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UFRJ
HELENISMO E CLASSICISMO NA ESTÉTICA ALEMÃ
Pedro Süssekind Viveiros de Castro
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGF), Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
Orientador: Roberto Machado
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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ii
HELENISMO E CLASSICISMO NA ESTÉTICA ALEMÃ
Pedro Süssekind Viveiros de Castro
Orientador: Roberto Machado
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Aprovada por:
Presidente, Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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iii
Castro, Pedro Süssekind Viveiros de.
Helenismo e classicismo na Estética alemã/ Pedro Süssekind Viveiros de. – Rio de
Janeiro: UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, 2005.
ix, 279f: 30cm.
Orientador: Roberto Machado
Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 272-279.
1. Estética. 2. Filosofia Alemã. 3. Classicismo de Weimar. I. Machado, Roberto. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título.
iv
Agradecimentos
a meu orientador Roberto Machado, com quem foi um grande prazer trabalhar nos
últimos quatro anos; a Fernando Rodrigues, Vladmir Vieira e Viviane de Lamare,
meus colegas do grupo de estudos sobre a época de Goethe; ao CNPQ, instituição
da qual fui bolsista; a Fátima Saadi, Ricardo Barbosa e Pedro Costa Rego, cujos
comentários e textos foram fundamentais para esta tese; a Nina Becker, pela
paciência e pelo apoio.
RESUMO
Helenismo e classicismo na Estética alemã
Pedro Süssekind
Orientador: Roberto Machado
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
O presente estudo pretende mostrar como se articulam o helenismo e o
Classicismo na estética alemã da época de Goethe. Para isso, é necessário analisar
as obras de alguns dos principais teóricos desse período, como Winckelmann,
Lessing, Goethe e Schiller. A obra de Winckelmann será considerada como uma
fundamentação do Classicismo helenista alemão da última década do século
XVIII, cujo projeto era imitar o ideal de beleza da arte grega. Já a obra de Lessing
será pensada como o início a uma crítica ao Classicismo francês, propósito que
orientou o Sturm und Drang, ou pré-Romantismo, no qual Shakespeare foi
considerado como modelo para a dramaturgia alemã. Posteriormente, na fase
clássica de Goethe e Schiller, denominada Classicismo de Weimar, este estudo
pretende ressaltar a retomada das idéias de Winckelmann. Goethe e Schiller
propõem uma discussão teórica e uma realização artística do Classicismo,
incorporando a fundamentação e a crítica, já que a questão do helenismo, da
imitação dos gregos antigos, se insere em uma discussão sobre os parâmetros para
a criação artística moderna.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
vi
ABSTRACT
Grecism and Classicism in German Esthetics
Pedro Süssekind
Orientador: Roberto Machado
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
The following work intends to show how the Classicism and the Grecism are
articulated in the German esthetics at the time of Goethe. Therefore, it is
necessary to examine the works of theoreticians like Winckelmann, Lessing,
Goethe and Schiller. Winckelmann’s work will be considered as a foundation to
German Grecism and to the classical period that took place at the last decade of
the eighteenth century, based on the imitation of the ideal of beauty in Greek art.
Lessing’s work will be analyzed as the beginning of a criticism on the French
Classicism, a criticism that oriented the Strum und Drang, literary movement in
which Shakespeare was considered a model to German dramaturgy. Thereafter,
this work intends to show how the classical period of Goethe and Schiller, known
as Weimar Classicism, renews Winckelmann’s ideas. Goethe and Schiller propose
a theoretical discussion and na artistic realization of the Classicism; in doing so,
they articulate Winckelmann’s foundation and Lessing’s criticism, since the issue
of Grecism - as the imitation of the ancient Greeks - is discussed as a standard to
modern poetry.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
vii
Sumário
Introdução ........................................................................................................... 1
1. O helenismo ..................................................................................................... 1
2. O Classicismo .................................................................................................. 6
3. Poética e Estética ............................................................................................ 9
4. Goethe “e” Schiller ......................................................................................... 12
5. O método ......................................................................................................... 14
Capítulo 1 - O Laocoonte ou sobre as bases do Classicismo de Weimar ...... 17
1. A Alemanha da época de Goethe ................................................................. 17
2. Crítica e criação ............................................................................................. 20
3. Helenismo ....................................................................................................... 24
3.1. O papel de Winckelmann ........................................................................... 24
3.2. Goethe leitor de Winckelmann .................................................................. 29
3.3. A imitação dos antigos ............................................................................... 31
4. A teoria crítica de Lessing ............................................................................ 43
4.1. Lessing e o teatro alemão .......................................................................... 43
4.2. O grito de Laocoonte ................................................................................. 47
5. O Laocoonte retomado por Goethe e Schiller ............................................ 57
5.1. Laooconte como herói trágico .................................................................. 57
5.2. A análise da escultura ............................................................................... 63
Capítulo 2 - Shakespeare contra o Classicismo francês ................................ 75
1. Sófocles e Shakespeare ................................................................................ 75
viii
2. A recepção de Shakespeare ......................................................................... 79
3. Lessing: a luta contra os cânones clássicos ................................................ 81
4. Shakespeare no pré-Romantismo ............................................................... 85
4. 1. Lenz versus Goethe ................................................................................. 89
4. 2. Herder e o pensamento histórico ........................................................... 93
5. Consideração sobre o Romantismo ........................................................... 100
6. Schiller crítico de Shakespeare ................................................................. 105
7. Goethe e Shakespeare ................................................................................ 109
7.1. Para o dia de Shakespeare ...................................................................... 111
7.2. Shakespeare e o sem fim ......................................................................... 114
7.3. Wilhelm Meister ...................................................................................... 127
Capítulo 3 - Goethe e Schiller ....................................................................... 139
1. Weimar ....................................................................................................... 139
2. Viagem à Itália ........................................................................................... 145
3. A teoria da arte de Goethe ........................................................................ 153
3.1. A mímese e o estilo .................................................................................. 153
3.2. O projeto classicista ................................................................................ 160
3.3. Antigos e modernos ................................................................................. 170
4. Schiller e a teoria da arte moderna........................................................... 175
4.1. A repercussão de Schiller ....................................................................... 175
4.2. Questões estéticas .................................................................................... 180
4.3. Tragédia e liberdade: o exemplo de Maria Stuart ............................... 190
5. Schiller e a Grécia ....................................................................................... 197
ix
Capítulo 4 - A poética no Classicismo de Weimar ........................................ 205
1. O encontro ................................................................................................... 205
2. Caminhos para uma mesma meta ............................................................. 211
3. A via de Goethe ........................................................................................... 216
4. O pensamento especulativo de Schiller ..................................................... 223
4.1. A carta de aniversário ............................................................................. 223
4.2. O ingênuo e o sentimental ....................................................................... 227
4.2.1. Conteúdo histórico ................................................................................ 227
4.2.2. Os termos ............................................................................................... 232
4.2.3. Labirinto terminológico ........................................................................ 237
4.2.4. A dimensão estilística e pessoal ............................................................ 246
5. A poética dos gêneros .................................................................................. 251
5.1. Schiller e o condicionamento histórico ................................................... 251
5.2. O estudo dos clássicos .............................................................................. 253
5.3. A correspondência .................................................................................... 254
Conclusão ......................................................................................................... 263
Bibliografia principal....................................................................................... 272
Bibliografia secundária.................................................................................... 275
Introdução
1. O helenismo
No final do século XVIII, o Classicismo alemão, na literatura, foi marcado
sobretudo pela idéia de uma imitação do ideal de beleza dos gregos antigos. A
concepção do helenismo, no sentido dessa proposta de imitação dos gregos,
encontra-se a princípio na obra do historiador da arte e arqueólogo Johann
Joachim Winckelmann, cujo projeto foi retomado e desenvolvido depois por
Goethe e Schiller. Vista sob a ótica desses autores, a Grécia se tornou um ponto
de referência para a Estética moderna alemã, mesmo no caso daqueles que
procuraram questionar seja a necessidade de imitar os antigos, seja a visão que se
tinha deles. Assim, o helenismo não se restringiu ao movimento literário orientado
pelo estudo da Antigüidade clássica, mas foi retomado e debatido na Alemanha ao
longo de todo o século XIX, tanto por poetas, quanto por filólogos e filósofos.
Em seu primeiro livro, de 1871, quando ainda era professor de filologia,
Nietzsche se refere à “nobilíssima luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela
cultura” como o tempo em que o espírito alemão se esforçou com mais vigor para
aprender dos gregos.
1
Segundo o autor, a aspiração de “chegar por uma mesma
via à cultura e aos gregos” se tornou cada vez mais fraca na Alemanha, o que
justificaria seu próprio esforço de compreensão dos gregos em O nascimento da
tragédia. Esse esforço era mais filosófico do que filológico, como demonstra a
polêmica suscitada pelo livro entre os cientistas da época. Em todo caso, a visão
dionisíaca de Nietzsche contesta justamente aquela concepção da época de
Goethe, na qual se valorizava sobretudo o caráter luminoso, solar, apolíneo da arte
grega, ou seja, o ideal de perfeição e beleza identificado na cultura dos antigos.
1
NIETZSCHE. O Nascimento da tragédia. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 121 (§ 20).
Questionando essa concepção, buscando definir a relação dos gregos com o
pessimismo, seu “anseio do feio”, suas imagens de “tudo quanto há de mais
terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico no fundo da existência”, o
filósofo procurou identificar a concepção de mundo presente nos mitos e na
música que deram origem à tragédia grega.
2
Assim, era com o helenismo de
Winckelmann, Goethe e Schiller, mais do que com as teorias filológicas de seus
contemporâneos, que Nietzsche dialogava, a fim de defender uma nova visão da
Grécia e da maneira como a Alemanha moderna poderia se apropriar da arte
grega. Essa discussão levou o autor, na tentativa de autocrítica escrita
posteriormente sobre seu primeiro livro, a propor um subtítulo: Helenismo e
pessimismo.
Como afirma E. M. Butler, em seu estudo A tirania da Grécia sobre a
Alemanha, “a Grécia de Winckelmann foi o fator essencial no desenvolvimento da
poesia alemã ao longo da segunda metade do século XVIII e de todo o culo
XIX”.
3
É possível estender essa afirmação à filosofia, lembrando o modo como
Nietzsche valoriza, no helenismo de seus precursores, os esforços para aprender
com os gregos. Em todo caso, se a expressão “a Grécia de Winckelmann” define a
formulação inicial do projeto de imitação que fundamentou o Classicismo alemão,
foi a retomada dessa visão inicial por Goethe e Schiller que, ampliando as
considerações de Winckelmann sobre as artes plásticas, estabeleceram a
concepção alemã moderna da Antigüidade grega.
Herder, um dos principais teóricos alemães do século XVIII e um
admirador entusiasmado do gênio de Goethe, defendeu a idéia de que a teoria de
Winckelmann era “apenas uma indicação” para o artista alemão que fosse capaz
2
Idem. “Tentativa de autocrítica”, § 4. Op. cit., p. 17.
3
BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge, University Press, 1935, p. 6.
de criar “homens gregos e uma arte grega”.
4
Numa carta a Goethe de 1794, que
depois se tornaria famosa por dar início à longa correspondência entre os dois
grandes nomes da literatura alemã da época, Schiller também se refere à criação
de uma Grécia na Alemanha moderna. Nesse caso, trata-se diretamente da Grécia
“criada” nas obras da fase clássica de Goethe, a quem Schiller atribui um espírito
grego, lançado no mundo moderno e nórdico.
5
O sentido dessa atribuição seria
discutido e elaborado, posteriormente, num longo ensaio teórico sobre a poesia
ingênua e a sentimental. Seguindo as indicações de alguns dos principais teóricos
da época, identifica-se no Classicismo de Goethe a elaboração e a realização do
projeto winckelmanniano de imitar os gregos. Especialmente a maneira como
Schiller compreendeu essa realização esclarece a questão fundamental da
exemplaridade dos antigos, ou seja, da retomada do ideal de beleza grego na arte
moderna. Assim, é a Grécia de Goethe que constitui o ponto de referência para
todo o helenismo alemão, ao estabelecer uma visão da cultura antiga como ideal
de beleza, de harmonia e de medida.
Estudar a Grécia de Goethe implica uma investigação do sentido da
imitação, no contexto do Classicismo alemão do final do século XVIII. Nesse
estudo, a pesquisa das bases do projeto classicista alemão, de sua elaboração
teórica e de sua realização artística, pode esclarecer os princípios da relação dos
alemães com os gregos ou, em outras palavras, a maneira como a questão dos
antigos e dos modernos se delineou no período clássico da literatura alemã.
4
HERDER. “Denkmal Johann Winckelmanns”, em Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe.
Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 483. Ver também SZONDI, Peter. Poetik und
Geschichtsphilosophie I. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 63-64.
5
Carta de 23 de agosto de 1794. GOETHE E SCHILLER.. Der Briefwechsel zwischen Goethe und
Schiller. Frankfurt, Insel, 1977, p. 34. Ver: Companheiros de Viagem. São Paulo, Nova
Alexandria, 1993, p. 24
2. O Classicismo
É preciso evitar uma certa imprecisão no uso dos termos “clássico”,
“Classicismo” e “Neoclassicismo”. A designação “período clássico” pode se
referir seja à fase de maior florescimento nas artes de um país, seja à Antigüidade
greco-latina, seja ainda ao movimento artístico moderno que abrange desde o
Renascimento ao Classicismo do século XVIII. Nesse sentido de uma referência à
época moderna que assumiu os antigos como modelo, o Romantismo é
identificado pelos historiadores da arte como uma ruptura com a tradição
classicista.
O termo “clássico” vem do latim classicus, que significava pertencente à
primeira classe, que é de primeira ordem, de elite”. Como esclarece Anatol
Rosenfeld, em “Romantismo e Classicismo”, o termo vem de classis, “frota” em
latim, e refere-se aos classicis, “os ricos que pagavam impostos pela frota”.
6
Assim, inicialmente, classicus era o cidadão que, por sua riqueza, pertencia à
primeira das cinco classes de Roma. Por derivação, classicus scriptor passou a ser
o escritor que, pela correção da linguagem, podia ser considerado de primeira
classe, de primeira ordem; essa idéia foi retomada pelos eruditos alexandrinos que
selecionaram os escritores greco-latinos considerados modelares. Nos séculos
XVII e XVIII, clássico era o autor lido e comentado nas escolas, nas classes
escolares, sentido que levou à designação de clássicos aos períodos em que a
literatura ou a cultura de determinada nação tiveram seu apogeu.
Para evitar a imprecisão dos termos, é possível restringir “Neoclassicismo”
especificamente ao período do século XVIII em que as artes plásticas e a
arquitetura retomaram os modelos do período clássico greco-latino. Trata-se de
6
ROSENFELD, Anatol. GUINSBURG, J. (org.). O Romantismo. o Paulo, Perspectiva, 2002, p.
262.
uma reação ao Barroco e ao Rococó, muitas vezes associada à teoria da arte de
Winckelmann. O Classicismo, por sua vez, implica a compreensão do clássico
como um conceito estilístico que diz respeito exclusivamente à Antigüidade, ou
melhor, à fase da cultura grega e latina que foi considerada, desde o
Renascimento, como modelo incontestável para a cultura moderna. Nesse sentido,
o Classicismo está ligado, nas artes, à adoção de certos preceitos que derivam das
produções artísticas antigas ou de sua sistematização teórica. Esse caráter
normativo do Classicismo remete à Poética de Aristóteles, que se tornou uma
referência para a teoria da arte elaborada a partir do Renascimento. No século
XVII, por exemplo, a interpretação rigorosa do tratado aristotélico constituiu o
fundamento teórico do Classicismo francês, considerado o auge dessa tradição
poética especialmente na história do teatro.
A dramaturgia clássica francesa de Racine, Corneille, entre outros, tornou-
se o modelo para a literatura alemã até a segunda metade do século XVIII. No
entanto, o Classicismo alemão que se desenvolveu no final desse século não
seguiu o modelo francês. Uma diferença fundamental entre os dois projetos
orientados pelo conhecimento da Antigüidade clássica era a noção de um ideal de
perfeição da arte grega, como Winckelmann tinha identificado no caso da
escultura. Goethe e Schiller também se basearam em Aristóteles, Homero e
Sófocles para elaborar uma poética, mas não pretendiam apenas definir regras da
arte válidas em qualquer época, nem copiar a forma das obras antigas. Sua
intenção, ao estudar os gregos, era o questionamento das formas artísticas de seu
tempo e a busca de um ideal que pudesse ser seguido pela poesia moderna.
Assim, a obra de Winckelmann pode ser considerada como uma
fundamentação do Classicismo alemão do final do século XVIII, cujo projeto era
imitar o ideal de beleza da arte grega. O autor define esse ideal a partir da análise
das características particulares das obras-primas antigas, numa reflexão que
ressalta as condições de surgimento da escultura grega. Segundo F. Schlegel,
“Winckelmann aprendeu a observar a Antigüidade como um todo, dando o
primeiro exemplo de como se deve fundamentar uma arte pela história de sua
formação”.
7
Um dos principais exemplos, nessa reflexão sobre a arte grega, é o
Laocoonte, tema retomado tanto por Lessing, para discutir as fronteiras entre a
poesia e as artes plásticas, quanto por Goethe e Schiller, entre outros autores.
Nesse debate estético, o ponto de partida era a consideração das características
específicas de uma obra, de tal maneira que a análise da escultura do sacerdote
troiano Laocoonte, e do trecho de Virgílio que se refere ao mesmo personagem,
tornou-se uma referência central tanto para a elaboração dos temas mais gerais da
teoria da arte, quanto para a concepção do ideal de beleza da Antigüidade clássica.
Além de debater com Winckelmann a respeito da interpretação do
Laocoonte, a fim de criticar os pressupostos teóricos tradicionais, Lessing aborda
duas das principais questões da literatura alemã do final do século XVIII: a crítica
aos princípios classicistas herdados da França e a valorização do gênio moderno
com base em Shakespeare. É possível mostrar como essa crítica ao Classicismo
francês orienta o Sturm und Drang, ou pré-Romantismo, movimento que
consagrou Shakespeare como modelo para a dramaturgia alemã, no contexto de
um questionamento da necessidade de imitar os gregos antigos.
Posteriormente, na obra de Goethe e Schiller, evidencia-se uma ruptura
com o pré-Romantismo e uma retomada do Classicismo, baseada nas idéias de
Winckelmann. Essa retomada pode ser compreendida como um aperfeiçoamento
7
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia. São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 45.
teórico e uma realização artística do Classicismo, incorporando a fundamentação
e a crítica, que a questão do helenismo, da imitação dos gregos antigos, se
insere numa discussão sobre os parâmetros para a criação artística moderna. Por
isso, o Classicismo de Goethe e Schiller só pode ser compreendido a partir da sua
relação com o Sturm und Drang, movimento baseado justamente numa
contestação do Classicismo francês. Essa relação deve ser levada em conta não
porque os dois escritores participaram do pré-Romantismo quando jovens, mas
também porque a crítica aos princípios seguidos pelo Classicismo francês foi
fundamental para o debate acerca do modelo da Antigüidade na literatura alemã.
Assim, o estudo do helenismo e do Classicismo acompanha o
desenvolvimento da teoria estética alemã a partir da segunda metade do século
XVIII. A questão da imitação de um modelo antigo ou de um modelo moderno
orienta, por sua vez, o desenvolvimento da literatura alemã. E essa questão foi
amplamente trabalhada por Goethe e Schiller, tanto no campo teórico quanto na
prática artística. Por um lado, eles retomaram na fase clássica de sua literatura a
idéia winckelmanniana de imitação dos gregos; por outro lado, discutiram as
referências do teatro clássico francês e de Shakespeare, numa retomada do debate
iniciado por Lessing. Tendo em vista uma crítica da produção artística de seu
tempo, o Classicismo de Weimar buscava aprender com os gregos antigos um
ideal de beleza, para fundamentar e debater a poesia moderna.
Goethe e Schiller foram considerados, em sua época de juventude, os
grandes talentos da literatura alemã, a ponto de serem equiparados ao gênio de
Shakespeare. Não se trata portanto de teóricos ou historiadores da arte, mas de
dois poetas que elaboraram teorias estéticas, de modo que seus esforços teóricos
nunca deixaram de ter sua prática artística como referência. Por mais que os dois
escritores tenham elaborado um projeto que se baseava no estudo da Antigüidade
clássica, eles não pretendiam simplesmente copiar a arte do passado. Sua intenção
era discutir os fundamentos de sua própria criação, ou seja, de uma poesia
moderna. Com isso, revela-se a questão paradoxal desse projeto, em sua dimensão
histórica: a Antigüidade era vista como ideal, como algo de exemplar, ao mesmo
tempo que se reconhecia o condicionamento temporal e cultural da arte. Tendo em
vista esse condicionamento, os antigos não podiam simplesmente definir regras ou
fornecer modelos formais a serem copiados na prática artística do final do século
XVIII.
Para Friedrich Schlegel, em suas Conversas sobre a poesia, a maneira
como Goethe imitou seus modelos, inclusive os gregos, não diz respeito à forma
exterior das obras. “Este é o caráter da verdadeira imitação, sem o que uma obra
mal pode ser uma obra de arte! O modelo, para o artista, é apenas estímulo e meio
para individualizar os pensamentos daquilo que pretende criar”.
8
Assim, os
gêneros poéticos imitados m uma função que se integra às pretensões do artista,
em seu tempo. Esse sentido de uma apropriação dos gêneros pode esclarecer o
propósito de Goethe e Schiller, durante o Classicismo, como uma busca do ideal
de perfeição que Winckelmann tinha identificado nas esculturas da Antigüidade
grega. A verdadeira imitação pressupõe um reconhecimento da dimensão histórica
na poética dos gêneros e, com isso, uma reflexão sobre os antigos e os modernos.
3. Poética e Estética
A classificação de obras literárias de acordo com gêneros tem a sua raiz no livro
III da República de Platão, no qual Sócrates explica que três tipos de
8
Ibidem, p. 75.
narrativas, separados de acordo com a maneira como as ações são apresentadas
pelo poeta. Trata-se de uma classificação que a tradição incorporou depois na
distinção entre a poesia dramática, a lírica e a épica, embora o filósofo o use
exatamente esses termos. O primeiro tipo mencionado por Sócrates é uma
“espécie que é toda imitação”, na qual o poeta não se manifesta, deixando falar os
personagens, como ocorre na tragédia e na comédia. O segundo tipo é “narração
pelo próprio poeta” como nos ditirambos. E o terceiro tipo une ambas as coisas e
pode ser encontrado nas epopéias, em que ora se manifesta diretamente o próprio
poeta, ora falam personagens.
9
No terceiro capítulo da Poética, Aristóteles também faz referência às três
maneiras de imitar a natureza na poesia, afirmando que “é possível imitar os
mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução
de um terceiro, como faz Homero”, ou “insinuando a própria pessoa sem que
intervenha outro personagem”, ou ainda “apresentando a imitação com a ajuda de
personagens que vemos agirem e executarem eles próprios”.
10
Basicamente ele
mantém a divisão feita por Platão. A epopéia (Homero) mistura a narrativa direta
com personagens que falam, no segundo gênero apenas o poeta se manifesta e o
terceiro diz respeito às poesias em que não há manifestação direta, apenas falas de
personagens.
Com base em Aristóteles, consagrou-se a tradição das Artes Poéticas, tanto
entre os romanos, quanto entre os teóricos modernos após o Renascimento. Nessa
tradição, a Poética de Aristóteles se tornou o modelo para uma teoria que
constitui, ao mesmo tempo, “uma resposta para a questão sobre o que é a poesia e
9
PLATÃO. República, III, 394c. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1987, p. 118.
10
Ver ARISTÓTELES. Poética, 1448 a. São Paulo, Ars Poética, Tradução de Eudoro de Souza,
1992, p. 23.
10
uma instrução sobre como se deve escrever uma epopéia, um drama”.
11
Como
observa Szondi em suas conferências sobre Poética e filosofia da história, a
tradição da teoria da arte seguiu esse modelo normativo por exemplo desde a
Arte poética, de Horácio (século I A. C.), até o Ensaio de uma arte poética cristã,
que Gottsched publicou em 1730. Apenas no final do século XVIII o modelo
começou a ser questionado em favor de um pensamento estético novo:
Pois nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX
constituiu-se, com grande diversidade, um outro gênero da poética, que
não poderá ser abolido. Trata-se da poética filosófica, que não busca
regras a serem empregadas na práxis, nem diferenças a serem
consideradas na escrita, mas um conhecimento que se basta a si mesmo.
Assim, a poética constitui uma parte da estética geral, pensada como
filosofia da arte. Na época de Goethe, ela se torna cada vez mais um
domínio dos filósofos.
12
Essa mudança de fundamento definiria os rumos das teorias estéticas a
partir do final do século XVIII. Isso significa que, embora ainda continuem a ser
escritas obras meramente normativas sobre os gêneros da poesia, a filosofia da
arte passou a ocupar o terreno que antes era restrito às poéticas. Assim, mesmo as
definições acerca dos gêneros artísticos passaram a ser integradas a um
pensamento histórico e filosófico. A “poética dos gêneros” continuou a ser
pensada, mas agora como parte de um contexto mais geral, para o qual se
consagrou então o nome de estética.
Sobretudo a partir da Filosofia da arte (1859, publicação dos cursos de
1802-1805) de Schelling e da Estética (1835, publicação dos cursos de 1818 a
1829) de Hegel, os gêneros não seriam mais pensados como normas atemporais,
mas como manifestações históricas da arte. Assim, a filosofia se apropria da
11
SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 13.
12
Idem, p. 14.
11
poética, para questionar a essência do épico, do lírico e do dramático, que deixam
de ser apenas gêneros classificatórios. Como afirma Emil Staiger, em seus
Conceitos fundamentais da poética:
Os ramos, as classes multiplicaram-se desde a Antigüidade. Os nomes
Lírica, Epopéia e Drama não bastam para designá-los. Os adjetivos lírico,
épico e dramático, ao contrário, conservam-se como nomes de
qualidades simples, das quais uma obra pode ou não participar.
13
A ruptura com a tradição normativa e classificatória possibilitou uma filosofia da
arte que reflete, por exemplo, sobre o conceito de trágico desvinculado do gênero
poético tragédia. Possibilitou também a teoria da literatura que interpreta as obras
não de acordo com os conceitos da essência dos gêneros antigos (os adjetivos
épico, lírico e dramático), mas também segundo uma compreensão das mudanças
históricas e das interferências entre esses gêneros. São exemplos desse tipo de
reflexão as noções atuais de drama lírico” ou “teatro épico”. E Szondi considera
que, “na pré-história” das poéticas do século XIX que consolidaram essa ruptura,
encontram-se as idéias de Goethe e Schiller.
14
De fato, em muitos pontos, as teorias dos dois escritores, voltadas para a
prática artística, anteciparam e influenciaram de modo decisivo a estética
posterior. A discussão presente nos ensaios e na correspondência de Goethe e
Schiller orientou o desenvolvimento de uma poética dos gêneros de caráter
histórico, não na estética idealista e na romântica, como também na teoria da
literatura que sucedeu a esses movimentos. Quanto aos românticos, por exemplo,
a oposição entre ingênuo e sentimental, formulada por Schiller com base numa
comparação de sua criação poética com a de Goethe, constitui uma das bases da
reflexão sobre clássicos e românticos de Friedrich Schlegel. Já Hegel reconhece
13
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975,
p. 186.
14
Ver SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 41.
12
Schiller, em sua Estética, como um precursor do projeto idealista de uma
superação do abismo entre a razão e a sensibilidade na filosofia kantiana.
A indicação e o comentário dessas influências se articula ao estudo das
teorias que fundamentaram o Classicismo alemão desenvolvido na última década
do século XVIII e no início do XIX. Em todo caso, mais do que suas teorias, as
obras literárias dos dois escritores tiveram uma influência incalculável sobre a
literatura moderna e se tornaram realmente, na Alemanha, as referências clássicas
tanto para os defensores quanto para os contestadores do seu projeto artístico. Por
isso é preciso levar em conta sempre, no estudo das questões teóricas de Goethe e
Schiller, a referência a essas obras.
4. Goethe “e” Schiller
Estudar a relação, a rivalidade e a colaboração entre Goethe e Schiller é
fundamental para a compreensão do Classicismo alemão. Embora haja traços em
comum em suas trajetórias, que ambos foram consagrados como dramaturgos
no contexto do Sturm und Drang, depois colaboraram intensamente no período
que ficaria conhecido como Classicismo de Weimar, os caminhos que levaram
cada um dos escritores a essa colaboração foram bastante diversos. E, mesmo
durante a fase em que se corresponderam e fizeram vários projetos em comum,
manteve-se entre Goethe e Schiller não só uma rivalidade, mas também uma
diferença fundamental na maneira de pensar. Nesse caso, a relação entre eles
passou pelo esforço de articular e compreender essa diferença e resultou numa
concepção da arte em que os dois caminhos antagônicos passaram a estabelecer
um diálogo. O Classicismo de Weimar incorporou as questões do realista Goethe,
que tinha como ponto de partida a observação dos objetos naturais, mesmo em
13
suas considerações sobre a arte, e do idealista Schiller, cuja teoria estética se
baseava sobretudo no estudo da filosofia de Kant.
É comum ser referir aos dois escritores com esta conjunção aditiva, “e”,
para designar as concepções classicistas ou as críticas às tendências literárias,
durante a fase de colaboração. A ordem em que os dois escritores são
mencionados pode ter ou não um sentido hierárquico, como mostram alguns dos
comentários sobre esse “e” que liga os dois grandes nomes da literatura alemã de
seu tempo. Nietzsche, por exemplo, ao mencionar o “famigerado ‘e’” da
expressão Goethe e Schiller, num aforismo do Crepúsculo dos ídolos, temia que a
ordem pudesse ser invertida, porque via na expressão uma hierarquia.
15
Thomas
Mann contesta essa visão em seu ensaio “Goethe e Tolstói”:
Nietzsche uma vez nos repreendeu, a nós alemães, a falta de tato no uso
da palavra “e” [...] ...dizíamos “Goethe e Schiller”, e ele temeu que ainda
pudéssemos dizer “Schiller e Goethe” [...] Foi uma precipitação e uma
arbitrariedade não-justificada de Nietzsche proclamar com seu escárnio
daquele “e” uma hierarquia, ou impor como indiscutível o duvidoso, até
o que é e podia continuar sendo a coisa mais duvidosa do mundo.
16
Thomas Mann chama a atenção, em seguida, para o caráter profundamente
“antitético” da ligação entre Goethe e Schiller, na qual escontida uma oposição
de seus modos de pensar. As vias divergentes que levaram os dois escritores para
a fase de colaboração estão na base de sua ligação, fundamental para o
desenvolvimento do Classicismo alemão. Especialmente no caso da questão dos
antigos e dos modernos, ou seja, da imitação dos gregos no contexto de um
projeto moderno, é o debate entre os dois escritores que define o sentido do
projeto classicista.
15
NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung Strefzüge eines Unzeitgemässen (16). Werke in
drei Bänden. Band II. Munique, Hansen Verlag, 1994 p. 1000.
16
MANN, Thomas. Goethe’s Laufbahn als Schriftsteller. Frankfurt, Fischer, 1982, p. 68. MANN,
Thomas. Ensaios. São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 61.
14
5. O método
A expressão “época de Goethe” Goethezeit foi consagrada por alguns teóricos
da literatura alemã, como Lukács e Szondi, para designar um momento de
transição fundamental na história da Estética.
17
A princípio, trata-se de uma
referência ao tempo de vida de um autor, que vai de 1749 a 1832 e abrange quase
um século de evoluções no campo de estudos acerca da arte. Mas o que importa
nessa designação não é simplesmente o período determinado entre essas datas, por
ter coincidido com certas circunstâncias históricas. Goethe estudou em sua
juventude os grandes teóricos da arte do século XVIII, como Winckelmann e
Lessing, combateu o Classicismo francês, leu a Crítica do Juízo de Kant em 1790,
e décadas depois viu o surgimento da filosofia da arte de Schelling e Hegel. Em
todo caso, denominar uma época usando o nome de um autor vai além de uma
referência temporal, já que ressalta a importância que esse autor teve para a época,
ou mais especificamente para os movimentos artísticos e as teorias da arte
elaborados então.
A obra e o pensamento de Goethe constituem um ponto de referência
fundamental para o momento de transição, na Estética alemã, que abrange desde
as teorias da arte de Winckelmann e Lessing, passando pela elaboração do
Classicismo de Weimar e pelo nascimento do Romantismo, até perto da
publicação dos cursos de Estética de Hegel. Uma questão marcante, em todo o
desenvolvimento da teoria da arte dessa época, foi o helenismo, ou seja, o debate
acerca da concepção e da imitação dos antigos. O Classicismo de Goethe,
elaborado com a colaboração fundamental de Schiller, estabelece os parâmetros
17
Ver: LUKÁCS. Goethe und seine Zeit. Berlim, 1950; SZONDI. Poetik und
Geschichtsphilosophie I e II. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1974.
15
para esse debate, formulando uma visão da Grécia que se baseia nas reflexões de
Winckelmann sobre o ideal de beleza dos antigos.
Mas, na própria obra desses autores que desenvolveram e realizaram o
projeto classicista, especialmente na teoria literária de Schiller, é possível
identificar um questionamento da exemplaridade da arte grega, uma crítica da
nostalgia e uma defesa da poesia moderna. A consciência do caráter histórico da
criação artística implica uma reflexão sobre o fundamento do Classicismo, ou
seja, sobre o sentido da imitação dos antigos. Para esclarecer a maneira como essa
questão dos antigos e dos modernos foi pensada na época de Goethe, é necessário
apresentar o debate entre os autores, no contexto cultural da Alemanha do século
XVIII. Esse esforço de contextualização requer uma série de informações
históricas e biográficas, a partir das quais as questões teóricas podem ser
analisadas de acordo com as críticas, os propósitos e os esforços de colaboração
dos escritores da época.
Em primeiro lugar, é preciso investigar a maneira como Winckelmann
compreendeu os gregos, com base numa observação das obras de arte da escultura
antiga e numa análise formal que leva em conta suas condições de surgimento.
no contexto do debate entre os escritores do culo XVIII, as críticas de Lessing e
a interpretação de Goethe e Schiller a respeito do projeto de imitação dos antigos
proposto por Winckelmann fundamentam o Classicismo alemão. Em segundo
lugar, o estudo da recepção de Shakespeare na Alemanha da época de Goethe é
fundamental para a compreensão da defesa da cultura moderna, na teoria da arte
desenvolvida pelo pré-Romantismo e pelo Classicismo de Weimar. A valorização
de Shakespeare articula uma crítica ao Classicismo francês e implica um
questionamento da exemplaridade dos antigos. Em terceiro lugar, a análise da
16
relação entre Goethe e Schiller esclarece as questões mais importantes de sua
teoria estética, na qual o esforço de justificar o antagonismo inicial entre os dois
escritores, baseado em modos opostos de fazer poesia, está ligado tanto ao
desenvolvimento de uma poética moderna, quanto à reflexão sobre os antigos e os
modernos.
Não que seja necessária uma tentativa de recuperar a compreensão das
questões no momento em que foram formuladas, abrindo mão das interpretação
que vieram mais tarde. As indicações de Friedrich Schlegel e Hegel, por exemplo,
são decisivas para mostrar como Goethe e Schiller influenciaram a teoria da arte
alemã posterior. as análises e comentários de autores do século XX, como
Georg Lukács, Walter Benjamin e Anatol Rosenfeld, orientam a leitura e a
compreensão da teoria da arte do século XVIII e de seu contexto histórico. Peter
Szondi, especialmente, indica a necessidade de situar a obra de Goethe e Schiller
num momento de transição da Estética, no qual a arte passou a ser pensada
histórica e filosoficamente, não mais segundo a perspectiva normativa tradicional.
No entanto, mesmo que a recepção e a interpretação das obras da época de
Goethe condicione a concepção que se tem delas, o esforço de interpretá-las
diretamente esclarece e atualiza as suas questões. Nesse caso, tanto as
informações contextuais quanto as indicações interpretativas visam a enriquecer e
tornar mais precisas as análises dos próprios textos, apresentados de acordo com o
debate em que eles se inserem.
17
CAPÍTULO 1
O LAOCOONTE OU SOBRE AS BASES DO CLASSICISMO DE WEIMAR
1. A Alemanha da época de Goethe
Em seu artigo enciclopédico”, Walter Benjamin chama a atenção para o fato de
que Goethe teve, durante a vida inteira, uma certa resistência em relação aos
grandes centros urbanos. Depois que partiu definitivamente de Frankfurt, sua
cidade natal, a visitou duas vezes, assim mesmo de passagem, e nunca pôs os
pés em Berlim. As únicas exceções a essa característica do autor foram as visitas a
Roma e poles, durante a longa permanência na Itália. Goethe passou a maior
parte de sua vida em Weimar, que na época tinha aproximadamente 6.000
habitantes. Embora esses fatos estejam ligados à personalidade do escritor, eles
são indicativos também da situação política da Alemanha na segunda metade do
século XVIII. Segundo as informações fornecidas por Benjamin, Frankfurt tinha
apenas 30.000 habitantes em 1749, ano do nascimento de Goethe, e Berlim, a
maior cidade do império alemão, contava com 126.000, enquanto Paris e Londres
tinham ultrapassado os 500.000 habitantes cada uma.
18
Como a revolução
burguesa na Europa dependeu em larga escala das grandes cidades, esses números
demonstram o atraso no desenvolvimento da burguesia alemã, da qual Goethe foi
a princípio um dos maiores expoentes e um defensor político.
Socialmente, a Alemanha do século XVII era caracterizada pelo poder dos
príncipes territoriais e pela fraqueza das camadas médias; economicamente, pelo
declínio das cidades mais poderosas, que vinham perdendo sua importância
comercial para os centros holandeses e ingleses desde o século XVI, quando
18
Ver “Goethe, artigo enciclopédico”, ensaio escrito em 1926 para a Grande Enciclopédia Russa.
BENJAMIN, Walter. Dos ensayos sobre Goethe. Barcelona: Gedisa editorial, 1996, p. 139.
18
começaram as grandes navegações e o comércio marítimo no Oceano Atlântico.
Essa situação específica da Alemanha, do ponto de vista social e econômico, era
também o resultado de um longo período de guerras e conflitos, no qual o Sacro
Império Romano-Germânico enfrentou a Reforma luterana e as revoltas
camponesas. O ápice dessas revoltas, a Guerra dos Camponeses ocorrida de 1524
a 1526, forneceu a Goethe o argumento para sua primeira peça, Götz von
Berlichingen. A ideologia que motivava os camponeses era uma expressão da
contestação religiosa baseada na idéias de Lutero, embora ele próprio tenha
rejeitado as exigências dos rebelados e apoiado o direito dos príncipes alemães de
acabar com as sublevações. Como o imperador Carlos V, em atenção ao papa e à
força política dos seus aliados católicos do Sacro Império, não podia assumir a
posição de chefe da igreja luterana, que consolidaria o poder imperial, a Reforma
luterana concedeu aos príncipes o poder religioso, no mesmo momento em que o
fim das revoltas camponesas garantia seu poder político.
Quase um século depois, a Guerra dos 30 Anos (1618-48), que foi tema de
estudos históricos e da trilogia teatral Wallenstein, de Schiller, causou o colapso
final do comércio alemão e a destruição de muitas das cidades importantes do
país. Com a Paz de Vestfália, ao final da guerra, a soberania dos príncipes
territoriais alemães foi consolidada, mantendo-se sem um controle político central
até a unificação de 1870. Assim, quem dominava politicamente o país eram
grandes proprietários de terra que, ao contrário dos monarcas ingleses e franceses,
não tinham nenhum interesse na prosperidade da burguesia. Em comparação, os
outros países da Europa ocidental tinham passado por um processo em que o
19
poder foi centralizado por meio da vitória das monarquias sobre nobreza feudal,
com o apoio da burguesia ascendente nas grandes cidades.
19
Considerando essas características políticas, sociais e econômicas, não era
de se estranhar que as grandes cidades alemães tivessem, no ano de nascimento de
Goethe, uma população muito menor do que a de Paris ou Londres, enquanto as
várias pequenas cortes continuavam a se desenvolver, tanto do ponto de vista
econômico quanto cultural. Nesse caso, as camadas médias urbanas, excluídas da
atividade política, não tiveram na Alemanha o mesmo florescimento da França ou
da Inglaterra. No século marcado pela ascensão da burguesia européia, que
culminou na Revolução Francesa, os burgueses alemães o prosperavam e, nos
vários principados em que o país se dividia, os governantes territoriais construíam
grandes castelos que imitavam os do rei da França, decorados com um luxo à
altura da corte de Versailles, como os de Nynphenburg, Schleissheim,
Ludwigsburg, o Zwinger de Dresden ou o Sansssouci de Potsdam. Apesar de
todas as diferenças políticas e econômicas, a vida cultural dos principados
alemães seguia o modelo da corte francesa, cujo gosto artístico foi o ponto de
referência na Alemanha daquela época, especialmente durante a primeira metade
do século XVIII. Também na literatura desse período, a tendência dominante foi a
de um Classicismo baseado no modelo francês, estilo que teve como expoentes
Johann Christoph Gottsched (1700-1766) e Christoph Martin Wieland (1733-
1813).
19
Ver HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2000,
p. 598-600. Para uma comparação entre a formação do Estado na Alemanha, França e Inglaterra,
ver: ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1993, p. 91-97.
20
2. Crítica e criação
No capítulo intitulado “Lessing e Winckelmann” de seu livro a respeito da
Alemanha, publicado em 1813, Madame de Staël considera que “a literatura
alemã talvez seja a única que começou pela crítica; em outros lugares, a crítica
vem depois das obras-primas; mas na Alemanha ela as produziu”.
20
A observação
da escritora francesa não só ressalta um aspecto determinante e exclusivo do
desenvolvimento literário alemão, mas também indica a importância fundamental
dos teóricos da arte do culo XVIII nesse desenvolvimento. Com os escritores
Winckelmann e Lessing, cria-se na Alemanha como que um ideal teórico da arte,
quando o país não tinha uma literatura nacional autêntica, enraizada em sua
própria cultura, e se pautava pelo gosto e pelos padrões importados da França.
Posteriormente, em meio aos debates acerca desse ideal, a cultura alemã seguiria o
caminho de uma crítica intensa ao Classicismo e ao racionalismo franceses,
durante o movimento pré-romântico do qual participaram Herder, Goethe e
Schiller. No teatro, na poesia e no romance, foi essa postura crítica que abriu o
caminho para o surgimento de uma produção literária própria. Assim, na época de
Madame de Staël, e com a contribuição de seu livro, tanto o chamado pré-
Romantismo quanto o Romantismo propriamente dito, enraizados na cultura
alemã, chegaram a exercer grande influência inclusive sobre os autores franceses.
Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) foi um crítico severo das artes
plásticas de sua época, especialmente do Barroco e do Rococó na escultura e de
um falso realismo na pintura. No primeiro caso condenava o exagero dos
seguidores de Gian Lorenzo Bernini (1568-1680), no segundo, a cópia da natureza
ao estilo de pintores holandeses como Dou (1613-1675) e Van der Werff (1659-
20
STAËL, Madame de. De l’Allemagne. Paris: Garnier-Flamarion, 1968, p. 183.
21
1722). Essa investida contra o que considerava uma arte decadente era baseada em
uma comparação com a produção artística do Renascimento Rafael,
Michelangelo – e da Antigüidade clássica, o que levou Winckelmann a formular o
ideal de imitação dos antigos, como um princípio a ser seguido pelos artistas de
seu tempo. Essa teoria influenciou, a partir de então, o desenvolvimento da
literatura e da teoria da arte na Alemanha, ligado aos estudos clássicos e ao
helenismo.
Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) foi, além de um grande crítico
literário, um dos maiores nomes da dramaturgia alemã na época do Iluminismo.
Sua polêmica contra os padrões do gosto francês, baseada em uma valorização de
Shakespeare como modelo para o teatro alemão, foi seguida em larga escala pelos
pré-românticos como Herder, Goethe e Lenz. Em seu Laocoonte, ele discutiu o
ideal de beleza defendido por Winckelmann, para demonstrar a diferença que
havia em considerar a caracterização de Laocoonte no campo da literatura ou das
artes plásticas. Essa definição de fronteiras entre as artes contrariava uma longa
tradição, que remonta ao famoso verso ut pictura poesis, poesia como pintura”,
da Ars Poética [361] de Horácio, retomado pelos teóricos renascentistas. A crítica
a esse princípio tradicional de identificação entre poesia e pintura também
marcou, de modo decisivo, a estética e a literatura posteriores.
Assim, de acordo com os ideais teóricos do século XVIII, a arte grega era
o modelo a ser seguido para os artistas modernos, e Shakespeare era o modelo a
ser seguido pelo teatro alemão. No primeiro caso, indicava-se a via do
Classicismo, no segundo, a do pré-Romantismo, movimento que ficou conhecido
sob o título de Sturm und Drang, “tempestade e ímpeto”. No entanto, esses ideais
teóricos necessitavam de uma criação artística à sua altura, como reconheceu
22
justamente o grande nome da teoria pré-romântica Johann Gottfried Herder (1744-
1803), autor de Idéias sobre a filosofia da história da humanidade e de diversos
ensaios. Em seu escrito de 1777 sobre Winckelmann, ele afirma que “a teoria do
belo mais plena de sentimentos, apresentada com a simplicidade, a dignidade e a
força dos antigos, como fez Winckelmann, é apenas um aceno para aquele que
deve vir, para o novo Rafael e Angelo dos alemães, que crie para nós homens
gregos e uma arte grega”.
21
Esse trecho é citado pelo teórico da literatura alemã
Peter Szondi, para demonstrar que, segundo a perspectiva de Herder, quem
realizou o ideal de uma arte nacional vigorosa e autêntica foi um dramaturgo, e
não um artista plástico.
Em um texto de 1773, no qual a obra de Shakespeare é defendida como
modelo para o teatro nacional alemão, Herder já tinha identificado Johann
Wolfgang von Goethe (1749-1832), o autor da peça Götz von Berlichingen,
publicada no ano anterior, como um gênio alemão à altura desse modelo. Do
mesmo modo que o texto sobre Winckelmann, o ensaio sobre o dramaturgo inglês
termina com uma referência ao futuro, o anúncio de um movimento que se
inaugurava na Alemanha do final do século XVIII. Herder se dirige pessoalmente
ao jovem escritor que conhecera em Estrasburgo, poucos anos antes: “...você, meu
amigo, que se reconhece nesta leitura, [...] ainda pode ter seu sonho doce, digno,
de produzir sua homenagem a ele [Shakespeare] a partir da nossa época de
cavaleiros, em nossa língua”. E aconselha, após a afirmação de que inveja o sonho
de Goethe: não arrefeça sua nobre atividade alemã até que ela seja coroada”.
22
Nesse caso, Herder retoma a posição de Lessing a respeito do teatro nacional,
21
HERDER. “Denkmal Johann Winckelmanns”, em Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe.
Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 483. Ver também SZONDI, Peter. Poetik und
Geschichtsphilosophie I. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 63-64.
22
HERDER. Op. cit., V, 231.
23
valorizando Shakespeare em detrimento dos dramaturgos franceses, e enxerga na
peça sobre o cavaleiro alemão Götz von Berlichingen uma obra emblemática, que
estava de acordo com os parâmetros defendidos no seu ensaio. Assim, ele
identificava no jovem escritor alemão um realizador do ideal teórico discutido
inicialmente por Lessing.
Para Szondi, é como se a poesia pudesse ser colocada no lugar da pintura,
e o novo Rafael e Michelangelo dos alemães também fosse incorporado pelo
jovem Goethe, segundo a teoria histórica de Herder que se encontra na base do
movimento pré-romântico. A promessa de uma arte grandiosa na Alemanha, para
a qual Winckelmann acenaria, teria seu desdobramento na literatura. A fase
posterior da produção literária do autor de Götz von Berlichingen e do grande
sucesso da época, o romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther, contraria
em grande medida os preceitos pré-românticos, para decepção de Herder e de
todos os defensores do Sturm und Drang. Contudo, tanto as obras dessa fase de
Goethe (como a peça Ifigênia em Táuris e o poema épico Hermann e Dorothea)
quanto as idéias sobre a arte que ele passou a defender podem reforçar a noção
de que se trata do realizador, na literatura alemã, do ideal clássico de
Winckelmann. Especialmente após sua viagem de dois anos à Itália (1786-1788),
Goethe renovou o helenismo alemão, procurando incorporar à sua obra a beleza e
os limites aprendidos com o estudo da arte grega. Junto com Friedrich Schiller
(1759-1805), outro antigo participante do movimento pré-romântico, ele
inaugurou em Weimar um novo Classicismo, que o se reduzia à elaboração
teórica, como o de seu precursor, mas se refletia amplamente na produção artística
dos dois grandes nomes da literatura alemã, na virada do século XVIII para o
XIX.
24
3. Helenismo
3.1. O papel de Winckelmann
Apesar de sua enorme importância na história da cultura alemã, Winckelmann não
é um autor muito lido e estudado atualmente, pelo menos não na medida que se
esperaria a partir dos comentários feitos por seus contemporâneos ou sucessores.
Herder e Goethe escreveram longos ensaios em homenagem a ele, Madame de
Staël, em seu lebre livro sobre a cultura alemã, chamava a atenção dos leitores
franceses para “o homem que fez uma verdadeira revolução na Alemanha na
maneira de considerar as artes, e entre elas a literatura”.
23
Contribuem para esse
declínio do interesse pelas obras de Winckelmann tanto as dificuldades do estilo e
da escrita, repleta de referências aos debates travados pelos teóricos da arte da
época, quanto a imprecisão, evidenciada à luz de análises posteriores, dos dados
históricos fornecidos pelo autor.
Além de ser considerado o fundador da arqueologia moderna, em função
de seus estudos das escavações de Pompéia e Herculano, Winckelmann
estabeleceu novos parâmetros para a história da arte, influenciando todo o seu
desenvolvimento posterior. Segundo os próprios historiadores da arte, ele também
teve um papel decisivo no movimento neoclássico, embora esse papel talvez
revele uma interpretação de sua teoria acerca da imitação dos antigos. Como
aponta Gerd Bornheim, em seu ensaio “Introdução à leitura de Winckelmann”,
“os seus autênticos continuadores não são os escultores e os pintores” que
seguiram o caminho do academismo e da cópia, “mas os poetas”,
24
sobretudo
Goethe em sua fase clássica. De fato, Winckelmann pretendeu indicar um
23
STAËL. Op. cit., p. 185.
24
BORNHEIM, Gerd. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro, Uapê, 1998, p. 106.
25
caminho para a produção artística, especialmente no campo da escultura,
defendendo o modelo dos gregos antigos, mas as suas idéias não podem ser
reduzidas ao princípio que norteou o movimento neoclássico. Elas se inserem em
um projeto mais amplo de análise e compreensão da arte grega, um esforço de
interpretação que influenciou decisivamente a literatura e a filosofia alemãs nos
séculos seguintes.
Até os trinta anos de idade, Winckelmann ainda o tinha começado a
realizar aquela que seria a tarefa de sua vida, dedicada ao esforço de esclarecer a
produção artística da Grécia antiga. Nascido em 1717 em Stendal (Magdeburg),
filho de um sapateiro, interessado desde jovem pela literatura clássica, ele teve a
oportunidade de estudar teologia e medicina na Universidade de Halle graças a
uma bolsa. Foi preceptor, como muitos dos jovens letrados alemães de seu tempo,
depois se tornou secretário do conde de Bürnau, no castelo de Noethernitz, em
Dresden, cidade que era considerada a Florença do norte da Europa porque
dispunha de excelentes coleções de obras da Antigüidade e do Renascimento. No
próprio castelo de Noethernitz, havia mais de 150 obras de imitadores de Bernini,
o mais importante artista do período barroco. A observação dessas esculturas
contribuiu para a formulação das críticas de Winckelmann a esse estilo, que ele
considera, em sua primeira obra, uma forma decadente de arte. Em 1755, quando
o autor trabalhava como bibliotecário particular do conde de Bürnau, foi
publicado em Dresden o escrito Reflexões sobre a imitação das obras gregas na
pintura e na escultura. Esse trabalho, que recomenda aos artistas da época, em
lugar da imitação direta da natureza, a imitação da arte grega, considerada como
modelo do ideal de beleza, teve uma repercussão considerável e fez de
Winckelmann uma espécie de porta-voz dos estudos clássicos na Alemanha.
26
Nesse sentido, uma frase do começo das Reflexões marcou época: “O único
caminho para nos tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos
antigos...”.
25
A obra de Winckelmann se insere, assim, na tradição da célebre Querelle
des anciens e des modernes, desenvolvida na França do século XVII. A querela
começou em 1653, com discussões sobre o uso do maravilhoso na literatura,
intensificou-se em 1687 com a leitura do poema de Perrault O século de Luís XIV,
que defendia a superioridade da literatura francesa moderna sobre a dos gregos e
latinos, e se estendeu até as primeiras décadas do século XVIII. Em resumo, os
partidários dos antigos (Boileau, La Fontaine) defendiam a aplicação rigorosa da
teoria clássica e a volta às fontes da Antigüidade grega e latina. Os partidários dos
modernos (Thomas Corneille, Perrault) consideravam que tinha havido um
enriquecimento cultural e artístico, por isso defendiam a superioridade de sua
época. E os conciliadores (Fénelon, Fontenelle) tinham uma posição
intermediária, segundo a qual a literatura clássica devia ser considerada como
exemplo, mas sem frear a evolução cultural.
26
Mas o Classicismo alemão, que se iniciava tardiamente, no século XVIII,
distanciou-se em muitos aspectos da versão francesa e do ideal renascentista.
Como aponta Gerd Bornheim, a originalidade de Winckelmann se encontra no
fato de ele entender, por “antigos”, os gregos da época clássica, enquanto tinha
predominado, do Renascimento ao período barroco, uma noção de “antigo”
vinculada mais fortemente à tradição romana. Embora não faça sempre distinções
históricas precisas entre as estátuas de cada período, Winckelmann “soube
25
WINCKELMANN. Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en pinture et sculpture
(Coleção bilíngüe de clássicos estrangeiros). Alerçon (Orne), Aubier, 1990, p. 94.
26
Ver RIGAULT, H. Histoire de la Querelle des Anciens et des Modernes. Paris, 1856. Também
NELSON, Robert. “The Ancients and the Moderns”, em: A New History of French Literature.
Cambridge, Harvard, 1994, p. 364-369.
27
emprestar aos gregos e ao que considerava ser a Grécia clássica uma importância
bem definida, situando-os, sobretudo, em tal perspectiva que os antigos passaram
a ter uma nova modalidade de presença na cultura do Ocidente”.
27
Com isso,
tornou-se possível ver o mundo antigo por uma perspectiva nova, que marcou o
helenismo da cultura alemã da época de Goethe.
Logo após a publicação de seu primeiro livro, Winckelmann se converteu
ao catolicismo (sua família era protestante), embora não acreditasse na cristã, a
fim de ter a oportunidade de ir para Roma, onde trabalhou a princípio como
bibliotecário do cardeal Archinto. Visitou as ruínas de Pompéia e Herculano em
1762, na primeira de suas viagens a Nápoles, e no ano seguinte se tornou
superintendente das antigüidades romanas na capital italiana, depois passou a ser
o secretário particular do cardeal Albani, um dos maiores colecionadores da
época. Foi nesse período que ele preparou a sua obra mais completa, História da
arte da Antigüidade, publicada em Dresden em 1764. Nesse livro, Winckelmann
descreve e analisa uma variedade muito maior de obras antigas, a partir dos
mesmos princípios que tinham sido expostos nas Reflexões. A idéia de que os
gregos foram os únicos, entre todos os povos, a atingir o pleno desenvolvimento
da forma bela, como se a natureza se revelasse ao artista em estado de perfeição,
justifica a defesa da imitação de sua arte. As análises de esculturas, como ponto de
partida da teoria, têm a intenção de demonstrar a noção da beleza ideal como meta
da criação artística antiga. Para isso, o autor se baseia, desde seu primeiro escrito,
nas condições de surgimento da escultura grega, descrevendo os artistas como
observadores dos atletas nos ginásios. Ele procura, assim, entender concretamente
as obras de arte produzidas, do ponto de partida dos escultores, a observação dos
27
BORNHEIM, Gerd. Op. cit., p. 79-80.
28
corpos belos, a os procedimentos técnicos envolvidos. Foi esse procedimento
inovador, no século XVIII, de análise da gênese das obras, das condições culturais
e do ambiente em torno delas, que marcou profundamente o desenvolvimento
posterior da história da arte.
Em 1768, Winckelmann tinha a intenção de voltar à Alemanha para uma
visita breve, após o seu longo período de permanência na Itália, mas desistiu no
meio da viagem, em função da melancolia que sentiu ao contemplar a paisagem
de seu país natal. A Alemanha parecia triste ao autor das Reflexões, apaixonado
pela natureza e pelo ambiente artístico das cidades italianas. No entanto, a decisão
de retornar o quanto antes a Roma acabou se revelando uma fatalidade, pois foi
em Trieste, durante a viagem de volta, que Winckelmann foi assassinado a golpes
de punhal por um homem que acabara de conhecer. Goethe faz referência a esse
episódio em seu livro de memórias, intitulado Poesia e Verdade, oferecendo
também uma depoimento acerca da importância do autor para os estudantes da sua
geração. Adam Friedrich Oeser (1717-1799), que tinha sido um dos mentores de
Winckelmann em suas concepções sobre a arte, era naquele tempo, em Leipzig, o
professor de pintura de Goethe, que conta:
De repente os jovens estudantes ouvem dizer, jubilosos, que
Winckelmann vai voltar da Itália, visitar o príncipe [de Dessau] seu
amigo, hospedar-se de passagem em casa de Oeser e, por conseguinte,
aparecer na nossa roda. Não tínhamos a pretensão de entrar em conversa
com ele, mas esperávamos [...] ver esses homens, que nos eram tão
superiores, passear diante dos nossos olhos. O próprio Oeser
encontrava-se num estado de verdadeira exaltação ao simples
pensamento de rever o seu amigo, e foi como um raio em céu azul que
estourou em nosso meio a notícia da morte de Winckelmann. [...] Esse
horrível acontecimento produziu um efeito imenso. Foram lamentos e
gemidos universais. A morte prematura de Winckelmann fez sentir mais
intensamente o valor da sua vida.
28
28
GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Volume 1. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1986 (2ª edição), p. 247. Para mais detalhes a respeito da vida e da obra de Winckelmann,
ver a introdução de Léon MIS, em: WINCKELMANN, Op. cit., p 5-78.
29
3.2. Goethe leitor de Winckelmann
Na primeira década do século XIX, um projeto de Goethe em conjunto com
Heinrich Meyer e o filólogo August Wolf incluía, além de ensaios dos três
escritores, a publicação das cartas, então ainda inéditas, do autor das Reflexões e
da História da arte na Antigüidade a seu amigo Berendis. Terminado em 1805, o
texto de Goethe sobre o teórico da arte que tanto influenciou sua literatura procura
apresentar a vida e o trabalho de Winckelmann no contexto do século XVIII. No
entanto, a idéia central é justamente mostrar o autor não como um homem
moderno, integrado ao modo de pensar da sua época, mas como um homem de
espírito grego, que encontrou no estudo da arte e da cultura da Antigüidade algo
que correspondia à sua própria natureza. Com isso, Goethe articula seu tema à
discussão mais fundamental acerca do antigo e do moderno, questão que
constituía uma das bases das teorias da arte alemãs do século XVIII, como uma
reapropriação da Querelle francesa.
Dando a essa discussão o sentido específico de uma análise da
personalidade como voltaria a fazer anos depois em “Antigo e moderno” o
escritor faz uma comparação entre as características do homem moderno e as do
antigo, para situar Winckelmann não como defensor dos antigos, mas como sua
“reencarnação”.
29
Essa comparação é introduzida como uma referência, um
exemplo, que esclarece uma gradação a respeito do quanto um homem pode
chegar a alcançar em vida. O uso de forças particulares possibilita algumas
realizações relevantes, a combinação de diversas faculdades atinge algo de
extraordinário, mas “...só é possível alcançar algo único, inesperado, caso todas as
29
Ver GOETHE. “Winckelmann”, em: Goethe Werke, VI - Vermischte Schriften, Frankfurt, Insel
Verlag,1965, p. 267-268.
30
qualidades de um homem estejam reunidas, como aconteceu com muitos dos
antigos”. O exemplo de uma realização plena, apresentado na frase pelo “como
aconteceu”, justifica a comparação feita logo em seguida com o homem moderno,
que “muitas vezes se perde no infinito, antes de retornar a um ponto de referência
limitado, enquanto os antigos sentiam-se em casa nas fronteiras de seu belo
mundo”. Assim, haveria uma completude bem delineada, em harmonia com o
mundo em torno, comparada à dispersão e à generalização. Goethe aponta aqui,
em sua crítica ao homem moderno, o risco de se perder o foco, em função de um
saber excessivamente especializado, dividido em campos do conhecimento
desconectados entre si. Nesse sentido, Winckelmann é considerado como espírito
antigo por ter sido capaz de explorar várias áreas do conhecimento, mas sem
perder o foco daquela que correspondia à sua natureza e que concentrava todas as
suas atividades em uma única meta, conjugando a inclinação e a necessidade. Para
completar o círculo que delimita a comparação nas fronteiras de seu belo
mundo”, o autor de espírito antigo tem como meta justamente a compreensão da
Antigüidade.
Esse espírito grego de Winckelmann é percebido não só na profunda
paixão que se revela na sua consideração teórica da arte clássica, mas também nos
traços particulares da sua personalidade, ou nos exemplos de determinados fatos
da sua vida. Assim, Goethe identifica um “paganismo” que permeia as atividades
e os escritos do autor das Reflexões, manifestado na sua conversão ao catolicismo
apenas para realizar o plano de ir à Roma, apesar de uma indiferença à cristã.
Ressaltando outro elemento da biografia, o escritor faz uma avaliação da vida
amorosa de Winckelmann com base na noção de amizade dos tempos antigos, a
fim de mostrar que a preferência por jovens do sexo masculino estaria ligada ao
31
tipo de relação que os poetas e filósofos gregos descrevem. É como se o autor
analisado, de acordo com essa ótica, conjugasse todas as características de sua
natureza com o amor pela arte antiga, pela beleza física que encontra sua imagem
ideal na escultura grega justamente ao representar o divino. Tanto a devoção
religiosa quanto a amizade aparecem, então, sob o signo do amor pela beleza dos
gregos antigos. Assim, numa análise de caráter biográfico, Goethe homenageia o
autor que orientou o rumo de seus estudos da Antigüidade, moldando a fase
“clássica” de sua produção artística e de sua reflexão teórica.
3.3. A imitação dos antigos
O texto das Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na
escultura contém duas noções fundamentais, que orientam toda a teoria de seu
autor. A primeira delas é basicamente didática, uma vez que a defesa da imitação
dos antigos se apresenta como uma recomendação, aos artistas jovens, de que
partam do modelo da arte grega, em vez de recorrer diretamente ao modelo da
natureza. Mas, considerada como “o único caminho para nos tornarmos grandes,
se possível inimitáveis”, a idéia de imitação constitui um dos pilares do
Classicismo alemão e se insere na tradição da Querelle entre antigos e modernos.
A outra noção central na teoria de Winckelmann é a dupla definição do ideal de
beleza da arte antiga, caracterizado como nobre simplicidade e calma grandeza.
Esse ideal, ressaltado pelo autor nas suas descrições das estátuas gregas, revelaria
a meta da arte, aquilo que a torna inimitável e, ao mesmo tempo, faz dela um
modelo a ser imitado.
Em seu ensaio sobre Winckelmann, escrito em 1805, Goethe chama a
atenção para a dificuldade inerente à leitura das Reflexões. Embora considere que
32
o escrito “contém passagens excelentes, de importância fundamental,” e “indica
corretamente a meta da arte”, ele afirma que, “quanto à forma e à matéria, a
discussão é tão barroca e estranha que seria impossível dar sentido a ela sem
conhecer as personalidades dos eruditos e críticos na Saxônia na época, as
opiniões deles, suas inclinações e caprichos...”. Ele se refere aqui a autores como
Lippert, Oesterreich, Hagedorn, Diterich e Oeser, seu antigo professor de pintura
mencionado também nas memórias, todos eles teóricos da arte com quem
Winckelmann dialoga em sua primeira obra. O método didático e anedótico
desses autores de meados do século XVIII, cujos escritos não tiveram grande
repercussão a longo prazo, também teria sido adotado pelo autor das Reflexões. O
adjetivo “barroca”, atribuído à sua escrita, indica um contra-senso entre o
propósito do texto, de criticar justamente o estilo barroco da arte de sua época, e o
texto rebuscado, construído em cima de oposições sutis, de considerações às vezes
ambíguas. É em função dessas dificuldades do texto, tanto metodológicas quanto
estilísticas, que Goethe conclui: “A obra será incompreensível para as próximas
gerações, a não ser que amantes da arte próximos ao período a façam acompanhar
por descrições detalhadas das condições em que ela surgiu”.
30
No entanto, apesar de suas dificuldades e deficiências inegáveis, a primeira
obra de Winckelmann tinha sido privilegiada por Herder, em lugar da mais
completa História da arte da Antigüidade, no texto “Memorial de Johann
Winckelmann”, de 1777. Para Herder, “de certo modo a primeira obra de um
homem será sempre a sua melhor”, porque, segundo sua explicação, depois ele
pode ganhar muito em maturidade, força, erudição e conhecimento, como
Winckelmann indubitavelmente ganhou com o passar dos anos; mas a sua
30
GOETHE. “Winckemann”, em: Vermischte Schriften, Sechster Band. Frankfurt, Insel Verlag,
1965, p. 275. Ver também GOETHE. Essays on art and literature. The Collected Works, Volume
3. New Jersey: Princeton University Press, 1994 .
33
alvorada e primeiro florescimento juvenil foram transmitidos naquela primeira
obra”. Os defeitos desse escrito “imperfeito” são destacados como qualidades:
Ele abarca mais do que tem, intui mais do que sabe, mas flutua ainda em
sonhos ditosos e se entrega. Mais tarde vêm contradições, regras e
inimigos que o tornam mais cuidadoso [...], na primeira obra ele trabalha
ainda sem limitações, no paraíso que ele cria para si mesmo, as forças de
sua alma ainda se encontram sem divisão, e ele pretende, como as
crianças que começam a falar, dar tudo de uma vez, dizer tudo de uma
vez.
31
O texto de Herder procura definir a influência que Winckelmann teve
sobre sua própria concepção histórica da arte, vendo no autor das Reflexões um
defensor do sentimento [Gefühl] contra o racionalismo iluminista. Como teórico
do Sturm und Drang, o movimento pré-romântico que ganhava força na
Alemanha no final do século XVIII e se opunha sobretudo às regras do
Classicismo francês, Herder valorizava o direcionamento de Winckelmann para
uma interpretação direta e arrebatada das obras de arte particulares. Assim, a
proximidade por meio do sentimento se contrapõe à frieza da razão normativa, e a
busca das condições de surgimento da escultura, identificadas na observação da
natureza bela dos corpos de atletas, indica um caminho novo, uma compreensão
baseada na especificidade da cultura, da geografia e do clima. Uma compreensão
desse tipo foi defendida por Herder em seus ensaios sobre arte, especialmente no
escrito de 1773 em que ele tem como tema a obra de Shakespeare. Mas a
perspectiva histórica do autor de Idéias sobre a filosofia da história da
humanidade contradizia o caráter de modelo exclusivo da arte grega, por isso
Winckelmann também é criticado, no final do ensaio dedicado a ele, em função de
sua falta de interesse pela arte do Egito e da Ásia, identificados por Herder como
o berço cultural da Grécia antiga.
31
HERDER. Sämtliche Werke. Nachdruck der Ausgabe Berlin 1892. Hildesheim 1967. VIII, 451
f.
34
O crítico literário Peter Szondi cita os comentários de Herder em favor do
privilégio dado à primeira obra de Winckelmann, para justificar sua própria
escolha das Reflexões como tema de análise na conferência “Antigos e modernos
na estética da época de Goethe”. Segundo a análise de Szondi, o texto das
Reflexões situa seu autor na fronteira entre duas épocas da estética: a tradição
normativa e classificatória baseada na Poética de Aristóteles, que dominava a
teoria da arte iluminista, e a concepção histórica que marcaria a filosofia da arte
no século XIX.
32
A posição de Winckelmann em relação à transição por que
passava a estética de sua época se manifesta na primeira frase do escrito: “O
bom gosto, que se espalha cada vez mais pelo mundo, começou a se formar pela
primeira vez sob o céu grego”. Por um lado, a noção de bom gosto” revela um
vínculo com a estética iluminista, na qual o domínio do gosto, como uma espécie
de senso clássico de beleza, define um critério normativo atemporal para
distinguir as obras de arte boas das ruins. Desde o Renascimento, passando pelo
Classicismo francês, tinha havido um refinamento desse critério, a princípio
ligado à idéia de autoridade dos autores antigos, determinante no pensamento
medieval, depois ao domínio da razão, com a discussão das regras da arte e de
suas funções. O bom gosto aparece então como uma capacidade de apreensão do
belo, anterior à compreensão racional, mas orientada por ela.
Por outro lado, a referência que Winckelmann faz ao “céu grego” aponta,
ainda de acordo com Szondi, uma compreensão histórica das condições de
surgimento das obras de arte em seu caráter particular, único, ligado ao clima, à
natureza do lugar e do povo nele gerado. Essa singularidade da cultura grega é
considerada logo em seguida, na segunda frase do texto:
32
SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”, em Poetik und
Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 21-31.
35
Todas as invenções de povos estrangeiros vieram para a Grécia, apenas
como a primeira semente, e assumiram uma outra natureza e
configuração na terra que Minerva, diz-se, reservou aos gregos para
morada, de preferência a todas as terras, em função das estações
temperadas que encontrou nesse lugar que produziria homens
inteligentes.
Para Szondi, desde o início a teoria de Winckelmann é marcada por uma
contradição, o que revela seu posicionamento em um momento de transição da
teoria da arte. O autor das Reflexões inaugura uma compreensão da história da arte
baseada na busca das condições de surgimento das obras antigas, “sob o céu
grego”, mas procura com isso definir um critério normativo, atemporal, um
modelo a ser imitado sob um céu diferente. Essa aporia entre a singularidade do
surgimento da arte antiga e o postulado da sua exemplaridade levaria, segundo a
análise do ensaísta Szondi, ao fracasso do projeto do Classicismo. No entanto, o
caráter histórico das investigações de Winckelmann influenciou decisivamente a
estética posterior, de Herder a Hegel, e o desenvolvimento da história da arte
voltado para a compreensão das obras em sua particularidade. Szondi ressalta que
as Reflexões se opõem à abstração das teorias normativas sobre a arte, ao oferecer
uma interpretação concreta das esculturas, a partir da descrição e da consideração
do contexto cultural, geográfico e climático em que surgiram. Nesse sentido, o
escrito remete ao diálogo com artistas, como o citado pintor Oeser, refletindo a
atenção dedicada à prática e à técnica, em lugar da formulação de regras gerais
abstratas.
Quanto à imitação dos antigos, embora sua defesa de fato se revele como
uma formulação normativa, uma regra que contradiz o caráter histórico da arte, é
preciso ressaltar o propósito mais concreto de um questionamento do aprendizado
e da prática artística. O ponto de partida de Winckelmann é uma crítica aos
36
caminhos tomados pela arte de sua época, marcada pelo estilo barroco e pela
cópia da natureza por parte dos pintores holandeses. Essa arte se encontrava,
segundo sua perspectiva, em franca decadência quando comparada às obras-
primas do Renascimento e, especialmente, da Antigüidade grega. Por isso, ele
indica aos estudantes e aprendizes uma outra via, diferente daquela defendida pelo
escultor barroco Bernini, “que recomendava sempre aos jovens artistas estudar
preferencialmente a natureza”. Winckelmann questiona a maneira de compreender
a noção tradicional, de base aristotélica, da arte como “imitação da natureza”.
Esse questionamento diz respeito à interpretação da mímese, noção que corre o
risco de se degenerar no sentido mais fraco de mera cópia. De acordo com o texto
das Reflexões:
A imitação do belo na natureza concerne ou bem a um objeto único ou
então reúne as notas de diversos objetos particulares e faz deles um
único todo. O primeiro processo implica fazer uma cópia semelhante,
um retrato; é o caminho que conduz às formas e figuras dos holandeses.
O segundo é o caminho que leva ao belo universal e suas imagens ideais;
esse foi o seguido pelos gregos.
33
O segundo caminho, o caminho seguido pelos gregos, é apresentado como
um “caminho mais curto” para apreender o belo. Uma vez que a relação mesma
do homem moderno com a natureza seguiria aquele primeiro processo, limitado à
visão de objetos particulares, seria necessário aprender, ou imitar, a via de uma
outra relação com a natureza. Winckelmann descreve o caminho de síntese
seguida pelos gregos, a fim de mostrar como a “imitação do belo” vai além
daquilo que naturalmente se oferece à visão. No começo de seu escrito, ele se
refere ao aprendizado da arte na Grécia, considerada como um lugar em que a
beleza natural se mostrava “sem encobrimentos”. Segundo essa investigação das
condições de surgimento da escultura grega, a escola dos artistas seriam os
33
WINCKELMANN. Op. cit., p. 122.
37
ginásios, nos quais os jovens se exercitavam sem roupa alguma, de modo que a
beleza dos seus corpos podia ser observada nas mais variadas posições e atitudes.
Para Winckelmann, a observação possibilitada nos ginásios, aliada às condições
climáticas favoráveis, aos hábitos da época e à elevação do espírito, teria levado a
uma imitação que vai muito além da mera cópia dos exercícios acadêmicos de
observação. A partir das ocasiões numerosas de observar o belo na natureza (os
corpos despidos dos jovens), os artistas gregos teriam começado a formar
conceitos gerais da beleza presente nas partes e proporções do corpo humano, com
base em um modelo de natureza espiritual, em uma idéia de perfeição ligada, não
mais ao humano, mas ao divino.
Winckelmann exemplifica a superação da semelhança com a natureza em
duas estátuas gregas: o Antinous Admirandus, cujo corpo perfeito a própria
natureza estaria longe de criar, e o Apolo de Belvedere, que põe diante dos nossos
olhos “as proporções mais do que humanas de uma bela divindade”, algo que
mesmo a nossa imaginação não pode superar. O autor acredita que a imitação
dessas obras poderia ensinar mais rapidamente o que é o belo, “pois o artista
encontra aqui”, na primeira escultura, “a soma do que está disperso em toda a
natureza”, e aprende, pela segunda, “a que ponto a mais bela natureza pode
elevar-se acima de si própria, destemida e sabiamente”. Pelo argumento e pelos
exemplos, é evidente que a defesa da imitação dos antigos por parte de
Winckelmann não diz respeito à mera cópia das estátuas, mas à compreensão do
belo ideal que as torna um modelo a ser seguido. Nesse caso, o que se deve imitar
é o caminho de imitação tomado pelos gregos, de modo que, ao propor o modelo
da arte antiga no lugar do modelo da natureza, o autor na verdade pretende
reformular e revigorar a própria relação entre arte e natureza.
38
A famosa frase O único caminho para nos tornarmos grandes e, se
possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos...”, que se tornou uma divisa do
Classicismo alemão, pode ser interpretada corretamente a partir do
reconhecimento da diferença entre imitação e cópia. um caráter contraditório
evidente nessa formulação, uma vez que os antigos são considerados pelo autor,
mais do que grandes, inigualáveis, inimitáveis, mas são indicados como modelo a
ser imitado. Em outras palavras, o que Winckelmann propõe, a partir de sua
constatação da grandeza da arte antiga e da decadência da arte moderna (o
Barroco, a pintura holandesa) é um caminho para alcançar a grandeza, “se
possível” uma grandeza tão “inimitável” quanto a dos gregos. O caráter
contraditório leva a uma aporia se a imitação for compreendida como cópia,
porque a pergunta acerca da possibilidade de imitar o inimitável ficaria sem
solução. No entanto, o próprio autor esclarece a diferença entre os dois sentidos
da “imitação do belo na natureza” e indica, assim, o modelo de um caminho a ser
aprendido, a partir da observação e da compreensão da arte antiga em sua relação
com a beleza. Nesse caso, não se trata da reprodução da arte grega, mas do
aprendizado de sua grandeza exemplar e do ideal de perfeição que constitui a sua
meta. O caminho da arte antiga é definido como aquele que “leva ao belo
universal e suas imagens ideais”, para além da mera semelhança com a natureza.
Ao seguir essa via, a arte reúne as notas dispersas das belezas particulares e é
capaz de criar uma beleza superior, de dar forma por exemplo, não mais ao belo
corpo humano, mas à divindade.
O belo ideal é a segunda das noções fundamentais, ao lado da imitação dos
antigos, que articulam a teoria defendida nas Reflexões. Ele encontra a formulação
de seu caráter específico no trecho:
39
Enfim, o traço geral preponderante das obras-primas gregas é uma nobre
simplicidade e uma calma grandeza, tanto na postura quanto na
expressão. Assim como a profundeza do mar permanece tranqüila, por
mais tempestuosa que esteja a superfície, a expressão nas figuras dos
gregos mostra, em meio a todas as paixões, uma alma grande e
comedida.
34
As noções de nobre simplicidade e calma grandeza, identificadas como “o traço
geral preponderante das obras-primas gregas”, foram retomadas posteriormente
por diversos autores no contexto do helenismo que marcou a cultura alemã. Nessa
formulação de Winckelmann, dois elementos constituintes do caráter das
obras-primas gregas, que não diz respeito propriamente à forma, mas à alma
revelada por meio da expressão do rosto e da postura do corpo nas esculturas. O
primeiro elemento, a nobre simplicidade, pode ser entendido em contraposição ao
rebuscamento e à complexidade exagerada do Barroco, estilo criticado pelo autor,
que defende a forma simples, sem muitos acessórios, da arte antiga. Essa
simplicidade deve ser associada à contenção, ao comedimento, como
manifestações de uma nobreza da alma. no caso do segundo elemento, o autor
atribui a uma característica que já identificara antes na arte antiga, a sua grandeza,
a qualidade da calma, da serenidade. Aqui, é a expressão tranqüila do rosto que
mostra, como esclarece a comparação feita na frase seguinte, a grandeza da alma.
Em sua análise das Reflexões, Szondi chama a atenção para a comparação
com o mar, feita por Winckelmann para esclarecer sua definição do traço
preponderante da arte grega.
35
Trata-se de uma metáfora que estabelece uma
inversão de idéias, quase um oxímoro, uma vez que a expressão do rosto,
tranqüila, é comparada com a profundeza do mar, enquanto a alma agitada por
paixões é comparada à superfície tempestuosa. Causaria menos estranhamento a
34
Ibidem, p. 142.
35
Ver SZONDI, Op. cit., p. 43-44.
40
comparação da face com a superfície e da alma com o fundo, para manter a
relação entre interno e externo. Em todo caso, a metáfora indica uma idéia clara a
respeito da definição precedente: a expressão do rosto se mantém tranqüila, por
mais que se agitem as paixões da alma. Nessa tranqüilidade se revelam o
comedimento e a grandeza a que o autor se referia em sua definição do caráter das
obras-primas gregas.
Seguindo o seu procedimento ao longo de toda a obra, Winckelmann
procura demonstrar sua definição a partir da descrição de uma escultura, no caso o
Laocoonte, grupo estatuário que depois disso seria discutido também por Lessing,
no livro que leva o nome da obra, e se tornaria um exemplo clássico para a
reflexão acerca do sublime na arte. Atualmente se sabe da existência de um
original grego de bronze, mas no século XVIII era conhecida a cópia romana
de rmore, encontrada em 1506 na capital italiana e abrigada no Vaticano, onde
até hoje pode ser vista. Laocoonte é o sacerdote troiano que foi incumbido de
realizar um sacrifício a Posseidon, quando os gregos simularam sua partida da
costa e se esconderam no célebre cavalo de madeira deixado como presente para o
rei Príamo. Como Virgílio conta na Eneida (II, 20), quando estava na iminência
de revelar a presença dos guerreiros gregos no interior do cavalo de Tróia, o
sacerdote foi castigado pelos deuses por meio de uma serpente gigantesca, que o
matou junto com seus dois filhos. O grupo estatuário descrito e analisado por
Winckelmann representa o pai e as crianças, presos pelos anéis da serpente, cuja
boca se fecha em uma mordida no quadril de Laocoonte. Na expressão do rosto do
sacerdote troiano se revela, para o autor das Reflexões, a alma grande e comedida
que corresponde ao belo ideal.
41
Winckelmann observa que, nessa escultura, o mais intenso sofrimento é
descoberto “em todos os músculos e tendões do corpo”, de modo que quase
acreditamos sentir em nós mesmos diante do abdome dolorosamente contraído” a
dor de Laocoonte. No entanto, essa dor se manifesta “sem nenhuma raiva no rosto
e na posição como um todo”, o que caracterizaria a maneira como o sacerdote
suporta o seu sofrimento: A dor do corpo e a grandeza da alma são distribuídos
com o mesmo vigor em toda a construção da figura. Laocoonte sofre, mas sofre
como o Filoctetes de Sófocles: sua desgraça atinge a nossa alma, mas
desejaríamos poder suportar a desgraça como esse grande homem”.
36
Nesse
contexto, o autor faz uma crítica a Virgílo, por contar na Eneida que o sacerdote
troiano solta um “grito terrível”, o que não é representado na estátua, pois a
abertura da boca indicaria muito mais um “suspiro lamentoso”. O suspiro de quem
suporta a dor manifestaria a grandeza da alma, em uma expressão bela do
sofrimento, enquanto o grito da versão do poeta latino desfiguraria a face.
Posteriormente, essa crítica a Virgílio na comparação entre seu canto e a escultura
seria uma das grandes motivações de Lessing, em sua obra sobre as fronteiras da
poesia e da pintura, o que justifica o fato de ele ter dado a ela o nome de
Laocoonte. Em Winckelmann, não existe esse esforço de diferenciação entre as
artes, como se pode perceber também na comparação da dor sofrida pelo
sacerdote com a de Filoctetes da tragédia de Sófocles. Ele descreve a estátua para
indicar, no rosto sereno em meio aos mais terríveis tormentos corporais, a
“expressão de uma alma grandiosa”, que “vai muito além da configuração do belo
na natureza”.
36
WINCKELMANN. Op. cit. , p. 142.
42
O mesmo ideal de beleza descoberto na escultura é atribuído, nas
Reflexões, à poesia antiga, na qual Winckelmann identifica a nobre simplicidade e
a calma grandeza como o traço autêntico dos escritos gregos da época clássica.
Essa atribuição se revelaria problemática para Lessing, cuja distinção das
fronteiras entre a literatura e as artes plásticas explica as influências divergentes
que os escritos de Winckelmann tiveram sobre a cultura aledo final do século
XVIII. A partir das diferenças estabelecidas pelo autor do Laocoonte, em sua
discussão com a teoria elaborada nas Reflexões e na História da arte na
Antigüidade, é possível esclarecer como os ideais defendidos nessas obras tiveram
um desdobramento distinto na poesia e nas artes plásticas.
No movimento neoclássico, que se iniciava no campo das artes plásticas e
da arquitetura, o princípio de imitação dos antigos se associava a uma reprodução
fria e acadêmica das proporções da arte antiga. Nesse caso, não se trata da
imitação do belo ideal, mas da cópia da forma da arte antiga, contrariando o
fundamento do classicismo winckelmanniano. na literatura, toda a tradição do
helenismo alemão, que marcou a cultura dos séculos seguintes, e especialmente o
ressurgimento do Classicismo em Weimar, com Goethe e Schiller, revelam uma
profunda influência das idéias de Winckelmann. A fase clássica da produção dos
dois grandes nomes da literatura alemã naquela época, quando comparada ao
movimento neoclássico, está muito mais de acordo com o sentido da frase “o
único caminho para nos tornarmos grandes, se possível inimitáveis, é a imitação
dos antigos”.
43
4. A teoria crítica de Lessing
4.1. Lessing e o teatro alemão
Além de um grande crítico literário e teatral, de acordo com vários historiadores o
fundador da dramaturgia alemã, cujas peças são encenadas até hoje com sucesso,
Lessing foi o primeiro representante alemão da burguesia a viver como um
escritor independente no século XVIII. Sua biografia tem, inicialmente, traços em
comum com a de Winckelmann ou de outros escritores daquele período. Filho de
um pastor protestante, ele nasceu em 1729 na pequena cidade de Kamenz
(Saxônia), de onde saiu para estudar teologia, depois medicina em Leipzig. Mas,
contrariando a atitude da maioria dos intelectuais de famílias burguesas naquele
tempo, Lessing não assumiu a função de preceptor, nem se tornou professor ou
pastor. Ele passou a viver apenas de suas atividades como escritor e jornalista,
mesmo que precariamente, quando isso era praticamente inviável em seu país,
que a produção artística daquela época era financiada quase exclusivamente pelas
diversas cortes em que a Alemanha se dividia.
37
Lessing teve sua primeira peça (O jovem sábio) encenada em 1748, ano
em que ainda era um estudante em Leipzig, de onde partiu logo depois para evitar
as cobranças de seus credores. Foi para Wittenberg, depois para Berlim, a maior
cidade alemã da época, na qual passou a trabalhar como colaborador do
suplemento literário Vossische Zeitung. Entre 1748 e 1760, vivendo sempre em
situação financeira precária, o escritor se envolveu em grandes polêmicas com os
representantes do “bom gosto” dominante nas artes, especialmente no teatro. Em
1759, ele escreveu as Cartas relativas à novíssima literatura, nas quais defende
suas idéias sobre a formação de um teatro nacional autêntico. Além de contrapor
37
Ver HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Op. cit., p. 606-608.
44
Shakespeare, como modelo de gênio, aos autores franceses, Lessing dirige toda a
eloqüência de seu espírito crítico contra o Classicismo acadêmico da literatura
alemã do século XVIII.
Um bom exemplo de seu estilo contundente de polemista é o início da
carta de número dezessete, na qual ele combate a literatura de Gottsched, o mais
renomado poeta acadêmico da época, professor universitário em Leipzig e grande
defensor do modelo do teatro clássico francês. Lessing começa o texto anunciando
a posição da Biblioteca das Belas Ciências e Artes Livres, periódico da época:
“‘Ninguém’, dizem os autores da Biblioteca, ‘negará que a cena teatral alemã tem
de agradecer grande parte de suas primeiras melhorias ao Sr. Prof. Gottsched’.”
Em seguida, a posição do crítico se anuncia na frase Eu sou esse ninguém; eu o
nego redondamente”.
38
De 1760 a 1765, Lessing foi secretário do governador geral da Silésia, em
Breslau, função que lhe garantiu temporariamente uma situação mais estável, no
período em que o país vivia o intenso tumulto da Guerra dos Sete Anos (1756-63).
Sua comédia Minna von Barnhelm (1767) se baseia justamente na sociedade de
Breslau durante o período da guerra. Deixando o cargo de secretário, o escritor
voltou a Berlim, com a intenção de obter uma colocação na Biblioteca Real, mas
foi preterido por Frederico II, que preferiu dar o cargo a um francês. Em 1766, foi
publicado o ensaio Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, no
qual o escritor apresenta suas teses de teoria da arte, a partir de uma análise das
afirmações de Winckelmann ao descrever a famosa escultura do sacerdote troiano.
Depois de ver seus planos de trabalho em Berlim frustrados, Lessing aceitou o
convite para se tornar um comentarista dramatúrgico (Dramaturg) no Teatro
38
LESSING. De teatro e literatura. São Paulo, Herder, 1964, p. 109.
45
Nacional de Hamburgo, o primeiro teatro nacional da Alemanha, que durou
apenas dois anos, de 1767 a 1769. Nesse período, foram redigidos os 104 textos
reunidos depois no livro Dramaturgia de Hamburgo, em que o autor desenvolve
os argumentos de sua concepção do teatro nacional em formação, polemizando
contra o Classicismo francês com base na interpretação da Poética de Aristóteles.
Ainda em Hamburgo, ele fundou também uma editora, que faliu em pouco tempo,
e a partir de 1770 tornou-se bibliotecário do duque de Braunschweig em
Wolfenbüttel, onde viveu por onze anos, até sua morte.
Foi em Wolfenbüttel que o dramaturgo escreveu as obras-primas Emília
Galotti (1772) e Nathan o sábio (1779), que se tornariam posteriormente suas
peças mais conhecidas, lidas e encenadas. A primeira é uma “tragédia burguesa”,
ambientada num principado italiano. Apesar de sua crítica à dramaturgia clássica
francesa, elaborada na Dramaturgia de Hamburgo, a peça de Lessing o se
distancia muito dos princípios formais seguidos por Corneille e Racine. Sua maior
inovação em relação ao Classicismo era justamente a protagonista de família
burguesa, contrariando a exigência dos antigos de se ater aos personagens nobres.
Formalmente, o autor respeita as unidades de tempo, lugar e ação, já que a peça se
passa em um único dia, gira em torno do plano malogrado do príncipe para acabar
com o casamento de Emília, sua amada, e se restringe a três cenários
suficientemente próximos.
39
Nesse sentido, Lessing ainda não seguia a fundo o
modelo de Shakespeare que ele mesmo propusera, pelo menos não do mesmo
modo que os dramaturgos pré-românticos, como Goethe, que no Götz von
Berlichingen (1772) rompia inteiramente com as regras clássicas.
39
Para uma análise da peça, ver SAADI, Fátima. “Lessing e a tragédia burguesa”, em: Revista
Folhetim, número 12, jan-mar 2002.
46
A peça Nathan o sábio, escrita justamente com o verso shakespeariano que
seria incorporado pela geração mais jovem, e depois se tornaria o verso
característico do drama clássico alemão, procura responder a uma grande
polêmica teológica em que Lessing se envolveu, a respeito da veracidade histórica
da vida de Jesus. O tema central, que se expressa na parábola dos três anéis
contada pelo protagonista, é a tolerância entre as crenças religiosas. Em vez de
escolher um herdeiro para deixar o anel que simbolizava seu poder, o rei manda
fabricar para seus descendentes cópias idênticas ao original, de modo que não se
possa distinguir um anel legítimo entre os três que são herdados. O ato
simbolizaria a legitimidade da herança que se divide em três, sem privilégio de
nenhum dos herdeiros. Com base nessa parábola, o autor procura mostrar a
autêntica verdade das três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo. Anatol Rosenfeld considera essa obra, extremamente atual no tema,
“com seu translúcido jogo intelectual e sua linguagem clara, sagaz e astuta [...] um
dos mais preciosos legados que a ilustração alemão deixou aos pósteros”.
40
Como crítico e escritor independente, que representava a burguesia contra
os padrões dominantes das cortes, Lessing foi o precursor de um movimento de
afirmação da cultura alemã e de rebeldia contra o predomínio do gosto francês.
Ao se voltar contra Gottsched e contra a dramaturgia clássica de Corneille,
valorizando Shakespeare em defesa do teatro nacional alemão, ele antecipou as
divisas do Sturm und Drang, formuladas depois por Herder: a originalidade do
gênio, a língua como revelação do espírito popular e o caráter nacional. Embora
sua obra teatral, com peças que se tornaram clássicas na Alemanha, não pertença
40
“Introdução”, em: LESSING. De teatro e literatura. Op. cit., p. 10.
47
ao pré-Romantismo, a teoria de Lessing constitui uma das bases mais importantes
para a reflexão estética e a produção artística posterior.
4.2. O grito de Laocoonte
No livro de memórias Poesia e Verdade, a referência à teoria da arte de Lessing é
uma das passagens em que se reconhece mais diretamente a influência de um
autor sobre a geração de Goethe. Ele conta: “É preciso ser jovem para fazer idéia
do efeito que nos produziu o Laocoonte de Lessing; arrancando-nos ao domínio
de uma estreita intuição para os espaços livres do pensamento”. Em seguida,
resume a tese do estudo sobre a fronteira da poesia e da pintura em poucas
palavras, referido-se primeiro ao verso da Ars Poetica de Horácio (361) que
identifica as duas artes, por isso é objeto de crítica ao longo de toda a obra. Para
Goethe, “o famoso ut pictura poesis, por tanto tempo mal compreendido, fora
posto de lado” pelo autor. Com isso, ficava “manifesta a diferença entre a arte
plástica e a poesia; as culminâncias de uma e de outra mostravam-se separadas,
por mais que se tocassem as suas bases”. Essa diferença é explicada, a partir do
argumento de Lessing segundo o qual a pintura e a escultura, por serem
essencialmente espaciais, representam sempre o belo e precisam evitar tudo o que
é feio, pois têm de escolher o momento fecundo e mais sugestivo que se destina à
apreciação visual. A poesia, por sua vez, por ser uma arte temporal, pode recorrer
em determinados casos ao feio, que constitui apenas uma imagem no meio de uma
sucessão. Nas palavras de Goethe: “A arte plástica devia encerrar-se dentro dos
limites do belo, embora a poesia, que não se pode dispensar de exprimir todas as
coisas, fosse autorizada a transpor esses limites”.
48
É como se a Alemanha tivesse ganhado um fundamento teórico que
redimisse o seu atraso e a sua inferioridade cultural em relação às nações
européias de tradição latina, como a Itália do Renascimento e a França do teatro
clássico. É esse o sentido da influência reconhecida:
...as conseqüências desse pensamento magnífico ofereceram-se a nós
como um raio de luz, e desfizemo-nos de toda a velha crítica doutoral e
magistral como de uma roupa velha. Sentíamo-nos libertados de todo
mal e julgávamos poder olhar de cima, cheios de compaixão, esse século
XVI, que há pouco ainda nos parecia tão admirável. [...]. Podíamos, pois,
celebrar o triunfo do belo; e quanto ao feio em todos os gêneros, que
afinal de contas não era possível banir do mundo, podíamos relegá-lo
para a esfera inferior do domínio da arte – para o cômico.
41
Goethe se manifesta como um artista que também se movia na fronteira entre a
poesia e as artes plásticas, por isso enxergava na distinção de Lessing uma espécie
de libertação. No campo da literatura, o jovem escritor se via livre do peso dos
argumentos tradicionais que condenavam uma série de recursos poéticos em nome
dos princípios clássicos da beleza. Por ser também um estudante de pintura, ele
passava a ter uma base para o desenvolvimento paralelo e complementar de seu
aprendizado.
O Laocoonte de Lessing, assim como as Reflexões de Winckelmann, tem
como ponto de partida uma crítica da teoria e da arte de sua época. Para definir a
fronteira da poesia e da pintura, o autor se volta contra toda uma tradição da
poética que, com base em Aristóteles e em seus seguidores latinos, como Cícero,
Horácio e Quintiliano, aplica os princípios das artes plásticas à retórica e à poesia.
Essa tradição encontra uma formulação antiga no aforismo de Simônides de Ceos,
citado no prefácio, segundo o qual “a pintura é uma poesia muda e a poesia, uma
41
GOETHE. Poesia e verdade. Op. cit., p. 248.
49
pintura falante”.
42
Posteriormente, a mesma identificação entre as artes resulta da
interpretação tradicional do verso de Horácio ut pictura poesis, ao qual Goethe se
refere. Lessing contesta a tradição, e com isso a aplicação à literatura dos mesmos
princípios que regem a criação nas artes plásticas. Todo o seu questionamento gira
em torno da descrição do grupo estatuário Laocoonte por Winckelmann, mais
precisamente do comentário comparativo a respeito da expressão que o rosto do
sacerdote troiano tem na escultura e no poema de Virgílio. Na primeira, a boca
entreaberta indica apenas um suspiro, que estaria de acordo com o princípio de
nobre simplicidade e calma grandeza, enquanto o poeta se refere a um grito de
dor. Na censura do autor das Reflexões a esse grito de Laocoonte, Lessing
reconhece aquela aplicação dos critérios das artes plásticas para julgar o belo na
literatura. Por isso, a defesa da manifestação intensa de dor na obra de Virgílio se
apresenta como o centro da polêmica contra a teorias poéticas tradicionais. Entre
as influências para esse debate teórico, destaca-se a de Diderot (1713-1784), cujo
artigo sobre o “gênio”, na Enciclopédia, pode ser considerado uma das bases da
defesa do modelo de Shakespeare contra o teatro clássico francês.
43
Do ponto de vista da criação artística, o principal objeto de crítica de
Lessing era a poesia idílica que, baseada na identificação tradicional com a
pintura, limitava-se às descrições de objetos e paisagens belos. Não se trata de
condenar toda e qualquer descrição na poesia, mas de compreender um modo de
descrição próprio, que o autor encontra por exemplo em Homero. Nesse sentido, a
argumentação do Laocoonte retoma o problema da imitação, tanto da natureza
(distinta na pintura e na poesia), quanto a dos antigos, como modelo de uma
42
Ver LESSING. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, São Paulo, Iluminuras,
1998, p. 76.
43
Ver DIDEROT. Article génie”. Oeuvres esthétiques. Paris, Garnier, 1994, p. 9. Ver também
SAADI, Fátima. “Lessing e a tragédia burguesa”. Op. cit., 2002, p. 46.
50
imitação da natureza superior à dos modernos. O caráter descritivo de cada arte
diz respeito ao modo como a natureza é imitada, e a reprodução dos temas
pictóricos na poesia estaria ligada a uma compreensão dos limites entre as
artes. Para Lessing, o poeta que escreve descrições de belas paisagens ou flores
apenas copia a natureza da maneira como ela deve ser reproduzida na pintura.
Assim como Winckelmann criticava um falso realismo dos pintores holandeses,
baseado na mera cópia dos objetos visíveis, aqui é o realismo das chamadas
“pinturas poéticas” que se torna objeto de crítica. Um exemplo, analisado no
capítulo XVII do Laocoonte, é o poema “Os Alpes”, do suíço Albrecht Haller
(1708-1777), que o autor considera como “uma obra-prima do seu gênero”.
44
É
verdade que movimentos literários posteriores, como o Romantismo, o
simbolismo e o concretismo, valorizam o caráter objetivo e direto da descrição
poética, procurando inclusive os pontos de proximidade com as artes plásticas. De
certo modo, essas vertentes contestaram as fronteiras estabelecidas por Lessing,
mas o negam nem a importância de suas críticas, no contexto em que foram
feitas, nem a relevância de sua distinção entre as artes, mesmo que ela constitua
um parâmetro a ser discutido e questionado.
Como nos escritos de Winckelmann, no Laocoonte ou sobre as fronteiras
da pintura e da poesia a análise dos exemplo concretos das obras de arte serve
como ponto de partida para chegar a conclusões teóricas gerais a respeito da
criação artística. Nesse sentido, o autor questiona a tradição normativa das
poéticas latinas que definiam as regras da arte e, de acordo com elas, julgavam a
qualidade das obras. Assim, a análise da diferença entre o Laocoonte esculpido e a
narrativa de Virgílio constitui o ponto de partida para toda a argumentação sobre
44
Ibidem, p. 204.
51
as fronteiras entre a poesia e a pintura ou as artes plásticas em geral, que o
tema abrange também a escultura, apesar da restrição do título. Também nesse
caso a polêmica se mostra como um traço constitutivo do pensamento de Lessing,
que inicia sua análise com a citação do trecho de Winckelmann a respeito da
“nobre simplicidade e calma grandeza”. Grande parte da descrição da escultura de
Laocoonte feita pelo autor das Reflexões é reproduzida não para demonstrar o
caráter da arte grega, mas para ressaltar o sentido de uma censura a Virgílio por
fazer seu personagem gritar, em vez de apenas suspirar como na escultura.
Lessing concorda com Winckelmann na constatação de que a beleza
constituía a norma suprema das artes plásticas nos antigos gregos, referindo-se por
exemplo a uma lei dos tebanos que ordenava a imitação do belo e proibia sob
penalidade a imitação do feio.
45
O problema, para ele, era aplicar os mesmos
princípios que regem as artes plásticas à poesia. Seria esse o caso da censura a
Virgílio em nome da beleza da expressão da estátua que, em vez de escancarar sua
boca, mantém a sobriedade em um suspiro que manifesta a grandeza de sua alma.
Na poesia, o grito se insere em uma sucessão de acontecimentos narrados e não se
congela, como na escultura, num único momento representado. Por isso, quem
os versos ou os escuta, o pensa na abertura da boca do sacerdote, nem que seus
traços são feios em função dessa abertura. Os “clamores” aparecem como um
ponto culminante da narrativa, na ação que tem início quando as duas serpentes
alcançam os filhos de Laocoonte: E primeiro, abraçando os tenros corpos / Dos
dois filhinhos seus, os miserandos / Membros uma e outra serpe lhes devora”. Em
seguida, os monstros” envolvem também o pai nas dobras de seus corpos
imensos. Então Laocoonte tenta desatar os nós que o enredam junto com seus dois
45
Ibidem p. 89.
52
filhos, enquanto escorre sangue e veneno anegrado, “E clamores ao céu levanta
horrendos, / Quais do touro os mugidos, quando d’ara / Ferido se escapou e da
segure / Sacudiu da cerviz o golpe incerto”.
46
Ao contrário do que ocorre quando se observa a escultura, a leitura ou a
audição da poesia pressupõem, no momento em que o grito é narrado, um
conhecimento prévio do personagem, que já tinha sido apresentado como um
patriota de boa índole e como um pai afetuoso. Por isso, segundo Lessing, quando
o sacerdote dirige aos céus seus clamores, tão terríveis quanto os de um touro
sendo sacrificado, o que se expressa é uma dor insuportável mesmo para o melhor
dos homens. Como o caráter do personagem não precisa se manifestar na
expressão do rosto, ele pode gritar sem perder a grandeza. Nesse caso, é a
escultura que, por ter a necessidade de exprimir a alma da figura que reproduz
num único gesto, deve dar à expressão do rosto os traços mais suaves e dignos de
um suspiro lamentoso. Essa comparação leva Lessing a especular a respeito da
proximidade entre a escultura e o poema, levantando três hipóteses para o fato de
as duas obras apresentarem praticamente o mesmo acontecimento. A estátua
poderia ter o próprio poema como modelo, ambos os trabalhos poderiam
reproduzir um modelo anterior, ou os versos poderiam se basear na escultura.
Havia dúvidas quanto à época em que o grupo estatuário Laocoonte foi
esculpido, mesmo por parte dos maiores conhecedores da arte antiga. Por isso, a
idéia de um modelo anterior não podia ser descartada, embora parecesse a Lessing
pouco provável. a hipótese de que a estátua se baseia no poema de Virgílio lhe
parecia bastante verossímil, uma vez que o poeta latino teria sido o primeiro a
contar a versão de que as serpentes matam tanto as crianças quanto o pai,
46
VIRGÍLIO. Eneida, II, 208-210 / 221-224. Tradução de José Victorino Barreto
Feio. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
53
enquanto apenas as crianças eram devoradas nas versões gregas do mito. Nesse
caso, as diferenças entre a poesia e a pintura seriam conseqüências dos diferentes
meios de expressão das duas artes. Por exemplo, não faria sentido, na narrativa,
apresentar o sacerdote e seus filhos sem roupa, durante uma cerimônia de
sacrifício, mas o corpo nu é capaz de expressar, na escultura, o sofrimento
físico a que Laocoonte estava submetido. As artes plásticas se dirigem ao olhar,
por isso precisam deixar visíveis todos os aspectos expressivos do corpo
reproduzido. Na poesia, a imaginação possibilita que se veja através de qualquer
roupa, bastando ao escritor descrever o esforço feito pelos músculos contraídos.
A outra hipótese, de que o poeta tenha imitado a escultura, é analisada e
refutada no capítulo VI, no qual o autor considera que as modificações da
narrativa em relação à estátua não se justificam no caso de uma cópia. Essa
discussão em torno do modelo em que se basearam o escultor e o poeta remete à
questão da imitação, um problema fundamental tanto na tradição clássica grega e
latina quanto na teoria de Winckelmann. Lessing aceita a noção de que a arte
imita objetos ou ações, mas estabelece uma diferença não quanto ao que é
imitado, como também quanto aos signos ou o meio da imitação próprio de cada
arte. Ele constata que, embora a poesia nem sempre imite fatos e objetos visíveis,
ela também realiza pinturas poéticas”, e é nessa atividade tão próxima das artes
plásticas que se revelam as fronteiras de que trata o Laocoonte. O autor se
encarrega de esclarecer qual é o “nó da questão”, afirmando que existe uma
diferença essencial entre os objetos visíveis “pintados” na poesia e na própria
pintura. No primeiro caso, trata-se de “uma ação visível progressiva, cujas
54
diferentes partes acontecem uma após a outra”; no segundo, de uma ação visível
inerte, cujas diferentes partes se desenvolvem uma ao lado da outra no espaço”.
47
Lessing estabelece a diferença fundamental entre a poesia e a pintura, ao
definir a primeira como uma arte temporal e a segunda como uma arte espacial.
Essa diferença, que marcaria as reflexões teóricas sobre as artes a partir de então,
diz respeito tanto ao objeto próprio de cada arte quanto ao meio ou aos signos
utilizados para imitar esses objetos. São esses meios de expressão que determinam
o caráter temporal ou espacial de cada uma das artes, delimitando assim os seus
objetos. Segundo o argumento desenvolvido no capítulo XVI do Laocoonte, os
signos utilizados pela pintura são “figuras e cores no espaço”, enquanto a poesia
trabalha com “sons articulados no tempo”. Em função desses meios, as ações
constituem o objeto próprio do poeta, o pintor e o escultor imitam os “corpos
com as suas qualidades visíveis”. Quando a pintura imita ações, ela o faz
alusivamente, por meio dos corpos, do mesmo modo que a poesia expõe corpos
alusivamente, por meio de ações.
O melhor exemplo, para ressaltar essa diferença na imitação dos objetos
visíveis, seria o modo como Homero descreve seus objetos. De acordo com
Lessing, o poeta grego não costuma estender as qualificações atribuídas às coisas
descritas, mas narrar com enorme riqueza de detalhes as ações desempenhadas. As
embarcações, por exemplo, ora são negras, ora velozes, ora côncavas, ou seja,
seus atributos não têm minúcias, como ocorre nas descrições “frias” de poetas
mais recentes. No entanto, quando as embarcações navegam, ou aportam, ou
naufragam, essas ações ganham contornos tidos, são realçadas pelas
comparações aos movimentos de animais e aos fenômenos naturais, aparecendo
47
LESSING, Op. cit., p. 190.
55
assim em uma sucessão temporal que lhes dá vida para a imaginação. Para
reforçar sua argumentação, Lessing cita o exemplo do escudo de Aquiles, descrito
por Homero no livro XVIII da Ilíada. Em vez de copiar os traços da obra a ser
descrita, o poeta conta como o objeto foi feito, produzindo assim uma “pintura em
ação” na qual são apresentadas, com enorme riqueza de detalhes, uma série de
cenas que o deus ferreiro Hefesto teria gravado na parte frontal do escudo, para
concluir seu trabalho. Cada uma das cenas é descrita como uma ação, de modo
que chega a ser difícil converter os acontecimentos dotados de vida e movimento,
com ajuda da imaginação, nas várias reproduções imóveis que estariam presentes
no escudo de Aquiles.
No capítulo XX do Laocoonte, a questão do belo na poesia também é
exemplificada com um trecho de Homero. Lessing compara a ausência de uma
descrição de Helena, na Ilíada, com as tentativas de descrição de belas mulheres
por outros poetas. No canto III, uma passagem que pode ser considerada não
como “pintura em ação”, mas como “pintura sem pintura”, demonstrando que a
poesia é capaz de expressar objeto visível por meios indiretos. Essa capacidade
tem um exemplo primoroso nos versos em que os anciãos de Tróia, contemplando
o exército inimigo em formação, vêem surgir Helena na torre em que se
encontravam e declaram: É compreensível que os Teucros e Aquivos de grevas
bem feitas / por tal mulher tanto tempo suportem tão grandes canseiras! / Tem-se,
realmente, a impressão de uma deusa imortal estar vendo”.
48
Para Lessing, ao
mostrar o efeito causado pela beleza nos homens que, embora velhos, a
reconhecem como digna da guerra que ameaça destruir sua cidade, Homero a
respeito da beleza uma idéia mais viva do que a de qualquer descrição.
48
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, Canto III, v.
156-158.
56
Se a beleza pode encontrar seus caminhos próprios na poesia, diferentes
daqueles que caracterizam as artes plásticas gregas, resta saber se a feiúra, evitada
pelos pintores e escultores clássicos, precisa ser excluída também dos poemas. O
próprio Homero oferece um exemplo que contraria essa exclusão, no canto II da
Ilíada (216-219), ao descrever Tersites como “o mais feio” dos guerreiros gregos,
antes da cena em que Odisseu castiga seu atrevimento com um golpe de cetro,
provocando risos em todos os que participavam da assembléia. Nesse caso, a
figura grotesca serviria para reforçar o efeito cômico provocado pela ação que
vem em seguida. Mas Lessing cita também outro exemplo, recorrendo pela
primeira vez no Laocoonte à obra de Shakespeare. Ele compara a “feiúra
inofensiva” de Tersites, que serve para aumentar o ridículo de sua situação, à
“feiúra prejudicial” do vingativo e obstinado Ricardo III, na tragédia A vida e a
morte de Ricardo III. Ressaltada pelo próprio personagem, a sua deformidade lhe
um ar diabólico, que torna mais terríveis as sua maquinações e intensifica os
traços “feios” de seu caráter.
As considerações de Lessing, baseadas nos exemplos que ele analisa,
desenvolvem uma teoria estética que não está voltada para as regras da arte, como
fazia a tradição das poéticas normativas, mas para o efeito produzido pelas obras.
É a valorização do efeito que se revela nos exemplos extraídos de Homero: a
imagem da riqueza do escudo de Aquiles, obtida na descrição de sua feitura pelo
deus; a idéia da beleza de Helena, em conseqüência da reação dos anciãos; o
resultado cômico da cena com o feiíssimo Tersites. Da mesma maneira, o grito de
Laocoonte no poema de Virgílio se justifica pela sua expressividade, contrariando
a regra tradicional que, com base na interpretação questionável do ut pictura
poesis de Horácio, tinha levado Winckelmann a censurar o poeta latino. Segundo
57
Peter Szondi, essa “estética do efeito” marcou o desenvolvimento da teoria da arte
na Alemanha do século XVIII, especialmente no período iluminista.
49
A ênfase no
efeito produzido pela arte não pôs em questão as teorias normativas
tradicionais, como também possibilitou o aprofundamento de algumas das
questões indicadas por Lessing. Goethe reconhece a influência de sua teoria a
respeito das fronteiras da poesia e da pintura, mas talvez tenham sido a
valorização de Shakespeare e a crítica ao Classicismo francês os argumentos que
mais contribuíram para a geração que iniciou o movimento pré-romântico. Na
base dessa posição do autor do Laocoonte e da Dramaturgia de Hamburgo, em
defesa de um modelo para o teatro nacional alemão, encontra-se também uma
oposição entre as regras da arte (marca do teatro clássico francês) e o efeito
trágico, a catarse aristotélica, que Shakespeare alcançaria sem segui-las. Mesmo
Herder, que foi um crítico de muitas das idéias de Lessing, seguiu essa indicação
pela qual se justifica a valorização do gênio que não segue as regras da arte. A
defesa do sentimento contra a razão, ou da natureza contra a arte fria e mecânica,
por parte de Herder, Goethe, Lenz, entre outros, encontra-se profundamente
enraizada na estética do efeito.
5. O Laocoonte retomado por Goethe e Schiller
No contexto do projeto classicista que será analisado no terceiro capítulo, o
exemplo de Laocoonte foi retomado tanto com base na observação do grupo
estatuário, quanto no comentário da descrição de Virgílio. Goethe escreveu em
1798 um ensaio sobre a escultura, no qual retoma as questões de Winckelmann e
de Lessing, mas critica algumas das posições de seus precursores a partir de uma
49
Ver SZONDI, Peter. Op. cit., p. 49.
58
análise minuciosa da obra. Em todo caso, ele recorre ao exemplo debatido
anteriormente para defender, em linhas gerais, a noção de uma perfeição exemplar
da arte antiga, portanto o mesmo ideal que tinha caracterizado o classicismo
winckelmanniano. Schiller, por sua vez, citou não a estátua, mas também a
narração que Virgílio faz da história de Laocoonte em “Acerca do patético”
(1801) como exemplo do sublime, conceito que constitui a base de suas
considerações teóricas sobre a tragédia. Desse modo, ele remete diretamente a
uma indicação de Lessing, que chegara a identificar um traço sublime” no grito
do sacerdote troiano representado pelo poeta latino.
50
Mas, quando volta ao
mesmo exemplo, Schiller se refere a uma concepção diferente do sublime,
baseada na filosofia de Kant, fazendo como que uma releitura da referência ao
Laocoonte como exemplo para a reflexão estética.
Assim, a partir da descrição nas Reflexões e da sua contestação por
Lessing, formulou-se o exemplo clássico em torno do qual se desenvolveu o
debate estético na Alemanha do século XVIII. Uma breve análise do ensaio de
Goethe e do comentário de Schiller, mostrando a relação com seus precursores,
pode apontar dois caminhos tomados pela teoria da arte seguindo as bases do
Classicismo. Por mais divergentes que sejam essas vias, elas convergiram
posteriormente para um projeto comum, elaborado sobretudo na correspondência
entre os dois escritores e na revista de arte Propileus, fundada em 1798 e dirigida
por Goethe, Schiller e pelo historiador da arte Heinrich Meyer (1760-1832). As
duas trajetórias têm em comum o fato de que a fase clássica dos dois escritores, na
teoria e na produção artística, ter sucedido ao movimento pré-romântico, que se
opunha decisivamente a certos traços do Classicismo, sobretudo em sua versão
50
Ver LESSING. Op. cit., p. 105.
59
francesa. Essa mudança de concepção será analisada posteriormente, mas é
importante ressaltar desde que a convergência para um projeto comum se deu
por vias bastante divergentes, quase inconciliáveis, como podem demonstrar as
retomadas que Schiller e Goethe fazem do debate de seus precursores
Winckelmann e Lessing.
5.1. Laooconte como herói trágico
Schiller cita a descrição de Laocoonte por Virgílio no ensaio “Acerca do
patético”, texto que se insere numa rie de obras teóricas a respeito da tragédia
escritas na última década do século XVIII. A base dessa reflexão teórica foi o
estudo da Crítica do juízo, de Kant, publicada em 1790, como demonstram as
cartas de Schiller desse período, especialmente as cartas a Christian Gottfried
Körner (1756-1832).
51
A partir de seus estudos kantianos, o autor considera a
tragédia como apresentação artística em que se expressa o conflito entre os dois
lados da existência humana, entre a faculdade sensível e a moral, ou racional,
associando essa apresentação ao conceito de sublime da terceira crítica. No
entanto, a retomada desse conceito, nos ensaios,o diz respeito aos juízos
estéticos como na obra de Kant, mas ao modo como o sublime se manifesta no
caráter humano, especialmente no caráter do herói trágico, cujo fim manifesta
uma superação do conflito. Segundo essa teoria, explicitada em textos como
“Acerca da arte trágica” (1792), “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos
trágicos” e “Acerca do sublime” (1793), o conteúdo da tragédia está ligado a uma
vitória da liberdade moral sobre a necessidade natural.
51
Ver Kallias ou Sobre a Beleza. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
60
A teoria desenvolvida por Schiller visa a definir o sentido da tragédia a
partir da filosofia moderna, portanto a refletir sobre o gênero trágico na
modernidade, preocupação decorrente de sua própria atividade como dramaturgo.
Resumindo as conclusões de seus ensaios, a forma da tragédia é a representação
apropriada para, por meio de uma imitação poética, apresentar o sofrimento e a
resistência ao sofrimento; sua finalidade é comover, ou despertar compaixão,
entendida como um prazer moral na contemplação da vitória sobre a
sensibilidade, sobre a animalidade. Nesse sentido, a apresentação da liberdade
moral pode ser alcançada de modo negativo e indireto, por meio da
apresentação do padecimento do herói, ou seja, do “patético”, ligado ao conceito
kantiano do sublime. Esses temas serão retomados posteriormente, mas seu
resumo possibilita uma interpretação do modo como o exemplo de Laocoonte é
pensado no ensaio.
É com base na conclusão de sua teoria da tragédia que Schiller comenta,
em “Acerca do patético”, a descrição que Winckelmann faz da estátua e a
narração que Virgílio faz da história do sacerdote troiano, como exemplos do
sublime trágico. O grupo estatuário é citado para mostrar que ele pode ser
considerado como uma “medida para o que a arte plástica dos antigos era capaz de
produzir no terreno do patético”, entendido como a representação do pathos, do
sofrimento que se revela sublime quando mostra a autonomia moral do homem.
Para Schiller, essa descrição indica a luta da inteligência contra o sofrimento da
natureza sensível, revelando por um lado a animalidade e a coação da natureza,
por outro a humanidade e a liberdade da razão. Ele comenta que Virgílio descreve
a mesma cena que serviu de objeto ao escultor, mas o poeta épico não pretendia
entrar na alma de Laocoonte, como fez o escultor, pois essa descrição era apenas
61
uma passagem secundária de seu poema. Por isso, ressaltando a sua diferença em
relação ao autor do Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia,
Schiller observa:
conhecemos a narração virgiliana através dos excelentes comentários
de Lessing. Mas o objetivo a serviço do qual Lessing a usou foi apenas o
de ilustrar, neste exemplo, os limites da representação poética e pictórica,
mas não o de desenvolver daí um conceito do patético. A mim, porém,
quanto a esse último fim, ela não me parece menos proveitosa...
52
Os versos de Virgílio são interpretados de acordo com o objetivo de
identificar a questão do patético e do sublime. Assim, as serpentes monstruosas
que foram enviada por Apolo aparecem como a força terrível da natureza, o poder
destrutivo e invencível contra o qual a capacidade sica humana nada pode fazer.
Essa poderosa força natural é a primeira condição para a apresentação do sublime,
porque se impõe irresistivelmente à capacidade física humana muito mais fraca do
que ela. Ao interpretar a narração, Schiller chama a atenção para o fato de o
monstro avançar primeiro sobre os filhos de Laocoonte, expondo o sacerdote
diretamente ao conflito entre o mundo sensível e o mundo racional. Nessa
situação ou ele foge, sucumbindo ao pavor, sem levar em conta seus filhos, ou
escolhe a morte certa por livre e espontânea vontade. Essa escolha é constitutiva
da natureza humana: “fôssemos nada mais do que seres sensíveis, que não seguem
nenhum outro instinto a não ser o da conservação, aqui ficaríamos parados,
detendo-nos no estado do mero sofrimento”. Mas “qualquer coisa em nós que
não toma parte das afecções da natureza sensível e cujas atividades não se
regulam por condição física alguma”, o que permite escapar do poder da natureza
e prova que não somos meramente seres sensíveis. Em vez de fugir, o sacerdote se
lança contra as serpentes, não por instinto natural, mas por escolha racional,
porque deve enfrentá-las em nome de sua dignidade. Assim, “sua morte torna-se
52
“Acerca do patético”. SCHILLER. Teoria da Tragédia, São Paulo, EPU, p. 127.
62
um ato de vontade”, portanto expressa a possibilidade de agir livremente diante da
imposição terrível da natureza. Schiller concluiu: “expulsos de toda fortificação
que pode formar uma defesa física para o ser sensível, atirando-nos dentro da
invencível fortaleza da nossa liberdade moral, ganhamos uma segurança absoluta
e infinita justamente por deixarmos perder-se no campo dos fenômenos uma arma
de defesa apenas relativa e precária”.
53
Segundo a interpretação de Schiller, o ataque ao homem moral (o pai)
antes do ataque ao homem físico é fundamental para produzir o efeito de uma
apresentação negativa do sublime, fato acentuado na narrativa de Virgílio pelo
que sabemos a respeito de Laocoonte antes de ler a cena do ataque das
serpentes. Nessa constatação, ele concorda inteiramente com Lessing, que tinha
comentado a referência a uma caracterização prévia do personagem para justificar
o grito do sacerdote no poema. No entanto, como sua própria indicação da
diferença de propósitos mostra, Schiller não pretendia com isso ressaltar o traço
distintivo da poesia em relação à escultura, mas chamar a atenção para o caráter
do herói trágico. Assim, se sua grandeza moral o torna digno de compaixão,
quando luta com uma força superior à sua, o fato de enfrentar as serpentes por
“livre escolha”, para salvar os filhos, faz dele um herói trágico cuja morte se torna
um “ato de vontade” e, portanto, uma afirmação da liberdade diante da
necessidade natural.
Essa interpretação com propósitos distintos, baseados na filosofia kantiana,
afasta Schiller da tradição aristotélica da qual Lessing é um dos principais
defensores na Alemanha, revelando sua intenção de questionar os parâmetros de
criação da tragédia na modernidade. Mesmo assim, as bases do Classicismo o
53
Ibidem, p. 132.
63
foram contestadas, uma vez que Schiller não concorda em muitos pontos com
as interpretações de seus precursores Winckelmann e Lessing, como também
elege como tema o exemplo “clássico” de Laocoonte, na escultura e na poesia,
aceitando a sua condição de modelo para a concepção do sublime na tragédia.
5.2. A análise da escultura
Em Sobre Laocoonte” (1798), ensaio publicado no primeiro número da revista
Propileus, Goethe não retoma a questão da análise do Laocoonte como obra de
arte exemplar, mas também discute e critica pontos específicos das interpretações
de Winckelmann e de Lessing. Antes de analisar a escultura, ele faz uma
consideração geral a respeito das obras de arte, na qual ressoam as noções que se
encontram nas Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na
escultura e que são questionadas no Laocoonte ou sobre a fronteira da pintura e
da poesia: a imitação do belo na natureza, a perfeição como uma combinação de
elementos particulares num todo harmonioso, a observação do corpo humano
como ponto de partida para a escultura.
De início, Goethe chama a atenção para a limitação de qualquer teoria da
arte, já que a essência de uma obra pode ser contemplada, sentida, mas não
conhecida e menos ainda expressa em palavras. A primeira frase do texto resume
seu argumento: “Uma autêntica obra de arte, como uma obra da natureza, sempre
ultrapassa infinitamente nosso entendimento”.
54
Nessa frase se percebe a
tendência realista de Goethe ou, em outras palavras, a valorização do sensível
sobre o racional, da objetividade sobre a especulação. A posição que ele defende o
leva a definir o seu texto sobre o grupo estatuário Laocoonte como sendo
54
GOETHE. “Über Laokoon”. Em Vermischte Schriften. Frankfurt, Insel-Verlag, p. 256. Ver
também: “Sur Laocoon”, em : Écrits sur l’art. Paris, GF Flammarion, 1996, p. 165.
64
inspirado por essa obra de arte perfeita, sem a pretensão de esgotar o assunto
tratado. Nesse sentido, sua abordagem tem um propósito inteiramente distinto, por
exemplo, daquela intenção da teoria da tragédia de Schiller, na qual os conceitos
filosóficos de patético ou de sublime, usados para caracterizar a situação trágica,
procuram revelar a essência da arte, de modo que a obra de arte particular
exemplifica aquilo que se define por meio desses conceitos. Goethe não pretende
elaborar uma filosofia da arte nesses moldes, mas uma crítica que parte da
observação e do conhecimento técnico da criação artística, aproximando-se assim
de seu precursor Winckelmann.
Naquela primeira frase do texto se encontra, numa comparação que pode
parecer apenas ilustrativa, uma questão decisiva: “Uma autêntica obra de arte,
como uma obra da natureza...”. Tanto a arte quanto a natureza produzem obras
que o nosso entendimento não é capaz de abarcar, ou que vão além do alcance de
uma descrição com palavras, o que não significa que a arte tenha de ser
semelhante à natureza. Goethe não defende a noção de que é preciso imitar a
natureza diretamente, mas a compreensão da obra de arte como um todo
“orgânico”, composto por vários elementos que se harmonizam e produzido
segundo uma série de condições que caracterizam a criação artística. Nesse
sentido, o parâmetro da comparação são as obras naturais, que podem ser
apreendidas por meio dos sentidos, mas cuja essência ultrapassa qualquer esforço
de descrição porque, para entendê-las, seria preciso conhecer a natureza em sua
totalidade. É o modo de ser das obras de arte que se assemelha ao modo de ser da
natureza, no sentido de que as leis próprias do processo que resulta em sua
produção estão submetidas a uma compreensão de totalidade. Por isso, embora
compare o nível da arte e o da natureza em termos de nosso entendimento, Goethe
65
considera “uma grande vantagem para uma obra de arte o fato de ela ser autônoma
e fechada em si mesma”.
55
Assim, a comparação feita por Goethe remete a uma interpretação do
problema da mímese, da imitação da natureza e da relação entre natureza e arte.
Nas Reflexões de Winckelmann, a abordagem desse problema partia de uma
crítica da imitação direta da natureza (defendida por Bernini ou posta em prática
pelos pintores holandeses), para definir a arte grega como um outro tipo de
imitação, que o resulta em meras cópias, mas leva às imagens ideais, ao belo
universal. Goethe parece aplicar esse mesmo argumento, que definia a arte grega
como modelo a ser imitado, ao processo de criação artística considerado
genericamente. Para ele, a observação da natureza e o conhecimento do objeto
constituem uma condição inicial para que o artista, por meio de sua sensibilidade,
de sua busca de harmonia, de suas escolhas e de sua intuição da beleza, faça uma
obra de arte que vai muito além da simples cópia dos objetos naturais e alcança
uma perfeição ideal. Aplicando o argumento de Winckelmann acerca da arte
grega ao processo de criação artística em geral, Goethe aceita a exemplaridade
daquela imitação identificada no caso dos antigos. Assim como fez o autor das
Reflexões, ao descrever as condições de surgimento da arte grega com base na
observação do atletas nos ginásios, Goethe considera o conhecimento do corpo
humano em suas diferentes partes, em suas proporções, em suas finalidades
internas e externas, nas formas e nos movimentos, como ponto de partida
necessário para o escultor. É a partir do conhecimento do objeto a ser reproduzido
que se definem as condições para a realização de uma obra de arte elevada: o
característico, fruto da observação; a expressão das paixões no repouso ou no
55
Ibidem, p. 258.
66
movimento; o ideal, revelado na escolha do momento culminante a ser
representado; a graça, adquirida pela maneira de representar, segundo a ordem, a
simetria etc.; e a beleza, como uma submissão a um ideal capaz de integrar até
mesmo os extremos da natureza humana num todo harmônico. De acordo com
essas condições, o processo da criação artística parte da observação da natureza e
passa pelo aprendizado das características particulares do objeto observado,
apresentados em harmonia, para alcançar a perfeição por meio de um ideal
artístico mais elevado.
Após a consideração geral, feita no início do texto, Goethe pretende
mostrar que o grupo estatuário Laocoonte satisfaz todas essas condições definidas
para a obra de arte “perfeita”, “mais elevada”, “mais eminente”. No início de sua
análise da escultura, ele observa que, entre todas as condições definidas antes, a
que parece mais problemática no caso do grupo estatuário em questão é a
condição da graça. A princípio, a noção de gracioso, ligada a uma harmonia das
partes que compõem a obra, estaria em contradição com a primeira impressão a
respeito de um grupo estatuário que representa extremos do sofrimento humano,
com as figuras do sacerdote e de seus dois filhos atacados pelas serpentes. Mas,
segundo a explicação do autor, os antigos eram capazes de facilitar a
compreensão visual” por meio da simetria, tornando claras e compreensíveis
mesmo as obras mais complexas. Assim, o grupo do Laocoonte, embora
extremamente movimentado, possui uma composição simétrica, harmoniosa e
agradável à vista, como um modelo de variedade, de calma e de movimento, de
oposições e gradações sutis”, de modo que seus elementos diversos “atenuam pela
graça e pela beleza as tempestades do sofrimento e da paixão”.
67
Por um lado, essa explicação a respeito da graça remete diretamente à
comparação das paixões de Laocoonte com a superfície tempestuosa do mar, feita
por Winckelmann, ou à interpretação de Lessing, segundo a qual a expressão no
rosto do sacerdote teria traços atenuados em nome da exigência de beleza que
imperava sobre a escultura na Antigüidade. Por outro lado, ela revela uma
intenção inteiramente diferente por parte de Goethe, que ele, em vez concentrar
sua análise na figura principal do grupo como tinham feito seus precursores,
procura desde o início estudar a obra como um todo, interpretando cada um de
seus elementos quase com o mesmo peso. A análise da escultura estabelece um
diálogo com as interpretações de outros autores, seguindo um fio condutor bem
definido que se apresenta numa série de descrições da obra analisada, cada uma
feita para ressaltar determinadas características.
A primeira descrição diz respeito a uma questão discutida anteriormente
por Lessing: a redução da figura aos traços essenciais; questão que Goethe ressalta
ao resumir a situação representada à de um pai com dois filhos correndo o risco
de sucumbir a duas criaturas perigosas”. Essa redução está ligada à escolha do
momento mais expressivo, necessária para que uma obra de arte ganhe vida
quando contemplada, para que ela apresente seu sentido pleno, que se renova ao
olhar de cada espectador. No ensaio de Lessing sobre a fronteira da pintura e da
poesia, tanto a redução aos traços essenciais quanto a escolha do momento
oportuno revelam as características específicas das artes plásticas, consideradas
como artes espaciais, por isso chamam a atenção para as limitações impostas ao
escultor, mas que não poderiam ser aplicadas ao poeta. Não é essa a intenção de
Goethe, como ele indica ao afirmar: “Se devesse explicar esse grupo sem
conhecer outra interpretação, eu o chamaria de um idílio trágico”. Essa frase pode
68
remeter a Schiller, que tinha escolhido a situação de Laocoonte como exemplo do
trágico, mas pode ser lida também como uma espécie de justificativa da mistura
entre poesia e escultura mesmo reconhecendo a importância da distinção
estabelecida por Lessing. Nesse caso, após fazer essa espécie de pedido de
licença, Goethe elabora sua descrição numa história reduzida aos traços
essenciais, na qual se revela a situação representada como momento culminante:
“Um pai dormia ao lado de seus dois filhos, eles foram enlaçados por serpentes e,
ao acordar, tentam agora se livrar dessa rede viva”.
A situação representada na escultura dá, em função da escolha do
momento e da capacidade do artista, uma idéia dinâmica que se descobre com
toda evidência, segundo Goethe, quando o espectador fecha os olhos diante da
obra, abrindo-os em seguida para ver o mármore em movimento. Essa situação
dinâmica é obtida pelo escultor segundo um princípio de gradação, que o autor
chama de “ciência suprema” e que pretende demonstrar em sua segunda descrição
do grupo estatuário. A partir dela, a análise é muito mais detalhada do que as de
Winckelmann e Lessing, nas quais a atenção estava voltada para a figura central
da escultura, a figura do sacerdote troiano. Goethe observa que o filho mais velho
está preso pela serpente apenas por uma de suas pernas, mas o outro, enlaçado
mais de uma vez, faz com o braço direito uma tentativa de se libertar, enquanto
sua mão esquerda segura a cabeça de uma das serpentes; o pai tenta se livrar da
situação, segurando o corpo da outra serpente, que reage com uma mordida perto
de sua cintura. A explicação da postura de Laocoonte na estátua retoma o tema da
polêmica de Lessing com Winckelmann, numa crítica às interpretações dos dois
escritores.
69
A posição do corpo é explicada segundo o princípio de apresentar um
efeito sensível e mostrar, ao mesmo tempo, sua causa, que seria a mordida da
serpente. Para Goethe, a posição do sacerdote troiano corresponde inteiramente a
essa causa: ele dobra o corpo na direção contrária à da mordida, contraindo o
abdome, e inclina a cabeça em direção à parte atingida, reagindo precisamente ao
momento do ataque da serpente. O fato de que toda a posição seria alterada, caso
mudasse o ponto da mordida, demonstraria a espantosa ciência do artista, que
soube escolher o ponto ideal para dar ao corpo um caráter dinâmico que combina
o esforço de luta e de fuga, a atividade e a passividade, a revolta (nos gestos dos
braços que seguram a serpente) e a rendição (no corpo que se dobra à dor da
mordida). Contrariando a oposição feita por Winckelmann entre a dor sensível
manifesta no abdome contraído e a expressão “tranqüila”, Goethe considera que
mesmo os traços do rosto são determinados pela sensação imediata da dor.
O próprio autor chama a atenção para o fato de estar contestando aquela
oposição entre o lado corporal e o espiritual, identificada nas Reflexões, ao afirmar
que não pretende reduzir a natureza humana negando o papel das forças
espirituais. Ele reconhece as “aspirações e sofrimentos de uma natureza
grandiosa”, assim como o terror e os sentimentos paternais que se misturam na
situação, de modo que a vida espiritual estaria representada em seu nível mais
elevado ao lado da vida corporal. Assim, Goethe afirma não discordar
inteiramente de Winckelmann, cuja descrição da figura de Laocoonte como uma
representação dos sofrimentos físicos em conflito com o espírito elevado foi
aceita também por Lessing. Mas ele faz uma ressalva dirigida diretamente ao
segundo, quando afirma que é preciso tomar cuidado para não transpor para a
própria obra o efeito que ela produz sobre os espectadores. Em sua interpretação,
70
Lessing tinha falado do efeito do veneno e de um combate contra a morte,
comentários negados aqui com o argumento de que os dentes da serpente acabam
de tocar o corpo do sacerdote, ainda saudável e combativo.
Assim, Goethe concorda com seus precursores em alguns aspectos, mas
identifica o conflito do homem físico e do homem espiritual a partir de uma
interpretação nova, baseada na transição de um estado a outro. Por representar um
momento de transição, a estátua conserva um traço claro do estado anterior e, com
isso, unifica num mesmo momento representado o esforço combativo (atividade
física), visível no gesto dos braços que seguram a serpente, e o sofrimento
(submissão à dor, resignação na qual se revela o lado espiritual), visível na
contração do corpo e na expressão do rosto.
Na terceira descrição da escultura, o autor chama a atenção para as duas
serpentes e as três pessoas, cuja representação acentua a expressividade do objeto
escolhido: “homens que lutam contra criaturas perigosas”. O fato de não se tratar
de uma oposição simples, concentrada num único ponto, como poderia acontecer
no caso de outra criatura representada e de um único homem, uma certa calma
e unidade ao grupo, incluindo ao mesmo tempo uma diversidade expressiva. As
serpentes são capazes de paralisar três pessoas, cada uma de modo diferente, o que
revela uma primeira gradação: uma delas apenas enlaça, a outra reage aos esforços
da figura central com uma mordida. as pessoas representadas são descritas
como um homem forte, mas já velho, que ainda tem energia física, dois meninos
que, comparados ao adulto, revelam-se como naturezas sensíveis à dor. Um dos
filhos se debate, sem saída, o pai luta e é ferido, o outro filho tenta escapar do
único laço que o prende.
71
Para Goethe, cada figura exprime uma dupla ação, de modo que as três
interagem em diversos níveis. Essa observação o leva a descrever a escultura com
mais detalhes, para esclarecer cada uma das ações exercidas e o sentido que ela
tem para o todo. Um dos filhos “eleva o braço direito a fim de poder respirar mais
livremente e, ao mesmo tempo, apóia a mão esquerda sobre a cabeça da serpente”,
em sua situação de prisioneiro, ele quer diminuir o mal presente e evitar um mal
ainda maior”. O pai tenta se libertar com os braços e, ao mesmo tempo, seu corpo
faz um gesto de fuga. O outro filho tenta se soltar do laço que o prende e se
assusta com o gesto do pai, como uma espécie de observador presente na própria
obra, uma testemunha participante. Segundo a interpretação de Goethe, o
momento representado é o ponto culminante no qual se resumem todos os
extremos da situação, o que se revela claramente caso a ação que resulta nesse
momento seja acompanhada desde o início adepois do clímax alcançado. No
momento culminante, um dos corpos é incapaz de se defender, o outro se defende
mas é ferido, o terceiro tem ainda esperança de fugir e contempla com desespero
os demais.
O autor afirma que, em face dos sofrimentos próprios e alheios, o homem
possui apenas três sentimentos: o medo, o terror e a compaixão. Ou seja, “o
pressentimento inquieto de um mal que se aproxima, a percepção súbita do
sofrimento presente e o envolvimento diante de um sofrimento presente ou
passado”.
56
uma observação, nesse contexto, que remete diretamente à
definição, feita por Lessing, da fronteira de pintura e poesia:
As artes plásticas, que sempre trabalham em vista da representação do
momento específico, recorrerão sempre, quando se trata de escolher um
56
Ibidem, p. 259. É possível reconhecer nessa afirmação uma referência à Lessing, que define
medo, terror e compaixão na Dramaturgia de Hamburgo (Ver LESSING. De teatro e literatura.
São Paulo, Editora Herder, 1964, p. 56), tema a ser tratado no segundo capítulo deste estudo.
72
tema patético, a um objeto capaz de despertar o terror, enquanto a
poesia remete aos objetos que provocam medo e compaixão.
Mas Goethe menciona essa distinção entre os dois campos da criação
artística justamente para demonstrar que seu exemplo, o Laocoonte, constitui uma
“realização suprema” das artes plásticas por ultrapassar sua fronteira. Nesse
sentido, se a figura central do pai é capaz de despertar o terror, no mais alto grau –
como percepção súbita do sofrimento presente –, a obra também representa o
medo e a compaixão, tanto para amenizar a impressão violenta do terror quanto
para abarcar os três sentimentos que compõem uma totalidade espiritual. No
grupo estatuário, o filho mais novo provoca a compaixão e o mais velho, o medo
(uma vez que lhe resta a esperança de escapar). Os três sentimentos que abarcam
todo o escopo da situação patética estariam representados, assim, no Laocoonte, e
de tal maneira que o efeito desses sentimentos também se expressa na própria
obra, porque é a compaixão pelo filho mais novo que move o esforço do pai, que
no entanto se na terrível situação da qual não pode escapar, enquanto o filho
mais velho demonstra medo diante do mal que o ameaça. Por isso, Goethe
considera que essa obra trata seu tema de modo exaustivo e preenche todas as
condições exigidas pela arte...”.
A relação entre a representação de Laocoonte na escultura e a narrativa de
Virgílio só é considerada no final do ensaio, como “algumas observações a mais
sobre a relação do tema com a poesia”. O autor concorda inteiramente com
Lessing, ao considerar injusta em relação a Virgílio a comparação com o grupo
estatuário, considerado a obra-prima mais bem realizada no campo das artes
plásticas. No entanto, o argumento de Goethe não diz respeito à fronteira entre as
duas artes, mas ao caráter episódico da descrição da cena na Eneida. Nesse caso,
ele admite que existe na narrativa um exagero, mas procura justificá-lo pela
73
função de argumento retórico que a história de Laocoonte tem no poema. É Enéias
quem narra a história, para explicar como ele e seus compatriotas cometeram o
erro imperdoável de permitir a entrada do Cavalo de Tróia na cidade. A cena
descrita com serpentes enormes que saem do mar a fim de atacar os filhos e o pai,
que grita em vão por socorro, é chamada de “extravagante e repulsiva” por
Goethe. Sua função seria a de causar uma impressão exagerada no ouvinte do
texto declamado, para que ele aceite a entrada do cavalo na cidade sem condenar o
erro do herói. Assim, como a história de Laocoonte constitui apenas um meio
retórico, sendo secundária no poema, ela não poderia servir de base para uma
comparação que visa a saber se a situação do sacerdote e de seus filhos é um
objeto apropriado para a poesia.
Em sua introdução aos Escritos sobre a arte de Goethe, Todorov chama a
atenção para a diferença de propósito da estética de Goethe em relação às teorias
de seus precursores Winckelmann e Lessing, embora a mesma obra sirva de
exemplo para as reflexões teóricas dos três autores. Essa diferença caracterizaria
uma estética orgânica”, em comparação com uma “estética mimética” e uma
“estética genérica”.
57
Em outras palavras, a explicação que cada um dos autores
dá, ao interpretar o grupo estatuário, segue um princípio distinto: no caso de
Goethe, a composição; no de Winckelmann, a imitação; no de Lessing, as
características de cada gênero e o seu efeito.
Nas Reflexões, é preciso justificar por que o sacerdote troiano mantém uma
expressão de serenidade mesmo na representação de um grande sofrimento físico.
Seria natural”, ou seja, seria uma imitação fiel da natureza mostrá-lo
desesperado, mas os artistas antigos expressam uma perfeição, caracterizada pela
57
Ver “Goethe sur l’art”. TODOROV, Tzvetan. Em: Écrits sur l’art. Op. cit., p. 38.
74
nobre simplicidade e pela calma grandeza, e esse caráter indica o caminho de uma
imitação da natureza voltada para algo que vai além da natureza, para o belo ideal.
Lessing explica a mesma serenidade nos traços do sacerdote não pelo ideal,
mas pelas exigências específicas da escultura, considerada como arte espacial,
distinta do gênero a que pertence a poesia, uma arte temporal. Goethe, por sua
vez, procura demonstrar que, na obra de arte perfeita, cada elemento se justifica a
partir da relação com os outros elementos, para compor um todo como “modelo
de simetria e variedade, de calma e de movimento, de oposições e gradações
sutis”.
Assim como na obra de Winckelmann, para Goethe o Laocoonte mostra
que a arte ultrapassa a simples imitação da natureza; assim como na obra de
Lessing, a estátua é analisada segundo a especificidade da escultura. Consciente
tanto da questão da mímese quanto da distinção entre os gêneros artísticos,
Goethe propõe uma interpretação mais elaborada da obra de arte que se tornou o
exemplo clássico do debate teórico na estética alemã do século XVIII.
75
CAPÍTULO 2
SHAKESPEARE CONTRA O CLASSICISMO FRANCÊS
1. Sófocles e Shakespeare
No final do século XVIII, a teoria da arte na Alemanha sofreu uma modificação
profunda, ligada sobretudo à valorização de Shakespeare (1564-1616) por parte do
Sturm und Drang, o pré-Romantismo alemão. Os teóricos da época da juventude
de Goethe, como Herder e Lenz, não pretendiam abandonar os esforços de seus
precursores nem negar inteiramente a tradição, mas repensá-la em busca de uma
arte nacional autêntica. Para isso, era necessário contestar os fundamentos do
Classicismo francês que moldava o gosto da época, e a obra de Shakespeare
serviu como principal modelo de uma criação artística contestadora. Contra as
normas rigorosas do teatro clássico de Racine e Corneille, impunha-se o modelo
do gênio, definido como aquele que não segue as regras tradicionais da arte. Com
isso se oferecia uma resposta para a dificuldade, no desenvolvimento teórico do
pré-Romantismo, de encaixar a obra de um dramaturgo moderno em toda uma
estrutura de pensamento baseada nos padrões clássicos e nos parâmetros da
tradição de base aristotélica.
Enquanto as teorias iluministas sobre a arte tinham discutido sobretudo as
especificidades da criação artística grega, defendida como modelo, a estética que
começava a surgir no final do século XVIII dizia respeito, cada vez mais, aos
parâmetros da arte moderna. Tornava-se necessária uma mudança de perspectiva,
para afirmar esses novos parâmetros da criação artística diante do modelo antigo,
considerado antes insuperável. Pois, se o belo fosse definido segundo o modelo da
Antigüidade, como a modernidade poderia ser afirmada? De que modo as
76
inovações de Shakespeare, por exemplo, poderiam ser defendidas? Nesse caso,
como afirma Peter Szondi em “Antigos e modernos na estética da época de
Goethe”, aos poucos a própria “pergunta pela essência do belo se tornou uma
pergunta pela existência de diversos tipos de belo, pela possibilidade de o belo
sofrer alterações”.
58
Com base em uma nova perspectiva acerca da relação entre os antigos e os
modernos, as obras da Antigüidade Clássica passaram a não ser vistas
necessariamente como a realização mais elevada da criação artística, a ponto de
servir de modelo do belo para sempre. O tema dos antigos e dos modernos não era
novo, ele remetia por exemplo à célebre Querelle des anciens e des modernes, o
debate ocorrido na França nos séculos XVII. No caso dos teóricos pré-românticos
alemães, a retomada desse tema teve a intenção justamente de contestar o
Classicismo que dominava a reflexão sobre a arte e a produção artística de sua
época. E essa contestação teve como fundamento a noção de nio, associada por
Lessing à criação artística de Shakespeare.
Na Crítica do Juízo (1790), de Kant, encontra-se a definição do gênio
artístico que não segue as regras tradicionais. Segundo o filósofo, toda arte
pressupõe regras, mas as chamadas belas artes, por outro lado, se caracterizam por
uma exigência de originalidade, da qual depende sua beleza. A mera reprodução
de regras estabelecidas não produz uma obra de arte bela, de modo que o criador
precisa ter um talento específico para, segundo a sua própria natureza, dar regra à
arte. O nio é definido então como esse talento: uma faculdade produtiva inata
do artista, que pertence à natureza e que possibilita a criação da arte segundo
regras, sem seguir as regras já estabelecidas. Por isso, “o gênio opõe-se totalmente
58
SZONDI, Peter. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2.
Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1974, p. 17.
77
ao espírito de imitação”.
59
Esse talento inato o pode ser ensinado ou explicado
nem mesmo pelos próprios artistas, incapazes de “indicar como suas idéias ricas
de fantasia e contudo ao mesmo tempo densas de pensamento surgem e se reúnem
em suas cabeças”. E no entanto uma outra característica da arte bela é justamente
a de que seus produtos têm de ser exemplares, ou seja, modelos que servem de
parâmetro para os outros. Não modelos a serem copiados, mas modelos que
definem as regras da arte para a posteridade e, com isso, constituem os meios de
orientação para que novos artistas, dotados de gênio, criem obras belas originais.
Seria possível falar, então, de um outro sentido de imitação, que faz parte do
processo de criação artística em sua relação com a arte herdada da tradição e com
a natureza.
Kant definia assim a noção que fundamentou a valorização de
Shakespeare, desde Lessing, contra o caráter mecânico e artificial do Classicismo
francês. Com base na concepção de um gênio artístico que não segue a tradição,
um dramaturgo moderno que rompe com o modelo clássico pode ser contraposto
tanto ao teatro rigoroso, que respeita a regra das três unidades, quanto à exigência
classicista de copiar a arte dos antigos. Mas, por outro lado, era a volta aos gregos
e a interpretação da Poética de Aristóteles que fundamentavam a teoria da arte
alemã de Winckelmann e de Lessing. A arte grega era vista como um ideal a ser
imitado e, ao mesmo tempo, como o modelo de uma tendência artificial, presa a
regras que não diziam respeito às condições históricas e culturais específicas da
Alemanha moderna. Winckelmann propôs a imitação dos gregos, mas procurou
definir no que consistia o ideal artístico a ser imitado. Na obra de Lessing, a busca
de modelos para uma arte nacional autêntica começava a pôr em questão a
59
KANT. Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993, p. 154. A
concepção do gênio se encontra nos parágrafos 46 e 47.
78
exemplaridade dos antigos, mas sua teoria o pretendia, por exemplo, contestar
Aristóteles como parâmetro teórico, apenas criticar a maneira como a Poética fora
interpretada na França da época moderna.
A partir dessas bases, o problema seria, então, como afirmar a
modernidade sem renegar a Antigüidade, ou como permanecer fiel à Antigüidade
sem precisar renegar a si mesmo. E esse problema se vinculou fundamentalmente
à recepção de Shakespeare pelos alemães nas últimas décadas do século XVIII e
no início do XIX. Para Szondi, “tornou-se cada vez mais claro que não era viável
considerar Shakespeare como um classicista, com isso se revelou cada vez mais a
necessidade de desenvolver um sistema do belo, um sistema da poesia, em que
Shakespeare tivesse o seu lugar, tanto quanto Sófocles”.
60
Primeiro Lessing,
depois Herder, Lenz e também o próprio Goethe fundamentaram essa discussão e
procuraram mostrar, de modos bastante complementares, que justamente por não
seguir as regras clássicas o dramaturgo inglês era o modelo a ser seguido.
2. A recepção de Shakespeare
Historicamente, a recepção de Shakespeare na Alemanha pode ter seu início
datado ainda do século XVII, quando algumas companhias de atores ingleses
percorriam a Europa representando peças elisabetanas. Mas as montagens teatrais
daquela época eram baseadas em versões simplificadas das obras, representadas
normalmente apenas em inglês e, em geral, sem indicação alguma do nome de
seus autores. Na França, por exemplo, a primeira tradução de algumas das peças
de Shakespeare seria publicada na metade do século XVIII, em uma versão
muito deturpada pelas exigências do gosto clássico. Na Alemanha, também
60
Ibidem, p. 17.
79
predominava então a influência do Classicismo francês, ponto mais alto, na
história do teatro, de um movimento que teve início na Renascença, com o
estudo da Antigüidade e dos escritos de Aristóteles como fundamento da idéia de
peça rigorosa.
Na teoria da arte que se desenvolveu a partir do período renascentista, a
Poética de Aristóteles era interpretada como se tivesse estabelecido prescrições
eternas para toda a dramaturgia possível. Essas regras, consideradas como
independentes da história ou da nacionalidade, ganharam sua definição mais
precisa e rigorosa justamente na França do século XVII, com L’art poétique de
Boileau e com os grandes clássicos do teatro, como Racine e Corneille. A
dramaturgia alcançava então uma perfeição extrema, na qual a beleza equilibrada
dos versos, o caráter cerimonioso e até o vocabulário selecionado refletiam o
gosto e o refinamento da corte francesa absolutista, como uma glorificação da
aristocracia. Segundo Anatol Rosenfeld, que resume a história do período em seu
livro sobre o teatro épico: “Proclamando-se herdeira exclusiva de Aristóteles,
fiada em regras absolutas e universais, independentes das situações histórico-
geográficas, a dramaturgia clássica se afigurava aos olhos do mundo como um
modelo insuperável”.
61
As tendências do Classicismo francês foram importadas pela Alemanha de
Gottsched, que em 1730 publicou seu Ensaio de uma arte poética cristã. O autor
seguia toda uma tradição em que a Poética de Aristóteles tinha se tornado, ao
mesmo tempo, o ponto de referência para definir o que é a poesia e uma instrução
sobre como se deve escrever uma epopéia ou uma tragédia. Esse modelo
normativo remete a uma longa tradição de interpretação de Aristóteles, iniciada
61
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002, p. 64.
80
com a Arte poética, de Horácio (século I A. C.), entre outras obras antigas.
Os teóricos alemães do século XVIII começarão a questionar o
Classicismo francês justamente com base em uma interpretação renovada de
Aristóteles e, por outro lado, na oposição do gênio de Shakespeare ao parâmetro
de teatro de Corneille e seus compatriotas.
O dramaturgo inglês será o modelo para os alemães em sua tentativa de
formar um teatro nacional, ganhando uma importância crescente tanto como
referência para a produção dramatúrgica quanto na elaboração das teorias
estéticas. Ao comentar a valorização de Shakespeare por sua geração no livro de
memórias Poesia e verdade, Goethe escreve:
Shakespeare é admirado pelos alemães mais do que pelos outros povos;
mais, talvez, do que pelos seus próprios compatriotas. Encontrou entre
nós, em abundância, a justiça, a eqüidade e a deferência que negamos uns
aos outros. Homens eminentes dedicaram-se a apresentar o seu gênio
sob a mais favorável das luzes...
62
No entanto, foi um poeta que ainda defendia o modelo dos franceses quem
ofereceu ao público alemão a primeira tradução de Shakespeare, já na segunda
metade do século XVIII. Christoph Martin Wieland (1733-1813) traduziu, em
prosa, vinte e duas das trinta e seis peças do dramaturgo, e esse trabalho foi
publicado na Alemanha entre 1762 e 1766. Mais tarde (1775-7), essa primeira
tradução das peças seria revista e completada por Eschenburg. Goethe menciona,
nas memórias, o aparecimento da “tradução de Wieland, que foi devorada e
depois recomendada aos amigos e conhecidos”. Em seguida comenta que
“Shakespeare, traduzido em prosa primeiro por Wieland e depois por Eschenburg,
pôde difundir-se rapidamente como livro em geral fácil de entender e ao alcance
de todos os leitores”.
62
GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Op. cit., p. 377
81
Essas traduções anunciaram e moldaram o pré-Romantismo, já que o gosto
do jovem Goethe, do jovem Schiller e de seus contemporâneos se formou com a
leitura das obras de Shakespeare em versão alemã. A partir de então, essas obras
constituíram o modelo supremo da luta contra os cânones clássicos da
dramaturgia, o que marcaria não a produção artística daquele período, mas
também o Romantismo. Para Otto Maria Carpeaux, “a história da literatura alemã
do século XVIII pode ser dividida em duas fases: antes de Shakespeare-Wieland e
depois de Shakespeare-Wieland”.
63
De fato, a tradução teve uma influência
decisiva, como indica Goethe em seu comentário, mas no campo da teoria a
discussão a respeito do poeta inglês como modelo oposto ao do Classicismo
proveniente da França tinha começado alguns anos antes.
3. Lessing: a luta contra os cânones clássicos
Na cima sétima das Cartas a respeito da nova literatura, publicadas em 1759,
Lessing defende a idéia de que os dramaturgos alemães deveriam seguir o modelo
de Shakespeare e critica os trágicos franceses, que para ele interpretaram mal as
regras de Aristóteles. De início, o autor apresenta a oposição: “Se se tivesse
traduzido, para o nosso público alemão, as obras-primas de Shakespeare com
algumas discretas modificações, estou certo de que isso teria dado melhores
resultados do que tê-lo familiarizado tanto com Corneille e Racine”.
64
De fato,
como ele previu, a tradução das obras por Wieland seria publicada alguns anos
mais tarde e teria um grande impacto sobre os leitores alemães. O autor da carta
argumenta, em seguida, que o povo alemão sentiria mais prazer com as peças do
dramaturgo inglês do que com as francesas, porque “um gênio só pode ser
63
CARPEAUX, Otto Maria. Literatura Alemã. São Paulo, Nova Alexandria, 1994, p. 53.
64
LESSING. De teatro e literatura. São Paulo, Editora Herder, 1964, p. 111.
82
inflamado por outro gênio, e com maior facilidade por um que pareça dever tudo
apenas à natureza e que não intimide pelas árduas perfeições da arte”. Com essa
definição de que o gênio é um artista que parece dever tudo à natureza e não segue
as regras da arte, Lessing defende uma idéia que será fundamental tanto para os
pré-românticos quanto para os românticos e que terá sempre Shakespeare como
referência. Mas a intenção do autor, com isso, não era contestar a importância de
Aristóteles e do estudo da Antigüidade, propondo um modelo artístico
inteiramente novo e desligado da tradição. Pelo contrário, para destruir a função
de modelo do Classicismo francês, era necessário, como aponta Anatol Rosenfeld,
demonstrar que a teoria e a obra dos franceses, em seu rigor clássico, deformavam
o pensamento aristotélico, ou seja, que elas não correspondiam ao que a Poética
realmente dizia.
65
Voltando à carta:
E, mesmo a decidir a questão segundo o modelo dos antigos, é
Shakespeare um poeta trágico infinitamente superior a Corneille, embora
este conhecesse muito bem os antigos e aquele não os conhecesse quase
nada. Corneille se lhes aproxima pelo arranjo mecânico e Shakespeare
pelo essencial.
Desse modo, cria-se uma inversão polêmica, uma vez que o dramaturgo genial,
aquele que não segue as regras, é considerado superior ao dramaturgo “rigoroso”
mesmo segundo o modelo dos antigos. Para fazer tal afirmação, Lessing se baseia
em uma nova interpretação do pensamento de Aristóteles, na qual destaca a
importância do efeito produzido pela tragédia, a célebre questão da catarse
aristotélica. Foi nos seus ensaios incluídos na Dramaturgia de Hamburgo (1769)
que o teórico alemão desenvolveu essa discussão, procurando mostrar os
equívocos cometidos pelos clássicos franceses. A própria base da compreensão do
efeito catártico da tragédia estaria errada, como ele demonstra na septuagésima
65
Ver ROSENFELD, Anatol. Op. cit., p. 64.
83
quinta parte do livro: “Aristóteles não foi por certo quem efetuou a divisão,
justamente censurada, das paixões trágicas em compaixão e terror. Ele foi mal
entendido, mal traduzido”.
66
Para Lessing, Corneille teria interpretado
equivocadamente ou deturpado todas as definições aristotélicas da tragédia,
especialmente ao compreender que a purificação (catarse) diz respeito a todas as
paixões apresentadas, por meio do terror e da compaixão. Segundo o autor da
Dramaturgia, Aristóteles se refere à purificação justamente das paixões
despertadas pela tragédia, ou seja, do próprio medo e da compaixão. Pois, segundo
Lessing, o filósofo “fala de compaixão e medo, e não de compaixão e terror”. A
diferença entre a tradução do fóbos aristotélico por “terror” ou “medo” é essencial
nessa argumentação, como se percebe com a continuação do trecho citado:
...o medo, nele, não é de modo algum o medo que o mal iminente de
outrem desperta por esse outrem, porém o medo por nós próprios, que
brota de nossa semelhança com a personagem sofredora; é o medo de
que as calamidades a ela destinadas nos possam atingir a nós mesmos; é
o medo de que nós próprios possamos nos tornar o objeto
compadecido. Numa palavra: esse medo é a compaixão referida a nós
mesmos.
67
Assim, Lessing procura mostrar que o conceito de compaixão em
Aristóteles, no qual estaria como que incluído o “medo”, é o essencial no efeito
catártico da tragédia. E as regras mecânicas do Classicismo francês se baseariam
justamente em uma compreensão equivocada desse conceito de compaixão, o que
teria levado os poetas trágicos a elaborar suas peças de acordo com a divisão das
paixões trágicas em compaixão e “terror”. Uma vez que a catarse, entendida como
purificação da compaixão (pelo outro) e do medo (a compaixão referida a nós
mesmos), seria o objetivo último da tragédia em Aristóteles, todos os recursos
para produzir essas duas paixões e a sua purificação deveriam ser usados. Lessing
66
LESSING. Op. cit., p. 56.
67
Ibidem, p. 56.
84
considera que as regras limitadoras de tais recursos se baseiam em uma
interpretação equivocada e levam a um procedimento mecânico, incapaz de
despertar as paixões e a sua purificação. Em outras palavras, os nobres príncipes e
heróis em cena, o rigor e a exatidão, os limites de tempo e lugar podem dar a uma
peça um caráter majestoso, sem erros, mas em nada contribuem para a emoção.
Como afirma Anatol Rosenfeld, “no fundo, Lessing se dirige contra o éloignement
[distanciamento] clássico”.
68
Por isso, ele criticou muitas vezes a norma antiga de
apresentar apenas personagens nobres e justificou a representação de burgueses no
teatro. Ao contrário de Racine, que em seu segundo prefácio a Bajazet por
exemplo defendia a noção de que “o respeito que se tem pelos heróis aumenta na
medida em que eles se distanciam de nós”, para Lessing a emoção se intensifica
justamente com a aproximação dos personagens.
Ainda na carta dezessete, Shakespeare é contraposto ao caráter “mecânico”
dos clássicos franceses, como um autor que, sem seguir quaisquer regras, obtém o
efeito catártico: “O inglês alcança quase sempre a meta da tragédia, por mais
estranhos e peculiares que sejam os caminhos por ele escolhidos, e o francês
[Corneille] quase nunca atinge esse fim, ainda que palmilhe os mais aplainados
caminhos dos antigos”. Por isso, Lessing chega a comparar o poeta inglês ao
maior nome da tragédia grega: Após o Édipo de Sófocles nenhuma peça no
mundo pode exercer maior impacto sobre as nossas paixões do que Otelo, do que
Rei Lear, do que o Hamlet. Essa equiparação, que será retomada pelos teóricos
pré-românticos, indica a necessidade de uma teoria da arte que pudesse pôr lado a
lado o dramaturgo moderno e o antigo, que questionasse as diferenças e as
identidades de uma arte nova em relação ao modelo clássico.
68
ROSFELD. Op. cit., p. 64.
85
4. Shakespeare no pré-Romantismo
Por volta de 1770, iniciou-se na Alemanha o movimento cultural que
posteriormente ficaria conhecido pelo nome de Sturm und Drang (“Tempestade e
ímpeto”) – título de uma peça do poeta e dramaturgo Friedrich Maximillian
Klinger (1752-1831). Como teve características semelhantes às do período
romântico que se consolidou no século XIX, como a valorização da poesia
popular nacional e a defesa de novos parâmetros para a criação poética moderna,
esse movimento também é chamado de pré-Romantismo. A questão do gênio,
definido por Kant e Lessing como o talento artístico que não precisa seguir as
regras da arte, exerceu grande influência sobre a geração de autores pré-
românticos, para a qual o modelo continuou a ser Shakespeare. Esses escritores,
entre os quais se incluem Goethe e Schiller na primeira fase da sua produção
literária, combateram as normas convencionais do Classicismo francês e
privilegiaram os impulsos e elementos naturais, não racionais. No livro XI de suas
memórias, ao falar das tendências seguidas por sua geração quando eles eram
jovens, Goethe conta:
...fomos de repente libertados e desembaraçados do espírito francês. A
maneira de viver dos nossos vizinhos nos parecia excessivamente
imobilizada e aristocrática; sua poesia era fria, sua crítica negativa, sua
filosofia abstrusa e contudo insuficiente; de modo que estávamos a
ponto de nos abandonar [...] à natureza inculta, se uma outra influência
não nos tivesse muito tempo preparado para concepções filosóficas e
prazeres intelectuais mais elevados, mais livres, e não menos verdadeiros
do que poéticos...
69
Que outra influência era essa? Para o autor das memórias, quase não era preciso
dizer, pois era evidente que se tratava de Shakespeare. A valorização de suas
peças, lidas na tradução de Wieland ou no original, ou mesmo nos fragmentos das
69
GOETHE. Memórias: Poesia e Verdade. Op. cit., p. 377.
86
antologias, tinha o tom de uma devoção religiosa, a ponto de Goethe dizer,
alguma páginas depois: “Shakespeare exerceu tal influência sobre o nosso círculo
de Estrasburgo que, assim como homens fortes em Bíblia, nós nos tornamos
pouco a pouco fortes em Shakespeare”.
70
O Sturm und Drang se desenvolveu sobretudo no campo do teatro, com os
grandes escritores que foram capazes de construir a base para a dramaturgia
nacional alemã. Destacam-se no período as peças dos jovens Goethe e Schiller,
como Götz von Berlichingen, do primeiro, publicada em 1773, ou Os salteadores,
do segundo, que veio a público quase dez anos mais tarde. As duas peças
contradizem praticamente todas as regras do estilo clássico e possuem um forte
cunho shakespeariano. No entanto, apesar de o movimento pré-romântico ter em
seu centro a produção dramatúrgica, uma das obras mais emblemáticas do período
foi o romance epistolar de Goethe publicado em 1774 com o título Os sofrimentos
do jovem Werther. O livro ultrapassou as fronteiras nacionais e tornou o seu autor
famoso em toda a Europa, depois passou a ser uma das referências fundamentais
para o Romantismo alemão e, ainda hoje, uma das obras mais conhecidas
internacionalmente de toda a literatura alemã.
Do ponto de vista da teoria da arte, a nova geração, após Lessing, ainda
estava interessada na equiparação de Shakespeare a Sófocles, ou seja, na
consideração do dramaturgo inglês a partir do estudo dos antigos, mas via suas
obras segundo uma perspectiva que contrapunha a força da natureza ao frio
racionalismo dos clássicos franceses. Percebe-se isso claramente no ensaio Para
o dia de Shakespeare”, que Goethe escreveu ainda muito jovem, em 1771. Ele se
pergunta: o que o nosso século se atreve a sentenciar a respeito da natureza?
70
Ibidem, p. 388.
87
Como podemos conhecê-la, nós que, desde a juventude, sentimos tudo sufocado e
afetado em nós, e vemos da mesma maneira nos outros?”. E, na resposta, afirma
que “a natureza profetiza a partir de Shakespeare”.
71
Dois anos depois, em 1773, foi publicado também o ensaio de Herder
sobre o poeta inglês, num panfleto intitulado Do estilo e da arte alemães [Vom
deutscher Art und Kunst]. Influenciado por Lessing, entre outros, Herder foi o
primeiro autor a pensar a obra de Shakespeare em uma contextualização histórica
rigorosa. Com isso seu texto inaugurou uma vertente que mais tarde marcaria a
reflexão teórica do Romantismo e do Idealismo. Outro escritor alemão da geração
de Goethe, neste caso um dramaturgo, foi motivado por um entusiasmo
equivalente pela obra do dramaturgo inglês em suas Notas sobre o teatro. Michael
Reinhold Lenz (1751-1792) escreveu um trabalho de grande importância por
retomar a discussão a respeito das regras clássicas e do gênio shakespeariano.
Em suas memórias, escritas décadas mais tarde, Goethe apontaria esses
textos de Herder e Lenz sobre Shakespeare como as referências fundamentais para
entender a posição dos pré-românticos:
Para quem quiser apreender diretamente o que se pensou, exprimiu e
debateu nessa sociedade viva, será preciso ler a memória de Herder sobre
Shakespeare na brochura Do estilo e da arte alemães e as Notas sobre o teatro
de Lenz [...]. Herder penetra nas profundezas do gênio de Shakespeare e
as expõe admiravelmente. Lenz porta-se mais como iconoclasta para
com a tradição teatral e não quer ouvir falar de ninguém que não seja
Shakespeare.
72
Embora o texto contenha uma crítica ao procedimento de Lenz, por se dispersar
“sem medida nos detalhes e desfiar um fio interminável”, a indicação não deixa de
admitir que o estudo dos dois textos constitui a base para se compreender também
a posição do próprio Goethe em relação a Shakespeare.
71
GOETHE. Escritos sobre literatura. Rio de Janeiro, Editora 7letras, 2000, p. 31.
72
GOETHE. Op. cit.. p. 377
88
4. 1. Lenz versus Goethe
Durante o período do Sturm und Drang, Lenz e Goethe mantiveram relações
cordiais, mas elas se deterioraram posteriormente a ponto de tornar impossível a
convivência entre ambos. A trajetória dos dois não podia ser mais divergente:
enquanto o autor do famoso Werther foi convidado para a corte de Weimar pelo
duque Karl August, ganhou depois um tulo de nobreza e viveu mais de oitenta
anos de intensa produtividade, o arrebatado Lenz morreu pobre e louco aos 41
anos. Do mesmo modo que outros grandes nomes da literatura alemã (por
exemplo Lessing antes dele e Hölderlin depois), Lenz sofreu as conseqüências de
romper com a família, que o queria pastor, e tentar viver como escritor num
período em que o havia um mercado alemão para os bens culturais. Os autores
daquela época, por mais talentosos que fossem, dependiam em grande medida de
mecenas nobres, e portanto também de suas ligações sociais. No caso de Lenz, o
seu caráter instável, a incapacidade de adaptação, a carência afetiva e o
infantilismo, apontados em cartas de seus contemporâneos, atrapalharam sua
carreira já tão pouco viável naquela época
Nas memórias de Goethe, um registro do período do Sturm und Drang
que demonstra claramente a tendência à falta de medida, tanto no caráter quanto
no estilo de Lenz, assim como a peculiaridade do vínculo que se criou entre os
dois escritores nos anos de juventude:
Mal havia aparecido Götz von Berlichingen quando Lenz me enviou, no
papel ordinário de que habitualmente se servia, uma longa exposição sem
o menor espaço em branco, nem nas margens, nem no alto, nem ao pé
das páginas. Essas folhas traziam o título Sobre o nosso casamento. Se ainda
existissem, nos dariam mais luzes do que me deram na ocasião, pois eu
não sabia naquela ocasião o que pensar dele e do seu gênio. O objetivo
principal desse longo escrito era comparar o meu talento com o seu.
Lenz parecia ora subordinar-se, ora igualar-se a mim; mas tudo isso era
89
torneado com tanta alegria e tanta graça que acolhi da melhor vontade o
pensamento a que ele me queria conduzir, tanto mais que realmente
tinha grande estima pelo seu gênio; no entanto, instei infatigavelmente
com ele para que renunciasse às suas divagações e fizesse uso, de modo
consentâneo com as regras da arte, daquele talento plástico com que o
dotara a natureza. Respondi-lhe amigavelmente e, como ele reclamava a
mais íntima das uniões, segundo dava a entender o estranho título
daquelas folhas, a partir de então comuniquei-lhe todos os meus
trabalhos terminados ou em projeto. Em troca ele enviou um após
outro os seus manuscritos, O governador, O novo Menoza, Os soldados, as
Comédias imitadas de Plauto e a tradução da peça de Shakespeare que
acrescentou como suplemento às suas Observações sobre o teatro.
73
A relação entre Lenz e Goethe se deteriorou durante a estada do primeiro
em Weimar. Em 1776, pouco antes de ser nomeado conselheiro pelo duque, o
próprio Goethe tinha convidado seu colaborador do período pré-romântico para
visitá-lo, mas a incapacidade de adaptação de Lenz acabou por torná-lo muito mal
visto pela corte. Suas gafes eram contadas como anedotas e sua presença na
cidade pareceu incomodar muito a Goethe, nessa época em que ele se afastava dos
arroubos juvenis do Sturm und Drang. O diário de Goethe registra, no dia 26 de
novembro, uma “burrada de Lenz”, que tinha sido chamado de monstrinho”
em uma carta a Charlotte von Stein. Pouco tempo depois, Goethe solicitou ao
duque que seu antigo convidado fosse expulso de Weimar, em função de um
incidente não mencionado.
74
Após a partida forçada da corte, a fragilidade do
caráter de Lenz se agravou, e em 1777 ele teve sua primeira crise, com delírios
místicos e acessos de paranóia, seguidos depois por tentativas de suicídio. Sua
família se reconciliou com ele em 1779, o que parece ter estabilizado um pouco
seu estado mental durante os anos seguintes, nos quais ele trabalhou como
professor em Riga e São Petersburgo. Mas a situação de Lenz piorou rapidamente
a partir 1788, até a sua morte quatro anos mais tarde, em Moscou.
73
Op. cit., Livro XIV, p. 463.
74
Ver “Lenz e Goethe”. SAADI, Fátima. Introdução para a edição das Notas sobre o teatro e
Regras para atores, Rio de Janeiro, 7letras, no prelo.
90
As Notas sobre o teatro foram escritas no período de juventude e de
colaboração com Goethe, e serviram de prefácio à adaptação de Lenz para a peça
de Shakespeare Trabalhos de amor perdidos. Segundo seu autor, embora tenha
sido publicado em 1774, o texto fora lido dois anos antes em uma reunião em
Estrasburgo, mesma cidade onde Goethe tinha vivido, de 1770 a 1771, conhecido
Herder e “descoberto” Shakespeare. As Notas têm muito em comum com o ensaio
de Goethe “Para o dia de Shakespeare”, com sua luta contra as regras do
Classicismo francês e sua busca pela fundamentação do gosto e do teatro
nacional. Há, no texto de Lenz, cheio de exclamações e de arroubos típicos do
pré-Romantismo, uma longa discussão a respeito da Poética de Aristóteles,
analisando a definição de poesia como imitação e a definição de tragédia. A
versão, um pouco confusa, dessa definição por parte de Lenz diz: É, pois, a
tragédia a imitação de uma ação, elevada, completa e importante, numa
linguagem agradável e variada, segundo a condição dos personagens da ação e
não por meio de um relato.”
75
É com base nela que o autor das Notas passa a
considerar a importância da fábula e as regras derivadas de Aristóteles, tendo em
vista sempre a diferença entre a tragédia clássica francesa e a obra de
Shakespeare.
Um dos pontos mais marcantes dessa discussão é exatamente a análise da
regra das três unidades, considerada uma “norma tão temível e tão
lastimavelmente famosa” graças aos franceses, e “que causou tanto
estardalhaço por ser insignificante”. Sobre a unidade de ação, Lenz afirma que
existe uma diferença entre a maneira como os antigos gregos viam o teatro, com a
75
LENZ, J. M. R.. Notas sobre o teatro. Tradução de Fátima Saadi, p. 11.
91
atenção voltada para a ação, e a maneira moderna, com a atenção voltada para o
personagem principal. Ele pergunta então:
Que culpa temos nós se não conseguimos mais encontrar nenhum prazer
em ações descosidas e se estamos velhos para desejar ver um todo?
Que culpa temos nós se queremos ver homens onde eles viam o
destino inexorável e seus misteriosos influxos?
76
Quanto à unidade de lugar, o autor das Notas aponta que se trata, no fundo, de
uma “unidade de coro”, pois no teatro grego as pessoas aparecem como que
cumprindo os desígnios do destino. Por isso, tudo convergiria para um mesmo
lugar, no qual o coro se encontra para justificar o fato de se reunirem ali as
pessoas necessárias para o desenvolvimento da trama.
Já a unidade de tempo estabeleceria a diferença essencial entre a tragédia e
a epopéia, uma vez que Aristóteles afirma, no trecho do fim do quinto capítulo da
Poética citado por Lenz:
A epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitações
de homens superiores, em verso; mas difere a epopéia da tragédia pelo
seu metro único e a forma narrativa. E também na extensão, porque a
tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do
sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopéia não tem limite de tempo...
Segundo Lenz, essa diferença formal é apenas uma conseqüência da diferença
entre a “representação”, na tragédia, e a “narração”, na epopéia. A imitação de
uma ação que se passa em um dia é mais adequada à montagem das peças
gregas, restrita a algumas horas, enquanto a forma narrativa pode se desdobrar e
se estender sem ter tal preocupação. Mas, para Lenz, se a ação representada
exigisse um tempo mais longo, como ocorre com peças modernas, não haveria
necessidade de se manter fiel à unidade de tempo. Assim, o rigor da regra apenas
limita, força o autor a restringir sua criação e, quando aplicado a obras modernas,
não respeita as diferenças do teatro dessa época em relação ao antigo.
76
Ibidem, p. 17.
92
Seria justamente esse o problema dos franceses: “Eles levaram essas regras
a um ponto tal que qualquer homem, em consciência, se angustia diante delas.
Em nenhum lugar do mundo existem pessoas que observem de forma mais
obsessiva as três unidades”.
77
Para Lenz, a excessiva fidelidade às regras, muito
maior do que a dos próprios gregos, levou os autores franceses a uma repetição
insuportável, sem a menor naturalidade. Nas tragédias, “seus heróis, heroínas,
burgueses, burguesas têm todos o mesmo rosto e a mesma forma de pensar, do
que resulta uma grande uniformidade na ação”. nas comédias, “alguns traços
caricaturais isolados não chegam sequer a esboçar caracteres”. Por isso, o autor
das Notas afirma ter encontrado, nas peças clássicas, “tanta semelhança com a
natureza (ou ainda menos) quanto nos participantes de um baile de máscaras”.
Em contraposição ao Classicismo desenvolvido na França, Shakespeare é
mencionado como um dos grandes gênios que “já consideravam o teatro segundo
seu próprio ponto de vista, não sob o prisma de Aristóteles”. Para demonstrar isso,
Lenz faz uma comparação entre as peças Julius Caesar, de Shakespeare, e La
mort de César, de Voltaire, na qual ressalta a superioridade das soluções e a
naturalidade do dramaturgo inglês. O argumento de Lenz para fazer essa
comparação se baseia na contestação da aparente superioridade do teatro clássico
francês, do ponto de vista formal, e na demonstração de que a sua suposta
perfeição é destituída de substância. Sem ser fiel às regras, Shakespeare alcançaria
o máximo de emoção: “Roma não chorou por César como o fez Shakespeare”.
4. 2. Herder e o pensamento histórico
77
Ibidem, p. 20.
93
Herder foi, na juventude de Goethe, praticamente um mentor, que por certo tempo
permaneceu como um de seus principais interlocutores no campo da filosofia e da
teoria da arte. Posteriormente, na época do Classicismo de Weimar, essa
influência perdeu muito de sua importância para Goethe. Em todo caso, as idéias
de Herder sobre Shakespeare e a valorização do teatro nacional autenticamente
alemão foram fundamentais para o autor do Werther. Aliás, a divergência
posterior não impediu Goethe de reconhecer isso em suas memórias, escritas já no
período de maturidade da sua produção literária.
Embora tenha partido, em grande medida, das considerações de Lessing,
Herder não estava especialmente interessado, como seu precursor, em reconciliar
Shakespeare com o cânone aristotélico. Justamente essa reconciliação, ou a
tentativa de “salvar” o dramaturgo inglês são posturas criticadas por ele no início
de seu ensaio. Herder pensou a relação entre a poesia dramática moderna e a
antiga a partir de sua filosofia da história, mostrando como a intenção de copiar os
parâmetros de uma época passada, atribuída por ele ao Classicismo francês,
constitui um contra-senso. Segundo ele, o caminho de Shakespeare precisa ser
diferente daquele que orienta a criação artística de Sófocles, mas é justamente por
respeitar a diferença de caráter histórico que o poeta inglês consegue atingir o
mesmo fim, do ponto de vista dramático.
O ensaio sobre Shakespeare tem início com a constatação de que uma
grande biblioteca foi escrita sobre ele, contra ele e a favor dele, demonstrando
que Herder se ocupou longamente com o assunto e conhecia os comentários de
seus precursores franceses, ingleses e alemães. No entanto, seu propósito não era
o de aumentar tal biblioteca, ou seja, o de tomar uma posição contra ou a favor,
mas o de revelar um novo entendimento a respeito da questão debatida por tantos
94
outros. Toda a argumentação de Herder se baseia, então, numa análise do
surgimento da arte trágica na Grécia antiga, com o intuito de mostrar que ela é
fruto de condições históricas e sociais distintas das modernas, ou, mais
especificamente, que está em jogo também o caráter nacional, das condições do
norte da Europa após a Idade Média:
Na Grécia surgiu o drama de um modo como ele não poderia surgir no
norte. Na Grécia ele foi o que não poderia ser no norte. No norte ele
não é nem poderia ser o que foi na Grécia. Portanto o drama de Sófocles
e o drama de Shakespeare são duas coisas distintas, que a rigor mal
podem compartilhar do mesmo nome.
78
Segundo a tese de Herder, o fato de os termos “tragédia”, “comédia” e
“drama” serem de origem grega não justifica que as obras de arte desses gêneros
tenham, necessariamente, a mesma forma que tinham na Antigüidade. As
características do teatro grego, como a “simplicidade da fábula”, a “sobriedade
dos costumes” e a unidade de lugar e de tempo” derivariam, assim, das
condições de surgimento desse teatro. A tragédia grega teria surgido da
improvisação do ditirambo, da dança mímica, e especialmente do coro, base a
partir da qual se desenvolveram as inovações de Ésquilo (dois personagens
contracenando, além do coro) e Sófocles (terceiro personagem e cenografia).
79
A
simplicidade da fábula resultaria da “unidade da ação que se encontrava diante
deles; que segundo a situação de sua época, pátria, religião e costumes o podia
ser nada além de uma unidade”.
80
Para Herder, a unidade de lugar dizia respeito
ao fato de essa ação única e curta ocorrer apenas num local, no templo ou no
palácio, com o coro justificando a convergência da ação, como se a sucessão de
cenas o deixasse de ser o desdobramento de uma única cena, daquela cena
78
HERDER, J. G. “Shakespear”. Em: Werke, Band I: Herder und der Sturm und Drang (1764-
1774). Munique, Carl Hanser Verlag, 1984, p. 527.
79
Ver ARISTÓTELES. Poética, 1449 a.
80
HERDER. Op. cit., p. 529.
95
original que o coro representava. E a unidade de tempo seria uma conseqüência
inevitável dessas condições que se impunham naturalmente, segundo o espírito
nacional e histórico.
Com base nessa análise inicial, Shakespeare será considerado como poeta
moderno e nórdico, em uma comparação com os gregos antigos que ressalta não
a diferença entre as épocas e os povos, mas também as conseqüências dessa
diferença para a estrutura das obras. Como resume Anatol Rosenfeld, ao comentar
o texto de Herder, “as três unidades, longe de serem resultado de raciocínios
estéticos, decorrem das condições em que o teatro grego surgiu”. Nesse caso, as
regras deixam de ter o caráter atemporal que lhes é atribuído pela tradição das
poéticas normativas. A estrutura diversa da obra de Shakespeare é, por sua vez,
resultado de condições inteiramente diversas. O tratamento livre de espaço e
tempo faz parte da unidade orgânica de sua obra”.
81
Enquanto o poeta grego tinha
como ponto de partida a unidade dos mitos, o coro e o ditirambo, o poeta moderno
parte de uma grande variedade histórica, com diversos povos, dialetos e
influências. Com isso, os caminhos tomados por Sófocles e por Shakespeare, os
maiores nomes da poesia de suas respectivas épocas, precisavam ser diferentes, ou
mesmo opostos, para tornar possível a criação de obras de arte próprias de cada
período. Por isso, Herder considera que a exigência de simplificação de acordo
com a idéia de peça rigorosa, que copia a forma grega, estaria baseada em uma
falta de compreensão da história.
Para o autor do ensaio, no caso dos gregos as regras da arte não eram
artificiais, mas derivadas da própria natureza. Assim, ele conclui: “Percebe-se
claramente que a arte dos poetas gregos tomou o caminho oposto daquele que lhes
81
ROSENFELD. O teatro épico. Op. cit., p. 66.
96
atribuímos hoje em dia. Penso que eles não simplificavam, mas diversificavam”. E
ele procura demonstrar o desenvolvimento dessa diversificação, de Ésquilo em
relação ao coro, Sófocles em relação a Ésquilo”, a partir do ponto de partida uno e
simples constituído pelo mito. Em outras palavras, “não era nunca o caso de criar
um todo a partir de várias partes; mas várias partes tinham de ser criadas a partir
de um todo”. A dificuldade seria então justamente desdobrar a ação em início,
meio e fim, tendo em vista esse ponto de partida único e completo do mito, do
coro e do ditirambo. A riqueza da arte de Sófocles seria a de criar, a partir de tal
unidade, “um belo labirinto de cenas, no qual a grande preocupação era mover seu
público com a ilusão da unidade prévia no ponto mais complexo desse labirinto”.
Ao considerar brevemente o pensamento de Aristóteles, Herder chama a
atenção para o fato de que ele “afirma expressamente” que os parâmetros de
duração, com isso também o modo, o tempo e o espaço, não podem ser
determinados por quaisquer regras”. Nesse caso, o autor do ensaio concorda com
a posição de Lessing, para quem as regras derivadas de Aristóteles pelo
Classicismo francês na verdade não foram reconhecidas pelo filósofo grego. Por
isso, Herder exclama, anunciando sua crítica aos clássicos franceses: “Ah se
Aristóteles ressuscitasse e visse o uso falso e oposto de suas regras em um drama
de outro tipo!”. Embora elogie a beleza da forma alcançada pela tragédia clássica
francesa, o autor procura mostrar que se trata de uma beleza artificial, enquanto a
arte grega se mostra como uma criação natural. Sua questão será, então, se é
possível ir além da precisão formal alcançada por Corneille, Racine e Voltaire de
acordo com os princípios da peça rigorosa, contestando o caráter artificial de sua
arte.
97
A mera cópia da estrutura formal de uma outra época é cega para as
mudanças históricas, para as condições atuais de compreensão da obra e as
exigências atuais do público. Pois “assim como tudo muda no mundo, também a
natureza que criou o drama grego precisa mudar”. Se, como Herder constata, “a
concepção de mundo, os hábitos, a situação da república, a tradição da época
heróica, a crença, até mesmo a música, a expressão, a medida da ilusão se
alteraram”, por que fazer um teatro preso à forma grega? Além disso, a tentativa
de ser fiel a tal forma teria levado os franceses a uma produção dramática que,
justamente por seu anacronismo, não atingiria o efeito das obras gregas. Segundo
o autor, ser igual a Sófocles, no sentido de copiar sua forma, não significa ser fiel
aos princípios que deram origem à obra do tragediógrafo grego. Ser igual, nesse
sentido, é ser como um “boneco”, ao qual faltam “espírito, vida, natureza, verdade
– todos os elementos que nos tocam...”. Assim, a questão de Herder era saber:
...se a cópia de épocas, costumes e ações estrangeiros em meia verdade,
com o objetivo de torná-los próprios para a representação em uma
estrutura semelhante à antiga, pode ser igualada a uma imitação que era, a
rigor, a mais elevada natureza nacional?
82
Em seguida, ele conclui sua crítica com a constatação de que “todo o
drama francês se converteu em uma coleção de belos versos, sentenças e
sentimentos mas o grande Sófocles permanece o que era antes...”. Com isso,
prepara-se a equiparação entre o poeta antigo, não alcançado em sua grandeza
pelos tragediógrafos clássicos, e o grande gênio moderno de Shakespeare, como já
tinha feito Lessing. Após concluir os argumentos de sua crítica, Herder procura
mostrar a possibilidade de um povo inventar seu próprio drama, sem copiar o
drama do passado. Aqui, ele retoma a noção de gênio que também estava presente
82
HERDER. Op. cit., p. 533.
98
no texto de Lessing, para argumentar a favor de uma estrutura nova como uma
necessidade derivada de condições históricas novas.
E se houvesse, nessa época alterada feliz ou infelizmente, um gênio que
retirasse de seu material naturalmente, com grandeza e originalidade,
uma criação dramática, assim como fizeram os gregos a partir do seu; e
se a criação alcançasse o mesmo objetivo, mas de modos muito
diversos... Seria o caso de condenar o segundo tipo de drama por ser
diferente do primeiro? Toda a sua essência, virtude e perfeição se baseia
no fato de não ser o primeiro: uma planta diferente cresceu do solo fértil
do tempo.
83
Esse gênio capaz de criar a partir das circunstâncias históricas de seu
tempo, do modo de ser da sua nação, é Shakespeare. Tendo um ponto de partida
inteiramente diferente do grego, sua obra precisa ter também uma estrutura
diferente, uma forma que não surge do ditirambo e do coro, mas das farsas
medievais e do teatro de marionetes. Com isso, em Shakespeare, tudo é distante
dos gregos: a história, a tradição, os costumes, a religião, o espírito do tempo, do
povo, da comoção, da língua. Mais do que qualquer outro autor, é o poeta inglês
quem satisfaz a exigência de espírito local e histórico que constitui a base da
argumentação de Herder. Por isso, Shakespeare é o novo Sófocles”, o gênio que
seria louvado por Aristóteles caso ele voltasse, em contraposição aos clássicos
franceses que, em sua tentativa de copiar a arte grega, o respeitaram nem as
mudanças do tempo nem o caráter nacional.
Shakespeare não tinha à sua frente nenhum coro; mas representações
populares e de marionetes muito bem! Ele criou [...] a partir disso a
magnífica obra que vive diante de nós! Ele não encontrou nenhum
caráter simples do povo e da pátria, mas uma variedade de situações,
modos de vida, mentalidades, povos e dialetos [...], então ele criou
poeticamente situações e homens, povos e dialetos, rei e bobos, bobos e
rei, fazendo deles um todo magnífico! Ele não encontrou um espírito
simples da história, da fábula, da ação: tomou a história como a
encontrou, e reuniu com espírito criativo o produto mais variado em um
todo fantástico.
83
Ibidem, p. 535.
99
Herder afirma ainda que se sente mais próximo de Shakespeare do que dos
gregos, não só historicamente, mas também porque o dramaturgo inglês nos
apresenta “homens do norte”, noção que justifica uma identificação entre o caráter
nacional inglês e o alemão. “Quem poderia imaginar um poeta maior do que ele
para o povo do norte e para este período da história?”, Herder se pergunta.
Segundo ele, a própria natureza nórdica e o caráter dos homens de seu tempo se
fazia presente no palco, de modo grande e profundo. Por isso, como Lessing
tinha argumentado, Shakespeare deveria ser o modelo para o teatro nacional
alemão, que procurava seu caminho ainda sob o jugo da influência francesa.
Após fazer alguns comentários elogiosos sobre as tragédias Rei Lear,
Macbeth e Otelo, Herder retoma de novo a idéia, tão cara aos pré-românticos, de
que Shakespeare é irmão de Sófocles, idéia que ganha consistência pela noção de
que ambos são fiéis à natureza do seu povo e de seu tempo. Nesse caso, no lugar
da oposição entre antigo e moderno, surge a oposição entre o caráter artificial e o
natural, ou seja, entre a criação artística mecânica, baseada em regras frias, caráter
que Herder identifica nos franceses, algumas vezes de modo forçado e exagerado,
e a criação que surge do elemento nacional e histórico próprio, caráter identificado
em Sófocles e Shakespeare. Para reforçar essa oposição, na conclusão do ensaio o
elogio ao nio do poeta inglês lhe atribui a capacidade de revelar o destino
humano e o acontecer histórico, em uma criação que ultrapassa todos os limites
das regras e as separações de gêneros.
100
5. Consideração sobre o Romantismo
Sem a pretensão de investigar detalhadamente um assunto tão extenso, que
exigiria no mínimo um capítulo à parte, essa consideração visa apenas a indicar
um percurso que mostra a dimensão da importância de Shakespeare em diferentes
fases do movimento romântico, nascido na Alemanha durante a última década do
século XVIII. Nesse caso, a indicação pode servir como parâmetro comparativo
para que se compreenda melhor, em seguida, a mudança na avaliação do
dramaturgo por parte Goethe, caso se compare seu texto escrito no período do
Sturm und Drang com um ensaio de décadas mais tarde. Existe uma continuidade
entre a posição dos autores pré-românticos em relação a Shakespeare e a dos
poetas românticos alemães, que produziram, além de diversos ensaios de crítica
literária a respeito de Shakespeare, ainda mais elaborados do que os de seus
precursores, uma nova tradução de suas obras, de muito melhor qualidade do que
a anterior. Quando as tendências do Romantismo alemão foram transmitidas aos
franceses, elas constituíram a base para uma grande batalha contra os cânones
clássicos da poesia e do teatro no próprio país de Corneille, Racine e Molière.
Grandes nomes da poesia romântica francesa, como Victor Hugo e Alfred de
Vigny, herdaram dos alemães o culto pelo gênio anti-clássico de Shakespeare.
O Romantismo alemão teve como primeiro centro a cidade de Jena, na
qual os irmãos Schlegel fundaram a revista Athenäum ainda no final do século
XVIII, em competição com as Horen, de Schiller. Johann Gottlieb Fichte (1762-
1814), professor de filosofia em Jena naquela época e também um colaborador
das Horen, foi uma das maiores influências para os poetas mais novos, que
começavam a combater a tendência clássica da literatura de Goethe e Schiller.
Assim, o início do movimento romântico não coincidiu com a fase final do
101
chamado Classicismo de Weimar, como também aconteceu em uma cidade muito
próxima. Por vários anos, antes de se mudar para Weimar, o próprio Schiller
viveu em Jena, recebendo visitas de Goethe ou indo ao seu encontro
periodicamente. Em suas cartas, os dois criticam duramente a revista de August
Schlegel, que anteriormente também tinha sido um colaborador das Horen.
84
August Wilhelm Schlegel (1767-1845), o mais velho dos dois irmãos,
lançou as bases para a interpretação romântica de Shakespeare em suas preleções
Sobre Literatura e Arte Dramática [Über dramatische Kunst und Literatur], que
foram ministradas em Berlim a partir de 1801. August Schlegel também traduziu
treze peças do dramaturgo inglês entre 1797 e 1810, e posteriormente outro poeta
romântico, Ludwig Tieck (1773-1853), completou essa tradução em verso. O
resultado obtido por eles é muito superior ao do trabalho de Wieland, como
comenta Otto Maria Carpeaux em sua história da literatura alemã:
...talvez seja a melhor tradução de qualquer poeta que existe em qualquer
língua: é inteiramente fiel ao original inglês e, no entanto, uma criação
poética original em língua alemã; é mesmo, depois da Bíblia de Lutero, o
mais importante marco na evolução da ngua literária alemã. Conseguiu
incorporar Shakespeare totalmente à literatura dos alemães.
85
Friedrich Schlegel (1772-1829), também poeta e crítico literário, além
de romancista e professor, analisou igualmente Shakespeare e apontou, tanto em
sua obra quanto na de Goethe, os sinais precursores do Romantismo. É o que ele
faz, por exemplo, em Conversa sobre a poesia, texto publicado nos dois últimos
cadernos da Athenäum, em 1800. Ao tratar das “épocas da arte poética”, Friedrich
Schlegel comenta brevemente o itinerário da obra de Shakespeare, desde as
primeiras peças, “incompletas e sem perspectiva, mas profundas, grandiosas e
84
Ver cartas de julho de 1798, em GOETHE/SCHILLER. Der Briefwechsel zwischen Goethe und
Schiller, Frankfurt: Insel Verlag, 1977, p. 655-659.
85
CARPEAUX, O. M.. Op. cit., p. 108.
102
cheias de engenho”, até o período de maturidade.
86
Nesse período, o autor destaca
as novelas “que ele remodelou para o palco com profunda engenhosidade,
reconstruiu e dramatizou de maneira fantasticamente atrativa, numa escala nunca
antes alcançada”. E conclui chamando a atenção para os traços de Romantismo
presentes na obra comentada:
Essa maturação refluiu também para as peças históricas, dando-lhes a
plenitude, encanto e espirituosidade, sendo todos os seus dramas
insuflados pelo espírito romântico que, unido à grande profundidade, os
marca de forma característica, deles fazendo um fundamento romântico
do drama moderno que durará por toda a eternidade.
Além das análises e da tradução, o irmão de Friedrich, August Schlegel
contribuiu diretamente para a transmissão das tendências românticas alemães à
França, pois foi amante e conselheiro de Madame de Staël, cuja obra De
l’Allemagne moldou em grande medida o intercâmbio cultural entre os dois
países. Mais uma vez, na versão francesa do movimento romântico, Shakespeare
será o modelo usado para combater o Classicismo, em uma época na qual o teatro
rigoroso de Racine e Corneille ainda definia os parâmetros da dramaturgia
francesa. Um dos momentos mais marcantes do conflito entre clássicos e
românticos na França foi a estréia da peça Hernani, de Victor Hugo, em 1830,
dois anos depois do êxito de uma companhia inglesa que apresentara peças do
dramaturgo inglês em Paris. A peça de Victor Hugo obteve grande sucesso apesar
de contrariar os cânones da dramaturgia clássica, e o entusiasmo de seu autor por
Shakespeare o levou a chamá-lo de “o maior criador depois de Deus”, e a
defender calorosamente, em seu prefácio a Cromwell, a noção de gênio como
justificativa para o projeto romântico: “em nome da verdade, todas as regras são
abolidas”.
87
86
Ver SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia. São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 43-44.
87
Ver CARPEAUX, Op. cit., p. 70.
103
Stendhal (Henry Beyle, 1783-1842) também tinha retomado vários
elementos da discussão sobre o clássico e o romântico em seu ensaio
“Shakespeare e Racine”, de 1823, ano em que os românticos já tinham conseguido
algumas pequenas vitórias no teatro francês, mas o conservadorismo ainda
predominava. O autor, que postumamente seria considerado um dos grandes
nomes da literatura no século XIX graças a seus romances O vermelho e o negro e
A cartuxa de Parma, pergunta: “Para escrever tragédias que possam interessar o
público em 1823 é necessário seguir os passos de Racine ou os de Shakespeare?”.
E logo a seguir ele afirma: “Dirijo-me sem receio algum a essa juventude perdida
que acreditou ser patriotismo e honra nacional vaiar Shakespeare por ser inglês”.
88
O debate em torno de Shakespeare e Racine se resumiria, para o escritor, em saber
se a obediência às unidades de lugar e de tempo leva ou não a peças que
interessam vivamente aos espectadores de sua época. Stendhal critica essa
obediência, que afirma ser um mau hábito francês profundamente enraizado, ao
narrar o suposto diálogo entre um acadêmico e um romântico. Nessa conversa, o
segundo interlocutor argumenta, por exemplo, que “na Inglaterra, há dois séculos;
na Alemanha, há cinqüenta anos, escrevem-se tragédias cuja ação dura meses
inteiros e a imaginação dos espectadores a isso se presta muito bem”. Ao
combater as regras rígidas do teatro francês, Stendhal defende o Romantismo,
como um movimento artístico autêntico de sua época, contra o Classicismo
acadêmico. Assim, o efeito obtido por Shakespeare em suas peças, sem seguir a
regra das três unidades, deveria ser imitado pelos dramaturgos do século XIX, em
lugar dos rigores do Classicismo. Stendhal argumenta, contra a unidade de tempo:
É interessante, é belo ver Otelo, tão terno no primeiro ato, matar sua
mulher no quinto. Se essa transformação ocorre em trinta e seis horas, é
88
STENDHAL, “Racine e Shakespeare”. Em: Johnson. Prefácio a Shakespeare. São Paulo,
Iluminuras, 1996, p. 85.
104
absurda e desprezo Otelo. Macbeth, homem honrado no primeiro ato,
seduzido por sua mulher, assassina seu benfeitor e rei e se torna um
monstro sanguinário. [...] ...essas mudanças de sentimentos no coração
humano são o que a poesia pode oferecer de mais admirável aos olhos
dos homens, aos quais ela comove e ao mesmo tempo instrui.
89
Essa proposta de Shakespeare como modelo era, aliás, a mesma dos
alemães desde o pré-Romantismo, quando discutiam o modelo para formar seu
teatro nacional. No entanto, embora siga muitas das idéias herdadas da Alemanha,
Stendhal tem uma postura nacionalista e exige que a nova tragédia francesa rejeite
a “balbúrdia alemã que hoje muita gente chama de romântica”. Como que para
justificar sua polêmica com o país vizinho, ele em seguida critica Schiller, um dos
maiores nomes da dramaturgia alemã moderna, que teria copiado Shakespeare e
sua retórica, mas sem ter “coragem de apresentar a seus compatriotas a tragédia
exigida pelos seus costumes”. Assim como os alemães pré-românticos procuraram
se livrar do domínio do gosto clássico francês, Stendhal tentava evitar que a
defesa do Romantismo fosse moldada pelos autores da Alemanha. Mas o escritor
a quem ele dirigiu sua crítica não foi um defensor incondicional de Shakespeare,
como Lenz por exemplo, nem um crítico contundente do Classicismo francês,
como Herder. A posição de Schiller na verdade tinha uma certa ambivalência, por
mais que suas primeiras peças fossem marcadas pelas tendências do pré-
Romantismo.
6. Schiller crítico de Shakespeare
89
Ibidem, p. 110.
105
Schiller leu Shakespeare pela primeira vez aos dezesseis anos, estimulado por um
dos seus professores da Academia Militar de Stuttgart, onde estudou em 1775 e
1776. Embora tenha sido bastante influenciado pelo dramaturgo em suas
primeiras peças, alguns anos mais tarde, a reação inicial à leitura foi muito menos
calorosa do que a de seus contemporâneos do Sturm und Drang, mencionada por
Goethe nas memórias e no ensaio de 1771. Schiller, por sua vez, refere-se a esse
seu primeiro contato em Poesia ingênua e sentimental, escrito em 1795-96. Nesse
livro, Schiller retoma muitas das concepções teóricas de seus precursores, mas
elabora as questões de modo original, segundo uma nova terminologia. Ele
trabalha, por exemplo, com a noção de gênio exposta por Kant na Crítica do juízo
(1790) e mencionada por Lessing, entre outros, dentro de uma contextualização
histórica que remete também a Herder, pois a caracterização dos poetas ingênuo e
sentimental diz respeito à época em que suas obras florescem e às condições que
exercem influências sobre eles. O tema fundamental do livro é o modo de criação
artística, em sua relação com a natureza. Basicamente, há “duas maneiras poéticas
de criar completamente distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o
domínio da poesia”.
90
Numa delas, a ingênua, o poeta é natureza, na outra, a
sentimental, ele busca a natureza perdida. É segundo tais termos que a oposição
entre antigo e moderno e entre clássico e romântico é redefinida, de modo a ser
pensada a partir de outra perspectiva.
Schiller não subordina a sua caracterização dos modos do fazer poético,
ingênuo e sentimental, à diferença entre antigos e modernos. A poesia ingênua
caracteriza o modo antigo, assim como a sentimental é essencialmente moderna,
mas também existem poetas ingênuos modernos. A diferença está no
90
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo, Editora Iluminuras, 1991, p. 57.
106
procedimento reflexivo do caráter sentimental, que busca a natureza perdida e
segue o impulso de restabelecer a sua unidade, enquanto o gênio ingênuo cria
como a própria natureza. Nesse caso, a noção mesma de gênio estará ligada, para
Schiller, à definição da poesia ingênua, como ele afirma expressamente: Todo
verdadeiro gênio tem de ser ingênuo, ou não é gênio. Apenas sua ingenuidade o
torna gênio...”.
91
O autor esclarece a definição do gênio como artista que não
segue as regras da arte a partir dessa caracterização, pois o poeta que é natureza
“tem de solucionar as tarefas mais complexas com despretensiosa simplicidade e
desembaraço”. Em outras palavras, ele se legitima como gênio justamente por
“triunfar sobre a arte complexa”, por criar uma obra que não parece fruto de sua
habilidade técnica, mas tem uma espontaneidade como a das coisas geradas pela
natureza. O gênio “não procede segundo princípios conhecidos, mas segundo
inspirações e sentimentos; suas inspirações, porém, são estros de um deus [...], e
seus sentimentos são leis para todos os tempos e todas as estirpes humanas”.
Shakespeare aparece como gênio do tipo ingênuo, no exemplo dado por
Schiller para avaliar sua própria reação à leitura do modo de poesia assim
caracterizado. A posição apresentada aqui está muito distante da veneração dos
teóricos do pré-Romantismo e, além disso, não está ligada diretamente à
contestação dos parâmetros do Classicismo francês. Shakespeare é citado ao lado
de Homero, “duas naturezas sumamente distintas e separadas pela imensurável
distância entre as épocas, mas de todo iguais nesse traço de caráter”, como poeta
que “foge do coração que o busca, do desejo que quer envolvê-lo”, de modo que
“a seca verdade com que trata o objeto aparece o raro como insensibilidade”.
Por isso, Schiller conta que, ao travar contato pela primeira vez com o poeta
91
Ibidem, p. 51.
107
inglês, indignava-se por sua frieza e insensibilidade, que lhe permitiam
interromper com gracejos de um bufão as cenas mais elevadas de suas tragédias.
Educado pela leitura de poetas modernos, sentimentais, o jovem estudante alemão
considerava insuportável que “o poeta não se deixasse apreender em parte alguma
e, em parte alguma, quisesse prestar-me contas”. Como Schiller explica, ele ainda
não era capaz de entender uma poesia sem reflexão, “de entender a natureza em
primeira mão”, pois podia suportar sua imagem refletida pelo entendimento e
ajustada pela regra”.
92
Num dos ensaios que escreveu sobre a arte trágica, Schiller também se
manifesta a respeito de Shakespeare num tom bem menos laudatório do que o de
seus contemporâneos pré-românticos, embora retome posteriormente algumas das
idéias principais destes. No texto intitulado “Acerca da arte trágica”, de 1792, ele
faz críticas ao Rei Lear por enfraquecer a compaixão do espectador: “Não é
pequeno o prejuízo causado ao nosso interesse pelo infeliz Lear, maltratado por
suas ingratas filhas, quando esse ancião infantil entrega com tanta leviandade a
sua coroa...”.
93
Algumas páginas depois, em uma afirmação inteiramente contrária
à luta travada por Lessing, Lenz e Herder contra o Classicismo francês, ele
considera o Cid de Corneille “sem objeção, no que diz respeito à intriga, a obra-
prima do palco trágico”.
no texto escrito como prefácio para a sua peça A noiva de Messina, de
1803, Acerca do uso do coro na tragédia”, por exemplo, Schiller assumirá a
mesma posição dos autores do Sturm und Drang, ao criticar o Classicismo francês
pela sua falta de compreensão dos antigos:
...os franceses, que a princípio nada haviam compreendido do espírito
dos antigos, introduziram no teatro, de acordo com o sentido mais
92
Idem, p. 58.
93
Em: SCHILLER. Teoria da tragédia. São Paulo, EPU, 1991, p. 92.
108
comum e empírico, uma unidade de lugar e de tempo, como se aí
houvesse outro lugar que não o espaço ideal, e outro tempo que não a
ininterrupta seqüência da ação.
94
Assim como Herder tinha feito, Schiller procura mostrar nesse ensaio que
a tragédia grega se originou do coro e, também, que o uso do coro era fruto da
própria natureza dos gregos, uma vez que as ações e os destinos dos heróis
pertenciam ao domínio público. Historicamente, a emancipação do coro na
tragédia seria uma conseqüência do fato de que o dramaturgo moderno não
encontra mais o coro na natureza, no modo de ser do público e na relação que ele
estabelece com a ação representada. Assim, o autor argumenta a favor de sua
tentativa, em A noiva de Messina, de fazer uso do coro em uma tragédia moderna,
justamente porque o coro ressaltaria o caráter de símbolo da montagem teatral.
Para Schiller, o coro era como uma muralha viva que isolava a tragédia do mundo
real, “preservando o seu terreno ideal e a sua liberdade poética”.
O uso do coro por um poeta moderno seria uma tentativa de buscar a
natureza perdida, nos termos de Poesia ingênua e sentimental, ou seja, de
transformar o mundo comum e artificial dos modernos no ideal poético, vivo e
natural dos antigos. Ao isolar a reflexão da ação, o coro possibilitaria algo como
uma purificação da tragédia, uma introdução do conceito geral, objeto da reflexão
característica da poesia moderna, sentimental, na própria composição poética. Em
todo caso, o projeto de reintroduzir o coro na tragédia moderna se restringiu à
peça A noiva de Messina e foi muito criticado pelos autores da época, como
Schlegel, Schelling e Hoffmann, mas isso não impediu a repercussão da
justificativa teórica desse projeto. As idéias defendidas por Schiller foram
retomadas, entre outros, pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) em O
Nascimento da tragédia, de 1872. Ao criticar a concepção de Schlegel, Nietzsche
94
Idem, p. 76.
109
afirma que “uma compreensão infinitamente mais valiosa do significado do coro
nos fora revelada por Schiller no famoso prefácio à Noiva de Messina...”. Para
o filósofo, trata-se de uma luta contra o conceito vulgar do natural, ou seja, da
ilusão naturalista exigida no teatro moderno, de modo a restituir à arte trágica o
seu caráter ideal e simbólico.
95
É nesse contexto que Schiller critica os franceses e elogia Shakespeare:
“Introduzido na tragédia francesa, o antigo coro a revelaria em toda a sua
indigência, destruindo-a; à tragédia de Shakespeare daria, sem dúvida, sua
verdadeira significação”.
96
Com essa postura, o autor revela seu vínculo com o
movimento pré-romântico, mas a teoria da tragédia de Schiller em geral o
distancia dos teóricos desse movimento e constitui a base teórica do período
clássico de sua produção poética, fundada na filosofia kantiana.
7. Goethe e Shakespeare
Goethe foi um dos principais responsáveis pela valorização de Shakespeare no
Sturm und Drang, e o impacto causado pela leitura do poeta inglês está registrado
tanto no ensaio de 1771, “Para o dia de Shakespeare”, quanto nas memórias
escritas cadas mais tarde, entre 1808 e 1814. No ensaio, sem entrar em detalhes
autobiográficos, o autor adota um tom laudatório e exaltado como o de Lenz, para
se referir à importância de sua descoberta de Shakespeare, como um mundo novo
que se abria. Já em Poesia e verdade, Goethe conta que seu primeiro contato com
as obras que marcaram sua formação literária se deu em Leipzig, por meio da
antologia Beauties of Shakespeare, de Dodd. Depois veio a leitura da tradução de
95
NIETZSCHE. O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1993, p. 54.
Ver também A Noiva de Messina, São Paulo, Cosac e Naify, 2004, p. 209. No mesmo livro,
encontram-se publicados o parágrafo de Nietzsche e os trechos com as críticas de Schlegel,
Schelling e Hoffmann à peça.
96
Ibidem, p. 80.
110
Wieland-Eschenburg, na versão em prosa que divulgou as peças entre os jovens
alemães daquela geração.
97
Um novo ensaio sobre Shakespeare foi publicado por Goethe no fim de
sua vida, em 1826, incluindo dois textos escritos na mesma época das memórias, e
constitui sua reflexão teórica mais completa acerca da obra do poeta inglês e das
diferenças entre os antigos e os modernos. O texto de “Shakespeare e o sem fim”,
escrito na verdade entre 1813 e 1816, é sóbrio ao analisar a obra do ídolo de
juventude de acordo com pontos de vistas diversos, chegando a fazer críticas à sua
dramaturgia. Pela comparação entre os dois ensaios de Goethe, percebe-se
claramente a diferença de perspectiva entre o autor apaixonadamente exaltado do
Sturm und Drang e o escritor clássico, moldado pela experiência como diretor da
companhia de teatro de Weimar, pelos anos da correspondência com Schiller, pelo
estudo dos antigos e pelo empenho em definir e exercitar os diversos gêneros
poéticos.
Entretanto, é importante levar em conta, também no caso da valorização de
Shakespeare e da justificativa dessa valorização, que muito do pensamento teórico
de Goethe se encontra inserido em sua produção artística. No romance Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1796 com base em uma versão de
1785 intitulada A missão teatral de Wilhelm Meister, Goethe oferece um
panorama da formação de um teatro nacional alemão. Era uma questão decisiva
para a vida cultural daquele período, como Lenz, Herder e, antes deles, Lessing já
tinham apontado. A descoberta de Shakespeare pelo protagonista constitui um dos
momentos mais importantes do romance, tanto na versão inicial quanto na final, e
contrapõe uma visão nova a respeito do teatro ao ponto de vista nacionalista ou ao
97
Ver GOETHE, Poesia e Verdade, Op. cit., p. 377.
111
gosto do Classicismo francês, representados por outros personagens. Na
elaboração dessa descoberta, as considerações a respeito da dramaturgia e as
teorias sobre uma montagem alemã de Hamlet, no Livro V do romance, indicam a
intenção que Goethe tinha de discutir tanto a importância de Shakespeare para a
formação do teatro nacional alemão, quanto os critérios que deveriam ser
adotados para a montagem de suas peças.
A incorporação da teoria ao desenvolvimento do romance chega a tal
ponto, que o autor se manifesta diretamente, no capítulo 6 do livro V, anunciando
ensaios de sua autoria aos leitores. Depois de se referir aos diálogos sobre a arte
dramática entre o protagonista e Serlo, o diretor da companhia teatral, Goethe
escreve: “Wilhelm costumava tomar nota de uma ou outra dessas conversas e,
para não interromper demasiadamente nossa narrativa, iremos expor em outra
ocasião tais ensaios sobre arte dramática àqueles de nossos leitores que pelo
assunto se interessarem”.
98
O capítulo seguinte inclui também uma longa
discussão entre Wilhelm e outros membros da companhia sobre “qual dos gêneros
seria superior: o drama ou o romance”, nos moldes dos debates sobre os gêneros
literários freqüentes na correspondência de Goethe com Schiller.
99
7.1. Para o dia de Shakespeare
A importância que Shakespeare teve para Goethe em sua juventude foi explicitada
no seu ensaio de 1771: “A primeira página dele que li foi uma identificação por
toda a vida, e quando tinha terminado a primeira peça, fiquei como um cego de
nascença a quem um gesto milagroso dá, num instante, a visão”. Em seguida, no
mesmo tom de veneração, ele ressalta a novidade que a obra recém-descoberta
98
GOETHE. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo, Ensaio, 1994, p. 300.
99
Ibidem, p. 302-304.
112
constituía naquele momento: “Reconheci, senti vivamente a minha existência
expandindo-se numa infinidade, tudo era novo, desconhecido, e a falta de costume
com a luz me fazia doer os olhos”.
100
Pelo tom, esse texto da época do Sturm und
Drang se assemelha muito ao ensaio de Lenz sobre Shakespeare; pelas idéias que
defende, ele também se aproxima do texto de Herder, que possui um tom mais
sóbrio, sem deixar de ser um elogio exaltado. Embora seja um relato pessoal, mais
do que uma consideração teórica bem articulada sobre um tema, encontra-se no
centro do ensaio de Goethe a noção de uma crítica ao teatro francês baseada na
valorização do dramaturgo inglês.
A equiparação a Sófocles, presente em Lessing e especialmente em
Herder, é retomada aqui de um modo passional: “Quanto ao teatro grego, que os
franceses tomavam como modelo, segundo suas qualidades internas e externas,
era mais fácil que um marquês pudesse imitar Alcibíades do que seria possível a
Corneille seguir Sófocles”. Goethe não justifica seu ataque aos clássicos franceses
de modo linear e fundamentado, como fizeram seus contemporâneos pré-
românticos ao remeter a discussão à Poética de Aristóteles, mas afirma por
exemplo que a armadura grega é muito grande e pesada para os franceses, ou que
“todas as peças trágicas francesas são paródias de si mesmas”. Nesse caso, a
crítica serve apenas para a comparação com a “grandeza colossal” de
Shakespeare, poeta capaz de dar expressão ao todo da natureza, oferecendo uma
perspectiva unificadora que rompe com o gosto estragado pela artificialidade do
Classicismo:
O teatro de Shakespeare é uma bela caixa de raridades, na qual a história
do mundo passa diante de nossos olhos, suspensa nos fios invisíveis do
tempo. [...] ...as peças todas tratam do ponto secreto (que nenhum
100
“Para o dia de Shakespeare”. GOETHE. Escritos sobre literatura, Rio de Janeiro, 7letras, 2000,
p. 26.
113
filósofo chegou a ver e determinar) em que o caráter particular de nosso
eu, a liberdade pretendida de nossa vontade encontra-se com o andar
necessário do todo. Todavia, o nosso gosto deteriorado ofusca de tal
modo os olhos que quase precisamos de uma nova criação, para sairmos
dessa obscuridade.
Para Goethe, em uma afirmação que remete ao seu lebre poema pré-
romântico sobre o personagem do mito grego, Shakespeare “rivaliza com
Prometeu, imitando a cada traço seus homens”, criando como a própria natureza
cria.
101
Mais do que os outros autores de sua geração que escreveram sobre o
mesmo tema, Goethe valoriza em Shakespeare acima de tudo o gênio da natureza.
Esse foi um tema fundamental em sua obra, desde o Werther até os romances da
maturidade, nos quais a questão da relação do indivíduo com a natureza ainda
ocupará uma posição central, passando pelos seus poemas e por seus vários
estudos científicos naturalistas. Embora Goethe não retome explicitamente a
noção de gênio mencionada por Lessing para se referir a Shakespeare, nem o tema
da rigidez e do equívoco das regras do Classicismo, ele procura mostrar que a
grandeza do poeta é a de ser um profeta da natureza, a de criar homens que são
natureza, diante dos quais os personagens de outros autores “parecem bolhas de
sabão”. Nesse sentido, Shakespeare alcançaria um ponto secreto que nenhuma
filosofia chega a determinar, por expressar uma verdadeira união com a natureza
em sua totalidade, contrariando toda a afetação e o caráter artificial que definiam
o gosto da época. Essa valorização da natureza influenciará de modo decisivo
tanto a noção do poeta ingênuo de Schiller, quanto a defesa de Shakespeare como
precursor do Romantismo por parte de Friedrich Schlegel, entre outros.
7.2. Shakespeare e o sem fim
101
Ibidem, p. 30. Ver o poema de Goethe Prometheus, escrito por volta de 1773, em: Goethe,
Werke I, Frankfurt: Insel Verlag, 1993, p. 50.
114
O segundo ensaio de Goethe é dividido em três partes, que analisam “Shakespeare
como poeta em geral”, Shakespeare comparado com os antigos e os novos” e
“Shakespeare como autor de teatro”. Embora a versão integral só tenha sido
publicada em 1826, as duas primeiras partes foram escritas em 1813, como o
próprio autor esclarece ao introduzir a terceira, de 1816. Nessa pequena
introdução à terceira parte, ele afirma que o texto acrescentado diz respeito
também ao teatro alemão e ao “propósito, compreendido por Schiller, de
fundamentá-lo para o futuro”, ou seja, de estabelecer as bases para o teatro alemão
posterior.
102
Comparado com o texto exaltado de juventude, esse ensaio revela
muitas diferenças marcantes, ligadas tanto a uma visão mais clássica do seu autor,
preocupado em classificar, explicar e definir vários aspectos da obra em questão,
quanto às suas experiências como diretor da companhia de teatro de Weimar. Não
se encontra mais, em “Shakespeare e o sem fim”, o elogio incondicional ao poeta
da natureza, mas uma análise que contém, inclusive, algumas críticas ao
dramaturgo inglês quanto à estrutura de suas peças e à dificuldade de montá-las. A
idéia central do ensaio é a de que Shakespeare se presta mais à leitura do que à
montagem teatral ou, em outras palavras, de que ele é maior como poeta do que
como autor de teatro.
A posição defendida por Goethe constitui uma resposta às exigências dos
autores românticos da época, especialmente Tieck, um dos responsáveis pela nova
tradução de Shakespeare. Para esses autores, suas peças deveriam ser montadas
nos palcos alemães sem alteração alguma, com total fidelidade ao texto. Como o
próprio Goethe indica, trata-se de uma questão que remete diretamente à
discussão travada por Wilhelm Meister e Serlo, no romance de 1796,
102
“Shakespeare e o sem fim”, em: GOETHE. Escritos sobre literatura, Op. cit., p. 50.
115
especificamente acerca da montagem alemã de Hamlet. A experiência de Goethe à
frente de uma companhia de teatro pode identificá-lo com as objeções do diretor
teatral Serlo, que em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister acaba
convencendo o protagonista a abandonar sua exigência de fidelidade ao texto da
peça. Como resultado das discussões entre os personagens, o próprio Wilhelm
fundamentará depois a necessidade de fazer certas adaptações em Hamlet para o
palco alemão.
103
Embora o ensaio “Shakespeare e o sem fim” tenha uma perspectiva muito
diferente daquela de “Para o dia de Shakespeare”, Goethe o deixa de retomar
algumas de suas idéias da época do Sturm und Drang. Em todo caso, ele procura
dar a elas uma explicação sóbria, influenciada em muitos pontos pelo ensaio de
Herder, como atesta o fato de que os dois textos começam de modo muito
semelhante. Enquanto o de Herder falava da grande biblioteca que já fora escrita
sobre o dramaturgo inglês, Goethe afirma inicialmente, antes de anunciar os
propósitos de cada parte da sua análise: se disse tanto a respeito de
Shakespeare que parece não restar mais nada para dizer...”. Outro ponto de
interseção com Herder é a constatação de que as poesias de Shakespeare devem a
grande riqueza de sua composição à pátria em que floresceram, ou seja, às
condições históricas, geográficas e culturais específicas. Goethe diz:
Em toda parte está a Inglaterra, banhada pelo mar, cercada de neblina e
nuvens, no lugar de todas as regiões do mundo. O poeta vive para o
tempo de dignidade e importância, apresentando-nos sua forma, também
sua deformação, com grande jovialidade, e ele não teria um efeito tão
forte em nós se não se equiparasse ao tempo em que viveu.
104
Em seguida, no que pode ser entendido como uma crítica à comparação
feita por Lenz entre o Júlio César de Shakespeare e La mort de César de Voltaire,
103
Ver GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Op. cit., livro V, capítulo 6.
104
GOETHE. Escritos sobre literatura , Op. cit., p. 40.
116
o autor contesta a opinião de que o poeta inglês teria apresentado
“primorosamente os romanos”. Goethe discorda abertamente disso, ao afirmar que
para ele todos os personagens de Shakespeare são “notoriamente ingleses, mas
trata-se decerto de homens, homens desde o princípio, e neles a toga romana
também veste bem”. Ao justificar esse anacronismo, seu argumento contém,
embora de forma velada, aquilo que constituirá depois um dos pontos de sua
crítica: a necessidade que o leitor tem de se adaptar ao que Shakespeare faz. Como
se existisse um ajuste necessário, que pode ser feito na leitura sem problemas, mas
que não pode ser transposto para o palco sem prejuízo. Para o autor, “alguém que
já se adaptou à situação passa a achar seus anacronismos muito louváveis, e
justamente o fato de repudiar o figurino exterior é o que faz suas obras tão vivas”.
Na primeira parte do ensaio, sobre “Shakespeare como poeta em geral”,
tudo gira em torno da idéia de que as obras do poeta se destinam mais para a
imaginação do que para a visão. É dessa idéia que derivará a crítica, a ser
desenvolvida em outros termos na terceira parte do ensaio, segundo a qual as
peças em questão se prestam mais à leitura do que à montagem teatral. Goethe
afirma:
Shakespeare fala ao nosso sentido interior; por meio deste anima-se de
imediato o mundo de formas da capacidade imaginativa, criando um
efeito de plenitude, do qual não sabemos dar nenhuma satisfação, pois
aqui se encontra o fundamento daquela ilusão de que tudo se passa
diante de nossos olhos. Todavia, quando se consideram as peças de
Shakespeare com exatidão, elas contêm muito menos ação sensível do
que palavra espiritual. Ele deixa acontecer o que é fácil de imaginar, o
que é melhor imaginado do que visto. O espírito de Hamlet, as bruxas de
Macbeth, algumas atrocidades ganham o seu valor antes de tudo pela
capacidade imaginativa, e a variedade de pequenas cenas intercaladas
baseia-se puramente nessa faculdade.
105
A partir dessas observações, ele conclui que “todas essas coisas passam por nós de
modo leve e conveniente enquanto lemos, mas aparecem na representação como
105
Ibidem, p. 38.
117
algo carregado e perturbador, mesmo repugnante”. Assim, o impacto que a leitura
das obras de Shakespeare tem sobre a imaginação seria, muitas vezes, diminuído
pelas dificuldades de representá-las, ou pela inadequação das cenas à montagem
teatral.
No entanto, embora contenha o fundamento para a crítica que será
elaborada na terceira parte, essa primeira constitui em seu conjunto um elogio à
grandeza do poeta. Justamente a riqueza de sua poesia, que se dirige de modo tão
direto à imaginação e revela com tanta profundidade a natureza, parece não se
adequar aos limites da montagem das peças. As obras perderiam no palco muito
do vigor e do impacto que possuem na leitura, mas nesse primeiro momento o
autor está mais preocupado em descrever e louvar tal vigor poético do que em
criticar as limitações dramatúrgicas acarretadas por ele. Assim, Goethe retoma o
argumento de seu ensaio de juventude, ao mostrar a grandeza de Shakespeare
como uma espécie de profeta da natureza, igualado “ao espírito do mundo”, para o
qual nada está velado. O caminho do poeta seria “o de ir revelando o mistério,
fazendo-nos confidentes antes da ação, ou precisamente no decorrer desta”. Como
o autor comenta, é por isso que todos os personagens de Shakespeare são
eloqüentes, e mesmo os acontecimentos em segundo plano se voltam para uma
revelação expressiva da natureza: Pronto, o mistério precisa vir à tona, e as
pedras devem anunciá-lo. [...] ...os elementos, fenômenos do céu, da terra e do
mar, trovão e relâmpago, animais selvagens levantam suas vozes...”. Mesmo as
artes e ciências, os ofícios e negócios do mundo civilizado aparecem e se
expressam como tesouros revelados pelo poeta. Mas esse vigor expressivo da
poesia de Shakespeare, capaz de penetrar tão profundamente no domínio da
natureza, por isso exaltado acima de tudo pelo jovem pré-romântico, indica um
118
problema para o gosto clássico de Goethe em relação ao teatro. Tal ressalva pode
ser percebida por sua observação de que a revelação do mistério, por parte de
personagens e fenômenos secundários, muitas vezes se “contra qualquer
verossimilhança”. Para o autor do Wilhelm Meister, toda a riqueza das obras de
Shakespeare se mostra mais na leitura, mesmo que seja em voz alta, do que nas
tentativas de transportar a enorme diversidade de suas cenas para o palco.
A segunda parte do ensaio tematiza uma comparação entre a poesia antiga
e a moderna, na qual o autor pretende estabelecer também a diferença de
Shakespeare em relação aos poetas românticos, que ele chama de os poetas “mais
novos” [Neuesten]. Para isso, Goethe retoma a definição schilleriana do poeta
ingênuo, usada aqui em oposição não ao sentimental, mas especialmente ao
romântico. Seu argumento diz respeito, em primeiro lugar, ao que torna a obra de
Shakespeare autêntica e substancial: o fato de ela estar voltada para o presente,
sem a nostalgia que caracterizaria os poetas novos. Todos os elementos mágicos
da poesia teriam, nessa obra, um papel secundário, sem contradizer o fato de que o
poeta cria a partir das condições da sua própria época e da sua própria vida. Para
Goethe:
O interesse que o grande espírito de Shakespeare desperta encontra-se
no interior do mundo: pois se profecia e loucura, sonhos,
pressentimentos, sinais, fadas e gnomos, fantasmas, monstros e
feiticeiros constroem um elemento mágico que paira em sua poesia no
tempo certo, contudo essas aparições não são de forma alguma o
ingrediente principal de suas obras. A verdade e o valor de sua vida é que
constituem a base ampla na qual aquelas coisas repousam; por isso, tudo
o que ele escreve nos parece tão autêntico e substancial. Assim, se
pode perceber que ele não é um poeta destes novos, que foram
chamados românticos, pertencendo muito mais àquele gênero ingênuo,
que sua obra diz respeito na verdade ao presente e ele quase não toca
no lado mais delicado, aproximando-se da nostalgia apenas em pontos
extremos.
106
106
Ibidem, p. 42.
119
A crítica ao Romantismo se dirige contra a sua volta ao passado, que para
o autor teria um caráter artificial, e à valorização dos elementos fantásticos,
irreais, também pensados como uma fuga do presente. Com base nessa crítica,
Goethe defende a noção de uma poesia moderna não romântica, separada dos
antigos por um precipício, não apenas do ponto de vista da forma, mas segundo
seu sentido mais íntimo e profundo. Ao propor a comparação, ele se posiciona
diante de toda a tradição da querela entre os antigos e os modernos, herdada da
França e discutida em outros termos pelos grandes teóricos iluministas alemães,
como Winckelmann e Lessing. A versão de Goethe das oposições entre antigos e
modernos remete também à argumentação desenvolvida por Schiller em Poesia
ingênua e sentimental. Para o autor de “Shakespeare e o sem fim”, da mesma
maneira que o antigo se opõe ao moderno, seria possível opor “ingênuo” e
“sentimental”, ou “pagão” e “cristão”, ou “heróico” e “romântico”, ou “real” e
“ideal”. No entanto, ele não explica cada uma dessas oposições, apenas as
enumera até citar as duas que constituirão a base de seu argumento sobre a
diferença entre a poesia antiga e a moderna. A “necessidade”, no campo do
“antigo”, “ingênuo” e “pagão”, é contraposta à liberdade”, no campo do
“moderno”, “sentimental” e cristão”, da mesma maneira que o “dever” se opõe
ao “querer”.
Especialmente esses últimos termos articulam a comparação feita em
seguida, pois, para o autor, “os maiores tormentos, assim como a maioria das
coisas a que o homem pode estar exposto, surgem de um daqueles mal-entendidos
entre dever e querer, mas também entre dever e realizar, entre querer e realizar”.
Enquanto a poesia antiga seria dominada por uma desproporção entre dever e
realizar, na moderna a vontade é que estaria em conflito com a realização. Cada
120
época revelaria o predomínio de um desses conflitos, “mas como dever e querer
não podem ser radicalmente separados no homem, é preciso que se encontrem
sempre ambos os aspectos, ainda que seja um em primeiro plano e o outro num
plano secundário”. Segundo a definição do ensaio, o dever consiste em uma
imposição feita ao homem, o que implica aceitar a necessidade apesar de tudo, e o
querer vem do próprio homem para tentar se impor, como afirmação da liberdade.
Goethe procura mostrar que, apesar do predomínio de cada oposição em
uma época, o querer e o dever estão sempre presentes em seu conflito com a
realização. Nesse caso, “a tragédia antiga diz respeito a um dever inevitável, que é
apenas aguçado e acelerado por meio de um querer agindo em sentido contrário.
Aqui é onde se assenta tudo que de terrível no oráculo, a região na qual Édipo
reina sobre tudo mais”. no drama desenvolvido na época moderna, um dever
monstruoso seria solucionado por um querer, o que nos daria ao final o consolo
após expectativas penosas. Goethe define os dois termos que se encontram na
base de sua comparação, antes de retomar a análise da obra de Shakespeare.
Segundo essa definição, “todo dever é despótico. Isso pertence à razão, como a lei
da moral e da cidade; ou à natureza, como as leis do devir, do crescimento e
perecimento, da vida e da morte. Estas, sobretudo, nos fazem estremecer, sem a
ponderação de que através delas se visa ao equilíbrio do todo”. Quanto ao
segundo termo, ao defini-lo o autor indica que o seu predomínio representa um
enfraquecimento:
O querer, em contrapartida, é livre, parece livre e favorece os indivíduos.
Por isso o querer é lisonjeiro e tem de apoderar-se dos homens logo que
dele tomam conhecimento. É o deus dos novos tempos; entregues a ele,
nos amedrontamos diante das contrariedades, e aqui se encontra o
fundamento pelo qual nossa arte, assim como nossa mentalidade,
permanecem eternamente separadas das antigas.
107
107
Ibidem, p. 46.
121
Goethe critica a tragédia moderna, em comparação com a antiga,
justamente por estar baseada no querer, “o deus dos novos tempos”, e não no
dever. Segundo tal concepção, o dever tornaria a tragédia “grande e forte”, porque
está ligado com a sociedade e com a natureza, e o querer a faria “fraca e
pequena”, porque valoriza acima de tudo o indivíduo. Essa comparação prepara a
análise da obra de Shakespeare, autor que se destacaria singularmente por ligar o
antigo e o novo de uma maneira exuberante. Na obra do poeta inglês, Goethe
um equilíbrio entre o dever e o querer, uma conjugação dos dois termos sem o
predomínio da vontade característico nos poetas novos. Nesse caso, Shakespeare
não se diferenciaria de tais poetas, mas também seria capaz de ultrapassar o
abismo que separa a própria poesia antiga da moderna. Nas palavras do ensaio:
Talvez ninguém tenha apresentado de modo tão magnífico o primeiro
grande enlace do querer e dever no caráter individual como ele fez. A
pessoa, considerada a partir do caráter, deve: ela é limitada, determinada
a algo particular; mas como ser humano ela quer: é ilimitada e exige o
universal.
Assim, existiria na obra de Shakespeare a conjunção de um conflito
interior, que diz respeito à vontade do indivíduo e à sua própria capacidade ou
incapacidade de realizá-la, e de um conflito exterior, no qual as circunstâncias se
contrapõem ao querer até torná-lo um dever indispensável. Em Hamlet, por
exemplo, o conflito interior se expressa na melancolia do protagonista, desde o
monólogo inicial da peça, sendo transformado em um dever pelo espírito do rei.
Durante toda a ação, a partir desse momento, a vontade e a necessidade entram em
choque tanto entre si, quanto com a possibilidade de realização. Para mencionar
outros exemplos dados pelo autor no ensaio, as feiticeiras de Macbeth teriam o
122
mesmo papel de exteriorizar o conflito que seria apenas interior, articulando
querer e dever, assim como fazem os amigos de Brutus, na peça que leva o seu
nome. De acordo com a conclusão de Goethe, “um querer que ultrapassa a força
de um indivíduo é moderno. Mas Shakespeare não o faz surgir de dentro, e sim
alterar-se por uma ocasião exterior, por isso ele se torna um tipo de dever,
aproximando-se dos antigos”.
Em outras palavras, seguindo ainda a argumentação do ensaio, os
personagens da poesia antiga expressam, como indivíduos, um certo equilíbrio
entre querer, dever e realizar, pois a sua vontade não vai além do que é possível ao
homem. O conflito interior o é exacerbado como na poesia moderna, em que o
indivíduo geralmente quer mais do que pode. No entanto, o dever dos antigos
aparece como algo impositivo em demasia, de modo que a necessidade exclui em
última instância quase toda a liberdade individual, e segundo Goethe isso “não se
encaixa mais em nosso modo de sentir”. Ao contrapor o conflito interior, entre a
vontade e a realização, e o exterior, entre a necessidade e a realização,
Shakespeare seria capaz de aproximar as duas perspectivas e fazer a ligação entre
o mundo antigo e o novo. Caso se queira aprender com ele, é essa a questão que
deveria ser estudada, de acordo com a recomendação que o autor do ensaio faz ao
Romantismo alemão, na qual considera o poeta inglês como o “grande mestre”
que realizou o “milagre” de “conciliar em nós aquela grande oposição que
parece inconciliável”. Com isso ele conclui a segunda parte do ensaio.
Em seguida, após um breve esclarecimento a respeito da época em que os
textos foram escritos, Goethe anuncia sua intenção de discutir a questão de
Shakespeare como autor teatral. A terceira parte, incluída posteriormente, retoma
um tema que tinha sido abordado por Lessing, ganhara uma importância ainda
123
maior para Lenz e Herder, no período do Sturm und Drang, e que no início do
século XIX era debatido pelos poetas românticos. A questão decisiva, na
retomada de Goethe, é saber se o dramaturgo inglês deveria ou o servir de
modelo para o teatro nacional alemão. Ao contestar a valorização incondicional de
Shakespeare, o autor do ensaio se opõe tanto à perspectiva dos autores da nova
geração, quanto à perspectiva que ele mesmo compartilhava, quando jovem, com
seus contemporâneos do pré-Romantismo. Essa mudança de visão foi influenciada
sobretudo pelos anos do Classicismo de Weimar e pela experiência, nessa cidade,
à frente de uma companhia teatral.
Além de ser autor do célebre romance Werther, Goethe era um
dramaturgo bem sucedido em 1775 suas peças Clavigo e Götz de Berlichingen
foram montadas por companhias de teatro importantes na Alemanha –, ao aceitar
o convite do duque Karl August para ir a Weimar. Mais de uma década depois,
quando o duque decidiu criar uma companhia oficial de teatro em sua corte,
Goethe acabara de chegar de sua longa viagem à Itália (1786-1788) e foi nomeado
diretor. Nessa época, o teatro produzido pelo escritor o seguia mais a oposição
pré-romântica aos franceses, como se pode perceber por exemplo na Ifigênia, cuja
versão em versos foi terminada ainda durante a viagem. Anatol Rosenfeld a
considera, “entre as peças alemãs de importância, a que mais se aproxima da arte
de Racine”, em função de seu decoro, sua bienséance, a estilização requintada e
a rigorosa observação das unidades clássicas de ação, tempo e lugar, a
interiorização radical da ação confiada quase totalmente à palavra”.
108
A partir de
1794, o rico debate com Schiller na correspondência entre os dois escritores revela
sua orientação clássica, com o estudo dos autores antigos e a definição rigorosa
108
Ver ROSENFELD, Anatol. O teatro moderno. São Paulo, Editora Perspectiva. Coleção
Debates, 1977, p. 14.
124
dos gêneros literários, o que se reflete também na elaboração e na montagem das
peças em Weimar. Um momento marcante desse intercâmbio foi a primeira
montagem, em outubro de 1798, de O acampamento de Wallenstein, de Schiller,
pela companhia de teatro dirigida por Goethe. Muitas das cartas trocadas nesse
ano e no anterior contêm referências ao trabalho na peça, a primeira de uma
trilogia, acompanhado com interesse pelo interlocutor que, por sua vez, tinha
contado antes com uma intensa participação de Schiller na redação final do
romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.
109
As duas primeiras partes do ensaio sobre Shakespeare, de 1813, ainda
foram escritas durante o período em que seu autor se manteve à frente da
companhia de teatro de Weimar, e a terceira data justamente do ano em que ele
abandonou o cargo, 1816. Nessa parte, a idéia central é expressa claramente com a
afirmação: “O nome e o rito de Shakespeare pertencem à história da poesia;
mas trata-se de uma injustiça contra todos os autores teatrais dos tempos remotos
e tardios pôr o seu mérito na conta da história do teatro”.
110
Com isso, começa a se
delinear a perspectiva clássica do autor em sua crítica à dramaturgia do poeta
inglês. Contrariando não a tendência do Sturm und Drang, mas também a
posição dos poetas românticos, Goethe considera necessário “ponderar as
condições” em que Shakespeare se encaixou e não recomendá-las nem como
virtude nem como modelo. Essa ponderação recorre inicialmente a um
procedimento característico do Classicismo de Weimar: a definição dos gêneros
literários. No caso do ensaio, trata-se da “epopéia”, do “diálogo”, do “drama” e da
“peça teatral”, considerados como formas próximas, que muitas vezes se
confundem na prática. Goethe define:
109
Sobre a montagem de Wallensteins Lager em Weimar, ver cartas em Der Briefwechsel
zwischen Goethe und Schiller, Frankfurt, Insel Verlag, 1977, p. 679-683 e nota da p. 695.
110
GOETHE, “Shakespeare e o sem fim”, Op. cit., p. 51.
125
A epopéia transmite tradições orais à massa, narradas por um indivíduo. O
diálogo é uma fala em sociedade restrita, onde a massa, quando muito,
pode ouvir. O drama requer uma fala baseada em feitos, mesmo que seja
conduzido apenas pela capacidade imaginativa. A peça teatral requer os
três juntos, à medida que ela ocupa o sentido da visão e pode ser
acompanhada sob condições determinadas de uma presença local e
pessoal.
A distinção entre o drama e a peça teatral serve para apontar que as obras
shakespearianas pertencem ao primeiro gênero, de modo que as exigências teatrais
pareceriam fúteis a seu autor. Como tinha argumentado na primeira parte do
ensaio, Goethe considera que se trata de uma poesia feita mais para a imaginação
do que para os olhos. Nesse caso, o fato de a ação saltar de localidade em
localidade, deixando para trás uma série de acontecimentos intermediários, em
vez de criar lacunas nas peças, estimularia a capacidade imaginativa do leitor. É
possível entender essa ponderação como uma referência à célebre regra das três
unidades, tão discutida durante o Sturm und Drang, que Goethe não procura
justificar a desobediência a essa regra com base em Aristóteles, e sim chamar a
atenção para o caráter não teatral da obra em questão. Enquanto os jovens pré-
românticos valorizaram Shakespeare como modelo para o teatro alemão, segundo
a contraposição do gênio, que não precisa seguir as regras tradicionais, aos
clássicos “mecânicos”, aqui Goethe questiona a importância do poeta para a
história do teatro. A análise feita nesse ensaio, muito distante do elogio
incondicional do texto de juventude, é moldada pelos anos em que o escritor tinha
estudado e debatido longamente, sobretudo com Schiller, os parâmetros da poética
antiga e da moderna.
As questões técnicas das montagens teatrais tinham sido um tema
recorrente para Goethe, não só desde a primeira versão do romance protagonizado
por Wilhelm Meister, mas também no exercício da atividade de diretor da
126
companhia de teatro de Weimar. Nesse caso, Schiller foi igualmente o interlocutor
preferencial, tanto como colaborador na elaboração definitiva de Os anos de
aprendizado, quanto na discussão do projeto teatral da companhia, como autor da
trilogia de Wallenstein. Houve também algumas montagens de peças de
Shakespeare em Weimar nesse período, inclusive uma adaptação de Romeu e
Julieta a que Goethe se refere no final de seu ensaio. De acordo com a perspectiva
clássica e técnica elaborada pelo escritor, tanto em debates teóricos gerais quanto
em adaptações específicas, o grande poeta Shakespeare não se encaixaria bem nas
exigências próprias do teatro. Essa crítica segue, em linhas gerais, a perspectiva de
Schiller, que não se opunha radicalmente às regras do Classicismo e, embora
reconhecesse o mérito do poeta inglês, fazia ressalvas a determinados pontos de
suas obras. Assim como seu principal interlocutor, que conta em Poesia ingênua e
sentimental ter se indignado com a interrupções das cenas mais elevadas por
gracejos de um bufão, o autor do ensaio considera que Shakespeare quase destrói
o conteúdo trágico de Romeu e Julieta com as figuras cômicas da ama e de
Mercutio.
111
Em todo caso, Goethe procura relativizar sua crítica à dramaturgia
shakespeariana, ao afirmar que, se o modo de proceder do poeta inglês encontra
uma “certa resistência” no palco, é a estreiteza da forma teatral que restringe o seu
gênio. Assim, a apresentação das suas obras nessa forma apenas facilitaria a
imaginação do leitor, como se sugerisse que os acontecimentos imaginados com
tanta riqueza um dia pudessem realmente acontecer diante dos seus olhos. Em
outras palavras, a limitação imposta pelo palco não negaria o grande mérito de
Shakespeare como poeta. Mas a conseqüência dessa crítica dirigida a ele como
111
Ibidem, p. 54.
127
autor de teatro é um questionamento da noção de uma necessária fidelidade ao
autor, nas montagens alemães de suas peças. Dirigindo-se diretamente contra a
posição defendida pelos poetas românticos, a favor da fidelidade, Goethe contesta
o “preconceito”, “introduzido furtivamente na Alemanha”, de que seria preciso
representar Shakespeare palavra por palavra. Por isso, para reforçar a
contraposição às idéias de Tieck e dos irmãos Schlegel, o ensaio termina com um
elogio de Friedrich Schröder (1744-1816), ator e diretor teatral de Hamburgo que
foi responsável por adaptações de diversas obras shakespearianas. Segundo
Goethe, “Schröder ateve-se unicamente ao que era eficaz, jogando fora todo o
resto, inclusive algo de necessário, quando aquilo lhe parecia perturbar o efeito
em sua nação, em seu tempo”. Nesse caso, é possível considerar que foi ele quem
serviu de modelo, em grande medida, para o que Serlo e Wilhelm Meister fazem
com Hamlet na ficção. Ao mencioná-lo, Goethe parece apontar que o debate sobre
a fidelidade, retomado por ele no ensaio, remete às discussões que ele tinha
elaborado em seu romance.
7.3. Wilhelm Meister
Na Alemanha do final do século XVIII, uma das questões culturais mais
importantes, que começou a ser discutida por Lessing e seus contemporâneos, era
a ausência de um teatro nacional autêntico. O que predominava naquela época, no
meio teatral, era o gosto classicista herdado da França, contudo alguns alemães
menos conservadores começavam a considerar um modelo oposto a ser seguido.
Nesse contexto, a ambição de estabelecer as bases para um teatro nacional se
moldou, no Sturm und Drang, sobretudo pela valorização de Shakespeare contra o
Classicismo. Goethe oferece um panorama dessa questão em seu romance Os
128
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, no qual descreve de modo muito
preciso também o entusiasmo e o encantamento produzidos pelo dramaturgo
inglês nos autores de sua geração. A relação do protagonista com o teatro era,
aliás, o tema central da primeira versão da obra, terminada em 1785, ainda no
espírito do pré-Romantismo. Mas a redação final do romance, realizada de 1793 a
1795, no período do Classicismo de Weimar, desenvolve a história da formação
de Wilhelm Meister para além das questões exclusivamente teatrais. A influência
e a colaboração ativa de Schiller contribuíram de modo decisivo para essa
mudança na estrutura da obra.
Para Lukács, em seu ensaio sobre o romance, Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto de transição da
literatura romanesca entre os séculos XVIII e XIX. Exibe traços de ambos os
períodos de evolução do romance, tanto ideológica quanto artisticamente”.
112
Em
A teoria do romance, de 1920, o ensaísta tinha analisado a obra como uma
tentativa de síntese de duas configurações distintas da relação entre o indivíduo e
o mundo.
113
No texto específico sobre o livro, de 1936, essa análise é aprofundada
com a intenção de mostrar que a realização dos ideais humanistas da revolução
burguesa ocupa um papel central na versão definitiva, segundo um processo de
formação do indivíduo.
Como romance de formação, Os anos de aprendizado descreve o longo
percurso do protagonista, desde o período juvenil marcado por grandes paixões,
passando pela busca da realização artística no teatro, a o momento de uma
convivência harmônica e produtiva com outros indivíduos livres e bem formados.
Goethe estabeleceria então, por um lado, um vínculo com a literatura anterior,
112
LUKÁCS. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Em: Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister. São Paulo, Editora Ensaio, 1994, p. 593.
113
Ver LUKÁCS. A teoria do romance, São Paulo, 34 letras, 2000, p. 138.
129
iluminista e renascentista, pelos traços utópicos de seu ideal de educar a
humanidade a concepção de que o desenvolvimento das paixões humanas sob
uma direção adequada leva a uma harmonia da personalidade e da existência
social. Por outro lado, o Wilhelm Meister apontaria uma contradição insolúvel
entre os ideais juvenis de seu protagonista e a realidade social vigente, nos moldes
do que depois se tornará um dos pontos centrais do Realismo, por exemplo com
Balzac e Stendhal. Ao incorporar os traços do período anterior e anunciar os
movimentos por vir, o romance constituiria a síntese de um momento de transição.
Como cita Lukács, a própria definição do romance moderno, na Estética
de Hegel, contém uma referência ao romance de Goethe, embora diga respeito em
grande medida ao Dom Quixote:
O romanesco é o cavaleiresco que se torna novamente sério, com um
conteúdo real. A casualidade da existência exterior transformou-se numa
ordem rígida, segura, da sociedade burguesa e do Estado, de tal modo
que em lugar dos objetivos quiméricos que o cavaleiro criava para si
mesmo surgem agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo. Com
isso se modifica também o cavaleirismo dos heróis que atuam nos
romances modernos. Enquanto indivíduos, contrapõem-se com suas
metas subjetivas de amor, honra, ambição, ou com seus ideais de
aprimoramento do mundo, a essa ordem subsistente e à prosa da
realidade, que lhes obsta por toda a parte o caminho. [...]Pois bem, essas
lutas nada mais são no mundo moderno do que os anos de aprendizado, a
educação do indivíduo junto à realidade presente, e por isso conservam
seu verdadeiro sentido. Pois o fim de tais anos de aprendizado consiste
em que o sujeito apare as arestas, conforme-se com seu desejo e sua
opinião às situações existentes ou à racionalidade delas, insira-se no
encadeamento do mundo e obtenha nele um ponto de vista
apropriado.
114
Schelling também tinha definido o romance com base em uma referência às
mesmas obras, de Goethe e de Cervantes, a ponto de considerar que em sua época
existiam dois romances dignos do nome, o Dom Quixote e o Wilhelm
114
Trecho citado em LUKÁCS, . “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit., p. 604.
130
Meister.
115
Segundo Lukács, essa observação se justifica pelo fato de se tratar de
duas obras que dizem respeito a momentos de crises de transição, na relação
problemática entre o indivíduo e a sociedade.
No entanto, a repercussão do romance de Goethe também criou uma
grande polêmica, por contrariar abertamente o projeto dos poetas românticos e já
conter traços fundamentais do Realismo. Novalis (Friedrich von Hardenberg,
1772-1801) criticou duramente Os anos de aprendizado, livro que considerava
contrário a toda a poesia, embora valorizasse a apresentação de um processo de
formação do indivíduo. Por isso, Novalis teve a pretensão de superar
poeticamente a obra de Goethe, escrevendo um romance em que a prosa realista
desse lugar gradativamente, no percurso de formação do protagonista, a uma
existência poética. O seu Heinrich von Ofterdingen não foi concluído, mas os
fragmentos escritos são preenchidos por um ambiente onírico, sem contato com a
descrição da realidade. Para Lukács, a contraposição do autor do Wilhelm Meister
ao Romantismo estava ligada exatamente à tendência revelada pelos fragmentos
de Novalis: “Contra essa dissolução da realidade em sonhos, em representações
ou ideais puramente subjetivos, é que se dirige a luta do humanista Goethe”.
Ao comparar a versão definitiva do romance com A missão teatral, Lukács
chama a atenção para o fato de que “a primeira versão ainda está inteiramente
concebida e composta no espírito do jovem Goethe”. Nesse caso, “seu ponto
central [...] é o problema da relação do poeta com o mundo burguês, e “o teatro
significa aqui uma libertação da alma poética da indigente e prosaica estreiteza do
mundo burguês”.
116
De modo que o autor pré-romântico, por mais realistas que
fossem suas descrições, não estaria tão distante das reivindicações de Novalis.
115
Ver SCHELLING, Filosofia da arte, São Paulo, Edusp, 2001, p. 304. Referência de Lukács em
“Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit., p. 610.
116
LUKÁCS. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. Op. cit, p. 593.
131
na versão publicada em 1796, moldada pelo Classicismo de Weimar, o teatro não
seria mais uma missão, e sim um ponto de transição para a formação humanista da
personalidade e para a adequação ou inadequação ao mundo da sociedade
burguesa. Em uma representação da sociedade como um todo, o autor mostrará
que a realização artística de Wilhelm Meister não o liberta completamente dos
conflitos entre seus ideais e a realidade social. O equilíbrio diante desses conflitos
será encontrado pelo protagonista apenas na associação com outros indivíduos
“formados”. Essa convivência independe da classe social, uma vez que Wilhelm é
de família burguesa, enquanto sua futura esposa Natalie e o irmão Lothario são
nobres. Para Lukács, trata-se da utopia goethiana de uma realização efetiva do
ideal de educação humanista. Mas a fina ironia do autor no tratamento do assunto,
o caráter ambíguo de seus personagens e o grande realismo de sua descrição da
sociedade certamente o afastam da defesa unilateral dessa utopia.
Sendo o teatro apenas um momento do todo, Goethe retirou da versão
definitiva muitos dos acontecimentos descritos na primeira versão, como por
exemplo as questões relativas à montagem de uma peça de autoria de Wilhelm
Meister. Por outro lado, como aponta Lukács, ele não manteve o tratamento da
“questão shakespeariana”, mas também deu ainda mais importância à montagem
de Hamlet pelo protagonista. O ensaísta explica esse fato da seguinte maneira:
...para Goethe a questão shakespeariana ultrapassa em muito a esfera do
teatro. Shakespeare é, para ele, o grande educador para uma humanidade
e personalidade totalmente desenvolvidas; seus dramas são modelos de
como o desenvolvimento da personalidade atingiu a plenitude nos
grandes períodos do humanismo e de como esse desenvolvimento
deveria se completar no presente. A representação de Shakespeare nos
palcos da época é forçosamente um compromisso. Wilhelm Meister não
deixa jamais de sentir o quanto Shakespeare se estende para além dos
limites daquele palco. Esforça-se para salvar de algum modo, em tudo
que for possível, o que há de mais essencial em Shakespeare. Eis por que,
em Os anos de aprendizado, a representação de Hamlet, ponto culminante
dos esforços teatrais de Wilhelm Meister, converte-se numa clara
configuração do fato de que teatro e drama, e mesmo a arte poética, não
132
são senão um aspecto, uma parte do extenso complexo problemático da
educação, do desenvolvimento da personalidade e da humanização.
Na verdade, embora o teatro o seja mais do que um estágio na formação
de Wilhelm Meister, nem contenha a solução dos conflitos entre o indivíduo e a
sociedade, a relação do protagonista com a arte teatral constitui o tema mais
importante dos primeiros cinco livros do romance. Com isso, Goethe retrata
detalhadamente a grande questão cultural da Alemanha de sua época, dando
atenção especial ao modo como Shakespeare se torna o modelo para a
configuração de um teatro nacional autêntico. Os debates dos personagens a
respeito da montagem de Hamlet e, finalmente, a própria montagem da peça no
livro V do romance fazem referência a um acontecimento histórico de grande
importância cultural. Como diz Otto Maria Carpeaux: “A representação de
Hamlet em Hamburgo, em 20 de setembro de 1776, é a maior data na história do
teatro alemão. Em breve será Shakespeare o dramaturgo mais representado em
palcos alemães”.
117
Aliás, é importante observar que isso inclui o palco de
Weimar, sob a direção do autor de Os anos de aprendizado.
No capítulo 8 do livro III do romance, Wilhelm Meister se encontra, junto
com sua companhia de teatro, no castelo de um conde, onde os festejos pela
recepção do príncipe incluiriam apresentações de peças. Ficam claramente
indicadas três correntes teatrais marcantes para a época quando o barão, um
conhecedor do teatro alemão que fechara o contrato com o diretor da companhia,
“lamentava, porém, que o príncipe mostrasse uma inclinação exclusiva pelo teatro
francês, enquanto uma parte de sua gente, entre os quais se distinguia
particularmente Jarno, tinha uma predileção pelos monstros da cena inglesa”.
118
Sabendo dessa informação, Wilhelm Meister aproveita uma oportunidade para,
117
CARPEAUX, Op. cit., p. 66.
118
GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Op. cit., p. 171.
133
diante do príncipe, louvar Racine e fazer considerações sobre os seus personagens
distintos da corte francesa. Ele elogia o dramaturgo francês: “Quando leio uma de
suas peças, posso sempre idear o poeta vivendo numa corte brilhante, tendo ante
seus olhos um grande rei, relacionando-se com as melhores pessoas e penetrando
nos segredos da humanidade que se ocultam por trás de preciosas tapeçarias”.
119
O príncipe não se mostra nem um pouco interessado pelos comentários,
mas Jarno, um nobre misterioso, amigo do príncipe e do conde, pergunta a
Wilhelm: Então o senhor nunca assistiu [...] a uma peça de Shakespeare?” A
resposta negativa do protagonista revela o preconceito da época, com base no
gosto classicista: “...tudo que ouvi dizer dessas peças não me despertou a
curiosidade de conhecer mais a fundo esses monstros estranhos, que parecem
ultrapassar qualquer verossimilhança, quaisquer conveniências”. Jarno aconselha
então a leitura das obras do poeta inglês e promete emprestar alguns exemplares,
com a recomendação de que “em nada poderá empregar melhor o seu tempo do
que, ao se livrar imediatamente de tudo, ver na solidão do seu velho quarto a
lanterna mágica desse mundo desconhecido”. Ele também aproveita a ocasião
para criticar duramente os clássicos franceses, marcando assim a identificação
com postura dos autores do Sturm und Drang, para quem os personagens de
Racine e Corneille eram participantes de um baile de máscaras, sem a menor
naturalidade (Lenz), ou bonecos sem espíritos e sem vida (Herder). Para Jarno,
dirigindo-se ainda a Wilhelm, “é um pecado que desperdice suas horas tentando
dar adereços humanos a esses macacos e se esforçando para que aprendam a
dançar esses cães”. Como bom teórico do teatro, consciente do gosto classicista
que impedia a apreciação das obras recomendadas, ele ainda acrescenta: “Só uma
119
Ibidem, p. 174.
134
coisa exijo: não se escandalize com a forma; o resto deixo aos cuidados do seu
justo sentimento”.
Com uma frase que lembra muito o tom de seu próprio ensaio de
juventude sobre Shakespeare, Goethe conclui o capítulo contando que Wilhelm
“...recebeu os livros prometidos e em pouco tempo, como se pode presumir,
arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um mar sem fim, no
qual rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu”. A observação “como se pode
presumir” parece indicar, em manifestação direta, a posição de total identificação
do próprio autor-narrador em relação ao acontecimento narrado. Em seguida, no
capítulo 9, a reação do protagonista à leitura das peças também contém muito da
reação contada pelo autor no ensaio de 1771. Se a primeira página tinha sido, para
Goethe, uma identificação por toda a vida, que lhe dava a sensação de recuperar a
visão após anos de cegueira, Wilhelm se isola, a partir daquele momento, num dos
quartos mais retirados do castelo onde a companhia tinha se instalado e, sem
tomar conhecimento do que se passa em torno, “vive e se move no universo
shakespeariano”. Seu espírito se agita com mil sentimentos que ele nunca tinha
conhecido, como se na comparação do envolvimento provocado pela leitura
com um acontecimento mágico:
Consta que feiticeiros, com o auxílio de suas fórmulas mágicas, atraem
para seus aposentos um número colossal de espíritos de toda sorte. Tão
poderosas são suas evocações, que em pouco tempo preenche-se todo o
espaço do cômodo, e os espíritos, confinados no pequeno círculo
traçado, continuam a se multiplicar, movendo-se em metamorfoses e
rodopios eternos ao redor de si mesmos e sobre a cabeça do mestre. [...]
Desgraçadamente, o nigromante esqueceu a palavra mágica capaz de
fazer refluir essa maré de espíritos... Pois assim se encontrava Wilhelm
Meister, sentado, e com movimento ignorado agitavam-se nele mil
sensações e faculdades, das quais não havia tido nenhuma noção,
nenhuma idéia.
120
120
Ibidem, p. 178.
135
Aos poucos, em ocasiões diversas, o impacto desse primeiro contato com a
obra de Shakespeare se revela nas considerações e conversas de Wilhelm Meister
sobre o teatro. Quando ele fala aos atores de sua trupe, após a partida do castelo
do conde, recorre constantemente a exemplos tirados das peças do dramaturgo.
No capítulo 3 do livro IV, ele comenta seus estudos cada vez mais aprofundados
do personagem Hamlet, a fim de superar as dificuldades para entender seu
verdadeiro caráter. No final do mesmo livro IV, o protagonista do romance chega
à cidade, onde passará a fazer parte de uma companhia de teatro mais organizada,
dirigida por Serlo. Desde o primeiro encontro, as discussões entre os dois
personagens recaem sobre uma possível montagem de Hamlet, defendida
apaixonadamente por Wilhelm, para quem as peças de seu escritor predileto
haveriam de marcar época na Alemanha.
Goethe soube caracterizar, por meio dos dois personagens antagonistas, as
posições divergentes a respeito de como Shakespeare deveria ser encenado nos
palcos alemães. Serlo parece se basear em grande medida no diretor do teatro de
Hamburgo, Schröder, elogiado em “Shakespeare e o sem fim” pelas adaptações
que fez das peças. Desse modo, apresenta a posição defendida pelo próprio
Goethe maduro, quando era diretor da companhia de Weimar, contra a exigência
de fidelidade dos românticos. O entusiasmo de Wilhelm Meister, por sua vez,
remete à postura arrebatada dos autores pré-românticos e ao primeiro contato do
próprio autor do romance com a obra de Shakespeare. No entanto é o
protagonista, muito mais do que seu interlocutor, quem estuda e analisa a peça,
fazendo diversos comentários sobre a sua estrutura, os seus personagens e as suas
questões principais. Serlo se mostra mais interessado na repercussão que a
montagem teria, ou nas necessidades de adaptação segundo o gosto do público
136
alemão da época. Nos capítulos finais do livro IV e no início do V, as duas
posições são debatidas intensamente, até que aconteça a montagem efetiva de
Hamlet.
Quando o protagonista do romance finalmente convence o diretor da
companhia a fazer a montagem desejada, ele impõe a condição de que fosse um
trabalho inteiramente fiel ao texto integral. Serlo, por sua vez, queria o recém-
chegado como ator, por isso teve de aceitar, não sem alguma restrição, uma das
condições impostas por Wilhelm para ingressar no teatro. Ele exigia que Hamlet
fosse representada por inteiro e sem cortes, e Serlo só consentia nesse estranho
desejo na medida do possível”.
121
Como observa o narrador em seguida, “isso foi
motivo para muitas discussões...”. A partir do momento em que o diretor aceita
fazer a montagem, a questão principal do debate é a adaptação, ou seja, o que
seria possível cortar da peça sem mutilá-la. Apesar de toda a resistência inicial,
Serlo acaba convencendo Wilhelm de que os cortes são possíveis, de modo que o
defensor da fidelidade ao texto passa a ponderar as adaptações necessárias à sua
montagem no palco alemão. Percebe-se, então, que o debate travado no romance
tende para a vitória da posição que seu autor assumirá depois, no segundo ensaio
sobre Shakespeare.
Fazendo referência, mais uma vez, não ao desenvolvimento real da
recepção do poeta inglês na Alemanha, como também à sua própria experiência,
Goethe comenta ainda que “já algum tempo Wilhelm vinha-se dedicando a
uma tradução de Hamlet; para tanto, servia-se do engenhoso trabalho de Wieland,
graças ao qual tomara contato pela primeira vez com Shakespeare”.
122
Em
seguida, o protagonista justifica a adaptação das peças e os cortes que lhe parecem
121
Ibidem. Livro V, capítulo 4, p. 289
122
Ibidem. Capítulo 5, p. 294.
137
necessários em função do gosto do público alemão, cuja visão de mundo seria
diferente daquela dos ingleses. Mesmo convencido por Serlo a fazer os cortes, ele
não aceita as censuras à estrutura da peça. Por exemplo, ao defender o poeta
contra as críticas ao excesso de ações em lugares distantes e estranhos, ele
argumenta que os acontecimentos exteriores ao reino da Dinamarca, em Hamlet,
têm essa variedade porque os ingleses estão acostumados às viagens marítimas e
aos ataques de corsários, enquanto os alemães se sentiriam distraídos e confusos
ao ver tais ações representadas no teatro. Em geral, os argumentos de Wilhelm
justificam o modelo de Shakespeare para o teatro nacional alemão, enquanto Serlo
parece incomodado pelos desvios das regras, mostrando-se assim como um
partidário do teatro clássico francês.
É notável a riqueza do debate teórico incluído por Goethe em seu romance,
no qual ele não descreve o impacto de Shakespeare na cultura alemã e elabora
uma análise bastante detalhada do Hamlet, como também expõe as perspectivas
divergentes acerca da maneira como essa obra deveria ser montada. Ambas as
perspectivas são defendidas com grande ardor, na boca dos personagens, de modo
que o argumento em favor da necessidade de adaptação da peça se impõe aos
poucos, contra a resistência de um leitor apaixonado pelo poeta inglês. Nessa
discussão se revela tanto a polêmica do autor com os poetas românticos, elaborada
depois no ensaio terminado em 1816, quanto o percurso do próprio Goethe. Da
primeira leitura à montagem da peça, o leitor do romance pode entender a
evolução do arroubo juvenil do Sturm und Drang até a postura serena e ponderada
do Classicismo de Weimar, na qual a profunda admiração por Shakespeare
continua a existir, mas sem um elogio incondicional. Quanto à relação específica
com o teatro, a defesa exaltada do gênio da natureza dá lugar a uma visão marcada
138
pela experiência à frente de uma companhia, pelo conhecimento das dificuldades
técnicas, do gosto do público e das necessidades impostas pelas diferenças
históricas e nacionais.
139
CAPÍTULO 3
GOETHE E SCHILLER
1. Weimar
O movimento pré-romântico iniciado pelos jovens escritores de Estrasburgo,
como Lenz, Klinger e Voss, entre outros, buscava “um caminho ideológico novo
na Alemanha”, como afirma Walter Benjamin em seu “Artigo enciclopédico”.
123
Tal caminho estava ligado à emancipação burguesa, nessa época em que a
burguesia alemã, de formação atrasada, não tinha condições de financiar a
produção cultural sem o auxílio dos nobres das várias cortes em que o país era
dividido. Neste contexto, Goethe, ainda um estudante de direito, surgiu como o
expoente do movimento cultural revolucionário e foi apontado por Herder, um dos
mentores do Sturm und Drang, como um autêntico gênio alemão. Proveniente de
uma família importante da burguesia de Frankfurt, dotado de um talento
extraordinário e orientado pelos grandes teóricos da época, o jovem Goethe
parecia a personalidade emblemática do pré-Romantismo quando suas primeiras
obras foram publicadas.
O Götz von Berlichingen (1772) expressa claramente, segundo a
interpretação de Benjamin, as divisões da burguesia alemã. As cidades e as cortes
representam o racionalismo iluminista sem espírito, enquanto o líder da revolta
dos camponeses, o cavaleiro que nome à peça, personifica os princípios do
Sturm und Drang na tenacidade de sua rebeldia. o romance Os sofrimentos do
jovem Werther (1774), baseado não só no amor desafortunado de Goethe por
Lotte Buff, a noiva de um amigo, mas também na história verídica de um jovem
123
BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 142-144.
140
apaixonado que se suicidara, revela o tipo do “autor genial”. Para Benjamin,
Goethe faz de seu mundo interior um assunto público e, das questões de sua
época, questões de seu mundo particular de experiências, com uma perfeição
nunca antes alcançada. A burguesia encontrava, nesse romance, a expressão plena
de sua valorização do indivíduo e de sua luta contra as convenções estabelecidas.
“Werther não é apenas aquele que ama sem felicidade, encontrando em sua
comoção caminhos para a natureza não buscados por nenhum outro desde [...]
Rousseau”, segundo a observação de Benjamin, ele é também o burguês cujo
orgulho se choca dolorosamente contra as barreiras de classe e exige seu
reconhecimento em nome dos direitos humanos.”
Mas Goethe não era, como Herder pretendia, um entusiasta do espírito
alemão. Neste sentido ele se identificava muito mais com Winckelmann, pois
desde jovem era fascinado pela Itália, que seu pai tinha visitado alguns anos antes
de seu nascimento. De fato, a viagem àquele país de 1786 a 1788 comprovaria,
em muitos momentos, a preferência de Goethe pelas belas paisagens ensolaradas,
pelo clima mediterrâneo, ou pela vitalidade cultural e artística de cidades como
Veneza, Roma e Nápoles. Já na narrativa da viagem que fez à Suíça em 1775, dez
anos antes de conhecer a Itália, o escritor tinha descrito sua contemplação
nostálgica do caminho que leva ao território italiano, no qual pareciam se
concentrar os ideais de seu amor pela beleza natural das paisagens, seu interesse
apaixonado pela arte clássica, moldado na escola de Oeser, e suas lembranças de
infância das reproduções que enfeitavam as paredes na casa de sua família.
124
Foi justamente na viagem de retorno da Suíça que Goethe conheceu o
príncipe herdeiro e futuro duque de Weimar, Karl August um encontro que
124
GOETHE. Poesia e verdade. Op. cit., livro XIV.
141
mudaria sua vida. Em novembro de 1775, ele aceitou o convite do nobre para
visitar a corte de Weimar, que acabou se tornando sua morada desde então, por
mais de cinqüenta anos, durante os quais o escritor teve uma participação intensa
na vida política e social da cidade, como alto funcionário do governo, conselheiro
secreto, diretor da companhia de teatro e, durante algum tempo, ministro de
Estado. Em suas próprias palavras, segundo o relato de Eckermann:
Onde se encontrará, numa região tão pequena, tanto de notável? Temos
também uma biblioteca escolhida e um teatro que não fica atrás, nas
coisas fundamentais, dos melhores das outras cidades alemãs. Insisto
portanto: fique conosco, e não por este inverno, escolha Weimar para
residência. Partem de os caminhos para todos os extremos do mundo.
No verão, viaje e veja a pouco e pouco aquilo que deseja observar. Eu
cinqüenta anos que lá vivo, e em quantos sítios não tenho estado! mas
volto sempre com prazer...
125
Em 1832, quando morreu, Goethe foi enterrado em Weimar, onde atualmente se
concentram as principais bibliotecas, museus e instituições de pesquisa ligados a
sua obra e a seu legado.
No mesmo ano de sua chegada à corte, Goethe foi nomeado pelo jovem
duque Karl August como conselheiro de legação, com uma série de incumbências
administrativas e assento no Conselho do Estado. Entre essas incumbências se
incluíam, por exemplo, a inspeção das estradas e a seleção de jovens para o
serviço militar, além da tomada de decisões relativas ao planejamento urbano e à
agricultura. Mas as atividades práticas do escritor não o impediam de trabalhar em
seus escritos, ainda que fosse durante as viagens de inspeção pelo território de
Weimar. Goethe ainda conciliava a produção poética e as incumbências
administrativas com seu grande interesse pelas ciências naturais, que mais tarde o
levaria a escrever tratados de botânica, ótica, mineralogia e meteorologia. De fato,
o escritor dedicava especial atenção, nessa época, às suas coleções de exemplares
125
ECKERMANN. Conversações com Goethe. Lisboa, Vega, sem data, p. 11 (15/09/1823).
142
dos tipos de rocha de cada região visitada, às observações das formas vegetais e
ao acompanhamento das mudanças climáticas.
O próprio Goethe, ao comentar o rumo de seus estudos naturalistas, afirma
que seu interesse por essa esfera das ciências se desenvolveu ativamente na
época em que foi acolhido pelo círculo weimariano. Enquanto seu período de
formação juvenil nas cidades de Frankfurt, Leipzig e Estrasburgo alimentara seu
interesse pela vida social e sua inclinação para as letras, a vida no campo, com
incursões de caça ou inspeção, voltou sua atenção para a observação da
natureza.
126
Os musgos da floresta da Turíngia tinham sido seus primeiros objetos
de estudo, por volta de 1777, sob a influência do doutor Buchholz, farmacêutico
da corte, pesquisa que o levou a ler os tratados de botânica mais recentes e a
acompanhar as descrições científicas com suas próprias observações. Esse
primeiro passo nas ciências naturais influenciou também seu crescente interesse
pelas formações geológicas, pela classificação dos minerais e pelo estudo das
alterações nas condições climáticas. Em 1784, Goethe fez também uma
“descoberta” científica no campo da anatomia, identificando um osso intermaxilar
que esclarecia a constituição morfológica dos ossos do crânio a partir de uma
transformação dos ossos da coluna vertebral. Essa identificação não só foi o
primeiro resultado de suas pesquisas com alguma relevância científica, como
também influenciou a noção de uma transformação no mundo orgânico a partir de
formas simples. Essa noção constitui a base de sua teoria sobre a metamorfose das
plantas, elaborada em vários anos de estudo, de observação com ou sem o auxílio
de microscópio, em visitas a estufas ou durante viagens a regiões de vegetação
diversificada.
126
Ver GOETHE.“História de meus estudos de botânica”, em: La métamorphose des plantes.
Paris: Triades, 1975, p. 81-83.
143
Para Walter Benjamin, em sua análise da posição política de Goethe, a
dedicação às ciências naturais, substituindo os temas da sociedade da época
apresentados em sua produção poética, poderia ser encarada como uma espécie de
isolamento dos problemas debatidos nas cidades.
127
Nesse caso, também fica
indicado o afastamento do escritor da ideologia do movimento pré-romântico,
num processo do qual a relação com o duque de Weimar e a aceitação do cargo de
conselheiro da corte são os primeiros indícios. Para a decepção de muitos dos seus
contemporâneos, o autor do Götz e do Werther estava abandonando, assim, a
defesa de posições ligadas à revolta burguesa contra as convenções aristocráticas.
De fato, a expulsão de Lenz da corte em 1776, em função das inconveniências de
seu comportamento exagerado, pode ser vista como um momento emblemático de
tal distanciamento do círculo de Estrasburgo. E a inserção definitiva de Goethe na
sociedade, estabelecida formalmente com o título de nobreza recebido em 1782,
pode indicar a conclusão do processo em que o escritor deixava de ser visto como
um expoente da ideologia burguesa. Essa mudança aos poucos começava a se
manifestar também artisticamente, nas obras escritas entre 1776 e 1786, como A
missão teatral de Wilhelm Meister, Stella e Clavigo, além dos vários poemas que
fazem parte de sua extensa produção lírica. Ainda se encontram traços marcantes
do pré-Romantismo nessas obras, mas identifica-se a busca de um estilo mais
sereno, mais preciso, livre dos arroubos e da impulsividade que tinham marcado a
fase pré-romântica da juventude.
Por outro lado, como conselheiro em Weimar, Goethe tinha um contato
mais próximo com o poder político, justamente num período de intensa agitação
das camadas burguesas, cuja ideologia encontrava fortes entraves na situação do
127
Ver BENJAMIN, Walter. “Goethe, artigo enciclopédico”, em: Dos ensayos sobre Goethe. Op.
cit., p. 154.
144
país. Assim, apesar de algumas reações desfavoráveis, muitos dos revolucionários
pré-românticos seguiram ou tentaram seguir o mesmo caminho do autor do Götz
von Berlichingen. O melhor exemplo é Herder, que em 1776, contando com a
influência do conselheiro Goethe, assumiu o cargo de Superintendente Geral do
clero luterano em Weimar, onde passou a viver desde então. Essa separação entre
o domínio político-ideológico e o movimento artístico (muito diferente, por
exemplo, do que ocorreria na França revolucionária da década seguinte)
certamente diz respeito à situação da sociedade alemã no final do século XVIII.
Mas, como aponta Benjamin em seu artigo, ela expressa também a posição
política específica de Goethe, que mais tarde seria um crítico da Revolução
Francesa e um entusiasta do projeto político de Napoleão.
128
O estabelecimento em Weimar do famoso escritor alemão
internacionalmente conhecido depois do enorme sucesso do romance Os
sofrimentos do jovem Werther –, que foi acompanhado depois por Herder e por
outros intelectuais importantes (Wieland, o famoso poeta e tradutor de
Shakespeare, também já vivia naquela corte desde 1772), deu à cidade uma
posição de destaque no mapa da produção cultural da Alemanha. Na vizinha Jena,
tanto a presença dos professores universitários Fichte e Schiller, quanto o
nascimento do Romantismo na virada do século, com os irmãos Schlegel,
contribuíram para essa posição de destaque em relação às outras regiões do país.
A importância de Weimar na história literária alemã se consolidaria
definitivamente com a fase clássica da produção de Goethe, a partir de 1786, e a
intensa colaboração de 1794 a 1805 com Schiller, também em sua fase clássica
128
Ibidem, p. 145-149 e 162.
145
período que foi chamado pelos historiadores da literatura de Classicismo de
Weimar.
2. Viagem à Itália
A estabilidade da situação de Goethe em Weimar não impediu o desenvolvimento
do que Benjamin chama de um descontentamento patológico com a Alemanha”,
uma certa resistência, “proveniente do mais íntimo de seu ser, contra o clima e a
paisagem, contra a história, a política e o caráter do povo”.
129
Nessa tendência se
revela claramente aquilo que já fora apontado na contemplação nostálgica do
caminho para o território italiano, durante a viagem à Suíça: a diferença em
relação ao ideal de Herder, que via em Goethe o grande gênio alemão autêntico, e
a proximidade com Winckelmann, que foi incapaz de voltar de Roma a seu país
natal. A partida para a Itália, em 1786, foi descrita por Goethe como uma espécie
de “fuga”, sem aviso prévio (apenas o duque foi avisado), para viabilizar um
plano alimentado desde criança mas quase inviável naquele momento, porque
suas funções administrativas, seu círculo social e o longo caso amoroso com
Charlotte von Stein o prendiam à corte.
O descontentamento do escritor com a Alemanha e a profunda
identificação com o clima e o ambiente italianos se manifestam, em gradação
crescente, nas descrições feitas em seu relato de viagem, dirigido aos amigos que
deixara em Weimar. No Tirol, ao se aproximar da fronteira com a Itália, Goethe
declara que “subindo adiante, para além de Innsbruck, a beleza é cada vez maior,
e não como descrevê-la”. No entanto, ele a descreve minuciosamente, seja com
um olhar de pintor de paisagens, destacando o esplendor das montanhas, seja sob
129
Ibidem, p. 149.
146
a ótica de um naturalista, quando desenvolve teorias a respeito da formação
geológica, do clima e da vegetação. Numa dessas descrições pictóricas da
primeira etapa de sua viagem, ainda na região de Brenner, em 8 de setembro de
1786, define-se uma posição “entre o Sul e o Norte”, entre o destino da viagem, a
Itália, e o ponto de partida, a Alemanha, como que para estabelecer uma ligação
íntima e expressiva do ambiente em torno com a própria experiência pessoal do
viajante:
Pouco a pouco, foi escurecendo cada vez mais; os detalhes perdiam-se e
as massas foram se fazendo cada vez maiores e mais magníficas; por fim,
quando tudo à minha frente se movia feito uma pintura profunda e
misteriosa, tornei a ver, de súbito, no alto, os cumes nevados
iluminados pela lua; aguardo agora que a manhã venha clarear este
precipício de pedra, esta linha divisória entre o Sul e o Norte na qual me
encontro fincado.
130
também, no relato dessa mesma etapa no Tirol, vários exemplos da
importância que o autor dava à observação dos fenômenos naturais, voltada para
diversos ramos da ciência. Em sua longa consideração sobre o clima, ele
desenvolve o que chama de “estranhas teorias” de um meteorologista
ambulante”, nas quais atribui as alterações atmosféricas a uma atuação velada e
secreta das montanhas, em função da força de atração exercida pela massa
terrestre em suas grandes elevações. Goethe acrescenta “algumas palavras sobre o
reino vegetal”, um de seus temas científicos prediletos ao longo de todo o relato
da viagem, porque essas observações se inseriam no projeto de escrever uma obra
a respeito da origem morfológica das plantas. Com grande interesse, ele comenta
os tipos de plantas que encontra, como um ácer identificado para a filha de um
harpista que conhecera, ou os primeiros lariços, subindo para Brenner, e o
primeiro zimbro, perto de Schönberg. Mais adiante, os novos tipos vegetais
observados em território italiano contribuiriam decisivamente para a teoria sobre a
130
GOETHE. Viagem à Itália 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20.
147
“planta originária” [Urpflanze], exposta em A metamorfose das plantas (1790),
como registrou o autor em Palermo, no dia 17 de abril de 1787:
As muitas plantas que eu, em geral, só estava acostumado a ver em cubas
e vasos, por trás de vidraças a maior parte do ano, encontram-se aqui
felizes e viçosas ao ar livre e, cumprindo seu destino em sua plenitude,
fazem-se mais compreensíveis a nós. À visão de tantas formas novas e
renovadas, voltou-me à mente a velha fantasia de poder, talvez, descobrir
aqui, em meio a toda essa variedade, a planta primordial.
131
Não as descobertas botânicas, mas também o tipo de cultivo feito em cada
região ficava registrado, desde aquele dia na primeira etapa da viagem, na
fronteira da Áustria com a Itália, até esse período passado na Sicília vários meses
depois.
No mesmo dia 8 de setembro de 1786, ainda no Tirol, Goethe descreve
também as características dos Alpes calcários, identificando os tipos de rocha de
cada trecho e recolhendo amostras, como faria depois em todas as regiões
percorridas, com especial interesse nas proximidades do Vesúvio. Ele faz
comentários sobre a variação rochosa que encontrou perto de Brenner: “Recostada
em micaxisto de um verde e um cinza escuros e perpassada de quartzo, vi uma
rocha calcária branca e compacta, exibindo a mica em sua degradação e aflorando
em massas enormes”. E, logo adiante: “Mais acima, surgiu uma espécie particular
de gnaisse, ou, antes, um tipo de granito próximo ao gnaisse, como na região de
Elbogen.” Posteriormente o escritor enviaria para Weimar as coleções de rochas
cuidadosamente catalogadas.
Para completar o escopo das observações científicas do escritor, a
aparência e os costumes das pessoas que ele encontra em cada localidade também
são apontados, em registros de caráter antropológico. No decorrer da viagem,
tanto os campos quanto as cidades da Itália suscitariam considerações
131
Ibidem, p. 314.
148
semelhantes, que tratam não das características físicas, mas também dos
hábitos diversos, analisados em seu contexto, como resultados das condições
naturais e culturais. Em Nápoles, por exemplo, nas anotações de 28 de maio de
1787, Goethe chegaria a desenvolver um pequeno estudo das atividades dos
cidadãos, a fim de mostrar que era descabida a crítica de muitos europeus do
norte, que se queixavam do grande número de desocupados. Mas no início de
sua estada em território italiano, ao descer de Brenner, o escritor observava uma
“mudança desagradável nas feições e na cor da pele”, especialmente no caso das
mulheres, e atribuía essa mudança à dieta dos habitantes, cuja base é a polenta. As
perguntas sobre o assunto para os moradores da região e a observações das
diferenças dos tipos humanos, de seus traços específicos, serviram de base para
uma comparação entre os costumes do tirolês alemão e do italiano, na qual o autor
associa as características físicas observadas aos hábitos alimentares e às atividades
principais de homens e mulheres em cada localidade.
132
Essa postura serena de um observador especialmente dedicado, para o qual
cada nova paisagem revela inúmeras descobertas, não impede o escritor de
manifestar seu entusiasmo com a viagem. Assim, a “fuga” de Weimar para
realizar aquele plano alimentado havia tantos anos ganha o significado de uma
libertação pessoal, embora a intenção manifesta seja sempre a de retornar
Goethe se dirige em muitas ocasiões aos “amigos” que deixara, comenta as
expectativas de seu retorno e chega a dedicar o relato da segunda etapa em
Nápoles a Herder. Como o relato da Viagem à Itália foi publicado tardiamente
(a primeira e a segunda parte em 1816, a última em 1829), e as anotações
originais foram elaboradas durante muitos anos para chegar à versão final, deve
132
Ibidem, p. 45-46. Quanto ao relato sobre os habitantes de Nápoles, ver p. 390-397.
149
ter havido um esforço de dar, aos fatos contados, o sentido que eles ganharam na
vida do autor. Assim como nas suas memórias, ou nos trechos autobiográficos
presentes em suas obras de ficção, Goethe procura estabelecer ressonâncias entre
o conteúdo objetivo das ações ou dos acontecimentos e o desenvolvimento de um
aprendizado no campo de suas experiências pessoais. Um dos trechos mais
expressivos é o de 11 de setembro de 1786, quando o autor tinha atravessado a
fronteira e, pela primeira vez, entrado no território italiano:
E agora, ao anoitecer, com o vento suave e as montanhas rodeadas por
poucas nuvens, mais fixas do que atravessando o céu, o zumbido agudo
das cigarras começando a se fazer ouvir logo após o pôr-do-sol, sentimo-
nos afinal em casa no mundo, e não qual estivéssemos escondidos ou no
exílio. Desfruto de tudo isso como se tivesse nascido e sido criado aqui,
e retornasse agora de uma caça à baleia na Groenlândia. Saúdo até
mesmo a poeira desta terra....
133
O fato de Goethe sentir-se finalmente “em casa no mundo” é reforçado
pela curiosa inversão entre sua verdadeira condição, como estrangeiro que visita
um local desconhecido, e a sensação exultante em que se expressa o ideal
nostálgico do sul, ligado à experiência pessoal, ao encantamento pela natureza e
ao interesse artístico. É como estudante de pintura, discípulo de Oeser, que o autor
desfruta da bela paisagem; como um autêntico seguidor de Winckelmann, ele
saúda até a poeira da terra italiana. Mas é por uma identificação mais profunda de
seu espírito que um alemão pode dizer, ao realizar o plano alimentado desde
criança de conhecer um país estrangeiro, que a sensação é de não estar mais
“escondido” ou no “exílio”, como se retornasse de uma longa viagem a um
território inóspito para o acolhimento de sua “casa”. Ele indica, com isso, o
sentimento contrário que o acompanhava antes da viagem, e que Benjamin
identificou como o seu “descontentamento patológico” com a Alemanha.
Considerando-se em casa quando chega ao território estrangeiro e, diante desse
133
Ibidem, p. 31.
150
sentimento, referindo-se ao passado em seu próprio país como um “exílio”, o
escritor ressalta não o seu amor winckelmanniano pela beleza da Itália, mas
também a sua necessidade de tomar distância do ambiente e da cultura alemães. É
como se o itinerário da viagem e o caminho de aprendizado pessoal, ou espiritual,
estivessem em harmonia, aparecendo com a naturalidade de um movimento
preciso, pleno de sentido.
Mas esse caminho do aprendizado de Goethe na Itália só pode ser
entendido em sua plenitude a partir das considerações relativas às cidades
italianas, como Verona, Veneza, Roma e poles. uma mudança no foco da
atenção do escritor, quando ele chega, depois de atravessar os Alpes, aos
primeiros centros urbanos percorridos em sua longa jornada. Embora mantenha
seu interesse pelas ciências naturais, especialmente pela botânica, e continue a
fazer comentários sobre as características das pessoas e das regiões, o principal
tema do relato passa a ser a arte (arquitetura, pintura, escultura). O que não muda,
apesar do novo foco da atenção, é a postura do autor em relação à natureza, uma
vez que a capacidade de observação, identificada com a de um pintor, é tão
valorizada quanto nas considerações de teor naturalista.
O pintor de paisagens que se expressa nas descrições dos Alpes dá lugar ao
aprendiz de pintura que, em Veneza, estuda os grandes mestres Ticiano e
Veronese. Depois de ver suas obras que m cenas venezianas como tema, a
própria cidade parece oferecer a seu observador uma explicação a respeito da
luminosidade dos quadros. Goethe se refere então ao seu velho dom de ver o
mundo com os olhos do pintor cujos quadros acabei de contemplar”, capacidade
que suscita a noção de que os olhos se formam em consonância com os objetos
que divisaram desde a infância, e, sendo assim, o pintor veneziano de ver tudo
151
com maior clareza e limpidez do que os outros homens”. Ele descreve seu
aprendizado, no qual as informações visuais do lugar se revelam como uma base
para a compreensão da arte ali desenvolvida:
Passeando pelas lagunas com o sol a pino, a contemplar os gondoleiros
postados nas bordas de suas gôndolas, pairando com leveza em suas
roupas coloridas e a remar, vendo-os, pois, desenharem-se no céu azul
sobre a superfície clara da água, vi, na realidade, a melhor e mais fresca
pintura da escola veneziana. O brilho do sol destacava de maneira
ofuscante as cores locais, e as sombras eram tão luminosas que,
comparativamente, teriam podido fazer as vezes de luzes. A mesma coisa
se podia dizer dos reflexos da água do mar. Tudo isso numa pintura
sobrepondo o claro ao claro, de tal modo que, para pôr os pingos nos is,
foram necessárias a onda espumante e a luz radiante a iluminá-la.
134
nessas frases um indício do futuro interesse do autor pela teoria das
cores, com base na relação entre cor, luz e olhar, interesse que o levaria a elaborar
seu estudo Doutrina das cores (1810), uma contestação bastante controversa da
ótica newtoniana. No entanto, a abordagem da questão na Itália ainda não tinha
um caráter científico, mas uma ligação com o aprendizado da pintura e o estudo
das artes plásticas em geral. Em sua descrição de Veneza com olhos de Veronese
e Ticiano, Goethe revela sua relação com a escola de Oeser e Winckelmann,
autores para os quais a interpretação das obras de arte deve ser baseada na
investigação das condições específicas de seu surgimento. Essa filiação seria
ressaltada em Roma, onde o escritor se dedicou especialmente à observação das
obras da Antigüidade clássica.
Em alguns momentos, Goethe se refere de modo direto a Winckelmann,
cujos passos seguia na capital italiana, lendo suas cartas escritas daquela cidade
para amigos alemães. Por exemplo, no dia 13 de dezembro de 1786, ao citar um
trecho do escritor que fala de Roma como “a escola suprema para o mundo todo”,
um lugar que depura e testa o viajante, Goethe considera que o pensamento se
134
Ibidem, p. 102.
152
“aplica bem” ao seu modo de observar as obras de arte e aprender com elas. Ele
conclui: “com certeza, o se tem, se não se está em Roma, a menor idéia de
como se é nela escolado. É preciso renascer, e então as idéias que se tinham antes
serão vistas como sapatinhos de criança”.
135
Logo em seguida, no mesmo dia, o
escritor considera aquele ano como o mais importante de sua vida, em função do
aprendizado proporcionado pela viagem à Itália.
Se, por um lado, a viagem levou Goethe a desistir da idéia de ser um
pintor, alimentada aentão apesar de seu encaminhamento para a literatura, por
outro lado, tanto sua produção poética quanto sua posição teórica no campo da
estética foram influenciados de modo decisivo por seus aprendizados ligados às
artes plásticas durante a estada na Itália. Para indicar a influência mais direta,
basta lembrar que a versão definitiva da Ifigênia em Táuris foi escrita em Roma,
num período de convívio intenso com o pintor Wilhelm Tischbein (1751-1829) e
de estudos da arquitetura e da escultura na capital italiana, sob a orientação dos
escritos de Winckelmann. Outra referência fundamental que se consolidava era a
da literatura clássica, como se pode perceber pelo plano de uma peça sobre
Nausícaa, elaborado em Palermo, enquanto o escritor relia a Odisséia.
136
Evidentemente, nem todas as obras de Goethe da época tinham temas gregos, mas
a influência de seus estudos da literatura pode ser percebida também do ponto de
vista formal, por exemplo, no propósito de fazer de Hermann e Dorothea (1798),
baseado numa história da Alemanha recente, um poema épico nos moldes dos
cantos homéricos.
135
Ibidem, p. 177. Outras referências a Winckelmann se encontram nas páginas 164 e 170.
136
Ibidem, (16 de abril de 1787), p. 313. Convém notar aqui que, em 1799, os estudos de Homero
também levariam Goethe à tentativa de escrever uma tragédia sobre a morte de Aquiles, nunca
terminada.
153
Ao retornar a Weimar em 1788, depois de uma segunda estada em Roma,
a orientação de Goethe para as artes clássicas definiria o rumo de toda uma fase da
sua produção artística e de suas investigações estéticas, consolidando o seu
distanciamento dos ideais do Sturm und Drang. A defesa da teoria que
fundamenta esse rumo pode ser encontrada nos escritos do autor sobre arte e em
sua correspondência com Schiller entre 1794 e 1805.
3. A teoria da arte de Goethe
3.1. A mímese e o estilo
Pouco após o retorno da Itália, Goethe publicou um ensaio intitulado “Simples
imitação da natureza, maneira, estilo” (1789), no qual ficam evidentes as
mudanças de sua concepção estética. Como no caso de outros autores pré-
românticos, sua teoria fora marcada inicialmente pela noção do gênio, definido
como o que não segue as regras da arte e é capaz de dar expressão à natureza em
sua plenitude. A defesa do impulso natural na criação artística contra o
artificialismo das regras estabelecidas constitui um dos argumentos centrais, por
exemplo, de Para o dia de Shakespeare, quando o dramaturgo inglês é
contraposto aos autores do teatro clássico francês. no ensaio escrito depois da
viagem à Itália, o autor elabora uma teoria da arte mais objetiva, na qual o
elemento natural pode ser expresso, em sua essência, por meio de um
conhecimento profundo do objeto e de um domínio completo dos meios artísticos
de expressão. As regras da arte o são mais contestadas de modo incondicional,
mas definidas em sua relação com as leis naturais.
O ensaio sobre “Simples imitação, maneira, estilo” se baseia em questões
discutidas, ainda em Roma, com Karl Philipp Moritz (1756-1793), autor de
154
“Sobre a imitação artística da beleza”, publicado em 1788. E os dois escritores
foram influenciados, em suas considerações sobre a relação entre arte e natureza,
pela obra de Winckelmann. Inicialmente, Goethe retoma a crítica
winckelmanniana da idéia de que o artista deve imitar diretamente a natureza, ou
seja, a crítica de um caminho de imitação que conduz à mera cópia. E, assim
como nas Reflexões de Winckelmann, a discussão em torno da mímese se insere
numa consideração sobre o aprendizado artístico, visando a apontar o modo como
se alcança um nível mais elevado da arte. O autor considera necessário definir
melhor os três termos aos quais o título de seu ensaio faz referência a “simples
imitação da natureza”, a “maneira” e o estilo” –, porque eles eram usados em
sentidos diversos nos textos de sua época. Sua definição tem o objetivo de
caracterizar etapas de desenvolvimento, ou modos de proceder, que vão do grau
mais baixo ao grau mais elevado de criação na arte.
A primeira expressão é definida por meio do exemplo do pintor que se
volta para os objetos naturais e os copia fielmente, procurando obter uma precisão
cada vez maior em sua imitação das formas objetivas. Goethe não condena esse
caminho, apenas o considera limitado. Se o artista for talentoso, ele produzirá
obras vigorosas e ricas, que podem alcançar um alto grau de perfeição e podem
ser bastante agradáveis. No entanto, segundo o autor, considerando as condições
desse tipo de criação, conclui-se facilmente que ela leva apenas um homem
talentoso, mas limitado, a tematizar objetos agradáveis, mas limitados.
137
Nesse
caso, não uma limitação temática como também uma limitação artística,
quando a criação se restringe a simplesmente imitar a natureza. Quanto à primeira,
os temas precisam ser agradáveis à vista e estar disponíveis ao artista para a
137
Ver Einfache Nachahmung der Natur, Manier, Stil”, em GOETHE. Vermischte Schriften. Op.
cit., p. 252.
155
realização da cópia, o que restringe esse tipo de pintura às naturezas mortas, aos
objetos inanimados ou imóveis. a segunda limitação diz respeito à disposição
de espírito do artista que, com maior ou menor talento, dedica-se à tarefa de
copiar fielmente os objetos visíveis. Ele deve ser contido e tranqüilo, ficar
satisfeito com um prazer moderado e se limitar à receptividade. Em outras
palavras, como se revelará na comparação com os outros modos de criação
artística, trata-se de um homem que se contenta em reproduzir o que sem
expressar o que sente. Nesse caso, a arte fica limitada exclusivamente a um
conteúdo objetivo, que tem de ser adequado, por sua vez, ao trabalho do artista
que copia com fidelidade as formas dos objetos.
A definição de maneira, termo que caracteriza o segundo modo de criação
artística no ensaio, tem como ponto de partida uma comparação com o
procedimento de simples imitação da natureza. De novo, o autor desenvolve seu
argumento com base no caso concreto da relação que o artista estabelece com os
seus objetos, retomando o exemplo do pintor. Mas, nesse segundo momento,
trata-se de um criador impaciente, que não se contenta “com o desenho letra a
letra do que a natureza lhe diz”. Por isso, ele inventa um método próprio para
expressar aquilo que sente, a sua impressão pessoal diante das coisas, e com isso
dá aos objetos reproduzidos formas distintas de acordo com as exigências da
expressão de seu espírito, rompendo com a exigência de fidelidade. Cada artista
que segue esse procedimento é inteiramente diferente de todos os outros, porque
não se limita à cópia direta da natureza e procura encontrar uma linguagem
própria. Enfatiza-se assim o lado subjetivo da expressão artística.
Evidentemente, o se trata aqui de um questionamento da arte figurativa,
impensável na época de Goethe, mas da identificação de um distanciamento, no
156
qual os fenômenos visíveis o apreendidos de modo mais ponderado ou mais
leve, reproduzidos de modo mais ordenado ou mais superficial, para dar expressão
ao conteúdo subjetivo (os sentimentos do artista). Assim, a maneira se diferencia
da simples imitação da natureza não por deixar de imitar, mas por deixar de ser
simples. Contudo o autor também o pretende censurar por completo esse modo
de imitação “maneirista”, que se afasta da fidelidade à natureza, embora considere
a ênfase no lado subjetivo um outro tipo de limitação da arte. Ao apontar esse
modo de imitação como o mais apropriado para os objetos que constituem uma
vasta totalidade”, com diversos objetos pequenos subordinados, Goethe na
verdade valoriza um uso bastante restrito da maneira, como que para ressaltar
aquela limitação. Ele dá como exemplo as pinturas de paisagens, em que os
detalhes devem ser sacrificados em nome da expressão geral, mais ampla, e seria
um erro se perder meticulosamente em cada objeto particular.
O estilo é definido como uma síntese dos dois modos de criação anteriores,
nos quais se enfatizavam ou o conteúdo objetivo ou o subjetivo. Trata-se de um
estágio superior, “a mais elevada conquista humana”, que o artista pode atingir
depois de passar pela etapa da imitação fiel da natureza e pelo esforço de
desenvolver uma linguagem própria que expresse os seus sentimentos. A base
para alcançar esse estágio é a familiaridade com os traços característicos das
coisas, ou seja, o conhecimento do que é essencial na natureza. Goethe defende a
idéia de que o estudo aprofundado das formas naturais permite ao artista ir além
da mera cópia, perceber uma ordem na multiplicidade das coisas e, ao reproduzir
essa ordem, revelar pela arte aquela essência objetiva que ele passa a ver. Nesse
caso, a linguagem própria desenvolvida pelo artista não está a serviço do conteúdo
subjetivo, mas da expressão de uma objetividade que não se prende às aparências.
157
O autor compara o estilo aos dois modos de imitação definidos antes, a fim
de mostrar como o terceiro termo sintetiza o que é valorizado no primeiro e no
segundo:
Se a simples imitação se baseia numa existência tranqüila e amável, se a
maneira apreende de coração leve e com talento uma aparência, o estilo
se baseia nos fundamentos mais profundos do conhecimento, na
essência dos objetos, na medida em que nos é permitido conhecê-la sob
a forma de figuras visíveis e tangíveis.
138
No que diz respeito à simples imitação, a relação comparativa é pensada a partir
do exemplo do pintor de flores e frutas. É natural que ele conheça e saiba
distinguir as rosas mais belas, para escolher o objeto apropriado ao seu trabalho,
mas essa escolha não pressupõe um conceito universal e preciso a respeito da
beleza da rosa. O artista pode aperfeiçoar sua capacidade de escolha, mantendo à
sua disposição um grande número de flores, reconhecendo as qualidades das cores
e das texturas e identificando o momento mais perfeito da floração. Mas é
quando se junta ao talento e à capacidade de escolha do objeto o conhecimento
de um botanista bem informado”, que o pintor pode formar seu estilo. Se ele sabe
reconhecer as influências das diferentes partes da flor sobre o crescimento e a
floração, se ele conhece os efeitos recíprocos das partes, as leis por trás da
aparência, pode representar não apenas o aspecto, mas as características essenciais
da rosa. Caso se distancie da forma particular do objeto imitado, ele o faz para
instruir acerca dos seus traços mais fundamentais, que fornecem um conceito mais
geral do objeto (no exemplo, a beleza da rosa).
Quanto à maneira, o autor a identifica como um “intermediário” entre a
simples imitação e o estilo, no sentido de um rompimento com a exigência de
fidelidade aos aspectos externos dos objetos naturais. Assim como o primeiro
termo, o segundo também pode ser elevado à síntese definida pelo estilo, caso se
138
Ibidem, p. 254.
158
aproxime da imitação fiel e procure exprimir não a aparência, mas os traços
característicos dos objetos por meio de uma percepção pura, ativa, de uma visão
subjetiva própria que, em vez de se afastar dos objetos, baseia-se no conhecimento
de sua essência. Enquanto a maneira em sua manifestação mais elevada se
converte em estilo quando se volta para o conhecimento objetivo, o afastamento
para o campo da subjetividade levaria a um “maneirismo vazio”.
Ao desenvolver uma reflexão sobre a imitação da natureza na arte, Goethe
retoma as questões discutidas por Winckelmann. No entanto, a princípio parece
haver um ponto de divergência, pelo fato de que a “simples imitação da natureza”
aparece como uma etapa necessária no desenvolvimento artístico, enquanto seu
antecessor opunha o caminho” da cópia, que reconhecia na pintura holandesa de
sua época, ao caminho exemplar seguido pela arte antiga. Essa diferença pode ser
considerada como uma valorização do lado objetivo da arte, o que daria a falsa
impressão de que o autor das Reflexões defende uma criação subjetiva, quando ele
na verdade também critica o maneirismo” barroco. Nesse sentido, Goethe
realmente procura mostrar que os dois modos de imitação modernos, criticados na
comparação com a arte antiga, têm sua importância e sua justificativa, seja em
campos específicos da pintura, seja como etapas no processo que leva ao nível
mais elevado de criação. Mas, se essa consideração o afasta de Winckelmann na
concepção da arte moderna, ela mantém uma afinidade mais fundamental com o
modelo da arte antiga.
Nas Reflexões, embora haja uma crítica da mera imitação, como cópia da
natureza, a investigação acerca dos artistas gregos também aponta para um
caminho de mímese, cujo ponto de partida é a observação dos corpos humanos
belos. Assim, descreve-se um processo de formação artística que parte da
159
observação e da imitação do belo na natureza, passa pela formulação de conceitos
mais gerais, para chegar ao belo universal” e às imagens ideais das divindades,
representadas nas esculturas antigas. Goethe define uma relação entre arte e
natureza que se aproxima desse modelo antigo: a simples imitação se eleva ao
estilo por meio do conhecimento do que é essencial; a maneira rompe com o
caminho da cópia, em nome da expressão de conceitos mais universais, e
desenvolve a linguagem própria do artista; o estilo sintetiza as duas vias, dando
expressão plena ao que é essencial na natureza de modo único, segundo uma
linguagem universal e o estudo aprofundado dos objetos.
A visão de conjunto das diferentes configurações, a capacidade de
reproduzir os traços essenciais sem ficar preso às aparências permitem que o
artista revele a essência dos objetos que ele reproduz por meio de uma
composição precisa, significativa. Ao estudar a escultura antiga e defender sua
exemplaridade, Winckelmann definira a essência revelada pela arte como o “belo
universal”, que ganhava expressão com base no processo de observar e imitar o
belo nos corpos particulares (objetos da escultura). Embora exemplos da
pintura moderna, o ensaio de Goethe remete indiretamente a esse processo
identificado na arte antiga, em termos da relação entre arte e natureza, ou melhor,
da defesa de uma imitação que abandona a exigência de fidelidade para conquistar
uma expressão mais elevada. Posteriormente, o autor apontará obras de arte
gregas (o Laocoonte é o melhor exemplo) como modelos perfeitos de criações
realizadas com estilo, ressaltando o vínculo com o Classicismo de seu precursor.
Mas, com essa referência, o se elabora uma reflexão renovada sobre a arte
moderna, como também se valoriza a noção inteiramente nova da arte como
conhecimento.
160
3.2. O projeto classicista
A revista Propileus, fundada em 1798 e dirigida por Goethe, Schiller e Meyer,
tinha o objetivo de apresentar as concepções estéticas do grupo de Weimar,
ligadas a uma defesa do modelo clássico. Lançada justamente no mesmo período
em que nascia, na vizinha Jena, o movimento romântico, a revista o teve uma
boa repercussão, por isso foi cancelada em 1800 após a publicação de apenas seis
números. Na “Introdução” incluída no primeiro número de Propileus, o sentido do
título é explicado com a seqüência de sinônimos: “o portal, a entrada, o vestíbulo,
o espaço situado entre o interior e o exterior, a meio caminho entre o mundo
sagrado e a realidade comum”.
139
Evocando também “as construções que levavam
ao santuário de Atenas, ao templo de Minerva”, o termo escolhido indica que esse
“mundo sagrado” ao qual o leitor terá acesso é o mundo do “povo que possuía por
natureza a perfeição”, no seio do qual a cultura se desenvolveu “segundo uma bela
e contínua evolução”. Como tinha ensinado Winckelmann três décadas antes, o
modelo dos gregos antigos era assumido como tema de reflexão, visando à
formação dos artistas alemães modernos e ao conhecimento teórico da arte em
geral.
O helenismo constitui, assim, um traço fundamental do projeto clássico
formulado pelos escritores de Weimar, que pretendiam divulgar na revista os
resultados de seus estudos, como uma proposta voltada para o aprendizado e a
crítica. Anunciando claramente o projeto classicista, Goethe, o autor da
introdução, pergunta “qual a nação moderna que não deve aos gregos sua cultura
artística?” e, em seguida “onde está aquela que a deve mais do que a nação alemã,
139
GOETHE. “Introduction aux Propylées”. Em: Écrits sur l’art. Op. cit., p. 149. Citado a partir
da tradução francesa, p. 143.
161
ao menos em certos domínios?”. Fica evidente, por trás dessas perguntas, o
“lema” winckelmanniano: “É preciso imitar os gregos para nos tornarmos
inimitáveis”, dirigido aos artistas da Alemanha. Ainda mais quando o autor da
introdução ressalta, com ponto de exclamação, o objetivo de se afastar o menos
possível da “terra clássica”, um propósito a ser recordado sempre pelo próprio
título da revista.
Nessa introdução, Goethe não só explicita como também justifica o caráter
coletivo do projeto classicista. Ele fala em nome do grupo de Weimar:
“Esperamos despertar o seu interesse por nossa revista, que conterá observações
sobre a natureza e a arte, expostas por um grupo de amigos unidos de maneira
harmoniosa”. É justamente essa harmonia” existente entre os autores que
evidencia o fato de não se tratar de uma experiência isolada, mas de um projeto
em conjunto, baseado no “interesse comum de uma contínua formação espiritual”.
O autor defende a vantagem dessa formação conjunta, como a posse de princípios
que uma longa experiência consolidou, e que por isso não podem ser
enfraquecidos pela dúvida e pela inquietude de uma experiência isolada, no
confronto com opiniões contrárias. Reunindo ensaios do grupo que compartilha
dos mesmos princípios, a intenção mais direta da revista era apresentar a troca de
idéias entre “amigos que procuram adquirir uma formação nos domínios da arte e
da ciência”, tendo em vista a divulgação mais ampla dessa troca, a abertura do
diálogo para o público.
Na base dessa intenção de divulgar as idéias do grupo de Weimar, duas
questões a ressaltar: a defesa de uma reflexão dialógica e a integração entre arte e
ciência. Quanto à primeira questão, a justificativa de uma reflexão conjunta, em
diálogo com outros escritores, pode ser vista como uma característica da teoria
162
goethiana e uma faceta de sua crítica da subjetividade e do individualismo
dominantes em sua época. O teórico da literatura Tzvetan Todorov chama a
atenção para esse aspecto, indicando que se trata de uma lição apresentada no
romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1796), cujo protagonista
segue um longo caminho de formação e encontra, na convivência e no diálogo
com outros indivíduos “formados”, uma via para superar o seu isolamento e o
caráter fragmentário de seu pensamento. Tal lição é formulada por Todorov nos
seguintes termos: “apenas a humanidade pode ser plena, inteligente, perfeita; o
homem isolado está condenado à incompletude”. Para expor a concepção de
Goethe a esse respeito, ele cita uma afirmação feita em carta a Schiller: “Se a
natureza é insondável, é porque um homem singular é incapaz de abarcá-la por
inteiro sozinho, mas a humanidade considerada como um todo é perfeitamente
capaz”.
140
A relação entre a arte e a ciência também constitui, para Todorov, um
aspecto marcante da teoria da arte de Goethe. A princípio, a dedicação do escritor
às investigações científicas pode parecer contrastante, ou no mínimo inteiramente
distinta de sua atividade poética. Tradicionalmente, ciência e arte não se associam,
seja porque se relega esta ao campo subjetivo, como expressão dos sentimentos,
enquanto aquela expressa verdades objetivas, seja pela oposição de forma e
conteúdo, de aparência e essência, que se consagrou na teoria do conhecimento.
Nesse caso, é de se estranhar não a capacidade de conjugar as duas ocupações
por longos períodos, sem que uma delas provoque a interrupção da outra, como
também a grande importância que um poeta e escritor consagrado dava a seus
140
TODOROV. “Goethe sur l’art”. Em: GOETHE. Écrits sur l’art. Op. cit., p. 54. A carta citada é
de 21/02/1798.
163
estudos científicos, a ponto de considerá-los às vezes mais relevantes do que suas
obras literárias.
Seria possível questionar os propósitos e os méritos de Goethe no campo
da ciência, com base no desenvolvimento dos diversos ramos científicos que ele
estudou, uma vez que eles seguiram um rumo divergente de suas propostas,
marcado pela crescente especialização das ciências. Com isso, talvez se pudesse
mostrar uma interferência de sua concepção poética na pesquisa naturalista, como
algo que talvez o tenha impedido de ser um cientista nos moldes convencionais.
Mas também um outro caminho para explicar a conjugação de arte e ciência, a
partir não das teorias científicas do autor, mas de sua concepção teórica da arte. É
como um defensor do conhecimento objetivo e um crítico do subjetivismo na
filosofia e na poesia que ele reflete sobre a criação artística, o que indica, no lugar
de uma ruptura entre poesia e ciência, uma afinidade mais profunda que é
identificada tanto no processo de criação artística quanto em seu aprendizado no
campo da arte a que se dedica. No entanto, essa afinidade não pode ser confundida
com uma semelhança da arte com a natureza, caso contrário ela cairia na simples
imitação, apontada pelo autor como uma etapa inicial no caminho que leva ao
nível mais elevado do estilo. Em outras palavras, a afinidade com o conhecimento
científico da natureza não pode negar a autonomia da arte, no sentido de uma
subordinação das suas regras às leis naturais exteriores a ela.
Assim, quando analisa uma obra de arte, como por exemplo no texto sobre
o Laocoonte, publicado também no primeiro número da revista Propileus, Goethe
faz uma referência à natureza em três níveis. A simples imitação do aspecto
externo aparece como uma primeira relação que, sob uma ótica crítica, precisa ser
aprofundada; no segundo nível, trata-se da importância do conhecimento
164
“científico” do objeto natural (no caso, o conhecimento anatômico do corpo
humano), a partir da observação e do estudo, para a criação artística; no terceiro, o
que se descreve é a composição da obra de arte como um todo “orgânico”, ou seja,
um conjunto no qual as partes se integram de modo harmonioso, assim como nos
organismos naturais. O conhecimento objetivo aparece como uma condição para
que o artista supere o vel da simples imitação, sem abandonar a objetividade, a
fim de produzir uma obra que não só ressalta os traços essenciais do objeto
imitado, produzindo um conhecimento a seu respeito, como também é composta
organicamente, da mesma maneira que os seres naturais.
Embora não haja uma referência direta neste sentido, a constatação de uma
afinidade “orgânica” no terceiro nível da relação da arte com a natureza pode
remeter a uma comparação clássica, feita por Aristóteles em pelo menos duas
passagens da Poética, cuja leitura é mencionada por Goethe diversas vezes. Uma
das passagens do filósofo diz respeito à definição do belo, no contexto de uma
justificativa de que a tragédia deve constituir um todo e ter uma extensão
determinada: “o belo, ser vivente ou o que quer que se componha de partes, não
deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza [...]. Porque o belo
consiste na grandeza e na ordem...”. A segunda passagem retoma o mesmo
argumento, ao tratar da imitação narrativa e em verso: “una e completa, qual
organismo vivente”.
141
Para Goethe, que aprofunda essa comparação e lhe um
sentido novo ao estabelecer uma relação com o conhecimento científico, a beleza
de uma obra de arte perfeita, como o Laocoonte, está ligada à sua composição
orgânica, na qual as diversas partes se encontram em harmonia segundo o
ordenamento que o artista lhes dá.
141
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo, Ars Poetica, 1992, § 44
(1450 b), p.47 e § 147 (1459 a), p. 121.
165
A tripla referência à natureza pode ser esclarecida a partir da teoria do
estilo, caso se considere que o conhecimento objetivo aparece como um ponto de
partida para a atividade criadora e que, ao aprofundar sua concepção inicialmente
restrita à aparência exterior, entendendo o processo de criação que resulta no
objeto a ser imitado, o artista pode revelar algo de mais essencial, algo que não se
manifesta no aspecto visível. Mas essa expressão depende também de um domínio
da linguagem própria da arte, ou seja, depende da capacidade de criar um todo
orgânico e harmonioso com os recursos à disposição em cada domínio específico
da criação artística. Nos termos da teoria do estilo: a simples imitação, fiel ao
aspecto visível dos objetos naturais, só pode expressar com maior ou menor
perfeição a beleza natural desses objetos; a maneira, desenvolvendo uma
linguagem própria, revela o sentimento sem dar a conhecer o lado objetivo;
apenas o estilo sintetiza objetividade e subjetividade, constituindo a formulação
única, na linguagem artística, de um conhecimento da essência do objeto. A obra
de arte possui, assim, uma beleza própria, que é definida como um todo unificado
e harmonizado pelo ordenamento das partes, possuindo assim uma afinidade com
o belo natural. Mas essa beleza é obtida por meio de uma composição artística que
não reproduz fielmente o objeto imitado, justamente para expressar a sua essência
de modo pleno, com uma perfeição ideal. Assim, a afinidade só aparece quando se
abandona o nível da semelhança.
Na “Introdução aos Propileus”, Goethe retoma os argumentos de seu texto
“Simples imitação da natureza, maneira, estilo”, ao descrever a relação que o
escultor deve ter com a figura humana, objeto que não pode ser totalmente
compreendido apenas pela observação de seu exterior. Nesse contexto, o autor
afirma:
166
Se quisermos contemplar e imitar a bela totalidade unificada que se
apresenta diante dos nossos olhos em ondulações vivas, é preciso
desvelar o seu interior, distinguir suas diferentes partes, tomar nota das
ligações entre elas e conhecer suas diferenças, é preciso se instruir acerca
dos efeitos e reações, impregnar-se do que se esconde e constitui o
fundamento da aparição exterior.
142
O objeto não se oferece ao artista como mera aparência exterior, mas como
uma bela totalidade unificada”, um todo orgânico que precisa ser estudado e
conhecido a partir da relação e das diferenças entre suas partes. Sem tal
conhecimento, a arte se restringe ao nível da simples imitação da natureza,
portanto a uma visão limitada ao aspecto exterior, na qual não se revela nada de
essencial. Neste sentido, a afirmação do autor de que “vemos somente o que
conhecemos” define a atividade do artista, que precisa conhecer o objeto para ver
o que constitui sua essência, ou seja, para realmente vê-lo, porque a perfeição da
contemplação se baseia no conhecimento. A compreensão do objeto como um
todo orgânico possibilita que o artista, em vez de simplesmente imitar, componha
uma obra igualmente orgânica, concebida como um todo cujas partes se
encontram em harmonia. É exatamente assim que Goethe descreverá e analisará o
Laocoonte, no ensaio incluído na revista, após a introdução na qual ele conclui:
“Um artista que conhece a história natural desvenda os objetos com perfeição
porque é capaz de reconhecer e enfatizar os elementos importantes e significativos
que dão ao todo seu caráter”.
Em vez de tratar especificamente do corpo humano, o autor se refere à
história natural, já que sua conclusão não se restringe ao caso específico da
escultura, embora esse domínio artístico seja tomado como exemplo para a
reflexão. A descrição do processo de criação da escultura pode ser considerada,
em linhas gerais, como uma apropriação da teoria de Winckelmann. Assim como
142
GOETHE. “Introduction aux Propylées”. Op. cit., p. 149.
167
seu precursor, Goethe fala de uma visão de conjunto, que constitui a condição
para se elevar às idéias e apreender o parentesco entre os objetos aparentemente
desvinculados. A “anatomia comparada prepara o terreno para um conceito geral
das naturezas orgânicas”. Nas Reflexões, o mesmo raciocínio está ligado a outros
termos, pois se refere exclusivamente aos artistas gregos, que partiam da
observação e da comparação das partes do corpo humano para formar conceitos
gerais da beleza, com base num modelo de natureza espiritual, numa idéia de
perfeição. Assim, na Introdução aos Propileus, uma apropriação e um
deslocamento da reflexão de Winckelamann. Nesse deslocamento, por um lado
não se trata dos artistas gregos, mas daqueles artistas de qualquer época que
chegam ao vel do estilo; por outro lado, o conceito geral da beleza se refere ao
caráter orgânico das obras, talvez retomando uma comparação aristotélica, e se
baseia no conhecimento objetivo da natureza.
A “anatomia comparada”, denominação mais científica da comparação
entre os corpos observados, preconizada nas Reflexões, também conduz de uma
forma a outra, para que a contemplação de naturezas mais ou menos aparentadas
possibilite uma elevação acima de todas as formas, “a fim de ver suas
características numa imagem ideal”. O processo de elevação a partir da
observação das formas particulares até a formulação do ideal é idêntico ao
descrito por Winckelmann, mas a versão de Goethe parece mudar o foco da
discussão. Em vez de descrever esse processo no contexto da imitação da natureza
por parte dos gregos, ele o propõe como parâmetro para os artistas de seu tempo,
falando na primeira pessoa do plural. Nesse caso, a retomada do autor das
Reflexões não visa a corrigi-lo, mas a defender a exemplaridade da relação entre
natureza e arte descrita naquele contexto da Antigüidade. Para usar os próprios
168
termos do precursor do projeto anunciado na Introdução aos Propileus”, o foco
muda da “imitação da natureza” para a imitação dos antigos”, como uma
aplicação direta do projeto clássico winckelmanniano.
Ainda na primeira pessoa do plural, que pode caracterizar tanto o grupo de
Weimar, especificamente, quanto os artistas modernos em geral, o autor da
introdução afirma que podemos “rivalizar com a natureza” em nossas
atividades artísticas caso saibamos apreender o modo como ela produz suas obras.
Assim, ele recomenda por exemplo o estudo da mineralogia, tanto para o pintor e
para o escultor, quanto para o arquiteto. Ampliando o conselho, o que se propõe é
ter um conhecimento aprofundado da natureza, especialmente dos objetos que
serão imitados, para então ser capaz de “desvendar” tais objetos e enfatizar seus
traços essenciais. Essa proposta pode ser lida quase como uma descrição e uma
justificativa da formação do próprio Goethe, que procura explicitar sua concepção
da afinidade existente entre a atividade artística e a científica. Mas, no contexto da
teoria da arte, essa justificativa implica acima de tudo uma reflexão sobre a
mímese, ou seja, sobre a relação entre arte e natureza, tanto no nível da
semelhança quanto no nível da afinidade baseada na noção de orgânico.
A comparação entre a arte e a natureza é muito significativa, porque
ressalta a questão da relação entre o belo artístico e o belo natural, um problema
decisivo na estética do século XIX, como indicaria Hegel, na Estética, para
contestar a concepção tradicional de uma superioridade do belo na natureza (que
tinha marcado, por exemplo, as concepções estéticas de Kant).
143
Quanto a essa
questão estética específica, Winckelmann pode ser considerado como um dos
primeiros defensores da superioridade do belo artístico, quando fala de uma
143
Ver HEGEL. “Relações entre o belo artístico e o belo natural”, em : Estética. Op. cit., p. 85, 86.
169
perfeição ideal obtida nas esculturas gregas das divindades e impossível de
encontrar na natureza. Goethe segue essa indicação, embora o aborde o
problema diretamente, revelando uma posição diferente da de seu precursor ao
tratar de uma rivalidade da criação artística com a natureza. Ele procura ressaltar a
autonomia da arte, que precisa deixar de ser fiel (simples imitação) aos objetos
visíveis, e identifica ao mesmo tempo uma afinidade de outro nível, com base no
conhecimento da totalidade orgânica. A obra de arte vai além da forma natural
bela, para ter uma beleza mais essencial que só pode ser aprendida pelo
conhecimento dos processos naturais de formação. Assim, o que ele defende é o
equilíbrio entre o belo natural e o artístico, nesse nível mais profundo.
O ideal clássico de Goethe, que fala em nome do grupo de Weimar no qual
se incluem também Schiller e Meyer, baseia-se sobretudo nas idéias de
Winckelmann. Mas as considerações feitas na “Introdução aos Propileus” se
afastam das que foram formulada nas Reflexões sobre a imitação das obras
gregas na pintura e na escultura principalmente pela valorização do
conhecimento científico da natureza, no lugar de uma tematização do belo na
Antigüidade. Se, no livro de 1755, a beleza exemplar da arte antiga era definida
segundo o duplo caráter de nobre simplicidade e calma grandeza” dos gregos, na
introdução da revista de 1798 a arte mais elevada é considerada como
conhecimento, como síntese da autonomia e da objetividade, de modo que a
questão da beleza fica submetida à noção “científica” do organismo. É o que
Todorov denomina uma estética orgânica” em sua introdução aos Escritos sobre
a arte.
144
144
Ver TODOROV. “Goethe sur l’art”. GOETHE. Écrits sur l’art. Op.cit., p. 38.
170
3.3. Antigos e modernos
Na “Introdução aos Propileus”, a relação entre arte e natureza é abordada a partir
de duas perspectivas distintas. Na primeira, trata-se propriamente da imitação da
natureza, no sentido de uma reivindicação do conhecimento objetivo mesmo
quando se abandona o nível da simples imitação. a segunda perspectiva diz
respeito à questão da autonomia e da superioridade da arte em relação ao aspecto
externo do objeto imitado, quando o artista ressalta o que esse objeto tem de
significativo e instila” nele o seu valor mais elevado. Assim, a obra de arte pode
ter proporções mais harmoniosas e formas mais nobres do que as do corpo
humano, pode ter uma regularidade, um caráter significativo, uma perfeição que o
objeto natural não tem, características que dão à arte uma beleza superior, na qual
se descobre por fim uma afinidade mais profunda com o mundo orgânico. Essa
possibilidade que o artista tem de ir além da forma natural está ligada tanto à
escolha das matérias apropriadas, fornecidas pela natureza, quanto ao tratamento
dado a essas matérias. O autor da introdução divide em três partes a elaboração
artística do objeto: o tratamento espiritual, o tratamento sensível e o tratamento
mecânico. O primeiro tipo diz respeito à elaboração do objeto em sua coerência
interna, descobrindo seus elementos subordinados; o segundo tipo está ligado à
apresentação da obra aos sentidos, como algo que agrada e chama a atenção; o
terceiro, o tratamento mecânico, refere-se ao material utilizado, que deve ser
trabalhado pelo artista segundo suas intenções.
Mas a relação entre arte e natureza, ou seja, a questão da mímese, não
constitui o único tema elaborado na introdução de Goethe para a revista que
deveria apresentar o projeto do Classicismo de Weimar. Um outro problema
discutido no texto é a relação entre antigos e modernos, numa retomada da crítica
171
às tendências artísticas contemporâneas em nome de um modelo superior,
procedimento que caracterizava o Classicismo desde Winckelmann. A defesa do
modelo dos gregos (chamados, na “Introdução aos Propileus”, de “povo que
possuía por natureza a perfeição”) esteve sempre ligada a uma identificação da
decadência da arte moderna e da necessidade de seguir um outro caminho, melhor
e mais verdadeiro. Goethe retomaria a mesma questão vários anos depois, em “O
antigo e o moderno” (1818), ensaio publicado em Sobre arte e Antigüidade, um
novo veículo de divulgação do projeto classicista de Weimar. Ao contrário do que
o título desse pequeno ensaio sugere, seu tema o é propriamente uma
comparação sobre épocas históricas, mas uma reflexão sobre as condições
favoráveis ou desfavoráveis para a criação artística. Assim, é retomada a questão
do condicionamento histórico, da vinculação da arte à sua época e à sua
nacionalidade que pode ser considerada uma herança de Herder –, no entanto
essa retomada se volta para uma consideração sobre a formação artística e sobre o
domínio particular da vida dos grandes artistas.
O ensaio tem um caráter dialógico, que o autor toma como ponto de
partida duas afirmações escritas por Karl Ernst Schubart (1796-1861) a seu
respeito, uma delas discordando da posição dos “admiradores dos antigos”, entre
os quais o próprio Goethe é incluído, outra que o compara a Shakespeare, dando
preferência ao escritor inglês. A intenção anunciada no início do texto é esclarecer
o seu elogio aos antigos, mostrando-o não como uma oposição aos modernos, mas
como uma via de conciliação. Em sua resposta ao “jovem amigo”, Goethe faz uma
reflexão autoral, tanto no sentido dessa referência à sua própria obra, quanto no
sentido de valorizar a situação pessoal dos artistas como uma condição para a
criação. Ao comparar as duas afirmações citadas, a que se opõe aos admiradores
172
dos antigos e a que prefere Shakespeare, ele procura solucionar a divergência em
relação à postura classicista da primeira com base na comparação de seu talento
com o do poeta que influenciou sua produção na época do pré-Romantismo. A
solução é entender a comparação entre as épocas com base na comparação entre
os poetas : “...é precisamente nesse ponto em que ele identifica minha
desvantagem em relação a Shakespeare que nós temos uma desvantagem em
relação aos antigos”.
145
O ponto em questão é o elogio do talento inconsciente de si mesmo”,
identificado no dramaturgo inglês, capaz de revelar com naturalidade a verdade e
os erros humanos “sem recorrer ao raciocínio, à reflexão, às sutilezas, à
classificação”, enquanto o escritor alemão teria a mesma intenção, mas sempre
lutando com a tendência oposta. Trata-se, portanto, de um elogio do gênio e de
uma crítica da interferência da reflexão abstrata na criação artística. Noções com
as quais o próprio Goethe concorda inteiramente. Sua justificativa da
desvantagem que ele mesmo tem diz respeito à contradição entre o
desenvolvimento do artista e sua época, cujas circunstâncias não lhe são
favoráveis e impõem diversos obstáculos, levam a diversos erros. Haveria épocas,
como a de Shakespeare (retomando assim um argumento do texto de Herder do
período pré-romântico), que permitem ao artista se formar com facilidade e criar
sem resistências e obstáculos.
No entanto, apesar de sua referência à questão histórica e à diferença entre
antigos e modernos, o autor está mais interessado em pensar as condições
particulares e pessoais que influenciam a criação artística em qualquer época. Ele
explicita essa intenção:
145
GOETHE. “Antik und modern”, em: Vermischte Schriften. Op. cit, p. 313. Ver também Écrits
sur l’art. Op.cit., p. 268.
173
Abandonemos então o antigo e o moderno, o passado e o presente e
digamos de uma maneira geral: toda produção artística nos transpõe a
uma disposição que era a do autor. Se ela era serena e leve, s nos
sentiremos livres, se era pesada, difícil e cheia de apreensões, nos
oprimirá igualmente.
Trata-se aqui, não da matéria ou do conteúdo, mas do tratamento artístico,
do desenvolvimento próprio de cada artista em sua relação com as circunstâncias
em torno dele. Essa questão é esclarecida por meio de uma comparação exemplar
entre os grandes artistas do Renascimento: Rafael, Michelangelo e Leonardo da
Vinci. O primeiro desenvolveu seu gênio no contato com os outros dois, que por
sua vez não tinham chegado realmente, “durante suas longas vidas, a alcançar a
verdadeira satisfação da atividade artística, apesar do desenvolvimento supremo
de seus talentos”. Segundo Goethe, Leonardo da Vinci ficava extenuado pela
reflexão e sofria diante das dificuldades técnicas, enquanto Michelangelo se
torturava durante seus melhores anos em busca dos blocos de mármore, em vez de
trabalhar para nos deixar um número muito maior de obras-primas. Em
contrapartida, Rafael tinha condições favoráveis para o desenvolvimento de sua
arte, por isso a exerceu durante a vida toda com facilidade, alcançando um
equilíbrio entre sua atividade e sua situação de vida.
O exemplo de Rafael é um exemplo do Classicismo, em seu sentido mais
pleno, como o autor define claramente:
Ele nunca imita a maneira dos gregos e, no entanto, ele sente, pensa e
age como um grego. Estamos em presença do talento mais maravilhoso,
e ele se desenvolveu numa época que foi tão favorável à arte quanto, em
condições e circunstâncias aparentadas, a Grécia de Péricles.
146
Assim, o que Goethe pretende definir em seu ensaio de 1818 é o equilíbrio entre
natureza e arte, entre as condições históricas ou pessoais e o desenvolvimento do
artista talentoso. Em tal consideração, a Grécia clássica aparece, assim como a
146
Ibidem, p. 315.
174
Itália renascentista, como uma condição especialmente favorável para a formação
e a criação artísticas, que possibilita o desenvolvimento dos maiores gênios. A
arte desses períodos possui, sob tais condições, uma clareza na maneira de ver,
uma serenidade na percepção, uma facilidade de comunicação que se revelam
como ideais para a criação artística de qualquer época. Ao identificar a arte grega
como a fonte original e mais rica desse equilíbrio entre o desenvolvimento
artístico e as condições naturais e históricas, Goethe reforça a noção de sua
exemplaridade. Mas, nessa reflexão autoral, ele chama a atenção para o
desenvolvimento único de cada artista em sua época, definindo o ideal na
exortação que conclui sua argumentação sobre antigos e modernos: “Que cada um
seja um grego à sua maneira! Mas que o seja!”
Comparativamente, a “Introdução aos Propileus” elabora uma reflexão
mais abrangente sobre a questão dos antigos e modernos do que a do texto
posterior, que relativiza a comparação histórica em nome de uma valorização do
caráter autoral. Naquela introdução, o autor identifica um afastamento, por parte
dos artistas modernos, nórdicos, alemães, em relação aos antigos, àqueles que
continuam a ser chamados de mestres. Como o texto está voltado para a formação
artística, o que ele ressalta é a dificuldade que um artista do norte da Europa tem,
em comparação por exemplo com um italiano, de apreciar e compreender as
obras-primas da Antigüidade, por mais que as reconheça como modelos de
perfeição. Assim, o afastamento do modelo em que a arte moderna se espelha
levaria a uma decadência, provocada antes de tudo pela falta de conhecimento e
de estudo, no caso dos artistas alemães em particular. Essa consideração crítica
tem a intenção abrangente de definir em que consiste exatamente a decadência dos
175
modernos, acentuada na Alemanha, a fim de mostrar o que eles precisam aprender
dos antigos.
4. Schiller e a teoria da arte moderna
4.1. A repercussão de Schiller
Com a peça Götz von Berlichingen (1772) e o romance Os sofrimentos do jovem
Werther (1774), Goethe foi o maior expoente do pré-Romantismo em sua primeira
década, mas ele começava a se afastar dos princípios e ideais pré-românticos
quando Os salteadores, a primeira obra do jovem Schiller, começou a fazer
enorme sucesso na Alemanha. Desde a sua primeira montagem, de 1782, em
Mannheim, a peça foi recebida com entusiasmo tanto pelos estudantes mais
exaltados quanto pelas damas da corte, tanto pelos acadêmicos quanto pelo
público burguês em geral. Desse modo, assim como o autor de Götz von
Berlichingen, o novo dramaturgo que se destacava tornou-se desde jovem um
escritor reconhecido e um marco para o Sturm und Drang, a ponto de ser
considerado pelos críticos da época como um Shakespeare nacional.
Franz e Karl Moor, personagens de Os salteadores, marcaram época, o
primeiro como vilão que é um dos mais analisados personagens do teatro alemão;
o segundo como herói burguês que se rebela contra as condições sociais e acaba
desperdiçando sua grandeza à frente de um bando de salteadores. O caráter
indomável, selvagem, tanto no conteúdo quanto na forma da peça, escrita em
prosa, expressava o espírito do Sturm und Drang e os traços da indignação do
próprio escritor. Filho de um dico militar da cidade de Marbach, no sul da
Alemanha, Friedrich Schiller (1759-1805) sempre enfrentou restrições severas
pelas posições que defendia em seus escritos. A partir dos treze anos, ele tinha
176
freqüentado a escola militar fundada em Stuttgart pelo duque Karl Eugen; aos
vinte e um, quando já era formado em medicina e servia no regimento de
Stuttgart, sua primeira peça foi encenada em Mannheim. Por ter assistido sem
permissão à montagem de Os salteadores, o escritor foi preso por quatorze dias e
proibido pelo duque de trabalhar em qualquer escrito que o tratasse de
medicina.
147
Depois da grande repercussão dessa primeira peça, no período tumultuado
pelo abandono de Stuttgart e da profissão de dico militar, Schiller escreveu em
Mannheim mais duas peças em prosa, ainda muito marcadas pelos ideais do pré-
Romantismo: A conspiração de Fiesco em Gênova (1784) e Intriga e amor
(1785). Mas com Dom Carlos (1787), primeira peça que adotou a métrica usada
na fase clássica do dramaturgo, esses ideais foram postos em questão. Nesse
período, o autor começava a se consolidar como um dos nomes mais importantes
da literatura alemã, não só como dramaturgo, mas também como historiador,
ensaísta e poeta lírico. Os estudos iniciados para a preparação de Dom Carlos
resultaram em seus primeiros escritos históricos, nos quais trabalhava ainda em
1787, quando, ao visitar Weimar e Jena, conheceu Herder, Wieland e todo o
círculo influenciado por Goethe. Dois anos depois, Schiller foi nomeado professor
de história e filosofia na universidade de Jena, por indicação do próprio Goethe,
que tinha acabado de voltar da Itália, mas os dois escritores mantiveram uma
distância cheia de reservas por muito tempo. Logo após a mudança para Jena e o
casamento de Schiller com Charlotte von Legenfeld, foi diagnosticada a
tuberculose que, a partir de 1790 até a sua morte em 1805, tornou a saúde do
escritor extremamente delicada. Vários relatos testemunham o enorme esforço de
147
Para maiores informações a respeito, ver: KOOPMANN, Helmut. Friedrich Schiller I (1759-
1794). Stuttgart: J. B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966, p.4-19.
177
superação das limitações físicas decorrentes da doença para, abandonando quase
todas as ocupações sociais, dedicar-se com afinco a terminar as muitas obras
escritas nesse período. Em suas considerações biográficas, Butler chega a afirmar
que o escritor provavelmente sabia que seus dias estavam contados, até por ser
formado em medicina, e “vivia exclusivamente” em seus pensamentos, como se
pudesse “pôr os ideais no lugar da realidade”.
148
De 1791 a 1796, Schiller praticamente abandonou a produção teatral e se
voltou para teoria estética, os estudos históricos e a filosofia, produzindo seus
escritos teóricos mais importantes. A leitura da Crítica do Juízo, de Kant,
publicada em 1790, influenciou de modo decisivo todo o desenvolvimento de suas
teorias na área de estética, enquanto seu trabalho como historiador orientava-se
para o passado da Alemanha. No começo de 1791, ano em que se dedicou ao
estudo da terceira Crítica, Schiller teve de abandonar suas atividades por algum
tempo em função da grave doença recém-diagnosticada, mas retomou o trabalho
como escritor e professor após uma viagem de tratamento a Karlsbad. Suas aulas
se relacionavam ao trabalho no longo texto A história da Guerra dos 30 Anos”
(que posteriormente seria a base para a trilogia teatral Wallenstein), e as
conferências filosóficas foram acompanhadas pela publicação de “Acerca da razão
por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792), “Acerca da arte trágica” (1792) e
“Sobre graça e dignidade” (1793), entre outros ensaios.
149
Cada vez mais, os
temas provenientes do estudo de Kant foram elaborados no contexto de uma
reflexão estética, voltada para o questionamento da autonomia da arte e da sua
relação com o Estado, o indivíduo e a vida moral. Especialmente dois de seus
148
BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge, University Press, 1935, p.
177.
149
Sobre os estudos históricos de Schiller, ver KOOPMANN, Helmut. Op. cit., p.73-86. Sobre os
escritos filosóficos, ver p. 95-97.
178
trabalhos tiveram uma repercussão inestimável para a literatura e a filosofia da
arte posteriores, figurando entre as principais obras da estética alemã de sua
época: Cartas sobre a educação estética do homem (1795) e Poesia ingênua e
sentimental (1796).
Depois de publicar esses dois tratados, Schiller voltou a se dedicar à
dramaturgia e produziu aquelas que são consideradas por muitos comentadores as
suas obras-primas, a trilogia Wallenstein (1797-1799), Maria Stuart (1800), A
noiva de Messina (1801) e Guilherme Tell (1802). O desenvolvimento teórico das
reflexões de Schiller sobre a tragédia, nos anos anteriores, fundamentou essa
última fase de sua produção poética, bastante diversa daquela que gerou Os
salteadores. Embora alguns temas centrais permaneçam em questão ao longo de
toda a obra do escritor, percebe-se uma mudança de abordagem desses temas,
como o Estado e a liberdade. Walter Benjamin identifica um deslocamento na
maneira como se apresenta a questão do Estado, uma vez que, nos dramas de
juventude, ele é considerado em sua relação opressiva com o indivíduo que busca
ser livre e, nos da maturidade, aparece na relação justamente com aqueles que
detêm o poder.
150
Os nobres, os príncipes, os detentores do poder têm seu destino
determinado por circunstâncias históricas. Nesse caso, a questão da liberdade não
diz mais respeito às imposições sociais em oposição à vontade individual, como
em Os salteadores, mas a uma concepção filosófica mais profunda da moralidade.
Nas peças posteriores aos estudos kantianos sobre a tragédia, o que se expressa é
um testemunho da liberdade moral do ser humano, no mundo determinado pelas
leis naturais e condicionado historicamente. Como afirma Anatol Rosenfeld, “o
pensamento teórico de Schiller se manifesta, de uma ou de outra forma, em toda a
150
BENJAMIN. “Goethe, artigo enciclopédico”, em: Dos ensayos sobre Goethe. Op. cit., p. 151.
179
sua obra dramática”, justamente porque foram suas preocupações ligadas à
produção artística que orientaram as investigações estéticas a que ele se
dedicou.
151
Embora Schiller tenha sido bastante conhecido no resto da Europa durante
o século XIX, esse reconhecimento não pode ser comparado à posição que o autor
tem na Alemanha. O centenário do seu nascimento em 1859 se converteu numa
grande manifestação no país inteiro, muito maior do que a comemoração pelo
centenário do nascimento de Goethe por exemplo. Thomas Mann relata esse fato
no texto que escreveu em homenagem aos 150 anos da morte de Schiller, em
1955, dando à conclusão dessa homenagem um conteúdo político ligado à
situação alemã no período pós-guerra.
Quando se comemorou [...] seu aniversário de cem anos, elevou-se uma
torre de entusiasmo unindo a Alemanha. Ali se oferecia ao mundo um
espetáculo que a história ainda não conhecia: o povo alemão, sempre
dividido, na mais estreita união por ele, por seu poeta. Era uma festa
nacional, como a nossa. Diante da atrocidade política, a Alemanha
dividida em duas sente-se uma só em seu nome.
152
na obra ficcional de Thomas Mann, encontram-se algumas alusões a
Schiller que servem de exemplo para ressaltar a repercussão de sua obra na
Alemanha do século XX. Entre elas, pode ser mencionada a tentativa de Tonio
Kröger, no conto homônimo, de convencer seu amigo Hans Hansen a ler a peça
Dom Carlos “...algo que ultrapassa a imaginação. algumas passagens, você
devia ver, tão belas que provocam um abalo na gente, como se algo estalasse...” –.
Há também o breve conto Hora difícil” [“Schwere Stunde”], que tem como
151
Ver ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. o Paulo: Perspectiva, coleção debates, 1977, p.
31-33. São comentadas nove peças em referência às questões teóricas do autor.
152
MANN, Thomas. “Versuch über Schiller”. em: Leiden und Grösse der Meister. Frankfurt:
Fischer Verlag, 1982. p. 450.
180
personagem o próprio Schiller, num momento em que trabalha em sua casa, com
sérios problemas de saúde, mas ardorosamente dedicado a seus escritos.
153
Assim como faz Thomas Mann no texto de homenagem a Schiller, Walter
Benjamin comenta a importância das comemorações do centenário de nascimento
em seu “Artigo enciclopédico”, chamando a atenção para a importância que elas
tiveram, em comparação com as comemorações relativas ao centenário do
nascimento de Goethe. Segundo Benjamin, a figura do segundo, muito mais
conhecido atualmente, “avançou para o primeiro plano nos anos 70 [do séc.
XIX], depois da criação do império, quando a Alemanha buscava representantes
monumentais de seu prestígio nacional”. A fundação da Sociedade Goethe sob a
proteção dos príncipes alemães e a edição Sophie de suas obras seriam indícios
desse processo.
154
Até hoje, mantendo viva essa comparação entre os dois
escritores, Schiller é considerado por muitos historiadores da literatura como o
verdadeiro poeta nacional, mais do que qualquer outro o poeta clássico da escola
alemã.
4.2. Questões estéticas
Na introdução da Estética de Hegel, lê-se uma referência a Schiller que aponta o
caráter inaugural de sua teoria da arte:
Foi um homem dotado de grande sentido artístico e, ao mesmo tempo,
de profundo espírito filosófico quem primeiro se ergueu contra as
acepção da infinitude abstrata do pensamento, do dever pelo dever [...] e
reivindicou a totalidade e a conciliação, antes de a filosofia lhes
reconhecer a necessidade.
155
153
Ibidem. “Tonio Kröger”, em Sämtliche Erzählungen. Band I. Frankfurt: Fischer Verlag, 1966,
p. 271. O conto “Schwere Stunde” se encontra no mesmo volume, p. 364-372.
154
BENJAMIN. Op. cit., p. 176.
155
HEGEL. Estética. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988, p. 56.
181
O filósofo reconhece assim o papel de precursor do poeta e dramaturgo que, em
seus ensaios filosóficos, foi um dos primeiros autores a refletir sobre a arte tendo
como ponto de partida a obra de Kant. E, enfatizando a relevância desse ponto de
partida, Hegel também reconhece que a Crítica do juízo “constitui o ponto de
partida para uma verdadeira apreensão do belo artístico” e que as obras dos
demais autores a serem comentados na Estética são “tentativas para preencher as
lacunas da concepção kantiana da arte”.
Assim, levando em conta sua base kantiana, é fácil compreender por que
Schiller foi considerado na Estética como um precursor. Suas obras teóricas são
consideradas como um primeiro esforço para, ao interpretar a terceira crítica
kantiana tendo em vista uma filosofia da arte, superar as limitações impostas pela
filosofia de Kant. Ao comentar a maneira como esse precursor se insere no projeto
de “preencher as lacunas” de Kant no campo da arte, Hegel afirma ainda que “o
grande mérito de Schiller está em ter ultrapassado a subjetividade e a abstração do
pensamento kantiano, e em haver tentado conceber pelo pensamento e realizar na
arte a unidade e a conciliação como única expressão da verdade”. Na busca de
uma união de razão e sensibilidade, arte e moral, tragédia e liberdade, os ensaios
estéticos do poeta anunciavam o projeto da filosofia idealista de superar o abismo
imposto pela filosofia kantiana entre o âmbito racional e a experiência sensível.
A base kantiana dos ensaios distanciou Schiller da concepção tradicional
da tragédia, fundamentada na Poética de Aristóteles, que marcou a reflexão
teórica do Classicismo. Mas o tema central dessa teoria feita a partir de novos
princípios era o mesmo da tradicional: a arte trágica. E o autor certamente
conhecia as concepções de Aristóteles, pelo menos indiretamente, por intermédio
182
de Lessing por exemplo, pois foi em 1797 que leu a Poética, como dá a
entender um comentário que faz a Goethe em carta de 5 de maio desse ano.
156
Assim, as definições presentes nos ensaios de Schiller podem ser
interpretadas a partir de dois propósitos distintos: repensar a poética da tragédia
(os princípios e as regras de uma forma artística, a tragédia), herdada da tradição
aristotélica; e questionar filosoficamente, com base em Kant, a liberdade na arte.
Com relação ao primeiro propósito, ao qual os textos estéticos de Schiller, como
“Acerca da arte trágica”, de 1792, parecem se restringir a princípio, a tragédia é
definida como “uma imitação poética de uma seqüência concatenada de
acontecimentos (ação completa), mostrando-nos seres humanos em estado de
sofrimento e tendo em mira suscitar a nossa compaixão”.
157
A definição, aqui, diz
respeito a dois aspectos que determinam qualquer gênero literário, a forma e o fim
sendo o primeiro subordinado ao segundo. “O fim da tragédia é a comoção; a
sua forma, imitação de uma ação que conduz ao sofrimento”. É por meio da
representação do sofrimento, em uma seqüência de acontecimentos com
sentimentos alternados, que a tragédia desperta a compaixão e nos comove.
Pode-se dizer que, como em Aristóteles, trata-se de uma mímese, ou
imitação poética, na qual estão em jogo terror (aqui interpretado como
apresentação do sofrimento) e compaixão. Mas, seguindo uma linha de
pensamento iluminista, Schiller afirma que, em comparação com a grega, a arte
moderna “goza da vantagem de ter recebido matéria mais pura de uma filosofia
mais esclarecida”, estando “destinada a cumprir essa máxima exigência e a
desdobrar assim toda a sua dignidade moral”.
158
Preocupado em escrever uma
tragédia moderna, ele considera necessário fundá-la na filosofia de sua época
156
Ver Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, p. 387.
157
“Acerca da arte trágica”. SCHILLER. Teoria da Tragédia, São Paulo, EPU, p.104.
158
Ibidem, p. 95.
183
leia-se Kant —, uma vez que a considera capaz de “emancipar” a arte, ao
esclarecer as questões da moral e da liberdade humana.
Nos ensaios escritos por Schiller, a reflexão filosófica gira em torno de
uma discussão propriamente artística acerca da possibilidade de criação e do
sentido da tragédia moderna. Ao contrário do que ocorre na cultura grega (não
emancipada, ingênua, por isso mesmo mais poética e menos filosófica), na cultura
moderna a tragédia é valorizada por sua relação com a moral: “Se temos de
renunciar para sempre a refazer a arte grega, visto que o gênio filosófico da época
e toda a cultura moderna não são favoráveis à poesia, tais momentos atuam de
maneira menos desvantajosa sobre a arte trágica, que repousa mais na moral”.
Em todo caso, se não se deve imitar os gregos, em que consiste uma
tragédia, de acordo com os parâmetros do pensamento moderno? Trata-se de
uma questão que marcou profundamente a teoria estética e a cultura alemã nos
séculos XVIII e XIX, desde o Classicismo, passando por Schelling e Hölderlin,
até chegar a Nietzsche. A resposta específica dada pela teoria estética schilleriana
tem um caráter inaugural e parece indicar uma nova via de pensamento, em
relação aos autores anteriores a ele, justamente por ter como pano de fundo as
noções estéticas discutidas por Kant na Crítica do Juízo. Por trás da interpretação
da compaixão, definida como a finalidade da arte trágica, está a noção kantiana do
sublime, que se tornaria um dos problemas centrais em quase todos os ensaios
posteriores a “Sobre a arte trágica”. Nesses, o que se questiona ainda é a tragédia,
mas as definições passarão a ter como tema o a sua forma e a sua finalidade
imediata, mas também um propósito mais elevado da arte em relação à existência
humana. Esse questionamento inclui toda uma tentativa de relacionar a arte e a
184
moral, a fim de pensar esteticamente a questão da liberdade (que a princípio se
vincula apenas à moral kantiana).
A teoria de Schiller sobre o sublime tem como ponto de partida um
princípio bastante simples e geral, que pode ser indicado pelo próprio título de um
de seus ensaios: “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792).
Muitas vezes, diante da cena de uma desgraça, de um acidente por exemplo,
não somos atraídos a observar, como também sentimos um estranho prazer. É
fenômeno comum em nossa natureza que o que infunde tristeza, temor e mesmo
horror nos atraia com irresistível magia e que, com igual força nos sintamos
repelidos e atraídos”.
159
Esse sentimento que parece estar na base do efeito que a
tragédia provoca em nós está ligado a um conflito das nossas inclinações:
enquanto a sensibilidade é atacada pela percepção da dor, uma outra faculdade
existente em nós, o sensível, mas racional, gera o prazer de uma identificação
com quem sofre e de uma contemplação serena dessa dor alheia, sem que ela nos
afete diretamente.
O conflito entre a faculdade sensível e a racional é expresso, em termos
kantianos, pelo sentimento do sublime, pensado sempre em comparação com o
belo, que por sua vez expressa uma harmonia entre razão e sensibilidade. Ao
retomar essas noções, Schiller está interessado em como elas se manifestam no
homem, ou seja, em como se revelam o belo e o sublime no caráter humano. Para
ele, os dois sentimentos estéticos estão ligados à liberdade, cada um a seu modo,
como se pode ler em um ensaio chamado “Acerca do Sublime” (1801):
O belo é uma expressão da liberdade […] mas da que nós, como
homens livres, gozamos dentro da natureza. Sentimo-nos livres na
presença da beleza porque os impulsos sensitivos se harmonizam com a
lei da razão; sentimo-nos livres na presença do sublime porque os
mesmos impulsos perdem toda a influência sobre a legislação da razão,
159
“Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos”. SCHILLER. Op. cit., p.83.
185
pois o que atua aqui é o espírito, como se não obedecesse a nenhuma lei
senão a sua própria.
160
No sublime a razão e a sensibilidade não só estão em desarmonia, como
também se contradizem diretamente, mas essa contradição nos mostra a liberdade
do homem moral em relação ao mundo sico. Ao resistir ao sofrimento de que é
vítima sensivelmente, o homem revela a faculdade racional que orienta os seus
atos. Sendo uma idéia da razão, em sentido kantiano, portanto algo de supra-
sensível”, não pode haver nem conceito nem representação positiva da liberdade,
mas ela é apresentada sensivelmente de maneira negativa e indireta, por meio da
resistência ao sofrimento. Por isso a tragédia pode ser definida como a
“apresentação sensível do supra-sensível”.
Para esclarecer de um modo menos abstrato essa definição, é preciso
retomar a idéia de que o homem é “cidadão de dois mundos”: por um lado, ser
natural submetido às forças e inclinações da sensibilidade; por outro, ser racional
caracterizado pela vontade, que lhe possibilita decidir se deve ou não seguir tais
inclinações. Se todos os seres apenas naturais agem sempre de acordo com as
necessidades impostas de fora, o ser humano se diferencia por poder, graças ao
lado racional, ou moral, intervir com sua vontade na necessidade natural, agindo
sem estar submetido às leis desta. Pode, então, por exemplo, escolher contemplar
uma manifestação violenta da natureza, capaz de destruí-lo, e se deleitar com a
grandiosidade e com a força que, fosse ele meramente guiado pela sensibilidade, o
fariam fugir em nico. Nesse caso, ele possui uma liberdade moral, que lhe
permite agir de acordo com princípios racionais e contrariar as inclinações
sensíveis, vencendo assim as forças naturais fisicamente superiores às suas.
160
“Sobre o sublime”. SCHILLER. Op. cit., p. 53.
186
Quando a violência da natureza o ameaça, opõe-se racionalmente a ela, por isso é
capaz de controlar ou prever os fenômenos que não poderia enfrentar de modo
direto. Expressando a racionalidade, “a cultura deve libertar o homem, ajudando-o
a preencher inteiramente o que ele é como conceito […], torná-lo apto a manter
sua vontade, pois o homem é o ser que quer”.
161
Mas o privilégio da vontade humana de intervir no reino das necessidades
e dos fenômenos sensíveis não diz respeito apenas à natureza exterior, que o
próprio homem também é um ser natural. Por mais que seja capaz de resistir às
violências exteriores, superando forças fisicamente superiores às suas, ele não
pode vencer a derradeira imposição da necessidade de sua própria natureza
corpórea: a morte. Todo o conceito de homem, como ser livre por meio da
vontade, é posto em questão por essa única subordinação à lei da natureza, que
anula a sua liberdade. “Esse único terror, de simplesmente ser obrigado ao que
não quer, há de acompanhá-lo como um fantasma…”.
162
Contudo, segundo Schiller, existe uma maneira de libertação que não está
ligada à cultura física, portanto não visa dominar a natureza e opor violência à
violência, ação que se mostra impossível contra a morte. Trata-se de uma maneira
“idealista”, ligada à cultura moral, na qual o autor enxerga a possibilidade de
superar o derradeiro terror ao qual o homem essubmetido enquanto cidadão de
dois mundos: “… sempre que o possa opor às forças do mundo físico nenhuma
força equivalente, e a fim de não padecer violência alguma, o lhe resta senão
anular de todo uma situação que lhe é prejudicial e destruir conceitualmente uma
violência que terá de sofrer de fato”.
161
Ibidem, p.50.
162
Ibidem, p. 50.
187
Quando nem a sua força nem a sua habilidade podem pô-lo a salvo da
perfídia da fatalidade […], feliz dele se aprendeu a suportar o que não pode
modificar e abandonar com dignidade o que não pode salvar”.
163
Mas como
aprender a suportar a dor e resistir ao sofrimento? A resposta de Schiller: por meio
da arte que, ao apresentar uma desgraça fictícia, nos põe em contato com a lei
racional que pode nos libertar, sem nos tornar indefesos como acontece com uma
desgraça real. Assim, familiarizado com a resistência ao sofrimento que lhe é
ensinada, o espírito se torna capaz de, “quando surgir uma desgraça real, tratá-la
como se fosse artificial e supremo alvo da natureza humana! dissolver o
sofrimento de verdade em uma emoção sublime”.
164
a arte consolida a força
moral do homem e pode educá-lo para a liberdade absoluta, aquela que se mantém
mesmo diante do sofrimento de que ele não pode escapar. É a capacidade de sentir
o sublime, considerada por Schiller uma das mais esplêndidas faculdades
humanas, que expressa a autonomia racional e influencia a moralidade, dando a
possibilidade “destruir conceitualmente” a morte.
Embora seja um primeiro passo na elaboração dessa teoria estética, a
discussão a partir da filosofia de Kant nos ensaios tem uma orientação mais
específica para a consideração de um gênero artístico. Enquanto esses textos
elaboram uma teoria da literatura a partir das idéias trabalhadas pelo autor, em
1792 e 1793, nos seus cursos de estética, é sobretudo nas suas cartas que Schiller
analisa de modo mais direto as questões estéticas kantianas, especialmente na
correspondência com seu amigo Körner.
Em carta a Körner de outubro de 1792, por exemplo, Schiller conta estar
mergulhado na Crítica do juízo, cujo estudo vinha sendo mencionado na
163
Ibidem, p. 66.
164
Ibidem, p. 67.
188
correspondência desde o ano anterior, e acrescenta: “Não sossegarei até que tenha
penetrado nessa matéria e que ela se tenha tornado alguma coisa em minhas
mãos”. Fica evidente, assim, a intenção de se apropriar das noções kantianas, para
pensar a partir delas. Em outra carta, desta vez a Fischenich, datada de fevereiro
de 1793, o autor esclarece sua intenção, ao afirmar que suas preleções de estética
o tinham obrigado a “conhecer Kant com tanta exatidão quanto é preciso para não
ser um mero repetidor”.
165
Aquilo que a leitura da terceira crítica se tornou nas
mãos de Schiller deveria ser apresentado, a princípio, numa obra de estética
dedicada às questões do gosto, do belo e da arte, cujo título seria Kallias ou sobre
a beleza. Como o projeto não foi levado adiante, mas suas idéias fundamentais
foram amplamente discutidas na correspondência com Körner no início de 1793,
as cartas de Schiller a seu amigo escritas em janeiro e fevereiro desse ano
passaram a ser publicadas com o título pensado para o ensaio estético.
Essas cartas retomam as questões dos cursos de estética ministrados em
Jena, a fim de apresentar um resultado independente, mesmo que pensado por
meios kantianos. Assim, embora sua reflexão seja inteiramente vinculada às
concepções da terceira crítica, o autor pensa a questão do belo de um modo
próprio, procurando uma solução “apesar de Kant”. Em resumo, sua tentativa é a
de estabelecer um princípio objetivo para o belo, a partir da constatação de que,
nos juízos estéticos, atribui-se ao objeto belo uma faculdade de determinar a si
mesmo, uma vontade, de modo que esse objeto aparece como se fosse livre. Por
isso, a beleza é definida como “liberdade no fenômeno”, estabelecendo uma
analogia entre uma característica exclusiva das idéias da razão (já que em termos
kantianos liberdade no campo da razão prática) e o âmbito sensível dos
165
As duas cartas são citados por Ricardo Barbosa, na introdução de Kallias ou sobre a beleza
(Op. cit., p. 11 e 15), na qual se encontram uma apresentação detalhada do projeto de Schiller e um
resumo de seus argumentos.
189
objetos belos. Não cabe aqui detalhar a tese defendida, nem expor os argumentos
de tal defesa, mas é importante ressaltar as linhas gerais do projeto estético de
Schiller, esse estudo que procura ir além de Kant usando as concepções kantianas.
Ainda em 1793, o escritor interrompeu seu trabalho no projeto de Kallias,
cujas idéias tinha apresentado nas cartas a Körner, para escrever outro texto
profundamente marcado pelas noções kantianas, Sobre graça e dignidade”, que
discute especificamente o belo e o sublime nas ações humanas. Depois disso, ele
abandonou aquele projeto anterior para, a partir da clareza que tinha conquistado
acerca da “natureza do belo” por meio dos estudos que resultaram nas cartas a
Körner e nos ensaios, dedicar-se a um projeto mais abrangente que teria como
tema o gosto, a beleza e a arte em termos de seu efeito sobre a formação dos
indivíduos e a cultura em geral. Esse projeto foi elaborado nas Cartas sobre a
educação estética do homem, de 1795. Logo na primeira carta desse ensaio
epistolar, no qual o autor pretende apresentar o resultado mais maduro de suas
“investigações sobre o belo e a arte”, um reconhecimento da “origem kantiana
da maior parte dos princípios em que repousam as afirmações que se seguirão”.
166
No entanto, Schiller não estava interessado em estudar diretamente a filosofia
kantiana ou discutir os argumentos da terceira crítica, mas em formular sua teoria
estética que tinha partido das concepções presentes nessa filosofia. Como
esclarece Anatol Rosenfeld, “no centro de suas indagações estéticas encontra-se,
desde logo, o problema de determinar o lugar e a função exatos da arte [...] dentro
do contexto da sociedade e dentro das virtualidades humanas.” Essas indagações
visam à elaboração de uma teoria que, “garantindo a plena autonomia da arte,
ainda assim lhe reservam uma importante função educativa na sociedade”, teoria
166
SCHILLER. A educação estética do homem. São Paulo, Iluminuras, 1990, p. 24.
190
que se baseia na fundamentação filosófica de uma ligação entre o domínio moral e
o sensível.
167
É com base na filosofia kantiana, que o autor descreve o mundo
dividido entre o âmbito sensível, determinado pela necessidade natural, e o âmbito
moral, ou cultural, que não está submetido à necessidade mas deve seguir as leis
da razão prática. Assim, a questão da liberdade aparece, a princípio, vinculada ao
mundo moral em que a vontade pode se auto-determinar. Mas, retomando a
analogia presente nas cartas a Körner e, com isso, a noção de beleza como
liberdade no fenômeno, o que o ensaio pretende é pensar a estética como uma via
para harmonizar esses dois lados antagônicos, que pela filosofia de Kant se
encontram cindidos, sem possibilidade de conciliação. Nessa reflexão, a arte surge
como uma via de educação do homem para a liberdade.
4.3. Tragédia e liberdade: o exemplo de Maria Stuart.
Se os ensaios de Schiller sobre a arte trágica podem ser considerados como um
primeiro passo na elaboração de uma estética de base kantiana, a sua obra poética
posterior a esses ensaios se revela como um exemplo da aplicação, na prática
artística, daquilo que foi formulado teoricamente. A tese central daqueles ensaios
escritos entre 1791 e 1793 é a de que a forma da tragédia é a representação
apropriada para, por meio de uma imitação poética, apresentar o sofrimento e a
resistência ao sofrimento ligado à morte. A sua finalidade é despertar compaixão:
um prazer moral na contemplação da vitória sobre a sensibilidade. A sua
influência sobre o homem é o fortalecimento da moralidade e a educação para a
liberdade, que a visão da força moral dos heróis das tragédias ensina a lidar
167
ROSENFELD. Teatro moderno. Op. cit., p. 20.
191
dignamente com os sofrimentos vividos, sem uma entrega às dores que fazem
parte da existência humana.
Mesmo nos ensaios estéticos, a arte literária de Schiller sobressai, tanto na
clareza das formulações, quanto na precisão e na apresentação de exemplos
retirados da história e da literatura. É com eles que o autor esclarece a sua reflexão
e a torna mais eloqüente. Seguindo esse mesmo procedimento, é possível
encontrar, no exemplo de uma de suas tragédias, os principais elementos que
constituem a arte trágica segundo a teoria elaborada anteriormente. Em seu
comentário sobre a maneira como a teoria da tragédia de Schiller se expressa
artisticamente na dramaturgia, Anatol Rosenfeld indicações a respeito da
apresentação poética da questão da liberdade em quase todas as suas peças.
168
Mas, entre a primeira fase do autor e a fase de maturidade, posterior ao
desenvolvimento teórico baseado no estudo de Kant, existe uma diferença que diz
respeito à concepção de liberdade apresentada. Nas primeiras peças, como Os
salteadores, ligadas à ideologia pré-romântica, o tema é o conflito do indivíduo
que tenta ser livre em relação às convenções sociais. Nas peças escritas no período
do Classicismo, o tema da liberdade ganha o sentido mais abrangente e mais
filosófico que tem como base a teoria da tragédia dos anos dedicados aos ensaios
estéticos. Formalmente, elas se aproximam dos princípios classicistas, pois m
nobres como heróis e adotam uma métrica clássica. Em A noiva de Messina
(1803), ressaltando a importância que dava nessa época ao estudo das tragédias
gregas, Schiller chega a fazer uma tentativa de retomar o coro, abandonado
mesmo no teatro clássico.
168
ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. Op. cit., p. 31-33.
192
Em geral, as peças desse período, voltadas para personagens históricos,
como Wallenstein e Guilherme Tell, poderiam ser escolhidas como exemplo para
a realização da teoria da tragédia de Schiller, porque em todas elas a questão da
liberdade constitui um tema central e não se restringe a conflitos individuais. Mas,
em comparação com as outras tragédias históricas, Maria Stuart é a obra que
possui relação mais direta com a definição teórica elaborada por Schiller, que
diz respeito à afirmação da liberdade no caso de uma prisioneira condenada à
morte. Toda a peça gira em torno da oposição entre a condição “sensível” de
aprisionamento e a dignidade moral.
Em todo caso, a interpretação das obras como exemplos do conceito de
tragédia não significa que seu autor tenha pretendido, em primeiro lugar,
desenvolver uma estética e, secundariamente, escrever obras exemplares. Ao
contrário, foi a prática artística que orientou desde o início o desenvolvimento da
teoria estética schilleriana, que tem o objetivo de esclarecer as questões da arte e
da literatura moderna para apresentá-las artisticamente com mais clareza. Assim,
embora o processo de elaboração parta da definição do conceito geral para a sua
apresentação sensível, Schiller não deve ser considerado como um filósofo que
exemplifica seu pensamento com obras poéticas, mas como um poeta que busca
na filosofia a definição mais precisa de seu tema. Nesse caso, a peça Maria Stuart
pode ser considerada como uma tentativa de “realizar na arte” aquilo que o autor
tinha concebido pelo pensamento, para usar as palavras da Estética hegeliana.
Trata-se de uma apresentação sensível do supra-sensível, como a tragédia foi
definida em “Acerca do sublime”, ou de uma apresentação artística da liberdade,
na qual Hegel identificou a intenção de mostrar “a unidade e a conciliação” do
sensível e do racional “como única expressão da verdade”.
193
No primeiro ato, a rainha escocesa Maria Stuart se encontra muitos
anos aprisionada no castelo de Fotheringhay, onde espera uma sentença que pode
condená-la à morte, sob a acusação (injusta, forjada por seus inimigos) de ter
tramado um atentado contra a vida de Elisabeth, a rainha inglesa. Os sentimentos
se alternam, mas os acontecimentos se precipitam tragicamente. Lorde Burleigh,
principal defensor da execução, chega para anunciar o resultado do julgamento.
Uma fala de Maria, fazendo referência a Elisabeth, esclarece a posição das duas
rainhas, cujo conflito constitui o tema central da peça:
Eu sou a fraca;
Ela, a forte. Pois bem, use a violência,
Sacrifique-me à sua segurança,
Mate-me! Mas confesse que tal ato
Será não de justiça e sim de força!
169
Logo na cena seguinte, depois da entrevista, o lorde declara:
Ela nos desafia [...].
E nos desafiará mesmo ao subir
Ao cadafalso. É um coração altivo,
Inquebrantável. Surpreendeu-a acaso
A sentença de morte?
No segundo ato, quando a ação se desloca para o palácio de Westminster,
vêem-se os últimos esforços para evitar que se cumpra a sentença, cuja execução
depende unicamente de uma ordem da rainha inglesa. Nesse caso, a partir da
teoria schilleriana da tragédia, pode-se considerar a execução iminente como a
forma assumida pela força superior à qual a heroína trágica está submetida.
Embora venha de uma circunstância histórica, essa força tem as figuras do
cadafalso e do executor como uma representação no mundo físico.
Mas ainda resta uma esperança, pois Maria Stuart pode contar com a
intervenção do lorde Leicester, que um dia tinha sido seu amante e agora corteja
169
SCHILLER. Maria Stuart, tradução de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1955, p. 36.
94
Elisabeth. Fazendo uso de sua influência, ele tenta promover um encontro entre as
duas, por julgar que o perdão seria concedido no caso de um pedido de clemência.
Leicester usa o artifício da lisonja para alcançar o seu objetivo, e acaba
persuadindo a rainha inglesa de que, face a face, ela humilharia a sua adversária,
tanto moralmente, pela virtude, quanto fisicamente, pelo porte. Prepara-se então a
cena central da peça, a quarta do terceiro ato, a partir da qual se desdobrará a
seqüência de acontecimentos que leva ao desfecho trágico.
A princípio, antes da situação decisiva, Maria está quase resignada,
consciente da necessidade de falar com moderação, a fim de obter o perdão. E o
estado de sofrimento em que a personagem se encontrava nos atos anteriores, para
ressaltar a sua capacidade de resistência moral, chega ao limite decisivo: diante
dela estará a única possibilidade de salvação e, ao mesmo tempo, o risco de pôr
tudo a perder.
Quando finalmente as duas se encontram, uma fala prévia de Maria
“consigo mesma”:
Seja! A mais esta provação me curvo.
Impotente altivez de uma alma nobre,
Longe de mim! Quero esquecer quem sou
E o que sofri: lançar-me aos pés daquela
Que me precipitou nesta ignomínia.
170
Ela se lança aos pés da rainha, mas a provação que esperava vem logo em seguida,
da maneira mais direta possível, quando Elisabeth lhe dirige a palavra, sempre
arrogante e acusadora, respondendo a cada fala com ofensas incisivas, até fazer a
pergunta:
que penhor responderia
Por vós, se num impulso de clemência
Vos desse a liberdade?
Para então comentar, provocativamente:
170
Ibidem, p. 90.
195
Minha única segurança está na força.
Não pode haver qualquer entendimento
Com a raça das serpentes.
Fica evidente a intenção de humilhar e desmerecer a rainha escocesa,
entremeada em suspeitas e acusações de que ela teria tramado o assassinato,
seduzido o povo, reclamado o direito ao trono. Na resposta de Maria, percebe-se
que a resignação é misturada ao rancor, que um ódio latente contra a injustiça da
situação pode vir à tona a qualquer momento:
Reinai tranqüila
Todo direito ao trono renuncio.
As asas do meu sonho estão quebradas!
Não me atrai a grandeza. Conseguistes
O vosso fim: não sou senão a sombra
Da Maria que fui. No longo opróbrio
Da prisão relaxaram-se-me as nobres
Fibras do ânimo antigo…
Ao escutar tais palavras de desistência, Elisabeth pergunta “Confessai-vos
finalmente vencida?”. E, não satisfeita, ainda pretende escarnecer da interlocutora
diante de Leicester, dirigindo-se a ele depois de um orgulhoso olhar de
desprezo”:
Na verdade
Custou barata a fama: foi bastante
Dar-se a beleza a todos para em todos
Achar admirador que a proclamasse!
É rompida, afinal, a barreira que continha as falas de Maria. Alguma coisa
nela torna impossível suportar a humilhação em nome da clemência, e a indicação
de Schiller, entre parênteses antes de sua fala, revela inteiramente o traço de seu
caráter que iria se fazer presente: “fervendo em cólera, mas com uma nobre
dignidade”. Ora, a dignidade é a expressão, no caráter humano, daquela
resistência ao sofrimento que apresenta a liberdade moral. Diante de uma
imposição física, no caso a ameaça de morte e a necessidade de autopreservação, a
196
heroína trágica resiste, demonstrando a superioridade de sua força de caráter, sem
se entregar ao sofrimento de que é vítima.
Deixando de lado a moderação, Maria acusa a prima de hipocrisia, e ainda
justifica sua cólera:
Sofri com paciência
O que pode sofrer um ser humano.
Basta destas doçuras de cordeiro!
[...]
Uma bastarda profanou o trono
Inglês, o nobre povo da Inglaterra
Foi por uma astuciosa comediante
Ludibriado! Se direito houvesse
Vós é que neste instante às minhas plantas
Rojaríeis ao pó, pois eu sou o rei!
Elisabeth se retira apressadamente, incapaz de responder, e na cena seguinte
Maria declara que, em vez de medo da execução ou arrependimento por um ato
impensado, seu sentimento é de triunfo. A partir deste momento, a morte, que
antes era uma imposição injusta, torna-se um “ato de vontade”. Foi a própria
Maria Stuart quem escolheu, dignamente, o seu destino, em vez de se curvar às
imposições sensíveis. Nesse caso, valem as palavras de Schiller: Fôssemos nada
mais do que seres sensíveis, que não seguem nenhum outro instinto ao ser o da
conservação, aqui ficaríamos parados, detendo-nos no estado de mero
sofrimento”. Mas, “expulsos de toda fortificação que pode formar uma defesa
física, atiramo-nos dentro da invencível fortaleza da nossa liberdade moral, e
ganhamos uma segurança absoluta e infinita…”.
171
Nos últimos atos, Maria e Elisabeth parecem se equilibrar em uma espécie
de gangorra, cujo movimento se inverte caso seja considerado física ou
moralmente. Enquanto a rainha inglesa tem todo o poder nas suas mãos, Maria vai
assistir à construção do cadafalso onde será morta. Por outro lado, Elisabeth age
171
SCHILLER. Teoria da tragédia, Op. cit., p. 107.
197
cada vez mais em função da inveja e dos interesses em jogo, e a rainha da Escócia
demonstra toda a dignidade que a morte próxima permite, encantando a todos pela
força de seu caráter. Nas falas da ama “saberá a rainha morrer como rainha, e
como heroína!”, “Nenhum sinal de queixa escapou à minha soberana”
evidencia-se a compaixão e a admiração provocadas pela resistência ao
sofrimento.
172
Schiller, para indicar novamente o sentimento de Maria ao falar, faz
uso da mesma palavra empregada antes:
Maria (com tranqüila dignidade relanceia os olhos sobre os presentes):
Por que pranto e lamento? Antes devíeis
Alegrar-vos comigo, pois chegada
É a hora de acabar o meu tormento,
De se desatarem as cadeias,
De se abrir o meu cárcere.
173
Maria Stuart, a prisioneira encarcerada e condenada, anuncia não a sua
libertação do mundo físico que a oprime, mas também a sua liberdade moral
diante da própria morte, à qual se entrega dignamente, por um ato de vontade.
5. Schiller e a Grécia
Em A tirania da Grécia sobre a Alemanha, Butler considera Schiller como um
“antagonista” de Goethe e, em certa medida, de todo o projeto classicista alemão
baseado nas idéias de Winckelmann.
174
Em certa medida, porque o autor foi um
dos principais participantes desse projeto, incorporando à sua prática artística e à
sua concepção teórica elementos característicos do Classicismo, como o estudo da
arte antiga ou o esforço de distinção e definição dos gêneros artísticos. Para
Butler, a posição de Schiller pode ser explicada por motivações pessoais e
artísticas que se baseiam sobretudo na relação com Goethe. Os anos que
172
Idem. Maria Stuart, Op. cit., p. 144.
173
Ibidem, p. 150.
174
BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Op. cit., p. 164-200.
198
antecederam a aproximação entre os dois escritores, quando ambos se afastavam
do movimento pré-romântico, são decisivos para compreender essa explicação.
A Ifigênia em Táuris, publicada em 1787, quando o autor ainda se
encontrava na Itália, foi um marco de consolidação da fase clássica na produção
de Goethe, com a reelaboração de um tema grego (trabalhado também por
Racine), em versos iâmbicos, respeitando as três unidades. No mesmo ano, após
um longo período de preparação, saía na Alemanha Dom Carlos, que marcava
uma mudança decisiva na dramaturgia de Schiller, tanto na forma quanto no
conteúdo. Em comparação com as peças anteriores, Os salteadores e Intriga e
amor, identifica-se por um lado a transição dos dramas pessoais, em que o
indivíduo aparece em conflito com as imposições da sociedade, para um drama
político, sobre o rei da Espanha absolutista; por outro lado, trata-se da primeira
peça do dramaturgo em versos iâmbicos, forma adotada também nas obras
posteriores. Além da adoção de uma métrica que caracteriza, formalmente, o
esforço dos dois autores de estabelecer o verso mais apropriado para a língua
alemã, o projeto de Dom Carlos se identifica com o de Ifigênia por deixar de lado
os personagens burgueses da fase anterior. Se as peças pré-românticas de Goethe e
Schiller eram dramas burgueses, seguindo a ruptura de Lessing com a tradicional
restrição à aristocracia, as duas peças que inauguram a fase clássica voltam a ter
personagens nobres, como no teatro clássico francês.
Segundo Butler, Schiller considerou a Ifigênia de Goethe uma obra-prima
justamente no estilo clássico que ele buscava com Dom Carlos, e um êxito muito
maior do que o de sua própria peça. Essa comparação motivou não o
surgimento de uma certa rivalidade entre os dois escritores, consagrados no Sturm
und Drang e em transição para uma fase nova de sua produção artística, mas
199
também o grande interesse de Schiller pela Grécia antiga a partir de 1787. Pode
ser considerado como uma primeira indicação desse interesse o poema Os deuses
da Grécia, publicado em março de 1788, após a primeira visita do autor a
Weimar. Nesse lamento pelos deuses que desapareceram, Butler a retomada de
várias idéias do Classicismo alemão (de Wieland, por exemplo) e, principalmente,
da imagem da Grécia evocada na Ifigênia de Goethe. Ele imagina Schiller
maravilhado pela beleza da recriação goethiana da Antigüidade, lamentando a sua
impossibilidade de realizar algo semelhante.
Em 1788, a partir da elaboração de Os deuses gregos, o poeta se dedicou
intensivamente ao estudo da literatura antiga, decidido a não ler nenhum autor
moderno por dois anos, como ele declara em carta de 28 de agosto a seu amigo
Körner. O seu projeto consistia, a princípio, em estudar os gregos nas traduções
alemães (como a de Homero por Voss), para depois ler os textos originais, apesar
do pouco conhecimento do idioma grego. Em outra carta a Körner, o escritor
resume seus objetivos:
Espero adquirir assim mais simplicidade no plano e no estilo. Depois,
por meio de uma intimidade maior com as peças gregas, posso
finalmente ser capaz de me apropriar dos elementos que são verdadeiros,
belos e efetivos e, eliminando as imperfeições, devo formar um certo
ideal a partir deles, segundo o qual o ideal que tenho agora será corrigido
e aperfeiçoado.
175
Esse projeto levou Schiller, mais tarde, a fazer uma tradução (incompleta)
da Ifigênia em Áulis, de Eurípides, e de trechos da Ifigênia em Táuris, entre outros
trabalhos. No entanto, se Schiller tinha decidido dedicar-se ao estudo dos gregos
antigos e à busca de um ideal a partir desse estudo, por outro lado sua postura em
relação à Grécia o tem o caráter de veneração identificado em Winckelmann ou
Goethe. Aos poucos, os comentários a respeito das peças antigas em cartas ou
175
Ver BUTLER, E. M.. Op. cit., p. 168, 169.
200
ensaios deixam claro que, apesar do reconhecimento da sua importância, trata-se
de uma postura muito mais crítica do que a de outros “helenistas”. Na comparação
da Ifigênia de Eurípides com a de Goethe, por exemplo, num ensaio crítico que
ficou incompleto, o escritor defende a superioridade da versão alemã, o que seria
impensável para um classicista tradicional. Butler reconhece, nessa comparação, a
intenção de defender a superioridade dos modernos sobre os gregos antigos,
posição que caracterizaposteriormente o desenvolvimento da teoria da tragédia
de Schiller. Assim, o projeto de estudo dos clássicos não o leva ao elogio da
perfeição exemplar dos gregos, à defesa de um modelo a ser imitado, mas à
tentativa de compreender o modo como os artistas modernos devem se aproximar
do ideal expresso pela arte antiga.
Nos ensaios escritos entre 1791 e 1796, fica evidente o “antagonismo” do
autor em relação às tendências nostálgicas do Classicismo. Depois dos anos
dedicados aos estudos de Homero e dos tragediógrafos antigos, quando começa a
desenvolver sua consideração de questões ligadas à tragédia, Schiller mais
importância à dramaturgia moderna do que às peças gregas. Em “Acerca da razão
por que nos entretêm assuntos trágicos” (1792), ele usa como exemplos
especialmente personagens de Shakespeare e nem sequer menciona Eurípides,
cujas peças tinha começado a traduzir alguns anos antes. Sobre a arte trágica”
(1792) contém uma crítica da tragédia grega por sua “cega sujeição ao destino”,
considerada “humilhante e ofensiva” para a liberdade humana, e um elogio da arte
moderna, esclarecida pela filosofia kantiana e destinada a alcançar por isso uma
altura cristalina da emoção trágica.
176
Schiller fala de uma “beleza excepcional na
176
SCHILLER. “Sobre a arte trágica”, em: Teoria da tragédia. Op. cit., p. 94-95.
201
nossa Ifigênia alemã” e, de acordo com sua concepção da tragédia como
expressão da liberdade, argumenta em favor da superioridade das peças modernas.
A defesa da superioridade da arte moderna poderia justificar o abandono
do projeto de estudo dos antigos, iniciado em 1787 após a leitura da Ifigênia de
Goethe, e o poema Os deuses gregos. No entanto, Schiller não continuará a
estudar os antigos e a buscar a definição de um ideal poético a partir desse estudo
– como demonstra a correspondência com Goethe –, mas também participará
ativamente do projeto classicista defendido, por exemplo, na revista Propileus.
Assim, a relação do autor de Dom Carlos com a Grécia e com o Classicismo tem
um caráter paradoxal, porque integra uma posição crítica, de defesa da arte
moderna, a um reconhecimento da exemplaridade e da perfeição da arte antiga.
Esse paradoxo começa a ser esclarecido a partir da retomada da comparação
entre antigos e modernos nas Cartas sobre a educação estética do homem (1795).
Nas sexta carta do ensaio epistolar, o contraste entre a arte grega e a
moderna não é apresentado em favor da humanidade mais recente, como no texto
“Sobre a arte trágica”. A “natureza grega”, que “desposou toda a dignidade da arte
e todos os encantos da sabedoria” aparece como ideal superior, nos moldes do
Classicismo de Winckelmann, de quem o autor aproveita aliás a noção de
“simplicidade”. Schiller afirma:
Não é apenas por uma simplicidade, estranha a nosso tempo, que os
gregos nos humilham; são também nossos rivais, e freqüentemente
nossos modelos, naqueles mesmos privilégios com que habitualmente
nos consolamos da inaturalidade de nossos costumes.
177
Em outras palavras, os gregos são vistos como a realização xima da
cultura, oposta nas Cartas ao domínio da natureza segundo a reflexão sobre o
177
SCHILLER. A educação estética do homem. Op. cit., p. 39.
202
homem como “cidadão de dois mundos”. Identifica-se então uma decadência da
modernidade no que diz respeito à relação entre natureza e cultura, decadência
exposta pela comparação com a civilização grega. Enquanto o indivíduo moderno
se afasta da natureza e se torna fragmentário, governado pela arbitrariedade do
Estado, exacerbadamente cultural, frio, mecânico, destituído de uma noção de
totalidade, o grego aparece como estágio máximo da realização humana, no qual a
natureza e a cultura se encontravam em harmonia. A crítica de Schiller não se
baseia numa visão nostálgica da Antigüidade, mas visa justamente a uma reflexão
sobre o ideal de harmonia entre o mundo da natureza e o da cultura, a ser buscado
na modernidade. Nesse caso, a “educação estética” teria a possibilidade de
orientar o homem moderno na direção desse ideal de algo que, na Grécia, existia
como uma perfeição.
A décima quinta carta retoma a questão do modelo grego, no contexto de
uma reflexão sobre o “impulso lúdico”, que unifica o impulso sensível e o formal,
o lado natural e o lado moral do ser humano. Schiller liga a noção de belo à noção
de liberdade por meio dessa reflexão em que o impulso lúdico, ligado à criação
artística, escapa tanto do constrangimento da natureza, quanto do constrangimento
da razão. Com base na noção kantiana de “livre jogo” entre as faculdades do
entendimento e da imaginação, o autor define a própria beleza como plenitude da
humanidade, por envolver o “jogo” em que a matéria e o espírito aparecem
unificados. Seu objeto é ao mesmo tempo forma (idéia) e vida (natureza), por isso
o conceito de “forma viva” serve para designar a possibilidade de harmonia entre
os dois mundos”, da natureza e da cultura, separados na modernidade. Assim
como o homem não é exclusivamente matéria nem exclusivamente espírito, a
203
consumação de sua humanidade não pode ser mera vida nem mera forma, ela deve
ser “forma viva”, criada pelo impulso lúdico.
Na concepção das Cartas, o homem deve “jogar” com a beleza, porque
pelo impulso lúdico se alcança a plenitude de uma harmonia da “dupla seriedade”
do dever (lei, moral) e do destino (natureza). Na cima quinta carta, os gregos
são pensados como os mestres dessa concepção de plenitude humana como jogo,
por terem feito desaparecer da fronte dos deuses ditosos tanto a seriedade e o
trabalho, que marcam o semblante dos mortais, quanto o prazer iníquo”.
178
O ócio
e a indiferença caracterizavam o divino como a existência mais sublime,
verdadeiramente livre. Essa concepção dos deuses gregos como expressão da
plenitude humana remete a Winckelmann, e a referência à descrição de uma
estátua, Juno Ludovisi, como expressão do ideal de beleza apenas reforça essa
referência. Trata-se do mesmo procedimento do autor das Reflexões.
Toda a figura repousa e habita em si mesma, criação inteiramente
fechada que não cede nem resiste, como se estivesse para além do
espaço; ali não força que lute contra forças, nem ponto fraco em que
pudesse irromper a temporalidade. Irremediavelmente seduzidos por um,
mantidos à distância por outro, encontramo-nos simultaneamente no
estado de repouso e movimento máximos, surgindo aquela maravilhosa
comoção para a qual o entendimento não tem conceito e a linguagem
não tem nome.
Mas a constatação do belo ideal na escultura grega não leva Schiller à
defesa incondicional do modelo grego. Mesmo nesse elogio dos “mestres” do
impulso lúdico, uma ressalva: eles transportaram para o Olimpo o que deveria
ser realizado na Terra. Na conclusão de sua teoria sobre o belo e a arte, Schiller
defenderá a noção de um “Estado estético”, em que o impulso lúdico da criação
artística educa o homem para a liberdade, harmonizando os reinos opostos das
necessidades naturais (“reino terrível das forças”) e da moralidade (“sagrado reino
178
Ibidem, p. 84.
204
das leis”). Assim, o impulso estético ergue como ideal um terceiro reino, “de jogo
e aparência”, que “desprende o homem de todas as amarras das circunstâncias,
libertando-o de toda a coerção moral ou física”.
179
Esse terceiro reino é, portanto,
o reino da liberdade estética, que nos gregos aparecia como algo sobre-humano,
divinizado, e que os modernos buscam como ideal.
179
Ibidem, p. 143.
205
CAPÍTULO 4
A POÉTICA NO CLASSICISMO DE WEIMAR
1. O encontro
Como o duque de Weimar tinha aceitado, antes mesmo de seu retorno da Itália,
um pedido de dispensa das incumbências administrativas anteriores, a partir de
1788 Goethe passou a concentrar suas atividades no campo da produção cultural,
além de trabalhar em seus escritos científicos. Em 1790, ele assumiria o cargo de
ministro da cultura e da educação e, no ano seguinte, a direção da companhia de
teatro da cidade. Artisticamente, esse período consolidou o seu afastamento dos
ideais revolucionários do Strum und Drang. Não só o arrebatamento de suas
primeiras obras deu lugar à busca de clareza e serenidade, mas também o modelo
do gênio contra as regras do Classicismo foi deixado de lado, dando lugar a uma
defesa do estudo da arte e da literatura clássicas.
Nesse contexto, ao tomar contato com a repercussão da obra de Schiller,
logo após seu retorno da Itália, em 1788, Goethe se viu diante da expressão mais
festejada dos princípios e das questões ideológicas de que vinha tomando
distância ao longo dos últimos anos. O próprio escritor comenta, em texto de 1817
intitulado “Feliz acontecimento”, a “repulsa” inicial provocada pelo sucesso de Os
salteadores (1782):
Após meu retorno da Itália, onde eu havia procurado me aperfeiçoar em
todos os ramos da arte, a fim de alcançar uma segurança e uma pureza
maiores, permanecendo indiferente a tudo que se passava nesse ínterim
na Alemanha, deparei com novas e antigas obras poéticas,
apreciadíssimas pelo público e exercendo grande influência; infelizmente
essas obras me causavam extrema repulsa.
Schiller é avaliado em seguida como “um talento vigoroso, mas imaturo”, que
tinha “despejado sobre a nação em uma torrente arrasadora justamente os
206
paradoxos éticos e teatrais” de que Goethe procurava se afastar. A peça Os
salteadores é vista como um produto “estranho”, de forma “selvagem”, que
recebia aplauso em toda parte, aparecendo como uma realização diametralmente
oposta aos esforços em busca de uma arte bela e serena como a contemplada na
Itália.
180
A leitura de Dom Carlos (1787), uma peça bem menos “selvagem”, não
amenizou a impressão inicial a ponto de favorecer as tentativas de aproximação de
Goethe e Schiller empreendidas por amigos em comum. Além disso, o primeiro
ensaio de Schiller que trata diretamente de questões kantianas, “Sobre graça e
dignidade” (1793), contribuiu ainda mais para manter a distância, revelando o
abismo que separava os seus modos de pensar. Segundo a crítica de Goethe no
texto de 1817, o acolhimento da filosofia de Kant tinha levado o autor do ensaio a
reduzir a natureza, considerando-a apenas “em aspectos empíricos da natureza
humana”, em vez de “contemplá-la como algo independente, pleno de vida das
profundezas ao âmbito mais elevado”. A crítica se volta contra a subjetividade
do pensamento abstrato, em nome de uma visão naturalista, que orientava o
pensamento de Goethe não em sua produção poética, mas sobretudo em seus
estudos científicos.
Schiller, por sua vez, criticava Goethe por sua postura naturalista,
identificada mesmo antes do retorno da Itália no modo de pensar do seu círculo de
seguidores em Weimar. Numa carta a seu amigo Körner de 12 de agosto de 1787,
em visita à cidade, ele observa:
O espírito de Goethe moldou todos os homens que fazem parte de seu
círculo. Um orgulhoso desprezo filosófico por toda especulação e
investigação, com um attachment à natureza que chega às raias da afetação,
e uma confiança nos cinco sentidos, em resumo, uma certa simplicidade
180
“Feliz acontecimento” [Glückliches Ereignis]. GOETHE. Goethe Werke, Sechster Band,
Vermischte Schriften. Op. cit., p. 168-172.
207
infantil da razão diz respeito a ele e a todo o seu séquito. Então é
preferível procurar ervas ou praticar a mineralogia a se perder em
demonstrações vazias. A idéia pode ser muito saudável, mas também se
pode exagerar muito.
em novembro de 1789, após o retorno de Goethe da Itália e a mudança
de Schiller para Jena, este narra a seu amigo Körner um encontro no qual tinha
havido uma conversa sobre Kant cuja Crítica do juízo seria publicada apenas no
ano seguinte. Schiller comenta a maneira como seu interlocutor “envolve” tudo o
que “numa roupagem própria” e o reproduz de modo “surpreendente”, antes de
concluir que, “para ele, toda a filosofia é subjetivista”. Numa declaração que
remete às observações feitas dois anos antes a respeito do círculo de Weimar, ele
afirma também que não aprecia muito a filosofia de Goethe, porque ela se baseia
exclusivamente no mundo dos sentidos. Mesmo assim, a breve avaliação da
conversa termina em tom elogioso: “Mas seu espírito age e pesquisa em todas as
direções, esforçando-se para construir um todo, e isso o torna um grande
homem...”.
181
Segundo Goethe, ainda no ensaio de 1817 sobre o encontro com Schiller,
levando em conta as diferenças na maneira de pensar de cada um deles era
impossível imaginar que pudesse haver uma união, porque se tratava de “dois
antípodas intelectuais”. Mas, curiosamente, foram as pesquisas naturalistas sobre
a metamorfose das plantas que, anos mais tarde, proporcionaram a ocasião para
pôr fim aos desentendimentos. Dois fatores contribuíram para que fosse possível
uma maior aproximação: o fato de Schiller ser casado desde 1790 com Charlotte
von Legenfeld, conhecida e estimada por Goethe, e a revista literária As Horas,
cujo projeto levou Schiller a escrever de Jena para o “Senhor Conselheiro
Secreto” de Weimar, em junho de 1794.
181
Trechos citados a partir da introdução de Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller, Op.
cit., p. 5 e p. 10.
208
Pouco mais de um mês depois dessa primeira carta inteiramente formal,
em 20 de julho de 1794, ocorreu o tal feliz acontecimento” a que Goethe se
refere em seu texto: por acaso, ou talvez por iniciativa de Schiller, os dois
escritores se encontraram numa reunião da sociedade de pesquisas naturalistas
recém-fundada em Jena e, na saída, iniciaram uma conversa sobre o assunto
abordado na reunião. Esse diálogo, narrado por Goethe em seu texto de 1817,
ficaria lebre, não por ter sido apontado como o início da amizade, mas por
expressar de modo emblemático as posições dos dois interlocutores. A primeira
observação de Schiller remete, no fundo, às críticas anteriores de parte a parte
acerca da concepção de natureza por uma ótica especulativa e subjetiva ou por
uma ótica excessivamente baseada na experiência sensível. Na saída da reunião,
ele observa que um modo de considerar a natureza em seus aspectos
fragmentários não pode agradar ao leigo interessado no assunto, ao que Goethe
responde, segundo sua própria versão, que “podia existir outro modo de
considerar a natureza, não em seus aspectos isolados e fragmentários, mas como
algo de atuante e vivente, na busca de apresentá-la como uma totalidade que se
esforça por se manifestar em suas rias partes”. Essa definição está inteiramente
de acordo com o propósito do autor em A metamorfose das plantas, seu estudo de
botânica publicado em 1790.
O problema que Schiller via na definição desse outro modo de considerar a
natureza, ainda segundo a versão de seu interlocutor, era justamente o de saber se
ele podia ser deduzido a partir da experiência sensível. Goethe conta:
Chegando à sua casa, a conversa me atraiu e me fez entrar; então
descrevi animadamente a metamorfose das plantas e fiz surgir diante de
seus olhos, com alguns exemplos desenhados a bico de pena, uma planta
simbólica. Ele ouviu e observou tudo com grande interesse e com muita
209
simpatia, mas, quando terminei, sacudiu a cabeça e disse: ‘isso não é uma
experiência, é uma idéia’.
182
Essa frase de Schiller, como nota o próprio narrador, evidencia o ponto de
divergência entre os dois escritores, porque remete à concepção kantiana da
natureza exposta no ensaio “Graça e dignidade” e criticada por Goethe como um
tratamento desrespeitoso, em função do subjetivismo da filosofia. Na verdade, o
ponto de divergência que separa os dois modos de pensar é exatamente o abismo,
na filosofia de Kant, entre o âmbito sensível e o racional. Mas Goethe controlou a
sua “antiga irritação” e respondeu: “É muito agradável para mim ter idéias sem o
saber e até mesmo vê-las com meus próprios olhos”. Assim, a controvérsia que se
seguiu a essas duas afirmações opunha basicamente o realismo de um dos
interlocutores às refutações kantianas de uma possível correspondência entre uma
idéia e uma experiência sensível.
Segundo a narrativa, numa pausa da conversa, após muita luta, os dois
ainda se consideravam invencíveis, e nenhum podia julgar que tinha imposto sua
perspectiva. No entanto, começava a ser apontada a conciliação que resultou na
longa troca de cartas e na intensa colaboração entre eles no decorrer de mais de
dez anos de relações. Goethe prometeu os artigos para a revista As Horas e
Schiller escreveu em agosto de 1794, no aniversário de Goethe, uma carta que
retoma o tema dessa discussão de modo favorável a seu interlocutor. Por exemplo,
quando ele diz, em tom elogioso, “o senhor procura o essencial na natureza, mas
procura pelo caminho mais difícil...”, ou, em seguida, o senhor concentra toda a
natureza, a fim de receber uma luz de cada elemento; na totalidade dos fenômenos
dela o senhor procura a explicação para o indivíduo”. Fica indicado, assim, aquele
outro modo de considerar a natureza mencionado por Goethe na narração do
182
GOETHE. “Feliz acontecimento”, em: Op. cit., p. 171.
210
encontro como uma busca de apresentá-la em sua totalidade que se esforça para se
manifestar em cada uma de suas partes. A ponte entre o particular e o geral, o
indivíduo e a totalidade, constitui a via de superação das divergências entre os
dois interlocutores. Schiller parece indicar a possibilidade de união que não foi
alcançada na conversa anterior.
Essa consideração da carta de aniversário, que constitui também um dos
pontos de partida para a teoria sobre o poeta ingênuo e o sentimental,
desenvolvida nos anos seguintes pelo autor, revela uma possibilidade de
comunicação entre perspectivas que pareciam antagônicas: “o que dificilmente se
pode saber (porque o gênio é para si mesmo o segredo maior) é a bela
concordância do instinto filosófico com os mais puros resultados da razão
especulativa”. Se, em termos gerais, a conciliação se refere ao gênio intuitivo e ao
especulativo, em termos específicos, ou pessoais, ela esrelacionada ao encontro
dos dois escritores que representam tais gêneros e à perspectiva de uma
colaboração que de fato aconteceria a partir daquela época. Como resumiu o
próprio Schiller no início de sua carta seguinte: “os trilhos tão diferentes sobre os
quais íamos puderam levar-nos a um encontro profícuo justamente neste
momento, e não antes”. A essa afirmação, inteiramente de acordo com a
perspectiva de Goethe sobre o “feliz acontecimento”, ele acrescenta que agora tem
esperança de que os dois possam trilhar juntos o caminho restante, anunciando o
projeto comum formulado nas cartas e nas revistas durante os anos seguintes.
211
2. Caminhos para uma mesma meta
A reflexão constitui a base da criação artística de Schiller, como afirma Goethe
numa conversa de 1823 relatada por Eckermann: “Schiller o podia proceder
com inconsciência por assim dizer instintiva; tinha antes de refletir sobre tudo o
que fazia...”, por isso não conseguia deixar de discutir detalhadamente cada um
dos seus projetos artísticos antes de realizá-los. Esse procedimento é criticado por
Eckermann, para quem a orientação filosófica de Schiller tinha prejudicado sua
poesia, porque ele “foi levado a considerar mais alta a idéia do que a natureza e
até a destruir a natureza por causa da idéia”. E Goethe concorda com a crítica,
afirmando que era triste ver um homem excepcionalmente talentoso se preocupar
com pensamentos “que de nada lhe servem”.
183
O comentário feito nessa conversa ilustra muito bem a diferença no
procedimento de Goethe e Schiller como poetas. A princípio, foi justamente essa
diferença na maneira de pensar a relação entre arte e natureza que manteve os dois
escritores à distância, mesmo quando moravam em cidades vizinhas, mas ela não
impediu sua aproximação a partir do encontro em Jena e da carta de aniversário.
No entanto, no período de colaboração e diálogo, a diferença se fazia notar na
tentativa, por parte de cada um deles, de entender a maneira de pensar do outro,
seja para criticá-la e defender sua própria posição, seja para indicar uma meta em
comum, perseguida por caminhos divergentes.
Curiosamente, quando Schiller escreve a seu amigo Körner, em setembro
de 1794, a respeito daquela conversa narrada por Goethe no texto de 1817, ele
designa um tema muito diverso do mencionado por seu interlocutor, mais de
acordo com seus questionamentos estéticos. Ele conta que os dois tiveram uma
183
ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 41 (14/11/1823).
212
longa conversa “sobre arte e teoria da arte”, na qual manifestaram as principais
idéias a que chegaram, encontrando uma “concordância inesperada” entre essas
idéias provenientes de pontos de vista diversos.
184
Assim, se para Goethe a
conversa teve como tema a natureza e expôs uma divergência, para Schiller o
tema foi a arte e o que se mostrou foi uma concordância, com a qual se preparava
o terreno para o debate posterior nas cartas trocadas pelos dois escritores.
Goethe, por sua vez, embora ressalte o ponto de divergência da conversa,
também confessa no texto de 1817 que, pouco a pouco, suas disposições
filosóficas começariam a se desenvolver no decurso da sua relação com Schiller.
Essa mudança de perspectiva o levaria a admitir mais tarde uma certa filiação
insuspeitada com a própria filosofia kantiana. Nas Conversações com Eckermann,
em 11 de abril de 1827, ele chega a afirmar que a Metamorfose das plantas,
embora escrita sem um conhecimento profundo da obra de Kant, estava
totalmente no espírito da doutrina do filósofo.
185
Com essa afirmação bastante enigmática, Goethe aponta uma aproximação
do campo especulativo, reavaliando a sua posição da época das primeiras
conversas com Schiller, quando se mostrava como um crítico da filosofia
kantiana. Não que ele tenha abandonado sua base realista por uma filosofia que
antes condenava por diminuir a natureza e por ser subjetivista. Mas Goethe deixa
de lado a resistência caracterizada na primeira conversa e nas observações de
Schiller a Körner, quando passa a reconhecer no próprio filósofo a quem dirigia
suas críticas e cuja influência sobre Schiller lhe parecia perigosa uma concepção
184
Ver Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 14-15.
185
Ver CASSIRER, Ernst. Rousseau, Kant, Goethe. Deux essais. Paris, Belin, 1991, p. 95. Ernst
Cassirer cita essa declaração em seu ensaio sobre Goethe e a filosofia kantiana”, como um
“enigma”, que no entanto pode ser esclarecido com referência à crítica do juízo teleológico”, na
Crítica do juízo, a partir de uma indicação de Goethe em Einwirkung der neueren Philosophie”
[“Influência da filosofia mais recente”].
213
de natureza semelhante à de seus escritos naturalistas. Com isso, ele indica que
mesmo aquela contradição aparentemente insolúvel na maneira de pensar a
natureza, na discussão de um kantiano e um naturalista, pode ser solucionada.
No entanto, se as afirmações do texto de 1817 e das Conversações com
Eckermann indicam o reconhecimento de uma possível vitória” do saber
especulativo, ou pelo menos uma aceitação da filosofia kantiana por parte de seu
crítico realista, Schiller apontava nas cartas o caminho oposto. Para ele, era o lado
intuitivo, ligado à criação poética, que precisava de algum modo se impor ao
especulativo, ligado à filosofia. Principalmente nos primeiros anos da
correspondência, no período em que Schiller voltava a se dedicar à dramaturgia
após um longo intervalo, encontram-se algumas observações esclarecedoras sobre
essa relação entre a especulação filosófica e a arte. Em suas palavras, escritas na
carta a Goethe de 31 de agosto de 1794, impunha-se a tentativa de alcançar um
equilíbrio, “para que não surja o poeta quando se deveria filosofar, nem o filósofo
no momento de fazer poesia”. Desenvolvendo esse argumento, numa espécie de
autocrítica do gênio especulativo, o autor se classifica ainda como alguém que
oscila “num modo híbrido entre o conceito e a intuição, entre a regra e o
sentimento”, para logo em seguida constatar o risco decorrente dessa condição:
“acontece-me com bastante freqüência que a imaginação atrapalhe as minhas
abstrações e o frio entendimento atrapalhe a minha literatura”.
186
Na mesma carta em que se encontram essas palavras sobre a filosofia e a
poesia, também uma comparação direta entre o espírito de Goethe, que tinha
sido o tema da correspondência anterior, e o de Schiller, ressaltando as limitações
186
Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 43. Ver Goethe e Schiller -
Companheiros de Viagem, São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 29.
214
do pensamento impostas pelo caráter especulativo, diante da amplitude do gênio
poético que ele descrevera.
Como a minha esfera de pensamentos é menor, talvez eu o percorra
mais depressa e com mais freqüência, e exatamente por isso talvez possa
utilizar melhor meu pequeno patrimônio para produzir, com a forma,
uma diversidade que falta ao conteúdo. O senhor se esforça para
simplificar seu grande mundo de idéias, enquanto eu procuro variedade
para as minhas pequenas posses. O senhor tem um império para
governar, eu tenho uma família de conceitos bastante numerosa, que
gostaria de aumentar para ter um pequeno mundo.
Essa comparação remete à carta de aniversário, na qual a identificação
entre os dois escritores estava ligada à possibilidade de conciliar o espírito
intuitivo e o espírito especulativo, com relação à meta a que os dois visam na
criação poética. Schiller reconhecia que o espírito intuitivo tem a ver com
indivíduos, e o especulativo, com gêneros. Mas argumentava que, “se o
intuitivo é genial, e se procura no que é empírico o caráter da necessidade, ele
então produzirá sempre indivíduos, mas com o caráter do gênero”. O problema era
discutir os caminhos diversos que podiam levar a uma convergência, de modo
que, se o espírito intuitivo genial” é capaz de produzir indivíduos com o caráter
do gênero, o espírito especulativo também tem a possibilidade de estabelecer uma
relação de síntese entre o domínio particular e o universal. Se ele “é genial e se
não perde a experiência, na medida em que se destaca dela, então produzirá
sempre somente gêneros, mas com a possibilidade da vida e com funda relação
para com objetos reais”. Esse caminho do geral para o particular tem relação com
a maneira, descrita por Goethe no ensaio de 1789 como uma etapa intermediária
entre a simples imitação da natureza e o estilo, uma etapa na qual o artista se
afasta da natureza para formular uma linguagem própria e expressar suas
impressões subjetivas. No ensaio também se reconhece a possibilidade de um
desenvolvimento da maneira até o ponto de realizar uma síntese, voltando-se para
215
os objetos, e se tornar estilo. na carta, o trabalho do gênio especulativo seria o
de dar vida e forma concreta às suas idéias, enquanto o gênio intuitivo procura
dar, aos seus indivíduos ou objetos, um significado geral.
Em janeiro de 1795, Schiller retoma o tema da relação entre filosofia e
poesia, ao qual estava vinculada desde o início sua reflexão sobre o poeta-filósofo
especulativo e o poeta intuitivo, na comparação entre seu modo de pensar e o
modo intuitivo de Goethe. Além de declarar a sua grande admiração pelo caráter
não especulativo da obra de seu interlocutor, ele escreve que “toda a natureza só é
síntese e toda a filosofia é antítese”. Depois conclui a carta com a constatação de
que “o poeta é o único homem verdadeiro, e o melhor filósofo não passa de uma
caricatura dele”.
187
Nessas frases, é como se Schiller assumisse a posição que, na
conversa daquele encontro que marcou o início de sua relação de amizade,
caracterizava o seu antagonista como um crítico do saber filosófico.
Assim como Goethe procurou alcançar um equilíbrio em relação ao seu
posicionamento realista de 1794, intuitivo e contrário à especulação,
reconhecendo o desenvolvimento de suas “disposições filosóficas”, Schiller
aponta a busca da conciliação no sentido oposto. O próprio Goethe reconhece essa
busca, em carta de 6 de outubro de 1795, ao fazer comentários elogiosos a
respeito dos poemas lidos por seu interlocutor em voz alta numa visita recente.
Esses poemas manifestam, segundo o elogio, um “perfeito equilíbrio” da mistura
peculiar de intuições e abstrações presente na natureza de Schiller.
188
Em resposta,
o poeta afirma:
A partir de certa experiência, tenho para mim que a rígida
determinação das idéias proporciona leveza. Até então pensava o
contrário e temia o rigor e a rigidez. De fato, agora estou satisfeito de
não ter me aborrecido por tomar um caminho árduo, que muitas vezes
187
Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 81
188
Ibidem. Op. cit., p. 143.
216
considerei prejudicial para a fantasia poética. Mas claro que essa atividade
exige muito esforço, pois, se o filósofo pode deixar descansar sua
capacidade de imaginação, e o poeta, sua capacidade de abstração, eu
preciso, nesse tipo de criações, conservar sempre as duas forças em igual
intensidade…
189
Em grande parte para esclarecer e tentar resolver essas questões suscitadas
pelo encontro com Goethe, Schiller começava a escrever nessa época um ensaio
sobre o poeta ingênuo, que mais tarde seria incluído no livro Poesia ingênua e
sentimental (1796), uma das suas obras teóricas mais importantes e influentes.
Nela, as distinções entre o espírito intuitivo e o especulativo se elaboram no
contexto mais amplo de uma teoria sobre os modos fundamentais da criação
poética, o que inclui tanto uma reflexão acerca do antigo e do moderno, quanto
uma consideração dos gêneros artísticos.
3. A via de Goethe
No ensaio “Simples imitação da natureza, maneira, estilo”, analisado no capítulo
anterior, Goethe procura mostrar três relações distintas do artista com seu objeto,
a primeira presa às exigências da forma exterior objetiva, a segunda condicionada
pela expressão subjetiva e a terceira, a mais elevada, uma possibilidade de integrar
o conhecimento objetivo da natureza à expressão da visão característica do artista.
Esse conceito de uma síntese do lado objetivo e do lado subjetivo da expressão
artística, ligado à concepção do estilo, também remete a um outro elemento
fundamental na teoria da arte de Goethe: a definição de símbolo. O que está em
questão, nesse conceito, é a distinção entre a expressão do particular e a do
universal, pela qual se pode explicar a diferença entre a objetividade da simples
imitação da natureza e o conhecimento objetivo que caracteriza o estilo. Uma
189
Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 146. Ver Goethe e Schiller -
Companheiros de Viagem, Op. cit., p. 46. Carta de 16 de outubro de 1795.
217
cópia da aparência de um objeto resulta numa obra tão particular quanto o próprio
objeto copiado, enquanto o caminho mais elevado de imitação conduz a uma obra
“simbólica”, a algo de particular que significa um universal. Em outras palavras,
quando o artista é capaz de, em vez de apenas imitar a forma exterior, dar
expressão ao que é essencial no objeto com base no conhecimento da sua
natureza, o conceito universal está contido na obra de arte particular.
Goethe remete a essa concepção no primeiro ano de suas conversas com
Eckermann, quando estava preocupado em dar a seu novo discípulo algumas
lições a respeito da criação poética, aconselhando-o a buscar temas circunstanciais
e particulares, em vez de se dedicar a uma grande obra que trabalhasse uma idéia
geral. Segundo o relato, o escritor afirma que “...a compreensão e explicação do
que é particular é a verdadeira vida da arte”, por isso “enquanto nos ocupamos
do que é geral, qualquer um nos pode imitar; mas no particular ninguém nos
imita”.
190
Na coletânea das Máximas e reflexões, encontram-se declarações mais
diretas de Goethe sobre esse tema, inclusive uma definição muito precisa,
segundo a qual “o geral e o particular coincidem: o particular é o geral
manifestando-se sob diferentes circunstâncias”.
191
Para o autor, o que a arte busca é justamente essa identificação entre o
domínio do particular e o domínio do geral, dando expressão assim ao
conhecimento que orientava também suas investigações científicas. Lukács indica
essa relação entre a estética e a ciência em seu texto “O problema estético do
particular no Iluminismo e em Goethe”.
192
Embora tenha o propósito de discutir
as questões do materialismo e da dialética, no contexto de uma “estética
190
ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 31 (29/10/1823).
191
GOETHE. Máximas e reflexões Obras escolhidas v. 5. Lisboa, Relógio d’água, 2000, p. 126
(máxima 491).
192
Em: LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1970.
218
marxista”, o texto esclarece também alguns aspectos específicos do modo de
pensar de Goethe, pois Lukács procura demonstrar a articulação entre as duas
atividades do escritor, a poesia e a ciência, a partir de suas próprias definições. A
relação entre particular e geral aparece, assim, ligada em primeiro lugar à questão
do conhecimento científico, mais especificamente à concepção de fenômeno
originário [Urphänomen].
Em A metamorfose das plantas, investiga-se o fenômeno originário da
botânica: a planta original [Urpflanze], concebida como um arquétipo, uma
primeira forma da qual se derivam todas as formas vegetais. É essa concepção de
base que orienta também a Doutrina das cores, estudo científico do fenômeno
cromático originário, segundo um procedimento que tem a intenção abrangente de
decifrar a “linguagem” da natureza.
193
Em seu “Prefácio”, o autor afirma que a
natureza fala consigo mesma e conosco por meio de milhares de fenômenos, mas
essa linguagem, por mais variada e confusa que nos possa parecer, tem elementos
que permanecem sempre os mesmos. Em meio à enorme variedade dos
fenômenos visuais, Goethe pretende identificar o fenômeno originário da cor a
partir da concepção do encontro de uma luz interna e de uma luz externa,
contrariando a ótica newtoniana. Ele indica em sua teoria, muito questionada no
campo da ciência logo depois da publicação do livro, aplicações a diversos tipos
de saber, da filosofia e da física à pintura e às técnicas de fabricação.
Segundo Lukács, o propósito dessas investigações científicas tem
implicações filosóficas importantes, ressaltadas por Hegel, em carta ao autor da
Doutrina das cores, com a exclamação: “Seja-me permitido agora falar a Vossa
Excelência também do interesse particular que possui, para nós filósofos, um
193
GOETHE. Doutrina das cores. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 36.
219
fenômeno originário, de tal modo que possamos empregar este resultado a serviço
da filosofia!”. O próprio Goethe tinha consciência dessas implicações, ligadas à
sua leitura da Crítica do juízo de Kant, que escreveu num pequeno texto de
1820 sobre o juízo e a intuição:
Se eu anteriormente, de um modo inconsciente e por um impulso
interno, encaminhei-me infatigavelmente na busca daquele modelo
originário, na busca do típico, se me foi inclusive possível construir uma
representação conforme à natureza, nada podia me impedir de enfrentar
corajosamente a aventura da razão, como a chama o velho de
Königsberg.
194
Para Lukács, a pretensão de Goethe era tornar cientificamente cognoscível
o que, em Kant, não pode ser conhecido. Esse esforço de decifrar os fenômenos
originários da natureza, a partir de uma intuição da totalidade, visa a estabelecer
uma ligação entre o universal e o particular numa via que se opõe ao saber
especulativo. O ponto de partida não é o conceito abstrato, mas o particular
determinado em que se mostra o típico, o arquétipo, ou seja, o conceito geral. Nas
investigações científicas sobre as cores ou sobre as plantas, o ponto de partida é a
variedade dos fenômenos naturais, tal como ela se apresenta à experiência
sensível. O conhecimento comparativo adquirido pela observação desses
fenômenos leva à intuição da totalidade, pela qual os fenômenos podem ser
ordenados, compreendidos e mostrados como derivações de um mesmo elemento
mais essencial.
A mesma concepção da essência dos fenômenos e do conhecimento da
natureza, na qual se estabelece uma ligação entre o universal e o particular, orienta
a teoria estética de Goethe, como indica Lukács, citando a máxima: “O belo é uma
manifestação de leis secretas da natureza, que permaneceriam eternamente ocultas
194
Ver GOETHE. “Anschauende Urteilskraft”. Vermischte Schriften. Op. cit., p. 434. O trecho é
citado em LUKÁCS. Introdução a uma estética marxista. Op. cit., p. 128. A frase de Hegel
mencionada antes é citada no mesmo texto, p. 135.
220
para nós se não aparecessem”. Outra máxima que pode ser citada neste contexto,
em referência à idéia de decifrar a linguagem da natureza, é: “A arte é mediadora
do inexprimível...”
195
Walter Benjamin também indica a afinidade entre
investigação científica e arte, ao afirmar em seu estudo sobre o conceito de crítica
no Romantismo: “Abarcar a idéia da natureza e, deste modo, torná-la apta a ser
arquétipo da arte (a ser puro conteúdo), este era, em última análise, o esforço de
Goethe em sua averiguação dos fenômenos originários”.
196
Na teoria da arte de Goethe, a relação entre o particular e o universal é
pensada segundo a noção de símbolo, definida nas Máximas e reflexões. Essa
definição de símbolo em contraposição à alegoria influenciou de modo marcante a
teoria estética posterior, como por exemplo no caso de Lukács, que retoma o
conceito goethiano de símbolo, ou no de Benjamin, que valoriza a noção de
alegoria. Segundo a definição de Goethe:
uma grande diferença entre o poeta procurar o particular para chegar
ao geral e contemplar o geral no particular. No primeiro procedimento
temos uma alegoria e o particular serve apenas como exemplo, como
caso exemplar do geral. Mas na segunda situação estamos de fato diante
da natureza da poesia. Ela expressão a um particular sem pensar no
geral e sem apontar diretamente para ele. Quem for capaz de apreender
esse particular como coisa viva dispõe ao mesmo tempo do geral, mesmo
sem disso ter consciência ou só chegando a tê-la mais tarde.
197
Assim, o que diferencia o símbolo da alegoria é justamente a discrição, o
modo indireto como se estabelece a ligação entre algo de particular e algo de
universal, o que levou o autor a criticar obras por serem alegóricas, ou seja, por
remeterem de modo ostensivo e direto a conceitos gerais, usando os objetos
apenas como exemplos representativos desses conceitos. Schiller é criticado por
195
A primeira é citada em Trecho citado em LUKÁCS. Introdução a uma estética marxista. Op.
cit., p. 133. A segunda se encontra em GOETHE. Máximas e reflexões Obras escolhidas v. 5.
Op. cit., p. 184 (máxima 729).
196
BENJAMIN. “A teoria da arte primeiro romântica e Goethe”. Em: O conceito de crítica de arte
no Romantismo alemão. São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 116.
197
GOETHE. Máximas e reflexões – Obras escolhidas v. 5. Op. cit., p. 189 (máxima 751).
221
esse procedimento na conversa com Eckermann de 14 de novembro de 1823. O
símbolo expressa um particular “sem pensar no universal e sem apontar
diretamente para a ele”, de modo que quem compreende esse particular vivamente
apreende ao mesmo tempo, ainda que não tenha consciência disso, o universal. A
falta de consciência ou de intencionalidade da ligação que se estabelece dá, à obra
simbólica, a naturalidade e a objetividade reivindicadas pelo autor, fazendo da arte
uma “mediadora do inexprimível”. Neste sentido, a arte pode tratar de conteúdos
gerais sem se tornar vazia ou abstrata, como o subjetivismo filosófico ou o artista
maneirista criticado no ensaio sobre o estilo, porque a idéia mais geral está
presente sem abrir mão da particularidade e da concretude.
É possível estabelecer uma relação entre o conceito de símbolo e o
conceito de estilo, pois ambos procuram definir o ponto máximo da arte. Se o
estilo aparece como uma síntese do lado subjetivo e do objetivo na criação
artística, em seu nível mais elevado, o símbolo se apresenta como a síntese mais
significativa de particular e universal, na arte que atinge seu ápice. O primeiro
termo diz respeito ao artista e à sua formação, o segundo, à obra e à sua
significação. A relação entre eles pode ser estabelecida com base na noção de
conhecimento da natureza que, para Goethe, define a elaboração do estilo. É como
se o artista, ao estudar e conhecer profundamente a natureza, aprendesse a ver o
universal no particular, tornando-se capaz de expressar essa relação porque
domina os meios de sua arte e possui uma linguagem única para isso. Assim, a
objetividade, no nível do estilo, ganha um caráter simbólico, revelando o
conhecimento de que cada um dos momentos que passa o de um valor
222
incomensurável, porque são os representantes de toda uma eternidade”, como o
velho artista Goethe declarou a Eckermann.
198
É importante observar também que aquela máxima na qual a diferença
entre símbolo e alegoria é definida começa justamente com uma referência a
Schiller, indicando que os modos de relacionar o particular e o geral na poesia
caracterizam o procedimento de cada um dos escritores. “A minha relação com
Schiller fundamentava-se no fato de haver em nós um claro direcionamento para
um mesmo fim”, escreveu Goethe. Esse fim será esclarecido a seguir como a
ligação entre particular e universal, buscada pelos dois escritores. “A nossa
atividade conjunta baseava-se na diversidade dos meios com que cada um de nós
se esforçava para atingir esse fim”. Essa diferença, por sua vez, diz respeito ao
procedimento simbólico defendido por Goethe e ao alegórico, que caracteriza a
poesia de seu antigo colaborador.
A crítica ao subjetivismo e à especulação abstrata que marcou desde o
início a postura de Goethe pode ser entendida, assim, no campo da criação
artística, como uma crítica ao procedimento alegórico. Tomar um particular
apenas como exemplo de um universal ou, em outras palavras, apresentar um
objeto, um tema, como exemplo de uma idéia seria a característica de uma poesia
ligada ao pensamento especulativo. Nesse caso, os objetos naturais particulares
com que o poeta trabalha não são um ponto de partida, mas um meio de expressão
dos conteúdos subjetivos. O procedimento simbólico constitui uma outra relação
entre o particular e o geral, a partir da diversidade dos objetos naturais que
manifestam em sua particularidade a totalidade da natureza.
198
ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 35 (3-11-1823).
223
Pela articulação entre a noção de fenômeno originário, definida no campo
das ciências naturais, e a teoria estética, o caráter simbólico da arte pode ser
compreendido como a expressão de um conhecimento da essência dos objetos
particulares. Esses objetos, quando apresentados pelo poeta na obra de arte
simbólica, não são exemplos de idéias, mas remetem a uma noção dos arquétipos,
do desenvolvimento que está por trás da aparência exterior, como acontece com o
Laocoonte, segundo a interpretação de Goethe. No ensaio sobre a escultura, além
de aproximar arte e natureza, (“Uma autêntica obra de arte, como uma obra da
natureza, sempre ultrapassa infinitamente nosso entendimento...”) o autor procura
mostrar como a obra de arte constitui um todo orgânico, autônomo, em que a
composição particular alcançada pelo artista, com base no conhecimento do objeto
e no domínio dos meios de expressão, apresenta o patético em sua plenitude.
Segundo Goethe, numa interpretação dos detalhes, das particularidades, dos
recursos artísticos, o Laocoonte revela de modo ideal todos os sentimentos
humanos diante do sofrimento (a compaixão, o medo e o terror) justamente por
sua perfeição objetiva. Em outras palavras, trata-se de uma obra de arte simbólica,
um “modelo de simetria e variedade, de calma e de movimento, de oposições e
gradações sutis”, no qual se expressa plenamente algo de universal: o sofrimento
humano e a relação do homem com o sofrimento.
4. O pensamento especulativo de Schiller
4.1. A carta de aniversário
Uma das primeiras cartas incluídas na correspondência que marcou o Classicismo
de Weimar pode ser considerada como o ponto de partida para a reflexão
elaborada depois no ensaio Poesia ingênua e sentimental. Schiller escreve a
224
Goethe em agosto de 1794, pouco tempo depois do início da aproximação entre os
dois escritores, e procura expor os fundamentos dessa aproximação a partir de
considerações sobre a maneira como tinha acompanhado, desde muito tempo, o
caminho seguido por seu interlocutor. Ele descreve o “curso do espírito” de
Goethe:
Se fosse grego, ou mesmo italiano, e desde o berço fosse cercado de uma
natureza privilegiada e uma arte idealizadora, o seu caminho seria
infinitamente menor, talvez até supérfluo. na primeira observação das
coisas o senhor teria apreendido a forma do que é essencial, e com as
suas primeiras experiências o grande estilo se teria desenvolvido no
senhor. Mas, como nasceu alemão, como seu espírito grego foi lançado
na criação nórdica, lhe restou uma alternativa: ou tornar-se um artista
do norte ou dar à sua imaginação, com o auxílio da força do
pensamento, aquilo de que a realidade a privou e assim engendrar uma
Grécia, por assim dizer a partir do interior e por uma via racional.
199
Nessa carta, Schiller procura, por comparação, demonstrar a influência que
seu interlocutor tinha sobre seu próprio pensamento, referindo-se ao “olhar
observador, que repousa tão tranqüilo e limpo sobre todas as coisas”. Ele
considera a impressão que as idéias de seu interlocutor lhe causavam uma visão
que tinha acendido”, de súbito, uma luz inesperada sobre algumas coisas com as
quais não podia estar de acordo antes. Em termos comparativos, o autor da carta
se apresenta como um representante da filosofia e do saber especulativo, diante de
seu interlocutor que é descrito como “gênio”, de acordo com o elogio: “espíritos
como o seu raramente sabem aonde são impelidos e quão poucos motivos m
para utilizar a filosofia, a qual só tem a aprender com eles”.
A descrição da carta remete à concepção kantiana do “gênio” exposta na
Crítica do juízo, livro que Schiller tinha se dedicado a estudar nos anos
precedentes. A carta descreve Goethe como um desses artistas geniais que,
199
Carta de 23 de agosto de 1794. GOETHE E SCHILLER.. Der Briefwechsel zwischen Goethe
und Schiller. Frankfurt, Insel, 1977, p. 34. Ver: Companheiros de Viagem. São Paulo, Nova
Alexandria, 1993, p. 24
225
segundo a sua própria natureza e o modelo dos antigos, definem as regras da arte.
Mas ele retoma também uma questão característica do pensamento de Herder, já
que pensa em termos da especificidade do “grego” e do “alemão”. Se Goethe
tinha considerado Winckelmann, em seu ensaio sobre o autor das Reflexões, como
um espírito grego” nascido na época moderna, aqui é a ele que se atribui tal
espírito, mas a mesma atribuição ganha um sentido diferente. Essa indicação de
um caráter histórico e nacional específico, que situa a produção artística em
função de suas condições de surgimento, modifica a comparação entre o antigo e
o moderno. É nesse sentido que as palavras de Schiller podem ser consideradas
como uma interpretação e uma reapropriação do projeto classicista de
Winckelmann.
A afirmação de que Goethe foi capaz de “engendrar uma Grécia” pode se
referir tanto especificamente à Ifigênia, peça que o autor da carta admirava e cuja
leitura marcou seu interesse pelo mundo grego, quanto à fase clássica de Goethe
em termos mais gerais. Em todo caso, nessa consideração sobre o artista moderno
que recria a Grécia por um caminho racional, fica indicada a realização artística
do projeto de uma imitação dos antigos que, em vez de apenas copiar o aspecto
interior das obras de arte, recria o ideal de beleza grego a partir de um
procedimento racional, moderno. Assim, na comparação das condições específicas
de surgimento da arte, presente na construção do argumento se fosse grego...”,
“mas por ser alemão”, indica-se o princípio de imitação dos antigos como “única
via para nos tornarmos inimitáveis”.
Justamente por ter um espírito grego sem ter nascido sob o u grego,
Goethe pode ser um gênio que, mesmo ao estudar os antigos e tomá-los como
parâmetro, segue a sua própria natureza e o fica preso às regras da arte. Em
226
outras palavras, ele poderia ter seguido o caminho de síntese do belo na natureza,
de criação da beleza ideal a partir da observação da beleza natural, caso tivesse
crescido diante do esplendor da natureza mediterrânea e da arte antiga. Mas,
justamente por ser privado dessa natureza bela e jogado sob o céu nórdico, o seu
gênio foi levado a criar por via racional uma obra grandiosa, única e inimitável,
condicionada pelas circunstâncias de sua época. Mas é na Grécia que o gênio
enxerga o ideal de beleza com o qual se identifica e que deve ser recriado em sua
obra moderna. Schiller reconhece uma contradição entre o gênio artístico e a
época moderna, que seria discutida pelo próprio Goethe no ensaio de 1818 sobre
antigo e moderno, mas indica a necessidade de um esforço de superação genial: “o
senhor teve trabalho a mais, pois da maneira como passou da visão à abstração,
teve de transpor de volta conceitos em intuições e transformar idéias em
sentimentos, pois só através deles o gênio pode produzir”.
Como se o poeta fosse forçado, pela disparidade entre a sua realidade
pobre e a riqueza de seu espírito, a dar à sua obra enraizada na cultura alemã, no
clima e no ambiente nórdico, toda a beleza que seu olhar sabe descobrir sob a
orientação dos antigos. Assim, a noção forjada por Winckelmann de uma Grécia
antiga perfeita, equilibrada, em torno do ideal apolíneo de nobre simplicidade e
calma grandeza, pode estar presente na obra e na vida de Goethe, em seu olhar
tranqüilo e limpo sobre todas as coisas. De acordo com a interpretação que fica
indicada na carta de Schiller, em vez de copiar os antigos, o poeta aprende com
eles esse ideal de beleza para “engendrar uma Grécia” em sua obra alemã.
Tanto a relação entre a obra de Goethe e a Antigüidade quanto a questão
da exemplaridade dos gregos foram discutidas no livro Poesia ingênua e
sentimental. Nesse longo ensaio sobre a poesia, Schiller procura esclarecer sua
227
teoria a respeito da imitação dos antigos, articulando a defesa da poesia moderna
ao Classicismo. Ele também pretende fundamentar o seu próprio modo de fazer
poesia, em comparação com o modo genial de Goethe, descrito na carta de
aniversário.
4.2. O ingênuo e o sentimental
4.2.1. Conteúdo histórico
A reflexão sobre os antigos e os modernos, presente na sexta e na décima quinta
das Cartas sobre a educação estética do homem, foi retomada em Poesia ingênua
e sentimental não para elaborar uma teoria do belo artístico, como no ensaio
anterior, mas para definir dois modos de criação poética que caracterizam, por um
lado, o antigo e o moderno, e por outro lado a poesia de Goethe e a de Schiller.
Assim, a distinção entre ingênuo e sentimental tem tanto um aspecto histórico
quanto um aspecto estilístico e pessoal, que pode ser posto em evidência pela
comparação com a carta de aniversário. Mas isso não significa que o autor tenha
abandonado a base kantiana de suas reflexões estéticas, pois a questão do abismo
entre o mundo racional e o mundo natural, assim como a busca de um ideal de
equilíbrio entre os dois lados da existência humana ainda são as preocupações
fundamentais dessa reflexão estética. Como afirma Szondi, em “O ingênuo é o
sentimental”, “o ensaio Poesia ingênua e sentimental tem assim uma tripla
origem: os trabalhos poéticos de Schiller, sua tentativa de fundar, face a Goethe,
seu próprio ‘modo de criação poética’, e a retomada dos princípios kantianos”.
200
A “tripla origem” diz respeito, em primeiro lugar, a uma dimensão
artística, ligada às questões do autor naquele momento decisivo que antecedeu sua
200
SZONDI. “Das Naive ist das Sentimentalische”. Schriften II. Frankfurt, Suhrkamp, 1996, p. 70.
228
retomada da criação poética, após anos de dedicação à teoria da arte. Em segundo
lugar, trata-se de uma dimensão que parece se restringir a motivações pessoais,
mas que ultrapassa o nível mais imediato dessas motivações, porque a rivalidade
entre Goethe e Schiller ganha uma grande complexidade tanto na sua elaboração
teórica, quanto no desdobramento da obra de cada um deles durante o período de
colaboração. Em terceiro lugar, há uma continuidade com todo o desenvolvimento
da teoria da arte de Schiller, elaborada em seus ensaios e cartas anteriores a partir
da filosofia de Kant, especificamente da Crítica do juízo.
Com essa indicação da origem, Szondi não pretende deixar de lado a
questão dos antigos e dos modernos, uma das dimensões mais importantes do
livro, mas apenas mostrar os pontos de partida que levam o autor a refletir sobre o
problema histórico. Justamente a discussão deste problema constitui uma das
questões que orientam a análise do ensaísta, como indica o título das conferências
de 1970 que serviram de base para o seu ensaio “O ingênuo é o sentimental”:
“Antigos e modernos na estética da época de Goethe”. Nas duas seções sobre
Schiller incluídas nessas conferências, são elaborados os temas centrais do ensaio,
especialmente a questão de saber se os conceitos de “ingênuo” e “sentimental”
têm ou o um conteúdo histórico. Pela associação desses dois conceitos aos de
“clássico” e “romântico”, consagrados a partir da obra de Friedrich Schlegel como
uma oposição fundamental na história da arte (que marcou por exemplo a
literatura francesa do século XIX), a resposta seria evidentemente afirmativa. É o
próprio Goethe quem faz essa associação, ao declarar a Eckermann em 21 de
março de 1830, décadas após o falecimento de Schiller:
O conceito de poesia clássica e de poesia romântica, que hoje corre o
mundo e tantas discussões provoca, veio originalmente de mim e de
Schiller. Eu seguia na poesia a máxima objetividade e não queria aceitar
nenhuma outra. Mas Schiller, que via tudo subjetivamente, considerava a
229
sua atitude a única justa e, para se defender contra mim, escreveu o
ensaio acerca da poesia ingênua e da poesia sentimental. Demonstrava
que eu, contra a minha própria vontade, continuava a ser romântico, e
que a minha Ifigênia, por causa do predomínio que nela tem o
sentimento, não era de modo algum clássica, ao gosto antigo, como se
poderia supor. Os Schlegel se apoderaram da idéia e a lançaram, a ponto
que hoje toda a gente fala de Classicismo e de Romantismo, quando
cinqüenta anos ninguém se lembrava de tal.
201
Além de estabelecer a associação dos conceitos schillerianos com a
oposição conceitual entre clássico e romântico, decisiva para todo o
desdobramento do movimento romântico (basta lembrar as definições de Stendhal
em seu texto sobre Shakespeare de 1823, ou o conflito entre Victor Hugo e o
teatro clássico francês em 1830), nessa passagem Goethe dá a sua interpretação do
propósito de seu antigo interlocutor. Segundo ele, Schiller escreveu o ensaio para
se defender contra a exigência de objetividade, em nome de sua visão subjetiva
das coisas, a fim de mostrar que mesmo no poeta “objetivo” moderno, ao tratar de
um tema antigo (a Ifigênia), predominava o “sentimento”. Trata-se certamente de
uma das dimensões mais importantes do ensaio, fundamental para a sua
compreensão, mas é preciso levar em conta também outras dimensões.
Szondi questiona a identificação do par conceitual “clássico-romântico”
como o par “ingênuo-sentimental”, aceita por muitos intérpretes. René Welleck,
por exemplo, autor da História da crítica literária 1750-1830 citada na
conferência sobre o antigo e o moderno, considerava a distinção de Schlegel uma
nova formulação, modificada, da teoria schilleriana.
202
Essa associação direta é
questionável exatamente porque os conceitos de Schlegel se referem a épocas
históricas, enquanto os de Schiller, mesmo que façam referência aos antigos e aos
modernos, caracterizam sobretudo modos de criação poética. O próprio autor
201
ECKERMANN. Conversações com Goethe. Op. cit., p. 240, 241.
202
SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”. Poetik und
Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 150.
230
considerou necessário chamar a atenção para esse fato numa nota de Poesia
ingênua e sentimental:
Talvez não seja supérfluo lembrar que, se aqui os poetas modernos são
opostos aos antigos, a diferença não deve ser entendida como diferença
de época, mas também como diferença de maneira. Também nos tempos
modernos temos poesias ingênuas em todas as classes, embora não mais
da espécie inteiramente pura, e não faltam poetas sentimentais entre os
antigos poetas latinos, e mesmo entre os poetas gregos. Não apenas no
mesmo poeta, também na mesma obra amiúde se encontram ambos os
gêneros unidos, como, por exemplo, nos Sofrimentos de Werther, e tais
produtos sempre causarão o maior efeito.
203
Não é à toa que a obra citada como exemplo seja de Goethe, que o
ingênuo diz respeito no ensaio tanto ao “antigo”, para caracterizar o mundo grego,
quanto a vários autores modernos, entre os quais o autor do Werther é o ponto de
referência fundamental. Assim, a nota de Schiller pretende esclarecer uma
imprecisão terminológica que se evidencia ao longo do livro, composto pela
reunião de três artigos publicados na revista As Horas em 1795 e 1796, Do
ingênuo, Os poetas sentimentais e Conclusão do ensaio sobre os poetas ingênuos
e sentimentais. Ao indicar essa imprecisão, Szondi chega a falar de um “labirinto
terminológico”, no qual o conceito de ingênuo designa ora os objetos e as ões
que despertam o interesse do homem moderno que contempla a natureza, ora a
poesia de Goethe, ora a Antigüidade; enquanto o sentimental define a cultura
moderna, mas também está presente como modo poético entre romanos e gregos.
Szondi procura a saída desse labirinto por meio de uma reflexão sobre a dialética
conceitual do tratado schilleriano. Seu primeiro passo é desvincular os conceitos
de ingênuo e sentimental da associação direta aos conceitos de clássico e
romântico elaborados no Romantismo, embora reconheça a influência de uma
distinção sobre a outra.
203
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. Op. cit., p. 61.
231
A importância de Poesia ingênua e sentimental sobre a estética posterior é
apontada desde o início das conferências de Szondi como um fato amplamente
conhecido. Welleck, por exemplo, afirmava que a teoria de Schiller se tornou a
fonte de toda a crítica literária alemã posterior e que seu todo foi seguido, em
forma alterada, tanto pelos irmãos Schlegel quanto por Schelling e Solger. E dizia
ainda: “Por intermédio de Coleridge, ele chegou à Inglaterra. Seu ponto mais alto
foi alcançado na obra de Hegel, que por sua vez influenciou muitos críticos do
final do século XIX...”.
204
Thomas Mann também considerava o livro de Schiller
o ensaio alemão, no qual toda a ensaística alemã possível estava contida de uma
vez”, que a estética alemã do século XIX girou em torno da oposição entre
espírito e natureza e da tentativa de resolver essa oposição.
205
Para Szondi, era importante decidir se havia em Schiller uma estética
histórica, porque a historização da teoria da arte constitui, na sua concepção, a
característica decisiva de uma ruptura com a poética tradicional, baseada em
Aristóteles e predominante até o século XVIII. Enquanto as poéticas normativas
de base aristotélica classificam os gêneros como conteúdos atemporais, cujas leis
podem ser definidas e seguidas em qualquer época, as poéticas filosóficas de
Schelling e Hegel compreendem os gêneros em seu condicionamento histórico e
são integradas a uma estética filosófica. Schiller se vincula, por um lado, a Kant e
à filosofia iluminista, e por outro lado é reconhecido por Hegel como um
precursor. Seguindo a filosofia kantiana, quando Schiller pensa a história, volta-se
para o futuro da humanidade, em vez de fazer uma filosofia da história que
acompanha o desenvolvimento das épocas no passado. Szondi ressalta essa
204
WELLECK, René. Geschichte der Literaturkritik 1750-1830, Darmstadt-Berlin-Neuwied,
1959, p. 236.
205
MANN, Thomas. “Ist Schiller noch lebendig?”. Leiden und Grösse der Meister. Op. cit., p.
452.
232
tendência ao chamar a atenção para o fato de que Schiller não era um discípulo de
Herder, mas de Kant. No entanto, na distinção entre o ingênuo e o sentimental
existe uma dimensão histórica, ligada à comparação entre antigos e modernos e à
definição dos gêneros poéticos. Por isso, a posição de Schiller parece
especialmente paradoxal no que diz respeito à questão dos antigos e dos
modernos.
A tentativa de entender esse paradoxo passa pela definição dos conceitos
de ingênuo e sentimental, de acordo com as diferentes dimensões que eles ganham
no ensaio. Assim, o ingênuo deve ser analisado não só em relação à natureza e aos
antigos, como também em relação a Goethe e, mais amplamente, como um modo
de criação poética. O sentimental, por sua vez, deve ser analisado tanto em relação
à cultura e aos modernos, como também na caracterização do modo de criação
poética moderna ligado à obra de Schiller. Na dimensão histórica, encontra-se a
identificação com os conceitos de clássico e romântico que definem a época
antiga e a moderna. Na dimensão estilística e pessoal, a comparação com a carta
de aniversário evidencia a tentativa de fundamentar teoricamente a solução da
rivalidade com Goethe, defendendo assim o procedimento especulativo, reflexivo,
e a tendência filosófica à abstração que constituía um problema para o autor do
ensaio.
4.2.2. Os termos
No início de Poesia ingênua e sentimental, o ingênuo é definido em três níveis: o
do objeto, o da maneira de agir e o da poesia. Assim, em primeiro lugar trata-se
do objeto ingênuo e do interesse que ele desperta “em nós”, sendo a primeira
pessoa do plural usada para caracterizar a perspectiva moderna chamada depois de
233
sentimental. O autor constata “uma espécie de amor e comovente respeito à
natureza”, tanto no âmbito das coisas naturais, como plantas, animais, minerais e
paisagens, quanto no âmbito da natureza humana, nas crianças, nos “costumes da
gente do campo”, no “mundo primitivo”. Com esse último exemplo, começa a se
delinear a questão histórica que será abordada mais adiante, já que Schiller parece
igualar, no conceito de ingênuo, as paisagens naturais e os “monumentos de
tempos antigos”, ou os “produtos da Antigüidade remota”. A definição do
conceito de ingênuo tem como ponto de partida a constatação desse sentimento de
amor e respeito que é despertado, no homem moderno refinado e sensível, quando
ele é surpreendido pela visão da natureza simples em meio a relações e situações
artificiais. Tal interesse ocorre apenas sob duas condições: a de que o objeto seja
natureza e a de que ele seja ingênuo, isto é, a de que “a natureza esteja em
contraste com a arte e a envergonhe”.
206
A elaboração do conceito de ingênuo nesse primeiro momento retoma os
princípios kantianos da teoria estética anterior de Schiller. Como nas Cartas,
identifica-se no homem moderno uma cisão entre o mundo natural e o cultural ou
racional, e o que se busca é a possibilidade de restabelecer a ligação entre os dois
mundos separados. É nesse sentido que se pode entender a afirmação segundo a
qual amamos na natureza ingênua não os objetos, mas a idéia exposta por eles.
Trata-se da idéia de uma autonomia, do tranqüilo atuar por si mesmos, da unidade
e da necessidade, portanto daquilo que o homem moderno perdeu. Por ser
determinado por todas as convenções do mundo cultural e incapaz de um gesto
espontâneo, por seguir leis morais, o homem moderno se comove com os objetos
em que vê representadas a força pura e livre da natureza, a integridade e a
206
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental. Op. cit., p. 43.
234
infinitude. Assim, o que define o ingênuo é uma vitória da natureza sobre a arte,
entendendo-se arte aqui no sentido de um caráter artificial que predomina na
modernidade.
Os objetos ingênuos são natureza: “são o que nós fomos; são o que
devemos vir a ser de novo.” A natureza é definida aqui por sua autonomia: a
subsistência das coisas por si mesmas, a existência segundo leis próprias e
imutáveis. Assim, o que se defende não é a imitação artificial das formas naturais,
porque o interesse em tais objetos diz respeito ao fato de serem espontâneos,
expondo uma idéia contrária às limitações impostas pela artificialidade do mundo
moral. O que esses objetos são é o que deve ser buscado como ideal. “Fomos
natureza como eles, e nossa cultura deve nos reconduzir à natureza pelo caminho
da razão e da liberdade.” Para usar uma metáfora recorrente no ensaio, eles são
“expressões de nossa infância perdida, que para sempre permanece aquilo que nos
é mais precioso; por isso, enchem-nos de uma certa melancolia”.
207
Como que para reforçar a metáfora da “infância perdida”, Schiller dá como
exemplo de objeto ingênuo a criança, na qual se expõe para nós a espontaneidade
e a determinabilidade ilimitada” diante da qual a determinação do homem adulto
aparece como uma limitação. É com esse exemplo que o autor procura esclarecer
o segundo nível do conceito de ingênuo, quando ele não diz respeito aos objetos,
mas ao modo de agir e pensar. Neste segundo momento, o autor define como
ingênua a ação de uma criança que, ao ouvir a explicação de que a pobreza é a
causa do estado precário de um homem, pega a bolsa do pai e a entrega ao pobre.
Essa ação estaria perfeitamente certa caso a natureza saudável predominasse no
mundo social, caso a questão da pobreza pudesse ser remediada de maneira
207
Ibidem, p. 48.
235
imediata, só que a desigualdade social não deriva de condições naturais. No
mundo social, a ação é “vergonhosa”, porque demonstra uma falta de
conhecimento das regras estabelecidas, por outro lado seu caráter espontâneo, ou
seja, sua ingenuidade pode despertar no pai uma satisfação respeitosa em que se
expõe a idéia de um mundo natural harmonioso. Schiller ainda outros
exemplos a esse respeito, a fim de analisar ações e atitudes ingênuas, mas o
exemplo e a metáfora da criança são os mais usados no início do ensaio, porque
“nossa infância é a única natureza intacta que ainda encontramos na humanidade
cultivada”.
208
Num terceiro momento, o ensaio sobre o ingênuo se volta para a questão
da poesia, retomando a noção de gênio como alguém que o segue as regras da
arte e, orientado pela natureza ou pelo instinto, seguindo inspirações e
sentimentos, cria novas regras. Para o autor, “todo verdadeiro gênio tem de ser
ingênuo, ou o é gênio”.
209
Sua reflexão sobre esse tema dialoga tanto com a
terceira crítica kantiana, quanto com Lessing e com toda a teoria que, no Sturm
und Drang, fundamentou a valorização de Shakespeare sobre o Classicismo. Não
é à toa que, ao discutir o gênio na arte antiga e na moderna, é justamente a leitura
do dramaturgo inglês que Schiller comenta, em comparação com suas primeiras
impressões a respeito de Homero. Assim, é na reflexão sobre o ingênuo na poesia
que se evidencia, nessa primeira parte do livro, a questão dos antigos e dos
modernos. Por trás dela se pode identificar uma retomada, em novo contexto, da
defesa da arte moderna e da discussão sobre o modelo clássico, temas que
definem a relação do autor com o Classicismo. Também é na discussão sobre os
208
Ibidem, p. 55.
209
Ibidem, p. 51.
236
gregos e os modernos que começa a ser definido, de maneira mais direta, o
conceito de sentimental.
Os poetas são pensados por Schiller como guardiões da natureza, de modo
que, quando a sua relação imediata com a natureza é abalada, quando
experimentam a influência de formas arbitrárias, de uma cultura artificial,
precisam recuperar essa relação. Em outras palavras, ou os poetas são natureza
(caso do gênio ingênuo, que cria movido por um dom natural, sem refletir), ou
buscam a natureza perdida. “Daí nascem duas maneiras de criar completamente
distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o domínio da poesia”. Assim, o
sentimental se define em oposição ao ingênuo, sem remeter apenas à distinção de
épocas, mas também à distinção de modos que podem coexistir na mesma época e
que terão seu sentido analisado especialmente na situação histórica do próprio
Schiller. Em suas palavras: “Todos os que realmente são poetas pertencerão ou
aos ingênuos ou aos sentimentais, conforme seja constituída a época em que
florescem ou conforme condições acidentais exerçam influência sobre a formação
geral ou sobre a disposição momentânea de suas mentes”.
210
Para Schiller, os poetas ingênuos não estão em seu lugar numa época
artificial do mundo, como a moderna, por isso é a poesia sentimental que se impõe
na modernidade a quem pretende realizar a tarefa de “guardião da natureza”. Em
outras palavras, mesmo na época do homem artificial, inserido na cultura que o
tem mais naturalidade, é a natureza que alimenta o espírito poético, exigindo uma
busca da harmonia perdida. Por isso, para que haja poesia, é preciso que a
unidade, a relação de harmonia com a natureza identificada no modelo do passado
humano, apareça como um ideal. Essa constatação de que o momento histórico se
210
Ibidem, p. 55.
237
caracteriza pela artificialidade está na base tanto da comparação entre antigos e
modernos, quanto da reflexão de Schiller sobre os modos poéticos existentes em
sua época.
4.2.3. Labirinto terminológico
Como indica Szondi em sua análise, existe uma ambigüidade na definição de
ingênuo e sentimental. Schiller o pretende opor duas instâncias, para
demonstrar a superioridade de uma sobre outra, como poderia dar a entender a
dimensão histórica dessa reflexão. Os dois conceitos são definidos na primeira
parte do ensaio um em função do outro, o que deixa clara a sua interdependência.
O ingênuo se revela como ingênuo aos olhos do homem moderno, isto é, sob a
ótica do sentimental, que justamente por sua condição artificial se interessa pela
natureza e ama a idéia exposta por objetos e ações naturais. Assim, o sentimental
busca, por sua vez, justamente o que o ingênuo é (natureza), assumindo como
ideal aquilo que constitui no outro uma situação de fato. No resumo de sua
argumentação, feita no que era originalmente o início do segundo artigo publicado
em As Horas, Schiller afirma: “A natureza também agora é a única chama de que
se alimenta o espírito poético; somente dela extrai todo o seu poder e somente
para ela fala, mesmo no homem artificial inserido na cultura”.
211
Assim, se
ingênuo e sentimental definem as épocas antiga e moderna, é como modos
característicos de se relacionar com a natureza.
Identifica-se um modo natural, ou seja, espontâneo, harmonioso, no qual o
indivíduo age moralmente de acordo com suas inclinações, e um modo artificial,
fragmentado, no qual as inclinações se encontram em conflito com as leis morais.
211
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 60.
238
Aquele primeiro modo caracteriza a bela natureza” dos gregos, esse povo que
“podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz”, numa consideração que
retoma a noção winckelmanniana do “céu grego” e do ideal de beleza da
Antigüidade. Schiller observa como estavam próximos da natureza simples seu
modo de representar, sua maneira de sentir, seus costumes, e que reprodução fiel
dela são suas obras poéticas”.
212
a relação artificial com a natureza diz respeito
aos modernos, mencionados em primeira pessoa do plural: “cindidos de nós
mesmos e infelizes em nossa experiência de humanidade”. Por isso, aos olhos do
homem moderno, o modo de ser natural dos gregos é ingênuo, ou seja, ele
representa uma vitória da natureza sobre a cultura, despertando assim um amor
carregado de nostalgia. Trata-se do mesmo processo exemplificado pela infância
em relação ao homem adulto.
Schiller não pretende defender a superioridade dos antigos, mas procura
entender a questão da sua exemplaridade no contexto de uma justificativa da
poesia moderna. Para ele, o interesse pela perfeição da Antigüidade pode muito
bem levar a um elogio de sua arte em detrimento da arte moderna, como no
Classicismo da vertente “antiga” na Querelle francesa, ou mesmo nas Reflexões
de Winckelmann. Por isso, ou não se deveria de modo algum comparar poetas
antigos e modernos – ingênuos e sentimentais –, ou só se deveria compará-los sob
um conceito mais alto comum a ambos”, o conceito de poesia.
213
Nesse caso, o
resultado da reflexão sobre antigos e modernos segundo os termos ingênuo e
sentimental possibilita um questionamento do modelo antigo, sem levar ao seu
abandono. A cultura moderna não deve ser vista como inferior à antiga, mesmo
212
Ibidem, p. 55.
213
Ibidem, p. 62.
239
que a tenha como modelo de perfeição e de harmonia, justamente porque o que ela
busca não é restabelecer o padrão antigo, a forma antiga.
Essa reflexão sobre o modelo grego remete mais uma vez, segundo a
indicação de Szondi, à relação com a natureza e, com isso, à questão da imitação.
Neste sentido, o ensaio Poesia ingênua e sentimental pode ser entendido como a
justificativa teórica da posição de Schiller a respeito do Classicismo. Basicamente,
essa posição se fundamenta numa crítica da noção de uma volta ao passado, tanto
no caso de um retorno à natureza nos moldes de Rousseau, quanto no caso de um
retorno ao modelo grego nos moldes do Neoclassicismo, baseado em
Winckelmann. O estado natural, com o qual se identifica a harmonia dos gregos
com a natureza, ficou para trás e não pode ser restabelecido. Querer voltar a ele
seria um desejo semelhante ao do adulto querendo voltar a ser criança. Na
descrição do “amigo sentimental” que contempla a tranqüila felicidade da
natureza”, Schiller chama a atenção para o fato de que as queixas contra a cultura
se dirigem às suas falhas, mas devem levar em conta as conquistas culturais para a
liberdade humana. Na natureza, o homem não é livre, ele está submetido às
necessidades naturais, limitado por suas imposições. Por isso, o autor afirma:
“Aquela natureza que invejas no irracional não é digna de nenhum respeito nem
de nenhuma nostalgia. Ela permanece atrás de ti, tem de permanecer sempre atrás
de ti”. A perda da felicidade na natureza é uma condição para a liberdade na
cultura.
Para Szondi, é como se Schiller quisesse “dar um fim às queixas e
devaneios do promeneur solitaire [de Rousseau] e lhe pusesse nas mãos, em lugar
240
do lenço molhado de lágrimas, um exemplar da Crítica da Razão prática”.
214
É
com base na filosofia de Kant que Schiller defende a cultura moderna, apesar de
todas as suas falhas, em nome da razão e da liberdade. Mas tanto a infância quanto
a Antigüidade despertam um interesse, um sentimento de respeito mesclado com
nostalgia, porque têm aos olhos do adulto ou do homem moderno um caráter
ingênuo, no qual se encontra representado o que a humanidade perdeu ao se
afastar da natureza. Por isso, o autor recomenda ainda: “Mas se estás consolado da
perda da felicidade da natureza, deixa que a perfeição desta sirva de modelo para
o seu coração”.
215
É assim que ele introduz a sua consideração sobre os gregos,
pensados como modelos de perfeição (ingênua) que devem acender “a chama do
ideal”.
A poesia ingênua e antiga é designada como um favor da natureza, para
ressaltar tanto a ausência da reflexão, quanto o seu caráter fortuito, encerrado nos
limites da sensibilidade. É por sua própria natureza que o gênio ingênuo plena
expressão à humanidade, não por liberdade, de modo que ele está sujeito à
necessidade natural e depende inteiramente da experiência. Sem um mundo rico
em formas, sem um mundo poético de harmonia com a natureza, a tarefa do poeta
ingênuo se torna impossível. Já a poesia sentimental tem, ao seu auxílio, “a
liberdade incondicionada da razão”, de modo que não depende da experiência
para criar, mas da reflexão contemplativa que se volta para fora e, assim, busca a
natureza. Irremediavelmente separado da natureza, o poeta sentimental tem de
completar o seu objeto, dar a ele a plenitude que lhe falta, por isso transporta-se
“de um estado limitado a um estado de liberdade”. Sua tarefa, assim como a do
214
SZONDI. “Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit”, em Poetik und
Geschichtsphilosophie I: Op. cit., p. 157. A mesma frase é usada no ensaio “Das Naive ist das
Sentimentalische” [“O ingênuo é o sentimental”]. Schriften II, Op. cit., p. 75-76.
215
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 54.
241
poeta ingênuo, é expressar a plenitude da natureza humana. Mas, no mundo
moderno cultural e artificial, não faz sentido a noção de retorno à natureza, que
a própria intenção tem uma base artificial. Em vez de buscar o restabelecimento
do ingênuo, o que o homem moderno deve buscar é o ideal de uma harmonia que
o ingênuo representa. Assim, em Poesia ingênua e sentimental, o é o passado
que constitui o ideal, mas o futuro.
No entanto, Schiller também não critica o ingênuo em favor do
sentimental, ou o antigo em favor do moderno. Os poetas antigos e modernos
podem ser comparados segundo um conceito mais alto comum a ambos: o próprio
conceito de poesia, como gênero a que tanto o ingênuo quanto o sentimental
pertencem. O que o ensaio defende é a existência de uma vantagem em cada
modalidade, como argumenta o resumo que originalmente introduzia o terceiro
artigo publicado em As Horas, no qual se conclui a reflexão elaborada nos dois
primeiros. “Ao poeta ingênuo, a natureza concedeu o favor de sempre atuar como
uma unidade indivisa, de ser a cada momento um todo autônomo e acabado, e de
expor a humanidade na realidade segundo seu conceito inteiro”. Assim, o
primeiro modo de criação poética se define por um favor da natureza, um dom
natural de harmonia entre o lado sensível e o racional. Comparativamente, o poeta
sentimental é dotado de um “vivo impulso para restabelecer por si mesmo aquela
unidade nele suprimida por abstração, a fim de tornar a humanidade completa em
si mesmo, passando de um estado limitado a um infinito”.
216
Segundo Schiller, a tarefa da poesia, comum ao poeta ingênuo e ao
sentimental, é a de dar expressão plena à natureza humana. Nesse caso, uma
vantagem do poeta ingênuo por apresentar como real, com perfeição, essa
216
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 88.
242
natureza que o poeta sentimental apenas se empenha em alcançar como ideal. Por
outro lado, toda realidade permanece aquém do ideal”, porque tudo o que existe
tem seus limites, mas o pensamento é ilimitado, de modo que o poeta sentimental
tem a grande vantagem de ter uma “tarefa infinita”. Assim, a caracterização das
duas espécies poéticas é pensada com base na noção de “limitação” e “infinito”,
ligada à identificação de duas vias para realizar a tarefa de “dar à humanidade a
sua expressão mais completa possível”. Pela via da unidade e da harmonia com a
natureza, “o que tem de construir o poeta é a imitação mais completa possível do
real”; pela via de uma busca da idéia de harmonia, “o que tem de construir o poeta
é a elevação da realidade ao ideal”.
217
Em termos comparativos, a primeira via
caracteriza os antigos, e a segunda, os modernos. Quanto à realização da tarefa, a
vantagem é da poesia antiga, ingênua, que chega ao ponto de perfeição na
imitação do real. Quanto à meta a ser atingida, a vantagem é da poesia moderna,
sentimental, que busca o ideal infinito de uma harmonia com a natureza a partir da
cultura, a partir da liberdade.
Em carta a Humbolt de dezembro de 1795, período em que trabalhava no
terceiro artigo incluído em Poesia ingênua e sentimental, Schiller esclarece a
questão da superioridade do modo sentimental ou do ingênuo, dependendo do
parâmetro de comparação. “Pelo conceito”, a poesia sentimental é o ponto
máximo (a caminho de um ideal não alcançado), mas pela realidade” a poesia
ingênua é mais poética, por ter realmente alcançado um conceito menos
elevado.
218
Nessa carta, o autor associa a noção de conceito menos elevado à
perfeição de Homero, como um “ideal sensível” produzido pela abstração de
experiências determinadas. Com isso, ele aceita a noção de um ideal de beleza da
217
Ibidem, p. 61.
218
Ibidem, p. 138.
243
arte grega, defendida por Winckelmann em suas Reflexões, relativizando o uso do
termo “ideal” que, em seu ensaio, é reservado em muitas passagens apenas para a
poesia moderna. Assim, apenas o ideal absoluto”, produzido pela abstração de
toda experiência e fora do mundo sensível, se restringe à busca do poeta
sentimental na modernidade.
Com base nas noções de limitação e de infinito, Schiller defende no ensaio
a superioridade dos antigos em relação aos modernos nas artes plásticas.
Retomando o argumento de Lessing a respeito da fronteira entre as artes, ele
explica a diferença relativa ao valor que as artes plásticas e a poesia modernas
têm, em comparação com essas mesmas artes na Antigüidade. Nas obras espaciais
da pintura e da escultura, voltadas para o sentido da visão, a perfeição diz respeito
justamente ao caráter determinado das formas, à limitação que caracteriza o modo
ingênuo; na poesia, que se dirige à imaginação, pode haver uma obra-prima de
caráter ilimitado, sentimental. Se, nas artes plásticas, a perfeição do limitado
evidencia a superioridade dos antigos, na poesia os antigos têm vantagem
quanto ao que pode ser exposto sensivelmente, o “corpóreo”, mas os modernos
possuem a superioridade na exposição das idéias e do “espírito”. Szondi chama a
atenção para a importância dessa atribuição de diferentes artes a diferentes épocas,
noção que foi retomada tanto por Friedrich Schlegel quanto por Hegel. , nessa
atribuição, o reconhecimento de um caráter histórico das artes, ou de seu
condicionamento histórico de acordo com as épocas em que são elaboradas.
219
Quanto a essa dimensão histórica, embora associe ingênuo a antigo e
sentimental a moderno em muitos momentos de seu ensaio, Schiller admite a
existência de poetas ingênuos na modernidade e de poetas sentimentais na
219
Ver SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”. Schriften II, Op. cit., p. 81-82.
244
Antigüidade. Tal fato parece contradizer a definição dos conceitos principais do
ensaio, caso se pretenda entendê-los simplesmente como conceitos que se referem
a épocas históricas. Por exemplo, como poderia haver poetas sentimentais no
mundo antigo, definido pela relação harmônica com a natureza? Questões como
essa indicam que a dimensão histórica de Poesia ingênua e sentimental pode
ser compreendida, com suas contradições, se for submetida à dimensão de uma
análise dos modos de criação poética.
Na dimensão poetológica, em que se desenvolve uma crítica literária, a
questão é pensar como a poesia ingênua pode e deve aparecer no mundo moderno
essencialmente sentimental. Mesmo assim, não uma defesa unilateral de um
dos modos de fazer poético, como sendo o mais adequado à sua época. Tanto o
puro ingênuo quanto o puro sentimental se mostram problemáticos na reflexão de
Schiller, quando ele analisa e critica as criações poéticas modernas. Uma poesia
ingênua pura, negando o caráter de sua época e o afastamento da natureza, não
é anacrônica, como também não cumpre a própria tarefa da poesia (expressar
plenamente a natureza humana). A tentativa de restabelecer poeticamente o
antigo, de voltar ao homem natural, deixa de ser poesia, pois é feita por um
homem moderno, baseado na cultura artificial. Mas a poesia moderna puramente
sentimental, analisada por exemplo no caso de Klopstock, tende a perder o contato
com a realidade e se tornar excessivamente artificial, ou “extravagante”.
Nesse contexto, o termo “gênio” é usado sem a restrição ao ingênuo que
aparece na primeira parte do ensaio. Ao tratar do poeta sentimental, Schiller se
refere a um gênio poético que corre o risco de suprimir totalmente o conceito de
natureza, em vez de apenas se elevar acima de toda realidade determinada. Ao
deixar de lado as condições impostas pelo próprio conceito da natureza humana,
245
ao deixar a realidade para ascender às idéias, a poesia sentimental se torna
extravagante. A extravagância, risco do poeta sentimental, se opõe ao erro da
indolência, que caracteriza o risco do poeta ingênuo de ficar preso às
determinações do momento, ao particular, e não conseguir criar uma relação com
o geral. O desequilíbrio apontado por Schiller é entre a receptividade e a
espontaneidade, de modo que a falta de espírito, no caso de uma criação poética
puramente receptiva, e a falta de objeto, no caso de uma poesia inteiramente
espontânea, levam por caminhos opostos a um resultado vazio”. Assim, tanto a
poesia ingênua quanto a sentimental têm seguidores sem vocação, cujos trabalhos
resultam ou em cópias triviais da natureza, ou em produções fantasiosas e
extravagantes.
Para usar os termos da teoria do estilo de Goethe trata-se, de um lado, da
“simples imitação da natureza”, de outro, da “maneira”, da obra “amaneirada” que
resulta da ênfase no gosto do artista e deturpa ou abandona as particularidades dos
objetos. Neste sentido, assim como Goethe vê o estilo como uma síntese do
natural e do artificial, Schiller busca uma união dos dois modos de fazer poesia.
Numa reflexão que retoma os temas do jogo lúdico e da relação entre arte e moral,
discutidos nas Cartas sobre a educação estética do homem, o autor distingue a
“parte laboriosa da humanidade” da “parte contemplativa”, mostrando que a
valorização do trabalho leva à concepção da poesia como recreação, enquanto a
valorização do lado contemplativo reivindica um enobrecimento moral como
tarefa do poeta. Como síntese dos dois modos de ser, ele considera uma classe de
homens “que seja ativa sem trabalhar”, que possa idealizar sem ser extravagante,
“que unifique em si todas as realidades da vida”. Nessa classe se encontrariam
unificados o caráter ingênuo e o sentimental, “de modo que cada um deles
246
preservaria o outro de seu extremo, e se o primeiro protegesse a mente contra a
extravagância, o segundo a salvaguardaria do esmorecimento”.
220
Assim, o que
Schiller propõe no terceiro ensaio é a síntese de ingênuo e sentimental, como um
ideal humano a ser alcançado na poesia. Essa noção de síntese fica evidente pela
constatação de quenem o caráter ingênuo nem o sentimental esgotam por
completo o ideal da bela humanidade, que pode provir apenas da íntima união de
ambos”.
4.2.4. A dimensão estilística e pessoal
É justamente em Goethe que Schiller reconhece explicitamente essa unificação de
ingênuo e sentimental, ao retomar o tema da carta de aniversário e, sem
denominar seu interlocutor, comentar o caso do poeta ingênuo genial que trabalha
com uma matéria sentimental, moderna. No Werther e no Tasso, o perigoso
caráter do sentimental tornou-se matéria de um poeta no qual a natureza atua de
maneira mais fiel e pura do que em qualquer outro, e talvez seja, entre os poetas
modernos, o que menos se afasta da verdade sensível das coisas”.
221
Trata-se aqui da dimensão pessoal e estilística de Poesia ingênua e
sentimental, que se refere à rivalidade de Schiller e Goethe e se revela
especialmente numa comparação com a carta de aniversário. A interpretação
tradicional do ensaio tende a separar os dois autores e atribuir a cada um deles o
conceito apropriado, assim como na carta o autor se caracteriza como
“especulativo” e designa seu interlocutor “intuitivo”. Nesse caso, o poeta ingênuo
Goethe seria oposto ao sentimental Schiller. Mas há uma complexidade no sentido
de cada termo, não porque eles são pensados em dimensões diferentes, como
220
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 101.
221
Ibidem, p. 78.
247
também por sua interdependência. Para Schiller, o gênio ingênuo se impôs a tarefa
de tratar de uma matéria sentimental e a solucionou de uma maneira admirável.
Assim, as obras de Goethe são vistas como exemplos de que a poesia ingênua
pode existir numa época artificial, marcada pelo afastamento da natureza. No livro
todo, este é o único caso mencionado de um poeta ingênuo moderno, da época de
Schiller, capaz de trabalhar uma matéria sentimental. Se a defesa da poesia
moderna, uma das preocupações do autor, depende da demonstração de que não se
pode pretender um retorno à natureza ou um retorno ao modo ingênuo, o exemplo
parece pôr em xeque toda a argumentação histórica do ensaio.
No entanto, não é possível simplesmente considerar Goethe como um
poeta ingênuo, em oposição ao modo que caracteriza a modernidade, senão o
ensaio deveria ser lido como uma crítica e uma condenação do anacronismo de
sua obra. Ao contrário, ele é o poeta que exemplifica o trabalho com uma matéria
sentimental, portanto a possibilidade de uma união dos dois modos poéticos. A
interpretação exposta nas conversações com Eckermann em março de 1830 chama
a atenção para isso, pois Goethe afirma que Schiller demonstrava o predomínio do
sentimento em sua obra e o fato de que, contra a sua própria vontade, ele
continuava a ser “romântico”, mesmo que quisesse ser “clássico”, ao gosto antigo.
Os termos ingênuo e sentimental são substituídos por clássico e romântico, mas
fica evidente a interpretação de que o ensaio procura mostrar o que Goethe era
um poeta ingênuo, mas justamente que ele era um poeta sentimental.
A relação ambígua dos conceitos nessa dimensão estilística e pessoal do
ensaio é ressaltada por Szondi, que procura resolver a questão a partir de uma
nota, incluída no início do que constituía originalmente o terceiro artigo.
Remetendo à tábua das categorias de Kant, essa nota não segue a mesma oposição
248
destacada antes no ensaio, pela qual ingênuo e sentimental apareciam como
termos opostos, tendo como síntese o conceito de “ideal”. Na nota, Schiller afirma
que o contrário da sensibilidade ingênua não é o conceito de sentimental, mas o
“entendimento reflexionante”, de modo que a disposição sentimental aparece
como síntese, como possibilidade de restabelecer o ingênuo “mesmo sob
condições de reflexão”, ou seja, mesmo na época moderna.
222
Fica evidente a
ambigüidade, ligada à diferença no significado dos conceitos ao longo do ensaio,
quando se compara essa afirmação com os argumentos do primeiro artigo.
Em todo caso, o exemplo de Goethe é fundamental para a conclusão a
respeito da existência da poesia ingênua na modernidade, em função da crítica ao
anacronismo e à nostalgia dos projetos de retorno ao passado. Segundo a
argumentação desenvolvida após o trecho em que se encontra a nota sobre as três
categorias, o gênio ingênuo depende da experiência, precisa divisar uma natureza
rica em formas, um mundo poético, e sem esse auxílio externo “apenas duas
coisas podem acontecer” ao poeta. A primeira alternativa é: “Se nele o gênero é
preponderante, o gênio poético ingênuo deixa a sua espécie e torna-se sentimental
apenas para ser poético...”. Em outras palavras, se predomina a poesia (gênero), é
preciso que o poeta ingênuo se torne sentimental e abandone a poesia ingênua
(espécie). Senão ele segue o rumo da segunda alternativa: “...se o caráter da
espécie conserva a supremacia, ele deixa o seu gênero e torna-se natureza vulgar
apenas para permanecer natureza”.
223
Trata-se, nesse caso, de uma crítica à noção
de retorno à natureza, concebido como um esforço que levaria o poeta a
abandonar a tarefa da própria poesia na modernidade, portanto a deixar de ser
poeta.
222
Ver SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 88.
223
Ibidem, p. 90.
249
É a primeira alternativa que se refere a Goethe, como o realizador da tarefa
monumental de, sendo um poeta ingênuo nascido numa época sentimental,
realizar uma obra que unifica os dois modos de criação poética. Essa realização é
indicada na carta de aniversário, que considera o autor como um espírito grego
que nasceu alemão, por isso “só lhe restou uma alternativa”. Ele teve de “dar à sua
imaginação, com o auxílio da força do pensamento, aquilo de que a realidade a
privou”, isto é, teve de completar a natureza pobre e fragmentada de sua época e
de sua nação por meio da reflexão. Mas, para Schiller, seu interlocutor não se
torna apenas um poeta sentimental como outros poetas modernos, ele realiza
também uma síntese do modo de criação antiga e a moderna, porque foi capaz de
“engendrar uma Grécia por uma via racional”.
Do mesmo modo que o poeta sentimental busca o ideal de harmonia com a
natureza identificado no ingênuo, porque a sua tarefa é a de ser um “guardião da
natureza”, o poeta ingênuo se torna sentimental para continuar a ser poeta,
alcançando pela reflexão aquilo de que a época o privou. Nesse caso, o ensaio
indica uma meta em comum, a partir de caminhos opostos, ligada ao conceito do
gênero (poesia) no qual os dois conceitos discutidos se incluem. São criticados
tanto o sentimental que se distancia completamente da natureza e se torna
“amaneirado”, quanto o ingênuo que deseja simplesmente voltar à natureza
perdida e, com isso, imita uma natureza pobre a partir de uma relação artificial.
Como demonstram o exemplo de Goethe e a reflexão comparativa sobre os
antigos e os modernos, apenas a íntima união do ingênuo e do sentimental esgota
o ideal de plenitude da natureza humana. Na carta de aniversário se encontrava
a busca de identificar uma convergência, uma meta em comum, pois o espírito
250
intuitivo produziria indivíduos com o caráter do gênero, e o espírito especulativo,
gêneros profundamente reais e vivos.
Segundo Goethe, o ensaio de Schiller foi escrito para se defender, para
justificar sua posição especulativa e subjetiva diante da exigência de objetividade,
do caráter intuitivo genial de seu interlocutor. E, de fato, o tema da carta de
aniversário, baseado numa consideração do modo de criar dos dois escritores, tem
uma grande importância no ensaio, evidenciada especialmente na observação
sobre o poeta ingênuo numa época sentimental. Assim, o exemplo de Goethe,
ligado à dimensão pessoal e estilística, também é fundamental para a reflexão
histórica sobre antigos e modernos. No final de seu ensaio sobre Poesia ingênua e
sentimental, Szondi chega a dizer: “é da reconstrução da história de uma evolução
artística individual a vida de Goethe que nasce uma filosofia histórica da
arte”.
224
Essa filosofia da história diz respeito, sobretudo, à posição de Schiller em
relação ao Classicismo.
A possibilidade da poesia ingênua numa época sentimental e, mais ainda, a
possibilidade da recriação de uma Grécia por via racional pode ser considerada
como uma justificativa do Classicismo, no contexto de um questionamento de seu
modelo. Ao mesmo tempo, Schiller condena a noção de volta ao passado e pensa
os antigos como modelos de uma perfeição que deve ser buscada como ideal. Não
se deve voltar a eles, mas buscar o que eles tinham intuitivamente, naturalmente,
pela via da reflexão e da cultura, tarefa que pode ser realizada no âmbito da
poesia. Neste sentido histórico, a reflexão sobre antigos e modernos em Poesia
ingênua e sentimental constitui uma versão alemã da antiga disputa francesa
discutida na Querelle iniciada no século anterior, mas uma versão em que se
224
SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”, Schriften II. Op. cit., p. 105.
251
procura um equilíbrio entre a noção de um modelo dos antigos e a defesa da
poesia moderna. Esse passo de Schiller influenciaria, por sua vez, a concepção de
clássico e romântico que marcou a teoria da arte no Romantismo.
5. A poética dos gêneros
5.1. Schiller e o condicionamento histórico
Em Poesia ingênua e sentimental, com base na distinção entre os termos
principais do ensaio, Schiller analisa os gêneros poéticos modernos, ou
sentimentais: a sátira, a elegia e o idílio. Não se trata de uma classificação formal,
mas de uma reflexão sobre três “estados de sensibilidade” específicos da poesia
sentimental, nos quais o que está em causa é a contradição ou concordância das
idéias com o estado real. A definição dos gêneros pela maneira de sentir se
distingue da maneira tradicional de classificar os gêneros poéticos, como explica a
nota na qual o autor observa que, “na determinação dos gêneros poéticos”, sempre
baseada nos poetas antigos e ingênuos, “é preciso ter em certa conta a poesia
sentimental”. Considerando-a como uma ampliação da verdadeira poesia, seu
afastamento das formas da poesia ingênua põe em cheque a classificação
tradicional dos neros, pois “nenhuma espécie de poema permaneceu de todo a
mesma que fora entre os antigos e, sob nomes antigos, amiúde se exercem gêneros
bastante novos”.
225
Szondi identifica, nessa consideração de Poesia ingênua e sentimental,
uma recusa da estética tradicional de base aristotélica, segundo a qual a poética se
orienta pela classificação de gêneros atemporais, independentes do
condicionamento histórico. Com isso, Schiller inicia uma “historização” da
225
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, Op. cit., p. 84.
252
poética, característica que vai definir mais tarde, em Hegel e na obra dos estetas
do século XX ligados ao filósofo, a concepção dos gêneros na estética moderna.
226
Consciente do condicionamento histórico das formas poéticas, Schiller demonstra
a importância de uma reflexão que leve em conta a poesia moderna e a evolução
dos neros. Mas isso não significa descartar a poética tradicional, que no seu
ensaio a poesia ingênua pode ser pensada como um modelo de perfeição, mesmo
que ele critique a simples imitação desse modelo.
Como demonstrará o projeto classicista de Weimar, do qual Schiller
participa, a evolução dos gêneros e a concepção de suas formas modernas
podem ser pensadas com base no conhecimento da arte dos antigos, da
classificação tradicional e de sua relação com um novo tipo de classificação. E, de
fato, é o estudo dos gêneros poéticos da Antigüidade que orienta, sobretudo em
1797, um ano depois da publicação do terceiro artigo de Poesia ingênua e
sentimental, as discussões de Goethe e Schiller sobre a arte poética nas suas
cartas. Nesse caso, como uma justificativa do Classicismo no contexto de uma
valorização da poesia moderna, a teoria desenvolvida no ensaio sobre o ingênuo e
o sentimental possibilita a integração de um estudo dos antigos ao projeto artístico
do autor, voltado para a elaboração de tragédias modernas. Embora aponte a
necessidade de uma renovação da teoria dos gêneros, Schiller se juntou a Goethe
num projeto que se baseia principalmente na discussão da poética a partir da arte
antiga, a fim de avaliar os possíveis desdobramentos de cada gênero na
modernidade.
226
Ver SZONDI. “O ingênuo é o sentimental”, Schriften II. Op. cit., p. 81.
253
5.2. O estudo dos clássicos
Segundo a introdução à revista Propileus, da qual participaram Goethe e Schiller,
“uma das características mais marcantes da decadência da arte reside na mistura
de seus diferentes neros”.
227
Por isso, a teoria dos gêneros artísticos é discutida
naquele texto introdutório para esclarecer a lição a ser aprendida no estudo dos
antigos, retomando o propósito de Lessing, que tinha reconhecido anos antes a
necessidade de delimitar as fronteiras entre as artes, que a confusão entre o
modo de ser da pintura e o da poesia levava a uma avaliação crítica equivocada.
Assim como as artes são aparentadas entre si, mas é preciso ter consciência de
suas fronteiras, os gêneros artísticos tendem a se misturar e até a se fundir, mas “o
dever, o mérito e a dignidade do verdadeiro artista reside no fato de ele separar
dos outros o ramo da arte no qual trabalha, de saber dar autonomia a cada arte e a
cada gênero”.
Goethe, que assina a introdução, considera o artista verdadeiro como um
“legislador”, que se volta para a autonomia da arte, enquanto o artista que segue
apenas a natureza seria incapaz de criar boas obras. Essa argumentação pode ser
considerada como uma crítica dos propósitos do Sturm und Drang, em nome do
ideal clássico de clareza e distinção. Para Goethe, o estudo aprofundado das obras
de arte se destina à formulação de princípios que sevem tanto para a formação do
artista, em sua atividade prática, quanto para o propósito teórico de explicar,
apreciar e julgar essas obras. A crítica teria então uma função educativa, ao lado
de uma função interpretativa, com base num conhecimento minucioso das obras.
Assim, embora os artistas modernos alemães reconheçam a exemplaridade
das obras de arte antigas, nas quais a simplicidade da forma define os gêneros
227
GOETHE, “Introduction aux Propylées”. Op. cit., p. 155.
254
com perfeição, eles não pretendem simplesmente copiar a forma antiga. Seu
interesse é combater a decadência da arte indicada por Goethe, ou seja, a mistura
dos neros na modernidade. Nesse caso, a defesa do Classicismo, de um estudo
da arte antiga, visa à formulação de princípios num contexto obscurecido o por
um programa que contesta a exemplaridade dos antigos, mas pela falta de
conhecimento da Antigüidade clássica. Na introdução de Goethe, tanto a reflexão
sobre o aprendizado e a prática da arte quanto a consideração sobre a teoria se
voltam para uma defesa do conhecimento detalhado “científico” do objeto a
ser tomado como tema. Considerando-se a própria obra de arte como objeto, no
lugar da natureza estudada pelo artista, é preciso revelar suas diferentes partes,
conhecer suas especificidades, portanto elaborar uma teoria dos gêneros em que a
arte se divide. E essa elaboração, apenas indicada na introdução aos Propileus
como uma necessidade diante da decadência da arte moderna, com base no
modelo antigo, foi justamente o tema central da correspondência entre Goethe e
Schiller. Por isso, uma análise desse tema nas cartas dos dois escritores pode
esclarecer a importância da teoria dos gêneros para o projeto do Classicismo de
Weimar.
5.3. A correspondência
A partir de 1794, Goethe e Schiller trocaram mais de mil cartas, que tematizam
tanto questões gerais de teoria da arte, quanto detalhes dos projetos literários em
que trabalhavam. Embora a correspondência tenha diminuído muito em volume a
partir de 1799, quando ambos passaram a morar na mesma cidade, a colaboração e
o debate continuaram até a morte de Schiller em 1805. Essas cartas, com suas
considerações sobre a cultura moderna, sobre a classificação dos gêneros poéticos
255
e sobre obras como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Fausto e
Wallenstein, são consideradas como um dos principais documentos da teoria do
Classicismo de Weimar. Como afirma Lukács, em seu ensaio incluído no livro
Goethe e sua época: “A profunda e íntima vinculação de uma teoria estética muito
desenvolvida com uma penetração profunda nos detalhes mais refinados da
prática artística é a característica peculiar dessa correspondência”.
228
Uma das principais intenções dos dois escritores, especialmente durante
todo o ano de 1797, foi definir os gêneros literários no contexto de uma reflexão
sobre a criação artística moderna. Goethe ressalta a dificuldade resultante dessa
intenção em carta a Schiller de 27 de dezembro de 1797: “Infelizmente, nós
modernos de vez em quando também nascemos poetas e perambulamos
atormentados por todos os gêneros sem saber ao certo onde realmente
estamos...”.
229
Levando em conta essa decadência dos modernos e a clareza na
definição dos gêneros na arte antiga, e seguindo o rumo indicado por
Winckelmann e Lessing, Goethe considera o estudo dos autores gregos como a
base para definir os parâmetros a serem seguidos na produção poética moderna.
A Poética de Aristóteles, modelo de toda a tradição de teoria da arte latina
e classicista é considerada, na correspondência, como uma referência para a
discussão acerca dos gêneros. Curiosamente, embora tenha dedicado alguns anos
ao estudo dos autores gregos, Schiller só leu a Poética nessa época, embora
conhecesse seus argumentos por intermédio de Lessing, entre outros. Em carta de
5 de maio de 1797, ele comenta estar muito satisfeito com Aristóteles, a quem
considera “o verdadeiro juiz infernal de todos aqueles que se prendem como
escravos à forma externa e dos que tentam situar-se fora de toda e qualquer
228
LUKÁCS, Georg. “El epistolario Schiller-Goethe”. Goethe y su época. Barcelona - México,
Ediciones Grijalbo, 1968, p. 119.
229
GOETHE E SCHILLER. Der Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller. Op. cit., p. 527.
256
forma”.
230
Prender-se “como escravo à forma externa” e simplesmente imitar os
gêneros antigos era um despropósito identificado por Aristóteles, de modo que
o Classicismo de Goethe e Schiller não deve ser entendido como uma defesa da
restrição às formas tradicionais da poesia. Por outro lado, a intenção de evitar toda
e qualquer forma era justamente o problema identificado como uma decadência da
arte moderna, o que impunha a discussão dos gêneros como modelos. A
observação de Schiller também deixa clara a intenção de pensar os gêneros
antigos em sua relação com os temas e as questões da poesia moderna, aporque
o interesse principal dos escritores, em sua troca de cartas, era o debate em torno
de sua própria criação artística. Com isso, todo o esforço para esclarecer os
problemas teóricos da arte se encontrava a serviço dessa questão de poética
prática.
Schiller, neste período em que discutia a definição normativa da poesia
épica e da poesia trágica, tinha voltado a trabalhar em sua obra teatral e pretendia,
como afirma em carta de outubro de 1797, descobrir um tema da mesma natureza
do tema do Édipo Rei, “e que teria as mesmas vantagens para o dramaturgo”, pois
“essas vantagens são incalculáveis”.
231
Embora receie que o Édipo seja em si
mesmo um gênero, sem nenhuma espécie secundária, portanto uma obra
inimitável, essa tentativa de elaborar modernamente o tema presente na tragédia
de Sófocles pode ser acompanhada, segundo Butler, em quase todas as últimas
obras dramáticas de Schiller.
232
Assim, a questão da possibilidade de imitação dos
antigos se articula, nas cartas, à de como elaborar uma tragédia moderna, pensada
230
Ibidem, p. 387.
231
Ibidem, p. 480.
232
Ver BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Op. cit., p. 193. A carta é citada
pelo autor, que analisa a elaboração do tema do destino em cada uma das peças.
257
nos ensaios teóricos de Schiller sobre a arte trágica sem ter os gregos como
referência fundamental.
Outro exemplo de desdobramento das questões formais discutidas na
cartas é o fato de Goethe ter escrito em 1797 Hermann e Dorotéia, um poema
épico em doze cantos, justamente quando um tema recorrente das suas cartas era a
poesia épica, questionada sobretudo a partir do estudo de Homero e da Poética de
Aristóteles. É natural que, após terminar o poema, Goethe tivesse a intenção de
escrever um trabalho do mesmo gênero, que se chamaria “A caçada”, baseado na
idéia que daria origem, trinta anos depois, à Novela. As discussões com Schiller a
respeito da poesia épica, as críticas feitas por seu interlocutor ao plano do poema e
o seu incentivo para a retomada do trabalho no Fausto foram alguns dos motivos
que levaram Goethe a desistir de escrever o novo trabalho naquela época.
A intenção de fazer de A caçada” um poema épico demonstra a
preocupação do autor com a elaboração do gênero poético em que vinha
trabalhando, o que o conduziu a um problema formal, ligado à necessidade de um
“retardamento da ação” que ele identificara nas obras de Homero. Para Goethe, ao
contrário do poema dramático, que apresenta a ão de modo direto e fechado,
como ela deve ser representada no teatro, o poema épico se caracteriza por
descrever cada detalhe de acordo com sua natureza própria, avançando e
retrocedendo no tempo, a fim de retardar o curso da ação e valorizar o modo como
ela é apresentada. Toda ação deve preparar o ato heróico individual, e quanto mais
tortuoso o caminho, quanto mais cheio de conflitos e detalhes, mais se destaca o
herói quando finalmente a narrativa apresenta os seus feitos. É por isso que
Goethe comenta, na carta a Schiller de 19 de abril de 1797:
Se essa necessidade de retardamento [...] for realmente essencial e
indispensável, todos os planos de andar em linha reta na direção da meta
258
deveriam ser completamente rejeitados ou considerados um gênero
histórico subordinado. O plano de meu segundo poema [“A caçada”]
cometeu esse erro, e tomarei cuidado quando escrever um verso que seja,
até estarmos bem certos disso. A idéia me parece extraordinariamente
frutífera. Se estiver correta, deve levar-nos muito adiante, de modo que
faço questão de sacrificar tudo por ela.
233
.
Três dias depois, ele voltou a escrever sobre o mesmo problema,
reconhecendo que toda a ação, em seu plano de poema, avançava em linha reta, de
modo muito direto. Sua dúvida era “se um tal plano também se faria passar por
épico, já que ele é inserido na lei geral, segundo a qual o que interessa é o
verdadeiro como, e não o quê...”. Ou se, por desobedecer à lei de retardamento da
ação, “não se deveria incluir um poema assim numa classe subordinada de
poemas históricos”. Nesse caso, o autor demonstra o propósito de seguir
rigorosamente a norma estabelecida a partir do estudo da literatura antiga, de
acordo com um Classicismo rigoroso. Na sua resposta, em uma carta de 25 de
abril de 1797, com o mesmo espírito, Schiller desaconselha Goethe a trabalhar
num poema épico a partir do esquema planejado:
Quanto ao seu novo poema, confesso que de certa forma temo por ele
[...]. A maneira como pretende desenvolver sua ação me parece mais
próxima da comédia do que da epopéia. O senhor pelo menos terá muito
a fazer para tirar dela o elemento que suscita a surpresa, a admiração,
que ele não é assim tão épico.
234
Em 15 de janeiro de 1827, após a leitura da primeira parte da Novela,
impressionado com a exatidão das descrições, Eckermann perguntou a Goethe
sobre o esquema usado para compor uma narrativa tão precisa. Então, o velho
escritor lhe explicou que, ao retomar a idéia de trinta anos antes, não tinha
encontrado o esboço antigo, por isso trabalhara a partir de um novo esquema,
agora voltado para a elaboração do tema numa forma narrativa que incluía apenas
algumas canções em verso. Depois de pronta a novela, ele por acaso tinha achado
233
Ibidem, p. 375. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de viagem.Op. cit., p. 105.
234
Ibidem, p. 380. Ver Goethe e Schiller - Companheiros de viagem. Op. cit., p. 109-110.
259
o esquema inicial, mas ficara satisfeito por ter adotado uma outra forma, “já que a
primeira tinha sido pensada para um tratamento épico e não se aplicaria a uma
apresentação do tema em prosa”.
Eckermann terminou de ler a novela no dia 18 de janeiro, também na casa
de Goethe, que andava de um lado para o outro no seu quarto de trabalho, durante
a leitura, e esquentava as mãos na lareira. Na longa conversa que se seguiu,
registrada integralmente nas Conversações, o escritor se declara feliz pelo
desenvolvimento de um tema que tinha guardado por tanto tempo na cabeça, sem
conseguir trabalhá-lo de maneira satisfatória. Ele considera que, quando tinha
revelado seus planos a Schiller, seu amigo o desaconselhara a levá-los adiante por
não ser capaz de perceber o que aquele assunto poderia vir a ser, “porque o
poeta sabe o encanto que é capaz de dar ao seu objeto”. Goethe ainda acrescenta,
comparativamente, que também teria desaconselhado Schiller a escrever uma de
suas melhores peças, Wallenstein, se o autor lhe tivesse pedido uma opinião sobre
o tema, pois nunca imaginaria que aquele assunto pudesse ser tão apropriado para
uma obra teatral.
Ao concluir que a forma narrativa de fato possibilitou a melhor elaboração
do tema da caçada, em que um tigre e um leão se soltam nas montanhas, Goethe
reconheceu ter encontrado, trinta anos depois, o gênero mais apropriado para a
idéia que Schiller tinha considerado “pouco épica”. A questão do gênero ainda era
tão importante para o escritor, nos últimos anos de sua vida, que ele resolve dar ao
seu novo escrito o nome do próprio gênero em que ele se encaixa: “Sabe,” disse
Goethe, “vamos chamar-lhe simplesmente de ‘Novela’, pois o que é uma novela
senão um acontecimento inusitado? Esse é o conceito exato do que é novela, e
260
muitas coisas que correm na Alemanha com o título de novela não passam de
contos ou o que quer que sejam”.
235
Apesar da evidente preocupação com as questões formais mostrada nesses
exemplos, durante o período de discussão dos gêneros nas cartas Goethe e Schiller
não pretendiam imitar simplesmente a Antigüidade. No ensaio Poesia ingênua e
sentimental, Schiller tinha chamado a atenção para o fato de que os gêneros
sofreram transformações ao longo da história, por isso devem ser pensados no
contexto da poesia moderna. Nesse caso, a teoria dos gêneros constituía um
estudo das leis formais da poética tradicional, a fim de refletir sobre a aplicação de
tais leis formais aos temas que a época moderna oferecia ao poeta. A poesia antiga
e a Poética aristotélica são consideradas pelos dois escritores como uma fonte de
definição dos gêneros em sua pureza original não para reproduzir a forma antiga,
mas para pensá-la no contexto moderno.
Assim, o debate teórico realizado nas cartas deve ser entendido em relação
estreita com as obras dos dois interlocutores que, do ponto de vista formal,
seguem um projeto de exploração prática dos gêneros definidos por eles. Em
1797, Schiller trabalhava numa tragédia, a primeira peça da trilogia Wallenstein, e
Goethe no poema épico Hermann e Dorotéia. Justamente por isso, a sua principal
preocupação nas cartas deste ano era a distinção entre poesia épica e dramática.
Eles não pretendiam desenvolver um sistema ou uma classificação geral dos
gêneros poéticos, mas comparar as características gerais do drama e da epopéia, a
partir da definição tradicional (antiga), para discutir as suas obras em processo de
elaboração.
235
ECKERMANN. Conversações com Goethe, Op. cit., p. 156 (29/01/1827).
261
Em sua conferência Da poética dos gêneros normativa para a
especulativa”, Szondi chama a atenção para o fato de que as concepções de
Goethe e Schiller relativas à poética dos gêneros, como foram elaboradas na
correspondência de 1797, podem ser compreendidas com base nessa intenção
de discutir os limites entre a epopéia e a tragédia.
236
Por isso mesmo, Szondi
considera que a poética dos gêneros desenvolvida nas cartas permanece como que
“na pré-história da poética idealista” de caráter especulativo, já voltada para uma
reflexão filosófica e histórica sobre os três gêneros poéticos tradicionais (o épico,
o dramático e o lírico). Essa afirmação não deve ser entendida como uma crítica à
teoria de Goethe e Schiller, mas como um reconhecimento de que essa teoria
precisa ser vinculada à sua verdadeira intenção de um esclarecimento da prática
artística.
As obras literárias de Goethe e Schiller evidenciam que seu Classicismo
não pode ser escravo da “forma exterior” da poesia antiga. Peças como
Wallenstein e Maria Stuart, que seguem o projeto elaborado nos ensaios de teoria
da tragédia dos anos anteriores, certamente o se assemelham rigorosamente às
tragédias gregas. Além disso, seria impossível explicar de acordo com as normas
da tradição poética aristotélica o Fausto, por exemplo, obra em que Goethe voltou
a trabalhar justamente em junho de 1797, aconselhado por Schiller, a partir da
versão fragmentária de 1790. Mesmo levando em conta apenas a primeira parte,
publicada em 1808, trata-se de uma peça mais semelhante aos mistérios medievais
do que às obras dramáticas gregas, uma obra híbrida, quase inclassificável, mais
uma tragicomédia com elementos épicos e líricos do que uma tragédia.
236
Ver SZONDI. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Op. cit., p. 41.
262
Goethe e Schiller pensam a essência dos gêneros, a fim de questionar a
possibilidade de aplicar as formas puras da Antigüidade aos conteúdos de sua
época. Com isso, os conteúdos modernos e a exigência de criar sem ser escravo da
forma exterior tradicional o um sentido novo à poética. Na correspondência,
não o conceito de cada gênero começa a ser desvinculado de uma classificação
baseada apenas na forma, mas também as novas espécies literárias, como o
romance e o drama burguês, despontam como temas para a teoria da arte.
263
Conclusão
As teorias de Winckelmann e Lessing, ao criticar a arte de seu tempo e questionar
seus modelos, indicaram os rumos que foram seguidos pela literatura alemã da
segunda metade do século XVIII. Tanto o Sturm und Drang quanto o Classicismo
de Weimar tiveram como precursores esses dois teóricos da arte, em cujas obras
se encontram definidas as questões que orientaram os movimentos literários
posteriores na busca dos modelos para a arte alemã. Por um lado, o modelo da
Grécia antiga, proposto por Winckelmann como ideal de beleza artística,
constituiu o fundamento do helenismo que marcou a cultura alemã moderna, nas
artes e na filosofia. Por outro lado, o modelo de Shakespeare como nio
moderno, proposto por Lessing, foi seguido pela dramaturgia pré-romântica e
romântica, influenciando de modo decisivo a produção literária na Alemanha.
A crítica da arte de seu tempo foi o ponto de partida tanto das Reflexões
sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura, quanto do
Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, e essa crítica implicava
uma comparação das obras modernas com as obras-primas da Antigüidade
clássica. Nesse contexto, a representação do sacerdote troiano Laocoonte nas artes
dos antigos se tornou, a partir da crítica de Lessing à interpretação de
Winckelmann, um exemplo fundamental para o helenismo alemão. A análise da
escultura e a comparação com o poema de Virgílio indicavam as questões centrais
na teoria da arte do final do século XVIII: a imitação dos antigos, o ideal de
beleza da arte grega, a fronteira entre as artes, a comparação com as obras
modernas. Goethe e Schiller retomaram o mesmo exemplo para discutir as
questões teóricas em que se baseou a fase clássica de sua literatura.
264
Os gregos antigos se tornaram, para os alemães modernos, um modelo e
um ponto de referência na história da arte, na filosofia da arte e na filologia, e foi
Winckelmann quem estabeleceu as bases desse helenismo. Identificando a
decadência das artes plásticas de seu tempo, o autor das Reflexões criticou a via de
imitação da natureza moderna e indicou, nos gregos antigos, uma outra via, na
qual se revela outra relação entre arte e natureza. Assim, a noção de nobre
simplicidade e calma grandeza como um ideal a ser aprendido diferencia o
Classicismo de Winckelmann de toda uma tradição na qual a imitação dos antigos
gregos e romanos fora compreendida como um imperativo, um estabelecimento
de regras formais e atemporais para as artes. Sendo um dos primeiros
historiadores da arte a demonstrar o condicionamento histórico e geográfico da
criação artística, o autor das Reflexões influenciou também a concepção teórica
que, especialmente com Herder, justificaria um questionamento da exemplaridade
dos antigos e uma valorização da arte moderna e nacional.
Lessing desenvolveu a crítica da arte e da teoria de sua época num campo
mais amplo, apontando os erros de uma tradição em que os critérios para avaliar
as artes plásticas eram usados para julgar a poesia. Ao propor, em seus ensaios
sobre o teatro, uma nova interpretação da Poética de Aristóteles, que justificasse a
valorização de Shakespeare e a crítica do teatro clássico francês, Lessing se
mantinha vinculado à tradição por aceitar como parâmetro a teoria da arte do
filósofo grego. Mas, embora vinculada à tradição aristotélica, sua defesa de uma
nova dramaturgia alemã e sua busca de um modelo moderno constituíram o ponto
de referência de um movimento de crítica ao Classicismo. Depois de Lessing, o
Sturm und Drang não se voltou só contra o modelo da arte francesa, predominante
na Alemanha do século XVIII, mas se desenvolveu como uma contestação da
265
própria necessidade de imitação dos antigos. Essa necessidade foi negada em
nome da cultura popular, dos temas nacionais e do caráter nórdico, ou seja, em
nome do condicionamento histórico, geográfico e cultural da criação artística. A
valorização de Shakespeare contra o Classicismo francês, iniciada por Lessing em
suas Cartas sobre a nova literatura, foi decisiva para o movimento pré-romântico,
do qual Herder foi um dos principais teóricos, e Goethe e Schiller, os grandes
expoentes artísticos.
Assim, a fundamentação e a crítica do Classicismo na Alemanha
retomavam uma questão central da teoria da arte francesa desde os século XVII: o
debate sobre os antigos e os modernos. E, se o debate estético do Classicismo
alemão pode ser visto como uma versão da Querelle francesa, Winckelmann deve
ser considerado um partidário dos antigos, e Lessing, dos modernos. Pois o
primeiro defende a imitação da arte grega, consolidando o helenismo na literatura
e na filosofia alemã, enquanto o segundo critica o Classicismo francês por seu
rigor excessivo e propõe Shakespeare como modelo do gênio moderno, capaz de
renovar a criação artística. No entanto, como Lessing se baseia em Aristóteles, e
Winckelmann pretende que os alemães se tornem inimitáveis, esse debate sobre
antigos e modernos não opõe duas perspectivas em conflito, mas busca desde o
início uma conciliação entre a imitação dos antigos e a criação de uma arte
moderna.
O desenvolvimento da literatura alemã a partir da segunda metade do
século XVIII foi ligado à história da recepção de Shakespeare. Do ponto de vista
da teoria da arte, a defesa do gênio moderno como modelo exigia uma renovação
teórica, uma contestação das normas tradicionais a fim de justificar, por exemplo,
a equiparação de Shakespeare a Sófocles, considerado o grande nome da
266
dramaturgia grega. Depois de Lessing, Herder e Goethe fizeram essa mesma
equiparação, que se baseava numa interpretação renovada da Poética de
Aristóteles. Essa elaboração das idéias de Lessing sobre o teatro, no Sturm und
Drang, o constituiu a base para a produção de algumas das obras-primas da
literatura alemã na modernidade, como também indica a importância da
comparação entre antigos e modernos na teoria da arte daquela época. Era preciso
que as obras da Antigüidade não fossem mais consideradas como modelos
insuperáveis, da mesma maneira que a poética o deveria mais ser vista como
um estabelecimento de regras atemporais para a criação artística. Em outras
palavras, era preciso justificar a equiparação do gênio moderno (Shakespeare) ao
antigo (Sófocles), para superar os padrões do Classicismo francês.
No entanto, justamente os dois escritores considerados como expoentes do
Sturm und Drang, cada um deles exaltado, a seu tempo, como o Shakespeare
alemão”, dedicaram-se posteriormente a um projeto classicista. Retomando a
proposta básica de Winckelmann, Goethe e Schiller não justificaram
teoricamente o Classicismo alemão, mas também realizaram artisticamente um
projeto de “imitação” dos gregos. Mas essa realização do Classicismo não foi um
retrocesso, no sentido de uma retomada do modelo classicista francês, que autores
como Gottsched e Wieland praticavam na Alemanha. Se, na fase clássica de
Goethe e Schiller, o ponto de partida para a criação artística foi realmente imitar
os gregos, essa imitação deve ser compreendida no sentido de uma busca do ideal
artístico, inserida num debate acerca das formas mais puras de cada nero
poético antigo. Os dois escritores tinham em vista a possibilidade de desenvolver
esses gêneros modernamente e de buscar, em suas obras, aquele ideal de perfeição
identificado nos gregos.
267
Do ponto de vista da teoria da arte, um dos principais temas do
Classicismo de Weimar era a caracterização dos gêneros, sobretudo a tragédia e a
epopéia, não porque Goethe e Schiller trabalhavam em obras desses gêneros,
mas também porque reconheciam a confusão entre os gêneros como o traço
marcante da decadência na poesia de sua época. Foi com o interesse voltado para
a fundamentação de sua própria obra poética que os dois escritores se dedicaram a
discutir os tipos de poesia, a partir do estudo dos clássicos gregos. Como a teoria
estava a serviço de sua prática artística, a imitação dos gregos tinha o sentido de
uma busca de fundamentos, de um aprendizado, a partir da identificação da
decadência da arte moderna. Essa postura crítica os aproxima de Winckelmann,
que indicara o caminho de buscar na arte grega um ideal de beleza para a criação
moderna. E, por outro lado, a poética dos gêneros remete a Lessing, que havia
identificado a necessidade de criticar as bases da teoria da arte e estabelecer as
fronteiras entre os campos da criação artística. Assim, apesar das eventuais
críticas às interpretações propostas no Laocoonte e nas Reflexões, por exemplo
quando a análise do Laocoonte é retomada nos ensaios de Goethe e de Schiller,
não se pode deixar de reconhecer que as idéias desses dois precursores estavam na
base do projeto classicista do final do século XVIII.
Principalmente a partir do período passado na Itália, a produção literária de
Goethe, profundamente influenciada pelo estudo de Aristóteles e Homero, pode
ser considerada como a principal expressão artística do Classicismo de Weimar.
Com a colaboração de Schiller, Goethe formulou também, em ensaios e cartas,
uma teoria classicista da arte que se caracteriza pela relação com as ciências
naturais. Nessa teoria, uma crítica da simples imitação, presa à forma objetiva,
e da maneira, como expressão subjetiva que se distancia dos objetos. Goethe
268
propõe, com base no conceito de estilo, uma síntese do lado objetivo e do
subjetivo da criação artística, viabilizada pelo conhecimento da natureza e pelo
domínio dos recursos expressivos da arte. No nível do estilo, a composição
orgânica da obra de arte, seguindo leis autônomas, tem uma afinidade com a
essência dos objetos naturais.
Segundo Schiller, na carta de aniversário, Goethe foi capaz de “engendrar
uma Grécia por uma via racional”. Sendo um alemão moderno, mas de espírito
grego, ele buscou em sua obra um ideal de beleza que não podia vir da imitação
da natureza. Em outras palavras, sendo um poeta ingênuo numa época
sentimental, ele teve de se tornar sentimental para completar, por meio da
reflexão, aquilo de que a realidade o privara. Com isso, a obra de Goethe se
aproximou do ideal de uma relação harmoniosa com a natureza, mas sem deixar
de ser moderna, sem deixar de trabalhar com temas sentimentais. “Engendrar uma
Grécia por via racional” é uma expressão do ideal do Classicismo de Weimar,
porque a formulação de Schiller indica o paradoxo de uma imitação dos antigos
que não pode simplesmente copiá-los ou torná-los objeto de nostalgia, nem meta
de um caminho de volta. No sentido que ganha no ensaio sobre poesia ingênua e
sentimental, a exemplaridade dos antigos diz respeito a uma relação com a
natureza que deve ser buscada como ideal pelos modernos. E Goethe, poeta
moderno de espírito antigo, ou poeta ingênuo que se torna sentimental, realizou
como nenhum outro esse projeto de imitação dos antigos.
Assim como seu interlocutor, Schiller rompeu com o Sturm und Drang,
para se tornar o principal colaborador de Goethe na fase clássica. Mas essa ruptura
aconteceu depois da elaboração, com base na filosofia de Kant, de uma teoria
estética cuja questão central era a arte em sua relação com a cultura e a sociedade
269
modernas. O interesse de Schiller pelos gregos e, especialmente, pela arte trágica
grega dizia respeito, em primeira instância, à discussão teórica e à prática artística
ligadas às tragédias modernas. Em seu ensaio sobre poesia ingênua e sentimental,
criticando o caráter nostálgico de uma volta aos gregos, o escritor desenvolve a
noção do ideal presente na arte antiga, a ser buscado pelos modernos, e indica a
obra de Goethe como uma realização dessa busca. A teoria da arte de Schiller
antecipou, em alguns aspectos, o caminho seguido pela estética do século XIX na
Alemanha. Além de procurar superar o abismo entre o mundo sensível e o
racional, ele defende uma reflexão sobre os gêneros poéticos a partir de uma
compreensão de seu condicionamento histórico. Suas peças da fase clássica, como
Maria Stuart, A noiva de Messina e a trilogia Wallenstein, refletem tanto a
definição teórica dos ensaios anteriores (sobretudo a questão da liberdade), quanto
o estudo da arte trágica nos gregos antigos.
Os fundamentos do Classicismo de Weimar definem sua diferença em
relação ao Classicismo francês. A noção de imitação dos antigos baseada em
Winckelmann é diferente da noção normativa que estava na base do teatro
clássico francês, segundo a qual as regras para a criação artística em qualquer
época eram definidas pela Antigüidade. A crítica do Classicismo francês, desde
Lessing, e a valorização do condicionamento histórico da arte, desde Herder, não
foram deixadas de lado por Goethe e Schiller. Assim, mesmo que alguns aspectos
do teatro clássico francês tenham sido elogiados, ou até retomados pelos dois
escritores, quando ambos se distanciaram da postura contestatória do Sturm und
Drang, seu Classicismo tinha bases e propósitos distintos do anterior. Ele visava à
elaboração moderna dos gêneros poéticos, cujos arquétipos, ou formas puras,
270
eram definidos pelo estudo dos gregos antigos e pelo aprendizado do seu ideal de
beleza artística.
Comparando a posição dos dois escritores, é possível identificar Goethe
como um partidário dos antigos e Schiller como um defensor dos modernos, não
numa nova querela como a francesa, mas numa tentativa de conciliar as duas
posições. Nessa versão do debate, no contexto do Classicismo alemão, a
colaboração dos dois escritores expressa a busca de um equilíbrio entre modos
distintos de fazer poesia, um modo ingênuo e um sentimental, ou um modo antigo
e um moderno, ou ainda, segundo a definição posterior, um modo clássico e um
romântico. A teoria da arte de Schiller implicava uma redefinição desse debate, na
qual se justificava a exemplaridade dos antigos sem negar o condicionamento
histórico e as características da arte moderna. Em outras palavras, era impossível
voltar aos gregos, mas era necessário aprender com os gregos e até imitá-los,
desde que se compreendesse a imitação não como mera cópia, mas como busca de
um ideal para a arte moderna, como desenvolvimento de um estilo moderno.
Portanto, o Classicismo de Goethe e Schiller elaborou teoricamente e
realizou artisticamente o projeto formulado na frase de Winckelmann: “É preciso
imitar os gregos para nos tornarmos inimitáveis”. De fato, os dois escritores não
tinham a Grécia antiga como modelo para a sua teoria estética e para a sua
produção poética da fase clássica, mas também consolidaram uma compreensão
da arte grega como um ideal de beleza. E tornar-se inimitável, nesse caso, era
escrever obras clássicas da literatura alemã, à altura das grandes obras-primas da
literatura dos antigos. Tanto o debate sobre a exemplaridade dos antigos e os
problemas da arte moderna, quanto o próprio estudo dos clássicos gregos estavam
a serviço, para Goethe e Schiller, de sua própria produção artística. Com isso, a
271
questão do helenismo, ou da imitação dos antigos, foi articulada a um projeto que
tinha, em linhas gerais, o propósito de fundamentar a criação de uma literatura
moderna que fosse clássica, no sentido de algo exemplar, de um ponto de
referência, de um novo parâmetro de grandeza e de perfeição a ser seguido.
272
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WELLECK, René. Geschichte der Literaturkritik 1750-1830, Darmstadt-Berlin-
Neuwied, 1959.
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