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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Departamento de Letras e Artes
GERARDO MELLO MOURÃO E A GÊNESE ÉPICA DE
INVENÇÃO DO MAR
EDSON OLIVEIRA DA SILVA
Feira de Santana
2010
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Departamento de Letras e Artes
GERARDO MELLO MOURÃO E A GÊNESE ÉPICA DE
INVENÇÃO DO MAR
EDSON OLIVEIRA DA SILVA
Feira de Santana, 24 de setembro de 2010
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Diversidade Cultural da Universidade Estadual
de feira de Santana, tendo como orientador o
Prof.º Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Literatura e Diversidade Cultural.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof.º Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz
(Orientador)
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Elvya Shirley Ribeiro Pereira
(Membro)
_____________________________________________________________
Prof.º Dr. Sandro Santos Ornellas
(Membro)
Em 24/09/10
Feira de Santana,
Setembro/2010
4
Para Ellis,
Que os versos doces nunca cessem um dia...
5
AGRADECIMENTOS
Aos que amo.
6
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão choraram!
Quantas noivas ficaram por casar
Pra que fosse nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu
(Fernando Pessoa, 2007)
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
porque é o meu sentimento pachorrento,
porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
(Mário de Andrade, 1961)
7
RESUMO
Desde Aristóteles que a observação, a memória e a imaginação são tomadas como
premissas para a construção do poema épico. No entanto, o entrecruzamento dessas três
estruturas que permearam o canto de Homero, Virgílio e Camões tem cedido espaço, na
contemporaneidade, ao aparecimento de um fenômeno que redimensiona,
significativamente, a poesia épica enquanto objeto conceitual: a articulação da voz lírica.
Assim, inscrita sob a égide do invento, como já nos antecipa o seu título, Invenção do Mar,
obra do poeta cearense Gerardo Mello Mourão, desconstrói as fronteiras que separam os
gêneros literários e funda outro canto capaz de plasmar a fala do coração aos grandes feitos
do descobrimento e da colonização do Brasil, durante o século XVI e os subseqüentes.
Nessa perspectiva, objetiva-se, pois, nessa dissertação, identificar e analisar a utilização e a
recriação do nero épico na poesia brasileira contemporânea, e a partir dcompreender a
estrutura estética e temática da obra em questão, a fim de discutir a articulação do binômio
literatura-história e compreender os interstícios de tempo e espaço que determinam a
construção étnica e cultural da gente brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Gerardo Mello Mourão; Invenção do mar; gênero épico;
contemporaneidade.
8
ABSTRACT
Observation, memory and imagination are considered the premise of epic poems since
Aristotle. However, the intersection of these three structures that permeated Homer, Virgil
and Camões’ poems has allowed some space, in contemporaneity, to the emergence of a
phenomenon that significantly restructures the epic poetry as a conceptual object: the
articulation of the speaker. Thus, The Invention of the Sea, written by Geraldo Mello
Mourão, a poet from Ceará, is a kind of invention, as it is suggested by the title. This work
deconstructs the frontiers that separate the literary genres and creates another type of canto,
which is able to mould the heart’s voice on the great deeds involved in the discovery and
colonization of Brazil since the 16
th
Century and the following centuries. In this
perspective, this thesis aims at identifying and analyzing the use and the recreation of the
epic genre in Brazilian contemporary poetry in order to understand the aesthetic and
thematic structure in The Invention of the Sea, to discuss the articulation of the binomial
literature-history and to understand the interstices of time and space that determine the
ethnic and cultural construction of Brazilian people.
KEY WORDS: Gerardo Mello Mourão; The Invention of the Sea; epic genre,
contemporaneity.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................10
CAPÍTULO I – Outras visões, outras letras, outros lugares..........................................16
1.1. Rebento, substantivo abstrato................................................................................17
1.2. Gerardo Mello Mourão e a dimensão modernista..................................................30
1.3. Dante ou nada: rápidas notas sobre o gênero épico e sua atualização.................. 41
1.4. Notas preliminares sobre a poesia épica no Brasil.................................................46
CAPÍTULO IIEntão, fez-se o Brasil.............................................................................52
2.1. Ai, flores, ai flores do verde pinho........................................................................53
2.2. O mar e outras formas de invenção.......................................................................62
2.3. Dos heróis, seus sonhos e suas ações: uma breve configuração teórica do
herói.......................................................................................................................72
CAPÍTULO IIICenas de invenção................................................................................84
3.1. História, literatura e outros diálogos.....................................................................85
3.2. Palavras de fundação...........................................................................................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................113
REFERÊNCIAS...............................................................................................................118
10
INTRODUÇÃO
Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncio.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no elétrico
mar azul cheio de músicas.
(Cecília Meireles, 1997)
A pesquisa no âmbito das ciências humanas, ou mais especificamente no
campo das letras, exige certa acuidade investigativa capaz de assegurar o cumprimento
eficaz dos objetivos propostos, quanto à identificação, recorte e análise do objeto em
questão. Nesse aspecto, a livre associação de qualidades intrínsecas que envolvam o caráter
pessoal, as possibilidades e as limitações do pesquisador e, ainda, suas tendências pessoais
às qualidades extrínsecas, tais como os procedimentos metodológicos, como tempo
disponível, recursos econômicos, material bibliográfico acessível e possibilidade de
consultar pessoas vinculadas ao assunto, para apreciação e crítica, aparece-nos, aqui, como
princípio básico para a reflexão sobre as hipóteses levantadas e a tomada de decisões frente
às mesmas (FACHIN, 2003). Por assim dizer, poderíamos abrir nossas considerações
assinalando a habitual importância de se estabelecer uma distância preventiva entre as
lentes (nossas) que revelam o propósito desse estudo e o objeto de nossa análise, a fim de
assegurar a clareza e a eficácia das informações propostas.
Entretanto, se muitas vezes o afastamento do pesquisador em relação à matéria
de sua pesquisa se afirme enquanto premissa decisória para o êxito das investigações,
também é verdade que uma relação aproximativa entre sujeito e objeto pode descortinar os
níveis de subjetividade que traduzem o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes contidos em um espaço mais profundo das relações, dos
processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à mera operacionalização de
variáveis (MINAYO, 1994). Logo, a nossa preocupação instrumental com os
procedimentos, as ferramentas, os caminhos e outras formas de se fazer ciência será
conjugada a um tratamento subjetivo de nossa realidade, com o intento de aliarmos as
11
principais estratégias (técnicas e teóricas) para a execução e a efetivação dessa pesquisa a
uma abordagem reflexiva sobre a vida e a obra do poeta Gerardo Mello Mourão, objeto
central desse estudo.
Nosso interesse pela poesia de Gerardo Mello Mourão apareceu em 2007, no
curso de Especialização em Estudos Literários da Universidade Estadual de Feira de
Santana, quando antes propusemos um trabalho de reconhecimento e pesquisa das
condições de produção de poetas baianos contemporâneos. Tal estudo coordenado pela
Profa. Dra. Girlene Lima Portela pôde nos revelar a diversidade temática e estilística que
determina a cena da literatura contemporânea na Bahia, além de descortinar os nomes de
alguns poetas, até então nossos desconhecidos. Dentre esses, chamou-nos a atenção o poeta
José Inácio Vieira de Melo acompanhado de seus versos diretamente associados à matriz
nordestina e à contínua abordagem da tradição greco-latina. A aproximação com a obra
desse artista significou a abertura de um mundo erigido sob a atmosfera de sua poesia, mas
também o reconhecimento de outros mundos e de outras vozes que emergiam de seu canto,
mediante o efeito alegórico de uma caixa que se esconde dentro de outra caixa. O poeta
Gerardo Mello Mourão, a caixa maior cujas arestas se movimentam ora para dentro ora
para fora do jogo de influências proposto, nos foi apresentado em virtude da assinatura
cedida pelo mesmo ao prefácio do livro Códigos do silêncio (2000) do escritor baiano José
Inácio Vieira de Melo.
A partir de então, a vida e a obra de Gerardo Mello Mourão, nascido aos 08 de
janeiro de 1917, em Ipueiras, no estado do Ceará, passaram a chamar nossa atenção.
Membro da Academia Brasileira de Filosofia, da Academia Brasileira de Hagiologia e do
Conselho de Política Cultural do Ministério da Cultura do Brasil, o advogado, filósofo,
jornalista e poeta cearense foi um dos intelectuais mais importantes de nosso país. Sua
morte aos noventa anos, em 09 de março de 2007, consagra, portanto, a longevidade
biográfica e literária do autor cuja vasta obra Frei e Chile num continente ocupado
(1966), Dossiê da destruição (1966), As vizinhas chilenas (1979), A invenção do saber
(1983), Os peãs (1986), Susana – 3 (1996), Invenção do mar (1997) Canôn & fuga (1999),
O bêbado de Deus (2002), Algumas partituras (2002) e O valete de espadas (2007)
rendeu-lhe a candidatura a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, a indicação ao
Prêmio Nobel de Literatura em 1979 e a conquista do Prêmio Jabuti em 1999.
A experiência do contato entre nosso olhar e a escrita de Gerardo Mello
Mourão, objeto de espanto e estranheza em um primeiro contato, instituiu-se, de pronto,
12
como possibilidade de desbravamento das águas sombrias que se agigantavam a nossa
volta. A leitura de seus versos, cada vez mais intensa e cada vez mais enigmática,
culminou com a elaboração de um projeto de pesquisa Gerardo Mello Mourão e a
gênese épica de Invenção do mar que se propunha a investigar essa produção e
reconhecer os principais elementos que constituíam a trajetória de vida do poeta, mas que
de alguma forma também contribuíam para a concepção estética e formal do poema que
nasceu sob o ímpeto de cantar os quinhentos anos de achamento do Brasil.
Desde então, nossas leituras, a associação de idéias e conceitos levantados, ou
a própria busca por informações que dessem conta de explicar o sujeito empírico
representado por Gerardo Mello Mourão, tornaram-se a tônica de uma pesquisa que se
ocupou de identificar e analisar os elementos estruturais de Invenção do mar e averiguar os
níveis de atualização do gênero épico em nossa contemporaneidade, marcadamente
assinalada pela crise de paradigmas e a tomada enfática das identidades em trânsito.
Nesse sentido, a retomada da Ilíada, da Odisséia, da Eneida, (expressões
máximas da épica clássica) e d’Os Lusíadas (marca emblemática da épica renascentista),
além da menção a algumas tentativas de feitura épica no Brasil dos seiscentos e setecentos,
justificam-se pela necessidade de se rastrear os influxos embrionários para a imersão de
um épico moderno e pela inevitável comparação entre estes. Resta saber, sobremaneira, em
quais termos se dará o nascimento de uma poesia moldada a partir dos padrões instaurados
por Homero, Virgílio e Camões, e qual espaço será ocupado pela reformulação de um
gênero cujos limites e dimensões se dilatam e se expandem à medida que cânone e tradição
se acoplam às novas concepções de arte e literatura.
Neste caso, tanto a identificação e o ordenamento temático e cronológico das
obras produzidas pelo poeta quanto à reunião e apreciação da fortuna crítica a seu respeito
foram colocados em pauta a partir de uma abordagem qualitativa dos dados e materiais
coletados, levando-se em conta o desenvolvimento de uma pesquisa bibliográfica, tendo
em vista a adoção do método indutivo e histórico-comparativo. Por assim dizer, é possível
afirmar que o levantamento e a reflexão sobre as teorias e os conceitos propostos se
equivalem largamente à importância atribuída às declarações e entrevistas que nos foram
concedidas por José Luis Lira, sobrinho de Gerardo Mello Mourão e professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará/Sobral.
Desse modo, se de um lado o transcurso de nossa pesquisa foi capaz de revelar
algumas questões quanto à fragmentação classificatória das categorias textuais e a
13
reordenação entrecruzada dos gêneros literários, de outro, é importante registrar que nossas
discussões sobre literatura, memória e representações identitárias, todas elas construídas
sob a proposta de análise de Invenção do mar, não representam, aqui, uma constatação
isenta de reflexões outras no futuro. Afinal, o que se lê nesse estudo é o resultado da leitura
aproximativa de uma obra cuja complexidade interna e externa compromete a expectativa
de se estabelecer cláusulas pétreas a esse respeito. Portanto, mesmo a confirmação das
hipóteses formuladas não assegura a fixação de cadeias argumentativas que encerrem os
debates ou silenciem a voz que reordena as questões quando muitas premissas estão
prontas. E é exatamente isso o que se nesse trabalho: um jogo de perguntas e respostas,
resultado concreto de nossas leituras, mas também de nossas reiteradas inquietações.
Com efeito, o primeiro capítulo dessa dissertação, Outras visões, outras
letras, outros lugares, ocupa-se primeiramente de levantar os dados e os episódios que
comprovam a efervescência política e intelectual vivida por Gerardo Mello Mourão, e que
de algum modo contribuiu para a configuração estética e ideológica de sua poesia. Sendo
assim, a referência às viagens, prisões e outros tantos eventos que aproximam vida e obra
do poeta, explicam-se, sobretudo, pela necessidade de se trazer à tona um arsenal de
informações sobre um artista, até então, desconhecido do grande público e, quiçá, da
crítica especializada, ademais de se estabelecer conexões entre a trajetória de seus
conhecimentos empíricos e a formatação assumida por sua escritura, em atendimento às
reflexões de Antonio Candido em Literatura e sociedade (1976).
Logo após, trataremos das relações mantidas entre a produção textual do poeta,
associada fundamentalmente à matéria épica e a outros remanescentes da temática clássica,
e o contributo do movimento modernista, das primeiras décadas do século XX, no Brasil.
Afinal de contas, como justificar a feitura de uma poesia declaradamente voltada para os
padrões homéricos, seja pela forma ou pelo conteúdo, num momento em que os discursos
empenhavam-se em afirmar um sentimento de nacionalidade, capitaneado pela crise de
paradigmas e o advento fabril e populacional dos grandes centros urbanos. A aliança entre
tradição e modernidade, campos opostos em uma primeira mirada, mas profundamente
conectados, já que não podemos falar em rupturas abruptas quanto ao andamento dos
fenômenos políticos, antropológicos e sociais que impulsionam a história da humanidade,
tornar-se-á o ponto central para as reflexões que serão empreendidas. Junto a isso, somar-
se-ão ainda a discussão sobre os principais indícios que dão conta do aparecimento do
gênero épico no Ocidente e o translado de tais elementos para a incursão de escrituras
14
épicas em terras brasileiras, desde o período colonial até o aparecimento de Invenção do
mar em 1997.
A seguir, em nosso segundo capítulo, Então, fez-se o Brasil, discutiremos os
meandros das relações estabelecidas entre Brasil e Portugal, desde a expansão ultramarina
até as lutas independentistas na América e na África, a fim de compreender o sentimento
de pertença assumido por Gerardo Mello Mourão, no que diz respeito à recepção
pacífica das fontes e influências lusitanas que orquestram nossa identidade política,
lingüística, literária e cultural. Nesse aspecto, a proposta de fundação mítica do Brasil,
mediante a revisão e a atualização de alguns eventos que compõem nossa historiografia
aparece-nos condicionada pela inevitável referência ao espírito expansionista que
determina a atitude do ser português e pelo movimento das letras que descavam os influxos
do trovadorismo galaico-português, dentre outras tantas lembranças literárias que ativam a
construção de um épico contemporâneo e a afirmação de uma literatura brasileira. Sendo
assim, tanto a evocação do mar enquanto espaço decisório para a articulação da matéria
épica, quanto a ação empreendedora dos heróis que se movimentam sobre esse plano,
contribuem para a alteração funcional dos sentidos tributados aos sujeitos e objetos que
levam a cabo o desafio de inventar o Brasil.
Por esse ângulo, mesmo as discussões sobre a configuração teórica do herói, a
concentração de esforços para que alguns sujeitos sejam eleitos pelas musas e pelos deuses,
ou o próprio destronamento de alguns nomes cristalizados pela história e a coroação de
outros tantos (ilustres desconhecidos), conforme nos propõe Invenção do mar, destacam-
se, aqui, como eixo catalisador para as discussões sobre literatura e história, apresentadas
no terceiro capítulo dessa dissertação Cenas de invenção. Dispostos frente a frente,
esses dois campos de materialização da linguagem humana protagonizam um embate sobre
o qual se concentram as principais noções de imaginação e realidade. Não obstante,
alocadas por muito tempo em sítios opostos, as relações assumidas pela literatura e pela
história desfazem radicalmente o invólucro factual que protege esta última, ao passo que
também promovem a alegorização dos eventos e fenômenos suscitados. Nessa perspectiva,
tanto a história quanto a literatura, sublinhadas pelas funções de apreender ou metaforizar o
real, são destituídas de seus antigos papéis à medida que os discursos de objetividade e
subjetividade se fundem por meio da polifonia de vozes que determina a dialética humana
em nossa contemporaneidade.
15
Por esse viés, a menção aos diálogos da literatura e da história operará
enquanto tópico de compreensão e leitura dos principais aspectos relacionados à tríade
literatura-história-memória. Visto como o resultado imagético de um processo criacionista
que pressupõe a escolha e a renúncia de instrumentos, sujeitos e episódios, o Brasil
inventado por Gerardo Mello Mourão ganha forças mediante a articulação de elementos
simbólicos, históricos e culturais cujo desdobramento promove a configuração do binômio
lembrança/esquecimento e a estabilização do inconsciente coletivo, responsável pela
fundação do povo brasileiro e a contemporaneização do ato fundacional.
16
CAPÍTULO I
OUTRAS VISÕES, OUTRAS LETRAS, OUTROS LUGARES
O texto está feito com nomes e nomes
e creio na força dos nomes
de lugares
e pessoas
e coisas.
(IM
1
, 1997, p. 15)
1
A partir de então, o aparecimento dessa sigla será, sempre, um sinal de identificação da obra Invenção do
mar de Gerardo Mello Mourão
17
1.1. Rebento, substantivo abstrato
O estabelecimento de um cânone dentro da literatura brasileira e a rediscussão
das estruturas que permeiam sua construção e seu direcionamento aparecem-nos como
premissas indispensáveis para a identificação, leitura e entendimento da escrita poética de
Gerardo Mello Mourão, cujo poema Invenção do mar (1997) constitui, aqui, o objeto
prioritário de nossa análise. Nessa perspectiva, o desmembramento de sua composição
teórico-formal cumprirá a dupla tarefa de direcionar nosso olhar investigativo, formular,
testar e comparar as hipóteses sugeridas, bem como compreender o papel desempenhado
por este poeta na cena da literatura brasileira contemporânea.
Por esse viés, a tomada de alguns dados biográficos do poeta e a compreensão
de sua experiência antropológica
2
com o mundo das Letras representam, pois, exercício
capital à decifração de seus versos e ao entendimento dos elementos que articulam a tríade
formada por autor, obra e leitor. Não obstante, não se trata, neste caso, de preterir a
literariedade de sua escrita e enaltecer os episódios que deram vida à sua existência, mas
sim de conjugar estas duas dimensões e extrair daí as condicionantes literárias, históricas,
sociais e políticas, que, de uma forma ou de outra, encontram-se no bojo de sua poesia e
instrumentalizam irrestritamente a tessitura e a performance do sujeito empírico também
encenado pelo poeta, conforme se lê nas palavras de Antonio Candido:
Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que
as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo,
permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando
repercussão no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por
esta circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em
primeiro lugar, necessidade de um agente individual que tome a si a
tarefa de criar ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não
reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da
obra está ligado a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra,
assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações
individuais profundas (CANDIDO, 1976, p. 25, grifo nosso).
Ao atender esta demanda, o artista despolariza os canais de onde emerge sua
arte e multiplica as possibilidades e os pontos de convergência ou repulsa entre sua
produção, enquanto objeto estético, multiforme e referencial, e os sujeitos com os quais
partilha as mesmas práticas discursivas e contexto político-histórico-cultural. Contudo, é
2
Terminologia empregada por Luiz Costa Lima em História.Ficção.Literatura (2006) para designar o
conjunto de relações e contatos que constituem o sujeito empírico.
18
indispensável lembrar que esta relação também apontará para uma margem subversiva
determinada pela implementação da perda, da fenda, do corte e da deflação, como nos
sugere Roland Barthes:
[...] uma incomunicação, então tenho de pensar que a história, a nossa
história, não é pacífica, nem talvez mesmo inteligente, que o texto de
fruição surge sempre à maneira de um escândalo (de uma
irregularidade), que ele é sempre a marca de um corte, de uma afirmação
(e não de um desabrochamento), e que o sujeito dessa história, esse
sujeito histórico que eu sou entre outros, longe de poder acalmar-se
afirmando simultaneamente o gosto pelas obras passadas e a defesa das
obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é mais
do que uma «contradição viva»: um sujeito clivado, que frui
simultaneamente, através do texto, da consistência do seu ego e da sua
queda (BARTHES, 1997, p. 58, grifo do autor).
Nossas discussões sobre o gênero épico, os indícios que dão conta de seu
aparecimento no Ocidente e no Brasil, sua atualização, historicidade e
contemporaneização, associados ao objetivo central desta pesquisa de reconhecer e analisar
os elementos estruturais de Invenção do mar, tomando-os como ponto de partida elementar
à aproximação dos principais fundamentos da estética épica tradicional com as atuais
manifestações da poesia brasileira contemporânea, também se converterão em método
dialético de investigação do jogo de faces, signos e saberes proposto por Mello Mourão,
ademais de consubstanciarem nossas reflexões acerca da matéria épica, da tripartição dos
gêneros literários e do diálogo realizado entre eles. Neste caso, instituído pelo signo da
duplicidade, o texto encena a seu modo “[...] o velho mito bíblico que inverte-se; a
confusão das línguas deixa de ser uma punição, o sujeito tem acesso à fruição através da
coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz
(BARTHES, 1997, p. 36).
A começar pelas considerações realizadas por Emil Staiger é possível situar as
próprias circunstâncias em que se deram o nascimento e a infância de Gerardo Mello
Mourão, não apenas como um catalisador de emoções e eixos temáticos constituintes de
sua obra –, e sim, sobretudo, como chave de leitura à descontinuidade, fragmentação e
sobreposição de imagens e conceitos evocados por sua poesia:
O autor épico não se funda no passado, recordando-o como o lírico, e sim
rememoriza-o. E nessa memória fica conservado o afastamento temporal
e espacial. O longínquo é trazido ao presente, para diante de nossos olhos,
19
logo perante nós, como um mundo outro maravilhoso e maior
(STAIGER, 1993, p. 79).
O primeiro de dois irmãos, nascido aos oito dias de janeiro de 1917, na então
Rua Padre Feitosa, 1, em Ipueira Grande, no estado do Ceará, e filho do Major da
Guarda Nacional Coriolano Ribeiro Mello de Sampaio e da professora primária Esther
Urcezina de Mello Sampaio, o poeta Gerardo Mello Mourão viveu os primeiros anos de
sua infância em meio às serranias e sertões de um país determinado àquele tempo pelo
enfraquecimento das oligarquias ainda vigentes na República Velha. Tal espaço, também
determinado pela tensão revelada com as lutas de seu clã familiar hierarquizado pela
genealogia dos coronéis sertanejos –, rendeu-lhe o mote para uma poesia recorrentemente
assinalada pela exaltação de seus ancestrais e pela cosmogonia de sua origem, segundo se
lê em alguns versos do livro Rastro de Apolo
3
:
Nasci tocando viola
sou mourão das Ipueiras,
dos Mello do pé-da-serra
reinador destas ribeiras
tanto canto em minha terra
como em terras estrangeiras
As cordas desta viola
são meus pés e minha mão:
no galope a beira-mar
nos oito pés em quadrão;
em martelo e gemedeira
em gabinete e mourão.
(MOURÃO, 1986, p. 327)
A articulação de um discurso imbuído da necessidade de rastrear os campos de
uma gnosiologia das origens, premissa, aliás, que determina o nero épico em sua
acepção clássica, ganha destaque na obra do poeta, à medida que seus esforços se aplicam
em acentuar sua própria identidade e compreendê-la em meio à relativização de algumas
condicionantes empíricas (SILVA, 1987). Por assim dizer, tal qual acontece com outras
artes essencialmente miméticas, a literatura de feição épica também se aplica à evocação
de ações unas e inteiras, com vistas à dissolução de conflitos endógenos ou exógenos que
ameacem a regularidade dos eventos suscitados e comprometam a instrumentalização de
3
Referência ao poema Rastro de Apolo de Gerardo Mello Mourão, que junto de outras duas obras suas
também de feição épica: Peripécia de Gerardo e O país dos Mourões, constituem a trilogia Os peãs (1986).
20
possibilidades oferecidas pela estrutura narrativa de sua poesia. Neste aspecto, seja pela
presença ou pela ausência, e através da tributação que o binômio memória-esquecimento
demanda, é possível mencionar o exercício de suprimir e inventar, ou a mutabilidade das
experiências atribuídas a este sujeito eleito pelas musas, como tônica para a afirmação de
seu discurso épico.
De modo análogo, portanto, as vicissitudes do sujeito empírico serão
plasmadas por sua poética e convertidas em oxigênio para a elaboração de um canto
monumental em homenagem aos deuses e mitos de seu sertão. Ainda criança, contando
apenas sete anos, o pequenino infante já se revelava um apaixonado pelas letras, conforme
se depreende a partir de suas próprias palavras em declaração a José Luis Lira:
[...] contagiado pelo vício dos livros infantis, quando passei uma
temporada num velho engenho de rapadura e cachaça do da serra de
Ibiapaba, que fora de um parente de minha família, o famoso Padre
Feitosa, e que se chamava por isso Engenho do Padre. Havia uma
pequena biblioteca de cinco ou seis prateleiras, espantosa para o curioso
menino de uma cidadezinha perdida no interior do Ceará. Deslumbrado
por uma fileira de grossos livros encadernados, os vinte e tantos volumes
de uma edição que se chamava “Biblioteca Universal”, o menino
começou a folhear os livros estupendos, e leu um breve poema de seis
versos que decorei e até hoje sei de memória. Gravei para sempre o nome
do autor. Era um senhor chamado Henrique Heine
4
, traduzido não me
lembro por quem.
[...] ainda hoje, no crepúsculo dos anos, o menino recita, de vez em
quando, os versos inesquecíveis:
A pálida Susana,
a flor da bacanal,
nasceu numa choupana,
viveu num palacete,
morreu num hospital.
(MOURÃO apud LIRA, 2007, p. 63-64)
Atendendo a equação do binômio a que nos referimos convém ressaltar que a
memória literária de Mello Mourão encontrará ressonâncias explícitas, ao longo de grande
parte de sua obra. Apenas para efeito ilustrativo tomemos, por exemplo, Susana 3: elegia
4
De acordo com informações apresentadas por Marisol Santos Moreira (UFRJ) no artigo A recepção de
Heinrich Heine em Tobias Barreto, disponibilizado no sítio www.apario.com.br/index, Christian Johann
Heinrich Heine (1797-1856) foi um importante poeta romântico alemão, marcado, sobretudo, por uma visão
decadentista da vida. O poeta teve boa parte de sua poesia lírica, especialmente sua obra de juventude,
musicada por importantes compositores, a exemplo de Robert Schumann, Franz Schubert e Richard Wagner,
dentre outros.
21
e inventário (1994), quando se nota muito claramente o diálogo proposto entre sua
literatura e os versos do poeta alemão, ainda habitante de suas reminiscências.
Tendo vivido em Ipueiras, O país dos Mourões, até os oito anos, o poeta vê-se
obrigado a afastar-se de sua terra em virtude do sonho da família em torná-lo clérigo.
Entretanto, o menino curioso e de gênio irrequieto refugia-se na Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição, onde anos antes fora batizado, e protela sua ida para o Rio de
Janeiro. Através da leitura de almanaques o garoto tomara conhecimento de que ninguém
poderia ser preso dentro de uma igreja; ali certamente estaria seguro. Entretanto, seu avô, o
Capitão da Guarda Nacional José Ribeiro de Mello que, aliás, é lembrado afetuosamente
pelo poeta: “[...] uma das memórias mais enternecidas da minha infância um gigante,
bravo e ao mesmo tempo uma doce figura” (MOURÃO apud LIRA, 2007, p. 62) –
convence-lhe a abandonar o esconderijo sob promessa de que passados os anos do
seminário o pequeno voltaria ao convívio dos seus:
Ele o pegou, abraçou e beijou ternamente, coisa rara num nordestino
daquela cepa, e disse: “Meu filho, venha comigo, você vai e eu prometo
que depois vou buscar você. [...] As lágrimas escorriam pelo rosto dele e
aquela cena me impressionou, porque eu nunca o tinha visto naquele
estado. Diante de tal manifestação, cedi e acreditei que ir para o Rio,
estudar e ser padre era o meu destino. (idem, p. 62)
[...] o major Galdino, meu avô,
cortava a taquara da serra com seu punhal de dois gumes
e ao fim da tarde e ao nascer da manhã
no alto do pé de tamarindo
pendurava a gaiola de alçapão armado e dentro dela
ou galo-de-campina de cabeça de púrpura
ou juruti arrulhadora:
e da copa das cajaranas de ouro
o outro galo-de-campia – a outra juriti –
vinha aprender
a banda de laranja a talhada de melão o arroz
a água do pequeno alguidar de barro e o canto
solitário entre as varetas de bambu – e logo
eram duas gargantas a cantar e era
aos ouvidos do risonho senhor Major
um canto novo.
(MOURÃO, 1986, p. 155-156)
Em resposta às palavras de seu avô, homem que, por sinal, aparece-nos como
metonímia de uma sociedade patriarcal, arregimentada pela força do sujeito nordestino, em
oposição aos neurastênicos do litoral, segundo nos diz Euclides da Cunha, em Os sertões,
22
Gerardo Mello Mourão segue em direção à Valença, no Rio de Janeiro, onde ingressa no
Seminário dos padres seculares
5
. Tempos depois, o poeta decide juntar-se à Missão
Redentorista dos Holandeses
6
, no Convento São Clemente, em Congonhas do Campo,
Minas Gerais. Dali, ainda sob pretexto de manter-se fiel à causa redentorista, o autor de
Invenção do mar segue para o Convento da Glória, em Juiz de Fora, lugar onde toma pela
primeira vez o hábito que será rechaçado, anos mais tarde, às vésperas de proferir os votos
de pobreza, castidade e obediência.
A experiência religiosa, e sob certo aspecto também ideológica, brindará o
poeta com uma galeria de perfis humanos e psicológicos que seguramente lhe serão úteis
no traçado de sua poesia e na invenção dos heróis, que próximos de Lampião ou de
Odisseu, reais ou fictícios, edificarão sua obra poética. No rol destes homens bravios,
destemidos e imortalizados pela lente da percepção histórica e sensorial, sublinhamos o
nome de Luís Carlos Prestes a quem o poeta ovaciona substancialmente em Invenção do
mar, atribuindo-lhe a alcunha de “último dos bandeirantes”:
[...]
de serpente de fogo em marcha sobre o mapa aceso
dos banhados do Sul aos Rasos da Catarina
e às serras e aos sertões e às chapadas
na Coluna do Capitão Prestes
Cavaleiro da Esperança e bandeirante
da última bandeira.
(IM, 1997, p.122-123)
Certa lembrança, convertida em arte literária pela estetização da atitude do ver
e do rememorar, surge-nos entrecruzada pelo esvaziamento de uma verdade
institucionalizada pela história e pela ampliação de versões disseminadas pela literatura,
lida, nesta medida, através do relato e da narração. Assim, o próprio testemunho de
Gerardo Mello Mourão à passagem da Coluna Prestes (1925-1927), na região de Crateús,
ainda no Ceará, será relativizado pela multiplicidade de olhares e forças, que, numa visão
5
São os sacerdotes diocesanos, com vínculo a um bispo e presbitério diocesanos concretizados. (Informações
dispostas no sítio http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl)
6
A Congregação do Santíssimo Redentor (Redentoristas) foi fundada por Santo Afonso Maria de Liguori, no
dia 09 de novembro de 1732, em Scala, no Sul da Itália. Dedicada à evangelização dos mais abandonados, tal
congregação espalhou-se pela Europa, dando origem à Missão Redentorista dos Holandeses que nos
primeiros decênios do século XX instaura-se em Minas Gerais. (Informações dispostas no sítio
http://www.provinciadorio.org.br/historico)
23
heracliteana, converterão o fato, dito histórico, em episódio oscilante e coletivo, caro ao
empreendimento do texto épico, como se lê nas palavras de José Luis Lira:
De Crateús, onde o menino morou, ele dá conta da violência dos homens:
uma parte da Coluna Prestes passou por ali, os corpos das vítimas
perseguidas e de seus perseguidores ficam expostos na calçada de sua
casa. Lembra-se, também, dos cangaceiros, dos cavaleiros com suas
armas rebrilhantes, fugindo em estrepolias.
[...]
Recorda, ainda, deste episódio de José Mourão, cangaceiro do bando de
Lampião, que estava preso na cadeia de Crateús. Gerado e seus primos
iam visitar o prisioneiro e se orgulhava de dizer que ele era seu primo,
mas seus pais não concordavam com essa afirmação. Para ajudar a
combater a Coluna Prestes, soltaram todos os presos e José Mourão virou
herói, combatendo os revoltosos na cidade (LIRA, 2007, p. 65).
Entendida pela historiografia brasileira como um movimento político-militar
brasileiro estritamente ligado ao tenentismo, a Coluna Prestes reclamava, em linhas gerais,
a defesa da educação pública e a obrigatoriedade do ensino primário para toda população.
Contando com a participação de lideranças das mais diferentes correntes políticas com a
ressalva de que um significativo número de seus membros era representado por capitães e
tenentes da classe média (“Soldado Cidadão”) – o movimento dividiu opiniões ao deslocar-
se pelo interior do país pregando reformas políticas e sociais e combatendo o governo do,
então, presidente Arthur Bernardes e, logo depois, o de Washington Luís (DRUMMOND,
1991).
Em Crateús, conforme já assinalado, Mello Mourão viu de perto a passagem da
Coluna Prestes. Dilatada pela autoridade discursiva da marcha ou minimizada por sua
força também coercitiva, a visão do poeta acompanhou atentamente o transcurso da Coluna
que, naquele momento, denunciava a miséria da população e a exploração das camadas
mais pobres pelos líderes políticos nacionais e locais. Esta passagem, aliada às estratégias
de rememoração e idiossincrasia reveladas pelos versos do poeta, nos faz imaginar uma
diferença sinuosa entre as atitudes de olhar e de ver. O olhar, lançado como uma referência
mecanizada da percepção visual, uma simples conseqüência orgânica da visão, aparece-nos
em oposição ao ver que na poesia épica se nos mostra como uma estratégia de
reconhecimento e análise daquilo que habita o mundo exterior ao artista, mas que por
intermédio de sua mirada é transformado em um plano maior e maravilhoso
(SANT’ANNA, 2006).
24
A seleção dos nomes, episódios e histórias que perfazem o discurso épico deste
poeta se dará em observância não àquilo que atende esquematicamente à estética épica
tradicional, mas sim à possibilidade de criação e fundação anunciadas pelo título do
poema (Invenção do mar). Sendo assim, ao apropriar-se de experiências muitas vezes
coletivas e individuais, o poeta multiplica as imagens e as miragens de um país que
aparece, em seus versos, entrecortado pelo universo particular de seus horizontes e
expectativas. Como numa aliança de contrários, o local e o global são articulados entre si,
de modo que os vazios e as fissuras semeados pela atividade literária se convertam em
amplificadores de memórias, cenas e legendas, todas elas disseminadas pelo
empreendimento do ver e do narrar.
Talvez, resida justamente a importância de se conhecer certos dados
biográficos de um poeta que, aos dezoito anos, depois de ter dedicado muitos destes
exclusivamente aos estudos religiosos e à causa de Deus, decide ingressar na Faculdade
Nacional de Direito, cujos preceitos políticos e filosóficos fizeram-lhe, mais tarde,
dinamizar sua trajetória de vida, eleger o magistério como ofício e, conseqüentemente,
envolver-se, de forma ativa, na vida política e social brasileira.
Determinados pela tensão subsidiária do governo provisório de Getúlio Vargas,
os primeiros anos da década de 30 no Brasil foram marcados pela ação empreendedora de
inúmeras organizações políticas. Favoráveis ou contrários às decisões tomadas pelo então
presidente, estes grupos dividiam a opinião pública, fomentavam os debates, além de
disseminar a tortura e outras categorias de violência em situações específicas (WAACK,
1993). A Ação Integralista Nacional
7
, nascida exatamente neste interstício de tempo e
espaço, rejeitava radicalmente o comunismo chegado ao país em 1922, por acreditar na
desigualdade natural entre os homens e em sua aplicabilidade enquanto expressão máxima
do nacionalismo. Simpático às idéias defendidas pela AIN, Mello Mourão e outros tantos
intelectuais da época se alinharam ao movimento que tinha por líder maior a figura de
Plínio Salgado, participante ativo da Semana de Arte Moderna de 1922 e criador do Verde-
Amarelismo
8
.
7
Organização política de âmbito nacional inspirada no fascismo italiano, fundada por Plínio Salgado em
1932, segundo informações de Gilberto Cotrim em Historia & reflexão: mundo contemporâneo e Brasil
República. São Paulo: Saraiva, 1996.
8
Grupo formado por Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo, o
Verde-Amarelismo apareceu em resposta ao nacionalismo Pau-Brasil, afirmando-se como uma crítica ao
25
Em 1933, um ano posterior a sua criação, o Integralismo, sediado a princípio
no Rio de Janeiro, ganha as ruas da cidade de o Paulo com a realização de uma grande
passeata, marco decisivo para a vida do movimento. O poeta cearense, por seus princípios
e convicções, junta-se aos demais militantes e eco a seu grito político e ideológico,
segundo se observa na citação seguinte:
O integralismo foi uma fecunda experiência cultural e uma aventura
moral e espiritual dos melhores brasileiros de minha geração. Mesmo
sem esforços para isto, os integralistas que o quiseram, galgaram todos os
espaços de que você fala. Quatro deles chegaram à Presidência da
República nas duas últimas décadas, sem falar em outros postos
altamente representativos da vida nacional. As Universidades, as
Academias Científicas, os Ministérios, os postos diplomáticos, as
Academias de Letras, inclusive a do Machado de Assis, honraram-se com
um incontável número de integralistas [...] haver pertencido ao
integralismo é um título que me tem proporcionado os melhores
momentos da minha vida social, profissional, política, cultural, cordial e
afetuosa. Este título me tem ajudado muito e tem constituído motivo de
respeito e divulgação de minha obra de escritor (MOURÃO apud LIRA,
2007, p. 76).
Em não sendo um mero espectador de toda a efervescência política e cultural
que acometia o Brasil, durante a década de 30 ao contrário –, o jovem cearense assiste o
golpe do Estado Novo em que Getúlio Vargas assume o poder, antes mesmo da realização
do pleito eleitoral em curso, mas não se cala diante da ascensão do ditador. O destemor e a
indignação custaram-lhe o cárcere por “trezentos e oitenta e cinco dias e cinco horas”. O
silêncio, a possibilidade da morte, a solidão e a dor dos tormentos, durante todo este
tempo, transformaram a ideologia integralista em luta de um homem só, segundo relata a
correspondência do poeta ao amigo Brito Velho, datada de 12 de abril de 1996:
[...] 385 dias e 5 horas vivi na certeza de estar condenado, embora não
houvesse como. Pois, no Brasil, não havia pena de morte. Mas eu sabia
que a ditadura Vargas podia tudo. Rompida a incomunicabilidade, recebi
a visita de minha primeira mulher, que morreu durante a minha prisão
[...]. Fui, então, informado que não havia sido condenado. E o
espantoso, o inédito: não havia lei que me condenasse. Então o ditador
baixou um decreto. O Decreto-Lei nº 4.776 pelo qual o Tribunal de
Segurança condenou um sem número de brasileiros e estrangeiros.
[...]
“nacionalismo afrancesado” de Oswald de Andrade. (Informações discutidas por Eduardo Subirats em Da
vanguarda ao pós-moderno, 1991).
26
Fomos condenados, na verdade, não à morte, mas a 30 anos de prisão,
por aplicação retroativa do Decreto. Creio que muitas pessoas no mundo
já terão sido condenadas injustamente. Mas nunca por decreto. Nunca por
lei retroativa. O Getúlio e seu governo eram originais. Nunca compareci
diante de um Juiz e o processo não tinha autos. Tinha a acusação do
Tribunal de Segurança Nacional. As vítimas do Decreto não podiam
apelar para nenhum Tribunal. Quando o Ditador caiu, foi extinto o
Tribunal, cujas vítimas, segundo denunciou, então, o Brigadeiro Eduardo
Gomes, formavam um imenso coro de tragédia grega clamando aos céus
por justiça. Não era tragédia grega. Era tragédia comédia brasileira
mesmo. Com a extinção do tribunal infame, apelamos para a Justiça
institucional do país. O processo foi anulado no Supremo Tribunal, por
unanimidade. Não havia delito (idem, p. 78-79).
Revogada a acusação indevida, Gerardo Mello Mourão toma as ruas, outra vez.
A austeridade e o senso crítico interrompidos pela dureza da reclusão regressam ao homem
que, novamente livre, vazão a seu ímpeto político e ideológico rigorosamente
combatido pela Ditadura Vargas. No entanto, a vigília belicosa do Estado Novo e a
expressão inquisitiva dos civis e militares que representavam os interesses do governo
fizeram com que o poeta tivesse, de novo, sua liberdade usurpada. De 1942 a 1948, o Rio
de Janeiro, a Ilha Grande e a Ilha das Flores compunham o espaço que ao longo destes seis
anos abrigou variavelmente a prisão política de Mello Mourão. A vida na cadeia e o mover
das peças que adornavam o mosaico de suas experiências e memórias renderam-lhe, por
fim, a escrita do romance O Valete de Espadas, vindo a público somente em 1960, em
virtude da ação cerceadora dos aparelhos de inteligência e repressão do estado, como nos
diz Carlos Heitor Cony, em comentário disposto na capa da edição de 2007 desta obra:
O Valete de Espadas, escrito na década de 1940, durante os anos em que
Gerardo Mello Mourão passou na prisão do Estado Novo, ficou doze
anos inédito e desconhecido, não fosse sua esposa ter enviado os originais
clandestinamente ao Diário de Notícias, em 1955. O romance desde
então é considerado pela crítica brasileira um dos mais importantes da
literatura nacional. Pois trata com uma linguagem de alta voltagem
poética e densidade simbólica, o fato de o homem estar inapelavelmente
perdido sobre a terra, que distraído de si mesmo e de Deus. A
personagem Gonçalo Falcão de Val-de-Cães faz uma verdadeira viagem
aos infernos, tão intrigante como a de Homero, Dante e de toda uma
elevada linhagem literária. Belo e tenso, não à toa O Valete de Espadas
foi vertido para inúmeras línguas e seu autor indicado ao Nobel de
Literatura (CONY, 2007).
Notável não apenas pela estrutura formal aplicada, mas principalmente pela
densidade teleológica que seu enredo dramático engendra, o romance transita por zonas
27
operacionais intangíveis à auscultação de quaisquer variáveis exatas ou pretensamente
objetivas. A lida com a matéria humana é a coluna nevrálgica de uma narrativa que anseia
chegar às profundezas mais abissais da barbárie e penetrar o universo da linguagem e das
psicologias diversas:
Não basta ser um poeta e escrever em prosa para que disso nasça uma
prosa poética; muito menos, sentimentalizar a prosa, enchendo-a de
descrições aproximativas ou minuciosas e de longos períodos com muitas
vírgulas; tampouco ela se faz pelo enxerto de versos, ainda que seja
recorrente neste livro. Mourão, cuja maior influência é possível dizer que
foi a do poeta e crítico americano Ezra Pound o casamento da dicção
cortada com a erudição chorada que vemos em poemas como a trilogia
Os Peãs –, entende poesia como a linguagem carregada de significados,
adensada por recursos de som, imagem e pensamento. E o que vemos na
prosa de O Valete de Espadas é justamente a linguagem densa, que
emociona não por apelar por seus temas e cenas, mas sobretudo pela
intensidade de suas palavras e frases. O leitor se concentra tanto no que é
descrito como na descrição (PIZA, 2007, p. 5).
O trabalho exaustivo de operação da linguagem e seu uso como mecanismo de
aproximação e entendimento da fenomenologia humana não são, todavia, exclusivamente
tributários desse romance. Possivelmente, toda a obra do poeta será, de alguma maneira,
permeada por esta ânsia de transladar para os limites da linguagem o arsenal de
experiências e contatos que nos fazem essencialmente humanos. Em Invenção do mar,
texto que não pode ser tomado como exemplo emblemático de aplicação do gênero épico
convencional, o poeta dedilha confissões e anseios, notadamente individuais, e com isso
desconstrói os instrumentos que ensaiam aprisionar sua poética em uma categoria literária
apenas. Eis, portanto, o aparecimento de uma literatura que não se rende à mera
classificação de estilos e conceitos. Em festa, para lembrar Ezra Pound em ABC da
literatura (1995), as múltiplas faces da linguagem fundam um espaço erigido sob o signo
do invento e da fragmentação.
Não sendo suas rememorações estáticas e retilíneas como as querem os
preceitos fundamentais da épica clássica, em que a distância entre o narrador e a coisa
narrada constitui matéria essencial para um cantar que se pretende monumental e
grandiloqüente, os versos de Invenção de mar nos conduzem a um arco emoldurado pela
dissolução dos mitos, histórias e registros que deram forma e conteúdo àquilo que, hoje,
responde por Brasil. É certo que a atividade de reformulação das linhas divisórias
fundamentais ao desenho da nação será justaposta à revisão das próprias imagens e
28
miragens que enlaçam a biografia do poeta. Em tal medida, os gêneros épico e lírico,
durante muito tempo separados pela função classificatória e distributiva do olhar
aristotélico, serão postos face a face com a possibilidade de que uma nova rede de signos e
significantes altere a posição de antigos pilares.
A julgar pela relação que estabelece com a poesia, a política também será para
Mello Mourão um campo difuso e sujeito a inúmeras alterações de ordem ideológica e
identitária. Membro de um clã familiar que por muito tempo manteve-se envolto na vida
política e social do país, o poeta afilia-se ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e com
isso elege-se deputado federal pelo estado de Alagoas, nos primeiros anos da década de
1960. Porém, o golpe de Estado e a instauração do regime ditatorial, em 1964,
significariam para este homem a cassação de seu mandato e a prisão temporária na
Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
Livre e, embora ainda inflamado pela arbitrariedade de sua prisão, o poeta
esconde-se em Brasília, na residência do então deputado cearense Paes de Andrade. Dali,
temendo uma nova prisão, este Homero das Ipueiras lança-se com sua família no mar de
aventuras que será o exílio de dois anos e meio no Chile, conforme revelam suas
declarações:
No Chile, vivemos na comunidade dos professores da Faculdade de
Arquitetura, onde fui professor. É uma faculdade da qual dizia Le
Corbusier que nela iria estudar se fosse aprender arquitetura. Todos os
professores eram pintores, escultores, musicólogos.
[...] é, talvez, o mais abalizado centro de formação de arquitetos em todo
o mundo. E tem uma história singular. Por volta de 1950, o reitor da
Universidade chamou um grupo de poetas e nos reunimos diariamente em
Santiago com arquitetos, pintores etc., e aceitamos ir para com carta
branca para estabelecer os currículos da escola. Foi um programa único
no mundo. Estudava-se Aristóteles. Davam-se quatro diálogos de Platão,
dois cantos da Eneida, dois da Ilíada traduzidos, comentados. Porque
tudo está muito ligado à arquitetura. Estudava-se música. Todo ano
tínhamos três ou quatro seminários poéticos (MOURÃO apud LIRA,
2007, p. 89-92).
Certamente este pedaço da América, enviesado pelo leque de mitos e histórias
que margeiam sua fundação, e mais o Ceará e outras plagas de um país chamado Brasil
serão evocados pelos versos de Mello Mourão. Suas memórias, empreendidas pela
construção de um poema que se ergue sob o esforço de cantar os quinhentos anos de
achamento da terra brasilis, formam um palimpsesto de cores, cenas e linguagens, que
29
feito uma caixa dentro de outra caixa, ordenam o ritmo em que se dará a composição de
Invenção do mar. Logo, quando não aparecerem enquanto parte integrante do jogo de
fontes e influências instituído por sua poesia, tais reminiscências operam como dispositivo
de leitura e (des) leitura da multiplicidade de forças que regem o enredo lírico-épico desta
obra.
30
1.2. Gerardo Mello Mourão e a dimensão modernista
Situado cronologicamente em um ínterim de tempo e espaço determinado pela
ressaca estética e conceitual das principais vanguardas européias, o segundo quartel do
século XX, no Brasil, aparece-nos como cenário para a orquestração da escritura poética de
Gerardo Mello Mourão. Diante disso, o entendimento de seus versos e a preambulação do
caráter performático atribuído a sua obra apontam instintivamente para a crise
paradigmática vivida pela poesia, em meados do século XIX, e para a gama de
transformações sociais, políticas e institucionais que minaram as convicções e as verdades
do Ocidente àquele tempo.
É possível dizer que os cataclismos
9
que ruíram a velha forma de explicar e
conceber o mundo agora supostamente longe da mitologia e da teologia que moveram
respectivamente o canto de Homero e Dante cederam espaço para a compreensão
mutável dos tempos, a mecanização dos vínculos pessoais e o triunfo das incertezas
(GULLAR, 1989). No entanto, em movimento contrário a este ciclo organizacional, os
primeiros versos do poeta cearense se opõem à experimentação do advento modernista e à
introdução de um sentir “radicalmente” brasileiro, isento de contribuições e influxos
externos, segundo propunha o instinto de nacionalidade
10
encenado pelo dínamo formado
por Oswald e Mário de Andrade.
O empenho destes poetas em renovar as letras e as artes vigentes a partir do
arsenal de forças, culturas, pensares e saberes que mimetizavam as variadas manifestações
autóctones, no Brasil, aliado ao sentimento de auto-deglutição e eterno retorno proposto
pelo Manifesto Antropófago, reverbera os traços e ângulos de uma poesia que se pretendia
eminentemente brasileira, profunda e analítica. Por assim dizer, a materialização de uma
arte que traduzisse a alma nacional e o inconsciente coletivo do povo brasileiro significou,
a princípio, um obste à formulação de uma épica que se propusesse a reconstruir a história
e os mitos de nossa fundação, influenciados sob muitos aspectos pela empresa
colonizadora portuguesa. Portanto, a tensão assinalada entre o projeto modernista da
década de 20 e os anseios épico-clássicos de Mello Mourão, revelados décadas mais tarde
9
Denominação dada por Malcolm Bradbury e James McFarlane, no livro Modernismo: guia geral (1989), às
sublevações da cultura, fundamentais para a demolição de nossos sólidos e firmes postulados, durante a
transição do século XIX para o século XX.
10
Referência ao ensaio Instinto de nacionalidade (1992), de Machado de Assis, no qual o autor discute
algumas questões relacionadas à brasilidade e à idéia de nação e nacionalismo literário.
31
com a publicação da trilogia épica Os peãs, ensejam a provável descontinuidade do
contributo modernista e a impossibilidade de romper em absoluto com os pressupostos da
tradição clássica:
Tu me pediste notícias da Grécia:
de Lisboa
por Goa e Madragoa e Itamaracá
me fui partindo e, pois, já tenho
algumas notícias da Grécia e escrevo
entre a mulher da bela cintura
dos olhos verdes
e o mar:
por mar chegadas, por mar envio
as notícias da Grécia;
redijo em alto mar entre
a madrugada jônia e a madrugada
de Maragogí – sudeste
do país dos Mourões.
(MOURÃO, 1986, p. 150)
Ao negar, de tal maneira, qualquer esquema doutrinário que ameace converter
a fenomenologia moderna em mero proselitismo conceitual, o poeta equaciona o conjunto
de experiências telúricas vividas pelo sujeito-lírico à influência clássica de Homero que
gravita invariavelmente em torno do eixo estético-formal de sua poética. Talvez, resida
exatamente aí a tônica para a aliança de contrários de que nos fala Antoine Compagnon:
A modernidade traz em si mesma o seu oposto, a resistência à
modernidade. Todos os artistas modernos, desde os românticos, se viram
divididos, por vezes dilacerados. A modernidade adota facilmente uma
postura provocante, mas seu interior é desesperado. Não sejamos tentados
pela miragem da síntese; mantenhamos as contradições, por natureza
insolúveis; evitemos reduzir o equívoco próprio ao novo, como valor
fundamental da época moderna (COMPAGNON, 2003, p. 16).
A partir do que nos propõe o teórico, fica-nos claro que a identificação de uma
arte moderna que tenha rompido radicalmente com as fontes e as influências que, ainda em
tempos correntes, universalizam a poesia e estabelecem um ponto de contato entre os
sujeitos contemporâneos e a era clássica, constitui, pois, um equívoco (PEREYR, 2000).
Falamos de uma nova arte, uma nova poesia distante naturalmente da acepção inaugural
que a terminologia nova possa nos sugerir fundada, acima de tudo, na obliteração da
antiga natureza, de seus vales, de seus monstros e de outras maravilhas, e na emersão dos
grandes centros urbanos, amplificadores do ringir das máquinas que edificam e destroem o
homem moderno.
32
É bem verdade que tais rupturas não constituem em si um momento isolado
para o mundo ocidental. Afinal, conforme sabemos, o advento da modernidade representou
para o Ocidente a soberania da razão e a possibilidade de se construir um outro mundo, que
contrapusesse as idéias, os valores e os princípios da Idade Média. Assim, em lugar dos
preceitos medievais, criou-se espaço para a racionalização do processo de produção, a
impessoalidade nas relações e a dominação da classe burguesa que buscou moldar o
mundo a seu pensamento e à conquista de novos mercados pela organização do comércio,
a produção fabril e a colonização.
Nessa medida, o triunfo da razão fundamento principal da modernidade
significou a substituição de Deus pela Ciência. Posta na condição de tábula rasa, a tradição
fundada no predomínio das idéias e dos valores cristão-medievais foi preterida em
detrimento da tomada de novas formas de organização social e política, fundadas,
basicamente, no domínio do pensamento racionalista. Em substituição à segurança e à
coesão social baseada na moral cristã-medieval, surge-nos a compreensão mutável do
tempo, a hibridez dos sentimentos e dos vínculos pessoais, além das incertezas, da crise
dos parâmetros e conceitos; tudo como uma síntese do pensamento moderno, conforme
escreveu Marshall Berman: “o homem moderno vive sob o redemoinho de permanente
mudança e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia” (BERMAN,
1986, p. 15).
Num culto melancólico ao novo e aliado ao conformismo do não-conformismo,
tudo agora é, a um instante, construção e ruína. Entretanto, é importante refletir em
quais proporções a poesia moderna tem se distanciado, de fato, das cenas e legendas
suscitadas pela tradição greco-latina. E mais, seria mesmo este afastamento um pré-
requisito indispensável para a articulação de uma literatura que se quer moderna. Leiamos
o que nos diz Mello Mourão a este respeito:
O sagrado terror da eloqüência levou alguns escritores de poesia a uma
radical exacerbação contra a eloqüência, ao culto da anti-eloqüência, que
é outra forma de eloqüência. Tanto como os eloqüentes, os anti-
eloqüentes estão sob o signo de Monsieur Jourdain: fazem prosa sem
saber. Nosso tempo, qualquer tempo que haja cortado o cordão do
umbigo com o mito e a eternidade, é um tempo indigente. Mas se tiraram
tudo ao homem de nossos dias, uma coisa que permanece
inconfiscável: o έπος, o nome, a palavra substantiva, o oráculo. Depois:
onde estão os limites entre a poesia e a prosa no romance de Dostoievski,
Tolstoi, etc.? Onde estão esses limites até em reportagens e textos de
história, como em Os Sertões e mesmo em reportagens que às vezes
lemos em nossos jornais diários?
33
[...]
Dou por entendido que o poema épico escrito em nossos dias pode e deve
ser feito também de collages. Toda obra de arte é feita de collages. As
formas são repetidas e as novas formas que fazemos são um espelho, um
contraponto de formas anteriores. Fazemos uma forma nova para operar a
re-surreição de formas defuntas. Este é o poeta: o taumaturgo das
ressurreições. Homero re-surge e re-suscita sempre. Em Virgílio, em
Dante, em Camões, em Hoelderlin, em Shakespeare, em Rimbaud, em
Baudelaire, em Ezra Pound. E em Dom Luis de Góngora y Argote. E
alguns outros (IM, p. 11-17).
De acordo com tais reflexões, torna-se claro que a impossibilidade de se
romper em absoluto com os pressupostos deixados pela tradição e fundar uma nova
linguagem literária, desconectada de tudo aquilo que foi produzido por nossos
antepassados, não representa um impedimento para que diferentes formas de se conceber a
realidade interfiram na realização de práticas discursivas. de se notar, logo assim, que a
livre associação de motivos, imagens e linguagens constitui-se enquanto estratégia de
reorganização da literatura produzida, em nossa contemporaneidade, sem a obrigação
imanente de fundar novas letras e silenciar as vozes da tradição.
Instituída pela dialética do devir
11
, a literatura produzida entre o final do século
XIX e princípios do século XX, é marcada, antes de qualquer coisa, pela ânsia de exaltar a
dinâmica do tempo presente, agregada à necessidade de cantar e lamentar o que os olhos
vêem e as mãos tocam: a cidade moderna. Por conseguinte, não apenas a célebre Paris de
Baudelaire, mas também a Lisboa de Cesário Verde, a Nova Iorque de Walt Whitman ou
ainda a São Paulo dos modernistas brasileiros, ademais de outras praças literárias no
Brasil, a exemplo do Rio de Janeiro, Salvador e Recife tornaram-se, progressivamente,
espaços emblemáticos para a feitura de uma outra poesia e a oxigenação de uma outra voz,
agora, erigidas sob o delírio do ver, segundo nos esclarece Octavio Paz:
[...] na segunda década do século XX surgiu na pintura, na poesia e no
romance uma arte feita de conjunções temporais e espaciais que tende a
dissolver e a justapor as divisões do antes e do depois, do anterior e do
11
De acordo com as discussões de Georg Wilhelm Friedrich Hegel em Estética: a idéia e o ideal: estética: o
belo artístico ou o ideal (1996), a dialética do devir é um conceito filosófico que qualifica a mudança
constante, a perenidade de algo ou alguém. Surgiu primeiro em Heráclito e em seus seguidores; o devir é
exemplificado pelas águas de um rio, “que não continua o mesmo, a despeito de suas águas continuamente
mudarem.” Devir é o desejo de tornar-se.
34
posterior, do interno e do externo. Esta arte teve muitos nomes. O melhor,
o mais descritivo: simultaneísmo.
[...] o olho pode ver ao mesmo tempo sobre uma superfície diferentes
representações e formas. A visão do olho é simultânea. A justaposição se
resolve em uma ordem plástica que é um sistema de relações visuais. O
princípio que rege esse tipo de representação é a contigüidade: as coisas
estão umas ao lado das outras e são percebidas simultaneamente pelo
espectador (PAZ, 1993, p. 48, grifo do autor).
O simultaneísmo que determinou, portanto, a arte estabelecida nas primeiras
décadas do século XX foi a baliza de um pensar fundamentado pela angústia de captar
através do olhar as misérias e as grandezas que convertiam o sujeito moderno em abrigo
para os paradoxos da modernidade. Não obstante, em meio ao panorama da poesia
brasileira (delineado pelos versos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade,
João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, dentre outros), Gerardo Mello Mourão
manteve seu olhar voltado para a tradição clássica, assinalando uma incorrespondência
entre seu projeto literário e os anseios do movimento modernista em romper com a tradição
ou vislumbrar simplesmente a tradição da ruptura.
Em Invenção do mar, obra de aspiração épica ou a própria manifestação deste
gênero em nossa contemporaneidade, a imaginação
12
resgatada pela ficção literária
apresenta ao leitor certas áreas, até então, desconhecidas por sua percepção. O poema abre
múltiplas possibilidades de caminhos e experiências rejeitadas pela realidade factual e pela
própria história institucionalizada, conforme se lerá mais detalhadamente nos capítulos
seguintes dessa dissertação. Através de sua capacidade de reconfigurar as verdades
vigentes – inquirindo-as ou reproduzindo-as –, o poeta revitaliza o tempo pretérito e
captura o tempo real, alterando profundamente os principais fundamentos do gênero épico
e seus desdobramentos temático-formais.
O texto encena o invisível, representa o irrepresentável. Na condição de obra
literária, o poema oferece inúmeras formas de realização ao incomensurável campo do
não-dito. Uma elaboração ao nível do imaginário, da relação existencial do homem com o
12
É indispensável ampliar a gama de significações que circunscrevem o conceito daquilo que seria a
imaginação, e situá-la para além de qualquer concepção reducionista que mesmo de longe objetive traduzi-la,
simplesmente, como mera faculdade de formar imagens. Afinal, em conformidade ao que nos propõe Gaston
Bachelard em O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento (1990), tal propriedade é, antes de
tudo, a capacidade de deformar as imagens fornecidas pela percepção e a destreza de projetar movimentos de
libertação que nos desloque para outro espaço onde as arestas das imagens primeiras não possam conter
nossas habilidades de transfigurar e refazer o objeto.
35
mundo e do Brasil com seus inventores. O que não quer dizer, naturalmente, que a fusão
entre o real e o mito (máxima da poesia épica) seja preterida de alguma forma pela
representação e revisão da realidade histórica discutida.
Diante disso, é impossível tomar Invenção do Mar como um desenho pitoresco
da paisagem nacional ou um discurso estetizado de idealização da pátria, tal qual fizeram
os românticos mais utópicos ou os modernistas mais engajados. A leitura deste poema nos
revela a preocupação do poeta em rememorar o tempo mítico das origens, na perspectiva
de trazer ao presente as memórias do longínquo:
E não tenho mais nada – rico de nada, nada mais
que essas memórias e escrituras
senhor do cabedal dos tempos – eu Poeta,
pastor de águas e de caravelas – pastor de espumas
pastor dessas lembranças
pastoreio seus nomes
canto as naus e os marinheiros
e os capitães de outrora – Martim Afonso
e Pero Lopes de Souza
e de seus bagos venho.
(IM, 1997, p. 157)
Partindo da premissa de que a argumentatividade está inscrita no uso da
linguagem e de toda e qualquer atividade de produção artística, fica-nos claro que a
literatura a utiliza para analisar, construir e desconstruir suas tessituras textuais. Através de
um processo de re-significação de significantes que, aliás, é algo absolutamente peculiar à
literatura, se a enxergarmos como instrumento de transformação da linguagem, a poética
de Mello Mourão se sobressai justamente por introduzir no corpo do poema elementos
poéticos e outros ditos não-poéticos, reforçando a tese de que não poeticidade inscrita
em um determinado objeto (qualquer que seja ele), mas sim, na lida com seu corpo, em sua
transformação, em seu refazimento. Tradição e modernidade são postas face a face, tal qual
um duelo de titãs.
A tensão estabelecida entre tradição e modernidade, muito mais do que um
motivo-condutor para a construção do poema em debate, constitui uma espécie de núcleo
emocional a cuja volta se organiza a experiência poética de Mello Mourão, representando,
numa concepção metonímica, aquilo que seria o traço que compõe a significação de sua
obra desde o nascedouro lugar de onde afluem, além das inclinações pessoais do poeta,
toda uma problemática da criação literária de nosso tempo que envolve questões como: a) a
36
expressão da subjetividade embrionada pela retórica tradicional; b) as possibilidades de
materialização e a natureza da poesia épica na sociedade moderna; c) o questionamento a
respeito do legado deixado pela tradição; d) o problema da busca de uma poesia que lhe
seja eminentemente peculiar.
Assim, imaginamos estar de posse de uma poética que se apresenta como um
corpo orgânico vivo composto de inúmeros fragmentos da cultura ocidental,
saborosamente deglutidos para bem da literatura transgressiva e itinerante. Logo, fonte e
influência se articulam de modo que as referências ultrapassem o mero investimento da
repetição e rasurem o que foi restaurado:
Empédocles sustentava que nossa psique, na morte, retorna ao fogo de
onde saiu. Mas nosso daimon, de uma vez nossa culpa e nossa
potencial divindade, não vem a nós do fogo, mas dos precursores. O que
foi roubado deve ser restituído: o daimon nunca foi roubado, mas sim
recebido como uma herança transmitida na morte do efebo ao poeta
tardio capaz de aceitar simultaneamente tanto o crime quanto a divindade
(BLOOM, 1991, p. 181).
Por esse viés, circunscrito pelas mediações da metaficção historiográfica
13
,
segundo nos sugere Linda Hutcheon (1988), já nos primeiros versos de Invenção do mar o
poeta nos apresenta uma atmosfera pautada na ficcionalização do real ou na materialização
do ficcional, à medida que traz para o poema alguns elementos das crônicas coloniais e da
cantoria nordestina, deixando claras suas intenções de desconstruir os limites existentes
entre realidade e imaginação. Desse modo, embora o poeta prime pela vitalidade do mito, o
poema é recheado de testemunhos e documentos que se justificam pela tentativa de
documentar a realidade, mas que uma vez movidos pela imaginação fantástica, distanciam-
se cada vez mais de qualquer dimensão factual, tornando-se mero exercício de
conjecturação:
Conta o cronista: –“... do primeiro encontro não perdoaram a grande nem
a pequeno, para o que vão apercebidos de uns páus à feição de arrochos,
com uma quina por uma ponta, com o que da primeira pancada que dão
na cabeça do contrário lh’a fazem em pedaços. E alguns dentes
bárbaros tão carniceiros que cortam aos vencidos, depois de mortos, suas
naturas, assim aos machos como às fêmeas, as quais levam para dar a
13
Discutida a partir da década de 80, a metaficção historiográfica tem o propósito de revisar os episódios da
história e instituir um ponto de intersecção entre a própria noção de história e literatura, à medida que
rediscute e relativiza os elementos e eventos que documentam os sujeitos, os objetos e os fenômenos dessa
relação ao longo dos tempos.
37
suas mulheres, que as guardam depois de mirradas no fogo para nas suas
festas se darem a comer aos maridos por relíquias...”
14
(IM, 1997, p. 228-
229).
Uma espécie de personagem, capaz de deslizar, com absoluta fluidez, pelo
interior do poema numa alusão ao flâneur de Walter Benjamin e instigar-nos, enquanto
leitores, para que juntos discutamos questões de verossimilhanças e reflitamos a despeito
do procedimento ficcional dos eventos concernentes à própria concepção poética, o eu-
lírico transita pelo ardiloso jogo entre desumanização e humanização do sujeito
contemporâneo, na proporção em que incorpora ao poema fluxos contínuos capazes de
alcançar o ápice do pensamento moderno, e assim mergulhar nas profundezas mais abissais
da barbárie humana. Eis, então, uma personalidade que imprime ao poema uma outra
cadência de leitura, capaz de conectar tradição e modernidade, coloquialidade e erudição.
Instrumentalizado pelo sentido do ver, o poeta transforma em canto a matéria
vulgar do cotidiano, amalgamando-se às memórias da tradição e da modernidade que se
aglomeram em seu entorno, não como um sistema bipolarizado por centro e periferia, e
sim, como uma unidade atômica indivisível. Nesses termos, não se trata simplesmente de
preterir ou eleger tradição ou modernidade, mas de conjugar estas duas dimensões e extrair
daí um ponto de convergência que extrapole a linha divisória entre estes campos
conceituais, e instaurar possivelmente um terceiro olhar, um terceiro pensar, insurrecto e
libertário, tal qual nos apresenta Antonio Cicero:
A poesia deve chegar a ser o que é. É para ser fiel à poesia em si que o
verdadeiro poeta se insubordina não somente contra a poesia
convencional, mas contra o olhar ou a apreensão convencional da
poesia. Esse olhar, que é o olhar do falso poeta e filisteu, pretende ser
natural e não convencional, assim como pretende serem naturais as
formas convencionais da poesia e naturais os lugares em que
convencionalmente espera encontrá-la, entre as amenidades da vida.
Contra essa concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se
impõe uma tarefa dupla: por um lado, revelar a poesia em estado
essencial e selvagem e, por outro, desmantelar as convenções que a
elidem ou domesticam (CICERO, 2005, p. 19, grifos nossos).
14
Embora as informações trazidas por Gerardo Mello Mourão em Invenção do Mar revelem certa dúvida
quanto à autoria deste fragmento, nossas investigações demonstraram que o trecho destacado refere-se, na
verdade, a partes do capítulo XLVIII, do livro Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa
(1851/1987), p. 300.
38
Em resposta ao que se depreende da citação anterior, podemos afirmar que,
embora o poeta se dedique a revelar a poesia em seu estado bravio, imaginamos que sua
apriorística esteja em demolir as arestas que aprisionam o gênero épico aos versos da
Ilíada, da Odisséia ou d’Os Lusíadas, por exemplo, e instituir um templo cujas aspirações
literárias transitem pelo espaço do intangível. De modo análogo, portanto, é possível dizer
que a íntima conjugação entre a instância lírica e a épica significa, pois, o principal traço
que determina o caráter moderno da obra de Gerardo Mello Mourão, conforme se no
seguinte poema do livro Cânon & fuga:
O QUE AS SEREIAS DIZIAM A ULISSES
NA NOITE DO MAR
Sobre a frase musical de Ivar Frounberg “Was sagen
die Sirenen als Odysseus vorbei segelte”
Ninguém jamais ouviu um canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem a minha voz – a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:
virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim – e ao ritmo
de teu corpo entre a cintura e as ancas
mais o lençol de aromas de meu corpo
em monte de pétalas desfeito:
e dormirás comigo
e os que dormem com deusas
deuses serão – verás
cada arco de minhas curvas
à forma de teu corpo moldaremos – e a pele tua
aprenderá da minha
aroma e maciez e música
[...]
Não partas!
Se partires
as velas de tuas naus serão escassas
para enxugar-te as lágrimas – e nunca
nunca mais tocará a pele das deusas
nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
e nunca mais serás um deus
[...]
Mas vem
e vem dormir comigo
e comigo
39
e minhas irmãs e todas
as sereias do mar
as sereias da terra
e as sereias dos céus.
(MOURÃO, 1999, p. 9-11)
em seus primeiros versos, o poema se inscreve enquanto elemento de
reconstrução da linguagem literária, à medida que o poeta torna clara sua aspiração de
emitir um canto diferente de tudo que já se ouviu. A livre associação entre elementos
temáticos da escritura épica e alguns outros, relacionados intimamente com a afirmação da
voz lírica, reforça as intenções do poema em fundar outro reino”, assinalado, sobretudo,
pela intersecção de imagens, palavras e discursos. A princípio é possível imaginar que a
nítida menção a alguns motivos, tipicamente atrelados ao desenvolvimento da escritura
épica, a saber, Ulisses, mar, marinheiro, vela e nau; abre caminho para configuração
estética de tal gênero.
No entanto, a retomada lírico-erótica desses elementos, revelada pelo
movimento dos corpos descritos no poema e a articulação do jogo estético e semântico
proposto pela reunião de signos sexuais e amorosos ameaçam a típica proteção dada à
estrutura temática dos gêneros épico e lírico à medida que cede espaço para o
questionamento destas próprias estruturas enquanto objetos conceituais, que, agora, se
fixam na emancipação dos tipos estéticos e humanos que constituem a literariedade destes
textos.
E se, de um lado, a poesia de Mello Mourão se destaca em virtude de sua luta
constante contra a natureza incendiária das palavras; de outro, o que se realça é exatamente
a dependência necessária a elas. Tal dualismo (gerenciado pelo sentido do ver) nos revela
que a influência clássica sublinhada em sua poética não se restringe unicamente ao mero
exercício de recuperar aspectos formais e temáticos. A confluência de extremos é, a nosso
ver, a mola mestra para a afirmação de uma poética que se faz igualmente clássica e
moderna.
Assim, não confundamos as releituras do poeta cearense com qualquer
tentativa de reprodução dos versos de Homero, Dante ou Camões. Em sua poesia, a
repetição gera o novo, as tonalidades épicas se transfiguram e convergem para sua
expressividade poética conforme se viu no poema mencionado. Octávio Paz tem
consciência dessa tarefa de inauguração que é simultaneamente difícil e gratificante:
40
A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem,
ser temporal e relativo, mas sempre lançado ao absoluto. Esse conflito
cria a história. Dessa perspectiva, o homem não é mero suceder, simples
temporalidade. Se a essência da história consistisse apenas em um
instante suceder a outro, um homem a outro, uma civilização a outra, a
mudança se resolveria em uniformidade e a história seria a natureza. [...]
E o que faz instante ao instante, tempo ao tempo, é o homem que com
eles se funde para torná-los únicos e absolutos (PAZ, 1996, p. 56, grifo
nosso).
É importante não perder de vista, todavia, que o desenvolvimento dessa fusão
passa pelo exercício contínuo da linguagem, uma vez que não existem elementos poéticos
em si mesmos, como também não existem palavras por si mesmas poéticas. É a função
específica que esses elementos exercem dentro de um determinado lugar de enunciação o
que os tornará poéticos ou não. É a elaboração da linguagem que converterá os elementos
verbais em expressão poética. Foi assim na Grécia homérica, tem sido assim no coração
cosmopolita das grandes cidades, cujo poeta moderno sente a necessidade de recuperar
uma história na qual sua condição atual possa fazer sentido.
Em se tratando de Mello Mourão, fica evidente que essa recuperação se
instrumentaliza através da alegorização do olhar, que ao caminhar cada vez mais em
direção às possibilidades internas da linguagem (multiplicidade de sentidos, sonoridade,
ritmo, disposição de imagens e analogias), o fenômeno poético se dilata, instaurando-se
nas cenas e legendas perceptíveis a sua visão incauta. Destronado, portanto, por
descumprir os anseios modernistas em propor uma literatura declaradamente engajada e de
certo modo autônoma, o poeta insistiu em seus versos demasiadamente retóricos aos
olhos da crítica brasileira da primeira metade do século XX
15
e manteve-se firme na
proposição de uma poética que o aproximasse das ninfas e musas que inspiraram o canto
de Homero, mas que também refletisse as memórias que constituem a idiossincrasia de sua
própria origem.
15
Apesar de ter recebido elogios honrosos a sua poesia por parte de personalidades como Ezra Pound, Carlos
Drumonnd de Andrade, Octavio Paz e Bruno Tolentino, seja por meio de rápidas declarações em periódicos
(Folha de São Paulo e O Globo, dentre outros) ou através da habitual troca de correspondências; Gerardo
Mello Mourão não foi bem recepcionado por alguns segmentos da crítica brasileira do século XX.
Imaginava-se não haver mais espaço para uma poesia declaradamente retórica e cunhada a partir dos
ensinamentos de Homero, Dante e Virgílio. (Reflexões realizadas a partir da apreciação da fortuna crítica
reunida por José Luís Lira em A saga de Gerardo: um Mello Mourão, 2007).
41
1.3. Dante ou nada: rápidas notas sobre o gênero épico e sua atualização
A leitura e a investigação de Invenção do mar capitaneadas pelo desvelamento
de uma concepção fronteiriça de gêneros literários, ademais de representarem uma fissura
para a categorização irrestrita da linguagem, assumem também uma posição de destaque
no âmbito das práticas discursivas e atitudinais. Nesses termos, que diversas esferas da
atividade humana estão relacionadas com o uso da língua, parece-nos claro que o caráter e
as estratégias de seu uso e disseminação são tão multiformes como as próprias esferas da
atividade humana. Assim, articulado mediante um atrito sinuoso entre suas condicionantes
extrínsecas e intrínsecas, o uso da língua se materializa a partir da construção e
reconstrução de enunciados (orais e escritos, concretos e singulares) emitidos pelos sujeitos
de uma ou outra esfera da práxis
16
humana. E como num jogo de espelhos, tais enunciados
refletem, por sua vez, as condições específicas e o objeto de cada esfera (social, política,
histórica, cultural etc.), mas não apenas por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal
e sim, sobretudo, por sua composição e estruturação (BAKHTIN, 2003).
É tácito, portanto, que a riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são
imensas porque as possibilidades da atividade humana são igualmente intangíveis e porque
em cada esfera da práxis humana existe todo um repertório de elementos que se dilata e se
multiplica à medida que o ato comunicativo se desenvolve. Por assim dizer, também
merece destaque a extrema heterogeneidade que determina a curvatura interna destes
gêneros e desenha incessantemente diferentes cadeias de conceitos, estilos e estruturas.
Conseqüentemente sofrem este efeito de performance e carnavalização
17
tanto as breves
réplicas de um diálogo cotidiano (considerando-se toda a diversidade proposta pelo tema,
situação, número de participantes etc.) quanto uma carta, um relato e outras tantas
manifestações dos gêneros literários, a saber: épico, lírico e dramático.
16
Entendida sob a luz dos pressupostos marxistas, a práxis é a atividade de transformação das circunstâncias,
as quais nos determinam a formar idéias, desejos, vontades e teorias, que, por sua vez, simultaneamente, nos
movem a formar novas circunstâncias de conceber e instrumentalizar a realidade. (BORNHEIM, Gerd A.
Dialética, teoria, praxis: ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. 2a ed. Porto
Alegre: Globo, 1983.)
17
Segundo reflexões propostas por M. Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento (1987),
a carnavalização se manifesta de modo preponderante e pode ser compreendida como
uma linguagem carregada de símbolos e alegorias, em que se pontua a divergência entre o oficial e o não-
oficial ou, mais propriamente, a ruptura com tudo que é institucionalizado.
42
Diante disso, as discussões que pretendam estabelecer verdades pétreas e
universais a respeito da linguagem e de seu caráter performático constituem certo
proselitismo conceitual. Por efeito alusivo, conquanto se organize, desde seus primórdios,
em torno dos mesmos elementos gravitacionais, o gênero épico representa a seu modo o
caráter oscilante e transformacional do sujeito humano e de suas práticas discursivas.
Logo, seja pela perspectiva clássica ou contemporânea a lida com a matéria épica nos
conduzi, sempre, às notas e circunstâncias que dão conta de seu aparecimento no Ocidente.
Mencionado sistematicamente pela Poética aristotélica (334 a.C.) durante os
intervalos de asserção e levantamento conceitual da tragédia, o gênero épico, do grego
epos “narração”, “discurso”, “palavra” –, é doutrinado pela palavra eficaz do rapsodo
18
que repetida pelo aedo
19
efetiva o herói por meio de um kleos
20
, renome ou glória, que se
quer imperecível:
Homero, além de autor de poemas nobres no nero sério compôs
obras que se destacam pela excelência e pela dramaticidade –, também
foi o primeiro a traçar o esboço da comédia, dramatizando não o
vitupério, mas o cômico. O Margites tem, no gênero das comédias, o
mesmo peso de Ilíada e Odisséia em relação às tragédias
(ARISTÓTOLES, 1973, p. 451, grifo nosso).
Assim, referindo-se principalmente à poesia de Homero (mediante o intento de
desmembrar os elementos constituintes de tal gênero sério), Aristóteles, sob a lei de
atração e repulsa, aproxima epopéia e tragédia como artes essencialmente miméticas para
logo após distingui-las, considerando, pois, as vias e as estratégias de realização destes dois
segmentos que se diferenciam entre si, dentre outras razões, em virtude da primeira utilizar
exclusivamente o verso heróico o hexâmetro datílico
21
–, o único adequado à epopéia,
18
Rapsodo (em grego clássico ραψδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na
antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando poemas (principalmente epopéias). (Definição apresentada
por Isidro Pereira em seu Dicionário grego-português e português-grego. 7.ed Braga: Apostolado da
Imprensa, 1990)
19
Um aedo (em grego clássico οιδός / aoidos, do verbo δω / aidô, "cantar") era, na Grécia antiga, um
artista que cantava as epopéias acompanhando-se de um instrumento de música, o forminx. Distingue-se do
rapsodo, mais tardio, por compor as próprias obras (idem).
20
Kleos (em grego: κλέος) é uma palavra grega frequentemente traduzida como "notoriedade", ou "glória"
(idem).
21
O hexâmetro datílico é uma forma de métrica poética ou esquema rítmico tradicionalmente associada à
poesia épica, tanto grega quanto latina, como por exemplo, a Ilíada e a Odisséia de Homero e a Eneida de
Virgílio, segundo informações disposta por Norma Goldstein em Versos, sons, ritmos (1990).
43
por ser o mais amplo e grave, e conseguintemente o mais apropriado para imitar feitos
ilustres; ao passo que esta última serve-se da utilização de vários metros para seu arranjo e
alinhamento:
[...]
Menelau, ombros largos, se impunha. Sentados,
o divino Odisseu era o mais majestoso.
Quando urdiam discursos e expunham idéias,
Menelau era fluente e claro, mas conciso,
não sendo um homem multipalavroso , nem
dispersivo, e também por ser ele o mais moço.
Quando Odisseu, porém, multiardiloso, punha-se
de pé para falar, fixava o olhar no chão,
mantendo o cetro imóvel (nem para trás, nem
para diante o inclinava); parecia um rústico,
alguém desatinado ou fraco da cabeça.
(HOMERO apud CAMPOS, 2008, p. 181)
[...]
Ó meus filhos, tão dignos de piedade! Eu sei, sei muito bem o que viestes
pedir-me. Não desconheço vossos sofrimentos; mas na verdade, quem
mais se aflige sou eu. Cada um de vós tem a sua queixa; mas eu padeço
as dores de toda a cidade, e as minhas próprias. Vossa súplica o me
encontra descuidado; sabei que tenho derramado abundantes lágrimas,
e que meu espírito inquieto tem procurado remédio que nos salve. E a
única providência que consegui encontrar, ao cabo de longo esforço, eu a
executei imediatamente. Creonte, meu cunhado, filho de Meneceu, foi
por mim enviado ao templo de Apolo, para consultar o oráculo sobre o
que nos cumpre fazer para salvar a cidade (SOFÓCLES, 2002, p. 18).
No entanto, embora apresentem divergências estético-formais, épico e trágico
se aproximam em razão do paralelismo identificado quando da projeção e materialização
de seus objetos e circunstâncias: sujeitos supremos destacados numa posição de
incomparável grandeza com relação aos leitores e espectadores. Ainda assim, “diferem nos
modos imitativos: a tragédia é dramática; a epopéia é narrativa e dramática, pois faz
personagens falar diretamente, dotando-os de caracteres específicos para que seu discurso
seja verossímil: Aquiles colérico, Nestor sábio, Ulisses astuto” (HASSEN, 2008, p. 26).
Sob este prisma, seja por seu caráter grandiloqüente ou pela representação
coletiva da ação empreendida pelos heróis que a constituem, a épica, desde seus
primórdios, tem se organizado em torno dos mesmos elementos:
a) A existência do narrador que conta a história a um público, formado, antes
da invenção da escrita, por ouvintes e, mais tarde, por leitores. Neste caso, seu relato pode
44
revelar suas próprias vivências (narração em primeira pessoa), ou as ações praticadas por
outros indivíduos (narração em terceira pessoa);
b) A proposição de um argumento principal a cuja volta circundam uma
sucessão de fatos, aventuras e conflitos que organizados de forma lógica e coerente
ordenam o desenvolvimento da trama instituída;
c) A elaboração de personagens mediante a visão dilatada do narrador de modo
que história-ficção e imaginação-realidade relacionem-se entre si na perspectiva de
construir seres imaginários, via de regra, protagonistas das ações encadeadas e
representativos de um outro mundo maravilhoso;
d) A inserção de um percurso cronológico que vai do início ao fim do enredo,
e que faz sentido no universo do próprio relato. Quase todas as narrativas apresentam os
episódios como já realizados, como algo capturado ao tempo pretérito, o que possibilita ao
autor engendrar com maior arbítrio a estrutura temporal de sua obra (SANTIAGO, 2002).
Assim, através da mobilidade atribuída à história e à geografia que encenam seu texto, ele
pode polarizar ou dilatar as ações, por meio de cortes maiores ou menores de tempo,
segundo sua necessidade de convencimento, dramaticidade e tensão do enredo, conforme
nos informa o próprio Mello Mourão:
[...] é, provavelmente, um desperdício e uma falta de ordem, consumir as
horas procurando o tempo futuro, quando o que devo procurar é o tempo
passado. Só o que se perdeu é que pode ser procurado. É uma tolice fazer
cálculos e projetos sobre o dia de amanhã. Não porque nos faltam
todos os elementos necessários a semelhante cálculo, mas simplesmente
porque o dia de amanhã não existe (MOURÃO, 1975, p. 39).
e) A ambientação do espaço (descrito minuciosamente ou simplesmente
sugerido) sobre o qual as personagens se deslocam em movimentos cíclicos e
organizacionais;
f) Em linhas gerais, as formas narrativas do gênero épico primam pela
descrição objetiva dos acontecimentos. O autor épico, ao menos nos moldes aristotélicos,
dedica-se menos em revelar seu estado de espírito do que um poeta lírico. Seu objetivo é
criar um mundo que se assemelhe de um modo ou de outro com a realidade material.
Ao propor uma história encenada por diferentes perfis humanos, o autor é obrigado a
elaborá-los a partir de um considerável nível de diversidade e objetividade, sob o risco de
convertê-los em prospecções redundantes e cosmogônicas de sua própria subjetividade
45
(TEIXEIRA, 2008). Não obstante, no caso específico de Invenção do mar, a manifestação
emblemática do gênero sério em nossa contemporaneidade, é possível que tais premissas
dêem espaço ao aparecimento de novas diretrizes que passarão a reger sua composição.
Desenvolvido, portanto, sob o cunho de muitas civilizações e sob a ótica de
variados momentos históricos, o gênero épico tem a Ilíada e a Odisséia, epopéias nascidas
na Grécia entre os séculos IX e VIII a.C., como referências insuperáveis. Tais poemas, em
companhia de alguns outros produzidos pela civilização ocidental, desde a era clássica até
renascença, foram igualmente intitulados de obras épicas. Convencionou-se afirmar, neste
sentido, que a expressão mais recente e marcante do gênero épico no Ocidente são Os
Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, publicado originalmente no provável ano de 1572.
Inevitavelmente, qualquer poema épico da literatura em língua portuguesa,
quando colocado face a face a Os Lusíadas, aparecerá eclipsado pela grandiloqüência e
riqueza temático-estilística do célebre poema de Camões. Afinal, a empresa assumida pelo
poeta português compreende não somente os temas da epopéia no ciclo das grandes
navegações, de modo a conduzir seu país ao mais alto grau do humanismo renascentista,
mas também figura a própria idéia do que seria, àquele tempo, a nacionalidade portuguesa;
uma vez que narra e redimensiona sua bem-aventurança no auge de uma era determinada
pela conquista e desvelamento de terras que, até então, existiam apenas no pensamento
mais fantasioso daquele povo.
Decorrente dos principais objetivos propostos pelo poeta, Os Lusíadas dispõe
de uma estrutura narrativa extremamente complexa. Desenvolvido a partir de quatro planos
distintos: o plano da viagem, o plano mitológico, o plano da história de Portugal e o plano
das considerações do poeta; o poema converte a viagem de Vasco da Gama em mote
central para as reflexões dos principais ideais humanistas em um Portugal do século XVI
(TELES, 1976).
46
1.4. Notas preliminares sobre a poesia épica no Brasil
Análogo ao engenho do poeta lusitano em cantar os feitos da gente portuguesa,
e tomando, agora, o Brasil como argumento motivador para a feitura épica, é possível
mencionar a provável existência de um trajeto épico fundacional que perpassa pela
identificação de obras como De gestis Mendi de Saa (1563), de José Anchieta;
Prosopopéia (1601), de Bento Teixeira; O Uraguai (1769), de Basílio da Gama; Vila Rica
(1773), de Cláudio Manoel da Costa; O Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, e I-Juca
Pirama (1848-1851), de Gonçalves Dias; dentre outros.
que se pensar, portanto, na operacionalização desse percurso não apenas
como intermeio para a análise combinatória de épicos brasileiros, mas sim como um
dispositivo de intercessão entre as principais obras que potencializam essa galeria. Ao fim
e ao cabo, a proposição de diferentes estágios dentro de uma possível trajetória épica nos
conduz à observação de obras com reconhecido valor literário, mas também nos exige a
releitura de algumas outras, até então, minimizadas pela crítica. De certo modo, conquanto
pertençam a um âmbito restrito dentro da Literatura Brasileira, essas obras (épicas)
definem a expressão de nossa nacionalidade literária e modulam em termos estéticos,
históricos e estilísticos – a progressão do gênero épico no universo de nossa literatura.
A começar pela dimensão fundacional de Invenção do Mar e pela gama de
referências historiográficas que sua leitura nos sugere, destacamos De gestis Mendi de Saa
(1563) “Os feitos de Mem de Sá” –, de José de Anchieta, (obra a propósito que, em
Portugal, foi anteriormente publicada à primeira edição de Os Lusíadas), como um esboço
preliminar da poesia épica no Brasil. Escrito em latim, o poema de Anchieta refrata a
história sócio-cultural do Brasil-colônia quinhentista, embora se dedique, prioritariamente,
a exaltar a grandeza lusitana e o heroísmo de seus herdeiros (SOUZA, 2007).
Sabendo-se dessa maneira que os poemas escritos no período colonial
reproduziam, em linhas gerais, a estética literária (estrutura métrica, estrófica e rítmica) de
outro poema considerado modelo, sublinhamos as informações que dão conta da
continuidade temática e formal entre a literatura clássica greco-latina e a produção do
jesuíta. Nessa perspectiva, até mesmo os motivos abordados, além da atmosfera lírica, ou
nesse caso épica, ainda que aplicadas ao desenvolvimento de assuntos locais, apresentavam
uma forte influência de tudo aquilo que era lido ou escrito na metrópole.
47
A serviço da Coroa portuguesa, dos ditames da Igreja Católica no governo do
Brasil-colônia e atendendo fielmente aos moldes de uma epopéia renascentista, José de
Anchieta fez de seu poema um amplificador das ações do governador-geral Mem de Sá,
durante o primeiro triênio de seu governo (1558-1572), quando da expulsão dos franceses
da Baía de Guanabara e a fundação da França Antártica por Nicolas Durand de
Villegagnon (idem, 2007).
Algumas cadas depois, vem a público Prosopopéia (1601), de Bento
Teixeira; reconhecidamente a primeira tentativa de se escrever um épico nacional em
língua portuguesa. Tendo assumido o mesmo tom encomiástico dos versos de Anchieta, o
poema narra as aventuras de Jorge d’Albuquerque Coelho, então governador da Capitania
de Pernambuco. E embora possa ser lido como o marco inicial do barroco na literatura
brasileira, grande parte da crítica restringe seu valor artístico ao caráter histórico-cultural
que assume (MOREIRA, 2008). No entanto, em contrário a esta concepção, salientamos a
leitura de Jayro Luna (2002) que alinha a produção de Bento Teixeira à composição
humana e intelectual do Brasil-colônia quinhentista, ao passo que chama-nos a atenção
para a impossibilidade do poeta em transpor os parâmetros estéticos do barroco àquele
período e evadir-se de sua condição de sujeito histórico-social.
A pesar da absoluta imprecisão quanto a certos dados da biografia de Bento
Teixeira, Sérgio Buarque de Holanda (2000) destaca, por sua vez, a importância de se levar
em consideração as condições de produção do poema e a dificuldade em lê-lo,
exclusivamente, como objeto estético, uma vez que seu nascedouro se explica pelo
engenho do poeta em fugir do tribunal da Santa Inquisição
22
. Tal argumento ratifica a
conjectura de que as fontes produtoras da poesia colonial não encontram limite na simples
representação de imagens ou temas propriamente ditos. A figuração da realidade apresenta-
se, pois, como um rudimento elementar para a materialização do poema, além de forjar os
pontos de contato que aproximam o poeta e os seres por ele criados da dimensão temático-
formal que é instituída, segundo discute Antonio Candido:
[...] a criação literária corresponde a certas necessidades de
representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis
socialmente condicionada. Mas isso se torna possível graças a uma
redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que ingresso ao
22
Ainda que não se possa afirmar com inteira convicção, é consenso por parte da historiografia literária que
Bento Teixeira tenha sido autuado pela Santa Inquisição em razão de sua ascendência judia e da autoria do
assassinato de sua esposa. Informações subsidiadas pelas discussões de José Veríssimo em História da
literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), 1998.
48
mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na
medida em que suscita uma visão de mundo
(CANDIDO, 1976, p. 55,
grifo nosso).
Diferentemente dos dois últimos poemas mencionados, O Uraguai (1769), de
Basílio da Gama, sinais de um provável estilhaçamento do gênero épico no que tange à
cristalização de sua estrutura formal. Composto por apenas cinco cantos (em lugar dos dez
familiares cantos d’Os Lusíadas) e marcado pela utilização de versos brancos e pela
renúncia ao esquema clássico de distribuição das estrofes, o poema conta, de modo
romanceado, a expedição mista de portugueses e espanhóis contra as missões jesuíticas do
Rio Grande, em meados do século XVIII (TEIXEIRA, 2008). Atendendo, entretanto, à
função totalizadora da epopéia virgiliana, O Uraguai destaca a participação do Cel. José
Inácio de Almeida durante a batalha entre jesuítas, índios e europeus (espanhóis e
portugueses), nos Sete Povos das Missões, e promove-o à figura de herói, na perspectiva
do enredo desenvolvido. Nessa medida, mesmo diante da vitória do General Gomes Freire
de Andrade, o coronel representa, a contento, o papel do conquistador humanitário que luta
até o último instante contra a subjugação dos índios em relação à força do colonizador
europeu (idem, 2008).
Agenciada pela ação empreendedora de Portugal, na nova colônia, a narrativa
de Basílio da Gama depõe a favor de uma representação dicotômica da justiça humana, que
neste caso, configura-se pelo enquadramento das tensões da gica imperial no Ocidente.
Filiado, portanto, à política colonizadora da metrópole cuja expressão maior é o
despotismo do Marquês de Pombal, O Uraguai visto, agora, como a epopéia da
conquista – se distingue das produções épicas anteriores em função da dialética historicista
que apresenta e da suposta originalidade temático-estilística que lhe é atribuída.
Com O Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, teremos enfim um dado crucial
para o delineamento épico-formal dos versos de Mello Mourão: a tomada de Portugal e
seus remanescentes, no Brasil, como peças determinantes para a germinação da nova
pátria. Embora a obra de Durão oscile, vacilantemente, entre realidade e ilusão, seu
desenvolvimento acena para o amadurecimento de uma poética da erudição, erguida a
partir do reconhecimento intenso dos vestígios estéticos, míticos e históricos que
caracterizavam, àquela época, a gente que começara a nascer. A opção pela exagerada
complexidade no tratamento das referências literárias recorridas e a súbita excitação diante
da possibilidade de retratar a formação do povo brasílico”, sem falar no entusiasmo
49
natural face ao progresso político de Portugal, comprometeram a maturidade artística que
certamente converteria seu poema em aparato de reflexão sobre as unidades humanas e
ideológicas da jovem nação.
Situado, cronologicamente, numa posição anterior a O Caramuru, Vila Rica
(1773), de Cláudio Manoel da Costa, também é organizado à maneira d’Os Lusíadas.
Contudo, o poema desvia-se do modelo clássico camoniano ao propor um cruzamento
dissonante entre os focos narrativos que o constituem. A empreitada épica defendida pelo
poeta é erigida a partir da penetração das bandeiras pelo interior do Brasil tema, aliás,
que será retomado, entusiasticamente, por Mello Mourão, em Invenção do Mar –, e da
fundação da cidade de Vila Rica. Daí emerge a conotação heróica que norteia a escrita da
obra. Seqüencialmente nessa mesma ordem, os dramas de Garcia Albuquerque, o
movimento das missões pacificadoras e a luta dos revoltados integram-se entre si, de modo
a transformar o enredo da narrativa em um labirinto quase impenetrável (MUZZI, 2008).
A construção literária de Vila Rica desorienta, por completo, a argúcia de uma
leitura despretensiosa ou daquela mais atenta. É bem verdade que, em dadas
circunstâncias, tal função (desorientar) pode atribuir à determinada obra uma imagem,
indiscutivelmente, inovadora. Porém, neste caso, a interrupção violenta dos episódios e a
recuperação inadvertida de ações já transpostas, apenas, concorrem para a definição de um
texto simultaneamente caótico e incerto (idem, 2008). A conjugação entre a fisiologia da
selva brasileira e a mitologia greco-romana, como uma tentativa de sublevar a cultura
colonial aos mesmos padrões da esfera clássica, comprometem, ainda mais, o projeto
fundador de Cláudio Manoel da Costa que em lugar de predizer a edificação de uma nova
terra, mantêm-se preso às convenções do lirismo árcade:
Não parece difícil explicar por que, entre todos os gêneros poéticos, a
épica oferecesse desde cedo um campo relativamente livre para a
descrição ou exaltação da natureza brasileira. Perseguindo um ideal
coletivo, ela não tende a empenhar – ou não empenha em grau tão
acentuado quanto o lirismo as preferências pessoais dos autores,
preferências essas que são ditadas na maioria dos casos, pelos padrões
clássicos. Um Cláudio Manoel da Costa, preso às convenções
tradicionais do lirismo arcádico, poderá desdenhar em favor do Tejo, do
Lima e do Mondego a sua rude paisagem natal. Na poesia heróica,
entretanto, onde, por definição, o genérico prevalece sobre o particular e
de onde o autor deve estar individualmente ausente, mal teriam guardiã
semelhantes escrúpulos (HOLANDA, 2000, p. 80, grifo nosso).
50
E para rematar a paisagística da produção épica, no Brasil, durante o período
colonial do século XIX, e possivelmente, assinalar outra vertente de semiotização do
discurso épico, que nos referimos a um momento em que a inspiração de conotação
romântica compunha o centro da realização literária, destacamos I-Juca Pirama (1848-
1851), de Antônio Gonçalves Dias. Atendendo a aspiração ideológica de se deslocar o
elemento indígena para uma posição de destaque, no que diz respeito à idealização
figurada da nação, o poema relata a história de um guerreiro tupi aprisionado pela tribo
antropófaga dos Timbiras. Mesmo apresentando um formato essencialmente épico e
encenando um enredo dramático de aferição clássica, a obra nos traz a matéria lírica como
instância de associação entre as emoções e a subjetividade do poeta com relação ao mundo
que lhe é exterior. I-Juca Pirama aquele que está pronto para morrer revela-nos um
lirismo de pronta absorção, fruto do exercício de prospecção sentimentalista e imaginação
criadora do poeta (FRANCHETTI, 2008).
O poema nos apresenta uma concepção mais adjacente das manifestações e
costumes indígenas, idealizada e afeiçoada ao gozo do pensamento romântico. Integrada à
ambientação silvícola, a honradez do índio traduz o espírito de honra ocidental,
tipicamente desenvolvido pelas novelas medievais de cavalaria, a exemplo do Rei Arthur e
a Távola Redonda. Entretanto, semelhante ao que aconteceu na Europa, durante a Idade
Média, os operários da nova nação não lograram êxito na busca circunscrita pelas origens
de nossa nacionalidade (PEREIRA, 2000). O que, de alguma maneira, contribuiu para que
o índio (configurado pelo mito do bom selvagem) fosse tomado como elemento-condutor
de uma reconquista heróica do passado perdido e emblema daquele Brasil que começara a
erguer-se.
Plasticamente redescoberto, o índio passa a sintetizar a reinvenção de uma
raça, até então, silenciada pelo ímpeto expansionista da tradição portuguesa. Aliado a isso,
soma-se ainda o mapeamento fantasiado da etnografia brasileira e o idealismo enfático que
determinam a concepção heróica de I-Juca Pirama. Justaposto aos romances
cavalheirescos da Idade Média e à tragédia clássica, o poema de Gonçalves Dias rediscute
a experiência do contato entre a civilização indígena brasileira e o homem branco
colonizador, à medida que embaralha as partículas que compõem a Literatura Brasileira.
As pistas e as argumentações semeadas pela construção de um percurso épico
brasileiro que, na perspectiva de nossa análise, culmina com a aparição de I-Juca Pirama
o que evidentemente não exclui a imersão posterior de outras obras, que por ventura,
51
respondam ao translado de nossas discussões –, nos guiam ao encontro de Invenção do
Mar e de toda a reminiscência historiográfica e literária que esta obra nos sugere. O que
nos faz ver de perto que a Literatura Brasileira fez da epopéia uma manifestação
concludente de sua composição, admitindo, assim, nas principais etapas de seu processo
evolutivo a expressão nacional do contexto sócio-histórico e o caráter transformacional do
momento literário.
Nesses termos excluindo-se a problemática da filiação literária –, a utilização
e o redimensionamento do conceito de brasilidade
23
aparecem-nos, pois, como ferramentas
indispensáveis para o entendimento e a depuração da cena épica brasileira e de suas
respectivas modulações de tempo e espaço. É importante notar, outrossim, que a
observação e análise desta galeria de onde emerge Invenção do mar evoca a urgência de se
investigar o desenvolvimento de uma consciência literária de nossa nacionalidade
conforme nos explica Antonio Candido (1964) em Formação da literatura brasileira – que
mediada pelos conflitos históricos e identitários de nossa sociedade, determina o
engendramento da brasilidade não simplesmente como um conceito ou idéia abstrata, mas,
sobretudo, enquanto prática discursiva e atitudinal (ASSIS, 1992).
23
O termo brasilidade ganha destaque em nossas discussões como campo teórico e discursivo diretamente
atrelado à construção de um pensamento nacional, que passa pela estabilização de um sistema cultural,
minimamente autônomo e importante para a edificação de um projeto de nação conscientemente engendrado
pelos diferentes sujeitos envolvidos, segundo se lê em O que é uma nação? (1882), de Ernest Renan.
52
CAPÍTULO II
ENTÃO, FEZ-SE O BRASIL
Para estes cantos também hereditários
de viola em viola repetidos
para meus filhos e meus netos,
e os outros meninos do bairro,
para as rodas de rapazes e raparigas nos terreiros
para os soldados em seus pátios de guerra
e os marinheiros no balanço de seus navios
e os bêbados na algazarra de suas bebedeiras [...]
(IM, 1997, p. 167)
53
2.1. Ai, flores, ai flores do verde pinho
Em Pedro e Paula
24
, Helder Macedo nos propõe uma sinuosa revisão da
historiografia portuguesa. Sob tal perspectiva, o casal de gêmeos protagonistas da narrativa
não representaria, esquematicamente, as duas faces antagônicas de uma mesma moeda,
conforme uma rápida analogia com os irmãos de Esaú e Jacó, romance de Machado de
Assis, poderia nos sugerir; e sim, um emblema das contradições e das mudanças que
perfilaram o Ocidente, durante a segunda metade do século XX. A viagem pelo romance
de Helder Macedo e o corte temporal no conjunto de referências que sistematizam nossas
discussões nos fazem acompanhar de perto o movimento das peças que emolduram
algumas definições no âmbito da literatura em língua portuguesa, e confrontar as bases que
sustentam o advento da produção literária no Brasil, desde o seu nascedouro (literatura de
viagem) até os dias de hoje, com todo o influxo referencial da metrópole portuguesa.
Partindo de tais considerações, a lembrança de Pedro e Paula se explica pela real
necessidade de compreender a correspondência pontual entre o projeto literário de Mello
Mourão e o contributo da literatura portuguesa, revelado explicitamente pela leitura dos
primeiros versos de Invenção do mar.
E se Pedro e Paula representa, pois, um conjunto de referências históricas,
literárias e, porque não, ideológicas de Portugal, levando-se em conta seu apogeu durante a
renascença
25
, mas também seu declínio que começa ainda no século XVI com a perda de
sua autonomia para a Espanha, englobando outros episódios como a vinda da família real
para o Brasil motivada pela invasão do exército de Napoleão Bonaparte, a independência
de suas colônias no continente africano, dentre outras questões desta mesma ordem,
parece-nos, portanto, que de algum modo Invenção do mar se apropria dos diálogos e
diásporas que justapõem o Brasil a Portugal e funda uma terceira margem, para lembrar
24
Atendendo ao que nos propõe as literaturas nascidas sob a égide das profecias libertárias, mas que, hoje,
vivem um momento de desencanto e de morte de utopias, Pedro e Paula (1999), segundo romance do
escritor português Helder Macedo, aponta, simultaneamente, para a problematização do estilhaçamento
identitário pós-colonial e para as transformações e contradições que moldaram a ex-metrópole, Portugal, em
tempos finisseculares.
25
Renascimento, Renascença ou Renascentismo são os termos usados para identificar o período da história
da Europa situado aproximadamente entre fins do século XIII e meados do século XVII, sem que exista um
consenso sobre essa cronologia, havendo, pois, variações consideráveis nestas delimitações. Seja como for, o
período foi marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, que assinalaram o final da Idade
Média e o início da Idade Moderna. (GARIN, Eugenio. Idade média e renascimento. Lisboa: Estampa,
1989).
54
Guimarães Rosa, assinalada pela intersecção de culturas, histórias, letras e cantares. Diante
disso, o que a princípio poderia se mostrar como um poema de ambições exclusivamente
laudatórias no que diz respeito ao fazimento da terra brasilis e aos feitos de seus heróis e
mártires, se nos revela, de certa forma, como uma estratégia de retomada dos anseios
expansionistas da metrópole e a atualização de seu projeto colonizador. Assim,
declaradamente morto no século XVIII, quando o advento da modernidade e a ação
empreendedora da burguesia vaticinaram o desaparecimento da voz épica, o gênero sério a
que se refere Aristóteles na Poética ressuscita no século XX a serviço da idealização
estética da fundação do Brasil e da comemoração dos quinhentos anos de seu achamento
ou descoberta:
Desde a segunda metade do século XVIII, a universalização do princípio
da livre-concorrência burguesa que impôs a mais valia objetiva a todos e
contra todos foi moral também para ela, pois o heroísmo é imperdoável e
inverossímil quando o dinheiro é o equivalente universal de todos os
valores. Desde então, apesar de algumas tentativas românticas de revivê-
las nos séculos XIX e XX, é um gênero morto.
[...]
Em seu tempo, a epopéia constituía a mundaneidade de seu mundo como
arte que punha em cena as figuras relevantes da experiência do passado e
da expectativa de futuro. Para encená-las, o poeta imitava opiniões
consideradas verdadeiras nos campos semânticos das atividades
discursivas e não discursivas do todo social objetivo definido como
“corpo místico” de estamentos subordinados ao rei num pacto de
sujeição. Nos séculos XVI, XVII e XVIII, os usos dos procedimentos
técnicos da invenção poética eram parte dos regimes discursivos
subordinados ao “bem comum” público desse todo (HANSEN, 2008, p.
17-19)
Em vista disso, para além da simples enunciação metafórica de atos
contingentes da escritura épica, Invenção do mar se afirma como canal de evocação de
enunciados pseudo-referenciais que não se ocupam simplesmente de representar o estado
material das coisas empíricas ou das coisas de fato, mas sim de encadear o ordenamento
figurado dessas coisas mesmas mediante a comunicação fictícia de ações pretéritas que
constituem um outro tempo, o tempo da própria narrativa, como nos dissera Humberto Eco
em Seis passeios pelo bosque da ficção (1997). E fingidor, que finge ao fingir a própria
dor, Mello Mourão fabrica um campo de ficções outras fundado, sobretudo, no jogo de
possibilidades, daquilo que poderia ter sido, e não necessariamente do que foi em verdade.
Aliás, às lentes do poeta épico importa muito mais a dilatação do evento em si do que a
55
auscultação minuciosa de seus aspectos concretos e objetivos. É por sua ação imperiosa na
supressão ou evidência de determinados episódios da historia factual que este sujeito,
eleito pelas musas, converte a realidade empírica em uma estética regulada pela
significação verossímil da forma.
Convém mencionar, entretanto, que diferentemente dos critérios expressivos e
descritivos vigentes nos dias de hoje, e em contrário à genialidade inventiva ensejada pela
crítica e história literária do pensamento romântico que redimensionou o campo das artes
como expressão de uma consciência infeliz e etérea, a leitura da poesia épica pressupôs até
a segunda metade do século XVIII a tomada de códigos retóricos, imitativos e prescritivos
(TEIXEIRA, 2008). Por assim dizer, o empreendimento do eterno retorno, assumidamente
articulado pela poética de Mello Mourão traduz, de alguma maneira, sua necessidade de
voltar ao passado e rastrear as origens de sua própria existência.
A busca e a atualização dos eventos representativos da história e a
idiossincrasia do poeta épico significam, nessa medida, o desvelamento das condicionantes
históricas, sociais, políticas e culturais que determinam significativamente os contornos da
coletividade. Assim, o arbítrio através do qual o poeta assume a empresa de embaralhar a
história e desmontar a geografia que abrevia ou estende as distâncias, segundo os interesses
de seu projeto literário, constitui também um marco decisivo para a construção mítica de
heróis e homens bravios, indispensáveis ao texto épico. O desafio neste caso, talvez, seja
compreender as circunstâncias e elementos que dão vida ao “herói” e operacionalizam suas
respectivas ações em um plano assinalado pelo caos e outras contradições da modernidade.
A começar por sua estrutura temático-formal e a rede de signos e referências
históricas e literárias que seus versos sugerem, Invenção do mar se destaca em virtude de
possibilitar a junção de dois mundos, a princípio, distintos o clássico e o contemporâneo
e estabelecer uma via de leitura e reflexão que requeira, antes de tudo, a identificação
classificatória das fontes e influências que margeiam sua composição. no primeiro de
seus sete cantos (como ato de rasura à estética épica tradicional que à luz da Odisséia,
Ilíada e Eneida institui a distribuição equitativa de dez cantos) o poema instaura a
composição de imagens e lendas que se deslocam inadvertidamente por seu corpo,
causando no leitor efeitos notórios de atração e repulsa. A partir dessas ondas, que sob o
patrocínio de ventos alheios aproximam Brasil e Portugal, o poeta emite seu canto, não
como Castro Alves que por razões outras pede a Colombo que feche a porta de seus mares,
56
mas sim como Fernando Pessoa que vislumbra um mar que reúna céu e abismo, lamento e
canção:
Ai flores do verde pinho
ai pinhos de verde rama
corado das flores do verde pinho
eu não quero este mar – eu quero o outro:
quero o mar das parábolas e elipses
dos cones helicôneos dos abismos
o mar sem fim – o mar
com seus heliotrópios suas ninfas
seus cavalos marinhos, seus tritões
e seus lobos-do-mar:
[...]
Ai flores
do verde pinho
ai ramos da Leiria
ai flor dos linhos do Alentejo.
E a flor das velas nesse baile
bailando ao vento cada vez mais longe
cada vez mais perto – Diônisos –
dos sonhos que sonhavam
os olhos de Isabel –
e um dia os pinhos serão galgos
e esses galgos do mar irão galgar
das pupilas do Infante
a latitude e a longitude das lonjuras
ao sal da lágrima – ao sal das águas.
E no chão das águas
ai flores do verde pinho
ai linhos do branco linho:
caminhos dançam sobre o chão do abismo
sobre o chão dançador da esmeralda revolta
a dança da saudade marinheira
[...]
No mesmo pinho, Luís Vaz,
cantavam cantos do mar
das partidas não chegadas
dos amores desterrados
pelas várzeas do Alentejo
de Teresas e Marias.
E as moças de seios redondos
de Trás-os-Montes, das Beiras de Portugal
gemiam canções de amor:
57
ai flores do verde pinho
ai pinhos da verde flor:
na flor, na frôl e na fulô e seus aromas:
saudades dos marinheiros.
(IM, 1997, p. 24-26)
A evocação introdutória à literatura medieval portuguesa, representada na
perspectiva do poema pelos versos de D. Dinis, além de inaugurar a comunicabilidade
entre Europa e América, Portugal e Brasil, revela-nos de pronto a necessidade do poeta em
rastrear as origens não apenas de seu país, enquanto objeto teórico e formal, mas também
de todo o campo referencial, literário e humano que regula a formação da literatura
brasileira:
Flores do verde pino
D. Dinis
-- Ay, flores, ay, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo.
Ay, Deus, e hu é?
Ay, flores, ay, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado
Ay, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo.
Ay, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que m’ a jurado.
Ay, Deus, e u é?
--- Vos me preguntades polo voss’ amigo,
e eu ben vos digo que he san’ e vivo.
Ay, Deus, e u é?
[...]
(SEIXAS, 2000, p. 82-83)
Empreendido no mesmo período em que Portugal começou a despontar
como nação independente no século XII, o Trovadorismo, primeira manifestação literária
do galaico-português, aparece em sintonia cronológica com o aparelhamento dos primeiros
58
traços que definiram a identidade dessa nação. Não obstante, seria um equívoco conferir a
essa poesia um caráter nacional. Deve-se considerar, antes de qualquer coisa, que as
fronteiras políticas e culturais da Península Ibérica, dos fins do século XII até meados do
XIV, quando esse movimento poético se dissemina, eram extremamente oscilantes. Os
reinos de Leão, Castela, Aragão e Catalunha, Navarra e Portugal estabeleciam intensas
relações entre si, por meio de laços matrimoniais; os nobres circulavam de uma corte para
outra, ora em viagens diplomáticas ou campanhas guerreiras, ora por necessidade de asilo
político; os poetas profissionais viajavam também, oferecendo sua parte para
entretenimento das diversas cortes principais (MONGELLI, 1992).
E se as moças de seios redondos / de Trás-os-Montes, das Beiras de Portugal
/ gemiam canções de amor conforme assinala o poeta de Invenção do mar, levando-se em
conta a lógica organizacional do poema, o faziam não somente para ilustrar a concepção
tensa, porém rica e matizada do sentimento amoroso cantado pelo lirismo trovadoresco
(um amor que não quer possuir, e sim gozar desse estado de não-possessão)
26
, mas também
para instituir um canto que ecoa não sob o estímulo das ninfas e musas homéricas, e sim ao
som das cantigas de amor e cantigas de amigo que inspiraram as violas e as caravelas
fundadoras o Brasil:
D. Dinis compôs algumas das mais admiradas peças do trovadorismo
ibérico. Foi também conhecido como o Rei Agricultor, ou como o
“semeador de naus”, conforme o chamou Fernando Pessoa, por ter
plantado os pinheiros com as quais foram construídas as embarcações
portuguesas que, três séculos depois, conquistariam o mundo. Esta
cantiga de amigo é talvez a mais conhecida de todas as cantigas
medievais, que realiza de modo pleno alguns dos costumeiros
movimentos presentes no gênero. Nesta e em outras cantigas de amigo, o
diálogo da apaixonada com os elementos da natureza e a resposta, quando
vem, pode representar ainda um diálogo interior da pessoa consigo
mesma; onde nos perguntamos as coisas duvidosas e, no desejo de
realizar o esperado, nos respondemos (SEIXAS, 2000, p. 100).
A flor evocada por Mello Mourão revela, portanto, a explícita bifurcação do
gênero épico, que aos moldes das principais discussões sobre fragmentação e
contemporaneidade, aponta invariavelmente para a fusão de conceitos, diálogos e estéticas
(HALL, 2005). Fruto dos sonhos empreendedores d’El-Rei D. Dinis e matéria-prima tanto
para a construção das caravelas que, a partir do século XV, singrariam mar adentro em
26
Reflexão estabelecida a partir das discussões feitas por Georges Duby em Idade média, idade dos homens:
do amor e outros ensaios. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1990.
59
busca de um novo mundo quanto para as violas dos trovadores galaico-portugueses, “a flor
do verde pinhoassimila em seu interior a dupla representação dos gêneros épico e lírico.
O desdobramento desse signo na flor, na frôl e na fulô e seus aromasademais de
ensejar uma leitura polissêmica de sua estrutura significativa aponta de algum modo para
as instâncias sincrônicas e diacrônicas que convertem tal código em espelho representativo
das principais transformações lingüísticas e extralingüísticas que determinaram a
afirmação do idioma português, e sua disseminação a partir da perspectiva literária.
Neste caso, não apenas a interlocução com Luís Vaz de Camões, bem como a
referência ao sal das águas e das lágrimas como metáfora de um cantar que se coloca na
condição de lamento e canção, conforme nos aponta o próprio Fernando Pessoa, além do
uso constante da primeira pessoa do singular, com o intento de delimitar a moldura da
persona-lírica que conduz a composição estética do poema, funcionam enquanto aparelhos
moduladores das estratégias e condições de materialização dos anseios literários do poeta.
A adesão ao trovadorismo galaico-português como influxo referencial para
feitura de um poema que objetiva representar o Brasil em sua multiplicidade de aspectos
fundacionais significa, pois, a dupla intencionalidade de voltar ao passado no intuito de
compreendê-lo e dominá-lo em sua inteireza, mas também de retirar daí os subsídios que
permitem ao poeta e aos leitores desenhar outras histórias, outros cantares mimetizados no
poema pelo pinho de novo verde. Assim, a menção à figura da rainha Isabel, muito além de
informar simplesmente sobre sua importância na firmação de acordos e alianças entre casas
de reinado da Península Ibérica, se justifica, sobretudo, pela posição de destaque
representada por sua doce figura no que diz respeito ao florescimento do idílio lírico-
amoroso proposto pelo poeta:
Boa noite, Isabel,
vagam verdes as duas luas dos teus olhos
nesse verde luar ao lírio do teu rosto
e aos botões de rosa das rosas
de teus seios
sobre os bosques e os mares de Diônisos.
E as redondilhas de seus versos cresçam
e o criador de verdes e de versos
nos cerque de jograis e de segréis.
Pelas várzeas a flor do trigo a flor
do linho a flor do decassílabo
de teu corpo ondulado entre os pinhais.
60
[...]
Boa noite, Isabel – e tu, Diônisos,
concede-me a beleza, a voz, a fala
dessa Isabel, rainha e musa e santa
e a voz também das musas do arrabalde
todas as Isabéis de Portugal.
E vamos, mãos dadas, com rosas e vinhos
nas ruas do alto, nas ruas da baixa
às margens do Tejo, à noite, ao luar,
na rosa do dia, os lenços no ar
chamar os marujos, cada um por seu nome
cantando galope na beira do mar.
(IM, 1997, p. 27-28)
A referência à Isabel, nomeadamente evocada pelo poeta como rainha e
santa”, aponta declaradamente para a construção estetizada de uma musa que inspira a
elaboração do poema e representa a reunião de esforços para a feitura de um cantar
reconhecidamente luso-brasileiro. A exemplo do que acontece nos cantares provençais, o
poeta corteja de forma lírica e erotizada a rainha Isabel uma mulher casada em
atendimento as preceitos desse gênero e solicita ao rei D. Dinis (Diônisos) que conceda
de empréstimo a imagem de sua esposa como musa inspiradora dos versos de Invenção do
mar: vagam verdes as duas luas dos teus olhos / nesse verde luar ao lírio do teu rosto / e
aos botões de rosa das rosas / de teus seios”, “e tu, Diônisos, / concede-me a beleza, a voz,
a fala / dessa Isabel, rainha e musa e santa”.
E se inserida estreitamente na vida das cortes ibéricas, a cantiga de amor, às
vezes, perde os traços formais tomados da tradição trovadoresca provençal para adquirir
uma fisionomia local; aqui, a soma de suas características fundamentais a outras tantas
formas de configuração literária resulta na oscilação quase que absoluta de seus preceitos
básicos e na conseqüente fruição de um outro cantar instituído pela dissolução do espaço e
tempo presentes (MONGELLI, 1992).
Neste caso, mesmo se tratando de um gênero de composição menos ligado à
tradição criadora local visto que as cantigas de amor ilustram um conjunto de regras e
modelos estabelecidos pelo provençalismo, todos eles sujeitos às adaptações e estratégias
de recriação assumidas pelos trovadores ibéricos –, tais cantigas ocupam uma posição de
destaque no florescimento do inconsciente coletivo que reforça os sentimentos de pertença
e nacionalidade da gente portuguesa, mesmo não constituindo, de fato, um campo profícuo
61
para discussões sobre nação e nacionalidade do ponto de vista lusitano. Assim, importa
mais à construção de Invenção do mar o jogo referencial que tanto do ponto de vista
estético, quanto conceitual é engendrado por estas cantigas à medida que elas instituem
elementos dissonantes do cancioneiro que se produzia àquele tempo. No entanto, é
importante mencionar que Mello Mourão escolhe dialogar com as cantigas de amigo
exatamente por elas representarem a adaptação mais original da tradição provençal à
criação galaico-portuguesa.
É partir desse jogo de semelhanças e diferenças que Mello Mourão desmonta o
mosaico de referências literárias apresentado pelo trovadorismo galaico-português e sugere
o florescimento de uma literatura que acople passado e presente, sem a necessidade
exaustiva e, muitas vezes infértil, de mapear com exatidão os caminhos percorridos por
seus antepassados. O recorte e a reorganização (de inspiração quase que dadaísta)
27
das
peças representativas desse jogo de influências aparecem-nos, pois, como tônica
inconfundível para a configuração das principais marcas de modernidade desse gênero. O
que se lê, portanto, não é uma poética anacrônica por sua empresa assumidamente épica,
mas sim um texto de voltagem altamente contemporânea por toda a discussão sobre autoria
literária, fragmentação de identidades e profusão de categorias literárias que imprime.
A busca pela origem mítica do Brasil revela, portanto, não um ponto de partida
específico (nascedouro) ou um marco de chegada preestabelecido pelos objetivos quase
que arqueológicos do poeta, mas sim o descortinamento de sua própria vontade de fusionar
as histórias de Brasil e Portugal, demarcada pela estratégia narrativa do poema a partir da
ação da marcha de homens bravios que se lançam ao mar sob inspiração de todas as musas,
todas as Isabéis que gemiam canções de amor pelas margens do rio Tejo: E vamos, mãos
dadas, com rosas e vinhos / nas ruas do alto, nas ruas da baixa / às margens do Tejo, à
noite, ao luar, [...] chamar os marujos, cada um por seu nome / cantando galope na beira
do mar.”
27
Vanguarda modernista surgida em Zurique, na primeira década do século XX, o Movimento Dadá ou
Dadaísmo é caracterizado especialmente pela falta de sentido atribuída à linguagem. Dados apresentados por
Hans Richter em Dada: arte e antiarte, 1993.
62
2.2. O mar e outras formas de invenção
O tom de fundação usualmente articulado pelas literaturas de cunho épico
explica-se, em linhas gerais, pela necessidade do poeta em rastrear o tempo mítico das
origens e estabelecer, a partir de então, um marco decisório a todo processo de fabricação
de heróis, tempos, espaços, cenas e ações que convertem o poema, dito épico, em emblema
representativo de uma nação. Não por acaso, a Ilíada e a Odisséia representam para a
Grécia Antiga a máxima expressão de enaltecimento de um povo cuja história mítica e
fundacional foi eternizada pelos versos de Homero, na mesma proporção em que a Eneida
significa para Roma o desvelamento de um passado glorioso erigido mediante os feitos e
desígnios de Enéias. Nessa mesma linhagem, destacam-se naturalmente outros tantos
poemas épicos que sob influência dos grandes clássicos também assumiram o desafio de
escrever a história inaugural de seus respectivos povos. Foi assim com Os Lusíadas para
Portugal, com El Cid Campeador para a Espanha, com El Martín Fierro para a Argentina e
com uma galeria de escrituras épicas que tentaram explicar o nascimento da nação
brasileira, conforme pontuamos no primeiro capítulo dessa dissertação.
Sob o mais completo arbítrio do poeta épico, o enredo narrativo desses poemas
aponta simetricamente para a necessidade de se delimitar as fronteiras em meio às quais a
ação de seus heróis será delineada. A fragmentação do espaço físico, seu redirecionamento
ou invenção funcionam, diante disso, como estratégia fundamental para a execução do
projeto épico, que de um ponto de vista estético e estrutural, fará de tais cenários (reais,
concretos, objetivos ou fantasiosos, ficcionais, teatralizados) peças caras à descrição e ao
desdobramento das lutas e batalhas a serem empreendidas, a exemplo do que acontece com
a Odisséia:
[...] a Odisséia mostra-nos, no primeiro plano, Odisseu atuar em três
lugares distintos: Ogígia, Esquéria e Ítaca. O espaço amplia-se ainda mais
se a ele acrescentarmos os episódios narrados pelo protagonista. A
diversificação espacial estava prevista na introdução. Ouvimos que
Odisseu conheceu muitas cidades e a índole de muitos homens. Alguns
homeristas observam a divergência entre essa afirmação e as fantásticas
viagens de Odisseu em que aparece uma única cidade, a capital do reino
de Alcínoo. [...] Apropriando-se do espaço fantástico, o autor da Odisséia
ganha novos territórios para a literatura. [...] A Odisséia nos libera o rico
mundo dos sonhos, assustadores e reais, embora contrários à experiência
cotidiana. Também por esse caminho a Odisséia nos ensina a observar o
mundo interior. Nascidos e criados num continente em que bebemos o
63
fantástico com o leite materno, podemos sentir melhor a verdade das
narrações de Odisseu do que a culta Europa de que somos periferia
(SCHÜLER, 2007, p. 7-8).
A diversificação espacial ensaiada pela escritura épica revela grosso modo a
multiplicidade de aspectos que constituem a própria complexidade do sujeito humano.
Tanto o subjetivismo enquadrado pelo olhar dilatado do narrador quanto à materialização
objetiva das ações desencadeadas pelo herói operam simultaneamente como instrumentos
de centralização ou laterização do espaço. Sua fruição, sua apreensão e seu movimento são
testados, portanto, em atendimento irrestrito ao desejo do próprio poeta de significar
imaginação e memória em um universo assinalado pela fronteirização de imagens e pela
cristalização de cenários factuais ou imaginários.
Em Invenção do mar, poema sobre o qual se concentra uma série de elementos
verbais que descortinam a realidade operante, o desafio maior talvez seja identificar e
compreender as bases centrais que solidificam o espaço dessa narrativa. Instituído desde
seus primeiros versos a partir das concepções de transitoriedade e movimento, o poema
encena nos quatro cantos iniciais a viagem da esquadra portuguesa, quando do achamento
da Ilha de Vera Cruz no ano de 1500. Demarcados tais espaços Portugal e Brasil em
torno dos quais o eixo gravitacional da escritura se move, ora para um lado ora para o
outro, o poeta entrecruza as histórias, as lendas e as gentes desses dois países e elabora um
canto, que, sob a lembrança mítica do minotauro, alia Europa e América, mar e continente,
lírica e épica. E nesse jogo de contrários, que muito mais aproxima do que repele, a visão
mítica do mar assume importância capital para a composição do poema. Seja como objeto
de partida ou de chegada, o mar representa de certo modo uma parte fragmentada do
espaço sobre o qual se dá o direcionamento da narrativa:
E era uma vez um mar e em seus
pergaminhos de esmeralda
os reis e os pontífices lavraram
a escritura das ilhas, das Antilhas
dos continentes com seus promontórios e seus vales
e as ribeiras de rios e outros mares
nos reinos de talvez
onde donde por onde para onde – Miguel –*
28
não importa chegar – o que importa é partir.
E o vento e as ondas,
28
Essa é uma marcação feita pelo próprio Gerardo Mello Mourão, identificada no glossário de Invenção do
mar como uma alusão ao escritor Miguel Torga.
64
ventos alísios e ondas alísias
alisaram a esmeralda da caligrafia
e era lida nas águas à luz da estrela
à luz das velas que tremiam
nas capelas de ouro dos pontífices
nos tetos dos reis
no chão de pedra onde se erguia
sobre a rosa-dos-ventos rupestre
o Infante com o seu rosto rupestre –
e ali
as espumas e o vento soletravam
o diálogo do Príncipe
com a lonjura do mar e a lonjura do céu.
[...]
Mar Oceano de Diônisos e do Infante
no fim do mar sem fim.
[...]
E os que nascem no mar são portugueses
e o mar é o chão maior de Portugal.
(IM, 1997, p. 30-32)
Aos moldes do que determinam os preceitos básicos da literatura infantil e o
mundo maravilhoso dos contos de fada, o poema instaura uma dimensão de fantasia e
inventividade textualmente representada pela carga semântica e conceitual da chave
introdutória Era uma vez um mar e seus / pergaminhos de esmeralda”. Registra-se não
somente a falta de comprometimento com a instituição de qualquer verdade que se diga
absoluta, mas também a construção e a diluição mítica do mar, como materialização
metafórica do espaço físico eleito pelo poeta. Diferentemente de sua tomada por um viés
material e dicionarizado, o mar inventado no poema assume uma representação semântica
completamente distinta à nossa leitura cotidiana. Móvel, perene, híbrido, outro; o mar
significa para Invenção do mar a possibilidade de que novos mundos possam se abrir e de
que a própria noção de brasilidade se reinvente mediante a participação e a atualização
contínuas dos elementos que a constituem.
Desvendado inicialmente pelos portugueses, ao menos sob um ponto de vista
mercantil e geográfico, quando o advento das grandes navegações e o ímpeto da expansão
ultramarina venceram os monstros e os vales sombrios da Idade Média, o mar representou
para Portugal a abertura de novos mundos e a expansão de suas fronteiras. Por assim dizer,
a conquista de terras na Ásia, África e América traduzia não apenas o caráter funcional e
65
mercadológico desse signo, como também atribuía-lhe a responsabilidade de fortalecer a
unidade nacional do povo português e assegurar, de modo geral, sua configuração
identitária, a partir da consideração objetiva dos feitos empreendidos ou da tomada
minimalista de suas respectivas realizações em um campo demarcado pela referência
mitológica, o subjetivismo das idéias e a literariedade das ações.
Na condição de ex-colônia de Portugal, o Brasil tem sua história fundacional
diretamente relacionada a todo o projeto colonizador português. Assim, se num plano
arquitetônico e organizacional o mar aparece como canal de enaltecimento deste primeiro,
ele despontará de modo análogo para o segundo como elemento distributivo e associativo
das expressões, mitos e lendas de sua fundação. Não à toa Mello Mourão recorre às
ressonâncias significativas deste código e faz de seu corpo o pólo central para a invenção
da gente brasileira, pensada não somente a partir das mais diversas fontes e referências
portuguesas, mas também a partir do influxo da mitologia greco-latina que, de certo modo,
inaugura o mar enquanto espaço de criação:
A véspera do nascimento de Vênus fora um dia violento. O firmamento
tingindo-se subitamente de um vermelho vítreo, enchera de espanto toda
a Criação. Saturno, munido de sua foice, enfrentara o próprio pai, o Céu,
num embate cruel pelo poder do Universo. Com um golpe certeiro, o
jovem deus arrancara fora a genitália do pai, tornando-se o novo soberano
do mundo. Um urro colossal varrera os céus, como o estrondo tremendo
de um infinito trovão, quando o Céu fora atingido. O fecundo órgão do
deus deposto, caindo do alto, mergulhara nas águas profundas, próximo à
ilha de Chipre. Assim, o céu, depois de haver fecundado incessantemente
a Terra – dando origem à estirpe dos deuses olímpicos –, fecundava
agora, ainda que de maneira excêntrica e inesperada, o próprio Mar.
Durante toda a noite o mar revolveu-se violentamente. A espuma do mar,
unida ao sangue do deus caído, subia ao alto em grandes ondas, como se
lançasse ao vento seus leves e espumosos véus. Mas quando a Noite
recolheu finalmente o seu grande manto estrelado, dando lugar à Aurora,
que tingia o firmamento com seus dedos cor-de-rosa, percebeu-se que
as águas daquele mar pareciam agora outras, completamente diferentes. O
borbulhar imenso das ondas anunciava que algo estava prestes a surgir.
[...]
De repente, do espelho sereno das águas nunca, até então, o mar tivera
aquela lisura perfeita de um grande lago adormecido – começou a elevar-
se o corpo de alguém. Sim, era uma bela cabeça a mais bela cabeça
feminina que a natureza pudera criar desde que o mundo abandonara a
noite trevosa do Caos. O restante do corpo foi surgindo aos poucos: os
ombros lisos e simétricos, os seios perfeitos e idênticos tão iguais que
nem o mais consumado artista saberia dizer qual era o modelo e qual a
sua réplica perfeita.
66
[...]
É Vênus, sim, a mais bela das deusas! disse o coro unânime das
vozes.
(FRANCHINI, 2007, p. 25-26)
A figura de Vênus e a evocação do mar enquanto espaço germinativo para seu
aparecimento, ademais de anunciarem muito claramente a correspondência estabelecida
entre os versos de Mello Mourão católico por formação e convicção como bem revelam
suas obras O bêbado de Deus (2002) e O nome de Deus (obra póstuma, 2007) e o
contributo da mitologia greco-latina, obrigam-nos a registrar o engenho de Camões, que,
assim como o poeta brasileiro, conseguiu aliar mitologia e cristandade, quando n’Os
Lusíadas, em resposta às expectativas do Censor do Santo Ofício,
29
dedica o poema a D.
Sebastião, que muito jovem, à época, era visto como a esperança da pátria portuguesa no
projeto de difusão da fé e do império:
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.
(CAMÕES, 1998, I, 12)
Discutir o processo de invenção do Brasil mediante a carga de subjetividade
que o texto literário demanda implica compreender, de alguma forma, as premissas
ensejadas pela ciência, em correspondência opositiva ou conformativa acerca desse mesmo
evento fundacional. Para tanto, basta lembrar que dentre as muitas teorias que objetivam
explicar o aparecimento da vida no planeta Terra, destaca-se aquela que coincidentemente
aponta as águas oceânicas como espaço fecundo para a formação dos primeiros micro-
organismos que deram origem no futuro (entenda-se por futuro o transcurso cronológico
das eras geológicas instituídas pela ciência evolutiva) aos seres humanos (MARTINS,
29
A Censura do Santo Ofício desempenhou para a Europa cristã do século XVI o papel de canal de regulação
contra as publicações de ordem literária ou não que representassem direta ou indiretamente uma ameaça
contra os principais desígnios da Igreja Católica. Como de costume, à época, a publicação d’ Os Lusíadas em
1572 foi condicionada à apreciação cerceadora desse aparelho de repressão, que curiosamente permitiu a
publicação da obra, embora, como bem se sabe, ela atualize regularmente a tradição pagã da mitologia greco-
latina.
67
2001). A correspondência entre os discursos da ciência e da mitologia sobre o fenômeno
criativo da vida (humana) revela não apenas a proximidade entre dois campos, a princípio
diversos, mas também insere uma zona de intersecção que põe em contato direto arte e
ciência:
A palavra de ordem, nas fontes que se instituem como científicas, é a
vigilância epistemológica no que tange à objetividade. Para as
comunidades científicas, quanto mais objetivo for o método de
determinada ciência, mais possibilidades de veracidade esta possui, se
comparada àquela de menos capacidade de absorção objetiva, como, por
exemplo, a sociologia faz a opção pela verossimilhança, pelo fantástico,
pelo sonho, pela imaginação criativa. Pelo culto ao mito da objetividade,
aquelas comunidades rejeitam como ineficaz toda prática cognitiva
considerada legítima: a razão. Isolam, radicalmente, dos seus métodos,
tudo o que se assemelha ao acaso, ao incerto, ao subjetivo, ao caos,
pretendendo, assim, caracterizar-se pela pretensão em construir um
mundo exato, onde não exista lugar para deduções intuitivas
(SANTANA, 2009, p. 100).
E se uma aparece como o contraponto da outra, o inferno elucidativo erigido
pela outra face da moeda, a segunda cabeça de um mesmo monstro, é porque de alguma
forma estas duas dimensões se encontram. Neste caso, importa menos identificar os limites
que justapõem ou elidem ciência e literatura do que submeter a percepção humana à
universalização e ao entendimento complexo e conflituoso de sua própria existência:
[...] a verdade necessária ou universal e a verdade contingente ou singular
não são duas diferentes espécies de cognição, mas sim elementos
inseparáveis em toda cognição autêntica. Uma verdade universal só é
verdadeira quando concretizada num exemplo particular: o universal (...)
tem que incorporar-se no singular (CROCE, 1972, p. 244).
Em face disso, a plurissignificação inventiva atribuída ao signo em debate
(mar) retribui em peso e medida o esforço criativo do poeta de Invenção do mar em refletir
a fundação da terra brasilis a partir da contemporaneização de imagens fantásticas e
mitológicas. Assim, alocadas em um tempo assinalado pela dinâmica corrosiva das
relações interpessoais, o mar traduz o desejo do homem moderno de conformar o mal-estar
da modernidade
30
à ambivalência do próprio ato criativo, conforme se nas definições
seguintes:
30
Definição discutida por Sergio Paulo Rouanet em texto de mesmo nome (Mal-estar na modernidade)
publicado em 1993, tal conceito é tributário da discussão estabelecida por Sigmund Freud e suas reflexões
contidas na obra Mal-estar na civilização. Em linhas gerais, essas discussões nos ajudam a compreender o
68
O mar é mbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e retorna a ele:
lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas
em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as
possibilidades ainda informes às realidades configuradas, uma situação de
ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se
concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da
vida e a imagem da morte (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1998, p.
592. Verbetes).
Seja, portanto, compreendido como fonte de vida, meio de purificação, centro
de regenerescência ou o oposto disso, segundo se pode depreender em algumas passagens
da Bíblia quando o seu aparecimento é símbolo da hostilidade divina –Ezequiel profetiza
contra Tiro e lhe anuncia a subida do abismo e das águas profundas (Ezequiel, 26, 19); o
vidente do Apocalipse canta o mundo novo, no qual o mar não mais existirá (Apocalipse,
21, 1) –, o mar será sempre relacionado ao poder criacionista de Deus, e por isso estará sob
seu jugo desde a ocorrência ou suspensão de habituais tempestades até a abertura do
próprio mar vermelho para a passagem do povo de Israel. (idem, p. 593)
Feita sua leitura mítica e teleológica, o mar ganha destaque por constituir a via
líquida por onde singraram as caravelas que chegaram às mais distantes praias dos
continentes africano, asiático e americano, tornando-se, assim, o mbolo do alargamento
dos domínios portugueses e a representação do fenômeno crucial do “ser português”: o
Império. Desse ponto de vista, pode-se dizer que as águas salgadas cantadas por Invenção
do mar constituem o ponto crucial de onde a nação lusitana olha para si mesma, numa
rápida alusão a Narciso e ao jogo de espelhos que sua figura demanda, obrigando-a a
lançar seu olhar para o outro e construir, a partir de então, uma densa superfície de
representações que ao refletir os povos, os portos e as colônias refrata a imagem da própria
nação portuguesa. Cantar os feitos e a fundação do Brasil é, de certa maneira, também
cantar a fundação de Portugal que tem sua história diretamente atrelada à sobrevida de suas
ex-colônias:
E em todo o Mar Oceano não havia navios latinos
senão as caravelas
de Portugal e do Algarve –
canta a crônica do Príncipe –
“e em toda a parte da cristandade não os há
senão as caravelas de Portugal
caráter de volatilidade que determina o homem contemporâneo desde as principais mudanças nas formas de
produção e compreensão da realidade desde o século XIX.
69
e do Algarve” –
e os navios redondos não passavam da Costa da Mina
e de lá não voltavam – dizia o rei –
e só em suas caravelas podiam os marinheiros cavalgar
as ladeiras bravias da tempestade
no chão de sal das águas bravas.
(IM, 1997, p. 58)
Em uma intrincada rede de representações superpostas, revistas e ampliadas, o
olhar do poeta se aplica à tarefa de testemunhar o movimento das caravelas que inauguram
outro mar para a perspectiva expansionista de Portugal. Desse modo, se as imagens criadas
são constantemente permeadas pelo mar e revelam o poder exclusivamente fundacional das
caravelas, é possível dizer que o embate entre olhares e vozes acerca do projeto
colonizador português acaba por moldar novas visões, prenhes não apenas de uma
problematização circunstancial da realidade, mas também de todo um acordo imagético
que promove a usurpação ou a restituição dos significados atribuídos à rede de signos que
circunscrevem a empreitada marítima de Portugal, confirmando, pois, a tese de que “as
relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem” (BOSI, 1992, p. 11).
Tendo em vista a eloqüência do texto e o papel seminal desempenhado por
Invenção do mar, pode-se afirmar que o poema representa, de um lado, o desejo do poeta
em estabelecer um centro catalisador para a fundação do Brasil, de Portugal e das águas
que promovem esse encontro:
[...]
E agora tu, Diônisos, me ensina,
e tu, Isabel, canta-me o mote
para este cantar – pois vou cantar
o mar, a terra e as mulheres e os homens
a parição e a aparição do mundo.
III
Tu, Senhor, creaste o planeta
e eles inventaram as terras e os mares
o Oceano com suas ilhas, suas palmeiras, seus viventes.
A leste do jardim do Éden começaste o mundo
e o Infante com sua pedra sobre
as águas de Portugal
lançou a pedra fundamental de outro mundo
e marcou suas partes de terra e suas partes de água
os caminhos dos quatro
70
pontos cardeais.
E o mundo antes de Henrique tinha
três quartas partes de terra e uma parte de águas
e o visionário virgem, com seus cicílios,
sua fé, suas rezas, seus astrolábios lançou
de sua arca de pedra nas águas do Algarve
a pomba da esperança de seus olhos
para os horizontes e os achamentos
e achou: –
o mundo, na verdade,
era de três partes de águas e uma só de terras
e havia, Ptolomeu, mais águas, mais oceanos
do que ilhas e continentes
e eles, os cavaleiros das águas,
escolheram a parte maior:
mediram as sesmarias do mar e nelas
fundaram seu lar e seu império
na reinação das ondas
com os gigantes do mar.
[...]
mediram o mundo e deram nome
às coisas e aos lugares e às pessoas do mundo
em terra e mar.
(IM, 1997, p. 60-62)
E, de outro lado, entretanto, o que se destaca é o tom de deglutição que no
ponto máximo de uma concepção antropófaga converte os navegantes portugueses
artífices dos achamentos e fundações – em alimento para o mar, agora, tenebroso e arredio:
[...]
eram 1.500 os heróis do mar – Hoelderlin –
uma para cada ano de nascimento do Cristo Jesus
e eram treze navios
mas já na segunda-feira seguinte
ao se partirem das tuas ilhas de Cabo Verde, Vera,
eram apenas doze:
perdeu-se da frota o capitão Vasco de Ataíde
com sua nau e um centenar de marinheiros
e o mar engoliu
a caravela de pinho de Leiria
e engoliu o capitão Vasco de Ataíde
e só restou seu nome:
dos marinheiros engoliu até os nomes
e somos desde então
a nutrição desse oceano, nostrum maré, nutrido
de nossos músculos, de nossos ossos.
71
E de nosso cálcio
fizeram-se os búzios, os caracóis, os frutos dos coqueiros,
as conchas e as ostras e as cascas de ovos de tartarugas
e as areias da praia e os meros e o casco das
[lagostas vermelhas
[...]
E depois de quarenta e quatro dias de viagem,
singraram o Mar Tenebroso e chegaram
aos verdes mares bravios
e na tarde de vinte e dois de abril
o gajeiro da nau capitânia bradou:
“Terra! Terra!”
(IM, 1997, p. 68-70)
Romper as barreiras das águas e contrapor os desígnios investigativos, que
ainda no século XV instituíam o reino das terras e os abismos marinhos, representou para a
gente lusitana um investimento humano e material que significou, por assim dizer, a
garantia de um futuro próspero e glorioso. Logo, reveladoras pela possibilidade das
descobertas, as viagens também carregavam consigo o perigo eminente do naufrágio, da
morte e o fim do sonho do império português.
Seja como lamento ou canção o mar estabelece fundamental importância para o
jogo de referências que Mello Mourão nos sugere. Inventar, fundar terras, gentes, e criar
tempos e espaços representam para o poeta ultrapassar os limites de sua própria existência
e demarcar outras dimensões onde a imaginação e a realidade, a história e a literatura
formem pares conceituais capazes de conduzir essa escritura. Rastrear, portanto, os
indícios que dão conta da fundação telúrica do povo brasileiro simboliza, em certa medida,
olhar para a própria historiografia literária de Portugal que as histórias, as lendas e os
mitos desses dois países se confundem.
72
2.3. Dos heróis, seus sonhos e suas ações: uma breve configuração teórica do herói
Ao relatar os feitos de um determinado povo e eternizar suas glórias, seus
nomes e suas histórias, a escritura épica imprime uma galeria de perfis humanos e
psicológicos, fundamentais à composição de qualquer texto que objetive representar a
identidade nacional de um país. O inconsciente coletivo e a unificação de interesses
políticos e expansionistas, sintetizados pela ação empreendedora do herói épico,
constituem para a historiografia literária um campo de ressonância significativa também
para o gênero lírico e dramático, quando a figura do herói, seja pela sua clássica
articulação ou mediante sua decomposição satirizada, desempenha semelhante papel no
desenvolvimento de estruturas estéticas e temáticas. Deve-se mencionar, portanto, a
própria configuração do herói romântico no âmbito da literatura brasileira do século XIX,
quando o Brasil começara a cunhar os primeiros traços de uma arte voltada para a
iluminação de elementos autóctones, a partir da narrativa de José de Alencar e da poesia
abolicionista de Castro Alves, dentre outros.
É importante notar, outrossim, que a desenvoltura performática do herói será
de modo geral condicionada pela oxigenação, mesmo que enviesada, dos principais
elementos sociais, políticos, históricos e culturais que traduzem sintomaticamente a
história de um determinado grupo social em um espaço e tempo específicos. No entanto, a
expectativa, por exemplo, de que os heróis barrocos, burgueses e românticos dialoguem
entre si não será de um todo frustrada, que todos eles pertencem a um mesmo campo
evanescente de representação humana, e possivelmente existencial. Ainda assim, em
atendimento a algumas especificidades materialmente intransferíveis, cada qual encenará, a
seu modo, o perfil identitário da comunidade que representa. Na condição de metonímia de
um povo, a parte conflituosa e complexa de um todo assimetricamente distendido, o herói
responderá naturalmente aos anseios de toda uma coletividade (PEINADO, 1998).
Desde a tradição clássica, momento em que o sentimento de heroicidade era
personificado pela ação bem aventurada de certo indivíduo eleito pelos deuses, a figura do
herói desempenha fundamental importância na arquitetura das principais relações
interpessoais. Tenha sido, portanto, o resultado direto da concepção mitológica da Grécia
Antiga, a síntese do pensamento expansionista do Império Romano ou o gérmen para a
instituição de algumas religiões que se centram exclusivamente na palavra e na ação de
73
seus líderes, a figura do herói acompanha o transcurso da própria história da humanidade e
se adéqua, conseqüentemente, aos desníveis histórico-culturais da sociedade que representa
(CAMPBELL, 1989).
Dessa forma, mesmo a confusão paradigmática do pensamento contemporâneo,
a morte das utopias após a queda do muro de Berlim e a crise de identidades que fragmenta
e relativiza os conceitos e as verdades dos tempos correntes não invalidam a possibilidade
de que novos heróis, líderes e mártires se somem à galeria de nomes que fizeram girar a
história mundial. Resta saber, todavia, qual espaço será ocupado por estas figuras em um
tempo assinalado pela transitoriedade das relações, o advento tecnológico acentuado e a
rapidez no fluxo de informações, e quais elementos serão movidos para a construção de
seus perfis.
Distante da cosmogonia e da teologia que explicavam respectivamente a
existência humana na tradição greco-latina e no ápice do obscurantismo medieval, o sujeito
contemporâneo segue entrecortado pela mesma necessidade de materializar seus anseios
(políticos, imperialistas, comportamentais, existenciais etc.) pela ação figurativa de um
herói cujo modelo básico é:
O modelo básico desses heróis é Aquiles, o grande herói da Guerra de
Tróia que, podendo escolher entre viver muitos anos, desde que não
tomasse parte na guerra, ou morrer muito jovem, se viesse a tornar-se um
herói da guerra, escolheu tornar-se herói. Quanto ao herói medieval,
entenda-se como tal o cavaleiro andante, aquela figura que aceita grandes
desafios em nome de um amor platônico por uma musa, representado nas
novelas de cavalaria. O mais famoso deles, tido também por modelo
básico desses heróis, é Galaás, o protagonista da novela A Demanda do
Santo Graal (ROSSI, 2000, on line).
A aliança entre mito e realidade, ademais de tonificar os canais de onde emerge
a atividade multiplicadora do herói contemporâneo, reflete, por assim dizer, toda a carga de
ambivalência que determina a própria dialética do existir. Logo, seja pela individualização
de um nome, conforme ocorre na Odisséia, ou pela reunião coletivizada de um herói
múltiplo e nacional como se n’Os Lusíadas, alguns temas universais à literatura e à
articulação do sujeito humano (amor, morte, intriga e ambição) serão atualizados segundo
o interesse da perspectiva social em questão. Há que se frisar, entretanto, que para além da
literatura espaço determinado pela representação figurativa do real, pela acomodação
subversiva dos sentidos –, a realidade cotidiana também comporta a mesma matriz
imaginativa que transforma a materialidade virtual de nossos dias em hospedagem para o
74
empreendimento de um herói contemporâneo e fragmentário em correspondência ao
contexto que o circunda.
A partir de tais discussões poderíamos esboçar uma breve evolução histórica
do herói moderno que tomasse o mito clássico como pano de fundo para seu aparecimento
e disseminação:
Los griegos concibieron a los dioses a su imagen y semejanza, cosa
bastante sorprendente ya que hasta entonces los dioses nunca habían
aparecido como seres reales. Tenían, asimismo, una concepción personal
y familiar de la vida divina; así, se atribuían a los dioses hechos y formas
de vida similares a las de los hombres, aunque sin las limitaciones a que
éstos están sometidos. Esta concepción personal y familiar de la vida
divina se prolongaba hasta la sociedad, de modo que el rey o jefe era
considerado descendiente de un dios, y de ahí nacen los héroes y heroínas
(PEINADO, 1998, p. 74).
Contudo, o entendimento dessa preambulação, mesclada à constatação de que
para os gregos a vida se desenvolvia em um mundo humanizado em que os homens, apesar
da ameaça que podiam representar os deuses, viviam livres de um temor injustificado
(potencializando, assim, as virtudes dos heróis), cumprirá a expectativa dessa pesquisa em
instrumentalizar simplesmente nossas próximas reflexões sobre a contemporaneização da
figura mítica do herói em Invenção do mar a partir da apreciação de três nomes: D.
Sebastião, Pero Lopes de Sousa e Luis Carlos Prestes.
A invenção do Brasil mediante a atualização temática e estrutural da escritura
épica pressupõe, antes de qualquer coisa, uma produção em larga escala de mitos e heróis
que, associados entre si, reproduzem a contento o instinto de nacionalidade que promove a
diagramação estética desse país. No poema de Mello Mourão, muito mais do que a habitual
tentativa de enfileirar nomes e feitos dos sujeitos imortalizados pela história brasileira
institucionalizada, o que se é, talvez, uma poética genuinamente assinalada pelo desejo
de rastrear a origem mesma do poeta. Cantar a história fundacional de um povo é, neste
caso, cantar a história do próprio poeta que, verso após verso, nos revela as camadas
aproximativas entre sua ascendência reconhecidamente lusitana e todo o emaranhado de
fios que envolvem a tradição nordestina. Aí, mais uma vez, Brasil e Portugal se encontram
na perspectiva de plasmar as matizes individuais do poeta, numa inflexão representativa do
gênero lírico, a todo o projeto fundador articulado por Invenção do mar:
[...]
e a terra abria os braços e o regaço
75
e em seu ventre moreno iam nascendo
fortalezas e templos e cidades.
Raça do mar, gerados pelas ondas
com as raças da terra e de outras terras
iam gerando sua nova raça.
[...]
Eu poeta, nos tercetos tersos
anuncio o achamento que não cessa
dos que os mares e as terras navegamos;
e canto e falo e clamo estes clamores
e meço o ritmo em que se escande a sílaba
na mesma língua em que cantou Camões”.
Destas heranças lavro um inventário
e guardo um mar que é meu e a minha terra
e a língua bela em que as estrelas cantam.
(IM, 1997, p. 115-118)
Não nos preocupa saber se a descrição pictórica de fundação do Brasil antecede
à própria consciência literária e idiossincrática do poeta, ou se em oposição a isso, suas
impressões individuais, seu olho inaugural é que ordenam as peças imanentes ao
perfilamento de nossa identidade. A negociação entre esses dois caminhos, sem o peso
teórico-investigativo de eleger qualquer um deles em detrimento do outro, fará de Invenção
do mar um instrumento de diálogos e encontros, sobretudo, pela ação simultânea da
comunicação e do corte. É no lançar dos dados, que ora apontam para o mar e ora apontam
para terra, que o texto inventa seus heróis, suas terras e sua gente:
[...]
terras nossas e águas nossas
navegantes de três raças destinadas a
navegar navegando.
E assim, no ventre
das mulheres de todas as ilhas
de todas as praias foi plantado o sêmen
dos machos de Portugal.
O teu, Homero, era o catálogo das naus:
três mil violas eram poucas para cantar
saudades de Portugal
e tuas naus, Diônisos – e tuas naus, Infante,
não cabem num catálogo.
(IM, 1997, p. 51)
76
Ao contrário do que nos revela o discurso separatista de alguns movimentos
étnicos, políticos, literários e identitários, os versos de Mello Mourão não respondem a
ânsia de fundar uma consciência literária eminentemente autônoma e segregária ou, em
outras palavras, genuinamente brasileira. A bem da verdade, sua escrita reproduz,
assumidamente, o discurso de Gilberto Freyre, que na primeira metade do século XX,
discutia a formação telúrica do Brasil e o agrupamento harmonioso de índios, brancos e
negros; mas, de certo modo, não se rende à armadilha de reverenciar simplesmente o
projeto colonizador português ou de referendar, em contrapartida, qualquer intento de se
instaurar um levante contra sua operacionalidade.
A recepção desarmada do influxo lusitano (humanístico, histórico, atitudinal
etc.) transladado para as Américas desde 1500 não faz de Invenção do mar um mero
aparelho disseminador de uma política neo-colonizadora por parte de nossa ex-metrópole.
A elaboração de um sentimento de brasilidade ou a cristalização do que se pode chamar de
nacionalismo literário prescindem da articulação de uma palavra rigorosamente empenhada
(PEDROSA, 1992). A fundação do Brasil e a invenção de seus mitos, de seus heróis e de
suas gentes representam para o poema não o objeto de bandeiras a serem conclamadas em
nome de uma revolução no universo das letras ou fora dele, mas a cadeia argumentativa de
uma literatura centrada na estetização da linguagem e na fragmentação e representação da
realidade vigente.
Os nomes e os heróis de Invenção do mar são, portanto, o espelho
representativo dessa mesma realidade desordenada que determina o homem
contemporâneo. Sejam eles portugueses ou brasileiros, imortais ou ordinariamente
anônimos, os sujeitos que respondem pela fundação mítica da terra brasilis ocupam uma
zona inter-conceitual cunhada fundamentalmente pelos interstícios da história e da
literatura, da imaginação e da realidade:
[...]
a terra busca o mar
e o mar encontra a terra.
Estão guardados os nomes dos doze grandes capitães
das doze caravelas que chegaram
também o nome daquele Vasco
que o mar comeu com sua nau e seus marujos,
tentaram tragar o mar – e o mar os tragou:
77
polvos, corais, sargaços entre espumas
e as plantas marinhas – as do mar profundo
não esquecem seus nomes
Os mil e quinhentos marinheiros
tem seus nomes
escritos nas estrelas do céu:
cumpriram todas as ordens – as graves e as miúdas
dadas pelo Rei ao Almirante.
(IM, 1997, p. 98-99)
A relação de interdependência entre a figuração dos perfis heróicos que
compõem o texto épico e a alegorização da realidade histórica sugerida pela literatura
promovem, em certa medida, o enfrentamento de zonas multirreferenciais (históricas,
sociais, culturais, lingüísticas, ideológicas etc.) que circunscrevem o nascimento desses
heróis (PINTO, 1992). Nesse caso, os nomes de D. Sebastião, Pero Lopes de Sousa e Luis
Carlos Prestes muito além de empreenderem a contento, cada qual a seu modo, a ação
coletivizada para um ideal de herói, prenunciam o descortinamento de diferentes eixos
espaciais e temporais representados pela respectiva dinamização dessas três figuras. Não à
toa, nossa atenção cedida se explica não simplesmente pela incidência quantitativa desses
nomes no andamento estético-formal de Invenção do mar, mas pelo arsenal de referências
humanas e literárias que eles demandam.
Convém lembrar, entretanto, que na condição de sujeitos representativos de
determinados grupos sociais, os heróis reúnem em suas complexas estruturas interiores as
principais características que, em termos performáticos, traduzem o espírito de uma
coletividade. Diante disso, a menção a esses indivíduos revela, de um lado, a capacidade
do poeta em movê-los feito títeres pelo corpo do poema, corrompendo, assim, a linha
cronológica que os separa ou os enquadra esquematicamente em molduras pré-
estabelecidas pelo olhar investigativo da história e, de outro, reforça a arbitrariedade
que conduz a escritura épica e institui um espaço determinado pela idéia de fragmentação
que tem marcado grande parte das discussões no campo das ciências humanas em nossa
contemporaneidade (HALL, 2005).
Diante de tais considerações, seja de um ponto de vista temático ou formal, o
poema comemora a construção simbólica do Brasil mediante a mobilização de
instrumentos conhecidos do gênero épico e a incorporação de novas sentenças que
fazem desses heróis não a representação iconoclasta de uma realidade imóvel, mas a
tentativa de discutir e relativizar os principais pilares que sustentam nossas
78
superestruturas
31
. Homens, mortais, tensos, mas também bravios, destemidos, afinal de
contas heróis, esses sujeitos transitam entre a materialidade de um mundo objetivo e
concreto e a subjetivação do campo mítico das idéias.
Pertencente a um enquadramento histórico assinalado pelas reiteradas ações de
Portugal no sentido de afirmar-se enquanto potência expansionista e colonizadora do
mundo ocidental, anos antes das grandes descobertas e achamentos, D. Sebastião
representou para a gente lusitana a possibilidade de que a cristã do império se
fortalecesse e se multiplicasse pelos domínios portugueses nas terras da África e Ásia
(MATTOSO, 1993). Seu nome, sua ação e sua história eram, portanto, as marcas
decisórias para a reconstrução política e ideológica de um país que se re-erguia tempos
depois da invasão moura, dos esforços para a reconquista cristã e o advento do movimento
cruzadista. D. Sebastião era para os portugueses a configuração esperançosa de que novos
tempos pudessem se abrir, de que uma nova pátria fosse reinventada. Portugal era, em
outras palavras, o espelho metafórico dos contornos físicos e ambicionistas do jovem rei.
Seu desaparecimento representou, portanto, a morte dos anseios expansionistas da gente
portuguesa:
As circunstâncias do nascimento de D. Sebastião, os problemas da sua
educação e casamento, a sua acção governativa, com o infeliz remate de
Alcácer Quibir tudo isso, acrescentado do sebastianismo, tem
constituído motivo de uma proliferação de obras de índole historiográfica
e literária, verdadeiramente ímpar na História nacional. Em toda essa
abundante produção, contudo, pretendeu-se mais julgar o soberano ou
homens que rodearam do que entender as circunstâncias da sua actuação
[...] os Portugueses eram colocados perante um certo número de opções
de que, no desenvolvimento da sua estratégia, procuravam ser mais
conformes com as nossas reais possibilidades. O Brasil, em tempos do
Governo de D. Sebastião, era mais que uma promessa; a África, e
particularmente a zona setentrional, era já então uma certeza, quanto ao
afluxo do ouro e a produção do trigo os dois pólos de gravitação da
nossa debilitada economia (LOUREIRO, 1989, p. 7-19).
O sinistro de D. Sebastião durante as investidas portuguesas no continente
africano e o declínio de um império centrado nos esforços bélicos do tímido rei
representaram, por um lado, a disseminação do espírito sebastianista que passou a
alimentar a esfera mítico-imagética dos portugueses e, por outro, constituiu-se enquanto
31
Segundo Karl Marx, a superestrutura é um dos níveis da estrutura social, levando-se em conta a
articulação dos aparelhos ideológicos do estado, sendo o seu nível oposto a infraestrutura. (LUWY, Michael.
As aventuras de Karl Marx contra o barão de Mnnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1998).
79
matriz referencial para a construção de um sentimento de nacionalidade vigente também no
campo das letras: a bordo de uma nau e de uma espada correm / a matar mouros e
morrer de mouros / em Alcácer Quibir, Antônio
32
, ao lado de seu rei / Sebastião! /
Sebastião!(IM, 1997, p. 241). Em função disso, a lusofonia que aproxima Portugal de
suas ex-colônias, mesmo depois da eclosão dos movimentos separatistas no Brasil e na
África, revela nitidamente a evocação a D. Sebastião como canal de materialização das
ambições que estreitam as relações entre as mais diversas dimensões das literaturas em
língua portuguesa.
A busca por D. Sebastião, a ânsia em encontrar as marcas de uma conduta
imperialista implodida pelo desaparecimento do rei, mas também agigantada pela
esperança de, talvez, re-encontrá-lo significam para os portugueses a possibilidade de
alterar sua própria história dos anos trezentos, quatrocentos e também dos dias atuais
(ARRUDA, 2001). Assim, a referência ao sebastianismo atualizado por Invenção do mar,
mais uma vez, aproxima Brasil e Portugal e traz para a dinâmica de nossa literatura a tarefa
de rastrear os elementos que constituem nossa fundação e inventam nossas origens:
E no fundo da alma
eram todos em busca de Sebastião
pelos quintos do mundo:
Sebastião! Sebastião!
E eram caçadores de estrelas
e caçaram as estrelas desejadas
pois,
adivinhadas talvez pelo Poeta foram vistas
as estrelas em cruz
dos desviados graus do Purgatório.
(IM, 1997, p. 89)
[...]
e o ventre
das mulheres de todas as raças
pariu a raça
dos machos e das fêmeas do país
a tribo que te clama e aclama:
Sebastião!
Sebastião!
32
Segundo informações apresentadas por Gerardo Mello Mourão no índice remissivo dessa edição de
Invenção do mar (1997), a menção a Antônio Olinto explica-se pela autoria do romance Alcácer de Quibir
atribuída a esse autor.
80
(IM, p. 263)
Com efeito, o espírito sebastianista evocado pelos versos de Mello Mourão,
ademais de revelar os anseios do poeta em eternizar a figura mítica do monarca português
contribui, de alguma forma, para a inserção desse herói, de seus feitos e de suas lendas na
atmosfera formativa da literatura brasileira. A busca por D. Sebastião confunde-se, nesse
caso, com a busca das estruturas internas de nossa historiografia fundacional metaforizada
pelo olhar do poeta e pelo desejo de também ele mapear suas próprias origens:
Um dia saberemos: é por dentro de nós que ele viaja
e espantados narcisos olharemos
no cristal de lagoas e regatos
nosso próprio rosto – e o trom das cachoeiras e o clangor
das seriemas no tabuleiro repetirão ao conhecer
cada um dos moradores da aventura e da aurora nossa:
Sebastião!
Sebastião!
E somos nós
nossa própria esperança.
Sebastião sou eu.
(IM, 1997, p. 177)
Expressão representativa do empreendimento colonizador português em terras
brasileiras, Pero Lopes de Sousa aparece em Invenção do mar não como a figura de um
herói interrompido e imortalizado como fora D. Sebastião, mas como a configuração
máxima de um herói entrecortado pelas visões, desafios e outras maravilhas do novo
mundo. É bem verdade que seus feitos enquanto navegante audaz explicam-se, de algum
modo, pelo sopro de inspiração e destemor cedido pelo espírito sebastianista à nação
lusitana; não obstante, a curiosidade e o espanto que conduzem seu olhar desbravador
relacionam-se, de certa maneira, com a feitura de um herói que se pauta em premissas
reconhecidamente renascentistas (PANOFSKY, 1995). Logo, como evidentemente se pode
imaginar, descrever a terra brasilis, documentar seus rios, fauna, flora e sua gente são
tarefas caras à invenção de um país que nasce sob o signo da imaginação e se amplia
mediante o testemunho de cada olhar e as palavras de cada homem que move imagens e
linguagens para a fundação do quinto dos impérios:
O pasmo, a que se refere Mendes Pinto, é o resultado radical da
opacidade da estranheza, que a situa fora de qualquer possibilidade de
81
enquadramento, uma vez que os modelos de análise do real com os quais
está habituado o viajante não cabem nela – por excessiva, esta, por
inadequados e insuficientes, aqueles. Tais excessos, inadequação e
insuficiência produzem uma espécie de desconexão entre o que o olho vê
e o aparelho mental que interpreta, uma vez que este se encontra
momentaneamente impossibilitado de realizar seu trabalho básico, o de
descodificar as imagens enviadas pelo olhar embaralhados que estão
os seus mecanismos produtores de conexões.
Fugidiamente desconectado daquele aparelho, o olhar se deleita,
extasiado ou melhor, para ser fiel ao narrador pasmado (grifo do
autor) ante o que vê, pura festa para os olhos. Acossado, contudo, pela
necessidade de julgar, a qual, ainda que sob o cerco do baralhamento,
nunca dá trégua, ele rapidamente a ela cede espaço. A festa para os olhos
transforma-se em manancial para o julgamento (LIMA, 2009, p. 89,
grifos nossos).
E essa mesma festa para os olhos e para a linguagem que, no século XVI,
implementou a ação colonizadora no Brasil atravessa os tempos e multiplica as cenas e os
discursos de nossa fundação. Estetizado, portanto, pela visão eletiva do poeta, Pero Lopes
de Sousa aparece em Invenção do mar como o herói emblemático para a construção da
nação brasileira em diferentes contextos e discursos:
A penugem da epiderme estremeceu
em todas as curvas do teu corpo: −
o poeta do mar e guerreiro do mar sobre ondas velejadas
suas pupilas ainda adolescentes
Pero
Pero Lopes de Sousa – e de seus bagos venho –
no primeiro frêmito
na primeira carícia
suas mãos marinheiras
tratadas ao sal das águas e das cordas
conheceram tuas formas de virgem
à beira da água verde, à beira da espumas de ouro
e da volúpia
do primeiro encontro, terra e noiva.
(IM, 1997, p. 131)
E não tenho mais nada – rico de nada, nada mais
que essas memórias escrituras
senhor do cabedal dos tempos – eu Poeta,
pastor de águas e de caravelas – partos de espumas
pastor dessas lembranças
pastoreio seus nomes
canto as naus e os marinheiros
e os capitães da aurora – Martim Afonso
e Pero Lopes de Sousa
82
e de seus bagos venho.
(IM, 1997, p. 157)
Mas germinaram
ao norte e ao sul as sementes regadas a sangue
por Pero Lopes e Martim Afonso – brotadas e floridas
na esmeralda das lâminas e no ouro dos pendões
da cana de Pernambuco e São Vicente
e depois nos campos dos Goitacazes.
(IM, 1977, p. 180)
Já Pero Lopes de Sousa a fio de espada
os corsários calvinos no Nordeste,
depois com as bandeiras do seu Rei
começa Coligny a fundação
da terra prometida aos hereges Eid-genossen
ditos huguenotes:
a terra prometida é nossa –
(IM, 1997, p. 271)
E se a palavra é mesmo a morada do ser segundo discute Heidegger (2006),
Pero Lopes de Sousa, donatário e bandeirante da primeira bandeira”, em contraponto a
Luis Carlos Prestes (a quem o poeta de Invenção do mar concede o título de herói e último
dos bandeirantes), leva a cabo o projeto fundacional de povoar, descrever e inventar o
Brasil: “Na era de 1530, sábado, 3 dias do mês de dezembro, parti desta cidade de Lixboa,
debaixo da capitânea de Martim Afonso de Sousa, meu irmão, que ia por capitão de hua
armada e governador da terra do Brasil” (Lopes de Sousa apud Mello Mourão, 1997, p.
119).
Nesses termos, seja pela ação empreendedora ou simplesmente pela lembrança
mítica e amostragem figurada, D. Sebastião, Pero Lopes de Sousa e Luis Carlos Prestes
aparecem no poema em companhia de outros tantos nomes (anônimos ou não) – a exemplo
de Vasco da Gama, Gil do Bojador, Gonçalo Velho, Manuel de Beja, José Francisco,
Antônio Carneiro etc. como os grandes heróis, indispenáveis à fundação contínua e
coletiva do Brasil. A trazida desses nomes atualiza seus feitos e dilata o desejo do poeta em
expandir os limites de nossa fundação. O movimento ciclíco dos marcadores temporais que
aproximam passado, presente e futuro descortina a ção desses heróis e, de alguma forma,
os enquadra nas cenas de nossa fundação à medida que seus nomes e seus feitos são
eternizados pelo canto épico. Por assim dizer, a relação estabelecida entre literatura e
história e a própria noção sobre os influxos da ficção para um viver coletivo desempenham
um papel fundamental para a construção de um épico moderno que se afirma mediante o
83
desafio de cantar a invenção do povo brasileiro, conforme atestam as discussões
relacionadas no terceiro capítulo dessa dissertação.
84
CAPÍTULO III
CENAS DE INVENÇÃO
33
E ali começa a guerra,
não a guerra dos reis,
era uma vez essa guerra
guerra do povo,
um povo
chamado brasileiro.
(IM, 1997, p. 270)
33
Título elaborado a partir das principais idéias discutidas por Flora Süssekind em seu artigo Cenas de
fundação. In: Modernidade e modernismo no Brasil. São Paulo: Mercado das letras, 1994.
85
3.1. História, literatura e outros diálogos
É bem verdade que a construção de um poema épico se serve da retomada de
episódios que, de alguma forma, retratam o percurso histórico vivido pelo povo, país ou
grupo social que serão cantados. Sendo assim, é importante mencionar que a articulação de
tal gênero pressupõe a abordagem metaforizada dos principais eventos, batalhas e
conquistas que compõem determinada historiografia, mas que dilatados pela linguagem
literária passam a significar o ponto máximo das glórias e empreendimentos dessa gente. A
comunicação entre literatura e história aparece-nos, pois, como premissa irrevogável para a
configuração estética de um texto que busca no passado os principais elementos para o
redimensionamento do tempo presente e possivelmente das formas que serão assumidas
pelo futuro. Resta saber, entretanto, se o mesmo caminho traçado pelos grandes épicos será
assumido por Invenção do mar, uma vez que o poema se destaca exatamente pela
atualização das marcas representativas do gênero épico e pela consciência literária do poeta
que emite seu canto em meio às principais discussões sobre fragmentação, descentração de
identidades, deslocamento do sujeito e outras questões de ordem contemporânea.
Naturalmente que a fusão entre os elementos clássicos da matéria épica (a
retomada de feitos pretéritos, o canto monumental de um povo a fim de inscrevê-lo na
história da humanidade, a construção mítica de heróis etc.) e a carga de subjetivismo e
individualidade que direciona a voz lírica do poema é fundamental para o tom de
modernidade assumido pelo poeta de Invenção do mar. A busca por suas origens, pelas
marcas de sua ancestralidade (portuguesa e brasileira), associada à expectativa de também
cantar a fundação do Brasil e as ações de uma coletividade, evidencia a conjugação entre
categorias discursivas que durante muito tempo estiveram separadas pela tomada
classificatória do olhar aristotélico, mas que agora se encontram face a face sob o intento
de promover a festa da linguagem.
A associação entre os gêneros lírico e épico articulada por Mello Mourão
mediante o objetivo de debruçar-se sobre sua própria história de vida e, partir d
evidenciar os eventos que compõem a história fundacional da gente brasileira, empreende,
em termos gerais, a aproximação entre dois diferentes campos do discurso: história e
literatura. Tal encontro constitui, de certo modo, uma esfera reflexiva de absoluta
importância para a leitura interpretativa de Invenção do mar e o entendimento da atitude
performática assumida pelo poema quanto à incorporação de passagens da história
86
institucionalizada e o desdobramento da linguagem literária sobre as mesmas. Logo, a
abordagem dos principais aspectos dessa relação justifica-se pela necessidade de
confrontarmos as teorias e os conceitos produzidos pelas cadeias argumentativas das
últimas décadas com os elementos dispostos na obra em questão espaço sobre o qual
circulam concorrentemente os discursos da história e da literatura.
Como se sabe, as discussões que tentam aproximar história e literatura quase
sempre determinam um ponto central, objetivo e comum entre essas duas manifestações da
linguagem. O estabelecimento de uma zona de intersecção entre ambas representaria,
portanto, a confirmação de que os dois discursos partem em algum momento do mesmo
eixo temático e gravitacional, partilham as vias de materialização de seus respectivos
objetos ou se encontram, simplesmente, depois de cumprida a tarefa de converter em
linguagem determinados aspectos da fenomenologia humana (WHITE, 2001). A opção por
um desses três caminhos (o princípio, o meio ou o fim) configura a necessidade de se
entender os elementos que justapõem os dois campos: história e literatura. No entanto, não
se trata de sugerir em nossas discussões o rastreamento dos pontos de convergência entre
as mesmas, mas, talvez, de identificar e discutir as estruturas que as separam ou as
individualizam, na perspectiva de incorporar tais reflexões ao conjunto de estratégias que
conduzem nossas leituras de Invenção do mar.
Matéria das mais profundas investigações no campo das ciências humanas a
relação entre história e literatura tem inspirado polêmicos debates desde a segunda metade
do século XX. A crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim da crença nas
verdades absolutas legitimadoras da ordem social e o próprio questionamento das bases
sobre as quais se sustentavam a história institucionalizada (tradicionalmente pautada no
registro conciso da história de um povo ou instituição, originalmente organizada ano a
ano), intensificaram as questões sobre os meios de identificação e registro dos eventos
relacionados a determinado grupo social:
[...] nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história enquanto campo
de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria
a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas
encenações várias. O pensar história como literatura situa-se no projeto,
também histórico, de se desconstruir as garantias e as certezas dos
métodos e análise dirigidos pela força da tradição, pela busca da origem,
pela concepção de legado, pela credibilidade na influência e na autoria
(SANTOS, 1999, p. 132-133).
87
Nesse caso, se a menção a determinados eventos instituídos pela dinâmica
organizacional da escritura épica tem por base a expectativa de atualizar tais fatos ou
simplesmente recuperá-los do arquivo coletivo de nossas memórias a fim de convertê-los
em eixo temático para a atitude do narrar, não podemos esperar que tal recuperação
signifique, de alguma forma, a documentação material da história de um povo. O que se lê
na Ilíada, o que se n’Os Lusíadas, o que se lê, enfim, em Invenção mar é justamente a
problematização dos episódios suscitados, e não simplesmente com a intenção de
questioná-los ou inquiri-los quanto à verdadeque atestam, mas sim na perspectiva de
introduzi-los na dialética da existência humana, operando enquanto marcadores culturais,
políticos e comportamentais de determinado grupo social. Sendo assim, é possível dizer
que o recorte e os mecanismos de abordagem propostos por Mello Mourão revelam, de
certo modo, a tensão estabelecida entre as vozes da literatura e da história:
E os nomes de todas as aldeias e vilas e lugares
do país do Nordeste, do Maranhão à Bahia,
lembram batalhas, sangue
dos que mataram e morreram
e a estrela matutina da vitória brilha
nos céus de Pernambuco – das Tabocas
aos Gurarapes
O grito da insurreição foi o canto do galo na
[madrugada de Ipojuca
13 de junho de 1645
minha mãe me ensinou a data na escola de Ipueiras
naquele tempo aprendíamos essas coisas na escola
e decorei também a data de 3 de agosto do mesmo ano
quando a pequena tropa treinada pelo Sargento-Mor
passa a chamar-se Exército Restaurador
e mais uma vez o verbo se fez corpo
e pela primeira vez, no país do Nordeste,
patriotas em armas se chamam Exército
e ali Moreira Bento, coronel gaúcho, coronel
da estratégia e da memória das armas aponta ali a criação
do Exército Brasileiro.
(IM, 1997, p. 308-309)
A princípio, é possível imaginar que a descrição de eventos relacionados às
Batalhas dos Guararapes, além da referência às tropas invasoras holandesas e aos
defensores portugueses confere ao poema o status de instrumento de reconstrução da
história colonial brasileira. Todavia, a condução do enredo narrativo revela as experiências
de vida do próprio sujeito lírico que engendra suas memórias e sua visão de mundo no
88
corpo orgânico do poema, comprometendo, de tal sorte, qualquer tentativa de se atribuir
um caráter rigorosamente documental à linguagem literária. Desse modo, as lembranças do
próprio poeta quanto aos episódios decisivos da Insurreição Pernambucana, que culminou
com o término das Invasões holandesas no Brasil, no século XVII
(transmitidas, diga-se de
passagem, pela ação cíclica das unidades escolares de educação básica, segundo
informações apresentadas nos versos acima), aparecem-nos, pois, como canal de
amplificação das vozes e ecos da historiografia brasileira (MELLO, 1981). Mais uma vez,
a nítida associação entre os gêneros épico e lírico se serve da sobreposição de imagens e
discursos que justapõem história individual e história coletiva.
Nota-se, logo assim, que os dados suscitados pela leitura de Invenção do mar
convergem, por assim dizer, para o desenvolvimento de nossas reflexões sobre os diálogos
assumidos pela literatura e pela história. Nesses termos, torna-se claro que os pontos de
contato entre essas duas dimensões da linguagem humana reforçam a tese de que os
elementos constituintes de nossas experiências políticas, sociais e filosóficas comunicam-
se entre si, ampliando a crise paradigmática, conceitual e classificatória vivida pela
contemporaneidade, mas também potencializando os níveis de subjetividade que
determinam o andamento de nossas relações e fenômenos antropológicos :
[...] a perplexidade atual das ciências humanas deriva de um sentimento
de perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso
científico unitário sobre o homem e a sociedade. Na medida em que deixa
de ter sentido uma teoria geral de interpretação dos fenômenos sociais,
apoiada em idéias e imagens legitimadoras do presente e antecipadoras
do futuro (o progresso, o homem, a civilização), ocorre uma segmentação
das ciências humanas e um movimento paralelo de associação
multidisciplinar em busca de saídas.
Assim, novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marcados por um
ecletismo teórico, uma ótica interdisciplinar e comparativista e um grande
apelo em termos de fascínio temático. Portanto, o diálogo entre história e
literatura, enquanto objeto de estudo, é uma saída deste esvaziamento e
desta sedução (MENDONÇA & ALVES, 2009, on line).
A natureza fragmentária do conhecimento no âmbito das Letras e das Ciências
Humanas, associada à diversidade de temas, olhares e versões que lhe são imanentes,
corrobora, por assim dizer, para a incidência de problemáticas contundentes no que diz
respeito às relações mantidas entre a literatura e a história. Se aquela primeira ocupa-se de
subverter, inquirir e transfigurar a realidade material produzida pela segunda é porque de
89
algum modo seu interesse aplica-se à construção de dimensões outras, paralelas ao
ordenamento linear e objetivo de estruturas factuais, consensualmente, concretas e vigentes
(VEYNE, 1982). Por esse ângulo, não é o caso de emitir qualquer juízo de valor que
privilegie alguma delas, quando a intenção é rastrear indícios que expliquem ou
problematizem os traços e os fenômenos de determinados sujeitos ou grupos sociais, mas
sim de posicioná-las frente a frente e extrair desse embate a tônica para uma compreensão
mutável dos tempos e dos homens.
A comunicabilidade de história e literatura e a aceitação pacífica de que
existe mesmo uma linha de cruzamento entre essas duas estruturas consolidam a
interdisciplinaridade entre as mais diferentes áreas de conhecimento, em contrário a
qualquer concepção fragmentária e classificatória do pensamento humano disseminada
pelo método positivista e seus remanescentes. Diante disso, história e literatura, ciência e
arte, mais uma vez se encontram na perspectiva de revelar o homem em sua inteireza
diversa, descontínua e polissêmica (BARTHES, 1997).
Por conseguinte, talvez, não seja o caso de buscar as marcas representativas de
uma realidade material encenada pelos sujeitos sociais que a constituem, mas sim de
relativizar as condicionantes que a instrumentalizam e propor a construção de outras
verdades”, outros mundos, outras formas de existir, embora “[...] tenha havido uma
relutância em considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são:
ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm
mais em comum com suas contrapartidas na literatura que na ciência” (WHITE, 2001, p.
112)
.
Tomar, portanto, o texto literário como instrumento exclusivo de documentação
histórica constitui um equívoco que seus anseios relacionam-se intrinsecamente com a
estetização do mundo exterior de um ponto de vista político e cultural, e não com sua
compilação ou materialidade:
[...] a narrativa historiográfica precisa ser reduzida a uma forma de arte
restrita para que o empreendimento prossiga (por esse raciocínio, a
narrativa literária, com sua evidente maior riqueza de recursos que a
historiográfica, tornar-se-ia de sua parte, “restrita”, ao ser comparada
com outra forma discursiva: a filosófica, por não poder competir com
sua complexidade conceitual, a científica etc. etc.). Para o propósito do
autor, a diversidade fundamental das metas discursivas não precisa ser
levada em conta. Assim, os enredos romanesco, trágico, cômico e satírico
são tomados como próprios à percepção estética, sem que ache necessário
justificar a própria ligação com o estético (LIMA, 2006, p. 19, grifo
nosso).
90
A maior riqueza de recursos estéticos e estilísticos, além da restrição quanto à
área de desenvolvimento da narrativa literária, aparece-nos, assim, como ponto de partida
para as discussões sobre o tom de fundação assumido por Invenção do mar. A lida com a
matéria histórica, metaforizada pelo jogo discursivo da linguagem literária, destaca-se no
poema como estratégia de reordenamento das principais cenas evocadas. Constituintes de
nosso inconsciente coletivo e o resultado direto da atitude do narrar, tais acontecimentos
desprendem-se do eixo cronológico do qual fazem parte e adquirem outras significações no
complexo arquivo de nossas memórias. Diante disso, é importante mencionar que
desenraizar esses eventos significa construir uma área de ligação estética entre a realidade
organizada pela história e o mundo figurativo inventado pelo poeta.
Ao atualizar o nero épico e agenciar a fundação mítica do Brasil por
intermédio da recuperação figurada de certos episódios da historia brasileira, Invenção do
mar recorre à estreita aproximação entre história e literatura e adensa as discussões sobre
os efeitos utilitários dessa relação. E se, de um lado, o texto de Mello Mourão se afirma em
virtude de promover a retomada de determinadas cenas de nossa invenção, de outro, o que
merece destaque é justamente a sua capacidade de plasmar imagens e frustrar as
expectativas do leitor que nos seus versos a possibilidade de remontar a história e
resgataro passado. Afinal de contas, como num clássico jogo de pistas falsas, o ato
fundacional assumido pelo poeta rasura por completo o tempo pretérito e embaralha as
memórias anunciadas por sua poesia:
E não tenho mais nada – rico de nada, nada mais
que essas memórias e escrituras
senhor do cabedal dos tempos – eu Poeta,
pastor de águas e de caravelas – pastor de espumas
pastor dessas lembranças
pastoreio seus nomes
canto as naus e os marinheiros
e os capitães da aurora – Martim Afonso
(IM, 1997, p. 157)
[...]
E estas são notícias miúdas
das capitanias hereditárias e são verdadeiras
como a história de Heródoto,
pois,
eu poeta e cantador daquelas serras e ribeiras
91
as ouvi de minha mãe Esther
que as ouviu de seu pai, que as ouviu de seu avô,
que também as ouviu de seu avô, bisavô, tataravô
[− e este
viu com seus próprios olhos
que a terra já comeu
e eu mesmo com seus olhos vejo as velhas índias
no gume dos caninos
roendo os ossos de um Bernadino, de Braga, ferreiro,
com os cauins fermentados de milho e caju da safra.
(IM, 1997, p. 173)
Formado por um emaranhado de memórias longínquas que atravessam os
tempos e se agregam na memória coletiva de determinado grupo social, o poema não
adquire um estatuto de verdade absoluta, mas também não abandona a tarefa de representar
os principais fenômenos sócio-histórico-culturais que traduzem o espírito do povo
brasileiro (SARAMAGO, 1990). Sendo assim, a recuperação de lembranças coletivas ou
recordações individuais convertem-se em método de recolhimento das informações obtidas
pelo movimento de cada olhar diante dos fatos ocorridos. Logo, algumas condicionantes
como possíveis lapsos de memória, a invenção de uma trajetória de vida artificial, a auto-
celebração, a fantasia, a omissão ou mesmo a mentira, sejam elas articuladas de modo
intencional ou não, direcionam o percurso narrativo da linguagem literária e participam
decisivamente para a configuração de um texto que aos moldes de Invenção do mar
também se preocupa com a construção simbólica da terra brasilis.
Sem a obrigação de documentar a história institucional do Brasil, os versos de
Mello Mourão percorrem outro caminho assinalado pelo cruzamento de lembranças e o
reordenamento pacífico das lendas, homens e histórias que edificam nossa invenção. E
inventar, nesse caso, é dissolver a blindagem temporal que compartimenta nossas
memórias e fundamentar o jogo de referências que alia passado, presente e futuro. Inventar
é, enfim, transgredir os limites do cronus e instituir um templo cujas paredes sejam
essencialmente móveis e transponíveis (HUNT, 1992).
Simulacros resultantes da livre associação entre história e literatura, as imagens
emitidas por Invenção do mar são todas elas o resultado direto da articulação do binômio
memória-imaginação. De tal forma, a performance responsável por esse jogo de cenas e
legendas se apóia sempre em um contexto específico para seu significado e funciona como
um sistema histórico e culturalmente codificado. As imagens articuladas adquirem um
sentido somente no contexto cultural-discursivo-específico em que são aplicadas, e atuam
92
na transmissão de uma memória cultural extraindo ou transformando imagens culturais
comuns de um mesmo arquivo coletivo:
Memória e história, longe de serem sinônimos aparecem agora como se
estivessem numa posição fundamental. A memória é a vida, vivenciada
por sociedades vivas, fundadas em seu nome. Ela permanece em perene
evolução, aberta à dialética do lembrar e do esquecer, inconsciente a suas
sucessivas deformações, vulnerável a manipulações e apropriações,
suscetível a longos repousos e periódicos renascimentos. A história, por
outro lado, é a reconstrução sempre problemática e incompleta, daquilo
que não existe mais. A memória é um fenômeno perpetuamente atual,
uma unidade que nos prende ao eterno presente; a história é a
representação do passado. A memória, por ser afetiva e mágica, abriga
apenas aqueles fatos que nela se encaixam; ela nutre lembranças que
podem estar desfocadas, telescopicamente aumentadas, que podem ser
gerais ou detalhistas, particulares ou simbólicas de acordo com a
conveniência de cada caminho ou de cada cenário, de acordo com cada
censura ou projeção. A história, por ser uma produção intelectual e
secular, se liga à análise e à crítica. A memória instala a lembrança dentro
do sagrado [...] (NORA, 1984, on line)
34
.
Ainda que comum às produções literárias e históricas, e completamente
condicionada às estratégias e possibilidades de sua articulação, a memória consegue
mostrar-se como um canal de representação coletiva, múltipla e plural, por sua natureza
estritamente performática, mas no entanto específica pelas condições que preambulam sua
evocação. Por esse viés, é notório que as diferenças temáticas e formais entre história,
literatura e memória habitam os vales sombrios de certo proselitismo teórico e
conceitual, distanciando-se em inúmeros aspectos, mas aproximando-se em outros tantos
em virtude de tomarem para si o mesmo eixo discursivo: a matéria humana. Por assim
dizer, os versos de Mello Mourão reúnem estas três esferas e concentram no mesmo fio da
navalha a dinâmica e os mistérios do existir humano:
O mito gera a lenda, a lenda gera o herói
e só o herói pode gerar a história
e a história é fruto e flor da lenda
a lenda está no coração da história
e os bandeirantes de Piratininga
deram seu sangue ao coração da lenda
e era uma vez Bartolomeu Bueno
34
Fragmento de texto de Pierre Nora, traduzido do original em francês publicado em Les lieux de mémorie.
Paris, Gallimard, vol. 1 (La Republique), 1984.
93
na bacia de prata incendiava os rios
era um deus e um demônio – um Anhangüera
e era uma vez um troço de bandeira
pelos índios frecheiros destroçado:
recuaram da guerra todos eles,
do inferno do Capão da Traição;
e toda a vila – as filhas e as mulheres
lhe fecharam as portas dos seus lares
e o pundonor os fez voltar à luta
e assim fundiu-se a raça dos paulistas
do orgulho das mulheres e da honra
dos que querem a honra mais que a vida.
E era uma vez e era uma vez e era uma vez...
(MOURÃO, 1997, p. 251-252)
A consciência empírica do poeta associada à concepção dialética de sua própria
existência favorece a sobreposição de imagens alocadas, durante muito tempo, em
hemisférios, à primeira vista, divergentes: literatura e história. Partindo daí, em lugar de
catalogar, simplesmente, os eventos que promoveram a formação política e geográfica do
Estado de São Paulo (configurada a partir do empreendimento dos bandeirantes em terras,
até então, desconhecidas), segundo se nos versos citados, o poema discute a afirmação
dessas ações, à medida que reúne no mesmo plano diferentes instâncias do gênero épico
o mito, a lenda e a história. Nesse caso, se a intenção primeira de Mello Mourão era revisar
a fundação do Brasil, mediante a iluminação de episódios eclipsados pela historiografia
brasileira e o descarte de passagens que, a seu ver, exerceram influência comedidano
processo de invenção tica da nação, a exemplo da conjuração mineira e seu líder
máximo, o inconfidente Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), é possível dizer que tal
intento significou insólita frustração.
Embora distante de ser um retrato pictórico da formação histórica e política do
Brasil, o poema imprime sua leitura sobre as passagens e os eventos selecionados, na
expectativa de, talvez, elucidá-los e incorporá-los à galeria conflitante da historiografia
brasileira. No entanto, sob pena de repetir o mesmo discurso factual da História, o poeta
não se rende à sedução de também lançar uma versão oficial e definitiva de nossa
fundação. O que se é uma tentativa alegórica de desenrolar o emaranhado de fios que se
entrelaçam e inventam o povo brasileiro sem a dureza nem o discernimento embrionário do
método científico, mas com toda a carga polissêmica e figurativa que o texto literário
94
demanda, e sua capacidade associativa de construir, deslocar e conjugar imagens,
memórias e discursos.
Por uma via distinta daquelas assumidas, por exemplo, por Macunaíma,
Memórias do Cárcere, Os Sertões ou Grande Sertão: Veredas; e moldada basicamente a
partir da técnica de collages
35
, Invenção do Mar se nos mostra como um ensaio estetizado
de reinterpretação do Brasil que se institui com a elaboração e o aprimoramento de
recursos de inter e intratexto, pautados fundamentalmente na evocação da voz de outros
poetas e no livre trânsito entre prosa e verso. Logo, muito mais do que uma escritura que se
serve exclusivamente da construção esquemática ou recriação mítica do Brasil, o poema
nos parece empenhado em propor uma reinvenção contemporânea do próprio gênero épico,
ainda que consoante ao feito camoniano também registre comprometidamente a imagem de
um povo, a fim de inscrevê-la na história da humanidade.
O poema de Gerardo Mello Mourão desconstrói o que de limítrofe entre a
narrativa de ficção e o princípio fundacional da matéria épica, aliando, por conseguinte, o
real imaginário, criado literariamente pela substância romanesca, ao substrato da junção
entre o real histórico e o real maravilhoso
36
. Dessa coalizão, emerge uma narrativa de
ficção que opera não simplesmente com a proposta de tangenciar a realidade ficcional, mas
sim com o intuito de problematizar e rediscutir a nossa própria historiografia, e também as
competências e as habilidades levantadas pelos gêneros literários. Essas noções, distintivas
em inúmeros aspectos, mas semelhantes em outros tantos, integram juntamente com outros
elementos ainda mais específicos, um corpo teórico-crítico que possibilita a tomada da
poesia épica contemporânea como uma dimensão interposta pelo signo da ficção.
Assim, na condição de lentes através das quais o homem e interpreta o
mundo, a literatura e a história empenham-se na construção simbólica e itinerante de
diferentes níveis de realidade, embora sejamos cônscios de que os registros da
historiografia institucional como se sabe, muito, são somente as versões dos que
35
Segundo Maria Beatriz de Medeiros em Arte em pesquisa: especificidades (2004), collage (Do francês:
coller, a cola) é uma obra de arte formal, principalmente nas artes visuais, fabricada a partir de uma
assembléia de formas diferentes, criando assim um novo conjunto. A utilização desta técnica fez a sua
aparição entre pinturas a óleo do início do século XX como uma forma de arte inovadora, uma novidade. É
importante lembrar que mesmo tendo nascido a partir da dinâmica das artes visuais, o termo collage também
representa a livre associação de fontes, influências, imagens e fragmentos que operam na constituição de
diferentes linguagens literárias.
36
Dentre as muitas discussões sobre realismo maravilho, optamos adotar em nossa pesquisa as reflexões
apresentadas por Alejo Carpentier no prefácio a O reino deste mundo (1985), quando o autor aborda a própria
história da América Latina, em especial sua experiência com o vodu durante a revolução haitiana, como
manancial para o processo de transfiguração de realidades objetivas e materiais.
95
venceram e, portanto, invariavelmente omitem ou distorcem as razões, os motivos e as
realizações dos que foram vencidos: portanto, o espelho representativo de apenas um lado
da moeda. o menos dúbio e oscilante é o registro que se transmite por gerações através
da arte, o que faz de Invenção do mar não uma obra que tenha a missão de documentar a
realidade, mas por certo desconstruir as visões e os conceitos perpetuados pela tradição por
meio de informações e idéias cuja materialidade também é substancialmente relativa:
O caráter simbólico da representação envolve sempre um apelo a
elementos emocionais, a crenças e valores subjacentes, à expressão de
uma vontade e à realização de desejos, nem sempre explícitos ou
conscientes, muitas vezes negligenciados na análise do significado do
discurso político, mas que operam em um nível básico no processo de
representar. E nesse sentido que o líder encarna, e não apenas representa
por mandato ou autorização, aqueles a quem representa (MARCONDES,
1992, p. 157).
Sendo assim, a própria natureza da épica em registrar a dimensão heróica de
um povo em sua travessia histórica assinalando os feitos daqueles que por colocarem,
hipoteticamente, a grandeza da pátria e a dignidade humana acima de suas próprias vidas,
mereceram a glorificação e o reconhecimento eternos deverá ser questionada igualmente
ao que se fará com a caminhada heróica do colonizado em busca de sua autodeterminação.
Neste mover de peças, os clássicos heróis da pátria como Zumbi dos Palmares e a Princesa
Isabel, pintados como patriotas exemplares e seres imaculados, são descartados pela
tessitura historiográfica de Invenção do mar em detrimento de outros nomes não tão
prestigiados, ou de alguns mártires de nossa fundação.
Flagrantes na construção de visões hegemônicas que forjam os mitos
históricos, a matéria, o tempo e o espaço penetram as idéias e nosso conhecimento das
coisas, convertendo desde a consciência primitiva mais pueril até as especulações
filosóficas e modernas investigações científicas em um objeto – que por seu movimento ou
repouso é passível de mudanças promovidas por nossas sensações, julgamentos e
inferências. Desse ponto de vista, a história do Brasil cristalizada pela ótica dos
vencedores, bem como a escultura de seus mitos e heróis ocupam eixos rigorosamente
sólidos, mas de estrutura interna movediça e transitória, o que demonstra que nossos heróis
são mesmo o mais poderoso e contraditório de nossos mitos. Incoerentes e imperfeitos, ao
contrário do que deseja os antigos manuais de História do Brasil, estes homens e mulheres
em uma posição de destaque ou subalternidade são excessivamente humanos,
96
excessivamente complexos a ponto de não caberem em apáticas estátuas de bronze
(CHALHOUB & PEREIRA GRAMSCI, 1998).
Assim, a referência a episódios de nossa colonização, aos laços complexos
entre colonizador e colonizado e à tensão imanente à própria experiência do contato
constituem, de alguma maneira, a espinha dorsal para o desenvolvimento de um poema que
promove a fundação mítica da gente brasileira:
Uma noite
os moradores ouvem o alarido dos índios,
a fumaça ondula ao som dos maracás e a terra
[estremece
ao trom dos tambores na alegria da guerra
acorrem os padres
as velhas aprestam-se à roda da fogueira e à roda
da dança dos cateretês e maracatus,
para trinchar e assar o corpo do prisioneiro aimoré:
os padres arrebatam o cadáver gordo
para dar-lhe sepultura em nome dos direitos de Deus
e dos homens;
foi a primeira declaração de guerra:
comer carne humana era a lei suprema do gentio
o Cacique Cunhambebe mergulhava em tristeza e fúria
no dia em que lhe faltava a coxa de um homem
ou uma perna de uma mulher para comer.
(IM, 1997, p. 229-230)
A retomada de alguns aspectos relacionados à Confederação dos Tamoios, a
atualização das batalhas travadas por Tupinambás e Aimorés ou o confronto direto entre as
doutrinas da Igreja Católica do século XVI e os hábitos canibalistas dos gentis
transformam-se, de certo modo, em instrumentos de reconstrução da história nacional.
Desta forma, a articulação de um poema pautado na livre combinação de elementos
históricos, narrativos e ficcionais pressupõe o questionamento das principais estruturas que
determinam a galeria de nossos heróis. Logo, a recepção pacíficado influxo cultural
português aparece em Invenção do mar interposta à própria resistência indígena com
relação ao empreendimento colonizador da metrópole e a reconstrução da imagem
simbólica do herói Cunhambebe. Desse embate surgem, portanto, os principais vestígios
dos episódios eclipsados pela historiografia brasileira, verdadeiros códigos em trânsito para
97
a atualização de nossa memória histórica e o desmembramento do imaginário simbólico e
sentimental de nossa formação cultural e étnica.
O comprometimento com a invenção do Brasil mediado pela justaposição de
história e literatura conduz o olhar do poeta, profundamente empenhado na alegorização de
imagens e memórias, para uma zona de intersecção de saberes, objetos e experiências. O
movimento de sujeitos pelo corpo do poema descortina os pilares sobre os quais se
sustentam nossas relações antropológicas e tiram de foco as verdades instituídas por nossos
antepassados à medida que constrói outra órbita por onde circulam novos fenômenos,
novos conceitos, novas reflexões que apontam para a edificação de outra versão sobre o
real em desalinho com as versões oficiais. Por assim dizer, vale ressaltar que, mesmo
criando realidades paralelas ao mundo que lhe é exterior, o texto literário não opera
enquanto mecanismo de documentação do real, mas sim como meio de problematização
das premissas que o constituem:
Não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e prosa [...],
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que
poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério
do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o
particular. Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivíduo
de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de
necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal,
assim entendido, visa a poesia, ainda que nomes às suas personagens.
Outra não é a finalidade da poesia, embora nomes particulares aos
indivíduos [...] (ARISTÓTELES, 1973, p. 443).
Constituintes de um mesmo corpo orgânico vivo: a linguagem; imaginamos,
talvez, não ser o caso de se discutir a particularidade ou a universalidade específicas de
história e literatura, ou mensurar a superioridade funcional de alguma delas, conforme nos
sugere Aristóteles. E, ainda que em dado momento cada uma lance mão de diferentes
estratégias discursivas, condicionadas pelo tempo e o espaço de onde são enunciadas, é
certo, isto sim, que a natureza discursiva de ambas as esferas dialoga a todo instante com a
interioridade plurissignificativa da condição humana e permite a justaposição comunicativa
de história, literatura e outras áreas das ciências humanas. Diante disso, se nossas reflexões
não pretendem desqualificar a poesia, a arte e a ficção como modos de conhecimento da
realidade, passando a habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para o artista ou de
metafísica para o intelectual, também é verdade que não temos a pretensão de promovê-las
a elementos utilitários de tradução correlata e instantânea da realidade. O que se lê,
98
portanto, em Invenção do mar é a explícita junção das estruturas externas e internas que
fundamentam essas duas dimensões da linguagem humana (história e literatura):
Não matem os índios nem escravizem os filhos da floresta
diziam os regimentos do Rei; eles nos matam,
mas são nossos irmãos – bradavam Nóbrega e Anchieta,
e começava a aventura de amansar o gentio
e eles entraram a povoar as aldeias
e sentar praça nas bandeiras e seus meninos
aprendiam a ler e a cantar nas escolas dos padres
e os jesuítas os ensinaram em sua própria língua
e escreveram gramáticas de tupi em alfabeto latino
e poemas e peças de teatro e recolheram a
[mitologia deles
e escreveram suas histórias e suas fábulas
e salvaram o que resta de sua fala sonora
e da memória de suas lendas.
(IM, 1997, p. 235)
Diante da produção exaustiva de uma literatura declaradamente engajada, em
nossa contemporaneidade, a nítida preocupação do poeta em legitimar a ação portuguesa
durante os primeiros anos da colonização no Brasil (especialmente no que diz respeito à
doutrinação e ao domínio das civilizações indígenas) pode confundir-se com o
posicionamento subalterno diante dos anseios imperialistas da ex-metrópole. Entretanto,
mesmo conscientes das duras marcas deixadas pelo processo de aculturação imposta às
nações indígenas, não podemos penalizar o silêncio e o tom de conformismo assumido por
Mello Mourão que a escrita literária, mesmo representando o posicionamento político,
histórico e cultural de um povo (já que todo signo possui determinado valor ideológico),
não deve instituir-se enquanto instrumento de levante ou insurreição, mas sim como
mecanismo de alteração das superfícies que determinam o andamento regular e unívoco da
dinâmica humana. Com efeito, por mais que a história tente se opor a essa concepção
figurada da arte, não podemos falar em apreensão fidedigna do real, mas simplesmente
sugerir o lançamento de questões cada vez mais complexas quanto a tal temática: "essa
narração [a história] difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência
indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopéia, no romance,
no drama?" (BARTHES, 1988, p. 145). Não, porque todo discurso não consegue dar conta
do real em sua totalidade, trabalha com seleção e combinação de imagens, sujeitos e
episódios:
99
[...] parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente
próxima da ficção, dado que, ao refazer o referencial, procede a omissões,
portanto a modificações, estabelecendo assim com os acontecimentos
relações que são novas na medida em que incompletas se estabeleceram.
[..] Lendo esses historiadores, temos a impressão de estar perante um
romancista da História, não no incorreto sentido da História romanceada,
mas como o resultado duma insatisfação tão profunda que, para resolver-
se, tivesse de abrir-se à imaginação (SARAMAGO, 1990, p. 19).
[...] narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a
experiência humana do tempo. A narrativa ficcional pode fazê-lo
alterando o tempo cronológico por intermédio das variações imaginativas
que a estrutura auto-reflexiva de seu discurso lhe possibilita, dada a
diferença entre o plano do enunciado e o plano da enunciação. A
narrativa histórica desenrola-o por força da mímeses, em que implica a
elaboração do tempo histórico, ligando o tempo natural ao cronológico
(NUNES, 1988, p. 85).
E se a descontinuidade, o caos e a sedimentação são mesmo nosso dote maior
conforme dissera Hayden White, a perplexidade que tem rondado as ciências humanas, nas
últimas décadas, possivelmente se explique pelo sentimento de deriva e pela perda de
certezas quanto à normatização dos principais fundamentos de uma reflexão científica e
soberana sobre a sociedade, o homem e os fenômenos que essa relação empreende. Por
assim dizer, o esvaziamento de sentido em se tentar imprimir uma teoria geral de leitura e
compreensão da realidade social, aparatada por discussões e conceitos legitimadores do
presente e intérpretes do futuro e de toda a virtualidade que envolve o homem e o
dilaceramento de suas convicções, reforça a necessidade de se buscar outras respostas para
questões semeadas pela historiografia brasileira, e assim apontar para o movimento
multidisciplinar de objetos, problemas e interpretações. Os diálogos assumidos pela
literatura e pela história são, nesse caso, instrumentos de retropropulsão para outras formas
de conceber e experimentar o mundo disseminadas pela nova história cultural
37
.
Não podemos, portanto, falar da existência de fatos brutos em si mesmos, mas
de eventos deflagrados mediante a eclosão de diferentes enfoques e descrições.
Relativizada pelo princípio metafórico das produções literárias, os registros da história
nacional convertem-se, nessa medida, em centro das principais discussões quanto ao
andamento de nossas relações sociais. E ao passo que a história acontece sob o arbítrio da
37
Segundo informações discutidas por Peter Burke em O que é história cultural? (2005), tal expressão,
disseminada a partir da década de 1970, associa, em linhas gerais, as abordagens da antropologia e da história
a fim de promover um encontro entre as tradições da cultura popular e as interpretações culturais da
experiência histórica, sobrepondo-se, portanto, ao movimento francês da história das mentalidades e à
chamada Nova História.
100
própria noção de diversidade que caracteriza os grupos sociais, os eventos e as respectivas
memórias que eles demandam são constituídos pelo conjunto de regras que sustentam o
manancial de nossas práticas discursivas. Abalizado pela explícita combinação de
enunciados livres e formais, Invenção do mar é o resultado direto da associação
indiscriminada entre as vozes e os ecos da literatura e da história. A forma, a não-forma ou
as muitas formas do poema significam, pois, o empreendimento de diferentes níveis de
realidade como o reflexo de uma era representada pelo intercâmbio constante de homens,
culturas, saberes e linguagens.
101
3.2. Palavras de fundação
À medida que o texto épico incorpora elementos míticos e fabulosos em sua
estrutura interna, uma rie de fenômenos ligados ao ordenamento material e objetivo de
nossas relações sociais é reformulada pelo emparelhamento de práticas discursivas
nascidas no âmbito da ficção e no empreendimento de enunciados ficcionais. Diante disso,
o jogo de construção estética e formal proposto pelo poema de Mello Mourão acena
instantaneamente para a articulação de canais da linguagem (lendas, relatos, mitos,
relações dialógicas) que ao longo da história nacional exerceram certa influência na
construção simbólica daquilo que hoje responde por Brasil. Não obstante, a seleção de
eventos realizada pelo poeta revela, de alguma maneira, o caráter de pessoalidade quanto à
nação que é inventada (SOMMER, 2004).
Nesse caso, tanto a escolha de certos episódios da história brasileira quanto a
abordagem direta dos heróis, das lutas e da ação colonizadora dos portugueses durante os
séculos XVI, XVII, XVIII e XIX vertem da inclinação individual do poeta e de suas
ambições quanto ao país que se dispõe a inventar. Mesmo sendo propriedadede nosso
inconsciente coletivo e resultado direto das práticas discursivas produzidas historicamente
por toda uma coletividade, as cenas de fundação descritas em Invenção do mar adquirem
um status de singularidade ao passo que são ressignificadas pelo olhar inaugural do poeta.
A retomada e a atualização de tais episódios asseguram o fortalecimento do fio
condutor que nos mantém atrelados à história fundacional de nosso país, mas também
solicitam que cada indivíduo produza suas próprias versões do real a partir de experiências
antropológicas que direcionam a aproximação de sujeitos e objetos. Por assim dizer,
sobressaem-se a lida constante com a matéria humana, a particularidade no jogo de
relações sociais que, embora sejam diversas e repetidamente contraditórias, conformam-se
entre si e operam decisivamente para a construção mítica da nação brasileira. É certo que a
apropriação de elementos ficcionais desempenha um papel fundamental para a
composição política e histórica de nosso país, já que todos nós produzimos, a todo
instante, uma cadeia de discursos, fenômenos e atitudes erigida substancialmente pelo
signo da ficção. O encadeamento de ficções primárias, relacionadas ao diálogo e às
práticas rotineiras do cotidiano, com instâncias da ficção secundária (complexa), aplicada,
102
por exemplo, ao desenvolvimento da linguagem literária (novela, teatro, romance etc.),
direcionam, portanto, o andamento de nossas práticas históricas, políticas e culturais.
Por operar no âmbito da linguagem e, talvez por isso, promover o encontro de
ficções primárias e secundárias, que estas em dados momentos podem absorver aquelas,
Invenção do mar se destaca em virtude de garantir a eficácia e a sistematização do
inconsciente coletivo produzido por nossas descobertas e contatos. Nesses termos, a
começar pela própria noção de inventividade sugerida por seu título, é possível dizer que a
ficção se converte em eixo temático do poema, sua razão de ser, a maneira através da qual,
ao infiltrar-se na vida, consegue modelar e transformar os fenômenos que determinam a
existência humana. Assim, tanto a abordagem moderna realizada por Jorge Luis Borges
quanto à preambulação dessa temática (ficcional) lida, séculos antes, em Don Quijote de
La Mancha são recuperadas por Mello Mourão a fim de introduzir no interior do poema a
imagem de um Brasil que possui sua existência simbólica diretamente atrelada à
anterioridade do próprio texto, mas que se transforma e se altera mediante o exercício de
cada olhar e o desdobramento contínuo de nossas práticas discursivas.
Seja, portanto, pelo tratamento de alguns temas circundantes ou pela
abordagem da empresa lusitana quanto ao plano da viagem, ao achamento, à conquista e à
ação colonizadora em terras brasileiras (mote central à composição de Invenção do mar), é
possível dizer que as relações estabelecidas entre Brasil e Portugal constituem a principal
chave para a produção e a leitura dos eventos suscitados pelo poema. Nesse sentido, de
se pensar sobre o influxo oferecido pelo discurso literário no que se refere à construção
étnica, política e cultural dos povos reveladospelo projeto colonizador da metrópole,
uma vez que o choque entre os hábitos e os costumes do eue do outrodetermina as
formas e os contornos desse processo de invenção simbólica, sempre, subsidiado pelo
princípio da alteridade. Logo, diante das reflexões realizadas por Marilena Chauí sobre o
Mito fundador, é importante frisar que muito provavelmente a América tenha sido uma
invenção da Europa, como de forma análoga também o Brasil foi uma invenção de
Portugal:
A América não estava aqui à espera de Colombo, assim como o Brasil
não estava aqui à espera de Cabral. Não são “descobertas”. São
invenções históricas e construções culturais. Sem dúvida, uma terra ainda
não vista nem visitada estava aqui. Mas Brasil (como também América) é
uma criação dos conquistadores europeus. O Brasil foi instituído como
colônia de Portugal e inventado como “terra abençoada por Deus”, à qual,
se dermos crédito a Pero Vaz de Caminha, “Nosso senhor não nos trouxe
103
sem causa”, palavras que ecoarão nas de Afonso Celso, quando quatro
séculos depois escrever: “Se Deus aquinhoou o Brasil de modo
especialmente magnânimo, é porque lhe reserva alevantados”. É essa
construção que estamos designando como mito fundador.
No período da conquista e colonização da América e do Brasil surgem os
principais elementos para a construção de um mito fundador (CHAUÍ,
2000, p.57-58, grifos nossos).
Vale ressaltar que os relatos e as crônicas de viagem que davam conta do
achamento e dos primeiros contatos com os povos autóctones eram quase sempre
entranhados de distorções em formato caricatural ou hiperbólico, o que reforçava o caráter
imagético e ficcional quanto à descrição das terras conquistadas (LIMA, 1998). O fascínio
e o espanto diante do novo mundo, convertidos imediatamente em lei de atração e repulsa,
eram os vetores sobre os quais oscilava a emissão de vozes de reconhecimento da terra
brasilis. O que se falava, o que se escrevia era, portanto, o resultado direto do
estranhamento que chegava ao colonizador mediante a articulação de seus sentidos (visão
e audição). E tal estranhamento, tanto do eupara com o “outro quanto do outrocom
relação ao eujá que esses papéis se invertem proporcionalmente quando os lugares de
fala também se deslocam –, converte-se em mecanismo fundamental para a construção
simbólica e invenção histórica do Brasil.
A apropriação de tais eventos e a recuperação estética do encontro entre índios
e portugueses, cena, aliás, satirizada pelo poeta Oswald de Andrade no poema “Erro de
português”: Quando o português chegou / debaixo de uma bruta chuva / vestiu o índio /
que pena! / fosse uma manhã de sol / o índio teria despido / o português, aparece-nos,
pois, enquanto canal de materialização do projeto literário de Mello Mourão no que diz
respeito à atualização do Mito fundador ventilado pelos portugueses, ainda no plano da
viagem, e ratificado a cada nova tensão, a cada novo conflito que conduzem o
desenvolvimento de nossas relações antropológicas. Tais informações, associadas ao
esforço criativo do poeta em produzir as cenas de nossa fundação, além de desvelar
imagens construídas pela própria carta de Pero Vaz de Caminha, também reforçam e
atualizam a experiência do contato entre colonizador e colonizado, deslocando-a do
passado para o presente com o desaviso intencional de um cineasta pós-moderno
38
que
vasculha as ruas de grandes centros urbanos à procura de imagens em transe:
38
Conscientes das divergências conceituais e discursivas quanto à funcionalidade e aplicabilidade material de
tal termo é importante mencionar que seu aparecimento em nossas reflexões se deve exclusivamente às
104
[...]
os cabelos deles são corredios
e tinham bons rostos e bons narizes
e andavam tosquiados, de tosquia alta
raspados todavia por cima das orelhas
e subiram à nau e o Capitão estava
sentado em uma cadeira
aos pés uma alcatifa por estrado,
bem vestido, com um colar de ouro mui grande no
[pescoço
[...]
Um deles fitou o colar do Capitão
e ficou a fazer acenos com a mão
em direção a terra
como se quisesse dizer que há ouro na terra
e olhou um castiçal de prata e assim mesmo
acenou para a terra
mostraram-lhe um papagaio pardo
que o Capitão trazia consigo
e todos acenaram para a terra
e a terra era a Terra dos Papagaios
mostraram-lhes um carneiro
não fizeram caso dele – mostram uma galinha
e tiveram medo dela
deram-lhes taças de vinho
não gostaram dele
tomaram água para enxaguar a boca
e então estiraram-se de costas na alcatifa
a dormir
e não procuravam encobrir suas vergonhas
(vergonha – de verga)
que não eram fanadas
e as cabeleiras delas estavam bem raspadas e feitas
e o Capitão mandou pôr
na cabeça de cada um seu coxim
e um da cabeleireira esforçava-se para não estragar
e deitaram um manto por cima deles
e aconchegaram-se
e adormeceram.
(IM, 1997, p. 103-104)
A opção do poeta em recuperar as primeiras impressões do Brasil revela, por
um lado, a retomada do mesmo tom contemplativo e caricatural assumido pelo escrivão
português e, por outro, aponta correlativamente para a livre combinação de memórias que,
de certo modo, modificam a composição interna dos episódios recorridos. Afinal de
contas, a abordagem contemporânea de signos discutidos, séculos atrás, pressupõe a
nossas expectativas em cunhar uma metáfora que ilustre fundamentalmente a absorção convulsiva dos
tempos, experimentada pelo sujeito contemporâneo.
105
alteração estética e funcional de suas estruturas internas, já que o deslocamento temporal e
espacial desses elementos demanda a participação de novas práticas discursivas que
promovem, naturalmente, o desenho de outros contornos estéticos. A paisagística natural
(fauna e flora), a expectativa quanto ao achamento de metais preciosos, a figura do
Capitão ou a própria descrição física e atitudinal dos gentis convertem-se em peças
fundamentais à recuperação do tempo pretérito e à invenção de novas linhas
argumentativas propostas pela leitura de Invenção do mar. Sendo assim, não somente a
trajetória literária mesma como também a relativização dos marcadores históricos
materializados pelos versos do poema destacam-se pela recorrência a elementos ficcionais
e pela livre associação entre imaginação e realidade.
Neste caso, distribuído em redes de interpretação histórica, política, cultural
etc., o relato aparece-nos como estratégia de reordenamento das cenas de fundação do
povo brasileiro. Passados de boca em boca ou através de manuscritos que tangenciavam os
medos cultivados pelo imaginário europeu, os relatos ora eram movidos pela visão oblíqua
do navegador ora eram subvertidos pela interpretação simplista do ouvinte. O que valida a
hipótese de que muito mais relacionados à imaginação e ao fascínio que os invadem do
que com a materialidade dos fatos que os motivaram, e contíguos aos mitos e às lendas, os
relatos se acoplam ao discurso da história e são articulados enquanto instrumentos
operantes à construção de nossa brasilidade (LIMA, 1998). Tomada, agora, como parte
integrante da estruturação do relato épico, e relativizada pelo horizonte de expectativa do
autor que a articula, a brasilidade ora aparecerá como sustentáculo da ótica cultural do
colonizado, ora despontará como mecanismo de domínio e poder por parte do colonizador,
potencializando a articulação dos binômios eu/outro, metrópole/colônia e pai/filho:
É possível dizer que as nações não possuem data de nascimento
identificada num registro oficial e que a morte delas, quando ocorre,
nunca tem uma causa natural. Como disse certa vez o historiador Fernand
Braudel, acontecimentos como esses são poeira; eles atravessam a
história como breves lampejos; mal nascem e já retornam à noite e
amiúde ao esquecimento.
[...]
Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no
vazio e com base em nada. Os símbolos são eficientes quando se afirmam
no interior de uma lógica comunitária efetiva de sentidos e quando fazem
da língua e da história dados “naturais e essenciais”; pouco passíveis de
dúvida e de questionamento (SCHWARCZ, 2008, p. 9-16).
106
Como num jogo de espelhos, o desafio de imaginar a nação e concebê-la
enquanto um emaranhado de forças que potencializam o ato fundacional revela nítidas
ressonâncias com o desprendimento de ficções ativadas pelo poeta. A comunicabilidade
entre os sujeitos que empreendem o surgimento da nação destaca-se, portanto, como
mecanismo de referência às múltiplas invenções que são cunhadas pela linguagem
literária. Desse modo, tanto as micro relações estabelecidas de sujeito para sujeito durante
o andamento de nossas práticas cotidianas quanto os acordos diplomáticos que
determinam a imagem física, política e geográfica do povo brasileiro, por sua diferença ou
similitude, contribuem decisivamente para o delineamento do Brasil e apontam para o
desdobramento de uma nação cunhada sob o princípio da ambivalência e da duplicidade:
O que desejo enfatizar nesta imagem ampla e liminar de nação é a
ambivalência específica que ronda a idéia de nação, a linguagem
de escrever a seu respeito, os que a vivenciam. Tal ambivalência
emerge da consciência crescente de que, apesar da certeza com que
os historiadores falam das “origens” da nação como signo de
“modernidade” social, a temporalidade cultural da nação implica
uma realidade social de transição (BHABHA, 1997, p. 49).
A perspectiva do duplo apoia-se à noção de que todo indivíduo tem sua
existência, enquanto tal, diretamente subsidiada pela relação de interdependência e
comunicação que mantém com outros sujeitos. Desse contato emerge a alteridade presente
no jogo de intermediação entre metropóle e colônia e na associação contínua entre
semelhanças e dessemelhanças (um intermeio para o advento das nações) que se fundam
na existência de um “eu-individual” que só se realiza mediante o contato com o outro – que
numa visão expandida se torna o Outro a própria sociedade diferente do indivíduo (LA
PLANTINE, 2000). Logo, qualquer idéia de brasilidade construída a partir da negociação
entre os pólos dessa bipartição passará, inevitavelmente, pelo discurso da alteridade e de
seus bípedes. “A noção do outro ressalta que a diferença constitui a vida social, à medida
que esta efetiva-se através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo, a diferença é,
simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito” (VELHO
& ALVITO, 1996, p. 10).
O ato fundacional promovido por Invenção do mar intermedia, de alguma
forma, o entrelaçamento de história e literatura, de modo que a própria adoção dos recursos
estilísticos e o direcionamento do seu enredo rico-épico refiram-se, obsessivamente, ao
107
Brasil e a Portugal. Os dois países lançam suas grandes sombras sobre o poema, instituindo
o mito (pela históriae/ou pela palavra”) enquanto elemento decisório para a festa das
raças, cores e crenças que é a invenção do povo brasileiro. Sendo assim, há de se levar em
conta que a fundação do Brasil, alegorizada no poema pela retomada de cenas históricas e
outros signos de nossa invenção, representa, pois, uma eficaz estratégia para que dada
comunidade revele as principais marcas que determinam sua composição. Por esse aspecto,
a partilha dos medos, experiências antropológicas, sonhos coletivos e conflitos étnicos,
políticos ou religiosos atestam o sentimento de pertença que impulsiona o andamento do
processo fundacional, embora cada um desses aspectos não represente isoladamente a
garantia para a existência de uma nação:
A nação é uma alma, um princípio espiritual. Constituem essa alma, esse
princípio espiritual, duas coisas que , para dizer a verdade, são uma só.
Uma delas é a posse em comum de um rico legado de lembranças; a
outra, o consentimento atual, a vontade de continuar a fazer valer a
herança que recebemos indivisa. O homem, Senhores, não pode ser
improvisado. A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo
passado de esforços, de sacrifícios e de devoções. O culto dos ancestrais,
é entre todos, o mais legítimo; os ancestrais fizeram de nós o que somos.
Um passado histórico, grandes homens, glória (refiro-me à verdadeira),
eis o capital social sobre o qual assenta-se uma idéia nacional. Ter glórias
comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito grandes
coisas juntos, querer continuar a fazê-las, eis as condições essenciais para
ser um povo (RENAN, 1997, p. 39).
Esse passado histórico, ampliado, muitas vezes, pelo olhar dilatado do
expectador que assiste e relata as imagens de nossa fundação revela, de um lado, a
necessidade imanente de se recuperar as glórias, lendas e heróis atualizados pela própria
noção de mito fundador, mas também reforça a capacidade transformacional assumida pela
dialética humana e afirma o olhar como ato determinante para a alteração do objeto que é
visto e o entendimento ambivalente da visão em si mesma, segundo nos sugere o escritor
Guimarães Rosa: “O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra montão” (ROSA, 2001, p. 24-25).
O poema de Mello Mourão lança vistas sobre as cenas de nossa fundação e
refaz o percurso da coroa portuguesa desde a expansão marítima dos séculos XV e XVI até
a empreitada dos bandeirantes nas terras do além-mar. A menção a esses episódios
108
assegura a reconstrução mítica do passado fundacional da nação brasileira e estabelece um
eixo gravitacional a cuja volta circulam as memórias, nomes, batalhas e outras formas de
invenção. Por esse viés, a retomada dessas cenas de fundação prescinde da necessidade
material de se averiguar a legitimidade dos eventos suscitados, confirmando-se, portanto,
pela aparição alegórica e compartilhada dos principais conflitos étnicos, políticos e
territoriais, que transladados de um passado remoto para um futuro próximo, mas ainda
virtual, tornam-se senhas para a configuração legendária das identidades e dos processos
de identificação que traduzem a diversidade histórica, cultural e, sobretudo, humana da
gente brasileira:
E estas foram as missões:
Despejar os corsários franceses que iam
tomando nelas – as minhas terras –
muito pé,
descobrir sesmarias na costa e no sertão
e povoar e cultivar o país – (segundo os Anais).
Eles fizeram a viagem dos mares
e depois a viagem das serras e sertões:
eu Poeta navego o rastro dos heróis
e viajo seus feitos
E assim celebro e assisto
a tua creação desde quando
as narinas de Deus sopraram tua imagem
lavada de águas atlânticas desde
quando
Pero, Martim, Tomé, Duarte e Mem
e Manuel da Nóbrega e José de Anchieta
e os outros padres de roupeta sopraram nome e ser
em tuas narinas de areia e barro e pedra por onde
teu espírito e teu sangue – terra de meu pai e
[terra minha.
(IM, 1997, p. 130)
A recorrência aos heróis que instituíram o florescimento da nação brasileira e
a celebração da própria trajetória de vida do poeta, mais uma vez, se encontram na
perspectiva de materializar uma escritura de natureza simultaneamente épica e lírica,
sugerindo, nesses termos, o aparecimento de uma nova poesia cunhada, séculos atrás, por
Homero e Virgílio. Logo, é fato que Invenção do mar se distingue, teoricamente, dos
épicos que lhe são anteriores o clássico, o renascentista e outras tentativas de poesia
épica no Brasil colonial por sua concepção fragmentária de alta voltagem e pela nítida
confluência de aspectos relacionados a um viver coletivo com algumas instâncias das
109
experiências antropológicas vividas pelo poeta. A alternância dos planos da epopéia
viabiliza uma nova elaboração estrutural da narrativa e a inserção co-participativa de
elementos históricos e ficcionais:
A epopéia clássica e a renascentista, centrando o relato na dimensão real
da matéria épica, estruturam-se do plano histórico para o maravilhoso,
obrigando-se assim a incorporar a cronologia histórica dos fatos, a utilizar
a instância de enunciação narrativa, a manter o afastamento temporal com
a narração em pessoa e a impedir a participação do narrador no mundo
narrado. a epopéia moderna, centrando o relato na dimensão mítica da
matéria épica, estrutura-se do plano maravilhoso para o histórico,
liberando-se assim da cronologia histórica dos fatos pela incorporação da
atemporalidade do mito, utilizando da instância da enunciação lírica,
rompendo o afastamento com a narração na pessoa, e permitindo a
participação do narrador no mundo narrado (SILVA, 1987, p. 17-18).
A toda essa abordagem teórico-metodológica acrescenta-se ainda a dinâmica
das inter-relações pessoais, que prenhe de um subjetivismo crítico-social, permite que cada
um de nós atribua sua própria versão aos fatos e à vida, mediante experiências particulares
e a formação que se tenha acumulado ao longo dos tempos. Diante disso, é expectativa
aguardar que o poeta da epopéia contemporânea, indivíduo singular em múltiplos aspectos,
vislumbre a escritura de um texto retilíneo e continuamente estático. A absorção de
informações e conhecimentos diversos, quando não a própria relativização das condições
de absorvê-los, atribui um tratamento específico às ocorrências cotidianas e fazem do
texto, seja ele poético ou não, ficcional ou não, um território demarcado pela
excepcionalidade do olhar e pela construção de novas condições de escrita e recepção da
linguagem literária.
A referência a zonas internas da estrutura biográfica de Mello Mourão
comprova a nítida correspondência entre os marcadores de sua existência particular e as
bases de sustentação da nação brasileira. Assim, é possível dizer por efeito alusivo que o
acompanhamento de sua ótica individual se nos mostra como método de compreensão dos
interstícios da coletividade, já que suas experiências se destacam como metonímia do
grupo que o mesmo representa. De tal maneira, a atitude de lembrar ou esquecer, o
descarte ou a escolha de episódios relacionados a suas memórias somam-se ao
empreendimento de ficções fundamentalmente suas e redefinem as estratégias de fundação
da terra brasilis que, agora, se centra na visão particularizada do poeta. Por assim dizer, o
florescimento de imaginários que empreende o movimento contínuo do duplo lembrança-
esquecimento nos versos de Invenção do mar também potencializa a dissolução dos
110
traumas impostos pela colonização lusitana e confirma o aparecimento pacífico”, quando
não fantasioso, das imagens que levam a cabo a construção simbólica do Brasil:
Todas as mudanças profundas na consciência, pela sua própria natureza,
trazem consigo amnésias típicas. Desses esquecimentos, em
circunstâncias históricas específicas, nascem as narrativas. Depois de
passar por transformações emocionais e fisiológicas da puberdade, é
impossível “lembrar” a consciência da infância. [...] Como não existe um
criador original da nação, sua biografia nunca pode ser escrita de uma
forma evangélica, “avançando no tempo” ao longo de uma cadeia
generacionista de procriações. A única alternativa é moldá-la “recuando
no tempo” – até o homem de Pequim, o homem de Java, o rei Artur, onde
quer que a lâmpada da arqueologia lance a sua luz oscilante. Essa
modelagem, porém, é marcada por mortes que, numa curiosa inversão da
genealogia convencional, começam num presente originário
(ANDERSON, 2008, p. 278-280).
Logo, quem se proponha a compreender os principais aspectos do empenho
fundacional assumido por Invenção do mar deve considerar a abordagem das cenas de
fundação dispostas no corpo do poema e deter-se, antes de tudo, na existência anterior de
prodigiosas figuras humanas e literárias que conduzem a criação do Brasil. Dessa maneira,
tanto o poeta, criador de mundos, de sonhos e de epifanias como o público leitor, contam
com um ponto de referência externo, seja na literatura, seja em outros setores da vida
cultural, que – sem prejuízo para a unidade estética do poema – ajuda a construir o mito da
nação brasileira e perceber o sentido transcendente alojado nessa construção. Diante disso,
devemos lembrar que o tratamento dado aos elementos étnicos (brancos, negros, índios
etc.) que compõem o mosaico cultural de nossa fundação aplica-se no sentido de
desconstruir qualquer noção de generalidade atribuída a tais caracteres. O caráter desses
perfis humanos, dilatado pela perspectiva estética do artista, é demasiadamente original e
absolutamente singular frente aos conceitos e descrições universais produzidos por
determinadas reflexões que, ao desviarem-se da personificação literária, produzem
imagens deformadas:
Éramos ali – reza a crônica – brasileiros,
tapuias, negros, mulatos, mamelucos, brancos
todas as gentes do Brasil e também portugueses
italianos e aprenderam dos naturais do país a
atravessar matas e cruzar brejos e subir morros
com rapidez e agilidade de jaguares do mato.
111
Na lâmina das espadads recurvas os soldados gregos
honravam uma inscrição antiga:
[...]
Dias Cardoso, o ensinador das táticas,
Ouviu a queixa e a raiva do ensinador holandês:
“de agora em diante vamos lutar dispersos como vós” –
“melhor para nós – emendou o mestre – pois, para
os holandeses lutarem dispersos, vão precisar de
um capitão para cada soldado; para nós é fácil –
em nossa tropa cada soldado é um capitão”.
E dia e noite se ocuparam brasileiros e holandas
na ocupação da batalha
a derrota do invasor foi desastrosa e terrível
e a fuga era um espanto e um temor
a morte nos calcanhares deles – o relatório de Vam Goch
“nossas tropas coneçaram a fugir em confusão
em direção ora ao mato ora ao rio e sempre
em direção à morte”.
(IM, 1997. p. 322-324)
Como se lê, a elaboração do poema se com base na tomada de cenas e
elementos que estão ao dispor do grande público, mas que uma vez recuperados pela
linguagem literária aparecem carregados de um significado transcendente e ideológico.
Sendo assim, a luta dos portugueses contra a invasão holandesa, ademais de revelar o
diálogo com Pe. Antonio Vieira (O Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal
contra as de Holanda) e representar um momento decisivo para a concepção geográfica do
que hoje se entende por nação brasileira, também significa para Invenção do mar o
cumprimento regular de alguns princípios fundamentais à feitura da poesia épica, a
exemplo do nítido engrandecimento dos heróis recorridos em face da minimização da força
de seus adversários.
Tal empreendimento agrupa elementos essenciais verdadeiros arquétipos do
ato fundacional – para a construção e o encaminhamento das visões de mundo relacionadas
ao nascimento, à morte e à própria natureza inventiva das palavras e das coisas. Nesses
termos, ainda que a fragmentação de conceitos e o esvaziamento de verdades
(experimentados pelo sujeito contemporâneo) tenham colocado em xeque a cristalização de
nossas identidades, é certo que, de algum modo, nossos olhos sempre se voltarão ao
passado, no sentido de extrair daí a galeria de cenas que compõem a história nacional e
ressignificar alguns eventos capazes de recuperar e atualizar nossa fundação, que se altera
e se amplia a cada novo fenômeno, a cada nova mirada, a cada novo objeto:
112
[...]
Ali jaz a memória
ali jaz a invenção da Patria brasileira
ali o barro foi amassado em sangue
e Franscisco Barreto de Menezes desse barro
e das pedras e areias das ribeiras amassou a argamassa
e os mestres-de-armas se fizeram mestres-de-obras
e os guerreiros que riscaram os mapas do campo de
[batalha
riscaram as linhas do primeiro e mais belo santuário barroco
e ergueram nas cotas gêmeas do Morro de Outeiro,
celebração de seus heróis
de seus anjos e santos combatentes, de seu Deus,
a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Guararapes.
(IM, 1997, p. 327)
Se para nós os nomes evocados pelo poeta o entes familiares, as figuras
acessórias que os acompanham e se relacionam com eles, e o cenário sobre o qual se
movimentam estão longe de nossa própria existência. Se trata de um mundo histórico
extendido, ao qual somente a leitura nos presta acesso; de umas figuras pertencentes a
complexos sociais completamente dissolvidos por nossas memórias, mas que uma vez
recuperados pela linguagem literária enquadram-se à nossa contemporaneidade. Portanto,
mesmo que os problemas práticos descritos no poema e os conflitos de ordem política,
histórica e social não nos angustiem, no tempo presente, é certo que eles amplificam as
tensões e os fenômenos de nossas relações antropológicas e instauram a criação de outra
esfera cuja dispersão cronológica nos permite penetrar o espaço fabuloso das origens e
visitar o topos sagrado de nossa existência, a fim de conhcê-la e reinventá-la por inúmeras
vezes. E se todos nós, humanos, somos mesmo fundadores, é indiscutível que os versos de
Invenção do mar promovem a reinvenção de nossas origens e fundam novamente o Brasil,
mas não o Brasil da vez primeira, e sim outra terra que existe apenas no imaginário de
quem a canta, e quando exteriorizada por quem a canta. Afinal, ela não pode ser
simplesmente uma exteriorização individual de determinadas interioridades, e sim o
resultado da exteriorização amplificada de interioridades coletivas (memória).
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando o vento se deslocar
sobre o vento
na terra forte,
os homens serão setas no tempo.
O tempo destila o tempo.
(Carlos Nejar, 1997)
O aparecimento de uma poesia que dialogue com os grandes clássicos da
escritura épica e, ao mesmo tempo, esteja afinada com os principais fenômenos sociais,
históricos, políticos e culturais de nossa contemporaneidade constitui por si mesmo um
campo discursivo de absoluta complexidade. A justaposição de reflexões que aproximam
tradição e modernidade significa, por assim dizer, a instauração de novas teorias e novos
conceitos, que, pensados sob o influxo da confluência de linguagens que determina as
relações e as atitudes do sujeito contemporâneo, impõem outro ritmo às antigas formas de
explicar e conceber o mundo (SILVA, 1987). Nesse aspecto, a tomada de Invenção do
mar, obra do escritor cearense Gerardo Mello Mourão, como ponto central para nossas
discussões sobre a atualização do gênero épico e a inserção de diferentes caracteres para
sua configuração, representa, pois, a distribuição de cadeias argumentativas que nos façam
pensar a respeito da expressão, das fontes e das influências do sentimento poético
brasileiro e a inovação quanto às estratégias para sua realização.
Naturalmente que a feitura de um épico contemporâneo nos obriga a refletir
sobre suas condições de produção e sobre os diálogos empreendidos pela ação dialógica
que sua construção demanda. A associação de elementos clássicos, sejam eles estilísticos
ou funcionais, além do objetivo central de cantar os mitos, as histórias, as lendas e os
heróis que capitanearam a invenção do Brasil, desde seu achamentono século XVI até o
desenvolvimento de suas principais transformações históricas e culturais nos séculos
subseqüentes, representam para o poema o descortinamento de episódios fundamentais à
relação de Brasil e Portugal e a reflexão sobre as estruturas externas e internas da
linguagem literária que se dilatam e se transformam a cada novo fenômeno antropológico.
Neste caso, é certo afirmar que a observação classificatória das principais
categorias textuais tem sofrido alterações de ordem estilística, temática e funcional desde o
114
seu nascedouro Grécia Antiga até nossa contemporaneidade, quando a fusão de
conceitos e fenômenos tem se destacado enquanto marca representativa das relações
interpessoais que se transformam e se redimensionam, à medida que novos objetos e novas
circunstâncias reordenam os caminhos traçados por nossos ancestrais. Logo, a clássica
tripartição dos gêneros literários em lírico, épico e dramático tem cedido espaço para o
surgimento de novas estratégias de compreensão da linguagem literária (BAKHTIN,
2003).
Em tempos de fragmentação de identidades e de construção de redes de
comunicação que agenciam o encontro de culturas e pensares – antes separados pelo
distanciamento geográfico ou pela divergência humana de modos e costumes –, é possível
dizer que a manutenção da linha de isolamento que separa cada um dos gêneros constitui
um desafio quase inalcançável (BAZERMAN & DIONISIO, 2006). Nesses termos, a
importância de Invenção do mar justifica-se por sua riqueza temática, histórica e humana,
mas também por sua empreitada épico-lírica que põe lado a lado Apolo e Dionísio na
perspectiva de imprimir diferentes contornos à cena da literatura brasileira, em nossa
contemporaneidade.
O desafio de descortinar os principais episódios da história brasileira e refazer
o caminho dos portugueses durante a colonização, e também de outros tantos povos que
deixaram suas marcas na formação étnica e cultural do Brasil, afirma-se enquanto ponto de
partida para o jogo de influências proposto pelo poema de Mello Mourão. A lida com a
matéria histórica, associada a alguns eventos relacionados à trajetória de vida do poeta
constituem, portanto, a chave principal para a consolidação de uma poética erigida
mediante o objetivo de agenciar a invenção histórica e simbólica da nação brasileira
(SOUZA, 2007).
A construção dos heróis que levaram a cabo o projeto fundacional da terra
brasilis, e que ainda seguem fazendo-o que a nação tem sua existência enquanto tal
diretamente atrelada ao revigoramento dos mitos e homens que mantém vivo o mito
fundador que nos une –, e a abordagem dilatada de seus feitos e conquistas convertem-se,
nessa medida, em estratégia de aproximação entre o pretérito e o presente, apontando para
o desenvolvimento de novos planos sobre os quais o sujeito contemporâneo se movimente
sob o influxo de sua história fundamentalmente transformacional (CHAUÍ, 2000).
Em festa, a poesia elaborada por Mello Mourão e suas múltiplas formas de
encadeamento promovem o encontro de categorias discursivas apartadas durante muito
115
tempo pela distribuição classificatória do olhar aristotélico. Afinal de contas, não devemos
desprezar a heterogeneidade dessas categorias e a dificuldade quanto à definição da
natureza particular dos próprios enunciados, que em algum momento eles podem revelar
um ponto comum de desenvolvimento, emissão ou recepção. Não obstante, há de se
destacar a diferença habitual entre os gêneros épico e lírico, mas também devemos chamar
a atenção para a possibilidade de que estes absorvam aqueles, ou aqueles se acoplem a
estes, dado às circunstâncias em que são produzidos e sistematizados (STAIGER, 1993).
Dessa forma, se o poeta cearense se coloca em uma posição contrária àquela
assumida pelos modernistas paulistas do primeiro quartel do culo XX, no Brasil, que
em seus versos a visão radiosa de um mundo “novo”, “misterioso” e “inexplorado” aparece
entrecortada pela aceitação pacíficadas idéias inspiradoras da poesia épica, representada
por Homero, Virgílio e Camões, e também dos moldes em que ela se encerra, é possível
dizer, de certo modo, que o nacionalismo evocado por Invenção do mar prescinde da
necessidade de se romper radicalmente com os laços que nos mantém atrelados, desde o
nascimento, à velhaEuropa. Sendo assim, o poema não se aplica à busca de inocentes
e “culpados” nem à divisão rotulada de “maus colonizadores” e “bons colonizados”.
O que lemos em seus versos é a tomada aproximativa entre prosa e poesia, que,
a serviço de um sentimento de brasilidade, descarta a articulação de conflitos entre pólos
opostos representados por colônia e metrópole. A nação imaginada por Mello Mourão se
configura a partir da tensão subsidiada pela relação entre Brasil e Portugal e dos
fragmentos épico-líricos emitidos pela ação dos sujeitos que inventam a gente brasileira, de
forma contínua, em seus múltiplos aspectos.
Assim, pois, é importante mencionar que a apropriação de elementos ficcionais
pela estrutura interna do poema ou a livre associação do binômio imaginação-realidade
harmonizam-se entre si e asseguram a invenção simbólica do Brasil. Desse modo, a ficção
vai alterando, aos poucos, aquilo que foi vivido pelos heróis da pátria ao passo que o real
histórico estetizado no poema vê-se modificado pelas excentricidades e fantasias do
próprio poeta que justapõe sua experiência empírica a um viver eminentemente coletivo.
Tal emaranhado de fios reforça a complexidade estética de Invenção do mar
cujos aspectos históricos e estilísticos traduzem substancialmente a alteração de eixos
comportamentais de nossa sociedade e promovem o reordenamento dos objetos que
conduzem a dinâmica de nossas relações sociais.
116
A empreitada de Mello Mourão em tomar as coisas pela raiz e entender o
próprio homem como resultado direto de sua consciência prática e real com a linguagem
transforma as premissas sobre as quais se apóiam a cultura brasileira e seus modos de
expressividade em canais de emissão e recepção dos fenômenos históricos, sociais e
políticos que determinam a afirmação do sentir nacional. Nesse caso, por estabelecer uma
nítida conexão entre o legado deixado pela tradição e os caracteres da linguagem literária,
então produzida no Brasil, não podemos dizer que Invenção do mar se afirme enquanto
instrumento de ratificação das formas cultas e convencionais de arte, ou que em contrário a
isso, o poema se proponha a interrogar o contributo literário instituído pelos clássicos.
A fusão de elementos da cultura popular e da erudita, além da percepção de
que o Brasil e sua multiplicidade cultural, desde suas variadas culturas autóctones até as
manifestações negra e portuguesa estão imbuídos de uma complexidade identitária
inquestionável, aplicam-se à produção de um poema profundo, analítico, grandiloqüente e
provocador. Sendo assim, a proposta de carnavalização edificada pelo poeta reflete, de
alguma maneira, a feitura de uma poesia iconoclasta pautada fundamentalmente na
alegorização de elementos locais e na apresentação de um universo sem fronteiras sobre o
qual a montagem descontínua de relatos, lendas e cenas destaca-se como forma de
representar o simultaneísmo de imagens que determina o texto literário e a vida humana.
Portanto, em virtude do caráter inauguralassumido por esse trabalho que
a obra de Gerardo Mello Mourão mantém-se, ainda, desconhecida do grande público e dos
centros de pesquisa e investigação, no Brasil, devemos registrar que nossas atividades de
leitura, interpretação, comparação, busca de dados e análise afirmam-se como instrumentos
de aproximação e reconhecimento de uma escrita cuja densidade estética e humana exerce
raro poder de estranhamento e fascínio para com o leitor. Nossas hipóteses, constatações,
inferências e questionamentos (alguns deles ainda latentes) confundem-se, nesse caso, com
a idéia de que a atitude da invenção é absolutamente própria da natureza humana, e por
isso acompanha deliberadamente suas transformações, conflitos e tensões. E se inventar é
mesmo a melhor maneira de conhecer-se e, tão logo, desconhecer-se conforme atesta o
poeta de Invenção do mar: “e o gemido da gênese e o clamor da aurora / nas agonias da
inauguração / sacudiam as copas das árvores / estremeciam as raízes das árvores / e a terra
se rachava ao sol do equador” (IM, 1997, p. 145), encerramos nossas reflexões com a
certeza de que a unidade significativa chamada Brasil seguirá suscitando outras tantas
117
invenções que, uma vez mais, colocarão em evidência sua multiplicidade de vidas,
histórias, práticas e costumes florescidos diante de nossos olhos.
118
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