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GABRIELA LOPES SALDANHA
GERAÇÃO ÁRIDO MOVIE:
O Cinema Cosmopolita dos Anos Noventa em
Pernambuco
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Multimeios do
Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas, para obtenção do
Título de Mestre em Multimeios
Orientador: Prof. Dr. Nuno Cesar Pereira
de Abreu.
CAMPINAS
2009
iii
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Saldanha, Gabriela Lopes.
Sa31g Geração Árido Movie: o cinema cosmopolita dos anos
noventa em Pernambuco. / Gabriela Lopes Saldanha.
Campinas, SP: [s.n.], 2009.
Orientador: Prof. Dr. Nuno Cesar Pereira de Abreu.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Artes.
1. Teoria do cinema. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema
pernambucano. I. Abreu, Nuno Cesar Pereira de. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III.
Título.
(em/ia)
Título em inglês: “Árido Movie Generation: the cosmopolitan cinema of
the nineties in Pernambuco”.
Palavras-chave em inglês (Keywords) : Cinema theory ; Brazilian
cinema ; Pernambuco cinema.
Titulação: Mestre em Multimeios.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Nuno Cesar Pereira de Abreu.
Prof. Dr. Antonio Fernando da Conceição Passos.
Prof. Dr. Alexandre Figueirôa Ferreira.
Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos (suplente).
Profª. Dra. Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo (suplente).
Data da Defesa: 21-08-2009
Programa de Pós-Graduação: Multimeios.
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v
Dedico este trabalho
Aos jovens dos anos 80, Leila e Leo, pela
liberdade d(e) criação.
À cidade do Recife, um retorno das
imagens que nela conheci.
vii
Agradecimentos
À Leila, mãe e parceira de todas as jornadas.
Ao meu pai, Leo, por fazer de Campinas novamente uma casa.
A todos os amigos e amigas que colaboraram na realização deste
trabalho.
Em especial, meus avós, em Pernambuco, e em Minas Gerais.
À Salete Maldonado, Fátima Guerra, Mônica Souza, Maria Clara Di Pierro
e Aparecida Neri de Souza.
Aos professores da UNICAP, pelo incentivo e colaboração nos primeiros
passos para a pós-graduação.
Aos entrevistados, pela generosidade.
Ao Prof. Dr. Nuno Cesar Abreu, por acreditar no trabalho e me receber
como orientanda na UNICAMP.
À Capes, por financiar parte deste trabalho.
ix
“O que o inconsciente comunica ao consciente em termos de
símbolos na experiência individual do sonho pode ser
comentado pelo cinema como experiência coletiva”.
Glauber Rocha. Roma, Fevereiro de 1973.
xi
Resumo
Com um cenário tão diverso, o Estado de Pernambuco construiu, ao longo
da década de noventa e 2000, um verdadeiro pólo criativo de cinema. Isto foi
possível devido a uma rica herança cultural, às políticas de incentivo federais e
estaduais, a equipamentos cada vez mais baratos e portáteis, além do estímulo
nacional que ecoou em vários Estados brasileiros na fase de Retomada do cinema
nacional. A partir dos filmes Baile Perfumado (1997), O Rap do Pequeno Príncipe
Contra as Almas Sebosas (2000), Amarelo Manga (2003), Cinema, Aspirinas e
Urubus (2005), Árido Movie (2006), Baixio das Bestas (2007) e Deserto Feliz (2008),
a pesquisa descreve o que torna a realização cinematográfica no Estado tão
profícua e que acabou criando uma marca para a geração, intitulada Árido Movie.
Palavras-chaves: Teoria do Cinema; Cinema Brasileiro; Cinema Pernambucano.
xiii
Abstract
With so diverse scenery, the state of Pernambuco built, along the nineties
and two thousands a truly creative polo of movies. That was possible due to a rich
cultural heritage, of federal and statue policies of inducement, of cheaper and more
portable equipment, besides the national stimulant that echoed over the several
Brazilian states in the phase of national cinema reborn. From the movies Baile
Perfumado (1997), O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000),
Amarelo Manga (2003), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Árido Movie (2006),
Baixio das Bestas (2007) e Deserto Feliz (2008), the research describes what turns
the movie realization in the state so profitable and that it ends creating a brand for
the generation, entitled Árido Movie.
Key Words: Cinema Theory; Brazilian Cinema; Pernambucano Cinema.
xv
SUMÁRIO
INTRODUÇÂO..........................................................................................01
CAPÍTULO 1 – O cinema em Pernambuco pós-60................................07
1.1. O Super 8 (geração anos setenta)....................................................07
1.2. Árido Movie (geração anos oitenta) .................................................10
1.3. Pós-Árido (geração anos noventa)...................................................27
CAPÍTULO 2 – Sete longas-metragens de sucesso?...........................31
2.1 Baile Perfumado...............................................................................31
2.2. O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas..................38
2.3. Amarelo Manga................................................................................44
2.4. Cinema, Aspirinas e Urubus.............................................................49
2.5. Árido Movie.......................................................................................55
2.6. Baixio das Bestas.............................................................................63
2.7. Deserto Feliz.....................................................................................70
CAPÍTULO 3 – Do experimental ao profissional: 12 anos de Árido
Movie (1997–2008)...................................................................................79
3.1. Baile Perfumado: uma escola autodidata.........................................84
3.2. O documentário e a fabulação em Paulo Caldas.............................87
3.3. A poética em Marcelo Gomes...........................................................91
3.4. Quando o filme passa a se chamar Árido Movie..............................93
3.5. A unidade em Hilton Lacerda............................................................96
3.6. O caso Cláudio Assis........................................................................98
xvii
CAPÍTULO 4 – Uma estética e/ou uma linguagem Árido Movie......103
4.1. O contexto Manguebeat..............................................................103
4.2. Árido Movie, um rótulo questionável............................................110
4.3. Em breve nos cinemas................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................123
ANEXOS................................................................................................127
Anexo I – Relação de entrevistados......................................................127
Anexo II – Árido Movie – Uma marca sem futuro..................................129
Anexo III – Fichas Técnicas...................................................................133
xix
Introdução
Este trabalho apresenta a geração de cineastas profissionais dos anos
noventa, em Pernambuco, denominada Árido Movie. O objetivo é discutir a produção
cinematográfica que compreende os anos de 1997 até 2008, e que teve como
resultado a realização de sete longas-metragens premiados no circuito nacional e
internacional de cinema, após um período de quase vinte anos sem o lançamento de
um filme em longa-metragem no Estado.
Para isso, a pesquisa concentra a análise em dois eixos: histórico e
analítico. Buscamos reconstruir o contexto que envolve a geração apresentada a
partir dos realizadores: Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes
e Paulo Caldas, que se destacaram no cenário local por conseguirem imprimir
autoria com uma lógica de produção executada dentro do Estado. O esforço coletivo
inicial no projeto Baile perfumado, lançado em 1997, abriu as portas criativas para
uma seqüência de filmes independentes.
No processo analítico, foram selecionados os longas-metragens Baile
Perfumado (1997), O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000),
Amarelo Manga (2003), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Árido Movie (2006),
Baixio das Bestas (2007), e Deserto Feliz (2008) como expoentes destes
realizadores, no que concernem as questões pertinentes sob o ponto de vista
técnico e narrativo da teoria do cinema.
O frutífero cenário que se apresenta compreende um período de 12 anos.
Neste sentido, buscamos investigar também as relações que possibilitam identificar
o recente capítulo da história do cinema pernambucano como um novo ciclo
cinematográfico regional. Ao adotarmos os filmes e os realizadores como parte em
comum de um sistema de produção, verificamos em que medida os direcionamentos
estéticos se sobressaem e refletem uma vanguarda artística.
Para pensar sobre isso, é preciso destacar que o caso do cinema
pernambucano contemporâneo aconteceu inserido em circunstâncias nacionais de
mudança de paradigmas. Devido ao período de retração da produção do cinema
1
brasileiro com a política de cultura adotada pelo Governo Collor, o Estado de
Pernambuco, através do seu pólo realizador, Recife, amargou um jejum improdutivo
devido à falta de recursos, incentivos e profissionais que pudessem capacitar os
interessados na atividade cinematográfica, que não existia na cidade formação
superior ou mesmo técnica na área.
Com a mudança de Governo no início dos anos de 1990 e a adoção de
políticas públicas de incentivo à cultura, como a criação de editais, concursos e Leis
Federais e Estaduais na área audiovisual, o cinema nacional entrava em 1995, com
o lançamento do filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, da diretora e atriz
carioca Carla Camuratti, em um renovado fôlego produtivo chamado de ciclo da
Retomada. Atrelado a isso, no cenário local, a geração dos jovens aspirantes a
cineastas dos anos oitenta, havia se transformado, em geral, em jornalistas que
atuavam no campo do cinema, por meio do exercício do curta-metragem.
Em 2003, o cinema nacional viveu o auge de um ciclo de sucesso iniciado
na segunda metade dos anos noventa e revigorado em 2001 com a Medida
Provisória 2.228, que criou a Agência Nacional de Cinema (Ancine). No primeiro ano
do governo Lula, os 29 filmes nacionais lançados no circuito de exibição foram vistos
por quase 22 milhões de espectadores, o que gerou uma receita de US$ 50 milhões
e a conquista de 21% do mercado.
Segundo o então titular da Secretaria do Audiovisual, José Álvaro Moisés,
entre 1995 e 2001, o país produziu 167 longas-metragens, contra menos de
30 nos primeiros anos da década anterior. Estendendo-se a contabilidade
até o final de 2002, chega-se ao número aproximado de 200 longas-
metragens feitos e lançados durante o período da Retomada (MOISES
2002, apud ORICCHIO, 2003, p.27).
Entre 2003 e 2004, os filmes pernambucanos haviam surpreendido
plateias em festivais com a qualidade de suas produções, entrando em 2005,
definitivamente no mercado profissional internacional com o lançamento de Cinema,
Aspirinas e Urubus, do cineasta Marcelo Gomes, considerado nesta pesquisa como
o marco divisor entre a realização experimental e profissional deste cinema regional.
2
Neste mesmo ano, o ciclo nacional completou 10 anos com um saldo positivo em
relação à década anterior, comparando-se quantidade de realizações, diversidade
regional e aumento do número de espectadores.
Com relação à temática, não se pode negar que, em sua grande parte,
estes filmes possuem a busca pela reflexão de uma identidade nacional, ainda
desencontrada em meio às reviravoltas econômicas e às contradições sociais.
Afinal, se os filmes refletem a imagem do país, a cada ciclo é possível enxergar o
exercício de superação, renovando as possibilidades desta identidade ainda em
construção.
Para explicar o cinema que estava sendo feito em Pernambuco no final
dos anos de 1990, é necessário recorrer à proximidade da relação que existia entre
música e cinema naquele momento. Recife vivia o ápice do movimento Manguebeat
que servia como colaborador e incentivador da tendência cinematográfica intitulada
Árido Movie, assim batizada por Amin Stepple, cineasta e jornalista que participou
do Movimento Super 8 pernambucano. O ambiente artístico gerado entre música e
cinema havia criado um circuito de retroalimentação, na medida em que a música se
beneficiava do cinema, utilizando-o como veículo de divulgação de trabalho. Neste
aspecto inclui a composição de trilhas sonoras para tais filmes a convite dos
cineastas. E para o cinema, a alimentação vinha através do gancho midiático
permitido com o nome Manguebeat ao adotar temáticas que retratassem a cultura
popular pernambucana contemporânea. Ambas as manifestações criaram os seus
respectivos “manifestos”
1
para demarcar seus territórios.
No entanto, é preciso justificar que o cinema se tornou independente e
manteve continuidade mesmo com a chegada de novas gerações, enquanto a
música, com o trágico acidente do ideólogo do movimento Manguebeat, Chico
Science, em 1997, teve de lutar para não perder o espaço no mercado fonográfico
de projeção nacional e internacional alcançado até então.
1
O manifesto do Manguebeat foi intitulado “Caranguejos comrebro”, escrito em 1992 pelo jornalista
e músico Fred04. o Árido Movie não teve um manifesto oficial, no entanto, a matéria publicada na Revista
Continente Multicultural, em abril de 2001, Árido Movie uma marca sem futuro”, escrita pelo jornalista e
cineasta Amin Stepple, funcionou como um texto sistematizador do que deveria ser o Árido Movie, enquanto
movimento cinematográfico, em paralelo ao movimento musical Manguebeat. Matéria disponível no Anexo II.
3
Durante o percurso de todo o trabalho, ao abordar os marcos históricos e
as análises dos filmes, faremos referências à música como parte indispensável
deste cenário cultural pernambucano, mas não estamos propondo, por meio desta
pesquisa, ter como foco a relação entre música e cinema.
Portanto, iremos detalhar o contexto do Manguebeat no último
capítulo, pois tem como foco uma análise do termo Árido Movie, com relação às
conotações estéticas, como movimento, ciclo, ideologia, mística, marca ou qualquer
delimitador para a geração trabalhada, assim como foram as proposições adotadas
no Manguebeat, enquanto parte de uma cena cultural urbana.
Neste cenário metropolitano dos anos de 1990, encontramos a questão
do estrangeirismo como forte influenciador e sintonizador de tendências ao longo da
história da cultura pernambucana. O guia literário poético, escrito por Gilberto
Freyre, em 1934 Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife
relançado em 2007, com textos do historiador Antônio Paulo Rezende, destaca o
caráter cosmopolita da região e ilustra imageticamente esta questão como precioso
subsídio.
O Recife é uma cidade que sempre conviveu com o cosmopolitismo. Sua
abertura para o mar alargava horizontes, seu movimentado porto recebia
muitos estrangeiros. Mesmo nos tempos iniciais da colonização portuguesa
a cidade recebia muitos visitantes, alguns interessados em aqui permanecer
ou apenas em realizar negócios lucrativos e voltar para suas terras. O
Recife cresceu como pólo importante de atividades comerciais da região e
continua até hoje favorecendo a constante presença de pessoas de fora
atraindo convivências culturais marcadas pela diversidade. Constroem-se
sintonias com o mundo, a cidade não fica adormecida na sua própria
história (REZENDE, in: FREYRE, 2007, p. 41).
Neste sentido, o distanciamento do local estudado foi imprescindível para
reflexão e observação de um centro de produção cinematográfica ativo, envolto em
uma cultura popular rica e dinâmica, permeado por diversas gerações em atividade
neste momento. Para compor a fundamentação teórica, as entrevistas com os
principais representantes desta geração serviram como fonte primordial na
4
construção deste trabalho, pois compõem o referencial teórico ainda escasso para
refletir o recente período em questão. A compreensão por parte de quem vive esta
efervescência in loco nem sempre se traduz em progresso, devido às dificuldades de
financiamento, realização e distribuição.
Com relação à estrutura do trabalho, no primeiro capítulo resgatamos a
história do cinema pernambucano, após os anos de 1960, como forma de mapear as
gerações que se seguiram até os anos de 1990. o segundo capítulo é dedicado a
análise fílmica dos sete longas-metragens selecionados. Para, em seguida, no
terceiro capítulo nos debruçarmos sobre cada um dos cinco realizadores
especificamente no percurso percorrido entre a produção experimental até o modo
de produção profissional, enfocando os aspectos criativos pertinentes a cada um
deles. E finalmente, no quarto capítulo, anteriormente citado, trataremos da
discussão sobre o Árido Movie como expressão, de acordo com a visão dos
entrevistados. Apresentaremos também a geração dos anos 2000 que, ao entrar
no circuito cinematográfico profissional, em nada, do ponto de vista temático e
estético, dialoga com a geração Árido Movie.
Com isso, esperamos contribuir com a descrição de um campo de
produção cinematográfica regional particular, com o caso do Estado de
Pernambuco, capaz de abrigar uma variedade criativa dotada de liberdade estética a
se estender pelas próximas gerações.
5
Capítulo 1. O cinema em Pernambuco pós-60
A história do cinema pernambucano sempre foi marcada por ciclos de
produções efervescentes nos meios intelectuais e até mesmo populares, com início
no começo do século XX, quase simultaneamente à criação do próprio cinema.
Primeiro surgiu o Ciclo do Recife
2
na década de vinte, em seguida, na década de
quarenta tem início um novo levante com o cinema falado, mas com o Ciclo do
Super 8, nos anos de 1970, as produções voltam a crescer. Nos anos de 1980 e
1990 encontramos um cenário diversificado, marcado pela produção de curtas-
metragens, mas não tão produtivo como os anteriores, seria o aquecimento para um
novo ciclo que veio surgir oficialmente em 1997 com o lançamento do filme Baile
Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, dentro do período de Retomada do
cinema nacional.
1.1.O Super 8 (geração anos setenta)
Para situar o debate dos anos de 1990, identificamos na geração de
setenta, algumas importantes produções que influenciariam o início da atividade
profissional das próximas gerações. Dois jornalistas da geração de sessenta, Celso
Marconi e Fernando Spencer, foram os primeiros a usar a bitola do Super 8 como
atividade profissional. Além disso, acumulavam a função de críticos de arte no Jornal
do Commercio e Diario de Pernambuco, respectivamente, no Recife.
Com este começo da popularização dos equipamentos cinematográficos,
outros jovens estudantes de Jornalismo, intensificaram a experimentação do cinema
com pequenos filmes. São eles: os jornalistas da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP) Geneton Moraes Neto, Paulo Cunha e Amin Stepple; o
artista plástico Paulo Bruscky e o poeta Jomard Muniz de Brito.
2
Ver sobre o Ciclo do Recife em Relembrando o Cinema Pernambucano, 2006, escrito por Paulo
Cunha. O pesquisador enfoca o período de 1923 a 1931, principalmente os mais de 50 artigos escritos por Jota
Soares sobre o cinema da década de vinte. Ver também em Cinema Pernambucano: uma história em ciclos,
2000, escrito por Alexandre Figueirôa.
7
Um marco para a década de setenta foi a realização da II Jornada
Nordestina de Curta-Metragem de Salvador, em 1973. A mobilização pernambucana
foi intensa para o Festival, inscrevendo 11 filmes, sendo a segunda maior
participação. Deste total sete foram selecionados para a mostra competitiva e os
outros quatro foram exibidos dentro da grade da programação. O filme
pernambucano Missa do Vaqueiro (1973), do diretor paraibano Hugo Caldas foi
premiado com o segundo lugar. O pesquisador Alexandre Figueirôa, atenta para a
importância do encontro.
A participação na Jornada representou um grande estímulo para os
realizadores. Naquele ano, eles passaram a tomar contato com as grandes
questões do cinema em que se incluía a crescente produção alternativa com
o Super 8 por todo o País. Foi na Jornada que se criou a Associação
Brasileira de Documentaristas, primeiro passo para a elaboração de uma
legislação de mercado para o curta-metragem brasileiro, e onde se iniciou o
processo de aceitação do Super 8 como um veículo legítimo da arte
cinematográfica (FIGUEIRÔA, 2006, p. 51).
Paralelo ao Ciclo do Super 8, no Recife, o cenário nacional vivia o fim do
Cinema Novo e a força do Cinema Marginal. Sobre as relações entre o Cinema
Novo, movimento tão profícuo para o período, e o cinema pernambucano,
destacamos alguns fatores que os distanciavam. Em entrevista de Celso Marconi
para Alexandre Figueirôa:
Para Celso Marconi, o que ocorreu no Recife como movimento era o fato de
as pessoas fazerem Super 8 tentando recuperar as propostas do Cinema
Novo com a produção voltada para um cinema de expressão da cultura
local. Porém, é preciso ressaltar que, embora Glauber Rocha fosse citado
com freqüência e bastante admirado pelos superoitistas, o Super 8 local não
se engajou em um projeto estético e ideológico da dimensão do Cinema
Novo. Para o grupo de cineastas independentes, como Jomard Muniz de
Brito, Geneton Moraes Neto e Amin Stepple, não houve movimento.
Segundo eles, a condição básica para a existência de um seria a
consciência de um conjunto de idéias em comum, ou em conflito,
juntamente com o debate a partir desses atritos e aproximações, mais isso
não existia. Não havia uniformidade de temática na produção de filmes
Super 8 que configurasse realmente a existência de um movimento cultural
(FIGUEIROA, 2006, p. 67).
8
De todo modo, o ciclo do Super 8 pôde ser caracterizado muito mais
como um movimento de cinema amador, porém deixou sua marca ao longo de 11
anos de existência, podendo ser datado de 1973 e 1983, quando conseguiu produzir
e reunir cerca de 200 filmes.
Um capítulo interessante na história do ciclo do Super 8, em Pernambuco,
se deve à formação do Grupo 8, em 1977, por todos os interessados e realizadores
da bitola no Estado. O Grupo foi presidido pelo jornalista e cineasta Fernando
Spencer que conseguiu realizar, entre outras iniciativas, o “Festival de Cinema do
Super 8 do Recife” por três anos, de 1977 a 1979, sempre no mês de novembro. Em
1978, o Grupo contou com a promoção da Embrafilme e do então Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais para promover o Festival, adquirindo respaldo para o
conflito travado com a Kodak pela profissionalização da atividade cinematográfica
com o fornecimento de materiais de insumo.
O fim do Super 8 é marcado pelo filme Morte no Capibaribe, em 1983,
dirigido pelo então jovem estudante Paulo Caldas. Integrantes do Ciclo, como Amin
Stepple, Geneton Moraes Neto e Paulo Cunha, acabaram seguindo o caminho do
vídeo e foram trabalhar na Rede Globo Nordeste de Televisão. Na visão de Stepple,
a mudança acabou sendo uma transição profissional positiva, pois coincidia com o
processo de abertura política do país, logo de popularização da televisão brasileira.
Em depoimento para a pesquisa, Stepple relata:
Levamos nossa experiência para Globo, eu e Geneton, sobretudo. Eram
reportagens numa espécie de mix, tinha um pouco de tudo, misturava
jornalismo, linguagem superoitista, cinema de vanguarda e vídeo arte. Eram
trabalhos com 10, 12 minutos dentro da programação entre meio-dia e uma
hora.
3
A questão que se coloca, para além das contribuições historiográficas que
o Super 8 iria deixar às futuras gerações de amantes do cinema pernambucano, é a
promoção de uma atividade artística feita basicamente por um camada social
elitizada com acesso a essa nova e portátil tecnologia que surgia com o Super 8.
3
STEPPLE, Amin. Recife, 10 de setembro de 2008.
9
Assim resume Figueirôa: “A liberdade criativa do Super 8 deu sentido ao ócio dos
filhos da classe média” (FIGUEIROA, 1994, p.204).
A constatação é suficiente para entender a geração que se segue ao
Super 8, mais uma vez advinda do ambiente acadêmico dos cursos de Jornalismo
da região e ansiosa por movimentar o campo cinematográfico no Estado.
1.2. Árido Movie (geração anos oitenta)
O processo político que se seguiu nos anos oitenta até o Governo Collor
4
,
interrompido em 1992 através do impeachment, foi de recessão da produção
cinematográfica no Brasil. No campo da cultura, o Governo Collor instituiu uma
política que modificaria todo o trabalho desenvolvido ao longo dos quarenta anos
pelos Fóruns Nacionais de Secretários de Cultura. Além de destituir as principais
fundações de cultura do País - Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), Fundação
Nacional de Artes Cênicas (FUNDACEN), Fundação do Cinema Brasileiro (FCB),
Fundação Cultural Palmares (FCP), Pró-Memória, Pró-Leitura, Empresa Brasileira
de Filmes S/A (EMBRAFILME) extinguiu o Ministério da Cultura (MinC), revogou a
Lei Sarney e violou, através de decreto, a Lei do Direito Autoral. O MinC perdeu seu
status de ministério e retrocedeu à condição de Secretaria de Cultura.
No entanto, o panorama internacional dos anos noventa alcançava o auge
da Indústria Cultural. E o Brasil, então país de Terceiro Mundo, não poderia ficar de
fora, afinal, Collor foi eleito sob promessas de modernização, apostando na abertura
de mercados para o produto internacional, principalmente os eletrônicos.
Paralelo a este cenário, a chegada do vídeo cassete aos ambientes
domésticos, em meados dos anos de 1980, deu continuidade ao processo de
produção caseira das realizações em Pernambuco. A nova geração de jornalistas
4
O governo de Fernando Collor de Mello durou de 1990 até 1992. Collor foi o primeiro presidente
brasileiro eleito pelo voto direto, após o Regime Militar. Seu governo ficou conhecido pelo Plano Collor, medidas
econômicas de combate à inflação que utilizaram como artifício o confisco das poupanças e dos cofres públicos.
Além disso, promoveu a abertura de mercado nacional para os produtos importados. Em seguida a uma série de
escândalos envolvendo o Governo Collor, como o esquema PC, que, entre outras falcatruas escondiam a
sonegação de impostos, o desvio de verbas públicas e o monopólio de conglomerados de comunicação, Collor
foi deposto do cargo político por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e pela pressão popular, por meio
de impeachment, ou impugnação de mandato.
10
composta por Paulo Caldas e Lírio Ferreira, da UFPE, Hilton Lacerda, da UNICAP,
juntava-se aos estudantes de Economia Cláudio Assis e ao estudante de
Engenharia e Jornalismo, Marcelo Gomes, além de outros interessados na sétima
arte, em atividades promovidas por cineclubes, uma vez que não existia no Estado
nenhum curso profissional de Cinema. Aliás, não existia escola de cinema no
Nordeste. No Brasil dos anos de 1980, praticamente só três universidades ofereciam
o curso de graduação em Cinema, a Universidade de São Paulo (USP), a
Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade de Brasília (UNB).
A geração reunia-se principalmente no cineclube Jurando Vingar, fundado
em 1987, em funcionamento na Fundação Joaquim Nabuco, organizado pelos
interessados em cinema desta geração
5
. Outro local que agregou os interessados
em conhecer sobre a História do Cinema entre os anos oitenta e noventa foi a
residência do engenheiro Lula Cardoso Ayres Filho, um dos maiores colecionadores
de filmes mudos do Brasil
6
.
Apostando no exercício do Super 8, como escola cinematográfica, e no
vídeo, como meio de exibição barata, os então aspirantes a cineastas realizaram
diversos curtas-metragens, alguns como produções independentes, outros com a
colaboração dos colegas. A catalogação seguinte apresenta as principais
realizações até 1997, ano de lançamento do primeiro longa-metragem desta
geração, o filme Baile Perfumado:
Cláudio Assis: Nascimento 19/12/1959, Caruaru-PE.
1986 – Padre Henrique: Um Assassinato Político (curta-metragem/co-direção)
1993 – Soneto do Desmantelo Blues (curta-metragem/direção)
1993 – Samydarsh: Os Artistas de Rua (curta-metragem/co-direção)
5
O nome Jurando Vingar é uma homenagem à famosa película de Ari Severo, rodada em 1925
durante o Ciclo do Recife. O cineclube Jurando Vingar durou quatro anos, mas seu espaço se consolidou como o
futuro Cinema da Fundação, aberto em 1999, e que permanece como a grande sala de cinema de “arte” do
Recife.
6
O engenheiro possui cerca de três mil títulos a disposição dos interessados, na Cinemateca do
Instituto Lula Cardoso Ayres, criado em homenagem ao seu pai, o pintor Lula Cardoso Ayres, no bairro de
Piedade, em Jaboatão do Guararapes, cidade da Região Metropolitana do Recife.
11
1995 – Punk Rock Hardcore (curta-metragem/co-direção)
1995 – Maracatu, Maracatus (curta-metragem/assistente de direção, produção
executiva)
1996 – Curta o Cinema (curta-metragem/direção)
1997 – Baile Perfumado (longa-metragem/diretor de produção)
Lírio Ferreira: Nascimento 01/03/1965, Recife-PE.
1988/1992 – O Crime da Imagem (curta-metragem/direção)
1994 – Chá (curta-metragem/roteiro)
1995 – That’s a Lero-Lero (curta-metragem/direção, roteiro)
1997 – Baile Perfumado (longa-metragem/direção, roteiro)
Marcelo Gomes: Nascimento 28/10/1963, Recife-PE.
1992 – A Perna Cabeluda (curta-metragem/co-direção)
1993 – Samydarsh: Os Artistas de Rua (curta-metragem/co-direção)
1995 – Punk Rock Hardcore (curta-metragem/co-direção)
1995 – Maracatu, Maracatus (curta-metragem/direção, roteiro, pesquisa)
1997 – Baile Perfumado (longa-metragem/assistente de direção)
Paulo Caldas: Nascimento em 18/05/1964, João Pessoa-PB.
1983 – Morte no Capibaribe (curta-metragem/direção)
1985 – Nem Tudo São Flores (curta-metragem/direção)
1986 – O Bandido da Sétima Luz (curta-metragem/direção)
1987/1994 – Chá (curta-metragem/direção)
1992 – Ópera Cólera (curta-metragem/diretor)
1997 – Baile Perfumado (longa-metragem/direção, roteiro)
Para estimular a produção local foi criada por Lírio Ferreira, Paulo Caldas,
Samuel Holanda, Cláudio Assis, Valéria Ferro e Adelina Pontual, o grupo Van-Retrô.
A equipe propôs dois curtas representativos, Biu-Degradável e Padre Henrique: Um
12
Assassinato Político. A idéia para o nome do grupo partia de uma proposta de
valorização de estéticas de vanguarda aliada à influência do cinema clássico, ou
para este grupo, “retrógrado”.
Biu-Degradável não saiu do roteiro, mas virou assunto recorrente entre as
rodas de conversa dos interessados em cinema na cidade. O curta abordaria a
história de um homem “ingerido” pela prática do consumo. Padre Henrique: Um
Assassinato Político pôde ser concluído, sendo inclusive, premiado em um concurso
de roteiros da EMBRAFILME. Toda a equipe do Van-Retrô esteve envolvida na
realização do curta e coube a Cláudio Assis a direção. Em cunho ficcional, o curta
tratou do episódio do desaparecimento e morte do padre Henrique, aliado do
arcebispo de Recife e Olinda, Dom Hélder Câmara, em 1969, perseguido pelo
Governo Militar.
Paulo Caldas pode ser considerado um dos realizadores mais ativos
ainda nos anos de 1980, conseguindo inclusive rodar três curtas Morte no
Capibaribe (1983); Nem Tudo São Flores (1985); e O Bandido da Sétima Luz (1986).
Este último o de maior destaque, uma homenagem ao cineasta Fernando Spencer.
Nos anos de 1990, com a criação das leis de incentivo à cultura, o Estado
de Pernambuco seguiu com a sua contribuição criando o concurso de roteiro, Ari
Severo, que logo depois se uniria ao concurso Firmo Neto, em 1993, com apoio da
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE). O ano
de 1993 também foi marcado pela criação da produtora olindense Parabólica Brasil,
por Cláudio Assis, Marcelo Gomes e Adelina Pontual.
A equipe da Parabólica rodou vários curtas-metragens, entre eles, os
mais representativos são sobre a temática da cultura popular: Samydarsh, Os
Artistas de Rua (1993); Soneto do Desmantelo Blues (1993); e Maracatu, Maracatus
(1995).
Samydarsh é um documentário urbano sobre os artistas marginais das
ruas do Recife. O tema virou música em 1996, no CD Afrociberdelia, da banda Chico
Science & Nação Zumbi. A música, de conotação instrumental, apresenta letra dita
como diálogo oculto, e fala da inconstância dos que mendigam pelos bares em
13
busca de trocados e reconhecimento de sua arte. No mesmo clima em que se
baseou o curta.
(diálogo oculto: "Algum de nós
algum de nós vai ter que comprar
quem vai dar o troco?
é preciso contar
mas o dinheiro vai ficar sobre a mesa
ali, empilhado e sujo
até que lhe deêm outro nome
ou, quem sabe, possa sumir
por descuido de alguém
por esperteza ser enfiado no bolso
sujo e, agora, amassado
e, aos poucos, de esquina em esquina
as notas serão sacadas
uma por uma
um pastel, uma cerveja, um suborno
flores, uma aposta, putas, sonhos...
Quem mandou você falar de mim?
(...) Aí, lôco!)
7
Soneto do Desmantelo Blues (1993) é o curta-metragem de estreia de
Cláudio Assis como idealizador de um projeto. Filmado em preto e branco, traz uma
encenação poética sobre vida e obra do poeta Carlos Pena Filho. O curta é uma
livre adaptação do poema Soneto do Desmantelo Azul (2000).
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul
8
.
7
Samidarish. CD Afrociberdelia. Chico Science e Nação Zumbi, 1996.
8
EDILBERTO, Coutinho. Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho. Ed. Global, 4ª. Ed. São Paulo,
2000.
14
Antes de vir para o Recife, Cláudio Assis participou de grupos de teatro e
cineclubes em Caruaru, cidade onde nasceu. O curta carrega essas referências
iniciais do diretor, numa homenagem a várias figuras do universo da cultura popular
nordestina, como o folguedo do Cavalo Marinho, típico desta região do Agreste
pernambucano.
Em 1995, foi a vez de Marcelo Gomes ir para a direção e conduzir o
projeto Maracatu, Maracatus. O filme foi o vencedor em três categorias no Festival
de Brasília do mesmo ano, Melhor Curta-Metragem em 35 mm, Melhor Som Direto e
Melhor Ator para Jofre Soares. O ator alagoano Jofre Soares, inclusive, falecido no
ano de 1996, trabalhou ativamente nas grandes produções cinematográficas
nordestinas. Esteve presente em mais de 100 filmes nacionais, tendo sua estreia em
1963, em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.
Em Maracatu, Maracatus, Jofre interpreta o velho que conduz a tradição
dos artesãos do Maracatu. Gomes apresenta o curta como um documentário de
ficção onde explora o universo do maracatu rural da Zona da Mata Pernambucana
na luta pela permanência da cultura popular face às interferências midiáticas. Na
seqüência de abertura, Mestre Salustiano, artesão e tocador de rabeca, interpreta a
si mesmo. A cena apresenta uma equipe de gravação, guiada pelo jornalista Beto
Resende, também personagem de metalinguagem, chegando a um lugarejo típico
da Zona da Mata para filmar uma suposta casa de “brincantes” do Maracatu.
O diálogo que se trava antes dos créditos iniciais é o seguinte:
(Jornalista orienta equipe de gravação)
- Peruca, detalhe de lança, rostos, as pessoas...
(Mestre Salustiano)
- O que é, você quer vir filmar aqui? O Maracatu?! Chega de exploração
rapaz. Vem gente do exterior aqui roubar minha paciência aqui. Filma meu
maracatu, leva pro exterior, vende a filmagem e aqui não traz nada pros
homens viver. Artista popular vive morrendo de esmola. Porque vocês são
acostumados a filmar a gente aqui, usar “nós” e ir embora. Por isso que eu
dizendo, “se suma” mesmo, que eu nem quero ver televisão aqui.
conversando
9
!
9
GOMES, Marcelo. Maracatu, Maracatus, 1995.
15
A fotografia do filme exalta as cores fortes e vibrantes da indumentária do
Maracatu Rural. Lantejoulas coloridas brilhantes e o forte sol nordestino contrastam
com as batidas da percussão. O curta também foi premiado com a Melhor Fotografia
no trabalho de Jane Malaquias, em 1995, no Festival de Cinema de Cuiabá.
O sincretismo religioso está presente e marca o lugar da cultura popular
no filme. Em Maracatu, Maracatus, as três correntes da origem brasileira negra,
branca e indígena se apresentam de maneira harmônica em suas crenças. O
batismo do brincante de Maracatu acontece em um terreiro de Preta Velha, em meio
a santos católicos. A apresentação dos diversos Maracatus nas ruas de Olinda
Maracatu Rural, Maracatu de Baque Solto e Maracatu de Baque Virado carregam
as referências indígenas e africanas dando passagem ao cortejo católico.
No entanto, o personagem de Jofre atenta para o aspecto político da
cultura:
Maracatu nasceu no canavial junto com os índios, os caboclos e os negros
africanos escravos. Maracatu não é brincadeira. Maracatu é o grito do
índio, do escravo. O grito que sai daqui de dentro contra as maldades do
homem branco. Maracatu também é guerra
10
.
Vale incluir a observação que 10 anos depois, em 2004, é lançado o
curta-metragem O Homem da Mata, de Luiz Antônio Carrilho, também sobre a
temática do Maracatu Rural e a brincadeira do Cavalo Marinho. O curta foi bem
recebido pela crítica e ganhou alguns prêmios. Segue na mesma linha de argumento
que Maracatu, Maracatus, com cuidado redobrado na fotografia colorida oferecida
naturalmente pelas vestimentas e evoluções do Maracatu. Para este filme foi
escolhido um personagem central que conduz o curta numa espécie de ficção-
documental, o canavieiro e artista popular José Borba da Silva.
Ainda em 1995, outro curta pernambucano ganhou destaque nacional,
That’s a Lero-Lero, de Amin Stepple e Lírio Ferreira. Vencedor de Melhor Fotografia
nos Festivais de Gramado e Brasília e, em Cuiabá, em 1996, para a paulista Kátia
Coelho, que começava a carreira profissional como fotógrafa em cinema. O roteiro
10
Idem.
16
pode ser rodado como consequência positiva do primeiro Concurso de Roteiros
promovido pelo Governo de Pernambuco, o Ari Severo. As filmagens aconteceram
em 1994, durante setes dias no mês de junho, sempre no período da noite.
Amin Stepple conta que a ideia para o roteiro surgiu a partir de uma série
de artigos publicados pelo jornalista, Caio Souza Leão, no Jornal do Commercio,
onde relatava suas impressões sobre a passagem do cineasta americano Orson
Welles pelo Recife durante as gravações do inacabado It’s All True no Brasil. A partir
de conversas com o jornalista, Stepple e Ferreira, criaram o mote para o curta, uma
noite de boemia entre Welles e artistas locais pelas ruas do centro do Recife.
Com relação às opções estéticas adotadas em That’s a Lero-Lero, em
entrevista para a pesquisa, Stepple em depoimento relata que houve uma tentativa
de renovação da linguagem que se desenvolvia no cinema nacional até então. O
momento era propício para ousar.
Havia uma grande mobilização cultural na época. Houve uma coincidência
muito boa também, eu me lembro como se fosse hoje, as filmagens foram
feitas em pleno início do Plano Real. Havia estabilização, havia uma
expectativa boa no país. Tinha acabado a inflação, tava iniciando uma
moeda nova, havia uma esperança muita legal, um clima bom. (...) Nós
partimos de uma linguagem impressa de jornal para uma linguagem de
cinema, inovadora, buscando uma cinematografia leve, dando liberdade
para a montagem e para a fotografia, mais impressionista, bem de
contraste
11
.
Para destacar o contraste proposto pela dupla de realizadores, o filme foi
feito em preto e branco, marcado por planos-sequências em homenagem ao cinema
clássico. Na abertura, a câmera segue lentamente até o interior de uma antiga
geladeira que exibe imagens projetadas do filme Aitaré da Praia (1925), dirigido por
Gentil Roiz à convite de Ari Severo, acompanhada pelo som do projetor. Stepple fala
das suas intenções ao trazer essas colagens para That’s a Lero-Lero:
A gente buscou fazer uma linguagem diferenciada, uma linguagem mais
ousada daquela imagem tradicional, comercial. A abertura de That’s a lero-
lero mesmo, foi muito interessante, a geladeira foi uma homenagem ao
11
STEPPLE, Amin. Recife, 10 de setembro de 2008.
17
cinema doméstico, ao Rucker Vieira, o cara (fotógrafo) de Aruanda que era
nosso amigo e ao Super 8 também
12
.
Em entrevista diz, inclusive, que a sequência de abertura do longa-
metragem Baile Perfumado (1997) foi inspirado nos planos-sequências do roteiro de
That’s a Lero-Lero que exploravam tanto a fotografia escura, como a movimentação
em cena (STEPPLE, 2008).
O filme foi rodado em 16 mm e permanece até hoje restrito a pequenas
exibições. No entanto, carrega um valor histórico inicial para o que viria a se
popularizar como a safra de filmes da geração Árido Movie
13
.
Ainda no início dos anos de 1990 encontramos em plena atividade a
dupla de videomakers formada pelo jornalista Hilton Lacerda e o designer Hélder
Aragão, também conhecido como DJ Dolores. Juntos formaram a parceria Dolores &
Morales que produziu boa parte dos videoclipes para as bandas da cena recifense
do “gênero mangue. Para a banda Mundo Livre S/A, por exemplo, a dupla realizou
Homero, O Junkie (1992) e Samba Esquema Noise (1995). Em 1996, a dupla
trabalhou com a banda Mestre Ambrósio na música Se Limeira Sambasse
Maracatu. E com Chico Science & Nação Zumbi filma Maracatu de Tiro Certeiro
(1993).
Hélder Aragão seguiu na carreira artística como DJ e em paralelo
produzindo trilhas sonoras para o cinema nacional, especialmente o cinema
pernambucano, além de trabalhar com trilhas para teatro e espetáculos de dança.
Com trabalho de destaque para os longas-metragens O rap do Pequeno Príncipe
Contra as Almas Sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna; Narradores de
Javé (2003), de Eliane Caffé; e A Máquina (2006), de João Falcão, também realizou
a trilha para a peça que originou o filme.
12
Idem.
13
Para isso,
contamos com entrevistas realizadas com os cineastas envolvidos nos filmes desta
geração, atores e críticos de cinema a respeito do rótulo Árido Movie. É unânime o reconhecimento do termo,
mesmo assim, as opiniões se dividem quanto a sua correta utilização e validade. Sobre este aspecto iremos
tratar no Capítulo 4, após análise fílmica dos longas-metragens que se seguem ao Baile Perfumado.
18
Com a experiência dos projetos realizados na dupla Dolores & Morales,
entre outras atividades paralelas, a carreira de Hilton Lacerda começou a se moldar
como a de um promissor roteirista que veio a se tornar a partir do Baile Perfumado.
Em 1998, co-dirigiu Simião Martiniano, o Camelô de Cinema. O curta-documentário,
uma parceria com a jornalista e cineasta pernambucana, Clara Angélica, trouxe à
tona um personagem singular do cinema amador do centro do Recife, o camelô,
roteirista, ator e diretor Simião Martiniano
14
.
Esta geração jovem nos anos de 1980, que se transformaria em
realizadores profissionais do cinema nacional nos anos de 1990, foi composta
também por outros nomes além dos cinco enfocados na pesquisa, no entanto,
apenas Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes e Hilton Lacerda
conseguiram produzir em escala periódica e ter seus filmes exibidos no circuito
comercial, permitindo que um público maior tivesse acesso às suas obras.
Outros representantes da geração pernambucana de 1980 migraram para
o Sudeste entre o final de 1980 e começo de 1990, caso de Guel Arraes, João
Falcão e Heitor Dhalia. Os cineastas citados construíram igualmente carreiras
cinematográficas profissionais de destaque no circuito nacional, contudo, isolados de
um grupo regional. O trabalho dos migrantes, em algumas obras, perpassa pela
temática da identidade pernambucana, em certa medida, com referências à cultura
popular, mas não uma linha de produção local e de roteiro que se reveze da
mesma forma como acontece com os cinco realizadores destacados na pesquisa
Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes e Paulo Caldas.
Um exemplo é o recifense Heitor Dhalia, o mais jovem da geração.
Nascido em 1970, mudou para São Paulo, em 1993, para trabalhar com publicidade.
Após uma larga experiência em redação e criação de vídeos comerciais, deu início a
carreira cinematográfica, oficialmente em 1999, como assistente de direção de
14
O curta alcançou projeção nacional e foi o vencedor da categoria no II Festival de Cinema do
Recife, em 1998. Com isso, o cineasta-personagem Simião Martiniano conseguiu ultrapassar a barreira local e
teve seus mais de oito filmes exibidos em mostras pelo Brasil. No entanto, a produção do camelô permaneceu,
ainda nos anos 2000, como artesanal. Sua realização concentra-se em vídeos de ação ditos western sertanejo e
kung-fu pernambucano, vendidos por ele mesmo em uma banca que se tornou ponto turístico no centro da
cidade do Recife quando se procura por fitas em VHS dita como produção caseira, filme B.
19
Aluízio Abranches, em um Copo de Cólera. Em 2004, realiza o primeiro longa-
metragem como diretor, Nina (2004), inspirado no romance russo Crime e Castigo,
de Fiodor Dostoievski. Na seqüência veio o excêntrico O Cheiro do Ralo (2006),
adaptação da obra de Lourenço Mutarelli, vencedor como Melhor Filme escolhido
pelo júri e crítica no Festival de Cinema de São Paulo. E, em 2009, exibiu À Deriva,
na mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes. Ou seja, o que se pode perceber
na filmografia de Dhália, com relação à ambientação, atores e argumentos, é que
sua filmografia não incorporam os valores e marcas da herança cultural nordestina.
O curta-metragem Conceição (1999) é a única realização de Dhalia que
exibe contornos regionais. Inclui atores locais, narrativa e locações próprias do
Recife. A história é baseada em um conto de Wilson Freire, médico pernambucano e
também parceiro de Dhalia, no roteiro do filme As Três Marias (2002), dirigido mais
uma vez por Aluízio Abranches. Conceição apresenta o encontro de universos
marginais. Uma dupla de fugitivos, interpretada por Aramis Trindade e Cláudio Assis,
fica encarregada de roubar vestidos de noivas para duas prostitutas, personagens
de Magdale Alves e Mônica Pantoja, que conhecem ao sair do presídio. O pedido
das prostituas é o pagamento da promessa que cumprem na tradicional romaria de
subida ao Morro da Conceição.
A linguagem do filme é carregada de referências publicitárias, típicas da
década de noventa, com narrativa veloz e entrecortada, cores quentes, cartazes e
anúncios de uma tipografia estilo “para-choque de caminhão”. O Recife é
apresentado por meio através de enquadramentos da visão frontal de um táxi. O
destaque em Conceição está nas imagens da tradicional festa religiosa em
homenagem à Nossa Senhora da Conceição.
Neste aspecto, a tendência para a exaltação de uma imagem do Recife
marginal e decadente foi explorada por outro curta do mesmo ano, Texas Hotel
15
(1999), de Cláudio Assis, ensaio de origem para o primeiro longa-metragem do
diretor, Amarelo Manga (2003).
15
Amarelo Manga (2003) será abordado no Capítulo 3.
20
a carreira do cineasta Guel Arraes aconteceu fora do Estado devido a
condições políticas inicialmente vivenciadas por sua família. Seu pai, Miguel Arraes,
governador de Pernambuco por três vezes (1962-1964, 1983-1987 e 1994-1998),
sofreu perseguição política durante a ditadura militar e teve que abdicar do posto e
se exilar na África durante 14 anos (1965-1979). Assim, o cineasta acabou morando
na Argélia e na França, onde fez o curso de Antropologia e chegou a integrar o
Comitê do Filme Etnográfico, nos anos de 1980.
No Brasil, adotou o Rio de Janeiro como residência e foi um dos primeiros
pernambucanos da geração de oitenta a construir uma carreira consolidada na
atividade audiovisual. A partir dos trabalhos que desenvolveu na televisão brasileira,
deu início a uma linguagem moderna e atualizada, com referências diretas à cultura
pop. Programas como TV Pirata e Armação Ilimitada, ainda nos anos de 1980, em
parceria com o diretor de televisão e cineasta gaúcho Jorge Furtado, trouxeram para
o cotidiano dos telespectadores a possibilidade de acompanharries de TV em um
novo formato, jovem e brasileiro, com diálogos rápidos e um humor de referências
ao universo audiovisual contemporâneo.
No cinema, Guel Arraes realizou, entre outros trabalhos, um conjunto de
filmes com temáticas nordestinas e de grande apelo popular O Auto da
Compadecida (2000); Lisbela e o Prisioneiro (2003); e O Coronel e o Lobisomen
(2005).
A crítica que se faz à cinematografia de Guel Arraes é justamente com
relação à linguagem televisiva dentro do cinema, isso se reflete na escolha dos
atores, no excesso da canção das trilhas sonoras e na medida adotada de um certo
humor quixotesco da população nordestina.E o contraponto do cinema deste diretor
em relação à geração Árido Movie, é a falta de reflexão para suas narrativas. Mesmo
assim, a relação de confiança e competência adquirida por Guel Arraes junto à
grande indústria do audiovisual brasileiro, Rede Globo, permitiu que suas criações
alcançassem boa parte da malha de cinemas do país, garantindo que um grande
número de pessoas tivesse acesso aos seus filmes.
21
Outro parceiro de Guel Arraes é o pernambucano João Falcão. Formado
em Arquitetura, no entanto, fez carreira como escritor e produtor de teatro no final
dos anos oitenta, no Recife. Logo depois, mudou-se para o Rio de Janeiro e
estabeleceu o foco como roteirista dos filmes de Guel Arraes, citado anteriormente.
Entre as realizações de Falcão para o teatro estão os elogiados e premiados
trabalhos: Um Pequenino Grão de Areia (1983), A Dona da História (1998), Uma
Noite na Lua (1999), e A Máquina (2000), que em 2006 vira filme.
A Máquina, o filme, conta a história de um rapaz sertanejo que constrói
uma máquina do tempo para realizar os desejos de sua amada. Neste caminho,
encontra personagens visionários que falam sobre sua relação com o tempo. O
longa-metragem também adotou uma linguagem regional e televisiva. As cenas da
vila em que mora Karina, personagem de Mariana Ximenes, são todas em estúdio,
mesmo as imagens externas, numa espécie de criação do imaginário do sertão. O
sotaque adotado pelos personagens, não-nordestinos, especialmente, é caricato e
remete imediatamente mais uma vez aos clichês maneiristas de identificação com o
Nordeste.
No percurso de apresentação da geração pernambucana dos anos de
1980 e 1990 também encontramos mulheres como realizadoras. As mais
representativas são: Adelina Pontual, Cecília Araújo, Clara Angélica e Kátia Mesel,
que na verdade deu início a profissão de cineasta ainda com a geração do Super 8
nos anos de 1970.
Formada em Arquitetura, Mesel fez alguns cursos de cinema em Paris,
trabalhou como assistente de Nelson Pereira do Santos na série Casa Grande e
Senzala. A cineasta construiu uma carreira focada no documentário possuindo uma
rica filmografia em curta-metragem, entre eles, Recife de Dentro Pra Fora (1997). O
curta é considerado um documentário poético sobre o rio Capibaribe, inspirado no
poema Cão Sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto, musicado nas vozes de
Geraldo Azevedo, Elba Ramalho e Ramalho. Ganhou cerca de 25 prêmios, a
exemplo do Cora Coralina no I FICA, Festival Internacional de Cinema e Vídeo
Ambiental, realizado em Goiás.
22
Cabe a referência que 1997 foi o ano de lançamento do Baile Perfumado
no I Festival de Cinema do Recife, ou seja, ano em que todas as atenções se
voltaram para o marco inicial da retomada pernambucana cinematográfica no
formato para longa-metragem. O projeto Recife de Dentro Pra Fora, existia desde
1987, quando foi feito o roteiro, mas em 1996 pode ser filmado, com o
financiamento do Governo do Estado e do grupo empresarial Bompreço.
Numa tentativa de discutir o cinema feito fora do pólo cinematográfico
brasileiro, Rio de Janeiro e São Paulo, Mesel realizou o vídeo Fora do Eixo (2008).
O documentário apresenta entrevistas com produtores culturais, realizadores e
representantes políticos do audiovisual nacional. As entrevistas foram gravadas nos
bastidores do Cine PE- Festival do Audiovisual, no Recife.
Em 2007, Mesel lançou seu primeiro longa-metragem, O Rochedo e a
Estrela, onde traça o panorama da presença judaica em Pernambuco no século XVII
até a fundação da cidade americana de Nova Iorque. O filme exibe belas imagens e
foi bem distribuído em festivais e associações da cultura judaica, mas não chegou a
ser lançado no circuito comercial.
a pernambucana Adelina Pontual foi a grande parceira feminina da
geração Árido Movie. Sócia da produtora Parabólica Brasil, com Marcelo Gomes e
Cláudio Assis, teve extensa participação em praticamente todos os curtas-
metragens realizados pelos cinco diretores destacados na pesquisa, além de ter
trabalhado como assistente de direção de Paulo Caldas e Lírio Ferreira no Baile
Perfumado (1997).
Seguindo a tradição pernambucana, formou-se em 1986 em
Comunicação Social, pela UFPE; em 2001, foi para Cuba cursar a Escola
Internacional de Cinema e TV, em San Antonio de Los Banõs. Seu filme mais
expressivo é O Pedido (1999), no qual lança a atriz fetiche da geração Árido Movie,
Hermila Guedes. Como continuista, trabalhou em mais 10 de longas-metragens
nacionais, a exemplo de Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2001),
ambos dirigidos por Walter Salles.
23
Outras duas mulheres aparecem neste cenário da cinematografia
pernambucana dos anos de 1990: Cecília Araújo e Clara Angélica. Com produção
voltada para o campo das artes plásticas, Cecília Araújo ficou conhecida pelo curta-
metragem Vitrais (1999), uma delicada apresentação das obras da vitralista
francesa, radicada no Brasil, Marianne Perreti. Seu primeiro trabalho na direção foi
com o videoclipe, MinDaí (1998), da banda pernambucana Matalanamão. O vídeo foi
realizado por meio da Parabólica Brasil e fez parte do trabalho que a produtora vinha
realizando com a comunidade do Alto José do Pinho (bairro da periferia do Recife) e
suas bandas de rock e vertentes, como a Matalanamão e a Devotos (do Ódio).
A também jornalista Clara Angélica, tem sua carreira pautada na
produção de vídeos e na direção de programas de televisão. Para o cinema,
idealizou o projeto, citado, sobre Simião Martiniano, o Camelô de Cinema, onde
desenvolveu uma rica pesquisa em parceria com Hilton Lacerda.
Mesmo assim, as mulheres pernambucanas, assim como outros
realizadores desta geração, não conseguiram ultrapassar a barreira regional e
continuar a produzir em escala para longa-metragem. no campo da atuação,
Pernambuco gerou visibilidade para o trabalho de duas atrizes, Hermila Guedes e
Magdale Alves.
Dos sete filmes selecionados para a pesquisa, a mais jovem, Hermila
Guedes, da geração dos anos de 1990, participou de três deles como
coadjuvante: em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), como Jovelina; em Baixio das
Bestas (2007), viveu Dora; e em Deserto Feliz (2008) foi Pâmela. Guedes foi
projetada para o cinema com a protagonista Suely, em O Céu de Suely (2006), do
diretor cearense, Karim Aïnouz, que também co-roteirizou Cinema, Aspirinas e
Urubus ao lado de Marcelo Gomes.
As personagens dramatizadas pela jovem atriz se revezaram entre dois
estereótipos, o da retirante, em O Céu de Suel, e em Cinema, Aspirinas e Urubus; e
o da prostituta, em Baixio das Bestas e Deserto Feliz. Os quatro filmes carregam em
si, através do trabalho de Guedes, uma projeção crua e atemporal da realidade
regional. Nascida no sertão pernambucano, na cidade de Cabrobó, em 1980,
24
Guedes, até a realização dos longas-metragens, o havia feito nenhum curso
formal de interpretação; seu trabalho com teatro no Recife descortinou a atriz para
os convites no cinema e, em seguida, para a televisão brasileira.
A carreira da atriz Magdale Alves remonta desde a década de oitenta,
quando começou a trabalhar com teatro, especialmente nas montagens de João
Falcão. Estudou teatro em São Paulo com Antunes Filho e, em Pernambuco, fez
parte de umarie de curtas e longas-metragens de sua geração. Atuou nos curtas
Chá (1988), de Paulo Caldas, e em Conceição (2000), de Heitor Dhalia. Em longa-
metragem, participou de Amarelo Manga (2003), Árido Movie (2006), Baixio das
Bestas (2007) e, mais recentemente, em Deserto Feliz (2008).
Em 2005, participou de dois curtas representativos para a geração
seguinte, no curioso Eletrodoméstica, de Kleber Mendonça Filho, e Rapsódia Para
Um Homem Comum, de Camilo Cavalcanti, premiado no Festival de Brasília do
mesmo ano, como aquisição para o Canal Brasil. Eletrodoméstica foi o filme mais
premiado que participou. O curta ganhou mais de 20 prêmios entre os anos de 2005
e 2006, isto inclui o de Melhor Atriz nos festivais CinePE- Festival do Audiovisual,
Guarnicê de Cine e Vídeo, e Festival de Curtas de Belo Horizonte. O filme é
apresentado em 35 mm e apresenta Alves no papel de uma dona de casa classe
média nas corriqueiras atividades domésticas. Seria simples se não coubesse na
narrativa uma relação curiosa entre a dona de casa e seus aparelhos eletrônicos e
vice-versa. A trilha sonora brinca e enlouquece pelos os sons produzidos por tais
aparelhos.
Outra mulher presente nesta geração e que até hoje realiza parceria com
os diretores do Árido Movie, é a montadora Vânia Debs. Professora de Cinema da
ECA-USP, foi convidada para ministrar um workshop sobre cinema, em
Pernambuco, no início dos anos de 1990 e, desde então, a parceria se tornou
frequente. Trabalhou em vários curtas pernambucanos, sendo considerada a
montadora dos principais longas-metragens desta geração.
Junto com Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes e Cláudio Assis
montou os curtas: O Crime da Imagem (1988); Soneto do Desmantelo Blues (1993);
25
Chá (1994); Maracatu, Maracatus (1995); That’s a Lero-Lero (1995); e Clandestina
Felicidade (1998). Em longa-metragem, montou três dos sete filmes selecionados,
são eles: Baile Perfumado (1997); Árido Movie (2006); Deserto Feliz (2008).
Pelo trabalho no filme Árido Movie, ganhou o prêmio de Melhor
Montagem, eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2006.
Em entrevista, questionada sobre o processo de montagem no Baile Perfumado,
falou da continuidade de uma linguagem que vinha se desenvolvendo desde os
curtas-metragens, mas que seria um desafio estender para o longa-metragem,
devido à falta de experiência pernambucana para este formato.
A montagem do Baile Perfumado foi realizada tentando extrair do material,
que por si tinha um grande potencial expressivo, uma narrativa
moderna, com um tratamento inesperado de questões tradicionais na
cultura nordestina. Paulo Caldas e Lírio Ferreira são dois diretores
extremamente criativos e preparados cinematograficamente, e isso
favorecia o surgimento de idéias novas a serem experimentadas
16
.
Em 1997, o filme Baile Perfumado foi lançado no Festival de Brasília e sai
de como o grande vencedor da noite, nas categorias Melhor Filme, Melhor
Cenografia e Melhor Ator Coadjuvante para Aramis Trindade. Em depoimento para
pesquisa, o roteirista Hilton Lacerda comentou o clima da equipe ao chegar ao
Festival:
Estávamos muito ansiosos em colocar nosso filme nas telas de um festival
como o de Brasília. Sabíamos que estávamos levando algo que as pessoas
não esperavam. Os comentários no festival eram: o que os meninos do
‘norte’, depois de tanto tempo sem produzir um longa-metragem, iam trazer
para as telas? Mais uma história de sertão?”. E aí o som pesado da abertura
com a paisagem hollywoodiana dos canyons e o rio São Francisco
chegavam pra desmontar esse imaginário
17
.
O filme foi lançado para o público pernambucano em 1997 no I Festival de
Cinema do Recife, que dois anos depois teve seu nome modificado para Cine PE
16
DEBS, Vânia. Depoimento por e-mail, em 3 de novembro de 2008.
17
LACERDA, Hilton. Recife, 25 de abril de 2008.
26
Festival do Audiovisual
18
, de onde saiu vencedor como Melhor Filme. Neste mesmo
ano ganhou ainda o prêmio de Melhor Cartaz no Festival de Havana e, em 1998,
eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como Melhor Trilha
Sonora e Melhor Ator Coadjuvante para Luiz Carlos Vasconcelos.
Toda essa exposição midiática alcançada pelo filme trouxe o interesse de
pesquisadores para os produtos culturais advindos de Pernambuco. Em entrevista
para a pesquisadora, Lúcia Nagib, em 1999, Lírio Ferreira cita o ambiente cultural
pernambucano como frutífero para a composição do Baile Perfumado:
Na cultura popular pernambucana, uma base sólida interagindo com as
coisas modernas, contemporâneas, que existem não só no Brasil, mas no
mundo. Esse diálogo, esse modo de cruzar o regional e o moderno resultou
em Baile Perfumado, que reflete um pouco a realidade que se está vivendo
hoje (FERREIRA, 1999 apud NAGIB, 2002, p.139).
1.3.Pós-Árido (geração anos noventa)
O caminho para a produção cinematográfica dentro do Estado de
Pernambuco havia sido retomado a partir dos novos longas-metragens realizados
pela geração Árido Movie e ao novo cenário nacional de cinema. A participação em
festivais e as polêmicas envolvendo os temas das películas movimentou o campo de
trabalho do cinema, principalmente no Recife. A facilidade encontrada com as novas
tecnologias digitais, mais uma vez, contribuía para que o exercício lmico pudesse
ser exercitado, contudo o quesito formação profissional ainda acontecia na região do
Sudeste.
Com este renovado ambiente, os cursos de jornalismo da capital
formaram uma nova geração de cineastas, composta por Kleber Mendonça Filho,
Marcos Enrique Lopes e Camilo Cavalcante. O que se pode perceber, nesta
geração, é uma experimentação da linguagem que se desligava das tradições
culturais. E outra característica, dois dos realizadores, Kleber Mendonça Filho e
18
O festival pernambucano é considerado um dos maiores do país, em quantidade de obras inscritas e
por possuir a maior platéia por sessão, alcançando 2.700 espectadores por noite, capacidade do Teatro
Guararapes, onde se realiza o evento.
27
Marcos Enrique Lopes trabalharam paralelamente no campo das políticas públicas
de acesso ao audiovisual.
Com esta geração, o cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no bairro do
Derby, se consolidou, dentro do Estado, como espaço de acesso às realizações
mais interessantes feitas pelo mundo. O respeito com o público se traduziu em
programação curatorial versátil, aparato técnico em perfeito funcionamento, som,
imagem, acústica e, o mais importante, preços ainda acessíveis inclusive com
sessões promocionais como forma de universalização e incentivo à formação de
público
19
.
O responsável pelo Cinema da Fundação até então, o cineasta, crítico e
programador Kleber Mendonça Filho, formou-se em Jornalismo em 1992 e focou seu
trabalho na área cinematográfica.praticamente 10 anos escreve para o Jornal do
Commercio, em Pernambuco, atividade que permitiu a cobertura de todos os
grandes festivais de cinema, nacionais e internacionais. No cinema, a formação se
deu com um curso promovido pelo pesquisador Alexandre Figueirôa, no início dos
anos de 1990. Também credita sua experiência ao período que passou na
Inglaterra, ainda adolescente, onde teve acesso a um farto material audiovisual
contemporâneo. Ainda no ambiente universitário, dirigiu alguns vídeos, seguindo a
moda da época - videoclipes para bandas da cena mangue local.
Em 1997, lança seu primeiro trabalho como realizador profissional, o
vídeo de terror Enjaulado. Na seqüência, vieram os curtas-metragens: A Menina do
Algodão (2002); O Vinil Verde (2004); Eletrodoméstica (2005); Noite de Sexta,
Manhã de Sábado (2006) e, em 2008, lançou em festivais seu primeiro longa-
metragem, o documentário Críticos. Os curtas-metragens seguiram a linha da ficção
com destaque para Eletrodoméstica.
A experiência acumulada como cinéfilo e crítico refletiu na produção do
diretor uma estética onde a narrativa sarcástica e os critérios técnicos prevalecem.
Seus trabalhos demonstram referências de um universo Kubrickiano e Lynchiano;
19
No fim do ano, o Cinema da Fundação promove a Mostra Retrospectiva/Expectativa, que seleciona os
melhores filmes exibidos durante o ano e funciona como espécie de avant-première do que virá no ano seguinte.
A Mostra já faz parte do calendário dos cinéfilos da cidade e tem lotação esgotada em praticamente todas as
sessões.
28
a partir de Noite de Sexta, Manhã de Sábado, os diálogos tomam conta da narrativa.
Em todos os seus filmes, os valores e marcas culturais pernambucanas não estão
presentes, exceto pelas locações e sotaque dos personagens, na verdade, utilizadas
como uma forma viável e inevitável de produção.
Contemporâneo a Kleber Mendonça Filho, o jornalista Marcos Enrique
Lopes, também atuou na área cinematográfica no final dos anos de 1990, realizando
o documentário A Composição do Vazio (2001). Rodado em 35 mm, com 30 minutos
de duração, o filme foi bem recebido pela crítica nacional e ganhou alguns prêmios,
entre eles, o de melhor roteiro para documentário no Festival de Cinema do Recife e
como aquisição pelo MinC, através do Festival “É Tudo Verdade”, ambos em 2001.
Após uma extensa pesquisa sobre vida e obra do filósofo pernambucano,
Evaldo Coutinho, Marcos Enrique Lopes trouxe para as telas um belo ensaio em
homenagem ao esquecido escritor, crítico de cinema e filósofo que produziu um
sistema teórico-filosófico sobre o solipsismo, uma espécie de universalidade que
existe e extingue-se com o próprio ser. O filme contou com a colaboração de Walter
Carvalho na fotografia.
Em seguida ao filme, Lopes seguiu para trabalhar na administração
municipal assumindo o cargo de Diretor de Multimeios. Esteve à frente durante
quase oito anos das atividades de fomento, formação, concurso e programação na
cidade do Recife. No Teatro do Parque, localizado em rua de grande movimentação
comercial e popular no centro do Recife, a Rua do Hospício, organizou o projeto de
filmes ao custo para população de um Real. O Cinema do Parque, como ficou
conhecido, ofereceu à população o acesso a filmes do grande circuito comercial,
com prioridade para as obras regionais, em sessões de segunda a quarta-feira em
horário diurno e noturno. O espaço atingiu recorde de bilheteria com o filme Cidade
de Deus (2002), que permaneceu nove semanas em cartaz, perfazendo um público
de quase 32 mil pessoas.
Também faz parte desta geração, o curta-metragista, Camilo Cavalcante,
que construiu uma carreira com profícua e variadas produções em apenas uma
29
década de trabalho. Em 2008, lançou um DVD onde reuniu 12 filmes realizados
neste período, entre 1996 e 2007.
Suas imagens carregam um forte teor poético, onde se percebe um
cuidado redobrado nas marcações e cenários. Em alguns curtas, como O Velho, o
Mar e o Lago (2000), e A História da Eternidade (2003), Cavalcante utiliza a câmera
como um personagem e recorre ao plano-seqüência como parte desta mesma
narrativa. No primeiro, uma homenagem ao poeta e ator, Mário Lago, espaço
para um monólogo de um velho solitário morador em uma ilha com um farol,
interpretado por Cosme Prezado Soares, o senhor Bianor, do longa Amarelo Manga
(2003), de Cláudio Assis.
O universo de seus filmes, diferente dos realizadores desta geração,
utilizou a herança cultural como ponto de partida para suas divagações. Mesmo sem
realizar um filme de longa-metragem até o final dos anos de 2009, o que seria um
exercício aparentemente simples devido a sua experiência com o curta-metragem, o
realizador reúne desde então, um conjunto de obras maduras e significativas para a
história do cinema pernambucano.
30
Capítulo 2. Sete longas-metragens de sucesso?
Dando continuidade, com o foco na geração Árido Movie, pode-se
perceber que o aspecto que a diferencia das outras gerações, a anterior do Super 8,
como da geração seguinte, dos anos de 1990, é a realização periódica de longas-
metragens. O capítulo abordará a análise fílmica propriamente de cada um dos sete
filmes, realizados por esta geração, com objetivo de verificar as opções estéticas
adotadas, bem como o cerne das narrativas no contexto da cultura pernambucana.
2.1. Baile Perfumado (1997)
Lançado oficialmente em 1997, Baile Perfumado é o resultado do
envolvimento em conjunto de praticamente todos os cineastas em atividade, em
Pernambuco, nos anos de 1990. Teve como principais patrocinadores, o Governo do
Estado de Pernambuco, a Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (ELETROBRÁS) e o
Banco do Nordeste do Brasil.
Por ser um trabalho de estreia, após alguns anos de retração do mercado
cinematográfico, os realizadores nunca descartaram o aspecto experimental da
obra. Mesmo assim, o resultado mostrou que estava surgindo, ali, na verdade, uma
nova linguagem. Inédita, seria impossível dizer, mas sim, recriada a partir de várias
influências midiáticas e, a principal delas, o ritmo do videoclipe. De certa forma, uma
referência também ao próprio cinema industrial americano e suas famosas tomadas
de ação.
Em todo caso, essa linguagem em utilização no cinema pernambucano
dos anos de 1990, não significou uma amarra para as produções posteriores, como
foi possível notar em filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo
Gomes, que mesmo se tratando de um road movie, a narrativa segue de forma lenta
guiada por uma única fonte de diálogo. Já, em Árido Movie (2006), do mesmo Lírio
Ferreira, a música e a montagem seguem na mesma proporção e intensidade do
31
Baile Perfumado, velocidade e peso na narrativa, onde uma preferência por
cortes secos.
O filme conta a história do mascate libanês Benjamin Abraão que, nos
anos trinta, vem para o Brasil e, após contato com o padre Cícero no Ceará, decide
conhecer de perto e documentar a lenda justiceira do Sertão, Lampião. Para isso,
Abraão faz alguns acordos com coronéis e figuras influentes para poder ter acesso
ao bando de cangaceiros
20
mais temido do Nordeste no qual estava Lampião. Seu
interesse além de documental era, sem dúvida, registrar o bando e utilizar tais
imagens como fonte de comércio o que, de fato, conseguiu realizar. O argumento do
filme foi baseado em história verídica e pode ser desenvolvido utilizando-se a
mescla entre as imagens reais capturadas por Abraão e as novas imagens
ficcionais. Além disso, os roteiristas ousaram em recontar esta história com toda a
liberdade pertinente a um cenário cosmopolita e contraditório que pudesse co-existir
entre os anos trinta e os anos noventa, com passagens pelo interior nordestino e a
capital pernambucana, Recife.
Essas novas interfaces que o cinema pernambucano vem ganhando
desde 1997 são caracterizadas particularmente pela dualidade entre a cultura
moderna urbana e as tradições populares. Expressões como Árido Movie, Chico
Science e Manguebeat remetem à necessidade de um diálogo permanente entre
uma cultura periférica e artesanal, a nordestina, e uma cultura tecnológica altamente
informatizada. Uma explicação para tal característica advém, em primeiro, da
música. O idealizador do Manguebeat, Chico Science, fazia questão em seus
discursos de enfatizar a urgência em se conectar com o mundo, sua influência direta
era a música americana, através do hip hop, do groove e do soul, além de ser um
estudante de Ciência da Computação “antenado” com as novas tecnologias, tanto é,
que o símbolo do movimento musical é uma parabólica enterrada na lama.
20
O Cangaço foi um movimento popular ocorrido no Nordeste brasileiro, entre os anos de 1870 e 1940,
na região do semi-árido identificada como caatinga, palavra indígena que significa mata branca. Tem sua origem
em questões sociais e fundiárias, representadas pela luta de classes entre o sertanejo e os então coronéis
proprietários de terras. O cangaceiro mais famoso foi Virgulino Ferreira da Silva, o "Lampião", denominado
também de "Governador do Sertão" e "O Rei do Cangaço". Atuou durante as décadas de vinte e trinta em
praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro.
32
No entanto, Chico Science era um representante, entre outros artistas da
década de noventa, que produzia e queria que seu trabalho fosse popularizado e
multiplicado. O cinema, em consonância com a tendência, produzia a partir de temas
da terra aliada à técnica industrial.
Algumas seqüências do filme Baile Perfumado exaltam esta característica
do encontro do moderno com o tradicional. A cena em que Lampião e Maria Bonita
vão ao cinema, no Recife, por exemplo, possui algumas imagens que sugerem um
clima de modernidade tanto da cidade quanto dos hábitos dos personagens. Ou
mesmo nos momentos em que o mascate leva presentes para o encontro com
Lampião, enfatizando as preferências do cangaceiro perfume francês e uísque
escocês – em meio ao cenário árido da caatinga.
A montagem no Baile Perfumado é fragmentada e marca a narração de
duas histórias em paralelo. De um lado, o caminho de Abraão, de outro, a saga de
Lampião. Poderíamos até sugerir, como na literatura, versos do cordel que se
complementam.
Ainda do recurso literário, vemos que uma espécie de prólogo inicial,
plano-sequência que introduz o espectador ao clima de jornada, para só depois
sermos apresentados ao título do filme. o final, o epílogo, faz o filme retroceder
em 25 anos, no momento da chegada do libanês a Recife e, assim, justificar todas
as ações desenvolvidas na trama.
O Mito Pop Lampião, especialmente no Baile Perfumado, é destacado
com uma imagem de mito. No filme, após sua morte, pela caçada do tenente
Lindalvo Rosas, vemos o mito reinando no alto dos canyons do São Francisco,
acompanhado pela forte batida da música Banditismo Por Uma Questão de Classe,
de Chico Science.
O imaginário nos remete a ideia de que o rei do Sertão continuará vivo
eternamente, assim diz, inclusive, a letra da música encomendada especialmente
para o filme, e presente no primeiro CD de Chico Science e a Nação Zumbi:
33
Há um tempo atrás se falava de bandido
Há um tempo atrás se falava de solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás eu via televisão
Galeguinho do Coque, não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna Cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje, acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava, hoje outros ainda falam
“Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala”
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido
Banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!
(Banditismo Por Uma Questão de Classe, Chico Science e Nação Zumbi,
1994).
E dentro desse imaginário do mito, também que se mencionar o
significado poético que o próprio título do filme sugere Baile Perfumado como
uma corte do sertão. Lembrando que a palavra baile também era utilizada como
metáfora para guerra, pelos cangaceiros do sertão. Uma das seqüências mais belas
do filme acontece justamente quando a fusão das cenas de ficção do baile dos
cangaceiros de Lampião e as imagens originais, em preto e branco, filmadas por
Abraão. Neste momento também o poder de sedução que a imagem desperta no
imaginário do próprio Lampião, ao negociar a forma que Abraão irá fazer suas
imagens, para isso, é preciso aparecer de maneira elegante. Este trecho traz um
diálogo de negociação entre Abraão e Lampião sobre a repercussão da sua bravura
em imagens para o mundo.
Lampião “Me fale” da fita seu Abraão?
Abraão Sim. Vamos ao que interessa “pra nós”. Capitão está sabendo
de minhas pretensões, não é? Pois bom. “Nós quer” assim um pouco de
confiança do Capitão e do bando dele. Nós ficaríamos com o Capitão assim
por uns dias e filmava as coisas necessárias.
34
Lampião E “vós mice” pode me dizer que história é essa que Seu Abraão
quer filmar?
Abrão Olha Capitão, não é assim uma história. “Nós quer” é filmar o
Capitão e o bando. Como vivem, o que eles fazem, as pessoas do grupo,
todo mundo.
Lampião – E que interesse Seu Abraão quer nisso?
Abraão “Nós sabe” que amigo gosta de dinheiro e nós também “gosta”.
Um filme desse a gente exibindo pelo mundo de Deus vai ganhar muito
dinheiro. Bom, agora já conhece o negócio, Capitão. E negócio é bom. Além
disso, Capitão vai ficar mais popular ainda. E todo mundo vai ficar sabendo
até onde vai o poder do governador do Sertão. Todo mundo mesmo, hein
Capitão?! Aqui e no estrangeiro.
21
Não é possível saber o quede realidade e de ficção nesta negociação,
no entanto, em frequentes entrevistas, os diretores e o roteirista, enfatizam a
pesquisa histórica na composição do roteiro.
Um dos aspectos mais interessantes ao analisar o filme Baile Perfumado
numa relação com a história, sem dúvida, é poder perceber a preocupação
etnográfica do mascate, Abraão, adentrando cada vez mais no universo do cangaço
e se tornando de fato um documentarista. Seus relatos originais, são lidos em off,
intercalados com cenas reproduzidas e as cenas reais do bando de Lampião
capturadas pelo mascate.
Segundo relatos biográficos deixados por Abraão, durante viagem ao Rio
de Janeiro, o libanês teve acesso a publicações sobre o movimento documentarista
inglês de John Grierson e do americano Robert Flaherty. Em seguida, monta o
projeto de filmar as atividades cotidianas dos cangaceiros.
O pesquisador em filmes de cangaço, Marcelo Vieira, chama atenção
para recorrência ao mito de Lampião e sua relação com os filmes do cangaço:
O filme [Baile Perfumado] não perde seu sentido documental, pois mesmo
se tratando de encenações, essas imagens são as únicas de um mito
histórico que ainda hoje fascina o público, e com o passar dos anos sua
importância cresce como documento e como filme, sendo possível de
recriações e novas interpretações (VIEIRA, 2001, p. 38).
É fato que os filmes de cangaço sempre tiveram grande poder de
representação no imaginário do público, até por se assemelhar a velocidade
21
Diálogo extraído do filme Baile Perfumado, 1997.
35
narrativa dos populares westerns americanos. No caso do Baile Perfumado,
percebe-se que existe um abismo histórico, um filme dentro do filme. Para os
espectadores desavisados, as imagens feitas por Abraão nada mais são que
colagens para corroborar o que foi dito, para espectadores um pouco mais
curiosos, aquelas imagens em preto e branco contam outra história que existiu antes
mesmo do argumento do Baile Perfumado. As imagens feitas pelo documentarista
Benjamin Abraão são registros históricos das décadas de vinte e trinta da história
pernambucana. No filme, os diretores exploram as reflexões, em off, dos registros de
Abraão antes das filmagens. Abraão escreve e a câmera segue de forma descritiva
numa tentativa de acompanhar os registros do árabe em sua caderneta:
Grupo rezando ao meio dia sobre sombras de uma árvore; Lampião lendo;
Paisagem do sertão ao amanhecer; Grupo caminha no mato, um atrás do
outro em direção à floresta; Grupo pega água para abastecer; Preparando
comida... Comendo melancia; Mulheres do grupo juntas; Lampião dá ordens
para a câmera.
22
O cinema da década de vinte, em Pernambuco, passava por um período
de efervescência cultural, com o chamado Ciclo do Recife. “Ele foi resultado de um
movimento envolvendo cerca de 30 jovens que, de 1923 a 1931, realizaram nada
menos que 13 longas-metragens.” (Figueirôa, 2006, p.10). Muito se deve a dois
italianos, Ugo Falangola e J. Cambieri que, fugidos da Primeira Guerra Mundial,
fundaram no Recife a primeira produtora do Nordeste, a Pernambuco Filmes.
O objetivo inicial da produtora era realizar filmes promocionais para o
governo, a exemplo das lendárias imagens do dirigível alemão Zeppelin ao passar
pela capital pernambucana. Interessante notar que esta prática da propaganda era o
que possibilitava os cineastas ganharem prestígio e, assim, adquirir verba para seus
projetos pessoais.
No Baile Perfumado, o mascate aparece primeiro como fotógrafo de
família, em seguida, para chegar ao seu objetivo que era entrar em contato com
Lampião, estabelece amizade com um coronel próximo ao Rei do Cangaço, coronel
22
Locução em off extraída do filme Baile Perfumado, 1997.
36
João Libório, prestando favores ao mesmo, como filmar a simulação de uma
vaquejada. O episódio da vaquejada aparece no Baile Perfumado a partir de duas
imagens, a ficcional e a original.
Vale destacar também a menção feita ao filme A Filha do Advogado
(1926), durante visita de Lampião e Maria Bonita ao Recife para assistir no Cine-
Palácio São Luiz a película do jovem cineasta e ator Jota Soares. Produzido pela
Aurora Filmes, A Filha do Advogado, foi o filme mais ambicioso do Ciclo do Recife
conseguindo a façanha de ser exibido em 31 cinemas do Rio de Janeiro. A história
tratava de um triângulo amoroso cheio de suspense e intriga.
De acordo com Marc Ferro, estudar a história através do cinema é
associar o filme ao mundo que o produz, sendo, portanto, mais um caminho de
análise da sociedade que pertencemos e da qual, às vezes, nem conhecemos.
(FERRO, 1992).
O longa-metragem Baile Perfumado vale como registro histórico não
pela articulação que estabelece entre imagens ficcionais e imagens verídicas do que
se conta, mas também por reacender o debate contemporâneo sobre a violenta luta
de classes. A violência esteve presente nas tomadas de ação, nas atitudes de
rebeldia de Lampião, mas também na sutil violência da desigualdade social que
permanece atual.
No filme, diversos recursos foram explorados, o principal deles diz
respeito a montagem fragmentada e em paralelo. A trilha sonora pesada e
acelerada, nas seqüências, inicial e final, de sobrevôo dos canyons, serviu para
dimensionar o espaço ocupado pela narrativa. A direção de arte também se
encarregou de reforçar o imaginário, tentando ser a mais fiel possível nas cenas em
que eram recriadas as imagens feitas por Abraão originalmente.
Com relação à estética, um predomínio pelas cores: azul, marrom e
verde. As cenas noturnas são frequentes e se explora a quase inexistência de
cenários, apenas luz nos personagens e fundo infinito, o diálogo se sobressai.
um excesso de tons azulados nas cenas externas, marcando o
anoitecer, e os flashbacks de Abraão quando do primeiro encontro com Lampião,
37
ainda na presença do Padre Cícero. O marrom aparece na terra, nas roupas e na
construção das casas das cidades por onde passa Lampião. E o verde está neste
sertão pop re-significado. Após uma leva de filmes sobre o sertão nordestino seco,
quase num preto e branco natural, no Baile Perfumado, a vegetação é fértil,
banhada por braços caudalosos do Rio São Francisco, em imagens fortes marcadas
pelas cores e trilha sonora com base em guitarras e percussão.
A câmera no Baile perfumado também comunica, através de uma
linguagem com a qual estávamos acostumados apenas na televisão, excesso de
câmera baixa e câmera alta, além de imagens por entre objetos. Estas opções nos
anos seguintes se repetem nos filmes dirigidos por Lírio Ferreira.
2.2. O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000)
O documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas
(2000) foi dirigido pelos cineastas Paulo Caldas e Marcelo Luna, através de uma
perspectiva analítica onde se sobressai uma narrativa estética marcada pelo Cinema
Direto
23
. A história de dois jovens, Helinho e Garnizé, moradores de uma das
periferias mais pobres e violentas do país, no município de Camaragibe, em
Pernambuco, é o que conduz os diretores a discutirem políticas de cultura como
enfrentamento à criminalidade. Personagens se sobrepõem e são apresentados
como retrato de uma antropologia urbana presente em qualquer metrópole que
esconde a guerra civil de suas periferias.
O foco do documentário está nas diferentes perspectivas encontradas
pelos jovens Helinho e Garnizé para conviver com a marginalidade, no entanto,
acaba discutindo outras questões subjacentes, como a importância de políticas
culturais na periferia, particularmente o rap e junto a ele o movimento hip hop; a
atuação do poder público; a realidade dos presídios; as contradições sociais do
23
Corrente do cinema documentário norte-americano, originário nos anos de 1950, advindo de
experiências feitas por cineastas e jornalistas, cujo princípio era dar liberdade entre realizador e
objeto/pessoa/personagem filmada, acreditando com isso, aumentar a veracidade e ética do fazer documentário.
O realizador adota uma postura mais observativa em relação ao momento capturado. Ver mais sobre o Cinema
Direto em “Cinema Documentário no Brasil” (RAMOS, 2008. In: Mas afinal o que é mesmo documentário?)
38
Recife, capital do estado que por vezes lidera os índices de violência do país entre
os jovens; a fé e a atuação de grupos de extermínio como balizadores da moral para
as grandes favelas urbanas. Todas essas questões são tratadas no processo de
análise da pesquisa dividindo-se o filme em oito momentos temáticos que pontuam
as observações.
Do ponto de vista estilístico, o documentário em questão inova na sua
linguagem, com a utilização do grafismo, vertente do movimento hip hop, no qual
está inserido o rap. O recurso é utilizado constantemente para marcar o cenário
cultural em que se estabelece a discussão. A sica, através dos instrumentos de
percussão, também está presente com forte apelo aos discursos, sendo marcas
visuais recorrentes nas passagens de momentos.
Para pensar sobre as soluções fílmicas apresentadas e discutir as
questões do documentário pertinente ao filme, enquanto parte de uma geração, foi
estabelecido o critério de subdivisões em temas ou blocos, ou ainda como
denominado aqui, momentos fílmicos, uma vez que o formato do documentário
permite uma experiência artística com a premissa antecipada de um gênero.
Abertura Marcada pelo grafismo das imagens no muro que mostram
letra a letra o título do filme, por meio de lenta seqüência de travelling em movimento
horizontal da câmera. Neste momento, já somos iniciados a dois importantes pontos,
a cultura hip hop (com o grafite e a música), e um título um tanto curioso que nos
remete a uma fábula.
Em seguida, ainda na abertura, somos apresentados às ruas do centro do
Recife, local em que se dará a narrativa de uma maneira geral. Um corte brusco nos
leva pelos becos de uma favela, por meio de câmera subjetiva marcada pela
respiração ofegante de quem leva a câmera nas mãos.
1º Momento – O crime.
Neste primeiro momento se dá a apresentação dos personagens
principais, Helinho e Garnizé. O crime pauta o bloco. Cada um fala da sua relação
39
com a violência, por meio do tempo interno, ao mesmo passo que são mostradas
imagens do local em que vivem, com panorâmicas do cotidiano do centro do Recife.
2º Momento – A música.
Apresentação da banda Faces do Subúrbio, na qual Garnizé é o baterista.
A banda fala da importância do rap para a comunidade e diversas imagens de
caráter ficcional, posadas como retratos, são mostrados. O dio é o elemento
comum a todas elas e será uma espécie de marca, ao longo do documentário,
reforçando-o como principal difusor de informação local para as periferias.
3º Momento – Os poderes “públicos”.
Aqui, imprensa e judiciário aparecem através de dois personagens, a
repórter fotográfica Annaclarice Almeida e o advogado criminalista, Eduardo
Trindade. Ambos jovens, em início de carreira, falam da sua relação com o trabalho.
Annaclarice analisa, de forma orgânica, o prazer de fotografar a morte; já, Eduardo,
constata sua função como meramente um problema de ordem social que existe para
ser resolvido.
Garnizé também entra neste momento para falar do seu desejo em ajudar
as crianças que estão nas ruas. O músico faz um discurso sobre a educação, mas
não consegue desenvolver um pensamento a respeito da questão e acaba
recorrendo a clichês.
4º Momento – Periferias.
O documentário retoma a música e mostra a relação do rap com as
comunidades pobres de todo o Brasil, pela visão da banda paulista, Racionais MCs,
ícone nacional do estilo. Uma imagem panorâmica de helicóptero dimensiona a
periferia da região metropolitana do Recife, em contraste aos prédios da beira-mar.
O choque social é acompanhado pela música Salve, da banda Racionais MCs que
enumera diversas periferias do país.
Este bloco sugere também uma pequena discussão sobre o tipo de lazer
ao qual a população de baixa renda tem acesso.
5º Momento – Presos e presídios. Um cotidiano para as periferias.
40
Este bloco muda a direção do foco do documentário e volta-se totalmente
para discutir a vida nos presídios e a rotina estabelecida pelos familiares que
convivem com esta realidade.
Ao fim deste momento, a fábula do pequeno príncipe, na figura de
Helinho, aparece sempre imune a todo o caos. Depoimentos sucessivos do
delegado, João Veiga Filho, uma espécie de xerife da periferia, nos chamam a
atenção para outro trecho fantasioso, a astúcia do rapaz em fugir da cadeia diversas
vezes. Neste caso não se trata do famoso personagem escrito pelo francês, Antoine
de Saint Exupéry, mas sim o jovem justiceiro de Camaragibe.
6º Momento – Recife. Contradições sociais x multiculturalidade.
Novamente se volta para o discurso de Garnizé sobre a pobreza e a
cultura, através da música, como fôlego de sobrevivência. Culminando com o
popular festival de rock independente da região, o Abril Pro Rock.
7º Momento – Estereótipos e estigmas. Diferentes utilizações da moral.
Este ponto apresenta a dificuldade da comunidade em reconhecer um
contraventor, seja pela aparência ou pelos atos. Este exemplo, de certa forma,
discute justamente um problema moral que está em qualquer nível social. Para os
justiceiros do grupo de extermínio entrevistados, o ladrão, ou como é chamado no
jargão popular, a ”alma sebosa”, é quem usa tatuagem e rouba dos pobres.
O filme nos apresenta um contraste imediatamente com imagens das
várias tatuagens de Garnizé, que para ele fazem parte de uma filosofia de vida.
Aqui, destaque para o grafismo no corpo, na sessão de tatuagem em que
Garnizé tem o rosto do líder negro norte-americano, Malcolm X, desenhado em suas
costas. Che Guevara e Martin Luther King também tem destaque no corpo do
músico. Para ele, Helinho é comparado a Malcolm X e, nesta lógica, sugere a
absolvição do justiceiro.
8º Momento – Fé e justiça pelas próprias mãos. Leis da periferia.
Se as leis não são aplicadas para resolver o problema da “guerra civil”
instalada no interior das comunidades pobres, a surge como uma solução. Nesse
41
caso, os justiceiros, numa outra vertente, aparecem como figuras necessárias para
manutenção da ordem, assim dão a entender os depoimentos.
Um personagem que deveria ser secundário, ganha destaque no
documentário e parece ser o único que surpreende pelo discurso, a mãe de Helinho,
Dona Maria. Neste último bloco ela fala da sua para tentar compreender o destino
do filho e da dor pelas outras mães que perderam seus filhos, inclusive
assassinados por Helinho. “Eu fico indecisa. Porque sei que sou mãe e eu acredito
em Deus. Eu sei que quem faz, paga. E ele [Helinho] não pagou nada ainda” (O Rap
do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, 2000). A câmera reforça os closes
em partes do rosto de Dona Maria reforçando sua angústia e também como recurso
para não permitir a identificação da personagem.
Praticamente todas as passagens de momentos do filme são marcadas
pela imagem de Garnizé tocando instrumento de percussão, ora bateria, ora
atabaques. O som enfatiza a quebra de assunto.
Sob o ponto de vista da estilística, O Rap do Pequeno Príncipe em muito
se assemelha a outro filme nacional também produzido no mesmo período, Notícias
de Uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles. Ambos se apresentam
como documentários de entrevistas, dirigidos por cineastas advindos do jornalismo
com forte influência da escola americana. Desta forma, é inevitável a aproximação
com o Cinema Direto.
Além, é claro, de abordarem o mesmo universo, a criminalidade nas
periferias brasileiras. A respeito deste ponto fica evidente na análise fílmica, no jogo
da câmera de campo e fora de campo, que a conversa dos cineastas com seus
“objetos” filmados deixa claro um distanciamento social de classes.
Tal distanciamento parece ser o que acentua o caráter ficcional dos
documentários em questão, corroborado por imagens posadas e discursos
previsíveis. Segundo Pasolini, esse distanciamento disfarçado estará sempre
presente em qualquer filme que se proponha como arte e não como produto, são os
dois filmes existentes, o real e o virtual (Pasolini, 1982).
42
Vale lembrar que O Rap do Pequeno Príncipe, entre outros prêmios, foi o
vencedor do Festival “É Tudo Verdade” em 2000, na categoria GNT de Renovação
de Linguagem na competição brasileira. No mesmo ano, Notícias de Uma Guerra
Particular, foi o vencedor do mesmo festival, na categoria melhor documentário da
competição brasileira.
Para a estilística do documentário, de acordo com Omar (1978), não
como garantir a imparcialidade dos realizadores, tal como, a precisão da realidade.
“Os temas estão ali, para serem colhidos. Não um método de reflexão sobre o
nível da realidade em que o documentário vai se situar” (Omar, 1978).
A linguagem utilizada em O Rap do Pequeno Príncipe, com a alternância
entre realidade e ficção, ganha força através dos relatos orais que ligam todo o filme.
São os relatos orais responsáveis por sugerir o imaginário que permeia todo o
pensamento de quem assiste e, quem sabe, dos realizadores da obra. As imagens
estão reforçando as contradições latentes dos discursos, sejam eles inclusive,
vazios de conteúdo, mas cheios de ilusão, nos remetendo novamente ao conceito da
fabulação compreendida enquanto potência da subjetividade do pensar no cinema
documentário (DELEUZE, 1990).
O documentário sugere a fábula, tenta desconstruí-la com o discurso das
diferenças sociais e distribuição de renda, mas acaba confirmando a ficção no
mito de Helinho e Garnizé. Não é negada a sua existência, mas percebe-se que
suas imagens foram pré-concebidas e ficam presas ao discurso produzido e
esperado pela burguesia reflexo, de certa forma, da produção aceita como
documentário brasileiro contemporâneo.
2.3. Amarelo Manga (2003)
O filme de estreia na direção de longa-metragem de Cláudio Assis foi,
sem dúvida, o que mais causou emoções públicas e controversas de repúdio e
louvação. O título, Amarelo Manga, sinaliza de forma direta que a estética pautará a
43
narrativa e nos encoraja a procurar qual o tom de amarelo que Assis planeja nos
mostrar. O repúdio advém da escolha do grotesco ao tratar de um ambiente
insalubre, de relações humanas moralmente deturpadas, com diálogos cheios de
códigos chulos próprios de uma periferia, neste caso, a região do centro comercial
do Recife. O resultado deste entrecruzamento de mazelas resultou em diversos
prêmios como melhor filme em festivais nacionais e internacionais em 2003, a
exemplo dos Festivais de Berlim, Toulouse, Havana e Brasília. O amarelo proposto
por Cláudio Assis, inicialmente hepático, sem luz, se traduziu em ouro.
Vamos às questões pertinentes à narrativa fílmica. Do ponto de vista da
montagem, o filme apresenta uma estrutura simples - abertura, localização da trama,
apresentação dos personagens, anticlímax, clímax e desfecho. Estas fases são
perceptíveis em grande parte devido à variedade de personagens centrais existentes
que dão indícios no início que em algum momento irão se encontrar. Pela ordem
de apresentação temos: Lígia, a amargurada dona do Bar Avenida; Isaac, morador
do Texas Hotel que tem por fetiche a necrofilia; Kika, evangélica, devota e esposa
de Wellington Kanibal, funcionário em um matadouro e amante de Dayse; Dunga,
apaixonado por Wellington, que trabalha como uma espécie de doméstica no Texas
Hotel.
Dayse, personagem de Magdale Alves, na verdade, apresenta-se como
subjacente ao círculo dos protagonistas acima, assim como Seu Bianor, o dono do
Texas Hotel, o padre, a ex-prostitua dona Aurora e Rabecão, o funcionário do IML,
fornecedor de corpos para Isaac. A partir da apresentação da cidade do Recife como
pano de fundo para o desenrolar da história, neste caso uma cidade representada
por casarios antigos, imponentes, porém decadentes e de muita pobreza urbana,
vemos as particularidades de seus personagens logo na apresentação dos mesmos.
Na seqüência inicial, Lígia apresenta seu bar e, a partir da quebra da
ilusão, conversa com a câmera sobre seus dilemas existenciais. Em seguida, Isaac
aparece em seu carro amarelo, uma antiga Mercedes, dirigindo por um percurso de
entrada para o bairro de São José, onde se darão os principais acontecimentos. No
carro, o rádio, assim como no filme O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas
44
Sebosas, destaca a programação policial como fonte de informação para a
população e já prevê o que está por vir, locutor anuncia:
Dona de casa muito respeitável encontrou seu marido com a amante. Aí, a
coisa ficou preta. Ela, uma evangélica, partiu pra cima da fulana e foi um tal
de Deus nos acuda. Resultado: amante no hospital, ferida, e a corna,
ninguém sabe, ninguém viu.
24
Em uma igreja evangélica, Kika reza. Em um matadouro de bois, a
câmera percorre no alto pelos trilhos que leva os animais a Wellington. A cena
carregada de sangue, em muito se assemelha à seqüência inicial do filme Goya
(1999), de Carlos Saura, sobre o pintor espanhol, onde somos apresentados
plasticamente às texturas pigmentares de uma barriga aberta de boi. Depois,
chegamos ao Texas Hotel, onde conhecemos Dunga, personagem de Matheus
Nachtergaele, varrendo a recepção decadente e cantando mais um canção mangue,
composta por Otto, que diz ironicamente:
Amarelo, mangou de mim
Não vai ficar de graça
E dentro desta caixa
Um corpo que não fala
Um corpo de indigente
Um corpo que não fala
Um corpo que não sente
(Amarelo Manga, Otto/BNegão/Apolo 9, 2003).
Aqui, o amarelo está colocado como um comportamento covarde, e
“mangar”, como verbo de expressão popular no Nordeste, semelhante a debochar.
O Texas Hotel está repleto de referências ao amarelo. Nas paredes e em cima da
recepção, uma fruta manga retalhada. Dunga aparece como elo entre os
acontecimentos que irão interligar o triângulo amoroso vivido por Wellington, Kika e
Dayse. Na tentativa de conquistar Wellington, que entrega carnes para o Texas
Hotel, Dunga planeja o flagrante do marido com a amante pela esposa. Paralelo,
24
Diálogo extraído do filme Amarelo Manga, 2003.
45
temos Isaac que é ligado à trama pela tentativa de envolvimento com Lígia e com a
consumação do fato com Kika.
O aspecto mórbido em relação a Isaac também aparece no envolvimento
com as duas mulheres. Seus desejos são por Lígia, uma mulher que aparenta estar
morta para a vida, mas é com Kika que ele consegue se envolver. Após o encontro
com Kika, na cena de início da manhã, Isaac demonstra uma espécie de
arrependimento, enquanto Kika evidencia sua libertação, ao dizer: “eu era uma
mulher morta por dentro” (Amarelo Manga, 2003).
Frases como a dita acima pela personagem de Dira Paes, estão
presentes durante todo o filme de forma marcante, aliás, este filme ficou conhecido
pelo bordão que gerou, a exemplo de “bicha quer, bicha faz”, dita por Matheus
Nachtergaele na cena em que elabora o plano para acabar com o casamento do
personagem Wellington. Para Kika, o próprio Cláudio Assis aparece em cena ao
falar no ouvido dela, em plena rua, “o pudor é a forma mais inteligente de perversão”
(Amarelo Manga, 2003). As frases aparecem como uma espécie de alter ego do
próprio diretor que sempre se refere ao filme como sua visão de mundo. O padre,
interpretado por Jonas Melo, indícios dessa questão ao dizer “o ser humano é
estômago e sexo” (Amarelo Manga, 2003), ou mesmo quando dona Aurora,
personagem de Conceição Camarotti, diz: “às vezes penso que o mundo foi todinho
feito de mim” (Amarelo Manga, 2003).
As relações entre sexo e fome permeiam o filme, seja no cartaz, que traz
a frase do padre, nas imagens da genitália de Lígia que se confundem com uma
manga, seja nas imagens documentais dos hábitos alimentares dos becos do centro
da cidade. O desejo que Dunga cultiva por Wellington é uma mistura dessa relação,
pois em determinada sequência ele se refere à Kika como uma mulher feliz por
dispor de carne em casa todos os dias.
O amarelo escolhido por Assis também é pontuado em cena verbalmente,
através da leitura de um trecho do livro do poeta pernambucano, Renato Carneiro
Campos, chamado Tempo Amarelo, em 1980. Em off, ouvimos, acompanhadas de
46
imagens de detalhes do carro de Isaac, em seguida, ainda ao som do texto,
encontramos dois boêmios lendo em voz alta o livro no bar Avenida:
Amarelo dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de
boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das
doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos
escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes
apodrecidos
25
.
Tempo Amarelo também é o nome da sica de base incidental para a
trilha do filme composta pelo grupo musical, Nação Zumbi, as guitarras anunciam:
Amarelo do papel que embrulha a viagem
Amarelo, amarelo
Amarelo como o canário do antigo império
Amarelo, amarelo
Amarelo do cabo da enxada
Vivendo no chão já cansado e antigo
De cara rachada
Do sorriso encardido
No rosto do povo fudido e sofrido
Com a carapaça cansada
Amarelo, amarelo
Amarelo, amarelo da Oxun
Tempo amarelo, tempo amarelo
Amarelo que todos os dias
Fazem da poeira
O calo do tempo, em vão
Amarelo do fosfato
Que aduba a cana de açúcar no chão
Que até a cegueira enxerga
De longe ou de perto
No claro ou na escuridão
Amarelo, amarelo
Amarelo de Oxun
Amarelo...
(Tempo Amarelo, Nação Zumbi, in: Amarelo Manga, 2003).
Todos esses aspectos presentes no texto norteiam as imagens. O longa
utiliza o formato CinemaScope, lentes que ampliam a dimensão das imagens. Para o
filme, o recurso nos força a encarar os diversos retratos da miséria e, assim,
constatamos o quão inescrupulosas podem ser as relações humanas e os lugares
25
Diálogo extraído do filme Amarelo Manga, 2003, presente no poema Tempo Amarelo, de Renato
Carneiro Campos, 1980.
47
que habitam. A câmera de Assis reforça imagens pousadas de pessoas, do
comércio e, principalmente, das comidas de rua. A partir desta relação é perceptível
que os personagens são uma invenção e ao mesmo tempo, os moradores daquele
lugar, as histórias se confundem.
Ainda com relação à montagem, no trabalho de Paulo Sacramento,
uma subversão na lógica do roteiro. O texto original de Hilton Lacerda, ironicamente
também ator do filme como o cabeleireiro que atende Kika, prevê encerramento do
filme com a mesma seqüência de início, Lígia, no bar, no início de mais um dia de
trabalho repetitivo, encarando a câmera, diz:
Às vezes fico imaginando de que forma as coisas acontecem. Primeiro vem
um dia, e tudo acontece naquele dia até chegar à noite, que é a melhor
parte. Mas logo depois vem o dia outra vez... e vai, vai, vai... é sem parar.
26
A seqüência final, mero 67, apresentaria os personagens da cidade e
suas ruas. Contudo, a escolha se deu pela seqüência número 65, intitulada “O novo
dia de Kika”, onde finaliza com o diálogo:
Mas vai pintar de que cor? Kika (com mais determinação): Uma coisa meio
amarela. Cabeleireiro (encarando ela no espelho): coisa meio barro?
Laranja? Uma Kika (sorrindo para ele pelo espelho): Não. Uma coisa mais
manga. Amarelo Manga!
27
Os planos em Amarelo Manga abusam da câmera alta e planos-
sequências, no bar Avenida e no Texas Hotel, além de panorâmicas da cidade e
uma fusão, quando Kika recebe a carta ao mesmo tempo que Dunga a escreve. A
quebra da ilusão também aparece em alguns momentos, nas reflexões de Lígia
sobre sua vida e nos planos de Dunga. Esta cena, inclusive, é emoldurada por uma
janela de dentro do hotel para um pátio onde está Dunga, aos poucos, a mera
chega até o personagem que conversa com a câmera sobre seu plano de vingança
e solta a famosa expressão “bicha quer, bicha faz”. O recurso estará presente em
outro filme de Assis que explanaremos adiante. Amarelo Manga alcançou o público
26
Diálogo extraído do filme Amarelo Manga, 2003.
27
Diálogo extraído do filme Amarelo Manga, 2003.
48
de 130 mil espectadores no circuito comercial brasileiro, é considerado um filme de
baixo orçamento, realizado com aproximadamente R$ 500 mil e prima pela estética,
pelo caráter que as coisas possuem, sejam referências a partir de uma cor ou de
fetiches; o grotesco que não se esconde.
2.4. Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)
Em 2005, a produção pernambucana de cinema da geração Àrido Movie
surpreendeu mais uma vez com o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus,
dirigido por Marcelo Gomes. O filme apresentou o retorno ao sertão clássico, em
contraponto ao Baile Perfumado, de forma madura e primorosa um road movie
ambientado nos anos quarenta, marcado em primeiro lugar pela sutileza da
oralidade de um povo, possibilitada pela amizade entre dois fugitivos, Johann e
Ranulpho.
Sob o ponto de vista desta pesquisa, o longa-metragem concentra sua
narrativa apoiada em quatro eixos temáticos: a oralidade, o lugar, o cinema e o
tempo. São essas rodas que direcionam o olhar inteiramente para a dupla de
viajantes que fogem de uma mesma questão, o destino reservado pelos seus locais
de origem. O alemão Johann, interpretado por Peter Ketnath, foge da guerra
vendendo medicamentos pelas estradas do Brasil, e o sertanejo Ranulpho,
personagem de João Miguel, sonha em viver longe da miséria nordestina.
A viagem de Johann dura três meses desde que saiu do Rio de
Janeiro, contratado pela fábrica das Aspirinas, em direção à Trinufo, no interior de
Pernambuco, quando conhece Ranulpho. A amizade estabelecida pelos dois faz
com que a narrativa ganhe tons de buddy movie
28
, gênero cinematográfico muito
comum nos anos de 1980 no cinema norte-americano cujo foco se concentra na
relação de amizade entre duas pessoas. No entanto, nesta amizade também está
embutida uma relação de poder. Ranulpho decide seguir viagem com Johann, pois
28
Dois exemplos clássicos de buddy movie são: o irônico Butch Cassidy (1969), de George Roy Hill,
numa perspectiva masculina, e o drama Thelma & Louise (1991), de Ridley Scott, numa perspectiva feminina.
49
estabeleceram também um vínculo de trabalho. O sertanejo será uma espécie de
ajudante do alemão até o destino final no sertão.
O diretor Marcelo Gomes opta por focar nos personagens e em raros
momentos encontramos o esvaziamento da tela. O plano é uma continuidade dos
sentimentos dos atores e até mesmo das pessoas com as quais a dupla se depara
ao longo da viagem. um predomínio do primeiro plano, uma vez que as cenas se
concentram no interior do caminhão, enquadradas no para-brisa dianteiro.
O filme é composto por poucos atores, basicamente Peter Ketnath e João
Miguel, mas de muitos não-atores que acabam por imprimir um cenário naturalista
ao enredo. Não cabe nesta narrativa discutirmos a interpretação daqueles
sertanejos, pois de alguma forma eles estão ali encenando a si próprios, não se
sabe qual o nível de consciência desse processo, por isso mesmo é tão leve e
harmônico. A presença do povo é um aspecto que garante parte da força da
oralidade no filme. A outra parte fica a cargo das expressões, interjeições e reflexões
de João Miguel, no papel de Ranulpho.
Assim que se conhecem, Ranulpho expõe sua personalidade austera e
inconformada com o lugar onde vive:
Ranulpho – O moço parece cansado.
Johann São três meses de viagem. E agora esse Brasil que não acaba
nunca.
Ranulpho – Lugar que não presta é assim, demora “pra” acabar.
Johann – O quê?
Ranulpho – Nada não.
29
Para Ranulpho, o sertão é como um lugar perdido, sem perspectivas, diz
frases durante todo o filme que reforçam essa referência, como na seqüência em
que conversam sobre a guerra e a Amazônia, enquanto se alimentam em uma
espécie de mercearia, ele fala: “aqui, nem guerra chega” (Cinema, Aspirinas e
Urubus, 2005). Ou mesmo quando se refere à cidade em que nasceu, na sequência
em que vela a noite de Johann, picado por uma cobra. Recorda Ranulpho: “minha
história não tem graça. A começar pela cidade que nasci, com a licença da palavra,
29
Diálogo extraído do filme Cinema, Aspirinas e Urubus, 2005.
50
se chama Bonança. Cinco casas e uma cruz no meio, sem uma viva alma. Sol de
lascar” (Cinema, Aspirinas e Urubus, 2005).
Para Johann, em sua perspectiva estrangeira, o Brasil, tão logo o sertão,
é um lugar interessante e também uma “terra de ninguém”. Nas imagens em que
ele ainda está sozinho, sem a companhia de Ranulpho, atitudes indicam a postura
livre que adota no país. Ao abrir porteiras sem pedir passagem, no banho que
acontece em plena estrada, é como se o destino pudesse seguir seu curso, sem
barreiras, pedágios, imigrações, apenas as caronas fazem parte do percurso. Com
elas, a solidão pode ser compartilhada, nem que seja através do clichê
cinematográfico do cigarro.
A luz é particularmente importante em Cinema, Aspirinas e Urubus, pois
gera identidade com as características climáticas e geográficas do sertão, paisagem
revisitada do cinema brasileiro. Nas cenas diurnas, há uma escolha por pontos
estourados de luz, assim como se aprendeu a apreciar em Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1963), de Glauber Rocha, ou em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos
Santos. A luz adotada neste caso está para criar um clima estético, confirmando as
cores e as sombras daquele lugar. Em todo o filme um predomínio pelos tons de
terra, tudo é poeira, a falta de contraste das cores se assemelha a um filme em preto
e branco. Nas cenas noturnas, muitas delas ao ar livre, não desconfiamos da fonte
de luz artificial, pois nos é apresentado o farol do carro iluminando a projeção, a tela
do cinema, o candeeiro e a lua.
Sobre o processo de reconstrução histórica, a equipe de produção teve
um árduo trabalho com a retirada e colocação posterior dos postes de iluminação
que existiam por onde o caminhão da Bayer deveria passar e que não havia naquele
período. Além disso, a trilha sonora utilizou versões originais de canções dos anos
de 1930 e 1940, com destaque para interpretações de Francisco Alves e Carmen
Miranda. A trilha sonora é sutil e não compõe o filme sobrepondo emoções, recurso
utilizado em filmes no período da Retomada, a exemplo de Central do Brasil (1998),
de Walter Salles, e o próprio Baile Perfumado (1997), que imprimiu seu estilo pelo
contraste da música contemporânea em uma narrativa de época. A música Serra da
51
Boa Esperança (1937), de Lamartine Babo, na voz de Francisco Alves é
paradigmática da condição em que se encontram Johann e Ranulpho, em Cinema,
Aspirinas e Urubus (2005), ela inicia e termina o filme:
Serra da Boa Esperança, esperança que encerra
No coração do Brasil um punhado de terra
No coração de quem vai, no coração de quem vem
Serra da Boa Esperança meu último bem
Parto levando saudades, saudades deixando
Murchas caídas na serra lá perto de Deus
Oh minha serra eis a hora do adeus vou me embora
Deixo a luz do olhar no teu luar
Adeus
Levo na minha cantiga a imagem da serra
Sei que Jesus não castiga o poeta que erra
Nós os poetas erramos, porque rimamos também
Os nossos olhos nos olhos de alguém que não vem
Serra da Boa Esperança não tenhas receio
Hei de guardar tua imagem com a graça de Deus
Oh minha serra eis a hora do adeus vou me embora
Deixo a luz do olhar no teu luar
Adeus
(Serra da Boa Esperança, Lamartine Babo, 1937).
Filmado inteiramente em locações no interior da Paraíba, em lugarejos e
espaços perdidos entre as cidades de Cabaceiras, Patos, Picote e Pocinhos, o longa
descreve o lugar também a partir de imagens documentais ao mostrar as atividades
dos sertanejos em frente às suas casas, a mulher que alimenta os animais, o
homem que trabalha cortando madeira, a construção de cercas nos riachos. Essas
imagens vêm acompanhadas de observações do alemão sobre um cotidiano
diferente do seu. Ranulpho, em alguns momentos, satiriza a curiosidade de Johann,
pois para o sertanejo, é uma forma de exotização daquele lugar pobre.
Em uma dessas passagens aparece o seguinte diálogo:
Ranulpho O que é que o moço acha de tão interessante num lugar
miserável como esse?
Johann – Nunca tive num lugar assim.
Ranulpho – Aqui é seco e pobre.
Johann – Pelo menos não caem bombas do céu.
30
30
Diálogo extraído do filme Cinema, Aspirinas e Urubus, 2005.
52
E exótico para o povo daquele lugar é a engenharia trazida pelo
estrangeiro em seu caminhão. É a presença de um “galego” em terras brasileiras. A
primeira cidade em que Johann chega, a câmera está sob o capô, somos
apresentados ao lugarejo pela direção do carro. Ele segue pela cidade, faz a volta
na rua que parece ser a principal e também a única existente naquele lugar. Não
espanto, apenas a quebra da lógica e do tempo daquele espaço.
É o momento em que descobrimos qual a função de Johann naquele
caminhão, vender Aspirinas. Ranulpho questiona como é possível comercializar um
medicamento novo para um povo tão atrasado como aquele. Através de uma nova
possibilidade de tempo, a chave, o fascínio cinematográfico.
Nos anos quarenta o cinema havia entrado para a fase do cinema
falado e, por ocasião da segunda guerra mundial, os filmes de propaganda estavam
em alta. No filme, a produção utilizou imagens de arquivo da Cinemateca Brasileira
para compor a propaganda das Aspirinas, com imagens das películas Brasil
Maravilhoso, São Paulo de 1942 e do Cine Jornal Brasileiro VI. Mesmo assim,
algumas das localidades em que foi gravado o filme de Marcelo Gomes, até então
nunca tinham visto uma projeção de cinema o que conferiu certa realidade às cenas.
O cinema também é apresentado a partir de suas características técnicas,
como na seqüência em que Johann vende toda a carga de Aspirinas e junto o
material de projeção ao coronel e empresário Claudionor Pereira da Silva. O alemão
segue descrevendo que se trata de um moderno sistema de som chamado
soundtrack, um conjunto de 12 auto-falantes que acompanham o Movietone,
lançado em 1931, com a função de imprimir o som na película.
Para Ranulpho existia uma magia desconhecida naquele equipamento e
por vezes ele o analisa. Assim que aprende a projetar, no momento em que Johann
está doente, Ranulpho aproveita para exibir imagens de um sonho possível,
metaforiza o desejo de conquistar o Rio de Janeiro, projetando cenas do o de
Açúcar em sua mão.
Por se tratar de um road movie, encontros e superações aparecem ao
longo do filme e a passagem de Jovelina, interpretada por Hermila Guedes, é um
53
elemento da viagem que desperta tensão e poder entre os aventureiros. Ambos
ficam fascinados por aquela jovem triste, mas é Johann que tem o poder de
conquistá-la, tendo o cinema e o rádio como aliados.
O tempo da narrativa em Cinema, Aspirinas e Urubus, segue lento como
pede um espectador que acompanha os percalços dos anos de 1940, inserido em
estradas áridas. Contudo, o destino do qual se afasta Johann, faz questão de se
fazer presente nas conexões com o rádio, responsável por definir o período
histórico, e com as cartas que chegam pelo correio lembrando-o de um
compromisso com o Governo Nacional. Ainda aqui, existe o tempo interno de cada
personagem e suas experiências. A personagem de Giovanna Gold, Jacobina,
esposa do empresário Claudionor, por exemplo, é destacada como uma mulher de
hábitos europeus, pois aprecia cachaça, é adepta da astronomia e da política. E
como diz o marido, “voltou da França cheia de idéias pacifistas na cabeça” (Cinema,
Aspirinas e Urubus, 2005), ao propor um brinde em nome do fim das guerras do
mundo. Para ela, o homem interessante não é o alemão, mas sim, o exótico
sertanejo Ranulpho.
Outro elemento da viagem importante e que gera superação é o evento
da picada da cobra. A partir daquele momento, uma quebra da lógica, patrão e
empregado. Johann decide pagar Ranulpho realizando um de seus sonhos,
ensinando-o a dirigir. O medo da morte define seus próximos passos que são seguir
para Amazônia, onde acredita que poderá continuar a ser livre. E assim se torna o
passageiro do caminhão.
E o urubu, qual o sentido do animal presente apenas no fim da narrativa
se não seu aspecto mórbido em relação à pobreza. A imagem do urubu na cerca
marca a passagem do tempo de uma jornada que se encerra para dar início a uma
nova pela Amazônia. Ranulpho compara o tratamento dado pelos guardas da
estação de trem às pessoas que aguardam para viajar, ao tratamento de um animal.
Uma espécie de podridão social que obriga a população a viajar para um lugar
desconhecido em busca de trabalho e alimento, que convoca o alemão a se
54
apresentar ao governo ou então se dirigir a um campo de concentração, em São
Paulo.
O roteiro de Cinema, Aspirinas e Urubus é inspirado em relatos de viagem
do vendedor de Aspirinas, Ranulpho Gomes, tio-avô do diretor Marcelo Gomes. O
filme ganhou mais de 25 prêmios, entre eles, ABC Cinematography Award, Festival
de Cannes (Prêmio do Sistema Educacional Francês), Grande Prêmio Brasil de
Cinema, Festival Filme e Vídeo Cuiabá, Festival de Filmes Mexicanos Guadalajara,
Festival de Filmes Latinos Americanos de Lima, Festival de Filme Mar del Plata,
Prêmio Contigo Cinema Brasileiro, Festival Internacional do Rio de Janeiro,
Associação de Críticos de São Paulo, Festival Internacional de São Paulo, e foi
escolhido como representante brasileiro para concorrer a uma vaga ao Oscar de
Filme Estrangeiro em 2006. Para o cinema pernambucano é considerado um marco
divisor entre uma produção experimental e uma produção profissional, questão que
trataremos no próximo capítulo. Cinema, Aspirinas e Urubus é um filme antigo
historicamente, mas novo no que se refere aos cuidados técnicos para se chegar à
perfeição estética deste tempo.
2.5. Árido Movie (2006)
Em 2006, é lançado o segundo filme sob a direção de Lírio Ferreira, 10
anos após a realização do Baile Perfumado, onde dirigiu em parceria com Paulo
Caldas. Aqui, o diretor escolhe como nome para o filme a expressão Árido Movie,
designada por Amin Stepple, como referência ao movimento de cinema nos anos
1990 em atividade, em Pernambuco, criada como um paralelo ao campo da música
que tinha naquele período o seu movimento, o Manguebeat.
Stepple, em entrevista para a pesquisa e em diversos artigos sobre o
termo, sempre enfatizou que a expressão seria um reflexo mítico das tradições da
cultura popular pernambucana em consonância com as urgências tecnológicas
advindas com a globalização. O filme, no entanto, pegou carona nesse espírito
midiático e propôs mais um retorno ao sertão nordestino, desta vez,
55
cronologicamente contemporâneo. Vale lembrar que Cinema, Aspirinas e Urubus e
Baile Perfumado trazem estrangeiros contando suas histórias e o sertão como pano
de fundo, mas em épocas distintas a atual.
Assim como em Amarelo Manga, Árido Movie utiliza o cenário urbano da
capital, Recife, para expor parte de sua jornada, estamos diante de mais um road
movie. A direção desta viagem será dada por Jonas, personagem de Guilherme
Weber, repórter do tempo que mora em São Paulo e que vai do Recife até a fictícia
cidade de Rocha, interior do estado de Pernambuco, para enterrar o pai, Lázaro,
interpretado por Paulo César Pereio. O estrangeiro deste filme será o próprio Jonas
que demonstra deslocamento no reencontro com o Estado em que nasceu e com
sua família.
Para a viagem que o personagem principal está fadado a cumprir, o
roteiro escrito em conjunto por Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira e
Eduardo Nunes apresenta três questões a serem discutidas: o dilema político da
água, no Nordeste, a vingança da família que Jonas deve cumprir, aliado ao seu
descontentamento, e a plantação e uso da maconha. Aqui está o grande problema
deste longa-metragem, o não aprofundamento em nenhuma das três questões, o
que acaba refletindo em construções incompletas dos diversos personagens que
seguem a trama. O problema se torna latente talvez se analisado numa perspectiva
mais ampla, da expectativa que se gerou para o segundo filme do diretor que
surpreendeu o cinema brasileiro há 10 anos com o Baile Perfumado, além de termos
conhecido quase que simultaneamente ao lançamento de Árido Movie, o coeso
Cinema, Aspirinas e Uurubus, do também pernambucano Marcelo Gomes.
A narrativa abriga núcleos de personagens que vivem situações
particularizadas e, em alguns momentos, interagindo com os outros núcleos. Uma
forma de expor essas narrativas paralelas, se pela montagem ser
predominantemente fragmentada. Em diversas sequências acompanhamos os
dilemas de Jonas e, em paralelo, o que acontece naquele instante na sua família,
com seus amigos, no núcleo indígena, ou mesmo com a videomaker Soledad,
56
personagem de Giulia Gam. Basicamente são esses os quatro núcleos que
compõem a narrativa que perpassa a história de Jonas.
O filme é apresentado da seguinte forma: Assassinato de Lázaro, pelo
índio Jurandir. Jonas, em São Paulo, recebe notícia da morte do pai e segue para o
Recife, onde se depara com a questão climática do aquecimento da capital, banhada
por rios, mas que sofre com a falta de água potável. No Recife, revê sua mãe, Stela,
e seus amigos de faculdade, Bob, Falcão e Verinha. Enquanto isso, na cidade de
Rocha, a família o aguarda para enterrar o corpo do pai e para que haja vingança na
morte. Na viagem, Jonas conhece Soledad, videomaker que viaja pelo sertão em
direção à Rocha, coletando depoimentos sobre a falta d’água. Os amigos de Jonas
decidem encontrá-lo em Rocha e realizam uma viagem regada a muita maconha e
bebida, o que desencadeia em alguns acontecimentos. O núcleo indígena se divide
entre gerir o bar, a borracharia e o posto, complexo chamado de Oposto, e esconder
Jurandir. Com a chegada de Jonas a Rocha, os núcleos se misturam, fatos
acontecem, culminando com o retorno de Jonas a São Paulo, sem ter ele vingado a
morte de seu pai, neste momento já com a presença de Soledad grávida.
Como exemplo da montagem em paralelo, temos o exemplo na
abertura, antes da entrada dos créditos, assim como aconteceu no Baile Perfumado.
De um lado Jonas nos estúdios de gravação da previsão tempo e, de outro, Lázaro,
em um baile envolvido com a índia Wedja. O bloco termina com a morte de Lázaro
na recepção de um hotel em Rocha, no alto, a televisão exibe Jonas em imagens
nítidas pela primeira vez. Os créditos aparecem sob as águas do encontro entre o
mar e o Rio Capibaribe, ao som da música cantada mais uma vez pelo artista
mangue Otto, que diz no refrão: “e o mar virou sertão, e o mar virou sertão” (Árido
Movie, 2006). O filme é montado inteiramente em cima de paralelos narrativos
especialmente durante o percurso da viagem; em uma via está Jonas, em outra, os
amigos, em outra, a família de Jonas e, em outra, os índios.
O posicionamento de câmera definido por Ferreira confirma o estilo do
diretor, assim como no Baile Perfumado, a câmera realiza um giro de 360° na
sequência do entardecer no bar Casa de Banhos e na praça onde se apresenta uma
57
vidente. No Baile Perfumado, observamos este recurso na sequência em que vemos
Lampião no alto dos canyons. Em Árido Movie, os canyons estão presentes mais
uma vez nas imagens de Jonas conversando com Elétrico, personagem de José
Dumont, tendo como fundo, muros suntuosos de pedras, enquadramentos que
impressionam pela dimensão das formações rochosas. A fotografia contou com o
trabalho do carioca e também cineasta Murilo Salles.
Nas locações internas, em especial nas cenas da casa da avó de Jonas,
Dona Carmo, a luz é sempre de pouca visibilidade, seja dia ou noite, vemos pedaços
escuros na tela que nos remetem mais uma vez ao Baile Perfumado. Assim como a
presença de filtros de lentes azuis, é o caso da sequência do bar em que acontece a
dança coletiva dos amigos de Jonas; ou no quarto do profeta Meu Velho, uma luz
azul com tonalidades de luz fria branca; e nas panorâmicas do Rio Tietê, em São
Paulo.
Com relação à montagem, curioso notar que um pequeno problema de
erro de continuidade. Para quem está atento à geografia local do Recife, na
sequência do táxi, Jonas conversa com o motorista sobre o clima. Fora do carro,
vemos que eles estão no Cais José Estelita. Percebemos que estão sentados em
lados opostos, e como a conversa entre eles se em plano e contra plano,
teríamos de avistar do lado do motorista, o mar, que de fato aparece, e do lado de
Jonas, os armazéns, o que não acontece, pois também vemos o mar, sendo
impossível para quem transita nesta avenida, independente da direção que o carro
estiver. Além disso, o fim da sequência acontece com a subida do carro em um
viaduto, da mesma forma, é possível perceber que são viadutos diferentes,
dependendo de quem está sob a mira da câmera.
Árido Movie é considerado um filme de baixo orçamento, custou R$ 750
mil. O roteiro passou por seis tratamentos até chegar à versão final. Foi filmado nas
cidades de São Paulo, Recife e, em sua maior parte, na cidade de Arcoverde e
arredores, distante 250 km do Recife, numa região de transição entre o Agreste e o
Sertão pernambucano. Nas cenas de estrada dos amigos de Jonas, percebemos
que se trata ainda da zona de transição entre a Zona da Mata e o Agreste, com
58
passagem pelos elevados da BR-232
31
. Nesses trechos a câmera explora em
panorâmicas as depressões das serras, o que garante frescor e velocidade das
imagens.
Após o lançamento, o filme passou a ser considerado pela crítica como
cult, ou seja, com repetidas referências a um universo pop revisitado. Este universo,
sem dúvida, é o da geração destes cineastas quando jovens. Diversos elementos
nos dão indícios desta marca, a começar pela banda que toca na abertura do filme,
Renato e Seus Blue Caps, banda de baile pós-Jovem Guarda. Durante o filme,
somos apresentados a uma série de personagens coadjuvantes ou pontas que o,
em si, atores-personalidades, que estão ali muito mais pelo que representam
enquanto artistas ícones de uma geração.
Paulo César Pereio, no personagem de Lázaro, atua no estilo “machão
imponente”, assim como fez boa parte de sua carreira no cinema brasileiro; José
Celso Martinez Corrêa, ilustre teatrólogo profético-anarquista, interpreta Meu Velho,
inspirado no profeta da região de Buíque chamado Meu Rei, município próximo de
Arcoverde, com direito a frases visionárias sobre a origem da água benta que ele
oferece ao povo do lugar: “não há vida sem estado líquido e eu tenho a poética das
águas” (Árido Movie, 2006). Em outro momento solta no ouvido de Soledad “o olhar
é a luz que sai dos olhos” (Árido Movie, 2006). Seguem-se a este grande elenco, a
participação do jornalista Xico Sá, que aparece na televisão anunciando o jogo de
futebol do Brasil no Vietnã. Xico é cearense e viveu intensamente a onda cultural
mangue da geração dos anos de 1990, chegou, inclusive, a atuar em outros filmes e
videoclipes pernambucanos. Em 2008, foi colaborador no roteiro em Deserto Feliz;
também temos a presença do cantor e compositor Lirinha, da banda Cordel do Fogo
Encantado, já parte da geração pós-mangue, que surgiu, inclusive, na cidade de
Arcoverde, e atua no filme como assistente de Meu Velho; além do cineasta Cláudio
Assis, atendente do bar onde ocorre a transmissão do jogo anunciado por Xico Sá.
E dentro deste clima intimista regional criado em Árido Movie se sobressai
na narrativa o linguajar adotado pelos de amigos de Jonas, numa espécie de
31
Região conhecida como Serra das Russas, próximo ao município de Gravatá.
59
coloquialidade jovem, urbano-recifense. O trio é responsável por imprimir na
narrativa momentos cômicos garantidos por gírias e expressões satíricas de uma
pseudo-intelectualidade. Do personagem Falcão, interpretado por Gustavo Falcão,
ouvimos “solte o briefing”, “porra Bob, o cara só quer ser Lair Ribeiro”, “passa a bola,
né? Renato Gaúcho” ou ainda “em se plantando, tudo ”. Bob, personagem de
Selton Melo, é responsável pelas tiradas “você pediu: Tim Maia, Me motivo ou
ainda “bocas secas, de Graciliano Ramos”, ou seja, o sertão cai numa espécie de
ridicularização contemporânea.
Na verdade, o sertão apresentado em Árido Movie, é pautado por
problemas políticos que não estão mais na ordem da falta d’água e da seca, mas
sim, pelo cultivo indiscriminado de maconha. Atividade desenvolvida pela família de
Jonas, uma espécie de máfia sertaneja, que se refere sempre como a plantação de
algodão que está se esgotando e precisa ser honrada. Como grande inimigo dessa
atividade agrária, somos apresentados aos índios que de fato povoam aquela
região. A zona da cidade de Arcoverde, onde se passa Rocha, é habitada pelas
tribos indígenas Pankararu, Xucuru e Fulni-ô.
Essa atualização do sertão é interessante sob o ponto de vista dos índios,
pois pouco aparece no cinema contemporâneo como parte da história do Nordeste.
O personagem Elétrico traz um discurso característico da realidade indígena do
agreste e sertão de Pernambuco, a inserção na sociedade moderna através de uma
marginalidade; ele diz que morou em São Paulo, para onde foi levar maconha, e
terminou em um “puteiro” da avenida São João, quando então decide voltar.
Enfatiza o poder político envolvido nas terras em que habitam, narrando o fato dos
índios terem perdido tudo, os homens, de donos das terras viraram empregados e
as mulheres, prostitutas. Wedja é uma representação dessa mulher sem lugar,
desterritorializada e subjugada. Zé Elétrico diz a Jonas: “a gente não é mais índio. A
gente é índio quando querem falar mal. Índio é uma raça que derreteu” (Árido
Movie, 2006). O índio Jurandir é representado pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos
que retorna ao cinema pernambucano, após o consagrado papel como Lampião, em
Baile Perfumado.
60
Para contrapor a disputa, temos o discurso vindo de fora da região com a
videomaker Soledad. No filme, a água para Soledad está ligada a uma questão
geográfica, assim explica seu projeto a Jonas num discurso excessivamente textual.
As imagens que acompanham Soledad trazem em segundo plano sempre a
presença de carros pipas:
Eu ‘tô’ desenvolvendo a partir de um lugar específico, no caso o Vale do
Rocha, uma leitura sobre as conseqüências criadas pelo embate da água,
pela falta d’água na sociedade. E dentro desse universo sertanejo eu
consegui identificar vários pontos dessas nuances, por exemplo, em Rocha
eu vou encontrar o discurso mítico e político da água. De que maneira é
distribuída a pouca água da região, seu uso político da região. Eu to falando
demais, né? (...) Você vindo enterrar seu pai e a gente aqui discutindo
oceanografia.
32
A visão de Jonas para sua casa também é estrangeira. Ele não se
reconhece nas pessoas que o da sua família, mesmo sabendo que há uma
intimidade gerada pela exposição advinda do seu trabalho, a presença diária na
televisão. Incomoda o fato de descobrir que o pai o imitava nos momentos em que
estava alcoolizado, uma liberdade moral que ele, Jonas, não podia impedir. Durante
conversa no carro com Soledad, diz que não sente a dor da perda do pai, pois não
existem lembranças de Rocha, mesmo assim, a sensação de não se sentir um
estranho dentro desse mundo (pernambucano). Chega a fazer referências ao livro O
Estrangeiro, de Albert Camus (1942), mas ao final não somos convencidos da
solidez dessas dúvidas, registradas pela vidente Madame Bernadete, interpretada
por Magdale Alves.
A relação de Jonas com o tempo é climática e existencial. No estúdio
anuncia que não haverá mudança no clima do Nordeste, Jonas repete a mesma
frase em vários contextos durante o filme, para dar a ideia que o tempo não muda o
lugar, as pessoas, nem seus costumes; e no incômodo calor sentido no Recife deixa
escapar a frase: “o mesmo sol de dois canos” (Árido Movie, 2006), referência ao
poema de João Cabral de Melo Neto.
32
Diálogo extraído do filme Árido Movie, 2006.
61
O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois. o fuzil de fogo.
incendeia a terra: tiro de inimigo).
O sol ao aterrissar em Pernambuco,
acaba de voar dormindo o mar deserto; mas ao dormir
se refaz, e pode decolar mais aceso;
assim, mais do que acender incendeia,
para rasar mais desertos no caminho;
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
por onde ele continue a voar dormindo.
(O Sol em Pernambuco, João Cabral de Melo Neto, 1968).
Coincidências a parte, Árido Movie, faz referência a outro filme desta
geração, Deserto Feliz, de Paulo Caldas. Outra cidade fictícia, mas que será ponto
de parada para Soledad durante as gravações de seus depoimentos. Na época de
lançamento do Árido Movie, Deserto Feliz se encontrava em processo de
produção. Entre as referências e interlocuções entre os filmes selecionados, para a
pesquisa, a que se faz mais evidente diz respeito ao diálogo cinematográfico
estabelecido com o filme Baile Perfumado. O crítico de cinema Cléber Eduardo, da
revista eletrônica Cinética, resume bem a questão:
Estamos em mais um percurso de um sujeito estranho a um determinado
lugar. A diferença é que o estranho, agora, é um sujeito de volta ao lar
original, do qual não se sente parte. Entre o libanês solto no sertão líquido e
esverdeado de Baile Perfumado e o sertanejo urbanizado colocado nos
impasses do sertão seco e amarronzado de Árido Movie, o índice de
estrangeirismo é superior no personagem cuja proximidade no passado com
o sertão apenas salienta sua distância no presente.
33
Já para outros críticos, como Rodrigo de Oliveira
34
, da revista eletrônica
Contracampo, o filme é em si, uma representação da ressaca, sem moral a
questionar, apenas uma moral lisérgica, encoberta por jogos de palavras.
O fato é que Árido Movie seguiu o rastro pernambucano e se firmou
como mais um filme nacional com excelentes resultados em festivais e premiações.
33
http://www.revistacinetica.com.br/aridomovie.htm
34
http://74.125.113.132/search?
q=cache:nq2uhCb7sfwJ:www.contracampo.com.br/79/critaridomovie.htm+rodrigo+de+oliveira+contracampo+
%C3%A1rido+movie&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
62
No Grande Prêmio Cinema Brasil, instituído pelo Ministério da Cultura, recebeu doze
indicações, no Festival de Cinema Brasileiro de Miami levou como Melhor Diretor e,
em casa, no Cine-PE ganhou oito prêmios, Melhor Longa-Metragem, Montagem,
Fotografia, Ator Coadjuvante, Diretor, além dos prêmios especiais da Quanta, BNB e
crítica, consagrando a noite pernambucana no Teatro Guararapes, em 2006.
2.6. Baixio das Bestas (2007)
Partimos para o segundo longa-metragem de Cláudio Assis na direção.
Não é preciso mais pedir licença, nem abrir concessão, a única certeza que temos é
que iremos encontrar mais polêmica pela frente. Numa linha de produção
pernambucana, o filme foi realizado pela produtora Parabólica Brasil com orçamento
de R$ 1,3 milhão, captado através do prêmio para filmes de Baixo Orçamento pelo
Ministério da Cultura.
Nesta ficção somos apresentados a adolescente Auxiliadora que mora
com seu avô, mas suposições de que seja também seu pai, em um pequeno
distrito da Zona da Mata pernambucana, região canavieira do Estado. No cenário
urbano conhecemos Cícero, adolescente classe média, que estuda no Recife e
passa os fins de semana na cidade do interior onde vive sua família. Lá, ele se
“diverte” na companhia dos amigos Everaldo, Cilinho e Esdras. O lazer dos rapazes,
construído em moldes perfeitos de playboys do sertão, é violentar, as não menos
submissas prostitutas da região, sob o efeito de muita bebida alcoólica. Como
pausas ao terror que se instaura na tela, acompanhamos descritivamente a colorida
brincadeira do maracatu rural.
Do casal Auxiliadora e Cícero, distantes de qualquer prerrogativa inocente
de um Romeu e Julieta, conhecemos o que move o desejo unilateral e amoral do
jovem, a exposição do corpo feminino nu e até infantil da garota ofertada, via laço
paternal, como meio de vida num lugar chamado Baixio. Cláudio Assis apresenta
neste filme o espaço onde convive a opressão feminina e a perversão masculina,
chamado de Baixio das Bestas. O trabalho naturalista de Walter Carvalho na
63
fotografia, repetindo a parceria com Assis, nos coloca em dúvida a pensar se
estamos diante de uma história apelativa ou corajosa. Talvez a resposta seja
assustadora e permissiva, mas a resposta dada pelo próprio diretor em sua fala de
apresentação durante festivais resume a questão, “é um filme sobre impunidade”.
O universo da cultura popular aparece no prólogo inicial para marcar
essa tradição imanente ao cinema desta geração. Fotografias de engenhos em preto
e branco dando contorno a perspectivas gráficas e certo índice de granulação são
exibidas lentamente ao som de um texto em off do filme Menino de Engenho (1965),
de Walter Lima Jr., numa referência ao próprio livro regionalista de José Lins do
Rêgo, publicado em 1932. Na abertura, a narração apresenta o tempo e o espaço
em Baixio das Bestas, o tempo do ciclo da cana e o espaço comum dos entornos
das usinas:
Outrora havia os engenhos, reportavam a campina. Veio o tempo e os
engoliu. Havia o tempo engolido a usina. Um ou outro ainda quem diga
que o tempo vence no fim. Um dia ele engole a usina, como engole a ti e a
mim.
35
Após as fotografias, a tela escurece e conhecemos o palco em que
Auxiliadora é explorada, um canto escuro nos fundos de um posto de gasolina onde
o avô a coloca nua, iluminada por um poste. O enquadramento, a luz e as
tonalidades da cena nos remetem ao expressionismo de O Grito (1893), mas nós, os
observadores, é que seriamos tomados pela expressão de desespero do ser
desenhado por Edvard Munch. A câmera afasta-se lentamente abrindo para um
plano maior onde vemos os voyeurs daquela cena, homens em estado de luxúria. O
plano-sequência finaliza com a câmera no alto focando uma cruz. O plano se repete
em outro momento do longa, no sentido inverso, do plano geral até a aproximação
fechada em Auxiliadora.
A personagem de Auxiliadora é interpretada pela atriz de 22 anos, Mariah
Teixeira, que faz sua estreia no cinema. No filme, ela encarna uma menina de 13
anos que pouco fala, nos momentos de maior desespero o que consegue é emitir
35
Trecho extraído do filme Baixio das Bestas, 2007.
64
grunhidos de dor. Auxiliadora está fadada a ser o bicho de estimação do avô, o bruto
e escatológico, Seu Heitor, que a cria como em um cativeiro, mas como a redenção
não faz parte da estilística do diretor Cláudio Assis, a menina conseguirá fugir da
gaiola e viver para o que sempre foi alimentada, a prostituição.
Após a apresentação de Auxiliadora e sua vida de resignação,
conhecemos o espaço onde vive Cícero, personagem de Caio Blat. No plano geral,
a cenografia expõe uma sala da classe média, com o personagem sempre deitado
em um sofá tomado pela preguiça. A mãe, interpretada por Magdale Alves, uma
funcionária pública da cidade, em todas as cenas tenta uma interação fracassada
com o rapaz. O universo de Cícero, único que possui alguma ligação com a escola,
resume-se a reclamar das atividades designadas pela mãe, dos estudos no Recife,
pedir a caminhonete emprestada do pai e sair com uma turma da cidade para beber,
atirar e promover orgias.
O núcleo de amigos de Cícero é composto por Esdras, vivido por Samuel
Vieira, Cilinho, interpretado pelo cantor China
36
, e Matheus Nacthergaele, no papel
de Everaldo. O paulista Matheus Nacthergaele, veterano no cinema pernambucano,
desempenha o papel de líder dos amigos. Tido como gênio por Cícero, Everaldo
gaba-se por ter abandonado os estudos na capital e optado por ser o rei da cidade,
com direito a cometer delitos sem punição.
Os diálogos reforçam que a característica faz parte de uma herança
maldita passada de pai para filho. O personagem de Matheus Nacthergaele,
novamente em um filme de Assis, ganha o direito em pronunciar as questões mais
polêmicas do filme. Após a sequência do atropelamento no canavial, cometido por
Cícero, os rapazes se reúnem no cinema para aguardar notícias da vítima;
obviamente não há compaixão nesta espera, apenas um problema a ser resolvido, já
que se trata de mais um miserável invisível aos olhos daqueles jovens, então
Everaldo diz, em tom irônico: “A pobreza é que nem um câncer, vai destruindo tudo,
quanto tu vê, pegou no pulmão. A pobreza é que vai socializar o mundo, uh!”
(Baixio das Bestas, 2007).
36
Interessante notar que Samuel e China são artistas da nova cena musical pernambucana na Banda
Mombojó e Del Rey que começam a interagir com o cinema, agora, na perspectiva da atuação.
65
A continuação desta sequência traz um momento emblemático para o
filme, Nacthergaele, novamente quebra a ilusão da cena em meio a uma
parafernália cinematográfica, olha para a câmera e fala: “Sabe o que é o melhor do
cinema? é que no cinema tu pode fazer o que tu quer” (Baixio das Bestas, 2007).
Sobre esta questão, em entrevista para a pesquisa, o roteirista do filme, Hilton
Lacerda, explica que a frase originalmente não estava no roteiro e, quando soube do
acontecido, teria discordado do diretor sobre essa interpretação. No entanto, afirmou
que um desafio em trabalhar com estilos tão diferentes, como é o caso de
Cláudio Assis e Lírio Ferreira, por exemplo. Acredita que essas diferenças é que
fazem do cinema pernambucano ser tão interessante do ponto de vista criativo.
A quebra da ilusão funciona mais uma vez como uma subjetiva indireta
livre, recurso identificado por Pasolini (1982) ao se referir a monólogos interiores
onde não se diferencia se estamos na presença do personagem ou do realizador,
idealizador da obra. No cinema brasileiro o recurso é visível nos filmes de Glauber
Rocha, em especial no curta-metragem proibido, Di (1976), onde o cineasta baiano
narra verborragicamente o enterro do pintor Di Cavalcanti. Perceptível também na
literatura, no caso de romances como Ulisses (1922), do irlandês James Joyce. É
evidente que na cena de Baixio das Bestas estamos diante de Cláudio Assis
reivindicando mais uma vez o seu direito em exercer sua cinematografia livre. O
próprio aparece em cena como um caminhoneiro no bar em que está Auxiliadora,
livre do avô.
O cinema decadente, espaço onde se encontram os rapazes, em sua
fachada apresenta o nome popular “Cine Atlântico”. A metalinguagem ao cinema
outra vez ganha destaque em uma trama pernambucana e serve como homenagem
ao período da pornochanchada
37
do cinema brasileiro dos anos de 1970,
37
Segundo o pesquisador Nuno Cesar Abreu, em seu livro “Boca do Lixo, cinemas e classes populares”,
a pornochanchada agregava o prefixo porno sugerindo conter pornografia (conceito sempre conflitante com o
de erotismo) ao vocábulo chanchada (conceito que definia, em geral, produto popular e ‘mal realizado’) e logo
se tornou uma definição genérica para filmes brasileiros que recorriam, em suas narrativas, ao erotismo ou apelo
sexual, mesmo que fossem melodramas, dramas policiais, de suspense, aventura, horror etc. Assim,
‘pornochanchada’ passou a designar (indiscriminadamente) um certo modelo de filmes como se fosse um
gênero.” (ABREU, 2006, p.140)
66
evidenciando cenas de sexo explícito do filme Oh! Rebuceteio (1983), de Cláudio
Cunha, durante momentos de distração dos garotos no local.
O cinema também é o lugar onde ocorre uma das cenas mais violentas, o
sadismo brutal à personagem Dora, interpretada por Dira Paes. A mera distancia-
se para a parede do palco em que está Dora e no jogo de luz e sombra em silhueta
registra a simulação da ação.
Para o espectador que acompanhou bem antes o plano-sequência da
visita dos rapazes ao bordel, que também apresenta boas soluções de iluminação e
enquadramento, a exemplo do trecho em plongée que Everaldo joga a prostituta
Bela, interpretada por Hermila Guedes, no chão iluminada por uma porta aberta,
cabe aqui, apenas clarear as questões técnicas, pois a violência contra a mulher
ultrapassa neste filme qualquer alegoria a um universo sádico. As cenas, em suas
luzes perfeitas, reforçam a ideia que a violência está no filme como a sublimação do
poder não alcançado pela coerência.
Diante da opção estética pelo grotesco, em imagens e diálogos, o filme se
utiliza de várias referências a esse universo. Dos bichos criados em garrafas por
Seu Heitor até a construção de uma fossa no quintal que, aparentemente sem
propósito, funciona como metáfora a uma visão de mundo particular, onde o odor
desencadeado não se sabe se da fossa, ou mesmo do vinhoto produzido pelas
usinas próximas, é na verdade, para o diretor, “o cheiro estranho da podridão do
mundo”.
Perante os aforismos permitidos por Assis, percebemos que, por mais
realista que sejam suas escolhas estéticas, não passam de artifícios para comprovar
que estamos diante de uma ficção criada para a experiência da sala escura. Assim,
como os diversos planos fotográficos explorados pelo diretor de fotografia, Walter
Carvalho, nas sequências em que Auxiliadora se desloca para cidade, passando por
canaviais, pontes e aguardando sentada em uma banca de fim de feira, típica do
interior do Nordeste, a condução que a levará de volta para casa. As imagens são
belos retratos de cor e luz que caberiam muito bem em qualquer texto dos clássicos
escritores regionalistas José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Jorge Amado ou
67
mesmo Gilberto Freyre e os resquícios históricos de uma Casa Grande e Senzala e
ainda Josué de Castro e a sua fome geográfica e nos poetas Carlos Pena Filho e
Ascenso Ferreira, homenageados, inclusive, pelo diretor do filme nos créditos finais.
A trilha sonora ficou a cargo do músico, Pupilo, produtor e baterista da
banda Nação Zumbi, que imprimiu toques de requinte às melodias populares. A
canção, Vale do Jucá, é um desses belos exemplos que encerra o filme, cantada
pelo músico tocador de rabeca, Siba, e a sua banda Fuloresta, que haviam
participado do filme Baile Perfumado tocando para Lampião e Maria Bonita na
sequência da jangada, em pleno rio São Francisco.
Era um caminho / quase sem pegadas / onde tantas madrugadas / folhas
serenaram / era uma estrada / muitas curvas tortas / quantas passagens e
portas / ali se ocultaram / era uma linha / sem começo e fim / e as flores
desse jardim / meus avós plantaram / era uma voz / um vento, um sussurro /
relâmpago, trovão e murro / luz que se lembraram / uma palavra quase sem
sentido / um tapa no do ouvido / todos escutaram / um grito, um odo /
perguntando aonde / nossa lembrança se esconde / meus avós gritaram. //
Era uma dança / quase uma miragem / cada gesto / uma imagem / dos que
se encantaram / um movimento / um traquejo forte / passado, risco e recorte
/ se descortinaram / uma semente no meio da poeira / c da lavoura
primeira / meus avós dançaram / uma pancada / um ronco, um estralo / e
outros pés e um cavalo / guerreiros brincaram / quase uma queda / quase
uma descida / uma seta remetida / as mãos se apertaram / era uma festa /
chegada e partida / saudações e despedida / meus avós choraram. //
Onde estará / aquele passo tonto / e as armas para o confronto / onde se
ocultaram / e o lampejo da luz estupenda / que atravessou a fenda / e tantos
enxergaram / ah! se eu pudesse / por um segundo / rever os portões do
mundo / que os avós criaram.
(Vale do Jucá, Siba e a Fuloresta, 2002).
Baixio das Bestas foi gravado entre janeiro e fevereiro de 2005, na cidade
de Nazaré da Mata, distante 65 km da capital Recife. Além disso, a equipe filmou
nos arredores dos Engenhos Nova Cintra e Terra Nova, com imagens da Usina
Aliança. O filme foi rodado com negativos Kodak 5218 e 5205 que garantiram o
colorido apurado das diversas pigmentações da tela. Baixio das Bestas é
essencialmente um filme verde, da cultura da cana-de-açúcar.
Através do cultivo da cana, como trabalho sazonal, se insere o forte papel
do Maracatu Rural nas comunidades locais. No filme, o núcleo do Maracatu, liderado
68
pelo Mestre Mário, personagem de João Ferreira, expõe discussões sobre a relação
entre o fechamento das usinas e as apresentações do Maracatu na capital como
fonte de renda extra para os trabalhadores. Retomando o curta-metragem Maracatu,
Maracatus, de Marcelo Gomes, o que se apresenta aqui é novamente a utilização de
uma tradição da cultura popular em virtude de uma lógica econômica exploratória.
Vale lembrar que o cultivo da cana no Nordeste é secular remonta os
primórdios do Brasil. Recife, inclusive, foi fundada em 1537 e se originou de
pequenos engenhos que hoje o bairros da Zona Norte da cidade. E o Maracatu
aparece como parte de um folclore criado pelos escravos como imposição de uma
corte de baixo clero, composta por reis, rainhas e guerreiros de lança, em
contraponto a hegemonia europeia. Existe então uma história pernambucana que
apregoa marcas culturais e nas relações humanas com 500 anos de existência,
indiscernível.
Nazaré da Mata é a cidade por excelência dos Maracatus Rurais. Para o
filme, foi convidado o Maracatu Estrela Brilhante. Como dito no início desta análise,
o tempo em Baixio das Bestas é determinado pelo ciclo da cana - plantação, colheita
e queimada. Até o cinema é destruído. E na seqüência final, uma chuva lava o
acontecido e prepara a terra para novas safras.
O longa-metragem foi vencedor no Festival de Brasília, em 2006, com
seis prêmios: Melhor Filme, Melhor Atriz, para Mariah Teixeira, Melhor Ator
Coadjuvante, para Irandhir Santos, Melhor Atriz Coadjuvante, para Dira Paes,
Melhor Trilha Sonora, composta por Pupillo, e Prêmio da Crítica. Na capital
administrativa e política do país, o anúncio do prêmio gerou uma conturbada cena
com direito a aplausos e vaias. O filme também venceu o 36º Festival de Roterdã,
importante festival de cinema independente da Europa, como Melhor Filme. Como
apreciação final, recorremos mais uma vez ao diretor do filme durante o lançamento
do filme em Aracaju, em 5 de maio de 2007, onde ele diz sobre sua obra: “ou você
reage ou você rasteja”.
2.7. Deserto Feliz (2008)
69
Depois de duas experiências em longa-metragem, uma no campo da
ficção e a outra no campo do documentário, Paulo Caldas lança Deserto Feliz numa
co-produção estrangeira entre a produtora pernambucana, Cama Filmes, e a
alemã, Noir Films. Da relação entre ficção e documentário, o filme extrai o relato de
Jéssica, interpretada pela atriz Nash Laila, garota de 14 anos, que cansada de ser
violentada pelo padrasto foge da cidade em que mora com a mãe, no sertão
nordestino, para a capital do estado, Recife. A realidade neste caso representada é
a da vida de mais uma adolescente submetida ao turismo sexual, tão presente no
cenário brasileiro, e que mesmo assim ainda consegue sonhar com um futuro
mágico fora do país.
O plano de abertura será o responsável por marcar o tempo em toda a
narrativa, ele se repetirá ainda duas vezes ao longo do filme. A primeira vez antecipa
os fatos em um quarto, sentada ao da cama em primeiro plano, conhecemos
Jéssica, olhar vazio e distante para fora do campo. No segundo plano, Mark,
deitado, em imagens desfocadas, igualmente pensativo. A cena está em uma
tonalidade azulada, matriz estética que perdurará ao longo do filme.
O filme é cosmopolita e se divide em três blocos marcados pela cena
descrita, cada bloco descreverá a vida dessica em uma cidade diferente, Deserto
Feliz, Recife e Berlim. Inicialmente conhecemos o cotidiano da garota na fictícia,
Deserto Feliz, onde vive com a mãe Maria, personagem de Magdale Alves, e com o
padrasto, Biu, personagem de Servílio Holanda. A cidade na verdade é apenas um
lugarejo, conhecemos a casa rústica de Jéssica, em meio a folhagens e cajueiros. A
renda da família advém do trabalho de Maria no comércio de Juazeiro ou Petrolina,
não sabemos ao certo, apenas que ela tem que atravessar na garupa da moto do
marido a ponte Presidente Dutra, que liga as cidades, baiana e pernambucana, e do
trabalho de Biu, nas parreiras do Vale do São Francisco e como caçador de animais
para tráfico. Acompanhamos Jéssica indo à escola, uniformizada, passeando com a
mãe pelo comércio, mas o retorno para casa, sem a presença de Maria, parece
70
repetir uma tortura diária, pois é o momento em que a garota é vítima de estupro
pelo padrasto.
Neste núcleo de personagens quase não há diálogo, exceto pelo
personagem Mão de Veia, interpretado por João Miguel, responsável pelo comércio
ilegal de animais na região. Ele interage em algumas cenas com a família de Jéssica
e mantém algumas falas sobre a atividade que desempenha. o personagem de
Servílio Holanda, atualiza o trabalho feito em 2004 no curta-metragem, Entre
paredes, de Eric Laurence, onde vive João. Mudo ao seu cotidiano, esboça apenas
o desejo possessivo pelas mulheres.
O primeiro diálogo entre mãe e filha aparece após sete minutos de
imagens do cotidiano da casa. À mesa, ao iniciar a refeição, Maria e Jéssica travam
a vazia conversa:
Maria – Qual é o problema de cuscuz com bode, Jéssica?
Jéssica – Não aguento mais não, mainha.
Segue seqüência por alguns segundos
Maria – Não aguenta o quê, menina?
Jéssica – Não agüento.
38
A personagem Jéssica em muito dialoga com outra personagem do
cinema brasileiro, nordestina e prostituída, a cearense Suely, do filme O Céu de
Suely (2006), de Karim Aïnouz. Em estados brasileiros diferentes, mas com a
mesma compreensão de um destino factível e quase impossível de se afastar.
Diferente de Auxiliadora, do Baixio das Bestas, Jéssica e Suely refletem e muito
sobre suas condições. Jéssica demonstra possuir um cotidiano que poderia ser
harmônico, com uma mãe que demonstra afeto por ela, mas que se nega a enxergar
a realidade.
A esta subjetividade presente em Jéssica acompanhamos a sua partida
de casa, de alguma forma compreendida pela mãe. Após a garota mencionar algo
sobre o descontentamento com o padrasto. Na sequência seguinte, a mãe no
trabalho reclama de um mal-estar físico. Atribui a sensação ao animal que comeu no
38
Diálogo extraído do filme Deserto Feliz, 2008.
71
dia anterior, na verdade, há um mal- estar psicológico, Maria diz: “’tô’ tão sem graça,
‘tô’ tão sem vontade, tão sem destaque” (Deserto Feliz, 2008). Em seguida, em
casa, sabe da notícia que a filha fugiu.
O tatu, animal consumido em uma festa pela família de Jéssica, confere
ao filme um aspecto idiossincrático, e mais uma vez nos remete aos hábitos
escatológicos de Seu Heitor, em Baixio das Bestas. Com mãos diferentes da
utilizada por Cláudio Assis para tratar a violência, aqui, Paulo Caldas fornece por
meio através do animal uma metáfora da vida de Jéssica, animal criado em cativeiro
que serve para “consumo” próprio.
Jéssica aceita o destino da prostituição e vai parar no Recife, morando
em um kitnet com outras jovens prostitutas. Do novo núcleo em que se encontra
Jéssica, conhecemos três gerações de uma mesma condição de mulheres
marginalizadas. Nesse universo convivem Jéssica e Daiane, ainda adolescentes e
dispostas a encarar os sacrifícios da profissão; Pamela, adulta, teme pelo fim do
trabalho, pois demonstra cansaço das experiências desastrosas pelas quais passou,
entre elas, morar fora do Brasil na companhia de um estrangeiro; e Dona Vaga,
personagem de Ze Mota, ex-prostituta e que agora explora as garotas como
proprietária do apartamento em que elas dividem.
O prédio em que moram as garotas é especialmente simbólico para a
cidade do Recife. O edifício Holliday com 476 apartamentos foi construído na
década de 60 numa área nobre do bairro de Boa Viagem, distante 50 metros da
praia, com pequenos apartamentos que deveriam funcionar como flats. No entanto,
a degradação dos imóveis transformou o lugar em um reduto de prostituição e
tráfico. Mesmo assim, ainda figura como uma imponente obra arquitetônica presente
nos cartões postais.
A câmera explora detalhes da fachada, corredores e escadarias
dimensionando o novo espaço em que Jéssica habita. Na cena em que vai à praia, a
garota se depara com dois jovens estudantes lendo nas escadas e lembra que
também fez parte de outra vida distante daquele submundo. E é na praia que ela
72
conhece o alemão, Mark, mediada pelo gigolô chamado Rauariu, personagem de
Aramis Trindade.
O ator Peter Ketnath, o mesmo que interpretou Johann, em Cinema,
Aspirinas e Urubus, é quem faz o contemporâneo alemão Mark. Em viagem de férias
no Brasil, Mark embarca no turismo sexual e no consumo desenfreado do crack e da
cocaína, em meio a isso, acaba se apaixonando por Jéssica. A partir do encontro de
Jéssica e Mark, somos apresentados novamente à cena inicial do filme, agora como
parte do presente da narrativa. Sabemos então que a cena do quarto é, na verdade,
o último encontro entre Mark e Jéssica.
Sobre a experiência em desenvolver dois personagenso diferentes, em
entrevista para a pesquisa, Ketnath (ano) responde que no fundo uma mesma
curiosidade estrangeira em ambos e que justificam as escolhas de interação com
uma nova cultura.
Em Cinema, Aspirinas e Urubus viajamos do sertão da Paraíba à
Pernambuco e criamos uma época diferente. No Deserto Feliz, nós
descobrimos uma realidade cotidiana no Recife do novo milênio. Claro que
os motivos dos dois personagens são diferentes uns dos outros. O que os
dois tem em comum é uma certa curiosidade pelo meio ambiente que eles
passam. Os dois estão abertos por todos os lados dessas realidades e
compensam isso em jeitos diferentes e interessantes.
39
Para as imagens de Mark, o diretor do filme escolheu a opção de adotar
em várias cenas a câmera colada ao corpo do ator, o que confere um movimento
diferente das imagens, ressaltando principalmente as feições de Mark nos
momentos em que se droga. A passagem entre as imagens do Recife a Berlim se dá
justamente por esse recurso de câmera. Com a câmera nas costas, vemos Mark
rodar com ssica no bar em que freqüentam as prostitutas; no giro, percebemos a
mudança de cenário e de figurino para um apartamento claro, somos levados a crer
que já estão em Berlim.
Um problema para este tipo de imagem, que ganha contornos
experimentais, é que perdemos o foco do personagem, como se a “chapação”
ecoasse pela tela. Lembrando do mesmo ator em Cinema, Aspirinas e Urubus, a
câmera escolhida por Marcelo Gomes é bem diferente desta utilizada por Paulo
39
KETNATH, Peter. Depoimento via e-mail, em 14 de setembro de 2008.
73
Caldas. Com Gomes, a câmera não perde seus personagens um instante e
facilmente embarcamos naquela atmosfera dos anos quarenta.
Outro recurso muito explorado em Deserto Feliz é a câmera na mão. A
técnica, neste ponto de vista particular, nos faz encará-la como mais um
personagem em cena, pois, se conseguimos acompanhar o movimento dos
personagens em cena com mais flexibilidade, garantindo closes e afastamentos do
plano, em outra medida, deixamos de acreditar naquela representação. Diversas
vezes um fora de campo, principalmente nos olhares, que deveriam interagir com
o plano, e nós, os espectadores, perdemos a crença da veracidade do mundo em
que vivem aquelas pessoas.
Portas e janelas como moldura para o olhar também foram utilizadas no
filme, sempre na perspectiva do interior da casa para a imagem que está fora.
Verificamos essas imagens no bloco em que Jéssica ainda mora com sua família,
como na cena em que ela e a mãe lavam roupas, ou então durante a saída e
chegada de Biu com a moto, em casa. também o caso da seqüência em que a
garota caminha do banheiro do posto de gasolina, em direção ao restaurante
aquele trecho possui mais de 3 minutos de imagens, em que a câmera segue a
menina exaustivamente, mediada por uma trilha sonora aprazível.
Sobre a trilha sonora vale destacar a canção, especialmente escolhida
para a personagem Jéssica, chama-se Perdidos, do cantor Kelvis Duran. Um hit
popular do mercado fonográfico brega que fala do amor proibido em uma terra
prometida. A canção é interpretada pela garota em diversas situações, como um
refúgio de felicidade. O último momento em que Jéssica aparece cantando a música
sugere ser o mais livre, em pé, na cama do kitnet, apaixonada por Mark, sabe da
possibilidade de voltar para casa, pois a notícia da prisão do padrasto, mas já é
tarde demais, ela está prestes a morar fora do país sonhando com outra vida.
A vida na Alemanha é moderna, clara e fria, como previa Pamela. A única
interação que Jéssica consegue estabelecer com a cidade é ir a um parque coberto
por neve para alimentar uns caprinos, animal que de alguma forma lhe remete
familiaridade. Da casa em que vivia com a mãe, no Nordeste, não existe qualquer
74
resquício na casa de Mark, em Berlim. A câmera descreve o contraste na cena em
que ela pega água para beber numa cozinha equipada por diversos utensílios, longe
da escura e pobre cozinha de Maria.
Coberta por casacos, Jéssica é ainda mais menina em Berlim, não existe
a imagem da prostituta que morava no Recife. O minimalismo das suas ações e os
diálogos cada vez mais vazios com Mark vai esgotando o sonho de uma vida
perfeita e longe da violência. Encontramos então pela terceira vez a imagem inicial
do filme, agora como lembrança e finalização do longa. Ao som da sica, Rosa
Amarela, composição poética de Capiba e Carlos Pena Filho, a imagem vai se
tornando cada vez mais desfocada até que Jéssica levanta-se e sai do quadro.
Em entrevista, Paulo Caldas enfatiza que no momento da elaboração do
projeto Deserto Feliz, o seu processo criativo evoluía da relação entre documentário
e ficção, em virtude das suas experiências anteriores. Mesmo se tratando
novamente de uma ficção, buscou em esparsos diálogos o espaço para explorar ao
máximo as potências de seus personagens, daí também a opção em não ter um
preparador de elenco, preferindo ele mesmo ser o responsável pela atividade como
forma de criar proximidade com os atores, acreditando assim tornar o processo mais
orgânico. O caminho encontrado por Caldas às vezes se apresenta tortuoso, sem ter
encontrado a medida da dramaturgia necessária para crermos que de fato Jéssica é
a menina-prostituta e não uma atriz, assim como acreditamos na personagem bem
construída, Pamela, interpretada por Hermila Guedes.
O roteiro de Deserto Feliz foi escrito da parceria entre Paulo Caldas,
Marcelo Gomes, Xico e Manoela Dias. Do trabalho realizado em O Rap do
Pequeno Príncipe, conta com o fotógrafo Fred Jordão para Still. Nos
agradecimentos, em meio a vários nomes, cita sua geração nos nomes de Hilton
Lacerda, Lírio Ferreira e Cláudio Assis, que não participam oficialmente desta
realização. A trilha sonora foi elaborada por Erasto Vasconcelos e Fábio Trummer
40
,
com músicas executadas pela banda Eddie, novamente uma banda do cenário
mangue pernambucano. A produção nacional do filme ficou sob a responsabilidade
40
Trummer, inclusive, vocalista da Eddie é o autor da letra Quando a Maré Encher, popular na voz de
Chico Science.
75
da Camará Filmes, dirigida pelo mesmo produtor do Baile Perfumado, Germano
Coelho Filho.
Deserto Feliz foi o filme vencedor do 35º Festival de Gramado saindo de
com seis prêmios, Melhor Longa-Metragem Brasileiro eleito pelo júri popular;
Melhor Longa-Metragem Brasileiro eleito pela crítica; Melhor Diretor; Melhor
Fotografia; Melhor Diretor de Arte; e Melhor Música. Além disso, ganhou em Santa
Maria da Feira, em Portugal, com Melhor Atriz; no Festival de Paris, com Melhor
Filme e Melhor Atriz; Melhor Diretor no 22º Festival Internacional de Cinema em
Guadalajara; indicação para ao Golden Globe Award 2008; participou de diversas
mostras e festivais, a exemplo do Panorama 2007, na Berlinale.
O filme obteve um bom desempenho em sua carreira internacional, mas
levou dois anos até ser lançado no circuito comercial para apreciação do público em
geral. O problema da distribuição é evidente em todos os filmes desta geração. Os
festivais aparecem como uma abertura democrática para os filmes inéditos, e assim
o cinema pernambucano conseguiu encontrar nesta brecha uma forma também de
veiculação de um material que ao final do processo de finalização, conseguia pouca
inserção no circuito comercial, seja por causa das temáticas, seja pelo pequeno
número de cópias distribuídas.
76
Capítulo 3. Do experimental ao profissional: 12 anos de Árido
Movie (1997-2008)
Após compreendermos o processo fílmico presente nos sete longas-
metragens realizados pelo grupo de cineastas formados por Cláudio Assis, Hilton
Lacerda, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes e Paulo Caldas, partiremos para uma
análise distanciada do que representa a realização autoral particular a cada um dos
cineastas no contexto dos seus filmes. A produção individual resultou em processos
criativos compostos de subjetividades e técnicas estilísticas diferenciadas entre si. O
que no início com Baile Perfumado se apresentou de forma experimental, em
seguida com as novas realizações e exercícios fílmicos, acabou resultando em
trajetórias de amadurecimento com trabalhos cada vez mais apurados do ponto de
vista técnico, alcançando assim o patamar profissional.
A visibilidade gerada pelos prêmios e polêmicas envolvendo tais filmes
permitiu um reconhecimento de um novo cinema profissional do Estado de
Pernambuco, tanto no campo da cultura nacional, como no mercado internacional de
produções cinematográficas independentes. O cinema pernambucano passou a ser
identificado pelos nomes dos realizadores de suas obras, vinculadas inevitavelmente
a uma geração. A partir dos anos de 1990, todos os jovens pernambucanos
aspirantes a cineastas que se seguiram, encontraram caminhos entreabertos para
novas realizações, não vinculados necessariamente à cultura popular, marca da
região.
Contudo, o crescimento do mercado cinematográfico pernambucano não
foi suficiente para manter os cineastas da geração Árido Movie no Estado. No
período dos 12 anos escolhidos para esta pesquisa, a ponte aérea Nordeste-
Sudeste fez parte do cotidiano destes profissionais. A fonte temática das tradições
populares permaneceu como subsídio, mas os recursos continuaram insuficientes,
assim como a pós-produção destas realizações.
A questão que se coloca no campo de trabalho cinematográfico
ultrapassa o limite regional. O problema enfrentado por Pernambuco para execução
78
de todas as etapas de realização dentro do Estado é percebido de uma forma geral
pelo cinema feito na América Latina como um todo. O mercado latino de cinema
ainda caminha para sair de uma condição política periférica nos quesitos mercado,
meios e distribuição.
Em depoimento, Paulo Caldas (2008) explicou que a maior dificuldade em
expor um filme pernambucano, consequentemente brasileiro, para apreciação
internacional é a concorrência que ele enfrenta antes mesmo, ainda no circuito de
produção latino americano:
A gente continua sendo um cinema independente, de Terceiro Mundo. A
gente disputa espaço hoje, o cinema brasileiro, com o cinema argentino e
mexicano. A gente sempre fica ali, cotado e visto como um latino americano.
[...] Os argentinos e os mexicanos tem uma facilidade maior de
financiamento da Espanha, de co-produção, por causa da língua. Uma
facilidade muito maior de lançamento na Europa através da Espanha, com
uma mensagem nos Estados Unidos através da comunidade de hispânicos.
A própria Espanha tem um festival de línguas espanholas que é o San
Sebastian, que é muito mais forte que os festivais em língua portuguesa que
tem em Portugal.
41
No entanto, Caldas acredita que um vigor narrativo nos filmes
pernambucanos que vem possibilitando cada vez mais a inserção em outros
mercados. Além disto, é visível uma passagem gradual das temáticas estarem
ganhando uma conotação universal, permitindo uma comunicação com outros
públicos.
Em Deserto Feliz, por exemplo, produção Brasil-Alemanha, Caldas (2008)
explica que a parceria aconteceu em parte devido à presença de um personagem
alemão na trama.
O que acontece, as coisas internacionais são passo-a-passo. A gente
passou dois anos pra fechar o acordo de co-produção com a Noir Film da
Alemanha, então são três anos onde a gente foi pro Festival de Berlim, dois
filmes do Brasil escolhidos para ir para o mercado de co-produções
internacionais. [...] A gente tinha filmagem na Alemanha e um dos
personagens mais importantes do filme era alemão, foi isso que interessou
41
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
79
a eles. Tinha um link diretamente com eles, se não, não ia interessar
jamais.
42
Em meio à dificuldade de mercado, distribuição e financiamento, o cinema
pernambucano, enquanto um cinema independente, ainda assim é passível de
análise no que diz respeito à qualidade da sua produção dentro de uma estrutura
maior que é a história do cinema. o podemos ignorar toda a teoria do cinema
sobre as diversas correntes existentes desde o início do século XX nos verdadeiros
eixos cinematográficos que são a Europa e os Estado Unidos, e que pode ser
aplicada como parâmetro aos casos contemporâneos, por exemplo, este regional
com o qual dialogamos.
A França, na década de cinqüenta, sistematizou o que se conhecia
enquanto produção individual criativa, com a teoria do autor, ou formalmente
determinada como a Política dos Autores. De acordo com o crítico e teórico Jean-
Claude Bernardet, a autoria na perspectiva dos “Jovens Turcos”, denominação
atribuída a Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer,
Jacques Rivette e Jean Doniol-Valcroze, por André Bazin, da revista Cahiers Du
Cinéma, onde se criou o termo, advinha da sua relação com a literatura, ou seja, o
autor do filme será o idealizador, escritor da obra (BERNARDET, 1994). O que não
quer dizer que o roteirista será por excelência o autor, mas sim, o artista que propõe
o projeto cinematográfico como criação particular e em geral acaba assumindo
diversas funções, entre elas, ser o diretor e o roteirista da cena. Passa-se a
compreender o cinema enquanto uma linguagem imperativa e tão subjetiva na sua
forma de escrita visual, quanto à literatura.
A Política dos Autores incorporou ao cinema moderno uma liberdade
moral para imprimir as expressões “um filme de ou “dirigido por”, atrelado ao título
do filme. Nos longas-metragens da geração Árido Movie, observamos essa prática
nos filmes de Cláudio Assis Amarelo Manga e Baixio das Bestas. O último filme da
seleção, Deserto Feliz, mesmo apresentando o título no início, tem na primeira tela
42
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
80
dos créditos finais a direção de Paulo Caldas. O entendimento desta prática, na
perspectiva da Política dos Autores, significa que:
A política é a apologia do sujeito que se expressa. Essa concepção nega
totalmente a que entende o cinema como uma arte coletiva, de equipe.
Cercado de máquinas, de técnicos e de atores, no estúdio, está-se sempre
só (BERNARDET, 1994, p.22).
Atrelada à discussão da Política dos Autores, consideramos o campo
teórico do processo criativo, igualmente necessário ao analisar os realizadores
pernambucanos, pois o cinema, enquanto expressão do pensamento, não adquire
validade a partir do lançamento aleatório de um filme qualquer. É necessária uma
legitimação crítica e popular que identifique na realização, uma obra de arte
cinematográfica. Os longas-metragens selecionados para esta pesquisa possuem
diversos elementos narrativos, estilísticos e técnicos que permitem a observação de
uma fruição artística. Tomando como base um período de 12 anos, foi possível
verificar um quadro evolutivo presente nesta geração. Não o exercício fílmico
contribuiu com a qualidade dos filmes, mas também é perceptível que o trabalho se
tornou dinâmico na medida em que uma internalização do papel do criador
artístico como autor.
Segundo a teórica e artista plástica Fayga Ostrower (1987), ao analisar o
processo criativo deve-se levar em consideração um conjunto de fatores
responsáveis pela execução de uma obra, a exemplo da memória, dos conflitos e da
experiência cultural adquirida ao longo da vida, sejam estes fatores uma
representação social ou um comportamento. Explica Fayga Ostrower sobre a
formação da criatividade no ser:
Como ser que se percebe e se interroga, o homem é levado a interpretar
todos os fenômenos; nessa tradução, o âmbito cultural transpõe o natural. A
própria natureza em suas manifestações ltiplas é filtrada no consciente
através de valores culturais, submetida a premissas que não se isentam das
atitudes valorativas de um contexto social. [...] Nos processos de
conscientização do indivíduo, a cultura influencia também a vio de vida de
cada um. Orientando seus interesses e sua íntimas aspirações, suas
necessidades de afirmação, propondo possíveis ou desejáveis formas de
81
participação social, objetivos e ideais, a cultura orienta o ser sensível ao
mesmo tempo que orienta o ser consciente” (OSTROWER, 1987, p. 16-17).
No caso do cinema, o processo criativo por vezes foi explorado em
biografias europeias e a brasileiras, caso de Glauber Rocha, que deixou extenso
material escrito sobre suas investigações a respeito de projetos cinematográficos.
Diferente dos outros campos das artes, o cinema possibilitou uma experiência física
de completo isolamento individual para sua apreciação e reflexão. A sala escura
direciona a visão e a audição em nível extremo para a sua completa identificação ou
mesmo repulsa. Contribuindo a esta experiência, temos também a questão do tempo
definido de uma projeção que permite a concentração em um espaço e ritmo
deliberado.
Interessante perceber que esta experiência se equivale para a ficção e
para o documentário. Por esta observação, selecionamos o filme O Rap do Pequeno
Príncipe Contra as Almas Sebosas, como parte do conjunto de longas-metragens
significativos produzidos por uma geração. Compreendendo, portanto, o que vale
então como análise é a imagem obtida e os discursos nela implícitos. O cineasta
russo Andrei Tarkovski exprimiu essa inquietação artística por meio do seu livro
Esculpir o Tempo (1998). Nesta obra, ele define de maneira primorosa o encontro
entre a imagem e a realidade através de duas percepções, uma pragmática e outra
subjetiva:
No cinema, de forma ainda mais intensa, a observação é o primeiro
princípio da imagem, que sempre foi inseparável do registro fotográfico. A
imagem cinematográfica assume uma forma quadrimensional e visível. De
nenhum modo, porém, é possível elevar cada tomada à condição de uma
imagem do mundo; o mais comum é que ela se limite à descrição de algum
aspecto específico. Em si mesmos, os fatos registrados naturalisticamente
são absolutamente inadequados para a criação da imagem
cinematográfica. No cinema, a imagem baseia-se na capacidade de
apresentar como uma observação a percepção pessoal de um objeto. [...]
A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e
do mundo real que tenta corporificar. Se o mundo for impenetrável, a
imagem também o será. É uma espécie de equação, que indica a
correlação existente entre a verdade e a consciência humana, limitada
como esta última pelo espaço euclidiano. Não podemos perceber o
82
universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir
essa totalidade (TARKOVSKI, 1998, p.123-126).
O teórico Stuart Hall argumenta que a identidade está intimamente
relacionada com o sistema de representação, o que contribui para corroborar com a
teoria fílmica de análise a partir da autoria:
A moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de
diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma
como as identidades são localizadas e representadas (HALL, 2006, p.71).
Ou seja, para esta pesquisa, fica explícito que coexistem nas narrativas
pernambucanas contemporâneas a representação de um povo e sua cultura, mesmo
no cinema da década de vinte ou no ciclo do Super 8 existia um sistema de
identificação. A diferença é que agora a identidade é encarada como parte de um
processo que pode ser rebatizado sem o manto sagrado da tradição. O autor se
comunica com o público por meio de sua obra, e partir dela, reconhecemos nossas
identidades, seja através das imagens de um sertão verde, ou nas imagens trêmulas
da câmera presa às costas do alemão em uma locação caótica e entorpecente do
Recife.
Como forma de melhor expor a concepção apresentada, destacaremos
alguns pontos que demarcam a trajetória rumo ao caráter autoral e profissional de
realização.
3.1. Baile Perfumado: uma escola autodidata
No processo de análise criativa, o filme Baile Perfumado representa a
ideia de uma escola que deu início a um grupo de realizadores independentes.
Como abordado no Capítulo 2, a respeito das contribuições trazidas com o filme, a
noção de grupo ainda se refletia nesta realização. Na pesquisa de Mariângela
Coelho Jacomini Bonetti sobre a relação entre o filme e a trilha sonora no Baile
Perfumado, o fotógrafo, Paulo Jacinto dos Reis, conhecido como Feijão, destaca
que a obra é um filme de anti-heróis do ponto de vista narrativo, pois os principais
83
personagens morrem ou então não conseguem realizar seus intentos (BONETTI,
2003). Se adotarmos o personagem Abraão como anti-herói, podemos considerar
que ele foi até vitorioso, cumpriu o propósito documental, investigativo e comercial
com as imagens de Lampião. Mas, em outra medida, se adotarmos a ideia da
autoria, na verdade, a conotação de anti-heróis deve ser atribuída aos próprios
realizadores Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Hilton Lacerda e a equipe de uma forma
geral.
O grupo enfrentou um esquema de guerrilha para levar adiante um projeto
rodado em locações de difícil acesso e comunicação, sem a experiência efetiva da
realização em longa-metragem. Paulo Caldas relembra o que representou
conseguir finalizar o projeto e levá-lo para fronteira do campo profissional ao chegar
ao Festival de Brasília, onde foi consagrado com o Candango de melhor filme:
A cópia do filme ficou pronta durante o Festival [Brasília], no segundo dia.
Ela estava pronta antes, mas tinham correções a serem feitas. E eu viajei
justamente com a cópia de São Paulo. Naquele momento, a gente tinha
feito alguns curtas que tinham participado de festivais, tinham sido
premiados, tinham sido coroados até por Brasília, mas, naquele momento
ali, a gente era, além de um [filme] azarão, uns desconhecidos.
Absolutamente desconhecidos de tudo, de todos os diretores que estavam
ali.
43
A seguinte entrevista com Lírio Ferreira e Paulo Caldas, presente na
pesquisa Manguebeat e Árido-Movie: o som em Baile Perfumado(PUC-SP, 2003),
confirma o caráter autodidata e experimental existente no início:
Mariângela Bonetti: vocês tinham organizado e previsto um planejamento
com a ordem do dia e tal? Lírio Ferreira: Sim, a gente tinha tudo. Paulo
Caldas: Os planos de filmagem, tudo pronto, as seqüências organizadas...
Lírio Ferreira: A gente começou no dia certo e terminou no dia certo, uma
coisa que estava na nossa mente é que o filme não podia parar. Paulo
Caldas: Aparentemente, parece que foi a genialidade humana que baixou,
mas um dos processos que foi fantástico é que nós três, Paulo Caldas, Lírio
Ferreira e Feijão, mais Hiltinho [Hilton Lacerda], nós passamos três meses
decupando o filme em um apartamento, cena por cena, que foi anexada ao
roteiro, ainda tenho ele, cada seqüência tinha uma decupagem a ser
seguida, decupagem essa que foi 70% abandonada durante o filme, mas
esse foi um tempo que a gente teve para discutir exaustivamente as cenas,
43
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
84
a hora de mudar. Na hora que você chega no lugar e vê, (...) quanto maior
for sua capacidade de se adaptar ao momento da filmagem, maiores
resultados você vai ter, mas quanto mais preparado você estiver, em
matéria de segurança de ter pensado anteriormente, fica mais fácil até para
mudar mais. Lírio Ferreira: Foi ai que nasceu a estética do filme (BONETTI,
2003).
O diálogo deixa margens para perceber que todo aquele processo de
decupagem, orientado no sentido da busca de uma identidade autoral, representava
em si uma mistura de improviso e descoberta de uma estrutura e dedicação muito
maior que o curta-metragem não havia ainda possibilitado. No entanto, o esforço do
grupo de anti-heróis pernambucanos é contemplado pela ocasião do seu
lançamento, em 1997, no Festival de Cinema de Brasília. E que acabou por
preencher um vácuo existente nas cinematografias regionais para este renovado
ambiente do cinema brasileiro chamado de Retomada. Sobre isto comenta o
cineasta Marcelo Gomes (2008) para a pesquisa: “você pode gostar ou não do Baile,
mas ele representa muito para cinematografia pernambucana, nordestina. O Baile
Perfumado é uma viagem iniciática de um processo”.
Tal como Gomes que trabalhou na equipe de produção do filme, junto
com Cláudio Assis, Adelina Pontual, Cecília Araújo; verificamos a presença de
Marcelo Pinheiro, Germano Coelho Filho e Aramis Trindade, na produção executiva;
Adão Pinheiro, na direção de arte; Vânia Debs, na montagem vale destacar que o
filme foi montado ainda em moviola; Chico Science, Lúcio Maia, Paulo Rafael e Siba,
na trilha sonora; além dos nomes de Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda no
roteiro e um conjunto de atores que iriam se repetir na sequência de longas-
metragens posteriores no Estado de Pernambuco.
Sobre o processo de amadurecimento da equipe, o fotógrafo, Fred Jordão
(2008), faz uma comparação entre o Baile Perfumado e Deserto Feliz, em ambos
participou como colaborador:
A diferença de quem participou do set do Baile Perfumado e do Deserto
Feliz, é que Deserto Feliz parecia uma engrenagem perfeita. Tudo se
encaixava, os profissionais estavam maduros, conscientes e tudo funcionou
85
corretamente, sem nenhum problema, sem nenhuma dificuldade. Tudo
parecia que você estava vivendo uma coisa impensada 10 anos atrás.
44
O mérito do Baile Perfumado, contudo, adquirido junto à crítica
especializada de cinema, garantiu uma boa carreira no circuito comercial e este fator
residia em dois aspectos: um argumento com interessante e curiosa fundamentação
histórica, aliado a uma linguagem cinematográfica contemporânea. A escolha desse
eixo central pelos realizadores, entre a tradição e o moderno convivendo em cena,
permitiu a popularização, legitimação e inserção do cinema pernambucano no
sistema de produção nacional, colocando assim, os cineastas pouco conhecidos no
rol dos promissores profissionais dos anos 2000. Sobre o futuro que viria a ser o
cinema pernambucano, após o Baile Perfumado, o cineasta Caldas reflete, em 1999,
ainda na colheita dos frutos adquiridos com o filme:
O Baile não é um filme de autor, não é de jeito nenhum apenas meu e do
Lírio, mas o resultado desse grupo. É uma maneira de fazer cinema que eu
gostaria a continuar buscando, mas não sei se ainda será possível
(CALDAS, 1999 apud NAGIB, 2002, p.141).
3.2. O documentário e a fabulação em Paulo Caldas
Com o filme Deserto Feliz, Paulo Caldas completa o terceiro longa-
metragem assumindo a direção. Os dois primeiros trabalhos foram em parceria, no
Baile Perfumado dividiu o set com Lírio Ferreira, e em O Rap do Pequeno Príncipe
Contra as Almas Sebosas, trabalhou a convite de Marcelo Luna e Fred Jordão.
O que se apresenta neste realizador é a busca por linguagem
documental. Os três filmes realizados por Caldas exploram universos de
marginalidade, o primeiro parte de um registro histórico e refaz a narrativa em um
filme de época, os outros dois, partem de narrativas contemporâneas. Outro fator
presente no processo de criação deste realizador é a promoção de encontros talvez
inusitados, se não fosse pelas propostas dos filmes. Em depoimento, Caldas (2008)
44
JORDÃO, Fred. Recife, 29 de agosto de 2008.
86
reforça esses encontros ao ser questionado sobre a busca de uma linguagem
autoral nos seus filmes:
Eu acho que meus filmes acabam sendo uma coisa meio que intuitiva, mas
meus filmes sempre tratam do encontro de personagens que provavelmente
não se encontrariam na vida e os filmes surgem desses encontros. Primeiro
Benjamin Abraão com Lampião, quer dizer, um árabe não teria nada que
estar ali naquele momento fazendo aquilo e o filme gira em torno desse
encontro. No documentário [O Rap do Pequeno Príncipe], a gente provoca o
encontro dos dois personagens como se fosse uma ficção. [...] Vai
misturando, tem aquela entrevista, a gente leva um personagem para
conhecer o outro. Tem até o plano deles juntos. O Garnizé vai entrevistar o
Helinho, faz o plano, inclusive, juntos os dois. [...] No Deserto Feliz também,
não é? É a história daquela menina, sertaneja, com aquele alemão que não
tinham nada que se cruzar na vida e se cruzam. [...] Então esses encontros,
seja no documentário, seja na ficção, eles parecem que tem o elo criativo
que mais me interessa.
45
Com relação ao processo de fabulação, na ficção ele é evidente
Lampião por si se apresenta como um personagem mítico, envolvido em um
mundo onde ele próprio determina as leis, dotado de personalidade severa e cheio
de particulares. Jéssica, personagem da trama em Deserto Feliz, contempla
durante toda sua jornada um mundo imaginário de sonhos, a falta de diálogo e
olhares fora de campo dimensiona uma fantasia distante, que ela mesma tem a
oportunidade de constatar fora do Brasil a impossibilidade daquele sonho. no
documentário, somos apresentados a entrevistados que ora se parecem com
caricaturas de uma realidade inventada, o delegado com ares de xerife, o próprio
jovem justiceiro, Helinho, um radialista que cobra da justiça a captura “das almas
sebosas”, entre outros.
A esta fabulação em O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas
Sebosas pode-se ressaltar o aspecto criativo como foram tratados os entrevistados,
mas deve-se levar em consideração também, a temática como mais um registro
histórico das periferias brasileiras contemporâneas. O filme surgiu, inclusive, de um
depoimento dado por Helinho a um jornal local do Recife dizendo: “É mais fácil
matar do que beber água”, por volta de 1996. Marcelo Luna e Fred Jordão tinham
45
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
87
encontrado nesta reportagem o argumento para dar início a um projeto que
discutisse a violência na periferia da capital pernambucana e, de alguma forma,
dialogasse com outras periferias brasileiras. Então, apresentaram a Paulo Caldas o
projeto que aceitou dirigir. Na época, Caldas estava envolvido, além do projeto do
Baile Perfumado, com um documentário ficcional sobre uma figura folclórica também
do universo violento pernambucano da década de setenta, denominado Biu do Olho
Verde, mas este projeto não foi adiante e Caldas seguiu com a dupla para montar o
roteiro de O Rap do Pequeno Príncipe.
O processo de elaboração sígnico do documentário O Rap do Pequeno
Príncipe foi pensado a partir de elementos da cultura jovem suburbana, de um
envolvimento com o hip hop e suas representações. Segundo os realizadores, o
título do filme, cheio de ironia, é uma homenagem a literatura de cordel e a Glauber
Rocha, enquanto criador de obras alegóricas. No caminho aberto por um título tão
sugestivo, os realizadores optaram por atribuir um teor de fábula aos seus objetos
de investigação. Sobre isso, o fotógrafo e roteirista do filme, Jordão (2008) se
justifica:
Você imagina que um cara que mata 70 pessoas, de 19 anos, é preso, sai
no carro de som. Aquilo é verdade. Sai um carro de som na comunidade
pedindo para o cara ser solto, porque ele cuidava da comunidade. Você não
acha que isso é uma coisa maluca demais? Ao ponto de você achar isso
uma aberração. É, isso é uma aberração. A própria comunidade se sentir
desprotegida porque ele não es lá. Então es faltando alguém nesse
jogo. Se você olhar no filme, você vai ver que falta alguém. E esse alguém
se chama Estado.
46
O filme se utiliza de três representações de justiça para lançar o desafio
de quem representa melhor este papel a justiça oficial, através do advogado do
Ministério Público, a justiça ilegal dos grupos de extermínio, e a justiça de Deus, na
voz das es e familiares das vítimas. Neste ponto, o filme assume sem culpa o
caráter de um docudrama.
46
JORDÃO, Fred. Recife, 29 de agosto de 2008.
88
Neste formato de documentário, que por muitos autores não consideram
como parte do documentário
47
, percebemos um interpretação dramática que
ultrapassa o sentido do discurso proposto. No caso de O Rap do Pequeno Príncipe
uma busca pelos closes, pelas ações representadas, pelas imagens posadas dos
personagens desta narrativa. A essas pausas fotográficas se sobressai o aspecto
psicológico latente dos filmes de Paulo Caldas, o espaço para a reflexão de quem
está em cena.
E o fora de cena, o extra-campo tão presente nos filmes deste diretor? De
que maneira é possível pensar nesta questão, sem reduzi-la a uma mera escolha de
posicionamento de câmera, mas sim, entendendo-a como um posicionamento
dramático. Para a pesquisadora, Andréa França, o fora de campo representa uma
relação de alteridade entre o que se quer sugerir e o que podemos ver, de fato um
olhar estrangeiro (o autor), sobre o objeto filmado.
Relação com o estranho, a alteridade absoluta, com aquilo que esfora do
conhecimento e presente na imagem enquanto dissimulação, com aquilo
que está na mais próxima distância, na mais ausente das presenças,
funcionando como motor de desdobramento daquela cultura, no sentido da
identidade e da alteridade. [...] É a experiência do fora de campo que não
permite que encontremos explicação nem amparo lógico para aquela zona
de embriaguez em meio a um oceano de metal, bloco de sensação que
leva o Estrangeiro a matar o outro, no romance de Albert Camus
(FRANÇA, 2003, p.197).
Outro aspecto a destacar nos longas-metragens dirigidos por Paulo
Caldas, em relação aos outros diretores, é escolha por ambientes urbanos das suas
narrativas. A Região Metropolitana do Recife é palco dos dois últimos filmes. A
cidade, diferente do sertão ou regiões interioranas, é marcada por símbolos. Tudo
está mapeado. As referências visuais são constantes e latentes, os contrates entre
47
Para teóricos do cinema como Fernão Ramos, o docudrama não faz parte de um sub-gênero do
documentário, ele é em si uma ficção. “O docudrama, na qualidade de discurso que enuncia pela forma da
narrativa clássica, deve trabalhar a história a fim de transformá-la em trama. A história, em si mesma, não basta
para o docudrama. Sua significação pode parecer forçada, inverossímil, ou apenas tediosa ao espectador. O
espectador, quando assiste a um docudrama, não busca asserções sobre a realidade histórica representada, no
modo que é próprio ao documentário. O docudrama retorce a realidade histórica na fôrma da trama, de modo
que o espectador possa entreter hipóteses sobre os personagens e sua ação, ou considerações (inclusive
políticas) sobre a trama representada. Entre essas hipóteses pode estar, inclusive, a pertinência da
representação com relação à história (o fato histórico), conforme experimentada ou compreendida pelo
espectador. (RAMOS, 2008, p.53)
89
periferia e modernidade dimensionam o quão complexo se apresenta aquele
espaço. Diversas vezes, em ambos os filmes, somos apresentados a moradias
insalubres que expõe diante da janela a beleza de um litoral urbano.
3.3. A poética em Marcelo Gomes
No campo da direção, Marcelo Gomes possui um único longa-metragem –
Cinema, Aspirinas e Urubus e alguns curtas-metragens como parâmetro da sua
cinematografia. No entanto, a este longa-metragem podemos considerar como a
passagem do cinema experimental para o cinema profissional pernambucano. Não
só os prêmios conquistados atestam suas qualidades, mas a capacidade de revisitar
um cenário um tanto explorado no cinema brasileiro, o sertão, com a medida da
dramaturgia e técnicas necessárias para que se apresentasse como um filme digno
a uma oferta variada de públicos.
Em 1992, Gomes havia acabado de voltar da Inglaterra, onde obteve uma
bolsa para participar do curso de cinema da Universidade de Bristol. No Recife,
juntou-se ao pessoal do cineclube Jurando Vingar, na Fundação Joaquim Nabuco, e
fundou a produtora Parabólica Brasil, com os amigos Cláudio Assis e Adelina
Pontual onde, em seguida, partiu para a realização dos curtas-metragens.
Sobre o período em que passou na Inglaterra e a influência em seu
trabalho, em entrevista para a pesquisa, atribuiu a esta experiência um caráter muito
positivo na visão que tem de Brasil. Para ele, o período em que esteve fora, ampliou
a sua percepção a respeito da dimensão cultural do país, refletindo de maneira
madura no trabalho que realiza.
O argumento para o longa-metragem existia, mas demorou quase 10
anos até conseguir efetivamente realizar o projeto. Contudo, credita ao fato da
tolerância cultural que existe entre os personagens Johann e Ranulpho, o grande
passaporte para entrada em qualquer cinema do mundo.
Em Cinema, Aspirinas e Urubus, como apresentado, estamos diante de
um drama, em formato de road movie e, por vezes, é possível se sentir, através da
90
experiência da sala escura, como mais um passageiro do caminhão, diante da
proximidade com que conhecemos as personalidades de cada um dos dois
viajantes.
A chave (tolerância) abre o cinema de Marcelo Gomes para o grande
público uma vez que este se cercou de uma equipe técnica afinada ou, ao menos,
percebemos que existiu um cuidado para que o produto final não falhasse em
termos de ritmo da narrativa, locações, trilha sonora e dramaturgia. Neste ponto
também temos a favor, a estreia no cinema nacional de dois atores que a então
eram desconhecidos do público do audiovisual. João Miguel e Peter Ketnath
estreiam no longa do diretor pernambucano expostos a toda sorte de expressões
possíveis.
a fotografia de Mauro Pinheiro, escolhida pelo diretor, é um caso
particular. Polêmica e, ao mesmo tempo, corajosa. Para o tratamento daquele sertão
de cor desbotada, quase uma película queimada, o filme foi rodado em Super 16
mm e ampliado em 35 mm, expondo-o a uma grande saturação para que fosse
alcançada a granulação na tela. Todavia, o aspecto final era conhecido dos filmes
sobre sertão da década de 60, mas depois de passar pelo sertão verde do Baile
Perfumado, voltar para este sertão de telas brancas, planos do início e fim do filme
de Gomes, seria uma grande ousadia.
De uma forma geral, a filmografia deste diretor pode ser determinada pelo
seu aspecto lírico. No curta-metragem Clandestina Felicidade (1998), onde dividiu a
direção com Beto Normal, a opção foi contar a história da vida da escritora, Clarice
Lispector, durante o período da infância em que morou no Recife, inspirado
livremente no conto Felicidade Clandestina. O filme é simbólico, filmado em preto e
branco, e refaz os anos trinta da capital pernambucana.
Marcelo Gomes também desenvolveu alguns trabalhos na área de roteiro.
Além dos seus filmes, escreveu para os longas, Madame Satã (2002), de Karim
Aïnouz; A Casa de Alice (2007), de Chico Teixeira; e Deserto Feliz (2008), de Paulo
Caldas. A parceria com o pernambucano Paulo Caldas e o cearense Karim Aïnouz é
presente nos projetos cinematográficos do diretor. Com relação ao processo criativo
91
em parceria, em depoimento para a pesquisa, Gomes relatou que o trabalho flui de
forma harmoniosa, uma vez que os três possuem uma visão de cinema semelhante,
gostam dos mesmos filmes e isso possibilitou o surgimento de trabalhos vitoriosos e
prazerosos.
O que se sobressai desse processo, na verdade, é a opção pelo foco nos
personagens em cada um desses diretores em sua medida, mas todos ressaltam em
entrevistas e depoimentos esta característica como a mais preocupante em seus
processos de criação. Mesmo com um cinema que adota traços tão diferentes do de
Lírio Ferreira, por exemplo, calcado em planos e trilha sonora contrastante com a
narrativa, ou o próprio sócio, Cláudio Assis Gomes, em depoimento para a
pesquisa, afirmou acreditar que existe um elo criativo nesta geração e ele se sente
inserido nesse contexto, como parte de um cinema dito pernambucano dentro do
cinema nacional. A unidade deste cinema regional, na visão do realizador, diz
respeito em primeiro lugar a um sotaque comum, ligação apresentada já no Capítulo
2 no que se refere ao peso da oralidade na narrativa, que também carrega uma dose
de humor popular que chega a ser reflexiva, caso das inflexões do personagem
Ranulpho; além, é claro, da influência cultural inerente a todos.
3.4. Quando o filme passa a se chamar Árido Movie
A trajetória do cineasta Lírio Ferreira é marcada por uma cinematografia
que versa sobre a contemporaneidade. Seus quatro filmes mais representativos
That’s a Lero-Lero (1995), Baile Perfumado (1997), Árido Movie (2006), e Cartola,
Música Para os Olhos (2007) são filmes que dialogam com a história em meio às
referências da cultura moderna.
Do ponto de vista técnico, os filmes são reconhecidos pelas narrativas
entrecortadas, numa espécie de colagens de diversos materiais, assim se apresenta
o documentário sobre o sico carioca Cartola, dirigido em parceria com o
pernambucano, Hilton Lacerda. os filmes ficcionais, mesmo o curta-metragem,
That’s a Lero-Lero, utilizam-se do universo da cultura pernambucana para explorar
92
enredos onde o estrangeiro é quem conta essas histórias. Em todos os filmes, o
cineasta também realiza o trabalho como roteirista, interferindo de forma inevitável
com as suas opções estéticas por uma coloquialidade textual.
Os planos o usuais também são identificados nas características
criativas de Ferreira, sem definição, muitas vezes ficam na fronteira entre o
experimental amador e o profissional inovador. Nesta busca de uma identidade
cinematográfica autoral, Ferreira comenta:
Eu sempre me identifiquei com o cinema de autor, o cinema que se
preocupa com a experimentação, com a pesquisa de novas linguagens,
novas estéticas, o cinema que não entrega as coisas prontas para o
espectador, que pensa no espectador como uma pessoa inteligente, que vai
interagir. Um tipo de cinema muito difundido pela Nouvelle Vague, pelo
cinema experimental da década de 1950, os filmes B americanos e o Neo-
Realismo italiano (FERREIRA, 1999 apud NAGIB, 2002, p.138).
O que se verificou no trabalho de Ferreira, após o Baile Perfumado, foi
que o diretor encabeçou a ideia do projeto de cinema pernambucano chamado de
Árido Movie, com um longa-metragem assim intitulado. Interessante notar a
referência que ele faz, no depoimento, aos filmes B, vertente do cinema norte-
americano popular dos anos oitenta, que produzia em uma escala de baixo
orçamento, com atores considerados decadentes, em geral, com temáticas voltadas
para o terror, westerns e comédias. É bom lembrar que os filmes do tipo B são a
principal referência do cineasta, Quentin Tarantino, ícone pop norte-americano dos
anos noventa.
O cinema de Quentin Tarantino e Lírio Ferreira dialogam na medida em
que se utilizam desta mescla cultural decadente dos anos oitenta, seja a americana
ou a brasileira, e transformam seus filmes em pastiches cult do cinema dito
contemporâneo. A expressão Árido Movie, aqui empregada como título de filme,
nada mais é do que essa apropriação cosmopolita cinematográfica.
Na visão do criador da expressão, o cineasta Amin Stepple, Árido Movie
deveria funcionar como a marca do ciclo de cinema mais curto que Pernambuco
teve, começando em That’s a Lero-Lero, em 1995, e terminando dois anos depois
93
com o Baile Perfumado. Na visão de Stepple, o curta é o fundador da “retomadada
cinematografia pernambucana contemporânea, devido às escolhas técnicas que
adotou e ao envolvimento de duas gerações para voltar a contar histórias, que a
produção do Super 8, do qual Stepple fez parte, debateu-se em larga escala sobre o
documentário. A construção da expressão aconteceu logo em seguida ao
lançamento do curta, no clima promissor com a expectativa do longa-metragem
Baile Perfumado. Stepple define Árido Movie da seguinte forma:
Havia o Manguebeat e eu fiquei muito impressionado com esse
Manguebeat, porquê? Porque eu passei anos tentando criar uma mística de
cinema e não consegui. De repente os caras de música chegam e criam um
movimento chamado Manguebeat, era tudo que eu sonhava. E o que é
Manguebeat, ninguém sabe o significado do que porra” é Manguebeat. É
uma expressão muito feliz e que me causou profunda inveja. Porque eu
passei a vida tentando criar uma mística para o cinema, mas não criei um
rótulo, uma frase, uma expressão que significasse tudo. Isso me angustiava
muito. Eu passei anos batalhando, esses caras chegam de repente e um
lance que pega. Então eu peguei a palavra mangue e fiz o antônimo dela,
que é árido. E tinha a tradição regionalista, Vidas Secas, o cinema de
cangaço, a literatura regional, o cenário, as secas seculares... Vem aqui o
mangue é o árido. E o beat, que é a batida, uma palavra de origem inglesa,
eu disse, é movie. Então tava criado o Árido Movie.
48
A partir do filme de Ferreira, a expressão ecoou na mídia especializada de
cultura e repercutiu como sinônimo de um movimento, identificado esteticamente por
essa mestiçagem da cultura popular com a linguagem cinematográfica
contemporânea, moderna. Sentido, de uma forma geral, adotado por todas as
iniciativas de manifestação da cultura que buscam uma re-significação da geração
em que se situam. Iremos explorar com mais rigor a repercussão do cinema
pernambucano identificado então como Árido Movie, seja estético, publicitário ou
histórico, no próximo capítulo.
48
STEPPLE, Amin. Recife, 10 de setembro de 2008.
94
3.5. A unidade em Hilton Lacerda
O jornalista Hilton Lacerda participa da geração Árido Movie na
perspectiva criativa do roteiro. Entre os filmes selecionados para a análise,
escreveu quatro: Baile Perfumado, Amarelo Manga, Árido Movie, e Baixio das
Bestas. Evidentemente, tem seu processo mais ligado aos diretores Lírio Ferreira e
Cláudio Assis, e neste ponto se pode extrair a observação que a utilização imagética
dos seus textos não é nem um pouco consensual.
Talvez, o caráter metamórfico do texto de Lacerda seja uma
consequência natural do procedimento de trabalho feito por encomenda, ou seja, ele
está para os filmes selecionados como co-autor, mas o argumento em geral de cada
projeto é creditado aos diretores dos respectivos filmes por ele escritos.
Retomando a ideia do cinema periférico feito na América Latina, o roteiro
é um dos elementos que absorve o contexto político como parte da narrativa,
favorecendo ao surgimento de um texto metamórfico devido à existência de uma
sociedade ainda em crise de identidade. O crítico José Carlos Avellar expõe a
mesma questão ao analisar o cinema feito por Fernando Birri, Glauber Rocha,
Fernando Solanas, Octavio Getino, Julio García Espinosa, Jorge Sanjinés e Tomás
Gutiérrez Alea:
O cinema que começamos a fazer na metade dos anos 50 partiu
exatamente da descontinuidade, instrumento arrancado de dentro do
subdesenvolvimento, para voltar-se contra ela, para transformar em ão o
que se impõe como impossibilidade de invenção livre. Os filmes parecem
inconclusos. As teorias criadas em torno deles também. Uma coisa e outra
têm um idêntico tom de roteiro, primeiro pedaço de uma imagem que está
nascendo naquele exato instante, ou esboço imperfeito de uma imagem que
só vai nascer adiante (AVELLAR, 1995, p.9).
É certo que a distância entre o cinema feito nos anos cinquenta e este
escrito por Lacerda, nos anos noventa e nos anos 2000, expõe uma diferença
textual de contexto político. Contudo, questionado em entrevista sobre quais as
possíveis causas para o boom” do cinema pernambucano, a partir da década de
95
noventa, em meio a um cenário de grandes produções do circuito comercial,
Lacerda atribui a necessidade que existia na sociedade em preencher um vácuo
libertário existente na história do cinema brasileiro. Inclusive, compreende que o
cinema pernambucano contemporâneo, mesmo possuindo um reconhecimento
criativo e, por isso sendo diversas vezes premiado, continuará num mercado
periférico. Aliás, acredita que seja interessante que ele não perca essa identificação.
A mudança entre os anos cinquenta e os anos noventa está no papel
desempenhado pela política, antes governamental, agora, de ordem econômica.
Mas Lacerda parece se adequar ao sistema apresentado uma vez que escreveu
para diretores esteticamente diferentes, caso de Lírio Ferreira e Cláudio Assis, ou
mesmo para o mineiro Kiko Goifman, em Filmefobia (2008). No caso específico dos
diretores pernambucanos, Lacerda (2008) explica, ao se referir aos trechos expostos
nos filmes de Cláudio Assis, onde quebra da ilusão, que a parceria funciona bem:
“há uma grande sintonia e afinidade durante a realização, mesmo quando Cláudio
adapta ao seu gosto algumas coisas do roteiro, chegando às vezes a a mudar a
conotação dos textos”.
Sobre o processo criativo, em entrevista, Lacerda (2008) descreveu-se
como impulsivo e espontâneo. A vontade é explorar ao máximo o personagem,
conhecer todos os seus defeitos. É o caso dos personagens, por exemplo, de
Matheus Nachtergaele
49
, Dunga e Everaldo, respectivamente em Amarelo Manga e
Baixio das Bestas. A opção da quebra da ilusão pelo diretor Cláudio Assis permitiu
uma aproximação com os personagens tamanha que nos remete à prática do teatro.
No entanto, a câmera é responsável por indicar e exaltar os relevos da
personalidade que se apresenta. Esse relevo, em certa medida, estava indicado
no texto do roteiro, advindo então da criação do roteirista.
A unidade no roteiro é orgânica, trata-se da subjetividade inerente ao
autor, mesmo que seja passível de adaptações, como é neste caso especificamente.
A unidade no texto esta presente enquanto ação. Nos filmes da geração Árido
Movie, escritos por Lacerda, os três primeiros podem ser descritos como unidade de
49
Como curiosidade, Hilton Lacerda é também o roteirista do primeiro filme de Matheus Nachtergaele
como diretor, A festa da menina morta (2008).
96
ação. No Baile Perfumado a ação está representada através dos personagens
Abraão e Tenente Lindalvo em busca de Lampião. Para isso, diversos plots são
criados. Em Amarelo Manga, roteiro escrito de forma clara, inclusive visualmente,
como descrito na análise do filme sequência de personagens, personalidades de
um lugar, no desenrolar de suas vidas e, que por obra do roteiro, se encontram no
clímax da narrativa; em Árido Movie, em se tratando de road movie, temos uma ação
por excelência, a viagem, entrecortada de situações; a exceção para ação está em
Baixio das bestas que pode ser considerado muito mais como um filme de
contemplação. A ação não é guia da narrativa.
Em Baixio das Bestas a ação será uma referência dramática, determinada
por dois aspectos: tempo e lugar. Esta determinação de ação dramática foi definida
por Aristóteles para o teatro. O tempo e o lugar descritos em Baixio das Bestas são
os indícios evidentes de uma realidade que de tão assustadora nos faz crer na
ficção encenada.
3.6. O caso Cláudio Assis
Os filmes do diretor Cláudio Assis nos interpelam a todo instante sob a
premissa de estarmos diante do mundo real trabalhado através da ficção. As
temáticas escolhidas caberiam perfeitamente em documentários, como solução para
suavizar e justificar a violência psicológica e física apresentada, mas a opção do
cineasta não é esta. O aspecto ácido com que trata suas narrativas, o leva a
caminhos conflitantes, ora a glória na seqüência de prêmios toda vez que apresenta
um filme seu no Festival de Brasília, ora as vaias que recebe no mesmo Festival.
No entanto, quando se trata de documentário, a tônica da crítica de
cinema nacional recai sobre a ideia que boas realizações sofrem de um mesmo
problema, distanciamento de classes entre realizador e objeto de investigação, haja
vista o lúcido e poético Santiago (2007), de João Moreira Salles. Em contrapartida,
quando se trata de ficção, temos as obras de Cláudio Assis com liberdade moral
97
assumida, em tom opaco e visceral, para se aproximar e julgar os fatos de uma
realidade encenada.
Uma comparação pertinente no campo da ficção com a filmografia de
Assis, no que diz respeito à violência, pode ser feita através da produção do
cineasta alemão Michael Haneke. Ambos comungam da crueldade e acreditam que
o cinema tem uma função social a cumprir, descortinar a sociedade e promover o
debate e a reflexão, exigindo do espectador uma opinião.
O cineasta alemão possui como grau equivalente de tortura e submissão,
uma série de filmes cultuados em festivais e expurgados do circuito comercial de
exibição, a exemplo de O Vídeo de Benny (1992), Violência Gratuita (1997/2007) e
A Professora de Piano (2001). As imagens dos filmes de Haneke possuem um rigor
técnico, câmeras milimetricamente posicionadas, garantindo ao espectador completo
estado de voyeurismo dos acontecimentos.
Em entrevista para o site Folha Online, em 2001, época do lançamento do
filme, A Professora de Piano, Haneke explicita seu ideal de cinema utilizado por
meio de situações extremas, assim como faz Assis.
Folha O sr. faz parte de um grupo de diretores que não deixa a audiência
indiferente. O choque direciona sua escolha de temas?
Haneke Não, eu escolho os temas que me interessam. Hoje estamos
habituados a ver um cinema calmamente, de entretenimento, que não nos
confronta com a realidade. Mas, se quisermos ver o cinema como uma
forma de arte, somos obrigados a esse confronto. E isso, muitas vezes,
choca o público de hoje em dia. Eu faço um filme para me conformar, eu
mesmo, com um tema que acho importante, grave. Nunca tenho a ideia de
chocar.
50
Em outra pergunta, deixa claro que a moral questionada em seus filmes,
assim como Assis, permite uma liberdade obscena para representá-la:
O obsceno é o que se esconde, também no sentido espiritual. Na
pornografia, o sujeito vira um objeto. A obscenidade um clique sobre
outras coisas. Ela não está só no sexo: esna violência, na vida cotidiana.
Se usamos isso na arte, podemos provocar reflexões.
51
50
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u18326.shtml
51
Idem.
98
Os dois diretores apresentam uma linha tênue entre misoginia e denúncia
ao tratar da mulher. As situações em seus filmes são extremas, mas não limites,
pois sempre espaço para surpresas que não necessariamente culminam em
morte, mas sim em mais tortura.
No artigo, “Estéticas da violência no cinema”, escrito pela pesquisadora
Ivana Bentes, em 2003, para a revista Intersecções, após a polêmica matéria
publicada no Jornal do Brasil, em 2001, “Da estética à cosmética da fome”, sobre o
filme Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles, encontramos uma forma de
leitura para o cinema feito por Assis. Para Bentes, existem duas questões
pertinentes para se pensar a relação entre cinema e violência, uma ética e outra
estética:
A questão ética é: como mostrar o sofrimento, como representar os
territórios da pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore,
no paternalismo ou num humanismo conformista e piegas? [...] A questão
estética é: como criar um novo modo de expressão, compreensão e
representação dos fenômenos ligados aos territórios da pobreza, do sertão
e da favela, dos seus personagens e dramas? Como levar esteticamente o
espectador “compreender” e experimentar a radicalidade da fome e dos
efeitos da pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América latina?
(BENTES, 2003).
As questões indicam que o diretor apresenta de forma clara as respostas,
a temática é a mazela social e, para isso, irá se utilizar de uma estética pautada no
cinismo e no escárnio. Enquanto autor de suas tramas, Assis determina então qual a
ética e estética que lhe cabe, não necessitando para isso de uma aprovação. O
resultado pode ser definido pelas palavras de Bentes ao discutir violência como
forma de pensamento exposto através do cinema:
Esse sobressalto de sensações é criado pela associação de imagens mais
líricas e poéticas com imagens absolutamente violentas e inesperadas, a
poesia extraída dessa associação inesperada (BENTES, 2003).
É curioso que o diretor se permite também atuar nos seus filmes,
realizando papéis como ponta, reforçando a parcialidade diante da realidade, com o
99
direito a emitir juízos de valor sobre as personagens centrais da história. Assim, ele
(se) representa tanto em Amarelo Manga, como em Baixio das Bestas. Do ponto de
vista criativo, essa supra consciência adotada por cineastas como Cláudio Assis,
acabam por enriquecer a histórica do cinema, neste caso brasileiro.
100
Capítulo 4. Uma estética e/ou uma linguagem Árido Movie
4.1. O contexto Manguebeat
Os anos noventa gerou um ideal nos jovens pernambucanos, “modernizar
o passado”
52
, assim está na letra de Chico Science, assim está na proposta de
That’s a Lero-Lero e no Baile Perfumado. O contexto dasica em Pernambuco foi
de significativa importância para abrir as portas para as outras manifestações
artísticas pernambucanas nesta passagem entre os anos noventa e 2000. O ano de
1997, então, demarca uma série de acontecimentos que viriam a representar a
divisão de águas para um novo capítulo da história da cultura brasileira, na
perspectiva regional.
Para o cinema, foi o ano de lançamento do Baile Perfumado. O último
longa-metragem produzido no estado foi O Palavrão, em 1978, realizado por Cleto
Mergulhão. Em 1997, é o ano também do primeiro Festival de Cinema do Recife. No
entanto, o carnaval de 1997 foi marcado pela morte do cantor Chico Science, o que
abalou o promissor cenário musical do Estado, que vivia com o Manguebeat uma
espécie de renovação tanto do mercado fonográfico local, como da identidade para
a cultura jovem.
De uma maneira geral, o Manguebeat, contemporâneo ao início da
tendência Árido Movie, no cinema, pode ser entendido como uma iniciativa de
alguns jovens músicos pernambucanos em criar uma nova identidade cultural onde
estivessem presentes os ritmos regionais e a cultura pop, uma contestação,
inclusive, a outro movimento tradicional da cultura pernambucana, o Movimento
Armorial
53
. A batida mangue musicalmente significava a mistura do Maracatu de
Baque Virado com o funk e o rap. Entre os principais idealizadores do movimento,
52
Trecho da música “Monólogo ao do ouvido”, composta por Chico Science para o CD Chico
Science & Nação Zumbi, da lama ao caos, em 1994.
53
Movimento da cultura popular nordestina, idealizado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna na
década de 70 com o objetivo de criar uma identidade regional erudita a partir de elementos tradicionais da
música, literatura, arquitetura, teatro e gravura. Exclui qualquer referência a culturas contemporâneas
estrangeiras.
102
encontramos os nomes de Chico Science, Fred 04 e Renato L. Sobre o
Manguebeat
54
, especificamente numa perspectiva antropológica, encontramos o
estudo da pesquisadora, Luciana Mendonça que, em 2004, defende a tese “Do
Mangue para o Mundo: O local e o global na produção e recepção da música
popular brasileira”. Seu estudo analisa a dinâmica cultural urbana da cena mangue
recifense e seu contexto periférico, concluindo que todo o esforço do movimento
musical acabou conferindo valor às demais manifestações culturais locais:
A veiculação desta produção pelos canais da indústria gerou valorização
estética e mercadológica de manifestações culturais populares locais ou
regionais, junto com a divulgação e criação de um público, em âmbito local,
nacional e até mesmo mundializado, para as criações artísticas associadas
ao mangue (MENDONÇA, 2004, p. 262).
Levando-se em consideração a profusão de materiais, artigos,
entrevistas, livros e pesquisas sobre este momento histórico da música
pernambucana e que não foi produzido ainda na mesma escala para o cinema, a
explicação atribuída pela pesquisadora para a cena mangue cabe para traduzir o
mesmo fenômeno que se configurou no cinema pernambucano. Acompanhe:
O que une estas bandas e músicos, com certeza, não é uma uniformidade
de produção ou de combinação dos elementos musicais ‘modernos’ e
‘tradicionaispara suas criações específicas, mas uma perspectiva comum,
embora com usos diversos, sobre a cultura popular do Recife e sobre a
cultura pop internacional, além do sentido prático de cooperação material
entre as bandas.
Como conceito, o mangue funcionou (e ainda funciona) como um grande
‘guarda-chuva’ para uma variedade de formas musicais e artísticas
preexistentes. Fortemente ligado ao contexto urbano do Recife e às
informações mais atualizadas da cultura mundializada, o movimento
mangue foi capaz de espalhar suas idéias entre a população local e tornou-
se conhecido entre parcelas do público jovem brasileiro e, em menor grau,
europeu e norte-americano. Deste modo, ajudou artistas a capturarem a
atenção do público e da mídia. Este foi um desenvolvimento fundamental
porque, antes, havia muitas idéias, mas os artistas não possuíam os
instrumentos e a estrutura necessários para desenvolver seu trabalho, nem
muitos espaços para divulgarem o que faziam, como se verá mais
claramente na descrição da trajetória de algumas bandas. As condições
54
Com um apuro técnico da crítica musical, encontramos o livro Do Frevo ao Manguebeat, escrito pelo
jornalista pernambucano, José Teles, em 2000.
103
materiais se ampliaram quando os músicos começaram a captar a atenção
da crítica nacional e internacional (MENDONÇA, 2004, p.16).
Neste mesmo caminho, o fotógrafo, Fred Jordão (2008), expõe em
entrevista para a pesquisa as contribuições geradas com o Manguebeat para as
políticas de incentivo à cultura, em Pernambuco, convergindo em implicações que a
movimentação levantou no debate do campo das políticas públicas de cinema:
Talvez um dos acontecimentos mais importantes aqui em Pernambuco,
depois de 64, seja o acontecimento do Manguebeat e do movimento de
cinema que uma identidade cultural à cidade, retoma essa identidade
perdida. De uma cidade intelectual, uma cidade de produção cultural que se
perdeu.
55
Ao ser questionado sobre o reflexo dessa movimentação cultural do anos
noventa na população, Jordão acredita ser inevitável e de grande valor para as
futuras gerações, e alerta para ao papel do Estado com as renovadas
manifestações:
É um processo que não existe um agente só. Quando uma coisa se
destaca, as outras correm atrás e elas vão se completando. Agora o
governo olha pro cinema e política estratégica, isso é um avanço
fantástico, a gente tem que aplaudir e tudo mais. Mas a gente sabe, na hora
que o cinema falhar, esse apoio desaparece. Então, o governo tem que
acordar pra isso e criar uma política cultural [permanente]. Não porque os
filmes estão fazendo sucesso.
56
O reflexo deste crescimento no campo do cinema, até certo ponto,
caótico, gerou uma movimentação de concursos de roteiros e editais no Estado,
além de cursos profissionalizantes na área técnica. Alguns centros de ensino
criaram cursos na área de cinema digital e de animação, além da Universidade
Federal de Pernambuco que conseguiu instituir efetivamente a graduação em
Cinema, a partir de 2008, afastando-se assim, da tradição jornalística no cinema.
55
JORDÃO, Fred. Recife, 29 de agosto de 2008.
56
Idem.
104
Contudo, o problema do financiamento permanece como entrave à
realização local. O próximo longa-metragem do diretor Paulo Caldas chamado Amor
Sujo, por exemplo, que na época da entrevista para a pesquisa estava em fase de
captação de recursos, corria o risco de não acontecer sob o sistema de produção
pernambucano.
Eu acho que muitas coisas são favoráveis hoje dentro do Governo
57
, [existe]
a intenção que se troque a palavra apoio por investimento, que se crie uma
política mais definitiva para o setor, mas isso não aconteceu. A gente pediu
um edital de fomento a produção de 10 milhões, foi feito um de 2 milhões
referente ao ano passado [2007]. E não vigorou. Tem uma proposta este
ano [2008] de ser de 2 milhões e a gente está tentando tornar para 4 ou até
6 milhões. Porque se não houver esse investimento, a gente continua na
mesma. Em confesso à você que meu próximo filme es metade captado,
ou quase 40%, metade dos recursos fora de Pernambuco. Nenhum Real
captado em Pernambuco. E eu estou na eminência de rodar esse filme fora
de Pernambuco.
58
Destaca mais adiante que o filme possui características universais e, do
ponto de vista das locações, poderia ser rodado em qualquer lugar, mas a sua
vontade era realizar em Pernambuco, onde estava o elenco e a equipe de uma
forma geral.
Coube a capital do Estado, Recife, ser palco de um espaço conflitante
para as ações em prol da cultura, devido à demanda de questões mais urgentes
ligadas à violência e pobreza. A miséria e com ela o subdesenvolvimento nas
grandes cidades, está presente de forma latente no Recife, capital de grande
desigualdade social. A exclusão institucionalizada na cidade é uma característica na
qual convive lado a lado o ambiente urbano, moderno e rico, com o ambiente
precário, insalubre e pobre, tão peculiar às grandes cidades do Brasil e presente nos
filmes dos realizadores em questão. Segundo o médico e sociólogo pernambucano,
Josué de Castro (1973), o subdesenvolvimento é uma forma de manutenção do
próprio desenvolvimento.
57
O Governo de Pernambuco no período entre 2007 e 2010 é governado pelo economista Eduardo
Campos, por coincidência familiar, sobrinho do cineasta Guel Arraes. A secretaria de Cultura deste mandato está
sob tutela do escritor Ariano Suassuna, já referendado nesta pesquisa.
58
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
105
O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente,
insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um
produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da
exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo
sobre diversas regiões do planeta (CASTRO, 1973, Revista Correio da
Unesco, ano I, número 3).
No entanto, com toda a contradição social presente, resiste uma marca
cultural na população local, verificada nas manifestações culturais. O processo de
expressão da cultura pernambucana se apresenta de forma mutante, talvez porque
a arte pode ser entendida como um conjunto de práticas, e não apenas como um
conjunto de obras, possibilitando que a cultura seja parte integrante e necessária à
sociedade. A pesquisadora Nara Aragão Fonseca expõe a questão social como fator
de estímulo às novas produções que se iniciam nos anos de 1990 no Recife:
Outra questão que esteve no cerne da discussão sócio-cultural do período
foi a disseminação de uma pesquisa do Population Crisis de Washington, no
início da década de 90, que constatava que Recife seria a quarta pior cidade
do mundo para se viver. A repercussão dessa notícia despertou um grande
interesse pelas questões urbanas, do crescimento desordenado e dos
contrastes que inviabilizavam o projeto metrópole do Recife (FONSECA,
2006, p.58).
Os fatores sociais convergiam para uma manifestação que latejava na
cidade, sistematizado com o Manguebeat, em 1991, a partir da publicação do
Manifesto Mangue em um jornal local. Ao mesmo passo, acontece o processo de
revitalização do bairro do Recife, passando a se chamar Recife Antigo, antes um
abandonado espaço portuário reduto de prostituição e que viria a representar o
palco por excelência da cultura popular da cidade, especialmente nas festividades
do Carnaval. O local é cenário para os quatro primeiros filmes da pesquisa, Baile
Pperfumado, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, Amarelo
Manga e Árido Movie. Nos outros filmes, Recife está presente em diálogos e em
locações próximas a essa região central.
Assim, o cinema pernambucano passou a refletir também a realidade da
cidade, somando o caráter urbano às realizações. Os filmes produzidos nos 12 anos
106
pesquisados, 1997 a 2008, apresentam em comum o diálogo permanente com as
contradições sociais. Nesse contexto, o cinema passa a ser importante objeto de
investigação, pois permite uma leitura da sociedade mais flexível sob o ponto de
vista estético e até mesmo moral. Importante salientar que “um dos dados mais
positivos desta nova onda de filmes pernambucanos é a possibilidade de uma leitura
menos rígida das manifestações culturais locais” (FIGUEIRÔA, 2000, p.116)
Uma dessas leituras pode ser percebida na aproximação com o
Manguebeat, utilizando a vertente da música para composição das trilhas sonoras, e
também como exercício de uma boa dose de mistura estética. Algumas
características são fortes e fazem parte dos oito primeiros anos (1997 a 2004) do
período analisado, podendo ser identificadas através de diálogos contemporâneos,
locações improvisadas e personagens caricatos.
em 2005, a partir do lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus, foi
possível verificar uma mudança de foco, a contradição urbana perde força e se
sobressaem as relações humanas vivenciadas entre o sertanejo e o estrangeiro,
presos na própria condição subalterna de “retirantes”. A partir desta obra, o cinema
regional pernambucano parece se reaproximar do Cinema Novo vivenciado
intensamente nos anos de 1960, parâmetro clássico dos estudos sobre cinema
nacional. Com relação ao Cinema Novo, nos anos de 1980, o crítico, Paulo Emílio
Salles Gomes, evidenciou a dificuldade, pertinente ainda hoje, ao se analisar as
novas produções artísticas à luz dos acontecimentos e o perigo de se equivocar em
determinações.
O Cinema Novo é parte de uma corrente mais larga e profunda que se
exprimiu igualmente através da música, do teatro, das ciências sociais e da
literatura. Essa corrente composta de espíritos chegados a uma luminosa
maturidade e enriquecida pela explosão ininterrupta de jovens talentos foi
por sua vez, expressão cultural mais requintada de um amplíssimo
fenômeno histórico nacional. Tudo ainda está muito perto de nós, nenhum
jogo fundamental foi feito ou desfeito e os dias que correm não facilitam a
procura de uma perspectiva equilibrada sobre o que aconteceu (GOMES,
1980, p.94).
107
A produção da geração Árido Movie, em 12 anos de realização, está
consolidada. A música mangue foi um aspecto influenciador, mas não determinante.
Na virada dos anos 2000 até o ano de 2009, ano desta pesquisa, é notável a
independência do cinema pernambucano das demais manifestações culturais. Trata-
se neste caso da história de uma cultura local nordestina, pernambucana (urbana
e sertaneja) inserida em uma cultura nacional. Refletindo assim, uma problemática
de um tema maior, a situação político-social do cinema periférico, seja ele latino
americano, asiático ou africano.
Sobre este assunto identificamos a pesquisadora pernambucana, Ângela
Prysthon, que atualiza o debate iniciado com Paulo Emílio Salles Gomes sobre a
perspectiva do subdesenvolvimento no cinema periférico. Prysthon enfatiza o caráter
subalterno das novas realizações. De um lado, os precários recursos técnicos, de
outro, a necessidade de dialogar com o mundo contemporâneo, com a modernidade
presente:
O cinema periférico tem emergido nos últimos anos como uma espécie de
moda cultural dos grandes centros. Está quase que automaticamente
preservado o direito de exibição” por essas “denominações de origem”.
Esse lugar de destaque conquistado sobretudo a partir do final da década
de 90 e início dos 2000 com filmes como O Balão Branco (Irã, 1995);
Central do Brasil (Brasil, 1998), Amores Brutos (México, 1999), Nove
Rainhas (Argentina, 1999), Amor à Flor da Pele (Hong Kong, 2000) não é
definido por uma unidade estética ou temática (embora possamos agrupar
algumas recorrências, evidentemente, ao longo das duas últimas décadas),
mas sim pela vaguíssima possibilidade de redelineamento da noção de
Terceiro Cinema através do termo World Cinema e do conceito de
multiculturalismo (PRYSTHON, In: Compós. 2006, p.11-12).
Sem adentrar nos estudos sociológicos da teoria pós-colonial, presente
no Brasil através da crítica cinematográfica de Paulo Emílio Salles Gomes, cabe
salientar o aspecto alegórico que alinha as produções de cinema ainda hoje nestes
países ditos periféricos. Na medida em que visualizamos nos personagens
contemporâneos, particularmente no cinema independente, uma pulsão autoral de
ordem política. Assim situa o teórico Robert Stam, a partir dos escritos de Fredric
Jameson:
108
Outra expressão habitual nessa discussão é ‘alegoria nacional’. Para Fredric
Jameson, os textos do Terceiro Mundo são todos ‘necessariamente
alegóricos’, porque mesmo os investidos de uma dinâmica aparentemente
particular [...] ‘projetam uma dimensão política na forma de alegoria
nacional: a história do destino pessoal do indivíduo constitui sempre uma
alegoria da problemática situação da cultura e da sociedade terceiro-
mundistas (JAMESON 1986 apud STAM, 2003, p.315-316).
No caso desta cinematografia regional, o caráter alegórico veio
acompanhado de um contexto de marginalidade. Os personagens em todos os
filmes falam através de classes populares, a exceção de Árido Movie. Mesmo assim,
Jonas, personagem principal da trama, é obrigado a se confrontar com a sua família
nordestina, que ainda vive de tradições arcaicas. Neste sentido, o cinema
pernambucano utilizou-se das adversidades como temática, fazendo desta aliança
sua identidade. Assim, se inseriu ao mainstream internacional dando um novo passo
rumo à construção de sua história cinematográfica e prova, como gostava de repetir
o porta-voz do movimento Manguebeat, Chico Science, “um passo à frente e você
não está no mesmo lugar”.
4.2. Um rótulo questionável
Como forma de furar a barreira do mercado cinematográfico profissional,
os cineastas da geração Árido Movie, buscaram alianças que permitissem a
realização dos seus projetos, como descrito no processo mais recente da co-
produção Brasil-Alemanha em Deserto feliz. A relação entre realizador e a tríade
financiador-produtor-distribuidor adotou uma postura mais política em detrimento à
ideológica. Como observa Stam:
Se o terceiro-mundismo cinematográfico encontra-se em plena atividade, o
terceiro-mundismo político está em crise. [...] Diretores que antes haviam
denunciado a hegemonia hollywoodiana começaram a buscar acordos com
a Warners, a HBO. [...] Na indústria cinematográfica, os cineastas-teóricos
tornaram-se mais conscientes da necessidade de teorizar a mídia de forma
menos maniqueísta e de criar um cinema que produzisse não apenas
consciência política e inovação estética, mas também o tipo de prazer
109
espectatorial permitidor do florescimento de uma indústria cinematográfica
economicamente viável (STAM, 2003, p. 309).
Com este cenário também é fácil compreender a adesão de um título
impactante para um filme como Árido Movie, na cola de uma mensagem anterior a
esta realização, mas que não havia encontrado ainda espaço para repercussão. A
polêmica instalou-se na mídia e gerou a discussão sobre o que é o cinema Árido
Movie, afinal? Uma estética, uma linguagem cinematográfica, um movimento, uma
marca, uma mística? Ou, como adotado nesta pesquisa: uma geração.
Tomando o Manguebeat novamente como parâmetro de movimentação
artística contemporânea ao cinema Árido Movie, a palavra “cena” seria a que melhor
define a efervescência vivenciada durante os anos noventa.
Na visão de Renato L, uma contribuição importante da cooperativa cultural
mangue foi trazer para o contexto do Recife a metáfora da cena, que tem
origem no movimento punk inglês e qualifica um fazer cultural que mexe
com circuitos de produção e consumo interligados, mas não uniformizados
em termos estéticos. Por isso, a cena mangue pode englobar
manifestações e campos artísticos diversos, como cinema, as artes
plásticas, a fotografia e a moda. [...] Em alguns casos, os mesmos artistas
estão envolvidos em fazer os videoclipes, projetos gráficos de capas, fotos
e figurino das bandas. Associada à noção de cena, encontra-se a
perspectiva de fazer o seu próprio marketing (MENDONÇA, 2004, p. 27).
Outro aspecto interessante é que os idealizadores do Manguebeat
inicialmente não se reconheciam no termo “movimento”, pois acreditavam que, o que
existia entre eles, na verdade, era um ambiente chamado de:
“Cooperativa cultural mangue” assim se auto-intitulavam. Como observação,
vale destacar que o nome originalmente criado para a nova onda musical foi
manguebit, utilizando a palavra bit (unidade de informação), no entanto, foi
transformado pela imprensa em beat (ritmo, batida), (MENDONÇA, 2004).
A questão recai igualmente para o cinema e pode ser compreendida mais
uma vez como uma necessidade em aprisionar um período sob a chancela de um
rótulo, busca inevitável e diária dos veículos de comunicação. Sob esta prerrogativa,
110
verificamos que no cinema, Amin Stepple, desde a década de setenta esteve em
busca de tais determinações. A ideia de gerar uma marca, que ele sempre se refere
como stica, estava presente no Ciclo do Super 8. Sobre o assunto ele o
seguinte depoimento em 1989:
A época, costumava-se dizer não entre os cineastas pernambucanos
como entre os teóricos do cinema que o Super 8 representava a
democratização do cinema. Isto tem duas conotações uma mais subjetiva
no sentido de luta contra a estrutura militar e a outra do fato de qualquer
pessoa ter acesso aos meios de produção cinematográfica para fazer um
filme doméstico, ficção ou documentário. Então nesse sentido um
movimento enquanto ação cinematográfica, enquanto pessoas reunidas
com o objetivo de fazer um filme facilitado por essa suposta democratização
que o Super 8 permitiu. Contudo não houve uma preocupação estética, de
linguagem, de ser um movimento cultural uniforme.
Mesmo sem acreditar e sem defender a tese do movimento, eu achava que
era importante se criar uma mística do fazer cinema. Então como eu era
jornalista, tive a preocupação de fazer uma propaganda do cinema Super 8
porque daí, eu criava uma mística. Não o suficiente para se criar um
movimento, mas para criar uma expectativa em torno dos filmes realizados
em Pernambuco. Para o público funcionava. Por exemplo, eu ia exibir filmes
meus, de Geneton e de Jomard e anunciava Mostra de Cinema Anarquista.
Se eu tivesse colocado mais uma mostra de filme Super 8 não ia ninguém,
mas mostra de cinema anarquista as pessoas indagavam: que onda é
essa?, e iam ver os filmes (FIGUEIRÔA, 1994, p. 172-173).
Com o fim da produção em Super 8, e a chegada de uma nova geração,
Stepple continuou a produzir, ligado muito mais com a produção televisiva, como
descrito no Capítulo 1, no entanto, viu no projeto That’s a Lero-Lero, parceria
proposta por Lírio Ferreira, a possibilidade de dar continuidade ao seu ideal de um
novo ciclo de cinema pernambucano. Em 2001, escreveu a respeito do curta-
metragem na Revista Continente Multicultural um artigo-manifesto intitulado Árido
Movie uma marca sem futuro”. Abaixo, um trecho da matéria
59
onde Stepple
formula a ideia do termo Árido Movie, como descrito em entrevista para a
pesquisa no Capítulo 3:
That’s a Lero-Lero (Stepple/Lírio Ferreira) é uma atualidade reconstituída
da passagem de Welles pelo Recife. Rodado durante sete noites em junho
de 1994, é o primeiro filme do Árido Movie, o mais curto dos ciclos do
cinema pernambucano. [...] That’s a Lero-Lero é um filme experimental
sobre a heresia do silêncio. Para Welles, o cinema nunca foi mudo. Ele diz:
59
O texto na íntegra encontra-se nos Anexos.
111
‘Quando não havia música na sala de projeção, havia o barulho do
projetor’. O barulho do projetor do lançamento de That’s a Lero-Lero é
contemporâneo ao barulho das caixas de guerra percussivas dos primeiros
CDs do Manguebeat. Mais do que a música, o que interessou de imediato
aos diretores de That’s a Lero-Lero foi o natural e espantoso apelo
publicitário do Manguebeat. Finalmente, a cultura pernambucana
ingressava na pragmática economia de marcas.
A nova logo cinematográfica, Árido Movie, é criada ironicamente em
laboratório, para, por assumido arrivismo, colar, feito adesivo, à bem-
sucedida logo musical, Manguebeat. Portanto, Árido Movie é uma
falsificação publicitária da marca Manguebeat. A secura (da gíria; e da
revisita profana à paisagem aruanda-cinemanovista) do Árido em
contraponto ao húmus lamacento do Mangue. Movie/Beat, o inglês de porto
nosso de cada dia. Aliás, o mesmo falado por Welles em That’s a Lero-
Lero. As mitologias hoje são manufaturadas em áreas de serviço (apud
Milton Santos). Welles sabia que os impostores apearam os deuses do
Olimpo. A vida é se se deve sentir saudade (CONTINENTE
MULTICULTURAL, abril, 2001).
Na entrevista para a pesquisa, Stepple enfatiza que mesmo com o
lançamento de um curta-metragem onde se visualizava o ideal estético do Árido
Movie, a expressão não foi bem aceita entre os cineastas locais inicialmente:
No início eu fui meio solitário nessa briga de Árido Movie, um movimento e
tal. A curiosidade foi que no início, nossos colegas, não entenderam de
imediato de que isso podia criar uma mística, tal qual o Manguebeat. Não se
entusiasmaram muito. Houve até certa resistência. Com o passar do tempo,
gostaram tanto da idéia que se apropriaram dela. [...] E foi até bom, porque
essa incoerência foi produtiva também.
60
Do ponto de vista dos realizadores da geração Árido Movie, o termo foi
encarado como uma brincadeira, como um jogo de palavras pertinentes ao universo
cinematográfico que Pernambucano vivia naquele momento. No discurso dos
cineastas, questionados sobre a validade da expressão, as opiniões se dividem
sobre sua correta utilização. Por exemplo, Marcelo Gomes (2008) acredita na
determinação dos filmes como Árido Movie, admitindo inclusive seu filme, Cinema,
Aspirinas e Urubus, dentro dessa expressão, pois entende que uma marca agrega
valor aos filmes contribuindo para a divulgação. Mesmo assim, diz entender que
não é possível ter controle sobre isso, mesmo que os filmes possuam características
60
STEPPLE, Amin. Recife, 10 de setembro de 2008.
112
diferentes entre si. Em entrevista, Gomes citou o caso do movimento Dogma 95
61
,
com filmes bastante diferentes, mas que ficaram conhecidos por uma estética
adotada pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier como positiva. Cláudio Assis,
vê a determinação como uma brincadeira que ainda não gerou repercussão:
Ainda nem pegou esse movimento, essa coisa nem pegou. O movimento
mangue, a questão é que naquele momento a gente estava fazendo
[produzindo filmes] também. Mas nós somos parceiros da mesma coisa, os
meninos até hoje trabalham comigo, fizeram Baixio das Bestas, fizeram
Amarelo Manga e vão fazer a Febre do Rato. Nós somos amigos,
contemporâneos. Foi uma brincadeira que Amin criou.
62
Em acordo com Assis, está o roteirista Hilton Lacerda (2008), ao tratar da
expressão como uma brincadeira, no entanto, como abordado anteriormente,
acha que essa identificação de um cinema periférico confere status ideológico às
produções.
o diretor Paulo Caldas (2008), segue na mesma linha adotada por
Gomes:
Eu acho que a morte de Chico Science precipitou um pouco isso. E o
cinema, por incrível que pareça, teria prolongado mais. Isso foi uma
expressão criada pelo Amin Stepple, um cineasta e roteirista, com um cunho
muito engraçado, muito interessante, midiático mesmo. De provocar a mídia
para que isso nos ajudasse na divulgação dos filmes. [Refere-se às palavras
de Amin Stepple] Então vamos criar esse negócio, quanto ao Manguebeat a
gente não tem nada a ver com aquela coisa do mangue, a gente é Árido
Movie, que é uma coisa mais seca, uma linguagem não do sertão, mas a
dureza, a pedra, a coisa árida mesmo, o sol, a coisa forte.
63
Adotando a expressão como um ideal propagandístico, o fotógrafo Fred
Jordão (2008), aposta na ideia como uma necessidade de mercado:
61
O movimento Dogma 95 foi criado pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Vinterberg na Dinamarca,
em 1995, e cujo objetivo foi elaborar um manifesto com uma ordem de preceitos técnicos para realização de
filmes que deveriam operar sob a lógica da naturalidade, ou seja, proibida a utilização de cenários, iluminação
artificial, ou qualquer recurso que não estivesse presente na cena. A câmera deverá estar na mão e o som deve
ser ambiente. O manifesto era contrário, na verdade, a uma linha de produção industrial, que acreditam seus
idealizadores, contribuir para destituir o caráter artístico do cinema. Desta forma, no movimento Dogma 95 foram
produzidos diversos filmes com várias nacionalidades, entre eles, os mais cultuados são os dois primeiros, Festa
de família (1995), de Thomas Vinterberg, e Os idiotas (1998), de Lars Von Trier.
62
ASSIS, Cláudio. Campinas, 18 de março de 2008.
63
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
113
Da mesma forma que foi uma jogada de marketing que foi a criação da
palavra Manguebeat. O impulso que ele teve se funcionou com o
Manguebeat, pode funcionar pra gente. Por que na verdade se não
tivessem acontecido algumas coisas provavelmente essas pessoas
estivessem aqui tentando rodar o seu primeiro ou talvez o seu segundo
filme sem conseguir nada. É necessário também ter algum marketing, é
necessário também ocupar algum espaço na mídia. Isso não é uma coisa
horrorosa, isso é uma coisa normal. A gente vive tempos midiáticos. Quem
as cartas é a mídia, é preciso você estar nos jornais, na televisão, na
revista, nem que seja na revista alternativa, num canal alternativo, num
jornal alternativo. Você tem que estar de alguma forma presente na mídia
64
.
No caso da definição de um cinema pernambucano, não levando em
detrimento um rótulo para a geração, verificou-se que as características que
agrupam os filmes estão presentes pela prerrogativa inicial de realizadores que
fazem parte de um mesmo grupo. Pois, como foi adiantado, os filmes realizados
por Guel Arraes, cineasta da mesma geração, por exemplo, ao abordar temáticas
regionais, não podem ser considerados uma produção pernambucana, uma vez que
não foram produzidos em um sistema de mercado e técnica regional. Neles,
utilizaram-se apenas as locações, alguns atores coadjuvantes e argumento local, e,
principalmente, há um direcionamento da linguagem cinematográfica que o aproxima
da linguagem televisiva, distanciando-o da reflexão. Por outro lado, na opinião de
Caldas (2008), o filme Cartola, Música Para os Olhos (2006), de Lírio Ferreria e
Hilton Lacerda, pode ser considerado um filme pernambucano, mas que ainda
encontra dificuldades em se determinar tal limite.
O filme de Hilton e Lírio, rodado no Rio, Cartola, é um filme pernambucano
porque têm muitas das características desses diretores. Então, é um
negócio difícil de definir, bom de estudar e difícil de definir. Eu acho que
talvez no futuro, talvez se consiga ter uma idéia mais elaborada sobre a
existência desse ciclo, dessas pessoas, da unidade disso. Porque no
momento eu vejo pontos em comum, claro, mas filmes muito distintos.
Talvez porque uma das características principais desse grupo de pessoas é
também a coisa de uma pesquisa de uma linguagem, quer dizer, até a
utilização de uma linguagem cinematográfica clássica, eu acho que todos
nós buscamos expressar, narrar histórias de uma forma diferente do
64
JORDÃO, Fred. Recife, 29 de agosto de 2008.
114
convencional, clássico, buscando uma linguagem mais próxima da vida da
gente que eu acho que também tem um ponto em comum
65
.
Da mesma forma, concorda a montadora, Vânia Debs (2008), ao se referir
aos sete filmes selecionados:
Esses filmes são identificados como pernambucanos porque tratam de
temas próprios da cultura pernambucana, com uma linguagem particular e
original, em geral árida e radical, que chamam a atenção para o ato de
narrar e ao mesmo tempo para assuntos contundentes. Atribuo [o
crescimento do cinema pernambucano] à existência de um grupo grande de
pessoas sensíveis, inteligentes e interessadas em se exprimir através do
cinema
66
.
Jordão (2008), também atribui ao aspecto das temáticas, sem
necessariamente associá-las à cultura, como um grande mérito que favorece o seu
reconhecimento:
Eles [os filmes] tem um misto de uma série de coisas que vai do humor, um
pouco de humor negro, um pouco de violência psicológica. E,
principalmente, uma coragem muito grande de tocar em certas coisas que
as pessoas talvez hoje não tenham coragem de tocá-las. Os enredos, os
argumentos, as histórias, tocam em coisas que as pessoas o estejam
dispostas, talvez porque sejam coisas proibidas para o mise-en-scène atual.
[...] Então, na verdade, eu acho que o cinema pernambucano, tem o
reconhecimento um pouco pelas opções suicidas que fez
67
.
Para finalizar, destacamos o depoimento de Amin Stepple como um olhar
para a geração que se seguiu a sua, no que diz respeito a determinação de um
cinema pernambucano por excelência, que ainda tem muito o que produzir e
repercutir:
Agora, por que é cinema pernambucano? No início eu gostava muito de
qualificar os filmes como pernambucanos, essencialmente como
pernambucanos. Havia uma reação do Paulo Caldas, o próprio Lírio. É que
não queriam e tal. Essa contestação deles é a nível pragmático. Quando
interessa à eles, eles dizem que é cinema pernambucano. Quando não
65
CALDAS, Paulo. Recife, 22 de setembro de 2008.
66
DEBS, Vânia. Depoimento via e-mail, em 3 de novembro de 2008.
67
JORDÃO, Fred. Recife, 29 de agosto de 2008.
115
interessa, eles dizem que é cinema nacional. Então, essa contradição é
deles. É uma contradição que eles administram
68
.
Ou seja, a discussão discordante pertinente aos realizadores, parece
estimular a busca de uma identidade autoral ligada necessariamente a uma
produção regional, fortalecendo os laços de uma relação dinâmica, conflituosa e
ainda assim produtiva, como bem cabem aos processos criativos.
4.3. Em breve nos cinemas...
O cinema produzido em Pernambuco na passagem dos anos 2000 até
2009 abriga várias gerações de realizadores. Encontramos ainda alguns curtas-
metragens sendo feitos pelo pessoal do Ciclo do Super 8, como é o caso de
Fernando Spencer e Kátia Mesel. Da geração Árido Movie, encontramos a sólida
produção em longas-metragens com lançamentos anuais em circuito nacional de
pelo menos um dos cinco realizadores destacados. Da geração pós-árido, temos o
caso do jornalista, Kleber Mendonça Filho, que caminha na execução de curtas e
longas-metragens ficcionais, além disso, como dito anteriormente, segue à frente do
Departamento de Audiovisual da Fundação Joaquim Nabuco movimentando-o como
espaço frutífero de profissionalização e acesso à debates e mostras especiais. E,
como geração que nasce com um “pé no experimental e outro no profissional,
executando exaustivamente o exercício fílmico através das próprias produtoras,
apresentamos uma lista de criativos cineastas.
Ainda como formação os cursos de comunicação, uma vez que os cursos
de cinema da região em atividade ainda não formaram suas primeiras turmas ao
final do ano de 2009, encontramos nomes como Daniel Bandeira, Gabriel Mascaro,
Juliano Dornelles e Marcelo Pedroso à frente da Símio Filmes, produtora que
realizou dois longas-metragens, o documentário KFZ-1348 (2008), com excelente
carreira em festivais e adquirido pela rede de televisão SBT; e a ficção Amigos de
Risco (2008). Este, inclusive, apresenta Recife como cenário, pela primeira vez, sem
68
STEPPLE, Amin. Recife, 10 de setembro de 2008.
116
qualquer prerrogativa cultural para contar a história turbulenta de três amigos pela
madrugada da cidade. Na produtora Trincheira Filmes, o trabalho de Leonardo
Lacca, Marcelo Lordello e Tião (Bruno Bezerra) rendeu o prêmio Novo Olhar como
Melhor Curta-Metragem Estrangeiro para Muro (2008), na Quinzena de Realizadores
do Festival de Cannes em 2008.
Ainda encontramos os realizadores Leonardo Sette, Daniel Aragão e o
agrestino Eduardo Morotó, diretor e roteirista do curta-metragem Agreste Adentro
(2006), realizado por meio do projeto Revelando os Brasis, iniciativa do Ministério da
Cultura e da Petrobrás, destinada a capacitar e financiar um vídeo digital de
realizadores vindos de cidades com até 20 mil habitantes. Como afirmado
anteriormente, na vertente feminina, Pernambuco ainda mantém a tendência com
poucas realizadoras, mesmo assim, encontramos os vídeos, curtas-metragens e um
longa-metragem da cineasta Mariana Fortes, chamado O Coco, a Roda, o Pneu e o
Farol (2007). E assim Pernambuco segue em ativa produção cinematográfica em
confluência com o leque de possibilidades aberto no campo do audiovisual
contemporâneo.
117
Considerações finais
Se por um lado a abordagem de um período histórico recente parece
apressada, que a proposta é a análise de uma geração, observada a partir de
filmes que estrearam pouco tempo no circuito cinematográfico, como é o caso de
Deserto Feliz (2008), por outro lado, foi possível fazer um resgate da rica história do
cinema pernambucano, que aqui pôde ser percebido na perspectiva de quatro
gerações de cineastas em plena atividade.
A geração Árido Movie, jovens nos anos oitenta, que de realizadores
amadores se tornaram, ao longo dos anos noventa, profissionais, foi a escolhida e
se destacou pelo conjunto de filmes que apresentam sim uma proposta comum, a
reflexão dos dilemas, tradições e contradições de uma cultura regional, expressas
em sete longas-metragens. Superando assim, uma lógica de produção nacional
ainda escassa em recursos diante da demanda de projetos. A geração reuniu forças,
sonhos e criatividade artística e técnica para abrir uma grande janela, viabilidade
conferida ao formato em longa-metragem, no cenário do cinema independente.
Com a análise, foi possível encontrar elementos que justificassem um
diálogo aberto entre os filmes. Em primeiro lugar, existe uma mão-de-obra local que
se revezou nas produções; em segundo lugar, um diálogo permanente com a
marginalidade ou mesmo uma miséria inocente; e, em terceiro lugar, uma
perspectiva estrangeira condutora dos acontecimentos. Mesmo assim, os filmes
individualmente ainda podem ser percebidos enquanto realizações autorais, no
sentido que apresentam características ainda mais particularizadas ao isolarmos
cada película como uma obra autônoma.
No clima efervescente da renovação cinematográfica contemporânea dos
anos noventa, surge a expressão Árido Movie, em confluência com a manifestação
vivenciada pela música com o Manguebeat. A expressão que poderia soar como
uma oposição na batalha por espaço acabou possibilitando a união das diversas
expressões artísticas em diferentes mercados cinema, música, literatura, artes
118
plásticas e fotografia. O jogo de palavras foi absorvido e internalizado como
referência de discurso estético.
A junção das palavras “árido” e movie por si apresenta uma imagem
de um contexto conflituoso. O choque inicial foi intitulado de Baile Perfumado, o filme
do sertão verde, o filme da linguagem contemporânea e do tema arcaico, o filme do
mito pop Lampião e das guitarras e alfaias de Chico Science. Se adotarmos estética
no sentido clássico como corrente da filosofia que se interessa pelas sensações
expressas através da arte, reler os títulos de todos os filmes aqui analisados na
sequência O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas; Amarelo
Manga; Cinema, Aspirinas e Urubus; Árido Movie; Baixio das Bestas; Deserto Feliz
é um exercício teórico de poesia concreta e literatura de cordel, e exercício crítico
sobre uma série de discussões pertinentes ao cinema moderno.
Aos longas-metragens selecionados cabe o debate das dialéticas: arcaico
x moderno, periférico x cosmopolita, estética árida x tecnologia digital, caos urbano x
romantismo sertanejo, local x global, cultura popular (tradição) x cultura pop
(midiática). Desta forma, o cinema pernambucano contemporâneo se apresenta
inserido na história do cinema nacional, a partir das reflexões pertinentes a
diversidade cultural latino americana.
Algumas observações particulares podem ser feitas ao diálogo
encontrado entre os filmes. O Baile Perfumado é um filme que não se fecha em um
único gênero, mas flerta entre a aventura, o drama e o cangaço
69
; O Rap do
Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas opta pelo campo do documentário e
recorre à fábula para descrever uma problemática. Em seguida, todos os outros
cinco são essencialmente filmes de cunho dramático.
A geografia explorada por esses filmes possibilitou o surgimento de
cidades imaginárias presentes em um mesmo universo, caso de Rocha, em Árido
Movie, e Deserto Feliz, no filme homônimo. Ou seja, os filmes estabeleceram entre
69
O cangaço aqui é adotado como gênero, seguindo a perspectiva do pesquisador Marcelo Dídimo
Souza Vieira que realizou um mapeamento dos filmes sobre sertão em toda a filmografia nacional até a década
de noventa. A partir desse levantamento, passou a adotar o termo “cangaço” como gênero genuinamente
nacional, uma vez que tais filmes foram criados inicialmente como um paralelo brasileiro ao
western
norte-
americano.
119
si um estado cinematográfico que possibilitou a narração de várias histórias de uma
mesma realidade. Somado ao fato de, no Baile Perfumado, em Árido Movie, em
Cinema, Aspirinas e Urubus e, em Deserto Feliz o sertão ter sido re-significado.
Nesses filmes somos inseridos em interiores geográficos de uma mesma região que
se mostra heterogênea, se não fosse pelo clima quente. E a fotografia em cada um
desses filmes traz tal discrepância.
A condição geográfica da qual faz parte o Estado de Pernambuco, seja o
litoral e a possibilidade de abertura aos estrangeiros de outros continentes, seja o
interior que se liga a quase todos os estados do Nordeste, permite um intercâmbio
comum dos habitantes nativos da terra com o outro, conferindo o caráter
cosmopolita da região. Esta relação com o estrangeiro local e global cria uma
relação de alteridade mítica, pois a comunicação acontece através de mecanismos
diretos e indiretos, podendo ser expressos por meio do cinema, que desempenha
esse papel em Baile Perfumado e Cinema, Aspirinas e Urubus, além de funcionar
como válvula de escape em Baixio das Bestas; também com a televisão leva Jonas
à família diariamente, em Árido Movie; comunica à ssica, em Deserto Feliz, a
prisão dos seus algozes e abre a possibilidade do retorno para casa; o rádio e sua
programação policial, interliga as periferias em O Rap do Pequeno Príncipe e em
Amarelo Manga.
A visão estrangeira, que muitas vezes se confunde com a do realizador,
confere um caráter documental a tais longas-metragens afastando-os assim de uma
imagem exotizada, papel desempenhado pela videomaker Soledad, em Árido Movie.
A câmera procura descrever com mais intensidade os personagens, em detrimento
do lugar, assim como buscava Eduardo Coutinho e o seu Cabra Marcado Para
Morrer (1964/1984), em uma necessidade de diálogo político.
A carreira desempenhada por esse conjunto de filmes no mercado
internacional é igualmente curiosa. Os prêmios reforçam o reconhecimento destas
opções, muitas vezes experimentais, em dialogar com o outro desconhecido,
cabendo ainda assim dentro do exótico cinema periférico. Na opinião de Paulo
Caldas, por exemplo, o cinema pernambucano que eles fazem tem uma vocação
120
internacional maior que os outros cinemas feitos no Brasil. O caso de Walter Salles,
por exemplo, que consegue uma abertura e receptividade grande fora do país, mas
que não gera tanta polêmica como em geral os filmes pernambucanos conseguem.
Talvez porque Salles apresenta narrativas tecnicamente perfeitas, do ponto de vista
dramático, mas ainda preserva uma aura romântica da visão dos excluídos que ele
retrata.
Outro exemplo é o cineasta Fernando Meirelles que, efetivamente, pode
ser considerado nos anos 2000, um cineasta de carreira internacional, com plena
distribuição dos seus filmes pelo mundo. No entanto, a partir do filme Ensaio Sobre
a Cegueira (2008), por exemplo, por mais que vejamos um pedaço do Brasil
reconstituído graficamente, como nas cenas feitas em São Paulo, não é possível
perceber este filme como parte de uma identidade nacional. A começar pela
concessão feita em admitir que a língua oficial do filme seja a inglesa.
Contudo, a porta aberta pelos prêmios muda significativamente a
percepção para o quão diversa é a identidade brasileira. Em depoimento para a
pesquisa, o ator, Peter Ketnath, ressalta que antes de conhecer e participar dos
filmes dos diretores Marcelo Gomes e Paulo Caldas, tudo o que conhecia sobre o
cinema brasileiro era uns dois filmes do baiano Glauber Rocha e, por acaso, tinha
visto o Baile Perfumado, em um cineclube em Berlim.
As narrativas pernambucanas chegaram ao ponto da comunicação
universal ao ousarem sair do local de origem para falar da sua identidade, como
explorado por Paulo Caldas ao gravar em Berlim parte de um drama regional.
Sugerimos assim que o trabalho sirva como fonte bibliográfica e seja ponto de
reflexão para continuidade de temas dentro do cinema pernambucano, a partir das
gerações que encontraram no cenário lido do conjunto de longas-metragens em
execução, novas possibilidades de se fazer cinema como parte de uma expressão
autoral.
121
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CDs:
Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Recife: Chaos/Sony Music, 1994.
Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Recife: Chaos/Sony Music, 1996.
Trilha Sonora do Baile Perfumado. Natasha, 1997.
Trilha Sonora de Amarelo Manga. YBrasil Music, 2003.
124
ANEXOS
ANEXO I – Entrevistados
As entrevistas tiveram como foco os realizadores destacados na
pesquisa. No entanto, Lírio Ferreira foi o único não entrevistado, mesmo diante de
várias tentativas por telefone e e-mail obtidos. Algumas entrevistas renderam a
contento e estão contempladas incorporadas ao texto no trabalho, outras não foram
suficientes para adotá-las como depoimentos, mas foram mesmo assim importantes
fontes de reflexão.
Alfredo Bertini, via e-mail (29 de fevereiro de 2008)
Amin Stepple (Recife, 10 de setembro de 2008)
Cláudio Assis (Campinas, 18 de março de 2008)
Fred Jordão (Recife, 29 de agosto de 2008)
Hilton Lacerda (Recife, 25 de abril de 2008)
Kátia Mesel (Recife, 11 de setembro de 2008)
Kleber Mendonça Filho (Recife, 26 de agosto de 2008)
Marcelo Gomes, por telefone (Recife-São Paulo, 9 de setembro de 2008)
Marcos Henrique Lopes (Recife, 22 de fevereiro de 2008)
Paulo Caldas (Recife, 22 de setembro de 2008)
Peter Ketnath, via e-mail (14 de setembro de 2008)
Vânia Debs, via e-mail (3 de novembro de 2008)
126
ANEXO II – Texto publicado na Revista Continente Multicultural, em abril de
2001
Árido Movie - Uma marca sem futuro
Escrito por Amin Stepple Hiluey
Reza a lenda das verdades e mentiras da passagem de Orson Welles
pelo Brasil nos getulistas anos 40. Ao ouvir falar do Rio de Janeiro, de volta aos
Estados Unidos, o diretor de Cidadão Kane batia três vezes na madeira. Não era pra
menos. No Rio, a lista de infortúnios de Welles perpassa quase todos os gêneros.
Chanchada: a maldição de um vingativo despacho de um pai-de-santo. E as
inverossímeis trapalhadas dos arapongas do DIP de Lourival Fontes. A tragédia do
afogamento do pescador cearense Jacaré antes de rodar um plano na Baía da
Guanabara. E o drama de um filme inconcluso (It’s All True) e das portas fechadas
dos grandes estúdios americanos. De bom, belas companhias e, blindado à ressaca,
farras atlânticas com Grande Otelo (“um dos homens mais inteligentes do Brasil”).
No Recife, Welles se deu bem. Vinha do Ceará, fez uma escala na capital
pernambucana e decidiu ficar pra conhecer a cidade. Depois de uma surrealista
entrevista coletiva, foi beber nos cabarés da Rio Branco, com os lábios rachados
pelo sol cabralino de dois canos do Nordeste. À moda dos bordéis, repousou uma
réplica de Zsa Zsa Gabor sobre o joelho e conversou horas sobre cinema. A longa,
divertida e reveladora noite de Welles no Recife, em junho de 1942, foi registrada
pelo jornalista Caio de Sousa Leão, presente à farra. É a mais bonita reportagem
escrita sobre cinema pela Imprensa pernambucana.
Cinqüenta e dois anos depois daquela noite boêmia e menos de dez de
sua morte, Welles retornaria ao Recife. Voltou para se embriagar, para compartilhar
a paixão pelos filmes e pelas mulheres, para ser um personagem de ficção
interpretando ele próprio, para refundar o cinema pernambucano. That's a Lero-lero
(Stepple/Lírio Ferreira) é uma atualidade reconstituída da passagem de Welles pelo
128
Recife. Rodado durante sete noites em junho de 1994, é o primeiro filme do Árido
Movie, o mais curto dos ciclos do cinema pernambucano.
Quando Welles chega, as coisas acontecem. That's a Lero-lero foi
precursor da retomada da produção cinematográfica pernambucana nos anos 90. A
realização do filme coincide ainda com a ressurgência do cinema nacional, pós-
Collor. Um momento especial, em que modos de produção, meios de financiamento,
leis de incentivo e relações com o público eram exaustivamente debatidos por todos
os setores envolvidos com o renascimento do cinema brasileiro. Uma discussão
chata, mas necessária, depois de uma cumulativa política de terra arrasada (e não
apenas herança do período Collor).
That's a Lero-lero é um filme experimental sobre a heresia do silêncio.
Para Welles, o cinema nunca foi mudo. Ele diz: “Quando não havia música na sala
de projeção, havia o barulho do projetor”. O barulho do projetor do lançamento de
That's a Lero-lero” é contemporâneo ao barulho das caixas de guerra percussivas
dos primeiros CDs do Manguebeat. Mais do que a música, o que interessou de
imediato aos diretores de That's a Lero-lero foi o natural e espantoso apelo
publicitário do Manguebeat. Finalmente, a cultura pernambucana ingressava na
pragmática economia de marcas.
A nova logo cinematográfica, Árido Movie, é criada ironicamente em
laboratório, para, por assumido arrivismo, colar, feito adesivo, à bem-sucedida logo
musical, Manguebeat. Portanto, Árido Movie é uma falsificação publicitária da marca
Manguebeat. A secura (da gíria; e da revisita profana à paisagem aruanda-
cinemanovista) do Árido em contraponto ao húmus lamacento do Mangue.
Movie/Beat, o inglês de porto nosso de cada dia. Aliás, o mesmo falado por Welles
em That's a Lero-lero. As mitologias hoje são manufaturadas em áreas de serviço
(apud Milton Santos). Welles sabia que os impostores apearam os deuses do
Olimpo. A dúvida é se se deve sentir saudade.
O inventário da linguagem cinematográfica do Árido Movie caberia em
franciscanas linhas. A fortuna crítica do experimentalismo e o culto à falsificação
(Welles). O revisionismo dos impasses do cinema de vanguarda dos anos 60/70
129
(Godard, Gláuber, Udigrudi). A transação de retratos e olhos do cinema doméstico
(dos Lumière ao Super-8). Reverência e irreverência à história do cinema
pernambucano (Ciclo do Recife, Spencer, Jomard). A devoção às boas histórias. A
carpintaria dos labirintos dos roteiros (“o cinema americano informará”, Oswald de
Andrade). O prazer semântico e dialético da charla. O choque de luminosidade em
cada fotograma. Eis a sopa primordial e diluidora do Árido Movie.
O longa Baile Perfumado (Lírio Ferreira/ Paulo Caldas, 96), o segundo e
último filme do Árido Movie, representa um grande salto para o cinema de
Pernambuco. O encontro de um Lampião e bando aburguesados, nunca vistos, com
o inquieto fotógrafo-mascate libanês Benjamin Abraão reinventou a tradição dos
filmes de cangaço. Mais do que isso: com impressionante sofisticação, o Baile
exorbitava o pacto passional com o cinema subscrito pelo cidadão Welles no
That's a Lero-lero, o curta-matriz que o precedeu.
O Baile contribuiu ainda para promover mais um encontro. O da estética
do Árido Movie com a do Mangue Beat, cujos principais integrantes (Chico Science,
Fred 04 e Siba) assinaram a excelente trilha sonora original do filme. Por ironia, a
confluência permitiu à logo Árido fazer a paga da usurpação indireta à logo Mangue.
Quem comprou o bilhete, viu e compreendeu que as novíssimas imagens do sertão
verdejante do Baile estavam ali para enaltecer e consolidar a mística do Mangue.
Quites.
No século 20, o cinema pernambucano teve três importantes ciclos. O do
Recife, a longa noite muda de nitrato (anos 20). O do doméstico solar-pardusco
Super-8 (anos 70). E o da expressiva produção dos anos 90, da qual se recorta o
Árido Movie. A originalidade do Árido se revela a na produção quase simbólica
(apenas dois filmes) e em seu precoce desaparecimento. As causas naturais de
sempre. Talvez falte ao cinema pernambucano “força de ambição”, característica da
personalidade de Welles. Talvez precise de outra mística, de outra logomarca.
Poderíamos recomeçar roubando a expressão de Oswald de Andrade: “cinema de
negócios”. Que tal?
130
Numa seqüência do That's a Lero-lero, Orson Welles fala: “Nunca diga:
que silêncio! Diga: não ouço nada!”. Sábio provérbio árabe, bem adequado para
epígrafe obrigatória de qualquer estudo sobre o cinema pernambucano. Afinal, a
qualquer momento, os marcianos podem voltar a invadir a Terra. Ou um meteoro
acabar com a espécie dos dinossauros com cérebro. Ou, ainda, os desvalidos do
planeta poderão ser convidados a brilhar como estrelas de cinema num Texas Hotel.
De qualquer forma, a heresia do silêncio na sala de projeção será ensurdecedora.
131
ANEXO III – Fichas Técnicas
Filme: Baile perfumado
Lançamento: 1997
Direção: Lírio Ferreira e Paulo Caldas
Roteiro: Hilton Lacerda, Lírio Ferreira e Paulo Caldas
Produção: Aramis Trindade, Germano Coelho Filho, Lírio Ferreira, Marcelo Pinheiro
e Paulo Caldas
Fotografia: Paulo Jacinto dos Reis
Direção de Arte: Adão Pinheiro
Figurino: Mônica Lapa
Trilha Sonora: Chico Science, Fred 04, Lúcio Maia, Paulo Rafael e rgio Siba
Veloso
Montagem: Vânia Debs
132
Participação na produção, ainda de: Adelina Pontual, Cecília Araújo, Cláudio Assis e
Marcelo Gomes
Elenco: Aramis Trindade (Tenente Lindalvo Rosas), Chico Diaz (Coronel Zé de Zito),
Duda Mamberti (Benjamin Abraão), Germano Haiut (Ademar Albuquerque), Giovana
Gold (Jacobina), Jofre Soares (Padre Cícero) e Luiz Carlos Vasconcelos (Lampião).
133
Filme: O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas
Lançamento: 2000
Direção: Marcelo Luna e Paulo Caldas
Roteiro: Fred Jordão, Marcelo Luna e Paulo Caldas
Produção: Clélia Bessa
Fotografia: André Horta
Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto
Trilha Sonora: DJ Dolores e Alexandre Garnizé
Montagem: Natanarey Nunes
Depoimentos: Helinho “Pequeno Príncipe”, Garnizé, banda Faces do Subúrbio e
Racionais MC.
134
Filme: Amarelo manga
Lançamento: 2003
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda
Produção: Cláudio Assis e Paulo Sacramento
Fotografia: Walter Carvalho
Direção de Arte: Renata Pinheiro
Figurino: Renata Pinheiro
Trilha Sonora: Lúcio Maia e Jorge Du Peixe
Montagem: Paulo Sacramento
Elenco: Chico Diaz (Wellington Kanibal), Conceição Camarotti (Dona Aurora),
Cosme Prezado Soares (Seu Bianor), Dira Paes (Kika), Everaldo Pontes (Rabecão),
Jonas Melo (padre), Jonas Bloch (Isaac), Leona Cavalli (Lígia), Magdale Alves
(Dayse), Matheus Nachtergaele (Dunga), Taveira Junior (taxista)
135
Filme: Cinema, Aspirinas e urubus
Lançamento: 2005
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Paulo Caldas
Produção: João Vieira Jr., Maria Ionescu e Sara Oliveira
Fotografia: Mauro Pinheiro
Direção de Arte: Marcos Pedroso
Figurino: Beto Normal
Trilha Sonora: Tomás Alves de Souza
Montagem: Karen Harley
Elenco: João Miguel (Ranulpho) e Peter Ketnath (Johann)/ Daniela Câmara (Neide),
Fabiana Pirro (Adelina), Hermila Guedes (Jovelina), Irandhir Santos (Manoel),
Madalena Accioly (Mulher da cabra) Paula Francinete (Lindalva), Oswaldo Mil
136
(Claudionor Assis), Sandro Guerra (Homem da cabra), Verônica Cavalcanti (Maria
da Paz).
137
Filme: Árido movie
Lançamento: 2006
Direção: Lírio Ferreira
Roteiro: Eduardo Nunes, Hilton Lacerda, Lírio Ferreira e Sérgio Oliveira
Produção: Lírio Ferreira e Murilo Salles
Fotografia: Murilo Salles
Produção Executiva: Flávio Frederico
Direção de Arte: Renata Pinheiro
Direção de Produção: Francisco Accioly
Figurino: Juliana Prysthon
Trilha Sonora: Berna Ceppas, Kassin, Otto e Pupilo
Montagem: Vânia Debs
Som Direto: Valéria Ferro
Elenco: Aramis Trindade (Márcio Greyck), Giulia Gam (Soledad), Guilherme Weber
(Jonas), Gustavo Falcão (Falcão), José Celso Martinez Corrêa (Meu Velho), José
138
Dumont (Zé Elétrico), Luiz Carlos Vasconcelos (Jurandir), Magdale Alves (Dedé),
Maria de Jesus Bacarelli (Dona Carmo), Mariana Lima (Vera), Matheus
Nachtergaele (Salustiano), Paulo César Pereio (Lázaro), Selton Mello (Bob), Renata
Sorrah (Stela), Suyane Moreira (Wedja).
139
Filme: Baixio das bestas
Lançamento: 2007
Direção e Argumento: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda
Produção: Cláudio Assis e Júlia Moraes
Fotografia: Walter Carvalho
Produção Executiva: João Vieira Jr.
Direção de Arte: Renata Pinheiro
Direção de Produção: Dedete Parente Costa
Figurino: Joana Gatis
Trilha Sonora: Pupilo
Montagem: Karen Harley
Som Direto: Louis Robin
Continuista: Cecília Araújo
Produção de Elenco: Rutílio Oliveira
140
Elenco: Caio Blat (Cícero), China (Cilinho), Conceição Camarotti (Dona Margarida),
Dira Paes (Dora), Fernando Teixeira (Seu Heitor), Hermila Guedes (Dora), Irandhir
Santos (Maninho), Matheus Nacthergaele (Everaldo), Marcélia Cartaxo (Ceiça),
Mariah Teixeira (Auxiliadora), Samuel Vieira (Esdras).
141
Filme: Deserto Feliz
Lançamento: 2008
Direção: Paulo Caldas
Roteiro: Manoela Dias, Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Xico Sá
Produção: Germano Coelho Filho
Fotografia: Paulo Jacinto do Reis
Direção de Arte: Moacyr Gramacho
Figurino: Bárbara Cunha
Trilha Sonora: Erasto Vasconcelos e Fábio Trummer
Montagem: Vânia Debs
Elenco: Aramis Trindade (Rauariu), David Rosenbauer (Christopher), Elane
Nascimento (Daiane), Hermila Guedes (Pâmela), João Miguel (Mão de Véia),
Magdale Alves (Maria), Marília Mendes (Jaqueline), Nash Laila (Jéssica), Peter
Ketnath (Mark), Servílio Holanda (Biu), Zezé Motta (Dona Vaga).
142
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