de
uma cooperação internacional, um grande experimento na Amazônia, que
utilizou tecnologia avançada em equipamentos detectores em que foram
estudadas as interações entre a cobertura florestal e a atmosfera, o LBA
(Programa de grande escala da biosfera-atmosfera na Amazônia). Hesita-se
porém em preparar um experimento semelhante para o estudo da
biodiversidade, as interações entre sistemas biológicos para além das
interações da cobertura vegetal com a atmosfera. Incluindo o papel dos
insetos e microrganismos, e as emissões de gases decorrentes dos processos
biológicos correntes etc.
O reduzido conhecimento de técnicas de manejo dos ecossistemas
amazônicos e as tímidas alternativas à exploração da madeira, agricultura
extensiva ou criação de gado, oferecidas às comunidades que os habitam, é
devido em boa parte ao desconhecimento da própria diversidade biológica
que encontramos na região amazônica, suas características estruturais e a
dinâmica das interações biológicas e ambientais. De fato, nem mesmo um
extenso levantamento das espécies comestíveis existentes neste bioma foi
concluído!
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
363
Os povos indígenas, ao seu modo, sabem como tratar a floresta, nela se
movem com agilidade, e sabem extrair dela o sustento necessário para as
comunidades de suas aldeias. Trata-se porém, de conhecimentos próprios,
de transmissão oral, e raramente ensinados a estranhos. Estima-se mesmo
que eles, em que pese sua milenar familiaridade com os produtos naturais,
não fazem uso de boa parte das ervas comestíveis da região.
Estes conhecimentos são vivos e objeto de permanente renovação pelos
seus detentores. O diálogo entre as culturas exige mediações e atentas
contextualizações sempre que se deseja retratar estes conhecimentos na
linguagem da nossa cultura científica.
É curioso observar que o estudo das línguas indígenas, da etnologia e da
arqueologia na região amazônica seja incipiente. São raros na região os cursos
de graduação e pós graduação em antropologia, linguística e arqueologia.
Nestas áreas apenas nos últimos anos surgiram políticas indutivas por parte
dos órgãos de fomento da C&T e educação superior, sejam estaduais ou
federais.
Encontramos hoje na Amazônia um curso de linguística, dois de
arqueologia e dois de antropologia! Pouco, muito pouco, para estudar e
entender mais de 150 línguas e o significado de extensas áreas de intensa e
surpreendente ocupação pré-histórica conforme pesquisas recentes.
Se queremos proteger a floresta precisamos ‘aprender a caminhar nela,
e nisso os índios e ribeirinhos são mestres, tanto mais se buscamos alternativas
às tendências de devastação dos seus ecossistemas, em que “os bárbaros”
usualmente jogam fora o ouro ( essências e secreções) e comercializam o
cascalho (madeira e terra).
Por outro lado, conservar a floresta para evitar o aumento da presença
de CO
2
na atmosfera ou simplesmente para preservar as espécies que nela
vivem é missão benemérita, mas de difícil sustentação em uma cultura
dominada por valores de mercado presente e, ainda, pouco sensível aos
cenários futuros.
Ou encontramos na floresta produtos e funções de elevado valor
econômico e reconhecido significado tecno-científico ou a batalha pela sua
preservação será irremediavelmente perdida (elevado aqui significa: maior
do que o valor de uma cabeça de gado ou algumas sacas de soja por hectare).
As ações políticas ou policiais inibidoras podem retardar, mas não sustar a
devastação. Não é o desejável mas é o que vemos ocorrer apesar da crescente
indignação cívica.
ENNIO CANDOTTI
364
Há obvias razões para que outros países concentrem sua atenção sobre
o equilíbrio emissão-absorção de CO
2
da floresta amazônica, uma vez que
não possuem (ou ainda não foram desenvolvidos sistemas de absorção de
CO
2
em grande escala) meios de reduzir as suas próprias emissões. Não há,
no entanto, iguais razões para que esta questão ocupe posições centrais em
nossa política ambiental.
Isto não significa que a queimada deva ser considerada mal menor!
Pelo contrário, a destruição dos ecossistemas (sejam eles emissores ou
sequestradores de CO
2
) deve ser evitada, principalmente porque não
conhecemos o que está sendo destruído e temos boas razões para afirmar que
neste laboratório natural se depositam informações de grande valor científico,
tecnológico, cultural e mesmo econômico (bastaria entender como os cupins
digerem a celulose para provocar uma revolução na produção de etanol).
O cerne da discussão sobre a Amazônia desloca-se portanto, para a
imperativa necessidade de conhecer com maior profundidade os ecossistemas
complexos da floresta e sua biodiversidade. Conhecimentos estes, necessários
não apenas para selecionar o que se deseja conservar, mas também para
encontrar eventuais aplicações de utilidade e para atribuir valores científicos
sólidos à própria floresta e às culturas e populações que lá encontramos e
aos ecossistemas que a sustentam
3
.
Não se trata apenas de promover estudos antropológicos, linguísticos e
da sistemática, da catalogação zoobotânica, mas também de incluir o
conhecimento das interações que ocorrem entre os organismos e
microrganismos e destes com os ambientes tanto em terra firme como nos
periodicamente alagados.
No elenco de questões que devem ser acrescentadas às climáticas e
bio- ambientais poderíamos acrescentar as sanitárias decorrentes da presença
de seres humanos na floresta. A malária, a leishmaniose entre tantas outras,
são graves doenças endêmicas, estudadas há muitas décadas, mas que ainda
não encontraram vacinas ou terapias adequadas ao seu controle ou
erradicação.
Ao entender as formas de adaptação e subsistência na floresta de
humanos e não humanos poderíamos, sem dúvida alguma, lançar nova luz
sobre os modos de conviver com ela, extrair valores sem comprometê-la,
manejar pragas, epidemias e doenças recorrentes nas regiões tropicais.
3
Amazônia desafio brasileiro do século XXI, Academia Brasileira de Ciências, 2008.
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
365
Atrelar o valor da floresta às suas funções climáticas ou de bomba de
absorção do CO
2
é apequenar os amplos horizontes da pesquisa científica
que, se adequadamente explorados, podem contribuir para a evolução dos
conhecimentos físicos e biológicos, das culturas nacionais e universais e da
reforma das combalidas relações do homem com a natureza.
Surge neste ponto a terceira pergunta: como explorar estes horizontes
e ampliar o conhecimento sem contar com a cooperação científica
internacional? Ela é conveniente? Como conciliar esta cooperação com os
imperativos da soberania nacional sobre o território amazônico e o seu
patrimônio genético?
II – A soberania nacional, a cultura e a cooperação científica e o
domínio público do conhecimento
Nesse ponto se insere a terceira grande questão relacionada com ciência
e cultura na discussão sobre a Amazônia:
A questão da soberania nacional entendida não apenas nas suas
dimensões territoriais e de controle dos recursos minerais mas também sobre
o material biológico e o patrimônio genético.
Há dois aspectos que a meu ver devem ser levados em conta tanto por
sua relevância jurídica como política:
Do ponto de vista político, a Convenção da Biodiversidade (subscrita
pelo Brasil) afirma que todo país é soberano sobre os recursos genéticos
4
que podem ser encontrados, crescem e se multiplicam, em seu território e
recomenda que todos os esforços devem ser feitos para melhor conhecê-los,
e para melhor protegê-los.
Por outro lado, do ponto de vista jurídico, a Constituição de 88, no
seu Artigo 225 já determinava que: “todos tem direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”. Para
assegurar a efetividade desse direito (ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado) incumbe ao Poder Público:
4
Constituem o patrimônio genético as “ informações de origem genética contida em amostras
do todo ou de parte de spécimem vegetal, fúngico, microbiano ou animal na forma de moléculas
ou substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes
organismos vivos ou mortos” (Art 7 inciso I da MP 2186)
ENNIO CANDOTTI
366
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material
genético.
VII – proteger a fauna e a flora vedadas na forma da lei as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies
ou submetam os animais a crueldade.
Classificam-se assim os recursos genéticos, de modo semelhante aos recursos
minerais como patrimônio da nação que deve ser protegido e eventualmente
explorado desde que leis e normas estabelecidas pelo Estado sejam observadas.
A proteção deste patrimônio da nação constitui um complexo desafio
para o Estado que deve zelar pelo equilíbrio ecológico e ao mesmo tempo,
promover a pesquisa e o conhecimento que permitam reconhecer e atribuir
valor aos recursos genéticos, que afinal deveria proteger.
Para um material inerte como os recursos minerais, espacialmente
localizados, a proteção e a pesquisa, em princípio, são simultaneamente
realizáveis. Já para material vivo, de diferentes dimensões – micro e
macroscópicas – que se reproduz e cresce, movendo-se e migrando sem
observar os rígidos limites das fronteiras geopolíticas a tarefa não apenas é
complexa mas, na maioria das vezes, é inexequível, se interpretada como
uma proteção material, física e espacialmente localizada.
Se, como no caso de mamíferos, plantas e animais de dimensões que
podem variar entre o decímetro e o metro, a proteção entendida como
rastreamento registro e detecção pode, em princípio, ser fisicamente realizada,
no caso dos microrganismos e insetos de dimensões entre milímetros e o
milésimos de milímetro – e que se contam aos bilhões – este rastreamento e
detecção é praticamente impossível.
É necessário imaginar nestes casos outras formas de controle e proteção
das espécies, do material biológico e das informações que elas veiculam. Formas
que, mesmo sem ser físicas, preservem a soberania nacional e, ao mesmo tempo,
permitam e incentivem a pesquisa científica, protejam os interesses do país
sempre que os objetos da pesquisa, ‘ex post’ revelarem valor comercial.
5
5
Por outro lado, a localização e detecção física de microrganismos é impossível pelas suas
próprias dimensões: em um milímetro cúbico cabem centenas de milhares de exemplares de um
microrganismo. Basta calcular o volume ocupado por um objeto de dimensões de um milésimo
de milímetro (10
-6
m)
3
= 10
-18
m
3
; o que signfica que em um volume de um milímetro cúbico = (10
-
9
)m
3
cabem 10
9
microrganismos (um bilhão de indivíduos)!
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
367
Convém lembrar também que, em muitos casos, o material genético
existente no território de um país existe também em outro, obedecendo a
uma distribuição que obedece à distribuição espacial dos ecossistemas em
que estas espécies vivem e se reproduzem.
Para fixar as ideias com um exemplo bastaria lembrar que 60% da bacia
amazônica está localizada no Brasil, sendo os restantes 40% distribuídos
entre outros oito países. Como tratar as espécies que aqui vivem como
tipicamente brasileiras, quando espécies semelhantes são encontradas também
nos países vizinhos?
Como proteger estas espécies e os ecossistemas próprios à sua
reprodução se as políticas e efetivas ações de controle, conservação e pesquisa
forem muito diferentes entre os países limítrofes?
Como garantir a soberania nacional na proteção do patrimônio genético
quando se deve compartilhar os ecossistemas com outros países soberanos?
Isso se torna particularmente dramático se pensarmos que as nascentes do
rio Amazonas se encontram em território peruano (em uma área que vem
sendo sistematicamente desmatada por empresas madeireiras
transnacionais!).
Outro exemplo poderia ser encontrado ao examinar as dificuldades
encontradas pelas autoridades sanitárias para proteger o espaço territorial
nacional com o objetivo de evitar a entrada de um vírus patogênico. O que
revelou a complexa operação de controle de rotas e fluxos coletivos e não
individuais.
Se de fato é nosso interesse – como deve ser – proteger o patrimônio,
efetivo ou potencial, presente no material biológico existente em nosso
território devemos imaginar novas formas de controle e exercício da soberania,
uma vez que os usuais métodos de detecção, proteção física, rastreamento
individual não funcionam para coibir eventuais ilícitos e “piratarias”.
Um grande número de funcionários estão hoje envolvidos em agências
de governo encarregadas do “controle” da pesquisa científica nos laboratórios
naturais. Tentam eles aplicar a legislação vigente “rastreando e vigiando” os
pesquisadores, individualmente.
Contrariam o artigo da Constituição que determina ser este controle
institucional. Causam assim graves conflitos com os pesquisadores, aplicando
e interpretando as leis de proteção ambiental de modo arbitrário e restritivo.
É recorrente a negação aos supostos réus, de elementares princípios do direito
de defesa e presunção de boa fé, particularmente se levarmos em consideração
ENNIO CANDOTTI
368
que se trata de cidadãos que muitas vezes executam projetos fomentados e
permanentemente avaliados pelos órgãos de apoio à ciência e tecnologia.
Um exemplo simples pode ilustrar os paradoxos que decorrem de uma
restritiva aplicação das leis (da fauna Lei 5197 e do acesso ao patrimônio
genético: MP 2186): é permitido a todo cidadão pescar peixes para consumo
(desde que não se trate de espécies em épocas de desova etc.), mas se um
pesquisador deseja coletar um peixe para pesquisa deve solicitar permissão
ao órgão de controle ambiental, ao Ministério da Marinha etc. Deve explicar
porque e para que deseja realizar a pesquisa (e, ao publicar sua pesquisa
em revista especializada deverá mencionar o número da licença
correspondente).
Após sete anos de vigência da Medida Provisória que regulamenta a
coleta e o acesso ao patrimônio genético, (a MP 2186 é de 2001) os
resultados das intervenções e “controle” dos órgãos de “proteção ambiental”
da pesquisa científica, se revelaram pouco eficazes e mesmo contrários aos
artigos da Constituição que determinam o fomento da C&T nos ambientes
naturais, uma vez que verificamos:
a) o pesquisador é considerado pelos órgãos de proteção ambiental, um
potencial criminoso, permanentemente suspeito de biopirataria, devendo
demonstrar caso a caso, sua inocência e a boa fé de suas ações e intenções.
E, mais grave, em caso de suposta ou real infração o direito de defesa é
precário. Não existem formas jurídicas de amparo do direito ao conhecimento
como por exemplo um “habeas data naturae”
6
semelhante ao “habeas
corpus”.
Por outro lado, em caso de efetiva infração, não existe a possibilidade
de demonstrar que, de fato, não foi cometido dano ao patrimônio, à segurança
nacional ou ao interesse público, casos em que a jurisprudência registra que
a penalidade pode ser relevada.
b) observou-se também que o número de licenças e autorizações
solicitadas por pesquisadores aos órgãos de controle, constituem de fato em
número muito inferior ao das pesquisas que vem sendo realizadas em campo.
6
Candotti, Ennio. Habeas data Naturae. Hilea, Revista de Direito Ambiental da Amazônia n.7,
UEA, Manaus 2009
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
369
c) o número de pesquisas realizadas “in situ”, medido pelas publicações
especializadas em zoologia e botânica tem decrescido na última década, em
números relativos, ao contrário do que deveria acontecer, uma vez que os
recursos e incentivos disponíveis se não cresceram significativamente não
decresceram em igual proporção.
Estes fatos revelam o descrédito do sistema de controle e, mais grave o
desestímulo à pesquisa e ao conhecimento decorrentes da desastrada
legislação, que, pelo contrário, deveria ser instrumento de fomento, além de
proteção.
Há pelo menos cinco aspectos desta questão que deveriam ser
observados por um foro que discute as relações internacionais na política da
Amazônia:
a) a soberania sobre o bioma amazônico depende de pesquisas científicas
capazes de realizar o levantamento da biodiversidade e de suas interações
com os ambientes sejam eles aquáticos, terrestres ou atmosféricos.
b) o material biológico exige tratamento cauteloso quando se discute
questões de propriedade e exploração econômica das aplicações dos
conhecimentos produzidos pela pesquisa científica. Devem ser separados
com cuidado os conhecimentos de domínio público, as descobertas e
informações factuais, das suas eventuais aplicações farmacológicas ou agro-
industriais que podem ser objeto de patentes etc.
7
c) a distinção destes dois domínios e a regulamentação das atividades
que lhes são próprias, torna-se fundamental para disciplinar as de caráter
aplicado e promover a pesquisa científica “de domínio público” necessárias
para informar as políticas de C&T e de defesa da soberania nacional na
região.
7
São de domínio público os dados e informações publicadas nas revistas especializadas que
formam o acervo de conhecimentos abertos à leitura de qualquer cidadão do mundo (ex.
classificação de uma nova espécie de sapo ou o estudo da emissão de sinais sonoros por
formigas ou peixes ). São informações de circulação restrita aquelas que obedecem a legislação
internacional de propriedade intelectual como por exemplo as aplicações farmacológicas de
secreções encontradas na pele de uma sapo ou as propriedade abortivas de extratos de diferentes
ervas manipulados conforme procedimentos tradicionalmente utilizados por pajés de uma etnia
indígena.
ENNIO CANDOTTI
370
d) a determinação dos limites público e privado na pesquisa do material
biológico, dos ecossistemas e do “patrimônio genético”, apesar de
complexo, torna-se assim peça fundamental não apenas para definir as
políticas nacionais de C&T na região amazônica mas também as políticas
de cooperação científica internacional e particularmente da colaboração
científica e tecnológica com os países vizinhos que compartilham os mesmos
ecossistemas naturais.
e) nas fronteiras, entre o domínio público e o privado, encontramos os
conhecimentos das culturas tradicionais indígenas. Esta questão adquire grande
complexidade uma vez que, do ponto de vista das comunidades indígenas a
distinção entre descoberta e aplicação, domínio público e privado, individual
e coletivo, não têm o mesmo significado que têm na cultura científica
acadêmica.
Sabemos que estas comunidades são detentoras de conhecimentos
significativos e de grande valor para entender a vida e as interações
biológicas na floresta. Trata-se de conhecimentos factuais ou aplicados,
que devem ser protegidos por adequada legislação, e de direitos de
propriedade coletiva que devem ser entendidos e respeitados.
Conhecimentos estes que nem sempre podem ser localizados no território
de uma só nação.
Concluímos afirmando que os imperativos levantados pela soberania
nacional na questão amazônica exigem:
i) uma melhor compreensão de quais são as características essenciais no
conceito de patrimônio genético, do significado estratégico do domínio público
do conhecimento e da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais.
ii) uma redefinição das políticas de C&T para a Amazônia, qual o papel
que nesta política exercem as instituições científicas nacionais e estabelecer
com determinação e clareza por quais caminhos deve passar a cooperação
científica internacional.
iii) a definição de um programa acelerado de formação de um grande
número de profissionais habilitados para realizar pesquisas e desenvolvimentos
tecnológicos na região.
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
371
iv) e, finalmente, buscar a colaboração e o entendimento com os povos
indígenas que há milênios vivem e se sustentam na floresta. Os mesmos
povos que hoje reclamam, justamente, ter voz ativa na definição das políticas
públicas que estão sendo traçadas para a região.
III – Algumas reflexões sobre a responsabilidade das Instituições
do Estado na proteção do patrimônio genético
O Artigo 225 da Constituição determina que cabe ao Estado fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético. Da mesma
forma que fiscaliza as entidades que, por exemplo, manipulam material
radioativo. Cabe aqui observar que uma mesma entidade, mesmo no caso
em que é de caráter público (p.ex. a Comissão Nacional de Energia Nuclear,
CNEN) não deveria ao mesmo tempo realizar pesquisas e ser responsável
pela sua própria fiscalização.
No entanto esta separação não tem sido levada às últimas
consequências devido à complexidade destas funções e o grau de
especialização que elas exigem. Dificilmente uma instituição que não
realiza pesquisas e atualiza permanentemente seu acervo de
conhecimentos pode realizar com rigor a função fiscalizadora na área
biológica e ambiental. Um exemplo eloquente é dado pela recente
reestruturação do Inmetro, que criou laboratórios especializados e
contratou um quadro permanente de pesquisadores de elevado grau de
especialização para realizar pesquisas em seus laboratórios. Opta-se
assim pelo exercício de um responsável, bom senso no exercício da
função pública, da pesquisa e de atualização permanente dos parâmetros
de fiscalização.
No caso do “patrimônio genético” a situação não é diferente do caso
do material radioativo. A fiscalização, particularmente da pesquisa
científica, deve ser realizada por instituições do Estado que mantém corpos
de funcionários especializados atuantes em pesquisas de fronteira, e que
estão equipadas para avaliar, caso a caso, se as pesquisas causam de
fato desequilíbrios indesejáveis aos ecossistemas e danos ao patrimônio
nacional.
Não é isso que ocorre nas agências de controle ambiental como por
exemplo o IBAMA e Instituto Chico Mendes etc. Elas não preenchem estes
requisitos básicos, o que alimenta conflitos e tropeços que comprometem a
ENNIO CANDOTTI
372
eficiência do sistema e paralisam as ações de fiscalização da pesquisa que
lhes são atribuídas
8
.
Uma possível solução capaz de preencher estes requisitos seria a de
incluir no sistema nacional de fiscalização da pesquisa com material biológico
instituições de pesquisa, particularmente as que se dedicam às pesquisas
biológicas, geológicas e climáticas e universidades públicas.
Associaríamos assim ao controle das pesquisas e intervenções na natureza
instituições públicas atentas aos imperativos da soberania nacional e equipadas
para distinguir o que é essencial do que é secundário. Com responsabilidades
definidas e um papel ativo no sistema de proteção aos ambientes e do
‘patrimônio genético’ estas instituições poderiam contribuir para tornar o
sistema muito mais eficiente e confiável
9
.
Para realizar esta missão estas instituições deveriam constituir comitês
especializados com atribuições específicas para acompanhar e avaliar riscos
e impactos das pesquisas e a qualidade dos resultados obtidos e eventuais
benefícios ao interesse nacional.
Já mencionamos que pelas dimensões territoriais e pelo escasso acúmulo
de conhecimentos a tarefa do controle das pesquisas com impacto ambiental,
dificilmente pode ser cumprida com sucesso pelas instituições que hoje a ela
se dedicam. Para tanto, o número de funcionários especializados e a
infraestrutura de laboratórios que elas dispõem deveria ser de dimensões
muito superior ao que hoje nelas encontramos.
Isso se tornaria ainda mais evidente se o sistema de fiscalização fosse
orientado, como acredito que deveria ser, para uma atenta avaliação dos
resultados das pesquisas autorizadas e não apenas dos meios e propósitos
registrados nos formulários em que as licenças de acesso e coleta são solicitadas.
Somente incluindo, no sistema de fiscalização da pesquisa científica com
material biológico, os institutos e as universidades e compartilhando com
8
Caso semelhante é encontrado nos órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio histórico,
arqueológico e cultural. Também neste caso, e particularmente para as pesquisas arqueológicas,
o envolvimento dos institutos e universidade públicas poderia contribuir para que as políticas
de proteção e conservação ganhem as dimensões necessárias para sua efetiva implementação.
Ver: Lima, Tânia Andrade (org), Patrimônio arqueológico: o desafio da preservação, IPHAM
2007.
9
Alguns passos tem sido dados nesta direção através de recente instrução normativa do Ministério
do Meio Ambiente em que se torna possível a realização de convênios com institutos e
universidades publicas para que seus pesquisadores, em unidades de conservação federais,
possam realizar pesquisas sem solicitar autorizações individuais.
REFLEXÕES SOBRE CULTURA, SOBERANIA E PATRIMÔNIO GENÉTICO NA AMAZÔNIA
373
eles as responsabilidades de controle e avaliação alcançaríamos as dimensões,
em quadros, competências e laboratórios, necessários para realizar com rigor
e eficiência esta missão.
É bom lembrar que não se trata apenas de uma missão de controle mas
também de registro e catalogação da biodiversidade. Necessária para que o
conceito de patrimônio genético ganhe a concretude dos fatos conhecidos.
Este catálogo para ser confiável e acumulativo deve ser permanentemente
revisto e atualizado, tarefa que não pode ser realizada com sucesso por uma
repartição da administração central que não esteja envolvida com a permanente
atualização e utilização das informações incluídas no catálogo como suporte
para suas pesquisas.
Deve-se sublinhar por outro lado que órgãos como Ibama, Instituto Chico
Mendes e os equivalentes estaduais, são essenciais no sistema de fiscalização
ambiental e deve ser atribuído a eles o papel central no licenciamento e
avaliação dos impactos ambientais dos grandes projetos de engenharia, como
por exemplo instalações industriais, hidroelétricas, estradas além do controle
de queimadas, desmatamentos ilícitos etc. A delegação de parte de suas
funções de licenciamento e avaliação das pesquisas, para institutos e
universidades, não interfere nem reduz a autoridade na fiscalização ambiental
nas áreas onde a maioria das grandes ameaças aos equilíbrios ambientais tem
sido registradas.
Ao incluir no sistema de fiscalização dos impactos ambientais estas novas
instituições evitar-se-ia também outro sensível conflito de competências,
recorrente nos procedimentos de controle e autorização das pesquisas, que
frequentemente ocorre devido ao fato que as universidades e institutos de
pesquisa públicos gozam de autonomia científica, didática e administrativa,
conforme determinado pelos Artigo 207 da Constituição.
As interdições, previstas na lei de acesso e coleta do material biológico
in situ, bem como as informações nele contido têm sido por vezes interpretado
na comunidade acadêmica como uma forma de interferência na autonomia
científica dos institutos e das universidades públicas.
São vistas de mesmo modo que eventuais restrições ao uso de imagens
do território registradas por um satélite ou ao uso do GPS para o estudo da
cartografia, ou mesmo ao uso da internet para acesso e circulação de
informações de caráter técnico-científico.
Entendemos que esta questão é de caráter mais amplo do que a do
estudo científico e cultural da biodiversidade da Amazônia. No entanto, se
ENNIO CANDOTTI
374
ela não for adequadamente resolvida o desenvolvimento das pesquisas
científicas e tecnológicas na região dificilmente poderão progredir e o exercício
da soberania nacional estará comprometido.
O modesto acervo de conhecimentos sócio-ambientais na Amazônia
acumulado nas últimas décadas é sintoma dos efeitos inibidores da confusa
conceituação e contraditória legislação que orienta as relações do Estado
com a pesquisa na natureza. Nela se refletem diferenças conceituais profundas,
presentes em nossa sociedade, tanto sobre o significado do patrimônio genético
e cultural como dos procedimentos capazes de garantir os interesses nacionais
nos projetos dedicados à sua preservação e criteriosa utilização.
Cabe a seminários como este a tarefa de equacionar as diferenças e
orientar a discussão de modo que ela nos possa conduzir a soluções que
permitam, ao mesmo tempo, promover o bom uso da ciência e da tecnologia
para dar valor à rica sócio e biodiversidade, que encontramos em nosso
território, e atribuir à questão amazônica as dimensões nacionais
insistentemente reclamadas.
Nota acrescentada após o debate
Ouvindo a exposição do ilustre jurisconsulto Ives Gandra Martins, em
defesa da tese da demarcação descontínua das terras indígenas Raposa Serra
do Sol, em Roraima, devo expressar minha profunda discordância com os
argumentos apresentados. Se bem entendi, ele interpreta o significado da
palavra “ocupam tradicionalmente”, que encontramos no caput do Artigo
231 da Constituição, como: “que ocupam no momento em que a Constituição
foi promulgada”. Esta interpretação da palavra “tradicionalmente” é, a meu
ver, equivocada uma vez que o significado desta palavra tem uma clara
dimensão temporal e histórica que, pelo contrário, sugere “ocupação desde
tempos imemoriais” o que é confirmado pelo Dicionário Houaiss da língua
Portuguesa onde lemos no verbete “tradição”: “conjunto de valores morais,
espirituais, etc. transmitidos de geração em geração”.
375
Amazônia
Ives Gandra da Silva Martins
Em 1991, participei com o Senador Roberto Campos e o então Ministro
das Relações Exteriores do Brasil, Francisco Rezek, de um seminário realizado
na Fundação Konrad Adenauer, na Alemanha (Bonn), em que se discutiram
assuntos de interesse comum aos dois países.
Um dos painéis foi sobre a Amazônia, do qual participamos proferindo palestra
e debatendo, Roberto Campos, eu e dois professores alemães. Já no dia anterior a
presidente do IBAMA também participara sobre o tema do meio ambiente.
Na exposição dos dois professores alemães, houve nítido posicionamento
a favor da internacionalização da Amazônia. O argumento era simples. Como
a humanidade dependerá, no século XXI, da preservação do meio ambiente
e como a Amazônia representa uma das últimas grandes reservas de
preservação ambiental, nada mais razoável que não um só país, mas toda a
comunidade internacional dela cuidasse
1
.
1
Oscar Corrêa teme que, a título de preservação de tais populações, grandes empreendimentos
internacionais se apropriem de terras brasileiras: “Nessa época (1966), novamente alertei o
Governo para a gravidade da situação. De lá para cá a situação, certamente, agravou-se, com a
aquisição de grandes áreas até mesmo na zona de fronteiras — por empresas multinacionais,
sem a correta fiscalização (difícil, senão impossível) das autoridades nacionais. Impõe-se, pois,
nos apossemos realmente da região, das mais ricas do País, e ainda quase totalmente inexplorada.
Em exploração planejada, que preserve os recursos naturais, mas aproveite as riquezas
racionalmente exploráveis. Antes que os “donos do mundo” se cansem de esperar por nossa
atuação e pretendam, eles mesmos, desenvolvê-la. O que devemos evitar e impedir, a todo
custo” (A Constituição de 1988 - contribuição crítica, Editora Forense Universitária, 1991, Rio
de Janeiro, p. 237).
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
376
Roberto e eu reagimos, de imediato, concordando com a tese geral, mas
discordando do direito da comunidade internacional intervir em assunto afeto
à soberania do Brasil. A única colaboração possível seria, como contrapartida
aos ônus que têm que suportados para a preservação bem de interesse global,
ofertar recursos financeiros e técnicos para que o País possa cuidar da
Amazônia, sem que se possa admitir a internacionalização ou redução da
soberania nacional sobre o território amazônico
2
.
Cheguei a lembrar que, para conquistar o elevado padrão de vida de
que hoje desfrutam, os europeus, ao longo da história, não souberam ou não
se preocuparam em preservar suas florestas, faltando-lhes, portanto,
autoridade para exigirem que o Brasil bloqueie seu desenvolvimento naquela
área, em prol de assegurar maior conforto às nações civilizadas.
Propus mesmo que os recursos internacionais a serem destinados a Amazônia
para exclusivo uso do Brasil, na preservação da rica região, deveriam incluir
também valores compensatórios pela não exploração agropecuária, extrativa,
comercial e industrial da região, ressarcindo aqueles que seriam privados de obter
o mesmo grau de desenvolvimento europeu, por serem obrigados a preservar de
suas florestas, quando a Europa não preservou as suas.
A discussão, embora acadêmica, revelava, todavia, o permanente desejo da
Comunidade internacional, manifestado nos mais variados “fóruns internacionais”,
de que um dia a Amazônia se transforme em área internacional, administrada pelos
“guardiões do mundo”, ou seja, as nações desenvolvidas (EUA-EU-Japão)
3
.
2
É se lembrar as palavras de Artur Bernardes, na Câmara de Deputados, denunciando em 14/12/
1950 o Convênio da Hileia Amazônica, que pretendia abrir espaço à internacionalização:
“Aprovar o Convênio é consumar o desmembramento da Amazônia, ferir a soberania brasileira,
e separar do Brasil mais de um terço do seu território. Além disso, o protocolo suplementar
pode não ser aprovado; podem as nações se recusar à retificação do Convênio, e a mim me
parece ser esse o pensamento de algumas delas. Com efeito, não é de hoje que o Itamaraty
insiste nesses convites sem maior resultado; estão como passarinhos que, escapas ao alçapão,
relutam em voltar a ele” (Discursos e Pronunciamentos políticos, Governo do Estado de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 1977, p. 202).
3
Samuel Hanan e eu escrevemos para a Folha de São Paulo artigo em que enunciávamos: “Pode
interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região que tem —
segundo estimativas de especialistas— de 14% a 20% da água potável do mundo? Pode interessar,
a alguma nação ou organismo internacional, uma região que possui mais de 200 espécies diferentes
de árvores por hectare, cerca de 30% da biodiversidade da Terra e é reconhecida como a maior
fonte natural para produtos bioquímicos e farmacêuticos (maior banco genético) do planeta?
Pode interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região que
tem em seu subsolo um potencial mineral de grande porte, estimado em centenas de bilhões de
dólares, sendo que algumas das riquezas já detectadas são escassas no resto do planeta? Pode
interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, (...)
AMAZÔNIA
377
O tempo, todavia, tem trazido outras preocupações às nações do
primeiro mundo, como as guerras do oriente próximo desde a 1ª invasão
do Iraque, em 1991; o desenvolvimento dos quatro grandes emergentes
(Brasil, Rússia, Índia e China), denominados BRICs; a crise econômica
do ano 2009; o alargamento da União Europeia para 27 países e o
desmembramento da União Soviética e da Iugoslávia. O tema, portanto,
continuou mais no plano da retórica e das discussões acadêmicas,
que de interesse imediato, principalmente após os Estados Unidos não
terem se interessado pelo Tratado de Kyoto sobre meio ambiente
4
.
De qualquer forma, a questão, embora latente, continua a
preocupar, mormente após o denominado direito de ingerência ter sido
repetidas vezes utilizado pelas nações desenvolvidas, nos últimos anos,
direito este que permitiria à comunidade internacional intervir na
soberania de outras nações, quando a própria comunidade corresse
riscos.
A grande questão, todavia, reside no fato de que o denominado
direito de ingerência é dirigido exclusivamente pelas nações poderosas.
A comunidade internacional pouca força tem para opor-se ao pequeno
grupo de nações que decide a sorte do mundo. A própria ONU é um
(...) uma região que tem mais de um terço das florestas tropicais do mundo? Pode interessar,
em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região com a extensão
equivalente a 45% do território brasileiro e à área de dezenas de países europeus reunidos
(onde mora quase meio bilhão de pessoas), habitada por menos de 10 milhões de pessoas
e que produz menos de 5% do PIB brasileiro (enorme vazio econômico e demográfico)?
Pode interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região
imensa que faz fronteira com sete países (três deles contaminados por narcotráfico e/ou
narcoguerrilha)? É evidente que a soma dessas questões à omissão, ao descaso e ao
silêncio do Governo brasileiro e da sociedade em relação à Amazônia poderá encorajar o
já existente processo potencial de interesse internacional sobre a região, transformando-
o em problema real” (“A verdadeira Amazônia” artigo publicado no jornal “O globo”,
Opinião, 07/11/2000, p. 7).
4
Acresce-se o fato de que ocorre, efetivamente, um permanente alargamento do desmate
na Amazônia, como noticia Eduardo Geraque (Folha de São Paulo, Caderno Ciência, p.
A24, “Custo ambiental bloqueia BR-319”, 07/12/2008), tomando como exemplo as
redondezas da BR-319: “Mas hoje o problema da chamada governança ambiental já é
delicado na região, segundo dados do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia). Eles mostram que neste ano o desmatamento já subiu na Zona de influência
da estrada – que existe há décadas, mas é asfaltada apenas nas pontas, perto das duas
capitais. “Os nossos boletins divulgados mensalmente mostram um aumento do
desmatamento no sul do Amazonas (municípios de Lábrea e Humaitá), área de influência
da BR-319”.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
378
organismo manietado pelo poder de veto de uma única nação, entre as
cinco com assento permanente no Conselho de Segurança
5
.
Assim, intervenções como no Iraque, no Afeganistão, ou em Kosovo,
atingindo a soberania de países, embora fossem ditaduras, a maior parte
deles não teve o consenso geral, até porque a guerra de Bush contra o Iraque
ocorreu contra a manifestação dos técnicos da ONU, que não encontraram
armas de destruição que o governo americano afirmava existir naquele País.
A decisão foi exclusivamente do Presidente Bush.
Ora, não excluo que o objetivo, quando as outras questões mundiais
chamarem menos atenção, possa ser retomado
6
.
5
Escrevi em 2005 que: “O mesmo não ocorre com os Estados Unidos que, com população
superior a 250 milhões de habitantes e um PIB maior que 11 trilhões de dólares (o PIB mundial
está em torno de 35 trilhões), não só definem o destino econômico do mundo, como seus
dirigentes se auto-outorgam o direito de dizer o que é bom e o que é ruim para a humanidade.
As operações contra o Iraque, em 1991 e 2003, e contra o Afeganistão, em 2001, foram
deliberações dos Estados Unidos com ou sem o aval da ONU (Organização das Nações Unidas)
e da grande maioria das nações, desenvolvidas ou não. O mesmo se diga da operação contra a
Iugoslávia, em que a decisão de combater Milosevic decorreu do aval dos americanos e de
decisão de um seleto grupo de países desenvolvidos, sem o apoio dos demais. Nas operações
mencionadas, toda a concepção jurídica de soberania elaborada no correr dos séculos,
principalmente após o advento do constitucionalismo moderno — houve, em Atenas, um
direito nos moldes do constitucionalismo atual —, foi posta de lado, contando apenas o superior
interesse das nações mais fortes, que se auto-outorgaram o direito de intervir em assuntos
alheios sempre que seus dirigentes assim entenderam necessário. Em outras palavras, o conceito
de soberania nacional foi substituído pela lei do mais forte. Não do “direito de ingerência da
ONU”, mas do “direito” de a nação mais forte impor sua vontade. E como a economia americana,
de certa forma, serve de sinalização à estabilidade econômica mundial, todos os países, em
menor ou maior intensidade, que são dela dependentes, à evidência, curvam-se à sua liderança
auto-suficiente, que não carece, pois, da oitiva das demais nações. E esse o componente maior
dessa nova realidade em que, após a queda do muro de Berlim, todos os países passaram a ter
uma dimensão secundária” (A queda dos mitos econômicos, ed. Pioneira/Thomson Learning,
2004, p. 5).
6
No momento, a crise mundial e o xadrez do Oriente Médio chamam mais a atenção. Escrevi:
“Quando menino, li um livro intitulado ‘Os mais belos contos russos’. Num deles, sete guerreiros
invencíveis reuniram-se para comemorar sua invencibilidade quando, no horizonte, surgiu um
cavaleiro com elmo e espada, que cavalgou em direção ao grupo para desafiá-lo. Bastou um
golpe de um dos guerreiros invencíveis para dividi-lo ao meio. Do cavaleiro morto surgirão dois
cavaleiros que, novamente, foram divididos em dois por dois golpes de dois guerreiros invencíveis.
Os dois cavaleiros mortos transformaram-se em quatro e assim foram sendo multiplicados
enquanto eram derrotados. Após sete dias de combate com uma infinidade de cavaleiros, os sete
guerreiros invencíveis foram vencidos pelos fracos cavaleiros que tinham o dom de se multiplicarem
quando mortos.” Escrevi, tão logo Bush invadiu o Iraque, na Folha de São Paulo, o artigo
“Terrorismo Oficial de Bush”, em que prenunciava que o Iraque seria uma nova Vietnã para os
americanos. É que estou convencido que o terrorismo político, arma dos mais fracos, não pode
ser combatido como se combate o narcotráfico ou a criminalidade em geral. (...)
AMAZÔNIA
379
Temo, inclusive, que o debate futuro não se travará mais no campo
da preservação do meio ambiente, mas da intervenção a pretexto de uma
suposta necessidade de preservação de 400.000 índios brasileiros e
estrangeiros, que vivem em 25% do território amazônico, em reservas
nas quais os brasileiros não índios não podem penetrar, salvo por horas,
com autorização da FUNAI
7
.
Embora discorde da leitura que ilustres magistrados fizeram do art. 231
da C.F., assim redigido:
(...) Quem está disposto a sacrificar sua vida por uma causa, por mais errada que esteja – e os
terroristas estão sempre errados pelos métodos adotados – acredita firmemente no ideal que
abraça a ponto de sacrificar-se como “pessoa-bomba” em seus atos tresloucados. O terrorismo
político só pode ser combatido com o diálogo à exaustão, sem preconceitos, aceitando-se as
diferenças culturais e nivelando-se o “status” do mais forte com o mais fraco, como Rui Barbosa
prenunciou em Haia, ao defender a igualdade das nações independentemente de sua força. O
presidente Clinton obteve, em seu governo, um cessar fogo entre palestinos e israelenses
mediante um diálogo permanente. É bem verdade que Arafat tinha mais sensibilidade que os
radicais de Hamas, os quais, todavia, foram eleitos pelo povo. Do ponto de vista do Direito
Internacional, a resposta de Israel é justificada, pois foi o grupo Hamas que deu início às
hostilidades, mas o objetivo de Israel de destruir por completo o foco dos radicais de Hamas
através reação desproporcional, que matou tantos inocentes quanto terroristas, parece-me de
difícil consecução, pois o número de mortos palestinos termina por aumentar o ódio islâmico
contra Israel, o que poderá levar a uma luta semelhante ao dos sete guerreiros invencíveis. Ódio
gera ódio. Morte de inocentes de ambos os lados gera a vontade de vingança, com o que o drama
do Oriente Próximo nunca terá fim. Creio que a pressão crescente da comunidade internacional
e a necessidade de abertura de um diálogo à exaustão entre as partes em conflito, são as únicas
tênues esperanças de que, um dia, teremos paz naquela conturbada região” (Israel x Hamas,
artigo publicado no Portal Migalhas, www.migalhas.com.br).
7
Escrevi : “1.702 índios Cué-Cué Marabitanas deverão receber, segundo noticia a Folha de São
Paulo (p. 4 dia 27/12/08) , 808.597 hectares, ou seja, 8.085.970 kms² de terras na fronteira com
a Venezuela e Colômbia, o que vale dizer : a pouco mais de mil índios será destinada área
superior à ocupada pela grande São Paulo, que inclui os municípios da capital, o mais populoso
do Brasil, Santo André, São Bernardo, São Caetano, Osasco e outros. Com a futura outorga dessa
vasta extensão territorial , ao norte do Brasil, toda a fronteira com a Colômbia, quase toda a
fronteira com a Venezuela e parte da fronteira com a Guiana ficarão em mãos de algumas
dezenas de milhares de silvícolas. Por estas terras não poderão os demais brasileiros transitar,
nem possuir propriedades, muito embora aos indígenas , em favor dos quais essas reservas
foram demarcadas, possam transitar livremente e possuir terras em todo o território nacional .
Pelo art. 5º inciso XV da Constituição Federal, é assegurado aos brasileiros, sem exceção, o
direito de transitar livremente e de possuir propriedades em todo o território nacional, sendo
certo que mesmo aquelas áreas que constituem bens pertencentes à União (artigo 20) , aos
Estados (artigo 25) e aos Municípios (artigo 29) são bens do povo . Em relação aos brasileiro
não-índios, esse direito, agora, ficou reduzido a apenas 87% do território do País. Já em
relação aos índios, nenhuma restrição existe: além das reservas que possuem, poderão ter
propriedades e transitar livremente pelo País inteiro” (artigo “Cué-Cué Marabitanas” no Jornal
do Brasil, 13/01/2009).
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
380
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens” (grifos meus).
Estou convencido de que mais do que o equívoco na interpretação do
dispositivo, a assinatura da Declaração Universal dos Povos Indígenas poderá
trazer, no futuro, problemas sérios para o País, na medida em que já há
movimentos insuflando os povos destas reservas no sentido de exigir que
elas se tornem países independentes, como um grupo de ianomanis tem
pleiteado, junto a organizações internacionais
8
.
8
Constam da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, assinada
pelo Brasil, trechos como os seguintes:
“Art. 3º Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito, determinam
livremente a sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico,
social e cultural.
....
Art. 4º Os povos indígenas no exercício do seu direito a livre determinação, têm direito à
autonomia ou ao auto-governo nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais,
assim como os meios para financiar suas funções autônomas.
Artigo 5
Os povos indígenas têm direito a conservar e reforçar suas próprias instituições políticas,
jurídicas, econômicas, sociais e culturais, mantendo por sua vez, seus direitos em participar
plenamente, se o desejam, na vida política, econômica, social e cultural do Estado.
...
Artigo 9
Os povos e as pessoas indígenas têm direito em pertencer a uma comunidade ou nação indígenas,
em conformidade com as tradições e costumes da comunidade, ou nação de que se trate. Não
pode resultar nenhuma discriminação de nenhum tipo do exercício desse direito.
....
Artigo 20
1. Os povos indígenas têm direitos a manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas,
econômicas e sociais, que lhes assegure a desfrutar de seus próprios meios de subsistência e
desenvolvimento e a dedicar-se livremente a todas as suas atividades econômicas tradicionais e
de outro tipo.
2. Os povos indígenas despojados de seus meios de subsistência e desenvolvimento, têm direito
a uma reparação justa e eqüitativa.
.....
Artigo 25
Os povos indígenas têm direito em manter e fortalecer sua própria relação espiritual com as
terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente têm possuído
ou ocupado e utilizado de outra forma, e a assumir a responsabilidade que a esse propósito lhes
incumbem respeito, às gerações vindouras.
AMAZÔNIA
381
O equívoco na leitura do texto constitucional reside, a meu ver, em não se
respeitar o tempo do verbo utilizado pelo constituinte. Ao utilizar-se do presente do
indicativo (ocupam) a Lei Suprema, preservou os direitos originários sobre as terras
que ocupavam em 5 de outubro de 1988 e não as terras que ocuparam antes
daquela data, e já não ocupavam em 05/10/1988
9
.
Correta ou incorreta a leitura da Suprema Corte, o certo é que, 25% da
Amazônia pertence exclusivamente aos indígenas, negando-se aos demais
brasileiros o direito a parte do território nacional
10
.
Ora, minha preocupação maior é de que as futuras reivindicações do “direito
de ingerência” da comunidade internacional venham a ser “fundamentadas”
numa pseudo-necessidade de preservação dos povos indígenas e de suas
.......
Artigo 26
1. Os povos indígenas têm direito as terras, territórios e recursos que tradicionalmente tem
possuído ou ocupado ou de outra forma ocupado ou adquirido.
2. Os povos indígenas têm direitos a possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios
e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional, ou outra forma de tradicional de
ocupação ou utilização, assim como aqueles que tenham adquirido de outra forma.
3. Os Estados assegurarão o reconhecimento e proteção jurídica dessas terras, territórios e
recursos. O referido reconhecimento respeitará devidamente os costumes, as tradições e os
sistemas de usufruto da terra dos povos indígenas.
.....
Artigo 30
1. Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou territórios dos povos indígenas, a
menos que o justifique uma razão de interesse público pertinente, ou que o aceitem ou solicitem
livremente os povos indígenas interessados.
2. Os Estados celebrarão consultas eficazes com os povos indígenas interessados, para os
procedimentos apropriados e em particular por meio de suas instituições representativas, antes
de utilizar suas terras ou territórios para atividades militares.
...
Artigo 41
Os órgãos e organismos especializados do sistema das Nações Unidas e outras organizações
intergovernamentais, contribuirão à plena realização das disposições da presente Declaração
mediante a mobilização, entre outras coisas, da cooperação financeira e da assistência técnica.
Estabelecer-se-ão os meios para assegurar a participação dos povos indígenas em relação aos
assuntos que os afetem”.
9
Fernando Whitaker da Cunha lembra Mário da Silva Pinto: “A pretexto de cumprir-se o art.
67 do ADCT, que determina prazo de cinco anos para a total demarcação das terras indígenas,
não se pode, contudo, por um idealismo novecentista, atribuir-se aos silvícolas 10% do território
nacional (Mário da Silva Pinto, ‘Terras de índios e Reforma Agrária’, em Carta Mensal n. 429”
(O sistema constitucional brasileiro, Ed. Espaço Jurídico, 1996, p. 371).
10
Fernando Whitaker da Cunha critica: “A demarcação das terras indígenas, pois, não deve ser
atitude romântica e demagógica, como foi a que concedeu, ilegalmente, enorme território a
poucos ianomanis despreparados, porque a competência para tanto era da União, através do
Congresso Nacional (art. 67 do ADCT)” (O sistema constitucional brasileiro, cit., p. 371).
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
382
comunidades, como nação independente, como, por exemplo, já ocorre
com as reivindicações do Tibete, que é parte da China, mas que a pressão
internacional é para que se separe de um dos quatro BRICs.
À evidência, sou favorável à preservação das reservas indígenas, mas
nos termos da Constituição Federal, ou seja, apenas aquelas terras que
efetivamente ocupavam em 05/10/1988, e não que ocuparam no
passado
11
.
Defensor do governo do Amazonas, em diversas questões relativas à
manutenção da Zona Franca de Manaus – polo indispensável para o
desenvolvimento daquela região – junto ao STF, perante o qual tive
oportunidade de produzir diversas sustentações orais, em que aquela Corte
assegurou os incentivos pertinentes, assim como defensor intransigente
da soberania de nosso País, em fóruns internacionais, temo por ela, pelo
fato de quase toda a fronteira norte do país ser habitada por indígenas.
No dia em que a comunidade internacional voltar seus olhos novamente
para a Amazônia, por certo vai fundamentar seu pretenso “direito de
ingerência” na proteção dos povos indígenas, além da preservação do
meio ambiente
12
.
11
É ainda Fernando Whitaker que esclarece: “Em documentos internacionais, o vocábulo
minoria é, constantemente, substituído pela expressão ‘ethnic, religious or linguistic groups’,
mas isso não disfarça a gravidade da questão, que existe, com relação aos asiáticos, na
África Oriental, aos drusos e judeus na Síria, aos árabes, em Israel, em Chipre, aos alemães,
na Dinamarca (e vice-versa), e, ainda, na Iugoslávia, Polônia, na Checoslováquia, na Áustria,
na Bulgária, na Romênia, na Hungria, na Lituânia, no Egito (coptas), na Argélia (berberes),
na Indonésia (chineses e árabes), onde existem, vinte e cinco idiomas e duzentos e cincoenta
dialetos, no Irã, na Itália (minorias lingüísticas francesas, alemãs e eslovenas), na Estônia
(alemães, russos e suecos), no Iraque e na Turquia (curdos), na Espanha e na Albânia, por
exemplo. A Constituição desta última (art. 35) exara mesmo: ‘nella repubblica popolare
d’Albania le minoranze nazionali godono di tutti e diritti di protezione del loro svilupo
culturale e dei libero uso della loro lingua” (O sistema constitucional brasileiro, cit., p.
371).
12
Oscar Dias Corrêa lembra: “Veja-se o caso da Amazônia. Ao lado dos que,
ponderadamente, pleiteiam tenha ela aproveitamento adequado, planejado, racional, não
faltam os que a querem intocada, como patrimônio universal, e outros, que pretendem
continuar a explorá-la ao sabor das conveniências da hora, desordenada e irracionalmente”
(A Constituição de 1988 - contribuição crítica, Forense Universitária, 1991, p. 235).
AMAZÔNIA
383
13
É ainda Oscar Corrêa que lembra: “Essas duas últimas opções, obviamente, não servem ao
interesse nacional, nem universal. (...)
(...)Não há por que pretender excluir a soberania nacional sobre o vasto território, para lhe dar
aproveitamento racional, sem risco de quebra da harmonia ecológica desejada. Nem se há de se
permitir que interesses externos, qualquer que seja o disfarce, se insinuem para atingi-lo ou
impedi-lo.
As nações ditas desenvolvidas não têm direito nem autoridade para imiscuir-se na solução do
problema, que, ainda interessando à humanidade, é de exclusiva alçada da soberania nacional.
Soberania, aliás, há muito ameaçada por toda a sorte de ataques, principalmente os sub-reptícios,
como os que vêm ocorrendo na região, na invasão de alienígenas que ali aportam com os mais
variados interesses e sob as mais diversas indicações” (A Constituição de 1988 - contribuição
crítica, cit., p. 236).
Para uma publicação que objetiva, fundamentalmente, levantar
questões para reflexão sobre a Amazônia, fiz questão de trazer matéria
que é de minha permanente meditação, não só como professor de direito
constitucional, mas, fundamentalmente, como brasileiro consciente do dever que
todos temos de defesa de nossa pátria, cujo hino conclama todos os brasileiros a
dar até mesmo a vida por ela
13
.
385
Objetivos de uma política externa do Brasil em
relação à Amazônia: proposta para discussão
*
José Alberto da Costa Machado
**
1 - Introdução
Na história da política externa do Brasil pós-colonial, a Amazônia
Brasileira
1
pouca relevância teve como interesse sistemático (CERVO
e BUENO, 2008). As situações nas quais a região recebeu destaque
foram pontuais e dissociadas das grandes linhas de atuação dos órgãos
responsáveis. Embora tendo, nas vezes que tal se deu, recebido atenção
vigorosa e consistente, essas ocorrências, por terem sido inusuais,
acabaram se transformando em marcos relevantes da história regional,
*
Texto preparado para a “III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional
– CNPEPI – O Brasil no mundo que vem ai”, realizada no Rio de Janeiro, nos dias 08 e 09/12/
2008, pela Fundação Alexandre de Gusmão e Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,
ambos do Ministério de Relações Exteriores do Brasil.
**
Professor Adjunto do Departamento de Economia e Análise da Universidade Federal do
Amazonas, Doutor em Desenvolvimento Socioambiental, Mestre em Engenharia de Sistemas e
Computação, Graduado em Administração de Empresas ([email protected]).
1
Por Amazônia Brasileira ou Amazônia Legal entende-se o conjunto dos estados brasileiros
situados na parte amazônica do Brasil: Acre, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Pará, Rondônia,
Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. Por Amazônia Continental, Pan-Amazônia, Grande
Amazônia, Amazônia Internacional ou, simplesmente, Amazônia entende-se o conjunto das
porções nacionais integrantes do bioma amazônico dos seguintes países: Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Perú, Suriname, Venezuela e a Guiana Francesa (parte ultramarina do território
da França).
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
386
como os casos da disputa com os ingleses sobre parte do território
hoje guianense; com os bolivianos sobre o território hoje estado do
Acre; com os americanos sobre a abertura do rio Amazonas à navegação
estrangeira e outros. As razões dessa refratariedade podem ser
identificadas na inserção tardia da Amazônia Brasileira na história
nacional
2
; no inexpressivo aporte de agentes políticos regionais com
influência na formação da agenda brasileira de política externa
3
;
na limitada assimilação pela agenda de interesses do estado nacional
(no sentido dado por RIBEIRO, 2008:76-85) de suas demandas como
subregião periférica
4
; no pouco êxito dos dirigentes federais em
converter as singularidades regionais, tidas como potencial
imensurável, em efetivo elemento estratégico do país
5
e na pouca
2
Até 15/08/1823 a região hoje conhecida como a parte brasileira da Amazônia não tinha essa
condição. Essa é a data de adesão da última unidade colonial portuguesa na América do Sul – o
Grão-Pará e Rio Negro – ao Brasil. Até 1822, por ocasião da independência do Brasil, existiam
três unidades coloniais portuguesas na América do Sul: o Brasil; o Maranhão e Piauí; e o Grão-
Pará e Rio Negro. Estes dois últimos surgidos do desdobramento do Estado do Grão-Pará e
Maranhão, em 20/08/1772. A unidade formada pelo Maranhão e Piauí aderiu imediatamente ao
Brasil, mas o Grão-Pará e Rio Negro só o fizeram posteriormente: a capitania do Grão Pará, em
15/08/1823; e a capitania de São José do Rio Negro em 09/11/1823. Até essas datas ambas
permaneceram ligadas diretamente a Portugal (GARCIA, 2004:16). Por essa razão, muito
pouco da história regional, antes dessa data, foi absorvida na memória geral do país e, por
extensão, no suporte cognitivo da história da política externa nacional.
3
Os interesses das regiões mais desenvolvidas da nação, porque têm maior contribuição na
formação da elite política e dos quadros dirigentes do Estado Nacional, acabaram hegemonizando
a agenda da política externa. Regiões periféricas, como a Amazônia, com baixíssima interferência
junto aos poderes centrais, não poderiam mesmo ter inserção relevante nessa agenda.
4
Com o advento dos Estados Nacionais a cultura que molda as políticas externas nacionais
repousa na idéia de que só há interesses do Estado Nacional, como ente jurídico representativo
de um todo territorial, homogêneo em seus interesses. As especificidades subregionais e seus
interesses específicos pouca ou nenhuma relevância possuem na agenda nacional, pelo menos
enquanto não puderem ser expressadas como interesse nacional. É o caso da Amazônia: as
partes nacionais dos países que a integram são subregiões periféricas sem peso - pelo menos até
recentemente - para transformarem suas demandas em interesses nacionais capazes de inserção
na agenda da política externa desses países.
5
Até o presente o Brasil ainda não conseguiu dar unidade na forma de perceber as razões que
conferem à Amazônia uma condição estratégica. Evoca-se seu patrimônio de biodiversidade;
sua abundância em água doce; a importância de seu ecossistema no aquecimento global; o
questionamento internacional referente à soberania nacional sobre seu território.. A questão é
que, tudo isso, tem permanecido na condição de discurso sem tradução estratégica para as
diversas políticas nacionais. Inexistindo formulação coesa por parte do Estado Nacional sobre
sua condição estratégica fica difícil que seus interesses venham a se refletir na agenda da política
externa.
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
387
expressão econômica que a região possui em relação às outras
regiões brasileiras
6
.
Na atualidade, entretanto, com as questões ambientais ocupando cada
vez mais espaços na agenda internacional e tendo esta poder configurador
das agendas nacionais (BECKER, 2005), a Amazônia ganha dimensão como
tema relevante nas preocupações da nação e sua política externa não pode
mais deixar de considerá-la com destaque
7
. Assim como elegeu América do
Sul e relação Sul-Sul como focos estratégicos (GARCIA, 2008), torna-se
necessário fazer o mesmo com a sua Amazônia. Nesse sentido, faz-se
necessário trazer à tona os possíveis objetivos para a sua política externa em
relação à Amazônia. Tal é o objetivo deste texto.
2 - Identificação de objetivos
Para organizar a prospecção de possíveis objetivos para a política externa
do Brasil em relação à sua Amazônia tomou-se como foco os diversos âmbitos
geográficos nos quais são requeridos posicionamentos diferenciados do país,
a saber, a Amazônia Continental ou Panamazônia, a América do Sul e o
mundo. Para cada desses âmbitos deve haver um propósito geral orientador
e objetivos específicos que propiciem focos balizadores das ações concretas
a serem desenvolvidas pela política externa.
2.1 - Em relação à Amazônia Continental ou Panamazônia
Nesse âmbito os países se vinculam por compartilharem o bioma
amazônico, matrizes culturais similares e necessidades comuns de
6
O PIB dos estados da Amazônia Brasileira situou-se, em 2005, próximo a R$170 bilhões,
algo próximo de 8% do PIB nacional, que alcançou R$2.147 bilhões, no mesmo ano (IBGE,
2007). Suas grandes riquezas, como minério, recursos florestais, serviços ambientais, água
doce, biodiversidade, beleza cênica, peixes e outros, ou são explorados de forma predatória ou
continuam como eternos potenciais. Dos 5.506 municípios com IDH calculado em 2000, 10
municípios desses estados estavam entre os 20 piores IDHs do Brasil. Sua infra-estrutura é a
mais frágil do país e energia continua sendo um grande problema. Não fosse pelo Polo Industrial
de Manaus a região seria um grande vazio econômico.
7
Uma evidência dessa constatação é a própria razão do tema “Amazônia” ter sido inserido na
Conferência para a qual este texto está sendo produzido. Ao lado de temas de viés apenas
geográfico, como América do Sul, Europa, EUA, África, Rússia, China, Índia e similares, como
é comum nas considerações sobre a política externa nacional, o tema “Amazônia”comparece e
ganha identidade própria na agenda dos formuladores dessa política.
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
388
desenvolvimento. Por essa razão o propósito geral deveria ser o de construir,
implementar e manter uma agenda de grandes temas comuns. O Tratado
de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, foi um grande esforço
nesse sentido, porém, com pouca efetividade nos primeiros vinte anos de
existência. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA),
criada para dar-lhe operacionalidade, também foi outra iniciativa relevante,
porém seu funcionamento tem deixado a desejar, sobretudo por falta de real
interesse dos governos nacionais em dar-lhe condições estruturais para bem
cumprir seu papel, conforme analisa ARAGON (2002, 2007 e 2008). Os
temas mais relevantes dessa possível agenda comum
8
, sobretudo na ótica
brasileira, serão analisados nas seções seguintes.
2.1.1- Gestão de recursos hídricos
Tratando-se de uma mesma bacia hidrográfica não há como tal tema
ficar ao sabor de políticas estritamente nacionais. Os rios nascem em um
país, atravessam outro e deságuam em um terceiro. O que acontece nas
nascentes desses rios afeta diretamente as dinâmicas da calha principal do
grande rio Amazonas, quase toda ela no Brasil. De igual maneira o que acontece
aos corpos de água ao longo da calha também afeta o ciclo hidrológico da
região com consequências para os nascentes das miríades de pequenos e
grandes fluxos de água que formam a bacia e que, geralmente, situam-se na
parte amazônica de outros países.
Análises científicas sobre essa interrelação têm sido feitas em abundância.
Em uma mais completa (ARAGON e CLUSENER-GODT, 2003) há
detalhamentos sobre ciclo hidrológico, poluição, transporte, energia,
geopolítica, regulação e institucionalidade, gestão e cooperação internacional.
Em outra mais recente (RAVENA e CAÑETE, 2007) há uma análise crítica
sobre os avanços, que são poucos, e em especial sobre o papel da OTCA.
Um objetivo da política externa em relação a esse tema seria obter
harmonização na gestão dos recursos hídricos da Amazônia, através de
legislações comuns, instituições específicas supranacionais e fóruns para
discussão de grandes projetos nacionais com efeitos gerais na bacia.
8
Há outros temas que certamente poderiam compor essa relação. Porém, ou possuem fórum e
lógica própria para tratamento (como segurança militar) ou não são da agenda específica das
relações externas (como questões aduaneiras e fitossanitárias).
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
389
2.1.2- Complementaridade econômica
A população que vive na parte amazônica dos diversos países que
participam do bioma é estimada em torno de 28 milhões de pessoas. Juntando-
se a população dos estados da Amazônia Brasileira com a totalidade da
população dos demais países da Amazônia Continental, essa estimativa
aproxima-se de 140 milhões (ARAGON, 2005). Trata-se, pois, de um
mercado significativo, mas muito pouco dinamizado.
Os dados de comércio exterior desse mercado, referente a 2008 (MDIC,
2009), indicam que:
a) Os estados da Região Norte do Brasil
9
exportaram apenas 7% (US$ 825
milhões) do total das exportações do Brasil para os países amazônicos (US$11.825
milhões). As importações têm menor expressão ainda, pois representaram apenas
4% (US$ 225 milhões) do total das importações feitas pelo Brasil desses países (US$
5.253 milhões). Além de irrisória, gera um imenso déficit comercial contra esses
países, o que se converte em foco de desconforto nas relações deles com o Brasil;
b) Além de diminutos, esses fluxos comerciais concentram-se, basicamente,
entre dois estados brasileiros e três países (Venezuela, Peru e Colômbia), cujo
intercâmbio representa mais de 90% das exportações e mais de 95% das
importações. As exportações do Amazonas representaram US$ 392 milhões e do
Pará US$ 353 milhões. As importações centradas no Amazonas, US$ 131 milhões
e no Pará, US$ 88 milhões;
c) Um outro aspecto é que esse comércio centra-se em apenas alguns
itens. Das exportações, 80,4% feitas pelo Amazonas concentram-se em
celulares, concentrados de bebidas, derivados de petróleo, televisores e
motocicletas; e 96,5% feitas pelo Pará concentram-se bovinos vivos, manganês
e subprodutos bovinos. Das importações, 90,1% feitas pelo Amazonas
concentram-se em prata, ligas e resíduos de alumínio, policroreto de vinila,
laminados de ferro e poliestireno; e 99,6% feitas pelo Pará concentram-se em
hulha e produtos relacionados e em coque de petróleo.
Entretanto, existe uma grande lista de produtos que a região compra do
Sul-Sudeste brasileiro ou de outras regiões do mundo que poderia ser suprida
9
Apenas parte do Maranhão e Mato Grosso não fazem parte da Região Norte embora sejam
considerados parte da Amazônia Brasileira.
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
390
por esses países, com preços muito mais baratos, como é o caso de adubos
e insumos para fabricá-los, artesanatos de têxteis, de pedras e de metais,
calcário, cerâmica, cobre, zinco, derivados de petróleo, enlatados (atum,
sardinha, etc.), enxofre, flores, frutas (morangos, uvas, etc.), frutos do mar,
pedras ornamentais, material de construção e outros. Por outro lado, esses
países compram de outras regiões do mundo produtos que poderiam ser
supridos pelos Brasil por preços certamente menores, como é o caso de
artigos de pesca, de telefonia, esportivos, náuticos, autopeças, bebidas em
geral, motocicletas e bicicletas, carne e frangos, eletroeletrônicos em geral,
ferramentas, instrumentos musicais, minérios, material elétrico, pequenas
maquinas, peças de motores, sucos e concentrados, temperos e muito mais.
Por essas considerações um objetivo da política externa em relação a
esse tema seria ampliar o comércio e diminuir os desequilíbrios da
balança comercial com esses países, a partir do estímulo à
complementaridade econômica entre eles e os estados amazônicos,
através da facilitação do comércio com redução de barreiras alfandegárias,
fitossanitárias e logísticas.
2.1.3- Convergência de agendas internacionais
A Amazônia entrou na agenda internacional para ficar. Isso ocorre
tanto pela sua importância na regulação do clima planetário, quanto pelo
grande potencial de riquezas que possui em suas jazidas minerais, em seu
estoque de água doce, em sua biodiversidade, nos produtos madeireiros e
não madeireiros de suas florestas, nos serviços ambientais ainda não
transformados em mercadoria e muitos outros. Ao lado de interesses
legítimos, visando protegê-la em prol do bem do planeta, existem também
os movimentos geopolíticos para minimizar a soberania dos países que a
detém sobre a região e a ambição argentária de corporações econômicas
sobre suas riquezas.
Por essas razões, a mídia internacional tem enfatizado temas como
destruição de florestas, poluição de rios, agressão a povos nativos, violência
desenfreada e similares, expressando, quase sempre, a ideia de que os
países amazônicos, especialmente o Brasil, não são capazes de zelar pela
integridade da Amazônia. Sendo esta fundamental para o planeta, os países
panamazônicos passam a ser cobrados nas agencias internacionais, pelos
governos de países centrais, por grandes ONGs e similares. Quase sempre
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
391
estão atuando na defensiva e com posições diferentes, quando não na
essência, mas de certo na forma, pois não há uma construção prévia de
posições comuns para fazer frente aos questionamentos e demandas que
vão surgindo na comunidade internacional.
Por essas considerações um objetivo da política externa em relação a
esse tema seria construir e manter convergências sobre itens da agenda
internacional relacionada com a Amazônia, através da harmonização
prévia intra-regional das diferentes visões que os países panamazônicos
possuem acerca dos temas que a envolvem.
2.1.4- Prevenção de importações nocivas
Na Amazônia, devida sua dimensão, baixa densidade demográfica e
pouca presença dos estados nacionais, os atos ilícitos só são identificados
como problemas quando já tomaram proporções fora de controle. Alguns
exemplos seguem abaixo:
a) Ocorrências relacionadas com a droga – sob esse tema três aspectos
são relevantes:
a.1) Transformação da região em rota do tráfico internacional – as
milhares de pequenas embarcações que transitam nos incontáveis rios e
igarapés regionais, associados às infindáveis rotas terrestres de circulação
entre as comunidades e pequenas cidades, tornam a região passagem atrativa
para as grandes cargas de droga rumo ao hemisfério norte;
a.2) Disseminação incontrolável do uso de droga na região – ao transitar
pelo interior regional a droga vai deixando seus efeitos, pois que, torna-se
necessário criar usuários capazes de demandar a droga que é utilizada para
remunerar os diversos elos dessa infindável cadeia construída ao longo das
rotas;
a.3) Semeadura na região dos tentáculos dos cartéis internacionais – a
necessidade de monitorar o trânsito das drogas e manter a harmonia entre
os diversos elos ao longo da cadeia, tem trazido para a região os tentáculos
de cartéis internacionais.
b) Transbordamento de conflitos internos de outros países – de todos
os países da América do Sul com os quais o Brasil compartilha 16.886 Km
de fronteira terrestre, somente três (Uruguai, Argentina e Paraguai) estão
fora a Amazônia. Na maioria destes, tem havido registros, intermitentes ou
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
392
contínuos, de conflitos internos, muitos de longo curso e com possibilidade
de transbordamento para o Brasil. Embora, até agora, tenham sido contidos
nas fronteiras, continuam a representar potencial fonte de problemas. Alguns
exemplos: as atividades guerrilheiras na Colômbia, cuja expressão maior, mas
não única, são as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC);
os remanescentes da desarticulação do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso,
no Peru; os conflitos civis por autonomias regionais, na Bolívia, cujos fugitivos
transferem-se para o lado brasileiro com a naturalidade de quem atravessa
uma simples rua ou ponte; a atuação de redes criminosas na fronteira da
Guiana, nas proximidades da fronteira brasileira; e o recém-descoberto tráfico
de pessoas de nacionalidade chinesas que entram no Brasil pela fronteira
peruana;
c) Consolidação do contrabando como prática rotineira – a partir de
redes bem organizadas, quase sempre sediadas em outros países, pratica-
se o contrabando como atividade rotineira nas extensas fronteiras
brasileiras. Há os expressivos volumes de peixes saindo do Brasil em
direção a Bogotá, por Letícia, e em sentido inverso a entrada de madeira
ilegal no Brasil; o comércio de cereais oriundo do Peru e Equador e em
sentido inverso as bebidas e manufaturados oriundos do Pólo Industrial
de Manaus; o prosaico e volumoso comércio de calçados (tênis de marca)
entre Lethem e Bonfim, na fronteira da Guiana; o perigoso e tosco ingresso
de combustíveis da Venezuela e em sentido contrário o de pedras para
jóias.
Por essas considerações um objetivo da política externa em relação a
esse tema seria monitorar e prevenir a importação de dinâmicas sociais
com potenciais nocivos para a região, através de trabalho de inteligência,
atuação em conjunto com as autoridades respectivas dos outros países e
fortalecimento da presença do estado.
2.1.5 - Parceria em C&T e conexos
A tentativa de estabelecer relações mais consistentes para a cooperação
em C&T, ensino superior, pós-graduação e assuntos conexos já é antiga e,
possivelmente, a que mais tem rendido frutos em termos de cooperação
internacional. Para ficar apenas em dois exemplos, embora existam muitos
outros, destacam-se a seguir:
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
393
a) Associação de Universidades Amazônica (UNAMAZ, 2009) – Criada
em 18 de setembro de 1987, fruto de recomendações de cientistas,
professores e pesquisadores dos oito países do Tratado de Cooperação
Amazônica – TCA, busca ser um organismo catalisador de esforços para
promover a produção do conhecimento necessário ao desenvolvimento
sustentável da Região, potencializar a atuação das instituições amazônicas de
educação superior e de pesquisa e fomentar a melhoria da qualidade dos
recursos humanos da Região;
b) Iniciativa Amazônica (IA, 2009) – Trata-se de um consórcio de
instituições pan-amazônicas de pesquisa, criada em outubro de 2004, por
iniciativa da EMBRAPA, com o nome de Consórcio Iniciativa Amazônica
para a Conservação e Uso Sustentável dos Recursos Naturais (IA). Seus
objetivos são prevenir, reduzir, e recuperar áreas degradadas, contribuindo
para a melhoria das condições de vida na região, buscando elaborar e
implementar programas colaborativos que identifiquem e promovam sistemas
sustentáveis de uso da terra.
Em recente esforço para identificar potenciais interesses do Brasil em
relação ao tema receberam destaque os seguintes (ARAGON, 2007): a
pertinência adequada para a pesquisa e educação superior para o
desenvolvimento da Amazônia; a importância da cooperação Sul-Sul para
o fortalecimento da Ciência e da Tecnologia na Amazônia; as redes como
instrumentos de integração em Ciência e Tecnologia na Amazônia; as
condições da participação de instituições brasileiras em programas
internacionais de pesquisa; e o poder público como incentivador da
cooperação internacional.
Além do já desenvolvido, regularmente, por instituições tradicionais,
como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Museu Emilio
Goeldi (MEG), Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), há em
andamento movimentos de instituições federais de ensino superior visando
atribuir um caráter marcadamente internacional em suas atuações, como é o
caso da Universidade Federal do Para (UFPA); da recém criada Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOP) que, inclusive, argui para si o papel de
instituição de integração amazônica; e a Universidade do Estado do Amazonas
(UEA) que já recebe em seus cursos, como no campus de Tabatinga, alunos
dos países vizinhos. Ainda nessa direção tem havido movimentações políticas
insistentes. O Senador João Pedro Gonçalves (PT, AM), com apoio da
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
394
Presidência da República e suporte do Ministério de Educação e de Relações
Exteriores, conseguiu aprovar matéria legislativa no Senado com o propósito
de criar uma Universidade da Panamazônica.
Essas considerações indicam que a política externa brasileira não pode
ficar à parte dessa movimentação. Portanto, seu objetivo em relação ao tema
deveria ser consolidar e aprofundar o processo de integração das
instituições de C&T e de ensino superior na Panamazônica, através de
iniciativas que permitissem, no futuro próximo, ter-se mobilidade natural entre
pesquisadores, docentes e estudantes, bem como, interação desburocratizada
entre as instituições a agentes jurídicos envolvidos.
2.2- Em relação à América do Sul
A América do Sul comparece na agenda oficial das relações exteriores
do Brasil como prioritária (BARBOSA, 2008). Sendo a Amazônia uma região
especial para o mundo todo, não poderá deixar de sê-lo dentro do próprio
continente que a abriga. Assim, o propósito geral dessa política, tendo em
vista a Amazônia, deveria ser estabelecer foco cognitivo próprio às
demandas e circunstâncias regionais no arcabouço das políticas e
iniciativas nacionais em relação à América do Sul. Nas seções seguintes
são identificados três temas candidatos a se converterem em objetivos
específicos dessa política.
2.2.1- Acesso a mercados da costa leste do Pacífico e Ásia
A Amazônia Brasileira, através dos estados Pará e Amazonas e, mais
recentemente o estado de Rondônia, têm ampliado seu comércio com os
países panamazônicos, mas este se dá com poucos países e com uma pauta
de produtos bastante aquém do potencial. Em relação à América do Sul
esse potencial se amplia para uma escala que propiciaria aos estados
amazônicos do Brasil um mercado de grandes dimensões, próximo
territorialmente, com similaridade cultural e com facilidades aduaneiras em
construção. Assim, parece lógico que os esforços de comércio exterior desses
estados se voltem para os países da América do Sul, especialmente os grandes
centros urbanos da costa leste do Pacífico. Tal opção apresenta-se mais
factível do que as tentativas de negócios com Europa, Estados Unidos e
Oriente Médio, onde, além das diversas barreiras não tributárias, são mercados
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
395
bastante disputados e, presentemente, vivendo uma crise sem prazo para
terminar.
Com acesso aos mercados da costa leste do Pacífico, a chegada a Ásia
se torna o passo seguinte natural. E então, esse grande e rico mercado, passaria
a ter conexão célere com a Amazônia beneficiando-a em vários aspectos.
Exemplos de fluxos comerciais capazes de trazer efeito virtuoso para região
podem ser citados:
a) componentes eletrônicos fabricados na Ásia e importados em grandes
volumes pelo Pólo Industrial de Manaus;
b) manufaturados eletroeletrônicos, duas rodas, peças plásticas,
equipamentos médicos, computadores, celulares e outros destinados a
abastecer toda a costa leste do Pacífico, hoje atendida pelos Estados Unidos,
México ou Ásia;
c) carnes, peixes, polpa de frutos, aves e similares, óleos nativos, extratos
regionais, ervas medicinais e conexos, produtos fabricados com insumos da
biodiversidade regional, todos demandados em grandes quantidades pela
Ásia;
d) soja e seus derivados, sobretudo óleo, escoado do norte do Mato
Grosso, tanto para os países latinos do Pacífico quanto para os países asiáticos;
e) minérios em diversos estágios de processamento oriundos de diversos
estados brasileiros e países amazônicos, inclusive alguns estratégicos, como
nióbio-tantalita
10
;
f) turismo massivo e integrado, pelo qual os asiáticos entrariam no
continente através de um dos muitos atrativos existentes nos países da costa
leste (Machu Picchu no Perú, Galápagos no Equador), chegariam à selva
amazônica e suas belezas tropicais, se deslocariam para o estuário amazônico
e depois demandariam o nordeste brasileiro.
Porém, para que esse imenso potencial venha a ser explorado, há
necessidade de infra-estrutura logística, especialmente as que possibilitam a
conexão intermodal. Nesse sentido, como parte do grande programa
10
Hoje, essa liga quase bruta, sai do Amazonas (Municipio de Presidente Figueiredo), vai aos
portos do sul-sudeste, depois segue para Talim, na Estônia (onde é convertido em óxido mineral),
depois segue para Áustria (onde é transformado em wafers) e depois segue para a Ásia onde
integrará alguns tipos de semi-condutores que, ao seu turno, voltam importados para o Brasil
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
396
referencial expressado pela IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura
Regional Sul-Americana), já há em andamento várias iniciativas como: o Eixo
Multimodal entre Manta (no Equador) e Manaus (no Amazonas); o projeto
de conexão do porto fluvial no Rio Madeira (Porto Velho, Rondônia) com
Bolívia e depois os portos marítimos do Chile; a rodovia de conexão de
porto-aeroporto na costa pacífica do Peru (Paita-Piura) com Iquitos na região
de Loreto, já na bacia amazônica; e outros.
Essas considerações indicam que a política externa brasileira não pode
deixar de considerar esse tema como relevante em sua agenda. Portanto,
seu objetivo em relação ao tema deveria ser coordenar providências visando
possibilitar a conexão célere dos estados amazônicos brasileiros com
mercados da costa leste do Pacífico e Ásia, através de iniciativas para
consolidar rotas de conexão já em construção ou em estágio de projeto nos
diversos países.
2.2.2 - Integração da subregião ao Mercosul
Ainda que atravessando constantes dificuldades o Mercosul é uma
esperançosa realidade para os estados mais desenvolvidos do sul-sudeste
brasileiro. Os fluxos comerciais entre estes e os países do bloco tem aumentado
constantemente. Mas não tem ocorrido a mesma coisa com os estados do
norte do Brasil, embora as preferências de comércio do bloco tenham se
estendido, via acordos específicos, também para os países amazônicos.
Iniciativa no sentido de criar na Panamazônia, um bloco comercial
específico já chegou a ser aventada, em 2004, por proposta da
Superintendência da Zona Franca de Manaus (GROSSO, 2004). Na
oportunidade, os chanceleres dos países da Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica, aprovaram no planejamento estratégico dessa
agência, um item específico visando aprofundar a integração econômica da
região. A ideia do bloco comercial, que ficou conhecido, à época, como
Merconorte ou Mercado Comum Amazônico, vinha ao encontro desse
propósito integrativo. Entretanto, logo em seguida, o governo brasileiro
começou a atuar visando ampliar para o norte o alcance geográfico do
Mercosul, seja pela admissão direta de novos países no bloco, como a
Venezuela, seja legitimando fóruns para envolver estados do norte brasileiro
e outros países amazônicos, como o Fórum Governadores da Frente Norte
do Mercosul. Apesar desses esforços o Mercosul, na Amazônia Brasileira,
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
397
ainda é pouco conhecido e ainda menos utilizado como espaço econômico
para realização negócios. Suas instituições de governança ficam todas no sul
e o conhecimento de sua dinâmica é ignorado pelo setor produtivo, pelas
instituições acadêmicas, pela as agências de desenvolvimento (exceção da
Suframa que atua intensamente em seus fóruns), pelos governos estaduais e
municipais, ou seja, pela quase totalidade da sociedade regional.
Essas considerações indicam que esse é mais um tema que não pode
ficar ausente da política externa brasileira. Portanto, seu objetivo em relação
ao tema deveria ser tornar efetiva a integração dos estados amazônicos
nas dinâmicas comerciais e institucionais do Mercosul, através da extensão
de suas instâncias de governança e da disseminação de seu substrato cognitivo
para toda a região, bem como, por iniciativas capazes de ensejar negócios
massivos como feiras, escritórios de negócios e promoção comercial
permanente.
2.2.3- Conexão virtuosa com Caribe e Hemisfério Norte
A possibilidade de conexão segura, regular e barata, do centro-oeste e
sudeste brasileiros com o Caribe e Hemisfério Norte, via Amazônia, é uma
possibilidade concreta. Já há uma malha de rodovias cujos fluxos chegam até
Porto Velho (RO) sem qualquer dificuldade. De lá, pela Hiodrovia do Rio
Madeira ou Rodovia Manaus-Porto Velho (em recuperação), esses fluxos
chegam a Manaus (AM), e dessa cidade, pela BR-174 (Manaus-Boa Vista),
chega-se até os portos caribenhos da Venezuela e também pode se chegar
até Georgetown (Guiana). Em relação a esta, há avançadas providências
para sua efetivação, pois a estrada até a fronteira está pronta, a ponte entre
as duas fronteiras em fase de conclusão, faltando apenas o asfaltamento de
um trecho até Linden, de onde, já existe até Georgetown. Nesse mesmo
sentido tem surgido um conjunto de noticias que potencializam o tema discutido
nesta seção. Como exemplos citam-se, abaixo, apenas três:
a) Há em andamento a construção de um grande porto industrial em
Manaus, com capacidade para 250 mil containers anuais e está em curso a
ampliação do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, que hoje é terceiro
em volume de carga, para o dobro da capacidade atual;
b) O governo federal sancionou a Lei N
o
. 11.772, de 17/09/2008,
alterando o Plano Nacional de Aviação, que passa a abrigar um dos maiores
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
398
projetos de integração nacional, a Ferrovia Transcontinental (EF-354). Saindo
do litoral do sudeste, passará por Minas Gerais, pela capital do país, por
Goiás, Mato Grosso, Rondônia e chegará ao Acre, no município de Boqueirão
da Esperança. Daí, possivelmente, se integrará ao sistema ferroviário do Peru
(BRASIL, 2008);
c) Acaba de ser concluído um grande estudo de viabilidade para
construção de uma ferrovia integrando o norte brasileiro ao Caribe e a
Georgetown. Apresentada como tese de doutoramento (FREITAS,
2009) no Programa de Engenharia de Transporte da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o estudo conclui que, em 2025, os pólos de
Manaus (mais o sub-polo de Itacoatiara, com soja), acrescido do polo
agroindustrial de Roraima (com soja, arroz e milho) e mais o sub-polo
de Surucucus (com cassiterita), mais o polo do Trombetas- Pará (com
bauxita) e por fim o polo da Guiana, com arroz, açúcar e bauxita (para
a China e Rússia) representarão um total aproximado de 30 milhões de
toneladas entre insumos e produtos acabados nos dois sentido a serem
transportadas. Isso tudo justifica, economicamente, o investimento na
ferrovia.
Embora o tema pareça mais afeto à política nacional de transporte e
logística, trata-se, na verdade, de construir alternativas que agreguem mais
valor ao escoamento da produção do centro-oeste e sudeste brasileiros,
potencializando as vias logísticas da Amazônia e suas conexões com os
países do norte sul-americano. Portanto, um objetivo para a política
externa brasileira em relação ao tema deveria ser garantir unidade
cognitiva, potencializar apoios e coordenar as iniciativas visando
conectar a Amazônia Brasileira ao Caribe e Hemisfério Norte, através
do acompanhamento, apoio e promoção dessas iniciativas frente perante
os outros países.
2.3- Em relação ao mundo
A Amazônia é preocupação para o mundo todo. Seja pelo seu papel na
regulação biogeoquímica do planeta, seja pelo lugar que ocupa no imaginário
da humanidade como última fronteira de floresta tropical e memória idílica
do mundo natural primitivo, com toda sua riqueza e complexidade. De uma
forma ou de outra, sua defesa deixou de freqüentar apenas as exóticas agendas
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
399
de militantes alternativos. O avanço dos processos de desenvolvimento, quase
sempre predadores, chamou atenção de governos, agências multilaterais,
fóruns científicos respeitáveis, organizações não governamentais sérias,
entidades empresariais e outros. O mundo inteiro se sente com direito, ou
melhor, com dever de discutir o futuro da região. Nesse sentido, um propósito
geral em relação ao tema seria atuar na construção da agenda sobre a
Amazônia em fóruns de repercussão global, visando dar visibilidade ao
direito nacional de fruir, com responsabilidade, de suas riquezas potenciais
e de manter indiscutível a soberania sobre seu território. Desse propósito
três objetivos surgem para formulação da política externa brasileira em relação
ao tema.
2.3.1- Protagonismo sistemático na definição da agenda sobre a
região
Deixar que as discussões sobre a Amazônia surjam e ganhem dinâmica
própria nos fóruns com importância global tem imposto embaraços ao país
que, ou comparece como responsável inconseqüente pelo que ocorre ou
como incapaz de evitar a contínua destruição da região. Desconhecimento,
má fé, interesses geopolíticos, ambição argentária, militância ideológica e
outros, vão, pouco a pouco, legitimando, internacionalmente, uma agenda
completamente desfavorável ao Brasil e aos países amazônicos. Um
monitoramento prévio dos processos formadores dessa agenda minimizaria
o esforço para justificar-se diante da comunidade internacional, para desfazer
percepções equivocadas sobre as ocorrências envolvendo a região e para
reduzir prejuízos na cooperação internacional. Exemplos de candidatos a
esse monitoramento: fóruns do sistema da Organização das Nações Unidas,
suas comissões, convenções e programas; as instituições financeiras como
Banco Mundial e suas agências e o de Banco Interamericano Desenvolvimento;
as agencias reguladoras globais como Fundo Monetário Internacional; as
agências gestoras dos grandes blocos político-econômicos, como a União
Europeia; e outros.
Essas considerações indicam que esse deve ser um item específico da
política externa brasileira em relação ao tema, isto é, monitorar a agenda
sobre a Amazônia nos fóruns de repercussão global visando atuação
preventiva contra consensos formados em prejuízo dos interesses
brasileiros.
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
400
2.3.2- Tratamento de seus potenciais naturais como capital
estratégico do país
Na discussão sobre a Amazônia o que tem prevalecido é a sua exploração
predatória e, por consequência, o comprometimento de sua integridade. Assim,
na agenda brasileira perante a arena internacional, a região comparece, quase
sempre, como fonte de problemas o que produz ônus, mas não propicia
qualquer bônus para o país que detém a maior parte de sua extensão territorial.
No entanto, essa importância que ela tem para o mundo precisa ser
traduzida em retornos concretos para o Brasil, além do simples
reconhecimento de sua posse ou o respeito de sua soberania. Estudos não
faltam indicando as possibilidades de converter suas florestas, rios e
organismos e em potentes fontes para gerar riquezas. Apenas como exemplo
destacam-se aqui o interesse global nos serviços ambientais expressados pela
estocagem de carbono e regulação hídrica. Apesar dos avanços na tentativa
de encontrar instrumentos regulares para remuneração desses serviços, tais
iniciativas, com exceções pontuais
11
, ainda não se tornaram fonte real de
recursos em beneficio da região. Há, pois, necessidade que tanto o Brasil
quanto a comunidade internacional consigam transformar o patrimônio natural
da Amazônia em capital estratégico para beneficiar seus habitantes.
Essas considerações apontam no sentido de que, um dos objetivos da
política externado Brasil em relação à região seria identificar instrumentos
capazes de transformar as virtudes ecológicas da Amazônia em capital
estratégico do pais a ser remunerado com apoio da comunidade
internacional, para propiciar o compartilhamento de sua proteção ao mesmo
tempo que gera riquezas para seu desenvolvimento e melhoria da qualidade
de vida do povo que a habita.
2.3.3- Fortalecimento da percepção sobre a indiscutibilidade de
sua soberania
Discussão internacional visando relativizar a soberania brasileira sobre a
região não tem faltado na mídia internacional. Verazes ou não, é possível
identificar diversos temas sobre esse viés, em artigos que circulam na imprensa
11
Há o bem sucedido programa Bolsa Floresta, conduzido pela Fundação Amazônia Sustentável,
por iniciativa do Governo do Estado do Amazonas.
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
401
regular, em periódicos e livros de estudiosos, em documentos oficiais de
instituições públicas e outros. Apenas a título de exemplo são citados abaixo
cinco desses temas retirados (não todos) de artigo de professor titular
universitário e conselheiro da Escola Superior de Guerra do Brasil, fórum
influente na formulação das políticas de estado para o tema (COIMBRA,
2001):
a) demarcação de terras indígenas com largas extensões ao longo da
fronteira norte e estabelecimento de restrições para a livre circulação de não
índios, antecedendo ou logo seguindo a Declaração Universal dos Direitos
dos Índios, em novembro de 1993, pela Organização das Nações Unidas, o
que inclui a possibilidade de ser arguida soberania dos índios nesses
territórios
12
;
b) assistência militar com grande aparato de inteligência e recursos
tecnológicos para monitoramento territorial próximo das fronteiras brasileiras,
como o chamado Plano Colômbia;
c) inserção em programas de instituições de atuação global de
posicionamentos claros em favor da minimização da soberania brasileira na
região, como é o caso do Conselho Mundial das Igrejas, em seu documento
“Diretrizes para a Amazônia”;
d) atuação massiva das ONGs ambientalistas, com desenvoltura tanto
na região como exterior, denunciando e ampliando o coro sobre a incapacidade
do Brasil em tomar conta da Amazônia;
e) produção de artefatos culturais massificadores de opinião, como filmes,
jogos eletrônicos, documentários, revistas em quadrinhos e sites na WEB,
mostrando devastação na Amazônia e “heróis” do primeiro mundo agindo
em favor de sua proteção contra “vilões” brasileiros.
É obvio que há exageros nessas noticias, mas também há verdades. A
possibilidade de interesses externos buscarem minar a soberania brasileira na
região tem amparo em razões objetivas, sobretudo as de ordem ambiental.
Mas a verdade incômoda é que, na essência, essa acusação de descaso do
12
O Fórum Social 2009, ocorrido em Belém (PA), no final de janeiro de 2009, foi pródigo em
fóruns e debates sobre o tema. Além da militância em favor de temas globais, as 190 etnias
indígenas presentes discutiram, no âmbito da chamada “democracia radical” da tenda dos Direitos
Coletivos de Povos e Nações sem Estado, aspectos e possibilidades de autodeterminação
(EVOLVERDE, 2009)
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
402
governo brasileiro para com a Amazônia é uma realidade sentida, há muito
tempo, também pelos que vivem na região. As políticas públicas são
descontínuas; a atuação do estado é ausente ou desarticulada; os recursos
são parcos; os planos para desenvolvê-la são papéis com pouco encaixe na
realidade regional; e as instituições públicas, quase sempre, desacreditadas.
O único foco regular da atuação do estado “em favor” da Amazônia é proibir,
proibir e proibir.
Tais considerações mostram a necessidade de considerar o tema como
relevante na política externa brasileira. Um objetivo para tal seria desenvolver
iniciativas que ensejem o fortalecimento da percepção externa sobre a
soberania do Brasil no território amazônico dentro de suas fronteiras,
por meio de instrumentos capazes de demonstrar a competência do Brasil
em protegê-la e também desenvolvê-la em beneficio de seus habitantes.
3 - Considerações finais
As propostas analisadas têm um fator subjacente comum: a falta ou a
pouca efetividade das políticas nacionais em relação à Amazônia e, entre
estas, as de relações exteriores. Do que foi visto consegue-se constatar que,
sem minimizar interesses escusos externos, há mais indiferença nacional do
que cobiça internacional. Em boa hora, o Ministério das Relações Exteriores
traz o tema para o debate nacional, buscando, com isso, pelo menos em seu
âmbito, encontrar rumos que superem as carências constatadas. Trata-se de
um longo caminho, uma vez que não basta apenas o diagnóstico e a
identificação do que é necessário fazer. É preciso transformar as idéias em
iniciativas efetivas, convertê-las em dinâmicas executivas, dando-lhes
regularidade e permanência.
Nesse ponto é que reside a maior dificuldade. Como pode o MRE que,
historicamente, esteve sempre voltado para fora do Brasil, mudar seu padrão
de atuação para envolver-se com as demandas de subregião interna e
periférica? Como tornar possível sua atuação concreta em uma região
longínqua sem possuir tentáculos competentes na região
13
? Como dar
13
Há um Escritório de Representação do MRE no Norte (EREMA) mas, além de permanecer
a maior parte do tempo sem diplomata responsável, sua estrutura é mínima e dedicada,
principalmente, às demandas da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA)
onde está instalado.
OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA
403
conteúdo e significado regional para uma agenda construída distante dos
espaços territoriais onde os fatos acontecem?
Pelo menos a curto prazo um caminho para superar essas dificuldades
seria a parceria com agências federais setoriais e regionais ensejando divisão
de competências. Em tais parcerias a formulação e governança ficaria com
o MRE; a organização do conteúdo ficaria com o ministério setorial associado
ao tema; e a gestão operacional das iniciativas ficaria com uma agência
federal sediada na região, que passaria a responsabilizar-se pela memória,
gerência operacional e interlocução regional.
Obviamente não é tão simples assim. Mas é o início. O início de um
convívio mais próximo com a região que encanta pela pujança e pelas
possibilidades que traz de constituir-se em foco de uma nova utopia
civilizatória. Afinal, poucas regiões dispõem ainda, de condições ecológicas
e geográficas similares àquelas que deram origem às grandes civilizações do
Oriente Médio e, por conseguinte, representaram o marco inicial do processo
civilizatório conhecido da Terra. Todas elas se instalaram e floresceram ao
longo de quatro grandes rios: o Nilo, o Tigre, o Eufrates e o Indo. Descreve
deslumbrado o famoso historiador Geoffrey Blainey (BLAINEY, 2008: 49):
“Os grandes rios do Oriente Médio atravessavam planícies secas cujo
solo era enriquecido pelas enchentes anuais. Dezenas de milhões de
toneladas de sedimentos eram carregadas corrente abaixo e espalhados
em camadas finas sobre o solo empobrecido, como se fosse novo
fertilizante. Nas estações secas, os canais carregavam a água dos rios
para irrigar as terras aráveis queimadas pelo sol. Nas planícies alagadas,
as pessoas e as cidades podiam receber mais alimentos, dentro da mesma
área, do que em qualquer outro lugar do mundo naquela época. Em um
tempo em que o transporte por terra era primitivo, os rios largos eram
também uma estrada, ao longo da qual os barcos podiam transportar a
partes longínquas do reino e a baixo custo grãos e pedras para
construção”.
Se fosse uma descrição da grande bacia amazônica e de seu rio Amazonas
poucos retoques teriam. Eis ai uma estimulante justificativa para que o MRE
pense grande em relação à Amazônia. Quem sabe com esta vontade de olhá-
la mais perto ele não descobre o lócus e o leit motiv para formular uma nova
epopeia civilizatória nos trópicos?
JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO
404
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407
Amazônia: reflexões sobre sua problemática
Leonidas Pires Gonçalves
1. Sobre o tema
É relevante e oportuno, pois a Amazônia, na atualidade, é área de
“projeção planetária” que desperta interesse no mundo e, em especial, no
Brasil.
Pode ser definido como complexo, multifacetado e extenso, possibilitando
vários enfoques.
Sua abordagem, na circunstância, impõe muita concisão e objetividade,
de vez que o assunto sempre vale um Simpósio.
Pela vivência e responsabilidade profissionais que tive na área, tratar
deste tema é empolgante, configurando-se uma verdadeira pregação pelas
vezes que eu o tenho abordado, em textos e palestras, no Brasil e no exterior,
há quase três décadas.
Fundamentalmente, objetivo discutir os problemas primordiais da
Amazônia brasileira com uma visão das alternativas para enfrentá-los e resolvê-
los, uma vez que é responsabilidade nossa cuidar deste inestimável patrimônio
nacional. Sem deixar de reconhecer, por dever de justiça, que a Amazônia
vem sendo, crescentemente, considerada uma essencialidade geopolítica e
estratégica para o Brasil, pelos Governos Federais.
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
408
2. A Apresentação
a. Caracterização da área
Cabe, muito sumariamente, lembrar os aspectos singulares e imensos
da área:
A Amazônia legal tem 5.217.423 km² (61% do Brasil), engloba nove
Estados com uma população de 20 milhões de habitantes.
Possui impressionante floresta equatorial; um aranhol hidrográfico (25
a 30 mil km de rios); alagados (várzeas e igapós); 1/5 da água doce do
planeta; campos e cocais.
Além disso, biodiversidade incomparável e grande riqueza mineral no
subsolo.
Estes aspectos – escritos – impressionam, mas quando, na realidade,
são voados, navegados, caminhados e vividos impactam na medida em
que nos apequenam, tudo sob o “signo da imensidão”. Imensidão
responsável pelas dificuldades operacionais de toda natureza, limitadora
do desempenho nas atividades da área, apesar dos modernos apoios
tecnológicos disponíveis (aviação, navegação técnica, satélites, GPS) e,
geralmente, pouco compreendidas.
Com muita acuidade, disse Euclides da Cunha no retorno de quando lá
esteve: “A inteligência humana não suporta, de improviso, o peso daquela
realidade portentosa”.
b. A problemática da Amazônia
O conjunto de problemas que a compõem indica grupá-los em três
grandes vertentes:
1. As questões ambientais, antropológicas, fronteiriças e de drogas:
mitos, falácias e realidades.
2. O conflito de interesses: disputa geopolítica e confrontação estratégica
– ações e contrapartidas.
3. A integração e o desenvolvimento da área: medidas para que estes
objetivos sejam efetivamente alcançados.
Normalmente, pessoas dos mais diversos níveis culturais preocupam-
se com a primeira vertente: são preocupações válidas, mas não as únicas.
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
409
Cumpre preocupar-nos, também, com o Conflito de Interesses e a
Integração e o Desenvolvimento da área, pouco abordados pela mídia e
pouco conhecidos da opinião pública.
Estes aspectos merecem atenção, pois envolvem interesses nacionais
vitais.
Analisemos estas três vertentes:
1) As questões ambientais, antropológicas, fronteiriças e de
drogas: mitos, falácias e realidades
O estudo destas questões tem duas finalidades:
• Inteirarmo-nos dos fatos que têm realidade, são verdadeiros, e buscar
soluções eficientes e eficazes;
Assinalarmos os mitos e falácias, dando-lhes tratamento adequado,
eficiente e neutralizante.
Principalmente, termos subsídios para bem entender as outras duas
vertentes da problemática, pois os identificamos como fatos-argumentos
utilizados, falaciosamente, pelos poderosos do mundo, em apoio a seus
interesses.
a) Questões ambientais
• Pulmão do mundo: mito falacioso. Cientificamente sabe-se hoje que a
floresta antiga não é geradora de superavit de oxigênio. O fenômeno da
produção do oxigênio é realizado pelos mares.
• Efeito estufa / clima do planeta.
Nos dias atuais o mundo segue, obedientemente, o “Relatório do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas”, IPCC ( órgão da ONU ),
que atribui ao CO
2
antropogênico a responsabilidade da degradação
ambiental.
Organizações científicas e cientistas de renome (Instituto Espacial da
Dinamarca; climatologistas importantes – Fred Singer, publicado pelo “The
Hartland Institute”, Chicago, Illinois; R M Carter.“James Cook University”,
Townsville e o físico A. Zichichini, em palestra na Pontifícia Academia de
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
410
Ciências do Vaticano) o contestam, embora reconhecendo o fato do
aquecimento global, não atribuem ao homem a responsabilidade identificada
pelo Painel. Afirmam que estas são resultantes, sim, da posição do Sistema
Solar na Galáxia e da radiação cósmica recebida pela Terra: o denominado
“clima espacial”.
Nesse quadro, julgo que as ações governamentais, no que tange a medidas
ecológicas e também limitadoras do nosso desenvolvimento, sejam tomadas
com cautela, aguardando a definição final da ciência ( reconheço que as
medidas atuais do Governo têm, de alguma maneira, adotado esta posição).
• Água: realidade preocupante por duas razões – temos de usá-la com
propriedade, evitando poluição dos rios da bacia.
Depois, não esquecer que sua disponibilidade pode transformar-se em
motivo de cobiça internacional. Este é o problema.
• Hidroelétricas: cabe colocar nos pratos da balança de nossos
interesses duas considerações – atender à necessidade de energia para
desenvolvimento da área ou aos cuidados ecológicos. Buscar a
harmonização. É o que vem sendo realizado, presentemente, pela
construção de hidroelétricas.
• Desflorestamento: o cuidado com a floresta é realidade. As ações do
INPE, cujo desempenho se aperfeiçoa, tem conseguido alcançar, em parte,
o controle que se impõe, fundamentalmente para proteção da nossa
biodiversidade.
A recente versão do Plano Nacional da Mudança do Clima disciplina,
de maneira inteligente e pragmática, as atuações na área.
• Desertificação: falácia. Carece de evidência e comprovação científica.
• Biodiversidade: grande realidade. Deve ser preocupação prioritária,
para aproveitá-la corretamente e neutralizar a pirataria.
b) Fatos antropológicos
• Há duas grandes questões a considerar:
– No tocante a índios: Integrar ou segregar? Qual a área a ser atribuída
às tribos? Contínuas? Insulares?
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
411
Impõe-se uma decisão. Na atualidade está aberta uma controvérsia.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, em curso, aponta para áreas
contínuas, mas com elementos disciplinadores que asseguram o domínio do
Estado na área. Terá o mérito de estabelecer um parâmetro para futuras
disputas.
- No tocante a garimpeiros: esta massa humana merece nossa atenção,
pois é formada por brasileiros mal assistidos.
c) ONGs: realidade a ser considerada. Há um número demasiado
destas organizações. É indicado discipliná-las, vigiá-las e neutralizar as que
não atendem aos nossos interesses. Temos sido muito lenientes e
inconsequentes.
d) Distúrbios de fronteira: realidade, mas com importância
superdimensionada. Não temos problemas de fronteira, mas pequenos
problemas na fronteira. A presença militar brasileira na área, na atualidade,
tem poder dissuasório.
e) Droga: realidade a enfrentar com muita competência – vigilância e
repressão.
Em resumo: estes são os problemas da primeira vertente mencionada,
mas principalmente – repito – os fatos-argumentos utilizados ardilosamente
pelos grandes do mundo, em apoio a seus interesses.
2) O Conflito de Interesses: disputa geopolítica e confrontação
estratégica – ações e contrapartidas
a) Aspectos gerais
É indicado avaliar o que está acontecendo nos planos, internacional e
nacional, naquele espaço do nosso território.
O assunto ficaria bastante esclarecido com respostas aos seguintes
questionamentos:
- Há, em verdade, uma cobiça internacional sobre a Amazônia? Está
nossa soberania em perigo? Ou é fantasia?
- Se verdadeiro, o que estamos fazendo para neutralizar esta cobiça e
este perigo?
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
412
b) A cobiça internacional
Desde logo, é bom lembrar que o planeta Terra tem dimensões definidas,
consequentemente, finitude de riquezas.
Os grandes do mundo, possuidores de alta tecnologia (satélites espiões)
varrem o espaço terrestre. Daí, são sabedores, melhor do que nós, das riquezas
e da multivocacionalidade da Amazônia – um dos últimos vazios da terra,
fato que a torna objeto de cobiça de quem não a possui.
Algo inusitado? Não. Não esquecer as aspirações brasileiras na Antártica.
A diferença é que lá é terra de ninguém; a Amazônia, legalmente nossa.
Esta cobiça é, basilarmente, o fator determinante do atual conflito de
interesses na área.
c) A disputa geopolítica
Everardo Backheuser nos ensina: “Geopolítica é a Política feita em
decorrência das condições geográficas”. De outra parte, a Política, no nível
Nação, “é a arte de governar” (Platão), estabelecendo objetivos, concretos
ou abstratos.
É possível, então, identificar a disputa entre os dois grandes objetivos
geopolíticos presentes na bacia amazônica – o nosso, desejando que continue
a nos pertencer; o dos grandes do mundo, querendo ter seu uso através da
internacionalização.
Há manifestações de cobiça históricas, mas, na oportunidade, impõe-se
assinalar as dos séculos XX e XXI, consequentes da redescoberta da
Amazônia, pelo conhecimento de suas reais potencialidades. Exacerbou-se
a cobiça... Tornou-se clara a disputa geopolítica.
Qual nossa contrapartida?
A principal é a nossa Manobra Geopolítica Interna de Integração, uma
atuação realista que nos faz herdeiros à altura dos ancestrais que, com grande
visão, nos legaram este imenso Brasil.
Foi e é assim (Anexo 1):
• Na primeira metade do século XX, assinalam os geopolíticos, eram
identificados no País cinco núcleos geográficos desvinculados: o central, o
sul, o norte, o centro-oeste e a bacia amazônica.
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
413
• Nos anos 40/50: decisão de ligar o central ao sul e ao nordeste (estradas
BR 116, 101 e TPS – ferrovia).
• Nos anos 60/70: decisão de ligar o central ao centro-oeste (estradas
BR 040, 050 e 364) e a criação de Brasília.
• Nos anos 70 em diante: lançamo-nos para a Amazônia para integrá-la,
que é trazê-la para o contexto político e socioeconômico da Nação (estradas
BR 010, 364, 163, 319 e 174).
Tudo realizado pelas visões de Getúlio Vargas, Juscelino e dos Governos
Militares, principalmente.
A integração da Amazônia, impõe-se ressaltar, passou a ser um objetivo,
uma meta, de significado vital para o Brasil. E nada deve interromper nossa
decisiva caminhada para atingir esta essencialidade geopolítica.
d) A confrontação estratégica
Cabe dizer que os poderes antagônicos se deram conta de nossa manobra
geopolítica. A partir de então, aceleraram suas ações estratégicas.
Não houve, ainda, nenhuma ameaça real de invasão, mas estão bem nítidas
as manobras estratégicas indiretas, com a finalidade de conservar a
intocabilidade da região para um futuro propício a interesses que não são nossos.
No que consistem?
Basicamente, acusam-nos de não saber bem cuidar da Amazônia. Utilizam
os fatos-argumentos mencionados: pulmão do mundo, efeito estufa
(queimadas), alteração do clima, desertificação, questões indígenas,
hidroelétricas, ardilosamente.
Exigências foram feitas ao governo brasileiro para adotar medidas de
conservação (intocabilidade), em vez de utilização adequada do espaço
amazônico.
Primordialmente, com o propósito de enfraquecer nossos direitos de
posse e transformar a região em um grande contencioso internacional.
É um exagero? Temos indicações? Temos. Vêm de todos os quadrantes
e de países grandes.
Ver nos Anexos 2 a 8 os pronunciamentos da Entidade e de líderes:
Conselho Mundial de Igrejas Cristãs (1981); John Major (1992); Mikahil
Gorbachev (1992); François Miterrand (1989); Henri Kissinger ( 1994);
Pascal Lamy (2005) e Pascal Boniface (2006).
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
414
Além desses, inteirei-me, por motivos funcionais, à época, de um episódio
de grande significado que merece recordar: o Presidente Sarney , em 1989,
foi convidado pelo Presidente Miterrand para uma reunião, em Amsterdam,
com os integrantes do G-7. Finalidade: tratar de questões vinculadas a aspectos
ambientais da Amazônia, com vistas a uma possível ingerência internacional
na área, território nacional brasileiro.
A proposta foi, obviamente, repelida através da atuação do Itamaraty.
Foram apenas imprudências verbais ou de atitude?
Nossa leitura não é esta. São ameaças que podem transformar-se em
realidade.
Considerando-se as datas dos pronunciamentos, vê-se que a maioria
não é recente.
É fácil concluir o porquê: problemas maiores e mais prementes passaram
a preocupar os grandes do mundo e se agravaram no presente, dando-nos
uma trégua.
Quais nossas contrapartidas às ações geoestratégicas antagônicas?
Há três frentes:
· Aspectos legais
Nossa preocupação maior é a soberania brasileira na área.
Temos de estear nossa argumentação na noção de soberania no Direito
Internacional Público que consta do texto de toda a jurisprudência
internacional:
- A Carta da Justiça Internacional de Haia;
- A Carta da ONU;
- A Carta da OEA.
Por isso, apesar de pressões de líderes, organismos internacionais e
ONGs, devemos lutar para que seja respeitada a pureza do entendimento
conceitual de nosso objetivo nacional – Soberania.
Avultam as atuações do Presidente da República e, principalmente, do
Itamaraty nos Organismos Internacionais.
· Medidas de ordem administrativa
Temos bons argumentos à disposição para neutralizar as acusações
falaciosas através de medidas nacionalmente adotadas.
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
415
No tocante à ecologia podemos ser mais enfáticos nos seguintes aspectos:
- Mesmo considerando como reais as teses do IPCC sobre o clima,
nossa participação na poluição atmosférica (CO2 e outros) é pequena
em comparação com a dos países desenvolvidos. No entanto, só se dá
ênfase às queimadas da Amazônia. E as chaminés poluidoras do mundo?
- Poucas nações registram em suas Constituições atenção especial ao
meio ambiente como o Brasil. A floresta amazônica é considerada Patrimônio
Nacional.
- Criamos um Ministério do Meio Ambiente.
- Atuação do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, cuja
capacidade de monitoramento é hoje altamente técnica, eficiente e eficaz,
sem par no mundo.
– Temos leis punindo os crimes contra o meio ambiente.
– Vários órgãos atuando na área.
- Nossos índios têm recebido imensas áreas até desmedidas, como no
caso dos Ianomâmis, sem precedentes em outras partes do planeta. Atualmente,
açulados pela Declaração da ONU, aumentam suas reivindicações.
Em suma, não obstante as dificuldades e as falhas operacionais, agravadas
pelo “signo da imensidão”, temos buscado fazer o “dever de casa”.
Por que, então, esta acusação tão orquestrada contra a Amazônia?
Por motivos óbvios: atuação dissimulada, indisfarçável, ameaçadora da
cobiça internacional.
· Área militar
A Política de Defesa Nacional (Decreto 5.484, de 30 de junho de
2005) estabelece nas Orientações Estratégicas:
6.12 – Em virtude da importância e da riqueza que abrigam a Amazônia
Brasileira e o Atlântico Sul são áreas prioritárias para a Defesa Nacional
A Estratégia Nacional de Defesa (Decreto 6.703, de 18 de dezembro
de 2008), nas Diretrizes da Estratégia Nacional , prescreve:
“10. Priorizar a região amazônica
O Brasil será vigilante na reafirmação incondicional de sua soberania
sobre a Amazônia brasileira.
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
416
Repudiará pela prática de atos de desenvolvimento e defesa qualquer
tentativa de tutela sobre as suas decisões a respeito de preservação,
desenvolvimento e de defesa da Amazônia.
As Forças Armadas vêm dando, dentro das limitações dos recursos
recebidos, prioridade à Amazônia.
A Marinha está estruturada no 4º Distrito Naval, em Belém; e no
Comando Naval da Amazônia Ocidental, em Manaus.
A Força Aérea tem Comandos Regionais em Manaus (1º COMAR)
e Belém (7º COMAR) e Bases Aéreas em Belém, Manaus, Porto Velho
e São Gabriel da Cachoeira.
A COMARA, organização com a responsabilidade de construção
de pistas e aeroportos.
O Projeto SIVAM/SIPAM, integrado à Força Aérea, já exerce
responsabilidade de altíssima importância para o controle da área
amazônica.
O Exército é representado pelo Comando Militar da Amazônia
(CMA).
A sede deste comando tem como chefe um General-de-Exército, em
Manaus.
Esta organização militar que atende às direções estratégicas consta
de:
• Quatro Brigadas de Infantaria de Selva (organizações operacionais)
– 1ª Brigada, em Boa Vista; 2ª Brigada, em São Gabriel da Cachoeira;
16ª Brigada, em Tefé; 17ª Brigada em Porto Velho, todas com elementos
destacados na fronteira; e a 23ª Brigada, em Marabá.
• Duas Regiões Militares (organizações logísticas) – 12ª em Manaus
e 8ª em Belém.
• Cinco Batalhões de Engenharia de Construção (estradas, aeroportos
e quartéis ) – 5º, 6º, 8º e 9º BEC.
• 4º Esquadrão de Aviação do Exército, em Manaus (cerca de 20 a
25 helicópteros), que assegura razoável mobilidade estratégica e tática.
Este conjunto de força do Exército soma, basicamente, 2.000 oficiais
e 25.000 praças (subtenentes, sargentos, cabos e soldados).
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
417
3) A Integração e desenvolvimento da área: medidas para que
estes objetivos sejam alcançados
É óbvio que jamais caberia a alguém, individualmente, detalhar as medidas
a serem adotadas.
Por quê? Porque, com certeza, seriam frutos de estudos com fundamentos
políticos, administrativos, científicos, etc., a serem realizados por equipes de
alto nível, em trabalho com excelência gerencial.
Impõem-se, na oportunidade, apenas sugestões amplas, mas com validade,
pois são concretas e indicam objetivos e caminhos a serem seguidos.
Assim, vejamos:
Antes de tudo, acelerar a ocupação da Amazônia e fazê-lo de maneira
racional, distante de dois extremos: intocabilidade e predação, adotando um
desenvolvimento sustentável que tecnologia e ciência possibilitam. “Inundar de
civilização a Amazônia”.
• Realizar, em profundidade, a regulação fundiária na área, responsável
por problemas de grilagem, nacional e internacional. Esta questão é fulcral e
premente; ademais, facilita os assentamentos. Neste aspecto, cabe reconhecer
que é objeto das preocupações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e
do Meio Ambiente.
• Definir, de maneira clara e precisa, o que deve ser feito para bem explorar
a multivocacionalidade da Amazônia em todas as frentes, inclusive a da
biodiversidade.
• Rever e reavaliar as organizações com atuação na região, a fim de
aperfeiçoá-las (ou mesmo extinguí-las), consoante seu desempenho.
Aumentar os efetivos das Forças Armadas na área, pois elas são a ossatura
dos vazios para a ocupação ordenada. O passado tem demonstrado esta
afirmativa.
• Rever, atualizar e condensar a legislação em vigor, vultosíssima,
purificando-a.
Avaliar e vigiar as ações de ONGs na área, para identificar aquelas cujas
atuações não estiverem harmonizadas com o interesse nacional, e afastá-las.
• Controlar, efetivamente, a pirataria em nossa biodiversidade.
• Discutir o problema com a cidadania, a fim de que todos os brasileiros
saibam e preguem que a Amazônia não é museu ou laboratório da humanidade.
É uma terra promissora para seu povo. Mantê-la intocada, qual santuário, é
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
418
um absurdo (ou engodo) que somente cabe a descompromissados com o
futuro do Brasil, sejam eles estrangeiros ou maus brasileiros.
• Concitar os formadores de opinião, especialmente a mídia, para posição
menos alarmista sobre fatos ecológicos que desservem aos nossos interesses
de desenvolvimento sustentável.
• Finalmente, aceitar uma velha ideia que, de quando em quando, vem à
baila: criar o Ministério da Amazônia.
Como vimos, a problemática amazônica envolve enormes e múltiplos
problemas, de vulto e natureza variável: é um “caldeirão candente”.
Mais um Ministério? Não! Talvez trocá-lo por alguns existentes e de
menor prioridade.
Penso que somente um grande órgão, com poder e independência, poderia
enfrentar e harmonizar, com sucesso, as tarefas gigantescas assinaladas.
3. Conclusão
a. Uma firme decisão governamental, inteligente, explicitada e trabalhada,
interna e externamente, fato que já ocorre e cabe aprofundar, considero passo
fundamental para o desenvolvimento e a defesa da Amazônia.
b. Aproveitar a situação internacional atual, em que os grandes estão
polarizados por problemas mais prementes – e nos estão dando uma trégua
– para tomar todas as medidas necessárias (políticas, administrativas e
militares) que acelerem a integração e, mesmo, a projeção da Amazônia,
baseadas na vigilância e no desenvolvimento sustentável.
***
Como palavras finais, ofereço sobre o tema Amazônia e sua problemática,
que nos envolve racional e emocionalmente, minha manifestação, ainda válida,
externada quando Comandante Militar da área, em 1982:
“A Amazônia integrada e desenvolvida – tarefa que estamos realizando
com determinação, apesar dos óbices – será o derradeiro pilar geosócio-
econômico da nacionalidade, capaz de possibilitar ao nosso país a almejada
posição de grandeza.”
***
AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA
419
34
56
Anexos
1
2
LEONIDAS PIRES GONÇALVES
420
87
421
Lista de Participantes da III Conferência
Nacional de Política Externa e Política
Internacional
1. Acsa Iracema Pessoa Silva
2. Ada Braga
3. Adalberto Luis Vidal
4. Adeliz de Siqueira Ferreira
5. Adherbal Meira Mattos
6. Adilson Rodrigues Pires
7. Admar Branco Brandão
8. Adolfo Westphalen
9. Adriane Pereira Gouvêa
10. Adriano Benayon do Amaral
11. Adriano Pires de Almeida
12. Affonso Celso Ouro Preto
13. Affonso Arinos de Mello Franco
14. Alcimor Aguiar
15. Alessandra Baldner Pontes
16. Alessandra Fragoso S Caroli Sena
17. Alessandra Gouveia Barbosa
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
422
18. Alex Fiuza de Mello
19. Alex Gonçalves de Santiago Ribeiro
20. Alex Jobim Farias
21. Alex Medeiros Kornaçewski
22. Alexandra de Mello e Silva
23. Alexandre Addor
24. Alexandre César Cunha Leite
25. Alexandre de Oliveira Kappaun
26. Alexandre Gonçalves
27. Alfredo Lustosa Cabral
28. Aline Martins Martello
29. Aline Rocha Marinho
30. Allyne Feller
31. Aloysio Rodrigues Junior
32. Aluizio de Magalhães Pacheco
33. Alysson Amorim Mendes da Silveira
34. Amanda de Castro Pires
35. Amaury Porto de Oliveira
36. Américo Alves de Lyra Júnior
37. Amine Maria Moiséis Fernandes
38. Ana Carolina Afonso Valladares
39. Ana Catarina Moraes Ramos Nobre-de-Mello
40. Ana Cristina Silva Campos
41. Ana Flávia Vaz de Oliveira
42. Ana Helena Avalcante
43. Ana Lucia Segamarchi
44. Ana Marta Soares Vasconcellos
45. Ana Zuleide Barroso da Silva
46. Analice Lima da Trindade Pinto
47. Anderson de Oliveira Pereira
48. André Luiz Coelho Farias de Souza
LISTA DE PARTICIPANTES
423
49. Andréa Menge Silva da Rocha e Reis
50. Andréia de Castro Silva
51. Angela Cunha da Motta Telles
52. Ângelo Segrillo
53. Aninho Mucundramo Irachande
54. Anna Beatriz Sabino de Oliveira
55. Anna Carolina Machado Maciel da Silva
56. Anne Carolina Faria de Lima
57. Anne Kathryn Leone Piani
58. Antonio Augusto dos Santos Soares
59. Antonio Barros de Castro
60. Antonio Carlos Peixoto
61. Antonio Correa de Lacerda
62. Antonio Patriota
63. Antonio Walber M. Muniz
64. Arnaldo Carrilho
65. Barbara Bravo
66. Bárbara Castelo Branco Bacellar da Silva
67. Bárbara Eduardo Silva Varela Olivares
68. Bárbara Isabel Martins Furiati
69. Beatriz Nascimento Lins de Oliveira
70. Bernardo Wallauer
71. Bertha Becker
72. Bianca Sotelino Dinatale
73. Bresser Pereira
74. Bruna Drubi
75. Bruno Barreto Lino
76. Bruno Felice Araujo Perrella
77. Bruno Lobo Motta
78. Bruno Oliveira
79. Bruno Oliveira de Souza
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
424
80. Camila Carlos da Silva
81. Camila de Souza Dornellas
82. Candido Mendes
83. Carliana Sousa
84. Carlos Aguiar de Medeiros
85. Carlos Alexandre Viana Silva
86. Carlos Biavaschi Degrazia
87. Carlos Eduardo Schmidt Bedran
88. Carlos Gabriel Ranquini Raffaeli
89. Carlos Henrique Cardim
90. Carlos Henrique Pissardo
91. Carlos Leonardo Loureiro Cardoso
92. Carlos Lessa
93. Carlos Mello
94. Carmen Sprinz
95. Carolina Akemi Kano Silva
96. Carolina Baldner
97. Carolina Barbosa de Souza
98. Carolina Nunes Goes
99. Caroline Lodi
100. Caroline Silva de Mendonça
101. Cassiano Cardoso Cotrim
102. Casuco Ito Abe
103. Ceadelia Kiperman Aizic
104. Cecília Rios
105. Christian Lohbauer
106. Christiane Rangel Sauerbronn dos Santos
107. Cintia Pinheiro Ribeiro de Souza
108. Cíntia Portugal Viana
109. Claudia Botelho de Almeida
110. Cláudia Marconi
LISTA DE PARTICIPANTES
425
111. Claudia Valentina de Arruda Campos
112. Clayton Mendonça Cunha Filho
113. Cleber Batalha Franklin
114. Clecy Ribeiro
115. Clelia Piragibe
116. Constantino Cronemberger Mendes
117. Consul Geral do Paraguai Sr. Ricardo Caballero Aquino
118. Cônsul Geral Horacio del Valle
119. Corival Alves do Carmo
120. Cristiano Aloe Botafogo
121. Cristina Acevedo
122. Cristina Francis de Oliveira Cople
123. Cristina Pecequillo
124. Cyntia Malaguti Moya
125. Daniel Aarão Reis
126. Daniel de Campos Antiquera
127. Daniel Kaufman Spector
128. Daniel Moyses Barreto
129. Daniela dos Santos Cruz
130. Daniele Castanho Carvalho
131. Daniele Dionisio da Silva
132. Danielle de Oliveira Vieira
133. Danielle Denny
134. Danilo Marcondes
135. Darc Costa
136. Dario Maciel Bredis de Oliveira
137. Débora Motta de Oliveira
138. Denise Taveira Cruz
139. Denison Augusto Batista
140. Desembargador Fernando Luiz Ximenes Rocha
141. Diego de Oliveira Souza
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
426
142. Diego de Souza Araujo Campos
143. Diego Rafael Nunes dos Santos
144. Domingos Savio da Cunha Garcia
145. Doutor Alcimor Aguiar Rocha Neto
146. Doutor Antonio Carlos Gondim
147. Doutor Flávio Rocha de Oliveira
148. Doutor José Monserrat Filho
149. Doutor Laécio Noronha Xavier
150. Doutor Luiz Alfredo Salomão
151. Doutor Mario Teixeira de Sá Junior
152. Doutor Rodrigo Oliveira de Lima
153. Doutor Sérgio Gil Marques dos Santos
154. Doutor Victor Hugo Klagsbrunn
155. Doutor Wainer da Silveira e Silva
156. Doutora Tânia Maria Pechir Gomes Manzur
157. Doutora Monica Herz
158. Doutora Regina Coeli da Silveira e Silva
159. Eden Clabuchar Martingo
160. Edjobson Almeida Pedrosa
161. Eduardo Cesar Ferreira da Silva
162. Eduardo Lisker
163. Eduardo Simbalista
164. Eduardo Stefano Martello
165. Elaine Cristina Pereira Gomes
166. Elia de Mello Esteves Lima
167. Elian Preira de Araújo
168. Élio Cantalício Serpa
169. Elisa Maria Campos
170. Elizabeth Nunes do Nascimento
171. Elizabeth Santos de Carvalho
172. Else Borinski
LISTA DE PARTICIPANTES
427
173. Emanoelle M. G. de Farias
174. Embaixador Csaba Pólyi
175. Emília Carmem de Souza Nazaré
176. Enilson Barbosa dos Santos
177. Enio Cordeiro
178. Ennio Candotti
179. Ércole Tramontano
180. Etiene Magalhães de Oliveira
181. Etiene Magalhães de Oliveira
182. Eugenio Carlos Barbosa
183. Everton Vieira Vargas
184. Fabiana Rita Dessotti Pinto
185. Fábio Barcellos de Melo
186. Fabio Ramos Ariston
187. Fabíola de Paula Schwob
188. Felipe Fanuel Xavier Rodrigues
189. Felipe Franca da Costa Meireles
190. Fernanda de Souza Antunes
191. Fernando Guimarães Reis
192. Fernando Simas Magalhães
193. Fidel Pérez Flores
194. Flavia Hasselmann
195. Flávia Machado Cruz
196. Flavia Miguel de Souza
197. Flávia Skrobot Barbosa Grosso
198. Flavio de Oliveira Nogueira
199. Francisco Costa
200. Francisco Otávio de Miranda Bezerra
201. Francisco Tomasco de Albuquerque
202. Franklin Serrano
203. Gabriel Almeida
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
428
204. Gabriel Merheb Petrus
205. Gabriel Nobrega Barrucho do Carmo
206. Gabriela Pacheco
207. Gabriela Roméro
208. George Alexsandro Diniz de Dantas Moura
209. George Koppe Eiriz
210. George Thieme Verllague
211. Gilberto Dupas
212. Gilsimar de Brito Fernandes
213. Gisele Rodrigues Gomes
214. Gisele Vaz de Oliveira Rego
215. Glauco Arbix
216. Glauco Cesar de Sousa Salmazio
217. Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
218. Grasiela Baruco
219. Grasiela Cristina da Cunha Baruco
220. Guilherme Pedroso Nascimento Nafalski
221. Guilherme Violand Pierantoni
222. Gustavo Ribeiro de Souza Leão
223. Hannah Talita Azevedo Velho da Silva
224. Heitor Gurgulino de Souza
225. Helder Pereira da Silva
226. Helenir Maria Góes de Medeiros
227. Hélio Jaguaribe
228. Henrique Alves Cruzeiro
229. Henrique Oliveira Vianna
230. Hildembregue Ordozgoith da Frota
231. Hugo Luna Freire Cintra de Oliveira
232. Igor Gielow
233. Ima Célia Guimarães Vieira
234. Isabel Aché
LISTA DE PARTICIPANTES
429
235. Isabela Garcia
236. Isabela Saud Bueno
237. Isabella Fernandes da Costa
238. Isaias Montanari Júnior
239. Ismael Alves Pereira Filho
240. Ivan Tiago Machado Oliveira
241. Izabele Lucena Lima Nascimento
242. Jacimar Cavalcante da Siva
243. Jalton Pinho
244. Janet Ruth Colombo
245. Jaurino Codar Filho
246. Jefferson Virotti Laureano
247. Jeronimo Moscardo
248. Jessica Ausier da Costa
249. Joan Frederick Baudet Ferreira França
250. João Bruno Nogueira Campos
251. João Carlos Nogueira
252. João Carlos Nogueira
253. João Gualberto Marques Porto Júnior
254. João Henrique Catraio Monteiro Aguiar
255. João Paulo Marques Schittini
256. João Paulo Silveira
257. João Ricardo Rodrigues Viegas
258. Jonatas Luis Pabis
259. Jonathan de Carvalho
260. Jorge Calvario dos Santos
261. Jorge José Barros de Souza
262. Jorge Luiz Raposo Braga
263. Jorge Marcos Barros
264. Jorio Dauster
265. José Alberto Cunha Couto
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
430
266. José Flávio Sombra Saraiva
267. Jo Luiz Fiori
268. José Malhães da Silva
269. José Seixas Lourenço
270. Joyce Cotrim Miranda
271. Joyce Mayara da Silva Fonseca Lucas
272. Juçara Lobato da Silva
273. Julia Maciel de Carvalho
274. Juliana Benicio
275. Juliana de Souza Rodrigues
276. Juliana Ferreira Meireles de Mello
277. Juliana Forte
278. Juliana Gaiolli Nicolodi
279. Juliana Maciel Barreto
280. Juliana Ribeiro do Nascimento Patricio
281. Kamila S. R. Araujo
282. Ketty Thathiany Cadete Dias
283. Laécio Noronha Xavier
284. Lara Azevedo Malheiros
285. Laura Simonsen Leal
286. Lectícia Cristina Barbejat Castro Cruz
287. Leonardo Jefferson Fernandes
288. Leonardo Puglia
289. Leonardo Rabêlo
290. Leonardo Rosa Maricato Santos
291. Leorne Menescal Belém de Holanda
292. Lia Raquel Vieira do Rêgo
293. Liana Perola Schipper
294. Líli Ane Fernandes Lourenço Cabral
295. Lílian Helena Moreira Santos
296. Linoberg Barbosa de Almeida
LISTA DE PARTICIPANTES
431
297. Lorena Lopes
298. Luana Viana Gomes
299. Lucas Gustavo Solli de Faria
300. Lucas Oliveira Botelho de Carvalho
301. Lucia Darós
302. Luciana Azambuja
303. Luciana Martins
304. Luciana Melo Hervoso
305. Luciano Dalcol Rodrigues Viana
306. Luis Alberto Moniz Bandeira
307. Luis Manuel Fernandes
308. Luiz Alberto de S. A. Machado
309. Luiz Alfredo Salomão
310. Luiz Carlos Tavares de Carvalho
311. Luiz Corrêa Meyer Bettencourt
312. Luiz Fernando Viotti
313. Luiz Gustavo Leite
314. Luiz Pingueli Rosa
315. Luzinete Maria de Paula
316. M.Sc. René Berardi
317. Magno Klein Silva
318. Maickon Alex Alves Soares
319. Manoela Louise Assayag de Magalhães Souza
320. Marcele Lazoski Schiavo
321. Marcelo Dornelles Hosannah
322. Marcelo Raimundo da Silva
323. Marcelo Viana Estevão de Moraes
324. Márcia Cristina do Nascimento
325. Márcia Erthal Ramos
326. Márcia Pinto
327. Marcio André Silveira Guimarães
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
432
328. Marcio Cesar Franco Santos
329. Marco André Cabral da Ponte
330. Marco Aurélio de Andrade Lima
331. Marco Aurélio Garcia
332. Marco Túlio Delgobbo Freitas
333. Marcos Fernandes Passos
334. Marcus Ferrer
335. Margareth Rodrigues
336. Maria Aurecy de Menezes
337. Maria Cecília Alves dos Santos
338. Maria do Ceu Carvalho
339. Maria Edileuza F. Reis
340. Maria Helena Gappo
341. Mariá Marcele Almeida Aranha
342. Maria Nazaré Imbiriba
343. Maria Paula G. Lopes
344. Maria Paula Nascimento Araujo
345. Maria Ruth Martinelli Villela de Andrade
346. Maria Simone de Oliveira Rosa
347. Mariana Franco Moura
348. Mariana Kalil
349. Marilena Beraldi
350. Marilene Correa da Silva Freitas
351. Marilene Ferreira
352. Marília de Aguiar Monteiro
353. Marina Band
354. Marina Caetano Pereira
355. Marina Drummond
356. Marina Ghirotto Santos
357. Marina Magalhães Barreto Leite da Silva
358. Mário Augusto dos Santos
LISTA DE PARTICIPANTES
433
359. Mário Ribeiro Pereira
360. Marival Flávio Q. de Souza
361. Mary Stella Carvalho Fernandes
362. Mathilde Molla
363. Mauricio de Almeida Rego Ferreira
364. Mauricio de Faria
365. Mauricio Dias David
366. Mauro Marcos Farias da Conceição
367. Mauro Santayana
368. Mauro Schweizer Leite
369. Maya Hagege
370. Mayla Ilis Vigário
371. Michael Cavalcanti Jangada
372. Miguel Angel Pérez Peña
373. Ministro Carlos Minc
374. Mirian de Souza Dantas
375. Mirtes Palmeira
376. Monica de Sousa Braga
377. Mônica Leite Lessa
378. Monica Pinto da Fonseca
379. Monike Gisele van Tilburg
380. Moshe Penha Carneiro
381. MS. Rafael Mandagaran Gallo
382. Msc.Mário Rodrigues de Vasconcelos Neto
383. Msc.Viviane Mozine Rodrigues
384. Nadia Lemme C. de Carvalho
385. Nair Maria Gaston Nogueira
386. Narasha Tatiana da Costa Lopes de Souza
387. Natália Bittencourt Vieira
388. Natália Pickler Coelho
389. Natália Trindade
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
434
390. Nathália Fernandes Reiser
391. Nathalia Khayat
392. Nathalia Ramoa Varaschin
393. Newman di Carlo Caldeira
394. Nilo Rafael Baptista de Mello
395. Nina Fernández y Fernández
396. Nina Paiva Almeida
397. Oreste Pedro Maia-Andrade
398. Orlando Ribeiro da Silva Netto
399. Osana da Mota Silva
400. Oséias Teixeira da Silva
401. Osvaldo Peçanha Caninas
402. Oswaldo Angarano
403. Pamela Greenwell
404. Paola Gonçalves Massena
405. Patricia Freire
406. Patricia Latini Barros.
407. Patrícia Regina Barbosa Teixeira de Andrade e Silva
408. Patrícia Tavares de Freitas
409. Paula Cristina de Carvalho Queiroz
410. Paula Cristina Pereira Gomes
411. Paula Domitilla da Silva Bezerra
412. Paula Drumond
413. Paula Moreira
414. Paulo Buss
415. Paulo Cesar Azevedo Ribeiro
416. Paulo Chacon
417. Paulo Domingos Altomare
418. Paulo Everardo de Souza e Silva
419. Paulo Frederico Telles Ferreira Guilbaud
420. Paulo Henrique Alves
LISTA DE PARTICIPANTES
435
421. Paulo Henrique Schau Guerra
422. Paulo Norberg
423. Paulo Sergio Caldeira Franco
424. Paulo Visentini
425. Paulo Werneck
426. Pedro de Lima Serrano
427. Pedro Luiz de Azevedo Filho
428. Philip Albert Hime
429. Priscila Campello de Siqueira e Pinto
430. Queli Cristina Jonas Garcia
431. Rafael da Fonseca Reis Pereira
432. Rafael da Silva Leite
433. Rafael de Almeida Daltro Bosisio
434. Rafael Farias
435. Rafael Heynemann Seabra
436. Rafael Parada Toscano
437. Rafael Reis
438. Rafael Toledo
439. Rafaella Lima Paixão Fontes
440. Ramon Martins Andrade
441. Ramon Silveira Menechini
442. Ramoom F. Martínez
443. Regina Gadelha
444. Regina Gloria Carvalho
445. Regina Kfuri
446. Regina Maria Cordeiro Dunlop
447. Renan Vidal Esteves
448. Renata Bechara de Araujo
449. Renata Farias de Souza
450. Renata Mazeika
451. Renata Reif e André Siciliano
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
436
452. Renato Caldeira de Oliveira
453. Renato Costa Franco
454. Renato Pinheiro de Abreu
455. Renato Rocha
456. Ricardo Ades
457. Roberta Soledade Azevedo
458. Roberto Carlos Quintela de Alcantara
459. Roberto Eugênio Vidal Velloso Junior
460. Roberto Jaguaribe
461. Roberto Mangabeira Unger
462. Rodrigo Cintra
463. Rodrigo Lopes Sardenberg
464. Rodrigo Lourenço da Costa Maia
465. Rodrigo Torres de Almeida
466. Roger Cardoso Pires da Rosa
467. Ronaldo Carmona
468. Ronaldo Sardenberg
469. Rosangela Ortiz Fugihara Karnal
470. Rosiane Rigas
471. Rossana Nava Morales Ortiz
472. Rubens Batista Santos
473. Rui Marques
474. Samara Tanaka
475. Samo Sérgio G. Tozatti
476. Samuel Pinheiro Guimarães
477. Sandra Caseira Cerqueira
478. Sandra Maria Cordeiro Mattos
479. Sandra Sena
480. Sara Garay
481. Sebastião C. Velasco e Cruz
482. Sebastião do Rego Barros
LISTA DE PARTICIPANTES
437
483. Sérgio Luiz Pinheiro Sant’Anna
484. Shirlei Sacchi de Almeida
485. Sidney Ferreira Leite
486. Silverio Zebral
487. Silvina Alkerman
488. Solange Pastana
489. Solange Pastana
490. Stenio Augusto Lopes Andrade
491. Styven Molenda
492. Suellen Borges de Lannes
493. Suzelley Kalil Mathias
494. Tábita Duarte
495. Talita Anunciação da Silva
496. Tamires Cosendey Bessa
497. Tarcila Lucena
498. Taruno Stiento
499. Tatiana Deane de Abreu Sá
500. Tatiana Molina
501. Tenente Coronel Carlos Alberto de Moraes Cavalcanti
502. Tereza Spyer
503. Thaís Rangel Vieira
504. Thalita Novo
505. Thays de Chaffin e Sacramento
506. Thaysa Menezes
507. Thelma Araujo Coutinho
508. Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
509. Thiago Fagundes Lopes
510. Thiago Reis Portella Veiga
511. Thiago Souza da Costa
512. Tiago Luis Cesquim
513. Tiago Munk
III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL
438
514. Valterian Braga Mendonça
515. Vanessa C. Santos
516. Vanessa Carneiro da Paz
517. Vanessa Oliveira Batista
518. Vera Crivella
519. Victor Magalhães Feleppa
520. Vilas Boas
521. Vilson Aparecido Disposti
522. Vilson Aparecido Viotto
523. Viviane de Carvalho Queiroz
524. Wagner Artur de Oliveira Cabral
525. Wagner Menezes
526. Wainer da Silveira e Silva
527. Walber Machado de Oliveira
528. Walber Muniz
529. Wallace Silva Araujo
530. Wanderley Guilherme dos Santos
531. Wanderley Quêdo
532. Wanildo José Nobre Franco
533. Wendell dos Santos
534. Wilson Danilo de Carvalho Eccard
535. Wilson Galhego Garcia
536. Zulema Zbrun de Puma
Formato 15,5 x 22,5 cm
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