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Leonardo de Oliveira Souza
HISTÓRIA E POLÍTICA EM PESSACH: A
TRAVESSIA DE CARLOS HEITOR CONY
Agosto / 2009
Uberlândia / MG
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2
Leonardo de Oliveira Souza
HISTÓRIA E POLÍTICA EM PESSACH: A
TRAVESSIA DE CARLOS HEITOR CONY
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal
de Uberlândia, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do
Prof. Dr. Adalberto Paranhos
Agosto / 2009
Uberlândia / MG
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3
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Adalberto Paranhos (orientador)
Profa. Dra. Kátia Rodrigues Paranhos (UFU)
Prof. Dr. Valdeci Rezende Borges (UFG/Catalão)
4
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Adalberto Paranhos, por todo apoio intelectual dado a
esta dissertação para sua finalização em meio aos acidentes de percurso que
marcaram a elaboração deste trabalho. Dele eu exigi, para além de orientação
acadêmica, muita paciência e empenho, em dose muito maior do que se pode
esperar de um mero orientador.
Aos demais professores da banca examinadora, Dra. Kátia Rodrigues
Paranhos e Dr. Valdeci Rezende Borges, que tanto contribuíram para esta
dissertação ao participarem do meu exame de qualificação.
Aos amigos, entre os quais cito Renato, Vanessa, Xicão, Lucas, Camila,
Cássio e Claudinho, que compartilharam tantas emoções durante a jornada do
mestrado.
À Wanessa, meu par, sinônimo de amor, a quem devo boa parte dos
estímulos que me fortaleceram para alcançar o objetivo dessa caminhada.
Além dessas, certamente existe a contribuição de tantas outras pessoas. A
todos que acreditaram em mim, certas vezes mais do que eu, ficam meus sinceros
agradecimentos e a eterna amizade.
5
Resumo
Esta dissertação de mestrado busca compreender a expressão política e
literária produzida por Pessach: a travessia de Carlos Heitor Cony. Trata-se de
um romance comprometido politicamente que foi laçado inicialmente em 1967.
Através do conflito de seus personagens a obra aborda um dilema típico dos anos
60 e 70: o engajamento na luta armada contra a ditadura. Nesse sentido, o
trabalho relaciona o contexto histórico com a produção literária de Cony,
buscando identificar na narrativa elementos que compõe aspectos sócio-culturais
dos anos 60. Isso envolve a trajetória profissional do autor, o processo de
engajamento político típico de artistas e intelectuais, a luta armada de setores da
esquerda, a retaliação do Partido Comunista Brasileiro ao romance Pessach e a
recepção da obra na imprensa brasileira dos anos 60 e 90. A interdisciplinaridade
segue como base essencial para essa pesquisa. Dessa forma fundamentamos
nossas perspectivas nos métodos da Nova história cultural, por compreender essa
vertente como um vasto campo que nos oferece contribuições para compor as
relações propostas.
Palavras chaves: Carlos Heitor Cony, história cultural, literatura, luta
armada.
Abstract
This master's degree dissertation looks for to understand the political and
literary expression produced by Pessach: Carlos Heitor Cony crossing. It is
treated of a committed romance politically that was bound initially in 1967.
Through their characters' conflict the work approaches a typical dilemma of the
sixties and 70: the engagement in the armed combat against the dictatorship. In
that sense, the work relates the historical context with Cony's literary production,
looking for to identify in the narrative elements that it composes partner-cultural
aspects of the years 60. That involves the author's professional path, the process
of artists' typical political engagement and intellectuals, the armed combat of
sections of the left, the retaliation of Party Brazilian Communist to the romance
Pessach and the reception of the work in the Brazilian press of the sixties and 90.
The interdisciplinaridade proceeds as essential base for that research. In that way
we based our perspectives in the methods of the New cultural history, for
understanding that slope as a vast field that offers us contributions to compose
the proposed relationships.
Key words: Carlos Heitor Cony, cultural history, literature, armed
combat.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................6
CAPÍTULO I: Cony, história, jornalismo e engajamento político..................19
1.1 Cony,
o jornalista e a história......................................................................20
1.2 O
engajamento político de Cony.................................................................29
CAPÍTULO II: O intelectual em transe... a cultura em êxtase.........................47
2.1 Intelectuais engajados em ação....................................................................48
2.2 Literatura comprometida: Pessach: a travessia..........................................56
CAPÍTULO III: O impacto de Pessach: recepção e retaliação.......................79
3.1 Pessach: da acolhida pela Editora Civilização Brasileira à condenação
Pelo PCB..............................................................................................................80
3.2 A recepção do romance na imprensa brasileira...........................................93
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................101
BIBLIOTECAS CONSULTADAS.............................................................106
FONTES...........................................................................................................108
BIBLIOGRAFIA............................................................................................111
FILMES............................................................................................................116
7
INTRODUÇÃO
8
Segundo o Primeiro Testamento da Bíblia, Moisés recebeu de Deus a
missão de conduzir o povo hebreu do Egito à terra prometida. Sob a liderança de
Moisés, os hebreus deixaram para trás a escravidão e se arriscaram em busca da
liberdade, partindo para a terra em que hoje se situa Israel. Essa passagem bíblica
é referenciada pelos judeus de todo o mundo como pessach. É o momento da
travessia, tradicionalmente lembrado e celebrado em uma cerimônia de louvação.
Moisés representa o profeta condutor que, ao fim do sétimo dia de fuga, teve o
Mar Vermelho aberto aos seus pés para que os hebreus o atravessassem com
segurança, chegando enfim à terra prometida.
Culturalmente, a páscoa judaica conhecida como pessach é
comemorada por sete dias.
A festa tem início com uma cerimônia no entardecer do 14º dia
[primeiro dia de lua cheia da primavera] do mês de Nisan
[primeiro mês do calendário judaico] e prolonga-se por 7 dias
em Israel e por 8 dias em outros lugares do mundo. O primeiro
dia representa a saída do Egito e o sétimo, a passagem pelo Mar
Vermelho, onde os judeus atravessaram em terra firme e seca.
1
Numa analogia com tal relato bíblico, o escritor Carlos Heitor Cony
retrata na obra Pessach: a travessia, de 1967, a história de Paulo Simões, escritor
pequeno-burguês, que, em meio ao regime militar imposto ao país em 1964, se
envolvido com militantes revolucionários dispostos a arriscarem-se pela
liberdade. A obra literária expõe como problemática justamente essa perspectiva
do engajamento ou não em favor da luta armada, enfocando o dilema de milhares
de pessoas entre os anos 60 e 70 do século passado, cuja politização exprimia
essa inquietação: assistir passivamente às arbitrariedades do governo militar ou
juntar-se aos rebeldes no enfrentamento ao regime.
Isso sugere o drama que atingiu o próprio Carlos Heitor Cony, que viveu a
experiência de afronta ao comando militar na vida pessoal e na literatura.
1
BRANDÃO, Virgínia. Pessach: a festa da pásco judaica. Disponível em:
<http://www.correiogourmand.com.br/info_culturagastronomica_02_b.htm>. Acessado em: 10
jul. 2007.
9
Pessach tem, ao que tudo indica, um caráter autobiogfico. Diversas
características do personagem principal são as mesmas de Cony, como a idade, a
aparência, a profissão, além de alguns hábitos. Diga-se de passagem, isso é um
recurso típico das obras do autor: representar na ficção pessoas próximas da sua
convivência, senão a sua própria pessoa.
A partir daí, esta dissertação almeja compreender a expressão política e
literária produzida através do romance. Lançado inicialmente em 1967, o livro
aborda a resistência ao regime ditatorial no Brasil, inserindo-se, de uma forma ou
de outra, na linha engajada. Num certo sentido, ao menos em parte, ele se
antecipa, por intermédio da literatura, ao que explodiria nas margens da
sociedade: a luta armada contra a ditadura.
Acerca do caráter engajado atribuído a Pessach, faz-se necessário uma
melhor compreensão do termo. Denis Benoît, em Literatura e engajamento: de
Pascal a Sartre, situa a construção do seu significado em três principais
momentos. O primeiro, por volta de 1850, quando o campo literário adquiriu
certa autonomia em relação à escrita convencional. O segundo, na virada dos
séculos XIX e XX, quando assumiu maior relevância social a figura do
intelectual. Contudo, nesse ponto o autor alerta para uma distinção necessária
entre intelectual e escritor engajado, entendendo o engajamento como ato
voluntário que evidencia uma postura política. E o terceiro momento esteve
ligado à revolução russa de outubro de 1917, quando a utopia de um novo
sistema mostrou-se possível e acessível aos intelectuais.
Em meio a esse processo o termo engajamento ganhou corpo tomando
como referência Sartre. Após a primeira guerra mundial, o filósofo francês veio
chamar a atenção para a emergência de uma literatura empenhada nas causas
políticas e sociais, em que questões como liberdade e justiça se faziam presentes
a fim de comprometerem autores e suas respectivas obras quase como uma
postura ética. E mais, Sartre chegou a considerar o engajamento como
conseqüência natural da literatura: “Já que o escritor não tem nenhum meio de se
10
evadir, nós queremos que ele abrace estreitamente a sua época; ela é a sua chance
única: ela é feita para ele e ele é feito para ela.
2
A concepção de escritor engajado, tal como apresentada por Denis Benoît,
é bastante significativa para a percepção do papel desempenhado por Cony ao
abordar a luta armada no Brasil:
o escritor engajado é aquele que pede à literatura para dar as
suas razões, e que sustenta que essas razões não podem se
encontrar numa essência da literatura defendida a priori, mas na
função que a literatura entende preencher na sociedade ou no
mundo. Para ele, escrever volta a supor um ato público no qual
ele empenha toda a sua responsabilidade.
3
____ * _____ * ____
Pessach é além de um romance literário engajado um registro de
época. É o testemunho de tensões, emoções, conflitos, dramas e tramas que
fizeram dos anos 60 um marco de transformações e de lutas sociais em todo o
mundo.
O interesse pela pesquisa surgiu ainda na graduação, na Universidade
Federal de Goiás, campus Catalão, quando, sob a orientação da professora Dra.
Regma Maria dos Santos, desenvolvemos dois projetos de iniciação científica
(PIBIC/CNPq) e, ao final a monografia intitulada: O golpe militar de 1964 e a
representação de Carlos Heitor Cony, defendida em 2006. Na ocasião,
pesquisamos O ato e o fato e Posto Seis de Cony. Tais livros são seleções de
crônicas políticas que o autor escreveu ao longo de 1964 e 1965 no extinto jornal
Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.
Retomando os anos 60, imediatamente após o golpe de 1964, Carlos
Heitor Cony deu início a uma série de crônicas políticas que exprimiam sua
indignação com a agressão constitucional promovida sobretudo pelos militares.
2
Apud BENOÎT, Denis. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru: Edusc, 2002, p.
39.
3
BENOÎT, Denis, op. cit., p. 35.
11
De sua coluna diária “Da arte de falar mal”, no Correio da Manhã, o jornalista
metralhou críticas ao movimento golpista.
A postura potica de Cony perante o movimento militar de 64 é
sem dúvida um grande marco na [sua] carreira profissional. Foi
a partir daquele período que o jornalista começou a tratar, de
fato, de política. Essa nova embrenhada rendeu a Cony uma
nova etapa profissional e muitas histórias.
4
Desta vez, sem perder o foco do escritor Cony e suas obras de
engajamento político, partimos, na Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia e sob a orientação do professor Dr. Adalberto Paranhos,
em busca de novos caminhos que resultaram nesta dissertação.
Além das pesquisas realizadas, beneficiamo-nos da participação no
projeto Pró-Qualidade” da UFU, que teve a contribuição das professoras Dras.
Joana Maria Pedro, da UFSC, e Tania Regina de Luca, da Unesp/Franca. Ambas
leram e comentaram o projeto desta dissertação e formularam sugestões para a
pesquisa. Dessa forma, com base também na bagagem acadêmica oferecida pelas
disciplinas do programa de Mestrado, fomos aos poucos definindo os percursos
deste trabalho.
Por entre os caminhos percorridos foi-se concretizando a nossa intenção
de conduzir a pesquisa captando nos elementos culturais aspectos essenciais para
associar o romance Pessach ao momento histórico do país, incorporando, assim,
a perspectiva da cultura aos tradicionais campos da política e da sociedade. Além
do mais, procuramos recompor alguns traços da biografia de Cony, a fim de
detectar sinais de seu engajamento como jornalista e escritor.
Objetivamos, enfim, desenvolver uma pesquisa de natureza
interdisciplinar, em especial entre literatura e história, bem como compreender a
representação de Cony sobre o respectivo contexto histórico. Isso implica
estender o leque de possibilidades de se pensar a conjuntura política imbricada
4
SOUZA, Leonardo Oliveira. O golpe de 1964 e a representação de Carlos Heitor Cony.
Monografia Universidade Federal de Goiás/Catalão, 2006, p. 24.
12
nas páginas da literatura, suas contribuições, efeitos e peculiaridades que
enriquecem o processo de conhecimento histórico.
____ * _____ * ____
No campo historiográfico, a relação história e literatura vem se tornando
cada vez mais clara desde o início do século XX, como se verifica na produção
de autores vinculados à École des Annales, como Marc Bloch e Lucien Febvre.
Essa nova escola se opôs a antigas concepções de se fazer história que
priorizavam os grandes fatos políticos, as elites, príncipes, militares, a “história
dos vencedores”. Tal alternativa revolucionou a historiografia ao explicitar que
os relatos, episódios e fatos passados não são fiéis expressões da verdade, como
pretendiam historiadores de corte mais tradicional. Em linhas gerais, a nova
historiografia se distanciou do cientificismo.
Emergia assim a pesquisa voltada para todas as atividades humanas,
mesclando a contribuição de outras áreas do conhecimento, como Ciências
Sociais, Geografia, Antropologia, Economia. Foi o start para estudos antes
marginalizados e negligenciados, que se redirecionaram para pesquisas
embasadas em novas fontes e novos objetos. Vale destacar aqui que essa história
com roupagem renovada não se limitou a buscar outros objetos e fontes, mas
procurou também nas velhas fontes novas leituras e até novos problemas.
se disse que essa mudança foi “do porão ao sótão”, demonstrando a
vastidão do campo historiográfico sob a ótica dos Annales. E, conforme ressaltou
Valdeci Rezende Borges, o projeto dos estudos históricos passou a se interessar
pelo “tudo, e não mais o todo”.
5
Foi, como sintetizou Peter Burke, “a revolução
francesa da historiografia”.
6
5
BORGES, Valdeci Rezende. A nova história e a história cultural. In: SANTOS, Regma Maria
dos et. al. (orgs.). História e linguagens: literatura, música, oralidade, cinema. Uberlândia:
Asppectus, 2003, p. 27.
6
BURKE, Peter. Escola dos Annales [1929-1989]: a revolução francesa da historiografia. o
Paulo. Unesp, 1997. No Brasil, uma obra pioneira que entrecruzou os campos literário e
historiográfico foi a de SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e
13
Nessa mesma linha, é importante salientar o uso das ferramentas do
historiador, que são os documentos. A propósito, verificou-se também uma
revolução documental que ampliou as possibilidades de se fazer a história ao
reelaborar o conceito de documentos, que passou a abranger relatos, imagens,
sons, objetos, discursos, narrativas etc. Ao avançar no tempo, Ana Maria Mauad
destaca bem o sentido revolucionário desse processo para o domínio
historiográfico:
A revolução documental dos anos 1960, com a historia serial e o
tratamento de dados massivos, teve como corolário uma
verdadeira revolução na consciência historiográfica. No entanto,
essa dupla revolução não se limitou à entrada de dados
estatísticos na História; ela reorientou significativamente o
trabalho sobre os indícios do passado. Assim, à medida que se
desenhava a critica do documento como monumento, se
ampliava o terririo do historiador.
7
Com as novas perspectivas que se abriram ao historiador, foi-se
consolidando a idéia de que os documentos e os fatos históricos jamais falam por
si, sendo sempre construídos/interpretados, da mesma maneira como inexistem
fatos consensualmente relevantes. A construção/seleção do fato e a própria
interpretação do historiador são uma ato pessoal, socialmente condicionado.
Ainda que a metodologia e as fontes sejam as mesmas, as análises e conclusões
podem variar amplamente na produção historiográfica. Afinal, evocando aqui
Roger Chartier, os historiadores constroem representações. Esse ponto de vista é
crucial em termos de história cultural:
A categoria de representação tornou-se central para as análises
da nova história cultural, que busca resgatar o modo como,
através do tempo, em momentos e lugares diferentes, os homens
foram capazes de perceber a si próprios e ao mundo,
criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 (ed. original de
1983), que elegeu Euclides da Cunha e Lima Barreto como objeto de análise.
7
MAUAD, Ana Maria. Entre textos, imagens e sons: um balanço atual do campo da História
Cultural. ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 8, n.13, Uberlândia, Edufu, jul.-dez.
2006, p. 244.
14
constituindo um sistema de idéias e imagens de representação
coletiva e se atribuindo uma identidade.
8
Roger Chartier acrescenta ainda que “é aqui que a história cultural poderia
encontrar uma nova posição no ponto em que se cruzam a crítica textual, a
história do livro e a sociologia cultural”.
9
Representar é uma construção a um
tempo pessoal e social. Consiste numa interpretação, repleta de
condicionamentos, de um determinado objeto, é o sentido atribuído a ele.
Representar é identificar uma construção de significados por meio dos sentidos
que dão percepção a uma pessoa, imagem, fato ou situação, tudo que é plausível
de interpretação.
Disso decorre que não a realidade é produto de uma construção
sociocultural como também tal como nos ensina Chartier as representações
integram a realidade social. Portanto, nosso objeto a fonte literária exprime
uma representação de fatos históricos e está integrado à realidade social de sua
época. É a construção do passado por intermédio da obra literária, que Chartier
tanto valoriza no recente artigo El passado en el presente: literatura, memória e
história, no qual o autor discorre sobre a relação que norteia nosso percurso
metodológico, “la competencia entre las representaciones del pasado producidas
por la ficción narrativa y la construcción del saber histórico propuesto por la
operación historiográfica”.
10
É indiscutível insistir que em qualquer outro documento histórico existem
especificidades, evidências e valores próprios de quem o produziu. Como afirma
Le Goff, o documento “não é inocente [...] o documento é produzido consciente
ou inconscientemente pelas sociedades do passado, tanto para impor uma
imagem desse passado quanto para dizer a „verdade‟”.
11
Lynn Hunt vai ao
encontro dessa visão ao comentar que
8
PESAVENTO, Sandra Jatahy e LEENHARDT, Jacques. Introdução. In: Discurso histórico e
narrativa literária. Campinas: Editora da Unicamp, 1998, p. 19.
9
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova História Cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 238.
10
Idem. El passado en el presente: literatura, meria e história. ArtCultura: Revista de
História, Cultura e Arte, v. 8, n.13, op. cit., p. 8.
11
LE GOFF, Jacques. (org.) A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 54.
15
Os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não
são textos inocentes e transparentes; foram escritos por autores
com diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da
cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-los.
12
No nosso caso, a obra pesquisada traz as representações de Cony, que se
abrem, é óbvio, a múltiplas influências, a toda uma extensa rede coletiva de
condicionamentos. Aliás, ao salientar a importância dos aspectos culturais para a
compreensão da sociedade, Lynn Hunt sublinha, oportunamente, que
As relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais,
nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural
e produção cultural o que não pode ser dedutivamente
explicado por referência a uma dimensão extracultural da
experiência.
13
Em sintonia com essa linha de pensamento, Thompson enfatiza que existe
uma imbricação entre os fatos comumente designados como econômicos, sociais
e culturais, que, a rigor, são indissociáveis, pois estes não podem ser tratados, de
forma alguma, como meros efeitos ou epifenômenos daquele. Por sinal, os
estudos de Thompson, ligados à tradição marxista, são de grande valia para nossa
pesquisa, pois o autor valoriza os sujeitos históricos e as mediações culturais em
detrimento das teses marxistas ortodoxas calcadas na relação base/superestrutura.
Sem deixar de lado o materialismo histórico, o autor aponta o estudo da cultura
como caminho para a ampliação do sentido das experiências humanas e para
compreensão das relações sociais.
14
Retomando Hunt, ela tem como um dos objetivos do livro A nova
história cultural “mostrar de que forma uma nova geração de historiadores da
cultura usa técnicas e abordagens literárias para desenvolver novos materiais e
métodos de análise”.
15
Certamente literatura e história podem caminhar juntas,
12
HUNT, Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In: HUNT, Lynn (org.), op. cit., p. 18.
13
Idem, ibidem, p. 9.
14
Ver, por exemplo, THOMPSON, Edward. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. 3.
ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
15
HUNT, Lynn, op. cit., p. 19.
16
mas não se confundem. Ao contrário, cada qual tem suas estratégias e critérios
para traçar seus objetivos, seja a narração ficcional e/ou a tentativa de
compreender o mundo em que se vive ou viveu. São campos que dizem respeito
à tarefa de “guardar a memória”, ou talvez estimulá-la, a partir da reflexão. É
nesse sentido que a presença do passado contida no presente estabelece sua
contemporaneidade. Como acentua Chartier, a obra literária “presentifica” o
passado.
16
Enquanto o historiador necessita de certas fontes que fornecem indícios
históricos, à literatura é permitida a criação ficcional. Desse modo, o historiador
deve saber distinguir essas duas áreas da criação humana, por mais que, tal como
a literatura, a história não deixe de ser uma criação ou representação.
Sabidamente, o ofício do historiador é controlado pelo arquivo, pelas fontes e
pelo método adotado. Nós lidamos, de alguma forma, com fatos, qualquer que
seja a acepção atribuída a esse termo. E mais: impões-se a necessidade dos
recortes temporais na pesquisa historiográfica, tanto quanto a tentativa de atingir
a verossimilhança.
Já a literatura, por sua vez, é fonte de si mesma, é testemunho de si
própria. Apesar de conter as amarras oriundas de seus gêneros, ela pode alçar
grandes vôos sem estar compromissada com a “verdade”. Daí que o campo da
literatura seja uma fonte privilegiada para a leitura do imaginário, porque ela
fornece elementos para a compreensão das razões, dos sentimentos, das
sensibilidades de uma época ou indica a concepção de passado formulada no
tempo da escrita.
Nessa perspectiva, é que Michel de Certeau nos fala sobre as “operações
historiográficas.” Segundo o autor, literatura e história são atividades derivadas
do ser humano, inseridas no seu respectivo contexto histórico: em conseqüência
disso, carregam consigo determinações/condicionamentos sociais. Porém, essas
operações atuam também sobre o lugar e o tempo nas quais se situam. Por isso
Valdeci Borges observa que
16
CHARTIER, Roger. El passado en el presente..., op. cit., p. 11.
17
Literato, literatura e sociedade estão aprisionados na vasta e
complexa teia da cultura, produzindo inflncias recíprocas. A
representação do social é uma confluência do individual com as
condições coletivas múltiplas em que foi produzida.
17
Contudo, como sinaliza Antonio Candido, uma obra literária é grande
quando, num certo sentido, transcende seu próprio tempo e lugar:
A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende de sua
relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por
sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se
dos fatores que a prendem a um momento determinado e a um
determinado lugar.
18
No caso do romance Pessach, podemos dizer que seu tempo e lugar foram
simultâneos a acontecimentos decisivos no país. O contexto em que Cony estava
inserido no momento da produção do livro, entre 66 e 67, era o cerco social que
os militares estavam realizando, além da escalada de resistência ao regime
ditatorial instituído. Daí Pessach ter uma particular riqueza de elementos para
uma pesquisa historiográfica. O autor retirou do seu lugar essas peças de seu
tempo, exercendo seu ofício de escritor sob o calor da crise político-social dos
anos 60, intervindo nela como jornalista e ficcionista irônico.
Ao retrabalhar os acontecimentos de uma época, todo escritor, como
pondera Hayden White, revela, de algum modo, determinadas tantas
“implicações ideológicas”. Tanto o historiador quanto o literato sujeitos de seu
tempo são portadores de determinações ideológicas que aparecem em suas
narrativas.
Os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou
subordinão de alguns deles e pelo realce de outros, por
caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto
de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante
em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera
17
BORGES, Valdeci Rezende. História e literatura: uma relação de troca e cumplicidade.
História & Perspectivas, n. 9, Uberlândia, UFU, jul.-dez. 1993, p. 33.
18
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha e T. A. Queiroz, 2000, p.
41.
18
encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma
peça.
19
Dessa maneira, ficção também na pesquisa historiográfica. No
minucioso trabalho de recortar, temporalizar e selecionar, o historiador se
aproxima do literato, que, por sua vez, em certas circunstâncias, se utiliza de
registros históricos para compor seu enredo. Nesse ato de escolha, o historiador e
o literato são contagiados pelo lugar de construção, como afirma Certeau. Logo,
isso não significa que, apesar dos indícios, dos objetos, dos documentos e dos
métodos, exista uma maneira correta de escrever a história. Todo discurso
envolve, conscientemente ou não, uma atitude política, entre outras. Seja como
for, “o historiador continua tendo compromisso com as evidências na sua tarefa
de reconstruir o real, e seu trabalho sofre o crivo da testagem e da comprovação,
mas a leitura que faz de uma época é um olhar, entre os possíveis de serem
realizados.”
20
Ao examinar a produção literária, Antonio Candido alerta para o fato de a
obra de literatura não ter a obrigação de espelhar fielmente a sociedade onde foi
concebida. Ele chama a atenção para a parcela de fantasia presente na literatura,
algo que faz com que a obra ganhe em “eficácia como representação da realidade
do mundo. Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para
entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação casual.
21
Em outras
palavras, a pretensa transcrição de acontecimentos reais não assegura ao romance
a reprodução da realidade.
Geralmente, o contexto histórico surge na literatura como um reforço da
verossimilhança do texto e uma alternativa do enredo. Existe um trabalho de
mediação entre a história e a ficção. Isso ocorre porque a obra necessita, de
alguma maneira, ser referência para o leitor. Essa apropriação inclui muitas vezes
fatos mais ou menos consensualmente verídicos que servem de suporte à
narrativa. Disso decorre o romance histórico, em que verdade e ficção se
19
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp,
1994, p. 100.
20
PESAVENTO, Sandra Jatahy e LEENHARDT, Jacques, op. cit., p. 21.
21
CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 13.
19
relacionam compondo representações. É o caso do livro em questão, Pessach, em
que Cony lança mão de aspectos cotidianos da vida do país para compor as
relações e a trama desenvolvida.
Cabe ao historiador lidar com toda essa gama de elementos. No conteúdo
literário deve ser colhido o material histórico, como sustentam Chalhoub e
Pereira:
a proposta é historicizar a obra literária [...] inseri-la no
movimento da sociedade, investigar as suas redes de
interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em
relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou
representa a sua relação com a realidade social.
22
Pensando dessa maneira é que reconhecemos no campo literário, seja ele
a crônica, conto ou romance, seu valor histórico. Nosso interesse é situar no
primeiro capítulo um pouco da vida e obra de Carlos Heitor Cony, com destaque
para seu percurso em direção ao engajamento a partir das crônicas produzidas no
jornal Correio da Manhã. Em meio a isso, refletiremos, de passagem, sobre a
relação entre jornalismo e história. No segundo capítulo, almejamos compreender
a guinada política do intelectual em pleno rebuliço social dos anos 1960. No
mais, passaremos, a seguir, à análise da obra Pessach. O terceiro e último
capítulo será dedicado ao exame da recepção e do impacto social produzido pelo
lançamento de Pessach, ainda na década de 60 e também nos anos 90 quando
houve a mais recente reedição , o que envolve a retaliação do PCB contra o
romance e o autor.
22
CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. (orgs.). A nova história
contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998, p. 7.
20
CAPITULO I: CONY, HISTÓRIA,
JORNALISMO E ENGAJAMENTO POLÍTICO
Não tenho disciplina suficiente para ser
de esquerda, não tenho firmeza de
convicções para ser de direita, também
não tenho condições de ser de centro,
porque o centro é oportunista. Resta-me
ser um anarquista humilde, triste e
inofensivo.
Carlos Heitor Cony
21
1.1 Cony, o jornalista e a história
Cony nasceu no dia 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, zona
norte do Rio de Janeiro, o terceiro de quatro filhos do casal Ernesto Cony Filho e
Julieta de Moraes. A vida do autor é recheada de histórias bastante peculiares,
algumas no mínimo hilariantes, a começar pela infância. Aos cinco anos de idade
foi que ele gritou suas primeiras palavras ao se assustar com um hidroavião que
passava, provando, então, que não era mudo, como se pensava. Outra
característica ligada à fala foi a dificuldade que o fazia trocar a letra g por d, fato
que tornava Cony motivo de chacotas. Conta-se que, aos oito anos de idade,
durante o aniversário de seu irmão,
foi convidado a se aproximar de uma roda de meninos, que lhe
pediram para repetir em voz alta: „Dona Jandira adora um
fogão[...] Orgulhoso do convite da turma dos maiores, ele não
se deu conta da armadilha. Endireitou o corpo, abriu a boca e
soltou a frase. Mal o “d” tomou o lugar do “g”, as gargalhadas
soaram alto, frias, cruas.
23
Devido a essa dificuldade, Cony deixou de freqüentar a escola e foi
alfabetizado por seus pais em casa. O problema da fala foi corrigido por volta
dos 15 anos, após uma cirurgia. Antes, em 1937, Cony, que dizia pretender ser
padre, ingressou no Seminário Arquidiocesano de São José, em Rio Comprido.
Porém, em 1945 desistiu dessa idéia. Sobre os motivos pelo qual abandonou a
recente vida religiosa, ele próprio explica:
Eu não tinha fé. Descobri que não tinha . Queria ser padre,
mas sem fé. Achava muito bonita a profissão de padre, batina,
missa em latim, eu gostava de tudo isso. Gostava muito da Igreja
do Concílio de Trento, o ritual, as músicas [...]. Mas quando eu
vi que para ser padre precisava realmente ter uma formação
cristã, acreditar em Deus, acreditar numa moral, comprar uma
23
Cadernos de Literatura Brasileira, n. 12 Carlos Heitor Cony. o Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2001, p. 5.
22
briga, aí eu vi que não poderia ser e seria insincero da minha
parte continuar no seminário. Um padre sem fé é horrível.
24
Aos 20 anos, Cony entrou para a Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro , da qual
também desistiu no ano seguinte. Em 1947, ele ingressou na imprensa pelo
Jornal do Brasil, cobrindo férias de seu pai. Depois disso foi redator na Rádio
Jornal do Brasil. Em 1949, teve o seu primeiro dos seis casamentos, com Maria
Zélia Machado Velho, do qual nasceram duas filhas: Regina Celi e Maria
Verônica. E em 1956 começava a se destacar na literatura, concorrendo ao
Prêmio Manuel António de Almeida.
Foi em 1960 que passou a trabalhar no Correio da Manhã, do Rio,
exercendo a função de copidesque. Já em 1961 passou a escrever juntamente com
Octavio de Faria, crônicas para a coluna “Da arte de falar mal”, que foram
reunidas em livro com o mesmo título da coluna, em 1963. Nesse ano começou a
assinar outra coluna com Cecília Meireles na Folha da Manhã.
Até 1964, Cony se destacara nacionalmente como escritor de sucesso,
tendo vários livros premiados: O ventre, de 1956, Tijolo de segurança, de 1958,
Informação ao crucificado, de 1959, Matéria de memória, de 1962, além de O
ato e o fato e Antes o verão.
25
No ofício de jornalista que ele desempenhou a
1964, sobressaía o gosto por temas ligados à arte: o tema dos meus artigos e
crônicas eram comentários ou reflexões sobre cinema, musica, literatura, história,
comportamento. Cultivava um entranhado desprezo pelo fato político.
26
Nos primeiros anos da década de 60, a experiência política populista que
sacudia o país viveu seu período mais crítico.
27
À crescente politização de
24
Apud PREVIDI, Gustavo. Site Carlos Heitor Cony (entrevista). Disponível em:
<www.carlosheitorcony.com.br/clipping/show_clipping.asp?id=126>. Acesso em: 15 jul. 2006.
25
Cf. Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 10.
26
CONY, Carlos Heitor. A revolução dos caranguejos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004,
p. 24.
27
Sobre essa conjuntura, da qual não nos ocuparemos especificamente aqui, ver, entre outros,
WEFFORT, Francisco C. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978,
DREIFUSS, René Armand. 1964 a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de
classe. Petrópolis: Vozes, 1981, e TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de
64. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
23
amplos setores da sociedade brasileira aqui incluídas as classes trabalhadoras ,
a resposta articulada pelos segmentos militares e civis mais conservadores
prenunciava o golpe de 1. de abril de 1964. João Goulart, o então presidente do
Brasil, herdeiro das tradições do trabalhismo varguista, era visto como a
encarnação da República sindicalista e a brecha por onde os comunistas
chegariam ao poder”
28
. Sua política, classificada por Dreifuss como “nacional-
reformista”
29
, estava na berlinda e serviu como fator de catalisação da direita,
seja no plano nacional, seja no plano internacional, com os Estados Unidos à
frente.
Imediatamente após o golpe, para surpresa geral, Cony se tornou o
primeiro jornalista a se manifestar contra o novo regime ditatorial, como anota
Elio Gaspari: De sua coluna diária no jornal Correio da Manhã, do Rio de
Janeiro, Carlos Heitor Cony [foi a] primeira voz destemida a denunciar as
violências.”
30
A partir daí foi como se a carreira profissional tanto de jornalista
como de romancista enveredasse com vigor para temas políticos. Marcio Moreira
Alves, que nessa época assinava artigos políticos no Correio, comentou essa
conversão política:
Carlos Heitor Cony ocupava uma mesa de aço logo na entrada
da redação, onde escrevia crônicas que eram publicadas no
segundo caderno. Era já um romancista consagrado por vários
prêmios, ganhos com os seus primeiros livros, mas nunca
manifestara interesse por artigos poticos. O golpe de 1964
despertou a ira cívica de Cony, que passou a ridicularizar a
truculência militar desde a primeira semana da ditadura. Após o
golpe, um silêncio mplice se havia instalado nos grandes
jornais [...]. As crônicas de Cony causavam espanto, admiração
e, no caso de seus alvos, os todo-poderosos do momento, uma
indignação profunda.
31
Por essas razões, Zuenir Ventura - atualmente jornalista e colunista da
revista semanal Época enfatizou igualmente o Cony destemido:
28
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Edusp, 2006, p. 442.
29
DREIFUSS, René Armand, op. cit., p. 130.
30
GASPARI, Elio. As ilusões armadas: a ditadura envergonhada. São Paulo. Companhia das
letras. 2002, p. 132.
31
Apud Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 21 e 22.
24
o Cony politicamente engajado, o destemido planfetário do
Correio da Manhã de 1964, aquele cujos artigos tanto irritavam
os militares. Além deste que só usava a palavra, há ainda o outro
que partia para a ação, aquele que foi preso seis vezes pela
ditadura militar.
32
Em 1965, Cony foi preso durante um protesto contra o Marechal Castelo
Branco, no caso conhecido como “Oito da Glória”. Esse era o Cony na prática,
ao qual Zuenir Ventura se referia. O “Oito da Glória” é de grande relevância para
a carreira de Cony, pois, como bem observou Juliana Carneiro Alves, “esse
episódio influenciou Cony na criação da personagem Sílvio, que no romance
Pessach é amigo de Paulo Simões,
33
personagem-chave da obra que faz a sua
transição política rumo à militância.
Ainda em 1965, o escritor publicou seu sétimo romance, Balé branco, e
em 1967, lançou o oitavo, Pessach: a travessia, ambos relançados pela
Companhia da Letras. Este último é tido como um marco absoluto na carreira de
Cony, no entendimento de Malcolm Silverman:
Afinal de contas, Cony evoluiu de um ficcionista basicamente
apolítico para, se não um revolucionário armado, certamente [...]
um crítico feroz e perseguido do regime especialmente nas suas
crônicas mordazes. (...) Como Paulo Simões, Cony também
mudou de direção estética, pessoal e profissional depois de
Pessach: a travessia, considerado, ainda hoje, um romance
divisor de águas.
34
Em seguida o romancista permaneceu quase um ano em Cuba, onde atuou
como membro do júri de concurso promovido pela Casa de las Américas,
instituição cultural daquele país. De volta ao Brasil, em 1968, foi novamente
preso ao desembarcar no aeroporto, suspeito de relações subversivas com o
32
Idem, ibidem, p. 28.
33
ALVES, Juliana Carneiro. Pessach: a travessia uma representação da luta social e do
intelectual dos anos 60. Monografia Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2003, p.
23.
34
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. Porto Alegre: Editoras da
UFRGS e da UFSCar, 1995, p. 195.
25
governo cubano, mas o soltaram logo após. Com a decretação do AI-5, foi
novamente preso a mais longa das prisões de Cony, quase um mês.
35
Em 1970, o escritor iniciou um extenso trabalho de adaptação de clássicos
da literatura internacional. No ano seguinte começou a escrever Pilatos, lançado
em 1973 pela Editora Civilização Brasileira. Nesta obra, Cony “lava as mãos”
diante das pressões e do clima de perseguição, tanto da parte dos comunistas
quanto dos militares, e demonstra desprezo pela vida de escritor, lançando mão
de uma linguagem desinibida, pornográfica e repulsiva, por meio da qual
exprimia sua repulsa à política e sua aversão aos valores burgueses.
36
Essa era a
conseqüência daqueles “anos de chumbo” comum a vários outros intelectuais que
sentiram na pele as pressões a que eram submetidos: a partir de um determinado
momento você só tinha duas saídas: pegar o violão ou o fuzil. Eu, como não toco
violão, toco piano, e não gosto de fuzil, porque me repugna a violência, tive que
parar mesmo.
37
Mas o que nos interessa mais de perto, neste momento, são os frementes
anos 60, especialmente a forma como Cony se insere na sua época, em particular
por volta de meados da década até 1967, ano da publicação de Pessach.
Entre 1965 e 1972, Cony foi preso seis vezes, mas foi ainda no fim do
conturbado ano de 1964 que deixou o Correio da Manhã, segundo ele para evitar
uma crise com a direção, causada por uma crônica intitulada “Ato Institucional
II”. Nela, Cony fez uma sátira prevendo o que seria o Ato Institucional n. II
baixado mais tarde, em outubro de 1965, por Castelo Branco. Com seus toques
de ironia e humor, o cronista satirizou a submissão do Brasil em relação aos
Estados Unidos.
Art. 1. A partir da publicação deste Ato, os Estados Unidos do
Brasil passam a denominar-se Brasil dos Estados Unidos. [...].
Art. 3. O Presidente da República é promovido à função de
Governador-Geral, com vencimento emlar. [...].
35
Cf. Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 11.
36
Cf. ALVES, Juliana Carneiro, op. cit., p. 29 e 30.
37
SILVA, Fernando de Barros e. Na prisão com Glauber e Callado (entrevista). Folha de S.
Paulo. 28 jul. 1996.
26
Art. 5. Ficam incorporadas às Forças Armadas Norte-
Americanas as altas patentes militares brasileiras [...].
Art. 7. Os novos cidadãos norte-americanos do Brasil terão os
seus direitos e obrigações equiparados aos cidadãos norte-
americanos em geral. [...].
Art. 9. Fica instituído o inglês como ngua oficial do Brasil e
tolerado o português como idioma complementar e facultativo
[...].
Art. 10. O Dólar é a moeda oficial do Brasil dos Estados
Unidos.
38
No mesmo dia da publicação dessa crônica, houve uma crise entre a
administração do Correio e a redação. Consta que o Citibank suspendeu um
empréstimo assumido com o Correio
39
que passava por dificuldades financeiras
em decorrência da crônica. Dessa forma, no dia seguinte Cony endereçou ao
redator-chefe, o jornalista Antônio Callado (que estava sendo pressionado pela
diretoria para censurá-lo) uma carta de demissão.
Conhecedor de uma situação embaraçosa para o meu chefe e
amigo, venho, por meio desta, pedir demissão do cargo de
redator que ocupo no Correio da Manhã. Esta é a quarta vez que
peço demissão do jornal sou um reincidente incurável. Das
vezes anterior o fiz por motivos pessoais. Desta vez, porém, o
faço para facilitar a solução de uma crise em que, honestamente,
o me considero envolvido. A crônica de hoje, no meu
entender, em nada poderia provocar ou influir em uma crise
interna entre a administração e a redação. Mas a crise houve.
[...]. Fique certo, Callado, de minha estima, e receba o meu
abraço.
40
Antônio Callado recebeu a carta de Cony e comentou “Vou entregar a sua
carta à direção. que a minha vai junto”.
41
Callado apresentou também seu
pedido de demissão. Encerrou-se assim o ciclo do jornalista-cronista, Carlos
Heitor Cony no Correio da Manhã. Um período que representou, tanto para
38
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato: crônicas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979, p. 182-184.
39
Cf. Imprensa: Jornalismo & Comunicação, n. 193. São Paulo: Imprensa Editorial, ago. 2004,
p. 13.
40
CONY, Carlos Heitor. Posto Seis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 226 e 227.
41
Apud Imprensa: Jornalismo & Comunicação, op. cit., p. 13.
27
Cony quanto para o jornal, o mérito do jornalismo social combativo contra a
tirania do regime militar.
A saga do Correio, como lembra Nelson Werneck Sodré, é símbolo de
oposição e crítica à política governamental. O jornal foi criado em 15 de junho de
1901, fundado por Edmundo e Paulo Bittencourt, e fazia oposição ao governo
Campos Sales, criticando a estagnação econômica. Sodré deu destaque ao papel
combativo do Correio da Manhã.
Se, incontestavelmente, o Jornal do Brasil apresenta-se, ao lado
do Jornal do Comércio, como grande empresa, o órgão popular
por excelência continua a ser o Correio da Manhã, folha de
oposição, vibrante, escandalosa às vezes, veemente sempre. Não
poupa o governo de Epitácio Pessoa, em campanha virulentas.
42
De maneira geral, no decorrer da sua história, o Correio da Manhã
caracterizou-se por fazer oposição a quase todos os presidentes brasileiros, razão
pela qual foi perseguido e fechado em diversas ocasiões.
No dia 30 de março de 1964, em meio a toda tensão que inflamava o país,
o Correio da Manhã trouxe na capa, em letras grandes, o editorial intitulado:
“Basta!”. Uma referência ao governo de Jango, e na manhã do golpe, dia 1. de
abril, outro editorial ainda mais ousado e devastador exigia: “Fora!”. Os
editoriais haviam sido escritos por alguns integrantes do jornal, sem qualquer
participação de Carlos Heitor Cony que estava em repouso devido a uma
cirurgia. No entanto, Cony soube previamente do conteúdo dos editoriais:
Edmundo Moniz do corpo de editorialistas do Correio ligou para ele a fim de
saber se gostaria de acrescentar ou retirar algo, Cony conta que, por estar
afastado temporariamente, alegou que não iria mexer no texto, apenas para
cumprir o ofício. Admitiu, porém, que “devo ter trocado um ou outro advérbio de
modo.
43
42
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3. ed. o Paulo: Martins Fontes,
1983, p. 347.
43
CONY, Carlos Heitor. A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 15.
28
Os editoriais do Correio da Manhã, segundo Edmundo Moniz, visavam
garantir uma saída legalista para a crise política que tomara conta do Brasil, mas
de forma alguma defendiam um regime militar.
O Correio combatia os atos administrativos de Jango, os
aspectos da sua potica econômica, financeira, aquilo que o
Correio achava que estava errado. E também apoiava o que
coincidisse com seu ponto de vista [...]. O „fora‟ foi
conseqüência da posição do João Goulart, porque desde que ele
abandonou o governo, desde que saiu ou estava disposto a sair, o
"Correio da Manhã" passou a defender uma posição legalista,
que era a da posse do Ranieri Mazzilli [...]. Mas, o Correio da
Manhã, de repente, foi surpreendido.
44
No período inicial da ditadura militar, Cony foi um dos principais, se não
o principal responsável pelo papel aguerrido do Correio. Em entrevista,
Edmundo Muniz lembrou do matutino e explicou por que o sucesso do jornal não
o manteve ativo.
E, como único jornal que combatia abertamente o regime
militar, ele viu suas vendas pularem de 80 mil exemplares
diários para 120 mil, atingindo a cifra de 300 mil aos domingos.
Mas como a base desse crescimento era a venda avulsa em
bancas, que financeiramente não compensava, somado à redução
dos anunciantes quase a zero, em um boicote comandado pelo
governo, chegou-se a uma situação de insolvência.
45
Nesse momento, de acordo com Sodré, o Correio “teve a sua fase
gloriosa, tornando-se entre 1964 e 1965, o baluarte das liberdades individuais, no
protesto e na denúncia das torturas, das arbitrariedades que passaram a constituir
o cotidiano da vida brasileira”.
46
Justamente por essa postura combativa, acabou
tendo que fechar em 1974 por falta de verbas publicitárias. Encerrou-se assim um
ciclo tradicional de sucesso, que fez história na imprensa. O Correio da Manhã,
foi um dos matutinos mais lidos no Rio de Janeiro. Maria Aparecida de Aquino
44
Apud NEGREIROS, Gilberto. Almanaque da Folha de S. Paulo (entrevista com Edmundo
Moniz em 12 jan. 1979). Disponível em < http://almanaque.folha.uol.com.br/memoria_8.htm# >
45
Apud Imprensa: Jornalismo & Comunicação, op. cit., p. 13.
46
SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 435.
29
atesta as punições sofridas pelos veículos de informação. Segundo ela, os
militares
Patrocinaram o desaparecimento de experiências tradicionais na
imprensa como o Correio da Manhã e inovadoras como a
Última Hora, sufocadas ambas por terem cometido o pecado de
serem incômodas vozes dissonantes. Abriu-se o caminho para a
padronização e oligopolização na imprensa.
47
47
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa e Estado Autoritário (1968-1978) o
exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de S. Paulo e Movimento. Bauru:
Edusc, 1999, p. 17.
30
1.2 O engajamento político de Cony
Mas um jornalista do Correio, mais do que qualquer
outro, se transformou no panfletário que a hora exigia e
a Nação esperava para lavar a face e levantar a cabeça.
Ênio Silveira
Diversas fontes pesquisadas e já mencionadas neste trabalho apontam para
a data de abril de 1964, como um divisor de águas na carreira profissional de
Cony. Entretanto, a atuação no terreno político é anterior a 1964. Dois anos
antes, o jornalista foi à Argentina como repórter cobrir o movimento militar que
se passava no país. Segundo ele, testemunhou tanta truculência militar que sentiu
naquele momento saudade dos militares brasileiros mal sabia que essa onda
golpista estava por assolar seu país.
Em 1964, às vésperas do movimento golpista Cony estava afastado da
redação do Correio, recuperando-se de uma cirurgia. Em obra relançada em
2004, A revolução dos caranguejos, o próprio jornalista tratou de recompor
aqueles dias entre o final de março e o começo de abril. Conforme seu relato, na
manhã do dia 1. de abril recebeu um telefonema de Carlos Drummond.
Conversaram sobre a notícia do rádio que dizia que o Forte de Copacabana
48
havia sido tomado por tropas militares. Em seguida, o poeta o convidou para dar
uma volta no Posto Seis, em Copacabana.
49
Nas palavras de Cony,
48
Reduto militar no Posto Seis, em Copacabana, que apoiava João Goulart em 1964.
49
Cf. CONY, Carlos Heitor. A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 13.
31
Cinco minutos depois, ele me esperava na portaria do edifício
Renoir, com um guarda-chuva típico de mineiro precavido,
quase do tamanho de uma barraca de praia. Considerando-me
frágil, segurou meu braço e fomos assuntar a história pátria que
se fazia em nossos donios.
50
Durante o percurso em Copacabana, Cony conta que assistiu à
movimentação militar. Viu soldados armados e tanques nas ruas. Viu, inclusive,
um soldado da Marinha batendo em um rapaz que havia gritado “viva Brizola!”
ou “viva Jango!”
51
O cronista relata ainda que de pergunta em pergunta foi que
souberam que as tropas fiéis a Jango não resistiriam. Era o fim do governo
Goulart, o fora que o Correio da Manhã havia pedido naquela manhã.
52
É relevante reiterar que a mudança brusca ocorrida naquele momento na
política brasileira foi que produziu uma mudança temática na atuação jornalística
de Cony. E não se pode atribuir isso simplesmente à repressão social e política
imposta pelos militares, pois a reação do cronista foi imediata, e, além disso,
naqueles primeiros dias de abril, apesar de alguns atos violentos, ninguém
ousaria prever de fato como decorreria a política dos militares. Muita gente
acreditava que o governo seria provisório.
Ainda sobre o passeio de Cony na companhia de Drummond, ele fala que
percebeu algo estranho na feição do poeta.
Voltamos para casa. Drummond, com aquela famosa cabeça
baixa, como se estivesse pisando um chão de ferro, ferro de
Itabira. Reparei que ele estava contraído, o maxilar inferior
tenso, fazendo estremecer a carne de seu rosto magro. o sei
em que estaria pensando. Ou melhor: sabia.
53
Foi desse encontro que saiu a primeira crônica sobre o movimento militar
de 1964, intitulada “Da salvação da pátria”, publicada no segundo dia de abril;
nela o cronista comentou o passeio por Copacabana: Um heróico general à
paisana [...] apanha dois paralelepípedos, e concentra-se na brava façanha de
50
Idem, ibidem, p. 13 e 14.
51
Idem, ibidem, p. 19.
52
Idem.
53
Idem, ibidem, p. 20.
32
colocar um em cima do outro formando uma “gloriosa barricada”.
54
Questionado sobre o motivo daquilo, o general diz que é para conter as tropas de
oposição do I Exército. O cronista conta que não teve trabalho de demolir a
“barricada” com um pontapé. E escreveu ainda: “Das janelas, cai papel picado.
Senhoras pias exibem seus pios alvacentos lençóis, em sinal de vitória [...] surge
uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a
Pátria está salva.”
55
Cony afirma que não teve o que explicar para a filha pequena
que o questionava:
É carnaval, papai?
Não.
É campeonato do mundo?
Também não.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao
sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.
56
Após a publicação dessa crônica, Cony esteve na redação do Correio,
como normalmente fazia, e recebeu um telefonema da viúva de Graciliano
Ramos elogiando-o pelo que escrevera, como também outro telefonema de
Drummond, que alarmou Cony ao escutar: “Um abraço”. Na mesma noite,
alguns colegas meio receosos lhe perguntaram se ele havia sofrido algum tipo de
advertência da direção do jornal ou algo parecido. Cony apenas estranhou.
57
Segundo ele, somente quando chegou em casa foi que leu os jornais do dia e
entendeu o receio dos amigos e as palavras de Drummond. De forma geral, todos
os outros jornais haviam saudado o golpe com maior, ou menor entusiasmo. Em
A revolução dos caranguejos, o autor comentou seu sentimento diante do fato:
Por vinte e quatro horas, acredito, minha crônica ficou sendo o
patinho feio da imprensa. Bem mais tarde, já digerido o impacto
daqueles tempos, lembrei-me de uma piada do Juquinha,
personagem de rias anedotas [...]. Na escola que Juquinha
54
Idem, O ato e o fato: crônicas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 26 e
27.
55
Idem.
56
Idem, ibidem, p. 27.
57
Cf. idem, A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 26.
33
freqüentava, a professora obrigava os alunos a se levantarem
quando ela chegava, e a dizer em coro: Bom dia, professora!.
Juquinha estava resfriado, não foi à aula e a professora decidiu
mudar a regra do jogo: que ninguém se levantasse quando ela
chegasse, nem desse o Bom dia, professora!”. Acontece que
o avisaram o Juquinha, e quando, no dia seguinte, a professora
chegou para a aula, ele se levantou e disse em voz mais ou
menos alta o que sempre costumava dizer: “Chegou a puta da
professora!”.
58
Deve ser salientado que diferentes perspectivas de se analisar o
movimento militar de 1964. Mas as vertentes estão inseridas no contexto mundial
da Guerra Fria, quando o mundo estava dividido ideologicamente entre
capitalismo e comunismo. Nesse cenário, vários países da América Latina ao
tentarem r em prática políticas de caráter reformista que se afastavam
parcialmente, das formas tradicionais de dominação capitalista, sofreram
intervenções militares. Essas intervenções golpistas tiveram alguns aspectos em
comum. O primeiro é que foram preparadas especialmente por setores da elite em
conjunto com a alta cúpula das Forças Armadas. Em segundo lugar os países que
viveram tais experiências adentraram em um período de repressão e violência
política. Um terceiro fator foi o apoio dos EUA aos golpistas. No Brasil esse
apoio esteve pronto para ser efetivado mais concretamente, caso houvesse uma
tentativa de contragolpe. Essa articulação levou o nome de Operação Brother
Sam.
59
O golpe de abril de 1964 não foi, obviamente, um ato isolado. No plano
interno, aliás, ele representou o coroamento de toda uma série de arremetidas
golpistas que marcaram a trajetória histórica do populismo no Brasil. Como
lembra Caio Navaro Toledo, em recente artigo sobre os reacionários na política
58
Idem, ibidem, p. 27 e 28.
59
Trata-se de um apoio logístico composto por uma esquadra de porta-aviões norte-americanos
que estavam de prontidão para intervir, ao lado dos golpistas, no Brasil, se se iniciasse um
processo de guerra civil. Num depoimento, Carlos Lacerda revelou o que teria ouvido do
embaixador estadunidense sediado no país, Lincon Gordon: Vocês fizeram uma coisa
formidável! Essa revolução sem sangue e tão pida! E com isso pouparam uma situação que
seria profundamente triste, desagradável e de conseqüências imprevisíveis no futuro das nossas
relões: vocês evitaram que tivéssemos que intervir no conflito. LACERDA, Carlos.
Depoimentos de Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 287.
34
brasileira, “durante a breve vigência da Carta constitucional de 1946, o golpe de
Estado sempre rondou a democracia brasileira, instituída com a queda do Estado
Novo 1937-1945.”
60
Afinal,
Quando, em abril de 1964, os militares derrubaram o presidente
João Goulart e ocuparam o poder, na verdade estavam dando
seqüência a uma longa tradição intervencionista que remonta
aos séculos anteriores da nossa história.
61
Havia nesse período, a idéia, acalentada por setores conservadores, de que
o país necessitava de um “Estado forte”, militarizado, capaz de comandar a
nação, inclusive com o uso da força, a fim de garantir a estabilidade social,
econômica e política. Como ressaltam os organizadores de Visões do golpe, “essa
utopia autoritária estava claramente fundada na idéia de que os militares eram,
naquele momento, superiores aos civis em questões como patriotismo,
conhecimento da realidade brasileira e retidão moral.
62
No dia 2 de abril, Ranieri Mazzilli, que era presidente da Câmara, tornou-
se presidente do país. A sua posse foi uma manobra feita às pressas, literalmente
às escuras:
Enquanto o presidente [Goulart] voava para o Rio Grande do
Sul, Auro Moura Andrade, baseado nos fatos e no regimento”,
declarou vaga a Presidência da República e organizou uma
cerimônia bizarra. No meio da madrugada, acompanhado pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, rumou para o palácio
do Planalto. Levava consigo o deputado Ranieri Mazzilli, que,
como presidente da mara, seria o sucessor de Jango, caso a
República estivesse acéfala. Formaram a menor comitiva de
posse de um presidente da história republicana. Atravessaram a
praça dos Três Poderes nuns poucos automóveis e encontraram
o Planalto às escuras. O deputado Luiz Viana Filho subiu as
escadas com a ajuda de fósforos acesos [...]. A posse do
deputado Ranielli Mazzilli na Presidência era inconstitucional,
visto que João Goulart ainda se encontrava no Brasil. Preenchia,
60
TOLEDO, Caio Navarro. Ninguém assume que é reacionário. Caros Amigos, n. 26, o
Paulo, out. 2008, p. 4.
61
Brasil nunca mais: um relato para a história. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 53.
62
D‟ARJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio Ary Dillon e CASTRO, Celso. Visões do
golpe: a memória militar de 1964. Rio de Janeiro: Ediouro. 2004, p. 9.
35
contudo, a necessidade de um desfecho aparentemente legítimo
[...]. Enquanto Mazzilli tomava posse no Planalto, o Avro
ac2501 pousava em Porto Alegre com o presidente.
63
Como já frisamos, antes desse alvoroço político, as crônicas de Cony
tratavam de temas ligados a literatura, ao cinema, às artes, exceto política. Ele
sempre fez questão de demonstrar desprezo por política, daí ser considerado por
muitos, na época, como alienado. Ele próprio conta que, a princípio, não
pretendia dar seqüência a crônicas políticas: “Não tinha intenção de continuar
naquela linha, dei-me por satisfeito com aquela primeira crônica.
64
Porém, como atesta o cronista, saiu no dia seguinte, em jornais do Rio,
uma extensa matéria paga pedindo a prisão dos signatários do Manifesto do
Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI)
65
, que tivera origem no Comitê
Cultural do Partido Comunista. Para surpresa de Cony, o nome dele figurava
entre as dezenas de assinaturas. E ele contou como foi que assinou tal documento
datado de 7 de outubro de 1963:
Tomava cana rua Senador Dantas com o romancista Campos
de Carvalho quando vimos Jorge Amado e Eneida de Morais na
calçada. [...] Jorge tirou de uma sacola o texto do manifesto e
fez com que assinássemos. Fosse uma promissória, eu assinaria,
por amor ao Jorge e respeito a Eneida. Na realidade, nem sequer
passei os olhos pelo texto, sendo que Campos de Carvalho
tampouco se interessou pelo seu conteúdo.
E agora, meses depois, dois jornais pediam a prisão de todos os
signatários daquele documento, que, segundo o grupo de
democratas, faziam parte do esquema comunista de assalto ao
poder. Por isso, embora não quisesse me meter na seara potica,
escrevi no dia 7 de abril minha segunda crônica potica.
66
63
GASPARI, Elio, op. cit., p. 111 e 113.
64
CONY, Carlos Heitor. A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 29.
65
O intuito do Manifesto do CTI era uma convocação para a organização dos intelectuais
brasileiros em defesa da emancipação cultural e da luta política em conjunto com outras frentes
populares em favor de uma sociedade mais justa. O manifesto é datado de 7 de outubro de 1963.
Entre os signatários destacavam-se Jorge Amado, Ferreira Gullar, Ênio Silveira, Dias Gomes,
Nelson Werneck Sodré, Álvaro Lins, Janete Clair, Nara Leão, Chico Anísio, Oscar Niemeyer,
Glauber Rocha, Arnaldo Jabour e o próprio Cony.
66
CONY, Carlos Heitor. A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 38 e 39.
36
Em outro ato de bravura, Cony publicou o Manifesto do CTI em seu
espaço no Correio. Num preâmbulo, apelidou o movimento militar de 1964 de
“quartelada de 1. de abril.Em sua segunda crônica, “O sangue e a palhaçada”,
de 7 de abril, ele desabafou dizendo ter orgulho de seu nome aparecer no
Manifesto CTI, por se tratar de um movimento que luta por dias melhores, e que
não vê razão para alterar a opinião nele expressa, mesmo divergindo dele em
vários pontos: “pelo contrário. Tenho, mais do que nunca agora, a certeza de que
a sociedade brasileira precisa realmente de novas e melhores estruturas. Essa que
ai está o presta mesmo”.
67
Nessa mesma crônica, o jornalista ainda desafiou o
autoritarismo militar:
Não escrevo para ser lido por generais e acredito sinceramente
que eles, além de não me compreenderem, não gostariam de
minha literatura [...]. Não preciso de generosidade, da
complacência ou da omissão de quem quer que seja. Não pedirei
licença na praça da República ou na rua da Relação para
pensar.
68
Nem muito menos me orientarei pelos
pronunciamentos dos deres civis ou incivis do movimento
vitorioso. Acredito que posso me dar ao luxo de pensar com a
própria cabeça. Mais: acredito que cada qual deve ficar com a
própria cabeça em seu lugar. Não é hora para degolas nem
recuos. Quanto mais não seja, devemos evitar o sangue e a
palhaçada.
69
De uma vez por todas, após a publicação dessa crônica Cony se inseriu no
campo político. E é a essa postura assumida que Denis Benoît se refere como
engajamento. Em outras palavras, o próprio cronista atesta essa reviravolta em
sua vida: “A partir daquele momento, não tive dúvida sobre o que me competia
fazer. Muitos dos meus amigos estavam presos, asilados nas embaixadas ou
caíram na clandestinidade, deixando seus lares, mulheres e filhos na pior”.
70
À medida que os militares se consolidavam no governo, iniciou-se uma
violenta repressão aos setores mobilizados à esquerda, como a CGT, a UNE, as
Ligas Camponesas, a Ação Popular (AP) e grupos católicos como a Juventude
67
Idem, O ato e o fato, op. cit., p. 34.
68
Locais em que estavam sediados o Ministério da Guerra e o Dops.
69
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 34 e 35.
70
Idem, A revolução dos caranguejos, op. cit., p. 43.
37
Universitária Católica (JUC). Centenas de pessoas foram presas arbitrariamente.
Instalou-se a prática da tortura como instrumento para obtenção de informações e
como forma de punição. No Nordeste o líder comunista Gregório Bezerra, por
exemplo, foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife.
71
No dia 9 de abril foi baixado o Ato Institucional mero 1, mais
conhecido como AI-1. O ato previa a eleição indireta do presidente da República
e autorizava o presidente a cassar mandatos, direitos políticos e a suspender por
seis meses as garantias constitucionais, além de limitar os poderes do Congresso.
No dia 11 de abril, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a
presidência, depois de ter sido eleito por um Congresso totalmente
desconfigurado. Foi o primeiro dos cinco presidentes militares que comandaram
o país ao longo dos 21 anos de ditadura.
Cony não deixou por menos. Dois dias após a decretação do AI-1,
publicou a crônica “O ato e o fato”. Nesta, ele criticou duramente o AI-1 e
explicou o significado do título que também atribuiu à obra que reúne as crônicas
escritas em 1964.
Lendo o preâmbulo do Ato tive repugnância pelos seus redatores
[...]. Na realidade [ele] não foi editado. Foi simples e
tiranicamente imposto a uma Nação perplexa, sem armas e sem
líderes para a reação. Foi desprezivelmente imposto a um
Congresso emasculado.
O ato não foi um ato: foi um fato, fato lamentável, mas que,
justamente por ser um fato, já contém, em si, os germes do
antifato que criará o novo fato. [...]
Enfim, temos o Ato e o Fato. O Ato é esse mostrengo moral e
jurídico que empulhou o Congresso e manietou a Nação. O Fato
é que a prepotência de hoje, o arbítrio de hoje, a imbecilidade de
hoje, estão preparando, desde já, um dia melhor, sem ódio sem
medo. E esse dia, ainda que custe a chegar, ainda que chegue
para nossos filhos ou netos, terá justificado e sublimado o nosso
protesto e a nossa ira.
72
71
CASTRO, Celso. O golpe militar e a instauração do regime militar. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/Golpe64.htm>. Acesso em: 12 jun.
2007.
72
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 39 e 40.
38
No dia 10 de abril saiu uma lista contendo o nome de 102 pessoas
cassadas pelo regime, sendo 41 deputados federais. Entre os cidadãos
sobressaíam nomes como João Goulart, Jânio Quadros, Luiz Carlos Prestes,
Leonel Brizola, Miguel Arraes, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e Nelson Werneck
Sodré. Daí por diante as arbitrariedades do novo governo só aumentaram.
Cassações de direitos poticos, iniciadas com o primeiro Ato
Institucional, inquéritos policial-militares e processos
administrativos expurgaram das Forças Armadas e do serviço
público civil mais de dez mil pessoas. o havia lugar para os
milhares de presos e foi preciso encarcerar uma parte deles em
navios-presídios, no Rio e em Santos. Torturas e assassinatos
deram início ao terrorismo de Estado.
73
Passados alguns dias após o golpe, o Correio da Manhã assumiu
juntamente com Cony uma postura de defesa da democracia. no dia 15 de
abril, outro jornal carioca, Última Hora, também manifestou posição
expressamente contrária ao novo regime. E a partir de setembro do mesmo ano, o
Correio pôs-se a denunciar as torturas que se espalhavam pelo país.
Em 14 de abril, na crônica “A revolução dos caranguejos”, Cony criticou
duramente a tentativa dos militares em chamar o golpe de 64 de revolução,
utilizando-se de ironia e humor. Esse texto chegou inclusive a ser publicado em
vários jornais do exterior.
que o Alto Comando Militar insiste em chamar isso que ai
está de Revolução sejamos generosos: aceitemos a
classificação. Mas devemos completá-la: é uma Revolução, sim,
mas de caranguejos. Revolução que anda para trás. Que ignora a
época, a marcha da história, e tenta regredir ao governo Dutra,
ou mais longe ainda, aos tempos da Velha República [...].
Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é
uma revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum
pudor, sem sequer os disfarces legalistas que outrora
73
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. 2. ed. o Paulo: Ática, 1987, p. 70. Ainda em abril, o poder de censura começava a
mostrar sua face. Nesse s foram apreendidas as cópias do filme Deus e o diabo na terra do
sol, de Glauber Rocha, depois liberadas em 1965.
39
mascaravam os pronunciamentos militares. É o tacão. É a
espora. A força bruta. O coice.
Que os caranguejos continuem andando para trás. s
andaremos para a frente, apesar dos descaminhos e das ameaças.
Pois é na frente que encontraremos a nossa missão, o nosso
destino. É na frente que está a nossa glória.
74
Com decorrência disso, o cronista e sua família foram ameaçados de
seqüestro e agressão. Militares armados cercaram sua residência, e o jornalista
teve de procurar abrigo seguro para sua família antes de voltar a escrever. No
entanto o jornal não deixou de publicar a notícia das ameaças, e, paralelamente,
Cony apesar de naturalmente amedrontado, deu seqüência às críticas ferrenhas
contra o comando militar do país.
No dia seguinte o jornalista não publicou nenhuma crônica, porque ele e
sua família estavam escondidos em casa de amigos. Mas no outro dia saiu na
capa do jornal um editorial elaborado pela direção do Correio intitulado
“Ameaças e opiniões”. Nele lia-se:
Na tarde de onteontem, o nosso companheiro Carlos Heitor
Cony começou a ser ameaçado por um grupo que se intitulava
de oficiais do Exército”.[...]
Cerca de meia-noite, aumentavam os indícios de uma invasão ao
seu lar.
Em todo o dia de ontem as ameaças continuaram [...].
Carlos Heitor Cony além de nosso cronista, passou por diversos
postos de nossa redação: copidesque, repórter internacional,
editoralista e, atualmente, editor.
Nunca foi comunista. Nunca manteve vínculos administrativos,
políticos ou sociais com o governo deposto.
75
Mais recentemente, Cony comentou em entrevista o quanto temeu as
ameaças sofridas pelos militares depois que saiu a crônica dos caranguejos”:
Foi em 1964. Um dia que eu não estava em casa a pocia
invadiu meu apartamento. Eles bateram nas empregadas,
reviraram tudo chegaram a furar o teto, que era baixo, para ver
se não tinha arma. Quando cheguei e vi tudo aquilo, fiquei com
74
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 41-43.
75
Idem, ibidem, p. 44 e 45.
40
muito medo. Eu, na verdade, já vinha recebendo ameaças. Na
manhã seguinte, o telefone tocou, era do Correio da Manhã,
avisando que um grupo de militares iria me seqüestrar. Comecei
a tremer. Eu morava no quarto andar de um prédio em
Copacabana. Desci até o primeiro, pulei para o edifício vizinho
e fugi. Passei duas semanas escondido em casa de amigos.
76
O ato de ameaçar e aterrorizar quem se manifestasse contra o regime era
uma prática recorrente dos militares. Cony aproveitava-se da condição de
jornalista e dava o troco, utilizando seu espaço para registrar as ameaças. Foi
assim na crônica do dia 5 de maio, Cipós para todos”.
Por hoje chega. Aproveito esse final de crônica para dar um
recado às pessoas que me ameaçam, por carta ou por telefone:
sou um homem desarmado, não tenho guarda-costas nem medo.
Tenho, isso sim, uma obra literária que, bem ou mal, me dá
uma razoável sobrevivência. Esse o meu patrimônio, essa a
minha arma. Qualquer violência que pratiquem contra mim terá
um responsável certo: general Costa e Silva, Ministério da
Guerra, Rio e infelizmente Brasil.
77
Apesar de se classificar como “anarquista inofensivo”, Cony se
posicionava, então, politicamente, de forma explícita, em prol da democracia,
contra a ilegitimidade dos militares no poder estatal e em favor da ação pela
liberdade. Daí a analogia com a luta dos hebreus contra a opressão, presente em
Pessach.
Aparecem, ao longo das crônicas reunidas em O ato e o fato e também no
romance Pessach, comparações entre o governo militar brasileiro com outros
regimes ditos totalitários, como o de Mussolini, Hitler e Stálin. Essa postura que
envolvia o distanciamento das esquerdas institucionalizadas (como, por exemplo,
o PCB), rendeu-lhe até retaliações, como veremos adiante. Independentemente
de não se vincular a nenhum projeto político socialista/comunista, o cronista
tido como subversivo pela direita cobrava nesse momento um comportamento
mais claro dos intelectuais. Em “A hora dos intelectuais”, de 23 de maio, ele e
76
Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 52.
77
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 73.
41
Ferreira Gullar (essa crônica foi escrita a quatro mãos
78
) os convocavam a se
engajar na defesa da liberdade. E denunciavam a enorme interferência militar nos
redutos das idéias, como as universidades.
Acredito que é chegada a hora de os intelectuais tomarem
posição em face do regime opressor que se instalou no País.
Digo isso como um alerta e um estímulo aos que têm sobre os
ombros a responsabilidade de serem a consciência da sociedade.
[...]
Reitores são substituídos por ordem de militares. Professores são
destituídos de suas cátedras e presos. O pânico se generalizou
por todas as classes e por todas as cidades. A qualquer hora pode
bater um policial à sua porta e levá-lo sabem Deus e a Polícia
para onde [...]
Os intelectuais brasileiros precisam, urgente e inadiavelmente,
mostrar um pouco mais de coragem e de vergonha. Se os
intelectuais não se dispuseram a lutar agora talvez muito em
breve não tenham mais o que defender”.
79
Vale registrar, aqui, que alguns dos argumentos que compõem O ato e o
fato reaparecem no romance Pessach sob a forma de diálogos. Quando o
personagem Sílvio (no caso, um comunista) vai atrás do protagonista narrador
Paulo Simões para convencê-lo da necessidade do engajamento, o apelo clama
justamente pela urgência da ação contra a ditadura.
Paulo, você, como todos nós, está na encruzilhada. O país, a
humanidade, estão na encruzilhada. Só há duas atitudes: ou
ficamos sentados, à beira da estrada, sem tomar nenhum dos
caminhos, ou optamos por um deles. [...] Assim lhe restam
dois caminhos, que são a outra ponta da alternativa inicial. Pois
venho propor o meu caminho, que pode ser o nosso caminho:
numa palavra simples, pequena e perigosa: a luta.
80
78
Cf. idem, O ato e o fato: o som e a fúria das crônicas contra o golpe de 1964. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004. As demais referências a esta obra tomam por base a reedição da Civilização
Brasileira de 1979.
79
Idem, ibidem, p. 100-103.
80
Idem: Pessach: a travessia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 29 e 30. Logo se vê
que, embora Cony jamais tenha aderido a ideais comunistas, isso não o impedia de colocar na
boca desse personagem um comunista dissidente do PCB palavras de chamamento à
resistência, por mais que o autor e lvio pudessem divergir quanto à maneira concreta de lutar
contra a ditadura.
42
Não é irrelevante, para a compreensão de Pessach, perceber que o
engajamento do autor é anterior à produção desse romance. Cony, com suas
crônicas, ergueu a bandeira da luta política já em 1964. Já em Pessach a proposta
inicial da luta armada parte de um personagem que, no plano do enredo, diverge
da opinião do narrador e que, no desenrolar do romance ao ser forçado a
conviver com os militantes , acaba, de um modo ou de outro, aderindo à
resistência armada.
Outra questão abordada por Cony que aparece tanto nas crônicas quanto
em Pessach é a denúncia da tortura cometida pelos militares. No jornal, ele
criticou a prática da tortura, que muitas vezes lhe era relatada por leitores por
meio de cartas.
81
No livro, essas denúncias aparecem nos relatos dos
personagens. Am disso, o líder dos militantes, Macedo, tem em seu rosto e em
sua história as marcas dessa violência.
O tratamento dado por militares aos presos políticos era deplorável, quer
fossem: homens, mulheres, idosos ou grávidas. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos, assinada pelo Brasil, era ignorada, como se relata na obra:
Brasil: nunca mais, dedicada a pôr a nu as torturas perpretadas pelo governo
militar.
Em vinte anos de Regime Militar, este princípio foi ignorado
pelas autoridades brasileiras. A pesquisa revelou quase uma
centena de modos diferentes de tortura, mediante agressão
física, pressão psicológica e utilização dos mais variados
instrumentos, aplicados aos presos poticos brasileiros. A
documentação processual recolhida revela com riqueza de
detalhes essa ação criminosa exercida sob auspício do Estado.
82
A disposição de Cony em opor-se abertamente ao governo logo acarretou-
lhe, além das ameaças, um processo movido pelo então ministro da Guerra
Arthur da Costa e Silva, que veio a ser presidente entre 1967 e 1969. O jornalista
e escritor Fernando Jorge, atesta em sua obra Cale a boca, jornalista! a
insatisfação que a ação de Cony produzia no meio militar, com a ressalva de que,
81
Cf. CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 102.
82
Brasil nunca mais, op. cit., p. 34.
43
pelo fato de ser jornalista e não político, ele acabou escapando de uma punição
no momento em que o então presidente Castelo Branco topou com a sugestão de
incluí-lo numa lista de cassações e decidiu poupá-lo.
O destemor, a sinceridade, a honestidade do jornalista, por outro
lado, incomodavam o pessoal da „linha dura‟, pouco disposto a
ler comentários desfavoráveis. É fato insofismável: Cony não
era deputado ou senador. Portanto o marechal cometeu um erro,
quando declarou que não via motivos para cassar-lhe o
mandato‟.
83
O nome de Costa e Silva aparece freqüentemente nas crônicas entre os
protagonistas das barbáries, a exemplo de “A afronta e o latrocínio”, publicada
em 28 de maio. Nesta, o cronista comentou uma entrevista do então ministro da
Guerra: “Foi um espetáculo deprimente a entrevista do honrado ministro da
Guerra em São Paulo. Metade mico, metade infantil, e integramente
agramatical, o nobre senhor Costa e Silva fez um strip-tease mental, cívico e
político que deixa muito mal a chamada Revolução”. Nessa entrevista, Costa e
Silva apresentou mapas e fotografias que seriam de conteúdo subversivo. Cony
não economizou críticas:
eu poderia escrever dias e dias sobre as ingenuidades poticas,
as tolices ideológicas e a nenhuma cultura do nobre der
revolucionário. Mas prefiro responder à parte que diretamente
me tocou: a da liberdade da cultura e da minha liberdade
pessoal.
Disse o general que as academias e faculdades estão
funcionando. No regime hitlerista, no regime fascista, na URSS
de Stalin, em Portugal, na Espanha, as academias e Faculdades
também funcionaram e funcionam: os tiranos chegam até a ser
admitidos nas academias e recebem grau honoris causa das
faculdades. Porque o terror ideológico não é formal: é
substancial. O pânico gera a covardia e os tiranos acabam sendo
aceitos, tolerados ou endeusados. o me causará surpresa se o
general Costa e Silva ou o seu colega Mourão [Filho] forem
homenageados ou admitidos em academias ou em faculdades. O
estado policial-militar faz dessas coisas.
84
83
JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 181.
84
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 108.
44
Durante a entrevista, Costa e Silva se referiu a Cony em tom de ameaça. O
recado foi entendido pelo jornalista e respondido na crônica seguinte:
Pergunto se há liberdade de cultura sociológica. Pergunto se
liberdade, mas liberdade mesmo de todos dizerem o que
pensam. Para responder talvez inconscientemente a essas
perguntas, o general argumentou com aquilo que me pareceu
uma alusão pessoal: “Há um cronista que diariamente são
palavras suas destila peçonha sobre a minha cabeça. E
acrescentou o general: E esse homem está em liberdade, e
enquanto eu sou ministro da Guerra ele é um simples cronista.
Bom, minha liberdade independe do favor do honrado ministro
da Guerra. Sou livre e serei livre sem depender de ninguém,
muito menos de um homem que é capaz de confundir latrocínio
com laticínio. Minha liberdade sica o pode ser violentada
[...].
Quanto ao valor que o general dá a seu próprio cargo, saiba: dou
muito mais valor à minha própria pessoa. Eu tenho uma obra,
Sr. ministro, que por algum tempo será discutida, lembrada,
amada ou odiada. Mas tenho. E que é que o Sr. tem, além da
farda que as traças roem?[...]
Numa palavra: vimos um homem honrado, sincero, desprovido
de qualquer malícia, um homem puro, dar um vexame público.
Acreditamos que o general Costa e Silva precisa de melhores e
mais hábeis conselheiros.
85
No decorrer do processo que Costa e Silva moveu contra o jornalista, o dia
da audiência foi o tema da crônica publicada em 8 de setembro, “Na cova do
leão”.
Hoje, às 10 horas, cumprindo intimação do juiz da 12. Vara
Criminal, irei ao gabinete do senhor ministro da Guerra para
presenciar, de corpo e protesto presentes, o depoimento daquela
autoridade contra a minha pessoa [...].
Espero que tudo corra bem, dentro das normas civilizadas que
fizeram nascer a Justiça, o Direito [...].
De minha parte reservo-me ao prazer e ao dever de responder a
qualquer violência moral que me seja cometida [...].
Sou processado por artigos que aqui escrevi, em tiragens
compactas de milhares de exemplares [...].
No instante em que sou levado aos tribunais, em condições
adversas, visitando o leão em sua cova, exijo respeito do
adversário [...].
85
Idem, ibidem, p. 108 e 109.
45
Irei a seu gabinete de cabeça erguida. E de cabeça erguida de
sairei. A História muitas voltas e em curto ou longo prazo
o forte de hoje poderá ser o pigmeu de amanhã.
86
E ele foi ao gabinete de Costa e Silva. É fato que os leitores, na época,
estiveram ansiosos pela crônica do dia seguinte. Se é que haveria crônica no
outro dia, talvez pensassem. E houve. Seu título: “Maomé e a montanha”.
Poderia iniciar esta crônica dizendo que afrontei o general Costa
e Silva na última terça-feira. Seria inverdade. Fui a seu gabinete
na qualidade de acusado de um crime contra a segurança do
Estado. Para isso, o general usou de todo o peso de seu atual
cargo: fez a montanha ir a Maomé, em vez de Maomé ir à
montanha [...]
O general é um homem baixo, mais feio do que parece pelas
fotografias, mas quando começa a falar adquire uma certa
simpatia, um calor humano que o torna respeitável e quase
bonito [...]. Estendeu-me a mão, apresentando-se:
General Costa e Silva!
Respondi no mesmo tom:
Jornalista Cony! [...]
Nada do que o general disse no processo causou-me estranheza.
Exceto, talvez, o fato de que meus artigos são transcritos em
diversos jornais do País. Vou pedir, mais tarde, quando passar
essa onda, que o general-ministro da Guerra me o nome e o
endereço desses jornais. Vivo disso e tenho de receber a vil
pecúnia pelo meu trabalho. É com essa vil pecúnia que pago o
leite e o colégio das minhas filhas.
87
Abramos um parênteses para lembrar que, em entrevista concedida a
Gustavo Previdi, em 2006, Cony comentou os processos e o encontro pessoal que
teve contra Costa e Silva:
Fui o único jornalista daquela época que foi processado [...]. Fui
preso seis vezes, sem ser da esquerda. Imagina se fosse. Eu
peguei um processo com o Costa e Silva, que foi duro, tive que
passar um ano e meio fora do país. Não tinha condições de
trabalho aqui. Disso não estou arrependido. Estou arrependido
pelo seguinte: o Brasil não aprendeu nada com isso.
88
86
Idem, ibidem, p. 158-160.
87
Idem, ibidem, p. 161 e 162.
88
PREVIDI, Gustavo, op. cit.
46
Fechado o parênteses, próximo do final de 1964 Cony diminui o teor
político das crônicas, retomando outros temas de costume. Na crônica
Compromisso e alienação”, datada de 2 de novembro, ele admitiu que era
sempre cobrado pelos leitores sobre os motivos que o levaram a esse
redirecionamento de seus textos.
Escrevi sobre a situação nacional numa hora em que a potica
era secundária. [...] Como homem, como escritor, não podia
ficar alienado aos descalabros de abril e meses seguintes. Não
me violentei. Não fiz potica. Fiz o que sempre pretendi fazer:
dei o meu testemunho.
A situação, em substância, não se modificou. Mas hoje há
cintilantes escribas em todo País, há poticos profissionais e
amadores, há donas de casa e estudantes que já fazem a mesma
coisa, e com maior brilho: dão o seu testemunho. [...]
Creio que posso me dar ao direito de ter cumprido um dever
para comigo mesmo. Ênio Silveira [...] define-me perfeitamente
ao classificar-me de “lobo solitário, de feroz individualismo”.
Sou assim, fui assim e continuarei assim [...] Continuo assim.
Sei pegar num fuzil e sei contra quem devo atirar. Ninguém me
mudou. Acima de qualquer compromisso para com a Pátria ou
para com o povo, tenho um compromisso para comigo mesmo.
89
E Cony justificou tempos depois, em 4 de janeiro de 1979 trecho que foi
acrescentado a obra O ato e o fato, relançada em 1979 que nessa crônica ele
encerrou um ciclo de sua vida:
Mas ao escrever a crônica citada, dei por terminada minha
metrica aparição no jornalismo potico. havia então
numerosos escribas de melhor porte, que com maior técnica e
mais acurada sensibilidade cumpririam o dignificante papel de
consciência social no triste momento de nossa história.
90
Consta ainda das ginas finais da obra, um texto muito oportuno, em se
tratando de 1964 intitulado “Uma palavra ainda, no qual o autor transmite
uma mensagem de esperança e de dias melhores à nação brasileira:
89
CONY, Carlos Heitor, O ato e o fato, op. cit., p. 170 e 171.
90
Idem, ibidem, p. 12.
47
Aqui acaba o livro. Mas a luta ainda não acabou. O povo
brasileiro continua sem caminhos, sem líderes, sem soluções
[...]. Não queria terminar este livro sem uma palavra de
esperança. Que cada qual mantenha-se à tona, lutando para
evitar o naufrágio total e irrecuperável.
91
O livro O ato e o fato foi lançado ainda em 1964, organizado por Ênio
Silveira, editor da Civilização Brasileira, a quem coube a definição do seu título.
A primeira edição esgotou-se rapidamente. Aos olhos da história, essa obra
situa-se como uma importante referência do jornalismo e da produção cultural
que reagiu ao golpe de 1964. Lê-lo foi, e ainda é, uma maneira de tomar
conhecimento de parte do que se passou naqueles dias de governo discricionário.
No dizer de seu autor, a obra:
São as minhas crônicas do Correio da Manhã que a Civilização
Brasileira reuniu num livro [...] Não mexi nada [...].É preciso
dizer que não sou político, não tenho uma atuação potica. E
o sou homem de esquerda, nem de direita, nem de centro.
Detesto o centro, detesto a direita, acho a esquerda um
aglomerado de imbecis. [...]. Eu sou um anarquista inofensivo, e
se a esquerda tivesse dado o golpe e cometido a mesma
truculência da direita eu estaria do outro lado. Eu vi violência,
meus amigos todos na cadeia, pessoal indo para o exílio, pessoal
escondido e eu achei que era uma coisa anti-humana, e daí a
minha veemência.
92
Para muitos que viveram o período pós-golpe, o que Cony escrevia no
Correio da Man não foi em vão. Ao se referir ao tempestuoso abril de 1964,
Luiz Fernando Veríssimo relembrou o efeito das crônicas diárias de Cony:
Lembro que naqueles tristes dias ler o Cony no Correio da
Manhã era, ao mesmo tempo, um ato de rebeldia seguro [...] O
Cony dizia o que queríamos dizer. O Cony era a nossa barricada
moral. Foi através do Cony que não ficamos quietos. [...] na
época em que a frase leu o Cony hoje?‟ virou uma espécie de
senha dos inconformados.
93
91
Idem, ibidem, p. 186 e 187.
92
PREVIDI, Gustavo, op, cit.
93
Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 30
48
CAPÍTULO II: O INTELECTUAL EM
TRANSE... A CULTURA EM ÊXTASE
À aborrecida fascinação de uma arte fria, indiferente,
contempladora do espelho, preferimos uma arte quente,
que celebra a aventura humana no mundo e nela
participa, uma arte irremediavelmente apaixonada e
briguenta.
Eduardo Galeano
49
2.1 Intelectuais engajados em ação
O alvoroço social dos anos 60 foi caracterizado por uma intensa agitação
cultural em muitas partes do mundo. No decorrer dessa década houve um
processo de afloramento cultural, produzido principalmente por uma parcela da
juventude que se manifestava com maior vigor, expressando seus valores
próprios. Temas como feminismo, combate ao racismo, revolução e
antiautoritarismo passaram a compor o universo dessa camada que rompeu
barreiras e marcou presença na vida política.
No Brasil, essa década representou no campo cultural a época da canção
de protesto, dos festivais de música, da bossa nova, do tropicalismo, do cinema
novo, do teatro de arena e do ressurgimento da literatura comprometida. Nas
palavras de Roberto Schwarz, no pré-64 o país estava irreconhecivelmente
inteligente.”
94
Nesse período, a politização das massas se tornou o terreno fértil
sobre o qual frutificaram iniciativas de cultura popular como nunca havia
ocorrido em épocas anteriores.
95
A causa política era a matéria-prima da
produção artística. Conforme a posição que assumiam e/ou deixavam de assumir,
os artistas eram classificados como alienados ou engajados.
Já depois do golpe e notadamente até 1968, à medida que o governo
militar buscava reprimir manifestações políticas, a sociedade assistiu no campo
cultural a uma fase de grande desenvolvimento que reproduzia na arte o clima
tenso da política. É a fase que Marcelo Ridenti chamou de a canção do homem
enquanto seu lobo não vem.”
96
Ele aponta que o processo de endurecimento do
regime gerou entre artistas e intelectuais o dilema „entre a pena e o fuzil, isto é,
uma cisão fáustica entre desenvolver sua ocupação específica ou participar do
94
Apud RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993, p.
93.
95
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 48.
96
RIDENTI, Marcelo, op. cit., p. 73.
50
processo de transformação social mais amplo”.
97
Nesse contexto, a arte
revolucionaria”, no dizer de vários autores, convertia intelectuais à militância,
transformando a batalha cultural em frentes de resistência.
Em relação a isso, visões divergentes acerca do universo político
cultural daquela época. Renato Franco retomando Roberto Schwarz concorda
que surgia “uma anomalia na vida do país, uma vez que a esquerda passou a
deter a hegemonia da vida cultural enquanto a direita detinha a vida política.
98
Indo de encontro a essa premissa, Marcelo Ridenti buscou na análise de Marilena
Chaui os argumentos para contestar a dita hegemonia cultural de esquerda.
Cabe dizer, então, que jamais houve uma hegemonia cultural de
esquerda na sociedade brasileira, como poderia sugerir uma
leitura menos aberta do artigo de Roberto Schwarz.
99
No
máximo, esboçou-se a gestação de uma hegemonia alternativa,
ou contra-hegemonia, que acabou sendo quase totalmente
abortada e incorporada desfiguradamente pela ordem vigente.
100
E, com o passar do tempo, o que se evidenciou foi que “eles venceram,
como frisa Tânia Pellegrini, ao reconhecer que prevaleceu
um projeto modernizante, mas conservador, que valorizava a
competência técnica, a fatura, a forma dos artefatos culturais e,
sobretudo, a sua inserção definitiva no circuito do mercado [...]
E esse projeto, que antes existia enquanto “promessa”, começou
97
RIDENTI, Marcelo. Intelectuais e artistas brasileiros nos anos 1960/70: entre a pena e o
fuzil. In: ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte. v. 9 n. 14, Uberlândia, Edufu, CNPq
e Capes, jan.-jun. 2007, p. 186.
98
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: à festa. São Paulo: Unesp, 1998, p.
27 e 28.
99
Ridenti alude, aqui, ao famoso artigo Cultura e política, 1964-1969, republicado em
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.
100
RIDENTI, Marcelo, op. cit., p. 91 e 92. Ridenti apresenta como exemplo o todo de
alfabetização de Paulo Freire, que, “uma vez despolitizado, transformou-se desfiguradamente no
Mobral, peça-chave para conformar os deserdados à nova ordem do regime militar. (p. 91).
Neste ponto se pode perceber a circularidade ideológico-cultural a que se refere Adalberto
Paranhos, ao acentuar que o que importa destacar [...], ao contrário do que fazem as
interpretações mais simplistas sobre os processos de dominação ideológica, é justamente a
influência exercida pelas ideologias dominadas na produção das ideologias dominantes e/ou
oficiais” PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no
Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999, p. 21.
51
efetivamente a confirmar-se a partir de 1964, com o golpe. Isso
porque o governo militar instaurou um processo de consolidação
de um setor industrial moderno para a economia do país, que
incluía a penetração de capitais externos associados a empresas
brasileiras, visando inserir o país no circuito do capitalismo
internacional.
101
O que importa ressaltar, contudo, nesta dissertação, é que entre 1967 e 68
certos romances captavam a insatisfação que a imposição de ditadura gerava ao
transformar a cena político-social brasileira. E, nesse contexto, Quarup e
Pessach: a travessia, sintetizam essa mudança.”
102
As duas obras representam
bem o engajamento intelectual a que Denis Benoît se refere.
103
Segundo Malcolm
Silverman foram os ficcionistas s-64, “paradoxalmente, que melhor puderam
comunicar a dura realidade, as notícias que, por longo do tempo, ficaram
oficialmente abafadas.”
104
E mais:
fizeram-se notar pelo modo como documentam conspicuamente
os abusos governamentais, desdenham sua imoralidade e
oferecem uma solução revolucioria todos temas
expressamente políticos. Porem, tais atributos vêm junto com
visões criativas e multifacetadas da identidade nacional e
intenso memorialismo.
105
Quarup, de Antônio Callado, foi lançado em 1967 antes de Pessach
pela Civilização Brasileira. O romance, apesar de não ter tido o impacto social de
Pessach, também continua a ser referência obrigatória para se compreender a
literatura engajada nos anos 60.
A obra de Callado narra a trajetória do ex-padre Nando, que aos poucos
sofre um processo de transformação pessoal. Do convento, Nando parte para o
101
PELLEGRINI, nia. A produção cultural brasileira e o golpe de 1964: Comunicare: São
Paulo, Fundação Casper Líbero, 2004, p. 111.
102
FRANCO, Renato, op. cit., p. 50.
103
Para Lígia Leite, tanto Cony como Callado, se afirmam como sujeitos ativos “na vida
cotidiana, de ões políticas, decidiram participar por meio de romances, obedecendo a uma
intuição, a de situar em termos ficção a fase que estamos atravessando.” LEITE, Ligia Chiappini
Moraes. Quando a pátria viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. o Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 140.
104
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. Porto Alegre: Editoras da
UFRGS e da UFSCar, 1995, p. 21.
105
Idem, ibidem, p. 185.
52
Xingu a fim de fundar uma prelazia. Lá convive com índios que preparavam uma
grande festa, o quarup, que seria uma homenagem aos antepassados. Mas esse
ritual que incluía antropofagia como modo de incorporar virtudes não chega a
se realizar, pelo menos diante dos leitores, pois, com o suicídio de Getúlio
Vargas, desfaz-se a infra-estrutura do posto indigenista.
Em Quarup várias “travessias”. O protagonista primeiro descobre a
atração amorosa e carnal pelas mulheres, pelo exótico e erótico, o que o conduz
até Francisca. O romance compõe um itinerário que parte do Rio de Janeiro,
passa por Pernambuco e pelo Sul até Goiás. Porém, essa jornada talvez seja
muito mais interior do que geográfica. O ex-padre envolve-se com movimentos
camponeses, encontra-se e se desencontra ao longo do relacionamento com
Francisca, que morre enquanto Jânio renunciava em Brasília.
Quando volta a Recife, o protagonista participa de programas de
alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire. Contudo, ao ser desfechado o
golpe de 1964, Nando é preso e torturado devido ao seu apoio ao governo de
Miguel Arraes. Nessa conjuntura, Nando encarna o espírito do amigo e
guerrilheiro morto Levindo e adota seu nome. Acompanhado, então, de outro
amigo, Manuel Tropeiro, e seus homens, ruma para o interior do país, de onde
deflagrariam a luta social. É conversão do intelectual à militância, presente em
Quarup.
106
Ao discorrer sobre o livro, Marcelo Ridenti observa que
O romance de Callado fazia a profecia da aliança entre o povo e
os intelectuais, corporificada na guerrilha rural a ser deflagrada,
na perspectiva típica daqueles que pegaram em armas contra a
ditadura. Talvez hoje se possa dizer, olhando o passado, que
essa visão era um tanto idealizada, otimista, utópica, idílica,
romântica, enfim.
107
106
Ferreira Gullar concedeu grande atenção à obra de Callado e definiu a jornada do religioso
como um processo de “deseducação”. E foi mais ou menos assim que intitulou uma resenha
crítica escrita na Revista Civilização Brasileira sobre o romance: “Quarup, ou ensaio de
deseducação para brasileiro virar gente.” Cf. RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução
brasileira. op. cit., p. 102.
107
Idem, ibidem, p. 103.
53
Para além do campo das letras, o tom político estava presente na área
musical. Como mensagem política, várias canções exprimiam muitas das idéias
que animavam os estudantes universitários em suas manifestações, afirmando-se
como instrumento de resistência ao regime autoritário. Nesse ambiente,
desenvolveu-se uma música popular engajada, com mensagem explícita, direta,
que incentivava a luta social. A chamada música de protesto teve como
representantes, entre outros, compositores e intérpretes como Edu Lobo, Geraldo
Vandré, Carlos Lyra, Sidney Miller, Sergio Ricardo e Elis Regina.
108
No cinema dois filmes são bastante claros quanto à perspectiva de luta: O
desafio, de Paulo César Saraceni
109
, e Terra em transe
110
de Glauber Rocha. No
primeiro, o personagem central, Marcelo, aparece na pele de um jornalista que
vive sob o sufoco da instauração do regime militar e que, em conseqüência disso,
fica dividido entre o amor e a responsabilidade que sente de agir. Marcelo busca
ao longo da trama convencer os demais personagens da necessidade da ação. O
filme tenta despertar no espectador a mesma reação.
Em Terra em transe, o protagonista Paulo Martins, também jornalista,
além de poeta, integra um governo populista e procura, a seu modo, conscientizar
o povo da necessidade do desencadeamento da luta. Todavia, o personagem é
morto, e a mensagem que fica ao final é a mesma de O desafio, a necessidade da
ação. Em outras palavras é preciso lutar contra a ditadura. O relato da
personagem Sara descreve seu persistente engajamento:
Eu fui lançada no coração do meu tempo. Eu levantei nas praças
meu primeiro cartaz. E eles vieram, fizeram fogo, amigos
morreram, me prenderam. Me deixaram muitos dias numa cela
imunda, com ratos mortos, me deram choques elétricos. Me
seviciaram e me libertaram com as marcas. E mesmo assim eu
108
Registre-se, aqui, sem entrarmos no mérito da questão até porque foge aos propósitos desta
dissertação que as canções populares que se produziam nessa linha foram apontadas por
Walnice Galvão como tendo por resultado concreto um efeito compensatório/consolador à
maneira do provérbio quem canta seus males espanta”. Ver o ensaio MMPB: uma análise
ideológica, de GALVÃO, Walnice Nogueira. Saco de gatos: ensaios críticos. 2. ed. São Paulo:
Duas Cidades, 1976.
109
SARACENI, Paulo César. O desafio, 1965.
110
ROCHA, Glauber. Terra em transe, 1965.
54
levei meu segundo, terceiros e sempre cartazes e panfletos. E
nunca por orgulho. Era uma coisa maior. Em nome da lógica dos
meus sentimentos!
111
Glauber Rocha talvez seja o principal responsável pelo sucesso do cinema
novo. Antes do golpe, ainda em 64, havia lançado Deus e o diabo na terra do sol.
Em geral, suas produções pretendiam abrir os olhos do público para questões
sociais e políticas. Terra em transe “parece propor [o engajamento na] luta, no
final, por meio da cena da metralhadora erguida talvez não por acaso, quase a
mesma imagem conclusiva do romance de Cony.”
112
Juntamente com Cony, Glauber Rocha, além de Joaquim Pedro de
Andrade, Mario Carneiro, o diretor teatral Flávio Rangel, os jornalistas Antônio
Callado, Márcio Moreira Alves e o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues
haviam sido presos em 1965 por protestarem em frente ao Hotel Glória, no bairro
da Glória, no Rio de Janeiro, contra a ditadura bem diante de autoridades
internacionais. O episódio que resultou na primeira das seis prisões de Cony,
ficou conhecido como Oito da Glória. É curioso que esse caso, que havia sido
relatado por Cony na sua coluna Da arte de falar mal, reapareça em Pessach
como uma crítica formulada pelo editor para quem Cony trabalha , desiludido
com atitudes consideradas aventureiras:
Veja o caso do Hotel Glória. Uma atitude muito bonita, nove
camaradas vão lá, vaiam o marechal, vão para a cadeia, comem
queijos franceses na prisão, são notícia de jornal, provocam
manifestos, são soltos, nada aconteceu. Apenas enriqueceram a
biografia pessoal de cada um. E daí?
113
Difícil afirmar a quem pertence essa ironia. Se ao personagem (o editor)
ou ao próprio Cony, que, anos mais tarde, admitiu que eles receberam na prisão
um tratamento diferenciado.
111
In: idem, ibidem.
112
FRANCO, Renato, op. cit., p. 64.
113
CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p. 101.
55
O oficial de dia nos chamou aos pares, ele [Glauber Rocha] e eu
fomos os primeiros a ser fichados. A inspeção preliminar
consistiu num vexame. Ficamos nus, segurando nossas roupas e
sapatos, em posão de sentido. Essa cerimônia segundo me
explicarão depois ajudava a desmoronar o que restava do
moral dos presos. Ainda estávamos nus, olhando um para o
outro, e sendo examinados pelo oficial de dia, quando o telefone
tocou. Era alguém do Ministério da Justiça recomendando que
tivéssemos um tratamento diferenciado dos demais prisioneiros.
Os outros foram dispensados da cerimônia.
114
Isso mostra que os intelectuais ainda eram encarados com outros olhos
pela nascente ditadura. Afinal, eles não eram, nem de longe, o alvo privilegiado
dos golpistas. Segundo Malcolm Silverman, “não deveria ser nenhuma surpresa,
portanto, que a literatura socialmente engajada (mas não o teatro) permanecesse
largamente isenta de censura, embora não de cooptação, nos anos seguintes a
1964
115
, até devido à pouca tradição de leitura e leitores no país. Logo, tem
razão Tânia Pellegrini ao ressaltar que entre 1964 e 1968 o alto comando militar
estava muito mais preocupado em cortar as cabeças” das lideranças sindicais e
impedir que movimentos de esquerda se estabelecessem do que combater as
manifestações e produções culturais, que até então não representavam um
inimigo muito ameaçador.
116
Essa postura foi o que permitia que ainda fossem veiculados “materiais
subversivos”, ou que Carlos Heitor Cony metralhasse suas críticas aos militares,
ou ainda que Nara Leão cantasse “podem me prender, podem me bater, que eu
não mudo de opinião”.
117
E se a arte comprometida não era combatida com tanto
vigor, o processo de engajamento artístico ia se tornando a válvula de escape de
resistência cada vez mais audaciosa.
A cultura conheceu (por volta de 1967-1968) um maior grau de
radicalização política. Ela passou, então, com grande rapidez, a
114
ALMEIDA, Maria Hermínia. Tavares de e WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: cotidiano
da oposição de classe média ao regime militar. In: NOVAIS, Fernando e SCHWARCZ, Lilia M.
(coords.). História da vida privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea, vol. 4.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 390.
115
SILVERMAN, Malcolm, op. cit., p. 22.
116
Cf. PELLEGRINI, Tânia, op. cit., p. 112.
117
Idem, ibidem, p. 113.
56
tematizar aquela que seria a questão básica: a revisão do papel
do intelectual (e do artista), que, por sua vez, implicava a
tematização de sua própria conversão.
118
Daí que a produção cultural do anos 60 constituía, sem vida, importante
espaço de circulação de idéias que nos permitem compreender, muito além da
arte em si, o momento histórico daquela sociedade, quando a tendência ao
engajamento ajudou a criar um caldo de cultura que, direta ou indiretamente,
incentivou uma parcela dos críticos da ditadura a pegar em armas.
118
FRANCO, Renato, op. cit. p. 46.
57
2.2 Literatura comprometida: Pessach: a travessia
Acima de qualquer compromisso para com a
Pátria ou para com o povo, tenho um
compromisso para comigo mesmo. E é em
nome desse compromisso que continuarei
sendo o que sou, independente do aplauso,
da vaia, da glória ou da miséria.
Carlos Heitor Cony
O romance Pessach: a travessia, de 1967 foi lançado e reeditado em
1975 pela editora Civilização Brasileira. Ambas as edições têm início com a
informação “Hoje faço quarenta anos”, sem mencionar a data. a terceira
edição, de 1997, da Companhia das Letras, traz na abertura “Hoje, 14 de março
de 1966, faço quarenta anos.” O que nos leva a crer que, após o período da
ditadura, o escritor optou por assumir, de maneira mais evidente, o caráter
parcialmente autobiográfico da obra. A data de aniversário do protagonista Paulo
Simões, 14 de março de 1966, não por acaso assinala exatamente a passagem do
40. aniversário de Cony. Existem na obra várias referências que confundem o
autor com o personagem narrador: além da profissão de jornalista, os dois
cultivam hábitos semelhantes, que vão do uso do cachimbo até o relato de
algumas de suas manias.
Quando Cony descreve a fisionomia de Paulo, a semelhança entre o autor
e o protagonista é evidente:
A cara é mais ou menos indecifrável, sinto nela, misturadas e
diluídas, as minhas origens evidentes ou clandestinas: o olhar de
cigano, o nariz de judeu. Para complicar, tenho o bigode, que vai
58
se tornando mais espesso e vasto, dando-me a aparência de vilão
mexicano, traficante de cocaína, sei lá.
119
Ao ser questionado sobre de onde partiu a idéia de escrever Pessach,
Cony alegou uma inquietação pessoal. Justificou que, diante da crescente onda
repressora dos militares, ainda em 1966, estava curioso para supor o quadro que
se estabeleceria caso militantes do PCB decidissem por conta própria partir para
a luta armada, contrariando as teses do Partidão. E acrescentou:
Em 67, saíram três obras sobre o tema da guerrilha, da luta
armada como horizonte de resolução da crise potica. “Quarup”,
do Antônio Callado, "Terra em Transe", do Glauber Rocha, e o
meu livro, Pessach”. O caminho das armas era lembrado como
solução extrema. Cada um pegou o tema de uma maneira.
120
Segundo Renato Franco, Pessach representa uma vertente política
característica do momento de sua produção. A obra compõe o que ele chama de
“romance de impulso político”, que seria o momento de revolta” contra a nova
ordem então instaurada.
Contudo, os romances brasileiros pós-64 tenderam, em alguns
casos, a desenvolver, pressionados tanto pela conjuntura potica
quanto pelas peculiaridades de nosso processo de modernização,
o que poderíamos denominar de uma espécie de “linguagem de
prontio”, adaptando uma expressão original de Walter
Benjamin.
121
No romance, logo de cara Paulo atesta sua condição de pequeno-burguês:
Tudo corre bem. Não tenho amigos nem dívidas duas coisas
que incomodam. Laura [ex-mulher] portou-se com muita
dignidade, renunciou à pensão que eu lhe pagava, antes de
casar outra vez. Meus livros vendem bem, para manter um
padrão de vida simples e confortável. Os críticos não chegaram
119
CONY, Carlos Heitor, op. cit., p. 16.
120
SILVA, Fernando de Barros e. Na prisão com Glauber e Callado (entrevista). Folha de S.
Paulo, 28 jul. 1996.
121
FRANCO, Renato, op. cit., p. 41.
59
a um acordo sobre aquilo que com alguma imodéstia poderia
chamar de “minha obra”. Mas isso é problema deles.
122
Entre outros temas e personagens de sua vida, está o relacionamento que
o escritor nutre com sua amante Teresa, a filha, Ana Maria, de dezesseis anos,
que estuda em um colégio interno de freiras, e Laura. Completam o enredo, os
personagens do núcleo revolucionário, entre eles, Sílvio, um amigo dos tempos
do serviço militar no CPOR (Curso de Preparação de Oficiais da Reserva); Vera,
uma jovem de classe média, filha de diplomata e ex-militante do PCB; Boneca,
militante homossexual, que, juntamente com outro companheiro ferido, é
responsável pela viajem que Paulo faz a Resende, onde se situa o esconderijo do
grupo subversivo; Macedo, líder do grupo, e Débora, médica que presta
assistência aos feridos na fazenda na qual todos se escondem, e que tem um caso
com Paulo.
A tranqüilidade pequeno-burguesa de Paulo é interrompida pelo que
ele chama de “caso Sílvio”. Havia dias que Sílvio o procurava para uma conversa
séria. Paulo sabia que Sílvio era envolvido com organizações subversivas,
talvez por isso até previsse o teor do diálogo, que ele buscara evitar. Mesmo
assim, após um telefonema esperava por Silvio.
Já no apartamento do escritor, Sílvio não perdeu a oportunidade de criticar
a atitude por ele considerada passiva e burguesa de Paulo diante da conjuntura
política daquele período (princípio de 1966). Sílvio observa as prateleiras de
livros de Paulo, tachando-o de corrompido. O escritor, por sua vez, também não
deixa de notar que o amigo, apesar de revolucionário, mantinha um visual
tradicionalmente burguês, de calça, gravata e camisa social. E não se tratava de
um disfarce, mas um estilo de vida mesmo.
Ao longo da conversa, Sílvio anuncia que convidou mais uma pessoa que
estava para chegar, Vera. Como quem dá as cartas, Sílvio faz uma ressalva: vou
expor o método de nossa conversa. Eu falarei. Você ouvirá. Vera será
122
CONY, Carlos Heitor, op. cit., p. 7.
60
testemunha. Depois, fala você, eu ouço.”
123
Depois de um breve perambulo, ele
vai direto ao ponto e propõe a Paulo, “numa palavra simples, pequena e perigosa,
a luta.
124
Paulo ameaça um movimento de quem vai interromper aquela
pregação que lhe parece fastidiosa, mas é previamente contido por Sílvio, que
termina fazendo uma de análise da situação do país:
Para resumir, apenas enumerando os problemas mais agudos,
vai: supressão das liberdades blicas e individuais,
empobrecimento brutal das classes médias, a faixa maior da
população vivendo na miséria absoluta, degradação da pessoa
humana, violências policiais, torturas, assassínios.
125
O questionamento de Sílvio sugere a tensão vivida no país por milhares de
pessoas nos anos 60. Ele o faz como que mecanicamente, “como se estivesse
recitando um poema há muito decorado, em que apenas o som das palavras
contasse.”
126
Assistir de maneira passiva às arbitrariedades e à repressão política
ou enfrentar os opressores a fim de conquistar a liberdade? Esse foi o dilema
vivido por muita gente. E Sílvio conclui: ficar sentado equivale a uma
cumplicidade criminosa.” Paulo, por outro lado, questionara Sílvio como o
faria durante quase todo o livro , indagando: “Mas quem disse que eu estou
disposto à luta? Que luta?”
127
Diante do que ouve, com indisfarçável indiferença,
da boca de Sílvio, o escritor rebate alegando que tem assinado diversos
manifestos. Isso, no entanto, segundo Sílvio, é pouco. O militante em seguida lhe
oferece outra ferramenta que não a caneta para lutar contra o regime: “eu lhe
venho oferecer exatamente isso: o fuzil.
128
À medida que o diálogo se desenvolve, Paulo tenta convencer Sílvio de
sua incapacidade para atirar e lutar. E Sílvio rebate:
um grupo de pessoas, de diferentes ideologias, padres,
comunistas, militares, vigaristas, estudantes,
123
Idem, ibidem, p. 29.
124
Idem, ibidem, p. 30.
125
Idem.
126
Idem, ibidem, p. 29.
127
Idem.
128
Idem.
61
mulheres, lavradores, bancários, está disposto a lutar. Chegou-se
à conclusão de que sem algum derramamento de sangue não
haverá solução. Restava saber se havia condições objetivas para
que esse sangue derramado, de um e de outro lado, não o fosse
em vão. Pois bem: a hora chegou. condições objetivas,
concretas. Mais tarde, você será colocado, gradualmente, a par
da organização que já temos.
129
Cabe aqui um parênteses para lançar um pouco de luz sobre o que
constitui o pano de fundo de Pessach. No contexto de 1966, surgiam cada vez
mais grupos de esquerda com diferentes denominações. Em 1962 fora fundado o
PC do B, fruto de uma racha do PCB, que trocara sua denominação “do Brasil”
por Brasileiro”. Segundo Luiz Carlos Prestes, um dos pretensos motivos pelo
qual o PCB havia sido cassado em 1947, era que a expressão “do Brasil” fazia
supor que o partido era uma seção brasileira da Internacional Comunista.
130
De
todo modo, tal mudança não levou o Partidão a obter seu registro legal.
O novo PC do B se organizou em torno de lideranças políticas como João
Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar, além de alinhar-se ao PC da China,
enquanto o PCB ainda se vinculava ao PC da União Soviética. Os partidários do
PCB mantinham a concepção da revolução em duas etapas. Essa compreensão
presupunha um processo de lutas no qual, antes do advento do socialismo,
camponeses, proletários, pequena burguesia e burguesia nacional se uniriam
formando uma força social de cunho revolucionário democrático antiimperialista
e antifeudal.
131
O quadro, no âmbito da esquerda, era complexo. Em 1953 nascera o
Partido Operário Revolucionário (Trotskista) POR (T), e, em 1961, a
Organização Revolucionaria Marxista, que editava o periódico Política operária,
razão pela qual era conhecida pela sigla Polop. Ao final dos anos 50, surgira
ainda a Juventude Universitária Católica (JUC), e, em 1962, a Ação Popular
(AP), ambas correntes oriundas de estudantes católicos. Ao mesmo tempo surgira
no Rio Grande do Sul, sob a liderança do governador Leonel Brizola, o
129
Idem, ibidem, p. 31.
130
Cf. GORENDER, Jacob, op. cit., p. 33.
131
Cf. idem, ibidem, p. 30.
62
Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master).
132
Em comum, havia nessas
novas organizações a disposição para a luta em prol do socialismo.
Com o golpe militar de 1964, a disposição de boa parte da esquerda para
pegar em armas aumentou gradativamente. Em agosto de 1967, Carlos
Marighella fez uma viajem a Cuba, para participar da Conferência da Olas
(Organização Latino-Americana de Solidariedade). Inconformado, o PCB
enviou uma carta para o PC cubano, informando que Marighella não o
representava e podia ser expulso do partido por ir a Cuba sem autorização.
133
É
interessante notar que a resposta de Marighella, no final de 1967, muito se
assemelha aos discursos dos personagens militantes de Pessach (1967).
Uma direção pesada como é, com pouca ou nenhuma
mobilidade, corroída pela ideologia burguesa, nada pode fazer
pela revolução. Eu não posso continuar pertencendo a esta
espécie de Academia de Letras, cuja única função consiste em se
reunir. [...] Em minha condição de comunista, à qual jamais
renunciarei, que não pode ser dada nem retirada pelo Comitê
Central, pois o Partido Comunista e o marxismo-leninismo não
têm donos e não são monopólios de ninguém, prosseguirei pelo
caminho da luta armada, reafirmando minha atitude
revolucionária e rompendo definitivamente com vocês.
134
Dos quadros do PCB surgiria a Ação Libertadora Nacional (ALN) ligada a
Marighella e Câmara Ferreira. Aos poucos, um clima de guerrilha ia se impondo,
ainda que “desautorizada” pelo PCB.
O discurso que vem à tona sobre o PCB em Pessach a julgar pelo que
dizem especialmente os ex-militantes do partido retratados na obra é de tom
condenatório. O Partidão teria a capacidade de reunir e orientar a esquerda
brasileira no combate à ditadura. Porém não agiu em vigor, acuando-se. Ao
contrário, tornou-se um elemento divisor da esquerda. Nessa perspectiva, a
dissertação A travessia nas margens, de Antônio Carlos Aleixo, interpreta de
uma forma problemática essas críticas lançadas no romance como um estímulo
132
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira, op. cit., p. 26.
133
CHIAVENATO, Julio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. 14. ed. o Paulo: Moderna,
2004, p. 168.
134
Idem.
63
à iniciativa armada, tal como propunha Marighella, pois isso “nos leva a crer que
o romance filia-se à linha do pensamento engajado.”
135
Tudo indica, como
veremos, que a intenção de Cony não era essa, mas Malcolm Silverman, apesar
de não situar a incitação à luta como objetivo principal do romance, também
entende que existe em Pessach uma glorificação da esquerda armada.
136
As alas dispostas à luta se inspiravam principalmente na revolução cubana
de 1959 e em líderes como Che Guevara e Fidel Castro. Os escritos de Che,
como A guerra de guerrilhas
137
, de 1960, representavam uma espécie de cartilha
obrigatória para quem se dispusesse a lutar. O tema central se referia à chamada
teoria do foco, cujo
ponto de partida [...] consistia na afirmação da existência de
condições objetivas amadurecidas para o triunfo revolucionário
em todos os países latino-americanos. [...] O foquismo trouxe
outra novidade, que o singularizou: a iia da primazia do fator
militar sobre o fator político, da prioridade do foco guerrilheiro
sobre o partido. Os cubanos dirigiam uma critica ácida, mas
verdadeira, ao burocratismo e à corrupção que assolavam certos
partidos comunistas.
138
Na contramão dessas idéias, o PCB reafirmava sua posição contraria a
iniciativa da luta armada. E à medida que o processo político caminhava, no
interior das esquerdas, para a luta armada, os quadros do PCB iam sofrendo um
certo esvaziamento.
As perdas do ComiCentral na militância partidária refletiam
sangrias substanciais em todas as frentes: entre os operários, os
camponeses, os intelectuais e variados setores da classe média.
No setor estudantil, a situação já era de desmoronamento. Na
maioria dos Estados surgiam as dissidências ou correntes, que
ganhavam vida própria, seguiam orientação potica
135
ALEIXO, Antônio Carlos. A travessia nas margens literatura e história em Pessach: a
travessia, de Carlos Heitor Cony. Dissertação Universidade Estadual Paulista/ Campus de
Araraquara, 2001, p. 108.
136
SILVERMAN, Malcolm, op. cit., p. 195.
137
GUEVARA, Che. A guerra de guerrilhas. 2ª ed. São Paulo: Edições Populares, 1982.
138
GORENDER, Jacob, op. cit., p. 80 e 81.
64
independente e recrutavam adeptos para elas mesmas e não mais
para o partido.
139
Foi a partir dessas questões que Carlos Heitor Cony escreveu Pessach. A
inquietação do autor acabou por antecipar, em parte, nas ginas literárias uma
contradição que estava por explodir com toda força: o recrudescimento da
repressão, o posicionamento titubeante do PCB e a agudização da luta armada.
E enquanto a guerra fria aquecia o debate ideológico, remando contra a
maré, o escritor Paulo Simões se define como alienado, para a decepção de
Sílvio; e procura evitar a continuação da conversa entre eles.
Não gosto do governo atual, mas jamais gostei de governo
algum. Politicamente, sou anarquista, mas sobretudo sou
comodista. Por isso mesmo, me considero inofensivo e covarde.
Não estou disposto a dar ou receber tiro por causa da liberdade,
da democracia, do socialismo, do nacionalismo, do povo, das
criancinhas do Nordeste, que morrem de fome. O fato político
o me preocupa, é tudo.
140
Paulo Simões, que havia planejado não ver ningm no dia do seu
aniversario, tinha recebido a visita da amante, Teresa, dos comunistas Sílvio e
Vera, visitou a filha, a ex-mulher e os seus pais. Aos poucos o romance vai
revelando dramas cotidianos que aparentemente se contradizem com as
emergências daquele período. E, na editora para qual escrevia, o editor cobrava
de Paulo um conto para compor um livro que seria comercializado no Natal. Um
universo pacato face ao estabelecimento do regime militar.
À noite, em seu apartamento, Paulo pega o pequeno esboço de um
romance que estava quase abandonado. É um manuscrito sobre o êxodo dos
hebreus, e ele lê um trecho que preenche as duas primeiras páginas.
Houve uma noite, muitos anos, em que um povo foi deitar
escravo. Seguindo a rotina da escravidão, todos foram dormir
cedo. No dia seguinte, voltariam a seus trabalhos. Súbito, um
jovem aparece no meio deles. É aproveitar aquela noite, o sono
dos guardas, fugir. O deserto os espera. O Anjo do Senhor fez a
139
Idem, ibidem, p. 89.
140
CONY, Carlos Heitor, op. cit., p. 37.
65
passagem por cima dos tetos hebreus e agora cabe aos homens
fazer a travessia. Quarenta anos de pedra e maná, fome e
revolta. Os velhos morrerão na areia, os jovens talvez
sobrevivam e talvez cheguem a algum lugar. O importante é
que, nessa noite e não em outra , todos terão de tomar a
decisão: a escravidão ou a liberdade. E o povo todo um povo
inteiro com seus utensílios, suas ferramentas, seus rebanhos,
aproveita a escuridão e foge para o deserto. Levam o pão sem
fermento, o houve tempo de fermentá-lo, com a luz do dia os
soldados rondariam os acampamentos, os açoites castigariam a
carne escrava. E em silêncio todo um povo abandona suas casas
e vai para o deserto.
141
Outra vez a analogia entre os hebreus que fugiram da escravidão e o
romance Pessach: a travessia se faz presente. Em algumas passagens, aliás,
Paulo Simões lida com sua descendência judia, a qual não lhe agrada em nada,
como se nota em uma conversa com o pai, que, além de ser judeu, ainda vivia
mentalmente perturbado com o temor de uma suposta perseguição que poderia
sofrer dos nazistas radicados no Brasil.
142
No dia seguinte ao seu aniversário, Paulo resolve sair de casa e tem uma
surpresa. Vera está escondida dentro do seu carro. Ela diz a Paulo que passou a
noite ali e naquele momento precisava deixar o Rio de Janeiro porque um grupo
extremista (“um grupo de loucos resolveu iniciar por conta própria uma ação
isolada de fundo terrorista. Uns imbecis, felizmente são poucos”, diz a militante
recém-saída do Partidão
143
) pretendia jogar uma bomba na Embaixada dos
Estados Unidos. A coisa estava para estourar.
Ao longo da carona, ela fica atenta ao noticiário de rádio, a fim de tentar
captar sinais que denunciariam a ação da repressão. Paulo procura esclarecer que
ali se encerra sua curta e derradeira participação nessa história: “Não tenho nada
141
Idem, ibidem, p. 129.
142
Ver idem, ibidem, p. 90. Paulo Simões (nascido Paulo Simon Goldberg), na verdade, procura
o tempo todo esconder de si próprio e dos outros essa ascendência. Ver idem, ibidem, p. 11 e
passim.
143
Idem, ibidem, p. 139. Convém lembrar que, “divididas ideologicamente e desunidas na
prática política, as esquerdas brasileiras não conseguiram formar uma frente única contra a
ditadura. Do Partido Comunista Brasileiro (PCB) saíram vários grupos que fundaram pequenos
partidos, com escassos recursos e poucos militantes. Foram principalmente esses grupos que
partiram para a guerrilha. CHIAVENATO, Julio José, op. cit., p. 156. Sobre esse assunto,
Cony coloca na boca de Macedo uma avaliação sobre as implicações das divisões que minavam
a força das esquerdas. Ver CONY, Carlos Heitor, op. cit., p.179.
66
com vocês. Vou levá-la até fora da cidade, passo a barreira, você à sua vida e
eu à minha. Tenho de voltar ao Rio, passar na editora, estou com pouco dinheiro,
preciso de dois a três meses para escrever um livro.”
144
Em seguida, Vera avista um carro parado no acostamento, reconhece um
dos homens cujo apelido era Boneca e pede que Paulo pare o carro. Ela vai
ao encontro de Boneca e observa que outro militante ferido (vítima de tortura)
no carro enguiçado. Enquanto isso o rádio transmite a notícia da explosão da
suposta bomba.
A polícia ainda não localizou o automóvel do qual partiu, esta
manhã, a pedra que espatifou uma das vidraças da embaixada
dos Estados Unidos. [...] O embaixador norte-americano não
quis fazer declarações, mas um dos funcionários da embaixada
disse que não foi nada, apenas uma brincadeira inconseqüente
de rapazes.
145
Vera retorna ao carro e agora pede que Paulo a leve, junto com o ferido, a
uma fazenda (esconderijo) do grupo próximo à divisa com o estado de São Paulo:
“Precisamos escondê-lo”, afirma ela. A primeira reação de Paulo é de irritação:
Precisamos uma ova! Lamento muito, Vera, mas minha gentileza termina aqui.
Sabe que não houve bomba nenhuma? Ele à la Cony ironiza o “atentado”: O
rádio acabou de dar: jogaram uma pedra na vidraça da embaixada americana, em
menos de duas horas foi colocada outra. Eles m dinheiro para trocar quantas
vidraças vocês quebrarem.”
146
Depois de muito relutar, a segunda reação de Paulo é atender às suplicas
de Vera e transportá-los até Resende. E é justamente esse consentimento que
condena o personagem principal a embarcar no universo da resistência armada.
Chegando à fazenda, eles atravessam um pequeno rio, e Paulo não perde o
comentário. “Enfim, temos o mar Vermelho.Vera não compreende a ironia, e
ele explica:
144
CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia, op. cit., p. 138.
145
Idem, ibidem, p. 143.
146
Idem, ibidem, p. 144.
67
O mar Vermelho, ora! O mar que se abriu para que Mois
passasse com os hebreus. Pois foi isso: Moisés conhecia uma
região pantanosa, de águas rasas, nas cabeceiras do mar
Vermelho, justamente onde mais tarde os ingleses abriram o
canal de Suez. Cortaram aquele ntano em diagonal. Os
egípcios, que vinham atrás, meteram os peitos em outro trecho,
pegaram mar feio e se afogaram.
147
A recepção na fazenda não é nada amigável e assusta Paulo, que é
surpreendido com uma arma apontada para ele até que sua acompanhante é
reconhecida. Afinal, Paulo não é senão um estranho no ninho que passará a ser
objeto de estrita vigilância armada, sob as costumeiras alegações de segurança
dos que se acham em compasso de espera e de preparação para participar
efetivamente da luta armada em favor da derrubada do regime. Todo cuidado era
pouco. Mas logo Paulo é apresentado ao líder, Macedo.
Atento aos indícios que constantemente a obra nos fornece e ao método
indiciário de Carlo Ginzburg
148
, a princípio pode-se notar que a letra inicial do
nome Macedo é uma referência próxima a Moises. Tal como o personagem
bíblico, Macedo é quem exerce a liderança local sobre os militantes clandestinos.
O líder usa óculos escuros para disfarçar cicatrizes pelo rosto, e manca
devido a deformações que tem nos testículos, por ter sido vítima de tortura
mediante o emprego de maçarico, o que o deixou impotente. Diga-se de
passagem, cicatrizes no caso de militantes, significavam muito no jogo político
entre as esquerdas. Haver sido preso ou vítima de tortura ou os dois, melhor
ainda podia significar status. Como ironizou Vera, em conversa posterior com
Paulo, “cicatriz de nascença é promovida a tortura, conta pontos para a liderança.
Tem gente que exibe o umbigo e diz que foi a polícia.”
149
147
Idem, ibidem, p.150.
148
Ginzburg valoriza a utilização de dados aparentemente negligenciáveis (emblemas, sinais)
como parte do esforço para remontar uma realidade histórica complexa, não experimentável
objetivamente, GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos,
emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das letras, 1991. Sobre o
assunto ver também LIMA, Henrique Espada. Narrar, pensar o detalhe: à margem de um projeto
de Carlo Ginzburg. ArtCultura: Revista de História Cultura e Arte, Uberlândia, Edufu, CNPq e
Capes, jul-dez. 2007.
149
CONY, Carlos Heitor, Pessach: a travessia, op. cit., p. 164.
68
Marcas da repressão à parte, antes do almoço, Vera aproveita um
momento a sós com Paulo, “Seus olhos [dela] têm medo por mim, ou pena de
mim”, pensa Paulo, que se surpreende quando ela “fala em voz baixa, soprada.
Saia agora mesmo! Não tem ninguém olhando, pegue o carro e suma!”
150
Paulo
vai até o carro, porém ele não partida, e em seguida constata que alguns cabos
do motor haviam sido retirados. De imediato fica tomado por uma raiva
tremenda. Volta para o casarão, entra na sala, topa com Macedo, e sem meias-
palavras, pede os distribuidores do carro de volta. Macedo, também sem
embromar, anuncia:
Para início de conversa, serei franco. Você não poderá sair daqui
tão cedo. depois que não oferecer perigo. Afinal, há mais de
ano e meio que estamos organizando um movimento
clandestino, perigoso, conseguimos articular uma rede que inclui
campos de treinamento, depósitos de armas, equipes de
segurança e de aliciamento [...] Sei que seria o último homem a
se engajar no tipo de luta como a nossa. [...] vejo seu nome nos
manifestos, você não chega a ser reacionário, não passa de um
liberal, um burguês liberal. Não desprezo essa turma, mas
também não a aprecio. [...] O distribuidor não será devolvido, o
seu carro está confiscado, precisamos de viaturas, e um carro
como o seu, que não está manjado, inocente em todos os
distritos e barreiras, será útil. E perca as esperanças de regressar
ao Rio. Não quero dizer que você esteja preso, mas não poderá
sair daqui. Dá no mesmo, talvez.
151
Sem condições de exigir o carro de volta, Paulo vai enfim almoçar. Vera
pergunta sobre o diálogo com Macedo e Paulo explica:
O carro foi requisitado. Vai pagar a minha estada aqui.
O Macedo deu recibo?
Que recibo?
Geralmente dão recibo, em código. Quando tomarem o poder,
você receberá o que é seu.
Você acha essa gente com cara de quem vai mesmo tomar o
poder?
Por que não? [...] Eu acredito em alguma coisa. Você faz força
para não acreditar em nada. O Sílvio diz que isso é do século
150
Idem, ibidem, p. 156.
151
Idem, ibidem, p. 157 e 158.
69
passado, ceticismo é o nome, coisa que andou muito em moda
tempos. Ele cita o nome do sujeito que você lia muito.
152
Esse episódio diz muito do imaginário dos movimentos revolucionários
dos anos 60 e 70.
Enquanto Paulo estava condenado a permanecer a contragosto na fazenda,
ele decidiu aproveitar para dar seqüência a seus escritos. E aos poucos ia se
familiarizando com os militantes do local. Ao ver um camarada mexendo em
seus papéis, Paulo o interrompe com fúria e ar ameaçador, e é golpeado com um
soco na cara. Horas depois acorda na presença de Macedo, que tenta minimizar o
ocorrido alegando que o sujeito assustou-se com a fúria dele (“um ato de legítima
defesa”
153
).
Ao remexer e examinar os papéis com anotações escritas por Paulo,
Macedo atentou em particular, para uma expressão. E agora pergunta: Que
significa pessach?” E Paulo explica o que o autor Cony esclarece:
Passar por cima. Etimològicamente é isso: passar por cima.
[...] Pessach é a festa judaica que celebra o êxodo, a passagem
do mar Vermelho, a fuga do cativeiro, a procura da Terra
Prometida, e, sobretudo, a passagem do Anjo que poupou os
primogênitos hebreus. O Anjo passou por cima. Tem muitos
significados. [...] Foi a última praga que Moisés rogou contra os
egípcios. O Anjo feriria de morte os primonitos do Egito. Para
poupar as famílias hebraicas, foi feito o sinal de sangue nas
portas: o Anjo passou por cima dessas casas.
154
Na seqüência, acrescente-se, mais uma vez Paulo é questionado sobre ser
judeu. Outra vez ele nega.
A situação para Paulo se mantinha insustentável. O escritor tachado de
alienado, que havia negado o convite de Sílvio para ingressar na luta contra a
ditadura, agora se percebia envolvido, por mal, numa organização prestes a dar
início à resistência armada contra o regime militar. Segundo Macedo, havia no
acampamento algo em torno de 300 companheiros” entre ex-padres, oficiais,
152
Idem, ibidem, p. 162.
153
Idem, ibidem, p. 167.
154
Idem, ibidem, p. 167 e 168.
70
sargentos, um ex-deputado, lavradores, operários, funcionários e estudantes. E
contando com Paulo, havia agora um intelectual.
155
Vale ressaltar que Pessach foi escrito ainda em 1966/1967, quando de fato
não havia evidências mais ostensivas de guerrilha no Brasil. Por essa época,
surgiu o primeiro foco/projeto de luta armada, a Guerrilha do Caparaó, que leva o
nome da serra situada entre o Espírito Santo e Minas Gerais. Pouco mais de dois
anos após o golpe, alguns homens incluindo pessoas treinadas em Cuba e com
o apoio do ex-governador exilado Leonel Brizola tentaram estabelecer um foco
guerrilheiro similar ao dos revolucionários de Sierra Maestra, em Cuba. E nesses
moldes procurariam arrebanhar camponeses e articular uma revolução. Mas tudo
se perdeu entre as divergências internas, a falta de experiência dos militantes e a
ausência de apoio camponês. Em conseqüência disso, foram capturados em uma
emboscada e presos pela polícia no dia 1. de abril de 1967.
156
Em meio à articulação do grupo liderado por Macedo, Paulo, que não era
do ramo, pergunta-lhe se ele pertence ao Partidão. A resposta vem ao encontro
dos questionamentos críticos encontrados em obras de vários autores, alguns dos
quais já mencionados nesta dissertação.
Não. Ninguém aqui é do Partido. Ele não aia o nosso
movimento. Estamos divididos em dezenas de posições e
conflitos. Cada setor tem o seu esquema. Isso é o que prejudica
tudo. Bastava a nossa união e o governo cairia de podre. [...]
Tenho de fazer alguma coisa. Se o fizer isso vou fazer o quê?
Esperar, como o Partido espera, que por meio da pregação
pedagógica, burocrática, a ditadura desmorone por si mesma?
[...] [o Partido] Considera o nosso movimento individualista,
romântico, que vamos apenas provocar uma reação ainda
mais severa. o posso aceitar a posição do Partido: esperar,
esperar, esperar...
157
155
Cf. idem, ibidem, p. 179.
156
O mais completo estudo sobre esse movimento é de autoria do jornalista COSTA, José
Caldas da. Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura. São Paulo: Boitempo, 2007. O
prefácio da obra, por razões óbvias, é assinado precisamente por Carlos Heitor Cony, que põe
em relevo este documento denso sobre os fatos que foram escamoteados pelos governos da
ditadura, expurgados dos livros escolares e que, na época em que ocorreram, não tiveram maior
repercussão na imprensa amordaçada” (p. 11). Pudera, nada mais intolerável para a ditadura que
a participação da Marinha, da Aeronáutica e do Exército na montagem dessa operação de
guerrilha.
157
CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia, op. cit., p. 179 e 180.
71
À medida que Macedo vai relatando a expectativa dos militantes pela
entrada na luta armada, inevitavelmente m à superfície críticas ao PCB.
Inspirados em histórias revolucionárias e treinados em acampamentos
clandestinos,
158
muitos dos que se colocavam à esquerda do PCB almejavam o
confronto com o regime ditatorial. Nas palavras de Macedo,
Este, aliás, é um dos nossos problemas mais sérios: conter o
pessoal que acredita ter soado a hora. Olha o caso da bomba na
embaixada. Tudo nasceu de um camarada que aqui fez o seu
treinamento. Aprendeu a fabricar coquetéis Molotov e em vez
de ir para Caxias do Sul, esperar pela hora, preferiu ficar no Rio.
Havia abandonado o Partido porque achava que dali não
sairia nada. Veio para por causa disso, acusando o Partido de
ser uma oposição acadêmica, uma burocracia estéril.
159
E ironia da história, a julgar pelo que afirma Macedo, a libertação de
Paulo depende, em princípio, de um dado concreto: “de uma coisa você pode
estar certo: só depois de ter irrompido o movimento é que você poderá pensar em
regressar ao Rio.
160
Agora, seu pecado é saber demais, e os militantes
acantonados na fazenda não podiam se expor ao risco de que Paulo desse com a
língua nos dentes.
Em outro diálogo, Paulo questiona o aparato e o contingente de pessoas
para enfrentar as Forças Armadas. Ele continua achando que a tática de guerrilha
é uma rematada loucura (com o que, no fundo, concorda Macedo, para quem a
desproporção de forças em jogo era tão grande que a causa poderia ser
vitoriosa se, com a irrupção da luta, houvesse uma ampla mobilização de vários
segmentos sociais em torno de uma saída para a superação da ditadura militar)
161
:
158
Vivia-se, contudo, uma situação paradoxal, em relão ao treinamento militar, como conta
Macedo: “armas, temos muitas, vindas de todas as partes [...] O que nos falta é munição. Nossos
exercícios são simbólicos, não podemos gastar tiro. E, além do mais, não podemos fazer
barulho. Oficialmente, isto aqui é uma pequena fazenda, temos que produzir a dia de
quarenta a sessenta litros de leite diários para a cooperativa mais próxima.Idem, ibidem, p.
180.
159
Idem, ibidem, p. 182 e 183.
160
Idem, ibidem, p. 182.
161
Idem, ibidem, p. 185.
72
“– Vocês não m chance nenhuma. Vi a turma em baixo [na enfermaria],
sujeitos sem dedos, sem pernas, rostos e testículos queimados, não é assim que
tomarão o poder.”
162
A resposta, dessa vez de Vera, soa como um texto decorado da esquerda.
E, em seguida, ela faz uma análise de conjuntura internacional que denuncia o
descaso inclusive da União Soviética para com os rumos da luta antiditatorial:
Então como é? Como quer o Partido? Esperar mil anos até que a
ditadura militar se acabe por si mesma? Você ignora muita
coisa, Paulo, viveu sempre num mundo distante, preocupado
com angústias, problemas existenciais, mulheres. Resultado: não
sabe de nada. O Partido não é o mesmo, desde que a União
Soviética abandonou a América Latina à própria sorte. Foi
pouco depois do epidio de Cuba, quando Kennedy ia invadir a
ilha. A União Soviética dividiu o mundo com os Estados
Unidos, metade para cada um, o tratado de Tordesilhas, de novo.
O Brasil, como a América Latina toda, coube aos Estados
Unidos. A União Soviética não quer mais nada com a gente.
Até ajudar a esta ditadura já ajudou: outro dia, o embaixador
soviético firmou acordo com os militares, cem milhões de
dólares. Que que você acha? Nós aqui dando duro para varrer
essa cambada do poder e os nossos amigos socialistas entrando
comlares para que os militares nos torturem e matem.
163
Mais alguns dias e Sílvio aparece no acampamento, levando junto uma
médica, Débora. O reencontro inicial com Paulo é tenso, que reage, indignado, à
afirmação de que ele aderiu ao grupo.
Mas eu não entrei. Me empurraram. Você, com
aquela conversa idiota lá em casa. Depois a perseguição de Vera
o dia todo, com medo que eu fosse denunciá-lo à pocia. Agora
essa prisão, por causa de uma pedra jogada numa vidraça. Vo
deve se sentir responsável por tudo o que me aconteceu.
164
Depois disso, Sílvio esclarece o que sabe sobre o projeto de luta armada.
162
Sobre isso, ver idem, ibidem, p. 186 e 187. Ver também trecho no qual o comandante do
grupo no Sul do país garante que “não somos porras-loucas” e que “não estamos preparados
para a guerra civil, em meio à qual seriamarrasados”. Idem, ibidem, p. 273.
163
Idem, ibidem, p. 185 e 186.
164
Idem, ibidem, p. 209.
73
Pois bem: cinco campos iguais a esse, alguns até maiores e
melhores. Várias turmas já foram preparadas e estão em posição.
Basta a ordem da Comissão e podemos, com um mínimo de luta,
tomar diversos povoados em diferentes reges do País.
Evidente, a maior concentração de forças é no Sul, temos, ali,
uma retaguarda protegida, que é o Uruguai.
165
Paulo, categórico, continua a protestar contra a sua prisão, enfatizando
que, “assim, vocês não conseguem nada de mim. Não faço parte da quadrilha”
166
E Sílvio afirma que Paulo tem dois caminhos: sentir-se como prisioneiro e
tentar, a todo custo, fugir ou jogar o jogo que está posto.
167
Mais tarde, recolhido em sua cabana, Paulo lê o esboço do romance que
começara há mais de 10 anos sobre o êxodo dos hebreus. Mas o protagonista não
seqüência a ele. No dia seguinte, Paulo acorda ouvindo uma correria fora do
comum. Logo fica a par dos acontecimentos que o conduziriam a destinos e
condutas inesperadas. Macedo explica que a situação se agravou:
Houve um atentado em Recife, quase mataram o ministro da
Guerra, mas pegaram um almirante e alguns oficiais, mais de
seis mortos. A repressão do governo será furiosa. Temos de nos
preparar para qualquer eventualidade. [...] Vamos deslocar o
pessoal para as suas bases, a maior parte irá para o Sul. Você me
acompanha.
Mas o trato com Sílvio não foi esse.
Esqueça Sílvio. Ele foi preso hoje à tarde. Agora, por bem ou
por mal, você está comigo.
168
A partir desse momento, a médica, Débora, Vera, Paulo e Macedo partem
em uma jornada que os levaria até São Paulo e, na seqüência, ao extremo sul do
Brasil. Em São Paulo, Macedo passa as coordenadas e Vera o questiona quanto à
possibilidade de Paulo fugir. Macedo faz a pergunta, em tom sério e severo:
“Você vai fugir?” A resposta é dúbia: “Ainda não sei. Como prisioneiro, minha
165
Idem, ibidem, p. 210.
166
Idem, ibidem, p. 213.
167
Cf. idem, ibidem, p. 214.
168
Idem, ibidem, p. 238.
74
obrigação é procurar fugir de qualquer maneira. O diabo é que não sei
exatamente se sou um prisioneiro.”
169
Neste ponto, é importante assinalar que muitos leitores da obra de Cony
podem haver se surpreendido com essa bita reviravolta no desenrolar da
história. Como explicar especialmente no caso de um autor que, na primeira
parte do livro, constituíra admiravelmente bem, do ponto de vista psicológico e
político, o personagem Paulo Simões que, de uma hora para outra, este
ameaçasse deixar para trás muito do que até então pensava? De repente, não mais
que de repente, ele como que se sente na iminência de abandonar suas
convicções antiluta armada e se põe a admitir sua adesão, de uma forma ou de
outra, ao projeto acalentado por parte das esquerdas.
170
Em realidade, sua liberdade de escolha é um tanto quanto quimérica.
Macedo, ao responder a uma pergunta de Vera, sob o olhar atento de Paulo, sobre
a possibilidade de ele resolver fugir em São Paulo, sentencia:
Não posso fazer nada, por ora. gico, mais cedo ou mais
tarde ele pagará pela fuga. Para onde quer que vá, haverá gente
que i atrás dele. Ele sabe disso. viu como somos
organizados, que a coisa funciona. Nós fugimos da polícia e do
exército. Ele fugirá de nós. Não sei qual é o mais perigoso.
171
É no hotel,em São Paulo, que Paulo experimenta uma certa sensação de
liberdade e fica sem saber o que fazer com ela. E mais, tem-se a impressão, nesse
trecho, que o protagonista em flagrante falta de sintonia com tudo o que o
caracteriza até então se sente envolvido no jogo, a ponto de cumprir com a
responsabilidade que a situação lhe exigia. Nesse momento, Paulo vive a sua
travessia pessoal, que não está isenta de dúvidas:
169
Idem, ibidem, p. 246.
170
Na verdade, ginas antes, Paulo Simões ensaia um pouco convincente autocrítica: É certo:
eu cooperara, desde o início, com a engrenagem que me tragava.” Mais surpreendente ainda é
que ele indague, com todas as letras: “Até que ponto não quis mais ser livre? Afinal, a liberdade,
depois de certo tempo, também cansa. a nostalgia da escravidão, da proteção, da
irresponsabilidade. Eis o que sou: escravo, protegido irresponsável.Idem, ibidem, p. 233 e 234.
171
Idem, ibidem, p. 246 e 247.
75
Finalmente, estou na rua, sozinho, livre. Não tenho nenhuma
emoção especial, nem mesmo a de liberdade. Posso fazer muitas
coisas, e, eliminando a hipótese da traição ir à pocia e
denunciar todo mundo sobra-me muito. Experimento a
sensação nova, inédita em minha vida: pela primeira vez tenho
de fazer alguma coisa. Pela primeira vez sentido em meus
passos, pela primeira vez cumpro uma ordem e repilo
instantaneamente a palavra ordem, ninguém me ordenou nada,
eu estou indo à agência porque preciso comprar duas passagens
para Porto Alegre no avião das onze e meia. o sei bem o que
vou fazer em Porto Alegre, mas meu destino eu tenho um
destino finalmente , meu futuro, minha missão é ir à agência e
é nela que eu entro.
172
No dia seguinte, parte com Vera rumo ao Rio Grande do Sul. Nesse
instante ele nota que Macedo também está no avião, e isso o faz sentir-se
aliviado. De Porto Alegre viajam para uma aldeia chamada Capão Seco. De lá
caminham até uma cabana mais afastada, onde Paulo, apesar de não ser
apresentado a eles, conhece alguns poucos membros de um grupo guerrilheiro e
nota que ali havia um chefe acima de Macedo.
Nesse momento Paulo é encarado como membro do grupo, embora ele
diga que “não me sinto obrigado a pegar em armas” e além, ao frisar que
“honestamente, ainda não decidi. Não me considere como um homem que
aceitou.”
173
E Paulo é informado sobre a estratégia de luta:
O povo é contra a ditadura e queremos aproveitar essa
cooredenada como ponto de partida. Não temos ligações com o
Partido Comunista, embora muitos comunistas estejam
comprometidos conosco, e até em postos importantes de nosso
esquema. O princípio que nos orientou foi o seguinte: devemos
provocar a detonação. Temos chance de tomar uma parcela
ínfima, estreitíssima do território nacional. o apenas tomar,
mas manter esse pequeno território. Nosso principal problema
será, portanto, manter essa posição, garantir a estabilidade no
terreno pelo menos por uma semana, uns dez dias. Enquanto
criamos e mantemos esse fato novo, outros escalões, em
diferentes partes, e por diferentes motivos, forçarão uma
negociação potica que busque dois objetivos: o fim da ditadura
e o recuo de nossas posições. Concessões mútuas. Se possível,
172
Idem, ibidem, p. 249. Paulo dirá mais adiante: “Sem me dar conta, sinto que já estou
realmente em outra.” Idem, ibidem, p. 252.
173
Idem, ibidem, citações das p. 271 e 272, respectivamente.
76
de forma pacífica, sem sangue ou com um nimo de sangue.
Você deve desconfiar que esse mínimo de sangue pode ser o
nosso.
174
Na prática, a estratégia consiste em tomar o comando na cidade de
Jaguarão e fortalecer ali uma defesa próxima de cidades como Pelotas, Bae
Rio Grande. Além do mais, o capitão de quem Paulo ouve as explicações, admite
terem forte poder de fogo e apoio da população local. Ele insiste na tese de que,
se conseguirmos manter esse território por uma semana, haverá
negociação e a ditadura cai. Pelo resto do Brasil tudo está
minado, quartéis, cidades, usinas, fábricas, a própria classe
dia, parte do empresariado. Ainda que não queiram nem
possam lutar, apoiarão a nossa luta. Antes a iminência de uma
sangueira demorada e generalizada, todos se unirão no meio-
termo, no compromisso.
175
No dia seguinte Paulo, Macedo, Vera e dois outros militantes saem num
veículo em direção ao extremo Sul. Chegam a Estela Maris. A idéia é inspecionar
os vilarejos locais e atestar o policiamento. Enquanto isso, outros militantes
cumprem tarefas semelhantes. Mas, quando a comitiva liderada por Macedo está
retornando a Capão Seco, o grupo é surpreendido por um homem ferido no meio
da estrada, “a cabeça uma posta de sangue”. Paulo, que se acha ao volante, desvia
o carro para não atropelar o homem que grita: “Fujam! Fujam! Fomos traídos,
estão todos mortos, mataram todos, todos!”
176
Segundo o militante que morreria minutos depois, tropas federais vindas
de Bagé surpreenderam o acampamento, mataram todos e degolaram o capitão.
Restava ao grupo de cinco (Macedo, Paulo, Vera e dois militantes) fugir para o
Uruguai. Nesse momento, Macedo sem perder a postura de líder toma a
decisão: “a ordem é a seguinte: chegar à fronteira a todo custo. Ninguém se
entrega vivo. Se conseguirmos escapar, ótimo. Do contrário, é matar e
174
Idem, ibidem, p. 272 e 273.
175
Idem, ibidem, p. 274 e 275.
176
Idem, ibidem, p. 284.
77
morrer.”
177
O grupo tenta alcançar a vila de Curral Novo, mais próxima do
Uruguai. Mas isso ainda significa a necessidade de vencer quase 100 km.
Daí por diante o grupo começa uma verdadeira jornada para atingir o
Uruguai. Nesse meio tempo Macedo (“sua barba está crescida o suficiente para
parecer um guerrilheiro, um vulto messiânico
178
) justifica sua fama de herói ao
matar um pequeno grupo de soldados que faziam ronda pelas redondezas e que
liquidaram os dois outros militantes. Paulo, por sua vez, pensa com seus botões:
“Estou sem vínculos, à medida que fujo fico mais livre, agora que estou
realmente preso e encalacrado.
179
Próximos do país vizinho, que as vistas conseguem alcançar, Macedo
opta por esperar a noite a fim de arriscarem a passagem. Paulo comenta “A Terra
da Promissão”
180
, que, a nosso ver, não passa de uma espécie de prêmio de
consolação, isso sim. Afinal, a que se reduzira o sonho acalentado pela guerrilha?
Mais adiante, outro confronto direto com tropas do Exército provoca a
morte de soldados e de Macedo. À falta de alternativa, desorientados, Vera e
Paulo apanham duas metralhadoras, um revólver e seguem em fuga na direção do
Uruguai. No caminho, Vera é alvejada, Paulo reage e mata outro soldado. Nesse
contexto, para Paulo a sua luta pessoal é agora pela sobrevivência. À imagem e à
semelhança de um guerrilheiro, ele se nega a abandonar o corpo da companheira,
ao final de uma jornada inglória.
Carrego o meu fardo, sem coragem de abandoná-lo, até que
encontro a vala, chaga de lodo, aberta dentro da noite. Deito
Vera com cuidado, mas cubro-a de terra, desesperadamente, uso
as unhas, os braços, quero ganhar tempo, devolver aquele corpo
à terra. Não sinto cansaço, nem sinto o sangue que se mistura ao
sangue que Vera deixara em mim. A terra me fere: arranjo uma
pedra e com ela improviso uma pá, não me ajuda muito, mas me
177
Idem, ibidem, p. 286. Paulo narra: “Todos concordaram, e eu, embora permaneça em
silêncio, não me sinto animado ou obrigado a concordar ou discordar. Entrara num jogo e
perdera, antes mesmo do primeiro lance.” Idem.
178
Idem, ibidem, p. 290.
179
Idem.
180
Idem, ibidem, p. 310.
78
poupa as os sangradas e aflitas. Finalmente, o pequeno
monte à minha frente: Vera está protegida.
181
Como num ritual católico, Paulo enterra parcialmente a metralhadora
para formar uma cruz sempre que houvesse sol ou lua. Naquela altura, diante do
riacho que separa o Brasil do Uruguai, Paulo já não precisava mais de arma.
Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a pouco. O
riacho abre-se a meus pés. Macedo tivera sorte em escolher
aquele trecho, vejo do outro lado a fácil margem. Lavo o rosto
naquela água que corre, sinto a aspereza e o calor do homem que
em mim.
182
no Uruguai o personagem sente o vazio. “Do outro lado está o nada,
que é pior que a morte.”
183
Aqui, vale observar que, em larga medida, a
bibliografia consultada, de uma maneira geral, acredita que a analogia bíblica
contida no romance permite que se compare a “terra prometida” com o Uruguai.
Ora, o país vizinho, no caso, não é senão uma terra que representa apenas a
possibilidade da fuga. É simplesmente, à primeira vista, um refúgio em meio à
tentativa de Paulo de se manter vivo. Nem de longe poderia se equiparar ao
triunfo que a terra de Israel significou para os judeus. Além do mais, Paulo se
recusa a permanecer no Uruguai. Ele retorna à margem: desenterro a
metralhadora e volto.
184
Desfecho que se abre a interpretações variadas, desde
a que prevalece nos analistas da obra, tipo “a luta continua”, até aquela que, no
nosso entendimento, seria metaforicamente, a que, apesar de tudo, mais entraria
em linha de sintonia com o próprio Cony: isso apontaria para o caráter
romântico, idílico, tão bem intencionado quanto inviável, naquele momento, da
tentativa frustrada de medir forças com a ditadura militar imposta ao Brasil.
Nessa mesma linha de raciocínio, e retomando a questão do sentido da
alegoria bíblica, Macedo, que exerce ao longo de Pessach uma liderança heróica,
não tem êxito em seus objetivos políticos. No fim do romance, Macedo se propõe
181
Idem, ibidem, p. 317 e 318.
182
Idem, ibidem, p. 318.
183
Idem.
184
Idem, ibidem, p. 319.
79
a conduzir o grupo derrotado rumo à salvação pessoal. Esse trecho, a três
parágrafos do ponto-final da obra, revela uma semelhança inegável com o
episódio bíblico do mar Vermelho. Não parece por acaso que “o riacho abre-se
aos pés do personagem Paulo, tal como o mar Vermelho abriu-se diante de
Moisés. Porém, o que redundou em vitória, na narrativa histórica bíblica, resulta
aqui num fracasso de gosto amargo que deixa um rastro de mortes atrás de si, em
que pesem o gesto heróico e os propósitos dos militantes engajados na resistência
militar à ditadura.
80
CAPÍTULO III: O IMPACTO DE PESSACH:
RECEPÇÃO E RETALIAÇÃO
Não é ato de heroísmo; é um ato de
consciência. Então, lutar contra a ditadura foi
para mim algo visceralmente necessário.
Ênio Silveira
81
3.1 Pessach: da acolhida pela Editora Civilização Brasileira à condenação
pelo PCB
Uma compreensão do aspecto engajado de Pessach, bem como de outras
obras dos anos 60 comprometidas politicamente, não deve se limitar apenas à
leitura delas. Entre essas publicações e os respectivos editores existia, por vezes,
uma sintonia de propósitos que foi decisiva não para que elas fossem lançadas
no mercado brasileiro, mas gestadas a partir de uma proposta inovadora, moderna
e também engajada. Nesse contexto, uma editora se destacou: Editora Civilização
Brasileira.
185
Quando em meados da década de 50, Ênio Silveira assumiu a propriedade
da editora, pôs-se em prática uma série de transformações na empresa que
contribuiram para a modernização do mercado de livros no Brasil. Ele alterou a
linha editorial antes baseada na publicação de obras didáticas e introduziu
modificações gráficas que resultaram em produtos mais atraentes. A Civilização
Brasileira tamm passou a publicar livros de bolso, com preço mais accessível,
e priorizou temáticas sociais, culturais e políticas. Além disso, trouxe para o país,
clássicos do pensamento de esquerda e lançou jovens escritores, como Paulo
Francis e o próprio Carlos Heitor Cony. A partir desse período, a editora assumiu
um discurso político-ideológico de esquerda, muitas vezes com forte coloração
nacionalista, que norteou toda a sua trajetória, como se pode constatar na coleção
de bolso, lançada no pré-64, Cadernos do Povo Brasileiro, calcada numa
linguagem mais acessível, de olho num público de leitores mais amplo, ao qual
ela visava atingir por meio das bancas de jornais.
185
Levamos, aqui, em conta, aplicando-a ao nosso objeto de pesquisa uma das muitas
observações da maior importância formuladas por Tania de Luca ao tratar das relações entre
história e jornalismo. Ela constata que, de forma crescente, desde a década de 1980, os
historiadores têm prestado particular atenção ao círculo formado em torno das redações,
entendidas como espaços de sociabilidade que agregam indivíduos com base em projetos
políticos, artístico-literários, crenças e valores que se pretende difundir por meio da palavra
escrita.” LUCA, Tania Regina de. Um repertório do Brasil: tradição e inovação na Revista
Nova. ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 8, n. 13, Uberlândia, Edufu, jul.-dez.
2006, p. 98.
82
As primeiras análises do movimento militar de 1964 foram editadas pela
Civilização Brasileira e acabaram sendo alvo de censura: O golpe começou em
Washington, de Edmar Morel, O Brasil no espelho do mundo, de Otto Maria
Carpeaux, e O golpe de abril, do trotskista Edmundo Moniz. Em maio de 1964,
Ênio Silveira colocou uma faixa na entrada da livraria na qual se lia “A poesia é
a arma do povo contra a tirania”.
186
Sabe-se que, desde o golpe de 1. de abril, intelectuais como Cony,
Carpeaux, Ênio Silveira, Antônio Callado, Thiago de Mello, Glauber Rocha e
outros cariocas reuniam-se constantemente para discutir como enfrentar o regime
militar. Dessa forma, o ambiente da Civilização Brasileira funcionou como um
“aparelho” que fomentou a atividade de intelectuais na tarefa de resistir. E sua
ação não se restringia à produção cultural: vários desses escritores e jornalistas
participaram de ações sociais que, em linhas gerais, remetiam à defesa da
democracia violada. Esse “grupo civilizado” como diz Luiz Renato Vieira,
representou um pólo de atividade intelectual; conseqüentemente também foi
vítima dos órgãos de repressão:
A Civilização Brasileira passou a ser um centro de reação
sistemática. Sistemática, porque achávamos que tinham sido
cometidos [pelos comunistas] muitos erros no passado, muita
discussão bizantina tinha sido travada sobre aspectos menos
relevantes da vida potica brasileira. Tratava-se, então, de
organizar um sistema de reação à ditadura.
187
No prefácio de Consagrados e malditos, Leandro Konder aponta que o seu
autor, Luiz Renato Vieira, avaliou a editora como “patrocinadora da publicação
de livros importantes, como produtora de uma revista de notável influência
[Revista Civilização Brasileira], como centro de articulação de numerosos
186
Apud VIEIRA, Luiz Renato. Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização
Brasileira. Brasília: Editora da UnB, 1996, no qual podem ser encontradas as informações
contidas nestes parágrafos iniciais (citação da p. 147).
187
SILVEIRA, Ênio. A resistência no plano da cultura. In: TOLEDO, Caio Navarro de (org.).
1964 visões criticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997, p. 153.
83
intelectuais cariocas, como impulsionadora de um significativo e diversificado
movimento político-cultural.
188
Acerca desse audacioso papel por ela desempenhado, Luiz Renato Vieria
atentou muito bem para o fato de que
Ênio Silveira se aproxima, portanto, da figura do intelectual
sartreano quando consegue penetração no campo cultural, como
defensor de uma visão humanista; como editor, promovendo a
reflexão e o debate sobre aspectos sociais, poticos e filoficos
da atualidade; e no ambiente potico enquanto militante do
Partido Comunista, participando ativamente [...] das articulações
que visavam à composição de uma ampla frente potica contra o
Regime Militar.
189
Como foi exposto neste trabalho, no pós-64 desenvolveu-se no meio
intelectual uma reorientação profissional e política formada pelas tensões sociais
da época. Ênio Silveira lembra que, “naquele momento e nos anos em que durou
a ditadura, a maioria esmagadora da inteligência brasileira esteve contra o
golpe”, até porque foram pouquíssimos os intelectuais [a exemplo de Raquel de
Queiroz] que deram apoio ao regime
190
E Carlos Heitor Cony é apontado por Luiz Renato Vieira como exemplo
de reorientação intelectual, de quem, no ambiente do s-64, passou a assumir
uma inédita atuação política classificada como “radical-democrática”, sempre
“rejeitando terminantemente qualquer identificação de suas posições políticas
com o Partido Comunista.
191
Ênio Silveira, por sua vez, destaca a coesão de Cony e sua indignação o
peculiar:
Escritor que se caracteriza pela audácia com que rompe, em seus
romances, todos os cânones da hipocrisia burguesa, Cony
passou a desempenhar conscientemente o papel de aríete com
que os homens livres forçavam as portas da masmorra ditatorial
188
KONDER, Leandro. Prefácio. In: VIEIRA, Luiz Renato, op. cit., p. 10.
189
VIEIRA, Luiz Renato, op. cit., p. 193.
190
SILVEIRA, Ênio, op. cit., p. 153.
191
VIEIRA, Luiz Renato, op. cit., p. 53.
84
que os notórios inimigos da democracia desejavam construir no
Brasil.
192
Em maio de 1965, Ênio Silveira foi preso sob a acusação de esconder o
ex-governador Miguel Arraes, de Pernambuco, deposto pelo regime militar. Em
virtude da prisão arbitrária que durou nove dias , rapidamente intelectuais,
jornalistas e artistas se mobilizaram em sua defesa. Um documento intitulado
“Intelectuais e Artistas pela Liberdade” foi publicado como matéria paga nos
jornais Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo. No manifesto
constavam mais de seiscentas assinaturas, o que uma dimensão do respeito e
da admiração da intelectualidade por ele.
Entre 1964 e 1968, a Civilização Brasileira e seu editor foram talvez os
principais alvos dos militares no campo da produção cultural. Em 1965, lançou-
se a Revista Civilização Brasileira, em formato de livro, com extensos artigos.
Ela abrigava estudos nacionais e internacionais, políticos, literários e culturais,
cobrindo um grande espectro de autores entrincheirados na oposição à ditadura.
Alimentada por renomados intelectuais de dentro e fora do país, com tiragem
inicial de 20 mil exemplares, a RCB foi durante anos a maior revista cultural do
Brasil.
193
Vale relembrar que nesse primeiro momento a censura à produção literária
ainda não tinha o rigor que adquiriu no período pós-AI-5. A perseguição foi
gradativa: inicialmente, mirava autores célebres como Marx e Engels, entre
outros de cunho socialista. Um editorial do Jornal do Brasil, de 22 de janeiro de
1966, criticava a ausência de critérios na apreensão de livros e completava: “todo
livro cujo título se refira a socialismo, marxismo ou comunismo ou tenha na capa
nome de autor russo ou assemelhado, deve ser recolhido à fogueira purificadora
do Dops.
194
Essa violência política que envolvia práticas diversificadas era, sem
dúvida, expressão de autêntico terrorismo cultural. Um complexo sistema de
192
Apud idem, ibidem, p. 54.
193
Sobre o assunto, ver maiores informações em SILVEIRA, Ênio, op. cit., p. 158.
194
Apud STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no regime militar e militarização das artes.
Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 214.
85
coerção buscava inibir a livre expressão e implantar a autocensura. Isso gerou
uma onda repressiva que se alastrou entre variados setores sociais. Como
denunciou a Revista Civilização Brasileira,:
No campo estritamente cultural implantou-se o Terror. Reitores
são substituídos por ordem de militares. Professores são
destituídos de suas cátedras e presos [...] centenas de escritores,
professores, advogados e jornalistas estão na cadeia. Jornais,
estações de rádio e televisão, pelo País afora, trabalham sob
censura disfarçada ou ostensiva.
195
A obra” do regime, ao longo do tempo, foi extensa. O jornal Ultima Hora
teve sua redação depredada; atirou-se uma bomba no Correio da Manhã; deu-se
o fechamento da Editora Vitória, ligada ao PCB; registraram-se invasões
constantes na gráfica Lux, que imprimia os livros da Civilização Brasileira;
destruíram-se as oficinas gráficas dos jornais Politika, O Semanário e Folha da
Semana; apreenderam-se tiragens inteiras do jornal Tribuna da Imprensa e da
revista Pif-paf, entre tantas outras arbitrariedades.
196
A Editora Civilização Brasileira também sofreu atentado a bomba e sua
livraria foi incendiada. Além disso, dezenas de livros foram apreendidos, sem
contar que, a partir de determinado momento, proibiu-se a editora de continuar
trabalhando com o Banco do Brasil, a rigor o único banco de abrangência
nacional naquele período. Segundo Ênio Silveira, os militares muitas vezes
esperavam que certos títulos fossem rodados nas gráficas para somente então
apreenderem o material, acarretando o endividamento crescente da editora e de
seu proprietário, que aos poucos ia sacrificando seu patrimônio particular para
assegurar a continuidade do trabalho de resistência à ditadura.
Ele salienta que a idéia do governo era mesmo sufocar a editora. Como se
não bastassem os atentados praticados contra ele, os militares começaram a
intimidar o próprio mercado. De acordo com Ênio Silveira, eles iam até as
principais livrarias do país e as ameaçavam, caso comercializassem obras da
195
Apud idem, ibidem, p. 222.
196
Cf. Idem, ibidem, p. 219.
86
Civilização Brasileira. Naturalmente, muitos livreiros, temerosos, cumpriam
essas determinações “superiores”.
197
Na tentativa de recorrer judicialmente desses atos discricionários, em maio
de 1966 a editora impetrou um mandado de segurança contra o Departamento
Federal de Segurança Pública, alegando a inconstitucionalidade do confisco de
obras. Ao falar dessa época, Ênio Silveira comentou, mais recentemente:
Ao todo eles apreenderam mais de trinta tulos nossos, isso
basta para dar uma dimensão terrível em termos empresariais.
Eles invadiam nosso depósito, iam às livrarias, recolhiam livros
e sumiam com eles. Movi uma ação contra o governo [...] mas aí
eles vêm com aquele argumento de que houve uma anistia
recíproca. Não estou anistiando ninguém [...] Foi um período
terrível. s éramos atacados de todas as maneiras possíveis e
imagináveis, cerceados: intimidação a livreiros e gráficos,
apreensão de livros.
198
Mas a Justiça brasileira já estava, em larga medida, numa posição de
subserviência em relação ao regime vigente. E, para piorar a situação, a
Constituição de 1967 oficializou a centralização da censura como atividade do
governo federal, em Brasília. Aos poucos o cerco ia se fechando, e em dezembro
do ano seguinte houve uma espécie de institucionalização do terrorismo cultural
com a decretação do Ato Institucional n. 5. A partir daí, de uma vez por todas,
para muita gente a solução parecia ser mesmo calar a boca ou pegar em armas.
No âmbito das esquerdas, Ênio frisava que, apesar de ele ser membro do
Partido Comunista, a editora não o era. Tanto é que houve publicações (de
trotskistas e de não-comunistas como Cony, por exemplo) que, a rigor, não
seriam aceitas pela direção do Partidão. O editor contou, a propósito, que, em
certa ocasião, travou um diálogo com Prestes, que se iniciava com “Ênio, a nossa
editora podia [...]; eu disse: nossa não, minha editora.”
199
Dessa forma, a
197
Cf. SILVEIRA, Ênio, op. cit., p. 155 e 156.
198
Apud FERREIRA, Jerusa Pires. Editando o editor: Ênio Silveira. São Paulo: ComArte/
Edusp, 2003, p. 71.
199
SILVEIRA, Ênio, op. cit., p. 156. Ênio Silveira sempre fez questão de esclarecer que,
“apesar de ser membro do Partido Comunista, a editora não foi do partido, nunca foi por ele
87
publicação de Pessach pela Editora Civilização Brasileira tornou-se possível
graças à amizade de longa data e à maturidade política de Ênio, que concordou
com a edição do romance independentemente da pressão que, de forma
inevitável, viria da direção do PCB.
Pessach foi, portanto, editada por um comunista vinculado ao Partidão,
em meio à repressão estatal e ao engajamento da Editora Civilização Brasileira
na luta contra a ditadura. Na primeira edição do romance, a convite de Ênio, as
orelhas foram assinadas pelo filósofo Leandro Konder, também filiado ao PCB.
Em termos estéticos, e não políticos, o filósofo elogiou notadamente a primeira
parte da obra, que, segundo ele pode ser incluída entre as melhores ginas de
ficção brasileira de todos os tempos”, mas, quanto à segunda, fez restrições. Um
fato raro de orelha que não elogia o livro. as reedições de 1975 e 1997 m as
orelhas assinadas pelo jornalista Paulo Francis. Foi interessante que ele tenha
assumido esse papel, justo ele que ficou tão entusiasmado com o romance que,
em 1967, chegou a dizer desconhecendo a Guerrilha do Caparaó , que
Pessach era “premonitório”, por lançar na ficção algo que estava por vir, a luta
armada.
200
Antes do lançamento do livro, vários intelectuais, amigos de Carlos Heitor
Cony, o advertiram sobre a publicação do romance. Algo semelhante às
advertências que recebeu de alguns amigos quando publicou sua primeira crônica
antigolpe em 2 de abril de 1964: "Este livro será o seu túmulo", teria lhe dito o
crítico Otto Maria Carpeaux.
201
Paulo Francis, foi o primeiro a ler o livro, ainda
em manuscrito, e também advertiu Cony sobre o impacto que a obra produziria,
controlada [...] s propusemos, assim, uma abertura para o livre e amplo debate de idéias.
SILVEIRA, Ênio, op. cit., p. 156.
200
Se atentarmos para a composição imagética de Pessach, ela se afina com o teor da obra antes
e o que virá na seqüência. Sua edição inaugural exibe uma capa vermelho sangue, com um rasgo
de cor roxa em que se notam três pessoas empunhando metralhadoras. A reedição de 1975
apresenta um desenho de grades com uma luz ao fundo que, sugere, ao que tudo indica, uma
arma recém-disparada. A edição, de 1997, da Companhia das Letras, tem na capa o desenho de
um sujeito bem trajado correndo sobre um vale, e substituindo sua cabeça a imagem de uma
pequena chama de fogo exalando fumaça.
201
Esta e outras observações deste tópico se baseiam principalmente em KUSHNIR, Beatriz.
Depor as armas: a travessia de Cony e a censura no Partidão. In: REIS FILHO, Daniel Arão
(org.). Intelectuais: história e política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.
88
sobretudo entre os comunistas do PCB. Consta que Cony respondeu que o
mudaria uma vírgula, e ainda insistiu em manter as cenas mais fortes, como a do
estupro da principal personagem feminina, Vera, por um guerrilheiro negro, com
a aprovação de Macedo, e a condenação do PCB aos guerrilheiros.
Contudo, o sucesso de vendas foi imediato. Tal como o lançamento de O
ato e o fato, que se esgotou no primeiro dia de vendas o que determinou a
publicação, no mesmo ano, de quatro reimpressões , Pessach também
demandou uma segunda tiragem, de 4.500 exemplares. Ainda assim, de acordo
com Cony, muitos livreiros que solicitavam a obra não eram atendidos sob a
alegação de que o romance estava esgotado. Porém, em muitos casos, continua
ele, o fato foi que intelectuais ligados ao Partido Comunista, com influência na
editora ou que nela trabalhavam, se mexiam para que o livro fosse esquecido nos
depósitos da Civilização Brasileira. Essas pessoas tinham em mais alta
consideração Quarup, de Antônio Callado, obra de temática semelhante que não
desancava o Partidão. Era a censura promovida por parte da esquerda ligada ao
PCB. Para Cony, em entrevista, em 28 de julho de 1996, à Folha de S. Paulo,
Pessach
foi sabotado de toda maneira, inclusive dentro da editora, a
Civilização Brasileira. Havia um grupo grande do Partidão com
interferência na editora. O livro foi considerado uma pedra no
sapato. Achava-se que o era o momento de questionar a
pureza ideológica, a pureza tática da esquerda. Ora, não fiz outra
coisa a não ser isso. Levei para a ficção o meu questionamento
como jornalista. Não é porque eu critico o vencedor que estou
dando razão ao vencido.
202
Indo de encontro a esse discurso de boicote a Pessach, Leandro Konder e
Ferreira Gullar, então integrantes do comitê cultural do PCB, no Rio, negaram
que tenha ocorrido essa perseguição. Em depoimento a Beatriz Kushnir, Konder
relatou que a censura ao livro, bem como a quaisquer outras obras, nunca foi
pauta de reunião do comitê cultural, pois ele
202
Apud idem, ibidem, p. 234.
89
nunca tomou nenhuma decisão relativa à obra ou à avaliação de
obra nenhuma de ninguém, da atividade de uma pessoa. Por
que? Porque a nossa concepção era de que o comitê cultural
seria o lugar de coordenação, de concatenação de movimentos,
que não passavam pela criação cultural, passavam pela ação
política. Na hora de coordenar ações poticas de diferentes
áreas, nós desempenharíamos um papel, essa era a nossa
concepção. Então, eu nunca me lembro de [ter havido censura].
Me lembro de opiniões pessoais. Nunca houve discussão [oficial
no interior do partido a respeito de obras individuais].
Eu acho que uma pessoa que conhece o Partido Comunista
através de livros, de relatos, através da história de alguns
momentos da militância comunista, da atividade comunista em
outros países em outras épocas, fica muito marcado por isso. E
isso alimentou uma certa paranóia. Eu acho que Cony, por
nunca ter sido do partido, ele projeta alguns fantasmas [no que
seriam as atividades] da milincia.
[...] No caso do Rio de Janeiro, o comitê cultural, eu posso
garantir que nós dissemos muitas bobagens, fizemos análises
políticas absolutamente equivocadas, mas em nenhum momento
nós fomos muito stalinianos.
203
No curso do artigo mencionado, após esse comentário de Konder,
Beatriz Kushnir relata declarações de jornalistas que diziam que sim, que o PCB,
por meio de seus militantes, utilizava de seus postos-chaves na imprensa para
engrandecer ou esquecer alguém. E mais, a autora ainda se refere a um
depoimento de Raquel de Queiroz, no qual afirma ter sido pressionada pela
cúpula do PCB, nos tempos de Getúlio, para alterar formulações no enredo de
certos personagens.
204
O fato é que essa polêmica sobre a censura promovida por
setores da esquerda ao romance de Cony nunca cessou quando o assunto em
discussão é o impacto da obra. Isso ocorreu tanto na década de 60 quanto na de
90.
Como nos informa Beatriz Kushnir,
para Cony, nas declarações contemporâneas à terceira edição de
Pessach, o PCB de fins dos anos 60 era um partido sem
qualquer expressão no cenário potico. Isto porque, na sua
análise os grupos que não seguiam as regras do partido eram os
203
Apud idem, ibidem, p. 235 e 236.
204
Cf. idem, ibidem, p. 236 e 245.
90
que efetivamente estavam lutando contra a ditadura civil-militar
do pós-64.
205
Afirmar, como o fez Cony, que o PCB era, então, um partido inexpressivo,
põe à nostra, acima de tudo, a mágoa do autor ao tratamento dispensado ao seu
livro nas hostes do Partidão. Para não irmos muito longe, a própria Beatriz
Kushnir destaca que, entre 1974 e 75, nove militantes do partido foram
assassinados por agentes da repressão, parte da direção foi exilada e o jornal
oficial do PCB, Voz operária, transferido para o exterior
206
, pois a perseguição
aos comunistas permanecia na ordem do dia da ditadura. Deve ser sublinhado,
entretanto, que a orientação que prevaleceu no Partidão, reafirmada no VI
Congresso realizado no final de 1967, foi a da constituição de uma frente
democrática, que envolvia a aposta numa aliança com setores oposicionistas da
burguesia (a decantada burguesia nacional”) como forma de pavimentar o
caminho rumo ao socialismo, sem recorrer ás armas.
207
Tal postura foi entendida, em muitas áreas da esquerda, como
capitulacionista. Por outro lado, passada quase uma década, a Voz operária,
como acentuou Dulce Pandolfi, tornava a bater na tecla do acerto posição do
partido, ao proceder a uma análise retrospectiva:
a maioria dos agrupamentos de esquerda favoráveis à luta
armada havia sido dizimada pela ditadura. O PCB também não
tinha passado incólume pela repressão, mas tinha conseguido
sobreviver. [Portanto,] os louros da vitoria deveriam recair sobre
o PCB. “O êxito da oposição representou também uma vitória da
orientação política dos comunistas e confirmou a justeza da
linha potica do PCB. [Resolução Política do Comitê Central,
dezembro de 1975].
208
Vale mais uma vez contextualizar essa visão vitoriosa do Partidão, que
era naquele momento a maior e a mais experiente organização comunista do país.
O MDB, (Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição tolerado pelo
205
Idem, ibidem, p. 231.
206
Idem, ibidem, p. 230.
207
Sobre o assunto, ver GORENDER, Jacob. Combate nas trevas a esquerda brasileira: das
ilusões perdidas à luta armada. 3. ed. São Paulo, Ática, 1987, p. 9092.
208
Apud KUSHNIR, Beatriz, op. cit., p. 230.
91
regime) apoiado pelo PCB, acabara de conquistar um enorme triunfo eleitoral
pelo Brasil em 1974, em pleno governo ditatorial de Ernesto Geisel. Isso, à
primeira leitura dos acontecimentos políticos de então, abria espaço para a
transição democrática pela via do voto (no caso, houvera uma escolha restrita a
deputados e senadores), ao exprimir a manifestação de amplos setores da
sociedade brasileira.
Ao retomar o papel do Partidão num momento anterior, em outra
entrevista, datada de 1998, Leandro Konder explica as decisões partidárias nos
anos 60:
Então a nossa idéia era que a questão democrática, que era a
questão essencial, dependia de um aproveitamento da questão
nacional, que estava formulada de uma maneira que, hoje
sabemos, é bastante limitada. Mas que na época era vista como
algo que nos convinha. Nesse sentido, eu achava que o VI
Congresso era um avanço. Por outro lado, s estávamos
convencidos de que a luta armada era um beco sem saída. Então,
também tinha esse outro lado. O partido era, das organizações
revolucionárias de esquerda, a mais experiente, a mais antiga e
aquela que percebia com maior clareza a inviabilidade da luta
armada. O que não quer dizer que nós estávamos certos e os
outros, errados. Porque no erro dos outros havia uma iniciativa
que ia além da nossa falta de iniciativa. Quer dizer, eu acho que
nós errávamos, porque a nossa [...] lucidez nos paralisava. Então
o era uma lucidez efetiva.
209
Envolvido na conjuntura de seu tempo, Cony parecia não ter dúvidas de
como seria a reação do PCB caso houvesse, de fato, uma escalada dos
movimentos armados no Brasil. Assim, ele atribuiu ao Partidão uma reação
bastante pertinente se observarmos o resultado histórico 40 anos mais tarde que
veio a se confirmar pouco depois do lançamento do romance, com o IV
Congresso do PCB. Diante do quadro de agravamento das tensões sociais e da
crescente crítica tanto interna quanto externa ao partido, nem a cúpula manteria
sob seu controle os caminhos trilhados por muitos (ex) militantes da sigla.
209
Idem, ibidem, p. 231.
92
Essa opção fez com que o Partidão perdesse importantes quadros, como
Marighela, Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho. Considerando
as co-relações entre o momento de gestação do romance durante 1966 e 1967 ,
seus personagens apontam para a necessidade de ruptura com o PCB, que
significava para eles um retrocesso político e até mesmo uma ameaça aos fins
revolucionários da esquerda. Um caso real ilustra quase simultaneamente as
cisões que se verificaram. Em agosto de 1966, Carlos Mariguela, como foi
dito, ao romper com o PCB, ajudou a fundar outro agrupamento político que se
lançaria à ação armada: a partir de 1967 a ALN (Ação Libertadora Nacional)
assumiu um papel semelhante ao grupo clandestino que vivia na fazenda que
aparece em Pessach.
Transcorridas três décadas, ao que parece, a posição de Cony sobre o
Partidão permanecia inalterável:
Cony acha que a resistência à ditadura militar foi feita por não
comunistas, que o PC até atrapalhava: Eu fui preso seis vezes e
nunca encontrei um comunista preso. O PC não lutava contra a
ditadura. Quem lutava era AP, os socialistas, diversos porras-
loucas isolados, movimentos independentes. Os comunistas não
apoiavam isso, diziam que eram aventuras pessoais,
personalistas, pequeno-burguesas.”
210
No entanto, é conveniente ressaltar que a crítica de Cony, apesar de ser
mais contundente com o PCB, abrange todo o campo da esquerda. Ares de
admiração e desconfiança compõem a imagem que o autor constrói sobre grupos
de tendência socialista ou comunista. Em diversas passagens, o romance ironiza
segmentos da esquerda que acreditavam que o momento era propício para uma
insurreição armada. Em outros momentos o protagonista é o próprio testemunho
das incoerências e das ilusões que tornavam a ambição da vitória sobre o governo
uma impossibilidade real.
O ato de bravura, de romantismo heróico, presente no encerramento da
obra pode ainda exprimir a quantas chega o grau de uma coragem quase suicida,
210
SÁ, Vera. Partido Cony. In: Revista República, São Paulo, v. I, n. 7, maio/1997.
93
que, enfim, marcou tantas pessoas que tiveram o destemor de pegar em armas em
vez de se acomodar diante da ditadura.
94
3.2 A recepção do romance na imprensa brasileira
[Pessach é o] livro que melhor registra na
literatura do Brasil a angústia da época
mais neurótica dos tempos modernos.
Antônio Callado
Ao longo da trajetória da edição e das reedições de Pessach, não foram
poucas as discussões desatadas em torno do livro. E o que não faltou, como se
pode depreender do tópico anterior, foram opiniões diversificadas que atendiam a
diferentes gostos políticos.
Num artigo de 1967, “A travessia de Cony”, Otto Maria Carpeaux lembra
que, até a produção de Pessach, Cony escrevia sobre a “atmosfera opressora
contra a qual se insurge o indivíduo”
211
, produzindo a figura do rebelde contra
alguma norma social. Porém, no romance político, o autor se pôs a expressar uma
rebeldia contra a própria sociedade como um todo. A visão de Otto a respeito
desse sentimento de descrença em relação à sociedade, que marca a produção
literária de Cony, é reafirmada pelo próprio autor de Pessach ao dar um balanço
de sua obra: “O que passa por todos os meus livros, o eixo deles, é uma profunda
descrença no ser humano [...]. Meus livros desprezam, mas também assumem a
condição humana.”
212
Ainda segundo Caepeaux, o romance consegue com êxito
esclarecer consciências e atravessar a fronteira que separa as aparências da
realidade.
A Travessia ajusta conta com as mistificações do passado.
Podem-se abrir, por mais incerta que seja a passagem, as portas
211
CARPEAUX, Otto Maria. A travessia de Cony. Jornal do Brasil, Suplemento do Livro, 15
jul. 1967, p. 4.
212
Apud CARPEAUX, Otto Maria. A direita e a esquerda de um romancista fiel a si mesmo. O
Globo, Segundo Caderno, 23 mar. 1997, p. 1.
95
para o futuro. Essa dialética determina a estrutura do romance.
A primeira parte de Pessach: a travessia desmascara,
impiedosamente, a vida que foi mera aparência de vida. A
segunda parte abre a perspectiva, para uma vida que o foi e
o será, talvez, mas que foi possível e será permanentemente
possível.
213
Diferentemente de Leandro Konder, que preferiu a primeira parte do livro,
Carpeaux aponta que a segunda parte, que a princípio deveria ser muito mais
ficção que a primeira, é na verdade mais real em virtude da conjuntura do
período:
O milagre é que essa inventada vida de guerrilheiro parece mais
real que a outra, a realmente vivida. Pois a luz que ilumina
obliquamente essa realidade apenas possível emana do momento
histórico que destruiu aquela existência vivida e a de todos nós
outros, mas que a todos nós oferece, paradoxalmente, a opção de
libertar-nos; a da revolta.
214
A análise de Otto Carpeaux testemunha como uma parcela de leitores
brasileiros receberam a mensagem da obra, e mais, na condição de intelectual
engajado, ele visivelmente almeja retransmitir aos leitores a gravidade do cenário
político e a importância da ação:
Poderei deixar de ocupar-vos com potica, mas a potica o
deixará de ocupar-se conosco. Carlos Heitor Cony aceitou o
desafio. Conseguiu libertar-se ao preço de ficar sozinho com sua
liberdade [e com seu destino, a última página do romance]: é
uma página de grande prosa, instrumentada com uma sinfonia
e é um apelo.
215
Outro artigo, de junho de 1967, publicado no Jornal do Brasil, endossa a
opinião de Carpeaux, segundo a qual, estruturalmente, o romance de Cony está
muito bem construído. Para José Carlos Oliveira, a travessia anunciada pelo
título seria a ruptura da vida pacata para a luta social. Nesse sentido, a analogia
bíblica vem justamente preencher a lacuna da dúvida entre engajar-se ou não, e
213
CARPEAUX, Otto Maria, A travessia de Cony, op. cit., p. 4.
214
Idem.
215
Idem.
96
indicar o caminho da ação coletiva. O autor vai ao ponto de condenar
diretamente a avaliação de Leandro Konder sobre as limitações estéticas da
segunda parte do romance:
A primeira estrutura, para quem conhece o autor, parece
desagradável ao longo de dezenas de páginas. Não que esteja
mal escrito ou seja falsa: é que a gente ali a própria situação
de Cony, romantizada em alguns pontos e literal na maior parte
do tempo. Na segunda estrutura, contudo, autor e personagem
decolam. não vemos Carlos Heitor Cony autobiográfico, e
sim a imagem que ele deseja firmar de si mesmo e dos
intelectuais brasileiros em geral. Saímos do romance para entrar
na ficção potica. Apresentando o livro, Leandro Konder
considera estranhas essas duas estruturas, dizendo “Ao meu ver,
a audácia acarretou certo prejuízo estético para a unidade, o
equilíbrio da obra”. Nada mais errôneo. Cony descreve
justamente uma cisão brutal na vida de um homem.
216
Certamente às análises de Carpeaux e Oliveira estão enraizadas nos
sentimentos e no calor dos acontecimentos de 1967. Além da amizade e
admiração por Cony, suas palavras naquele momento se sintonizam talvez com
leitores descontentes com o regime militar. Todavia, essa dissonância entre
críticos da obra em nada compromete a unânime opinião de que Carlos Heitor
Cony e seu engajamento no terreno político constituíram um importante elo na
corrente formada pelo setor intelectual que assumiu a luta contra o regime
militar. Essa condição também foi salientada por José Carlos Oliveira.
Todos nós lembramos de Cony antes do 1 de abril de 1964:
brilhante, grosseiro, cínico, sensual, pornográfico e desesperado;
e ainda temos diante de nós o Cony posterior ao golpe de Estado
veemente, um pouco perdido, sempre generoso e valente.
Pessach é a soma dessas duas existências que se chocam, mas
o se desmentem. Trata-se de uma cartilha para o leitor perdido
no meio do planeta; é a história de uma experiência purificadora,
cujo ponto mais alto coincide com a perda total de tudo, em
troca da consciência clara e do desejo de violência libertadora.
Pela primeira vez na literatura brasileira, o romance se iguala em
originalidade e audácia, ao cinema novo. O próprio autor
recentemente reivindicou uma semelhança estrutural e
ideológica entre o seu livro, o filme Terra em transe e o
216
OLIVEIRA, José Carlos. Pessach. Jornal do Brasil, 9 jun. 1967, p. 32.
97
romance Quarup, de Antônio Calado, ainda inédito. Deste
último, naturalmente, não podemos dizer nada; mas eu posso
assegurar sem exagero que Carlos Heitor Cony, com Pessach,
criou qualquer coisa que futuramente merecerá o nome de
romance brasileiro. Um romance carregado de sentimento,
escrito dentro da confusão, avançando na direção de uma
esperança clara e difícil. Da mesma forma como a juventude
aderiu a Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, Cony
atraios melhores dentre nós aqueles para os quais escrever,
por exemplo, não é um luxo que conduz à Academia, e sim uma
arma com a qual podemos lutar contra os inimigos do homem.
217
O sucesso de Pessach foi um fato entre os leitores. Am da necessidade
de uma segunda tiragem, como foi mencionado, o romance permaneceu por
longo tempo na relação de best-sellers do Jornal do Brasil (JB). O JB publicava
todo mês a relação dos livros mais vendidos no país e os destacava em artigos no
caderno “Suplemento do Livro”. Entre junho e novembro de 1967, outra obra
que figurava próxima do topo do ranking era Quarup, de Antônio Callado. Ainda
compunham a lista O casamento, de Nelson Rodrigues, Vidas secas, de
Graciliano Ramos, As cariocas, de Sérgio Porto, e Tutaméia, de Guimarães Rosa.
Depois de toda discussão sobre Pessach não é demais perguntar: aque ponto a
cortina de silêncio estendida pelo PCB teve influência na divulgação e nas
vendas do romance? Não seria, talvez, o livro de Cony o grande sucesso de 1967
caso não tivesse sido boicotado?
Após quatro décadas de seu primeiro lançamento e mais de duas décadas
da segunda reedição, Pessach: a travessia foi novamente publicado em 1997 pela
Companhia das Letras. O que artigos de jornais nos anos 90 m evidenciado, ao
tratarem da terceira edição, diz respeito à importância de manter viva a memória
nacional, que no caso envolve o regime militar e suas múltiplas conseqüências.
Dessa maneira, o romance foi e ainda é considerado uma espécie de reação à
ditadura, ao denunciar a violência política e sugerir, seja de que forma for, o
caminho do enfrentamento.
Em abril de 1993, foi estampada uma extensa matéria na Folha de S.
Paulo intitulada “Dois livros que sairão da prisão”. Nela, Cony analisou o
217
Idem.
98
romance político de Callado, e este por sua vez fez o mesmo com o livro do ex-
colega de sela. Segundo Cony, recuperando uma fala de Franklin de Oliveira,
Quarup ficou sendo para os anos 60 o mesmo que Grande sertão: veredas foi
para os anos 50”. E acrescenta que a obra
tampouco seria um romance sobre a vida, mas sobre a época de
uma vida coletiva [...] Num livro como Quarup o importante
nem sempre é a história, a sucessão de takes‟ que formam o
enredo. Obra maior de nossa literatura, o romance de Callado é
sobretudo uma exibição de técnica.
218
Já Callado ressalta o papel engajado que Cony assumiu depois do golpe de
Estado. Quanto a Pessach, ele afirma que
O livro nos mergulha de cabeça nesse escritor-personagem que
está completando, ao começar o romance, 40 anos de idade e
ambiciona ser deixado em paz, para, vagamente, escrever. Mas
ao redor dele o mundo ameaça [...] Cony cria um surrealismo de
rédea curta, seco, literalmente bem administrado já que o
fantástico não decola um instante sequer do natural, do
cotidiano.
219
No Caderno B” do Jornal do Brasil, de março de 1997, uma gina
inteira dedicada às aventuras literárias nos anos de chumbo. Abaixo do título
“Passado exorcizado” texto de André Luiz Barros , a página se divide entre o
texto da matéria em si e uma mistura de fotos referentes ao regime militar
(soldados, armas, militantes em atos de protestos), em que se forma o mero 64.
Entre os dois meros ainda uma caneta debruçada com manchas vermelhas
que dela escorrem. A arte gráfica, de responsabilidade de Alvim, é um
comentário à parte no jornal. É a caneta dos escritores, em que tinta e sangue se
mesclam, a exemplo do ocorrido de 64 em diante. O subtítulo traz a informão
“Atual ficção brasileira troca os relatos épicos pelas experiências pessoais e a
crítica aos equívocos e revê os anos de chumbo da ditadura militar no país”. Mas
218
CONY, Carlos Heitor. Dois livros que sairão da prisão. Folha de S. Paulo, 4 abr. 1993, p. 6.
219
CALLADO, Antônio. Dois livros que sairão da prisão, op. cit., p. 6.
99
a matéria deixa a desejar quando classifica Pessach simplesmente como “ficção
em forma de crítica aos equívocos da esquerda no período.
220
A manchete do Segundo Caderno de O Globo, também de março de 1997,
chama a atenção para “Uma travessia contra a corrente”, tendo como subtítulo:
“Reedição de Pessach expõe as relações entre Partido Comunista e a cultura”. O
texto do jornalista Paulo Roberto Pires enfatiza que o romance é um velho livro
que assume ares de obra inédita”. O jornalista se atém principalmente ao
processo de retaliação enfrentado pelo escritor e sua obra. Tanto é que o artigo
reproduz em suas primeiras linhas a conhecida frase “Esse livro vai ser o seu
túmulo” de Otto Maria Carpeaux. A intenção é inteirar o leitor de toda a
polêmica que acompanhou o lançamento do Pessach.
Estranhando o silêncio que se seguiu ao entusiasmo inicial da
crítica, Cony se deu conta que o PCB replicava seus ataques. Em
vez de artigos ou resoluções oficiais, o escritor enfrentou o que
descreve como silêncio e sistemático boicote. O livro sumiu
basicamente por causa do Partido, que se sentiu ofendido ao se
ver retratado como traidor da guerrilha lembra Cony.
221
A matéria de O Globo continua na gina 5 do Segundo Caderno. Lá,
Paulo Roberto Pires enfoca basicamente a três assuntos. Primeiramente,
seqüência à discussão sobre a retaliação silenciosa do PCB, porém abre espaço
para os que se situam no outro lado dessa história. Segundo o poeta Moacyr
Félix, que na época era membro do PCB e editor da Revista Civilização
Brasileira, não houve retaliação alguma ao romance; mas fica difícil acreditar
nisso uma vez que no corpo do texto consta a informação de que, sem ter
chegado a ler Pessach, Félix garante que o houve boicote.
222
Em segundo
lugar, é lembrado o itinerário percorrido pelo jornalista e romancista Cony pós-
golpe de 1964: “das crônicas corajosas ao romance político.”
223
E, por fim, o
texto põe em relevo o sujeito indiferente á ideologia política e decepcionado com
220
BARROS, André Luiz. Passado exorcizado. Jornal do Brasil, Caderno B, 31 mar. 1997, p. 2.
221
PIRES, Paulo Roberto. Uma travessia contra a corrente. O Globo, Segundo Caderno, 23 mar.
1997, p. 1.
222
Idem, ibidem, p. 5.
223
Idem.
100
o ser humano. “A direita e a esquerda de um romancista fiel a si mesmo: Cony
diz que sua obra fala da descrença no ser humano.
224
A arte gráfica contida na capa do Segundo Caderno ocupa quase toda a
extensão da gina. Reveladora de muito talento crítico, a imagem editada por
Cláudio Duarte expõe fragmentos de ginas rasgadas do romance, que,
distribuídas, formam claramente o mbolo do Partido Comunista: a foice e o
martelo.
Em meio a tudo isso, é ainda interessante perceber que, ao longo dos
artigos relacionados ao romance Pessach, a retomada da trajetória política de
Cony, iniciada nos tempos do Correio da Manhã, se converte um tema quase
obrigatório. É o caso de Ruy Castro, que frisa:
Enquanto outros funciorios intelectuais progressistas se
omitiram ou aderiram à nova situação, Cony passou da
alienação ao panfleto com um atrevimento quase suicida em sua
coluna no Correio da Manhã: denunciou as perseguições e
torturas, zombou dos militares e propôs abertamente a anistia e a
volta ao Estado de direito. Sua cruzada era muito mais humana
que potica.
225
224
Idem.
225
CASTRO, Ruy. Pessach, de Cony, fura um silêncio de 30 anos. O Estado de S. Paulo, 8 mar.
1997, p. 8.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
102
Antes de colocarmos um ponto-final nesta dissertação, parece-nos
conveniente assinalar, de forma explícita, algumas diferenças de perspectiva de
análise em relação a trabalhos que se ocuparam da trajetória literária percorrida
por Carlos Heitor Cony e, em especial, de Pessach: a travessia.
Uma primeira questão a ressaltar é que essa obra, segundo determinados
analistas, teria adquirido um tom fundamentalmente autobiográfico. De fato, num
rastreamento atento dos elementos que compõem seu enredo, é possível
apreender notadamente na primeira parte um conjunto de dados e situações
que conformam a história de vida de Cony. Porém, salta aos olhos,
particularmente na segunda parte, que a criatura, por assim dizer, se descola do
criador e passa a viver uma experiência inusitada em toda a existência do
escritor. O caráter ficcional do livro ganha corpo, então, desvencilhando-se de
experiências mais específicas vividas pelo autor (o que, obviamente, não deve
nos fazer ignorar uma série de referências poticas próprias do momento político
no qual Cony se insere de maneira inescapável). Numa palavra, o personagem,
no correr do livro, se desprende do autor e cai por terra, sob diferentes aspectos,
aquilo que Pessach contém de autobiográfico.
No esforço, em geral mal-sucedido, para traçar um estreito paralelo entre
autor e obra, criador e criatura, não são poucos aqueles que estabelecem um corte
radical entre o Cony alienado” do pré-64 e o Cony politizado” do pós-abril de
1964, que, quase por passe de mágica, se teria convertido daí sua travessia
pessoal em um escritor engajado, deixando para trás um passado de
despreocupação com a vida social e política do país. Paulo Simões, figura central
no romance examinado, seria a encarnação, no campo literário, do alter ego de
Cony: ele que, ao abandonar, no final das contas, o pequeno e pacato mundo
pequeno-burguês em que se trancara, daria um salto, a partir de uma espécie de
“iluminação” progressiva, rumo à conscientização política dos dilemas da
ditadura militar e da necessidade de enfrentá-la, inclusive pegando em armas.
Disso adviria uma pretensa glorificação da luta armada.
Não compartilhamos dessa visão “evolucionista”, que, no fundo, lança
Paulo Simões e/ou Cony, tanto faz, numa espiral que o(s) conduziria do estado de
103
inconsciência política ao da consciência do seu tempo. Em toda obra, mesmo
quando, sob a ação de uma somatória de fatores políticos um tanto quanto alheios
à sua vontade, Paulo Simões é levado a assumir a luta armada, o personagem
jamais se convence da inevitabilidade desse caminho e muito menos do seu
acerto e viabilidade como modo de reagir ao Estado tirânico que se impôs ao
Brasil. Dúvidas, hesitações, vacilações quando não a certeza de que esse
recurso às armas será inglório acompanham, de cabo a rabo, a história do
personagem. Sua decantada “conscientização política” (aqui resumida à
emergência da consciência política de que é preciso pegar em armas para lutar
contra a ditadura) está muito mais presente nos cabeça de quem Pessach do
que propriamente nas páginas do romance.
Além do mais, freqüentemente esse livro de Cony foi concebido como um
acerto de contas com a postura objetivamente conciliatória, ou seja, de oposição
moderada do PCB diante do regime militar. Nele o autor daria vazão não só à sua
indignação ante a implantação da ditadura como também àquilo que foi
identificado por muitos como a inércia do Partidão. Efetivamente, as críticas de
Cony um crítico confesso dos comunistas àquele que era o maior partido de
esquerda no Brasil recheiam Pessach, razão pela qual ela esteve longe de ser bem
recebida nas hostes do PCB. Em meio a essa linha de análise, o que escapa aos
observadores, entretanto, é que, independentemente do posicionamento pessoal
de Cony,
226
uma obra em si mesma pode conter elementos que colidem com o
posicionamento consciente/deliberado de seu autor.
Tal é o que ocorre, a nosso ver, de Pessach. Por mais que, no plano
pessoal e no plano do livro executado por Cony, o romance pelo que foi posto
na boca dos personagens se insurja contra a política dos comunistas nucleados
em torno do Partidão, no desfecho da história uma ironia que pode, no limite,
226
Lucien Goldmann, um estudioso da produção literária, chamou a atenção, bem antes da
consagração da História Cultural nos meios acadêmicos, para o fato de que autor e obra podem
inclusive entrar em colisão, a ponto de um livro ter e/ou adquirir um sentido que não estava
necessariamente presente no ato de sua criação. Ver, a propósito, o ensaio “Materialismo
dialético e história da literatura” em GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1967.
104
ter se colocado acima das intenções do autor. O que se evidencia, no caso, numa
obra finalizada em 1967, é o fracasso da luta armada em sua tentativa de ser um
modus operandi eficaz de lutar contra a ditadura ou pelo menos de forçá-la a
fazer concessões na direção da “democratização” do país. Em diversos momentos
do enredo, mesmo entre os guerrilheiros, surge, indiscutível, a percepção de que
eles não reuniam condições para enfrentar, na área militar, as Forças Armadas.
Poderiam, isso sim, na ótica deles, forçar o regime a negociar uma saída para a
ditadura à base de “concessões mútuas”. Nas páginas finais de Pessach, no
entanto, esse sonho, árdua e heroicamente acalentado pelos combatentes do
regime, se evapora. Com todos eles mortos, exceto Paulo Simões, resta a este,
numa atitude romântica e solitária, cruzar de novo a fronteira que separa o
Uruguai do Brasil e retornar ao seu país, empunhando uma metralhadora, como
se fora, no campo simbólico, o prenúncio de que “a luta continua”. Luta, nesses
termos, fadada ao insucesso, como que verá, anos depois, no combate sem
tréguas movido no governo ditatorial Garrastazu Médici às organizações que
optaram pela via da luta armada.
Escreveu-se muito sobre o sentido “premonitório” de Pessach, que entre
1966 e 1967, antenado com as ebulições da situação política gerada no pós-64,
teria vaticinado para onde caminharia a resistência ao regime (não voltaremos a
falar aqui da tentativa de pôr em marcha a Guerrilha do Caparaó que, por essa
época, se articulou na divisa dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais). O
que parece passar despercebido a muitos analistas é que, com uma certa licença
poética, para usar uma expressão deles, o que de “premonitório” no livro de
Cony é que, ao fim e ao cabo, ele prenuncia, isso sim, ainda que de forma
oblíqua, a contundente derrota da luta armada, com seu esmagamento pela
ditadura.E nisso eis a grande ironia dessa história , quaisquer que fossem as
intenções que embalaram o autor de Pessach, o PCB tinha razão ao enfatizar sua
condenação à alternativa que alimentou as esperanças de tantos bravos militantes.
Por maiores que sejam, historicamente, os “erros”, os “equívocos”, os desvios
cometidos pelo Partidão um partido que fez alarde, durante muito tempo, de
105
sua profissão de stalinista nesse ponto, ao menos, seja por ação, inação ou
omissão (ou tudo isso), ele, repetimos, tinha razão.
106
BIBLIOTECAS CONSULTADAS
107
Biblioteca da Universidade de Brasília.
Biblioteca da Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
Biblioteca da Universidade Federal de Goiás/Catalão.
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