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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA-UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
Tese de Doutorado em Direito Constitucional
FUNDAMENTOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO
Liberdade, igualdade e democracia como premissas necessárias à
aproximação de uma justiça possível
Hugo de Brito Machado Segundo
Matrícula n.º 0715157/8
Fortaleza/CE
Julho - 2009
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1
HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO
FUNDAMENTOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO
Liberdade, igualdade e democracia como premissas necessárias à
aproximação de uma justiça possível
Tese apresentada ao Curso de
Doutorado em Direito
Constitucional da Universidade de
Fortaleza, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Doutor
em Direito Constitucional, sob a
orientação do Professor Doutor
M
ARTÔNIO MONT’ALVERNE
BARRETO LIMA
Fortaleza/CE
Julho - 2009
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2
___________________________________________________________________________
M149f Machado Segundo, Hugo de Brito.
Fundamentos do ordenamento jurídico : liberdade, igualdade e democracia
como premissas necessárias à aproximação de uma justiça possível / Hugo de
Brito Machado Segundo. - 2009.
266 f.
Tese (doutorado) – Universidade de Fortaleza, 2009.
“Orientação: Prof. Dr. Martônio Mont'Alverne Barreto Lima.”
1. Ordenamento jurídico. 2. Liberdade. 3. Democracia. 4. Igualdade.
I. Título.
CDU 340.11
___________________________________________________________________________
3
FOLHA DE APROVAÇÃO
HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO
FUNDAMENTOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO
Liberdade, igualdade e democracia como premissas necessárias à
aproximação de uma justiça possível
Data de aprovação: _____________/__________________/_____________
Banca Examinadora:
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Martônio Mont´Alverne Barreto Lima (Orientador) – Universidade de Fortaleza
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Arnaldo Vasconcelos – Universidade de Fortaleza
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Gustavo Just da Costa e Silva – Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Gilberto Bercovici – Universidade de São Paulo - USP
_______________________________________________________________________
Professor Doutor José Maria Arruda de Andrade – Universidade de São Paulo - USP
4
La libertad, Sancho, es uno de los más preciosos
dones que a los hombres dieron los cielos, con ella no
pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni
el mar encubre
.
(Cervantes,
D. Quijote, parte II, cap. LXVIII)
5
RESUMO
Neste trabalho se examinam as bases sobre as quais deve ser constituído um ordenamento
jurídico na atualidade. Não o que pode, de fato, eventualmente, conferir-lhe alguma eficácia,
mas o que deve justificá-lo enquanto tal, a fim de que desempenhe adequadamente sua
finalidade. Muitos dos que hoje se ocupam do Direito Constitucional e da Teoria do Direito
afirmam superada a divergência entre jusnaturalistas e juspositivistas, mas não costumam
enfrentar a questão dos fundamentos do ordenamento jurídico, ou o fazem à maneira ora de
uma, ora de outra das correntes dicotômicas que dizem ter sido superadas. Diante disso,
analisam-se, nesta tese, a relação existente entre democracia, liberdade e igualdade, a
interdependência desses institutos e a sua importância para aproximar o direito positivo
daquilo que as pessoas cuja conduta será por ele disciplinada esperam que ele seja.
Considerando-se que liberdade e igualdade são indispensáveis à democracia, destaca-se que a
sua preservação não é um limite externo e talvez indevido à soberania popular, mas condição
necessária ao próprio exercício desta. Demonstra-se que a necessidade de um regime
democrático, garantidor da liberdade e da igualdade, decorre da natureza institucional do
Direito, e da inafastável aptidão humana de distinguir o real e o possível, dados que fazem
com que o ordenamento jurídico não se possa impor eficazmente pela força, tendo de recorrer
à aceitação e ao consenso. Por outro lado, não sendo a verdade passível de descoberta
rigorosamente objetiva e definitiva, mas sim intersubjetiva e provisória, a ser alcançada em
um ambiente aberto e tolerante, explica-se que o conceito de justiça deve passar pela mesma
atualização, sendo seu conteúdo determinado por semelhantes critérios, afastando-se com isso
a ideia de que seria impossível a sua apreensão pela ciência. O ordenamento jurídico tem por
fim realizar a segurança e a justiça, mas esta não deve ser procurada como algo que existe, em
si e por si, na natureza, na razão divina ou em uma razão humana universal, mas tampouco
pode, por isso, ser equiparada a tudo o que venha a ser imposto pela autoridade. De forma
semelhante à verdade, de ser construída intersubjetiva, provisória e democraticamente, à
luz dos valores de cada sociedade, tarefa para a qual a democracia e a proteção à liberdade e à
igualdade são pressupostos indispensáveis. Com tais premissas, podem-se então traçar
padrões para julgar a correção dos vários ordenamentos existentes no mundo, viabilizando-
lhes o aperfeiçoamento sem lhes suprimir a necessidade, que têm, de espelharem os valores
peculiares à sociedade a que correspondem. Lançam-se luzes, inclusive, sobre a questão do
multiculturalismo, pois a liberdade e a democracia permitem aos integrantes de cada
comunidade culturalmente distinta avaliar a adequação e a correção de suas práticas,
decidindo quais aspectos preservar e quais abolir. E, finalmente, sabendo-se no que o
ordenamento jurídico se
deve fundamentar, torna-se possível indicar meios ou caminhos para
que o ordenamento brasileiro, no plano da concreção, torne-se menos distante desse ideal.
Palavras-chave: Liberdade. Igualdade. Democracia. Ordenamento jurídico.
6
ABSTRACT
This study examines the bases upon which there must be constituted a juridical system today.
Not what can, in fact, at times, give it some efficiency, but what must justify it as such, in
order to perform its intent adequately. Many who, today, dwell in Constitutional Rights and in
the Theory of Rights state that the disagreement between natural law thinkers and positivists
have been settled, but they don´t usually face the matter of juridical system fundaments, or
they do it based sometimes on one or the other dicotomical currents alleged to have been
surmounted. So being, this thesis analyses the existing relationship between democracy,
freedom and equality, the interdependency among those institutes and their importance in
bringing positive law close to what people, whose behavior will be disciplined by it, hope it to
be. Considering that freedom and equality are indispensable to democracy, it points out that
its preservation is not an external limit or perhaps undue to the popular sovereignty, but the
necessary condition to its exertion. It is demonstrated that a necessity of a democratic regime,
guarantor of freedom and equality, results from the institutional nature of Law, and the
undying human aptitude to distinguish the real from the possible, data which makes the
juridical system not able to impose itself efficiently by force, but rather accepted by
consensus. On the other hand, as truth is not something objective, to be definitely discovered,
but something intersubjective to be built up temporarily, in an open and tolerant environment,
it explains that the concept of justice must go through the same updating process, its content
be determined by similar criteria, driving off then, the idea that it would be impossible its
apprehension by science. The juridical system has as a goal to realize security and justice, but
that must not be sought as something that exists, in itself and by itself, in nature, on the divine
or universal human mind, hence, it cannot be evened up by all that might be imposed by the
authorities. Just as truth, it shall be constituted intersubjectively and democratically, under the
light of each society values, task to which democracy and the protection of freedom and of
equality are indispensable prerequisite. From such premises, one can trace patterns to judge
the correction of several juridical orders existing in the world, making them feasible to be
perfected without suppressing the existing, necessity of mirroring the peculiar social values to
the society which they belong to. Light is cast, specially, upon the matter of multiculturalism,
for freedom and democracy allow the member of each culturally distinct community assess its
adequacy and its practice correction, deciding which aspects to preserve and which to abolish.
And, finally, knowing upon what our juridical system must have its fundament it becomes
possible to indicate ways and paths for the brazilian juridical system, at the realm of
concretion, to be less distant from such ideal.
Key words: Freedom. Equality. Democracy. Fundament. Juridical System.
7
ZUSAMMENFASSUNG
In dieser Arbeit werden die Unterseiten überprüft, auf denen eine Rechtswissenschaft in der
Gegenwart festgesetzt werden muß. Was es nicht kann, etwas Wirksamkeit zu ihr tatsächlich
schließlich konferieren, aber, was sie rechtfertigen muß während so, damit es seinen Zweck
ausreichend spielt. Viele der Leute, die heute vom constitucional Gesetz besetzen und die
Theorie des Rechtes bestätigen, übertroffen zu werden der Abweichung zwischen
Jusnatürlists und Positivists, aber sie stellen nicht die Frage der Bettwäsche des zugelassenen
Systems gegenüber, oder sie bilden es einem jedoch folgend, gleichwohl von einer anderen
dieser entgegenwirkenden Ketten, die sie sagen, übertroffen worden zu sein. In
übereinstimmung mit diesem analysieren wir in dieser These die vorhandene Relation
zwischen Demokratie, Freiheit und Gleichheit, die gegenseitige Abhängigkeit dieser Institute
und sein Wert, zum sich zu nähern des positiven Gesetzes von, was die Leute, deren
Verhalten geht, für diszipliniert zu sein ihm, sie warten, daß es ist. Betrachtend, daß Freiheit
und Gleichheit zur Demokratie unentbehrlich sind, heben wir, daß seine Bewahrung nicht
eine externe Begrenzung ist, und möglicherweise hervor, verdient nicht für die populäre
Hoheit. Auf dem Gegenteil von diesem, ist die Bewahrung von diesen eine Bedingung, die
zur korrekten übung notwendig ist, sie zu halten. Wir wissen, daß die Notwendigkeit eines
demokratischen Systems, das der Freiheit und der Gleichheit für alle Verläufe der
institucional Natur des Rechtes und des unleugbare Kapazität menschlichen Wesens, das reale
und mögliche zu unterscheiden garantiert, Daten zeigen, daß das zugelassene System nicht
Steuer der leistungsfähigen Form durch die Kraft ist. Sondern, gefallen wir der Annahme und
der übereinstimmung der Bevölkerung. Einerseits, sowie die Wahrheit ist er nicht etwas, der
entdeckt zu werden objektiv ist, aber subjektives etwas endgültig, daß es zu den wenigen in
einem geöffneten und toleranten Klima konstruiert werden muß, betrachten wir, daß das
Gerechtigkeitkonzept dem selben folgen muß, das bedeutet wird und seinen Inhalt für
ähnliche Kriterien feststellen lassen und die Idee dieser seiner Befürchtung für Wissenschaft
zu beseitigen unmöglich ist. Das zugelassene System hat den Zweck, durch die Sicherheit und
die Gerechtigkeit zu tragen, aber diese Gerechtigkeit muß nicht als etwas geschaut werden,
das, in sich und für sich, in der Natur, den göttlichen Grund oder das menschliche
allgemeinhinwesen des Grundes besteht. Gerechtigkeit kann auch nicht, aus diesen Gründen,
vergleichbares Sein zu alles, was sie kommt, Steuer für die Berechtigung zu sein. Als die
Wahrheit wird Gerechtigkeit in der subjektiven und demokratisch Weise unter dem Licht der
Werte jeder Gesellschaft konstruiert, für die Aufgabe die Demokratie und der Schutz zur
Freiheit und zur Gleichheit grundlegende Elemente sind. Mit solchen Voraussetzungen
können wir Standards verfolgen, um die Korrektur der etwas Aufträge in der Welt zu
beurteilen und gebildet werden möglich zu ihnen das Perfectioning, ohne sie, zum der
Notwendigkeit zu liefern, daß diese Aufträge die eigenartigen Werte an die Gesellschaft
mitteilen müssen die, daß sie gehören. Licht wird auch auf die Frage des Multikulturalisms
ausgestoßen, folglich dürfen die Freiheit und die Demokratie integrant jeder kulturell
eindeutigen Gemeinschaft die Angemessenheit und die praktische Korrektur von seinem
auswerten und entscheiden, welche Aspekte konserviert werden müssen und welches
abgeschafft werden muß. Schließlich kennend auf denen die Ziele das zugelassene System
basieren muß, wird man möglich, um Weisen anzuzeigen, damit der brasilianische Auftrag,
im Plan der Vollendung, von diesem idealen weniger entfernt wird.
Schlüsselwörter: Freiheit. Gleichheit. Demokratie. Gerechtigkeit. Zugelassenes System.
8
RESUMEN
En este trabajo se examinan las bases bajo las cuales se debe constituir un ordenamiento
jurídico actualmente. No necesariamente lo que puede, de hecho y eventualmente, facultarle
alguna eficacia, sino lo que debe justificarlo como tal, para que desempeñe su finalidad
adecuadamente. Muchos de los que hoy día se dedican al Derecho Constitucional y a la
Teoría del Derecho, consideran como superada la divergencia entre naturalistas y positivistas,
pero no suelen enfrentar la cuestión de los fundamentos del ordenamiento jurídico, o
entonces lo hacen ora de una manera, ora de otra de las corrientes dicotómicas que consideran
ya superadas. Siendo así, se analiza, en esta tesis, la relación existente entre democracia,
libertad e igualdad, la interdependencia de esos institutos y su importancia para lograr
aproximar el derecho positivo a aquello que las personas cuya conducta será disciplinada por
él esperan que sea. Si se considera que libertad e igualdad son indispensables en la
democracia, se destaca que su preservación no es un límite externo y tal vez indebido a la
soberanía popular, sino una condición necesaria para la propia ejecución de la misma. Se
demuestra que la necesidad de un régimen democrático, que garante la libertad y la igualdad,
deriva de la naturaleza institucional del Derecho, y de la innegable aptitud humana de
distinguir lo real y lo posible, datos que hacen con que el ordenamiento jurídico no se pueda
imponer eficazmente a la fuerza, recurriendo entonces a la aceptación y al consenso. Por
otro lado, al no ser la verdad algo objetivo, a ser descubierto definitivamente, sino algo
intersubjetivo a ser construido provisoriamente, en un ambiente abierto y tolerante, queda
claro que el concepto de justicia debe pasar por semejante actualización, siendo su contenido
determinado por criterios análogos, lo que alejaría la idea de que sería imposible su aprensión
por la ciencia. El ordenamiento jurídico tiene por propósito efectuar la seguridad y la
justicia, pero ésta no debe ser buscada como algo que existe, en si misma y por si misma, en
la naturaleza, en la razón divina o en la razón humana universal, como tampoco puede, por
eso, ser equiparada a todo lo venga a ser impuesto por la autoridad. Así como la verdad,
debe ser construida intersubjetiva, provisoria y democráticamente, bajo los valores de cada
sociedad, tarea para la cual la democracia y la protección de la libertad y de la igualdad son
supuestos indispensables. Con tales premisas, se pueden delinear modelos para juzgar la
corrección de varios ordenamientos existentes en el mundo, viabilizándoles el
perfeccionamiento sin suprimirles la necesidad, que tienen, de reflejar los valores peculiares
de la sociedad a la cual corresponden. Se arrojan luces, incluso, sobre la cuestión de la
multiplicidad cultural, ya que la libertad y la democracia permite a los integrantes de cada
comunidad culturalmente distinta evaluar la adecuación y la rectificación de sus prácticas,
decidiendo cuáles aspectos preservar y cuáles abolir. Y, por fin, estando a la par de aquello en
lo que el ordenamiento jurídico debe fundamentarse, se torna posible indicar medios o
caminos para que el ordenamiento brasileño, en el plan de concretización, se vuelva menos
distante de ese ideal.
Palabras-clave: Libertad. Igualdad. Democracia. Fundamentación. Ordenamiento jurídico.
9
RIASSUNTO
In questo lavoro vengono esaminate le basi su cui deve essere costituito l’ordinamento
giuridico nell’atualità. Non effetivamente quello che possa rendergli quache efficacia sennò
quello che deva giustificarlo altretanto affinché possa raggiungere con adeguatezza il suo
scopo. Molti di quelli che si occupano del Diritto Costituzionale e della Teoria del Diritto
affermano che sia stata superata le divergenze tra giusnaturisti e positivisti ma di solito non
offrontano la quistione dei fondamenti dell’ ordinamento giuridico oppure si scambiano a
maniera di una o dell’altra delle correnti dicotomiche che dicono essere superata. Perciò, si
analisa in questa tesi, il rapporto tra democrazia, lebertà e ugualtà, l’interdipendenza di questi
istituti e a seconda della sua importanza, per avvicinare il diritto positivo da ciò che le persone
la cui condotta verrà presso di esso disciplinata, sperano che lo sia. In merito alla libertà e
ugualtà che sono indispensabili alla democrazia, si distacca che la sua preservazione non sia
un limite esterno e forse indovuto alla sovranità popolare ma alla condizione necessaria al
proprio esercizio di essa. Si dimostra che la necessita di un regime democratico, con garanzia
di libertà e ugualtà, dicorre dalla natura istituzionale del Diritto e dalla inallontanabile
capacità umana del distinguere il reale ed il possibile, dati che fanno che l’ordinamento
giuridico no si possa imporre con efficacia dalla forza, dovendo rincorersi all’accettazione ed
al consenso. Dall’altra parte pur non essendo la verità qualcosa oggettiva da essere scoperto
definitivamente, ma qualcosa intersoggettiva da essere costruito provisoriamente in un
ambiente aperto e tolerante, si dice che il concetto di giustizia deve passare per lo stesso
aggiornamento, purché sai il suo contenuto determinato da simili criteri, allontanando l’idea
di esserne impossibile l’apprensione dalla scienza. L’ordinamento giuridico ha lo scopo di
realizzare la sicurezza e la giustizia, ma questa non deve essere cercata come qualcosa che
esista in e per sé, nella natura, nel ragionamento divino o ragionamento umano universale,
ma non può perciò essere tanto meno paragonata a tutto ciò che venga imposto dalla autorità.
Cosi come la verità, deve essere costruita intersoggettiva, provisoria e democraticamente, alla
luce dei valori di ogni società, per il cui dovere, la democrazia e la protezione alla libertà e
all’ugualtà siano pressuposti indispensabili. Su queste premesse, si può definire modelli per
giudicare la correzione dei vari ordinamenti esistenti nel mondo, per agevolargli il
miglioramento senza togliergli la necessità che hanno di far riflettere i valori particolari alla
società a che corrispondono. Si punta anche sulla questione del multiculturalismo poiché la
libertà e la democrazia permettono agli integranti di ogni comunità culturalmente diversa di
valutare l’adeguatezza e la correzione delle loro pratiche, decidendo cosi quali aspetti
vengono preservati e quali aboliti. E finalmente, pur sapendo come l’ordimamento giuridico si
deve fondamentare, si rende possibile indicare i mezzi o strade per i quali l’ordinamento
brasiliano riguardante alla concretezza diventi meno distante di questo ideale
Parole Chiavi: Libertà. Ugualtà. Democrazia. Fondamentazione. Ordinamento giuridico.
10
RÉSUMÉ
Dans ce travail s’examinent les bases sur lesquelles il doit être construit une hiérarchie des
normes juridique dans l’actualité. Cela ne peut pas, en fait, à l’occasion, lui donner de
l’efficacité, par contre il doit être justifié comme tel, afin de qu’il developpe correctemente
son but. Beaucoup de ceux qui s’occupent du Droit Constitutionnel et de la Théorie du Droit
affirment surmontée la divergence entre les jusnaturalistes et les positivites, mais ils n’ont pas
l’habitude de faire face à la question des fondaments de l’hiérarchie des normes juridique, ou
le font or d’une façon, or d’autre façon des courants dichotomiques qu’on dit avoir été
surmontées. Devant cela, dans cette thèse, on analise la relation qu’il existe entre la
democratie, la liberté et l’égalité, l’interdépendance de ces concepts, et son importance pour
approcher le droit positif de ce que les personnes, dont le comportement sera par lui
discipliné, espèrent qu’il le soit. En considerant que la libeerté et l’égalité sont indispensables
à la démocratie, on renforce que sa preservation n’est pas une limite extérieure et peut-être
indu à la souveraineté populaire, mais condition nécessaire au propre exercice de celle-ci.On
démontre que la nécessité d’un régime democratique, garant de la liberté et de l’égalité,
provient de la nature institutionnelle du Droit, et de l’innée aptitude humaine de distinguer le
réel et le possible, donnés qui font que l’hiérarchie des normes juridique ne peut pas être
imposé efficacement par la force, comme ça, il est obligatoire à traves l’aceptation et le
consensus. D’autre coté, comme la vérité n’est pas quelque chose d’objectif à être découverte
définitivement, mais quelque chose d’intersubjectif à être construit provisoirement, dans une
ambience ouverte et tolérente, on explique que le concept de justice doit passer par la même
mise au point, comme ça son contenu doit être determiné par des critères semblables, en
fuyant de cette façon l’idée de qu’ il serait impossible sa prise par la science. L’ hiérarchie des
normes juridique a pour but réaliser la securité et la justice, mas celle-ci ne doit pas être
recherchée comme quelque chose d’existant en soi-même et par soi-même, dans la nature,
dans la raison divine ou dans la raison humaine universelle, mais ne peut pas non plus, à
cause de cela, comparée à tout ce que vienne à être imposé par l’autorité. Telle comme la
vérité, elle doit être construite intersubjective, provisoire et democratiquement, d’après les
valeurs de chaque société, tache pour laquelle la démocratie et la protection à la liberté et à
l’égalité sont des préssuposés indispensables. Avec telles prémisses, on peut tracer des
modèles pour juger la correction des plusieurs hiérarchie des normes existentes dans le
monde, en leur viabilisant le perfectionnement sans en enlever la nécessité, qui doivent,
réfléchir les valeurs particuliers à la société à laquelle elles correspondent. On jette les
lumières, y compris, sur la quastion du multiculturalisme, car la liberté et la démocratie
permettent aux intégrants de chaque communauté culturallement distinguée d’évaluer
l’adéquation et la correction de ses pratiques, en decidant quels aspects préserver et quels
aspects abolir. Et, finalemente, en sachant où l’hiérarchie des normes juridique doit être
fondé, il devient possible de montrer des moyens ou des chemins pour que l’hiérarchie des
normes juridique brésilienne, en ce qui concerne la concrétion, devienne moins loins de
l’idéal.
Mots clés: Liberté. Égalité. Démacratie. Fondement. normes juridique.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 13
1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA ..................................................................................... 18
1.1 Direito e Estado .......................................................................................................... 19
2 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO EM TERMOS METAFÍSICOS ..... 31
2.1 As correntes jusnaturalistas ao longo da história e seu elemento comum ..................... 31
2.2 Justiça e jusnaturalismo............................................................................................... 37
2.3 Principais críticas formuladas ao jusnaturalismo ......................................................... 37
2.4 Por que a questão relativa ao direito natural insiste em reaparecer? ............................. 43
3 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO PARA O POSITIVISMO
JURÍDICO........................................................................................................................... 48
3.1 O que se entende por positivismo jurídico? ................................................................. 48
3.2 Positivismo jurídico e justiça....................................................................................... 50
3.3 Positivismo e finalidade do Direito ............................................................................. 51
3.4 A questão do fundamento do direito para as várias correntes positivistas..................... 53
3.5 Positivismo e concepção de ciência............................................................................. 54
3.6 Positivismo e natureza humana ................................................................................... 59
3.7 Tem o positivismo todos os defeitos que lhe atribuem? ............................................... 60
4 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO NO PÓS-POSITIVISMO............... 68
4.1 Pós-positivismo e pós-modernismo............................................................................. 72
4.2 Fundamento do ordenamento jurídico para autores “pós-positivistas” ......................... 79
4.3 Como a dicotomia entre jusnaturalistas e positivistas é resolvida?............................... 80
4.4 Pós-positivismo e ordenamentos jurídicos injustos...................................................... 84
4.5 Pós-positivismo e multiculturalismo............................................................................ 88
12
5 UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL .......................................................................................... 94
5.1 É possível afastar a metafísica?................................................................................... 95
5.2 Natureza humana e o Direito..................................................................................... 105
5.3 Teoria do Direito e concepção de ciência .................................................................. 113
5.4 Pressupostos mínimos para a construção de um ordenamento jurídico justo .............. 126
5.4.1 Liberdade............................................................................................................ 131
5.4.2 Igualdade............................................................................................................ 138
5.4.3 Democracia......................................................................................................... 142
5.4.3.1 Democracia na Grécia antiga ........................................................................ 146
5.4.3.2 Democracia a partir da Idade Moderna.......................................................... 149
5.4.4 Interdependência necessária entre liberdade, igualdade e democracia.................. 159
5.4.5 O problema do fundamento último e o trilema de Fries ....................................... 177
5.4.6 Valores ocidentais como imposição às demais culturas?...................................... 182
6 COMO APROXIMAR O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO DE TAIS
PRESSUPOSTOS? ............................................................................................................ 197
6.1 Liberdade, igualdade, democracia, Estado e tributo................................................... 200
6.2 Restrições aos gastos com propaganda governamental .............................................. 202
6.3 Terceirização, gastos públicos e eleições................................................................... 206
6.4 Imunidade às instituições de educação condicionada à oferta de vagas ao poder
público............................................................................................................................ 210
6.5 Redução da regressividade na tributação ................................................................... 215
6.6 Contribuições e direitos sociais e econômicos ........................................................... 221
6.7 Incremento da participação política........................................................................... 229
CONCLUSÃO................................................................................................................... 233
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 237
ÍNDICE REMISSIVO........................................................................................................ 255
ÍNDICE ONOMÁSTICO................................................................................................... 262
13
INTRODUÇÃO
As sociedades humanas, separadas no tempo e no espaço, adotam padrões valorativos,
morais e jurídicos diferentes. Distinções às vezes não muito relevantes, como pequenas
mudanças na forma de cumprimentar ou de expressar gratidão, e outras vezes marcantes,
capazes de escandalizar os que com elas se deparam. Em algumas comunidades indígenas, por
exemplo, crianças são eventualmente abandonadas na mata para morrer, asfixiadas,
envenenadas ou enterradas vivas por serem portadoras de deficiências físicas ou problemas
congênitos. Para alguém nascido e criado no âmbito da cultura ocidental, trata-se de
comportamento extremamente cruel e repugnante. Não obstante, entre essas sociedades
classificadas genericamente como ocidentais, as mesmas que consideram absurdo o sacrifício
da criança recém-nascida, há pessoas que jogam comida no lixo, todos os dias, em residências
e restaurantes, enquanto bem próximo outras passam fome. Esse fato que para muitos dos
que o praticam é normal se avaliado por alguém daquela tribo indígena seria considerado
um contrassenso difícil de ser entendido e aceito, pior que o sacrifício da criança que, muitas
vezes, no juízo da tribo, não seria mesmo apta à sobrevivência.
Tais diferenças culturais tornam explícito um dilema enfrentado pela teoria dos
direitos humanos, tido por Boaventura de Sousa Santos como um dos “debates mais acesos”
1
em relação ao tema: o da universalização destes. Com efeito, poder-se-ia indagar: exigir que
certos direitos sejam consagrados por todos os povos não consiste, na verdade, em mera
imposição de determinado padrão cultural – dito ocidental, de origem europeia – sobre outros,
preconceituosamente tidos como inferiores só porque diferentes dele? Por outro lado, pode-se
objetar: em nome do respeito à diversidade cultural, deve-se aceitar e justificar toda sorte de
condutas verificadas no âmbito de uma sociedade?
A solução às questões anteriores tem sido apontada como consistindo no seguinte
reconhecimento: o fato de uma cultura não ser melhor que outra não significa que todas,
1
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO,
Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.).
Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3-46, p. 13.
14
inclusive a genérica e impropriamente chamada de “ocidental”, sejam perfeitas e dispensem
qualquer correção. Isso é verdade, mas apenas transfere ou afasta o problema, sem resolvê-lo:
correção a partir de qual critério? Como saber o que está errado em cada cultura, e o que seria
o correto? Para julgar ordens jurídicas diversas, de povos de culturas díspares, não seria
necessária a existência de um metacritério, tal como um padrão universal de justiça, à luz do
qual todos pudessem ser cotejados? Caso afirmativo, quem o determinaria?
Esses questionamentos de relevância e atualidade indiscutíveis, majoradas na
medida em que aumenta a interação entre os povos propiciada pelo incremento no processo de
globalização
, parecem remeter à clássica discussão entre partidários do jusnaturalismo e do
positivismo jurídico. Apesar disso, nas últimas décadas, não tem sido rara, entre os que
escrevem sobre direito constitucional, especialmente sobre direitos fundamentais, a afirmação
de que as várias correntes de pensamento jurídico classificadas como subdivisões ora do
positivismo jurídico, ora do jusnaturalismo, estariam superadas. Desses dois grupos
antitéticos, em que até então se dividiria o pensamento jurídico mundial, teria surgido, numa
síntese dialética, o pós-positivismo, termo que não designa com muita clareza do que se está a
tratar. Não indica no que consistiria essa nova corrente ou linha de pensamento jusfilosófico,
eis que não lhe aponta características. A rigor, explicita apenas, com a preposição “pós”, o
cuidar-se de algo surgido depois de um período de predomínio do positivismo. Não diz o que
a corrente é, mas apenas o que ela supostamente já não é.
Quanto à razão de ser da superação dialética do jusnaturalismo e do positivismo
jurídico, os que cuidam dessa nova forma de pensamento jusfilosófico costumam apontar,
para justificá-la, a positivação de determinados princípios e a teorização em torno de sua
aplicação, aspectos que teriam tornado desnecessária e ultrapassada a discussão entre os
partidários do direito natural e os do positivismo jurídico. Pouco se esclarece, porém, a
respeito de
como jusnaturalismo e juspositivismo teriam sido superados pela positivação de
normas com determinados conteúdo e estrutura. Talvez se ignore que a discussão entre tais
correntes não se desenvolvia tomando como parâmetro um determinado ordenamento
jurídico, de conteúdo considerado satisfatório; vinha sendo travada precisamente em face de
ordenamentos reais ou imaginários injustos e iníquos. Afinal, a grande pergunta, central
nos debates entre os partidários das várias subdivisões de uma e de outra corrente, era: um
conjunto de normas flagrantemente injusto pode ser considerado Direito? Caso afirmativo,
como fazer esse julgamento, e quais as suas consequências? Qual o critério de justiça se é
15
que existe um – a ser adotado?
Tais perguntas não são respondidas pelo fato de, atualmente, existirem ordenamentos
considerados justos por quem os examina, nos quais se positivam normas que determinam a
promoção e a proteção da dignidade humana.
2
Tampouco os estudos ditos pós-positivistas
costumam oferecer critérios para o enfrentamento delas. No mais das vezes, cuidam do que
pode ser considerado um importante aprimoramento metodológico em torno de como
interpretar e aplicar o direito positivo, motivo pelo qual talvez pudessem ser intitulados de
neo- e não de pós-positivistas.
Não obstante, as ideias subjacentes ao pós-positivismo têm sido afirmadas e repetidas,
com ressonância cada vez maior, sem que se reflita sobre a sua procedência ou sua
consistência. E quanto mais são repetidas, menos se submetem à crítica, assumindo a
veracidade inerente aos conceitos que se tornam óbvios pela intensa repetição.
3
Por essa
razão, torna-se necessária uma análise um pouco mais detida em torno dos pressupostos dessa
corrente de pensamento jusfilosófico e, especialmente, do que deve caracterizar e
fundamentar um ordenamento jurídico.
Neste trabalho, buscam-se responder as perguntas feitas três parágrafos acima,
relativas ao fundamento do ordenamento jurídico, de forma a verificar se o pós-positivismo
realmente implicou a superação dialética entre jusnaturalistas e juspositivistas. Reformulando-
as: se determinado ordenamento consagrar normas injustas, como será seu tratamento por
juristas, intérpretes e aplicadores pós-positivistas? Se, em tempo ou lugar diverso do nosso,
existir ordenamento flagrantemente injusto, poderá ele, ainda assim, ser chamado de Direito?
Qual o critério de justiça para fazer esse julgamento?
Com isso, em torno dessa questão central, ligada ao fundamento do ordenamento
2
A questão está, na verdade, na fundamentação dos direitos humanos, problema que nas palavras de Luhmann
“é uma herança que a decadência do antigo Direito Natural europeu nos deixou.” (LUHMANN, Niklas. O
paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Tradução de Paulo Antônio de Menezes
Albuquerque e Ricardo Henrique Arruda de Paula.
Revista Themis, Fortaleza, v 3, n. 1, p. 153-161, 2000, p.
153). Há quem diga, contudo, que a fundamentação dos direitos humanos reside precisamente no Direito Natural
(CHORÃO, Mário Bigotte.
Introdução ao direito o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 157),
sendo essa controvérsia em torno de sua fundamentação uma demonstração eloquente de que o antagonismo
entre jusnaturalistas e positivistas não está tão superado quanto se preconiza.
3
Talvez se lhes aplique a observação de Becker, crítico mordaz das doutrinas calcadas em fundamentos “óbvios”
que por isso mesmo deixam de ser questionados. Diz ele: “Certas teorias mostram-se facilmente inteligíveis e
simples precisamente porque são edificadas sobre apenas um fragmento das bases integrais; e, quando destruídas
pela análise, resta sempre um truncamento de coluna indestrutível (aquele fragmento) a lançar entre as ruínas a
sua sombra enigmática de meia-verdade.” BECKER, Alfredo Augusto.
Teoria geral do direito tributário. 3.ed.
São Paulo: Lejus, 1998, p. 14.
16
jurídico, outra, dela decorrente, será inevitavelmente examinada, a saber, a relacionada ao
multiculturalismo e ao possível antagonismo existente entre a preservação de várias e
diferentes culturas e a universalização dos direitos humanos.
Para enfrentar tais questões, cuidar-se-á, primeiro, em capítulo destinado à colocação
do problema e de suas premissas, do que se entende por fundamento, das relações possíveis
entre Direito e Estado, e do papel deste último em relação à identificação e à fundamentação
do primeiro. Em seguida, a fim de se verificar a possibilidade de tal síntese dialética entre
jusnaturalismo e positivismo, tratar-se-á das ideias centrais que inspiram as formas de
pensamento jurídico que buscam fundamento metafísico para o ordenamento jurídico,
notadamente as correntes jusnaturalistas. Depois, capítulo subsequente, proceder-se-á ao
mesmo exame, em relação às correntes que negam esse fundamento metafísico, ligadas, por
isso, ao positivismo jurídico.
No quarto capítulo, tendo efetuado uma síntese do conceito e do fundamento do
direito para as principais correntes metafísicas e antimetafísicas, proceder-se-á a uma análise
das características do pós-positivismo, tal como o descrevem alguns de seus representantes.
Far-se-á, ainda, uma aferição relativa à possibilidade dessa síntese e às reais limitações do
pós-positivismo na atualidade. Dessas divergências, aqui serão examinadas as que dizem
respeito aos fundamentos do ordenamento jurídico, oportunidade na qual será possível
constatar se realmente houve a apontada superação dialética. Responder-se-ão, neste ponto, as
questões ligadas à existência de um fundamento suprapositivo para o ordenamento jurídico, à
universalização desse critério e às relações dessa universalização com o respeito às várias
manifestações culturais existentes no planeta.
No quinto capítulo, procurar-se-á, partindo de algumas características da criatura
humana, de um adequado conceito do que seja metafísica e do conceito contemporâneo de
ciência, contribuir para com o pensamento que se diz pós-positivista, para lhe suprir, na
medida do possível, algumas deficiências. Pretende-se, nessa parte final, responder às
questões propostas inicialmente, notadamente a central: o que caracteriza o Direito enquanto
tal? O que permite julgar um conjunto de regras de conduta, diferenciando, por exemplo, o
ordenamento jurídico estatal das regras que disciplinam uma organização criminosa?
Lembrando que esse critério de julgamento jamais será inteiramente atendido por um
ordenamento jurídico positivo, que dele apenas infinitamente se pode aproximar, procurar-se-
á, no sexto e último capítulo, apontar soluções concretas para que a ordem jurídica brasileira
17
se torne mais justa, ou mais adequada ou próxima dos fundamentos apontados neste trabalho.
Fez-se esse exame tendo em mente três premissas de ordem metodológica. A primeira
foi a de não ter o propósito de fazer crítica agressiva, predestinada a encontrar defeitos, mas
tampouco o aplauso irrefletido, comprometido a destacar virtudes. A ideia é, como
preconiza Boaventura de Sousa Santos, “afirmar sem ser cúmplice, criticar sem desertar.”
4
A segunda foi a despreocupação em identificar ou alinhar as conclusões deste trabalho
às ideias que compõem a linha de pensamento deste ou daquele autor. Não se teve, pelo
menos conscientemente, o deliberado propósito de adequar ou conformar o que se dizia aos
moldes de escola ou corrente filosófica específica, o que, porém, não significa que não se
tenha sofrido a influência de algumas delas, ou que essa conformação não tenha ocorrido,
nem que não se tenha partido, basicamente, do pensamento de certos autores, cujas ideias
foram, aliás, fartamente referidas e endossadas, naquilo em que se mostraram pertinentes e
não contraditórias com o que se defende aqui. Afinal, a realidade à qual se reportam – e à qual
se reporta esta tese deve ser a mesma. Por isso, entenda-se: o fato de se fazer alusão ao
pensamento de diversos autores relativamente a
aspectos da questão aqui versada, aderindo-se
a eles
nestes aspectos, não significa que se esteja a endossar todas as demais ideias das
pessoas citadas, que, às vezes, vistas no seu todo, são até antagônicas.
5
E, finalmente, a terceira foi a de não apenas descrever a realidade, descrição que é tão
necessária quanto insuficiente quando se faz ciência. Em verdade, objetiva-se, a partir de uma
descrição da realidade e de julgamentos feitos em face dela,
prescrever como ela deve ser,
para melhorá-la, seguindo a recomendação de que “nos tempos que correm o importante é não
reduzir a realidade apenas ao que existe.”
6
A necessidade de que uma teoria científica não
apenas descreva a realidade, mas também sirva ao seu aprimoramento, será demonstrada na
parte final deste trabalho.
4
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice o social e o político na pós-modernidade. 2.ed. São
Paulo: Cortez, 1996, p. 105.
5
Não se está dizendo, cumpre insistir, que as ideias de alguns autores em particular não tenham sido importantes
e que não tenham sido adotadas, em linhas gerais, aqui. Seria impossível, para qualquer pessoa, escrever um
trabalho sem partir de ideias de outros. Leitura deste texto revelará, claramente, a subscrição, em larga medida,
de aspectos do pensamento de Dworkin (relativamente ao Direito Natural e às ideias de liberdade e igualdade),
de Habermas (quando à relação entre as esferas pública e privada e ao papel do consenso na legitimação da
ordem jurídica), de Amartya Sen e J. Rawls (quanto ao conceito de liberdade e sua relação com a igualdade), e
de Ernst Cassirer (quando à natureza humana). O que não se pretendeu foi escolher um desses autores para então
seguir quase todas as suas ideias, discutindo-as em vez de discutir a realidade em torno da qual foram
construídas, e ao final justificar longamente um ou outro ponto específico nos quais não fossem adotadas.
6
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO,
Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.),
op. cit., 2008. p. 3-46, p. 45.
18
1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Os dicionários invariavelmente associam a palavra “fundamento” ao que legitima,
suporte ou serve de princípio, base, motivo ou razão a alguma coisa,
1
ou “aquilo em que se
baseia um pensamento”
2
, sendo expressivo notar que o verbo “fundamentar” é tido como a
ação de “apresentar justificativa convincente para”
3
alguma coisa. Exemplificando, os
fundamentos de uma teoria ou de um sistema filosófico são aqueles axiomas ou pensamentos
centrais dos quais as demais proposições poderiam ser extraídas ou deduzidas; o fundamento
de um contrato reside na livre manifestação de vontade das partes contratantes, que lhe
origem e lhe justifica a obrigatoriedade, e assim por diante.
Em relação ao Direito, aqui entendido como sistema hierárquico de normas dotadas de
sanção organizada
4
, a perquirição a respeito de seus fundamentos envolve basicamente a
questão de saber quais razões o justificam
5
ou lhe conferem obrigatoriedade. Trata-se, em
suma, de saber o que caracteriza um ordenamento jurídico enquanto tal,
6
de sorte a diferenciá-
1
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 1404. De forma semelhante: BUENO, Silveira.
Grande dicionário etimológico prosódico da
língua portuguesa
. Saraiva: São Paulo, 1965. v.3, p. 1490; ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA.
Dicionário da língua portuguesa contemporânea. Lisboa: Verbo, 2001. v.1, p. 1836.
2
AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004, p. 390.
3
Ibid., 2004, p. 389.
4
A palavra Direito é plurissignificativa, podendo ter o sentido de: (i) o antônimo do torto, ou do esquerdo; (ii)
um modelo ideal de correção ou justiça; (iii) o conjunto de normas que disciplina o comportamento humano em
determinada sociedade;
(iv) o conhecimento que se m do conjunto de normas antes mencionado, de seu
funcionamento e da realidade que lhe é subjacente;
(v) o resultado da incidência de uma norma sobre um fato
nela previsto (direito subjetivo) etc. Para um exame desses vários sentidos, confiram-se: CHORÃO, Mário
Bigotte.
Introdução ao direito o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 10; GROPPALI,
Alessandro.
Introdução ao estudo do direito. Tradução de Manuel de Alarcão. 3.ed. Coimbra: Coimbra editora,
1978, p. 23; MACHADO, Hugo de Brito.
Uma introdução ao estudo do direito. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2004,
p. 24; HERVADA, Javier.
Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução de Elza Maria Gasparotto.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 124; GOMES, Nuno de Sá.
Introdução ao estudo do direito. Lisboa: Jvs,
2001, p. 49. No texto, quando se faz referência aos “fundamentos do Direito”, reporta-se à palavra como
sinônimo de “ordenamento jurídico”, “ordem jurídica”, ou, para usar as palavras de H. Hart, como “união de
regras primárias e secundárias” (HART, Herbert L. A.
O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes.
3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 89), palavras às quais se devem acrescentar, ainda, os princípios.
5
LUHMANN, Niklas. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Tradução de Paulo
Antônio de Menezes Albuquerque e Ricardo Henrique Arruda de Paula.
Revista Themis, Fortaleza, v 3, n. 1, p.
153-161, 2000, p. 154.
6
A propósito do fundamento dos direitos humanos, Gregório Robles faz afirmação que pode ser estendida ao
fundamento do ordenamento jurídico em geral (que, aliás, não raras vezes, é apontado como tendo fundamento
19
lo de outras realidades, como a moral, um ordenamento imaginário ou ideal, o conjunto de
regras que disciplina um bando de salteadores etc. Responde-se, com isso, à pergunta: o que é
o Direito? Mas não só. Considerando que o fundamento envolve “não um juízo de realidade
acerca de
como é a coisa, mas um juízo de valor pertinente à razão por que ela se apresenta
deste modo e não de outro qualquer”
7
, cuida-se, ainda, da razão pela qual a ordem jurídica
posta deve ser aceita enquanto tal, a fim de que se responda à pergunta: por que este Direito, e
não outro? Ambas relacionadas, como se vê, à razão mais radical da sua obrigatoriedade,
8
e
inafastáveis, eis que, sendo o direito instrumento da realização de valores, seria mesmo
absurdo
defender unos valores y no saber por qué.” Aliás, ainda nas palavras de Gregório
Robles, é “
francamente ridículo e inaceptable que nosotros, los teóricos, presentemos teorías
sobre los derechos sin fundamentarlas
.”
9
Tais indagações não são fáceis de responder, mas, não obstante, são de enfrentamento
indispensável para que se resolvam as questões postas no início desta tese, sendo certo que
porque un problema sea de difícil solución no tenemos derecho a abandonarlo o a
calificarlo de pseudoproblema
.”
10
Dada a sua relevância, antes de se lhes procurar uma
resposta, convém, nos capítulos 2, 3 e 4,
infra, examinar como alguns dos principais teóricos
do direito, recorrendo a elementos metafísicos (
v.g., jusnaturalistas), negando-os
(juspositivistas) ou dizendo-os superados (pós-positivistas), cuidaram delas. Mas, antes ainda,
parece pertinente perquirir alguns aspectos a respeito das origens do Direito e do Estado, e das
relações entre eles, pois um dos pontos mais controversos do tema ora examinado diz respeito
ao papel do Estado na fundamentação (e na própria identificação) de um ordenamento
jurídico.
1.1 Direito e Estado
Não se pode negar a necessidade de que as normas jurídicas, através das quais o
Direito se exprime, sejam (em grande parte) elaboradas e tenham (todas) sua eficácia
nos direitos humanos). Segundo ele, o fundamento delimita materialmente o conteúdo dos direitos, puesto que
los penetra
. ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid:
Civitas, 1995, p. 12-13.
7
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio
de Janeiro: Forense, 2003, p. 164.
8
CHORÃO, Mário Bigotte. Introdução ao direito o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 137;
VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 97.
9
ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1995, p.
12.
10
Ibid., 1995, p. 11.
20
pretensamente garantida por uma entidade organizada, dotada de poder para, em último caso,
impor o cumprimento de suas prescrições com o uso da força. A esse organismo, no mundo
moderno, dá-se o nome de Estado.
Registre-se, contudo, que esse reconhecimento não implica assumir, desde logo, uma
posição relativamente às respostas a serem dadas às questões formuladas no início desta tese,
ou seja, não implica uma posição em torno dos fundamentos de um ordenamento jurídico. A
afirmação de que o Direito, nas sociedades contemporâneas, deve ser garantido, em última
instância, pelo organismo estatal, não sendo suficiente para caracterizá-lo e garantir-lhe a sua
adequação a um padrão de justiça, não significa necessariamente que o fundamento do
ordenamento jurídico seja o poder estatal; nem que Estado e Direito sejam as duas faces de
uma mesma moeda, sendo o Estado, como queria Kelsen, a própria personificação da ordem
jurídica.
11
Não. Pode-se admitir a necessidade de uma entidade organizada incumbida de
elaborar e tornar efetivas as normas jurídicas, sem com isso eliminar a existência de limites a
serem por ela observados nessa tarefa. Esses limites podem ser tanto materiais como
procedimentais, ligando-se à natureza do Homem e à natureza do Direito, aspectos que serão
examinados no capítulo 5 desta tese.
Por ora, cumpre notar apenas que o Direito, entendido como ordenamento jurídico,
vale dizer, como um “conjunto de normas jurídicas”
12
, sistema de prescrições
13
destinadas a
disciplinar a conduta dos integrantes de uma comunidade, é inerente ao ser humano.
14
Decorre
11
Conquanto equipare Direito e Estado, explicando os três elementos deste povo, território e poder como
sendo também os três elementos daquele – destinatários da ordem jurídica, âmbito espacial de vigência da ordem
jurídica e eficácia da ordem jurídica (KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista
Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 317 a 321;
Id. Teoria geral do direito e do Estado.
Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 261 e ss.), criando, no dizer de Herman
Heller, uma “teoria do Estado sem Estado” (HELLER, Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes
da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 78), Kelsen não deixa de admitir a existência de uma ordem jurídica
primitiva, pré-estadual, e de uma supra-estatal, ambas independentes e não confundíveis com a figura do Estado.
Ora, essas ordens jurídicas são a demonstração eloquente de que o Direito, conquanto relacionado com o Estado
no mundo atual, com ele não se confunde. A razão parece estar, nesse ponto, com Nelson Saldanha, para quem a
posição monística de Kelsen é exagerada, “pois o direito é regulação das relações de alcance externo onde quer
que exista organização social enquanto que o Estado surge apenas em certo grau da evolução jurídica das
civilizações.” SALDANHA, Nelson.
O poder constituinte. São Paulo: RT, 1986, p. 33.
12
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 11.
13
As normas jurídicas, nota Norberto Bobbio, “nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de
normas com relações particulares entre si”, sendo esse contexto que se costuma chamar “ordenamento”. E será
bom observar prossegue ele - “que a palavra 'direito', entre seus vários sentidos, tem também o de
'ordenamento jurídico', por exemplo, nas expressões 'Direito romano', 'Direito canônico', 'Direito italiano'
['Direito brasileiro'] etc.” BOBBIO, Norberto.
Teoria do ordenamento jurídico. 10.ed. Tradução de Maria
Celeste Cordeiro dos Santos. Brasília: UnB, 1999, p. 19.
14
Por isso mesmo, parece um contrassenso a cogitação em torno dos “direitos dos animais”. Tampouco diz
com inteira razão Arthur Kaufmann “os animais teriam nisso qualquer vantagem significativa. Muito mais
relevantes são os
deveres do homem para com os animais, especialmente, aqueles deveres cuja violação tem
21
de duas de suas características: a liberdade, e a sociabilidade.
Dotada de uma estrutura neurológica que lhe confere a faculdade de abstrair
15
e
representar o futuro
16
, a criatura humana é o único ser capaz de distinguir o real do possível.
17
Essa faculdade a diferencia dos animais em geral, pois lhe confere a oportunidade de tentar,
quando lhe parece interessante, transformar a possibilidade em realidade. Miguel Candel
observa que
esa combinatoria de impulsos que se abre ante la conciencia (ante ciertos tipos
de conciencia constructiva y capaz de anticipar experiencias posibles, como la conciencia
humana) consiste precisamente lo que llamamos libertad
.”
18
A liberdade, portanto, é a aptidão de fazer escolhas, vale dizer, a aptidão humana de,
diante de várias possibilidades, eleger uma delas e procurar torná-la
real. É isso o que ao
ser humano a capacidade de alterar a realidade, pois ele não se limita a escolher entre dois ou
mais caminhos existentes, podendo optar por um caminho ainda não concretizado, mas em
tese
possível. Pode-se dizer, em face disso, que a criatura humana se caracteriza pela aptidão
de sonhar e de concretizar seus sonhos, o que os demais seres animados, até onde se conhece,
não podem fazer. É isso, por igual, o que explica as diferenças existentes entre uma sociedade
atual e uma havida três ou quatro mil anos atrás, diferenças que não são verificadas pelo
menos não de forma tão sensível – entre as comunidades de formigas, castores ou abelhas
19
de
consequências jurídicas.” (KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 452). É o que explica Arnaldo Vasconcelos, para quem “não há
como falar-se em Direitos de animais e de coisas, porque eles não os têm por sua própria natureza e condição.
Ao homem é que cabe a obrigação de protegê-los.” (VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria da norma jurídica.
5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 151). O homem tem de proteger os animais, a natureza e o planeta terra por
respeito aos outros homens, que vivem no mesmo ambiente, às gerações futuras e em consideração à extrema
raridade representada pela vida e pelo planeta terra, que – até onde se sabe- é o único no universo em condições
para o florescimento de formas de vida. Essa é a verdadeira razão de ser de teorias e até de ordenamentos
jurídicos – que preconizam a existência de direitos de animais ou mesmo da natureza. A Constituição do
Equador, por exemplo, reconhece expressamente os “direitos da natureza” (arts. 71 e ss.).
15
TUFAYL, Ibn. O filósofo autodidata. Tradução de Isabel Loureiro. São Paulo: UnESP, 2005, p. 63.
16
MIRANDA, Pontes de. Garra, mão e dedo. Revisto e prefaciado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas:
Bookseller, 2002, p. 97.
17
Nas palavras de Ernst Cassirer, ni para los seres por debajo del hombre ni para los que se hallan por encima
de él existe diferencia entre ‘lo real’ y ‘lo posible’
. Los seres por debajo del hombre se hallan confinados dentro
del mundo de su percepción sensible, son susceptibles a los estímulos físicos presentes y reaccionan a estos
estímulos, pero no pueden formar la idea de cosas ‘posibles’
. Por otra parte, el intelecto sobrehumano, la mente
divina no conoce distinción entre realidad y posibilidad
.” (CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica.
Traducción de Eugenio Ímaz. 2.ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 1963, p. 90). No mesmo sentido,
Arnaldo Vasconcelos observa, com apoio em Robert Musil, que, “se existe um senso de realidade, tem de haver
também um senso de possibilidade.” VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria pura do direito repasse crítico de
seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 177.
18
CANDEL, Miguel, no prefácio a SEARLE, John R. Libertad y neurobiologia. Traducción de Miguel Candel.
Barcelona: Paidós, 2005, p. 19.
19
“A abelha de hoje não sabe compor o seu mel com mais habilidade do que a abelha de Virgilio. O caráter
distintivo da associação humana está justamente nessa reação do todo sobre cada uma das partes donde resultam
22
hoje e as do passado.
20
Outra característica humana é a sociabilidade, ou a necessidade que o homem tem de
viver entre semelhantes,
21
evidenciada pelo fato de que “a arqueologia só nos mostra o
homem em sociedade, ainda que essa sociedade se reduza a algumas dezenas de
indivíduos.”
22
Pimenta Bueno, nesse sentido, registra que “viver em sociedade é uma
condição indeclinável das necessidades intelectuais, morais e físicas do homem; a forma da
associação pode variar, mas a dependência desse estado é providencial e inseparável dele.”
23
Pode-se dizer, inclusive, que são características intimamente relacionadas, pois foi entre
semelhantes, trocando informações e experiências e desenvolvendo a linguagem, que a
criatura humana desenvolveu a racionalidade responsável por sua liberdade.
24
Aristóteles, a respeito da relação entre a sociabilidade, a linguagem e as regras de
conduta, observa ser
evidente a razão pela qual o homem é um animal mais político do que as abelhas ou
qualquer outro animal gregário. A natureza, como se diz com freqüência, não faz
nada em vão, e o homem é o único animal que ela dotou com o dom da fala. E
enquanto o mero som é apenas um indicação de prazer ou de dor, sendo por isso
as mudanças e melhoramentos ulteriores.” (BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller,
2000, p. 127). Pode até haver alguma distinção entre abelhas de hoje e abelhas de milênios passados, mas isso
não invalida o que se está a dizer aqui. Primeiro, porque ela será sensivelmente menor que a alteração havida nas
sociedades humanas. Segundo, porque ela com maior probabilidade será produto da seleção natural havida no
período, e não de uma criação
cultural e institucional das abelhas.
20
Sobre a progressividade como elemento diferenciador das sociedades humanas e das animais (de formigas,
abelhas e castores), e como decorrência da
racionalidade, confira-se ainda: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de
filosofia do direito
. Tradução de António José Brandão. 5.ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 463.
21
A íntima relação entre a sociabilidade e humanidade é registrada por Del Vecchio, que, comentando a
afirmação de Aristóteles de que para viver isolado o homem teria que ser “um bruto ou um Deus”, acrescenta:
“ou seja, qualquer coisa menor ou qualquer coisa maior que o homem.” (
Ibid., 1979, p. 460) Ainda sobre a
sociabilidade e a racionalidade, David Hume afirma que em sociedade o homem adquire força, capacidade e
segurança adicionais, vantagens que tornam natural a busca pela vida entre semelhantes. HUME, David. Tratado
da natureza humana volume II, livro III. In: MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito.
Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184-210, p. 192.
22
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 42.
23
BUENO, José Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília:
Serviço de documentação do Ministério da Justiça, 1958, p. 19.
24
MIRANDA, Pontes de. Garra, mão e dedo. Revisto e prefaciado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas:
Bookseller, 2002, p. 105. Sobre o papel da linguagem no desenvolvimento da espécie humana, sobretudo de sua
racionalidade, confira-se ainda ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 37 e ss; TAYLOR, Charles.
Multiculturalism.
examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 32 e BARRETO, Tobias.
Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 126-127. Para este último, a sociedade é ao mesmo tempo
causa e efeito da racionalidade humana, assim como, dizia Goethe, o olho é um produto da luz. Daí porque, diz
Arnaldo Vasconcelos, “sua afirmação como indivíduo dá-se sempre diante de alguém e em situação com o seu
mundo. O confronto das presenças o confirma, garantindo-os como seres existentes.” VASCONCELOS,
Arnaldo.
Teoria pura do direito repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p. 31.
23
encontrado em outros animais...o poder da fala está destinado a expor o conveniente
e o inconveniente, assim como o justo e o injusto. E é uma característica do homem
que só ele possui algum senso do bem e do mal, do justo e do injusto, e a associação
de seres vivos que possuem esse senso faz uma família e um Estado.
25
Hoje, alguns aspectos da lição aristotélica podem ser questionados, eis que encontram
exceções. Elas residem, contudo, apenas na inexistência de uma distinção estanque – mas sim
gradual – entre o homem e os outros animais, que também conhecem a linguagem e instituem
regras, embora de forma – até onde se conhece – rudimentar.
Seja como for, tanto é através da linguagem que a racionalidade se aprimora que se
pode dizer, como o faz Alain Supiot, que o homem “não nasce racional, ele se torna racional
ao ter acesso a um sentido partilhado com os outros homens.”
26
E mais: as sociedades
humanas não se caracterizam apenas pela formação de um grupo, e pela cooperação entre seus
membros como ocorre entre leões, que se ajudam na caça a uma zebra, ou entre abelhas,
cada uma com uma função no âmbito da colméia mas pela formação, em tais grupos, de
realidades institucionais,
27
o que a racionalidade permite.
28
Isso porque, além de social, o
homem é também um animal capaz de criar instituições que somente existem na medida em
que são reconhecidas pelos demais integrantes do grupo.
29
25
ARISTÓTELES. Política livro I. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução
de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 17-23, p. 18.
26
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. IX.
27
Fatos brutos são aqueles cuja ocorrência independe da existência do homem e, por conseguinte, da criação de
instituições por parte dele. É o caso da chuva, de uma árvore que cai, de um animal que ataca outro, de um
nascimento ou de uma morte etc. os fatos institucionais (que no texto acima chamamos realidades
institucionais) são aqueles cuja existência depende de instituições pré-estabelecidas pelo homem, que os
definam. É o caso de um gol, de um pênalti, de uma dula de R$ 50,00, de uma jogada de xadrez. Para
aprofundamento no tema, confira-se: SEARLE, John R.
Libertad y neurobiologia. Tradução de Miguel Candel.
Barcelona: Paidós, 2005, p. 99. John Finnis, em termos semelhantes, caracteriza os grupos humanos a partir da
criação de regras destinadas à consecução de objetivos compartilhados por seus membros. FINNIS, John.
Lei
natural e direitos naturais
. Tradução de Leila Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2007, p. 153.
28
É verdade que, como já foi apontado no texto, logo em seguida da transcrição de Aristóteles, a própria
distinção entre o homem (racional) e os outros animais (irracionais) não é estanque, mas sim gradual. Isso,
porém, não refuta o que se disse acima. Muito pelo contrário. Como adverte Norbert Rouland, as “sociedades
animais, também elas, souberam inventar regras que não lhes eram dadas e sancioná-las. Mas o homem se
distingue para sempre do animal pela amplitude do que constrói.” (ROULAND, Norbert.
Nos confins do
direito
. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 4).
Rousseau, aliás, já havia escrito que o animal “tem idéias, visto que tem sentidos; chega mesmo a combinar essas
idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade.” (ROUSSEAU, J. J.
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos
Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 64). Essa intensidade, a propósito, decorre, para Rousseau,
precisamente do “poder de querer ou, antes, de escolher.”
29
SEARLE, John R., op. cit., 2005, p. 110; ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Tradução
de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 3; NOZICK, Robert.
Invariances
the structure of the objective world. Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001, p. 299.
24
É precisamente da conjunção dessas características que nasce o Direito,
30
realidade
puramente institucional
31
consistente em um conjunto de normas de conduta destinado a
viabilizar a convivência dos membros do grupo, conciliando-lhes as liberdades. Daí dizer-se,
com inteiro acerto, que o Direito é um instrumento de
compartição de liberdade
32
ou, com
Kant, que ele “abrange o todo das condições sob as quais as ações voluntárias de qualquer
pessoa podem ser harmonizadas na realidade com o arbítrio de outra pessoa, de acordo com
uma lei universal da liberdade.”
33
Dessa forma, sendo tão antigo quanto a criatura humana,
34
o Direito é anterior à
sedentarização havida com o domínio da agricultura, à escrita e, por conseguinte, ao Estado.
Mesmo assim, não obstante posterior, o surgimento do Estado tem com o Direito íntima
relação.
Com a sedentarização,
35
as sociedades humanas passaram por significativas
transformações. Aumento da produção de alimentos e possibilidade de estocar recursos
disponíveis, crescimento da população e aumento da complexidade dos grupos sociais,
mudança na noção de território, que assume uma feição inteiramente diferente daquela
inerente aos grupos nômades etc. Esses fatores diz Norbert Rouland
36
levaram a uma
amplitude de novos problemas que, não fosse a
inventividade sociológica do homem, teriam
levado à sua extinção.
30
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5.ed. São Paulo: RT, 1999, p. 51.
31
Sobre as normas como realidades institucionais, que permitem a transformação de um ser em um dever ser
(por conta, é certo, da valoração que a criatura humana faz das realidades a serem normatizadas), confira-se:
SEARLE, John. How to derive 'ought' from 'is'.
The philosophical review, Durham, v. 73, n. 1, p. 43-58, jan.
1964.
32
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 11.
33
KANT, Immanuel. Primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os
grandes filósofos do direito
. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 237-279, p.
240.
34
As regras de conduta “provêem do fundo de nosso passado evolucionário. Já estavam em nossa linha ancestral
numa época em que ainda não éramos humanos.” (SAGAN, Carl.
Bilhões e bilhões. Tradução de Rosaura
Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 208). E talvez tenha sido a habilidade de criá-las que
deu às sociedades humanas maiores chances de sobrevivência, pelo que racionalidade, sociabilidade, linguagem
e liberdade, bem como o direito enquanto instrumento de compartição desta, estão, provavelmente, intimamente
relacionados e decorrem do processo de seleção natural. Evidentemente, como pôde fazer com as suas demais
características, o homem pôde, ao longo da História, modificar e aperfeiçoar significativamente esse conjunto de
regras, que naturalmente é levado a instituir. Voltar-se-á ao tema no item 5.2,
infra.
35
Entenda-se por sedentarização a fixação dos grupos humanos, antes nômades, em certos territórios,
invariavelmente próximos de grandes rios (TRUYOL Y SERRA, Antonio.
Historia de la filosofía del derecho
y del Estado -
1. de los orígenes a la baja edad media. 14.ed. Madrid: Alianza, 2004, p. 61), o que se tornou
viável com o domínio da agricultura e da pecuária, levou à especialização do trabalho e viabilizou o surgimento
das primeiras cidades.
36
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 55.
25
Em relação especificamente ao Direito, pode-se dizer que a eficácia de suas normas
era garantida, nas sociedades primitivas, quando necessário, pelo receio à punição pelos
ancestrais e, sobretudo, por conta dos “laços de solidariedade” que unem os membros do
grupo e lhes aumentam a empatia mútua. Esses laços são tanto maiores quanto maior a
proximidade entre os membros, e para verificá-lo basta que se pense o quanto a solução dos
conflitos entre familiares próximos e amigos depende
menos da interferência estatal do que os
conflitos entre pessoas inteiramente desconhecidas e que menos empatia têm umas pelas
outras. É precisamente a maior complexidade dos grupos sociais, havida com a sedentarização
e o surgimento das cidades, que torna insuficientes os laços de solidariedade para garantir a
eficácia das normas de conduta, fazendo necessária a criação de uma instituição que as
garanta.
37
É quando surge o Estado.
38
Não que, antes do surgimento do Estado, não houvesse poder político.
39
Havendo
grupos humanos, havia por certo poder político, mas este era exercido pelos próprios grupos
familiares, no âmbito das relações de parentesco. Com o crescimento das sociedades e a
multiplicação de grupos fundados em outras relações que não as de parentesco, surgem como
opções a dispersão, a implosão do grupo ou o seu fortalecimento em torno de organismo
investido do poder político.
40
Essa sucessão de fatos é explicada, com propriedade, por
Norbert Rouland, que escreve:
Por diversos processos, os grupos pouco a pouco são substituídos por tribos e
unidades territoriais comandadas por um chefe: aparece um novo tipo de direito, que
denominamos público e regulamenta as atividades políticas e administrativas, ao
passo que a família e parentesco vêem suas funções limitadas aos assuntos
domésticos, sem no entanto desaparecer. Assistimos desde então a um fenômeno
37
Com apoio em Ibn Khaldûn, Thomas Fleiner-Gerster indica, como um dos ingredientes responsáveis pelo
surgimento do Estado, além de um “forte sentimento de pertencer ao grupo”, o aumento da complexidade dos
grupos e, com ele, “a base de um direito consuetudinário não passível de imposição coercitiva não é mais
suficiente para garantir a ordem.” FLEINER-GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de
Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26.
38
A palavra Estado, aqui, é usada em sentido bastante amplo, e não no sentido de Estado Nacional, este surgido
apenas ao cabo da Idade Média. No dizer de Jorge Miranda, “o Estado, que conhecemos hoje, comumente
definido através de três elementos ou condições de existência povo, território e poder político é apenas um
dos tipos possíveis de Estado: o Estado nacional soberano que, nascido na Europa, se espalhou recentemente
pelo mundo.” (MIRANDA, Jorge.
Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 19).
Gilberto Bercovici, com bastante precisão, ensina que a noção de Estado que se tem atualmente é oriunda de
elementos surgidos entre os séculos XII e XIII, sendo impossível transplantá-la para períodos anteriores, nos
quais havia uma pluralidade de ordenamentos jurídicos. BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e constituição: para
uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 50.
39
“Existiam” escreve Herman Heller “atividades políticas e formas de atividade política antes de haver o
Estado, do mesmo modo que existem ainda hoje, grupos políticos dentro dos Estados e entre os Estados.”
HELLER, Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p.
246.
40
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 59.
26
capital: o nascimento do Estado, condicionado pela criação de um aparelho
especializado de governo.
É a aurora das cidades e dos impérios, que saem da Pré-História e se dotam da
escrita. Nesses vastos conjuntos humanos, prenunciadores, a longo prazo, das
megalópoles e dos Estados contemporâneos, diminuem as relações face a face,
aumentam as distâncias entre os homens que habitam um mesmo território e são
sujeitos a uma mesma autoridade. Cumpre-lhes inventar uma nova forma de
comunicação, memorizar os acontecimentos de que não são testemunhas diretas;
os dirigentes devem fazer-se obedecer a distância: o escrito atenderá a todas essas
necessidades. Quanto às regras do direito, elas se tornam tão numerosas e
imperativas que nasce a necessidade de fixá-las: começam-se a compor compilações
e codificações.
41
A Antropologia Jurídica e a História do Direito mostram, portanto, que o Direito é
anterior ao Estado, cuja função essencial não pode ser resumida, de forma simplista e
equivocada, à “preservação da propriedade
42
, sendo antes a de “produzir unidade onde os
mecanismos antigos já não asseguram – ou não tão bem – a instituição do social.”
43
Mostram, também, que não parece ter havido, como defendem certos teóricos do
contrato social, um “estado de natureza” seja ele composto de homens ingênuos e livres,
seja ele uma guerra de todos contra todos
44
o qual teria sido superado com a instituição do
Estado.
45
Além desse aspecto, aliás admitido por alguns de seus partidários,
46
a teoria do
contrato social, pelo menos nos moldes em que idealizada por Hobbes e por Rousseau, incorre
em um paralogismo ou em uma petição de princípios, pois pressupõe a capacidade jurídica
41
Ibid., 2003, p. 59-60.
42
Como defende, por exemplo, John Locke. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. In: MORRIS,
Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes,
2002. p. 130-155, p. 133.
43
ROULAND, Norbert, op. cit., 2003, p. 220.
44
Thomas Fleiner-Gester faz rica análise a respeito dos que teorizaram as origens do Estado, não se limitando
aos autores da tradição ocidental, européia, recorrendo também a chineses e árabes. Estão sempre presentes, diz
ele, duas concepções completamente opostas: “Uns são de opinião de que a situação foi inicialmente de caos,
quer dizer, a luta de todos contra todos (Hobbes, Shang-Kun-Shu, cf. Geng-Wu, p. 49); outros afirmam que no
princípio reinava a paz e a harmonia [Rousseau, Lao-tsé (provavelmente ano 6 a.C), Marsílio de Pádua (1275
aproximadamente 1343), Karl Marx (1818-1883)], às quais os homens deveriam retornar (Marx e Lao-tsé).”
FLEINER-GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 23.
45
Nesse sentido: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de António José Brandão.
5.ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 461; MALBERG, R. Carré de.
Teoría general del Estado. Tradução
de José Lión Depetre. 2.ed. Mexico: Facultad de Derecho/Unam, 1998, p. 65; GOMES, Nuno de Sá.
Introdução
ao estudo do direito
. Lisboa: Jvs, 2001, p. 23-24.
46
Mas não por todos. Locke, por exemplo, não admite que o estado de natureza e o contrato então firmado sejam
“hipóteses”, insistindo na sua real verificação. E se vale, para tanto, de evidente falácia: “e se pudéssemos supor
que os homens jamais estiveram no estado de natureza, porque pouco sabemos deles em tal estado, também
podemos supor que os exércitos de Salmanasser ou de Xerxes nunca foram crianças, porque pouco sabemos
deles antes que se tornassem homens e se incorporassem em exércitos.” LOCKE, John. Dois tratados sobre o
governo. In: MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 130-155, p. 146.
27
das partes contratantes e a existência prévia dos direitos a serem objeto da avença, elementos
que, todavia, segundo essa mesma teoria, somente surgem
depois de celebrado o tal contrato,
como frutos dele.
47
Não se pode falar, sobretudo no caso de Hobbes, em “transferência de
direitos”
48
, se estes só passam a existir depois do suposto contrato. Não bastasse isso, a teoria
do contrato social, caso pressuponha um que realmente tenha existido, não resolve a questão
relativa às gerações futuras, que não firmaram o pacto e que, por isso, não se sentiriam
vinculadas por ele.
Por isso, a teoria do contrato social pode ser admitida, quando muito, como mera
hipótese,
49
reconhecidamente fictícia, usada apenas para justificar, a contrario, a importância
do Estado e das instituições jurídicas criadas por seu intermédio na sociedade contemporânea.
Por outras palavras, o fato de o estado de natureza não ter existido, observa David Hume, não
impede que os filósofos o utilizem em seus raciocínios, “desde que admitam que se trata de
mera ficção, que jamais teve, e jamais poderia ter alguma realidade.”
50
Mas, mesmo nesse
caso e para esse fim, não pode ser aceita em sua vertente hobbesiana, pois parte da falsa
premissa de que o homem seria essencialmente egoísta,
51
característica a ser corrigida, ou
controlada, por meio da criação de um Estado dotado de poderes absolutos.
52
É o que registra
Del Vecchio, para quem o erro
47
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 124. No mesmo sentido, apontando que antes do
contrato não haveria sequer a norma
pacta sunt servanda: LUHMANN, Niklas. O paradoxo dos direitos
humanos e três formas de seu desdobramento. Tradução de Paulo Antônio de Menezes Albuquerque e Ricardo
Henrique Arruda de Paula.
Revista Themis, Fortaleza, v 3, n. 1, p. 153-161, 2000, p. 157.
48
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. c. XXI, p. 175.
49
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de António José Brandão. 5.ed. Coimbra:
Armenio Amado, 1979, p. 461. No mesmo sentido: BARRETO, Tobias.
Estudos de direito. Campinas:
Bookseller, 2000, p. 84. É o que faz, por exemplo, J. Rawls (RAWLS, John.
Uma teoria da justiça. Tradução
de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 14). Confira-se, a respeito, GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 14-15.
50
HUME, David. Tratado da natureza humana volume II, livro III. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes
filósofos do direito
. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184-210, p. 195.
51
A propósito de ter Hobbes dito que “o homem é o lobo do homem”, merece registro a observação feita por Del
Vecchio, segundo a qual “é digno de nota (ainda que geralmente não se saiba) que esta fórmula típica do sistema
de Hobbes deriva de um trecho de Plauto:
Lupus est homo homini, non homo, quem, qualis sit, non novit
(Asinaria, A. II, Sc. IV, v. 88)” (DEL VECCHIO, Giorgio.
Lições de filosofia do direito. Tradução de António
José Brandão. 5.ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 593). Faz ele ainda referência, na mesma página, ao uso
da expressão, com algumas variações em sua redação, por Francisco de Vitória, Erasmo de Roterdam, J. Owen e
Bacon.
52
Na verdade, como nota Hart, “se os homens não são demônios, o-pouco são anjos; e o facto de que estão a
meio caminho entre estes dois extremos é algo que torna um sistema de abstenções recíprocas simultaneamente
necessário e possível.” HART, Herbert L. A.
O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 212.
28
de Hobbes encontra-se na própria raiz da sua doutrina e consiste em limitar
arbitrariamente ao egoísmo a natureza humana. Os estudos modernos vieram,
entretanto, mostrar como o altruísmo é pelo menos tão natural como o egoísmo.
Cada vez com maior clareza tem sido provado que, além do instinto de auto-
conservação, em cada ser vivo enraíza igualmente o instinto de conservação da
espécie e da compaixão pelo semelhante.
53
O Estado, vale insistir, como entidade centralizadora do poder político, parece haver
surgido de forma lenta e gradual, em consequência do aumento das dimensões e da
complexidade dos grupos sociais causado pela sedentarização. Esse aumento, como afirmado,
levou à diminuição da eficácia das normas consuetudinárias, tornando necessária uma
instituição que organizasse a produção do direito e que garantisse, eventualmente com o uso
da força, a sua observância.
54
Surgiu para garantir a eficácia do Direito, e não para lhe dar um
conteúdo antes inexistente ou impossível. Assim, se o recurso a teorias contratualistas pode
ser admitido, ainda que apenas como forma de justificar ou legitimar o poder do Estado, isso
acontece apenas com teorias como a formulada por Locke, por exemplo, para quem, antes do
contrato, os indivíduos em estado de natureza são dotados de razão, do julgamento moral e de
alguns direitos, oriundos de um reconhecimento recíproco (propriedade e liberdade
55
), sendo
o papel do Estado o de garantir a preservação desses direitos pré-existentes.
56
Aliás, embora o homem tenha por característica a vida em sociedade, isso não
significa que seja, por isso, apenas uma parte integrante desta, que teria sobre ele prevalência.
Essas ideias serão examinadas com mais detalhamento ao longo do capítulo 5,
infra, mas de
logo se pode lembrar que, primeiro, caso não se respeite cada indivíduo que integra o grupo
de modo a que estes se possam livremente manifestar, torna-se demasiadamente difícil, ou
mesmo impossível, conhecer os verdadeiros interesses desse grupo, que evidentemente não se
confundem com os daquele indivíduo que circunstancialmente o representa. Além disso, os
53
DEL VECCHIO, Giorgio, op. cit., 1979, p. 93. Para um exame mais profundo dos equívocos antropológicos
do contratualismo de Hobbes e de Rousseau, confira-se: PINKER, Steven.
La tabla rasa le negación moderna
de la naturaleza humana. Tradução de Roc Filella Escolà. Barcelona: Paidós, 2003, p. 19 e ss.
54
É o que defende também, FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene
Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26.
55
AUDARD, Catherine, em prefácio a RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A Paternot.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXII-XXIII.
56
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São
Paulo: Mandarim, 2000, p. 60-61. Ainda para esse autor, na contrato social hobbesiano, “o Direito natural
desaparece completamente para dar vida ao Direito positivo.” (BOBBIO, Norberto.
Teoria do ordenamento
jurídico
. Tradução de Maria Celeste Cordeiro dos Santos. 10.ed. Brasília: UnB, 1999, p. 43). Não se está
dizendo, naturalmente, que o contratualismo de Locke seja correto em todos os seus aspectos, e que seja o único
admissível. Não é isso. O que se pretende dizer, com a afirmação de que seu contratualismo não incorre no
equívoco do de Hobbes, por exemplo, é apenas que não incorre no equívoco de considerar inexistentes quaisquer
padrões normativos ou mesmo axiológicos antes da celebração do contrato.
29
indivíduos, embora vivam inseridos em uma sociedade, podem eventualmente migrar e mudar
de grupo, e mesmo dentro de uma mesma sociedade cada indivíduo faz parte de vários grupos
distintos,
57
o que mostra que o indivíduo, embora esteja sempre no âmbito de um grupo, não é
apenas uma peça componente deste.
58
Dessa forma, ainda que se admita o relativismo axiológico e a inexistência de um
modelo de justiça universal e absoluto, válido em todos os tempos e lugares
independentemente da criatura humana, não se pode apenas por essas premissas chegar à
conclusão de que tudo o que vier a ser imposto coativamente pelo Estado deve ser
considerado, por isso, Direito, como se fosse impossível outro padrão ou critério, fora do
Estado, para a determinação do jurídico.
59
Porque alguma coisa é artificial, observa David
Hume, não quer dizer que é também arbitrária.
60
Afinal, como se determinava e como se determina, até hoje, em sociedades
tradicionais autóctones da Amazônia e da África, por exemplo – o conteúdo do Direito
existente
antes da criação do Estado? Essa determinação ocorria, provavelmente, por meio de
uma
democracia anárquica, conduzida pelos chefes das famílias (v.g., conselhos de anciãos
ou de sábios). Somente com o incremento da complexidade e da dimensão do grupo social,
ensejado pela sedentarização, surgiu a necessidade de se escolher (ainda que por meio da tal
democracia anárquica) um líder. A partir de então, de forma lenta e gradual, a figura do líder
– inspirada na tendência natural ao homem de abusar do poder que tem
61
– procura destruir os
tais conselhos de anciãos e a democracia rudimentar existente, construindo instituições que
57
Herman Heller registra que a doutrina organicista deve ser rejeitada “porque se revela como absolutamente
incapaz para resolver o problema da unidade do indivíduo e da multiplicidade dos grupos a que pertence como
membro.” HELLER, Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou, 1968, p. 126.
58
Cf., v.g., GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de filosofia
política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 8; 139; 154. Esse autor destaca, a
propósito, que os que preconizam o contrário (os comunitaristas) “partem de descrições triviais ('nossas escolhas
mostram-se influenciadas pelo contexto em que vivemos'), ou óbvias ('não podemos sair de nossa realidade')
para chegar a prescrições injustificáveis ('nossas escolhas devem ser influenciadas pelo contexto em que
vivemos')”
Ibid., p. 154.
59
Usando comparação empregada por Dworkin em contexto que, embora diverso, tem alguma semelhança com
o discutido neste ponto do texto, isso seria como “se um zoólogo tivesse provado que os peixes não são
mamíferos e então concluído que na verdade eles não passam de plantas.” DWORKIN, Ronald.
Levando os
direitos a sério
. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 63.
60
“Embora as regras de justiça sejam artificiais, elas não são arbitrárias.” HUME, David. Tratado da natureza
humana volume II, livro III. In: MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184-210, p. 192.
61
MONTESQUIEU, Baron Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 166; e ainda VELLOSO, Carlos Mario da Silva.
Temas de direito público. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 363.
30
lhe permitam ampliar, manter e transferir hereditariamente o seu poder.
62
Daí não ser
adequado dizer que tudo que esse líder determinar, e apenas o que ele determinar, é, por
isso, Direito.
Como observa Arnaldo Vasconcelos, eleger o Estado como produtor único e exclusivo
do Direito violenta
a realidade mesma, que nos oferece o espetáculo da criação diária do Direito por
pessoas individuais e por entes coletivos, tais as instituições. E mais, o que é pior:
atribui-se exagerada dose de politicidade ao Direito, com o que se tenderá a
confundi-lo com o poder, enredando-o nas malhas astuciosas das ideologias
antidemocráticas.
63
O mesmo pode ser dito em relação ao papel dos órgãos estatais destinados a fazer
cumprir as prescrições jurídicas,
64
e mostra que não necessariamente está no Estado (ou em
sua força)
o fundamento do ordenamento jurídico, embora, nos dias de hoje, esteja nele, por
certo, uma forma de implementá-lo e garantir sua efetividade. O Estado é um instrumento
encontrado pela sociedade para organizar a criação e a efetivação das normas de conduta, mas
esse instrumento não tem ampla faculdade para definir-lhes o conteúdo. Isso ressalta sua
inegável importância, mas destaca não ser ele absoluto nesse papel.
65
Em verdade, o direito é
“algo ínsito ao ser do homem, pela razão única e suficiente de sua humana superioridade.
Fora desta situação, todo Direito tenderá a aparecer como uma dádiva, para os bons, ou
castigo, para os maus. Em última instância, uma concessão política, justamente aquilo que ele
não é.”
66
É preciso seguir, portanto, na investigação em torno dos fundamentos do ordenamento
jurídico, que, como se viu, não estão no Estado. É do que cuidam os capítulos seguintes.
62
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 38.
63
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros. 2000, p. 54. No mesmo
sentido: GOMES, Nuno de Sá.
Introdução ao estudo do direito. Lisboa: Jvs, 2001, p. 58-59; HELLER,
Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 225.
64
Norbert Rouland registra que “[a]ssim como a saúde não se define pela doença, o direito não se reduz ao
contencioso. Vivemos a maioria das relações pessoais e sociais às quais o direito dá uma estrutura sem necessitar
recorrer aos tribunais. A maioria dos desacordos conjugais ou das brigas de vizinhança se extingue bem antes
que o juiz seja solicitado a solucioná-los; a maior parte dos contratos é normalmente executada pelas partes. Isso
quer dizer que o direito mais fornece modelos de conduta do que pune comportamentos.” ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 7.
65
Cf., v.g., ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito – introdução e teoria geral. 2.ed. Brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 55.
66
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 113.
31
2 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO EM TERMOS
METAFÍSICOS
Uma das formas possíveis de explicar os fundamentos de um ordenamento jurídico,
apontando-lhe as origens, os elementos diferenciadores (em relação a outros sistemas
normativos) e a razão de ser de sua obrigatoriedade, é recorrendo a elementos metafísicos,
vale dizer, a elementos que não podem ser apreendidos pelos sentidos, situados como estão
além do mundo físico. É o caso, basicamente, das correntes jusnaturalistas,
1
que recorrem ao
Direito Natural, conceito dos mais antigos da filosofia, a respeito do qual houve - e ainda -
muita polêmica e grande evolução semântica.
2
Não obstante, apesar dessa evolução semântica
e da pluralidade de correntes jusnaturalistas existentes, talvez seja possível apontar-lhes um
elemento comum.
2.1 As correntes jusnaturalistas ao longo da história e seu elemento comum
O jusnaturalismo, no dizer de Kelsen, “sustenta que um ordenamento das relações
humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e absolutamente válido e justo, pois
emana da natureza, da razão humana ou da vontade de Deus.”
3
A origem e a natureza desse
ordenamento diferente, mais elevado e absolutamente válido e justo, dependem da visão de
mundo adotada pelos partidários de cada divisão do pensamento jusnaturalista, que varia,
paradoxalmente
4
, de acordo com o tempo e o lugar em que discutida a questão.
5
1
Cumpre notar, contudo, com Nelson Saldanha, que o termo jusnaturalismo “não existiu na Grécia antiga, nem
na linguagem dos pensadores romanos. Ele veio com os
ismos que começaram a aparecer no Ocidente
racionalista depois das obras de Grotius, de Locke, de Voltaire.” SALDANHA, Nelson.
Ordem e
hermenêutica
. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 302.
2
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 5. Por essa razão, aliás, Michel Villey afirma que “o termo direito natural, que não
deixou de mudar de sentido ao longo da história, presta-se hoje para designar as idéias mais disparates.”
VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 310.
3
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 12.
4
É um paradoxo o fato de os autores que postulam a existência de um padrão de justiça universal, absolutamente
válido, divergirem no tempo e no espaço quanto à sua fonte e ao seu conteúdo. Entretanto, é sintomático que, em
todos os tempos e lugares, existam pessoas em busca desse padrão. Como nota Nelson Saldanha, as alterações da
32
No Egito antigo, e nos demais Estados teocráticos da Antiguidade,
6
ainda não se
colocava claramente o tema de um ordenamento diferente do Direito positivo. O Faraó, por
exemplo, não apenas representava a vontade dos deuses, mas ele próprio era um deles. Assim,
pelo menos no período mais antigo da história egípcia,
el derecho es simplemente el
mandato del Faraón, expresión de un imperativo divino. Lo justo es ‘aquello que el rey ama’;
lo injusto, ‘aquello que el rey aborrece’. No hay leyes: el rey establece en cada caso lo justo,
según las circunstancias.
7
Não que, por isso, o Faraó pudesse ser absolutamente arbitrário,
contrariando a tudo e a todos e desrespeitando o que aos seus súditos parecesse correto.
Embora isso eventualmente pudesse ocorrer, o temor do homem diante do desconhecido e sua
tendência a recorrer a criações sobrenaturais diante do que não consegue compreender
racionalmente - aspectos que explicam o fato de, à época, a religião tudo permear -,
influenciavam também os soberanos, que temiam abusar do poder que tinham em face de
possíveis castigos divinos.
8
A questão de um padrão a ser seguido pelo Direito positivo, a partir do qual seria
possível também a sua crítica, aparece de forma mais clara na Antiguidade clássica, o que
parece confirmar a afirmação de Leo Strauss de que onde não filosofia o direito natural é
desconhecido.
9
Com efeito, foi na Grécia antiga, também o berço da filosofia, que se passou a
associar a ideia de Direito, em face da qual o ordenamento positivo seria cotejado e criticado,
a leis inseridas na ordem geral do universo,
10
decorrentes da natureza ou sancionadas pelos
noção de um Direito Natural são “correlatas de contextos histórico-culturais específicos, nos quais ocorre o
predomínio de determinadas formas de pensar.
Ibid., p. 303.
5
MARÍN, Rafael Hernández. Introducción a la teoría de la norma jurídica. 2.ed. Madrid: Marcial Pons,
2002, p. 79.
6
Se trata de un principio que, nacido en Egipto, constituirá un bien común de toda Antigüedad pagana.”
(TRUYOL Y SERRA, Antonio.
Historia de la filosofía del derecho y del Estado - 1. de los orígenes a la baja
edad media. 14.ed. Madrid: Alianza, 2004, p. 35. Aliás, também entre os Hebreus considerava-se que o
legislador tinha participação no poder soberano de Deus. CATHREIN, V.
Filosofía del derecho el derecho
natural y el positivo. Traducción de Alberto Jardon y César Barja. 5.ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1945,
p. 161.
7
Ibid., 2004, p. 26.
8
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p 94.
9
Citada por GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 6. No mesmo sentido, Alexy observa que questionar sobre a natureza do
direito é questionar suas propriedades necessárias, e o conceito de necessidade conduz ao coração da filosofia.
Em suas palavras, “questões sobre a natureza do Direito são questões sobre suas propriedades necessárias. O
conceito de necessidade conduz ao coração da filosofia.” (no original:
questions about the nature of Law are
questions about its necessary properties
. The concept of necessity leads one to the heart of philosophy – tradução
livre - ALEXY, Robert. The nature of legal philosophy.
Ratio juris, [s.l.], v. 17, n.2, p. 156-167, jun. 2004, p.
162). Daí a tentativa do positivismo jurídico, de substituir a filosofia do direito por uma “teoria geral do direito”.
10
CHORÃO, Mário Bigotte. Introdução ao direito – o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 158.
33
deuses.
11
Cite-se, a esse respeito, Sófocles, que celebrizou a ideia através do diálogo entre
Antígona e Creonte em torno das razões que a teriam levado a descumprir as leis que a
proibiriam de enterrar o irmão.
no âmbito da Idade Média europeia, em face da influência da Igreja Católica, o
modelo ou ideal de Direito, a servir de paradigma para o julgamento, a crítica e a
fundamentação da ordem jurídica, era a razão divina.
12
O direito positivo, pelos reis feito,
deveria ser cumprido em qualquer caso, a menos que contrariasse “as leis divinas”, sendo
certo que o poder dos reis tinha fundamento em Deus, que os legitimava através da Igreja.
13
Como registra Del Vecchio, embora a doutrina cristã não tivesse significado político nem
jurídico, mas tão somente moral, seus efeitos sobre essas esferas foram marcantes. Um
primeiro efeito,
de natureza metodológica, consistiu na aproximação do Direito da Teologia. Se o
Mundo é governado por um Deus pessoal, logo se vem a considerar o Direito como
emanado de uma ordem divida e o Estado como instituição divina. Por sua vez, a
vontade divina conhece-se, não pelo raciocínio, mas pela Revelação: antes de ser
demonstrada, deve ser acreditada ou aceita pela fé.
14
Subsequentemente, o iluminismo e o antropocentrismo a ele inerente deslocaram a
fonte desse modelo ou ideal de Direito, que passou a ser o homem, sua razão ou sua
dignidade. Seria dele que decorreria um conjunto de normas que deveria servir de fundamento
e de paradigma ao direito positivo, fundamentando-o e permitindo sua análise crítica. Nos
Séculos XVII e XVIII, “dar-se-ia o amplo movimento de secularização do velho Direito
11
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução de Mário Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São
Paulo: Icone, 1995, p. 14.
12
Não se trata, contudo, de criação da Igreja católica ou de seus filósofos. Foram os hebreus que teorizaram a
distinção entre o governante e Deus, preconizando a necessidade de as práticas (e as leis) do primeiro serem
compatíveis com a vontade do segundo, a ser interpretadas pelos religiosos (no caso, profetas).
Dios es la única
fuente de poder, y el poder sólo es legítimo en cuanto se somete a los designios de Dios, convirtiéndose, de lo
contrario, en tiránico
. La señal externa de esta sumisión fue la unción del rey por el profeta Samuel,
representante de Yahveh
. Los textos correspondientes del Antiguo Testamento hallarán un eco perdurable en el
pensamiento político cristiano, especialmente el de la Edad Media y la época de la Reforma y Contrarreforma
.”
TRUYOL Y SERRA, Antonio.
Historia de la filosofía del derecho y del Estado - 1. de los orígenes a la baja
edad media. 14.ed. Madrid: Alianza, 2004, p. 54.
13
Tomás de Aquino, por exemplo, observava que “entre todas as outras, a criatura racional está sujeita à Divina
Providência da maneira mais excelsa, uma vez que participa de uma porção de providência, sendo providente
tanto para si como para outros. Portanto, ela tem uma porção da Razão Eterna, o que lhe uma inclinação
natural para seu próprio ato e fim; e essa participação da lei eterna na criatura racional é chamada de lei natural.”
AQUINO, Santo Tomás. Suma teológica – primeira parte da segunda parte – tratado sobre a lei – questão 90. In:
MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 49-72, p. 54.
14
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de Antonio José Brandão. 5.ed. Coimbra:
Armênio Amado Editor Sucessor, 1979, p. 60.
34
Natural escolástico, de feição decididamente ontológica. O novo Direito Natural, saído dessa
revolução desencadeada por Hugo Grócio, fixa sua morada no mundo fenomênico dos
homens, lugar dos relativismos.”
15
Vale notar, contudo, que mesmo entre autores medievais, que defendem a existência
de uma lei natural invariável, é possível notar a admissão de certa variabilidade. Tomás de
Aquino, por exemplo, conquanto afirme que “a lei natural, no tocante aos princípios gerais, é
a mesma para todos”, e que “não varia de acordo com o tempo, mas permanece imutável”,
admite que
uma mudança na lei natural pode ser admitida de duas maneiras. Primeiro, por meio
da adição. Nesse sentido, nada impede que a lei natural seja modificada, pois muitas
coisas benéficas para a vida humana foram acrescentadas à lei natural, tanto pela lei
divina como pelas leis humanas.
[...]
[...] a lei natural é totalmente inalterável em seus primeiros princípios; mas em seus
princípios secundários, como dissemos (A. 4), são certas conclusões particulares
próximas dos primeiros princípios, a lei natural não é mudada de maneira tal que
aquilo que ela prescreve não seja certo na maioria dos casos. Mas pode ser alterada
em alguns casos particulares de rara ocorrência, por certas causas especiais que
impedem a observância desses preceitos, como já foi declarado (A. 4).
16
É curioso observar, nesse ponto, que os argumentos invocados por autores positivistas
para demonstrar a inexistência de um padrão de justiça repousam justamente em casos
particulares como aqueles a que se refere Tomás de Aquino.
17
Sem entrar, aqui, ainda, na
discussão relativa ao equívoco de se pretender, porque algo não é absolutamente válido e
objetivo, que seja, por isso, completamente subjetivo e de impossível cognição, o certo é
que a preservação da vida humana, por exemplo, parece ser um dos vetores a orientar a feitura
de todo ordenamento jurídico, por mais variáveis que sejam as suas disposições. O fato de, em
“situações-limite” (aborto, eutanásia, pena de morte etc.) a vida não ser absolutamente
preservada em todos os lugares não significa que não seja na maioria dos casos, como disse
Aquino – protegida.
15
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31.
16
AQUINO, Santo Tomás. Suma teológica primeira parte da segunda parte tratado sobre a lei questão 90.
In: MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes filósofos do direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 49-72, p. 63.
17
Confira-se, por exemplo, KELSEN, Hans. Que es la justicia? Disponível em:
<http://www.usma.ac.pa/web/DI/images/Eticos/Hans%20Kelsen.%20La%20Juticia.pdf>. Acesso em: 11 nov.
2008,
passim.
35
Seja como for, mais recentemente, no início e ao cabo da primeira metade do Século
XX, diversos autores passaram a defender, de modo explícito, a existência de um direito
natural variável. Daí a observação de Arnaldo Vasconcelos, a destacar que
[o]s tipos de Direito Natural concebidos pelos jusfilósofos contemporâneos
ostentam, em suas denominações, vocábulos que demonstram claramente
compromissos sociais de ordem histórica e sociológica. Tem-se, assim, entre outros:
um Direito Natural de conteúdo variável, predicado por Stammler; de conteúdo
progressivo, por Renard; um Direito Natural variável e mutável, formulado por
Coing; flexível e aberto, por Fechner; de conteúdo social, por Leclercq. Dinâmico-
existencial, como postula Dilthey; empírico existencial, na expressão de
Wurtemberger; além de um Direito Natural relativo-existencial, como pretende
Ripollés.
18
Da mesma forma, depois de registrar que o descrédito em que incorreu o
jusnaturalismo, quase logo depois de seu triunfo histórico, origina-se em sua indiferença para
com o tempo e o espaço, José de Oliveira Ascensão observa que
nas pesquisas de ponta modernas em matéria de Direito natural encontramos uma
tendência comum que deve ser acentuada, e que reconduz o Direito natural à
historicidade que é marca da nossa época: a ligação estreita do fundamento do
direito a uma dada situação histórica.
19
É o caso de Ronald Dworkin, que se reporta a princípios que efetivamente
influenciam na interpretação e na aplicação de regras – cuja origem
não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na
compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo
público ao longo do tempo. A continuidade de seu poder depende da manutenção
dessa compreensão do que é apropriado.
20
18
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 45-46.
Conferir ainda: LIMA, Paulo Jorge de.
Dicionário de filosofia do direito. São Paulo: Sugestões Literárias,
1968, p. 238 e ss; GROPPALI, Alessandro.
Introdução ao estudo do direito. Tradução de Manuel de Alarcão.
3.ed. Coimbra: Coimbra editora, 1978, p. 81. A esse respeito, Palombella frisa que o jusnaturalismo “tem
especificado de modos variados sua própria posição em relação à historicidade, renunciando a proclamações não
essenciais de fixidez e imutabilidade dos princípios naturais de justiça.” PALOMBELLA, Gianluigi.
Filosofia
do direito
. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 227.
19
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito – introdução e teoria geral. 2.ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 178-179. No mesmo sentido: MACHADO, Hugo de Brito.
Introdução ao estudo do direito. 2.ed. São
Paulo: Altas, 2004, p. 65. MARÍN, Rafael Hermández.
Introducción a la teoría de la norma jurídica. 2.ed.
Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 81.
20
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 64. Para a definição de Dworkin como um expoente do jusnaturalismo contemporâneo, confira-se:
VIGO, Rodolfo. El antipositivismo juridico de Ronald Dworkin.
Anuario jurídico, XV. México (DF):
Universidad Nacional Autonoma de México, 1988, p. 295-332. Disponível em:
<http://www.bibliojuridica.org/libros/5/2104/13.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2008. Herman Heller, muito antes,
afirmava que princípios morais do direito “constituem a base das normas jurídicas positivas.” HELLER,
Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 266.
36
Na verdade, a ideia de direito natural eterno e imutável pode ser considerada
decorrente de uma concepção, que durante muito tempo foi predominante, de que o universo
teria sido
criado tal como existe hoje, e seria também eterno e imutável. O natural estava
associado à invariância, à permanência. Atualmente, não só o universo, mas as espécies vivas,
as culturas e tudo o mais que nele está inserido são vistos como algo dinâmico. A própria
natureza muda.
21
Por que, então, o direito natural, para ser assim considerado, precisaria ser
imutável?
Não é o propósito desta tese, contudo, aprofundar e exaurir o exame das
particularidades de cada corrente ou vertente do jusnaturalismo.
22
O rápido apanhado que se
acabou de fazer tem o único propósito de destacar que, apesar da evolução apontada, e do fato
de os conceitos antigo e moderno de direito natural serem bastante distintos
23
, o
jusnaturalismo caracteriza-se pelo recurso à existência de normas não positivadas, as quais
serviriam de modelo e dariam fundamento, quando observadas, ao Direito Positivo.
24
Em suma, de forma bastante simples, pode-se dizer que, para o jusnaturalismo, o que o
direito é depende de certa forma do que o direito deve ser,
25
existindo um padrão (sua origem
e sua natureza, mutável ou não, são outras questões) a partir do qual a ordem jurídica positiva,
vigente em determinado tempo e lugar, pode ser julgada.
Não é necessário, insista-se, para caracterizar uma corrente como jusnaturalista, que o
modelo daquilo
que o direito deve ser seja eterno, imutável e invariável, existindo como
realidade independente do homem.
26
Basta que se trate de modelo normativo pressuposto,
21
Esse paralelo é feito por Cathrein, para quem como no hay en la naturaleza especie alguna inmutable, sino
que todo está sometido a mudanza continuada, así tampoco pueden darse em el campo del espiritú conceptos
inmutables y necesarios; tambien ellos están sometidos a un proceso constante de transformación
.”
CATHREIN, V.
Filosofía del derecho el derecho natural y el positivo. Traducción de Alberto Jardon y César
Barja. 5.ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1945, p. 15.
22
Para tanto, confira-se: CATHREIN, V., op. cit., 1945, p. 160-195.
23
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 5.
24
KELSEN, Hans. La fundamentación de la doctrina del derecho natural. Anuario del departamento de
derecho de la Universidad iberoamericana
. Ciudad de México: Escuela de Derecho de la Universidad
Iberoamericana, t. 2, n. 2, p. 251-290, p. 254, 1970.
25
DWORKIN, Ronald. ´Natural law' revisited. University of Florida law review, Flórida, v. XXXIV, n. 2, p.
165-188, p. 165, winter of 1982. Em suas palavras, “o jusnaturalismo insiste que o que o direito é depende, de
alguma forma, daquilo que o direito deve ser.” (no original: "
natural law insists that what the law is depends in
some way on what the law should be
." - tradução livre).
26
Em sentido contrário, desprovido de razão porque divergente do que sustentam diversas correntes
jusnaturalistas contemporâneas, e porque contrário ao que preconizam as doutrinas positivistas, Dimitri Dimoulis
associa o jusnaturalismo à defesa do tal sistema ideal de normas eterno, absoluto e imutável, para, com isso,
afirmar ultrapassado não
essa vertente do jusnaturalismo, mas, em uma indevida generalização, todo ele. Aos
autores que, contemporaneamente, sustentam visões não positivistas do direito, Dimoulis refere-se como
37
idealizado e distinto do direito posto, a servir-lhe de fundamento e de parâmetro de correção.
2.2 Justiça e jusnaturalismo
Como decorrência do apontado no item anterior, uma ordem jurídica deve
fundamentar-se, para teóricos jusnaturalistas, no direito natural. Este consiste em um conjunto
de normas ideal, atribuído a uma origem que, paradoxalmente, se tem modificado ao longo da
História e ao sabor das alterações havidas na visão de mundo alimentada pelo homem, mas
que, de uma forma ou de outra, corresponde à própria ideia de justiça. Ou, por outras
palavras, para os jusnaturalistas, o ordenamento jurídico positivo deve ser justo, sendo essa
característica aferível a partir de sua concordância ou aproximação com o ideal de Direito
representado pelo direito natural.
A principal questão, porém, reside em saber:
quem será o juiz dessa concordância ou
aproximação? Se, para o jusnaturalismo, o que o direito é depende, de certa maneira, daquilo
que o direito deve ser, pergunta-se: daquilo que o direito deve ser para quem? A quem cabe
dizer o conteúdo do direito natural, a fim de, com ele, justificar a observância – ou a
inobservância do direito positivo? Esse o principal problema, que expõe as correntes
jusnaturalistas a duras críticas.
2.3 Principais críticas formuladas ao jusnaturalismo
As correntes jusnaturalistas receberam, e ainda recebem, diversas críticas, que lhes
apontam, basicamente, os seguintes defeitos, todos inter-relacionados:
i) geram insegurança e
incerteza;
ii) são acientíficas; iii) do mesmo modo que permitem a desobediência a uma
ordem jurídica ditatorial, permitem a um ditador desobedecer a uma ordem democrática, para
ele supostamente contrária ao direito natural.
27
“juspositivistas em sentido amplo”. Confira-se, a propósito, DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico
introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 78 e
ss. Parece equivocado dizer-se que os defensores de uma influência da moral (ou de um conjunto de valores
relativamente mutável no tempo e no espaço) sobre o direito sejam “positivistas em sentido amplo”, pois valores
sejam eles relativos ou não não são apreendidos pelos sentidos, sendo, em verdade, nesse sentido,
metafísicos. Além disso, como bem observa McIntyre,
understanding the world of morality and changing it are
far from incompatible tasks
. The moral concepts wich are objects for analysis to the philosophers of one age
may sometimes be what they are partly because of the discussions by philosophers of a previous age
.”
McINTYRE, Alasdair.
A short history of ethics. New York: Touchstone, 1996, p. 2-3.
27
LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Tradução de Manuel Alarcão. Coimbra: Almedina, 1974, p. 167.
38
Esses defeitos decorreriam do fato de não ser supostamente possível determinar, de
forma objetiva, o conteúdo da tal ordem suprapositiva paradigmática ou ideal, vale dizer, do
direito natural. Daí colocar-se a questão apontada no item anterior: quem é autorizado a dizer
o conteúdo do direito natural e julgar o grau de correspondência do direito positivo para com
ele?
Aqui parece acontecer, no âmbito do jusnaturalismo, o mesmo equívoco verificado em
discussões em torno das formas de governo. Na mais clássica delas, Platão defende que o
melhor governo seria aquele liderado por sábios, no que ele até poderia
28
estar, em tese,
correto. A questão é que sua proposta tangencia o principal problema: quem será considerado
sábio e a quem caberá a determinação dos sábios incumbidos de governar? De igual forma, a
afirmação de que o ordenamento positivo deve fundar-se em um modelo ideal de direito, do
qual depende sua correção, tangencia a questão: quem determinará se o direito positivo está,
ou não, conforme esse modelo ideal?
Portanto, dizer simplesmente que o fundamento do direito positivo reside no direito
natural desloca o problema. E esse deslocamento muitas vezes não contribui para tornar
adequado (diria o leitor: para quem?) o ordenamento jurídico. Afinal, quem, então, tem a
autoridade para determinar o conteúdo do direito natural? Se se diz que a lei humana tem de
compatibilizar-se com a divina, concluir-se-á, não raro, que ela se terá de compatibilizar com
a vontade da igreja.
29
Se o parâmetro é a “natureza”, o padrão seria a opinião dos cientistas?
Quais? Talvez por isso, o “primeiro Radbruch” dizia, do direito natural eterno e invariável, a
ser descoberto e não criado pelo homem, tratar-se de um equívoco (ainda que, em suas
palavras, o equívoco “mais frutífero que se possa imaginar”), pois
[j]á a mesma época e o mesmo povo apresentaram lado a lado opiniões divergentes
sobre a meta e, desse modo, sobre a configuração da ordem jurídica, opiniões que
28
Poderia, porque sua proposta pressupõe não apenas a prévia determinação dos sábios (que é o grande
problema, por ela tangenciado), mas igualmente ignora que os sábios, por serem humanos, podem abusar do
poder que lhes for dado. Daí porque Kant defende precisamente o contrário de Platão, afirmando não ser “de se
esperar que reis filosofem ou que filósofos se tornem reis, mas tampouco é de se desejar, porque a posse do
poder corrompe inevitavelmente o livre julgamento da razão.” KANT, Immanuel.
À paz perpétua. Tradução de
Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 56.
29
“O primeiro legislador é Deus (De Deo legislatore); a suprema lei, a lei divina, da qual a lei natural ‘inserida
em nossos corações’ é uma dependência, e as leis humanas, prolongamentos. O que autoriza os teólogos a
arrogar-se um poder de alta vigilância sobre a ciência do direito (cf. o Prefácio orgulhoso do De legibus).”
(VILLEY, Michel.
O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 132). E isso, nem é preciso lembrar, nem sempre conduziu a resultados
satisfatórios, pois, como lembra Voltaire, “muito frequentemente os teólogos começam por dizer que Deus foi
ultrajado quando não concordamos com eles.” VOLTAIRE.
Cartas filosóficas. Tradução de Márcia Valéria
Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 55.
39
pareciam todas igualmente ‘naturais’ a seus defensores e entre as quais a ciência não
tem a capacidade de decidir com validade geral – sem falar na transformação
histórica e na diversidade nacional das concepções do direito.
30
Por outras palavras, muitas das ideias jusnaturalistas não não resolvem a questão,
mas, às vezes, podem até mesmo agravar os problemas que visam a resolver. Admitir a
possibilidade de se afastar a ordem positiva em face de uma ordem ideal, mais justa, pode ser
muito bom, mas pode também ser muito ruim. Tudo dependerá da qualidade dessa ordem
positiva, da qualidade da tal ordem mais justa e, especialmente, do autor desses julgamentos
todos.
31
Além disso, a ideia de um ordenamento jurídico dotado de validez universal e eterna é
apontada como um grande equívoco, desmentido pela própria evolução do que se compreende
por justo ao longo da História e pela mudança verificada nesse padrão em sociedades, ainda
que de uma mesma época, situadas em lugares diferentes do planeta.
Quanto a esse último aspecto, as críticas de Tobias Barreto são incisivas. Respondendo
aos que registram os avanços do direito positivo ao longo dos tempos, mas preconizam que
este esteja sempre de acordo com o direito natural, eterno e universal, afirma que ser “eterno e
conjuntamente sujeito às leis do tempo e do espaço é alguma coisa de semelhante a... viva a
república, e o nosso rei também.”
32
A ironia é divertida, mas revela desconhecimento do que é
a busca por um ideal ou modelo de perfeição. Hegel, a esse respeito, observa que
exigir de um código a perfeição, querer que constitua algo de absolutamente acabado
e não admita qualquer acréscimo [...] são erros que assentam no desconhecimento da
natureza dos objetos finitos, como seja o direito privado, onde a exigida perfeição
constitui uma aproximação perpétua.
33
Barreto afirma ainda que, de fato, as regras que disciplinam a vida em sociedade não
são dadas pela natureza, de forma independente da ação humana. Com isso, evidentemente,
30
RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Tradução de Vera Barkow. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 22. Diz-se “primeiro Radbruch” por conta da apontada conversão que teria havido no seu
pensamento, depois da Segunda Guerra Mundial, do positivismo para o jusnaturalismo. Parece, contudo, que se
trata muito mais de uma questão de ênfase. No primeiro Radbruch estão os elementos que, depois da Guerra,
foram explicitados e aprofundados pelo segundo.
31
A título de exemplo, Arthur Kaufmann registra que, durante o nazismo, não se perverteu “apenas o
positivismo; também se abusou da idéia do direito natural, ao recusar aplicação a leis vigentes em nome dum
‘direito natural étnico’.” KAUFMANN, Arthur.
Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 45.
32
BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 518.
33
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vitorino. São
Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 192.
40
está a insurgir-se contra uma ideia de direito natural imutável, eterno e independente do
homem,
34
quando diz que um “direito natural tem tanto senso, como uma moral natural, uma
gramática natural, uma ortografia natural, uma civilidade natural, pois que todas estas normas
são efeitos, são inventos culturais.”
35
Precisamente por isso, prossegue ele,
[...] nunca veio ao espírito de ninguém a singular idéia de uma indústria, uma
cerâmica, uma arte natural, significando um complexo de preceitos, impostos pela
razão, ou inspirados por Deus, para regular as ações do homem, no modo de exercer
o seu trabalho ou de fabricar os seus vasos, ou de construir seus artefatos. Seria esta
uma idéia supinamente ridícula.
É isto mesmo, porém, o que se dá com relação ao direito.
36
Tobias Barreto não nega, contudo, a presença da razão humana a justificar tais ações e
a definir-lhes as regras. Combate, tão somente, o suposto caráter imutável e apriorístico
37
de
tal conjunto de normas ideais,
dado ao homem e não construído por ele:
Assim, para limitar-nos a poucos exemplos, a civilidade tem regras; quem as
descobriu? A dança tem regras, quem as descobriu? Ninguém ousará negar a
presença da razão em todas elas; mas também ninguém ousará afirmar que haja um
conceito a priori de civilidade, nem um conceito a priori da dança, ou de outra
qualquer arte. De onde vem, pois, o apriorismo do direito?
38
A crítica de Tobias Barreto não atinge a todas as correntes jusnaturalistas, mas apenas
aquelas que veem o direito natural como ente abstrato, imutável e eterno, dado ao homem e
não construído por ele.
39
Suas observações incorrem no equívoco de considerar antitéticos os
34
Em suas palavras, dizer “que o direito é um produto da cultura humana importa negar que ele seja, como
ensinava a finada escola racionalista e ainda hoje sustentam seus póstumos sectários, uma entidade metafísica,
anterior e superior ao homem.” BARRETO, Tobias.
Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 132.
35
Ibid., 2000, p. 32. Por isso, diz-se que o positivismo jurídico o sociológico, e não o normativo “vibrou o
golpe mais contundente nos critérios apriorísticos que identificavam o Direito com princípios ideais absolutos.”
(MARQUES NETO, Agostinho Ramalho.
A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 162),
tendo, por outro lado, o grande mérito de não o confundir ou identificar inteiramente com a produção normativa
estatal imposta coativamente.
36
BARRETO, Tobias, op. cit., 2000, p. 90.
37
Algum tempo depois, Pontes de Miranda, também da “escola do Recife” fundada por Tobias Barreto, escreve,
nos mesmos termos, que “não há senão a variabilidade das leis, como só existe a mutabilidade dos costumes, das
usanças e das formações proloquiais, que se colorem e se embotam mais tarde, que se desvanecem e se sucedem,
por mercê da mutação perpétua, que é condição mesma da vida.” MIRANDA, Pontes de.
À margem do direito.
Campinas: Bookseller, 2002, p. 104.
38
BARRETO, Tobias, op. cit., 2000, p. 146.
39
Essa é também a caricatura do jusnaturalismo que, ainda hoje, alguns de seus opositores desenham, para lhes
facilitar a crítica. É o caso, por exemplo, de Dimitri Dimoulis para quem “o termo jusnaturalismo é insatisfatório,
pois a maioria dos moralistas modernos não acredita na existência de um direito superior, imutável e distinto do
direito positivo.” (DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 86). Na verdade, sem pretender aqui defender uma
ou outra dessas correntes, não se pode deixar de reconhecer a existência de diversas correntes jusnaturalistas que
não preconizam o mencionado caráter superior, eterno e imutável do direito natural (VASCONCELOS, Arnaldo.
41
conceitos de natureza e de cultura, como se fossem contrários, quando em verdade são
complementares.
40
Não atingem, por isso, a afirmação de que, para o jusnaturalismo, o que o
direito é depende de certa forma do que o direito deve ser
41
, ou “que a obrigatoriedade da
norma jurídica decorrerá, necessariamente, da adequação de seus preceitos ao sentimento de
justiça prevalecente em cada época”,
42
pois direito que deve ser e sentimento de justiça
prevalecente em cada época não precisam necessariamente ser eternos e invariáveis, nem
deixam de ser, pelo fato de não estarem positivados, também decorrentes do elemento
cultural.
43
Basta que sejam diferentes do direito positivo e lhe sirvam de modelo. Alan
Gewirth, por exemplo, afirma, sobre o jusnaturalismo, que
Natural-law thinkers have been concerned to determine the moral limits which
cannot be transgressed by positive laws if they are to be just, and the factual limits
which cannot be transgressed if they are to be effective.
[…]
Now whenever a legal thinker begins to reflect on the moral purposes for which laws
are instituted or the factual limits which they cannot transgress, he is, in the sense
just presented, a natural-law thinker.
44
O exemplo das regras de gramática, usado por Tobias Barreto para dizer que uma
gramática natural é tão sem sentido quanto um direito natural, serve perfeitamente para
ilustrar essa ideia. Reconhecer que a gramática é criação humana, com efeito, não significa ser
ela desprovida de finalidade (permitir a comunicação com o uso de determinada língua, o que
deve ser sempre considerado quando de seu exame) e tampouco significa que as pessoas que
Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31). Talvez, aliás, a divergência entre
jusnaturalistas e positivistas sempre tenha sido menor do que se imagina, pois tanto os partidários de correntes
positivistas como os que se dizem jusnaturalistas acusam-se uns aos outros de criticar uma caricatura da teoria
que defendem, caricatura esta que teria defeitos que a teoria original não teria. Carrió, por exemplo, acusa
Dworkin, no debate deste com Hart, de haver
creado o inventado su blanco. La modalidad de positivismo
jurídico contra la cual argumenta, no existe
.” CARRIÓ, Genaro. Notas sobre derecho y lenguaje. 4.ed. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 369.
40
Nesse sentido, Miguel Reale observa que “entre natureza e cultura não a antítese, apontada por Tobias
Barreto ainda condicionado pelos parâmetros fisicalistas do século XIX, mas sim complementaridade.” REALE,
Miguel.
Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 15.
41
DWORKIN, Ronald. ´Natural law' revisited. University of florida law review, Flórida, v. XXXIV, n.2, p.
165-188, winter of 1982, p. 165.
42
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 107.
43
Por conta disso, Djacir Menezes indaga: “mas o Direito Natural seria isso que Tobias Barreto descrevia?”
MENEZES, Djacir.
Tratado de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 184.
44
GEWIRTH, Alan. The quest for specificity in jurisprudence. Ethics, Washington, v. 69, n. 3, p. 155-181, p.
171, apr. 1959. Em uma tradução livre: “Os teóricos do direito natural se têm preocupado em determinar limites
morais que não podem ser transgredidos por leis positivas, se se pretender que estas sejam justas, e limites
factuais que não podem ser transgredidos, se se esperar que elas sejam eficazes. [...] Agora, sempre que um
teórico do direito começa a refletir sobre os objetivos morais para os quais as leis são instituídas ou os limites
factuais que elas não podem ultrapassar, ele é, no sentido que se acabou de apresentar, um teórico do direito
natural.”
42
usam essa língua não possam fazer com que
a gramática que é sofra a influência daquilo que
elas consideram a
gramática que deveria ser.
45
As evoluções por que passam as gramáticas -
que raramente decorrem da decisão isolada de uma autoridade dotada de poder normativo
sobre as regras pertinentes ao uso da língua configuram demonstração suficiente do que se
está aqui a dizer.
46
Tanto é assim que a crítica de Tobias Barreto não consegue afastar, como é próprio
dos positivismos em suas mais variadas correntes, as considerações valorativas do âmbito do
Direito e de sua ciência. Não consegue, por outras palavras, afastar a ideia de que
o que o
direito deve ser
tem sim influência sobre o que o direito é. Para confirmá-lo, basta observar
que Tobias reconhece que “no imenso maquinismo humano, o direito figura também, por
assim dizer, como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da
natureza.”
47
Ora, torcer e ajeitar em que sentido? Para que haja “proveito da sociedade”, o
que deve ser torcido, o que deve ser ajeitado e o que deve ser mantido no homem da
natureza?
48
É evidente que tais julgamentos envolvem juízos de valor, de certo e errado, bom
e ruim, desejável e indesejável, justo e injusto, que a ciência positiva do direito, ainda que em
sua vertente sociológica, supostamente atenta apenas aos fatos, tangencia ou ignora, mas que,
não obstante, continuam presentes.
49
45
Para uma comparação entre a língua e a moral, e a variação de ambas no tempo e no espaço, confira-se:
LUKES, Steven.
Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 56 e ss.
46
A comparação entre a jurisprudência - assim entendido o conhecimento do Direito - e a gramática e a música
havia sido sugerida por Cícero, conforme se observa em VILLEY, Michel.
O direito e os direitos humanos.
Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 68.
47
BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 102.
48
A mesma crítica pode ser dirigida, atualmente, à chamada “análise econômica do direito”, da qual Richard
Posner é um dos mais destacados expoentes. Segundo essa escola, o direito deve ser elaborado, interpretado e
aplicado de sorte a “maximizar a riqueza social”. o se diz, contudo, por que a maximização da riqueza seria
um objetivo digno de ser perseguido. Para essa crítica, confira-se: DWORKIN, Ronald.
Uma questão de
princípio
. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 356. Na verdade, a riqueza é
apenas um meio (talvez o mais importante deles, mas, ainda assim, um meio) para que se ampliem as liberdades
das pessoas, liberdades com as quais estas poderão perseguir os objetivos que lhes pareçam mais caros. Para uma
crítica à aplicação da “análise econômica” ao campo hermenêutico, confira-se: TÔRRES, Heleno Taveira.
Direito tributário e direito privado – autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo: RT, 2003, p.
213 e ss. Voltar-se-á ao tema no item 5,
infra.
49
H. Batiffol percebe essa insuficiência do positivismo sociológico com muita propriedade. Em suas palavras,
“[o] próprio Durkheim distinguiu na vida social o normal e o patológico, devendo ser o primeiro protegido e o
último combatido. Ele acreditou poder limitar essa concessão perigosa assimilando, pelo menos ocasionalmente,
o normal ao geral. É demasiadamente claro, entretanto, que costumes ou regras jurídicas que levam a resultados
desastrosos mal podem ser considerados normais, pois mais gerais que sejam. Por exemplo: quando a legislação
relativa às habitações faz cessar a construção, esse fato pode ser normal não se considerando a sua
generalização depois da primeira guerra, ante a falta de residência mas seu resultado apresenta um problema
cuja solução depende de uma série de escolhas e não de simples verificação do estado de coisas. Essas escolhas
são feitas em função das idéias sobre o que essa ação legislativa deve procurar obter, ou seja, sobre o que a
sociedade deve tender a tornar-se para que a vida social não apenas exista, mas seja justa e salutar.” BATIFFOL,
43
Esse
direito que deve ser, quer seja chamado de ideal, natural, moral, de ideia de
justiça, de pretensão de correção, ou de qualquer outro nome ou expressão, é um modelo de
direito situado no plano da possibilidade. É aquele direito que alguém, por ser dotado de
racionalidade, como toda criatura humana, e, por conseguinte, da aptidão de diferenciar o
real
do possível, imagina que poderia ser melhor que o direito vigente. Conquanto esse direito
ideal possa exercer influência sobre o direito positivo, tanto no plano da elaboração, como no
plano da interpretação, da observância e da aplicação de suas disposições, vale ressaltar que
eles o direito posto e o que lhe serve de modelo -
não se confundem. É um despropósito,
portanto, outra crítica, também dirigida ao direito natural, segundo a qual este “não existe”
apenas porque não pode ser invocado perante os tribunais. Essa afirmação, como parece claro,
além de incorrer no equívoco de reduzir o direito ao direito judicial,
50
pretende que o direito
ideal, ou natural, só seja direito se tiver todas as características do direito positivo, o que é um
contrassenso. A completa identidade entre ambos, essa sim, faria com que não se pudesse
falar em dois, mas em um só, o positivo. Por outro lado, além de essa impossibilidade de
invocação não ser necessariamente verdadeira (pois aquilo que o
direito deve ser, na visão do
julgador, interfere de algum modo na forma como este vê e aplica o
direito que é), é evidente
que o modelo, situado no plano da idealidade, não pode ter as mesmas características do
produto acabado, situado no plano da concretude e para o qual aquele serviu e continuará
servindo - de paradigma.
51
Seria como pretender que um projeto de casa, imaginado por um
arquiteto, tivesse já um quarto no qual se pudesse dormir ou uma cozinha na qual fosse
possível preparar o almoço; ou defender, como é o caso da crítica positivista em questão, que,
por que o projeto não tem essas características, ele não existe em absoluto, devendo ser
ignorado.
2.4 Por que a questão relativa ao direito natural insiste em reaparecer?
Conquanto possam ter sua parcela de procedência, as críticas ao jusnaturalismo
resenhadas no item anterior não fornecem a resposta para as perguntas formuladas no início
H. A filosofia do direito. Tradução de Neide de Faria. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968, p. 56.
50
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 46 e ss.
51
A observação de Nelson Saldanha, nesse ponto, é precisa. Diz ele que o Direito Natural não existe como um
sistema a mais, ou como um
outro Direito, duplicado em relação ao positivo, mas sim “como uma construção
provinda de um pensamento, insatisfeito com a imperfeição das normas positivas ou convicto das bases racionais
e ‘universais’ que elas devem ter. Cada uma das grandes formulações do jusnaturalismo corresponde deste modo
a uma visão dessas bases, ou daquela imperfeição.” Essa atitude, diz ele, é “sempre precária mas sempre
significativa, discutível mas necessária.” SALDANHA, Nelson.
Ordem e hermenêutica. Rio de Janeiro:
Renovar, 1992, p. 305-306.
44
desta tese. Não dizem o que fundamenta a ordem jurídica, limitando-se, quando muito, a
afirmar o que não a fundamenta. E, mesmo assim, não esclarecem um aspecto do problema:
por que, então, o direito natural insiste em reaparecer?
Por outras palavras, por qual razão, sobretudo em períodos de crise, a invocação do
direito natural é verificada, por maiores que sejam as críticas a ele feitas?
52
Por mais
convencidos que estivessem os juristas da segunda metade do Século XIX a respeito da
decadência do jusnaturalismo,
53
este ressurgiu pouco tempo depois, ao cabo da Segunda
Guerra Mundial e da verificação de até onde o direito positivo, assim entendido tudo o que é
coativamente imposto por um Estado, pode chegar.
54
Não por outra razão, aliás, diz-se que,
por mais contundentes que sejam as críticas positivistas, de forma recorrente se assiste “à
ressurreição desse cadáver do direito natural que nunca se termina de enterrar nem de
exumar”.
55
Arnaldo Vasconcelos, a propósito, observa que, fosse o Direito positivo justificável
em si e por si, como pretendido pelos positivistas, independentemente do chamado Direito
natural, “sem serventia de ordem prática, deixaria este de interessar e, dentro em pouco,
ninguém lhe lembraria a existência passada, nem lhe lamentaria a morte tardia. Não foi o que
se deu, porém.”
56
Em termos semelhantes, Brian Bix observa que “enquanto algumas correntes
de pensamento feneceram em uma questão de décadas, pelo contrário ao menos uma
52
Michel Villey registra, a propósito da Escola do direito natural, que “por mais que se a condene, ela renasce
das cinzas. É um 'cadáver que não se cansa de ressuscitar' (H. Batiffol).” VILLEY, Michel.
Filosofia do direito.
definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 310.
53
Windscheid dizia ter-se acabado “o sonho do direito natural” (WINDSCHEID, B. Über Recht und
Rechtswissenschaft (1854).
Gesammelte Abhandlungen. Leipzig: Dunker & Humblot, 1904, p. 9 apud
KERVÉGAN, Jean-François. Hegel, Carl Schmitt o político entre a especulação e a positividade. Tradução de
Carolina Huang. Barueri: Manole, 2006, p. XVII), enquanto Karl Bergbohm dizia ser ele uma “erva daninha que
deve ser arrancada sem piedade” (BERGBOHM, Karl. Jurisprudenz und rechtphilosophie. Band 1.
Das
naturrecht der gegenwart
. Leipzig: Dunker & Humblot, 1892, p. 118 apud KERVÉGAN, Jean-François, op.
cit., 2006, p. XVIII). Especificamente sobre a crítica de Bergbohm, Cathrein observa: “no creemos, sin embargo,
que haya alcanzado su intento, sino que más bien su obra pudiera servir de apoyo al derecho natural
. El mismo,
en su guerra contra el derecho natural, ha apoyado el hecho, según ampliamente demuestra, de que aun
aquellos mismos que quieren combatirlo caen siempre de nuevo em sus redes; queriendo destruído, rinden
homenaje inconscientemente; porque el derecho natural ‘se nos mete por todos los poros’
. ¿No es ya esto una
prueba clara de que el derecho natural tiene raíces mucho más profundas e indiscutibles de lo que Bergbohm
parece suponer?”
CATHREIN, V. Filosofía del derecho el derecho natural y el positivo. Traducción de
Alberto Jardon y César Barja. 5.ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1945, p. 195.
54
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 4.
55
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 104. Miguel Reale, em termos análogos, já dizia que o direito natural “ressurge
constantemente das cinzas a que seus adversários pensavam tê-lo reduzido.” REALE, Miguel.
Direito
natural/direito positivo
. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 2.
56
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 102.
45
abordagem da teoria do direito, a teoria do direito natural, tem estado presente literalmente
por milênios, e ainda permanece vibrante.”
57
Isso acontece por uma razão muito simples, e que não está associada, necessariamente,
à procedência desta ou daquela corrente jusnaturalista, as quais, registre-se, tampouco estão
aqui a ser defendidas.
De fato, como explicado no início desta tese, o homem é animal que se distingue dos
demais pelo fato de diferenciar o
real do possível. Tem a aptidão de conhecer o direito que
existe e de imaginar o direito que poderia existir. Essa sua característica, inafastável por
decorrer de sua natureza de ser racional, confere-lhe a faculdade de julgar. Julgar se existe
alguma possibilidade, a ser implementada, que lhe parece melhor que a realidade atual.
58
Dessa forma, é impossível suprimir do homem a capacidade de, diante de uma ordem jurídica,
imaginar-lhe um conteúdo diferente; ou de considerar que
o que o direito é depende de certa
forma do que o direito deve ser
59
, pois o valor dado por cada um ao direito que é depende da
adequação deste
direito que é à ideia que cada um tem do direito que deve ser.
Além de o
direito que deve ser interferir na forma como se compreende o direito que
é
, no âmbito do processo de interpretação deste, não se pode negar que, quanto maior a
adequação entre o direito real, posto, e o direito ideal, desejável, maior será o empenho para
cumprir e fazer com que se cumpra o primeiro.
60
E, quanto menor for essa adequação, maior
57
No original: While some schools of thought have faded in a matter of decades, by contrast at least one
approach to legal theory, natural law theory, has been around literally for millennia, yet remains vibrant
.”
(BIX, Brian H. Legal Positivism. In: GOLDING, Martin P.; EDMUNDSON, William A.
The blackwell guide
to the philosophy of law and legal theory
. Oxford: Blackwell, 2006. p. 29-49, p. 29). É preciso acrescentar,
contudo, que a teoria do direito natural, por todo esse tempo pelo qual permaneceu vibrante, passou por
transformações importantes, adaptanto-se às críticas que lhes eram desferidas e às novas circunstâncias.
58
Daí porque, diz Vicente o, dê-se “ao direito natural esta denominação ou aquela, atribua-se-lhe um
fundamento ou outro, amplie-se ou restrinja-se o seu conteúdo, o certo é que um direito natural existe, e a ele,
consciente ou inconscientemente, sempre se recorre, ora quando se investigam o fundamento e a legitimidade da
regra de direito e sua tendência ao aperfeiçoamento, ora quando os direitos inerentes à natureza, à dignidade e à
personalidade do homem periclitam, ameaçados pela força, nos Estados que, em seu poder de editar normas
jurídicas, não se reputam sujeitos a limitação de qualquer espécie.” RÁO, Vicente.
O direito e a vida dos
direitos
. 5.ed. São Paulo: RT, 1999, p. 85.
59
DWORKIN, Ronald. ´Natural law' revisited. University of florida law review, Flórida, v. XXXIV, n.2, p.
165-188, winter of 1982, p. 165.
60
Merece registro, aqui, o fato de que H. Hart, conquanto positivista, admite que “para um sistema de regras ser
imposto pela força sobre quaisquer pessoas, deve haver um número suficiente que o aceite voluntariamente. Sem
a cooperação voluntária deles, assim criando
autoridade, o poder coercivo do direito e do governo não pode
estabelecer-se. […] Se o sistema for justo e assegurar genuinamente os interesses vitais de todos aqueles de
quem pede obediência, pode conquistar e manter a lealdade da maior parte, durante a maior parte do tempo, e
será consequentemente estável. Pelo contrário, pode ser um sistema estreito e exclusivista, administrado segundo
os interesses do grupo dominante, e pode tornar-se continuamente mais repressivo e instável, com a ameaça
latente de revolta.” (HART, Herbert L. A.
O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2001, p. 217-218) Com isso, ele reconhece tanto que o direito não se pode impor
apenas
46
será o estímulo para se descumprir ou, na melhor das hipóteses, tentar alterar o direito
existente.
Não se trata, destaque-se, de algo próprio do Direito enquanto objeto ou da ciência
jurídica enquanto ramo do conhecimento. Do mesmo modo que, diante de um edifício, o
arquiteto pode imaginar outro mais alto, mais resistente, de construção menos custosa ou mais
seguro; diante de um remédio, o médico ou o farmacêutico podem imaginar outro mais eficaz,
dotado de menores efeitos colaterais ou mais acessível ao consumidor; diante de um
computador, o engenheiro eletrônico pode imaginar outro mais rápido, mais barato e mais
estável; também o jurista (e qualquer cidadão que com ela se depare) pode, diante de uma
ordem jurídica, imaginar outra que, em sua concepção, seria mais adequada à promoção de
seus fins, os quais, por mais subjetivos e imprecisos que possam parecer, sempre serão por
cada um idealizados e alimentados, ainda que com significados não necessariamente
convergentes.
Como toda obra humana, o Direito é examinado à luz de seus fins. Sem entrar, ainda,
na questão de saber quais são eles, o que importa é que, quando o direito posto não realiza os
fins cuja realização as pessoas esperam, distancia-se daquilo que essas pessoas consideram
que ele, o direito posto, deve ser. Essa distância não faz com que as pessoas não se sintam
impelidas a cumprir as prescrições jurídicas, mas, em grau extremo, faz com que deixem
mesmo de reconhecer aquele objeto como Direito.
E não se trata, mais uma vez, de algo próprio da ciência jurídica, que teria esse
fantasma metafísico a lhe assombrar. Nada disso. Remédios que não curam, facas que não
cortam nem furam, aviões que não voam, carros que não andam, rádios que não emitem sons
e canetas que não riscam, por exemplo, o que são? O mesmo talvez possa ser dito do Direito
que não realiza os fins para os quais se entende que ele foi criado.
Por mais subjetiva que possa ser a ideia de justiça, pode-se dizer que cada indivíduo
alimenta uma e espera sua realização pelo Direito. Dessa forma, diante de ordem jurídica
demasiadamente contrária àquilo que lhe parece que ela deveria ser, o homem passa a ter cada
vez mais elementos de convicção para descumprir os seus preceitos ou pugnar por sua
modificação. Será isso, esse padrão à luz do qual se faz tal julgamento, o direito natural? Pode
com o uso da força, como que sua eficácia depende da concordância de seu conteúdo com “os interesses vitais de
todos aqueles de quem pede obediência”, vale dizer, o conteúdo das normas do direito posto se deve aproximar
do conteúdo que aqueles de quem pede obediência acham que ele
deveria ser.
47
até existir outra forma de explicar essa realidade, bem como um termo mais apropriado (ideia
de direito, senso de justiça, direito justo, pretensão de correção etc.) para designar esse direito
ideal,
61
mas não parece possível afastá-lo. O que se faz, quando se tenta, é apenas ignorá-lo,
pois o fato de ele não existir de forma apriorística, objetiva e independente da criatura
humana, não quer dizer que ele não possa existir enquanto ideal por ela imaginado.
61
Também para Simone Goyard-Fabre, “direito natural e ideal confundem-se.” (GOYARD-FABRE, Simone. Os
fundamentos da ordem jurídica
. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 38). No
mesmo sentido, referindo-se a um ideal de direito (não eterno e não imutável), existente na consciência de todos,
a servir de paradigma para o direito posto: GROPPALI, Alessandro.
Introdução ao estudo do direito. Tradução
de Manuel de Alarcão. 3.ed. Coimbra: Coimbra editora, 1978, p. 79-81.
48
3 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO PARA O
POSITIVISMO JURÍDICO
É desnecessário explicar que, como forma antitética de dar resposta às mesmas
questões, ligadas à identidade e ao fundamento de um ordenamento jurídico, existem teorias
que preconizam a consideração apenas do direito posto, ou positivado, ausente de
considerações a respeito de como este direito deveria ser ou de qual seria sua finalidade. É o
que se costuma chamar, genericamente, de positivismo jurídico.
Tal como as correntes jusnaturalistas, também as positivistas têm as mais variadas
ramificações e graduações,
1
havendo, não obstante, um elemento comum, sendo precisamente
este o ponto que as assemelha entre si e as faz diferentes, todas, das ideias jusnaturalistas.
Trata-se da rejeição à “metafísica”. Antes de examinar tais questões, contudo, cumpre fazer o
registro de que, nos itens seguintes, não será feito exame detalhado do positivismo jurídico,
suas correntes, divergências internas, características etc. Essa forma de pensamento será
analisada apenas até onde isso for necessário para demonstrar como o ordenamento jurídico é
fundamentado pelos seus partidários, as razões dessa forma de fundamentação e suas
possíveis deficiências.
3.1 O que se entende por positivismo jurídico?
Em geral, diz-se da abordagem positivista que ela “deve limitar-se ao direito tal como
está ‘estabelecido’ ou dado, e deve abster-se de entrar em valorações éticas ou de ter em conta
as implicações das normas nas realidades sociais.”
2
Para o juspositivista, diz-se, o único
1
Por conta disso, Genaro Carrió afirma que a expressão positivismo jurídico es intolerablemente ambigua”.
CARRIÓ, Genero R.
Notas sobre derecho y lenguage. 4.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 321.
2
LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Tradução de Manuel Alarcão. Coimbra: Almedina, 1974, p. 151.
No mesmo sentido: BOBBIO, Norberto.
O positivismo jurídico. Tradução de Mário Pugliesi, Edson Bini e
Carlos Rodrigues. São Paulo: Icone, 1995, p. 131; DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico introdução a
uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 67-68. Daí dizer-se
que, para o positivismo, entendido como uma forma de
imanentismo jurídico, existe um direito, que é o
positivo, e que se justifica pela sua mera existência, “sem possibilidade de apelo a qualquer instância superior.”
CHORÃO, Mário Bigotte.
Introdução ao direito – o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 63.
49
direito é o direito positivo, ao qual o estudioso deve limitar sua atenção. Interessa apenas
saber como o direito
é, e não como ele deveria ser.
3
Embora se reconheça, notadamente entre
os positivistas mais moderados, a interferência da moral sobre o direito, não se reconhece a
existência de uma “conexão necessária” entre ambos. Nas palavras de Herbert Hart, “não é
em sentido algum uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas
exigências da moral, embora de facto o tenham frequentemente feito.”
4
Essa, contudo, é a concepção do positivismo em sua vertente normativista, que,
embora seja a atualmente mais difundida, não é a única. O positivismo se limita ao
dado, ou
ao
posto, vale dizer, à realidade do mundo sensível, realidade que pode ser a normativa ou a
factual.
5
O que importa, para que o estudo seja considerado positivista,
6
é que, quer atente
para fatos (positivismo sociológico) ou para normas (positivismo normativo), recuse-se a
considerar os
fins do direito,
7
pois estes não podem ser apreendidos pelos sentidos. É o que
explica Arthur Kaufmann:
O positivismo jurídico empírico desenvolvido na segunda metade do século XIX
(todo o positivismo quer limitar-se ao ‘positivamente dado’ e sobretudo banir a
metafísica) concebe o Direito como um facto da realidade sensível, seja como facto
do mundo interior (positivismo jurídico psicológico;
Ernst Rudolf Bierling) seja
como facto do mundo exterior (positivismo jurídico sociológico;
Rudolf v. Jhering
no seu período tardio, Max Weber). Este positivismo jurídico empírico considerava-
se como a verdadeira ‘ciência’ do direito e, por certo, precisamente pelo facto de
proceder empiricamente, isto é, do mesmo modo que as ciências da natureza. Ao
invés, na jurisprudência dogmática, que procede de modo normativo (valorativo),
não estaria presente a ciência, mas sim a política (postulado da neutralidade
valorativa da ciência).
Precisamente do lado oposto,
Hans Kelsen (1881-1973), um dos mais importantes
filósofos do direito do nosso século, fundador da ‘teoria pura do direito’ mas
também um notável cultor da lógica das normas.
8
3
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 1; BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luis Roberto (Org.).
A nova
interpretação constitucional
. ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 2-47, p. 23; DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p.70; GOYARD-FABRE, Simone.
Os fundamentos
da ordem jurídica
. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXVII.
4
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 202.
5
Por isso se diz que a diversidade de positivismos “provém das diversas 'realidades positivas' às quais se
vinculam”. BERGEL, Jean-Louis.
Teoria geral do direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 15.
6
O positivismo jurídico, convém destacar, até pode ser distinto do positivismo filosófico, mas eles têm,
inegavelmente, bases comuns, como a rejeição da metafísica, o cientificismo, a sobrevalorização da realidade
sensível e o desprezo pelo inteligível. Confira-se, a propósito, GOYARD-FABRE, Simone.
Os fundamentos da
ordem jurídica
. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 73.
7
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 183.
8
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 21.
50
O que tais correntes têm em comum, como se adiantou, é o afastamento da
metafísica. Daí porque se pode dizer, apesar da heterogeneidade das diversas doutrinas
positivistas, que se caracterizam “pelo fato de rejeitarem qualquer metafísica jurídica,
qualquer justiça transcendente e qualquer ideia de direito natural, mas se louvam apenas no
conhecimento da realidade positiva, jurídica ou científica.”
9
O positivismo preconiza o estudo
da realidade tal como ela é, desprezando qualquer consideração a respeito de como ela
poderia ou deveria ser. Daí a separação, feita pelos positivistas em geral, entre o Direito e a
Moral,
10
e a indiferença que, na análise que pretendem meramente descritiva e objetiva,
invariavelmente têm pela justiça.
3.2 Positivismo jurídico e justiça
Preocupados apenas com a realidade sensível, vale dizer, aquela que pode ser
apreendida através dos sentidos, os positivistas não consideram possível o exame de valores,
que seriam subjetivos, decorrentes de meras emoções etc. Daí não considerarem possível o
estudo da Justiça, afastando-a de suas preocupações científicas.
Para um positivista normativista, por exemplo, justo ou injusto seriam adjetivos
daquilo que estivesse conforme ou desconforme o direito posto, único passível de exame
científico. Ou, então, seriam qualificações decorrentes de juízos de valor puramente
emocionais e pessoais. Não seriam, portanto, adjetivos com os quais se pudesse
adequadamente qualificar o próprio direito existente, fora do qual não haveria padrão de
julgamento possível. Algo como o proposto por Hobbes, para quem “... nada que o soberano
representante faça a um súdito pode, sob nenhum pretexto, ser propriamente chamado de
injustiça ou injúria”
11
, pois “embora a lei de natureza proíba o roubo, o adultério etc., se for
9
BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 15.
10
LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Tradução de Manuel Alarcão. Coimbra: Almedina, 1974, p. 166;
MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Introdução. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz
(Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 9-20, p. 13.
11
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. c. XVIII, p. 147. Norberto Bobbio, contudo, destaca que essa posição de Hobbes seria a de
um positivismo extremado, sendo poucos os positivistas que dela partilhariam; admitiriam a possibilidade de se
afirmar injusta uma ordem estatal, apenas reconhecendo a ausência de cientificidade dessa afirmação. (BOBBIO,
Norberto.
O positivismo jurídico. Tradução de Mário Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo:
Icone, 1995, p. 137). Ainda sobre a posição de Hobbes como sendo a de um importante precursor do positivismo
jurídico, confira-se: BATIFFOL, H.
A filosofia do direito. Tradução de Neide de Faria. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1968, p. 15; REALE, Miguel.
Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p.
51
porém a lei civil que nos mandar invadir alguma coisa, essa invasão não constituirá roubo,
adultério etc.”
12
. A partir de afirmações como essas, pode-se dizer que, “com Hobbes, fica
plenamente estabelecido que o direito nada deve ao Céu, nem à experiência, nem à história:
ele se insere no âmbito do legicentrismo estatal que é obra da razão, e seu valor provém
apenas do poder de decisão do poder público.”
13
Não se está a dizer, naturalmente, que todos os positivistas partilhem das mesmas
ideias de Hobbes, sobretudo em relação a outros aspectos do pensamento deste, mas não se
pode negar a existência, entre os partidários do pensamento positivista, de um elemento
comum, que é o reconhecimento de que um estudo científico do direito, para ser assim
considerado, deve necessariamente abstrair juízos de valor e, dessa forma, rejeitar qualquer
julgamento a respeito de seu objeto, vale dizer, do ordenamento jurídico a ser examinado. Por
conta disso, as correntes positivistas, sobretudo as de cunho normativista, atraem para si
diversas críticas, das quais se destaca a sua amoralidade e a possibilidade, que abrem, de que
se institua ordem jurídica com qualquer conteúdo, que serão examinadas oportunamente.
3.3 Positivismo e finalidade do Direito
Como se pôde perceber, o pensamento positivista cinde a realidade e ocupa-se
apenas da parte dela que pode ser aferida através dos sentidos. Apenas o mundo sensível pode
ser estudado cientificamente, porque apenas ele pode ser medido, pesado e experimentado.
Daí a desconsideração dos valores e, com eles, a tudo o que
deveria ser, diversamente do que
é. Desconsideração, em poucas palavras, aos fins.
Por isso mesmo, não preocupa os autores positivistas a questão de saber para que o
Direito serve, quais seriam seus fins ou sua finalidade. A ordem jurídica não precisa de
qualquer justificação além de sua própria existência.
14
Herbert Hart, por exemplo, admite que,
como outras formas de positivismo, a sua “teoria não apresenta qualquer pretensão de
76 e DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 69, especialmente as referências da nota de rodapé 18. Ainda
sobre o
ceticismo moral de Hobbes, comum às doutrinas positivistas: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 196 e 203.
12
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 223.
13
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. XXIV e 48-51.
14
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ________ (Org.).
A nova interpretação constitucional.
ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 2-47, p. 25.
52
identificar o cerne ou a finalidade do direito e das práticas jurídicas enquanto tais”
15
.
A questão, contudo, reside em saber se tem grande utilidade, ou mesmo se é
verdadeiramente possível, examinar uma obra humana, qualquer que seja, desprezando-lhe a
finalidade. Gustav Radbruch faz uso de comparação simples, porém eloquente, para
demonstrar a impossibilidade de se definir qualquer obra humana sem se recorrer à sua
finalidade. São suas palavras:
Que o direito é obra dos homens e que, como toda a obra humana, pode ser
compreendido através da sua idéia, é por si mesmo evidente. Reconheceremos isto
mesmo, se tentarmos definir qualquer obra humana, por mais simples que seja - por
exemplo, uma mesa - sem tomarmos em consideração, primeiro que tudo, o fim para
o qual ela foi feita. Uma mesa pode, sem dúvida, definir-se como uma prancha
assente sobre quatro pernas. E contudo, se dermos esta definição de mesa logo
surgirá a seguinte dificuldade: mesas que não tem quatro pernas, mas tem três,
duas, uma perna só, e as até sem pernas, como as dobradiças, por forma que
vem afinal a constituir elemento essencial do conceito de mesa a idéia de prancha.
Esta, porém, também não se distingue de qualquer outra tábua, ou grupo de tábuas
reunidas, a não ser pela sua finalidade. E assim chegaremos à conclusão de que o
respectivo conceito, o conceito de mesa, por último, pode definir-se, dizendo que
mesa é um móvel que serve para sobre ele se colocarem quaisquer objetos
destinados às pessoas que em torno dele podem vir a achar-se. Não pode, portanto,
haver uma justa visão de qualquer obra ou produto humano, se abstrairmos do fim
para que serve e do seu valor. Uma consideração cega aos fins, ou cega aos valores,
é pois aqui inadmissível, e assim também a respeito do direito ou de qualquer
fenômeno jurídico. Do mesmo modo, por exemplo, uma ciência natural do crime,
como pretendeu construí-la a antropologia criminal, é possível depois de se Ter
substituído a um conceito de crime, referido a valores jurídicos, um conceito
naturalístico de crime. Seria um milagre extraordinário - produto duma espécie de
harmonia preestabelecida entre dois modos totalmente diversos de contemplar a
realidade, que ninguém suspeitaria possível - se um conceito formado com
referência a valores, como o de direito ou o de crime, pudesse coincidir com um
conceito naturalístico obtido através duma contemplação não valorativa (
wertblind)
das coisas.
16
Da mesma forma como uma mesa pode ser definida a partir de sua finalidade, um
móvel que serve para sobre ele se colocarem quaisquer objetos destinados às pessoas que em
torno dele podem vir a achar-se, o Direito poderia ser definido, como qualquer outra obra
15
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 310.
16
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Cabral de Moncada. 6.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1997, p. 44-45. Michel Villey, no mesmo sentido, de forma mais direta, simplesmente afirma: “De que
me serve conhecer os horários dos trens se não tenho a menor idéia do destino da viagem e da estação em que
devo embarcar?” (VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito.
Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 7). Em termos semelhantes,
John Finnis nota que “ações, práticas etc. podem ser totalmente entendidas por meio do entendimento de seus
propósitos, ou seja, de seus objetivos, valores, alcance ou importância, segundo foram concebidos pelas pessoas
que as realizaram, nelas se engajaram etc.” FINNIS, John.
Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila
Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2007, p. 17.
53
humana,
17
por seus fins.
18
É essa a razão pela qual o Direito não pode buscar fundamento em
si mesmo, autopoieticamente
19
, mas, como todo instrumento que existe em função de
objetivos ou finalidades, na razão pela qual esses objetivos e finalidades devem ser atendidos,
razão que evidentemente o transcende. Daí porque o desprezo a esses fins, que, como admite
Hart
20
, não são em absoluto objeto das preocupações de uma teoria positivista do direito, pode
conduzir a situações nas quais a própria identificação do Direito enquanto tal é dificultada. O
Direito passa a ser identificado, não raro, com a coação.
21
E não é por outra razão que isso
acontece: se o Direito só existe porque o homem é dotado da aptidão de distinguir
realidade e
possibilidade, que lhe confere a liberdade, o positivismo, ao ignorar o mundo da
possibilidade, não apenas desumaniza o direito, como implica a própria negação deste, que se
passa a confundir com a força.
3.4 A questão do fundamento do direito para as várias correntes positivistas
Como consequência das características do positivismo rapidamente resenhadas nos
itens precedentes, não há nele grande preocupação com o fundamento da ordem jurídica. Esta
é considerada enquanto
fato e, nessa condição, considera-se como direito o que vige enquanto
tal em dada sociedade, sendo imposto pelo uso da força, independentemente de seu
conteúdo.
22
A razão de ser das normas jurídicas, portanto, é buscada no próprio sistema
17
Daí porque Gadamer diz quixotesca a pretensão de uma ciência de qualquer aspecto da sociedade humana
alheia a valores. GADAMER, Hans-Georg.
Elogio da teoria. Tradução de João Tiago Proença. Lisboa: Edições
70, 2001, p. 54.
18
BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 21.
19
Em sentido diverso, Gunter Teubner entende que o Direito “não é determinado nem por autoridades terrestres,
nem pela autoridade dos textos, nem tão-pouco pelo direito natural ou pela revelação divina: o Direito
determina-se a ele mesmo por auto-referência, baseando-se na sua própria positividade.” (TEUBNER, Gunter.
O
direito como sistema autopoiético
. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, p. 2). É o caso, porém, de indagar: seu conteúdo é determinado aleatoriamente? Como o
próprio Direito pode determinar o conteúdo da Constituição elaborada pelo poder constituinte originário? E
dentro das diversas possibilidades que uma Constituição confere ao legislador (que pode elaborar leis nos mais
variados sentidos sem incorrer em inconstitucionalidade), de que forma o próprio direito positivo lhe estaria a
determinar inteiramente os conteúdos? A teoria dos sistemas até pode explicar o funcionamento do Direito
depois de positivada a Constituição, que serve de filtro entre as influências exteriores e o ordenamento,
determinando como aquelas podem ser transformadas nas normas que compõem este; mas não se presta para
responder a pergunta: por que esta Constituição, e não outra?
20
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 310.
21
Nesse sentido: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10.ed. Tradução de Maria Celeste
Cordeiro dos Santos, Brasília: UnB, 1999, p. 65. Para uma análise crítica da indicação do uso da força como
característica ou fundamento da ordem jurídica: VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito e força: uma visão
pluridimensional da coação jurídica. São Paulo: Dialética, 2001,
passim.
22
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução de Mário Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São
Paulo: Icone, 1995, p. 132; ROSS, Alf.
Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p. 77.
54
jurídico (confundindo-se com a validade) ou em elementos que, conquanto sejam externos a
ele, são igualmente positivos,
23
como ocorre com o positivismo sociológico relativamente à
realidade factual, ou com a admissão de que um mínimo de eficácia social
24
é necessário para
que a ordem jurídica tenha validade.
Relativamente ao positivismo normativista, que reduz seus estudos ao direito
tal como
é
, não lhe interessa saber por que o direito é como é. O que importa é que se trata de ordem
jurídica dotada de eficácia. Se tal eficácia é obtida pelo reconhecimento, pelo consenso, pela
força, pelo medo, ou por qualquer outra forma, isso não importa.
25
Daí porque Pontes de
Miranda afirma que ao erro
de só se quererem princípios eternos à base das instituições políticas e sociais
sucedeu, como se viu, o de se quererem instituições, ou mesmo textos, à base
dos princípios.
Acolá, a preocupação de legitimar o que existia. Ali, a de abster-se de qualquer
justificação.
26
O fundamento do ordenamento jurídico, com efeito, é pressuposto pelo positivismo,
que estuda o direito tal como ele é, sem indagar por que ele é como é, ou por que não é de
outra forma. Renuncia, por outras palavras, “a toda indagação racional do fundamento das
regras jurídicas.”
27
Tais aspectos caberiam a outros ramos do saber, e não seriam jurídicos.
3.5 Positivismo e concepção de ciência
Uma das principais características do positivismo jurídico é seu compromisso com
determinada concepção de ciência. Isso porque, como se sabe, ele decorre da tentativa de
tratar o Direito cientificamente, partindo de uma concepção de conhecimento científico como
sendo aquele que pode ser submetido à experimentação, a medições e a pesagens, o que
afastaria de suas considerações tudo o que não pudesse ser apreendido pelos sentidos, tal
23
MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Introdução. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz
(Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 9-20, p. 13.
24
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 120-121.
25
Por isso mesmo, Alan Gewirth afirma que Kelsen feels that if the jurist appeals to any even prudential
considerations as criteria for regarding a set of laws as valid, this will introduce alien elements into his
jurisprudence
. But this seems to leave nothing as the basis of de jure validity except the de facto observance of
the law itself
.” GEWIRTH, Alan. The quest for specificity in jurisprudence. Ethics, Washington, v. 69, n. 3, p.
155-181, apr. 1959, p. 165.
26
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 67.
27
Ibid., 2001, p. 65.
55
como os valores,
28
ou qualquer outra coisa considerada suprassensível ou metafísica.
29
Associada a essa ideia de ciência está a concepção de que uma verdade objetiva e definitiva é
alcançável, passível de descoberta por intermédio do conhecimento científico. Para isso,
afastam-se os juízos de valor, devendo-se, em nome da objetividade, apenas descrever a
realidade. Explica Norberto Bobbio, a esse respeito, que o positivismo jurídico
nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada
ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas,
naturias e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em
sua
avaloratividade
, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na
rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em
juízos de fato.
[...]
A ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um
conhecimento puramente
objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são
sempre
subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários à exigência de
objetividade
.
30
Essa concepção de ciência e de objetividade, contudo, não tem mais o crédito que
tinha um par de séculos. E sua superação, invariavelmente, conduz à superação do
positivismo jurídico, a ela diretamente associado.
31
Essa é a razão pela qual, com inteira
razão, Jane Reis Gonçalves Pereira afirma que “o positivismo jurídico quebrantou não apenas
em decorrência da mutação das instituições políticas então operada, mas em virtude do abalo
sofrido pelo próprio modelo científico em que se assentava.”
32
Primeiro, porque a ciência não apenas descreve a realidade. Antes de descrever, o
cientista julga, escolhe e avalia.
33
E, depois de descrever, propõe. Em todas essas situações,
como é claro, faz juízos de valor. Inicialmente, sobre
o que será descrito. E, por conseguinte,
28
A concepção científica de Kelsen escreve Miguel Reale “é cega para o mundo dos valores, pois ele
pertenceu àquela corrente de teóricos que depositou excessiva confiança na causalidade e na indução.” REALE,
Miguel.
Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 70.
29
M. Rosental e P. Iudin. registram que, para o positivismo, “o papel da ciência consistiria em descrever (e não
em explicar) os fatos considerados como certos estados da consciência. O positivismo ressuscita o agnosticismo
e Hume e de outros idealistas, e aplica-se em demonstrar que o conhecimento não vai mais além das percepções
e que os problemas da existência do mundo exterior, objetivo, independente das percepções, não podem ser
colocados cientificamente, pois teriam caráter metafísico.” ROSENTAL, M.; IUDIN, P.
Pequeno dicionário
filosófico
. Tradução de Guarany Galo e Rudy Margherito. São Paulo: Exposição do Livro. [s.d.], p. 464.
30
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução de Mário Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São
Paulo: Icone, 1995, p. 137.
31
Nesse sentido: VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998,
p. 10.
32
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 27-28.
33
Por essa razão, Miguel Reale observa que não “nenhuma ciência assepticamente isenta de pressupostos
axiológicos, o que Kelsen ignorou.” REALE, Miguel,
op. cit., 1984, p. 70.
56
de forma relacionada a esse primeiro juízo, faz outro, sobre
para que aquilo será descrito.
Afinal, uma pessoa não decide, de forma aleatória e arbitrária, contar a quantidade de grãos de
areia existente no deserto do Saara ou determinar o peso ou as dimensões dos livros existentes
em sua própria biblioteca. De resto, indagaria o leitor, para quê? Ao descrever algo, o cientista
o faz movido por razões, e tem propósitos a atingir, o que demanda juízos de valor que
interferem na descrição a ser feita.
34
A razão pela qual se considera relevante a parcela da
realidade a ser descrita envolve juízos de valor, podendo-se dizer o mesmo dos motivos que
levam a essa descrição, se ligados à preservação (porque boa) ou à modificação (porque má)
da realidade.
A ciência descreve a realidade, mas não se limita a isso.
35
Ela descreve para prever.
36
E para quê? É evidente que para agir sobre a realidade, alterando-a ou preservando-a.
37
A
descrição dos fenômenos atmosféricos se presta para que se possam prever catástrofes e assim
adotar medidas que possam minimizar os danos por elas causados. O mesmo se pode dizer
das consequências da emissão de gases poluentes, que são previstas com a finalidade de que
se altere a realidade e se evitem as consequências, consideradas negativas, do aquecimento
global.
Ainda exemplificando, o cientista que procura descrever a forma de reprodução de um
vírus não o faz de forma arbitrária. Valores o movem a isso. Ele espera, em verdade, elaborar
– ou contribuir para que outrem elabore – um medicamento que iniba ou prejudique esse ciclo
reprodutivo, curando o organismo humano eventualmente por ele infectado. Considerar a
infecção algo a ser evitado, ou remediado, envolve um juízo de valor. Mas pode ocorrer,
34
E isso para não referir a influência da “pré-compreensão” do sujeito na descrição que por ele é feita. Não é por
outra razão que pessoas que apenas “descrevem” certas parcelas da realidade divergem no resultado de suas
descrições. As diferenças de descrição, nota John Finnis, “são derivadas das diferenças de opinião, entre os
teóricos descritivos, a respeito do que é
importante e significativo no campo dos dados e da experiência com a
qual eles todos estão igual e completamente familiarizados.” FINNIS, John.
Lei natural e direitos naturais.
Tradução de Leila Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2007, p. 22.
35
A esse respeito, J. Bronowski observa que “em nenhum sentido se poderá qualificar a ciência de mera
descrição de fatos.” BRONOWSKI, J.
O senso comum da ciência. Tradução de Neil Ribeiro da Silva. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1977, p. 110.
36
Como observa John Ziman, “a influência do conhecimento sobre a ação surge de seu poder de previsão.”
(ZIMAN, John.
O conhecimento confiável. Tradução de Tomás R. Bueno. Campinas: Papirus, 1996, p. 145).
Por isso, “nem é preciso dizer que a maneira mais impressionante de validar uma teoria científica é confirmar
suas previsões”, sendo possível afirmar que “o propósito fundamental da ciência é adquirir os meios de fazer
previsões confiáveis.”
Ibid., 1996, p. 50.
37
Henry Poincaré, a esse respeito, destaca que “a ciência prevê, e é porque prevê que pode ser útil, e servir de
regra de ação”. Por isso mesmo, ainda em suas palavras, “não meio de escapar a esse dilema; ou bem a
ciência não permite prever, e então não tem valor como regra de ação, ou então permite prever de modo mais ou
menos imperfeito, e então não deixa de ter valor como meio de conhecimento.” POINCARÉ, Henry.
O valor da
ciência
. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995, p. 140-141.
57
também, de o cientista pretender incrementar a reprodução do tal vírus, para torná-lo mais
letal e resistente, viabilizando o seu uso como arma biológica. Aqui, também, seu trabalho é
orientado por valores.
Quando o cientista pretende descrever o movimento de astros (e não das partículas de
poeira soltas dentro de um armário velho), o faz para compreender o funcionamento do
universo, e assim satisfazer a curiosidade, inerente ao homem, a respeito das perguntas
fundamentais sobre de onde viemos e para onde vamos. Almeja, ainda, a construção de naves
que permitam a pessoas ou a sondas a exploração de tais astros.
38
E, onde finalidade,
juízo de valor.
39
Os valores, em suma, estão sempre presentes, e ocultar a sua existência, ignorá-la ou
afastá-la das considerações do cientista implica, tão somente, permitir que qualquer fim seja
buscado, sem que se tenha de lhe dar uma justificativa ou sem que sejam submetidos os
valores a qualquer juízo crítico.
40
Em resumo: como é factualmente impossível afastar os
valores de qualquer ação humana voluntária, ignorá-los abre espaço para que não se
submetam a qualquer controle. Abre espaço para que sejam adotados quaisquer valores,
como, aliás, a História mostrou ter ocorrido, inclusive em relação ao próprio positivismo
jurídico.
Autores positivistas se defendem dessa acusação de que o positivismo permitiria
regimes jurídicos injustos, arbitrários e iníquos afirmando que a ciência, exatamente porque
apenas (supostamente) descreve a realidade, sem julgá-la, não a afirma boa nem ruim. Dessa
forma,– dizem eles mesmo ao positivista continua sendo possível julgar a ordem jurídica
que cientificamente apenas descreve, afirmando-a ruim, inadequada, injusta ou antiética, e
lutar contra ela, pugnando por sua mudança. não se pode dizer que tais atos de protesto e
os argumentos usados em sua defesa são científicos.
Essa defesa, contudo, não é procedente. Como apontado, a ciência não é meramente
38
Há sempre uma finalidade, mediata ou imediata, e nunca uma pura e simples descrição. m termos semelhantes,
entrevistado por Guitta Pessis-Pasternak, Pierre Papin destaca que “a grande força do método científico reside
em sua capacidade de prever os fenômenos e, assim, agir sobre a matéria” PAPIN, Pierre. Entrevista concedida a
PESSES-PASTERNAK, Guitta.
A ciência: deus ou o diabo? Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza
Perassi Bosco. São Paulo: Unesp, 2001, p. 142.
39
Nesse sentido, destacando a inexistência de neutralidade mesmo nas ciências ditas exatas: PERELMAN,
Chaïm.
Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 153.
40
E se isso ocorre em relação às ciências que têm por objeto parcelas da realidade “bruta”, com mais razão ainda
acontece em relação ao conhecimento que se tem das obras humanas, notadamente quando vistas enquanto tal,
em seu aspecto institucional, sempre ligado a um fim. GADAMER, Hans-Georg.
Elogio da teoria. Tradução de
João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 54.
58
descritiva, nem é avalorativa, pelo que, ao afirmá-la apenas descritiva e avalorativa, o
positivismo não impede nem teria mesmo como impedir que o cientista descreva o objeto
a partir de seu horizonte e calcado em seus valores e em suas pré-compreensões. Dar as costas
para esse fato, em vez de reduzir, incrementa a subjetividade.
41
Por outro lado, o argumento
de que os valores são puramente subjetivos e emocionais, relativos e variáveis, se procedente
fosse, retirar-lhes-ia por completo a importância. Tudo poderia ser certo, ou errado, a
depender do ponto de vista, pelo que um juízo axiológico não poderia ser contraposto a uma
afirmação “científica”, supostamente neutra. As críticas, em tal contexto, não teriam qualquer
valor, justamente por decorrerem de emoções meramente subjetivas de quem as fizesse.
Por outro lado, o direito, como toda obra humana, é criado em virtude de valores.
Condutas são proibidas, permitidas ou determinadas por serem consideradas indeseveis,
desejáveis ou necessárias, conceitos marcadamente axiológicos. Os valores fazem parte do
próprio objeto a ser estudado, sendo a análise avalorativa uma forma de mutilar a realidade
examinada. Daí porque, observa argutamente Michel Villey a respeito do positivismo
jurídico,
apesar do sucesso desta espantosa filosofia nas esferas acadêmicas, é impossível
extrair o direito de uma ciência que zomba do Bem e do Mal. As doutrinas
positivistas aparentemente os ignoram: mascaram seus princípios. Tanto quanto
as teorias do Contrato Social e da Escola do direito natural, são
ideologias.
42
Poder-se-ia dizer, em oposição ao que escreveu Villey no trecho citado, que o autor
positivista não ignora a existência de valores; apenas rejeita a possibilidade de serem
estudados cientificamente. Puro seria o método,
43
e não o objeto por seu intermédio
41
Prova disso é a teoria da interpretação adotada por muitos dos partidários do positivismo jurídico, segundo a
qual o intérprete tem um “poder discricionário” para decidir as questões, havendo várias decisões
“cientificamente possíveis”. Essa ideia está presente na maior parte dos autores positivistas, sendo célebre, a
propósito, a ideia de “quadro ou moldura” a que alude Kelsen (KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito.
Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 369), e o que sobre ela disse
Larenz: “quando Kelsen, para se manter longe de tais juízos de valor, declara que a ciência do Direito é incapaz
de atingir, através da ‘interpretação’ de uma norma, juízos ‘corretos’, ‘deita a criança fora com a água do
banho’” LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, p. 107.
42
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 331-332. Em termos semelhantes: FINNIS,
John.
Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2007, p. 343.
43
Essa é a visão, por exemplo, de Miguel Reale, para quem “[n]ão existe Direito puro na doutrina de Kelsen. O
que existe é a procura, é a pesquisa de uma pureza metodológica capaz de isolar o estudo do Direito do estudo de
outras ciências sociais, como a História, a Economia, a Psicologia e assim por diante.” (REALE, Miguel.
Direito
natural/direito positivo
. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 63). O mesmo é dito por Simone Goyard-Fabre
GOYARD-FABRE, Simone.
Filosofia crítica e razão jurídica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 234.
59
examinado. Mas esse argumento também não procede. Purificada a ciência, que é a lente por
meio da qual o objeto será visto pelo sujeito, o objeto será por igual purificado, pois não
como vê-lo senão através dela. “Na verdade” - observa Richard Palmer - “método e objecto
não podem separar-se: o método delimitou
o que veremos. nos disse o que o objeto é
enquanto objeto.”
44
Finalmente, a ideia de verdade como algo que pode ser definitivamente alcançado de
forma absoluta pelo homem, através da experiência e da verificação, também tem passado por
revisões no âmbito da teoria do conhecimento. As descobertas havidas no âmbito da física
talvez a mais “objetiva” das ciências naturais no final do Século XIX e ao longo do Século
XX, e a epistemologia construída em torno de tais mudanças de paradigma apontam para a
superação de mencionadas visões de ciência e verdade. Atrelado indissociavelmente a elas,
sendo delas fruto e instrumento, o positivismo padece dos mesmos problemas e da mesma
superação. Disso tratará, com maior detalhamento, o capítulo 5.3,
infra.
3.6 Positivismo e natureza humana
Outra característica das correntes de pensamento positivistas é a rejeição à metafísica.
As teorias positivistas dizem ocupar-se apenas da realidade sensível. Entretanto, como o
homem se diferencia dos animais exatamente por diferenciar o
real do possível, o sensível do
inteligível, aprisionar o cientista apenas a um desses mundos é atentar contra a própria
natureza humana. Ignora-se, no estudo, precisamente o que faz o homem diferente dos demais
seres. Ernst Cassirer observa, relativamente ao positivismo comteano, que os
discípulos y seguidores de Comte no estaban inclinados, sin embargo, a aceptar esta
distinción. Negaran la diferencia entre fisiología y sociología, porque temían que
reconociéndola se verían conducidos a un dualismo metafísico; su ambición se
cifraba en establecer una teoría puramente naturalista del mundo social y cultural.
A este fin consideraron necesario negar y destruir todas las barreras que parecen
separar el mundo humano del animal.
45
44
PALMER, Richard. Hermeneutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Rio de Janeiro: Edições 70,
1989, p. 33. Daí porque, se a visão que se tem do objeto é provisória, o método também deve sê-lo.
(FEYERABEND, Paul.
Against method. 3.ed. London: Verso, 1993, p. 14. Ainda do mesmo autor: On the
limited validity of methodological rules. Translated by Eric M. Oberheim and Daniel Sirtes. In: PRESTON, John
(ed.).
Paul Feyerabend Knowledge, science and relativism philosophical papers. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999. v.3, p. 120-153, p. 138 e ss.). Ainda sobre o equívoco de se pretender pura a teoria, e não
o direito através dela estudado, confira-se: VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria pura do direito repasse crítico
de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 109.
45
CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica. Traducción de Eugenio Ímaz. 2.ed. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1963, p. 104. Arnaldo Vasconcelos, também a propósito do positivismo sociológico, registra que “o
fetichismo do fato levou ao fenômeno da reificação, a saber, da degradação da imagem do homem, tomado, para
fins científicos, como sendo coisa, e não como pessoa, na pluralidade de significados espirituais e éticos que se
60
É inevitável. Como a capacidade de acesso ao mundo suprassensível é o marco
diferenciador da criatura humana, o positivismo, ao rejeitar a análise de toda a parcela supra-
sensível ou metafísica do mundo, termina por atentar contra a própria natureza humana,
amesquinhando-a de uma forma ou de outra. Daí porque Alain Supiot destaca que o erro
profundo e o irrealismo fundamental dos juristas que acham realista expulsar as
considerações de justiça da análise do Direito é esquecer que o homem é um ser
bidimensional, cuja vida social se desenvolve a um tempo no terreno do ser e do
dever-ser. O Direito não é revelado por Deus nem descoberto pela ciência, é uma
obra plenamente humana, da qual participam aqueles que se dedicam a estudá-lo e
não podem interpretá-lo sem levar em consideração os valores por ele veiculados. A
obra jurídica atende à necessidade, vital para toda sociedade, de compartilhar um
mesmo dever-ser que a preserve da guerra civil. As concepções de justiça mudam,
evidentemente, de uma época para outra e de um país para outro, mas a necessidade
de uma representação comum da justiça em certo país e época não muda. O Direito é
o lugar dessa representação, que pode ser desmentida pelos fatos, mas confere um
senso comum à ação dos homens.
46
Sendo o homem o único ser situado entre o mundo sensível e o mundo inteligível,
determinar que somente as realidades sensíveis sejam objeto da atenção do cientista é,
realmente, atentar contra a própria natureza humana.
47
Não é por outra razão que, ao
identificar o direito como tudo o que existe de fato enquanto tal e se impõe pela coação,
48
o
positivismo não fornece elementos que permitam diferenciá-lo da ordem dada pelo domador
ao animal domado.
3.7 Tem o positivismo todos os defeitos que lhe atribuem?
É preciso cautela, contudo, quando se critica o positivismo, notadamente em sua
contém nessa palavra.” (VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 41). No mesmo sentido, Carlos Cossio observava, a respeito do positivismo sociológico, que
se
estuvo haciendo uma teoría jurídica de la que el hombre verdadero estaba ausente o era reemplazado por el
bípedo implume
.” COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Losada, 1954, p. 38.
46
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXIV.
47
Por isso mesmo, diz-se que “esse direito que se reduz à forma decisional do ato do legislador fica ressequido
ao ponto de refletir apenas um anti-humanismo.” GOYARD-FABRE, Simone.
Os fundamentos da ordem
jurídica
. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXIX.
48
Merece referência, neste ponto, a observação de Nelson Saldanha, que registra ser o direito ao mesmo tempo
ideia e realidade, fato e valor,
corpus e animus. Por isso, a relação entre poder e direito é comparada “com a que
existe, entre tudo o que é humano, entre natureza e cultura.” (SALDANHA, Nelson.
O poder constituinte. São
Paulo: RT, 1986, p. 35). Reduzindo o fundamento do direito à coação, à coatividade ou à coercibilidade, o
positivismo quebranta a própria distinção entre direito e poder e, em última análise, entre o natural e o cultural,
bestializando a criatura humana.
61
feição normativista, por haver permitido o nazismo
49
ou por admitir um direito com qualquer
conteúdo.
Com efeito, o positivismo normativista, por não ter “qualquer pretensão de identificar
o cerne ou a finalidade do direito e das práticas jurídicas enquanto tais”
50
, realmente não dá ao
cientista critérios ou ferramentas para
julgar a ordem jurídica que ele apenas supostamente
descreve.
51
Com sua “desenvoltura sem princípios, no fazer e desfazer leis, o direito
democrático e liberal engendrava a desenvoltura dos ditadores legislantes do terceiro, quarto e
quinto decênios do século XX.”
52
Esse defeito o positivismo certamente tem, e não foi por outra razão que o
jusnaturalismo experimentou um renascimento
53
na Alemanha, no período de
redemocratização, após 1945, dada a incapacidade do positivismo jurídico e de sua
neutralidade axiológica de lidarem com o terrorismo estatal praticado no
III Reich.
54
Seria
ingenuidade, é verdade,
e talvez até mesmo má-fé pensar que Kelsen teve alguma influência ou participação
49
Michel Villey registra que “os juristas alemães formados no positivismo legalista sentiram então vergonha por
terem servido e aplicado demasiado passivamente as leis de Hitler (
Hitlers argument).” (VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de
Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 312). E, mais adiante (p. 331), arremata: “Kelsen quaisquer que
fossem as suas convicções democráticas -, subordinando o direito às normas do poder mais 'efetivo', punha os
juristas alemães a serviço da ordem hitleriana”. No mesmo sentido: BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos
teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo.
In: BARROSO, Luis Roberto (Org.).
A nova interpretação constitucional. ponderação, direitos fundamentais e
relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 2-47, p. 26; MARMELSTEIN, George.
Curso de direitos
fundamentais
. São Paulo: Atlas, 2008, p. 4 e ss; BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia
participativa
. Por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma
repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 122.
50
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 310.
51
Para exame do julgamento feito em Nuremberg, e da defesa usada pelos acusados, que estavam apenas
cumprindo o direito vigente, confira-se: MARMELSTEIN, George.
Curso de direitos fundamentais. São
Paulo: Atlas, 2008, p. 6 e ss.
52
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 65.
53
Para o uso dessa expressão, e uma crítica marcadamente positivista a esse renascimento, confira-se ROSS, Alf.
Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p. 297.
54
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo: Celso Bastos
Editor/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, p.110. Ainda sobre essa renascimento, e a
insuficiência do positivismo, demonstrada pelas ditaduras nazi-fascistas derrotadas na Segunda Guerra Mundial:
VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar. o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 312; CHORÃO, Mário Bigotte.
Introdução ao
direito
o conceito de direito. Coimbra: Almedina, 1994, p. 165; KERVÉGAN, Jean-François. Hegel, Carl
Schmitt
o político entre a especulação e a positividade. Tradução de Carolina Huang. Barueri: Manole, 2006,
p. XIX; ASCENSÃO, José de Oliveira.
O direito introdução e teoria geral. 2.ed. Brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 178; FARALLI, Carla.
A filosofia contemporânea do direito temas e desafios. Tradução
de Candice Premaor Gullo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 21; PALOMBELLA, Gianluigi.
Filosofia do
direito
. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 226.
62
na elaboração das leis nazistas. Longe disso. Kelsen era um democrata e ele próprio
foi perseguido pelo regime de Hitler. Porém, não como negar que a sua teoria
pura forneceu embasamento jurídico para tentar justificar as atrocidades praticadas
contra judeus e outras minorias. Afinal, o formalismo da teoria pura não margem
a discussão em torno do conteúdo da norma. Na ótica de Kelsen, não cabe ao jurista
formular qualquer juízo de valor acerca do direito. Se a norma fosse válida, deveria
ser aplicada sem questionamentos. E foi precisamente essa a questão levantada pelos
advogados nazistas: segundo eles, os comandados de Hitler estavam apenas
cumprindo ordens e, portanto, não poderiam ser responsabilizados por eventuais
crimes contra a humanidade.
55
Merece transcrição, a propósito, o relato de Gustav Radbruch, professor da
Universidade de Heidelberg e demitido pelo nacional-socialismo:
Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao
passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele
souber que a ordem recebida visa a prática dum crime, o jurista, desde que cerca
de cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece excepções deste
gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes
devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na generalidade dos casos,
tiver do seu lado a força para se fazer impor.
Esta concepção de lei e sua validade, a que chamamos
Positivismo, foi a que deixou
sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais
criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer
que só onde estiver a segunda estará também o primeiro.
56
Como se sabe, tal crítica é rebatida por autores positivistas com a afirmação de que
não existe
una obligación moral de obedecer las reglas jurídicas por el mero hecho de que
sean tales.
57
Ao fazê-lo, contudo, os positivistas terminam por reconhecer, ainda que
indiretamente, que a obrigatoriedade das normas jurídicas, ou a razão que justifica sua
observância,
reside na sua adequação com a moral. Seja como for, o que importa é lembrar
que o jusnaturalismo tampouco é inteiramente imune a uma crítica análoga. Na medida em
que preconiza a necessidade de o direito posto adequar-se a um modelo, fornecido pelo direito
55
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 11. É o que sustenta,
como se sabe, Simone Goyard-Fabre, para quem Kelsen, como defensor da democracia, não poderia jamais ser
visto como autor de teoria que poderia justificar qualquer regime, até mesmo o nazista. (GOYARD-FABRE,
Simone.
O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia
Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 316-317). Kelsen, com efeito, era um defensor da democracia,
mas, como apontou com precisão Alan Gewirth,
the way in which he works out his project incurs the danger of
obscuring the very democratic values in which he so sincerely believes
.” Em uma tradução livre: “a maneira pela
qual ele implementa seu projeto incorre no perigo de obscurecer os valores bastante democráticos nos quais ele
tão sinceramente acredita.” GEWIRTH, Alan. The quest for specificity in jurisprudence.
Ethics, Washington, v.
69, n. 3, p. 155-181, apr. 1959, p. 178.
56
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Cabral de Moncada. 6.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1997, p. 415.
57
CARRIÓ, Genaro. Notas sobre derecho y lenguage. 4.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 332. Em
sentido semelhante: LATORRE, Angel.
Introdução ao direito. Tradução de Manuel Alarcão. Coimbra:
Almedina, 1974, p. 154.
63
natural, o jusnaturalismo coloca nas mãos do detentor da atribuição de interpretar ou revelar
esse direito natural a faculdade de desautorizar o próprio direito positivo, o que, a História
mostra, também pode servir às ditaduras.
58
Os regimes nazifascistas, instalados na Europa na primeira metade do Século XX, até
podem ter-se valido do positivismo normativista
depois de haverem editado normas jurídicas
com o conteúdo que lhes atendia as necessidades. Normas que tornavam ilimitadas as
possibilidades de revisão de sentenças transitadas em julgado, simplesmente por serem
injustas (sob o ponto de vista do
Führer), a edição de leis retroativas, a desconsideração de
planejamentos tributários praticados por contribuintes, a execução de judeus, homossexuais,
deficientes etc. em campos de concentração e assim por diante. Mas isso depois de alterada
de forma legítima ou ilegítima, desde que com o uso da força, para muitas correntes
positivistas tanto faz – a ordem jurídica anterior.
Na verdade, enquanto ainda vigoravam as leis editadas anteriormente à ascensão dos
nazistas ao poder,
59
estes, quando não queriam a elas se submeter, valiam-se do recurso a um
“direito natural étnico”.
60
Isso porque, no sistema nazista, o Estado não era um fim em si
mesmo, mas um “meio de atualização das exigências do
Volsgeist como expressão dos
valores supremos da raça germânica”
61
. Dessa forma, vê-se que o jusnaturalismo nem sempre
está associado ao que no presente momento histórico parece justo, e que o respeito ao direito
posto nem sempre é sinônimo de arbitrariedade.
62
É essa a razão pela qual Martônio
58
LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Tradução de Manuel Alarcão. Coimbra: Almedina, 1974, p. 167.
59
Sobre o problema da aplicação de leis oriundas de um antigo regime depois de uma revolução ou um golpe
que instaura uma nova ordem jurídica, confira-se: CALAMANDREI, Piero.
Eles, os juízes, vistos por um
advogado
. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 222-223.
60
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 45. Conferir ainda: DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico introdução a uma teoria
do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 261.
61
REALE, Miguel. Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 77-78.
62
Alf Ross cita ainda outras situações nas quais o direito natural teria sido invocado para fundamentar injustiças,
tal como quando foi utilizado para justificar o domínio do homem sobre a mulher (Carl Ludwig von Haller), a
escravidão nos Estados do sul, nos EUA (Thomas Dew), o poder absoluto (Hobbes), a invalidade de leis que, no
início do Século XX, fixavam salário mínimo (Suprema Corte dos EUA, caso Adkin), para, como conclusão,
dizer que, “como uma prostituta, o Direito Natural está à disposição de todos.” (ROSS, Alf.
Direito e justiça.
Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p. 304). O curioso, porém, é que ele escolhe casos que sabe
causarem o descrédito do direito natural, revelando, com isso, a existência de um padrão de correção à luz do
qual essas invocações podem ser julgadas negativamente. Se juízos de valor fossem meras emoções totalmente
subjetivas, por qual razão ele teria escolhido tão minuciosamente os casos que menciona? Seu erro, na verdade,
reside em pretender que juízos de valor sejam “totalmente arbitrários” e que, por essa condição, estariam acima
“de toda força de controle intersubjetivo.” (
Ibid., 2000, p. 305) Essa, aliás, é uma das principais falácias do
positivismo normativista, quando se calca no relativismo axiológico para preconizar a possibilidade de um
direito com qualquer conteúdo. Afinal, “a ordem jurídica não existe como uma finalidade em si mesma, mas
sempre como meio institucional de se concretizarem certos fins sociais, tidos como valiosos. Que esses fins
sociais sejam considerados justos para uma determinada comunidade e injustos para outra não significa que o
64
Mont´Alverne Barreto Lima sustenta que “na Alemanha, foram exatamente os positivistas que
enfrentaram o partido nazista durante o período da República de Weimar, antes da absoluta
tomada do poder por Hitler em 1933”.
63
Depois dessa “absoluta tomada do poder”, o nazismo certamente demonstrou a
insuficiência do positivismo jurídico, mas não se pode dizer que tenha sido propiciado por ele.
Uma visão não positivista do direito teria permitido alguma resistência por parte de juristas e
aplicadores do direito,
64
se estes tivessem o interesse de fazê-lo, diante da edição das
primeiras normas de caráter arbitrário, mas, antes disso, o respeito ao direito positivo, no caso
da Alemanha, teria impedido a própria absoluta tomada do poder que as propiciou.
Mas, - e esse é o aspecto que se almeja destacar aqui - o contrário também pode
ocorrer: diante de leis democraticamente elaboradas, de conteúdo aceito consensualmente pela
sociedade, uma autoridade poderia afirmá-las contrárias ao (que em sua compreensão seria o)
direito natural, para assim (tentar) justificar o seu desrespeito.
Ao positivismo jurídico se deve, não se pode negar, grande avanço no estudo de
aspectos formais da ordem jurídica.
65
A estrutura da norma; a fenomenologia de sua
incidência; a distinção entre incidência e aplicação; a distinção entre existência, validade e
eficácia (jurídica); a diferença entre vigência e eficácia (social); a questão da relação entre as
normas e a solução de antinomias, entre muitos, mas muitos outros aspectos relacionados à
forma da ordem jurídica e de seu funcionamento foram bastante aprimorados pelo
positivismo. Na verdade, seu grande defeito, ou insuficiência, está em tangenciar os
fins do
direito deva reduzir-se a puras normas abstratas.” COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p. 359.
63
LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto. Justiça constitucional e democracia: perspectivas para o papel do
poder judiciário.
Revista da Procuradoria Geral da República, São Paulo, v. 8, p. 81-101, 1996, p. 95.
64
Robert Alexy, a esse respeito, faz alusão à natureza “gradativa” como um ordenamento se torna arbitrário e
injusto, apontando ser nesses momentos que as doutrinas não-positivistas prestam maiores serviços à democracia
e aos direitos fundamentais, pois fornecem ao julgador meios de conter o arbítrio quando isso ainda é possível.
(ALEXY, Robert.
El concepto y la validez del derecho y otros ensayos. Tradución de Jorge M. Seña.
Barcelona: Gedisa, 1994, p. 55). Essa natureza gradativa pode ser percebida na maior parte das ditaduras, de
esquerda ou de direita, tanto faz, na Europa, ou América, ou em qualquer outro lugar. Não é por outra razão que
os dois primeiros livros de Elio Gaspari, sobre a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, intitulam-se
A
ditadura envergonhada
e A ditadura escancarada, respectivamente. É a ideia subjacente ao belo poema “No
caminho com Maiakóvski”, que não é de nenhum Maiakóvski mas sim de Eduardo Alves da Costa: “Na primeira
noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, não se
escondem; pisam as flores, matam nosso o, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra
sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E não
podemos dizer nada.”
65
O problema, na verdade, foi que ele se ateve, basicamente, apenas a esses aspectos lógico-formais. Não por
outra razão, Comparato afirma, calcado em Hegel, que o positivismo reduziu “a ciência do direito a uma análise
lógica de proposições normativas.” COMPARATO, Fábio Konder,
op. cit., 2006, p. 311.
65
direito. Esse é também o pensamento de Márcio Monteiro Reis, para quem o modelo
positivista “trouxe grande contribuição ao Direito, deu-lhe sistematicidade, trouxe método
para o seu exame e, consequentemente, segurança para as relações que se desenvolvem sob
sua proteção”, mas que, no entanto, “chegou a um ponto a partir do qual não foi mais capaz
de evoluir.”
66
Como nada que a criatura humana faz conscientemente é desprovido de finalidade
67
, o
estudo de uma obra humana, como é o caso do direito, não tem como ser feito em desatenção
aos seus fins. Como estudar uma máquina, por exemplo, sem ter em mente sua finalidade? É
por saber que o avião se presta para voar, mas que deve fazê-lo com segurança e economia, e
sem agredir o meio ambiente, que o engenheiro estuda os modelos existentes e projeta outro,
capaz de atingir tais finalidades com maior eficiência. Os juízos de valor estão sempre
presentes e ignorá-los apenas permite, como se disse, espaço para maior insegurança e
arbitrariedade, pois cada partícipe da atividade de conhecer e de aplicar o direito sequer
precisa afirmar os fins que o motivam e que pretende sejam alcançados. Aliás, no caso do
direito, que existe necessariamente para o atendimento de certos fins, ignorá-los implica
mutilar o objeto estudado, visualizando-lhe apenas um aspecto, o que contraria a própria
epistemologia positivista. Afinal, como ensina Arnaldo Vasconcelos, “o Direito só existe
para. Não é ele um simples dever ser, puramente lógico, mas um dever ser ético e axiológico,
um
dever-ser-para-ser justo e legítimo.”
68
Isso se mostra com clareza, por exemplo, no âmbito do positivismo sociológico, que
confunde o estudo do direito com o estudo dos fatos, dizendo que este “brotaria” daqueles,
quando, na verdade, confundir o direito com o fato é privar o direito de sua função, que é a de
retificar os fatos.
69
Os positivistas não ignoravam isso, reconhecendo caber à ciência do
66
REIS, Márcio Monteiro. Moral e direito a fundamentação dos direitos humanos nas visões de Hart, Peces-
Barba e Dworkin. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.).
Teoria dos direitos fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 121-156, p. 125.
67
COSSIO, Carlos. La “causa” y la comprension en Derecho. 4.ed. Buenos Aires: Juarez, 1969, p. 126.
68
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito – repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 116.
69
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 330. No mesmo sentido, Jean-Louis Bergel
observa que o positivismo sociológico teve o mérito de vincular o direito à realidade social, e não
necessariamente ao que o Estado impõe coativamente, mas incorreu no defeito de torná-lo um “reflexo servil dos
fatos.” BERGEL, Jean-Louis.
Teoria geral do direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 21.
66
direito “ajeitar”
70
a natureza, omitindo apenas qualquer referência explícita ao que seria
“ajeitar”; não dizendo, por exemplo, por que proibir conduta “x” ou permitir conduta “y”, e
não o contrário, seria a maneira de se proceder a essa correção.
71
E o faziam precisamente
pela tentativa de afastar o componente axiológico, inafastável em qualquer obra humana.
No âmbito do positivismo normativista, de igual modo, a afirmação de que se deve
apenas estudar o direito posto, e não como esse direito deveria ser, inutiliza em grande parte a
ciência jurídica, que passa a ser como uma medicina que busca apenas conhecer as técnicas
cirúrgicas atuais, sem se preocupar em aprimorá-las. Pode-se dizer, por essa razão, que o
positivismo jurídico, com o propósito de estudar o direito de forma científica, vale dizer, de
forma supostamente neutra e objetiva, em verdade atrasou o seu progresso. Enquanto os
demais cientistas, inclusive sociais, “falam dos resultados de suas respectivas ciências, tanto
em termos de elaboração teórica quanto de aplicações práticas” as palavras são de
Agostinho Ramalho Marques Neto –
o jurista, ao contrário, sob o peso de uma formação dogmática que não o deixa
sequer vislumbrar ciência alguma que constitua o referencial teórico do seu universo
específico, limita-se a falar da lei, a procurar interpretá-la, mas raramente a critica
em seus próprios pressupostos, pois sua formação mesma o induz a considerar a
norma como algo perfeito e acabado, formalmente válido em si mesmo como
produto do sistema de poder constituído.
72
A maior insuficiência do positivismo, portanto, é epistemológica, vale dizer, situa-se
no âmbito da teoria do conhecimento ou da teoria da ciência. De forma desnecessária e
injustificável, encobre parte do universo cognoscível, situada no âmbito da possibilidade,
precisamente a parte que, por ser acessível pela criatura humana, e até onde se sabe, por
ela, a diferencia dos outros animais.
Mas, como já salientado, não se pode dizer que o positivismo foi responsável por tudo
o que de ruim se fez em nome do Direito ou da Justiça. O jusnaturalismo, nesse aspecto, tem
também sua parcela de responsabilidade. Afinal, “foi invocando justiça que Hitler, a
Inquisição, as Cruzadas tiveram lugar, bem como a Conquista do Novo Mundo e a conversão
70
Cf., v.g., BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 102; MIRANDA, Pontes
de.
Sistema de ciência positiva do direito. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. São Paulo: Bookseller,
2000. v.1, p. 39.
71
É contraditória, por isso mesmo, a expressão “positivismo crítico”. Isso porque, para fazer uma crítica a
alguma coisa, é preciso julgá-la, cotejá-la com o que ela
poderia ser, o que envolve juízos de valor, e, por
conseguinte, um exame que vai além do que está posto (e, portanto, não é positivista).
72
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 214.
67
dos índios se efetivaram.”
73
Além disso, colocar de lado o direito posto, em nome de ideais
absolutos de justiça, pode ser muito perigoso, pois a grande questão reside em saber
quem
determinará esse ideal de justiça, julgando a adequação do direito posto para com ele.
74
O
mesmo defeito do governo de sábios a que aludia Platão: mesmo sem colocar a questão do
possível abuso de poder por parte dos sábios, o problema está em saber quem os escolheria.
75
Em suma, da mesma forma como não é adequado ignorar o problema da
fundamentação da ordem jurídica, tendo-a como pressuposta pelo jurista, ao qual apenas cabe
estudar o direito positivo, não parece conveniente situar essa fundamentação, apenas, em um
ideal de justiça, na razão divina, em uma razão humana universal ou na natureza das coisas,
pois o problema está em saber quem será o intérprete de tais fontes, ao qual caberá delas
extrair o tal modelo ao qual o direito posto se deve amoldar.
73
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas,
2001, p. 499. o é demais lembrar que os fanáticos e intolerantes, que mais mal fizeram à humanidade, não
eram defensores de nenhum relativismo moral ou axiológico, mas sim defensores da existência de um ideal
absoluto de justiça e de verdade. Como destaca Amós Oz, “a semente do fanatismo sempre brota ao se adotar
uma atitude de superioridade moral que não busca o compromisso, a praga de muitos séculos.” OZ, Amós.
Contra o fanatismo. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. 3.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 24.
74
Daí dizer-se que la identificación entre Derecho y justicia encierra un enorme peligro. Los detentadores del
poder en el Estado pueden invertir los términos: Todo lo que es Derecho es justo aun cuando repugne a la
idea de justicia -
. Por tanto, quien resista a sus dictados actuará reprensiblemente, antiéticamente, será una
persona de mala índole
. La historia muestra bastantes ejemplos de utilización de esta máxima adecuadísima
para justificar cualquier forma de poder
.” NAWIASKY, Hans. Teoria general del derecho. Tradución de José
Zafra Valverde. Granada: Comares, 2002, p. 29.
75
Para citar apenas mais um exemplo, Margarida Corbisier, depois de mencionar o jocoso exemplo de prefeito
de uma cidade do nordeste brasileiro que supostamente teria pretendido a revogação da lei da gravidade,
invocada por um engenheiro que se opunha a uma caixa d´água de cuja construção se estava na cidade a cogitar,
arremata: “Quando, em que dia, saberemos rir da pretensão, da ignorância, da insensatez dos Parlamentos que
ousam pôr a votos, e mais além, violentar pelo divórcio e pelo aborto, a lei da gravidade de família?
(CORBISIER, Margarida. Democracia – Estado de direito? In: SOUZA, José Pedro Galvão (Coord.).
Estado de
direito
– primeiras jornadas brasileiras de direito natural. São Paulo: RT, 1980. p. 247-260, p. 259). Com isso, à
toda evidência, a mencionada autora se opõe a leis democraticamente aprovadas, que permitem o divórcio, por
exemplo, dizendo-as contrárias à “lei natural” (tão natural quanto a da gravidade) que preconiza a proteção da
família.
68
4 FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO NO PÓS-
POSITIVISMO
Depois da Segunda Guerra Mundial, as atrocidades praticadas pelos regimes
totalitários da Europa, especialmente da Alemanha nazista, tornaram explícita a insuficiência
de uma visão puramente formal do direito, produto do positivismo normativista. Viu-se até
que ponto poderia chegar o sistema de normas coativamente imposto por um Estado. Algo
diverso da coação deveria ser invocado como fundamento para o Direito, que não poderia
mais ser visto de forma alheia aos seus fins, nem como tudo o que existe enquanto tal,
independentemente de qualquer consideração de cunho axiológico.
Assim, depois de um renascimento do Direito Natural, sobretudo em Gustav
Radbruch,
1
que teria supostamente sido efêmero ou episódico,
2
alguns teóricos do Direito
passaram a se denominar pós-positivistas, corrente que consistiria em uma superação dialética
entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Essa superação dialética consistiria,
basicamente, no reconhecimento da positividade de princípios jurídicos
3
, que permitiria ao
intérprete tomar decisões com base em valores, mas não valores subjetivos, e sim valores
devidamente positivados na ordem jurídica. “Ao positivismo jurídico” - as palavras são de
Michel Villey - “foi necessário um antídodo. Os modernos opuseram-lhe a figura dos 'direitos
humanos', tirada da filosofia da Escola do Direito Natural, cujo desaparecimento muitos
1
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Cabral de Moncada. 6.ed. Coimbra: Armênio Amado,
1997, p. 415 e ss.
2
Paulo Bonavides defende que o ressurgimento do Direito Natural não foi uma lâmpada, mas um relâmpago.
(BONAVIDES, Paulo.
Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de
luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 207). Kaufmann, contudo, registra que esse renascimento foi episódico, “mas algo restou”. Serviu de
crítica à ciência e à filosofia do direito, não preparadas “para o fenômeno da 'injustiça legal'.” KAUFMANN,
Arthur.
Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004,
p. 47.
3
É o caso, por exemplo, de GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo:
Celso Bastos Editor/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, p. 169, que associa essa “superação” ao
fato de se admitir atualmente a positividade de normas com estrutura de princípio, pois com isso se estaria
conferindo validade objetiva, ou positividade, aos valores.
69
teóricos do século XIX erradamente anunciaram.”
4
Paulo Bonavides, a esse respeito, escreve
que o pós-positivismo
corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas deste século.
As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos
princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício
jurídico dos novos sistemas constitucionais.
5
É inegável que houve, realmente, especialmente nas últimas décadas do Século XX,
evolução na forma como é interpretado e aplicado o direito positivo, com a teorização em
torno da normatividade, da aplicação e da conciliação de princípios. Assim, nesse contexto,
muitos autores não gostam de se assumirem jusnaturalistas ou juspositivistas.
6
Além de soar
ultrapassado, podem ser acusados de estar a discutir uma abstração inexistente, no primeiro
caso, ou de se prenderem a um normativismo ultrapassado e amoral, no segundo.
Entretanto, a verdade é que, a partir da segunda metade do Século XX, várias teorias
jurídicas surgiram e convivem, dando explicações diversas para o fenômeno jurídico.
7
Tal
como na literatura, na música e nas artes plásticas, o período de duração das “escolas” foi-se
tornando cada vez menor e, atualmente, várias delas são contemporâneas e antagônicas. Nesse
contexto, com exceção de alguns autores que são explícitos e diretos em se qualificar como
positivistas
8
ou como jusnaturalistas,
9
a maior parte deles ou não se posiciona a respeito da
discussão, rapidamente posta de lado por ser tida como ultrapassada, ou – sobretudo no Brasil
simplesmente se rotula pós-positivista. E, como dito, o pós-positivismo se caracterizaria
4
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 3. Não se está aqui a afirmar, naturalmente, que Villey seja pós-positivista.
De forma alguma. Ele, contudo, aponta como os “direitos humanos” foram usados como antídoto ao positivismo,
atitude da qual ele inclusive é acerbo crítico.
5
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 237.
6
Ronald Dworkin, a esse respeito, observa que ninguém quer ser chamado de jusnaturalista (“no one wants to be
called a natural lawyer
”). (DWORKIN, Ronald. ´Natural law' revisited. University of florida law review,
Flórida, v. XXXIV, n.2, p. 165-188, winter of 1982, p. 165). No mesmo sentido: VILLEY, Michel.
Filosofia do
direito
. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 333.
7
Para uma síntese dessas teorias, veja-se: FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito temas e
desafios. Tradução de Candice Preamor Gulo. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
passim. E também:
KAUFMANN, Arthur.
Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 46 e ss.
8
Cf., v.g., DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 73. LOPES, Ana Maria D'Avila. Proteção
constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a perspectiva do multiculturalismo.
Revista
de informação legislativa
, Brasília: Senado Federal, v. 45, p. 19-29, 2008, p. 20-21.
9
É o caso de DWORKIN, Ronald, op. cit., 1982, p. 165, para mencionar apenas um autor que, aliás, é
impropriamente qualificado como “pós-positivista”. Sobre o equívoco de enquadrá-lo como “pós-positivista”,
confira-se: DIMOULIS, Dimitri,
op. cit., 2006, p. 50.
70
pelo reconhecimento da positividade de normas com estrutura de princípios, que veiculariam
direitos fundamentais
10
. Sobre o antagonismo entre jusnaturalistas e positivistas, nesse
contexto, Paulo Bonavides defende que ele “não poderia sobreviver a um direito
constitucional que consagrou, em definitivo, a juridicidade dos princípios, transformados
em paradigma e vértice da pirâmide normativa.”
11
É sempre difícil apontar as características de uma corrente jusfilosófica. A própria
divisão dos autores em correntes ou escolas, como as classificações em geral, é problemática.
A realidade é sempre mais complexa do que os modelos que o homem faz para separá-la em
classes.
12
Nem todos os autores que se consideram integrantes de uma corrente têm posições
idênticas, divergindo em relação a alguns pontos, o que dificulta a identificação de elementos
em comum. Além disso, algumas das características abaixo apontadas podem ser localizadas
também em autores reconhecidamente jusnaturalistas ou positivistas. De qualquer forma,
talvez seja possível, de forma aproximada e não definitiva, apontar as principais
características do pós-positivismo como as seguintes:
a) a norma jurídica, sendo o
sentido de um ato de linguagem, é necessariamente
determinada pelo intérprete, que “completa” um trabalho iniciado, mas só iniciado, pelo
legislador;
b) na determinação da norma aplicável, o intérprete parte dos textos normativos, mas
considera sobretudo os princípios aplicáveis e as peculiaridades do caso concreto, em face das
quais esses princípios serão ponderados;
c) os princípios são mandamentos que determinam a promoção de determinados
valores ou objetivos com a maior intensidade possível. Estão consagrados, implícita ou
explicitamente, no texto constitucional;
d) na determinação da norma aplicável ao caso, o intérprete de realizar a
10
Como se sabe, os direitos fundamentais são definidos como a versão positivada, na ordem jurídica interna, e
no plano constitucional, dos direitos humanos.
11
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. por um direito constitucional de
luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 115.
12
Pedro Demo registra, a propósito, que “nosso cérebro é máquina dedicada a descobrir, no fluxo da realidade
complexa e muitas vezes pouco inteligível, padrões recorrentes. Como não conseguimos dominar a
complexidade como tal da realidade, reduzimo-la a padrões regulares, até o ponto de identificarmos o
'conhecido' e o 'regular'.” (DEMO, Pedro.
Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000, p.
16). Esses padrões, contudo, são criações do homem, que neles tenta encaixar a realidade, encaixe que,
precisamente por conta da maior complexidade e variância da realidade, não acontece com perfeição.
71
conciliação dos princípios aplicáveis, de modo a adotar a solução que os realize de forma
“ótima”, vale dizer, com a maior intensidade possível. Em caso de conflito entre os princípios
implicados, deve haver uma ponderação, de sorte a que se adote a solução que os realize da
forma mais equilibrada possível;
e) os direitos indispensáveis à promoção da dignidade da pessoa humana estão
positivados na Constituição, implícita ou explicitamente, em normas que podem ter estrutura
de princípio. São os direitos fundamentais;
f) os direitos fundamentais, até por serem consagrados em norma com estrutura de
princípio, não têm como ser prestigiados de forma absoluta.
13
Têm de ser conciliados, ou
“relativizados”, com aplicação do postulado da proporcionalidade, de forma a que seja
possível o controle intersubjetivo e racional da decisão respectiva;
Deve-se reconhecer, contudo, que o termo “pós-positivismo” é demasiadamente vago
e não indica com clareza o conteúdo dessa corrente.
14
Indica apenas tratar-se de algo surgido
depois do positivismo jurídico, mas mesmo nesse sentido a denominação não é correta, pois
subsistem diversas correntes positivistas na atualidade, que assim se intitulam, e que não são
anteriores às ditas pós-positivistas.
15
Por outro lado, como toda forma de pensamento ou de
obra humana, o pós-positivismo não será eterno. Depois dele, como será chamada a forma de
pensamento que o suceder? Pós-pós-positivismo? É evidente, como se vê, a necessidade de se
encontrar um nome para essa corrente de pensamento ou simplesmente deixar de utilizar este,
13
Sem razão, portanto, é a crítica feita por Michel Villey (VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e
fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 154 e VILLEY, Michel.
O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 6-8), que desconsidera a natureza relativa dos direitos
fundamentais e ignora a possibilidade de conciliação destes por meio do postulado da proporcionalidade. A
ponderação de metas, fins ou valores é inerente a qualquer atividade racional, e, independentemente do direito, é
feita por cada um de nós diariamente. Basta ver a "ponderação" que um médico faz antes de receitar um remédio,
sopesando se com ele se alcançará a cura (adequação), se não outro mais barato, ou com menos contra-
indicações (necessidade), e se os efeitos colaterais, se inevitáveis, não são piores que a própria doença
(proporcionalidade em sentido estrito). A questão, que o pós-positivismo não resolve, é se tais metas podem
ser consideradas e entre si ponderadas porque foram reconhecidas como positivadas, e, nesse caso, o que fazer
diante de um ordenamento no qual as “metas” positivadas são injustas.
14
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 86.
15
Por isso mesmo, George Marmelstein, embora a adote, afirma que essa nova corrente jusfilosófica “está sendo
chamada de pós-positivismo” (MARMELSTEIN, George.
Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas,
2008, p. 11). “Está sendo chamada” indica, com propriedade, tratar-se de terminologia provisória, como são as
“pós” de uma maneira geral. Habermas adverte, a esse respeito, que aqueles autores “que se declaram 'pós' não
são apenas oportunistas de fato atilado; temos de levá-los a sério como sismógrafos do espírito de uma época.”
(HABERMAS, Jürgen.
Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1990, p. 12). Mesmo assim a expressão é imprópria, pois
teorias positivistas posteriores a algumas das tidas como pós-positivistas.
72
passando-se a teorizar sobre o direito sem a preocupação com o rótulo a ser colocado nas
teorias, como fazem muitos pensadores de outras áreas, lucidamente mais preocupados com
os resultados de suas pesquisas e reflexões do que com a inserção delas dentro desta ou
daquela corrente de pensamento.
Talvez por isso, Arthur Kaufmann não utiliza a expressão. Refere-se à superação da
alternativa
direito natural/positivismo, que atribui à filosofia de Gustav Radbruch, e afirma,
basicamente, que:
(i) os direitos humanos e fundamentais têm o conteúdo que antes se atribuía
ao direito natural;
(ii) não se trata de positivismo, porque se incluem os valores, embora se
reconheça sua relatividade;
(iii) não se está diante de jusnaturalismo, porque não se deduz um
direito 'absultamente justo' a partir da ideia de direito.
16
Suas ideias parecem apropriadas,
cabendo apenas destacar que tampouco resolvem a questão de saber por que os direitos
humanos e fundamentais têm o conteúdo que têm e por que devem ser adotados.
4.1 Pós-positivismo e pós-modernismo
Não é incomum encontrar quem associe pós-positivismo e pós-modernismo.
17
Além
da preposição, tais correntes teriam em comum a descrença na existência de uma verdade
absoluta e de uma justiça ou de um bem absolutos. No caso do direito, o critério de correção
não estaria nem no direito posto, nem em um direito natural universalmente válido, mas seria
construído consensualmente em cada sociedade.
É preciso cautela, contudo, com essa associação, pois sob certos aspectos o pós-
modernismo, ao criticar a existência de padrões de verdade ou de correção, mina alicerces
sobre os quais algumas teorias pós-positivistas são construídas, como a ideia de direitos
humanos e de dignidade da pessoa humana.
18
Por outro lado, a associação entre as duas
16
Confira-se: KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 65-66.
17
Para um exemplo dessa associação, confira-se: BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos
do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: _______ (Org.).
A nova interpretação constitucional. ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 2-47, p. 28 e ss. Em sentido semelhante, embora não use a expressão “pós-positivismo”:
DOUZINAS, Costas. Law and justice in postmodernism. In: CONNOR, Steven (ed.).
The Cambridge
companion to postmodernism
. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 126-223, p. 196 e ss. Sobre o
pós-modernismo, veja-se: LYOTARD, Jean-François.
The postmodern condition: a report on knowledge.
Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. Manchester: Manchester University Press, 1984,
passim.
18
Gargarella, por exemplo, registra que “o pensamento 'pós-modernista' distingue-se justamente pela rejeição à
pretensão de elaborar uma teoria da justiça.” GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls
73
formas de pensamento é ainda mais dificultada pela imprecisão tanto do conceito de pós-
positivismo como de pós-modernismo.
19
Não se sabendo ao certo o que é um e o que é o
outro, torna-se difícil estabelecer a existência, ou não, de pontos em comum.
Quando se cogita de moderno, em oposição a pós-moderno, a palavra não é usada
como sinônimo de contemporâneo, ou de atual, mas como oposição a tradicional. É o que
esclarece Philippe van den Bosch, para quem
a distinção entre moderno e pós-moderno foi operada por um intelectual
contemporâneo, Jean-François Lyotard, em sua obra
La condition postmoderne
(Éditions de Minuit, 1979). Moderno não é sinônimo de contemporâneo, mas opõe-
se a tradicional. É moderno quem pensa que a verdade, o bem e a sabedoria não
residem nas tradições, nas idéias e nos costumes de nossos antepassados, mas no que
nossa mente pode descobrir. Portanto, o moderno rejeita as tradições em nome da
razão, da inovação e do progresso. Desde o Renascimento, nossa civilização é
resolutamente moderna. Mas nossa época, que duvida do progresso e até da
capacidade de encontrar o verdadeiro e o bem, é daí em diante pós-moderna.
20
Realmente, o moderno se caracteriza pela crença na possibilidade de, com o uso da
razão, se chegar a uma verdade absoluta, seja no campo científico, tecnológico, social ou
político. Contemporaneamente, porém, coloca-se em dúvida a própria existência de verdade
objetiva e de conhecimento absoluto, falando-se, portanto, de pós-modernismo, assim
entendida a superação da visão moderna de mundo.
É preciso reconhecer, contudo, ao se traçar esse tipo de divisão no pensamento
filosófico, que tais períodos e classificações são criações humanas que têm algo de
um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.
XXI.
19
“É difícil” observa Simone Goyard-Fabre - “dizer segundo quais critérios se define uma 'pós-
modernidade´cujas figuras são múltiplas e fugidias.” (GOYARD-FABRE, Simone.
Filosofia crítica e razão
jurídica
. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 5).
Talvez por isso mesmo Castoriadis afirma que os rótulos “pós”, lançados e utilizados com muito sucesso
contemporaneamente, revelam a patética incapacidade de nossa era de se definir, sendo levada a dizer-se
somente pós alguma coisa. CASTORIADIS, Cornelius.
O mundo fragmentado. Tradução de Rosa Maria
Boaventura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. v.1, p. 13.
20
BOSCH, Philippe van den. A filosofia e a felicidade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 18. O termo, porém, não é empregado com muita precisão. Alan Sokal, a respeito,
observa: “
The term 'postmodernism' is even more diffuse: it has been used to cover an ill-defined galaxy of ideas
in fields ranging from art and architecture to the social sciences and philosophy
. I propose here to use the term
postmodernism much more narrowly, to denote an intellectual current characterized by the more-or-lesss
explicit rejection of the rationalist tradition of the Enlightment, by theoretical discourses disconnected from any
empirical test, and by a cognitive and cultural relativism that regards science as nothing more than a
'narration', a 'mity'or a social construction among many others
.” SOKAL, Alan. Pseudoscience and
postmodernism: antagonists or fellow-travelers? In: FAGAN, Garrett (ed.).
Archaeological fantasies: How
pseudoarchaeology misrepresents the past and misleads the public. New York: Routledge, 2006. p. 286-361, p.
293.
74
arbitrário,
21
pois a realidade não respeita as divisões estanques que o homem faz na tentativa
de melhor compreendê-la. Tanto não existem pontos determinados de começo e fim de cada
período, que o pós-modernismo, conquanto tenha suas raízes atribuídas a Nietzsche, tem
muitas de suas características identificadas em Kant, quando este reconhece os limites da
razão,
22
e até mesmo em Miguel de Cervantes, na feitura de uma obra em que ficção e
realidade se misturam
23
- característica atribuída ao pós-modernismo na literatura. Lyotard
considera pós-modernos, por exemplo, os ensaios de Montaigne.
24
Mas é interessante
observar que o maior problema do pensamento moderno, que ensejou a sua contestação e o
surgimento do que, por enquanto, se tem chamado pós-modernismo, foi o fato de que, não se
conseguindo determinar a verdade, o justo e o certo de modo objetivo, mas tendo-se uma
crença de que isso seria possível, colocou-se a questão de saber
quem determinaria o
verdadeiro, o justo e o certo. Aquele arvorado nessa condição passaria a dominar os demais. E
21
Such periods exist more as man-made ways of carving up the past and the present than as real stretches of
time with actual, momentous beginnings and endings
”. WARD, Glenn. Postmodernism. London: Hodder &
Stoughton, 2003, p. 13.
22
Essa é a interpretação de Habermas, para quem o contra discurso que pretende esclarecer o esclarecimento
sobre suas próprias limitações “tomou como ponto de partida a filosofia kantiana.” HABERMAS, Jürgen.
O
discurso filosófico da modernidade
. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 422.
23
Diz-se, em relação ao pós-modernismo, que sua influência na literatura pode ser verificada pelo surgimento de
livros que:
(i) misturam vários gêneros ou estilos literários; (ii) comentam outros trabalhos de ficção e (iii)
contêm interrupções externas do "fluxo natural" da trama. No dizer de Glenn Ward, "the postmodernist novel is
concerned with being fiction, and with being about fiction
. It asks, can reality be separated from the stories we
tell about it?
" (WARD, Glenn. Postmodernism. London: Hodder & Stoughton, 2003, p. 31 tradução livre: "o
romance pós-modernista preocupa-se em ser ficção, e em ser sobre ficção. Ele pergunta: pode a realidade ser
separada das histórias que contamos sobre ela?") Em suma, a literatura pós-moderna não esconde do leitor o fato
de que ele está lendo uma história, e procura confundi-lo em torno da separação entre a realidade e a ficção. Pois
bem. Não obstante escrito mais de quatro séculos, Dom Quixote usa e abusa desses recursos, revelando que
realmente as separações na realidade, inclusive na História, são problemáticas. Logo em seu início são feitas
remissões à dificuldade de se escrever um livro, sobretudo por conta daqueles que “não se contendo nos limites
de sua ignorância, costumam condenar com mais rigor e menos justiça os trabalhos alheios.” Quanto às citações,
diz: “custa-me muito a andar procurando autores que me digam aquilo que eu muito bem me sei dizer sem eles.”
(CERVANTES, Miguel de.
Dom quixote de la mancha. Tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo. São
Paulo: Nova Cultural, 2002, prólogo, p. 15). O mais interessante, porém, está no capítulo VI, da primeira parte,
que cuida “Do curioso e grande expurgo que o padre-cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso
fidalgo”. Nessa parte, Cervantes faz uma análise muito bem humorada e irônica dos principais livros existentes à
época, usando seus personagens para, através deles, exprimir juízos de valor sobre os livros e determinar quais
deveriam ser queimados ou não. Algo semelhante ocorre em outras passagens, até que, no início e no final da
segunda parte, Cervantes faz alusão à primeira parte, à sua notoriedade (a segunda parte, como se sabe, foi
lançada muitos anos depois da primeira), faz alusão a uma cópia que teria sido lançada... Nesse trecho, Cervantes
aproveita inclusive para corrigir alguns lapsos constantes da primeira, como o desaparecimento e o posterior
aparecimento do ruço de Sancho Pança, sem explicação. E afirma: “lendo com vagar obras impressas, facilmente
se lhes descobrem os erros, e tanto mais se esquadrinham, quanto maior é a fama de quem os compôs. Os
homens famosos pelo seu engenho, os grandes poetas, os ilustres historiadores, sempre a maior parte das vezes
são invejados por aqueles que têm por gosto e particular entretenimento o julgar os escritos alheios, sem ter dado
um só à luz do mundo.” Como se vê, claramente, estas são características que, atualmente, são atribuídas a textos
supostamente pós-modernos.
24
LYOTARD, Jean-François. The postmodern condition: a report on knowledge. Translated by Geoff
Bennington and Brian Massumi. Manchester: Manchester University Press, 1984, p. 81.
75
isso não apenas no direito, mas em todas as demais áreas da atuação humana. Por conta disso,
Gustavo Just da Costa e Silva observa que a chamada pós-modernidade pode ser enquadrada
“pela perspectiva de uma evolução interna à condição democrática, em que, em dado
momento, a crise viria a afetar precisamente aquela dimensão de preservação do sagrado.”
25
Nas palavras de Glenn Ward, o problema do modernismo é “que ele se torna
autoritário e dogmático, presumindo dizer para as 'massas' o que é bom para elas, e
pretendendo encaixá-las em sistemas racionais e abstratos”
26
. Daí o surgimento do
pensamento pós-moderno, que
allude at once to local traditions, popular culture,
international modernism, and high-technology, yet refuse to let any one of these elements to
become dominant
.”
27
Em trecho escrito a propósito da distinção entre moderno e pós-moderno na
arquitetura, mas que poderia perfeitamente referir-se ao Direito, Glenn Ward escreveu que
meanings are never absolute or universal. According to this argument, the idea that
there are timeless or universal aesthetic truths which we should all learn to
appreciate is the product of a privileged social group (the modernist ‘taste culture’)
with a specific area of knowledge and a particular agenda. Ideas about purity and
progress and beauty are far from neutral: they are cover-ups for the social,
historical, and political positions of power from which architects draw up their
designs.
28
A propósito das repercussões da visão moderna de mundo especificamente sobre o
Direito, o mesmo autor prossegue afirmando que
The up side it was an investment in universal human rights that ultimately led to the
French Revolution and the United States’ Declaration of Human Rights. The down
side to it is that, in believing that their values should be universally applied,
Enlightenment thinkers tented arrogantly to see Europe as the most enlightened and
advanced part of the world
.
29
25
SILVA, Gustavo Just da Costa. Teologia política como legado hermenêutico. secularização e democracia
segundo Nelson Saldanha. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.).
Direito e poder nas instituições e nos
valores do público e do privado contemporâneos – estudos em homenagem a Nelson Saldanha. Barueri: Manole,
2005. p. 716-725, p. 723.
26
No original, o problema do modernismo é que that he became authoritarian and dogmatic, presuming to tell
the ‘masses’ what was good for them, and attempting to fit them into abstract, rational systems
”.
27
WARD, Glenn. Postmodernism. London: Hodder & Stoughton, 2003, p. 23. Tradução livre: “aludem ao
mesmo tempo às tradições locais, à cultura popular, ao modernismo internacional e à alta tecnologia, mas se
recusam a permitir que qualquer um destes elementos se torne dominante.
28
Ibid., 2003, p. 23. Tradução livre: “significados nunca são absolutos ou universais. De acordo com esse
argumento, a idéia de que existem verdades estéticas atemporais ou universais, que devemos todos aprender a
apreciar, é produto de um grupo social privilegiado com uma área específica do conhecimento e uma agenda
particular. Idéias sobre a pureza, o progresso e beleza estão longe de serem neutras: são disfarces para posições
sociais, históricas e políticas de poder a partir das quais os arquitetos traçam seus projetos.”
29
Ibid., 2003, p. 9. Tradução livre: “O lado bom foi um investimento em direitos humanos universais, que
conduziu à Revolução Francesa e à Declaração dos Direitos Humanos. O lado ruim é que, por acreditarem que
76
É, vale insistir, sempre difícil traçar divisões na história ou em qualquer outra parcela
da realidade. De fato, é possível identificar uma característica do pensamento moderno no
positivismo: busca pela verdade objetiva.
30
Mas, da mesma forma, uma característica pós-
moderna: descrença na existência de valores universais, de padrões de correção e de justiça.
Em relação ao jusnaturalismo, características pré-modernas (sobretudo nas correntes
teológicas), modernas (jusnaturalismo racionalista) ou mesmo pós-modernas (direito natural
de conteúdo variável). O mesmo se pode dizer do pós-positivismo, embora essa relação, como
afirmado, seja problemática por conta da imprecisão e da vaguidade tanto do rótulo pós-
positivismo como do rótulo pós-modernismo: há aspectos modernos, como a defesa, que
geralmente se faz, da necessidade de se respeitar, de forma universal, a dignidade da pessoa
humana, e também pós-modernos, como a defesa do pluralismo, da tolerância e o fato de que
a verdade é alcançada intersubjetivamente, e não dada objetivamente.
31
O aprofundamento no pensamento pós-moderno, portanto, não parece necessário aqui,
da mesma forma como não é adequada a sua associação ao pós-positivismo. Como crítica aos
excessos do pensamento moderno, sobretudo em sua fase inicial
32
, destinada a retificá-lo,
33
a
filosofia pós-moderna tem aspectos que devem ser considerados, como a necessidade de
respeito ao pluralismo e à tolerância, e a inexistência (ou a inalcançabilidade, pelo homem) de
verdades absolutas.
34
Mas é preciso cuidado com as conclusões que às vezes se tiram dessas
seus valores devem ser aplicados universalmente, os pensadores do iluminismo tenderam a ver arrogantemente a
Europa como a parte mais iluminada e avançada do mundo.”
30
Douzinas, por isso, aponta a abordagem positivista de Hans Kelsen e Herbert Hart como “tipicamente
modernista”. DOUZINAS, Costas. Law and justice in postmodernism. In: CONNOR, Steven (ed.).
The
Cambridge companion to postmodernism
. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 126-223, p. 198.
31
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 48.
32
Excessos que, diga-se de passagem, vêm sendo apontados algum tempo. Podem ser citados, a propósito,
Kant e Rousseau. O primeiro, ao apontar a limitação do conhecimento, incapaz de chegar à verdade absoluta e
objetivamente válida. E, o segundo, ao indicar os defeitos do “progresso”, da “modernidade” e da “civilização”.
33
É o caso de Canotilho, que afirma: “Apesar da abertura para curiosidades factuais relativamente aos pós-
modernos e para reconhecer que eles, com alguma crueldade, nos colocam imensos problemas de compreensão
do mundo e da vida, eu continuo a afirmar-me como moderno, porque acredito nos projectos, nas
transformações, e nesta idéia de que, através do Direito, se pode formatar melhor uma sociedade.”
CANOTILHO, J. J. Gomes. Videoconferência 21/2/2 – UFPR. J. J. Gomes Canotilho e grupos das Jornadas da
Fazenda Cainã. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.).
Canotilho e a constituição dirigente. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003. p. 23-36, p. 35.
34
Norbert Rouland, a esse respeito, registra que “a pós-modernidade não consiste em virar a página da
modernidade como se fecha um livro, mas em harmonizar suas aquisições com as da pré-modernidade e com os
novos desafios de poder e de civilização. O tempo e o espaço não cavam intransponíveis abismos entre as
sociedades tradicionais e as nossas, como se acreditava há um século. Ao contrário, percebemos cada vez melhor
os grandes fluxos que unem os diversos territórios nos quais o homem descobre e constrói seu destino, de modo
que o nosso futuro pode iluminar-se com as experiências de culturas remotas ou desaparecida. Cada a nós
continuar a desvelar nossa unidade profunda a partir da diversidade de suas encarnações.” ROULAND, Norbert.
77
constatações. Afinal, se não se pode confiar na razão e no progresso, qual o motivo para se
confiar nas teorias pós-modernas? Não são elas fruto da razão? Por outro lado, se não existe
um padrão de verdade e de justiça, como se pode defender a justiça (ou a injustiça) ou a
veracidade (ou a falsidade) de uma afirmação ou de uma conduta?
35
Como registra Simone
Goyard-Fabre, a suposta “ruptura com a modernidade” não deixa de ter suas incoerências,
pois, pelo menos no campo político, “não nega, em absoluto, pouco importa o que se tenha
dito, todas as aquisições da modernidade como, por exemplo, o antiabsolutismo nascido da
Glorious Revolution...”
36
O que se deve fazer é distinguir, como adverte Ian Shapiro,
o começo do Iluminismo, que é vulnerável aos argumentos dos críticos
antiiluministas, e o Iluminismo maduro, que não é. Os ataques à preocupação do
Iluminismo com a certeza fundadora não depõem contra a visão falibilista de ciência
que compõe o pensamento e a prática mais contemporâneos; e, quaisquer que sejam
as dificuldades contidas na idéia de direitos individuais, não representam quase nada
diante da tentativa de desenvolver uma teoria de legitimidade política sem eles.
37
Reconhecer que algo é relativo, insuficiente e provisório não é o mesmo que afirmar a
sua inexistência ou a sua imprestabilidade.
38
Não atentar para essa distinção é o erro do pós-
modernismo.
39
Erro no qual uma teoria do direito não deve incorrer. O fato de uma afirmação
ser verdadeira de forma provisória, até que sua eventual falsidade seja demonstrada, não
significa que não existam verdades ou, o que é o mesmo, que tudo possa ser verdade.
40
Karl
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 407.
35
É o que observa WARD, Glenn. Postmodernism. London: Hodder & Stoughton, 2003, p. 180.
36
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 41.
37
SHAPIRO, Ian. Fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 7. Uma crítica equilibrada aos excessos do iluminismo, verificados nesse período inicial (e não no
“maduro”), pode ser encontrada na reabilitação que Gadamer procura fazer do pré-conceito, da tradição e da
autoridade na busca pelo conhecimento: GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e método – traços fundamentais de
uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2008. v.1, p. 373.
38
Laurence Tribe e Michael Dorf, com propriedade, pontuam que “uma coisa é reconhecer os limites da
objetividade humana, e outra muito diferente é abandonar o esforço de melhorá-la.” (TRIBE, Laurence; DORF,
Michael.
Hermenêutica constitucional. Tradução de Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey,
2007, p. 86). No mesmo sentido: SHAPIRO, Ian.
Fundamentos morais da política. Tradução de Fernando
Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 205.
39
Daí porque Steven Lukes destaca que “a crítica pós-modernista pode dar margem a desafios ainda mais
amplos à autoridade da ciência, desafios que nenhum dos lados da disputa está disposto a endossar.” No original:
The postmodernist critique could lend support to wider challenges to scientific authority, challenges that
neither side in the science wars was disposed to endorse
.” (LUKES, Steven. Moral relativism. New York:
Picador, 2008, p. 14). Muitos dos autores pós-modernistas afirmam não pretender essa completa falta de
fundamentos, defendendo, no mais das vezes, uma posição social-democrata com tendências de esquerda. Não
indicam, contudo, os fundamentos para essas conclusões, que seriam calcadas apenas em um suposto dever de
tolerância. Esquecem, contudo, como nota Shapiro, que essa tolerância, sem uma fundamentação antecedente,
pode levar a que se abracem posições como a fascista. SHAPIRO, Ian,
op. cit., 2006, p. 218.
40
Como destaca Popper, “a ausência de um critério de verdade não torna sem significação a noção de verdade,
da mesma forma que a ausência de um critério de saúde não torna sem significado a noção de saúde. Uma pessoa
enferma pode procurar a saúde ainda que não tenha critério para ela. Uma pessoa que erra pode buscar a verdade
78
Popper, a propósito, observa que
há um cerne de verdade no ceticismo e no relativismo. O cerne de verdade é
justamente o de que não existe qualquer critério geral de verdade. Mas isto não
abona a conclusão de que a escolha entre teorias concorrentes seja arbitrária.
Significa meramente, muito simplesmente, que podemos errar em nossa escolha
que podemos sempre não dar com a verdade, ou não atingir a verdade; que para nós
não há certeza ....; que somos falíveis.
41
Admitir o contrário seria tão absurdo quanto pretender que, porque a física e a
astronomia cometeram erros no passado, suas afirmações atuais não devem apenas ser vistas
como verdades passíveis de refutação (e, por isso, provisórias), mas como algo que não é
verdade e que tem o mesmo valor que qualquer outra afirmação, por mais arbitrária,
irresponsável e infundada que seja. Dever-se-ia, nesse caso, preconizar a possibilidade de se
acreditar em qualquer coisa, não importando o quanto sejam absurdas e despropositadas em
face do estágio atual do conhecimento: astrologia, tarô, duendes, papai noel e até mesmo uma
teoria que afirme estar a terra suspensa nos ombros de um gigante seriam admissíveis. O
absurdo dispensa considerações adicionais e parece suficiente para demonstrar até onde as
ideias “pós-modernas” podem validamente corrigir eventuais excessos de uma visão moderna
de mundo, e a partir de onde começam a incorrer em disparates.
42
Esses disparates, em última
instância, terminam por fazer com que as ideias pós-modernas retirem por completo a
credibilidade de qualquer obra humana, inclusive, paradoxalmente, delas próprias
43
, não
ainda que não tenha critério para ela.” POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton
Amado. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1974. v.2, p. 393.
41
POPPER, Karl, op. cit., 1974. v.2, p. 394.
42
E mesmo quem acredita (ou diz acreditar) em tais disparates, no fundo, não duvida de muitos dos resultados
obtidos pela ciência. A esse respeito, com fina ironia, Lukes observa que “criacionistas e fundamentalistas
religiosos tomam vacinas contra a gripe cujo desenvolvimento pressupõe o acerto do darwinianismo, voam em
aviões e navegam na internet com seus computadores.” (no original: “
Creationists and religious fundamentalists
take flu vaccines whose development presupposes the truth of Darwinianism, fly in airplanes, and surf the Web
on computers
.”) LUKES, Steven. Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 15.
43
Confira-se, a esse respeito, o registro de Alda Judith a respeito da crítica radical da crença na ciência, que
termina por incorrer no paradoxo de ser ela, a crítica auto-refutadora. (ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith;
GEWANSDSZNAYDER, F .
O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São
Paulo: Pioneira, 2001, p. 115). Essa crítica deve ser vista como um reconhecimento de que as verdades
científicas são relativas, provisórias e intersubjetivas, mas não como a própria negação da possibilidade de tais
verdades. No mesmo sentido: LUKES, Steven.
Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 14. Aliás, Alan
Sokal destaca a contradição de muitos autores pós-modernos, que apontam o caráter relativo e provisório do
conhecimento científico para desacreditá-lo, mas inexplicavelmente dedicam bastante forte em outras formas
de conhecimento que, além de não serem dotadas de maior certeza que o científico, são completamente
desprovidas de evidências que as tornem plausíveis, como a astrologia, por exemplo. Em suas palavras, trata-se
de um “cetiscismo seletivo”, que paradoxalmente decide ser mais cético justamente com a forma de
conhecimento cujos enunciados estão amparados em alguma evidência experimental, capaz de tornar
racionalmente justificável o consenso intersubjetivo em torno das afirmações feitas. (SOKAL, Alan.
Pseudoscience and postmodernism: antagonists or fellow-travelers? In: FAGAN, Garrett (ed.).
Archaeological
fantasies
: How pseudoarchaeology misrepresents the past and misleads the public. York: Routledge, 2006. p.
286-361,
passim.
79
havendo, como afirma Popper, “qualquer base para tirar conclusões tão desesperadas.”
44
4.2 Fundamento do ordenamento jurídico para autores “pós-positivistas”
Embora se considerem oriundos de uma síntese dialética entre positivismo e
jusnaturalismo, autores pós-positivistas geralmente não se ocupam do tema relacionado ao
fundamento da ordem jurídica. Teorizam aperfeiçoamentos e inovações na forma de
interpretar e aplicar o direito posto, mas não se ocupam a respeito do que lhe serve de
fundamento.
45
Para manter a coerência com a afirmação de que o embate entre positivistas e
jusnaturalistas estaria inteiramente superado com a positivação de certas normas na
Constituição, teriam de dizer que o fundamento do ordenamento jurídico, pelo menos no
Brasil, reside na soberania popular, a teor do art. 1.º da CF/88.
Essa definição, contudo, padeceria de problemas que não poderiam ser simplesmente
tangenciados. Não se pode dizer que o fundamento do direito posto é esse ou aquele por
conta do que ele próprio, o direito posto, determina. Aliás, sequer se pode dizer que um
documento é uma constituição apenas porque isso nele se acha escrito. Laurence Tribe, a esse
respeito, lembra que
the fact that a text proclaims its own supremacy, while displaying
confidence on the part of its own authors and ratifiers, can´t in itself establish that text as
legitimate, much less as 'supreme'”.
46
Assim, o fundamento da ordem jurídica brasileira pode ser a soberania popular, mas
não porque assim está disposto no art. 1.º da CF/88. Por outro lado, uma grande parte do povo
brasileiro sequer conhece a Constituição Federal de 1988. Desprovidos de condições mínimas
de subsistência, não sabem ler, nem têm a mais mínima consciência de seus direitos. Não se
pode dizer, portanto, que escolheram conscientemente constituintes em 1988 ou que
aprovaram o texto da Constituição por eles promulgada.
Pode-se dizer, na verdade, a teor do art. 1.º da Constituição brasileira, que o Estado
44
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EdUSP, 1974. v.2, p. 401.
45
A esse respeito, Gilberto Bercovici observa, com inteira propriedade, que “a maior parte da doutrina jurídica
neglicencia o poder constituinte.” (BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e constituição: para uma crítica do
constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 37), postura que seria esperada de autores positivistas,
mas que, não obstante, é adotada inclusive por aqueles que se intitulam “pós-positivistas”.
46
TRIBE, Laurence. The invisible constitucion. New York: Oxford Press, 2008, p. 6.
80
brasileiro deve orientar-se pelo princípio democrático e que o ordenamento jurídico
deve
buscar legitimidade na aprovação popular. Mas, pode-se perguntar: e se tal artigo não
existisse? Se atribuísse a soberania a outra fonte? Poderia a Constituição escolher seu próprio
fundamento? Parece claro que não, sendo o artigo, a rigor, uma consequência, mero
reconhecimento, e não a causa, da fundamentação do poder político na soberania popular.
47
4.3 Como a dicotomia entre jusnaturalistas e positivistas é resolvida?
Como se está percebendo do que foi explicado nos itens anteriores, muitas das
soluções dadas para os problemas em torno dos quais jusnaturalistas e positivistas discutiam
não parecem autorizar a afirmação de que o antagonismo entre tais correntes filosóficas está
superado.
A esse respeito, autores pós-positivistas invariavelmente afirmam superado o
jusnaturalismo referindo-se, nesses momentos, ao direito natural de fundamentação divina
48
ou, ainda quando se reportam ao direito natural fundado na razão humana, àquele cujo
conteúdo seria eterno, universal e invariável. Esses podem até estar superados, mas isso não
significa, como foi visto, que todas as correntes jusnaturalistas se submetam à mesma
crítica. Há as que preconizam a existência de um direito natural de conteúdo variável.
Também não se pode dizer que o positivismo está superado apenas porque o
normativismo kelseniano teve suas insuficiências demonstradas historicamente, pois existem
correntes mais recentes e aperfeiçoadas do positivismo que procuram aprimorá-lo.
Aliás, certas teorias pós-positivistas, apegadas ao fato de que os princípios podem ser
aplicados e teorizados porque positivados, ou reconhecidos como normas jurídicas, nada mais
fazem do que dar novas vestes ao positivismo jurídico. Afinal, para ter alguma serventia, o
princípio precisou, para seus partidários, ser considerado como norma jurídica positiva.
Teorias que preconizam excessiva atenção à linguagem, que seria o substrato de tudo, sem
atentar a conteúdos ou valores, do mesmo modo, podem ser consideradas o “retorno sob
47
Ainda sobre o fato de a Constituição não ser a fonte da soberania, e sim o contrário, confira-se a lição de
Gilberto Bercovici, para quem “o princípio da soberania popular significa que a constituição é fruto da soberania
popular, e não o contrário.” BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e constituição: para uma crítica do
constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 20.
48
“A tentativa de reduzi-lo à versão teológica parece-nos, antes, uma tática de apresentá-lo na estreiteza de
forma única e simples, como se ela representasse todo o Direito Natural, a fim de melhor dar-lhe combate.”
VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 32.
81
novas vestes do positivismo.”
49
Chega-se mesmo a dizer que a Constituição Federal de 1988 seria pós-positivista,
confundindo-se o objeto (a Constituição) com o modo de estudá-la (positivista, pós-positivista
etc.), e tudo porque nela teriam sido positivados princípios à luz dos quais as regras legais
teriam de ser compatibilizadas.
50
Na verdade, desde a primeira Constituição brasileira,
outorgada em 1824, existem disposições semelhantes às que hoje constam do art. 5.º da
Constituição promulgada em 1988. O art. 179 da Constituição de 1824, por exemplo,
veiculava rol de “direitos fundamentais” a partir do qual seria possível afirmar a existência de
diversos “mandamentos de otimização” destinados a preservar valores inerentes à dignidade
da pessoa humana, tal como hoje se diz das Constituições contemporâneas.
Não é novidade, portanto, inerente a Constituições surgidas depois da Segunda Guerra
Mundial, supostamente pós-positivistas, a consagração de princípios. existia, em 1824,
além do princípio da legalidade, e da irretroatividade, a exigência de que a lei tivesse
“utilidade pública” (art. 179, II). No âmbito tributário, se previa o que hoje se conhece por
princípio da capacidade contributiva (inciso XV). Basta ler o mencionado artigo 179 da Carta
de 1824 para nele localizar disposições semelhantes às que hoje veiculam os princípios da
proteção à coisa julgada (XII), o direito à saúde (XXXI), à educação (XXXII), o sigilo de
correspondência (XXVII), o direito de petição (XXX), a liberdade profissional (XXIV) etc.
Constava, até mesmo, a exigência de que o Código Civil e o Código Comercial se fundassem
na
justiça e na equidade (XVIII). Não obstante tudo isso, em disposições com status
constitucional, havia a escravidão, só abolida em 1888.
Daí se pode concluir que, na segunda metade do Século XX, o que se modificou e se
aprimorou foi a maneira de interpretar e de aplicar tais disposições. Não é o texto da
Constituição de 1988 que é “pós-positivista”, mas a maneira de interpretá-lo, numa
demonstração eloquente de que o método molda a forma como se vê o objeto e de que texto e
49
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito – introdução e teoria geral. 2.ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 179. No mesmo sentido: VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios
do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 31. A razão
parece estar, nesse caso, com Goyard-Fabre, quando observa que “[e]mbora a linguagem seja para o direito um
auxiliar indispensável, é ao campo do ilocutório extralinguístico que pertence sua essência. É certo que o
direito precisa do locutório para ser dito e comunicado; sem ele, a qualificação jurídica dos fatos seria até
impossível. Mas a essência do direito não reside na linguagem jurídica; encontra-se 'acima dos elementos
linguísticos'; oculta-se na 'extraordinária engenharia subterrânea, inaparante, que está por trás de nossos
procedimentos e de nossa vida social.' (P. Amselek).” GOYARD-FABRE, Simone.
Os fundamentos da ordem
jurídica
. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 293.
50
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1.ª T, REsp 834.678/PR, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 26.6.2007. Diário
de Justiça
, Brasília, DF, 23 ago. 2007, p. 216.
82
norma são coisas distintas, sendo esta o
sentido daquele, dado pelo intérprete.
Nesse contexto, em procedimento contraditório, autores pós-positivistas ora afirmam
que os princípios podem ser invocados por haverem sido (supostamente só agora) positivados
na Constituição, tendo
status de norma jurídica,
51
ora afirmam que existem princípios que,
independentemente de terem ou não sido positivados, estão “incorporados ao patrimônio da
humanidade”
52
, e que “toda cultura, enquanto não viole a dignidade humana, é válida e
valiosa, e, como tal, deve ser respeitada e protegida.”
53
Oscila-se entre um evidente
neopositivismo (dando importância aos princípios porque eles
agora são vistos como normas
positivas, previstas no ordenamento positivo
), e um claro embora inconfesso - apelo
jusnaturalista (aludindo-se a um princípio suprapositivo que seria “patrimônio da
humanidade”, independentemente de estar positivado ou não),
54
revelando com isso o acerto
de Gregório Robles, quando afirma que
en materia de derechos humanos es fácil, y también
habitual, quedarse en la pátina de las palabras biensonantes, sin especificar los contenidos
concretos que tan bellas palabras implican.
55
Na verdade, não se pode confundir positivismo com positividade. A positivação de
normas cujo conteúdo corresponde ao que se conhece por direitos humanos, os quais podem
ser associados ao direito natural
56
, além de não representar, como visto, grande novidade, não
significa que tenha desaparecido a possibilidade de o ordenamento existente ser criticado à luz
de um ordenamento jurídico possível.
Além disso, o fato de se reconhecer a positividade dos princípios, a supremacia da
51
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luis Roberto (Org.).
A nova interpretação
constitucional
. ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 2-47, p.
29.
52
Ibid., 2006, p. 38.
53
LOPES, Ana Maria D´Ávila. Proteção constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a
perspectiva do multiculturalismo.
Revista de informação legislativa, Brasília: Senado Federal, v. 45, p. 19-29,
p. 26, 2008.
54
Quando, por exemplo, John Rawls e Roberto Gargarella (GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça
depois de Rawls
um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 11) afirmam que o utilitarismo, usado como critério para determinação do direito positivo, é
insatisfatório porque suprime os direitos da minoria, pressupõem, embora não o reconheçam expressamente, a
existência de direitos
anteriores àqueles reconhecidos e positivados pela maioria em desfavor da minoria. Em
suma, reconhecem a existência de padrões de julgamento do direito positivo que estão além dele, precisamente
os padrões que usam para afirmar que o utilitarismo não é adequado.
55
ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1995, p.
11.
56
No dizer de Miguel Reale, “os direitos humanos, mais do que nunca na ordem do dia, estão sempre ligados a
esta ou àquela outra forma de jusnaturalismo” (REALE, Miguel.
Direito natural/direito positivo. São Paulo:
Saraiva, 1984, p. IX). No mesmo sentido: HERVADA, Javier.
Lições propedêuticas de filosofia do direito.
Tradução de Elza Maria Gasparotto. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 405.
83
Constituição sobre as leis e de se haver construído toda uma teorização sobre a interpretação e
a aplicação dos princípios, embora tenha trazido notáveis avanços ao estudo do direito
positivo, não foi responsável pela “objetivação de valores”.
57
O que se aprimorou foi a forma
de lidar com eles, que já poderiam ser considerados objetivados em qualquer norma jurídica.
Como se sabe, toda norma jurídica, e até toda norma de conduta, decorre da valoração
de um fato. Quem elabora uma norma, seja um rei, um faraó, legisladores democraticamente
eleitos ou a própria sociedade (pela via consuetudinária), o faz de modo a permitir, obrigar ou
proibir condutas a partir de algum critério. Observa-se um fato (
v.g., o fato de que algumas
pessoas matam seus desafetos),
valora-se esse fato (v.g, considera-se indesejável que isso
ocorra) e, a partir de tais premissas,
normatiza-se um tratamento jurídico para ele. As normas,
evidentemente, não são feitas a partir de considerações aleatórias a respeito da conveniência
de se proibirem ou não certas condutas. Alguma valoração as antecede. Por isso mesmo, o
próprio Kelsen, que não parece ser classificável como “pós-positivista”, admitia a figura do
valor objetivo (objetivado nas normas). Em sua concepção, os valores podem ser de duas
espécies, a saber, os subjetivos ou
axiológicos e os objetivo ou lógicos. Os da primeira
espécie são presentes em cada intérprete, ou aplicador, que em face dos mesmos pode
considerar que a norma é injusta ou deveria dispor de maneira diferente. Os da segunda são
consagrados nas próprias normas, objetivamente. Por isto podem ser aferidos
independentemente da postura subjetiva do intérprete. Os da primeira espécie na relação de
uma conduta com o dever ser segundo a concepção de cada um. Os da segunda espécie
situam-se “na relação de uma conduta com uma norma objetivamente válida”.
58
A questão, portanto, não reside em saber se o ordenamento X objetiva valores através
das normas que o compõem. Isso é comum a todos os ordenamentos, que, como dito, não
permitem ou proíbem comportamentos de forma aleatória. Por isso, a admissão da
positividade de princípios, assim entendidas as normas que têm estrutura de mandamento de
otimização, ou que preconizam a promoção de um estado ideal de coisas sem indicar os meios
ou as condutas a tanto necessárias, em nada resolve a questão posta, e que divide
57
É o que afirma, por exemplo, Willis Santiago Guerra Filho, para quem a positivação de valores, que os
tornaria objetivos, teria sido a forma encontrada pelo “pós-positivismo” para superar o antagonismo entre
positivismo jurídico e jusnaturalismo. GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Teoria processual da constituição.
São Paulo: Celso Bastos Editor/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, p. 169.
58
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de J. Batista Machado. 3.ed. Coimbra: Arménio Amado,
1974, p. 43.
84
jusnaturalistas e juspositivistas.
59
Pode haver, quando muito, a superação de alguns aspectos do problema, relativos, por
exemplo, a uma suposta discricionariedade do intérprete na determinação do sentido das
normas, ao reconhecimento da existência de normas jurídicas com estrutura de mandamento
de otimização
60
e aos aprimoramentos de ordem hermenêutica que daí decorrem.
61
Mas a
questão fundamental que separava as correntes não se resumia a isso, reportando-se em
verdade aos fundamentos da ordem jurídica. Afinal, o que deve ocorrer se as tais normas
houverem objetivado valores considerados (saber
por quem é outra questão) injustos?
4.4 Pós-positivismo e ordenamentos jurídicos injustos
A premissa de que partem os textos que se intitulam pós-positivistas, não raro, é a
Constituição, os direitos fundamentais nela positivados e o reconhecimento de sua
positividade. Construiu-se isso é inegável uma aperfeiçoada e notável teoria dos direitos
fundamentais e da interpretação constitucional, com a qual se reconhece o papel criador do
intérprete, a relevância das circunstâncias do caso concreto e dos princípios pertinentes ao
problema, e sobretudo a importância de uma fundamentação racional, que vise a conter o
arbítrio dos julgadores e permitir o controle intersubjetivo da racionalidade de seus juízos.
Nesse aspecto, deve-se reconhecer que houve certa superação do antagonismo entre
jusnaturalismo e positivismo, quando se cogita da função do intérprete e do aplicador da lei.
Nem se preconiza que o intérprete deva simplesmente adequar a norma ao direito natural, mas
59
Daí porque Javier Hervada afirma, referindo-se ao pós-positivismo, que “essa tentativa está de antemão
condenada ao fracasso – apesar do brilhante sucesso que está tendo – pois não só não resolve os problemas que o
positivismo propôs à ciência jurídica, como os agrava, porque, mais que pós-positivismo, é uma forma de
ultrapositivismo. A Teoria do Direito em suas atuais versões é, na realidade, um dos últimos estertores da
decadente e quase fenecida
modernidade.HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito.
Tradução de Elza Maria Gasparotto. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 350.
60
A incapacidade da doutrina positivista normativista tradicional, pelo menos nos moldes da Teoria Pura do
Direito de Hans Kelsen, de lidar com normas com estrutura de princípio pode ser observada de diversas
passagens da própria Teoria Pura, nas quais se afirma que “a graduação do valor no sentido objetivo não é
possível, visto uma conduta somente poder ser conforme ou não ser conforme uma norma objetivamente válida,
contrariá-la ou não a contrariar – mas não ser-lhe conforme ou contrariá-la em maior ou menor grau.” (KELSEN,
Hans.
Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
22). Pode-se dizer, nesse ponto, que o reconhecimento de normas positivas com estrutura diversa, que
comportam aplicação em maior ou menor grau, é um aprimoramento da doutrina positivista, mas que não deixa,
só por isso, de ser – ou de poder ser – igualmente considerada positivista.
61
Esses aprimoramentos, no âmbito da hermenêutica e da argumentação, decorrem, na observação de Villey, do
reconhecimento de que o direito não se restringe à lei. VILLEY, Michel.
Filosofia do direito. definições e fins
do direito. os meios do direito. Tradução de Maria Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 441.
85
tampouco se exclui toda a análise a respeito dos elementos que influenciam sua inafastável
parcela criadora na aplicação da norma, por suposta acientificidade. Não é o propósito deste
texto, entretanto, aprofundar tais aspectos hermenêuticos, pois, não obstante sua importância,
não são relevantes para a solução do problema que se coloca aqui. Afinal, a questão é: e se a
ordem jurídica, em vez de positivar princípios que consubstanciam o reconhecimento dos
direitos humanos, positiva normas (regras e princípios) injustas? Imagine-se, por hipótese,
62
um ordenamento jurídico que consagre, em sua Constituição, o seguinte artigo:
Art. 1.º O Estado XXX rege-se pelos seguintes princípios:
I – superioridade da raça ariana;
II – proteção ao meio ambiente;
III - inferioridade do sexo feminino;
IV – proteção à livre-iniciativa.
Dos quatro incisos acima transcritos, seria possível dizer que contêm mandamentos de
otimização. Ou, na definição de Humberto Ávila, normas
imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de
complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação
da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção.
63
Poder-se-ia até teorizar, adicionalmente, que, em face do princípio da livre iniciativa,
indivíduos não arianos poderiam exercer atividade econômica, mas não teriam as mesmas
vantagens que os indivíduos arianos, pois seria necessário conciliar o princípio contido no
inciso IV com o veiculado pelo inciso I. Uma empresa de um não ariano, por exemplo,
sofreria mais restrições de natureza ambiental do que a empresa de um ariano, pois com isso
se conciliariam de forma otimizada os mandamentos dos incisos I, II e VI.
O exemplo mostra, a toda evidência, que a teorização construída em torno dos
princípios, fundada naqueles que efetivamente foram positivados nas Constituições, não
62
O exemplo pode parecer toscamente caricaturesco, mas não está assim tão distante de outras constituições que
existem (China) ou já existiram (África do Sul). Na Constituição chinesa vigente, de 1982, por exemplo,
constam como princípios fundamentais “1.º) o socialismo; 2.º) a ditadura democrático-popular; 3.º) o marxismo-
leninismo e o pensamento de Mao Zedong; 4.º) a direcção do partido comunista chinês.” MIRANDA, Jorge.
Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 121.
63
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 70.
86
supera o antagonismo entre jusnaturalismo e positivismo jurídico.
64
Isso porque não oferece
elementos que permitam julgar, ou não, o tal artigo. Teorizam a ponderação de princípios,
mas em função de sua forma, ou estrutura normativa, não tendo maior relevo o seu
conteúdo.
65
Mostra, ainda, o acerto de Gregório Robles, quando este afirma que, ao tangenciar o
problema do fundamento dos direitos em geral e dos direitos humanos, em particular, omite-
se a questão de saber
por que a realização de tais direitos é boa. Não se podem defender
valores sem saber por que, pelo que, quando se afirma que o ordenamento jurídico deve
fundar-se nos direitos humanos, se está a defender
no cualquier cosa, sino determinados
ideales y valores. La determinación de estos exige partir precisamente de su fundamento.
66
O pós-positivismo, em suma, não é um sinal do fracasso do jusnaturalismo. O que
houve, em verdade, foi que a maior parte das ordens jurídicas positivou normas, com estrutura
de princípio,
67
que têm conteúdo que se diz correspondente ao que antes se atribuía ao direito
natural.
68
Entretanto, o fato de o direito positivo estar, circunstancialmente, de acordo com o
64
Demonstrando a compatibilidade do positivismo jurídico com os princípios jurídicos, assim entendidas as
normas dotadas de elevado grau de generalidade e abstração, confira-se: DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI,
Soraya Gasparetto. O positivismo jurídico diante da principiologia. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio
Oto (Coord.).
Teoria do direito neoconstitucional superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São
Paulo: Método, 2008. p. 179-197, p. 179 e ss.; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves.
Interpretação constitucional e
direitos fundamentais
. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 96-97.
65
É a observação de Dimitri Dimoulis a respeito, por exemplo, de Ana Paula Barcellos, autora que, para ele, não
oferece critérios para solução do problema surgido na hipótese de serem injustos os princípios positivados, a
serem objeto de ponderação. DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico introdução a uma teoria do direito e
defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 91.
66
ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1995, p.
13.
67
O positivismo se aprimorou para lidar com elas, não porque admita realidades não-positivadas, mas sim
porque eles, os princípios, foram positivados. É o que reconhece Luis Roberto Barroso, ao afirmar que “os
princípios tiveram de conquistar o
status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão
puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata.” (BARROSO, Luís
Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria
crítica e pós-positivismo. In: ________ (Org.).
A nova interpretação constitucional. ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 2-47, p. 30). Continuou-se, por conseguinte,
no positivismo.
68
Afirmando de modo claro e explícito a fundamentação moral dos direitos fundamentais, Dworkin registra que
esse fundamento moral faz com que sejam oponíveis às deliberações da maioria. Em suas palavras,
most
legitimate acts of any government involve trade-offs of different people’s interests; these acts benefit some
citizens and disadvantage others in order to improve the community’s well-being on the whole
. When Congress
stipulates a tariff on particular imports, a tax on particular luxuries, or a subsidy for farmers growing a
particular crop, or when a state or city decides to build an airport, a sports stadium, or a new highway in one
place rather than another, that decision helps some citizens and harm others
. It is justified if its overhall effect,
taking account of the gains to some citizens and losses to others, is beneficial
. If it really is best for everyone
overall to build the airport near my house rather than yours, I have no legitimate complaint against that
decision
. But certain interests of particular are so important that it would be wrong morally wrong for the
community to sacrifice those interests just to secure an overall benefit
. Political rights mark off and protect these
87
que se considera ser o direito natural não significa que o antagonismo nas correntes filosóficas
tenha desaparecido. Afinal, e se a correspondência desaparecer? Se se estiver diante de norma
jurídica injusta? Qual seria o fator que justificaria e legitimaria uma revolução com a
finalidade de estabelecer uma nova ordem jurídica, coerente com os valores cultivados pelas
pessoas cuja conduta a ela se submete? A resposta, para um jusnaturalista, seria fácil: o direito
natural.
69
Aliás, mesmo sem se estar diante de cenário inusitado de uma Constituição com o
conteúdo imaginado parágrafos acima, a questão do fundamento do ordenamento não
respondida satisfatoriamente ou simplesmente omitida pela maior parte dos autores o pós-
positivistas – subsiste importante para que se justifique o cumprimento à ordem jurídica atual.
Mas isso restabelece o problema das doutrinas jusnaturalistas: dada a relatividade dos
valores e a variabilidade do conteúdo do direito natural, reconhecida por seus teóricos
contemporâneos,
quem pode determinar-lhe o conteúdo e julgar a adequação do direito
positivo para com ele?
Essa questão mostra-se bastante atual, estando longe de ser uma discussão acadêmica
sem sentido, se se considerar que, embora pareça improvável a edição de uma Constituição
com artigo semelhante ao imaginado alguns parágrafos acima, é comum o estarrecimento de
pessoas de uma cultura para com as práticas consideradas normais por pessoas de outra.
70
O
multiculturalismo,
71
com efeito, restabelece, com toda a ênfase, a discussão entre positivistas
e jusnaturalistas, e revela que não é o fato de em algumas Constituições terem sido
positivadas normas relativas aos direitos humanos, com estrutura de princípio, que resolve o
antagonismo. Afinal, e nos ordenamentos em que tais normas não se encontram positivadas?
particularly important interest.” DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new
political debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 31.
69
Por isso se diz que o Direito Natural não fracassou. O que ocorreu foi que o Direito Positivo acolheu a maioria
de seus princípios, tendo a doutrina aperfeiçoado a metodologia de interpretação e aplicação das normas, para
manejar os princípios. Mas isso não significa o fim do Direito Natural. De modo algum. Onde quer que venha a
ser positivada uma ordem jurídica injusta, com o qual a respectiva sociedade (as pessoas individualmente, e o
todo por elas formado) não se conforme, o Direito Natural retorna e legitima uma revolução. Se em pequena
intensidade, pela via exegética. E a necessidade de correção for maior, pela via revolucionária. ORTEGA,
Manuel Segura.
La racionalidad jurídica. Madrid: Tecnos, 1998, p. 29.
70
Além disso, com que direito podemos exigir que se creia na bondade do que defendemos, ou mesmo nas
virtudes da Constituição atualmente em vigor,
si no somos capaces de fundamentarlo? Me cuesta trabajo
aceptar que el gran filósofo del derecho Norberto Bobbio se haya quedado tan tranquilo diciendo que el
problema de los derechos humanos no es el de su fundamentación sino el de su realización
. ¿Para qué entonces
elaborar teorías sobre los derechos?
” ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética en la
sociedad actual
. Madrid: Civitas, 1995, p. 14.
71
A diversidade seria, para alguns, a demonstração de que não existe um padrão universal de justiça,
possibilitando a adoção de qualquer padrão. ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 234.
88
4.5 Pós-positivismo e multiculturalismo
A deficiência das teorias que se intitulam pós-positivistas, no que diz respeito à
fundamentação do ordenamento jurídico, emerge, com clareza, quando se enfrenta a questão
do multiculturalismo, especialmente no âmbito internacional.
Com efeito, no âmbito de um mesmo Estado nacional, em cuja Constituição direitos
fundamentais são consagrados, pode-se dizer que o direito à própria cultura existe, mas deve
ser conciliado proporcionalmente com os direitos dos demais membros da sociedade,
inclusive dos integrantes do grupo de cuja peculiaridade cultural se cogita.
72
Foi o que se fez,
no Brasil, em relação ao julgamento “raposa serra do sol”, no qual o STF entendeu que uma
reserva indígena deveria ser demarcada de forma contínua, mas ressalvou a presença do
Estado (monitoramento da União) em toda ela, fazendo com que não representasse a criação
de uma “nação indígena” perante a comunidade internacional.
73
Seguiu-se a observação de
Jürgen Habermas, segundo a qual “a compreensão moderna do direito proíbe certamente um
‘Estado dentro do Estado’.”
74
Não é o que ocorre, evidentemente, quando o integrante de uma cultura examina a
ordem jurídica de um Estado composto de pessoas que adotam outro padrão cultural, não
havendo critério jurídico-positivo que permita dizer o que é “o certo” em cada uma delas. Em
tais casos, nos quais os princípios constitucionais de uma determinada ordem jurídica não
servem necessariamente de paradigma, como julgar a correção de um ordenamento jurídico
diverso
75
do nosso? Preconizar-se que todos os Estados devem respeitar os direitos humanos
não resolve a questão, pois continua sendo possível indagar: por quê?
72
MCGOLDRICK, Dominic. Multiculturalism and its discontents. In: GHANEA, Nazila; SANTHAKI,
Alexandra.
Minorities, peoples and self-determination. Leiden: Martinus Nijhoff, 2005. p. 211-235, p. 233.
73
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, AC 2009, item 69 do voto do Min. Carlos Ayres de Britto, relator.
74
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 339.
75
Norbert Rouland observa que “a maior parte da humanidade não compartilha a visão ocidental do direito e de
sua sanção. O recurso aos advogados e aos juízes para solucionar um conflito é tão natural para um americano
quanto parece incongruente a um chinês; o muçulmano junta o direito à religião com tanta resolução quanto o
ocidental tem de afastá-lo dela.” (ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina
de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 31). Sua avaliação, contudo, embora correta ao
apontar a existência de alguma variação nos padrões axiológicos ou éticos no espaço e no tempo, peca pelo
excessivo simplismo, quando trata todos os membros de um grupo como se tivessem os mesmos valores.
“ocidentais” que juntam direito e religião, como se observa, por exemplo, da atuação da bancada evangélica na
Câmara dos Deputados no Brasil, ou de George W. Bush, nos Estados Unidos, que afirmou ser “santa” a guerra
que iniciava contra países do oriente médio. E, do mesmo modo, “orientais” que pugnam essa separação,
como é o caso de Gandhi. Tais exemplos serão adiante retomados.
89
De fato, é o aparente antagonismo existente entre a universalização dos direitos
humanos, de um lado, e o respeito às diferenças culturais, de outro, incrementado pela
aceleração
76
no processo de globalização
77
, que escancara, para quem quiser ver, o fato de que
a positivação de certos direitos em constituições e tratados não é suficiente para superar a
divergência entre positivistas e jusnaturalistas.
Voltando ao exemplo apontado na introdução, há tribos nativas da América do Sul nas
quais crianças são eventualmente abandonadas na mata para morrer, asfixiadas, envenenadas
ou enterradas vivas por serem portadoras de deficiências físicas ou problemas congênitos.
78
Algo que parece grotesco e desumano, mas que para muitos dos que o praticam é normal.
76
Diz-se aceleração porque, a rigor, “nunca deixou de haver globalização, antes e depois da era cristã”
(BONAVIDES, Paulo.
Do país constitucional ao país neocolonial. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 15). Trata-se
de algo natural e inerente às organizações humanas, como adverte Pontes de Miranda: “A História, a Etnologia e,
até certo ponto, a Pré-História mostram-nos que as organizações humanas surgem e se sucedem no sentido de
círculos cada vez mais largos e no sentido de cada vez maior integração dos grupos sociais. Etnólogos falam de
lei de aglutinação crescente; moralistas, de expansão e desenvolvimento da solidariedade; sociólogos, se
interessados no fenômeno político, de crescimento dos imperialismos e da absorção estatal; economistas, de
progressiva interpenetração dos interesses e consequente federalismo econômico; antropogeógrafos, de lei dos
espaços crescentes; e até teólogos e sociólogos das religiões, em expansibilidade aglutinante das crenças. São,
evidentemente, visões parciais, enunciados insuficientes. Em todos os processos sociais (que nós podemos
representar como dimensões dos corpos coletivos) observa-se a mesma tendência à expansão” (MIRANDA,
Pontes de.
Comentários à constituição de 1967. São Paulo: RT, 1968. v. 1, p. 47). No mesmo sentido, Alain
Supiot destaca que “isso a que chamamos a 'globalização' não é um fenômeno radicalmente novo, mas a última
etapa de um processo plurissecular de mundialização.” SUPIOT, Alain.
Homo juridicus – ensaio sobre a função
antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 231.
77
Sobre a relação entre multiculturalismo e globalização, confira-se: MCGOLDRICK, Dominic.
Multiculturalism and its discontents. In: GHANEA, Nazila; SANTHAKI, Alexandra.
Minorities, peoples and
self-determination
. Leiden: Martinus Nijhoff, 2005. p. 211-235, p. 213. E ainda: CARBONELL, Miguel.
Constitucionalismo y multiculturalismo. Disponível em:
<http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derycul/cont/13/ens/ens3.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2006, que
aponta o maior contato entre as culturas como motivador também de
un redescobrimiente del valor de lo
propio, de lo distinto e de lo antiguo
”. Vale dizer, a globalização propicia a maior influência de umas culturas
sobre outras, mas, também, como movimento antitético, à maior valorização das particularidades culturais.
78
relatos da prática tradicional por parte de técnicos da Funai e da Funasa, e até um projeto de lei a tramitar
no Congresso Nacional com o qual se procura combater o problema (PL 1057/07, do Deputado Henrique
Afonso, do PT do Acre). As crianças são mortas não quanto portadoras de deficiência, mas também quando
há discrepância entre o número de homens e mulheres (servindo o sacrifício para “igualar” o número de
indivíduos de cada sexo), quando nascem gêmeos, ou quando nasce uma criança enquanto sua mãe ainda
amamenta a nascida anteriormente. Há uma diversidade de causas, não sendo nosso propósito elencar todas aqui.
Nesse sentido: AMAZÔNIA.
Projeto proíbe infanticídio em tribos indígenas. Disponível em:
<http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=259036>. Acesso em: 6 jun. 2008 e PORTAL SESC.
Bebês indígenas, marcados para morrer crianças indesejadas são sacrificadas nas aldeias. Disponível em:
<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=276&breadcrumb=1&Artigo_ID=4340&
IDCategoria=4948&reftype=1>. Acesso em: 7 jun. 2008. O infanticídio, aliás, tem sido adotado por grupos
humanos para o controle do número de seus integrantes desde o surgimento do
homo habilis, entre dois a um
milhão e meio de anos antes de nossa época. A prática consistiria juntamente com outras, como a criação de
certos tabus sexuais – em mecanismo de defesa dos grupos, que do contrário teriam crescido descontroladamente
tão logo dominadas as ferramentas que lhes permitiram proteger-se das feras e reduzir a mortalidade entre os
adultos. ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 43-44.
90
Por sua vez, muitas das práticas que nos parecem normais são igualmente
incompreensíveis para pessoas oriundas de outras culturas.
79
Os próprios nativos da América
do Sul, por exemplo, conforme o relato feito por Montaigne das impressões que três deles
tiveram quando visitaram Ruão, encontrando-se com Carlos IX,
[d]isseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de
alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam junto do rei
(provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma
criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em
segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as
comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados,
miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais
infelizes chamavam ‘metades’); e acham extraordinário que essas metades de
homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos
demais.
80
O que geralmente se afirma, diante de tais discrepâncias culturais, é que uma cultura
não deve julgar a outra a partir de seus próprios valores, mas que todas devem
aprender umas
com as outras,
buscando corrigir defeitos e incorporar qualidades.
81
Afinal, todas as culturas –
observa Boaventura de Sousa Santos –
são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A
incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois se
cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma cultura. A
idéia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem
enfermar todas as culturas e é por isso que a incompletude é mais facilmente
perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura.
82
Daí dizer-se que la existencia de otras culturas permite observar modelos
alternativos de organización de los cuales pueden tomarse elementos útiles para la reforma y
mejoramiento de las organizaciones sociales
.”
83
Tais afirmações são acertadas, mas não resolvem a questão relativa ao fundamento da
79
Revelando ideias altamente avançadas para a sua época, Montaigne, depois de admitir não ver nada de bárbaro
nos povos nativos da América do Sul, observa que “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua
terra.” MONTAIGNE, Michel de.
Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v. 1, p.
195.
80
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v. 1, p. 203.
81
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 234.
82
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO,
Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.).
Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3-46, p. 18.
83
CARBONELL, Miguel. Constitucionalismo y multiculturalismo. Disponível em:
<http://www.juridicas.unam. mx/publica/librev/rev/derycul/cont/13/ens/ens3.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2006, p.
10.
91
ordem jurídica. Com efeito, por que uma cultura deve aprender com a outra? O que uma
cultura deve aprender com a outra? Qual o padrão de julgamento ou o critério para que se
identifiquem, em cada cultura, os defeitos a serem corrigidos e as qualidades a serem
incorporadas? E mais: por que se deve assegurar a diversidade cultural? A resposta a essas
questões exige julgamentos, juízos de valor, e estes não podem ser feitos à luz do direito posto
ou no âmbito de uma teoria positivista que se diz alheia aos valores.
É nesse ponto, quando se busca resposta para essas perguntas, que se percebe que a
apontada superação entre jusnaturalismo e juspositivismo não é alcançada com o uso dos
métodos apontados pelo pós-positivismo. O dualismo reaparece. Há autores, como Jack
Donnely, que apontam na moral, ligada à natureza humana, o fundamento dos direitos
humanos e, por conseguinte, do ordenamento jurídico estatal, que deve no respeito a tais
direitos buscar apoio.
84
Outros sustentam que inexiste padrão axiológico universal e pré-
existente, sendo ele
criado em cada sociedade, o que tornaria absolutamente impossível a uma
julgar as outras.
85
É verdade que o direito, enquanto realidade institucional, não pode ser simplesmente
transplantado de uma sociedade para outra. Como uma moeda, ou uma expressão idiomática,
as normas têm sentido no ambiente em que foram criadas, na medida em que são
reconhecidas pelos demais. Por isso, Alain Supiot observa que, conquanto o trabalho infantil
seja algo altamente reprovável nas grandes cidades do mundo ocidental, o mesmo raciocínio
talvez não se aplique a certas comunidades da África Subsaariana, em relação às quais proibir
“o trabalho das crianças em sociedades sem escola é proibir-lhes qualquer possibilidade de
aprendizado de sua cultura.”
86
Essa dificuldade já era percebida há muito, com agudeza, por Montaigne, que advertia,
a respeito dos alegados defeitos (especialmente a antropofagia) das comunidades nativas
americanas, que
o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo
que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior
84
DONNELY, Jack. Human rights, individual rights and collective rights. In: BERTING, Jan et al. (ed.).
Human rights in a pluralist world. Individuals and collectivities. London: Westport, 1989. p. 39-62, p. 40 e
41. Em termos semelhantes, Habermas afirma que “uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não
contrariar princípios morais.” (HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e validade.
Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 141).
85
Cf., v.g., WALZER, M. Spheres of justice. Oxford: Blackwell, 1983, passim.
86
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 258.
92
esquartejar um homem vivo entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou
entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos
mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais
grave do que assar e comer um homem previamente executado.
87
Como, então, saber o que deve ser preservado de cada cultura e o que não deve? Isso,
como afirmado, envolve um juízo de valor, pelo que a tentativa de afastar a metafísica não
tem como ser bem sucedida. Charles Taylor, por exemplo, afirma que a ideia de que todo ser
humano tem igual valor e merece igual respeito é “metafísica”, devendo ser afastada.
88
Em
seu lugar, contudo, preconiza que todo ser humano tem potencialidades, que lhes são dadas
pela racionalidade. Esses dados, potencialidades e racionalidade, seriam concretos, e não
metafísicos. E, em virtude disso, pretende que a afirmação segundo a qual todos têm que ter o
direito de desenvolver essas potencialidades não seja metafísica. Entretanto, é evidente que a
afirmação de que as pessoas devem ter o direito de desenvolver suas potencialidades envolve
um juízo de valor, sendo, nesse sentido, metafísica. Afinal, por que as pessoas têm de ter a
oportunidade de desenvolver suas potencialidades? Por que isso deve ser incentivado e
viabilizado, e não reprimido ou evitado? E por que todas têm de ter esse direito, e não
algumas, os homens, por exemplo?
Na verdade, tanto os que preconizam a necessidade de respeito às particularidades das
várias culturas, como os que preconizam que todas elas devem em maior ou menor grau
preservar os direitos humanos, o fazem a partir de juízos de valor, e, logo, de considerações
metafísicas, pois eles, os juízos de valor, não podem ser apreendidos pelos sentidos, não
pertencendo ao mundo físico. A diferença é que os primeiros geralmente admitem isso, de
uma forma ou de outra, ainda que com o uso de palavras diferentes para designar o que aqui
se chama de “considerações metafísicas”, enquanto os segundos o rejeitam expressamente.
Mesmo o mais cético multiculturalista
89
defende ser desejável a existência de
diversidade cultural e de tolerância e que, por conta da ausência de um padrão absoluto, uma
cultura
não deve procurar impor suas práticas às demais. Faz isso para evitar juízos de valor a
87
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v. 1, p. 199.
88
TAYLOR, Charles. Multiculturalism. Examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University
Press, 1994, p. 41: “devemos tentar nos afastar desse pano de fundo metafísico. [...] Desse modo, o que é colhido
como valioso aqui é um
potencial humano universal, uma capacidade que todos os humanos compartilham. Essa
potencialidade, mais do que qualquer coisa que se possa fazer com ela, é o que assegura que todas as pessoas
merecem respeito.” (no original:
we may try to shy away from this 'metaphysical' background. [...] Thus, what
is picked out as of worth here is a universal human potential, a capacity that all humans share
. This potential,
rather than anything a person may have made of it, is what ensures that each person deserves respect
.”).
89
Também conhecidos como partidários do ceticismo moral ou do relativismo moral, por calcarem-se na visão
pós-moderna de que
não existe padrão de bem ou de justiça externo a cada sociedade, que o constrói.
93
respeito das culturas, dada a relatividade destes, mas não percebe que essas frases são, em si
mesmas, juízos de valor
90
ou julgamentos morais substantivos, como observa Álvaro de
Vita
91
, que acrescenta: se as diferentes manifestações culturais devem ser respeitadas, não
podendo uma cultura intervir sobre outra para impor os seus valores, à míngua de um padrão
universal de julgamento, o nazismo e o genocídio devem ser protegidos ou não devem
motivar intervenção externa, por fazerem parte da cultura do povo que os adota?
92
Uma
cultura que tenha como peculiaridade a pretensão de ser universal e intolerante deve ser
respeitada?
93
Se se diz que não, por defender-se que se deve assegurar o pluralismo e a
tolerância, de sorte a que as várias culturas possam conviver, isso não é o reconhecimento de
que uma cultura que consagra o pluralismo e a tolerância é superior a uma outra, que não o
faz?
94
Parece claro que sim, da mesma forma como parece possível traçar padrões mínimos
que
devem ser seguidos por todas as sociedades humanas, independentemente de suas
diferenças culturais. O próprio multiculturalismo o faz, quando preconiza a universalização do
pluralismo e da tolerância.
95
A questão é saber se não algo de mais substancial do que isso
para ser defendido. É o que se propõe a seguir, quando se procurará responder as questões
formuladas na introdução deste trabalho.
90
“Se todas as culturas se equivalem, o que criticar na cultura dos colonizadores ou dos colonialistas?” COMTE-
SPONVILLE, André.
Valor e verdade estudos nicos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 345.
91
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 199.
92
Como aponta Gargarella, autores que se recusam a classificar como injustas práticas como a escravidão e o
estabelecimento de castas, em defesa do relativismo cultural. (GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça
depois de Rawls
um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 157). Redfield, no mesmo sentido, registra que igual benevolência (para com todas as
manifestações culturais) “é mais difícil de ser mantida quando se é chamado a antropologizar os nazistas”. No
original:
the equal benevolence is harder to maintain when one is asked to anthropologize the Nazis.”
REDFIELD, Robert.
The primitive world and its transformation. New York: [s.n.], 1953, p. 145.
93
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 201.
94
Ibid., 2008, p. 201-202. Precisamente por isso, Alain Supiot registra que “o relativismo costuma ornar-se dos
adereços da tolerância universal, mas repousa sempre na crença de que, se todas as culturas são equivalentes, a
que garante essa equivalência vale necessariamente mais que as outras.” SUPIOT, Alain.
Homo juridicus
ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 246.
95
Por isso Steven Lukes afirma, com razão, que há uma flagrante incoerência “em afirmar o relativismo de todos
os princípios morais e em seguida proclamar o princípio moral da tolerância como um princípio universal.” No
original, “
there is a striking inconsistency in asserting the relativity of all moral principles and then proclaiming
the moral principle of tolerance as universal principle
.” LUKES, Steven. Moral relativism. New York:
Picador, 2008, p. 40.
94
5 UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL
A crítica, embora importante por permitir que se descubra o que não é satisfatório e
deve ser aperfeiçoado, é insuficiente se desacompanhada de sugestões sobre como esse
aperfeiçoamento deve acontecer. Não basta, portanto, apontar os problemas das teorias
jusnaturalistas, positivistas e pós-positivistas na teorização a respeito de qual deve ser o
fundamento da ordem jurídica. É preciso contribuir para corrigi-los. É dessa contribuição que
cuida este capítulo 5.
Alguém poderá considerá-la, esta contribuição, pós-positivista. E é, em certo sentido,
pois reconhece a superação do positivismo, ao qual não se pretende filiar. Mas alguém
também pode atribuir-lhe o rótulo de jusnaturalista, embora aqui não se defenda a existência
de um sistema de valores independente da criatura humana, objetivamente posto na natureza,
eterno e invariável, nem a necessária e total correspondência entre os conceitos de direito e de
justiça, ou entre o direito que é e o direito que deveria ser. Preconiza-se que o
direito que
deveria ser
, que toda criatura humana é capaz de imaginar,
1
não pode ser ignorado quando se
cogita da criação, da interpretação, da observância e da aplicação do direito vigente, mas não
se defende, como adiante será visto, que um e outro se confundam.
A definição ou a rotulação, a rigor, é o que menos importa. O que interessa é buscar
um fundamento para o ordenamento jurídico que não seja um sistema de normas ideal e
previamente gravado na natureza em virtude da razão divina, da ordem das coisas ou de uma
razão humana universal, mas que tampouco seja a mera coação estatal; fundamento que seja
compatível com a diversidade cultural, mas que não por isso seja conivente com qualquer
coisa que se faça sob a justificativa multiculturalista.
1
Como registram Laurence Tribe e Michael Dorf, “grande parte das pessoas perdeu a nas idéias de eterno,
universal e verdade inquestionável. Mas de alguma forma, na sua maneira comum de viver, ainda conseguem
distinguir entre o que parece um argumento bom e o que parece um sofisma: sabem que a escravidão e o
assassinato são errados, mesmo que não saibam extrair essas verdades dos princípios fundamentais.” (TRIBE,
Laurence; DORF, Michael.
Hermenêutica constitucional. Tradução de Amarílis de Souza Birchal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007, p. 18). É a essa capacidade, que cada pessoa tem, de distinguir o que parece um
argumento bom, que se faz referência no texto, quando se alude à noção, que cada um tem, de como o direito
deveria ser.
95
5.1 É possível afastar a metafísica?
O principal ponto de discórdia entre positivistas, jusnaturalistas e pós-positivistas
reside na consideração, que têm (ou não), pelo metafísico. Pode-se dizer, aliás, que se
diferenciam precisamente pelo tratamento que dão à metafísica: as teorias jusnaturalistas se
dizem metafísicas, as positivistas antimetafísicas e as pós-positivistas
pós-metafísicas.
Para avaliar-lhes o acerto e examinar se é mesmo possível afastar, ou superar, a
metafísica, é indispensável, primeiro, definir o que é metafísica. As pessoas discutem em
torno da palavra, sem antes precisar-lhe o sentido; com isso, no mais das vezes, passam a
defender ou a atacar coisas diferentes.
2
Breve consulta ao dicionário revela os inúmeros e
diversos – sentidos da palavra, a depender de quem a utiliza, se um filósofo grego do Século I
a.C, um teólogo medieval, um positivista ou um filósofo contemporâneo. A oposição à
metafísica – pontua Ferrater Mora – assim como o reconhecimento
de sua legitimidade ou de seu interesse, dizem muito pouco acerca do que se entende
em cada caso por ‘metafísica’. Com efeito, um autor como Carnap opôs-se
geralmente à metafísica. O mesmo fez um autor como Heidegger. Mas as tendências
filosóficas de cada um desses pensadores são tão distintas que se pode duvidar de
que o que cada um entende por ‘metafísica’ seja o mesmo.
3
Atribui-se o emprego do termo metafísica a Andronico de Rodes
4
, que viveu no
Século I a.C. Trata-se da referência (
metà tà physiká
5
) aos tratados de Aristóteles situados, em
sua obra, depois daqueles dedicados à física.
6
Em seu sentido mais comum, designa o ramo da
2
MENEZES, Djacir. Hegel e a filosofia soviética. Rio de Janeiro: Zahar, [s.d], p. 183.
3
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução de Roberto Leal Ferreira e Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 476.
4
“Do gr. tardio ‘depois da física’ <assim se designaram os livros de Filosofia Primeira de
Aristóteles, que não apresentavam título por aparecerem a seguir à Física na compilação de Andrónico de
Rodes>.” ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA.
Dicionário da língua portuguesa contemporânea.
Lisboa: Verbo, 2001. v. 2, p. 2452.
5
[M]etaphysica, deriv. do gr. Méd. metaphysiká, da expressão metà physiká ‘além da física’, título atribuído
no séc. I aos treze livros de Aristóteles, que tratam de questões que transcendem o domínio da física.” CUNHA,
Antônio Geraldo da.
Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982, p. 516.
6
Hans Reiner critica essa ideia, bastante difundida, por entender que “na realidade, Andrônico de Rodes seguiu
Eudemo e, com ele, o próprio ‘espírito aristotélico’ ao empregar o nome ‘metafísica’, que ‘filosofia
primeira’, embora mais adequado em si, é inadequado na ordem dos conhecimentos.” (MORA, José Ferrater.
Dicionário de filosofia. Tradução de Roberto Leal Ferreira e Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
467). A crítica, contudo, reside apenas na discussão relativa à origem “bibliotecária” do termo, havendo quem,
como Reiner, credite a origem ao próprio pensamento aristotélico, e quem, como Franciscus Patricius (1413-
1494), e a maior parte dos autores atuais, mantenha a versão de que a posição das obras e o termo se devem a
Andrônico.
96
filosofia que investiga realidades que transcendem a experiência sensível.
7
Entre os
positivistas, a expressão é propositalmente usada em sentido pejorativo, designando “qualquer
teoria destituída de sentido, verificabilidade, operacionalidade pragmática ou concretude,
apresentando consequentemente tendências dogmáticas, irrealistas ou ideológicas.”
8
Entretanto, a maior parte dos autores que se insurgem contra a metafísica, quando
argumentam contra ela, o fazem tendo em vista uma “metafísica que existiria em si e por si.”
9
O problema é que estendem a crítica e a consequente rejeição ao que criticam - a toda e
qualquer realidade suprassensível,
10
mesmo àquelas em relação às quais não se diz existirem
em si e por si, independentemente de uma inteligência que as pense, suprimindo ou
ignorando, com isso, a própria distinção existente entre o homem e os outros animais.
Neste trabalho, o termo metafísica será utilizado para designar a realidade
suprassensível (e, por extensão, o que se diz a respeito dela). Metafísico é o que está além do
físico, não sendo apreensível pelos órgãos dos sentidos
11
, ou, por outras palavras, o que “vai
além dos limites da experiência física;
transcendente.”
12
No dizer de Kant, trata-se do “o
inventário de tudo o que possuímos pela razão pura”,
13
vale dizer, independentemente dos
sentidos ou da experiência.
Existe um mundo sensível, de fatos “brutos” ou realidades físicas, como uma pedra na
praia, o sol a brilhar, um trovão. Esse mundo, que existe independentemente do homem, pode
ser por ele apreendido pelos sentidos. Pela visão e pelo tato percebe a pedra e sua
consistência, a luz do sol e o seu calor. Pela audição, percebe o trovão. Karl Popper designa o
7
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 1.907.
8
Ibid., 2001, p. 1.907. Em passagem que confirma o acerto da definição de Houaiss, Karl Popper observa que
para os positivistas, Metafísica não é “não empírica”, mas também absurda e sem sentido, razão pela qual
querem eles acabar com ela inteiramente. POPPER, Karl.
A lógica da pesquisa científica. Tradução de
Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 36.
9
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3.ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 62.
10
Depois de mencionar os diversos sentidos que à palavra “metafísica” se atribuíram, Ferrater Mora observa
que “a metafísica continua sendo, em grande medida, a ciência do 'transcendente', mas essa transcendência
apóia-se, em muitos casos, na absoluta imediação e na imanência do eu pensante.” MORA, José Ferrater.
Dicionário de filosofia. Tradução de Roberto Leal Ferreira e Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
472.
11
Feyerabend, tendo definido o termo “metafísico” de sorte a abranger tudo o que não é empírico, observa que a
interpretação de toda teoria física tem elementos metafísicos. FEYERABEND, Paul.
Realism, rationalism and
scientific method
. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. v.1, p. 42 e ss.
12
AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004, p. 532.
13
[...] it is nothing but the inventory of all we possess through pure reason.” KANT, Immanuel. Critique of
pure reason
. Translated by Paul Guyer and Allen W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998 p.
104.
97
mundo físico, composto pelos tais fatos brutos, de “Mundo 1”.
14
Os processos mentais, a consciência, o pensamento e a memória, desenvolvidos pelo
Homem, inclusive a respeito das realidades do “Mundo 1” (
v.g., a imagem do sol formada no
cérebro de quem o vê), fariam parte do que Popper chama “Mundo 2”.
Por sua vez, o mundo composto pelas ideias e realidades institucionais criadas pela
mente humana, mas que passam a existir independentemente da mente criadora, é designado
por ele como “Mundo 3”.
15
Esses três mundos fazem parte, todos, de um conceito amplo de realidade (composta
de uma parcela
sensível e de outra inteligível, estando o homem situado entre as duas ou nas
duas), e estão em constante interação. O homem está no mundo dos sentidos, pois é animal;
mas tem acesso à abstração e à ideia, enquanto ser racional. O cérebro, estrutura biológica
composta de átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio etc., situa-se no “Mundo 1”. O
pensamento de alguém, no momento em que faz reflexões recorrendo às suas sensações e às
suas memórias, ocorre no âmbito do “Mundo 2”. Finalmente, quando o cérebro, depois de
algum período de atividade, cria uma poesia, uma música ou a fórmula para fabricar um
remédio ou um explosivo, tais criações – que não se confundem com a atividade pensante que
as originou, nem com a realidade concreta que a partir dela poderá ser construída ou
modificada situam-se no Mundo 3. Com elas, naturalmente, os fatos do Mundo 1 poderão
ser alterados, alteração que pode ir desde a impressão, em um papel, dos símbolos em face
dos quais outras consciências
16
poderão ter acesso à mesma ideia, até a execução de atos (o
uso da fórmula medicinal em um doente ou a explosão da bomba sobre uma cidade)
decorrentes da execução dessa ideia.
Não se pode dizer, em oposição, que a fórmula do explosivo ou do remédio é
representada em símbolos postos em um papel, fazendo assim parte do Mundo 1, único
14
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 43 e ss.
15
O “mundo 1” é o mundo composto de fatos brutos, mas, é de se observar, à ele o homem nunca tem acesso
diretamente. Isso porque é ele intermediado por seus sentidos, que lhe fornecem informações interpretadas por
seu cérebro, e sua estrutura neural, na qual existem até como fruto da evolução das espécies modelos ou
padrões pré-concebidos de como aquelas informações devem ser entendidas. Nesse sentido: NOZICK, Robert.
Invariances the structure of the objective world. Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001, p.
108.
16
Isso mostra que os símbolos efetivamente são, como destaca Marcelo Neves, calcado em Lacan, “uma forma
de intermediação entre o sujeito e o outro.” NEVES, Marcelo.
A constitucionalização simbólica. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 11.
98
existente, sendo os demais fantasias de Karl Popper.
17
Em verdade, os símbolos no papel – ou
na tela de um computador
representam a fórmula, que não se confunde com eles. O que se
usa na representação não se confunde com o que é representado. A fórmula é o
sentido de tais
símbolos, e esse sentido pode ser atribuído a eles por uma consciência dotada de
inteligência, vale dizer, por uma consciência que tenha acesso ao que se está aqui chamando
de Mundo 3.
O Mundo 3, nem é preciso dizer, é metafísico, pois aquilo que nele está situado não
pode ser apreendido pelos sentidos, estando além da física, no mundo da transcendência.
Aliás, além de ser metafísico o Mundo 3, o homem, por ter na criação desse mundo e no
acesso a ele o seu traço característico e diferenciador dos demais seres, pode ser assim
definido como um
animal metafísico ou como um animal simbólico, que tem uma inteligência
e uma imaginação simbólicas, elementos indispensáveis para que possa distinguir o atual e o
possível, o sensível e o inteligível.
18
Alain Supiot sintetiza essas ideias dizendo que o homem
é um animal metafísico. Ser biológico, está antes de tudo no mundo por seus órgãos
dos sentidos. No entanto, sua vida se desenvolve não no universo das coisas, mas
também num universo de signos. Esse universo se estende, para além da linguagem,
a tudo o que materializa uma idéia e deixa assim, presente no espírito, o que está
fisicamente ausente. Esse é o caso de todas as coisas nas quais está inscrito um
sentido e mormente dos objetos fabricados que, dos mais humildes (uma pedra
talhada, um lenço), aos mais sagrados (
A Gioconda, o Panteão), incorporam a idéia
que lhes presidiu a fabricação, distinguindo-se assim do mundo das coisas naturais.
19
O mesmo autor prossegue a demonstração da natureza essencialmente metafísica da
criatura humana recordando que,
17
Para Habermas, “essa doutrina dos três mundos, elaborada pelos 'platônicos do significado', não é menos
metafísica do que a ‘doutrina dos dois reinos’ do idealismo subjetivo. Pois não soluciona o enigma da
comunicação entre esses três mundos: Frege opina que o elemento ‘atemporal tem que estar entrelaçado de
alguma maneira com o temporal’” (HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia entre facticidade e validade.
Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 30). Entretanto, mesmo
ele admite a distinção entre o ato de pensar e o produto desse ato, “pensamentos que ultrapassam os limites de
uma consciência individual.” (
Ibid., 1997. v.1, p. 28). Ora, o mundo 2 é precisamente a consciência do indivíduo,
e o mundo 3 é formado pelos pensamentos que ultrapassam essa consciência. Com relação à comunicação entre
os três mundos, ela é explicada em POPPER, Karl.
A vida é aprendizagem epistemologia evolutiva e
sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 49-56. A existência de certas
ideias, como a dos números primos, por exemplo, por certo depende de uma mente racional que as apreenda,
mas não se pode dizer que dependa dessa mente individualizada para existir. Exemplificando, se toda a espécie
humana fosse extinta, mas outra forma de vida inteligente surgisse posteriormente, continuariam existindo, para
essa nova espécie, os números primos.
18
CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica. Traducción de Eugenio Ímaz. 2.ed. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1963
, p. 91. No mesmo sentido, Arnaldo Vasconcelos observa que “pertence só ao homem a
capacidade de pensar por meio de imagens e símbolos. VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito, humanismo e
democracia
. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31.
19
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. VII.
99
como todo animal vivo, de início o homem está no mundo por seus sentidos, mas,
diferentemente dos outros, tem acesso, mediante a linguagem, a um universo que
transcende o aqui e o agora dessa experiência sensível. À finitude de sua vida
orgânica e visceral subrepõe-se o mundo sem limite de suas representações mentais.
A criança faz bolos de areia, mas é uma fortaleza que ela constrói, sobre a qual reina
e povoa de criaturas inventadas por ela. Ela está ali na praia, mas, pela história que
conta a si, está muito longe, no tempo dos cavaleiros, numa profunda floresta, ou
então transportada por um foguete para outro planeta. Pelas palavras que cochicha a
si mesma, ou que troca com seus colegas de brincadeira, conhece a embriaguez de
uma liberdade que nenhum animal jamais conheceu, a de reconstruir a seu bel-
prazer um outro mundo possível, onde ela pode voar no ar, desdobrar-se, ficar
invisível, ou ogre, ou gigante... Um mundo onde ela confere sentido aos objetos que
modela ou aos desenhos que traça e que se tornam a marca visível de seu espírito.
Uma vez que entramos nesse mundo simbólico, apenas a morte cerebral pode fazer-
nos sair dele.
20
Essas ideias, como se sabe, estão presentes na filosofia de Kant. São a base de sua
célebre afirmação de que duas coisas lhe enchem a alma de admiração, o céu estrelado sobre
ele e a lei moral dentro dele.
21
Em suas palavras,
La primera arranca del sitio que yo ocupo en el mundo sensible externo, y ensancha
el enlace en que yo estoy hacia lo inmensamente grande con mundos y más mundos
y sistemas de sistemas, y además su principio y duración hacia los tiempos
ilimitados de su movimiento periódico. La segunda arranca de mi yo invisible, de mi
personalidad y me expone en un mundo que tiene verdadera infinidad, pero sólo es
captable por el entendimiento, y con el cual (y, en consecuencia, al mismo tiempo
también con todos los demás mundos visibles) me reconozco enlazado no de modo
puramente contingente como aquél, sino universal y necesario. La primera visión de
una innumerable multitud de mundo aniquila, por así decir, mi importancia como
siendo criatura animal que debe devolver al planeta (solo un punto en el universo)
la materia de donde salió después de haber estado provisto por breve tiempo de
energía vital (no se sabe cómo). La segunda, en cambio, eleva mi valor como
inteligencia infinitamente, en virtud de mi personalidad, en la cual la ley moral me
revela una vida independiente de la animalidad y aun de todo el mundo sensible,
por lo menos en la medida en que pueda inferirse de la destinación finalista de mi
existencia en virtud de esta ley, destinación que no está limitada a las condiciones y
límites de esta vida.
22
Dessa forma, a conclusão é a de que simplesmente não é possível afastar tudo o que
for metafísico do âmbito da ciência ou de qualquer outra obra, ação ou atividade humana.
23
20
Ibid., 2007, p. 5. Precisamente por isso, Carlos Cossio afirma: “no quiero decir que me desligo de la
Metafísica, porque esto es imposible para el hombre, siendo el hombre mismo un animal metafísico
.” COSSIO,
Carlos.
Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Losada, 1954, p. 9.
21
Na versão espanhola: “Dos cosas llenan el ánimo de admiración y respeto, siempre nuevos y crecientes cuanto
más reiterada y persistentemente se ocupa de ellas la reflexión: el cielo estrellado que está sobre y la ley
moral que hay en
.” KANT, Immanuel. Critica de la razón practica. Traducción de J. Rovira Armengol.
Buenos Aires: La Página/Losada, 2003, p. 135.
22
Ibid., 2003, p. 135.
23
Por isso, Djacir Meneses observa, calcado em Mondolfo, que a pretensão marxista de reduzir a existência
humana “ao conjunto de relações sociais parece que ameaça resolver totalmente a interioridade espiritual
humana na exterioridade das relações sociais e suprimir, por conseguinte, o princípio da atividade pessoal do
100
Tanto que autores positivistas, quando dizem ter se afastado de qualquer consideração
metafísica, o que fazem, na verdade, é apenas deixar de referi-la expressamente. Para
demonstrá-lo, para lembrar dos positivistas da escola sociológica, que diziam estar atentos
apenas aos fatos, mas preconizavam caber à ciência “corrigi-los” ou “melhorá-los”
24
... Seria o
caso, contudo, de indagar a eles: corrigir e melhorar em qual sentido? À luz de qual critério?
Seria, por acaso, um critério colhido a partir dos sentidos, do mundo físico? É evidente que
corrigir, melhorar e ajeitar pressupõem juízos de valor, e estes são inegavelmente metafísicos.
Afinal, na feliz observação de Kant, a experiência diz aquilo que é, mas não que aquilo tem
que ser necessariamente como é e não de outra forma.
25
Daí dizer-se, com acerto, que “juízos
de fato não podem dar origem a juízos de valor”
26
ou, do mesmo modo, que “as normas não
podem nascer dos fatos; é, ao contrário, o sentido dos fatos ou dos acontecimentos entre os
quais nos movemos que lhes vem das normas ou das exigências principais, sem o que os
homens não passariam de animais regidos por uma causalidade física.”
27
Javier Hervada
destaca, nesse sentido, que o
conhecimento metafísico faz parte do modo comum e corriqueiro de conhecer do
próprio homem, cuja inteligência funciona metafisicamente de maneira constante,
como mostra a mais simples análise da linguagem. Toda vez que utilizamos um
conceito, estamos agindo metafisicamente; toda vez que estabelecemos a diferença
entre o normal e o imperfeito e não entre o geral ou comum e o minoritário ou
particular acontece a mesma coisa etc., de modo que o conhecimento metafísico é
algo conatural para nós. Por isso, quando no âmbito dos saberes cultos ocorre uma
rejeição absoluta não metodológica como no caso das ciências fenomênicas
do conhecimento metafísico e uma redução consciente e voluntária ao conhecimento
fenomênico ou empírico, é produzido um abandono incorreto de uma parte
fundamental de nosso saber, que torna opaca uma dimensão essencial da realidade.
28
Aliás, a própria premissa positivista de afastar necessariamente toda a metafísica é, ela
própria, metafísica,
29
“visto que não se baseia nos puros fatos.”
30
Com efeito, por que a
homem, reduzindo-o a puro produto passivo ou reflexo da sociedade.” MENEZES, Djacir. Hegel e a filosofia
soviética
. Rio de Janeiro: Zahar, [s.d.], p. 217.
24
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. São
Paulo: Bookseller, 2000. v.1, p. 39.
25
Experience teaches us, to be sure, that something is constituted thus and so, but not that it could not be
otherwise
.” KANT, Immanuel. Critique of pure reason. Translated by Paul Guyer and Allen W. Wood.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 137.
26
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 76.
27
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 360.
28
HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução de Elza Maria Gasparotto. São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 44.
29
“Como preocupação metodológica geral, o positivismo parte de uma premissa que em si é de natureza
metafísica a condenação ou o repúdio de toda a metafísica.” (ASCENSÃO, José de Oliveira.
O direito
101
metafísica teria que ser afastada? Esse afastamento não decorre da experiência, mas de um
juízo de valor
, que é ele próprio metafísico. E, especificamente em relação ao positivismo
normativista, é igualmente metafísica a pretensão de reconhecer como direito apenas o direito
posto, e fazê-lo de forma supostamente alheia aos valores, pois isso é feito em prol de uma
maior
segurança que seria assim supostamente obtida, que é também um valor
aprioristicamente considerado.
31
Poder-se-ia dizer, em oposição, que os juízos de valor seriam construídos pelo homem
a partir da realidade física, sendo esta a “prova” de sua natureza não metafísica. Tal objeção,
contudo, não teria procedência, pois, como observa Radbruch, não se defende
que as valorações, os juízos de valor, como todos os juízos, não sejam influenciados
pelos factos do mundo do 'ser'. Nenhuma dúvida de que as nossas valorações sejam
o produto causal, a superestrutura ideológica de determinados factores do domínio
do ser, como, por exemplo, o meio social em que vivemos. A 'sociologia do saber' aí
está a instruir-nos acerca do condicionamento local das ideologias. Porém, não se
trata aqui da relação
causal entre certas circunstâncias existentes e certos juízos
valorativos, mas de relação
lógica entre Ser e Valor. Ninguém afirma que as
valorações sejam independentes dos fatos, mas sim que os fatos não podem servir de
fundamento às valorações.
32
Os fatos, em si e por si, independentemente do homem, não devem ser coisa nenhuma.
Eles simplesmente
são. É o homem que, observando-os, valora-os, tendo-os por convenientes
ou inconvenientes, desejáveis ou repelíveis, bons ou ruins, a demandarem esforços para que
se repitam ou para que não mais aconteçam. E essa valoração, que origem ao
ter que e ao
dever ser, é inafastavelmente metafísica.
Tanto é assim que Jean-François Kervégan, depois de afirmar a necessidade de se
renunciar “a toda fundamentação metafísica, antropológica ou mesmo moral dos direitos do
homem”, afirma que estes devem contar com “fundamentação estritamente política, ou seja,
apoiada no único princípio da igualdade política (e não natural, pois nada é menos igualitário
introdução e teoria geral. 2.ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 171). No mesmo sentido:
KAUFMANN, Arthur.
Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 497. Isso explica a afirmação de Popper, para quem “em vez de afastar a Metafísica das
ciências empíricas, os positivistas levam à invasão do reino científico, pela Metafísica.” POPPER, Karl.
A lógica
da pesquisa científica
. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 12.ed. São Paulo: Cultrix,
2006, p. 38.
30
HERVADA, Javier, op. cit., 2008, p. 44. Especificamente a respeito da Teoria Pura do Direito, demonstrando
o seu caráter não puramente descritivo, confira-se: VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria pura do direito
repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 173.
31
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos,
2007, p. 344.
32
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Cabral de Moncada. 6.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1997, p. 50.
102
do que a natureza) dos indivíduos-cidadãos.”
33
O que o mencionado autor não explica, nem
poderia explicar sem recorrer a aspectos metafísicos, é
de onde extraiu a necessidade de que
se rejeitem fundamentações metafísicas, antropológicas ou morais, e se recorra a uma
“fundamentação política”, que deveria apoiar-se “no único princípio da igualdade política”.
Quando se diz que algo
tem que ser, deve ser, merece ser, deveria ser, enfim, quando se
recorre ao mundo da possibilidade, para com dados extraídos dele julgar o mundo da
realidade e fazer escolhas, recorre-se à metafísica.
Precisamente por isso, é a metafísica que faz a ciência como os produtos da criação
humana em geral evoluir. Afinal, “as descobertas científicas não poderiam ser feitas sem
em ideias de cunho puramente especulativo e, por vezes, assaz nebulosas, que, sob o ponto
de vista científico, é completamente destituída de base e, em tal medida, ‘Metafísica’”
34
,
sendo certo que, nos dias de hoje, sabe-se que o cientista não realiza experimentos aleatórios
para, induzindo a partir de seus resultados, produzir teorias desinteressadas, neutras e
objetivas.
35
Ao revés, a ciência progride por meio de conjecturas e refutações: o conhecimento
não se forma da indução pela experiência do real; formula-se a hipótese metafísica!
36
e,
em seguida, verifica-se se ela, hipótese, corresponde à realidade (falseamento)
37
. Enquanto a
teoria, mera hipótese, resistir aos testes ou às tentativas de refutação, será tida (sempre
provisoriamente) por verdadeira. Assim funciona e progride a ciência, que depende, embora
muitos não o consigam admitir, de elementos metafísicos.
33
KERVÉGAN, Jean-François. Democracia e direitos humanos. Tradução de Tito Lívio Cruz Romão. In:
MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 115-
125, p. 123.
34
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da
Mota. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 40.
35
“Foi realizada uma pesquisa que verificou que estudantes do sexo masculino tendem a carregar seus livros
junto aos quadris, seguros por apenas uma das mãos. as mulheres levam-nos com ambas as mãos, cingidos
junto ao peito. Original e viável essa pesquisa pode ser. Sua relevância, contudo, está por ser demonstrada.”
(CASTRO, Cláudio Moura. Memórias de um orientador de tese. In: NUNES, Edson de Oliveira (Org.).
A
aventura sociológica
: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
304-323, p. 315). Saber se uma pesquisa é
relevante ou não envolve um juízo de valor, pelo que é impossível
afastá-los do âmbito da ciência.
36
“It is now granted that metaphysical considerations may be of importance when the task is to invent a new
physical theory
. FEYERABEND, Paul. Knowledge, science and relativism. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999. v.3, p. 99 - “É agora admitido que considerações metafísicas podem ser importantes
quando se trata de inventar uma nova teoria física.” - tradução livre.
37
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 71. Kant, a propósito, muito antes de Popper, tornou claras as limitações
do processo indutivo na formação do conhecimento. Em suas palavras,
“experience never gives its judgments
true or strict but only assumed and comparative universality (through induction), so properly it must be said: as
far as we have yet perceived, there is no exception to this or that rule
. KANT, Immanuel. Critique of pure
reason
. Translated by Paul Guyer and Allen W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 137
“a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira ou estrita, mas apenas uma
universalidade suposta e comparativa por indução -, de tal sorte que, mais adequadamente, se deveria dizer:
tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra.” - tradução livre.
103
Esses fatos demonstram o acerto da afirmação de Kant, para quem é inútil demonstrar
indiferença perante investigações metafísicas. Os que o tentam, “esses pretensos insensíveis,
por mais que queiram ser reconhecidos, substituindo a terminologia da Escola por uma
linguagem popular, não são capazes de pensar qualquer coisa sem recair, inevitavelmente, em
afirmações metafísicas.”
38
Não se desconhece, por certo, a existência de um pensamento que se diz “pós-
metafísico”, fundado, em suma, na afirmação de que teria sido superado o paradigma da
filosofia da consciência, substituído pelo paradigma da linguagem. Com isso, a construção do
mundo não seria feita por uma subjetividade transcendente, mas sim por estruturas
gramaticais.
39
Entretanto, não parece que tal mudança de paradigma, aqui não discutida,
40
tenha o efeito de afastar a metafísica, fazendo-a superada, pelo menos dentro do sentido que
atribuímos à expressão neste texto
. Muito pelo contrário. Afinal, o significado das tais
estruturas gramaticais não é aferível apenas a partir dos sentidos, nem pertence ao mundo
destes. Para demonstrá-lo, basta pedir a alguém com a visão perfeita, mas que nada sabe do
idioma japonês, para que se manifeste sobre o conteúdo de um livro escrito exclusivamente
nessa língua. No mundo físico estão as folhas de papel e os pigmentos de tinta, as vibrações
sonoras, os movimentos braçais, os pontos iluminados na tela de um computador. Mas no
mundo metassensível, ou metafísico, ao qual o homem tem acesso por meio do intelecto,
estão os sentidos que essas realidades fáticas representam. Além disso, não está claro como,
da linguagem, nasce a obrigatoriedade do direito. Afinal, por que uma prescrição linguística é
tida como obrigatória? Certamente a razão de ser dessa obrigatoriedade é exterior à própria
linguagem, razão pela qual Goyard-Fabre observa que, como “a grade conceitual da 'virada
linguística' não foi suficientemente aprofundada para dar conta das exigências específicas da
38
[...] much they may think to make themselves unrecognizable by exchanging the language of the schools for a
popular style, these so-called indifferentists, to the extent that they think anything at all, always unavoidably fall
back into metaphysical assertions, which they yet professed so much to despise
.KANT, Immanuel. Critique of
pure reason
. Translated by Paul Guyer and Allen W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p.
100.
39
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1990, p. 15.
40
Pode-se entender que a “metafísica” que se diz superada, no tal pensamento “pós-metafísico”, é a que
representaria um mundo supra-sensível (
v.g., um “paraíso”) existente por si independentemente da criatura
humana, e não toda e qualquer realidade supra-sensível. No âmbito do direito, a metafísica que teria sido
superada seria representada por aquele direito natural absoluto, eterno e invariável, independente de quaisquer
construções humanas, e não aquele direito considerado ideal por cada sujeito, ainda que de forma variável no
tempo e no espaço. Daí porque Steven Lukes afirma que “nós vivemos, frequentemente se diz, em uma idade
'pós-metafísica' na qual nossas concepções morais são desprovidas de fundamentos. Ou melhor (o que quer dizer
o mesmo) existem em demasia fundamentos diferentes.” No original:
We live, it is often said, in a 'post-
metaphysical age' in which our moral views are 'without foundations'
. Or rather (which is to say the same thing)
there are too many foundations
.” LUKES, Steven. Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 132.
104
regulação jurídica, não se compreende o que, na linguagem, é gerador da normatividade do
direito.”
41
Em verdade, a metafísica não é algo relacionado à religião, a um mundo ideal que
existiria por si e em si, independentemente da criatura humana. Não é isso. Trata-se apenas de
algo que não tem existência física ou concreta, e que não se confunde com o que é apreendido
pelos sentidos, embora através dos sentidos se possa ter acesso aos sinais que servem de
transporte
42
a essa realidade. É o caso, por exemplo, dos números. se tem acesso a ela por
conta da racionalidade, sendo esse o motivo pelo qual Kant afirma que negá-la seria “o
mesmo de alguém pretender demonstrar por meio da razão que não há razão.”
43
As conclusões que a esse respeito Ernst Cassirer extrai da biografia de Helen Keller
são bastante expressivas. Helen Keller, como se sabe, foi uma
cega-surda-muda que, com a
ajuda de métodos especiais, aprendeu a se comunicar utilizando apenas o tato, desenvolvendo,
não obstante, extraordinária capacidade intelectual. Isso mostra que a cultura não deriva o seu
caráter específico da matéria que a compõe, podendo ser expressada
con cualquier material sensible. El lenguaje verbal posee una ventaja técnica muy
grande comparado con el lenguaje táctil, pero los defectos técnicos de este último
no destruyen su uso esencial. El libre desarrollo del pensamiento simbólico y de la
expresión simbólica no se halla obstruido por el mero empleo de signos táctiles en
lugar de los verbales. Si el niño ha conseguido captar el 'sentido' del lenguaje
humano, ya no importa tanto el material particular en el que este 'sentido' se hace
accesible. Como lo prueba el caso de Helen Keller, el hombre construye su mundo
simbólico sirviéndose de los materiales más pobres y escasos. Lo que vitalmente
importa no son los ladrillos y las piedras concretos sino su función general como
forma arquitectónica. En el reino del lenguaje, su función simbólica general es la
que vivifica los signos materiales y los 'hace hablar'; sin este principio vivificador el
mundo de una criatura sordomuda y ciega puede llegar a ser incomparablemente
más ancho y rico que el mundo del animal más desarrollado.
44
A ideia, portanto, pode ser construída a partir do sensível, mas evidentemente não se
confunde com ele. E o acesso que a criança cega-surda-muda tem ao “mundo 3”, acesso que o
41
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 328.
42
Os computadores fornecem excelente campo para pesquisa da interconexão entre os mundos sensível e
inteligível, pois com eles se tornou possível separar, completamente, as ideias daquilo que lhes serve de suporte
físico, sem que isso aconteça, necessariamente, dentro da consciência de uma criatura humana. Livros, músicas e
figuras não dependem mais do papel no qual estão impressos, e tampouco se confundem com o disco rígido, o
disco óptico ou o
pen-drive no qual estão gravados. O aprofundamento dessa questão, contudo, não se
comportaria nos limites desta tese, nem seria relevante para as suas conclusões.
43
Sería como si alguien pretendiera demostrar con la razón que no hay razón.” KANT, Immanuel. Critica de
la razón practica
. Traducción de J. Rovira Armengol. Buenos Aires: La Página/Losada, 2003, p. 11.
44
CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica. Traducción de Eugenio Ímaz. 2.ed. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1963
, p. 63.
105
felino dotado dos mais aguçados sentidos não tem, é demonstração suficiente dessa verdade.
45
Por isso, um estudo que se volte apenas para as realidades sensíveis, ignorando ou dizendo
ignorar as suprassensíveis ou ideais, é não apenas inadequado, sobretudo nas ciências ditas
humanas ou sociais, mas verdadeiramente impossível. Em vez de caracterizar-se como
científico, como no mais das vezes é a sua pretensão, terminará ostentando as características
de seu antônimo,
46
dogmaticamente afastando de suas considerações, por razões apriorísticas,
metade do mundo, precisamente aquela que caracteriza a criatura humana enquanto tal.
5.2 Natureza humana e o Direito
Verificado que o homem é um animal metafísico, eis que dotado da capacidade de
abstração, de apreensão e criação de realidades suprassensíveis, é o caso de aferir quais
repercussões essa sua natureza tem sobre o direito
47
, a forma de tratá-lo, de considerá-lo e de
fundamentá-lo.
Antes disso, contudo, é preciso registrar que não se defende, aqui, a existência de uma
natureza humana absoluta. Aliás, não parece existir nada absoluto além da relatividade. O
homem ao qual se faz referência aqui é a criatura humana
48
na atualidade, surgida em
momento muito recente se considerado o período compreendido desde a origem do universo
até os dias de hoje, e que certamente passará por modificações (naturais ou artificiais) no
45
Justamente por isso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz refuta a ideia de que Popper seria positivista, dizendo: “ele
não concordava com a visão de que a única e privilegiada forma de conhecimento pudesse ser a experiência
sensível, uma vez que seria tão-somente pela lógica que o homem seria capaz de perceber as regularidades no
conjunto de suas observações e, a partir daí, então tirar conclusões e conceitos sistemáticos. [...] Popper jamais
concordou com a desconsideração que o Círculo fazia da metafísica, pois para ele grandes descobertas e avanços
científicos derivavam de concepções estritamente metafísicas.” (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
O discurso
científico na modernidade
: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
p. 25).
46
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? Rio de Janeiro: Forense, 2008,
passim.
47
Como reconhece Miguel Reale, “quando está em causa o problema do homem, põe-se, concomitantemente,
com mais urgência, a indagação dos fundamentos do Direito, e vice-versa.” REALE, Miguel.
Direito
natural/direito positivo
. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 3.
48
E, mesmo em relação à criatura humana na atualidade, não é o propósito desta tese aprofundar o exame de sua
natureza. Até porque, como observa Matt Ridley, embora tenha havido grande evolução nessa área da ciência e
da filosofia, nós nunca atingiremos essa meta, e talvez seja melhor mesmo se nunca o fizermos. Mas enquanto
pudermos continuar perguntando
por que, teremos um nobre propósito.” (no original: we will never quite reach
that goal, and it would perhaps be better if we never did
. But as long as we can keep asking why, we have a
noble purpose
.” - tradução livre - RIDLEY, Matt. The red queen sex and the evolution of the human nature.
New York: Perennial, 2003, p. 349). O que importa, no momento, é apenas perquirir em torno de características
humanas relevantes para o surgimento do Direito, aspectos nos quais se centra este trabalho.
106
futuro, próximo ou distante.
49
O que importa é que, como mencionado, o homem, em face de
uma estrutura neurológica mais desenvolvida, tem a aptidão de abstrair e, assim, pensar em
coisas que não estão à sua frente, nem são acessíveis aos seus sentidos. Com isso, pode
distinguir o
real do possível (cf. itens 1 e 5.1, supra) e ainda “apontar para algo que se
recomenda ou que se quer avisar.”
50
Desenvolveu também, como algo necessário e intrínseco
ao exercício dessas faculdades, a linguagem.
51
É provável que essa capacidade neurológica seja fruto da seleção natural, pois por
conta dela o homem desenvolveu um sofisticado sistema de cooperação mútua, fundado na
empatia que se sente pelo semelhante, sistema esse que facilita a sobrevivência dos indivíduos
que o adotam, facilitando-lhes a perpetuação dos genes. O processo de seleção natural
desenvolveu no homem como, aliás, também em outros animais não apenas o senso de
preservação do próprio indivíduo, mas o sentimento de preservação em relação ao grupo, ao
semelhante.
52
O que a racionalidade viabilizou, e nisso distanciou o homem dos outros
animais, foi o aprimoramento desse sentimento, com a criação de complexos sistemas de
normas de conduta.
Em pósfácio ao
Genealogia da moral, de Nietzsche, Paulo César de Souza esclarece
que “no que toca a uma genealogia dos sentimentos e atitudes morais, os desenvolvimentos
mais fascinantes, nos dias de hoje, decorrem de um pensador que foi mal compreendido e
49
Como observa Nozick, “não existem pontos fixos em filosofia, ou mesmo no desenvolvimento humano”, ou,
em uma tradução livre, “
there are no fixed points in philosophy, or in human development either. What is human
may change
.” NOZICK, Robert. Invariances the structure of the objective world. Massachusetts/London:
Harvard University Press, 2001, p. 300.
50
GADAMER, Hans-Georg. Elogio da teoria. Tradução de João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70, 2001, p.
13. Note-se que, para
recomendar ou avisar, a criatura humana de fazer juízos de valor. E, também, de
representar, por símbolos, o que está a recomendar, ou a avisar, e a razão de ser disso.
51
Id., Verdade e método traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo
Meurer. Petrópolis: Vozes, 2008. v.1, p. 576. Para um exame da relação entre linguagem, símbolo e
racionalidade: CASSIRER, Ernst.
Antropología filosófica. Traducción de Eugenio Ímaz. 2.ed. México: Fondo
de Cultura Econômica, 1963
, p. 91.
52
“Animais são capazes de assumir um comportamento cooperativo, mas a orientação normativa torna possível
uma cooperação mais próxima e mais adaptável a novas situações, em benefício mútuo para as partes. A
capacidade de ter consciência da própria existência, e a estrutura neurológica a tanto subjacente, talvez tenham
sido selecionadas precisamente porque permitem e facilitam tais beneficiamentos mútuos e tais comportamentos
de incremento mútuo da adaptação.” (no original:
Animals are able to engage in cooperative behavior, but
normative guidance makes possible closer and more adaptable cooperation in novel situations, to the parties´
mutual benefit
. The capacity for conscious self-awareness, and its underlying neural basis, might well have been
selected for precisely because it does enable and facilitate such mutually beneficial and mutual fitness-
enhancing behavior
.” - tradução livre - NOZICK, Robert. Invariances the structure of the objective world.
Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001, p. 299). Em termos semelhantes: WRIGHT, R.
Nonzero: the logic of human destiny. New York: Pantheon books, 2000, passim; MATT, Ridley. The origins of
virtue
human instincts and the evolution of cooperation. New York: Penguin books, 1998, passim;
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Tradução de Geraldo H. M. Florsheim. São Paulo: Itatiaia, 2001, passim.
107
subestimado por Nietzsche: Charles Darwin.”
53
A racionalidade, a liberdade, a linguagem, a
sociabilidade e a aptidão de elaborar regras de conduta, por conseguinte, são elementos não
caracterizadores da criatura humana, mas também interdependentes, que se pressupõem, não
sendo possível dizer, do ponto de vista evolutivo, qual surgiu primeiro. Estão, homem,
racionalidade, liberdade, linguagem e direito - para usar as palavras de Pontes de Miranda em
torno do animal e do instinto - demasiado associados, solidários, para que se possa conhecer-
lhes separadamente a gênese. O animal a que servem tais características naturalmente
selecionadas sobrevive graças a elas e de certo modo foi feito por elas.
54
Por conta dessas suas características, o homem tem sua conduta disciplinada por um
conjunto de normas jurídicas, normas que somente existem e vinculam na medida em que
assim são reconhecidas e aceitas pelos membros do grupo que por elas têm a conduta
disciplinada. Toda essa estrutura neurológica e a capacidade de abstrair e de diferenciar o real
do possível não seriam necessárias, sendo de resto perfeitamente prescindíveis, se o
fundamento da observância de uma ordem jurídica fosse a ameaça, a força ou o medo. Não
haveria distinção, nessa hipótese, entre o homem e qualquer outro animal.
55
É uma questão não ética, mas biológica e até lógica. A racionalidade humana e a
estrutura neurológica a ela correspondente são
causas da criação de um sofisticado conjunto
de normas de conduta.
56
Esse conjunto de normas, por sua vez, propicia uma maior
cooperação entre os membros do grupo e lhes confere, como
consequência, melhores
condições de sobrevivência, permitindo a transmissão, às gerações futuras, das apontadas
racionalidade e estrutura biológica, que são assim naturalmente selecionadas, incrementando
o círculo virtuoso.
57
Nesse contexto, um conjunto de normas que se caracteriza pela
53
SOUZA, Paulo César de. Posfácio. In: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 169-172, p. 172.
54
MIRANDA, Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller, 1999, p. 31.
55
Por isso mesmo, a aspiração à Justiça não é “o vestígio de um pensamento pré-científico, mas representa, em
todas as situações, um dado antropológico fundamental.” SUPIOT, Alain.
Homo juridicus ensaio sobre a
função antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007, p. IX.
56
Como observa John Searle, os animais também são capazes de usar instrumentos, mas somente aqueles que
podem ter alguma função em virtude de sua estrutura física. Uma pedra para quebrar amêndoas, ou um pedaço
de pau para manipular objetos. o homem, entretanto, consegue atribuir a objetos funções que nada têm a ver
com sua estrutura física, mas que depende do de uma forma de
aceitação coletiva baseada na construção de um
estatuto
em torno daquele objeto. É o caso, já mencionado nesta tese, do dinheiro. SEARLE, John R. Libertad y
neurobiologia
. Traducción de Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005, p. 98.
57
Por isso, considerada a natureza destrutiva da inveja e de outros sentimentos que se opõem ao altruísmo, à
solidariedade e à cooperação entre os membros do grupo, os valores éticos teriam sua origem na seleção natural.
Diz-se, assim, que as regras éticas não foram “inventadas por um legislador humano iluminado. Elas provêem do
fundo de nosso passado evolucionário. estavam em nossa linha ancestral numa época em que ainda não
éramos humanos.” (SAGAN, Carl.
Bilhões e bilhões. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia
108
imposição forçada, e não pelo fato de ser reconhecido pelos membros do grupo como uma
realidade institucional que viabiliza a cooperação mútua, sequer pode ser chamado de
ordenamento jurídico. E, ainda que possa, será como um mero jogo de palavras, assim como
se cogita de uma faca que não corta, de um carro que não anda ou de um avião que não voa.
58
Mas não só. Além de a cooperação mútua, fundada no reconhecimento e na aceitação,
ser fruto da própria seleção natural (por ser favorável à perpetuação da espécie)
59
, a ordem
jurídica não se poderia impor pela força, de qualquer modo, por conta da capacidade humana
de diferenciar o
real do possível. Vale dizer, ainda que não se pudesse apontar a origem do
direito na evolução das espécies e na seleção natural, a condição humana tornaria inviável a
ordem jurídica calcada apenas na coação subjacente às suas disposições.
Ao examinar qualquer parcela da
realidade, o homem tem a capacidade de imaginá-la
de forma diferente, e de julgar, ou valorar, se essa forma diferente seria melhor, ou pior, do
que a forma real. Exemplificando, se uma criatura humana examina uma televisão, é capaz de
imaginar uma mais leve, mais barata, mais econômica ou de imagem mais nítida. Não é outra,
aliás, a razão pela qual o televisor disponível para o consumidor em 2009 é bem diferente e,
para a maior parte das pessoas, melhor que aquele disponível em 1969.
60
O mesmo ocorre com o ordenamento jurídico. Diante de uma norma que é, é natural a
consideração, por parte de quem a examina, em torno de como essa norma
deveria ser.
61
Havendo concordância e a questão, aqui, é de grau
62
entre a norma que é e aquela que,
das Letras, 1998, p. 208). Às palavras de Sagan acrescentamos que essa até pode ser sua origem remota, mas,
seguramente, a racionalidade humana os ampliou significativamente, tanto em sentido como em abrangência,
não se podendo creditar a existência de todos os valores morais e éticos apenas a essa origem biológica.
58
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 449.
59
A empatia verificada entre semelhantes, tanto maior quanto maior a semelhança, é provavelmente decorrência
direta do proceso de seleção natural. É ela que faz com que um homem mais atenção e cuidados ao seu filho
que ao filho de um estranho, mas que passe a ter por estes maior sensibilidade quando imagina que poderia se
tratar do seu. É essa empatia, ainda, de origem darwiniana, que torna solidários os membros de qualquer grupo
(músicos, evangélicos, professores, advogados, pais de crianças excepcionais, imigrantes...).
60
E mesmo esse, fabricado em 2008, tem ainda aspectos passíveis de melhora. Poderia ser ainda mais leve, fino
e barato, consumir menos energia, ter imagens tridimensionais ou mesmo sensíveis ao toque... O leitor que
passar por estas linhas em 2020, ou 2030, certamente rirá deste exemplo, diante dos equipamentos que estarão à
sua disposição para esse mesmo fim. E eles existirão, melhores, porque é sempre possível, ao homem, julgar a
realidade em face da possibilidade, com o propósito de alterá-la ou de preservá-la.
61
Herman Heller, em termos semelhantes, afirma que “o homem é essencialmente utópico, isto é, capaz de
contrapor ao ser um dever ser e valorizar o poder atual segundo uma idéia do direito.” HELLER, Herman.
Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 264.
62
Precisamente por isso, a legitimidade da ordem jurídica é também medida em graus, e não sob a forma de um
absoluto tudo ou nada. São as palavras de Ronald Dworkin, para quem
political legitimacy is not an all-or-
nothing matter but a matter of degree
.” (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a
new political debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 97). Por isso se diz que “a ordem jurídica e
109
para a pessoa cuja conduta por ela é disciplinada,
deveria ser, será essa uma forte razão para o
cumprimento da norma. Esse o motivo da afirmação de Arnaldo Vasconcelos, para quem
“ninguém se obriga juridicamente senão por si, impelido por essa motivação. Sem medo, sem
ameaça. Porque a obrigação há de ser responsável, isto é, assumida livremente.”
63
Aliás, é precisamente a correspondência entre a norma que é e a norma que deveria ser
que faz com que se reconheça, ou não, na norma que é, uma norma jurídica, válida e
obrigatória. A normatividade – escreve Pablo Lucas Verdu - “
se acepta porque es conveniente
y buena para la integración social
”.
64
Caso não haja em absoluto essa correspondência, nada,
além da força, poderá fazer com que a norma posta seja observada. Nenhuma diferença,
também nesse caso, haverá entre o homem que cumpre essa determinação que não
reconhece como realidade institucional e o animal que entra na jaula por medo do chicote
que estala à sua frente. Não se pode diz Arnaldo Vasconcelos - “confundir o homem com o
jumento do verdureiro, que para andar, ou parar, ou retroceder no caminho tem de ver o
movimento do chicote ou ouvir o silvar dele em sua proximidade.”
65
Daí porque, como o que
caracteriza a norma é o reconhecimento e a aceitação, que fazem dela uma
realidade
institucional,
não se poderá chamar de norma jurídica aquela não reconhecida nem aceita,
66
cuja observância decorre simplesmente do medo.
67
Além disso, como a força não pode ser
exercida contra todos, em todos os lugares e para sempre, a “ordem jurídica” que nela busca o
seu fundamento não subsiste por muito tempo.
68
Por isso se diz que o consentimento dos
governados é, ao mesmo tempo, “a origem e o limite do poder.”
69
Santiago Nino, nesse
sentido, e pela mesma razão, reconhece que
el grado en que se consiga obtener conformidad con las directivas y decisiones
jurídicas, sobre la base de la legitimidad de los órganos que las dictaron,
dependerá de hasta qué punto las concepciones morales de la gente concurren en
considerar legítimos a tales órganos, y en qué medida la población esté dispuesta a
a ordem estatal podem ser, sem dúvida, mais ou menos legítimas.” MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz.
Introdução. In: _________ (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 9-20, p. 10).
63
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros. 2000, p. 258.
64
VERDU, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional aproximacion al estudio del sentir constitucional
como modo de integración política. Madrid: Reus, 1985, p. 5.
65
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 93.
66
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
241.
67
SEARLE, John R. Libertad y neurobiologia. Traducción de Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005, p. 108.
68
A violência até pode, eventualmente, participar na instituição de uma nova ordem jurídica (sendo necessária
para destituir as bases da anterior), mas não a alimenta. “Toda pressão que dura é indício certo de revolução que
se retarda.” MIRANDA, F.C. Pontes de.
Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller, 2000. v.
3, p. 116.
69
COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 594. Konder ampara-se, na
passagem citada, nas lições de Claude Lévi-Strauss.
110
observar lo prescripto por autoridades que considera legítimas.
70
Trata-se, ainda no dizer de Nino, de
una condición necesaria para que éste (el orden jurídico) se mantenga y alcance
cierta estabilidad; de ahí la preocupación aun por parte de los gobernantes más
cínicos, de apelar al sentido de justicia da la comunidad en apoyo de su autoridad y
del contenido de sus mandatos
.
71
Como animal racional, que distingue o real do possível, o homem é ser em constante
realização. É contraditório por natureza. Age por instinto, mas também guiado pela razão. É
animal, mas dotado de um espírito.
72
Está no mundo sensível, mas é capaz de aceder ou
adentrar no mundo inteligível. É finito em sua existência individual, mas infinito em suas
possibilidades.
73
Compreende o que é, mas também o que deve ser.
74
É, em suma,
um ser de contradições, isto é, um ser de possibilidades que oscilam entre extremos,
dos quais ele representa a síntese. Um ser que se situa entre finitude/infinitude,
natureza/cultura, animalidade/moralidade, matéria/espírito, ser/dever-ser,
inconsciência/consciência, fraqueza/força, pequenez/grandeza, paixão/razão,
maldade/bondade etc. Nietzsche, entre outros, falou sobre esta situação do homem
com profunda sabedoria.
Está no Zaratustra:
‘O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem uma corda por
cima de um abismo.
Perigoso é atravessar o abismo – perigoso seguir este caminho – perigoso olhar para
trás – perigoso ser tomado de pavor e parar!
A grandeza do homem está em ser ele uma ponte e não um final; o que podemos
amar no Homem, é ser ele transição e naufrágio.’ (A, 14)
O homem é ponte lançada entre extremos e transição rumo a sua ultrapassagem. É e
está sendo, projetando-se e autoproduzindo-se. Mas, não perde a identidade
enquanto se transforma, de vez que a mudança, nele, significa aperfeiçoamento.
75
Por isso é capaz de atos bons e de atos maus, e sobretudo de julgá-los bons e maus,
70
NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2.ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 4.
71
Ibid., 2003, p. 4.
72
A expressão, aqui, é usada em sentido evidentemente não-religioso, relativo à parte imaterial do ser humano.
73
Hannah Arendt, a esse respeito, observa que “a tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua
capacidade de produzir coisas obras, feitos e palavras que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo
ponto, pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo
onde tudo é imortal exceto eles próprios. Por sua capacidade de feitos imortais, por poderem deixar atrás de si
vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de
imortalidade e demonstram sua natureza 'divina'.” ARENDT, Hannah.
A condição humana. Tradução de
Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 28.
74
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 12.
75
Id. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 29-30. É por essa razão que, depois de
reproduzir a idéia de Hegel segundo a qual o homem é aquilo que ele próprio faz de si mesmo, mediante a sua
atividade, Comparato afirma que “nisso ele se opõe radicalmente aos animais.” COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 324.
111
sendo essa sua natureza contraditória também inafastável quando se cogita do disciplinamento
de sua conduta pelo Direito, o qual seria inútil, se ele fosse inteiramente mal, ou
desnecessário, se ele fosse inteiramente bom. Daí a afirmação de Alain Supiot, segundo a qual
o Direito vincula as dimensões biológica e simbólica constitutivas do ser humano. Em suas
palavras,
O Direito liga a infinitude de nosso universo mental à finitude de nossa experiência
física, cumprindo em nós uma função antropológica de instituição da razão. A
loucura espreita, tão logo se negue uma ou outra das duas dimensões do ser humano,
quer para tratá-lo como animal, quer para tratá-lo como um puro espírito, livre de
qualquer limite afora os que ele confere a si mesmo. [...] Olhar o homem como um
puro objeto ou olhá-lo como um puro espírito são as duas faces de um mesmo
delírio.
76
De outro lado, a correspondência entre norma posta, ou positivada, e norma possível,
ou pressuposta, é aferida não apenas na avaliação da ordem jurídica como um todo,
em tese,
mas também quando da aplicação, em cada caso, de suas prescrições, momento em que o
intérprete – e suas noções em torno de realidade e possibilidade – exerce papel relevante.
Com efeito, a norma jurídica não se confunde com o texto, com um sinal gráfico ou
com uma série de condutas repetidamente praticadas, realidades captadas através dos sentidos.
A norma é, na verdade, o
sentido do texto, do sinal gráfico ou das condutas repetidamente
praticadas. Esse sentido, que não faz parte da realidade sensível, é metafísico. Faz parte do
“mundo 3” a que alude Karl Popper.
O leitor mais atento, a esta altura, pode estar se indagando: e o que diferenciaria,
então, direito real e direito ideal, ou direito posto e direito apenas imaginado? Afinal, tal como
a fórmula matemática e o poema, a norma jurídica não está no mundo físico, embora possa ser
expressa por símbolos que, estes sim, fazem parte da realidade sensível, precisamente a parte
dessa realidade sensível que estabelece uma ligação, como uma ponte, à realidade inteligível.
Entretanto, o que diferencia o direito positivo e um direito possível mas não positivado
é precisamente a circunstância de o direito posto ser determinado a partir de realidades
sensíveis que lhe servem de suporte, pois a elas se atribuiu, de modo intersubjetivo,
determinado sentido, precisamente o sentido de determinar, proibir ou facultar condutas. O
direito posto foi convencionado, é realidade institucional e, por isso, pode ser mais facilmente
identificado de forma epistemicamente objetiva ou, a rigor, intersubjetiva. O pressuposto não.
76
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. X.
112
Tem utilidade, aqui, a distinção entre
objetividade ontológica e objetividade
epistêmica
.
77
Diz-se ontologicamente objetivo aquilo que existe independentemente de uma
experiência subjetiva, vale dizer, independentemente de um observador. É o caso de uma
montanha e de uma praia. Ontologicamente subjetivo, por sua vez, é aquilo que depende da
existência de um sujeito observador. Nesse sentido ontológico, é subjetiva a existência de
uma cédula de 20 reais, pois sem sujeitos que atribuam a um pedaço de papel essa qualidade,
ele não será assim considerado.
a objetividade e a subjetividade epistêmicas são propriedades das afirmações. A
afirmação de que as obras de Goya são mais bonitas que as de Picasso tem sua procedência a
depender das preferências de quem a faz e de quem a interpreta. É subjetiva do ponto de vista
epistêmico. Não é o que acontece com a afirmação de que Diego Velásquez foi um pintor
espanhol, que é epistemicamente objetiva vez que sua veracidade pode ser aferida
independentemente das preferências de quem a faz ou ouve ou lê.
O direito positivo, enquanto realidade institucional, vale dizer, enquanto sentido
atribuído a certas coisas ou símbolos, é ontologicamente subjetivo, pois depende do homem (e
de seu “Mundo 3”) para existir, mas é possível fazer afirmações epistemicamente objetivas
em torno dele. Exemplificando, sem alguém para reconhecer nos símbolos constantes de uma
página de um livro o art. 1.º da Constituição brasileira, este sequer poderia ser considerado
como tal. Entretanto, a afirmação de que esse dispositivo determina que o Brasil se organize
sob a forma de uma República federativa e não de um Estado monárquico unitário pode ter
sua procedência aferida dentro de certos limites independentemente das preferências de
quem a faz.
Por mais objetividade epistêmica que exista em torno do sentido dos símbolos
gráficos, que se convencionou serem normas jurídicas, a determinação desse sentido, em cada
caso, será também determinada aqui até em maior grau pelo que o intérprete dos tais
símbolos considera que o direito deveria ser. É evidente que essa influência sofrerá limites
impostos pelos próprios símbolos interpretados e pelas demais normas constantes do
ordenamento com aquela relacionadas. Mas, não se pode negar, essa influência existe.
Dessa forma, parece certo dizer que
o que o direito é sofre influência, em certa
medida, daquilo que
o direito deveria ser. Examinado em sua globalidade, em tese, enquanto
77
SEARLE, John R. Libertad y neurobiologia. Traducción de Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005, p. 92-
93.
113
ordenamento jurídico, dessa correspondência depende sua eficácia e, em último caso (a
questão é de grau), sua própria caracterização enquanto Direito. Do contrário, observada
unicamente porque imposta pela força, e não porque reconhecida como realidade
institucional, uma ordem jurídica sequer pode ser entendida como tal.
78
E, em sua aplicação
concreta, à luz de cada caso, essa correspondência interfere na própria determinação de seu
sentido, pelo intérprete. É precisamente por isso que Miguel Reale observa, a propósito do
antagonismo entre direito positivo e direito natural, que
se são infinitos os conteúdos ou formas do Direito Natural, nessas variações uma
nota comum, que consiste na ineliminável enunciação de algo que se valora
positivamente e se quer seja preservado, a todo custo, pela legislação positiva e
algo que se aprecia negativamente, e se deseja ver repudiado pelas normas legais.
79
Se se quer chamar esse direito ideal de direito natural, porque “obra humana, projeção
de sua natureza”
80
, de ética,
81
de moral, de pretensão de correção, de ideia de direito, ou de
qualquer outro nome, isso não é relevante. A grande questão reside em saber qual é o
conteúdo desse
direito que deveria ser e a quem cabe determinar o quantum de sua influência
sobre o
direito que é. Essa a grande questão, sendo o pressuposto para que se assegurem,
conforme será adiante demonstrado, liberdade, igualdade e democracia.
5.3 Teoria do Direito e concepção de ciência
Verificou-se, nos itens precedentes, que o homem é um animal metafísico, capaz de
distinguir o real do possível. Constatou-se, ainda, que aquilo que o Direito
é depende, de
alguma forma, daquilo que ele
deve ser. Subsiste, contudo, a questão de saber se seria
científica essa visão do Direito. Ou, por outras palavras: para ser considerado científico, o
78
The operation of constitutive rules presupposes acceptance of these rules. For a brute fact to become an
institutional fact, the transformation must find support in the attitudes of those for whom the institutional fact
resonates as true
. If no one accepts that ‘X counts as Y in C’, it would be difficult to assert the existence of the
rule
. [...] Authority is not sufficient to change the rule if the people who apply the rule in their daily lives are not
convinced that they should make the shift
.” (FLETCHER, George P. Law. In: SMITH, Barry (ed.). John searle.
contemporary philosophy in focus. New York: Cambridge University Press, 2003. p. 85-101, p. 98-99). Em uma
tradução livre: “O funcionamento de regras constitutivas pressupõe a aceitação destas regras. Para um fato bruto
tornar-se um fato institucional, a transformação deve encontrar apoio na conduta daquelas pessoas para quem o
fato institucional ressoa como verdade. Se não se admitisse que um ‘X conta como Y em C’, seria difícil afirmar
a existência da regra. [...] Autoridade não é suficiente para alterar uma regra se as pessoas que a aplicam em seu
quotidiano não estão convencidas de que devem fazer a mudança.”
79
REALE, Miguel. Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 4.
80
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31.
81
A rigor, ética parece ser conceito mais amplo, o mesmo podendo ser dito da moral, pois envolve também
normas de conduta inerentes a situações das quais o direito sequer trata. Mas pode-se dizer que seu conteúdo se
confunde com o do chamado direito natural quando funcionam de paradigma para julgamento do direito posto.
114
conhecimento não deve restringir-se ao que o direito
é, afastando qualquer consideração
valorativa ou axiológica em torno do que ele
deveria ser?
Isso conduz a outra gama de questionamentos, a começar por estes: o que é ciência?
Quando um conhecimento pode ser considerado científico?
Quando se perquire a respeito de ciência, cogita-se de uma espécie ou modalidade do
conhecimento humano. Este, como se sabe, é geralmente dividido em conhecimento comum,
e em conhecimento científico. Pode-se falar, ainda, em conhecimento filosófico e em
conhecimento religioso.
O conhecimento comum é aquele que orienta as práticas humanas diárias. Decorre do
chamado senso comum, é eminentemente prático e assistemático e, em regra, não tem caráter
autoquestionador. o conhecimento científico é dotado de maior sistematicidade,
consistência teórica e caráter autoquestionador.
82
É tênue a separação entre este último e o
conhecimento filosófico,
83
que também é sistemático, consistente e autoquestionador: a
distinção entre ambos reside na maior universalidade do conhecimento filosófico, em
oposição a uma maior especialidade do conhecimento científico.
84
Finalmente, o
conhecimento religioso se diferencia dos demais pelo seu caráter dogmático, eis que alheio à
possibilidade de questionamentos.
Como toda classificação, esta que se resumiu linhas acima não é dotada de linhas
divisórias precisas e claras. Essa falta de clareza, foi apontado, está presente na divisão
entre ciência e filosofia. E, de certa forma, embora em muito menor intensidade, também
entre o conhecimento científico e o conhecimento comum, ou popular: algo antes situado
apenas no âmbito do conhecimento científico passa, depois de algum tempo, ao campo do
senso comum,
85
do mesmo modo que um enunciado extraído do âmbito do conhecimento
comum pode ensejar pesquisas científicas e, com isso, inserir-se no âmbito do conhecimento
científico.
86
Distinção nítida existe, contudo, entre o conhecimento científico e o dogmático,
podendo-se dizer que são antônimos, embora muitos pretensos cientistas adotem posturas, em
82
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 44-47.
83
E, para alguns autores, até mesmo inexistente.
84
Nesse sentido: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de António José Brandão.
5.ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 304; HERKENHOFF, João Baptista.
Carta de iniciação para gostar
do Direito
. 2.ed. São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 16.
85
DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000, p. 22.
86
É o que acontece quando um farmacêutico ou um químico, observando o costume popular de preparar chás de
certas ervas para combater determinadas doenças, passa a pesquisá-las a fim de extrair-lhes o princípio ativo e,
com isso, fabricar medicamentos com o mesmo propósito.
115
nome da ciência, inteiramente dogmáticas.
Não é o propósito deste item, contudo, aprofundar a discussão a respeito das
características dos conhecimentos popular, filosófico e religioso. Interessam, por ora, as
características do conhecimento tido por científico, pois é sob a justificativa de serem ou não
científicas que giram algumas das discussões entre juspositivistas e jusnaturalistas. Mas note-
se: não se está dizendo que
este estudo, aqui desenvolvido, seja científico. Embora o limite
entre ciência e filosofia, se disse, seja nos dias de hoje problemático, admitindo a distinção
classicamente apontada este trabalho seria de Filosofia do Direito, e não de Ciência do
Direito. Ainda assim, importam aqui as características do conhecimento científico porque é
em nome dele que positivistas tangenciam a questão dos fundamentos do ordenamento
jurídico.
A epistemologia contemporânea não mais considera como características do
conhecimento científico a objetividade, a neutralidade, a clareza e a certeza. De fato, hoje se
entende que a ciência é essencialmente provisória, composta de teorias e enunciados
considerados verdadeiros até que se demonstre o contrário. As mudanças pelas quais
passaram as principais teorias científicas nos Séculos XIX e XX são testemunhos disso.
E nem poderia ser diferente, pois o conhecimento, inclusive o científico, se estabelece
no âmbito de uma
relação entre o sujeito que conhece, ou cognoscente, e o objeto a ser
conhecido.
87
Segundo Agostinho Ramalho Marques Neto, Kant teria sido o primeiro a
ressaltar a importância, no processo de conhecimento, não do sujeito ou do objeto, “tomados
isoladamente como fazem o empirismo e o idealismo tradicionais, mas da
relação que entre
eles se processa no ato de conhecer.”
88
E, realmente, é Kant quem observa que “permanece
inteiramente desconhecido a nós o que os objetos podem ser por si mesmos e separadamente
da receptividade de nossos sentidos.”
89
Em face do conhecimento, forma-se, na consciência do sujeito, uma imagem do
objeto.
Não se trata do próprio objeto, mas apenas de uma imagem dele, sempre passível de
aperfeiçoamento. A imagem do objeto é distinta deste e se encontra “de certo modo entre o
87
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de Antonio Correia. 7.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1978, p. 26.
88
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 9.
89
What the objects may be in themselves would still never be known through the most enlightened cognition of
their appearance, which alone is given to us
.” KANT, Immanuel. Critique of pure reason. Translated by Paul
Guyer and Allen W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 185
116
sujeito e o objeto. Constitui o instrumento pelo qual a consciência cognoscente apreende o seu
objecto.”
90
Daí a advertência de Pontes de Miranda, segundo a qual “quando percebemos
algum objeto, não o percebemos como o ser, que é, e tal como é. A fruta, que vemos, a
vemos por fora; o salão, que vemos, só o vemos por dentro.”
91
Sendo o conhecimento construído a partir de imagem do objeto, formada na
consciência do sujeito em face do exame que este faz daquele, não é preciso maior esforço
intelectual para concluir pela sua
provisoriedade e pela sua imperfeição. Com efeito, será
sempre possível, mediante novo exame do objeto, por outro enfoque, apreender-lhe
características novas, aperfeiçoando a imagem que dele tem o sujeito. E será sempre possível,
em tese, nesse novo exame, ver-se que a imagem até então construída é equivocada,
merecendo retificações. Afinal, diz Agostinho Ramalho Marques Neto, o objeto do
conhecimento é o objeto tal como o conhecemos, “isto é, o objeto
construído, sobre o qual se
estabelecem os processos cognitivos”
92
, de modo que “o ato de conhecer é um ato de
construir, ou melhor, de
reconstruir, de aprimorar os conhecimentos anteriores.”
93
Assentado o conceito de verdade na correspondência entre uma afirmação sobre a
realidade e essa realidade mesma, e sendo certo que a imagem que se tem da realidade é
sempre imperfeita e provisória, conclui-se, também, que o que se considera verdade é sempre
provisório
94
e relativo, pois essa imagem é sempre passível de aperfeiçoamentos e
retificações. A verdade está, ademais, além do objeto que, como conclui Hessen, “não pode
ser verdadeiro nem falso”, encontrando-se “de certo modo, mais além da verdade e da
falsidade.”
95
Na mesma esteira, partindo da premissa de que o objeto do conhecimento não é
simplesmente dado e sim
construído pelo sujeito, Marques Neto conclui que “todas as
verdades, inclusive as científicas, são aproximadas e relativas; são parcialmente verdade e
90
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de Antonio Correia. 7.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1978, p. 27. Em termos análogos: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho.
A ciência do direito. 2.ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 14.
91
MIRANDA, Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller, 1999, p. 86.
92
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 14.
93
Ibid., 2001, p. 14.
94
JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1981, p. 37. Ainda que se insista, aqui,
na distinção entre conhecimento (que seria relativo) e verdade (que poderia ser absoluta), não se faz mais do que
um jogo de palavras, pois é apenas do conhecimento que a criatura humana dispõe para avaliar se algo é
verdadeiro ou não.
95
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de Antonio Correia. 7.ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1978, p. 30. Realmente, fatos não são verdadeiros nem falsos. Essas qualidades são pertinentes às
afirmações que se fazem a respeito deles.
117
parcialmente erro.”
96
Se para se afirmar a veracidade do conhecimento é preciso demonstrar a identidade
entre o objeto conhecido e a imagem que se faz dele,
97
e se essa imagem é imperfeita e
imprecisa, nunca podendo ser integralmente idêntica ao próprio objeto, não será jamais
possível dizer-se, de modo definitivo, que uma afirmação é verdadeira. Pode-se, quando
muito, dizer-se que não se descobriu ainda a sua falsidade. Isso porque, como bem observa
Marques Neto, “só poderíamos falar de conhecimentos definitivos, se o objeto de
conhecimento correspondesse
exatamente ao objeto real, ou seja, se fosse possível formular a
equação O.C = O.R. Mas não possuímos meios que nos permitam verificar essa
correspondência.”
98
Essa, como se sabe, é teoria de Karl Popper, que inclusive encontra, assim, explicação
natural para o conhecimento humano e para como se sua construção e evolução. Trata-se,
em última análise, da maneira
racional de aprender e transmitir a experiência aprendida com
os erros.
O que os seres vivos de formação menos complexa fazem com o sacrifício de alguns
indivíduos, para o proveito da espécie em face da seleção natural, o homem faz com a
eliminação de ideias que se mostram errôneas ou ineficazes. O processo é análogo,
99
sendo
certo que
os organismos superiores são capazes de aprender por tentativa e erro como deve ser
resolvido determinado problema. Podemos dizer que também eles fazem
movimentos de experimentação – experimentações mentais – e que aprender é
essencialmente testar, um após outro, movimentos de experimentação até encontrar
um que resolva o problema.
100
Como anotam Aftalión, Vilanova e Raffo, o genoma constitui o verdadeiro
96
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho, op. cit., 2001, p. 15.
97
Desde Aristóteles, os pensadores têm definido a verdade, com ligeiras variações na forma de dizer, como a
adequação de um pensamento, ou de um enunciado, com a realidade a respeito da qual se pensa ou enuncia.
Diante disso, a realidade não é verdadeira. O que pode ser verdadeiro, ou não, é o que se diz dela. E essa
correspondência entre a realidade e o que se diz dela nunca terá como ser, pela criatura humana, inteira e
absolutamente verificada. Por isso, Comte-Sponville afirma que “pode haver verdade em nossos conhecimentos,
mas nossos conhecimentos o são a verdade, nem poderiam identificar-se com ela.” COMTE-SPONVILLE,
André.
Valor e verdade estudos nicos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.
358.
98
Ibid., 2001, p. 15.
99
Análogo, vale dizer, semelhante, mas não idêntico. “É preciso anotar” as palavras são de Álvaro Ricardo de
Souza Cruz “que Popper, a despeito da influência marcante do trabalho de Charles Darwin, procura desde
sempre evitar a chamada falácia naturalista, eis que percebe e anota não uma identidade entre os processos acima
assinalados, mas apenas semelhanças.” CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
O discurso científico na
modernidade
: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 37.
100
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 17.
118
protagonista
del proceso de aquisición y transmisión de conocimiento (vía herencia). La
información que él contiene determina la formación de cada nueva célula y de cada nuevo
órgano del organismo vivo fenotipo - , que es su portador
.”
101
Na sequência, o homem,
adquirindo consciência de si, passa a adquirir conhecimento também desse processo de
adaptação ao meio, lembrando de tentativas anteriores e imaginando tentativas futuras. Não é
necessário o sacrifício do indivíduo autor da tentativa fracassada, para que a melhor maneira
de enfrentar o problema fique registrada nos genes dos que subsistem, pois
mientras que em
el conocimiento innato el protagonista del proceso es el replicador ADN constitutivo del
genoma
prosseguem Aftalión, Vilanova e Raffo en el aprendizaje el protagonista es el
individuo o los indivíduos mismos.
102
A relação entre conhecimento, evolução e adaptação do ser vivo ao meio e aos
problemas que este lhe oferece é notável. “O instinto” – as palavras são de Pontes de Miranda
“responde a perguntas que se puseram antes da existência do animal que pratica o ato ou os
atos instintivos. Se o problema é novo, se tem de ser apresentado ao indivíduo, à geração, ao
‘animal que é’, o instinto não lhe basta: só a inteligência lhe pode servir.”
103
Torna-se possível
aplicar, a partir daí, o método da seleção natural às ideias. Quando se reconhece isso, e por
conseguinte também a imperfeição e a provisoriedade do que se considera ser a verdade, diz-
se que se está fazendo
ciência. Por isso é que o verdadeiro cientista, observa Popper, “formula
enunciados, ou sistemas de enunciados, e verifica-os um a um”
104
, tendo por trabalho
“elaborar teorias e pô-las a prova.”
105
Quando a teoria é posta à prova e resiste, decide-se
positivamente pela sua manutenção. “Se se descobrir um motivo para rejeitá-la, contudo”
prossegue Popper “se a decisão for negativa, ou em outras palavras, se as conclusões
tiverem sido
falseadas, esse resultado falseará também a teoria da qual as conclusões foram
logicamente deduzidas.”
106
A comprovação do acerto de uma teoria é sempre provisória, pois
“subsequentes decisões negativas sempre poderão constituir-se em motivo para rejeitá-la.”
107
Partindo dessa ideia de ciência, e voltando-se para a forma como essa evolução
101
AFTALIÓN, Enrique R.; VILANOVA, José; RAFFO, Julio. Introducción al derecho. 4.ed. Buenos Aires:
Abeledo Perrot, 2004, p. 43.
102
Ibid., 2004, p. 45.
103
MIRANDA, Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller, 1999, p. 31.
104
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da
Mota. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 27.
105
Ibid., 2006, p. 31.
106
Ibid., 2006, p. 34
107
Ibid., 2006, p. 34. No mesmo sentido: SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios a ciência
vista como uma vela no escuro. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.
36.
119
acontece (e para os seus sobressaltos), Thomas Kuhn procura ratificá-la, destacando o caráter
revolucionário do conhecimento científico, formado por um conjunto de ideias que, sendo
colocado em dúvida (
v.g., quando não mais explica satisfatoriamente a realidade, fazendo-o
de forma contraditória ou falha), leva a uma superação do modelo em torno (ou a partir) do
qual as ideias são construídas, conhecido como
paradigma.
108
Nesse caso, prossegue Kuhn,
o novo candidato a paradigma poderá ter poucos adeptos e em determinadas
ocasiões os motivos destes poderão ser considerados suspeitos. Não obstante, se eles
são competentes aperfeiçoarão o paradigma, explorando suas possibilidades e
mostrando o que seria pertencer a uma comunidade guiada por ele. Na medida em
que esse processo avança, se o paradigma estiver destinado a vencer sua luta, o
número e força de seus argumentos persuasivos aumentará. [...] Mais cientistas,
convencidos da fecundidade da nova concepção, adotarão a nova maneira de praticar
a ciência normal, até que restem apenas alguns poucos opositores mais velhos.
109
Em relação a estes, não se poderá dizer, propriamente, que estão errados. Quando
muito, dir-se-á que “o homem que continua a resistir após a conversão de toda a sua profissão
deixou
ipso facto de ser um cientista.”
110
Daí dizer-se que “o jogo da ciência é, em princípio,
interminável. Quem decida, um dia, que os enunciados científicos não exigem prova, e podem
ser vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo.”
111
Pelo mesmo motivo, não é
tão importante o método seguido pelo cientista, o qual, por moldar de modo apriorístico a
forma como o sujeito visualiza o objeto, deve ser por igual visto como algo relativo, não
108
A respeito do paradigma em Kuhn, Álvaro Ricardo de Souza Cruz ensina que “paradigma deve ser
compreendido como uma estrutura mental apta a classificar o objeto pesquisado, de modo a conceber não a
natureza metodológica da mesma, mas também suas dimensões psicológica, antropológica, moral e ética. Desse
modo, mais do que um modelo, o paradigma conforma os problemas e as formas de solução de uma questão
dada.” CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é
aplicável ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 4.
109
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 202.
110
Ibid., 2005, p. 202. Talvez haja certo exagero na afirmação, algo simplista, de que as revoluções científicas
operam-se sempre e necessariamente da forma como descrita por Kuhn. A rigor, a superação de um paradigma
nem sempre o afasta por completo, embora isso possa eventualmente ocorrer. Nem sempre
substituição,
havendo, não raro, apenas complementação de um paradigma por outro. Em relação ao geocentrismo, pode-se
dizer que se trata de paradigma ultrapassado por completo. Entretanto, no que pertine à física newtoniana, por
exemplo, as teorias subsequentes, da relatividade, e a quântica, servem-lhe de complemento, sobretudo na esfera
do muito grande e do muito pequeno. Tanto que, no plano da maior parte das ações humanas (
v.g.,
funcionamento de aviões), a mecânica newtoniana continua explicando satisfatoriamente muitas coisas.
111
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 12. ed. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira
da Mota. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 56. Com essas referências feitas a Thomas Kuhn e a Popper,
evidentemente, não se está a dizer que o pensamento desses dois autores seja em tudo equivalente. Isso é claro, e
na introdução deste trabalho se disse que a subscrição de algumas ideias de certos autores não implica a
adoção de toda a sua filosofia, considerada globalmente. O que se quis evidenciar, tão somente, foi que ambos
salientam a
provisoriedade da verdade científica. No dizer de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, “uma análise
epistemológica dessa concepção de ciência em torno do choque de paradigmas permite caracterizar o
conhecimento científico a partir do conceito de provisoriedade. Isso porque nenhuma proposição científica pode
pretender assumir o
status de verdade revelada, absoluta, com valor de eternidade.” CRUZ, Álvaro Ricardo de
Souza.
O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 6.
120
dogmático e, por isso, passível de modificações.
112
Portanto, é essencial a que se possa cogitar de “conhecimento científico” o
reconhecimento da provisoriedade de suas verdades
113
e a possibilidade de serem testadas ou
terem sua veracidade (ou falsidade) posta à prova continuamente. Não importa tanto o método
utilizado pelo estudioso ou a neutralidade de suas afirmações. O que interessa, para que suas
afirmações sejam consideradas científicas, é que possam ser testadas e falseadas. E, no plano
das ciências sociais, que possam ser criticadas. Se podem, são verdades científicas, pelo
menos até que essa falsificação ou esse falseamento aconteça.
Sendo o conhecimento humano uma continuação espontânea – decorrente de sua
racionalidade do processo de seleção natural, é fácil compreender que, da mesma forma
como não se pode afirmar o estacionamento da evolução das espécies, também não há
estacionamento de ideias. Sobretudo se se considerar que a mente humana é infinitamente
criativa e fecunda. Novos problemas, e maneiras diferentes de abordar problemas antigos,
podem sempre surgir. E, o que é mais relevante, opera-se constantemente o aperfeiçoamento
da
imagem que se tem dos mais variados objetos.
Talvez por isso J. M. Resina Rodrigues, ao cuidar do verbete
Ciência na Enciclopédia
Polis (Verbo), tenha dito que o homem
da rua imagina talvez que o sábio conta com princípios indiscutíveis e recebe da
experiência a prova cabal das suas leis. Não é bem assim.
Há enunciados praticamente definitivos; mas são vagos. Quando se quer grande
rigor, cai-se na situação da física contemporânea: não há nela um só princípio que se
considere como indiscutivelmente evidente, nem uma lei experimental que se
considere como definitivamente estabelecida. Em física só
hipóteses, embora
hipóteses que merecem uma confiança muito grande.
114
Confiança muito grande, porque todas as tentativas de falsificação ou falseamento
falharam, mas que não se converte jamais em certeza, porquanto não deixaram de ser
hipóteses, e o falseamento continua, em tese, possível. E isso não apenas na física exemplo
talvez colhido por Resina Rodrigues por sua até então suposta objetividade – mas em todos os
ramos do conhecimento que pretenda ser definido como científico, sendo a razão pela qual
112
FEYERABEND, Paul. Against method. 3.ed. London: Verso, 1993, p. 14.
113
Como observa Habermas, we could not take truth to be a property of propositions that they 'cannot lose.'
Even the arguments that here and now irresistibly convince us of the truth of ‘p’ can turn out to be false in a
different epistemic context
.” HABERMAS, Jürgen. Truth and justification. Translated by Barbara Fultner.
Massachusetts: MIT Press, 2003, p. 38.
114
RODRIGUES, J. M. Resina. verbete ciência. In: Polis - enciclopédia verbo da sociedade e do Estado.
Lisboa/São Paulo: Verbo, 1983. v. 1, p. 841-843, p. 842.
121
Marques Neto define a
objetividade da ciência como sendo apenas “um processo infinito de
aproximação.”
115
A ciência adulta “do século XX teve de renunciar a duas pretensões, que a
qualificaram como conhecimento superior a todos os demais, quais sejam, de apresentar
exatidão em seus resultados e de resolver definitivamente os grandes problemas do
homem.”
116
Aliás, além da circunstância de que mesmo a realidade sensível nos é intermediada
pelos sentidos, não se podendo ter acesso a ela de forma absoluta e direta, outro fator que
não pode ser ignorado: o tratamento que as informações, trazidas pelos sentidos, recebem na
consciência do sujeito que examina a realidade. As informações trazidas pelos sentidos não
são simplesmente acumuladas no intelecto. Este possui, moldado por informações
anteriores, e, antes mesmo delas, pela própria seleção natural, rotinas ou instruções a respeito
de como as interpretar.
117
Isso explica a retificação de Leibniz à frase de Locke, segundo a
qual “nada no intelecto exceto o que existiu primeiro nos sentidos”. A retificação foi:
“nada, exceto o próprio intelecto”.
118
Por outro lado, essas informações são necessariamente interpretadas no intelecto, o
que é feito a partir do
horizonte hermenêutico no qual se encontra o intérprete, vale dizer, a
sua posição no tempo e no espaço
119
, suas ideias prévias, seus pré-conceitos e todo o conjunto
115
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 15.
116
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 35.
117
Por isso se disse, no item 5.1, supra, ser impossível ao homem ter acesso direto ao “mundo 1” a que alude
Karl Popper. Confira-se, a propósito: NOZICK, Robert.
Invariances the structure of the objective world.
Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001, p. 108.
118
DURANT, Will. A filosofia de Emanuel Kant ao seu alcance. Tradução de Maria Theresa Miranda. Rio de
Janeiro: Edições de ouro, [s.d.], p. 46. Mais recentemente, como observa Antonio Cavalcanti Maia, Noam
Chomsky destacou, nesse mesmo sentido, que “a rapidez com a qual a criança consegue galgar estágios no uso
da linguagem pode ser justificada com base na idéia de que existe algum tipo de dotação inata que nos
permite, a nós, seres humanos, lidarmos com essa difícil tarefa de dominar complexas competências gramaticais:
a nossa mente não pode funcionar como uma
tabula rasa, em face da aquisição da linguagem.” MAIA, Antonio
Cavalcanti.
Jürgen Habermas – filósofo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 69.
119
Nesse sentido: FEYERABEND, Paul. Realism, rationalism and scientific method. Cambridge: Cambridge
University Press, 1981. v.1, p. 37-38. Um fato pitoresco que vivi deu-me prova suficiente disso. Em um
determinado dia de sábado, depois do almoço, distraía-me com a leitura de Robert Nozick (NOZICK, Robert.
Invariances the structure of the objective world. Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001),
quando meus filhos vieram me pedir ajuda para colocar para voar umas pipas que o meu pai havia feito para eles.
Interrompi a leitura de Nozick, precisamente no capítulo em que ele discute a existência, ou não, de verdades
absolutas e de realidades objetivas, e fui ajudá-los com as pipas. Fomos ao jardim, e, com o vento forte de
Fortaleza nos meses do "B-R-O" (setembro, outubro...), as pipas alçaram vôo. Foi uma felicidade. Muitas
aventuras, lanceios, pousos forçados no telhado da casa... Até que, terminada a brincadeira, fomos guardar as
pipas. Foi quando minha filha veio-me com o seguinte questionamento: “- Pai, fora, no sol, minha pipa era
cor-de-rosa, mas bem clarinha. Aqui dentro de casa, ela fica mais escura. Quase roxa. Qual é a cor
verdadeira da
minha pipa? A que ela tem fora, ou a cor aqui dentro?” Esse fato revela que mesmo a realidade sensível,
supostamente objetiva porque mensurável, é relativa. Ou melhor, não a realidade, propriamente, mas a imagem
que fazemos dela, que é necessariamente intermediada por nossos imperfeitos sentidos. Ou seria possível dizer,
122
de elementos que Gadamer define como
pré-compreensão.
120
É por isso que duas pessoas,
com os mesmos sentidos, quando examinam um objeto, dele fazem descrições diferentes,
sendo certo que também Gadamer, em termos semelhantes aos apontados nos parágrafos
anteriores, ressalta a limitação de toda compreensão humana.
121
Com isso não se está querendo dizer, é importante destacar, que a verdade seja algo
inteiramente subjetivo, que depende da vontade arbitrária de cada sujeito para acreditar ou
deixar de acreditar em qualquer coisa. Não é isso. Existem sim parâmetros para a
determinação da verdade de afirmações, os quais independem da subjetividade de quem as
examina. Apenas não são universais, relacionando-se com o momento histórico e com os
demais paradigmas em face dos quais são traçados. Não se tem como saber, de forma
definitiva, se as afirmações científicas atualmente feitas são verdades objetivas. Sabe-se,
quando muito, que são assim consideradas, de forma intersubjetiva.
122
Daí porque uma teoria deixa de ser verdadeira quando a comunidade científica deixa
de considerá-la como tal, conforme apontado por Thomas Kuhn no trecho citado
anteriormente. Alguém até poderia discordar do que se está a dizer, afirmando que o fato de
não sabermos qual é a verdade, de forma definitiva e absoluta, não significa que ela não
exista. Até pode ser assim mesmo, mas não se pode saber, senão através do consenso
intersubjetivo (e provisório), que algo é verdadeiro.
123
Não se pode, por outro lado, proibir
qualquer pessoa de discordar dessa verdade consensualmente aceita e de tentar demonstrar o
contrário, sendo essa a característica do conhecimento científico.
A conclusão que se pretende extrair de tudo isso é a de que, se mesmo em relação à
no caso, a cor verdadeira (ela deu bastante ênfase a essa palavra) da pipa, sem recorrer a algum ambiente - e à
luz nele presente e ao sujeito nele inserido -
em relação ao qual (logo, relativo ao qual) essa cor seria
determinada?
120
GRONDIN, Jean. Gadamer’s Basic Understanding of Understanding. In: DOSTAL, Robert J. (Org.). The
cambridge companion to Gadamer
. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 36-51, p. 41.
121
Daí dizer-se que [t]he simplest, quickest way to say what Gadamer’s hermeneutics hopes to teach us is that
all human understanding is 'finite
.'And that “finite points to a dependency of knowledge on conditions that the
human knower can never fully know
.” WACHTERHAUSER, Brice. Getting it right: relativism, realism and
truth. In: DOSTAL, Robert J. (Org.).
The cambridge companion to Gadamer. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002. p. 52-78, p. 56.
122
Essa relatividade, decorrente da “processualidade do saber”, “de forma alguma vem denegrir a ciência e a
filosofia. Pelo contrário, vem reconhecer seu verdadeiro estatuto. Só se sentem denegridos os cientistas e
filósofos obtusos e dogmáticos. Porque, no fundo, não querem ver morrer seus ídolos.” JAPIASSU, Hilton.
Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1981, p. 35.
123
Com efeito, poder-se-ia afirmar, em oposição, que existe sim uma verdade objetiva, e a existência de um
consenso intersubjetivo seria uma
decorrência dela, não devendo, contudo, ser confundido com ela. Isso até
pode ser correto, mas o homem nunca terá como saber, pois através do consenso chega de forma sempre
provisória ao que se
considera ser verdade objetiva. Confira-se, a propósito: NOZICK, Robert. Invariances
the structure of the objective world. Massachusetts/London: Harvard University Press, 2001, p. 90-91.
123
realidade sensível, da qual se ocupam as chamadas ciências naturais, a verdade é relativa,
provisória, intersubjetiva e consensual, sendo obtida apenas em ambiente orientado pelos
princípios da liberdade e da tolerância, não porque rejeitar essas mesmas características no
que pertine à verdade relativamente ao que é ideal e transcendente, como é o caso dos
valores
124
. Se as características da cientificidade, hoje, decorrem da possibilidade de
falseamento
125
ou do caráter não dogmático do conhecimento, consistindo na relatividade e na
provisoriedade das teorias, que pressupõem a liberdade e a tolerância, não porque rejeitar
essas mesmas características em relação ao estudo do direito. Pelo menos, não se pode fazer
isso em nome da defesa da cientificidade, a menos que se esteja a defender modelo
ultrapassado de ciência.
Mas, além de demonstrar a precariedade das bases epistemológicas do positivismo e a
carência de razão dos que se recusam a examinar valores em face de sua falta de objetividade
e pela suposta incerteza daí decorrente, exame da epistemologia atual fornece algumas pistas
adicionais a respeito de como deve ser fundamentada a ordem jurídica.
A ciência, viu-se nos parágrafos anteriores, precisamente por ter a característica da
provisoriedade de seus enunciados, que podem constantemente ser aperfeiçoados,
modificados ou retificados, não se compatibiliza com o dogmatismo. São inerentes ao seu
progresso e à busca pela verdade, liberdade, igualdade, democracia e tolerância. Todos devem
ter igual oportunidade de se manifestar a respeito das teorias existentes, para sugerir
reformulações e aperfeiçoamentos ou para defendê-las de sugestões que consideram
equivocadas. Uma ideia, por sua vez, é considerada verdadeira na medida em que é aceita
pela maioria dos que compõem a comunidade dos que se ocupam daquele assunto, sempre
124
NOZICK, Robert, op. cit., 2001, p. 237. É esse autor, ainda, quem observa que o mundo dos fatos brutos não
é imutável, e que não existe critério
a priori para determinar quais modificações são possíveis, e quais não o são.
Elas são descobertas no curso do processo de formação do conhecimento. Algo semelhante, em suas palavras, se
com a ética, sendo certo que esta, conquanto não seja igual em todos os tempos e lugares, tem uma função
invariável e diretamente ligada à natureza humana: pode-se dizer que a ética, o cérebro mais desenvolvido, a
linguagem e o sistema de cooperação mútua daí decorrente são fruto da seleção natural, sendo uma das causas da
sobrevivência da espécie humana. Essa sua
função pode ser considerada um dado objetivo, a partir do qual seus
enunciados podem ser julgados e discutidos com razoável grau de intersubjetividade (
Ibid., p. 290 e ss.). Nesse
sentido, Habermas observa que
moral beliefs do guide (normatively) rule-governed social interactions in a
similar way that empirical beliefs guide goaloriented interventions in the objective world
. However, they
are implicitly corroborated in a different way—not by successfully manipulating otherwise independently
occurring processes, but by consensually resolving conflicts of interaction
. And that can occur only against
the background of intersubjectively shared normative beliefs
.” HABERMAS, Jürgen. Truth and
justification
. Translated by Barbara Fultner. Massachusetts: MIT Press, 2003, p. 256.
125
Esse falseamento, no campo das ciências sociais, não pressupõe necessariamente a experimentação, como nas
ciências naturais, mas sobretudo a possibilidade de
crítica. Confira-se, a propósito, CRUZ, Álvaro Ricardo de
Souza.
O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 41.
124
existindo, contudo, o direito de alguém, perante essa mesma comunidade, de demonstrar suas
falhas.
Não existe razão para que, no âmbito da construção das normas que regem a vida em
sociedade, não se seguirem os mesmos princípios. Carl Sagan, aliás, registra ser
un hecho de la vida en nuestro pequeño planeta asediado que la tortura, el hambre y
la irresponsabilidad criminal gubernamental son mucho más fáciles de encontrar en
gobiernos tiránicos que en los democráticos. ¿Por qué? Porque los gobernantes de
los segundos tienen muchas más probabilidades de ser echados del cargo por sus
errores que los de los primeros. Es un mecanismo de corrección de errores en
política.
Los métodos de la ciencia —con todas sus imperfecciones— se pueden usar para
mejorar los sistemas sociales, políticos y económicos, y creo que eso es cierto
cualquiera que sea el criterio de mejora que se adopte. ¿Cómo puede ser así si la
ciencia se basa en el experimento? Los humanos no son electrones o ratas de
laboratorio. Pero todas las actas del Congreso, todas las decisiones del Tribunal
Supremo, todas las directrices presidenciales de seguridad nacional, todos los
cambios en el tipo de interés son un experimento. Cualquier cambio en política
económica, el aumento o reducción de financiación del programa
Head Start, el endurecimiento de las sentencias penales, es un experimento.
Establecer el cambio de jeringuillas usadas, poner condones a disposición del
público o despenalizar la marihuana son experimentos. No hacer nada para ayudar
a Abisinia contra Italia, o para impedir que la Alemania nazi invadiera la tierra del
Rin, fue un experimento. El comunismo en la Europa del Este, la Unión Soviética y
China fue un experimento. La privatización de la atención de la salud mental o de
las cárceles es un experimento. La considerable inversión de Japón y Alemania
Occidental en ciencia y tecnología y casi nada en defensa —y como resultado el
auge de sus economías— fue un experimento.
126
A associação entre ciência, verdade e justiça, feita de sorte a preconizar que o
ambiente propício ao florescimento das duas primeiras seja também o da última, pode ser
verificada, de forma mais clara e explícita, em Hans Kelsen, que, não obstante todo o seu
ceticismo em relação aos valores e à justiça – ou talvez por conta dele – observa:
Dado que la democracia es por naturaleza profunda libertad y libertad significa
tolerancia, no existe forma alguna de gobierno más favorecedora de la ciencia que
la democracia, la ciencia sólo puede desarrollarse cuando es libre. Ser libre quiere
decir no sólo no estar sometida a influencias externas, esto es, políticas, sino ser
libre interiormente: que impere una total libertad en su juego de argumentos y
objeciones. No existe doctrina que pueda ser eliminada en nombre de la ciencia,
pues el alma de la ciencia es la tolerancia.
127
126
SAGAN, Carl. El mundo y sus demonios - la ciencia como una luz en la oscuridad. Traducción de Dolors
Üdina. Barcelona: Planeta, 1997, p. 406.
127
KELSEN, Hans. Que es la justicia? Disponível em:
<http://www.usma.ac.pa/web/DI/images/Eticos/Hans%20Kelsen.%20La%20Juticia.pdf>. Acesso em: 11 nov.
2008. A demonstrar a falta de divisões claras nas classificações feitas na realidade, inclusive nas teorias e escolas
de pensamento, Lyotard defende, por igual, a possibilidade de um paralelo entre a verdade no âmbito da ciência
e a justiça no âmbito da política (e, pode-se acrescentar, do Direito). Confira-se: LYOTARD, Jean-François.
The
postmodern condition
: a report on knowledge. Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi.
Manchester: Manchester University Press, 1984, p. 8. Não que, por isso, verdade e consenso sejam a mesma
125
Em seguida, admite:
Puesto que la ciencia es mi profesión y, por lo tanto, lo más importante de mi vida,
la justicia es para mí aquello bajo cuya protección puede florecer la ciencia y, junto
con la ciencia, la verdad y la sinceridad. Es la justicia de la libertad, la justicia de
la paz, la justicia de la democracia, la justicia de la tolerancia.
128
Conquanto não seja partidário do mesmo relativismo axiológico de Kelsen, Karl
Popper faz associação semelhante. Para ele,
assim como podemos procurar proposições absolutamente verdadeiras no domínio
dos fatos, ou pelo menos proposições que cheguem mais perto da verdade, assim
também podemos
procurar propostas absolutamente corretas e válidas no domínio
dos padrões, ou pelo menos propostas melhores ou de maior validade.
129
Vale observar que o itálico na palavra “procurar” consta do original e decorre da
intenção de Popper de frisar que a natureza inalcançável da verdade absoluta não impede que
se proceda a uma constante busca por ela, em um infinito processo de aproximação,
aplicando-se a mesma ideia para os “padrões” de correção e de validade, ou seja, os padrões
de certo e errado. E esse infinito processo de aproximação, tanto no caso da verdade como da
justiça, é possível em um ambiente livre, democrático e plural, precisamente pelo fato de
que nunca se terá absoluta certeza quanto à perfeição do resultado encontrado. Com efeito,
seria um erro – as palavras são ainda de Karl Popper,
estender esta atitude além do procurar para o encontrar. Pois, embora procuremos
propostas absolutamente corretas e válidas, nunca nos persuadiremos de que as
encontramos definitivamente; porquanto, claramente, não pode haver um
critério de
coisa, ou que qualquer consenso intersubjetivo seja equivalente à verdade. Isso não ocorre, como explicado, e
o próprio Lyotard admite que nem sempre quando consenso existe verdade, mas a verdade
leva ao consenso
(
Ibid., p. 24). Karl Popper faz algo semelhante, a partir do relato de Herótodo sobre a discussão entre Dario I e os
gregos (que queimavam seus mortos) e os indianos (que os comiam) que viviam em território persa, cada um
horrorizado com os costumes do outro. “Popper percebe no exemplo de Herótodo a necessária tolerância e
respeito pelos costumes alheios como algo a se aplicar analogicamente no debate científico [...]” CRUZ, Álvaro
Ricardo de Souza.
O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 44.
128
Ibid. Norberto Bobbio, em termos semelhantes, registra que “governo democrático e ciência livre não podem
existir um sem o outro. A democracia permite o livre desenvolvimento do conhecimento da sociedade, mas o
livre conhecimento da sociedade é necessário à existência e à consolidação da democracia por uma razão
fundamental. John Stuart Mill escreveu que enquanto a autocracia precisa de cidadãos passivgos, a democracia
sobrevive apenas se pode contar com um número cada vez maior de cidadãos ativos. BOBBIO, Norberto.
Teoria geral da política – a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani.
São Paulo: Campus, 2000, p. 398-399.
129
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EdUSP, 1974. v.2, p. 406. Em termos análogos, Ian Shapiro observa que “na aventura acumulativa e
experimental de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, a democracia é o aliado mais confiável da verdade.
A postura democrática e a postura científica reforçam-se mutuamente, apenas porque ambas precisam do debate
público.” SHAPIRO, Ian.
Fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 266.
126
correção absoluta - menos ainda do que um critério de verdade absoluta.
[…]
Mas, embora não tenhamos qualquer critério de correção absoluta, certamente
podemos fazer progressos neste domínio. Como no domínio dos fatos, podemos
fazer descoberta. Que a crueldade é sempre “má”; que deve sempre ser evitada onde
for possível; que a regra áurea é um bom padrão, que talvez possa até ser melhorado,
fazendo-se aos outros, onde possível, como
eles querem que lhes seja feito; eis
exemplos elementares e extremamente importantes de descobertas no domínio dos
padrões.
130
É preciso, contudo, atentar para uma distinção. Embora a busca pela verdade científica
pressuponha liberdade e tolerância, assim como a busca pela justiça, pode haver diferença
entre os propósitos dos que debatem na comunidade científica e os propósitos dos debatem no
âmbito da elaboração das leis. Pode-se dizer que os primeiros têm maior preocupação com a
busca pela verdade, enquanto os segundos podem estar mais preocupados com a busca pelo
poder.
131
Essa distinção faz com que se torne ainda mais importante o estabelecimento de
regras do jogo para o exercício da democracia e para o seu controle. Isso conduz à verificação
sobre
por que um ordenamento jurídico deve fundar-se na liberdade, na igualdade e na
democracia, sendo isso o que se faz a seguir.
5.4 Pressupostos mínimos para a construção de um ordenamento jurídico
justo
Viu-se, reiteradamente, que o homem é um animal que se caracteriza pela aptidão de
diferenciar a realidade da possibilidade. Essa sua característica lhe confere a liberdade, e faz
com que seja o centro de inúmeras contradições, porquanto finito em sua existência mas
infinito em suas possibilidades.
Observou-se, também, que essa liberdade, porque surgida no âmbito da convivência
humana, vale dizer, no âmbito do grupo, de ser conciliada ou compartilhada. A absoluta
liberdade de um membro do grupo implicaria a absoluta sujeição dos demais. Daí a
necessidade de um instrumento que, regrando a conduta de todos, tornasse possível a
convivência de suas liberdades. O direito, portanto, está direta e necessariamente relacionado
130
Ibid., 1974, v.2, p. 406-407.
131
Essa distinção, contudo, deve ser vista com cautela, eis que diz respeito ao que geralmente acontece. Não
sendo viável o traçado de uma linha muito nítida, sendo possível verificar a sincera busca pela verdade (ou pela
justiça) entre políticos, e a mera busca pelo poder (inclusive com a deliberada distorção da verdade) entre
cientistas.
127
com a liberdade humana, sendo a sua finalidade a de propiciar a sua compartição.
Essa compartição, por definição, de dividir as liberdades em parcelas iguais, ou
semelhantes. Dar absoluta liberdade a um ou a uns, e negá-la inteiramente a outro ou a outros,
não é proceder à sua compartição. Para isso, aliás, o direito seria inteiramente prescindível.
A principal questão, todavia, é como fazer com que essa compartição ocorra de forma
equitativa. Por outro lado, poder-se-ia afirmar que liberdade e igualdade, nos moldes em que
acima sumariamente defendidas, são conceitos metafísicos, que não têm qualquer importância
ou densidade antes de reconhecidos e protegidos por normas positivadas por um aparelho
dotado do monopólio da força.
As respostas a essas duas objeções estão intimamente relacionadas. O direito é
realidade institucional. Como tal, só existe na medida em que assim é reconhecido pelos seres
pensantes de um grupo. É o mesmo que uma cédula de R$ 100,00 ou um gol, que existem
para os que reconhecem o pedaço de papel como dinheiro ou a passagem do objeto esférico
por entre duas traves e abaixo do travessão de um dos lados de um campo de futebol como
ponto para o time situado no lado contrário do campo. quando uma norma jurídica é
reconhecida como tal, por aqueles que por ela têm a conduta disciplinada, é que pode ser
considerada como o veículo através do qual o Direito se exprime. Algo que é cumprido não
por conta desse reconhecimento, mas
exclusivamente por força da coação, do medo ou da
ameaça, desprezando completamente a estrutura racional do ser humano e sua capacidade de
criar realidades institucionais, equiparando-o ao animal irracional, definitivamente não é
direito, independentemente de qualquer juízo de valor ou consideração subjetiva a respeito da
justiça.
Para que haja esse reconhecimento, que se opera de forma gradual, à base do mais ou
do menos, e não do tudo ou do nada, é preciso que o conteúdo da norma jurídica que existe
seja correspondente àquele conteúdo que a pessoa de quem se espera o reconhecimento
pretenderia que fosse. Como toda criatura humana é capaz desse julgamento, que coteja
realidade e possibilidade, toda criatura humana, diante de algo que é, pensa em como esse
algo poderia ser. E pensa também em como seria melhor que esse algo fosse.
Dessa forma, diante de uma norma posta, as pessoas que a examinam pensam,
inevitavelmente, em todas as outras normas possíveis. Pensam, por igual, qual delas a real
ou as várias possíveis – seria a melhor.
128
Essa
norma possível considerada melhor é o que os jusnaturalistas, de todos os tempos
e lugares, chamam direito natural. Atribuem a fontes diversas, é verdade, mas a realidade à
qual se referem é a mesma. E é inafastável, eis que é da natureza humana, ao lado do senso de
realidade, o senso de possibilidade.
132
Por essa razão, Arnaldo Vasconcelos afirma que o
direito obriga quando seus preceitos são capazes “de realizar, em cada época e de acordo com
a sua específica mundividência, aquilo que se entende por justiça. Se essa falha em grau
intolerável, como ensina Tomás de Aquino, o Direito positivo cede lugar ao Direito de
resistência, não positivo.”
133
Em semelhantes termos, Goyard-Fabre defende que o direito
pode ser assim considerado porque “participa de um horizonte de idealidade que lhe confere
sua essência e sua normatividade.”
134
Vale dizer, ele é o instrumento real através do qual se
procura implementar aquilo tido por
ideal.
Como a norma jurídica não existe em si, de forma ontologicamente objetiva, sendo em
verdade o sentido atribuído por alguém a textos, sinais, sons, práticas reiteradas etc., o
direito que deve ser, ou a norma possível, interfere inegavelmente na compreensão do direito
que é, real, podendo levar até mesmo à tomada de decisões algo distantes do sentido literal do
texto normativo. Isso é inevitável, e o pós-positivismo tem, neste ponto, dado notáveis
colaborações na teorização do ato de interpretar e aplicar o direito posto. Por essa razão, diz-
se que alguns autores pós-positivistas são, na verdade, neopositivistas, tendo aperfeiçoado a
teoria positivista para adequá-la a uma espécie de norma jurídica dotada de estrutura
diferente, que preconiza a promoção de um estado ideal de coisas e não a prática de uma
conduta específica, vale dizer, os princípios jurídicos.
Mas, em relação à produção normativa, à elaboração da ordem jurídica, no plano
hipotético, as contribuições do pós-positivismo, viu-se no capítulo anterior, não são assim tão
úteis. Como fazer com que os textos normativos editados, a partir dos quais os intérpretes
(re)construirão, em cada caso, as normas jurídicas pertinentes, aproximem-se daquele
conteúdo que os seus intérpretes considerariam ideal? Ou, para usar a terminologia
tradicional, como fazer com que o direito posto, ou positivo, seja elaborado de forma a
corresponder ao pressuposto, ideal ou natural, sendo assim mais amplamente
reconhecido
pelos que por ele são disciplinados e, assim, seja dotado de maior eficácia?
132
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 176-177.
133
Id. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 97.
134
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 38.
129
Neste ponto, a teoria dos direitos fundamentais pode dar colaboração importante. Não
porque eles estão, circunstancialmente, positivados nesta ou naquela Constituição, mas
porque, com ela, teorizou-se a existência de uma quarta dimensão de direitos,
135
através da
qual os direitos fundamentais possibilitam que o conteúdo do ordenamento jurídico não seja
necessariamente aquele (qualquer um) determinado coativamente pelo Estado ou por alguém
que se considere intérprete da razão humana ou da razão divina, mas pela sociedade
emancipada, que decide, ela própria, o que entende ser mais justo. O direito à informação
destina-se a dar meios àqueles que farão as escolhas, e o direito ao pluralismo visa a proteger
as minorias em face de eventuais deliberações discriminatórias da maioria, preservando a
própria liberdade que é pressuposto do direito e da democracia. uma aproximação, com
isso, do conceito de verdade (e de justiça) contemporâneo: não é algo objetivamente existente
e cognoscível, mas
intersubjetivamente aceito, de forma consensual e provisória.
São indispensáveis à adequada fundamentação da ordem jurídica, portanto, fazendo
com que ela se assemelhe ao que as pessoas por ela disciplinadas consideram ideal, a
promoção da liberdade, da igualdade e da democracia, nos moldes em que se explicará a
seguir.
136
Poder-se-ia dizer, com isso, que esta tese está a preconizar um direito que deve ser,
dizendo como a ordem jurídica
deve ser fundamentada. E é isso mesmo o que se está fazendo.
A partir de uma descrição de alguns aspectos da realidade, vale dizer, da natureza humana, do
caráter institucional do direito, da ineficiência e da inadequação de uma ordem jurídica
135
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524 e ss.
136
Tanto que mesmo autores de inspiração luhmaniana, que sustentam a natureza autopoiética do Direito, vale
dizer, sustentam que o Direito se fundamenta em suas próprias disposições, são forçados a admitir,
contraditoriamente, a necessidade de um conteúdo mínimo, ou de estruturas institucionais mínimas, que
permitam essa “autopoiese”. É o caso de Marcelo Neves, para quem “[n]o nível constitucional, a prestação
jurídica relativa à solução de conflitos não resolvidos nos outros sistemas é assegurada com o estabelecimento
dos procedimentos constitucionais de resolução de conflitos, o
due process of law. Como prestação específica do
direito perante o sistema político, a Constituição regulamenta o procedimento eleitoral, estabelece a 'divisão de
poderes' e a distinção entre política (em sentido estrito) e administração, com uma semântica orientada para a
imunização do ‘Estado de direito’ perante interesses de dominação particularistas.” (NEVES, Marcelo.
A
constitucionalização simbólica
. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 160). Em outro trecho, de forma mais
explícita e direta, o mesmo autor afirma que “o direito só poderá exercer satisfatoriamente sua função de
congruente generalização de expectativas normativas de comportamento enquanto forem institucionalizados
constitucionalmente os princípios da inclusão e da diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos
fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberdade civil e à participação política.” (
Ibid.,
2007, p. 78). Na verdade, ao preconizar um conteúdo para o Direito, que deve consagrar determinados
princípios, que
deve atingir determinadas finalidades (não postas), o mencionado autor contradiz a tese
autopoiética. Afinal, se a Constituição, para “substituir o direito natural” (
Ibid., 2007, p. 70), precisa ter um
determinado conteúdo, a fim de viabilizar a interferência de “apoios externos” no âmbito do Direito, isso
significa que ele, o Direito, não encontra fundamento em si. Afinal, por que é necessário viabilizar essa
interferência externa? Por que viabilizar a interferência de certas influências, e não de outras? Tais perguntas
demandam o recurso a conceitos metajurídicos, e orientados a valores, para serem respondidas.
130
fundada apenas na coação, parte-se para a prescrição a respeito de como, a partir desses
aspectos descritivos, pode-se promover alguma alteração na realidade. Isso é feito com
amparo na lição de Arnaldo Vasconcelos, para quem a ciência, inicialmente descritiva, e em
seguida compreensiva e explicativa, é hoje
prescritiva.
137
Não tem o propósito apenas de
descrever a realidade, mas de alterá-la:
O tempo da ciência puramente descritiva passou, faz séculos. Foi a época de
Aristóteles e da Escolástica, da Antiguidade e da Idade Média. Depois veio o
renascimento e Galileu, e com eles, a ciência explicativa, que esquadrinhou os céus a
fim de torná-los inteligíveis através de seus esquemas matemáticos. Com Bacon e a
Modernidade, surge a ciência construtiva que, a partir de Kant, vê-se autorizada a
criar seu próprio objeto. Exige-se-lhe que seja fértil e eficaz.
[...]
A ciência contemporânea não se coloca como objetivo principal a descrição da
realidade, embora necessidade de antemão conhecê-la. de ter-se em conta, como
acertadamente lembrou Robert Musil, um dos distintos contemporâneos de Kelsen,
que, se existe um senso de realidade, tem de haver também um senso de
possibilidade.
138
Pode-se dizer que o remédio existe para curar moléstias que assolam o organismo e
que o farmacêutico estuda as reações químicas (plano da realidade) para com elas tentar
alterar o equilíbrio do organismo ou o ciclo de reprodução de uma bactéria, ou de células
neoplásicas, para com isso combater uma doença, que considera indesejável (plano da
possibilidade). Existem remédios melhores que outros, mas, apesar disso, se se descobre que
uma determinada substância não produz qualquer efeito sobre a doença, ou mesmo que a
agrava, essa substância sequer pode ser considerada, pelo menos para aquela doença, um
remédio. Não é digna desse nome.
É o caso de dizer o mesmo do Direito e das teorias construídas em torno dele. Por
mais que os fins do direito não sejam tão precisos quanto os da medicina, eles existem, e ele
será tanto mais digno desse nome quando quanto mais eficaz for na promoção de seus fins.
139
137
Não parece ser outra a razão, a propósito, pela qual Habermas constrói uma teoria que propõe. Do contrário,
diz que “deveria escolher um outro gênero literário talvez o do diário de um escritor helenista, preocupado
apenas em documentar para a posteridade as promessas não cumpridas de sua cultura decadente.”
(HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 14). O autor reitera essa ideia na p. 113 do mesmo
livro. Bem antes dele, aliás, Marx assinalava que “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo.” (MARX, Karl. Tese sobre Feuerbach n.º 11).
138
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 176-177.
139
Até porque a pergunta “acerca da origem das normas jurídicas é a indagação sobre qual deverá ser a fonte, de
onde o Direito, sobre cuja definição formal praticamente existe um consenso, deverá extrair sua substância.”
MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Introdução. In: __________ (Org.).
Direito e legitimidade. São
Paulo: Landy, 2003. p. 9-20, p. 12.
131
A questão aqui, também, é de grau. Por isso, não basta descrevê-lo como é, embora isso seja
imprescindível. Há que se perquirir como deve ser, e procurar fazer com que o direito que
é se
aproxime o tanto quanto possível do direito que
deve ser.
5.4.1 Liberdade
Para a construção de uma ordem jurídica adequada, deve-se prestigiar, em primeiro
lugar, a liberdade. Não porque seja essa a vontade de Deus ou decorrência da natureza das
coisas. Não por conta do lema da Revolução Francesa ou por ser a base dos direitos
fundamentais ditos de primeira dimensão. A liberdade deve ser prestigiada por uma simples
razão, que subjaz às duas últimas que foram apontadas: é o que caracteriza o homem enquanto
tal, viabilizando a própria existência do direito, que sem ela seria impensável.
Liberdade é, cumpre estabelecer aqui a definição, a faculdade, que a criatura humana
tem, por ser capaz de distinguir o real do possível, de eleger uma das várias possibilidades que
racionalmente consegue vislumbrar e de implementá-la, ou transformá-la em realidade.
140
Diante de uma situação concreta, que pode ser mantida ou alterada de várias formas
diferentes, a possibilidade de se escolher uma dessas alternativas, ou nenhuma delas
(mantendo inalterada a realidade), é o que se chama liberdade, que consiste, portanto, na
possibilidade do indivíduo de escolher e de efetivamente implementar sua escolha, em relação
a tudo o que sua racionalidade lhe mostra ser possível.
Exercida de forma plena por um indivíduo, a liberdade poderia implicar a completa
supressão dessa mesma liberdade por parte de outros indivíduos. Assegurar a um o direito de
fazer tudo o que quiser pode significar não assegurar a outros o direito à vida e à própria
liberdade ou, nas palavras de Popper, “se eu for livre de fazer tudo o que quiser, então
também sou livre para privar os outros da liberdade.”
141
Daí a necessidade do direito para
proceder à sua compartição. Afinal,
se não se compartir a liberdade, não haverá exercício possível da liberdade. Esta
140
É exatamente porque a liberdade consiste na possibilidade de a criatura humana expandir e realizar suas
potencialidades, e porque estas são
infinitas, que nada distinto da promoção da liberdades também a outras
pessoas justifica o sacrifício da liberdade. Daí o poema de William Cowper, citado por Amartya Sen:
Freedom
has a thousand charms to show / That slaves, howe´er contented, never know
.” SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 337.
141
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 123.
132
existe com a condição de ser limitada para cada um, em proveito de todos. A
liberdade absoluta é também a absoluta impossibilidade de seu exercício. Donde
resulta que, sendo a liberdade termo relacional, ninguém pode ser livre sozinho.
142
E sendo, como é, o direito uma decorrência da liberdade, que todas as criaturas
humanas têm, existindo em virtude dela, e tendo como fim proceder à sua compartição, não
pode ele atentar ou permitir que se atente contra ela.
É relevante estabelecer, portanto, quando uma limitação à liberdade é necessária à sua
compartição, vale dizer, ao gozo de iguais liberdades pelos demais membros da sociedade,
143
e quando é um atentado contra ela: somente são admissíveis restrições à liberdade quando
essas restrições tiverem por finalidade resguardar a própria liberdade de outras pessoas,
144
eis
que “a única razão para restringir as liberdades fundamentais e torná-las menos extensas é
que, se isso não fosse feito, interfeririam umas com as outras”.
145
Trata-se da ideia, já
explorada por Stuart Mill, segundo a qual “o único propósito para o qual o poder pode ser
legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua
própria vontade, é impedir que se faça dano a outros.”
146
Esse, portanto, é o fim a ser atingido
com as restrições, que devem, por conseguinte, ser
adequadas, necessárias e proporcionais
em sentido estrito
para alcançá-lo.
Ser meio adequado, como se sabe, significa conduzir, de fato, ao resultado pretendido.
Desse modo, é adequada a limitação à liberdade que efetivamente trouxer maior prestígio ou
proteção à liberdade das outras pessoas. Necessário, por sua vez, é o meio que, além de
adequado, é também a forma menos gravosa de fazê-lo. Em se tratando de limitação à
liberdade, a sua necessidade advém da inexistência de outros meios, menos gravosos à
liberdade de cuja restrição se cogita, para prestigiar ou promover igual liberdade em favor de
terceiros. Finalmente, é proporcional em sentido estrito a limitação que, adequada e
142
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 54.
143
Essa ideia está presente, por exemplo, no art. 4.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que prescreve: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o
exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.”
144
O uso do direito para limitar o exercício da liberdade “só se justifica quando ‘elimina empecilhos à
liberdade’, portanto, quando se opõe a abusos na liberdade de cada um.” (HABERMAS, Jürgen.
Direito e
democracia
: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v.1, p. 49). E, para saber quando a liberdade de um está sendo exercida de forma “abusiva”, o
recurso ao princípio da proporcionalidade é indispensável.
145
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 77.
146
MILL, Stuart. A liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 364-399, p. 385.
133
necessária, traz ainda mais benefícios que malefícios, implicando maior prestígio e promoção
à igual liberdade dos demais membros do grupo à custa da menor diminuição na liberdade do
membro cuja liberdade sofre a restrição.
Pode-se dizer, em suma, que as limitações à liberdade somente se justificam quando
forem meio
proporcional
147
para a consecução do fim de torná-la compatível com iguais
liberdades para os demais membros da sociedade.
Acrescente-se a isso, ainda, que, como consequência da igualdade entre as criaturas
humanas, que será examinada no tópico seguinte, a liberdade de um não tem maior valor do
que a liberdade de outro, pelo que as limitações recíprocas, que sofrem para que convivam,
devem ser equivalentes.
148
Essa é uma das diversas razões pelas quais existe íntima relação entre liberdade e
democracia. Como observa Popper, exigir que o Estado limite a liberdade individual apenas
na medida necessária para a coexistência humana indica que o problema da liberdade política
é, em tese, solúvel, mas não oferece critérios para tanto. Porque, diz ele,
muitas vezes, em casos individuais, não conseguimos determinar se uma certa
limitação de liberdade é realmente necessária, nem se é um fardo imposto a todos os
cidadãos por igual. Necessitamos pois de outro critério que possa ser mais
facilmente aplicado. A minha proposta de critério é a seguinte.
Um estado é
politicamente livre se na prática as suas instituições políticas derem aos cidadãos a
possibilidade de mudar de governo sem derramamento de sangue caso haja uma
maioria que o deseje.
Ou, mais sucintamente: somos livres se pudermos ver-nos
livres dos nossos governantes sem derramamento de sangue.
149
Por outro lado, a liberdade tem como consequência direta a responsabilidade pelas
147
Na verdade, proporcionalidade, ponderação, fórmula do peso, são apenas tentativas de teorizar o bom senso
que orienta inconscientemente nossas escolhas em torno de objetivos, metas ou valores, a cada passo. Basta ver a
"ponderação" que um médico faz antes de receitar um remédio, sopesando se com ele se alcançará a cura
(adequação), se não há outro mais barato, ou com menos contra-indicações (necessidade), e se os efeitos
colaterais, se inevitáveis, não são piores que a própria doença (proporcionalidade em sentido estrito).
148
Com efeito, “tendo sido o Direito chamado a realizar a compartição das liberdades, a fim de possibilitar-lhe a
convivência, nunca se poderia admitir que a parcela atribuída a um fosse maior ou melhor do que a parte
destinada ao outro. A intervenção do Direito se deu para que a compartição obedecesse ao princípio da
igualdade dos homens. Não fosse assim, seria inteiramente prescindível.” (VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito,
humanismo e democracia
. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 23). No mesmo sentido, a evidenciar a intrínseca
relação entre
liberdade e igualdade, Vicente Ráo registra que não existe liberdade entre os homens se não
houver reciprocidade entre as faculdades e as obrigações a eles atribuídas. RÁO, Vicente.
O direito e a vida dos
direitos
. 5.ed. São Paulo: RT, 1999, p. 53.
149
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 123.
134
escolhas livremente feitas.
150
Assim, a preservação da igualdade, que visa a garantir a todos o
exercício da liberdade, não pode ter como consequência a supressão da responsabilidade pelas
escolhas livremente feitas por cada indivíduo,
151
pois isso implicaria, em nome de uma
suposta ampliação da liberdade, a sua completa supressão. É o que observa Amartya Sen, para
quem “[h]á uma diferença entre 'pajear' as escolhas de um indivíduo e criar mais
oportunidades de escolha e decisões substantivas para as pessoas, que então poderão agir de
modo responsável sustentando-se nessa base.”
152
Essa é a finalidade maior de uma ordem jurídica, sua principal e essencial razão de ser.
Caso não a preserve em absoluto - não a reconhecendo ou não reconhecendo a necessidade de
proteção àquilo que lhe serve de evidente pressuposto, como a vida e a integridade física -,
nem a reparta em termos minimamente equitativos, não é propriamente de direito que se
está a tratar.
153
Cuida-se de dominação, de submissão ou de imposição. Estará o direito, nesse
caso, distante daquilo que as pessoas a ele submetidas consideram que ele deve ser, pois é
inerente à criatura humana o exercício da liberdade, ainda que esse exercício se de forma
diferente no tempo e no espaço.
E, o que é mais importante, assegurando a liberdade, a ordem jurídica propicia a que,
conforme será explicado mais adiante, seja implementada a democracia e, com ela,
incremente-se a aproximação entre o direito posto e o direito pressuposto por aqueles que pelo
primeiro têm a conduta disciplinada. Por outras palavras, a proteção da liberdade permite aos
sujeitos a interferência no processo de criação das normas jurídicas, a fim de que o seu
conteúdo se aproxime daquilo que esses mesmos sujeitos consideram que ele deve ser.
De outro lado, quando se diz que do direito à liberdade decorrem os demais direitos,
150
Sobre a relação direta e necessária entre liberdade e responsabilidade, confira-se: PETTIT, Philip. Teoria da
liberdade
. Tradução de Renato Sérgio Pubo Maciel. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 26.
151
Calcado em John Rawls, Gargarella pontua que “uma sociedade justa deve, na medida do possível, tender a
igualar as pessoas em suas circunstâncias, de tal modo que o que ocorra com suas vidas fique sob sua própria
responsabilidade.” GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de
filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 27.
152
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 322. O relevante não é saber se as pessoas estão efetivamente nas mesmas
posições, mas se m liberdade (em sentido positivo e negativo) para estar na posição que desejam. Cf.,
v.g.,
GARGARELLA, Roberto,
op. cit., 2008, p. 76.
153
Poder-se-ia objetar que o sistema de regras da Alemanha nazista era direito, embora pudesse ser considerado
direito injusto, ou cruel. Para algumas pessoas, como os alemães não-judeus, sim. Afinal, uma faca que não corta
nem fura também pode continuar sendo chamada de faca. Observe-se, contudo, que para os judeus, como para
quaiquer pessoas que sejam por um ordenamento tratadas como
coisas e não como sujeitos de direitos, não
existe nada que as motive a
reconhecê-lo como jurídico, nem nada, além do medo, que as leve a observá-lo.
Confira-se, nesse sentido, DWORKIN, Ronald.
Is democracy possible here? (principles for a new political
debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 96.
135
toma-se por consideração um conceito amplo de liberdade. Ser livre não é apenas não ser
impedido de fazer o que se deseja. Ser livre é, como foi dito, ter a faculdade de vislumbrar
possibilidades, fazer escolhas entre elas e promover sua concretização, tornando-as realidade.
Por outras palavras, é livre a criatura humana que tem condições de
ser tudo aquilo que ela
pode ser, cabendo a ela simplesmente escolher quais de suas potencialidades quer
implementar, e como. Para que isso seja factível, não basta que não sejam colocados
obstáculos. É preciso que sejam retirados os acaso existentes. É preciso que se amplie a
capacidade das pessoas de vislumbrar possibilidades, e que se viabilize a partilha, entre todos
os membros do grupo, das possibilidades que cada um consegue visualizar, e dos motivos
pelos quais consideram que devem ser buscadas ou repelidas.
Daí ser possível dizer - tal como Amartya Sen
154
em relação ao desenvolvimento - que
o Direito pressupõe a liberdade e tem por finalidade protegê-la e expandi-la. Ela é meio para a
construção do Direito e também o seu objetivo último, sendo possível definir como justa a
ordem jurídica que trata as pessoas por ela disciplinadas de sorte a lhes assegurar, a todas, a
maior liberdade possível, assim entendida a maior expansão possível de suas potencialidades.
Sobre a importância da liberdade, inclusive no âmbito econômico, cumpre observar
que ser
genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto ser
genericamente contra a conversa entre pessoas (ainda que certas conversas sejam
claramente infames e causem problemas a terceiros ou até mesmo aos próprios
interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou presentes não necessita de
justificação defensiva com relação a seus efeitos favoráveis mais distantes; essas
trocas fazem parte do modo como os seres humanos vivem e interagem na sociedade
(a menos que sejam impedidos por regulamentação ou decreto).
155
Deve-se tratar da necessidade de se preservarem as liberdades, no plural, pois a
antecipação de experiências possíveis (com a eleição de uma delas), que é inerente à criatura
humana, pode ocorrer nos mais diversos setores da vida social. Por isso fala-se em liberdade
de locomoção, de manifestação do pensamento, de crença, de cátedra e, no plano das relações
econômicas, em
liberdade econômica. Como aponta Amartya Sen,
o argumento mais imediato em favor da liberdade de transações de mercado baseia-
se na importância fundamental da própria liberdade. Temos boas razões para
comprar e vender, para trocar e para buscar um tipo de vida que possa prosperar com
base nas transações. Negar essa liberdade seria, em si, uma grande falha da
154
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 52.
155
Ibid., 2000, p. 21.
136
sociedade.
156
Quando se cogita de liberdade, sobretudo quando à palavra se um sentido mais
amplo, como faz corretamente Amartya Sen, de sorte a abranger a criação de oportunidades
para que as escolhas que caracterizam a liberdade sejam feitas, têm-se em mente tanto o
conceito negativo como o conceito positivo de liberdade.
Por liberdade em sentido negativo entende-se não ser o sujeito que a detém obstruído
por outros para fazer o que pode desejar fazer. É o caso, por exemplo, da liberdade de
expressão, e da proibição de censura. Já por liberdade em sentido positivo, ou liberdade
positiva, entende-se a possibilidade de escolher entre os diversos modos de conduta, o que
inclui a participação das decisões públicas,
inclusive das decisões sobre quanto reduzir a
liberdade negativa
, para viabilizar sua compartição entre os membros da sociedade.
157
Quando se postula a necessidade de sua preservação, aqui, isso é feito tendo em vista esses
dois sentidos, que se complementam. Realmente, de nada adianta garantir a alguém que não
haverá interferência em suas escolhas, se estão ausentes os pressupostos que viabilizariam
qualquer escolha. É importante que todos tenham
condições de exercer essa liberdade.
158
É
meramente ornamental, por exemplo, a liberdade profissional que se assegura a uma pessoa
pobre, analfabeta e faminta, se entendida no sentido meramente negativo. Poderá ela escolher
a advocacia, a medicina ou a engenharia como profissão?
Diversos juízos de valor poderiam ser feitos para justificar a importância de se
prestigiar a liberdade. E poderiam ser todos, por igual, questionados, dizendo-se que o fato de
o homem tê-la como característica não significa que ela deva ser protegida. Afinal, o homem
também é, em certa medida, naturalmente agressivo e egoísta, mas não é por isso que se
poderá defender uma ordem jurídica que prestigie tais traços.
156
Ibid., 2000, p. 136.
157
DWORKIN, Ronald. Pornografia, feminismo y libertad. Traducción de María Pía Lara. Debate feminista,
[s.l.], p. 91-103, mar. 1994, v. 9 Issue 5, p. 92. Ou, por outras palavras, pode-se dizer que no sentido negativo, a
liberdade pressupõe “a ausência de coerção externa, quer dizer, o poder arbitrário do Estado, e, no sentido
positivo, a liberdade implica a possibilidade de escolher entre os diversos modos de conduta.” (FLEINER-
GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 172). Os conceitos de liberdade em sentido negativo e em sentido positivo, com o uso dessa
terminologia, são atribuídos a Isaiah Berlin. Diz-se, com base neles, que o liberalismo igualitário – aqui acolhido
em suas linhas gerais - “preocupa-se com o Estado tanto em seus abusos (em suas ações violadoras de direitos)
quanto em seu mau uso (entendendo desse modo as omissões do Estado no fornecimento de certos bens.”
GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de filosofia política.
Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 215.
158
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights why liberty depends on taxes. New York:
W.W Norton & Company, 1999, p. 35-36.
137
A importância de se proteger a liberdade, contudo, reside no fato de que ela é, como já
explicado, o elemento que diferencia o homem de qualquer outro animal, o que não acontece
com o egoísmo, a agressividade ou outras características que são humanas apenas porque o
homem é
também animal.
Por outro lado, a proteção à liberdade é um dos pressupostos para que o conteúdo do
direito posto aproxime-se, na medida do possível, daquilo que se considera que seu conteúdo
deve ser. E essa aproximação é necessária para que o direito seja mais
eficaz, vale dizer,
atinja, com maior proveito, a finalidade para a qual foi criado. Se o “direito natural” é
exatamente aquilo que cada criatura humana considera que o direito deve ser, a aproximação
entre o direito positivo e o direito natural depende da liberdade de cada criatura humana para
influenciar na feitura e na interpretação das normas jurídicas.
Diretamente ligada à liberdade está a tolerância. É condição para que alguém exerça
sua liberdade que os demais membros da sociedade respeitem as escolhas, feitas no âmbito
dessa liberdade, sempre que delas não advier qualquer consequência sobre a liberdade desses
demais membros. E não só respeitem, mas permitam ao autor da escolha de manifestar
livremente as razões pelas quais a fez.
Dentro das ideias de verdade e de ciência exploradas anteriormente (item 5.3,
supra), é
preciso lembrar que a liberdade e a tolerância são os pressupostos para a obtenção da verdade,
motivo pelo qual se ressalta a natureza
democrática da ciência. Como observa Arthur
Kaufmann,
justamente porque a liberdade serve a verdade e a verdade serve a liberdade, a
tolerância não é em si uma opção prejudicial à verdade, mas antes a possibilita
precisamente porque e condição de possibilidade da liberdade e por isso também, em
última instância, da verdade.
159
E nem se diga, em oposição, que a tolerância seria prejudicial, e não benéfica, à
determinação da verdade, por permitir que ideias erradas sejam divulgadas e defendidas. Isso
porque o problema reside em saber
quem determinaria quais as ideias erradas que não
poderiam, por isso, ser divulgadas e defendidas. Se a ciência se caracteriza pela
provisoriedade e pela refutabilidade de seus preceitos, pode-se mesmo dizer que ela pressupõe
a tolerância. Daí Kaufmann insistir que não existe “verdadeira convicção de verdade sem
159
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 500.
138
verdadeira tolerância”, pois “também a convicção de verdade, caso pretenda ser autêntica, tem
que se realizar em liberdade e não se realiza pelo medo.”
160
Para que exista liberdade, enfim, deve haver também tolerância, a qual implica a
admissão de todas
161
as formas de pensamento, ainda que antagônicas, que devem conviver
pacificamente.
5.4.2 Igualdade
O ordenamento jurídico deve fundar-se, também, na igualdade entre as pessoas cuja
conduta é por ele disciplinada. Além de livres, os sujeitos cuja conduta é disciplinada pelo
direito devem ser considerados iguais.
É complexo, contudo, determinar o significado da palavra igualdade. E, mais ainda,
suas repercussões e as consequências de sua proteção. Antes de se examinar algo de seu
sentido e das consequências de sua promoção, até como forma de simplificar esse exame, é
preciso analisar, primeiro, a razão de ser de sua promoção ou proteção. Por que uma ordem
jurídica deve fundar-se na igualdade dos sujeitos por ela disciplinados?
A razão, aqui, é a mesma da liberdade: o senso de possibilidade, que a criatura
humana tem. Esse senso, porque confere à criatura humana liberdade, é detido por toda
criatura humana. Logo, todas, sem exceção, têm infinitas possibilidades. Se se decidiu que
essas possibilidades devem ser expandidas e realizadas, não existe motivo para que não o
sejam em relação a todos que as detêm. Daí a necessidade de que as criaturas livres sejam,
porque todas são livres, submetidas ao mesmo tratamento.
Além disso, trata-se de exigência igualmente (assim como a liberdade) indispensável a
que o conteúdo do direito posto aproxime-se, o mais possível, daquilo que os sujeitos por ele
disciplinados consideram que ele deveria ser, correspondência essa necessária a que a ordem
jurídica seja considerada
justa e, também, para que seja dotada de maiores estabilidade e
eficácia.
160
Ibid., 2004, p. 500.
161
Todas, menos aquelas cuja admissão implique a admissão da própria intolerância. (SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 268). No mesmo sentido: ROULAND, Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 220-221.
139
O que significa, contudo, a afirmação de que a ordem jurídica deve fundar-se na
igualdade? Significa que todos devem receber, sempre e necessariamente, o mesmo
tratamento? A resposta a essa última pergunta é negativa, pois o direito é, por definição, um
instrumento destinado a fazer distinções. As normas jurídicas são produto da valoração de
fatos e, por isso mesmo, através delas se procura evitar que alguns fatos aconteçam, do
mesmo modo como se tenta fazer com que outros não aconteçam. Tratá-los todos igualmente
é incompatível com isso.
Um homem que matou três pessoas friamente e sem qualquer justificativa não pode
ter, pela ordem jurídica, prescrito o mesmo tratamento daquele prescrito a outro que matou
uma pessoa em legítima defesa. Mais exemplos não são necessários, nem qualquer
alongamento aqui é preciso, para demonstrar que igualdade não significa um mesmo
tratamento em termos absolutos. A igualdade é sempre relativa, eis que sua aferição liga-se a
um critério. Um critério para o estabelecimento de diferenças.
162
Aliás, a questão não é apenas
saber qual critério pode ser colhido para estabelecer as diferenças, mas também saber qual
tratamento deve ser dado a elas a partir desse critério, e com qual finalidade. A afirmação de
que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais, e desigualmente os
desiguais, na medida em que se desigualam, diz muito pouco quando não se sabe qual a
medida de desigualdade a ser colhida nem para que essa medida deve ser escolhida.
No plano constitucional, pode-se dizer que os critérios são aqueles que a Constituição
determina sejam adotados ou quaisquer outros que não os contrariem. No plano suprapositivo,
do qual se está tratando aqui, o que se exige é que a ordem jurídica seja construída sob o
pressuposto de uma igual preocupação ou um igual interesse em relação a todos os que por ela
serão disciplinados.
163
Todos têm de ter o mesmo valor,
164
o que significa que, como seres
livres, as diferenças entre suas posições deve decorrer das consequências de suas escolhas e
não de fatores inteiramente alheios a estas. No dizer de Álvaro de Vita, isso se dá quando
162
Como observa Zippelius, “sempre surge a questão sobre o que deve ser considerado, do ponto de vista da
regulamentação respectiva, como essencialmente igual ou desigual, ou seja, qual diferença poderia justificar ou
até mesmo exigir um tratamento diferente. Aquele que quer tratar pessoas ou fatos de formas diferentes, deve
procurar justificar essa decisão com razões capazes de obter um consenso.” ZIPPELIUS, Reinhold.
Introdução
ao estudo do direito
. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Del Rey: Belo Horizonte, 2006, p. 47.
163
Todos os homens observa Comparato - “são absolutamente iguais na partilha da comum dignidade de
pessoas, merecendo, portanto, rigorosamente o mesmo respeito, não obstante as diferenças biológicas e culturais
que os distinguem entre si, e apesar da enorme desproporção patrimonial que apresentam as famílias, classes
sociais ou povos, quando comparados uns com os outros.” COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 570.
164
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 96-97.
140
as instituições básicas se organizam de maneira a impedir que o quinhão distributivo
de cada um o acesso que cada pessoa tem a uma parcela de bens, recursos e
oportunidades sociais seja determinado por fatores que [...] estão fora do alcance
de escolhas individuais genuínas.
165
Igualdade, portanto, deve ser aqui definida como a consideração de cada indivíduo
como titular do mesmo valor, de modo a que eventuais diferenças entre a posição ou os bens
detidos por uns e outros decorram de suas escolhas, como consequências destas.
Tal como ocorre com a liberdade e, adiante será visto, também com a democracia
essa é uma definição de um ideal, sendo, por isso, em parte descritiva, mas em parte
prescritiva, pois é impossível fazer com que as posições e os bens detidos por cada indivíduo
decorram
exclusivamente de suas escolhas. Primeiro, porque um mínimo de ser
assegurado, apesar das escolhas, a fim de que outras escolhas possam continuar sendo feitas.
Segundo, mas não menos importante, porque diversos fatores que não apenas as escolhas
influenciam, de uma forma ou de outra, na posição ocupada e nos bens detidos pelas pessoas,
a exemplo da sorte. O que se pode dizer, sobre isso, é que a
busca pela igualdade consiste na
tentativa de se
minimizarem os efeitos de fatores diversos das escolhas do indivíduo.
Trata-se, aqui, do que Dworkin classifica como igualdade
ex ante, e não igualdade ex
post
. Isso porque a igualdade ex post, além de suprimir a liberdade, que envolve a aptidão de
fazer escolhas que podem conduzir a resultados diferentes, em verdade reside em um
tratamento
desigual, eis que despreza, como elemento de descrímen, o mérito das escolhas
feitas. Tratar da mesma forma pretendendo, por exemplo, que tenham a mesma casa e o
mesmo emprego, com a mesma remuneração - José, que durante muitos anos trabalhou
durante o dia e estudou durante a noite, e Pedro, que preferiu trabalhar apenas meio-
expediente e assistir a telenovelas durante o tempo livre, é tratá-los de forma desigual,
porquanto incompatível com a situação distinta representada pelo maior esforço de um em
relação à comodidade escolhida pelo outro.
166
165
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 37.
166
Dworkin oferece, a esse respeito, o seguinte exemplo: “Suponha que duas pessoas tenham contas bancárias
muito diferentes, no meio de suas carreiras, porque uma decidiu não trabalhar, ou não trabalhar no emprego mais
lucrativo que poderia ter encontrado, ao passo que a outra trabalhou unicamente por ganho. Ou porque uma
tomou para si um trabalho cheio de responsabilidade ou exigências especiais, por exemplo, que a outra recusou.
Ou porque uma assumiu mais riscos, que poderiam ter sido desastrosos mas que, na verdade, foram bem
sucedidos, ao passo que a outra investiu de maneira conservadora. O princípio de que as pessoas devem ser
tratadas como iguais não oferece nenhuma boa razão para a redistribuição nessas circunstâncias; pelo contrário,
141
Aliás, Ronald Dworkin destaca que liberdade e igualdade
167
são decorrências diretas
da dignidade humana, sendo em seu respeito, e não em um suposto consenso, que deve ser
buscado o fundamento de legitimidade de uma ordem jurídica. A busca da legitimidade no
consenso, segundo ele, é falha porque a unanimidade é, pragmaticamente, impossível.
Existem divergências em todas as comunidades políticas. O recurso a uma aceitação tácita,
baseada, por exemplo, no fato de a pessoa continuar pertencendo àquela comunidade, é
igualmente falho, pois muitos não têm condições para emigrar, não se podendo dizer que sua
permanência em um local significa sua aquiescência com tudo o que nele se pratica.
168
Recorrer a um consenso que seria obtido em uma situação ideal é igualmente falho, pois, se
essa situação ideal é de impossível implementação prática, igual impossibilidade mina o
consenso a ser através dela obtido. Por isso, diz ele, uma teoria da legitimidade, para ser
plausível,
must proceed without any assumption of real or hypothetical unanimous consent. It
must proceed on the different assumption that when citizens are born into a political
community, or join the community later, they just have obligations to that
community, including the obligation to respect it laws whether or not they explicitly
or even tacitly accept those obligations. But they assume these political obligations
only if and so long as the community´s government respects their human dignity.
Only so long, that is, as it accepts the equal importance of their lives and their
personal responsibility for their own lives and tries to govern them in accordance
with its sincere judgment of what those dimensions of dignity require. I can have no
obligation to a community that treats me as a second-class citizen; the apartheid
government of South Africa had no legitimate authority over blacks, and the
governments of antebellum American states had no legitimate over the slaves they
treated as only property.
A legitimate government must treat all those over whom it claims dominion not just
with a measure of concern but with equal concern.
169
Suas críticas à busca pela legitimação da ordem jurídica em um acordo unânime ou
hipotético procedem, mas não se pode deixar de observar que as pessoas se sentem obrigadas
por uma ordem jurídica que respeita sua liberdade e as trata com igual respeito precisamente
porque tendem a aceitá-la, o que não ocorre em relação à ordem jurídica que não atenda a tais
pressupostos básicos. Assim, em vez de propriamente criticar a necessidade de consenso, o
oferece uma boa razão contra ela.” DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 307.
167
Sobre a necessidade de a liberdade e a igualdade deverem fundar a constituição de um estado, para que com
isso se obtenha a paz, confira-se: KANT, Immanuel.
À paz perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto
Alegre: L&PM, 2008, p. 24-25. Em termos semelhantes, embora referindo-se à legitimidade e não propriamente
à paz: HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 52; 157; 162.
168
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 95-96.
169
Ibid., 2006, p. 96-97.
142
que Dworkin faz é recorrer às suas bases ou àquilo que o provoca ou o enseja.
Além disso, o consenso que se deve buscar, para legitimar uma ordem jurídica, não é a
unanimidade ideal, mas a maioria possível. E isso conduz ao terceiro fundamento sobre o qual
se deve apoiar uma ordem jurídica, que é a democracia.
5.4.3 Democracia
Como explicado em itens anteriores (5.1 e 5.2, supra), o direito natural não existe por
si, de forma objetiva e acabada, como algo eterno e invariável, na natureza. Ele é, em verdade,
fruto da capacidade humana de discernir o
real do possível e de, diante dessa capacidade,
julgar a realidade concreta em face de uma possibilidade ideal. Esse julgamento, no caso do
Direito, pode basear-se em uma diversidade de fatores, inclusive em padrões éticos que
parecem ser originários biologicamente do processo de seleção natural, os quais, como as
demais características biológicas do homem, passaram, e ainda passam, por modificações que
lhes aumentam a complexidade, no âmbito da cultura.
O que importa, porém, é reconhecer que, da mesma forma como o homem examina o
quadro que é, e imagina como ele poderia ser, para ser mais bonito; da mesma forma como
examina o livro, que é, e pondera como ele poderia ser, para ser mais claro; avalia a música
que é, e pensa em como ela deveria ser, para ser mais melodiosa; ele também pode examinar o
direito, que é, e pensar em como ele poderia ser, para ser mais justo. Daí porque Michel
Villey afirma que
[o]s jusnaturalistas se gabam de possuir o direito natural sob a forma de máximas
escritas; mas o escrito é o resultado positivo do trabalho dos homens; o direito
natural não é resultado. É causa inicial a partir da qual se discute, da qual os juristas
se esforçam para extrair o direito positivo.
170
A noção do justo, portanto, pode variar, e certamente varia, de acordo com a pessoa, o
lugar, a época, a cultura. Mas isso não significa que ela não exista
171
ou que não possa ser
170
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 361.
171
Diz-se, com acerto, que “toda sociedade tem sua idéia sobre o Bem e o Mal: o que não impede que alguns de
seus membros tenham outras e que as outras sociedades não compartilhem necessariamente a sua.” (ROULAND,
Norbert.
Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 20). Tanto é assim que, em relação à ideia de que o direito visa à realização da justiça, o mesmo
autor adverte que “se nos empenhamos, há tantos séculos, em descobrir suas regras, é porque ela corresponde em
143
formulada, de sorte a servir de parâmetro para o julgamento do direito posto. Pode,
seguramente; e o direito posto, à medida em que dela diverge, perde eficácia, até chegar ao
ponto de deixar de ser reconhecido como tal, passando a ser considerado uma anomalia
imposta pela força e pelo medo.
Diante disso, a forma possível de fazer com que o direito que é aproxime-se daquilo
que as pessoas por ele disciplinadas consideram que ele deve ser é permitindo a elas que
participem do processo de sua elaboração. A forma de fazê-lo é através do regime
democrático, até porque “os argumentos aceitos pela maioria são, via de regra, muito mais
convincentes.”
172
Como observa Goyard-Fabre, a democracia “sempre foi desejável”, pois é a forma
possível de conciliar liberdades, para que a liberdade de um termine “onde começa a dos
outros”. Ela “faz parte do horizonte da natureza humana, ao mesmo tempo cheio de luz e
carregado de nuvens.”
173
Isso é reconhecido, de forma notável, por Kelsen, injustamente lembrado apenas por
sua Teoria Pura do Direito, e esquecido em relação a tudo o que defendeu sobre a necessidade
de o Direito fundar-se na democracia para que se respeite a liberdade humana.
Para Kelsen, a liberdade possível, em uma sociedade, é aquela na qual a liberdade de
um se concilia com a dos demais. Pressupõe, portanto, ordem e respeito, sendo a
democracia
a forma de conciliar a liberdade com as necessidades inerentes à coexistência social. Em suas
palavras,
[a] liberdade possível dentro da sociedade, e especialmente dentro do Estado, não
pode ser a liberdade de qualquer compromisso, pode ser apenas a de um tipo
particular de compromisso. O problema da liberdade política é: como é possível estar
sujeito a uma ordem social e permanecer livre? Assim Rousseau formulou a questão
cuja resposta é a democracia. Um sujeito é politicamente livre na medida em que a
sua vontade individual esteja em harmonia com a vontade 'coletiva' (ou 'geral')
expressa na ordem social. Tal harmonia da vontade 'coletiva' com a individual é
garantida apenas se a ordem social for criada pelos indivíduos cuja conduta ela
regula.
174
nós a uma necessidade que, provavelmente, nunca se esgotará, opondo-se continuamente a essa lei do mais forte,
a nossa parte maldita.” (
Ibid., p. 29).
172
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 435.
173
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 348-349.
174
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 408.
144
Esse é um Kelsen que, diz Miguel Reale, “anda esquecido.”
175
Um Kelsen que
defendeu, é certo, a possibilidade de o Direito ter qualquer conteúdo, sem deixar de ser, por
isso, Direito; mas que defendeu, precisamente por conta da impossibilidade de se afirmar a
existência de um conteúdo correto, de forma científica,
176
objetiva e neutra, dada a
subjetividade e a relatividade dos valores, que estes, os valores, deveriam ser conciliados
democraticamente. É o que explica, ainda, Reale:
A democracia não significa, dizia Kelsen, não crer em valores. Mas a democracia
significa reconhecer que o valor, no qual eu ponho a minha fé, não exclui o valor
admitido por outrem. A tolerância, dizia Kelsen, é o gérmen e o fundamento da
democracia. A democracia é a ordem política que tem por base a equivalência dos
valores e a tolerância no exercício do conhecimento teórico e da vida prática.
Talvez uma das teses liberais fundamentais esteja nesta formulação kelseniana, de
que resultava algo de muito importante, que era a preservação das minorias. A
democracia existe para que haja minoria. A democracia não existe para que haja
maioria, porque a maioria existe também nos regimes ditatoriais. A democracia
existe para que haja minoria, porque esta significa a presença de tolerância. Onde
não há minoria não há tolerância.
177
Aliás, considerando que se trata da conciliação de valores, interesses e visões
subjetivas, é possível perceber, nesse particular, alguma (e certamente pontual) semelhança
entre o que defende Kelsen, no trecho antes transcrito, e o que preconiza Michel Villey,
jusnaturalista de cunho aristotélico-tomista, que defende a natureza
dialética do direito, a qual
encontra na democracia a melhor forma de realização. Afinal,
[a] solução nasce do choque dos discursos contraditórios, não do raciocínio solitário
de um cientista em seu gabinete.
Por quê? Porque o
objeto buscado é relação entre vários homens; não poderia ser
apreendido do ponto de vista unilateral que é o do indivíduo, ele nasce do
diálogo.
178
Nesse contexto, e sendo reconhecido hoje, até mesmo no campo das ciências naturais,
que a única “maneira de obter um conhecimento menos incompleto das coisas é olhá-las a
partir de uma multiplicidade de
pontos de vista
179
, a democracia mostra-se o meio adequado
175
REALE, Miguel. Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 67.
176
Considerada, nesse particular, a concepção que Kelsen tinha de ciência, a qual foi examinada no item 3.5,
supra.
177
Ibid., 1984, p. 67.
178
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 205. Não se está, evidentemente, a dizer que
Villey e Kelsen tenham pensamento semelhante, considerado o conjunto da obra de ambos. É claro que não. A
citação, aqui, foi proposital, para deixar claro que,
apesar da abissal distância entre o pensamento jusnaturalista
do primeiro e do pensamento juspositivista do segundo,
no ponto indicado suas ideias convergem, na defesa do
debate e do consenso como instrumentos para a construção de um melhor direito.
179
Ibid., 2003, p. 269.
145
para que a multiplicidade de pontos de vista se possa manifestar. Evidencia-se, ainda, o
quanto ela, a democracia, depende do respeito à liberdade e à igualdade. Liberdade, para que
as pessoas possam manifestar seus pontos de vista, das mais diversas formas, a fim de que os
demais deles tenham conhecimento e por eles sejam influenciados. E igualdade, para que
todos tenham oportunidades de adquirir a informação e o conhecimento necessários à
formação de seus pontos de vista e iguais oportunidades de manifestá-los.
A importância da multiplicidade de pontos de vista ressalta, ainda, a necessidade de se
prestigiar – também como pressuposto da liberdade, da igualdade e da democracia a
tolerância,
180
apontada por Kelsen e referida por Reale nos trechos transcritos
anteriormente.
Parece necessário, ainda, dedicar algumas linhas ao sentido e ao alcance da afirmação
segundo a qual uma ordem jurídica, para aproximar-se, em seu conteúdo, daquilo que ela
deve ser, há de fundar-se na democracia. Isso porque, atualmente, quase todas as comunidades
do mundo se dizem democráticas,
181
revelando com isso o acerto de MacCormick quando
afirma que, no debate jurídico, “a insinceridade é ainda mais reveladora que a sinceridade”.
182
Mas não só. Esse fato mostra, ainda, que “a democracia se transformou numa palavra
180
Destacando o papel da tolerância e a sua relação com a aceitação de uma pluralidade de visões, Voltaire
registra, com a ironia que lhe é peculiar, que “[s]e houvesse na Inglaterra apenas uma religião, seu despotismo
seria temível; se houvesse apenas duas, elas se degolariam; mas existem trinta e elas vivem em paz e felizes.”
VOLTAIRE.
Cartas filosóficas. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 25.
181
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 197.
182
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 19. A natureza “reveladora” a que se refere MacCormick diz respeito à
cientificidade do estudo do direito. Com efeito, por mais que não se tenha a “objetividade” das ciências exatas,
não se pode falar que a resolução de problemas jurídicos seja completamente subjetiva, a tornar inviável o debate
racional. Tanto que o defensor de uma postura arbitrária não poder dizer, simplesmente, que “para ele” aquilo é
justo, e assim encerrar a questão. Tem de valer-se da insinceridade na exposição de seus motivos, cabendo aos
seus opositores, então, demonstrar a improcedência dos motivos (aparentes) invocados. E a experiência mostra
que isso realmente ocorre, não no debate jurídico, mas em todos aqueles em que se questionam valores e, por
isso mesmo, se aplica a lógica
dialética, e não a lógica formal. Dificilmente alguém adota uma postura arbitrária
sem procurar, de alguma forma, dar a ela uma justificativa aparente, para tentar torná-la legítima. É preciso obter
a aceitação do grupo, nem que seja com o uso de um pretexto. Ao proibir a mulher de trabalhar, o marido
machista e ciumento alega, de forma muito gentil, que assim é melhor para as crianças, que ficarão próximas da
mãe, e quem sabe para ela própria, que viverá mais descansada. Em tom grave, diz aceitar o sacrifício de
sustentar a família, por ser muito bom e generoso. Não admite, naturalmente, que terá ciúmes de eventuais
colegas de trabalho. Tampouco confessa que se sentirá diminuído diante o sucesso profissional de sua
companheira, e que entrará em crise se a remuneração dela tornar-se maior que a sua. Da mesma forma, ao
promover a invasão de um país no oriente médio, representante de superpotência ocidental não afirma estar
disposto a sacrificar vidas, a soberania do país e todo o Direito Internacional apenas para se apropriar do petróleo
ali situado. Não. Em tom bondoso e até de sacrifício, alega estar protegendo o povo do local, estabelecendo a
democracia e afastando um ditador cruel.
146
universalmente honorífica”,
183
sendo certo que, para os inimigos da democracia, “a melhor
forma de evitá-la é fazê-lo em seu nome e com seu próprio nome”.
184
A esse respeito, aliás,
Pontes de Miranda adverte que
os inimigos da democracia, certos, no íntimo, de que ela é tendência mesma da vida
humana, tomam às vezes o caminho, não de negá-la – de deformá-la. Servem-se, não
raro, do conceito de democracia para os seus obscuros propósitos; e forjam
definições, ampliações, confusões. Hitler e Mussolini, como outros, usaram e
abusaram disso, no começo; depois, golpearam-na. Hipocritamente, porém,
continuaram a empregar o termo, quando lhes era útil.
185
Semelhantes são as palavras de Djacir Menezes. Para ele,
[h]omens e partidos rotulam-se convictamente com o apelido de democráticos e
crêem nele. Quase todo ajuntamento ou parcialidade de opinião insere na sua
tabuleta ou no seu programa ou na sua fé, a declaração de ‘democratismo’. Pôr em
dúvida a exatidão é quase insultá-los. Como nem sempre a coisa coincide com os
propósitos, passam a corrigi-la com adjetivos. O fascismo italiano, e seus rebentos
noutras terras, pretendeu ser democracia
orgânica. Houve e democracias
populares, autoritárias, consentidas, marxistas etc. não apareceu a democracia
democrática.
186
É preciso, portanto, explicar o que se entende por democracia, no contexto deste
trabalho. Isso será feito nos itens seguintes. O primeiro, dedicado à democracia na Grécia
antiga, quando de seu surgimento. E, o segundo, no qual se examina a democracia na
atualidade, notadamente suas semelhanças e diferenças em relação ao modelo grego. Isso é
necessário porque a democracia não tem essência imutável e eterna, mas o exame de sua
aparição ao longo da História pode revelar a presença de alguns elementos comuns.
5.4.3.1 Democracia na Grécia antiga
Embora não se pretenda aprofundar, aqui, o exame em torno das origens da
democracia, dos aspectos geográficos, sociais e políticos que levaram ao seu surgimento na
183
SARTORI, Giovanni. A Teoria da democracia revisitada O debate contemporâneo. Tradução de Dinah
de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 1994. v. 1, p. 18.
184
Ibid., 1994, p. 19.
185
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 190.
186
MENEZES, Djacir. Tratado de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 152. Na mesma esteira, Paulo
Bonavides registra que “democracia é palavra, e a palavra, associada à verdade, é veículo de pensamento que
tem vida, poder e expressão. Associada, porém, ao embuste e à mentira passa a ser um bloqueio. Assim tem
acontecido com a palavra democracia, enquanto narcótico da classe dominante.” BONAVIDES, Paulo. A
democracia participativa e os bloqueios da classe dominante. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.).
Direito e
poder
nas instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos estudos em homenagem a
Nelson Saldanha. Barueri: Manole, 2005. p. 426-442, p. 422.
147
Grécia do Século IV a.C.
187
, é necessário relembrar, em linhas gerais, suas características
centrais. Sobretudo suas deficiências e suas qualidades. Isso é importante, principalmente,
porque como observa Del Vecchio o estudo da história fornece material, reflexões e
experiências que “a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer.”
188
Desprezá-la, continua Del Vecchio, conduz à mesma situação que a do “artífice actual que,
agora, seria incapaz de ser o inventor de todos os instrumentos da sua arte.”
189
A democracia ateniense se orientava por três premissas básicas: a igualdade, a
liberdade e o respeito pela lei. A todos do povo conceito bastante restrito, é certo, eis que
não abrangia mulheres, escravos e estrangeiros (metecos) era lícito participar dos assuntos
de interesse da coletividade. Aliás, não apenas lícito, mas verdadeiramente necessário. Vale
lembrar que, embora o conceito de povo, na Grécia antiga, fosse restrito, englobando apenas
atenienses homens livres e adultos, não se pode julgar esse seu aspecto à luz dos critérios ou
dos padrões da atualidade. A democracia grega deve ser comparada, em verdade, com os
demais regimes de sua época, comparação que ressalta suas inegáveis qualidades. Como
registrado nas célebres palavras de Tucídes, a respeito da democracia ateniense,
our
constitution does not copy the laws of neighbouring states; we are rather a pattern to others
than imitator ourselves. Its administration favours the many instead of the few; this is why it
is called democracy.
190
Não havia ainda, então, uma ideia de indivíduo, oponível ao Estado, algo verificado
apenas na Idade Moderna. O cidadão ateniense tinha direitos e obrigações; mas estes direitos
não eram atributos de indivíduos privados e estas obrigações não eram forçadas por um estado
dedicado à manutenção de uma estrutura que visava a proteger os fins privados de certos
indivíduos.
191
As ideias de “indivíduo” e “sociedade” em face do “estado” surgiram na
187
Confira-se, a propósito, HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martins.
Belo Horizonte: Paidéia, 1987, p. 13 e ss. E ainda GOYARD-FABRE, Simone.
O que é democracia? A
genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 9 e ss.
188
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de Antonio José Brandão. 5.ed. Coimbra:
Armênio Amado Editor Sucessor, 1979, p. 31.
189
Ibid., 1979, p. 31. Aliás, “sem a ajuda da história não há filosofia verdadeira, mas atolamento conformista nas
modas do dia.” VILLEY, Michel.
O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 12.
190
THUCYDIDES. The history of the peloponnesian war. Translated by Richard Crawley. London:
Encyclopaedia Britannica, 1978, book II, [37], p. 396.
191
HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martins. Belo Horizonte: Paidéia,
1987, p. 17. No mesmo sentido: GOYARD-FABRE, Simone.
O que é democracia? A genealogia filosófica de
uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 56.
148
idade moderna, com teóricos como Maquiavel e Hobbes.
192
Tais noções não existiam na
Grécia do Século IV a.C, até porque o que havia, na época, era um “autogoverno”. As
decisões eram tomadas e as leis feitas com a participação de todos, à luz do melhor
argumento, e não em face de costumes ou da força bruta. O ateniense não se via livre de
qualquer restrição, mas traçava a distinção entre a restrição decorrente de sua sujeição à
arbitrariedade de outro homem, e a decorrente da lei, em cuja feitura ele participou, e cuja
necessidade de respeito ele reconhece, podendo considerar, nesse sentido, autoimposta.
193
Questões difíceis, em face das quais seria difícil obter consenso, eram resolvidas à luz
da opinião da maioria, no âmbito de processo no qual todos os interessados tinham
oportunidade de participar.
194
Pode-se dizer, pois, que o Estado de Direito e o devido processo
legal teriam seus germes aqui.
Havia dois critérios ou formas de manifestação da liberdade:
i) viver como escolher;
ii) governar e ser governado.
195
O exercício da segunda forma de liberdade, em tese, pode
mitigar a primeira, mas se todos participam
igualmente das decisões do governo (governar e
ser governado), essa mitigação não ocorre de forma significativa, pois ter-se-ia o “ser
governado como se escolheu”.
196
Liberdade e igualdade, portanto, estavam umbilicalmente
ligadas, somente sendo possível o exercício de uma porque se assegurava, também, a outra.
Realmente não como “governar e ser governado” se não houver igualdade na participação
192
Para Michel Villey, o individualismo teria seu germe em Santo Tomás de Aquino. (VILLEY, Michel.
Filosofia do direito definições e fins do direito. Os meios do direito. Tradução de Márcia Valéria Martinez de
Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 127). No mesmo sentido: COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006,
passim. Arnaldo Vasconcelos, a esse respeito, também registra que “os
gregos não tiveram vida privada.” Isso porque “não se encontrava o ateniense do século V na situação histórica
de afirmar sua liberdade contra alguém ou contra algum estado de coisas, como ocorreu no Liberalismo
moderno.” (VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 80-
81). Conferir ainda: MIRANDA, Pontes de.
Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas:
Bookseller, 2001, p. 142. Liberdade, para o ateniense, era ter a possibilidade de participar do governo da cidade.
BERLIN, Isaiah. Liberty. In: HARDY, Henry (ed.).
Isaiah Berlin - liberty. Oxford: Oxford University Press,
2008. p. 283-286, p. 283.
193
HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martins. Belo Horizonte: Paidéia,
1987, p. 17.
194
Em certo sentido, não é isso o que preconizam os contemporâneos teóricos do pós-positivismo, relativamente
ao conceito de verdade pós-moderno, à legitimação pelo procedimento etc.?
195
Ibid., 1987, p. 19.
196
É exatamente o que, em relação à sociedade atual, preconiza Habermas, quando afirma mutuamente
implicadas a autonomia privada e a autonomia pública dos indivíduos (HABERMAS, Jürgen.
Direito e
democracia
: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v.1, p. 127). Tobias Barreto, aliás, antes dele já dizia que “o conceito da vida privada não pode
surgir senão por meio da consciência de uma vida pública.” BARRETO, Tobias.
Estudos de direito. Campinas:
Bookseller, 2000, p. 59.
149
das deliberações relativas aos assuntos da
polis.
197
Nas deliberações, buscava-se a unanimidade, que nem sempre era obtida. Em relação
às questões mais difíceis, nas quais havia profunda divergência entre os atenienses, a
Assembleia era uma forma de dar uma solução ao problema, pois a decisão tomada
encontrava legitimidade tanto por haver sido acolhida pela maioria como por permitir a
participação (por meio da argumentação) de todos os interessados.
Mas a Assembleia, composta de um número tão grande de pessoas, não tinha
condições de administrar seu próprio funcionamento, decidir quando e como os assuntos
seriam a ela submetidos, esboçar a legislação que depois seria submetida à sua aprovação,
elaborar sua agenda etc. Para isso, existia um “Conselho de 500”, que era auxiliado nesse
mister por um “Comitê de 50”, que tinha um presidente como líder. Tal presidente, contudo,
só poderia ocupar o cargo por um dia.
É importante observar que quase todos os servidores eram eleitos para um período não
renovável de um ano. Para evitar os vícios e os problemas decorrentes da eleição direta (
v.g.,
clientelismos), existiam mecanismos para preservar a responsabilidade de prestação de contas
dos administradores, e os servidores eram designados para o desempenho de tarefas por meio
de sorteio,
198
havendo rotatividade no exercício das mesmas.
Com a invasão de Atenas por Filipe da Macedônia, a democracia na Grécia
desapareceu. Durante o Império Romano, e, em seguida, na Idade Média, permaneceu
esquecida. Até que, com o advento da Idade Moderna, a ideia foi resgatada,
199
mas com
algumas diferenças. Apesar delas, contudo, é possível observar a presença na democracia
antiga e na moderna – de elementos comuns.
5.4.3.2 Democracia a partir da Idade Moderna
A principal distinção da democracia antiga, em relação à democracia moderna, surgida
197
Nesse sentido: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 473.
198
A designação de cidadãos pelo sorteio, e não por eleição, “procedimento que hoje nos causa o maior espanto
a razão política era, evidentemente, impedir a ascensão, acima do povo, de personalidades individuais muito
marcadas; procurava-se impedir no nascedouro o estabelecimento de tiranias.”
Ibid., 2006, p. 569.
199
É preciso notar, contudo, que “na história das idéias nunca existe um corte abrupto, mas sempre uma mistura
de restos antigos que perduram e instituições novas mais ou menos audaciosas.” GOYARD-FABRE, Simone.
O
que é democracia?
A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 98.
150
com o advento das revoluções burguesas entre os Séculos XVII e XVIII, reside no fato de que
aquela era predominantemente
direta, enquanto esta é precipuamente representativa.
200
Isso
porque a maior dimensão das cidades e a maior complexidade das populações tornaram
inviáveis as deliberações diretas a respeito de cada assunto a ser resolvido, tornando-se
necessário, como aponta Hobbes, “confiar a alguém a administração do governo”
201
durante
os recessos das deliberações populares. Outra distinção observável reside no fato de que, na
Grécia, o conceito de liberdade estava mais diretamente ligado à participação no governo da
cidade, enquanto na democracia moderna, calcada em uma mais marcante distinção entre o
público e o privado, essa liberdade reside na proteção do indivíduo em face de avanços do
Poder Público.
202
Em ambas, contudo, pode-se apontar a presença de um elemento comum,
representado pelo prestígio de duas metas fundamentais:
i) liberdade de o povo designar
aqueles que o governam; e
ii) dever dos governantes de trabalhar “sem se afastar da
preocupação constante com a igualdade e com a justiça.”
203
De fato, embora na democracia representativa os direitos do povo consistam
basicamente em controlar os governantes, isso faz com que estes procurem atender aos
interesses daquele. Durante sua passagem pelo governo, “o partido majoritário tenta realizar
um programa que também possa ser aceito pelo povo nas próximas eleições.”
204
Por outro lado, a democracia moderna procurou corrigir alguns dos principais defeitos
costumeiramente apontados na antiga. Um deles era o fato, anteriormente salientado, de
que em Atenas apenas eram considerados cidadãos os homens atenienses maiores, excluindo-
se do conceito mulheres, escravos e estrangeiros (metecos).
205
Essa deficiência, aos poucos,
os modernos corrigiram, podendo-se dizer que hoje o conceito de povo é bem mais
200
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 21.
201
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
124.
202
Como observa Isaiah Berlin, em passagem anteriormente mencionada, “in the ancient world, particularly
among the Greeks, to be free was to be able to participate in the government of one’s city.” (BERLIN, Isaiah.
Liberty. In: HARDY, Henry (ed.).
Isaiah Berlin - liberty. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 283-286, p.
284). O que se procura demonstrar aqui, sobretudo no item 5.4.4,
infra, é que não como assegurar essa
“liberdade dos modernos” de forma eficaz sem que haja a participação que os gregos dela não conseguiam
dissociar.
203
GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003, p. 341.
204
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 460.
205
GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003, p. 50. No mesmo sentido: MIRANDA, Pontes de. Democracia,
liberdade, igualdade, os três caminhos
. Campinas: Bookseller, 2001, p. 191.
151
abrangente.
206
Outros defeitos foram apontados por Platão, grande crítico do regime, para
quem os principais problemas da democracia são:
i) os governantes, preocupados em obter e
manter
popularidade, não tomam as decisões nem adotam as posturas corretas, em situações
difíceis, quando isso é necessário;
ii) a maioria pode tomar decisões precipitadas, movida pela
paixão ou influenciada por uma retórica falaciosa,
207
em relação às quais ela própria pode
arrepender-se depois;
iii) a maioria pode vir a adotar decisões ou posturas contrárias à lei e,
portanto, arbitrárias.
208
Aristóteles fez crítica semelhante.
209
Quanto ao perigo de decisões precipitadas, que poderiam levar a uma ditadura da
maioria, talvez esse seja um dos pontos (juntamente com o federalismo e a tripartição de
poderes)
210
em que se pode afirmar que os teóricos modernos e contemporâneos criaram ou
inovaram em relação aos gregos, aperfeiçoando-lhe as ideias destes,
211
e não apenas repetiram
o que teria sido por eles descoberto ou anunciado.
212
Mesmo na democracia representativa,
o perigo de a democracia conduzir à tirania está presente,
213
e mostra a necessidade de
instituições rígidas, pré-estabelecidas, as quais nem a maioria deve poder modificar, o que se
obtém precisamente através de uma
constituição rígida, para tornar mais difícil ou mesmo
206
“Se é certo que nem todos votam, a alusão à totalidade não é errada, porque, eventualmente, os excluídos
poderiam votar (e.g., os loucos, os condenados), ou poderão votar (e.g., os menores).” MIRANDA, Pontes de,
op. cit., 2001, p. 191.
207
Observação análoga é feita por HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p.166.
208
HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martins. Belo Horizonte: Paidéia,
1987, p. 29.
209
Para uma análise dessas críticas, confira-se: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 123.
210
A respeito da inovação, nesse ponto, havida na idade moderna, Paulo Bonavides observa que a “Federação
propriamente dita não a conheceram nem a praticaram os antigos, visto que a mesma, tanto quanto o sistema
representativo ou a separação de poderes, é das poucas idéias novas que a moderna ciência política inseriu em
suas páginas nos três últimos séculos de desenvolvimento.” BONAVIDES, Paulo.
Ciência política. 10.ed. São
Paulo: Malheiros, 1995, p. 180.
211
Embora, não se deve esquecer, a própria politéia ateniense tenha, aos poucos, incorporado “várias instituições
destinadas a evitar o abuso do poder popular.” COMPARATO, Fábio Konder,
op. cit., 2006, p. 643.
212
Não se pode esquecer, contudo, que os germes dessas ideias também podem ser apontados na antiguidade,
grega ou romana. Nesse caso, Políbio, por exemplo, preconizava um regime que mantivesse o equilíbrio pelo
jogo das forças contrárias, combinando em sua Constituição “a exigência democrática dos direitos do povo, a
competência aristocrática de um Senado e o poder quase real dos cônsules.” (GOYARD-FABRE, Simone.
O
que é democracia?
A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 35). Ainda sobre a origem da tripartição de poderes, não em Aristóteles,
mas também entre teóricos chineses (
v.g., Han Fei), confira-se: FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do
Estado
. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 476.
213
Thomas Fleiner-Gerster lembra que “Robespierre, ao interpretar a soberania popular de Rousseau, mostrou
até onde esta pode conduzir: à tirania despótica. Uma vez eleito pelo povo, todas as decisões do governo no
sentido da
volonté générale – são justas, verdadeiras e para o bem do povo, não sendo portanto mais passíveis de
controle. Tanto quanto a legitimação religiosa, a legitimação popular também pode levar à tirania.” (FLEINER-
GERSTER, Thomas,
op. cit., 2006, p. 440) A própria democracia, aliás, “pode suicidar-se, resignar-se,
entregando-se ao autocrata. É o caso da Alemanha de 1933. Da Itália de 1923.” (MIRANDA, Pontes de.
Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001, p. 190). A preservação da
liberdade, e da igualdade, impede que isso aconteça.
152
impossível, sob sua vigência, a supressão de certos direitos, sobretudo daqueles que servem
de base e premissa para a existência da própria democracia. Por conta disso, Pontes de
Miranda, depois de apontar a importância do surgimento das constituições rígidas para o
aperfeiçoamento da democracia
214
, observa que elas
protegem a liberdade, a democracia e a maior igualdade contra o impulso puxante
para o remoto, contra o impulso de descida à horda, que se produz na multidão-povo,
que é a multidão passageira, acidental, e na multidão-religião, ou, ainda, na
multidão-exército.
215
De fato, uma constituição rígida é responsável pela conexão entre política e direito,
determinando
como e até que ponto a primeira pode influenciar no segundo. Isso é necessário,
mesmo em uma democracia, não só para que se preserve a própria democracia (protegendo-se
os seus pressupostos, que são a liberdade e a igualdade), mas porque a função do direito não é
apenas a de preservar a justiça (cujo conteúdo é determinado democraticamente, em razão de
sua variabilidade no tempo e no espaço), mas também a segurança
. E, onde não
Constituição rígida a filtrar as interferências da política no jurídico, a relação entre aquela e
este é hierárquica, de subordinação.
216
Por motivos semelhantes, Ronald Dworkin destaca que a igual consideração que todo
ser humano merece é protegida de forma mais eficiente
by embedding certain individual
rights in a constitution that is to be interpreted by judges rather than by elected
representatives, an then providing that the constitution can be amended only by
supermajorities.
217
Ainda sobre os limites que eventualmente devem ser impostos à (às vezes irracional)
vontade da maioria até para que se preserve a própria democracia Reinhold Zippelius
observa que nos políticos, influências irracionais
encontram-se com as fraquezas humanas comuns. Muitos deles negam-se a trilhar o
caminho da mínima resistência. É bem conhecido o medo que eles têm de se chocar
contra associações e grupos influentes, o esforço que fazem para ganhar o apoio
desses, o temor de agressões públicas, o desejo de serem apresentados pela imprensa
e pela televisão de forma favorável e, principalmente, o empenho em melhorar as
oportunidades em benefício de sua própria carreira e em consolidar a sua própria
214
Ibid., 2001, p. 43.
215
Ibid., 2001, p. 43. Pela mesma razão, Djacir Menezes observa que a rigidez constitucional, “que resguarda a
esfera dos direitos fundamentais contra as incursões arbitrárias do Poder, é uma das notas do ‘Estado de
Direito’.” MENEZES, Djacir.
Tratado de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 203.
216
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 66.
217
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 144.
153
posição no poder.
Por essas e outras experiências, o otimismo antropológico, bem como a idéia do
homem como 'animale racionale', foi, sem cessar, suplantado por outras noções.
[...]
As restrições contra esperanças demasiadamente otimistas sobre uma democracia
direta são especialmente determinadas pela noção de homem que Le Bon evidenciou
em seu ‘Psicologia das Massas’ (1895). Segundo ele, os homens, quando em massa,
estariam mais suscetíveis às sugestões dos demagogos, diminuídos na sua
capacidade de crítica e de julgamento e desceriam alguns degraus na escala da
cultura. Trata-se de noção de homem que encontrou na bem sucedida demagogia de
Hitler e de outros uma confirmação demasiadamente palpável.
São noções de homem desse gênero que sugerem à prática política que não se deve
confiar demais na razão, mas, também, harmonizar as regras comportamentais com
as fontes irracionais da conduta. Se o homem é movido também pela vontade de
poder, então é mais importante instituir controles de poder suficientes no Estado, do
que radicalizar o princípio democrático.
218
É preciso muito cuidado, portanto, quando se fala, hoje, em “nova constituinte”
219
e
quando se critica a Constituição vigente e suas cláusulas de imodificabilidade
220
com suposto
amparo no que seriam os “interesses do povo”. Mesmo que as premissas fossem verdadeiras –
muitas vezes não são
221
por elas não se poderia abdicar da rigidez constitucional, sob pena
de se incorrerem nos mesmos vícios da democracia grega, de cujas consequências a História
deu seu testemunho. Corre-se o risco, até, de supressão da própria democracia, caso se
suprimam os Direitos Fundamentais minimamente exigíveis para o seu regular exercício. Essa
ideia é bem sintetizada por George Marmelstein, para quem
a premissa majoritária é apenas um dos componentes da democracia e não o único.
O princípio democrático exige, antes de tudo, que as decisões coletivas dediquem a
todos os membros da comunidade, enquanto seres humanos, a mesma consideração
e o mesmo respeito, daí porque a petrificação dos direitos fundamentais não é
necessariamente antidemocrática, já que eles visam justamente permitir o respeito da
218
ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 54-55.
219
Confira-se, a propósito: STRECK, Lenio Luiz; et al. Revisão é golpe! Porque ser contra a proposta de revisão
constitucional.
Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 985, 13 mar. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8093>. Acesso em: 28 nov. 2008.
220
CF/88, art. 60.
221
No mais das vezes, as críticas e a realidade que lhes justifica não procedem porque não devem ser
dirigidas contra o texto constitucional, mas contra a sua falta de eficácia. Em vez disso, coloca-se a solução para
todos os problemas na reforma constitucional, o que é inteiramente inadequado. Como observa Marcelo Neves,
“a responsabilidade pelos graves problemas sociais e políticos é, então, atribuída à Constituição, como se eles
pudessem ser solucionados mediante as respectivas emendas ou revisões constitucionais. Dessa maneira, não
apenas se desconhece que leis constitucionais não podem resolver imediatamente os problemas da sociedade,
mas também se oculta o fato de que os problemas jurídicos e políticos que frequentemente se encontram na
ordem do dia estão associados à deficiente concretização normativo-jurídica do texto constitucional existente, ou
seja, residem antes na falta das condições sociais para a realização de uma Constituição inerente à democracia e
ao Estado de direito do que nos próprios dispositivos constitucionais.” NEVES, Marcelo.
A
constitucionalização simbólica
. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 187.
154
dignidade da pessoa humana, impedindo que a maioria do povo despreze os
legítimos interesses de grupos sociais minoritários.
222
Não se trata propriamente, convém insistir, de estabelecer limites à democracia, mas
de reconhecer a necessidade de premissas necessárias ao seu exercício, as quais, se afastadas,
inviabilizam a própria democracia. No dizer de Günter Maluschke, as normas constitucionais,
nesse caso, funcionam como
as regras de um jogo que só podem exercer a sua função se não estiverem na
disponibilidade dos jogadores. Para ficar dentro da metáfora, podemos dizer que isto
é válido também para o 'jogo político' da democracia, no qual competição e conflitos
são formalmente institucionalizados pelas leis constitucionais, que também não
podem ficar à disposição imediata dos membros da sociedade civil.
223
Para que essa necessária rigidez constitucional seja assegurada, faz-se indispensável a
existência de instrumentos de controle da constitucionalidade das leis democraticamente
elaboradas, a fim de que se verifique a compatibilidade destas com o disposto na
Constituição. Daí decorrem a tripartição de poderes e o
judicial review, que não devem ser
vistos como limites à soberania popular, antidemocráticos e conservadores,
224
mas
salvaguardas necessárias à preservação da própria faculdade da população de exprimir suas
vontades, ou, nas palavras de Günter Maluschke, para preservar as regras de um jogo que
podem exercer a sua função se não estiverem na disponibilidade dos jogadores.
Quanto à crítica fundamental, da qual, a rigor, as outras são meras decorrências, de
que a democracia seria defeituosa porque trata todos os homens como iguais, sejam eles
iguais ou não, Platão a faz dizendo que, assim como um barco deve ser liderado por seu
comandante, e não pelo que decidir a maioria dos marinheiros ignorantes,
225
a Polis deve ser
governada por sábios. Para ele, a melhor forma de governo seria aquela em que os filósofos
tivessem o poder e decidissem a respeito dos assuntos de interesse coletivo. Essa visão está
muito claramente delineada em
A República, embora, em obras de sua maturidade (O Político
222
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 274.
223
MALUSCHKE, Günter. Democracia representativa vs. Democracia direta. Pensar revista do curso de
direito da Universidade de Fortaleza, Fortaleza: Unifor, p. 69-74, abr. 2007. Edição Especial, p. 72. Disponível
em: <http://www.unifor.br/notitia/file/1616.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2008.
224
Não parece acertada, por isso, a postura que nesse ponto adota LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto.
Justiça constitucional e democracia: perspectivas para o papel do poder judiciário.
Revista da Procuradoria
Geral da República
, São Paulo, v. 8, p. 81-101, 1996. Para ele, o Judiciário ter a aptidão de considerar
inconstitucionais leis feitas democraticamente pelo parlamento representaria um retrocesso e não um
aperfeiçoamento da democracia.
225
No mesmo sentido, Hobbes afirma que “é infeliz confiar as deliberações políticas às grandes assembléias,
devido à inexperiência da maior parte dos homens.” HOBBES, Thomas.
Do cidadão. Tradução de Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 165.
155
e
As Leis), Platão tenha admitido a necessidade de alguma forma de consenso e participação
populares para manter o governo.
226
Em verdade, a História é rica em exemplos de formas de governo que não consagram a
igualdade entre governantes e governados, e que atribuem a um governante supostamente
iluminado o comando do Estado. Numa demonstração de que não há linearidade na História e
para não alongar muito o texto, é possível resumir os exemplos às monarquias absolutistas da
Europa do final da Idade Média e aos regimes totalitaristas da primeira metade do Século XX.
Tais exemplos mostram a magnitude do problema e o acerto da célebre frase proferida
por Winston Churchill em discurso na Casa dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, de que
a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido
experimentadas de tempos em tempos
227
, tendo, por isso, Pontes de Miranda afirmado, em
livro publicado inicialmente em 1944, que “o remédio contra a democracia que não funciona
bem é outra melhor.”
228
É verdade que as pessoas não são iguais, que umas são mais preparadas que outras, e
que não seria adequado deixar-se que a opinião das despreparadas, que talvez sejam maioria,
determine os destinos da coletividade. Tais premissas são corretas, e realmente seria muito
bom um governo de sábios, filósofos assaz preparados. A questão, contudo, está em saber:
(i)
quem determinaria quem são os sábios? (ii) quem imporia limites aos sábios? (iii) que tipo de
“sabedoria” qualificaria alguém a ser considerado sábio?
229
A imprestabilidade da afirmação de que um governo de sábios seria melhor que uma
democracia é análoga à da afirmação de que justiça é o ideal de “dar a cada um o que é seu”,
eis que o ponto questionado é justamente “o que é de cada um”.
226
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de António José Brandão. 5.ed. Coimbra:
Armenio Amado, 1979, p. 43.
227
Democracy is the worst form of government except from all those other forms that have been tried from time
to time
.” (HILTON, Ronald. Democracy: democracy and Churchill. Disponível em:
<http://wais.stanford.edu/Democracy/democracy_DemocracyAndChurchill(090503) .html>. Acesso em: 26 nov.
2008). E isso se deve ao fato de que o Estado democrático é o único “que pode reinvidicar a proteção do povo
contra o domínio, sem se tornar um instrumento de dominação.” PETTIT, Philip.
Teoria da liberdade.
Tradução de Renato Sérgio Pubo Maciel. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 240.
228
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 265.
229
Isso porque existem diversos tipos de habilidade intelectual que permitem considerar “sábia” a pessoa que as
detém, mas nem todas são úteis ou desejáveis ao governante. pessoas culturalmente instruídas que não m
qualquer domínio de administração pública, sociabilidade ou empatia, enquanto outras, com menor bagagem
cultural, são muito bem dotadas nas habilidades necessárias ao gerenciamento da coisa pública.
156
Para que a ideia de um governo de sábios fosse boa, ou pelo menos factível, seria
necessário que tais sábios fossem infalíveis, que fosse possível diferenciá-los em meio à
coletividade e que a pessoa incumbida de os escolher e indicar fosse ainda mais sábia e
também infalível, o que, já se vê, conduz a um regresso ao infinito.
Não se pode esquecer que a liberdade de expressão, a possibilidade de se criticar o
governante, a maior transparência da administração pública e a consequente maior facilidade
de serem fiscalizados os atos dos governantes dão a falsa impressão de existirem mais
numerosos defeitos nas democracias. Entretanto, se
observarmos isentamente as ditaduras, facilmente perceberemos que os males são os
mesmos e maiores, pela falta dos freios da crítica e pela ausência ou dificuldade de
responsabilização. As autocracias são arbitrárias, por definição e eliminam as
liberdades, exatamente porque precisam disso para viver. Mais vivem, mais coragem
têm. Mais riscos correm, mais comprimem.
230
Outro aspecto que não pode ser tangenciado é o de que, para alguém tomar decisões
relevantes, não precisa conhecer profundamente de questões técnicas. O povo, um rei ou uma
oligarquia
consultam aqueles considerados sábios na matéria, e com os elementos deles
hauridos tomam a decisão. E, em uma democracia, os sábios, como todos os demais cidadãos,
têm liberdade para discordar uns dos outros, para manifestar suas opiniões e tentar convencer
os demais de seu acerto. Pontes de Miranda, a respeito disso, destaca que para
se resolver quanto à construção de uma ponte, ou o asfaltamento de uma rua, ou o
serviço de esgotos de uma cidade ou de um povoado, certamente não se precisa de
grande saber: todo o mundo sente, percebe e observa as necessidades. Tampouco,
para a construção de escolas e de hospitais, ou extensas ou intensas plantações. À
técnica, executar o que se resolveu e, antes mesmo, sugerir. Os fins, todos são aptos
a conhecê-los; técnica é escolha de meios. Os fins do Estado contemporâneo são
claros, perceptíveis por todo ente humano. Nem as coisas de ciência e de técnica, nas
aplicações de utilidade geral, são tais que não possam expor às assembléias ou às
câmaras dos municípios.
231
A crítica de que a democracia é ruim, por permitir que despreparados sejam tratados
de forma igual aos sábios, portanto, não procede. Não porque o defeito não seja
eventualmente verdadeiro, mas porque para ele não melhor remédio. Talvez até existam
remédios, mas todos de efeitos colaterais muito, mas muito piores que a doença. Não se deve
esquecer a advertência de Popper, relativamente à democracia, segundo a qual “qualquer
governo passível de ser derrubado tem um forte incentivo para agir de um modo que agrade
230
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 267.
231
Ibid., 2001, p. 141.
157
ao povo. E este incentivo perde-se se o governo souber que não pode ser expulso com essa
facilidade.”
232
Assegurando-se a igualdade na participação no processo democrático,
233
será o tempo
e a própria democracia que selecionarão as propostas e os representantes, fazendo com que
permaneçam no poder os sábios – pelo menos os que assim são considerados pela maioria – e
não os ineptos. Não é por outra razão, aliás, que Pontes de Miranda destaca que a “escolha de
homens de caráter faz-se mais facilmente nas democracias. a crítica, a responsabilização.
Onde não responsabilidade, a impunidade, livre jogo dos instintos e da maldade. Nem
os bons reis conseguem conter as camarilhas.”
234
Por isso, a democracia será tanto mais perfeita (ou menos imperfeita) quanto mais for
exercitada, sendo relevante lembrar a advertência de Paulo Bonavides, segundo a qual exigir
que primeiro as pessoas sejam “preparadas” para depois se implantar a democracia é tão
absurdo quanto se pretender que a criança não ande para não cair, devendo primeiro ter aulas
teóricas sobre como caminhar para só depois ensaiar seus primeiros passos.
235
Como se percebe, a democracia moderna, ainda que diferente em muitos aspectos da
grega verificada na antiguidade, tem, com ela, um elemento comum: a participação, direta ou
indireta, do povo nas decisões relativas aos interesses da coletividade. Pode-se dizer, a esse
respeito, que os antigos “abriram, ainda que imperfeitamente, a estrada que os 'modernos'
percorrerão, procurando aperfeiçoar o seu traçado.”
236
Em ambas as formas de democracia, é
verdade, existem imperfeições. É natural que seja assim, pois se trata de uma obra humana.
237
Cabe ao homem, ao longo da História, aprendendo com seus erros, aprimorá-la.
Para que o direito realize aquilo que se entende por justiça, não chegando à falha em
grau intolerável que justificaria o recurso ao “Direito não positivo de resistência”, o seu
232
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 128.
233
O que, aliás, é essencial, pois democracia, liberdade e igualdade estão intimamente ligadas, conforme será
explicado no item subsequente. Pode-se dizer, aliás, que “a consequência lógica desse princípio republicano é
que nenhum dos comunheiros pode ser excluído do exercício do poder político, pois todos têm o direito e o
dever de participar das decisões que dizem respeito ao bem comum. A democracia constitui, pois, o
complemento necessário da república.” COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 636.
234
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 265.
235
BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 20.
236
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 43.
237
BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 37.
158
conteúdo de ser determinado democraticamente. A insuficiência do direito, e da
democracia, vale insistir, “decorre da própria incapacidade do homem de produzir coisas
acabadas e perfeitas.”
238
A questão, portanto, está em saber quem terá a atribuição de
aperfeiçoar o Direito, o que envolve não apenas saber quem será dotado da atribuição formal
de levar o aperfeiçoamento a cabo, como quem determinará o parâmetro para determinar a
perfeição, vale dizer, que seria mais próximo e o que seria mais distante do perfeito. O melhor
meio para que isso não se dê de forma arbitrária é através da democracia.
Não que não exista direito injusto, ilegítimo ou antidemocrático. Isso, como toda
deturpação, pode acontecer, sendo importante ressalvar, com Arnaldo Vasconcelos, que não
se pretende aqui “confundir, como fez o Jusnaturalismo, Direito com Direito justo. Direito
injusto também é Direito, Direito válido. Outra coisa bem diferente é afirmar-se que o direito
injusto não pode subsistir, como efetivamente não deve prevalecer.”
239
De tudo isso, pode-se definir democracia, para os fins deste trabalho, como a forma de
governo na qual todos aqueles que se acham sob sua disciplina têm iguais oportunidades de,
livremente, interferir na sua formação e na sua condução, podendo dele participar ou
escolher, fiscalizar e criticar os que dele participam
.240
Trata-se de um conceito que, além de
interligado ao de liberdade, e ao de igualdade, conforme adiante será explicado, é ao mesmo
tempo descritivo e ideal, pois diz respeito a um estado ideal que jamais será integralmente
atingido
241
conquanto deva sempre ser incansavelmente buscado. Pode-se dizer, como se faz
em relação a todo ideal, que o seu atendimento se de modo gradual, e não sob a forma de
um tudo ou nada. Um governo pode sempre ser mais democrático do que já é. Uma sociedade
na qual “os que m direito ao votoo os cidadãos masculinos maiores de idade
exemplifica Norberto Bobbio é mais democtica do que aquela na qual votam apenas
os proprietários e é menos democrática do que aquela em que têm direito ao voto
238
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 159.
239
Ibid., 2000, p. 232.
240
Ou, como define Pinto Ferreira, “o governo constitucional das maiorias, que, sobre a base da liberdade e
igualdade, concede às minorias o direito de representação, fiscalização e crítica no Parlamento.” FERREIRA,
Luiz Pinto.
Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v.1, p. 37.
241
Rousseau, a esse respeito, admite que “se tormarmos o termo no sentido estrito, nunca houve uma verdadeira
democracia, e jamais haverá.(ROUSSEAU, J. J. Contrato social. In: MORRIS, Clarence (Org.).
Os grandes
filósofos do direito
. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 211-234, p. 228).
Somente a título exemplificativo, Bobbio lembra que mesmo a mais perfeita democracia imaginável teria de
prever um limite de idade abaixo do qual os cidadãos não poderiam participar do processo de escolha de
representantes ou de tomada de decisões. BOBBIO, Norberto.
O futuro da democracia – uma defesa das regras
do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p. 19.
159
também as mulheres.
242
Por essa razão, Giovani Sartori afirma que “o que a democracia
é não pode ser separado do que a democracia deve ser.
”243
5.4.4 Interdependência necessária entre liberdade, igualdade e democracia
Como se procurou demonstrar nos itens anteriores, liberdade, igualdade e democracia
são conceitos interdependentes, que se pressupõem e se complementam. Não faz sentido
assegurar a liberdade senão através de sua igual repartição, razão pela qual a igualdade
consiste na atribuição de
iguais liberdades para todos,
244
destinando-se não a suprimir ou a
relativizar a liberdade, mas a estendê-la ao maior número de pessoas possível.
245
Afinal, para
se preocupar com a defesa da liberdade, “precisa-se primeiro estar seguro de um mínimo de
segurança física e econômica e não estar às voltas com as agressões, com a fome, com o frio
ou com a doença.”
246
Em todas as sociedades surgidas sobre o planeta, aliás, desde o aparecimento da
criatura humana, existiram pessoas cuja liberdade era plenamente assegurada,
independentemente da forma de organização política adotada.
247
Desse modo, quando se
cogita de uma comunidade na qual se preconiza a preservação da liberdade, está
evidentemente implícito que se trata da preservação da liberdade de
todos, e não apenas de
alguns, pois nisso todas poderiam ser equivalentes.
E tudo isso pode ser garantido em uma democracia, que, aliás, tem como
242
Ibid., 1984, p. 19.
243
SARTORI, Giovani. A teoria da democracia revisitada. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo:
Atica, 1994. v.1, p. 23.
244
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 24. Daí
porque, diz Arnaldo Vasconcelos, “na esfera ontológica, os dois conceitos, livres de quaisquer determinações,
são absolutamente equivalentes. No plano histórico da vida cotidiana, pois, a liberdade subentende a igualdade.
Vale sublinhar mais uma vez: não homens livres senão entre iguais.” (VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito e
força
: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo: Dialética, 2001, p. 56). No mesmo sentido,
FLEINER-GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 173, afirma que “o princípio da igualdade exige a mesma liberdade para todos.”
245
“O reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis
legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de modo que 'a liberdade do arbítrio de cada um possa
manter-se junto com a liberdade de todos'.” HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e
validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 52.
246
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 250.
247
“Aí está o ponto principal: sempre grupo de 'gente livre', nos países não-livres; pelo menos, o monocrata
ou os oligocratas, um ou alguns.” MIRANDA, Pontes de.
Democracia, liberdade, igualdade, os três
caminhos
. Campinas: Bookseller, 2001, p. 146.
160
pressupostos a liberdade e a igualdade
248
. Simone Goyard-Fabre afirma, nesse sentido, que a
democracia suscita a síntese de liberdade e igualdade.
249
Liberdade para, entre outras coisas,
poder participar do processo democrático, das mais diversas formas
250
, e igualdade porque é
exatamente em virtude do igual valor atribuído a todos
251
que as decisões devem ser tomadas
levando-se em conta a vontade da maioria, com o respeito desta pela subsistência da minoria.
Aliás, percebendo a íntima relação entre liberdade, tolerância e democracia, Bobbio registra
que “apenas onde o dissenso é livre para se manifestar o consenso é real, e que apenas
onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se com justeza democtico.
252
É essa a razão pela qual procede a afirmação segundo a qual o fundamento da
Constituição (e, por conseguinte, de todo o ordenamento jurídico a partir dela construído)
reside na proteção dos direitos humanos e no reconhecimento da soberania popular.
253
A
primeira é uma forma de assegurar e promover a liberdade e a igualdade. E, a segunda, o
pressuposto da democracia, que lhe serve de instrumento. Frisando a relação entre democracia
e liberdade, Kelsen observa que
[a] vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão
contínua entre maioria e minoria, através da livre consideração de argumentos a
favor e contra certa regulamentação da matéria. Essa discussão tem lugar não apenas
no parlamento, mas também, e em primeiro lugar, em encontros políticos, jornas,
livros e outros veículos de opinião. Uma democracia sem opinião pública é uma
contradição em termos.
254
248
Aliás, Zippelius considera – no que parece estar correto – que a democracia decorre da própria igualdade, pois
pressupõe que todas as criaturas humanas têm igual dignidade. (ZIPPELIUS, Reinhold.
Introdução ao estudo
do direito
. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 57). Ainda
sobre a especial importância da liberdade e da igualdade para a democracia: GOYARD-FABRE, Simone.
O que
é democracia?
A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 36. Isso era, registre-se, sustentado por Kelsen, para quem “o princípio da
maioria, e, portanto, a idéia de democracia, é uma síntese das idéias de liberdade e igualdade.” (KELSEN, Hans.
Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
411).
249
GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003, p. 305.
250
“Só num país onde existam reais condições do exercício das liberdades haverá um Direito e governo
legítimos.”
(VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 247).
Por isso, prossegue o mesmo autor, “Direito e democracia constituem termos que se exigem, que se implicam e
que se completam. Apenas o poder de formação democrática pode ser tido por autorizado e, portanto, legítimo.
Ao conceito de Direito em termos de relação coordenativa enquadra-se, perfeitamente, a noção de democracia
como regime de exigência das liberdades. E, uma e outra, coisas diversas não são.”
Ibid., 2000, p. 248.
251
Aliomar Baleeiro destaca que a democracia “repousa no pressuposto da dignidade humana, mercê do qual
todo indivíduo é fim em si mesmo” (BALEEIRO, Aliomar.
Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed.
Atualizada por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 108). Está intrinsecamente ligada,
portanto, à ideia de igualdade entre os indivíduos (todos têm igual valor).
252
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p. 63.
253
COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 607.
254
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 412. No mesmo sentido: GOYARD-FABRE, Simone.
O que é democracia? A genealogia
filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
161
Em termos semelhantes, relativamente à importância das liberdades políticas para o
sucesso da democracia, Habermas registra que
o princípio segundo o qual todo o poder do Estado emana do povo tem que ser
especificado, conforme as circunstâncias, na forma de liberdades de opinião e de
informação, de liberdades de reunião e de associação, de liberdades de fé, de
consciência e de confissão, de autorização para a participação em eleições e votações
políticas, para a participação em partidos políticos ou movimentos civis etc.
255
De forma mais completa, essa interdependência é explicada pelo filósofo de Frankfurt
com o estabelecimento de relação cíclica entre o exercício dos direitos políticos por parte dos
cidadãos e a proteção de sua autonomia privada pelo Estado. Em suas palavras,
o uso adequado dos direitos políticos por parte dos cidadãos do Estado requer a
configuração de uma vida autônoma e privada, assegurada eqüitativamente, o que
é possível quando eles se encontram em condições de agir e julgar de modo
independente. De outro lado, os cidadãos da sociedade chegam ao gozo simétrico
de sua autonomia privada plena se eles, enquanto cidadãos de um Estado, fizerem
um uso adequado de seus direitos políticos, isto é, se não agirem apenas de modo
auto-interessado, mas também orientados pelo bem-comum.
256
A liberdade, em geral, e a liberdade de expressão, mais especificamente, são premissas
indispensáveis para que exista uma democracia, de qualquer espécie ou modalidade, pois
as decisões objetivas tomadas democraticamente pela maioria, e que, em última
análise, servem também ao bem comum, não são possíveis senão quando as
alternativas em discussão podem ser criticamente avaliadas em um debate aberto e
no qual cada um tem uma chance justa de fazer valer o seu argumento em um
processo de decisão.
257
308-309; RICHARDSON, Henry S. Em defesa de uma democracia qualificada. Tradução de Tito Lívio Cruz
Romão. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy,
2003. p. 175-194, p. 193.
255
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 165.
256
Id. Entre naturalismo e religião estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 305. Essa ideia, como se sabe, está presente na generalidade de seus escritos.
Em “A inclusão do outro”, ele igualmente escreve: “Não direito algum sem autonomia privada de pessoas do
direito. Portanto, sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria
tampouco um
medium para a institucionalização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer
uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. Dessa maneira, a autonomia
privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um primado
sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele.” (
Id. A inclusão do outro estudos de teoria política.
Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2004, p. 293). Algo semelhante é
afirmado por Norberto Bobbio, quando este observa que “Estado liberal e estado democrático são
interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são
necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da
democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a
persistência das liberdades fundamentais.” BOBBIO, Norberto.
O futuro da democracia – uma defesa das regras
do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p. 20.
257
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 153.
162
Não que a liberdade de expressão garanta a perfeição de uma democracia. Não é isso.
Afinal, as
paixões, as tomadas de posições demagógicas, a histeria das massas e preconceitos,
a corrupção e o favoritismo contribuem para que este ideal seja consideravelmente
adulterado. No entanto, uma ampla garantia da liberdade de expressão permite
manter tais distorções dentro de certos limites, uma vez que precisamente esta
liberdade assegura certos controles. A liberdade de expressão impede evoluções
extremadas e aos que não puderam se impor sob determinadas circunstâncias a
esperança de que os seus interesses ainda serão ulteriormente considerados.
258
O que ocorre é que, embora não seja suficiente – nada o seria, eis que se trata de ideal
inatingível para garantir a perfeição de uma democracia, a liberdade de manifestação
conduz a resultados positivos na determinação do que é verdadeiro e do que é considerado
justo por cada sociedade, que dificilmente de outra forma poderiam ser obtidos. Sua
supressão, por outro lado, além de não garantir os mesmos resultados positivos (conduzindo,
em verdade, ao seu oposto), nada de positivo poderia trazer. Nas palavras de Stuart Mill, o
mal
peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que se está privando a raça
humana, tanto a posteridade como a geração existente, daqueles que discordam da
opinião, mais ainda do que aqueles que têm a opinião. Se a opinião for correta, a
espécie humana será privada da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se for
errada, ela perde, o que é quase um benefício tão grande, a percepção mais clara e a
impressão mais vívida da verdade, produzida por sua colisão com o erro [...]
259
Democracia, liberdade e igualdade, portanto, estão intimamente ligadas, e devem ser
conjuntamente promovidas, até porque o incremento de uma serve de motriz para o
aprimoramento das outras, em um círculo virtuoso que leva ao aumento da legitimidade do
ordenamento jurídico, que se torna justo porque o mais próximo possível do modelo de direito
considerado desejável pelos que a ele se submetem. Pontes de Miranda, a respeito de
democracia, liberdade e igualdade, muito observa que lição valiosa, haurida da história e
da observação,
é a seguinte: sempre que se cancelam um dos dados, o restante cria absolutismo.
Portanto, ligação entre os três, que os faz condicionados entre si. Bastaria esse
fato para evidenciar que os três se prendem à natureza do homem, ao seu todo
258
Ibid., 2006, p. 153.
259
MILL, Stuart. A liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 364-399, p. 386.
163
psicobiológico, à sua crescente adaptação ao mundo físico e à vida social.
260
E, além disso, a preservação da liberdade e da igualdade, em um regime democrático,
é a fórmula para que se promova, da melhor maneira possível, a dignidade da pessoa humana,
entendida de modo a significar que todo ser humano tem potencialidades que não podem ser
desperdiçadas, e que todo ser humano tem a responsabilidade de escolher como aproveitar ou
desenvolver suas potencialidades, como será adiante explicado.
Tais observações têm a importância de dar a justificativa teórica para a afirmação de
que a democracia “pode tudo, não pode duas coisas: não pode suprimir o princípio da
maioria, e com isso a própria democracia, e não pode abolir os direitos humanos e
fundamentais, pois eles são prévios ao Estado, que não os concede, mas apenas os protege.”
261
Na verdade, a democracia não está propriamente limitada pela proteção aos direitos
humanos e fundamentais, mas antes os pressupõe. Não é possível à democracia suprimir a
liberdade e a igualdade sem, com isso, deixar ela própria de ser democracia. Ao minar seus
próprios alicerces, a democracia torna-se inviável enquanto tal. Essa é a razão pela qual
Arnaldo Vasconcelos afirma que
Direito, humanismo e democracia são conceitos de mútua implicação. O Direito foi
inventado para assegurar a plena realização do homem numa sociedade igualitária.
Um Direito anti-humanístico e anti-democrático constitui autêntico paradoxo, sem
deixar de ser, todavia, realidade facilmente identificável em todos os tipos de Estado
e de governo autoritário.
262
Poder-se-ia dizer, em oposição, que um governo supressor de algumas liberdades
poderia, ainda assim, ser democrático, desde que tomasse decisões ou providências que
atendessem aos interesses do povo. O importante, em suma, para a caracterização da
democracia, seria a promoção do interesse público, que residiria na atribuição de um
tratamento “igual” a todos, ainda que com a restrição a liberdades. Essa oposição, contudo,
não tem procedência.
260
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 144-145.
261
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 442. Em termos semelhantes: BASTOS, Celso Ribeiro.
Dicionário de direito
constitucional
. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38. Aharon Barak, por isso, indica a existência de mecanismos
destinados a viabilizar o exercício da soberania popular como requisito formal de uma democracia, ao lado do
respeito a valores (adicionais ao valor da regra da maioria) como a tripartição de poderes, do Estado de direito,
da independência do Judiciário e da proteção aos direitos humanos, que aponta como requisito material de uma
democracia. BARAK, Aharon.
The judge in a democracy. Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 24.
262
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 10.
164
Primeiro, porque um regime em que o governo não respeitasse nem garantisse a
liberdade dos indivíduos, a exemplo da liberdade de expressão, mas mesmo assim adotasse
práticas que atendessem aos interesses da população, seria um exemplo de demofilia
, e não de
democracia. E, em uma demofilia ainda que fosse possível conhecer o interesse da
coletividade
263
– fica-se a depender da benevolência do déspota. Mas, e se ele
não o for? Por que deixar ao acaso o que pode ter salvaguardas? É claro que se pode
dizer que o sol não se levante amanhã. Talvez, mas é extremamente improvável
(com referência a amanhã). É possível que um macaco sentado diante de uma
máquina de escrever produza um romance; mas a probabilidade é desoladoramente
pequena. Da mesma forma, é possível que, num regime de Estado despótico e
declaradamente antiliberal, os súditos sejam mimados por um déspota benevolente,
inteiramente dedicado ao altruísmo. No entanto, a ligação entre ditadura e filantropia
é um ‘possível extremamente improvável’, ao passo que a ligação entre o poder do
povo e benefícios para o povo é uma possibilidade intrínseca e extremamente
provável.
264
É por isso que Radbruch diz ser a democracia
Ciertamente un bien precioso, pero el Estado de Derecho es como el pan de cada
dia, como el água potable y el aire que se respira; y lo mehor de la democracia es
precisamente eso: que es la única forma de gobierno apropriada para garantizar el
Estado de Derecho.
265
Segundo, e mais importante, porque um dos interesses principais de qualquer ser
humano é o exercício de sua liberdade,
266
sendo uma contradição de termos a afirmação de
que um regime poderia suprimir liberdades e, ainda assim, atender aos interesses da maioria
da população.
267
Terceiro, porque, sem liberdade, ninguém poderia garantir que as ações
263
Como observa Gargarella, “se não temos um acesso direto à opinião 'dos outros', se eles não têm
oportunidades efetivas de apresentar e defender suas reivindicações, então, será muito difícil sabermos o que
solicitam, por mais boa-fé e empatia que tenhamos por eles.” Daí dizer-se que “a 'presença' dos afetados na
discussão dos temas que concernem a eles é ‘epistemicamente’ importante: sua presença pode contribuir de
maneira decisiva para reconhecermos certa informação que de outro modo ignoraríamos.” GARGARELLA,
Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso
Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 174.
264
SARTORI, Giovann. A teoria da democracia revisitada. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo:
Atica, 1994. v.2, p. 282-283.
265
RADBRUCH, Gustav. Leyes que no son derecho y derecho por encima de las leyes. In: RADBRUCH,
Gustav; SCHMIDT, Eberhard; WELZEL, Hans.
Derecho injusto y derecho nulo. Traducción de José Maria
Rodriguez Paniagua. Madria: Aguilar, 1971. p. 3-29, p. 21.
266
Amartya Sen, por isso mesmo, observa que “[m]esmo uma pessoa muito rica que seja impedida de se
expressar livremente ou de participar de debates e decisões públicas está sendo
privada de algo que ela tem
motivos para valorizar.” SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 53.
267
Nesse sentido: MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Interesse público e direitos do contribuinte. São
Paulo: Dialética, 2007,
passim.
165
governamentais seriam convergentes com o interesse da maioria.
268
Em face da natural
tendência de quem tem poder a abusar dele, aquele encarregado de determinar a promoção do
interesse da coletividade dificilmente colocaria esse interesse acima do seu próprio,
individual.
269
Além disso, seria impossível, em tal contexto, conhecer qual seria o interesse da
maioria. De fato, sem liberdade, as pessoas que eventualmente poderiam formar a maioria ou
interferir na vontade desta não poderiam exprimir ou tornar públicos seus interesses.
270
E, quarto, porque sem a democracia nada impediria o governo, a rigor caracterizado
como
demofilia, de, a qualquer tempo, deixar de atender os interesses do povo. Se isso
acontecesse, como invariavelmente ocorre, não existiriam mecanismos para alterar os rumos
do exercício do poder político, substituindo os representantes populares, por exemplo. Em
suma, sem o controle popular, “não motivo para se esperar que o Estado conduza seus
empreendimentos econômicos com objetivos diferentes de seu próprio enriquecimento e,
neste caso, a exploração apenas assumirá uma nova forma.”
271
Assim como na Grécia antiga, ao longo de toda a história os tiranos à cata da
necessária legitimidade
272
– “têm sempre um comportamento demagógico: apóiam-se no povo
contra os aristocratas ou os oligarcas, mas raramente buscam realizar o bem comum de
268
Não se pode esquecer que uma das principais críticas dirigidas à democracia reside justamente no fato de que
nem sempre a maioria, formada por pessoas medíocres, decide melhor que uma minoria esclarecida. Entretanto,
deve-se atentar para o fato de que “em matéria de ciência ou de técnica, a opinião de um só indivíduo pode valer
mais e ter mais razão contra a de muitos. Em assuntos de interesse imediato de muitos, a de muitos, ou de todos,
tem de valer mais. Pelo menos, evita que o interesse de poucos prevaleça sobre o de muitos. [...] O que é preciso
é que seja o povo que decida dos seus destinos, desde os menores círculos políticos. A inserção de alguém que
adote soluções sem ter sido escolhido pelo povo, ou por alguém a que o povo atribuiu escolher, cria o núcleo
monocrático, que, se irresponsável, se torna, aos escorregos, autocracia.” (MIRANDA, Pontes de.
Democracia,
liberdade, igualdade, os três caminhos
. Campinas: Bookseller, 2001, p. 141). Daí porque, em uma democracia,
as decisões devem ser tomadas pela maioria, direta ou indiretamente, mas essa maioria deve contar com a
instrução e com a informação, para que decida a partir do que os sábios estão livres para lhe dizer.
269
Como destaca Kant, quando o consenso dos cidadãos é exigido para que se entre em uma guerra, muito
maior probabilidade de que se mantenha a paz. Afinal, os cidadãos têm muito maior pudor por estarem cientes
de que as consequências da decisão serão sofridas especialmente por eles – do que um rei que, encastelado, veria
na guerra apenas “uma espécie de jogo de recreação.” KANT, Immanuel.
À paz perpétua. Tradução de Marco
Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 26.
270
Como observa Amartya Sen, saber quais são as necessidades a serem atendidas pelo governante ainda que
este esteja munido da maior boa possível depende de debates democráticos abertos, os quais pressupõem
liberdade de informação, de participação e o direito à educação e à informação. SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 175.
271
RUSSEL, Bertrand. O elogio ao ócio. In: MASI, Domenico de (Org.). A economia do ócio. Tradução de
Carlos Irineu W. da Costa, Pedro Jorgensen Júnior e Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. p. 47-138, p.
105.
272
Cf., v.g., LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. Brasília: UnB,
1985, p. 45. Entretanto, vale observar que, conquanto até mesmo o tirano cuide “em buscar a aclamação das
massas, em prol da própria estabilidade de seu poder”, a noção democrática de Estado “exige mais. Ela pretende
realizar a autodeterminação das pessoas também no campo político.” ZIPPELIUS, Reinhold.
Introdução ao
estudo do direito
. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 131.
166
todos.”
273
Observa-se, com efeito, mesmo no mundo contemporâneo, que o burocrata tem
instinto infalível para a conservação do seu poder, o que o leva “sempre a procurar mais e
mais atribuições, como condição de eficiência administrativa, e a tudo recobrir com o manto
do segredo, por razões de alegado ‘interesse público’.”
274
Por isso, não se deve aceitar que
alguém, em nome do povo, pratique atos fundamentados apenas no que supostamente seria o
interesse do povo, sem observância a outros limites, porque “jamais interesse algum estará
protegido se a parte interessada não pode decidir por si e defender seu interesse”.
275
Realmente, é um equívoco permitir que, em nome do interesse coletivo, suprima-se a
liberdade dos indivíduos e o direito destes a um igual tratamento, pois somente em um
ambiente em que todos têm igual oportunidade de manifestar, livremente, seus interesses,
estes poderão ser conhecidos. É por isso que, invariavelmente, quando se cogita da supressão
de liberdades em nome de um suposto interesse coletivo, é da instalação de uma ditadura da
pior espécie que se está a cogitar. Como o todo social não é tão
real como são os indivíduos,
diz Michel Villey,
é de se temer que esta operação (de subordinar o direito ao interesse do todo)
camufle o serviço a uma oligarquia: aos nobres ou altos funcionários nos quais se
suporão encarnados os interesses do Estado, à classe militar que defende a honra da
nação, aos membros do partido que pretende representar o povo, ou aos tecnocratas
da economia... cujas políticas servem à cabeça em detrimento dos membros.
276
Vale insistir na questão: a liberdade, dado característico de toda criatura humana, torna
o Direito possível e necessário; é a razão de ser deste, sendo o objetivo maior de uma ordem
jurídica garantir a sua igual compartição. Dessa forma, a restrição à liberdade de alguém
somente se justifica quando for adequada, necessária e proporcional em sentido estrito ao
respeito de igual liberdade às outras pessoas.
277
Em sociedade, tendo a liberdade de um de
conciliar-se com a dos demais, o conceito de liberdade está intimamente relacionado ao de
ordem e ao de respeito. Mas, na maioria das vezes em que em uma ditadura se preconiza uma
restrição à liberdade fundada em alegada promoção da igualdade, ou de qualquer outro estado
de coisas supostamente do interesse da coletividade, essa restrição não é sequer adequada, e
273
COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 638.
274
Ibid., 2006, p. 640.
275
SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Atica, 1994, p. 281.
276
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. definições e fins do direito. os meios do direito. Tradução de Maria
Valéria Martinez de Aguiar.o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 175.
277
Também Laurence Tribe e Michael Dorf admitem que a chave para a questão da liberdade está em sua
repercussão sobre terceiros. TRIBE, Laurence. DORF, Michael.
Hermenêutica constitucional. Tradução de
Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 143.
167
tampouco necessária para isso. A liberdade de um deve encontrar limites na liberdade do
outro, pelo que
as restrições da liberdade podem se revelar admissíveis, ou mesmo indispensáveis
para promover a liberdade de escolha (
liberty of choice) dos cidadãos, desde que não
restrinjam ainda mais a liberdade dos cidadãos em geral, por exemplo em
conseqüência da ampliação da burocracia estatal.
278
Da mesma forma como uma suposta promoção da igualdade não pode servir de
justificativa para a supressão de liberdades, também a democracia, por pressupor a liberdade e
a igualdade, não pode, ainda que sob a justificativa de tratar-se da vontade da maioria,
suprimir minorias, tolhendo-lhes a liberdade.
279
Stuart Mill, a esse respeito, destaca que a
noção de que o povo “não tem qualquer necessidade de limitar o seu poder sobre si mesmo
podia parecer incontestável quando o governo popular era uma coisa com a qual apenas se
sonhava, ou se lia como tendo existido em algum período distante do passado”, mas que, tão
logo surgidas as primeiras democracias no mundo moderno, a limitação do poder fez-se
igualmente necessária. Isso porque
a vontade do povo significa praticamente a vontade da parte mais numerosa ou mais
ativa do povo: a maioria, ou aqueles que são bem-sucedidos em se fazer aceitos
como maioria; por conseguinte, o povo
pode desejar oprimir uma parte de sua
multidão; e são necessárias tantas precauções contra este como contra qualquer outro
abuso de poder.
280
Por isso, Kant observa que a democracia há de ser sujeita a limites, como, por
exemplo, a separação do poder executivo (o governo) do legislativo, sob pena de todos
decidirem “sobre e, no caso extremo, também contra um (aquele que, portanto, não consente),
por conseguinte todos que não são contudo todos, o que é uma contradição da vontade geral
consigo mesma e com a liberdade.”
281
Além de a liberdade e a igualdade entre os cidadãos garantirem a democracia, o
contrário também acontece: a democracia, efetivamente exercitada, cria ambiente propício à
278
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 174.
279
É preciso que a minoria seja respeitada e seja ouvida, preservando-se o seu direito de, eventualmente,
convencer a maioria e modificar-lhe a vontade. Nesse sentido: DWORKIN, Ronald.
Is democracy possible
here?
(principles for a new political debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 134.
280
MILL, Stuart. A liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 364-399, p. 383.
281
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 28.
168
promoção da liberdade e da igualdade, em um autêntico círculo virtuoso.
282
Sobre a
importância da democracia
para a implementação dos direitos fundamentais, Paulo
Bonavides observa que
Sem democracia, todas as formas de status quo que alojam, conservam e perpetuam
situações de privilégio, desigualdade e discriminação tendem à imutabilidade,
eternizando as mais graves injustiças sociais ou fazendo do homem, para sempre,
um ente rebaixado à ignomínia da menoridade política, da ausência e do silêncio,
sem voz para o protesto e sem arma para o combate; objeto e não sujeito da vontade
que governa; súdito e não cidadão.
283
Precisamente por isso, não parece possível assegurar ao povo a liberdade, e a
igualdade, sem que se esteja em regime democrático. Não como, por outras palavras,
implementar a afirmação de Oliveira Vianna, ainda que verdadeira fosse, segundo a qual o
que “o nosso povo-massa pede aos governos eleitos ou não-eleitos, pouco importa é que
eles não o inquietem em seu viver particular. Equivale dizer: o que interessa ao nosso povo-
massa é a liberdade civil e individual.”
284
Com efeito, não há como “pedir”, para usar as palavras de Oliveira Vianna, sem que se
esteja em um regime democrático. Aliás, pedir até pode ser possível, mas não qualquer
garantia de que o pedido será atendido em vez de reprimido. Assim, em um contexto em que
houvesse liberdade, mas não democracia, esta, a liberdade, seria efetivamente assegurada
apenas a alguns, precisamente àqueles que detivessem o poder ou sobre este tivessem alguma
influência. Percebendo isso, Marcelo Neves registra que a falta de eleições democráticas
“conduz, nas condições atuais, à identificação do ‘Estado’ com determinados grupos e, com
isso, à desdiferenciação do sistema jurídico, inadequada à complexidade da conexão de
282
Habermas faz alusão, a propósito, à autonomia política do cidadão como condição para que seja assegurada,
também, sua autonomia privada, e vice-versa. Confira-se: HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre
facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p.
116. Também Marcelo Neves, ao cuidar dos pressupostos mínimos para que o Direito possa cumprir seu papel,
admite a relação íntima e necessária entre liberdade, igualdade e democracia, ao afirmar que os direitos
fundamentais sociais – destinados à promoção da igualdade - “são imprescindíveis à institucionalização real dos
direitos fundamentais referentes à liberdade civil e à participação política”, o que significa dizer que “o direito só
poderá exercer satisfatoriamente sua função de congruente generalização de expectativas normativas de
comportamento enquanto forem institucionalizados constitucionalmente os princípios da inclusão e da
diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os
concernentes à liberdade civil e à participação política.” (NEVES, Marcelo.
A constitucionalização simbólica.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 77-78) Não que os direitos humanos só tenham sentido em uma democracia,
posição combatida por Kervégan (KERVÉGAN, Jean-François. Democracia e direitos humanos. Tradução de
Tito Lívio Cruz Romão. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São
Paulo: Landy, 2003. p. 115-125, p. 124), mas sim que a democracia é o regime mais adequado para que sejam
respeitados e preservados.
283
BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 19-20.
284
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1955. v.2, p. 623.
169
comunicações, expectativas e interesses constitutivos da sociedade.”
285
É equivocado, por isso, preconizar-se uma supressão da democracia, ainda que como
forma de supostamente garantir mais direitos às pessoas (
v.g., maior igualdade), pois “a
própria ausência de democracia é uma desigualdade nesse caso, de direitos e poderes
políticos.”
286
Por outro lado, considerando que os direitos sociais fundamentais existem
para que haja o desfrute “em condições de igualdade de chances daqueles direitos individuais
e políticos fundamentais”,
287
suprimir os direitos individuais e políticos sob a discutível
promessa de que com isso se promoverão os direitos sociais é, no mínimo, um absurdo.
Convém notar, ainda a propósito da suposta tensão entre liberdade e igualdade – tônica
do discurso dos que preconizam a possibilidade de, em nome da “vontade do povo”,
suprimirem-se liberdades que, como tais características humanas estão intimamente
relacionadas, o demasiado prestígio dado a uma delas tende a suprimir não apenas a outra,
mas a própria característica de cuja promoção exagerada se cogita. O excessivo prestígio dado
à liberdade pode conduzir não à criação de situações de desigualdade, mas, com elas, à
supressão da própria liberdade de um número considerável de pessoas. Da mesma forma,
assegurar a igualdade, de forma a suprimir a liberdade das pessoas de serem diferentes,
suprimirá o direito à liberdade, que é traço diferenciador do homem,
288
e a própria igualdade,
pois as pessoas às quais se delegar o papel de “igualar forçadamente” as demais seguramente
terão privilégios que as tornarão diferentes.
Fábio Konder Comparato observa, a propósito da mais eloquente tentativa pelo
menos em tese - de implantar a
igualdade entre os membros de uma comunidade, o
socialismo – que a
285
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 80. Algo
semelhante é observado por Amartya Sen, quando registra que os governos democráticos precisam vencer
eleições e enfrentar a crítica, pelo que tendem a combater os males mais graves que assolam a população. SEN,
Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 30.
286
Ibid., 2000, p. 217.
287
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. Tradução de Claudio Molz. In: MERLE,
Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 67-82, p. 78.
288
Partindo da afirmação de John Donne de que nenhum homem é uma ilha, Amós Oz complementa que
tampouco o homem é um continente, devendo ser equiparado a uma península. “Todo sistema social e político
que transforma cada um de nós numa ilha darwiniana e todo o resto da humanidade num inimigo ou rival é uma
monstruosidade. Mas, ao mesmo tempo, todo sistema social, político e ideológico que quer transformar cada um
de nós apenas em uma molécula de terra firme também é uma monstruosidade.” (OZ, Amós.
Contra o
fanatismo
. 3.ed. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 40). Conferir ainda,
nesse mesmo sentido: COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 409.
170
hipotética ‘ditadura do proletariado’ cedo transformou-se na real e crudelíssima
ditadura do secretário-geral do Partido Comunista. E o pretendido e anunciado
desaparecimento do Estado cedeu lugar à montagem do mais formidável aparelho
estatal de todos os tempos.
289
Mario Vargas Llosa, no mesmo sentido, observa que hoje
sabemos que a centralização da economia suprime a liberdade e multiplica
cancerosamente a burocracia, e que, com essa, ressurge uma classe privilegiada
ainda mais inepta do que a que Orwell crucificou em seu ensaio, igualmente ávida e
perversa na defesa desses privilégios, fazendas, permissões especiais, monopólios,
níveis de vida, que acarreta o exercício do poder vertical numa sociedade que,
devido à falta de liberdade, aquilo é intocável e onímodo. [...] Agora sabemos que o
Estado é a representação real e concreta de um povo somente como ficção jurídica,
mesmo nas democracias, onde essa ficção está muito menos alienada da sociedade
do que sob os regimes de força. No mundo real, o Estado é patrimônio de uma
determinada coletividade que, se acumula um pode desmedido que lhe assegura o
controle de toda a economia, termina usufruindo-o em seu proveito contra os
interesses daquela economia à qual, em teoria, representa. [...] Isso traz como
conseqüência piores formas de privilégio e de injustiça que as permitidas por uma
economia privada, nas mãos da sociedade civil que, se estiver bem regulada por um
regime legal e submetida à vigilância de um Estado independente e democrático,
pode ir abrindo oportunidades e diminuindo essas diferenças sociais e econômicas
que Orwell, o socialista libertário, nunca deixou de combater.
290
A liberdade e a igualdad, e, com elas, a tolerância, devem ser preservadas como
decorrência do fato de inexistir uma verdade absoluta. Tal como ocorre no âmbito das
ciências. A esse respeito, referindo-se a Karl Kautsky e ao regime supostamente igualitário, e
nada democrático,
291
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Djacir Menezes observa
que ele,
acusado de 'renegado' no famoso panfleto de Lenin, apontava a falta de base popular
para o socialismo russo, devido à imaturidade das condições em que se desenvolvia
289
Ibid., 2006, p. 383. Pontes de Miranda, a esse respeito, observa que, a propósito de instituir sociedade sem
Direito e sem Estado, o socialismo fez surgir um Estado totalitário e um Direito extremamente injusto.
(MIRANDA, Pontes de.
Comentários à constituição de 1967. São Paulo: RT, 1967. v.1, p. 49). Conferir ainda,
nesse sentido: BONAVIDES, Paulo.
Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito
constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 150.
290
LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. Tradução de Cordélia Magalhães. São Paulo: Arx, 2004,
214. Em termos semelhantes, Vicente Ráo destaca que “por uma suposta felicidade coletiva, política, social ou
econômica, não se deve pagar o preço do aviltamento do homem, da supressão total, ou
totalitária, de sua
liberdade espiritual, intelectual, cívica e econômica, o preço, isto é, da destruição de sua personalidade.” RÁO,
Vicente.
O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 54.
291
Jorge Miranda, a propósito, observa que “na experiência concreta, presta-se um realce muito grande aos
direitos económicos, sociais e culturais direitos ao trabalho, ao repouso, à segurança social, à educação em
contraste com a situação precária das liberdades individuais. Por isso e invocando-se também as necessidades da
construção do socialismo e da defesa contra os seus inimigos, as liberdades públicas ficam suprimidas ou os
cidadãos as podem exercer em obediência à linha do Partido Comunista ou por meio de organizações deste
dependentes, directa ou indirectamente, e tudo dentro de uma atmosfera de completo uso dos meios de
comunicação social pelo Estado.” MIRANDA, Jorge.
Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 118.
171
o proletariado. Examinou como a ditadura do partido era conseqüência de tais
premissas. E acrescentou: '... A censura bolchevista exerce seus rigores, não apenas
contra a imprensa burguesa, mas contra toda a imprensa que não seja partidária
decisiva do atual sistema de governo. A justificação deste sistema descansa, em
substância, na ingênua concepção de que existe uma verdade absoluta, em cuja
posse se encontram os comunistas. E ademais na crença de que o resto dos escritores
são embusteiros e só os comunistas fanáticos da verdade.' (K. Kautsky,
Terrorismo y
comunismo.
ed. Transación, p. 125) Na mesma convicção se achavam os diretores
da Santa Inquisição.
292
Como destacado nos itens anteriores deste capítulo 5, a “essência do pensamento não é
o monólogo autocrático, mas o diálogo democrático. Tal concepção não se coaduna com a
forma leninista de Estado.”
293
É preciso assegurar a liberdade e, com ela, o direito de ser
diferente, de pensar diferente e de sustentar opiniões divergentes do pensamento
eventualmente defendido pela maioria. Kelsen, a esse respeito, observa que
[o] princípio de maioria não é, de modo algum, idêntico ao domínio absoluto da
maioria, à ditadura da maioria sobre a minoria. A maioria pressupõe, pela sua
própria definição, a existência de uma minoria; e, desse modo, o direito da maioria
implica o direito de existência da minoria. O princípio de maioria em uma
democracia é observado apenas se todos os cidadãos tiverem permissão para
participar da criação da ordem jurídica, embora o seu conteúdo seja determinado
pela vontade da maioria. Não é democrático, por ser contrário ao princípio de
maioria, excluir qualquer minoria da criação da ordem jurídica, mesmo se a exclusão
for decidida pela maioria.
Se a minoria não for eliminada do procedimento no qual é criada a ordem social,
sempre existe uma possibilidade de que a minoria influencie a vontade da maioria.
Assim, é possível impedir, até certo ponto, que o conteúdo da ordem social venha a
estar em oposição absoluta aos interesses da minoria. Esse é um elemento
característico da democracia.
294
A proteção às minorias é importante, ainda, para que não desapareça a possibilidade
de a maioria ser convencida pela minoria, preservando-se a possibilidade de serem
falseadas
as opiniões ou as verdades inicialmente acolhidas por aquela. Afinal, teria “Giordano Bruno,
com toda sua intrepidez, força para convencer algum de seus opositores, que filosofavam
contra ele, remexendo ao mesmo tempo as objeções e as achas da fogueira?”
295
Precisamente para que, através da democracia, liberdade e igualdade sejam
preservadas, é importante não que exista liberdade, inclusive de manifestação do
292
MENEZES, Djacir. Hegel e a filosofia soviética. Rio de Janeiro: Zahar, [s.d.], p. 18-19.
293
Ibid., [s.d.], p. 17.
294
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 411.
295
Ibid., [s.d.], p. 17.
172
pensamento, mas igualdade no acesso a essas informações, o que envolve o direito à
educação. Na URSS, por exemplo, como aponta Djacir Menezes, foi, entre outras coisas, a
falta de educação que viabilizou o excesso de poder:
Uma das causas mais evidentes foi a insuficiência do desenvolvimento político da
classe trabalhadora, produto de um industrialismo ainda incipiente, sem grande
educação política das instituições democráticas e do socialismo. Então o Partido se
converteu no clero mais intolerante do universo com excessivo temor ao diabo
herético, cuidadosamente vigiado e perseguido na pessoa de qualquer
raisonneur.
Conseqüentemente
, a mediocridade, que aceita e aplaude, invade os quadros
dirigentes e ascende politicamente para opinar depois sobre assuntos de filosofia,
onde se exige a mais fina argúcia e especiais dotes de inteligência.
296
A propósito de igualdade e liberdade como pressupostos de uma democracia, Dworkin
escreve ainda que, embora sejam relativos o sentido e o alcance que cada comunidade – e, por
conseguinte, cada ordenamento jurídico atribui à dignidade da pessoa humana, e
especialmente aos seus desdobramentos, pode-se sempre partir de duas premissas
fundamentais, a saber:
i) todo ser humano tem direito de desenvolver plenamente os seus
potenciais;
ii) todo ser humano tem a responsabilidade pelo desenvolvimento pleno de seus
potenciais.
297
Tais premissas são, em outras palavras, representações dos princípios da igualdade e
da liberdade, ambos importantes para o prestígio da dignidade da pessoa humana. As pessoas
têm de ter todas elas condições para desenvolver plenamente seus potenciais,
assegurando-se-lhes saúde, educação, segurança etc. Mas também têm responsabilidade sobre
como desenvolver esses potenciais, não sendo compatível com sua liberdade e, por
conseguinte, com sua dignidade – que outrem lhe diga, ou pior, lhe imponha como fazê-lo.
Adequada a definição, pois corrige o que em nome da igualdade se quis fazer nos
regimes socialistas, e que implica (a história o mostra) grave supressão da liberdade. Como a
igualdade – decorrência da dignidade humana – impõe como consequência
permitir a todo ser
humano que desenvolva ao máximo suas potencialidades, tem-se que a igualdade reclama
296
Ibid., [s.d.], p. 63.
297
These two principles – that every human life is of intrinsic potential value and that everyone has a
responsibility for realizing that value in his own life together define the basis and conditions of humanity
dignity
.” (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 10). Em termos muito semelhantes, Habermas afirma que “a conduta
consciente da vida da pessoa singular mede-se pelo ideal expressivista da auto-realização, pela idéia
deontológica da liberdade e pela máxima utilitarista da multiplicação das chances individuais de vida.”
HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 132.
173
igualdade de oportunidades, as quais devem ser as mais amplas possíveis, mas não de
resultados.
Houvesse igualdade de resultados, suprimir-se-ia a liberdade e a consequente
responsabilidade pelas escolhas que dela decorre.
298
E isso ocorreria de duas maneiras.
Primeiro, a igualdade nos resultados não respeitaria a pretensão, que as pessoas
eventualmente poderiam ter, de ser diferentes, ou de terem objetivos de vida diferentes.
Segundo, porque o respeito pelas escolhas de um indivíduo depende do respeito pelas
consequências dessas escolhas. É nenhuma a liberdade concedida a uma pessoa para escolher
dois ou três caminhos, se todos levarão ao mesmo lugar. Além de contrário à liberdade, tal
forma de igualização implica desestímulo ao esforço, ao investimento e ao sacrifício,
incentivando o ócio e a ineficiência. Foi exatamente o que se assistiu nas economias
socialistas, com o agravante da ditadura que nelas se instaurou de forma definitiva,
299
em
mera substituição de uma classe dominante por outra.
300
Em ilustrativa comparação com o
jogo
Monopoly, que no Brasil foi conhecido sob o nome de “Banco Imobiliário”, Dworkin
escreve:
Suppose, for example, a radically egalitarian economic policy that collects all the
community´s resources once a year and redistributes them equally so as to cancel
out all the transactions of the past year and leave people free to start all over again
on equal terms. That would be like sweeping up all the Monopoly money and
property every quarter of an hour and beginning again, which would of course ruin
the game because then no choice would have any consequences for anyone. It would
not matter what anyone did. The radical egalitarian economic policy would have the
same result at least financially: people would be insulated from the economic
consequences of their acts therefore unable to take any responsibility for the
economic dimension of their own lives. In such a world I could not stay in school
longer in order to hold a higher-paying job later or economize now in order to
educate my children better or make a screwd investment in hopes of realizing a
298
Merece destaque, ainda sobre a inconveniência de uma igualdade de resultados no âmbito de uma sociedade
humana, a observação irônica de Italo Svevo, através de Zeno Cosini, protagonista de
A consciência de Zeno, a
propósito do socialismo de Guido, seu amigo: “Era socialista à sua maneira, e considerava que devia ser proibido
uma única pessoa possuir mais de cem mil coroas. Não ri no dia em que, conversando com Guido, admitiu
possuir exatamente cem mil coroas, nenhum centavo a mais. Não ri nem lhe perguntei se, caso ganhasse mais
dinheiro, não mudaria de opinião.” SVEVO, Italo.
A consciência de zeno. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2003, p. 316.
299
Ainda a propósito da ditadura do proletariado, Giovani Sartori observa que não existe ditadura provisória.
Isso porque “como obrigar uma ditadura a cumprir uma promessa? Em particular, como obrigá-la a cumprir a
promessa de se destruir a si mesma? A resposta é absolutamente simples: não como. Uma ditadura é, por
definição, um Estado sem controle; controla as pessoas que lhe são submetidas sem ser controlado por elas.
Portanto, é evidente que no que diz respeito à ditadura, não possibilidade de se cumprirem promessas; toda
promessa é vazia
ex hypothesi. [...]. Prometer uma liberdade que deve passar primeiro pelo túnel de uma ditadura
é como queimar o dinheiro necessário para o pagamento a ser feito amanhã.” SARTORI, Giovanni.
A teoria da
democracia revisitada
. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Atica, 1994. v. 2, p. 279.
300
Merece leitura, a propósito, o relato de Victor Kravchenko, que descreve realidade que coincide de forma
assustadora com a fábula “A revolução dos bichos” e com a ficção “1984”, ambos de George Orwell.
KRAVCHENKO, Victor.
Escolhi a liberdade. 3.ed. Tradução de Maria Helena Amoroso Lima Senise. Rio de
Janeiro: A Noite, [s.d.].
174
profit. None of these choices would make any sense because I would end in the same
economic position whatever I did; I could take no financial responsibility for my
own choices because my own choices would have no financial consequences at
all
.
301
Com efeito, se todos tivessem acesso aos mesmos resultados, independentemente das
escolhas que fizessem, duas consequências muito ruins poderiam ser percebidas. A primeira,
e mais evidente, seria a completa supressão da liberdade, com a destruição da
responsabilidade pelas escolhas a ela inerentes, e o desrespeito às individualidades de cada
criatura humana.
302
E isso para não referir a ditadura que para tanto seria criada.
303
A segunda,
menos imediata mas igualmente lógica, seria o total desestímulo ao desenvolvimento de
qualquer pontencialidade humana. Menor estímulo teriam as pessoas para estudar,
economizar, trabalhar mais ou se esforçar mais para desempenhar qualquer tarefa, se sua
situação, ao final das contas, seria a mesma de quem nenhum estudo, economia, trabalho ou
esforço tivesse feito.
A partir dessas duas premissas, que Dworkin batiza de
common ground, em torno das
quais praticamente não há dissenso, pode-se argumentar – sincera e racionalmente – em torno
de quais medidas são necessárias e adequadas para atingir tais finalidades. Isso, aliás, conduz
à democracia, pois somente em tal regime as pessoas poderiam argumentar, discutir e
deliberar, a partir do tal ponto de partida comum, como construir a ordem jurídica.
No caso do Brasil, onde se tem uma das constituições mais avançadas do mundo,
todos esses direitos, e muitos outros deles decorrentes, estão positivados. O que se questiona
aqui, porém, é o plano meta ou suprapositivo. Questiona-se a razão pela qual foram
positivados. Se não estivessem, o que se disse justificaria a afirmação de que
deveriam estar.
E se, em um futuro próximo, pretender-se elaborar uma nova constituição, o que se disse
justifica a manutenção e a preservação dos direitos fundamentais hoje existentes, que não
podem ser vistos como um “simulacro” que estaria a prender a vontade popular.
301
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 102-103.
302
A garantia da propriedade privada, nesse contexto, aparece calcada em duplo fundamento. Se será assegurada
em maior ou em menor grau, essa é uma questão para ser resolvida democraticamente, em cada sociedade. Mas
que deve, de alguma forma, ser respeitada, isso parece decorrência do fato de que, através dela, a individualidade
de cada sujeito se pode exprimir, e da circunstância de que só com ela o esforço pessoal (envolvido na liberdade,
que todos têm, de ampliar conforme lhes pareça mais adequado as suas potencialidades) tem algum sentido.
Confira-se, a propósito: ZIPPELIUS, Reinhold.
Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista
de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 97.
303
Por essa razão, Pontes de Miranda observa que, a pretexto de criar uma sociedade sem Estado, viu-se até que
ponto o estatismo chegou na URSS. MIRANDA, Pontes de.
Comentários à constituição de 1967. São Paulo:
RT, 1967. t. 1, p. 49.
175
Não se acredita, naturalmente, que com a liberdade, a igualdade e a democracia as
pessoas serão, todas, automaticamente, felizes e realizadas. Que tudo de bom acontecerá
por terem sido prestigiadas. Não é isso. Na verdade, não se escolhe a liberdade
porque ela nos promete isto ou aquilo. Escolhemo-la porque ela torna possível a
única forma digna de coexistência humana, a única forma em que podemos ser
totalmente responsáveis por nós próprios. Se concretizamos ou não as possibilidades
que ela encerra depende de todo o tipo de factores – e acima de tudo de nós
próprios.
304
Aliás, embora se tenha afirmado, na parte inicial desta tese, a despreocupação em
amoldar as ideias aqui defendidas ao pensamento deste ou daquele autor, ou a esta ou àquela
corrente de pensamento, não se pode deixar de registrar que a proteção de iguais liberdades,
de igualdade de oportunidades e de uma estrutura democrática, tal como aqui se preconiza,
seria, provavelmente, escolhida pelos signatários do contrato social hipotético imaginado por
John Rawls.
305
Não que se esteja a subscrever integralmente, aqui, o pensamento do autor de Uma
teoria da justiça
. Não é isso. O que se pretende afirmar, tão somente, é que a solução
apontada nesta tese é adequada para a construção de um ordenamento jurídico justo, tanto
que, se fosse possível tal como idealiza Rawls a celebração de um contrato social por
pessoas em uma “posição original”, estas escolheriam solução igual ou próxima da que aqui
se sugere.
Como se sabe, a “posição original” é hipotética, como o é o próprio contrato social
rawlsiano, e constitui aquela que antecede a criação do grupo social e de suas instituições.
Nela,
os membros da sociedade a ser formada não teriam conhecimento das
posições que nela ocupariam ou das habilidades e das preferências que teriam,
encobertos por um “véu de ignorância” destinado a fazer com que suas escolhas
fossem as mais imparciais possíveis.
306
Rawls considera que, em tal posição
original, pessoas racionais pactuariam a construção de instituições j
urídicas calcadas
nos seguintes princípios:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais
304
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 126.
305
Afinal, como destaca Robert Nozick, quem pretende tratar de filosofia política deve either work within
Rawls´ theory or explain why not
.” NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell, 1999, p.
183 - “deve ou trabalhar com a teoria de Rawls ou explicar por que não o faz.” - tradução livre.
306
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 14.
176
liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades
para as outras pessoas.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo
que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de
todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.
307
Como se nota, esses dois princípios representam os ideais de liberdade e de igualdade
de oportunidades, sendo a primeira, a liberdade, passível de limitação apenas para que seja
viável o seu exercício pela generalidade dos membros da sociedade, vale dizer, para que a
liberdade de um possa conviver com a liberdade dos demais, em moldes nitidamente
kantianos. Daí porque Rawls afirma que “a única razão para restringir as liberdades
fundamentais e torná-las menos extensas é que, se isso não fosse feito, interfeririam umas
com as outras”, tal como aqui se preconiza.
308
Merece destaque, ainda, a forma como Rawls aborda a questão da igualdade,
conciliando-a com a liberdade. Além de preconizar iguais liberdades, Rawls
estabelece, ao mencionar o princípio da diferença, que as instituições podem ser
organizadas de sorte a que as pessoas sejam colocadas ou permaneçam em
situação de desigualdade, desde que isso traga benefícios gerais para todos, e
desde que haja liberdade para que as pessoas em situação inferior
tenham
oportunidade
de modificar sua situação. Em suma, as diferenças entre as situações
sociais e econômicas entre as pessoas são a consequência de uma liberdade que,
em última análise, a todos favorece, e devem decorrer apenas dos esforços de cada
um (como consequência, portanto, da liberdade, que não deve ser suprimida), e
mesmo nesse caso somente são admissíveis quando contribuem para tornar mais
favorável a situação de todos.
O que acontece, porém, é que a defesa de que o ordenamento jurídico seja
construído em um ambiente democrático, no qual se preservem e se prestigiem
liberdade e igualdade, não foi feita, aqui, com base na apontada “posição original”,
que, conquanto muito bem arquitetada,
309
pressupõe um contrato hipotético firmado
307
Ibid., 2008, p. 73.
308
Ibid., 2008, p. 77.
309
Trata-se, não se pode negar, de forma bem pensada de tentar tornar objetivos os critérios destinados à
determinação de uma sociedade justa. Realmente, se não soubéssemos que posição ocuparíamos em uma
sociedade, escolheríamos aquela “que não favorecesse grupos ou indivíduos particulares, e nossa primeira
prioridade seria evitar que qualquer pessoa sofresse restrições indevidas de liberdade ou estivesse sujeita a
177
por criaturas humanas inteiramente desumanizadas, divorciadas de suas pré-
compreensões, de seus valores, enfim, de suas circunstâncias.
310
As premissas
foram outras, como se viu.
Alguém pode sustentar postura diversa da defendida neste trabalho. Poderá inclusive
apontar-lhe inúmeros erros. Mas, paradoxalmente, para que isso seja plenamente possível, é
preciso que se esteja em um ambiente no qual se assegure a liberdade de manifestação de
pensamento, facultando-se a todos, de forma igual e democrática, a oportunidade de
demonstrar o contrário.
5.4.5 O problema do fundamento último e o trilema de Fries
Fora do âmbito do Direito, quando se discute o fundamento último de alguma coisa, é
recorrente a referência ao
trilema de Fries, ainda que a questão não seja identificada dessa
forma. O exame desse trilema e das soluções que têm sido apontadas para ele pode fornecer
elementos interessantes para a questão dos fundamentos da ordem jurídica, pelo que não se
poderia deixar de fazê-lo neste trabalho.
Como o conhecimento científico se caracteriza pela possibilidade de ser refutado,
sendo considerado verdadeiro enquanto sobreviver aos testes aos quais é submetido, pode-se
perguntar: em que se funda a afirmação de que uma teoria passou pelo teste? Ou, feita a
pergunta em termos mais diretos, em que se funda o conhecimento científico?
Se se puser em dúvida uma teoria, passando-se a uma experiência destinada a testá-la,
também os resultados dessa experiência, conquanto confirmem (provisoriamente) o acerto da
teoria, podem ser postos em dúvida e submetidos a teste. E assim sucessivamente. Onde
terminar? É o que acontece quando um adulto paciente encontra uma criança curiosa, que
começa a perguntar o
por que de tudo. A cada pergunta, uma resposta, e um novo por que em
torno das premissas da resposta dada.
O problema é análogo ao do fundamento da ordem jurídica. A norma jurídica tem
extremos de pobreza.” LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008, p. 340.
310
A própria teoria de Rawls pressupõe que, mesmo obstaculizadas pelo “véu de ignorância”, as pessoas tenham
conhecimento de certas realidades (valores morais, importância de bens materiais etc.), mas não de outras (a
posição que ocuparão na sociedade, as crenças religiosas que seguirão...), o que não deixa de ser uma
contradição. Para uma crítica mais detalhada, que não seria pertinente aqui, confira-se: NOZICK, Robert.
Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell, 1999, p. 198 e ss.
178
fundamento em outra norma jurídica, de superior hierarquia, e assim sucessivamente, até
chegar-se à Constituição. A partir daí, onde se fundamenta o ordenamento jurídico? O Direito
é obrigatório por quê?
No âmbito da epistemologia, a questão havia sido proposta por Fries, sendo
conhecida como o
trilema de Fries. Trilema (e não dilema) porque oferece três caminhos (e
não dois), dos quais se deve escolher um. Para Fries, os três caminhos são:
(i) redução ao
infinito,
pois sempre será possível submeter ao teste do falseamento a afirmação feita para
fundamentar outra afirmação;
(ii) dogmatismo, estancando-se a cadeia de fundamentações
afirmando-se simplesmente que assim é porque “Deus quis” ou, no caso do Direito, “assim
quis o legislador”;
(iii) psicologismo, encerrando-se a cadeia de fundamentações não com
outros enunciados (a serem também falseados), mas na intuição baseada na percepção ou na
experiência perceptual.
311
Karl Popper
312
critica a solução encontrada por Fries que opta pelo psicologismo ,
por considerá-la uma volta ao indutivismo, que, por depender da experiência, incorreria em
petição de princípios. O fundamento de uma afirmação seria buscado em outra afirmação que
teria sido anteriormente por ela fundamentada. Não é por outra razão, aliás, que quem
denomine o Trilema de Fries como o Trilema do Barão de Münchhausen, personagem fictício
que teria saído de um pântano, no qual estava atolado com seu cavalo, puxando suas próprias
tranças para cima.
313
Segundo Popper, a solução para o trilema está na fundamentação da teoria em
enunciados que
decidimos aceitar. Para ele, como o processo de fundamentação realmente
não tem fim, “nada resta a fazer senão interromper o processo num ponto ou noutro e dizer
que, por ora, estamos satisfeitos”, buscando-se fundamento em enunciados “acerca de cuja
aceitação ou rejeição é de esperar que os vários investigadores se ponham de acordo.”
314
Para ele, essa solução é distinta do dogmatismo, porque “surgida a necessidade, os
enunciados podem ser facilmente submetidos a provas complementares”
315
, vale dizer, podem
311
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da
Mota. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 99 e ss.
312
Ibid., 2006, p. 101.
313
Talvez por isso se diga ser “impossível esgotar questões. Pode-se apenas substitui-las por outras.” FLEINER-
GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 15.
314
Ibid., 2006, p. 111.
315
POPPER, Karl, op. cit., 2006, p. 112.
179
ser novamente postos em discussão. É, também, distinta da regressão ao infinito, pois se pode
parar quando se chegam aos enunciados em torno dos quais consenso e em face dos quais,
provisoriamente, nos consideramos satisfeitos.
316
Idêntico problema, como já foi adiantado, coloca-se em torno do fundamento do
Direito. Se uma norma se funda em outra superior, e assim por diante, para se chegar ao
fundamento último será necessário ou um regresso ao infinito, ou o recurso ao dogmatismo. A
solução apontada por Popper pode ser também utilizada, no sentido de que o fundamento é
obtido no
consenso em torno da validade de certas premissas, o qual não é dogmático porque
pode ser sempre rompido, com a rediscussão do assunto, e não leva a uma regressão ao
infinito porque, obtido o consenso em torno de premissas fundamentais em face das quais a
comunidade se considera satisfeita, a busca por outro fundamento pode ser (provisoriamente)
interrompida. Adotá-la implica dizer, em suma, que a ordem jurídica se fundamenta no fato
de o seu conteúdo ser
aceito por aqueles cuja conduta será por ela disciplinada, aceitação que
pressupõe a elaboração da ordem jurídica, direta ou indiretamente, pelos próprios sujeitos
que, livres e iguais, serão por ela disciplinados. Pressupõe, por igual, a possibilidade de esse
conteúdo ser eventualmente rediscutido, abertura para a qual liberdade e igualdade são
indispensáveis. Tal como preconizado nos itens anteriores deste trabalho.
A solução de Popper poderia, é certo, ser também criticada. Poder-se-ia dizer que não
resolve satisfatoriamente o trilema, pois fica entre as duas primeiras soluções: contenta-se
com uma parada arbitrária na sequência de fundamentações, que, não obstante, pode ser
afastada para se retornar ao regresso
ad infinintum. Isso, contudo, não invalida a necessidade
de que tais fundamentos sejam buscados em ambiente que assegure iguais liberdades para
todos se manifestarem, pois a parada na cadeia de fundamentações não é arbitrária. É
consensual. Qualquer pessoa pode contestá-la e retomá-la, bastando que ofereça razões para
tanto.
De uma forma ou de outra, o que importa é reconhecer que a ciência não se pode
fundar em si mesma. E o curioso é que, também neste ponto, são as ciências naturais que dão
a lição à ciência jurídica, que sempre está em seu rastro. A ciência jurídica procurou ser
objetiva, neutra e experimental, para assim imitar as ciências naturais dos Séculos XVIII e
XIX, e agora, nos Séculos XX e XXI, estas mostram que o conhecimento é incerto, impreciso
e provisório. E mais: que não pode ter fundamento na própria ciência.
316
POPPER, Karl, op. cit., 2006, p. 111.
180
Muito pertinentes, a esse respeito, são as palavras de Marcelo Gleiser a propósito da
origem do universo e da incapacidade da ciência de desvendá-la. Chegou-se, cientificamente,
até muito próximo do
Big-bang, mas em torno do que teria sido ele, e sobretudo do que havia
antes dele, só existem especulações, neste ponto bastante próximas às mitológicas. Isso
porque
sempre que um físico propõe um modelo descrevendo a origem do universo, ele tem
de usar leis físicas bem conhecidas. Um modelo físico da origem do universo,
portanto, não pode lidar com a questão da origem das próprias leis da física, ou por
que esse Universo opera desse modo e não de outro.
317
A abordagem da questão da origem do Universo, para Gleiser, enfrenta limitações
devido ao número finito de respostas encontradas, a barreira que necessariamente
encontramos ao confrontar o Absoluto tanto através da ciência como através da
religião. Apenas podemos explicar a existência do Universo por intermédio de nossa
imaginação humana, inventando histórias e modelos sobre horizontes em fuga. O
Ser precede o Devir.
318
Em face disso, a redução ao infinito não é uma solução viável para o trilema de Fries.
Isso porque chegar-se-á a um ponto, na série de perguntas e exigências de demonstração, a
partir do qual não se poderá ir. uma fronteira, felizmente móvel, que tem sido afastada
cada vez mais para longe, representada pelos próprios limites da ciência e do conhecimento
humano. Tal como ocorre à criança, que pergunta o “por que” de tudo, e se encontra um
adulto que respeite sua curiosidade enche-lhe de perguntas que invariavelmente chegam à
origem do Universo, de onde nem mesmo a física contemporânea consegue passar, conforme
acima reconhecido por um de seus expositores.
A solução, nesse caso, parece ser a de aceitar as limitações humanas e, portanto, do
conhecimento humano, mas reconhecer a possibilidade do homem de continuamente superar-
se, ultrapassando esses limites. Se hoje não é possível ter-se conhecimento científico em torno
de algo, isso deve ser reconhecido, e a cadeia de fundamentações a que aludem Fries e Popper
de ser interrompida, recorrendo-se a uma fundamentação
metafísica, “inventando histórias
sobre horizontes em fuga”, como disse Gleiser
. Vale dizer: especulações e hipóteses
consensualmente aceitas, mas cuja verificação (ainda) não é possível. Mas isso não impede
que, a qualquer momento, haja um retorno à cadeia de fundamentações, para que se um
317
GLEISER, Marcelo. A dança do universo dos mitos da criação ao big-bang. 2.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, p. 386.
318
Ibid., 1997, p. 394.
181
pouco mais longe ou para que se mude o caminho a seguir.
Dessa forma, sem dogmatismos, pode-se falar em uma crença na possibilidade de
progressão no conhecimento ou, nas palavras de Marcelo Gleiser, uma “profunda fé na
capacidade da razão humana de poder entender o mundo à sua volta”
319
. O cientista, por
outras palavras, embora não chegue ao fundamento último das coisas, constrói hipóteses a
respeito dele, do qual
acredita poder chegar cada vez mais perto. Por serem plausíveis, tais
hipóteses são
aceitas pelos seus pares que, não obstante, têm a liberdade para questioná-las.
Cogita-se, aliás, na inversão do
onus probandi
320
como uma alternativa para resolver o
trilema: em vez de demonstrar o acerto da proposição última a que se chegou, a pessoa que a
contesta, exigindo que também ela seja fundamentada, é que deve apresentar razões
convincentes para tanto. Seja como for, o relevante é que a possibilidade esteja sempre em
aberto, o que só se faz possível em ambiente livre e democrático.
Não se está aqui, naturalmente, a pretender um paralelismo absoluto entre a
fundamentação última dos enunciados científicos e a fundamentação de uma ordem jurídica
enquanto objeto do conhecimento. Mas não se pode negar que as conclusões obtidas no
exame do primeiro desses problemas fornecem lições importantes para o segundo.
321
Se a
física reconhece não poder fundar-se em si própria para explicar sua origem e sua razão de
ser, é incompreensível que no Direito se continue buscando explicação para a ordem jurídica
na própria ordem jurídica, ou em uma “norma hipotética fundamental”. Tal como na física,
não se podem usar leis que existem para explicar por que existem, por que não são distintas
do que são, e de onde vêm. Como se trata de criação humana destinada a regrar a vida em
sociedade, o Direito de fundar-se na aceitação
322
e na legitimidade, que serão obtidas
319
Ibid., 1997, p. 19.
320
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Legitimidade pragmática dos sistemas normativos. In: MERLE, Jean-
Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 288-297, p. 290.
321
Rawls, a propósito, credita a existência de padrões axiológicos distintos, a serem conciliados através do
consenso, aos “limites naturais do conhecimento humano” (GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça
depois de Rawls
um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 228), da mesma forma como os físicos reconhecem nos limites do conhecimento humano a
necessidade de recorrerem a especulações consensualmente aceitas para explicar o que ainda não conseguem
verificar experimentalmente.
322
Essa aceitação, é conveniente destacar, não decorre do fato de o povo haver expressamente participado na
elaboração de normas jurídicas, por exemplo, assentindo com o conteúdo destas. Embora isso seja desejável, no
maior grau possível, sabe-se que não é o que acontece. A aceitação, que caracteriza o regime democrático,
decorre do fato de o povo ser dotado da faculdade de
contestar as decisões tomadas em seu nome, provocando
sua alteração. Philip Pettit, a propósito, destaca que a não-arbitrariedade das decisões tomadas pelo poder
público (tanto no plano legislativo e executivo como no judicial) requer “menos consentimento e mais
contestabilidade.” PETTIT, Philip. Democracia e contestabilidade. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA,
Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 370-384, p. 371.
182
quanto mais justas forem as suas disposições, entendida a justiça como a adequação do
conteúdo das normas jurídicas àquele esperado ou considerado correto pelas pessoas por elas
disciplinadas. Essa adequação, não custa repetir, pode, em tese, ser obtida de várias maneiras,
porém a mais adequada delas é através do respeito à liberdade e à igualdade, em um regime
democrático.
5.4.6 Valores ocidentais como imposição às demais culturas?
Em face da proteção à liberdade, à igualdade e à democracia, criam-se condições para
que se construa uma ordem jurídica que corresponda, na maior medida possível, àquilo que a
sociedade por ela disciplinada deseja ou espera que ela seja.
Se o que se conhece por “direito natural”, ao longo de toda a história, é um direito
ideal, ou possível, usado como modelo de perfeição comparativo para que se avaliem os
méritos ou deméritos do direito posto, e se esse direito ideal, conquanto sempre possa ser
imaginado e invocado por uma criatura humana, em qualquer cultura, modifica-se no tempo e
no espaço, a melhor forma de fazer com que o direito positivo se aproxime dele é fazer com
que cada indivíduo tenha a oportunidade de interferir, direta ou indiretamente, na elaboração e
na determinação (tanto pela via legislativa como pela via interpretativa) do conteúdo das
normas jurídicas, a fim de que estas prescrevam o que se considera que elas deveriam
prescrever.
Registre-se que esses requisitos mínimos, de respeito à liberdade, à igualdade e à
democracia, podem servir de base para a construção de ordens jurídicas bastante distintas, em
sociedades que agasalham valores, padrões culturais e étnicos diferentes. Permitirão, de
qualquer sorte, que as suas prescrições jurídicas adotem um padrão de justiça que, se não é
universal e eterno, pelo menos não é inexistente ou correspondente apenas ao que vier a ser
imposto coativamente.
Poder-se-ia dizer, em oposição, que a própria necessidade de respeito à liberdade, à
igualdade e à democracia seria decorrente da adoção de “padrões ocidentais”, e que a
peculiaridade de outras culturas residiria precisamente na inexistência de liberdade, igualdade
e democracia.
Antes de responder a essa crítica, deve-se reconhecer que o fato de existirem culturas
183
distintas, todas dotadas de aspectos positivos e negativos, não significa que umas não possam
aprender com as outras. Não significa que a observação de uma não dê aos membros de outra
razões para alterar algumas de suas práticas, ou de, por igual, manter até com maior
intensidade outras. E, tampouco, conduz à conclusão de que tudo o que se venha a fazer, sob
o rótulo de “prática tradicional”, deva ser preservado. Como destaca Carbonell,
del hecho de que se reconozcan los beneficios de la existencia de un conjunto de
culturas distintas, no se puede derivar que todas esas culturas merezcan el mismo
respecto y, por tanto, no se les deben reconocer a todas derechos diferenciados
solamente por ser distintas de las culturas mayoritarias, sin tomar en cuenta la
compatibilidad de sus prácticas y costumbres con – por lo menos – postulados
básicos de la democracia y la dignidad de todas las personas.
323
Em suma, as várias culturas devem aprender umas com as outras, o que significa que a
cultura genericamente chamada de ocidental,
324
embora tenha defeitos a serem reconhecidos e
corrigidos, defeitos que outras culturas eventualmente não têm, pode por igual ensinar muitas
coisas a essas outras culturas, e não com elas aprender. Os ocidentais, se não podem se
sobrepor autoritariamente sobre outras culturas, não têm, por outro lado, uma cultura da qual
se devam envergonhar.
325
Como se isso não bastasse, a universalização dos direitos humanos
pode ser invocada também
contra a intervenção de uma cultura sobre outra,
326
dentro do que
Boaventura de Sousa Santos denomina globalização
contra-hegemônica.
327
Não se está defendendo, com a preservação da liberdade inerente a toda criatura
humana, de qualquer cultura de todos os membros de uma sociedade, indistintamente, que
estes membros ou esta sociedade adote este ou aquele modo de vida. Não se valoriza “um tipo
específico de vida, e sim a capacidade de escolher entre tipos de vida que as pessoas têm
323
CARBONELL, Miguel. Constitucionalismo y multiculturalismo. Disponível em:
<http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derycul/cont/13/ens/ens3.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2006, p.
10.
324
Não existe uma cultura, na Europa e na América, que possa ser chamada de “ocidental”, mas uma diversidade
de culturas, mesmo dentro de um mesmo país. Além disso, a cultura européia, e a americana, são repletas de
origens e influências árabes, egípcias, chinesas etc. Confira-se, a propósito: SANTOS, Boaventura de Sousa.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela;
PIOVESAN, Flávia (Coord.).
Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.
3-46, p. 29; SEN, Amartya.
Identity and violence. New York: W.W. Norton & Company, 2006, passim.
325
Nós, “no ocidente, não temos razão para nos envergonharmos em relação ao Leste. Mas não afirmo que nós
no Ocidente não devamos criticar as nossas instituições pelo contrário. Embora o nosso mundo seja o melhor
que houve até o momento muitas coisas nele estão erradas.” (POPPER, Karl.
A vida é aprendizagem
Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 125). No
mesmo sentido: COMTE-SPONVILLE, André.
Valor e verdade estudos cínicos. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 348.
326
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 206.
327
SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit., 2008. p. 3-46, p. 12 e ss.
184
razões para valorizar.”
328
E, pode-se acrescentar: prestigia-se a possibilidade de as pessoas
levarem o tipo de vida que, por qualquer razão, valorizam, escolhendo-o livremente.
Isso porque, se é difícil apontar um padrão de vida correto e digno, que decorra
necessariamente da natureza humana, é certamente menos complexo apontar quais aqueles
que são indignos, precisamente por privarem as pessoas dessa possibilidade de escolha.
Podemos não saber – diz Álvaro de Vita -
o que é uma vida boa de ser vivida por todos os seres humanos em toda parte, mas
temos uma idéia muito mais nítida do que degrada ou torna a vida humana ruim em
toda parte: a pobreza extrema, o trabalho escravo, o trabalho infantil, a mutilação
genital feminina, a proibição imposta a muitas mulheres no mundo – de freqüentar
escola, de trabalhar e ter acesso a cuidados médicos, a prisão, tortura e execução de
dissidentes e opositores políticos, as práticas de 'limpeza étnica' e estupro em massa
de mulheres em conflitos étnicos (uma lista completa seria bem mais longa).
329
Em sentido semelhante, Arthur Kaufmann defende a aplicação da epistemologia de
Karl Popper, relativa ao
falseamento de ideias, para a investigação em torno da justiça, pois
seria mais fácil dizer o que
não é justo do que dizer o que é justo. Em suas palavras, é
indubitavelmente certo que a falsificação desempenha um extraordinário papel na
ciência, muito especialmente no direito. Não podemos dizer em termos absolutos o
que seja 'direito justo', ou os 'bons costumes', podemos apenas dizer o que é
claramente injusto ou claramente contrário aos bons costumes.
330
Seja como for, diante de tais ideias, parece claro que, para que se possa afirmar a clara
injustiça de algo, pondo o tema em discussão, é preciso que as pessoas sejam todas livres para
nesse sentido se manifestar, o que pressupõe a existência das premissas (liberdade, igualdade
e democracia) apontadas neste trabalho.
Note-se que não é preciso, para a adequada fundamentação da ordem jurídica de uma
comunidade dotada de cultura diferente da genericamente classificada como ocidental, que a
liberdade, a igualdade e a democracia sejam asseguradas, por exemplo, nos moldes em que o
328
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 100.
329
Ibid., 2008, p. 33. Em termos semelhantes, Steven Lukes observa que nos concentramos em ações
universalmente erradas, e não naquelas universalmente corretas. Essa última preocupação de apontar condutas
moralmente corretas, a serem seguidas - seria 'moralista' e não 'moral'; nós reprovamos a tortura e o estupro, por
exemplo, mas hesitamos em prescrever como as pessoas devem agir e viver suas vidas. No original:
we focus
on actions that are universally wrong rather than those that are universally right
. The latter concern seems
moralistic rather than moral; we proscribe, say, torture and rape but we are reluctant to prescribe how people
ought to act and live their lives
.” LUKES, Steven. Moral relativism. New York:Picador, 2008, p. 154.
330
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 430.
185
são na França ou na Alemanha. O importante é que os membros do grupo tenham a
oportunidade, todos eles, de dizer como consideram que o grupo deve se organizar, de
manifestar a discordância sobre aspectos da maneira atual em que este se organiza e se
disciplina, e tentar convencer os demais, pacificamente, de suas ideias.
Aliás, é preciso que se diga que as pessoas são identificadas não por
um aspecto ou
elemento, mas por vários. Não se pode dizer, portanto, que existe um cidadão “ocidental” e
outro “oriental”, simplesmente.
The same person can be – escreve Amartya Sen -
without any contradiction, an American citizen, of Caribbean origin, with African
ancestry, a Christian, a liberal, a woman, a vegetarian, a long-distance runner, a
historian, a schoolteacher, a novelist, a feminist, a heterosexual, a believer in gay
and lesbian rights, a theater lover, an environmental activist, a tennis fan, a jazz
musician, an someone who is deeply committed to the view that there are intelligent
beings in outer space with whom it is urgently to talk (preferably in English). Each
of these collectives, to all of which this person simultaneously belongs, givers her a
particular identity.
331
É o sujeito quem escolhe, com liberdade, o peso que pretende dar a cada um desses
elementos de identidade, peso que inclusive pode variar de acordo com as circunstâncias. E, o
mais importante, cada um desses elementos de identidade (
v.g., religião, convicções
ideológicas, time pelo qual se torce, orientação sexual, local de nascimento, profissão etc.)
aproxima as pessoas que o têm em comum, mas afasta aquelas que por ele se diferenciam.
332
Ao reduzir a identidade das pessoas a apenas um elemento, dizendo-as simplesmente
“ocidentais” ou “orientais”, isso as coloca em uma falsa posição de irremediável conflito,
reduzindo-lhes a zero as possibilidades de empatia. Nesse contexto, além de mais compatível
com a pluralidade de fatores que formam a individualidade de alguém, é mais propício à
obtenção da paz tratar as pessoas tendo em vista essa diversidade. Tais fatores se podem
compensar mutuamente, e um sujeito que teria ódio de outro por terem religiões diferentes
pode ter esse ódio neutralizado ou compensado pelo fato de ambos gostarem de determinado
esporte, ou serem diabéticos, portadores de certa deficiência sensocial ou ardorosos
defensores do meio-ambiente, vale dizer, por serem, conquanto integrantes de grupos
religiosos diferentes, colegas em outros grupos identitários.
É por isso que se diz simplista e equivocado falar-se apenas em um “choque de
culturas”, colocando-se de um lado a “ocidental” e, de outro, a “oriental”. Dentro de um
331
SEN, Amartya. Identity and violence. New York: W.W. Norton & Company, 2006, p. xii.
332
Como observa Amartya Sen, a sense of identity can firmly exclude many people even as it warmly embraces
others
.” Ibid., 2006, p. 2.
186
mesmo país “ocidental” existem as mais diversas culturas e valores, e os fatores de identidade
que, como dito, aproximam ou distanciam as pessoas são os mais diversos. Isso mostra, ainda,
o grande equívoco de se dizer que liberdade, igualdade e democracia são próprios do
ocidente
333
e estranhos à cultura oriental,
334
seja ela classificada ou enquadrada como
muçulmana, indu ou simplesmente asiática. O fato de a filosofia oriental supostamente
preconizar a necessidade de respeito à coletividade e não reconhecer o indivíduo como uma
unidade isolada dotada de direitos oponíveis ao grupo não significa que esse grupo possa, na
defesa dos interesses de uns poucos indivíduos que o governam, suprimir a liberdade dos
demais, tratar parte deles de forma desigual etc. Do mesmo modo como acontece com a
filosofia ocidental, a oriental tanto é formada de pensadores que defendem pensamento
autoritário, como daqueles que preconizam o respeito aos sujeitos e a necessidade de o
governante respeitar certos limites.
335
Amartya Sen, a propósito disso, observa que, na
verdade,
[...] a interpretação do confucionismo que hoje é usual entre os defensores do
autoritarismo dos valores asiáticos não faz justiça à variedade existente nos próprios
ensinamentos confucianos. Confúcio não recomendou a lealdade cega ao Estado.
Quando Zilu pergunta: 'Como se deve servir a um príncipe.', Confúcio responde
'Diga-lhe a verdade, mesmo se isso o ofender.' Os encarregados da censura em
Cingapura ou Pequim podem ter opinião muito diferente. Confúcio não é avesso à
cautela e ao tato práticos, mas não abre mão de recomendar a oposição a um governo
ruim. 'Quando o [bom] caminho prevalece no Estado, fale com ousadia e aja com
ousadia. Quando o Estado perde o rumo, aja com ousadia e fale com brandura.
336
Tanto é assim que, entre os próprios asiáticos, quem discorde fortemente da ideia
de que sua cultura seria naturalmente propensa ao autoritarismo. Entre líderes políticos,
podem ser apontados Kim Dae Jung, ex-presidente da Coreia do Sul, e Lee Teng-Hui, ex-
333
Amartya Sen pondera que a “valorização da liberdade não está limitada a uma cultura, e as tradições
ocidentais não são as únicas que nos preparam para uma abordagem do pensamento social baseada na liberdade.”
SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 275.
334
Para um relato da defesa de que os “valores asiáticos” seriam incompatíveis com os direitos humanos,
confira-se: LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto. Justiça constitucional e democracia: perspectivas para o
papel do poder judiciário.
Revista da Procuradoria Geral da República, São Paulo, v. 8, p. 81-101, p. 82,
1996.
335
Confúcio não foi mais autoritário do que Platão, e teve, também ele, discípulos defensores de pensamento
não-autoritário. Confira-se, a propósito: TRUYOL Y SERRA, Antonio.
Historia de la filosofía del derecho y
del Estado -
1. de los orígenes a la baja edad media. 14.ed. Madrid: Alianza, 2004, p. 65-66. Aliás, os germes da
tripartição de poderes podem ser encontrados também entre os teóricos do Estado na China antiga, como registra
FLEINER-GERSTER, Thomas.
Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 476. Sobre a natureza não autoritária de muitas das ideias confucionistas, confira-se:
COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 594, quando esse autor
ressalta a importância dada por Confúcio à necessária lealdade que o governante deve ter para com o povo, a fim
de que este nele confie e lhe
legitimidade.
336
SEN, Amartya, op. cit., 2000, p. 269. No mesmo sentido: LUKES, Steven. Moral relativism. New York:
Picador, 2008, p. 111.
187
presidente de Taiwan,
both countries more strongly influenced by Confucianism than
Singapore and both scoring relatively well, despite their authoritarian pasts, in regard both
to democratic institutions and respect for human rights
.”
337
E, no plano acadêmico, muitos
estudiosos (asiáticos) têm discutido maneiras de justificar a dissidência legítima, a
responsabilização do poder público e o reconhecimento dos direitos humanos em termos
confucianos. Um deles, aponta Steven Lukes,
is Joseph Chan, who has sought to elaborate a Confucian perspective on human
rights on the assumption that different cultures can ‘justify human rights in their
own terms and perspectives’, and perhaps an ‘overlapping consensus’ on the norms
of human rights may ‘emerge from self-searching exercises as well as common
dialogue.’ (Joseph Chan, ‘A Confucian perspective on human rights for
contemporary china’, in Bauer and Bell, eds., East Asian challenge, p. 212)
338
Por outro lado, a cultura ocidental não foi, no passado,
339
nem é, ainda hoje,
340
isenta
de exemplos de autoritarismo, intolerância religiosa,
341
ditaduras,
342
arbitrariedades e
violações à dignidade da pessoa humana.
343
Mas não é por isso que se defende que ela
continue assim, com esses defeitos. Aliás, no Brasil mesmo, não faz muito tempo um ilustre
constitucionalista defendia ser “impossível a democracia entendida como governo pelo povo”,
337
Tradução livre: “ambos países mais fortemente influenciados pelo confucianismo que Singapura e ambos com
pontuação relativamente boa, apesar do seu passado autoritário, tanto em relação às instituições democráticas
como no respeito aos direitos humanos.” LUKES, Steven.
Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 111.
338
Tradução livre: “é Joseph Chan, que tem procurado elaborar uma perspectiva confuciana dos direitos
humanos sob a premissa de que diferentes culturas podem 'justificar os direitos humanos nos seus próprios
termos e perspectivas', e talvez um 'consenso sobreposto' sobre as normas de direitos humanos possa emergir de
um exercício de procura interior bem como de um diálogo comum'.” (
Ibid., 2008, p. 112).
339
Platão e Hegel, só para citar dois exemplos, um antigo e outro moderno, podem ser apontados como
pensadores “ocidentais” que defenderam ostensivamente o autoritarismo, sendo por isso arrolados por Karl
Popper como inimigos da sociedade aberta. POPPER, Karl.
A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de
Milton Amado. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1974. v. 1 e 2,
passim.
340
O governo Bush, por exemplo, como forma de supostamente combater ameaças terroristas, passou a punir os
“crimes de intenção”, inventados pela Santa Inquisição na Idade Média, chegando a manter presas e sob tortura
pessoas sem que sequer exista contra elas qualquer acusação. Para um exame dessas práticas, confira-se:
COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 423. E isso, destaca Martônio
Mont´Alverne Barreto Lima, no âmbito de “um renascimento do discurso irracionalista e redentorista”,
representado por um fanatismo cristão que “ameaça a secularização republicana que se imaginava solidificada
desde a Revolução Francesa.” LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto. Terrorismo: o desafio da construção de
uma democracia universal. In: MALUSCHKE, Günter; BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F; HERMANNS,
Klaus (Coord.).
Direitos humanos e violência desafios da ciência e da prática. Fortaleza: Konrad Adenauer,
2004. p. 51-61, p. 53.
341
A religião católica, por exemplo, não foi, ao longo da história, mais tolerante do que o Islã. Em todas as
culturas existem religiosos intolerantes, e também pessoas que se insurgem contra essa intolerância. Confira-se, a
propósito, SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 272-281.
342
Francisco Campos chegou a defender, no Brasil, que hoje em dia se vive em um mundo de “massas”, que não
resolvem tensões políticas em “termos intelectuais nem em polêmica das idéias”, pois “o regime político das
massas é o da ditadura.” CAMPOS, Francisco.
O Estado nacional. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 23.
343
SUPIOT, Alain. Homo juridicus ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 271.
188
devendo o país ser governado por suas elites, que teriam “a responsabilidade mais alta para
com a comunidade.” Ainda no mesmo texto, Manuel Gonçalves Ferreira Filho, depois de
comparar as eleições às “bacanais romanas”, defende a censura, a ser feita pelo Estado,
“encarnação do bem comum”, devendo o Governo ser “rigoroso com a qualidade do que se
difunde entre as camadas imaturas da população.” Quanto ao Ato Institucional n.º 5, o
apontado constitucionalista considera que este “reiterou o compromisso democrático da
revolução.”
344
Mas nem por isso, por serem tais pensamentos publicados e defendidos pelo
Catedrático de Direito Constitucional da USP, uma das mais prestigiadas Universidades do
País,
345
se poderá afirmar que o Brasil tem uma “tradição ditatorial” ou que isso faz “parte de
nossa cultura”. Aliás, diversos aspectos “tradicionais” da cultura ocidental, a exemplo da
discriminação às mulheres, foram alterados, por serem considerados equivocados.
346
O
mesmo pode ser dito das demais culturas, inclusive asiáticas, que podem ser preservadas em
suas particularidades sem que seus membros sejam alijados das discussões em torno de quais
aspectos devem ser mantidos e quais devem ser abolidos.
347
Esse, aliás, é o ponto essencial da controvérsia: quem afirma que os “valores asiáticos”
são incompatíveis com os direitos humanos ou com o respeito à liberdade dos indivíduos que
integram a sociedade, são os líderes políticos ou religiosos, os quais não sufocam
dissidentes (também orientais) que pensam de modo diferente, como se beneficiam dos
resultados de tal “pensamento”, pois dele obtém poderes hipertrofiados.
348
Sem um mínimo
de liberdade e de igualdade, não é possível saber se esse realmente é o pensamento das
próprias sociedades orientais, que não têm nos líderes do momento a única forma de
344
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 59-61.
345
Aliás, não ele. São conhecidos os inúmeros juristas ocidentais, no Brasil e no exterior, defensores do
arbítrio. Além de exemplos óbvios como Francisco Campos e Carl Schmitt, pode ser citada, ainda, a defesa que
Goffredo Telles Júnior faz da “Revolução de Março”, que implantou a ditadura militar no Brasil a partir de 1964,
observando que “a cada eleição, o Brasil piora.” (TELLES JÚNIOR, Goffredo.
A democracia e o brasil uma
doutrina para a revolução de março. São Paulo: RT, 1965, p. 17). Para um relato da atuação de alguns dos
juristas defensores do arbítrio, como Alfredo Buzaid e Francisco Campos, e dos argumentos que para tanto
utilizavam, confira-se: GASPARI, Elio.
A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
89 e 168.
346
SHAPIRO, Ian. Fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 229.
347
Não observa Álvaro de Vita, “nenhuma razão por que interpretar a capacidade de levar a vida que se
julga digna de ser vivida de uma forma ocidental-individualista.” (VITA, Álvaro de.
O liberalismo igualitário:
sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 36). O fato de se defender o
direito de uma pessoa, qualquer que seja, esteja onde estiver, a levar a vida que ela própria decide digna de ser
vivida nada tem de “ocidental”, mas depende de um mínimo respeito à liberdade, à igualdade e à democracia.
348
Além disso, esse tipo de afirmação, de que o “ocidente” seria de uma maneira e ooriente” de outra “envolves
accepting an implicit presumption that people who happen do be Muslim by religion would basically be similar
in others ways as well
.” (SEN, Amartya. Identity and violence. New York: W.W. Norton & Company, 2006, p.
42). O mesmo pode ser dito, com a substituição de uma religião por outra, quando estão em discussão as
sociedades orientais de influência confucionista, de religião não-necessariamente islâmica.
189
expressão de sua cultura. Sobre isso, Amartya Sen adverte que a concepção
de que os valores asiáticos o caracteristicamente autoritários tende a provir, na
Ásia, quase sempre de porta-vozes dos detentores do poder (às vezes suplementados
– e reforçados – por pronunciamentos ocidentais conclamando as pessoas a defender
o que é visto como especificamente 'valores liberais ocidentais'). Mas ministros do
Exterior, altos funcionários do governo ou líderes religiosos não têm o monopólio da
interpretação da cultura e dos valores locais. É importante ouvir as vozes dissidentes
em cada sociedade. Aung San Suu Kyi não tem menos legitimidade na verdade,
claramente tem muito mais – para interpretar o que os birmaneses desejam do que os
governantes militares de Mianmá, cujos candidatos ela venceu em eleições abertas
antes de ser encarcerada pela junta militar derrotada.
Reconhecer a diversidade encontrada em diferentes culturas é muito importante no
mundo contemporâneo. Nossa compreensão da presença da diversidade tende a ser
um tanto prejudicada por um constante bombardeio de generalizações
excessivamente simplificadas sobre a 'civilização ocidental', os 'valores asiáticos', as
'culturas africanas' etc. Muitas dessas interpretações da história e da civilização não
são intelectualmente superficiais, como também agravam as tendências divisoras
do mundo em que vivemos. O fato é que, em qualquer cultura, as pessoas parecem
gostar de discutir umas com as outras e muitas vezes fazem isso mesmo - , assim
que surge uma oportunidade. A presença de dissidentes dificulta a obtenção de uma
visão inequívoca da 'verdadeira natureza' dos valores locais. Na verdade, em toda
sociedade tende a haver dissidentes muitas vezes, numerosíssimos -, e eles com
freqüência dispõem-se a correr grandes riscos para a sua segurança. De fato, se os
dissidentes não estivessem o tenazmente presentes, os regimes autoritários não
teriam precisado tomar medidas práticas tão repressivas para suplementar suas
crenças intolerantes. A presença de dissidentes
tenta os grupos dirigentes
autoritários a adotar uma concepção repressiva da cultura local, ao mesmo tempo,
essa própria presença
solapa a base intelectual da interpretação unívoca das crenças
locais como um pensamento homogêneo.
A discussão ocidental sobre as sociedades não-ocidentais com freqüência acata
excessivamente a autoridade – o governador, o ministro, a junta militar, o líder
religioso. Essa 'propensão ao autoritarismo' é corroborada pelo fato de que os
próprios países ocidentais são muitas vezes representados, em reuniões
internacionais, por altos funcionários e porta-vozes do governo que, por sua vez,
buscam a visão daqueles que ocupam cargos correspondentes aos seus nos outros
países. Uma abordagem adequada do desenvolvimento não pode realmente
concentrar-se tanto apenas nos detentores do poder. É preciso mais abrangência, e a
necessidade de participação popular não é uma bobagem farisaica. A idéia de
desenvolvimento não pode, com efeito, ser dissociada dessa participação.
349
É preciso, portanto, que os próprios membros das sociedades culturalmente diversas
349
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 283. Daí dizer-se que “conceder direitos culturais a determinados grupos na
prática significa conceder uma 'carta branca' para que seus chefes, líderes, elites ou militantes mais aguerridos
obriguem os membros desses grupos a se conformar ao figurino da identidade coletiva reconhecida.” (VITA,
Álvaro de.
O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes,
2008, p. 176). Isso faz com que o relativismo cultural corra “o risco de identificar a justiça com os significados
sociais dos grupos dominantes e, ao fazê-lo, impede que a linguagem da justiça possa ser empregada para criticar
as práticas sociais e instituições vigentes, incluindo aquelas que não temos como não ver como formas patentes
de injustiça.” (
Ibid., p. 210). Em sentido semelhante, a destacar que os grupos não têm aspirações, mas sim os
seus membros, sobretudo os líderes: SHAPIRO, Ian.
Fundamentos morais da política. Tradução de Fernando
Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 233.
190
e não apenas uns poucos líderes
350
– decidam quais aspectos de sua cultura desejam preservar,
e quais consideram saudável abolir.
351
“Havendo indícios de conflito real entre a preservação
da tradição e as vantagens da modernidade” - destaca Amartya Sen -
é necessário uma resolução participativa, e não uma rejeição unilateral da
modernidade em favor da tradição imposta por dirigentes políticos, autoridades
religiosas ou admiradores antropológicos do legado do passado. Não a questão
não é fechada, como também tem de ser amplamente aberta às pessoas da sociedade,
para que elas a abordem e decidam em conjunto. As tentativas de tolher a liberdade
participativa com o pretexto de defender valores tradicionais (como o
fundamentalismo religioso, o costume político ou os chamados valores asiáticos)
simplesmente passam ao largo da questão da legitimidade e da necessidade de as
pessoas afetadas participarem da decisão do que elas desejam e do que elas estão
certas ao aceitar.
352
Não haverá, nesse caso, qualquer interferência externa, de culturas “ocidentais”
dizendo-lhes o que é correto e o que não é. São as pessoas que nascem e crescem no âmbito
de uma determinada cultura que têm ideias diferentes sobre como aprimorá-la, ideias que são
indevidamente sufocadas por líderes que se arvoram na condição de defensores dos direitos
daquele grupo, às vezes contra os interesses de seus membros e em favor dos seus próprios. A
propósito de pretensos “direitos do grupo”, invocáveis inclusive contra seus integrantes,
Jürgen Habermas, com propriedade, registra que
a sobrevivência de ‘grupos de identidade’ e a continuidade de seu pano de fundo
cultural não
podem ser garantidas mediante direitos coletivos. Uma tradição tem de
estar em condições de desenvolver seu potencial cognitivo de tal forma que os
destinatários possam adquirir a convicção de que compensa dar continuidade a essa
tradição em particular. E as condições hermenêuticas exigidas para o
prosseguimento de tradições só podem ser salvaguardadas por meio de direitos
individuais.
353
350
“Todos os tiranos falam de interesses superiores da sociedade ante os quais não contam os indivíduos. [...]
Interesses superiores da sociedade são interesses comuns aos indivíduos: comer, vestir, alojar-se, ter
tranquilidade, segurança contra agressões. No mais, a personalidade, o espírito, a locomoção, que pertencem
ao indivíduo. Quando os dirigentes invadem esse terreno, não é o bem público que os inspira e empurra: é a
ânsia, a ebriez do poder.” MIRANDA, Pontes de.
Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos.
Campinas: Bookseller, 2001, p. 73.
351
“Frequentemente” - observa Will Kymlicka - “são as elites conservadoras de dentro do grupo que demandam
a autoridade para julgar o que é 'autêntico' ou 'tradicional', e elas agem desse modo precisamente para suprimir
demandas por mudanças formuladas por reformadores de dentro do grupo. Práticas que historicamente podem ter
sido variáveis, evolutivas, contestadas e opcionais são declaradas pelas elites conservadoras como 'sagradas',
uma questão de 'obrigação' religiosa ou cultural, e essenciais para a pertença ao grupo.” KYMLICKA, Will.
Multiculturalismo liberal e direitos humanos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia
(Coord.).
Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 217-246, p. 234.
352
SEN, Amartya, op. cit., 2000, p. 48. No mesmo sentido: VITA, Álvaro de, op. cit., 2008, p. 181;
GARGARELLA, Roberto.
As teorias da justiça depois de Rawls um breve manual de filosofia política.
Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 161.
353
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 337.
191
Do mesmo modo como a “cultura” do grupo formou-se naturalmente, ela deve
também evoluir, alterar-se e modificar-se com a mesma naturalidade. Desde o surgimento da
humanidade que o contato de grupos sociais distintos tem provocado a mútua influência da
cultura de uns sobre a de outros, sendo de se evitar, tão somente, a dominação e a imposição
cultural, mas não promover a imobilidade de uma cultura, contra a vontade dos próprios
indivíduos que formam o grupo que a adota. Defender o contrário observa Will Kymlicka
significa subentender
que algo de anormal e de lamentável na evolução cultural e na influência
intercultural, quando, de fato, tais mudanças e influência são normais, inevitáveis e
essenciais para o processo de desenvolvimento humano. É a hibridez cultural, não a
pureza cultural, que é o estado normal das relações humanas, e fantasias de pureza
cultural somente podem ser mantidas cortando-se artificialmente a interação dos
grupos com o resto do mundo, e instalando-se o medo xenofóbico dos outros.
354
Convém insistir, os grupos não são homogêneos,
355
sendo provável que as opiniões em
torno da correção de suas práticas e tradições já estivessem divididas antes de qualquer
influência ou manifestação do suposto “imperialismo cultural” subjacente no discurso dos
defensores dos direitos humanos.
356
que, para que as pessoas que fazem parte do grupo e
que desejam aprimorá-lo se possam manifestar e decidir como sua própria cultura será
conduzida, é necessário um mínimo respeito à liberdade de todas elas,
357
inclusive de
participação, por quaisquer formas, nas decisões relativas aos assuntos de interesse coletivo.
Esse é o multiculturalismo que se deve buscar, com o foco na liberdade de pensamento e de
tomada de decisões. Deve-se celebrar a diversidade cultural, mas os diversos elementos
culturais a serem aceitos e preservados devem ser entendidos como aquilo que foi livremente
354
KYMLICKA, Will, op. cit., 2008. p. 217-246, p. 234.
355
E sempre existem pessoas que pensam de forma diversa, sendo preciso afastar o mito de que as outras
culturas são sempre monoliticamente uniformes e sem dissidências. Steven Lukes, a propósito, registra que em
todo grupo
there will always be, whether openly or secretly, those who strongly an fully identify, but there will
also always be, openly or secretly, uncertain identifiers, ambivalent identifiers, intermittent identifiers, quasi-
identifiers, semi-identifiers, cross-identifiers, non identifiers, ex-identifiers, and anti-identifiers
.” LUKES,
Steven.
Moral relativism. New York: Picador, 2008, p. 120 em uma tradução livre: “sempre haverá, seja
aberta ou secretamente, aqueles que forte e inteiramente se identificam [com os costumes predominantes e que
caracterizam o grupo], mas sempre haverá também, seja aberta ou secretamente, os que se identificam de forma
incerta, ambivalente, intermitente, os que quase se identificam, os que se semi-identificam, ou se identificam de
forma cruzada, os que não se identificam, os que são ex-identificados e os que são contrários aos que se
identificam.”
356
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 207.
357
Inclusive, evidentemente, das mulheres. Afinal, “como a participação requer conhecimentos e um grau de
instrução básico, negar a oportunidade da educação escolar a qualquer grupo por exemplo, às meninas é
imediatamente contrário às condições fundamentais da liberdade participativa.” SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 48.
192
escolhido pelas pessoas envolvidas, pessoas que conheciam as alternativas e em face delas
tomaram sua decisão.
358
Por outras palavras, liberdade, igualdade e democracia.
Martônio Mont´Alverne Barreto Lima observa, com propriedade, que o principal
problema, pelo menos no que diz respeito a muitos dos países do oriente, reside na pobreza.
Tanto no ocidente como no oriente – são suas palavras - “as dificuldades em construir
democracias em sociedades pobres e miseráveis persistem de forma mais agudizada em
virtude do perverso processo de globalização da economia”, aspectos que são transformados
“de forma simplista em elementos propositalmente omitidos, na intenção deliberada de se
dividir a humanidade em partes inconciliáveis, o que legitima a ação bélica de uns contra os
outros.”
359
Nesse contexto, a preservação e a promoção de liberdade, igualdade e democracia,
além de serem o instrumento adequado para a redução das apontadas e geralmente omitidas
dificuldades, permitirá ainda que cada cultura, livremente, a sua contribuição no debate
sobre como implementar as exigências mínimas necessárias à preservação da dignidade da
pessoa humana.
360
As culturas se devem fecundar mutuamente, e não suplantar umas às
outras, na feliz expressão de Pontes de Miranda.
361
Será, contudo, a contribuição dos
membros de uma determinada cultura, e não apenas a de líderes que invocam costumes não
necessariamente partilhados por todos para suprimir dissidentes e dominar os membros do
grupo, sufocando qualquer pensamento em contrário.
Quanto ao aspecto religioso, motivo da maior parte das dificuldades de se implementar
o respeito à liberdade (notadamente
362
de expressão e de culto) e à igualdade (sobretudo em
relação às mulheres), vale insistir que também na cultura ocidental se verificou intolerância
358
SEN, Amartya. Identity and violence. New York: W.W. Norton & Company, 2006, p. 150-152.
359
LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto. Terrorismo: o desafio da construção de uma democracia universal.
In: MALUSCHKE, Günter; BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F.; HERMANNS, Klaus (Coord.).
Direitos
humanos e violência
– desafios da ciência e da prática. Fortaleza: Konrad Adenauer, 2004. p. 51-61, p. 55.
360
Alain Supiot registra que os direitos humanos não são patrimônio da civilização ocidental, e, por isso mesmo,
devem estar abertos “às contribuições de todas as civilizações.” SUPIOT, Alain.
Homo juridicus – ensaio sobre
a função antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007, p. 256.
361
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 73.
362
Notadamente, mas não apenas, de expressão e de culto. Todas as demais liberdades estão com ela
relacionadas, pois “uma das mais perversas formas de concentração abusiva do poder político é a que ocorre
quando ele se reveste também das prerrogativas de autoridade religiosa. não nenhum freio ou limite
institucional: os governantes não somente monopolizam legalmente a força física, eles ainda dispõem da ameaça
de sanções sobrenaturais contra todos os cidadãos. Não apenas dominação dos corpos, mas também das
almas.” COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 556.
193
religiosa e, por conta dela, desrespeito à liberdade e à igualdade das pessoas. Mas, para que a
cultura ocidental convivesse com a diversidade religiosa surgida em seu seio, notadamente
com a reforma protestante, a laicidade do Estado foi a solução encontrada, a qual em nada
diminui a importância que a religião pode continuar tendo para os seus cidadãos. A esse
respeito, Comparato faz alusão ao surgimento de um grupo de homens, intitulado
Partido
Políticos,
liderado pelo Chanceler Michel de l´Hôpital e composto por intelectuais como Jean
Bodin, homens que “procuravam manter um claro distanciamento em relação a ambos os
lados em luta, e pregavam a tolerância religiosa, a fim de salvar a ordem pública e a
independência do país.” Isso porque, a seu ver, “a autoridade do rei deveria ser preservada a
qualquer custo, de modo que ela pudesse atuar como árbitro respeitado, acima dos
contendores.”
363
Habermas, a respeito da separação entre religião e Estado e a proteção à diversidade
cultural, destaca que o
cerne da controvérsia não pode ser descrito como disputa pela relevância que as
diversas culturas concessivamente atribuem à respectiva religião. A concepção dos
direitos humanos é a resposta a um problema diante do qual outras culturas se
encontram de forma semelhante à que, na respectiva época, a Europa se encontrava,
ao ter que superar as conseqüências políticas da cisão confessional. O conflito das
culturas é travado hoje, de qualquer modo, no contexto de uma sociedade global, na
qual, à base de normas de convivência, bem ou mal, os atos coletivos precisam
entrar em entendimento, independentemente de suas diferentes tradições culturais. É
que, na situação atual do mundo, o isolamento autárquico contra influências externas
já não constitui opção possível.
364
E não só. Também entre teóricos islâmicos quem defenda a separação entre Estado
e religião, que não deve ser vista, portanto, como uma agressão ocidental e exógena aos
árabes. Fleiner-Gerster, com efeito, pontua que
[e]m 1925, Ali Abd Al Razik foi o primeiro a desenvolver uma teoria que permitia
separar o poder do Estado da religião, por meio da tentativa de demonstrar que o
poder do antigo profeta não dependia de sua missão divina. Este trabalho todavia foi
rejeitado pelos muçulmanos ortodoxos, embora a idéia de uma soberania racional e
temporal comece a se desenvolver progressivamente no Islã, como atestam
Constituições modernas em certos Estados islâmicos.
365
No mesmo sentido, Boaventura de Sousa Santos registra que, entre os muçulmanos,
363
Ibid., 2006, p. 189.
364
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. Tradução de Claudio Molz. In: MERLE,
Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.).
Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 67-82 , p. 81.
365
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 422.
194
existem
os secularistas ou modernistas, que entendem deverem os muçulmanos organizar-se
politicamente em Estados seculares. Segundo esta posição, o Islão é um movimento
religioso e espiritual e não político e, como tal, as sociedades muçulmanas modernas
são livres de organizar o seu governo do modo que julgarem conveniente e
apropriado às circunstâncias.
366
Não se pode imaginar, naturalmente, que esta secularização do Estado, “que demorou
séculos na Europa e foi acompanhada de guerras religiosas extremamente sangrentas, se
operará de um dia para o outro no mundo islâmico. Contratempos, discussões e tensões são
inevitáveis.”
367
Existe, contudo, a possibilidade de concepções democráticas serem no islã
bem sucedidas.
E, mesmo entre aqueles que não adotam posturas tão liberais, pensadores, como
An-na´im, que apontam como problemática, no mundo islâmico, sobretudo a forma como são
tratadas as mulheres e os não islâmicos. Tais autores defendem, partindo da premissa de que
tais leituras são originárias de juristas dos séculos VIII e IX, uma atualização histórica da
noção de “outro”, de modo a incluir mulheres e não muçulmanos. Tudo, insistem, partindo de
fontes corânicas.
368
Vale registrar que Gandhi, que tem tudo para não ser considerado um defensor de
ideias ocidentais globalizantes ou do imperialismo da cultura europeia, era também ele um
defensor da laicidade do Estado como forma de promoção da liberdade religiosa. São suas
palavras:
Se eu fosse ditador, exigiria a separação entre a religião e o Estado. Minha razão de
viver advém da religião. Por ela, estou disposto a morrer. Mas trata-se de uma
questão puramente pessoal. O Estado não deve se intrometer nesse assunto. Seu
campo de ação é o bem-estar, a saúde, as comunicações, as relações exteriores, as
finanças e outros problemas temporais. Ele não deve se ocupar da vossa religião
nem da minha. Tal assunto diz respeito a cada um de nós em particular.
369
Entre os autores que defendem o multiculturalismo, sustenta-se que, para que as
práticas adotadas por uma cultura sejam consideradas compatíveis com o mínimo de liberdade
366
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: SARMENTO,
Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.).
Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3-46, p. 23.
367
FLEINER-GERSTER, Thomas, op. cit., 2006, p. 423.
368
SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit., 2008. p. 3-46, p. 24.
369
GANDHI, Mahatma. Life of mohandas karaamchand ghandi. v. VII, p. 264 apud COMPARATO, Fábio
Konder,
op. cit., 2006, p. 556.
195
e de igualdade que deve ser
370
reconhecido a cada criatura humana, é preciso que exista, para
os seus membros, a possibilidade de se desligar dela. É o chamado “direito de porta”, única
forma encontrada para conciliar a liberdade daqueles que desejam preservar uma cultura com
determinados traços, com a liberdade daqueles outros que pretendem seguir sua vida sem se
submeter às limitações impostas por essa cultura.
Mas, precisamente para que exista o direito de saída da mencionada cultura, ou o
“direito de porta”, é preciso que os danos por ela causados ao indivíduo não sejam
permanentes e, sobretudo, é necessário que estejam presentes os pressupostos para que esses
indivíduos, esclarecidos, possam fazer suas escolhas. Para que uma mulher possa fazer essa
escolha, portanto, não pode ser cerceado o direito à educação para as crianças do sexo
feminino. Como lembra Álvaro de Vita,
circunstâncias em que os custos de saída são proibitivos para um dissidente, para
um excomungado ou para um apóstata. Isso ocorre quando a saída do grupo põe em
risco a própria sobrevivência do ex-membro. E minimizar tanto quanto possível
esses custos, em casos desse tipo, constitui um objeto apropriado de ação pública.
371
Também por força do “direito de porta”, mesmo sem mencionar a dignidade da pessoa
humana (que poderia ser considerada um “padrão ocidental” por multiculturalistas mais
radicais), não são aceitáveis práticas tradicionais como a mutilação feminina ou o sacrifício de
crianças deficientes, pois elas não permitem a quem as sofre a posterior escolha de não fazer
parte daquela cultura. No caso da mutilação, por deixar traços permanentes, e no caso do
sacrifício, por evidentemente ceifar a vida do indivíduo “diferente” logo em seu início. Esses
são, portanto, aspectos em relação aos quais as culturas que os praticam deveriam “aprender”
com as outras que não o fazem. Mas para que esse aprendizado possa ser avaliado, é preciso
que as informações possam ser divulgadas e discutidas livremente por todos os membros do
grupo. Afinal, mesmo dentre eles certamente há, como apontado, quem discorde de tais
práticas. É preciso que possam se manifestar, a fim de que convençam os demais da
necessidade de seu abandono.
370
O leitor mais cético pode se estar perguntando: devem ser por quê? Porque, foi explicado em itens anteriores
deste trabalho, isso é indispensável a que:
(i) o direito seja reconhecido enquanto realidade institucional; (ii) o
direito tenha maior eficácia, eis que não é possível garanti-lo apenas com o uso da força. Do contrário, nada
diferencia aquele que segue a ordem pretensamente jurídica e o animal que puxa a carroça por medo do chicote
que pende à sua frente. Nesse sentido, aliás, pode-se dizer que a fundamentação do direito na força implica a
admissão de que “somos absolutamente iguais aos animais inferiores, os quais nós os domesticamos.”
VASCONCELOS, Arnaldo.
Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 31.
371
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 184.
196
Como característica humana, a liberdade confere igualmente a todos a possibilidade de
escolher a maneira de conduzir a própria vida. Dessa forma, se, livremente, a mulher decide
não trabalhar e usar uma burca, por exemplo, essa é uma decisão que deve ser respeitada. Mas
é preciso que ela o decida. O mesmo pode ser dito em relação às particularidades de todas as
culturas, inclusive das ocidentais. Daí porque liberdade, igualdade e democracia são o
pressuposto de uma legítima ordem jurídica em todas elas.
197
6 COMO APROXIMAR O ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO DE TAIS PRESSUPOSTOS?
Depois do que foi visto no capítulo anterior, pode-se questionar a utilidade de se
preconizar a necessidade de que o ordenamento jurídico, para ser justo,
1
para atender de
forma mais adequada a finalidade para a qual existe, seja construído em um ambiente no qual
se reconheçam e se protejam liberdade, igualdade e democracia. Esse questionamento partiria,
basicamente, da premissa de que o ordenamento brasileiro está, no plano da concretude, longe
dessa realidade.
É preciso observar, primeiro, que o simples fato de se reconhecer qual deve ser o
fundamento do ordenamento jurídico, a fim de que seja legítimo, e, por conseguinte,
duradouramente eficaz,
2
fornece um critério ou um parâmetro de julgamento da realidade,
permitindo assim a sua correção ou o seu aperfeiçoamento. Com efeito, só se pode tornar algo
melhor quando se sabe o que é melhor.
3
isso teria justificado este trabalho, não sendo
demais lembrar o que observa Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, fundado em Kant, para
quem “os intelectuais possuem a tarefa de dizer que também eles têm algo a acrescer.”
4
Por outro lado, deve-se notar que o ordenamento jurídico brasileiro, no plano
normativo, do
dever-ser, atende aos pressupostos apontados. A Constituição Federal
promulgada em 1988 prestigia a liberdade, a igualdade e a democracia, podendo ser
considerada uma das melhores do mundo, no papel.
5
Nesse ponto, o que se disse ao longo do
1
Assim entendido o ordenamento jurídico cujo conteúdo corresponde, da maneira mais próxima possível, àquilo
que as pessoas cuja conduta é por ele disciplinado consideram justo.
2
“O direito, para funcionar eficazmente, deve ser aceito, e não imposto por coação”. (PERELMAN, Chaïm.
Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 241). E a melhor forma de
fazer com que seja aceito é permitir àqueles chamados a aceitá-lo que participem da criação das normas através
das quais ele se exprime.
3
MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Introdução. In:________ (Org.). Direito e legitimidade. São
Paulo: Landy, 2003. p. 9-20, p. 11.
4
LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. O constitucionalismo brasileiro ou de como a crítica deficiente ignora
a consolidação da democracia.
Revista do Instituto de hermenêutica jurídica, Porto Alegre: Instituto de
Hermenêutica Jurídica, v.2, p. 329-338, p. 337, 2004.
5
Apesar de “o Brasil ter uma das Cartas Constitucionais mais avançadas em matéria de direitos fundamentais,
ele ocupa a vergonhosa 69.ª colocação no
ranking elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o
198
item 5 deste trabalho presta-se a justificar
por que a CF/88 prescreve a promoção de tais
valores, e não de outros. Demonstra, ainda, que os requisitos do art. 60, que dizem respeito
aos limites ao poder de reformar a Constituição, não são limites indevidos à vontade popular,
mas premissas indispensáveis à preservação de um ambiente no qual ela se pode manifestar.
Pode parecer pouco, dada a grande discrepância ainda existente entre o texto
normativo e a realidade social, mas se tem um caminho a percorrer, situação muito melhor
do que aquela na qual não sequer o texto, e se discute, até mesmo no plano teórico e
normativo, o que deve e o que não deve ser prestigiado.
6
Nesse contexto, quando se sabe o
que deve ser feito para fundamentar o ordenamento jurídico, a fim de torná-lo legítimo e, por
conseguinte, eficaz, torna-se viável a propositura de medidas destinadas a tornar menos
distante o texto constitucional da realidade social brasileira. Ou, por outras palavras, para
fazer com que as normas vigentes, que incidem sobre as realidades que lhes servem de
suporte fático, sejam observadas e aplicadas em grau mais elevado.
Essa distância nunca será tornada inexistente. O direito é um instrumento de
modificação dos fatos, não fazendo o menor sentido uma norma jurídica a preconizar algo que
sempre acontece.
7
Mesmo assim, a distância não pode ser também muito grande, pois se
espera que a norma tenha eficácia. A maior possível, de preferência, sendo necessário evitar,
nesse particular, que se ofereçam “conquistas apenas no papel, no texto legal, para, mais
tarde, no campo do realismo” escreve Martônio Mont´Alverne Barreto Lima impedirem-
se ações concretas “que levem à sua efetivação.”
8
No caso do Brasil, a distância entre o texto constitucional e a realidade é maior, isso
parece claro, em virtude da forte desigualdade social existente.
9
Essa desigualdade faz com
Desenvolvimento (PNUD), que mede o índice de Desenvolvimento Humano (IDH).” MARMELSTEIN, George.
Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. XIX.
6
“É um equívoco, por exemplo, considerar que não dispomos de um governo democrático genuíno porque ainda
estamos distantes de uma sociedade de iguais. Essa confusão é às vezes feita, no Brasil, quando se mencionam as
violações dos direitos civis dos mais pobres e a persistência de uma sociedade profundamente desigual e
hierárquica como evidências de que não uma democracia consolidada no país.” VITA, Álvaro de.
O
liberalismo igualitário
: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 14-
15.
7
Daí porque Martônio Mont´Alverne registra que o discurso constituinte tem sempre um “grau de idealidade.”
LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto. Idealismo e efetivação constitucional: a impossibilidade de realização
da constituição sem a política. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martônio Mont´Alverne
Barreto.
Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006. p. 375-386, p. 380.
8
Ibid., 2006. p. 375-386, p. 377.
9
Esse não é, contudo, um defeito imputável apenas ao Brasil, ou mesmo apenas aos países ditos em
desenvolvimento, sendo certo que os brasileiros precisam abandonar o vício de considerar que tudo o que diz
199
que muitas pessoas não tenham liberdade nem iguais oportunidades, reduzindo sua
participação no processo democrático. Entretanto, a história, nas palavras de Karl Popper,
pára hoje. Podemos aprender a partir dela; mas o futuro não é um prolongamento do
passado; nem uma sua extrapolação. O futuro ainda não existe. A nossa grande
responsabilidade reside precisamente no facto de podermos influenciar o futuro, de
podermos fazer o nosso melhor para torná-lo melhor.
10
Nesse contexto, como demonstração de que liberdade, igualdade e democracia são
conceitos interdependentes, e que a sua proteção e promoção enseja a criação de um círculo
virtuoso que culmina em ainda maior proteção e promoção, pode-se verificar que maiores
investimentos públicos em educação, em primeiro lugar, e, também, em saúde, dariam às
pessoas maiores oportunidades, reduzindo desigualdades e ampliando suas liberdades. Essas
mesmas pessoas, gradativamente inseridas no processo democrático, aprovariam os
governantes responsáveis por tais investimentos, estimulando-os a manter ou a aprimorar tais
políticas de redução das desigualdades.
O processo é lento, por certo, e existem obstáculos e forças em sentido contrário. Mas
ele é possível. Não para que se crie uma sociedade perfeita, de uma democracia de pessoas
inteiramente livres e iguais, mas para que se chegue mais próximo disso.
Nos itens seguintes, descendo do campo teórico, no qual se determinou no que se deve
fundamentar um ordenamento jurídico, para o plano da concretude, serão indicadas algumas
formas dentre muitas outras decerto possíveis de aproximar o direito brasileiro de tal
idealidade. Estão elas ligadas, basicamente, à atividade financeira do Estado, vale dizer, à
tributação e à aplicação dos recursos arrecadados. Mais especificamente, à contenção de
gastos supérfluos por parte do poder público (que impedem um maior investimento em
educação e distorcem o processo democrático, por exemplo); à ampliação das oportunidades
de acesso a um ensino de qualidade, sobretudo àqueles que não podem pagar por ele; a uma
maior equidade na exigência dos tributos necessários ao custeio do Estado e na aplicação
respeito ao Brasil, seja a História e seus heróis, a democracia, ou o que quer que seja, com exceção apenas do
futebol, é, necessariamente, por ser brasileiro, de má-qualidade. Ronald Dworkin, a propósito da realidade
norte-americana, observa que “a distribuição da riqueza e da renda nos Estados Unidos é surpreendente. Em
2001, 1 por cento de nossa população possuída mais de um terço da nossa riqueza, os dez por cento da população
situados no topo possuíam mais de setenta por cento dela, e os cinquenta por cento que estão na base apenas 2.8
por cento.” (no original:
“[t]he distribution of wealth and income in the United States is striking. In 2001, 1
percent of our population owned more than a third of our wealth, the top 10 percent of the population owned 70
percent of it, and the bottom 50 percent only 2
.8 percent.” - tradução livre) DWORKIN, Ronald. Is democracy
possible here?
(principles for a new political debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 91.
10
POPPER, Karl. A vida é aprendizagem Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula
Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 183.
200
destes em finalidades ligadas à promoção de direitos sociais mínimos, destinados a
incrementar uma maior igualdade de oportunidades entre os indivíduos; e, finalmente, a um
incremento na participação de todos os cidadãos brasileiros no processo político.
6.1 Liberdade, igualdade, democracia, Estado e tributo
se demonstrou, no capítulo anterior, como liberdade, igualdade e democracia são
conceitos interligados. A liberdade deve ser assegurada por representar característica da
criatura humana,
11
que a diferencia dos outros animais e torna necessária e possível a
existência de um ordenamento jurídico. Como assiste a todo ser humano, não razão para
que não seja, em princípio, respeitada e garantida em relação a todos eles, o que conduz à
ideia de igualdade. E ambas são premissas e decorrências de um regime democrático.
Daí porque se afirma, aqui, que o ordenamento jurídico, no mundo contemporâneo,
para ser adequadamente construído, tendo um conteúdo o mais próximo possível daquele que
os sujeitos por ele disciplinados consideram mais justo, deve calcar-se no respeito à liberdade,
à igualdade e à democracia.
Conforme evidenciado no item 1.1,
supra, o Estado é o principal meio através do qual
se instrumentalizam a criação e a aplicação das normas jurídicas, sendo, por conseguinte,
também o principal meio para que se procure fazer com que essas normas jurídicas sejam
criadas democraticamente, por sujeitos livres e iguais.
Os caminhos para aproximar a realidade desse ideal, portanto, parecem passar,
necessariamente, pela atuação estatal e, por conseguinte, demandam atenção à sua
atividade
financeira,
especialmente no que diz respeito à obtenção e à aplicação dos recursos públicos.
Afinal,
[t]axes are the principal mechanism through which government plays this
distributive role. It collects money in taxes at progressive rates so that the rich pay a
higher percentage of their income or wealth than the poor, and it uses the money it
collects to finance a variety of programs that provide unemployment and retirement
benefits, health care, aid to children in poverty, food supplements, subsidized
housing, and other benefits.
12
11
A exigência de liberdade “é a necessidade imanente da razão”. GOYARD-FABRE, Simone. O que é
democracia?
A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Cláudia Berlinger. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 316.
12
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006, p. 92. No original: “tributos são o principal mecanismo através do qual
governo desempenha este papel distributivo. Ele recolhe dinheiro através de impostos calculados por meio de
201
É importante que existam limites à obtenção de recursos públicos, a fim de que a
liberdade dos indivíduos não seja suprimida ou amesquinhada por uma excessiva atividade
tributária. Aliás, pode-se dizer que os direitos fundamentais e as Constituições que os
garantem surgiram, historicamente, da luta da sociedade para conter o arbítrio dos
governantes na instituição de tributos. Mas é por igual necessária a existência de
disciplinamento em torno da aplicação desses recursos, a fim de que sejam canalizados à
promoção de uma maior igualdade, de uma maior liberdade e de uma mais ampla democracia.
Também aqui, na obtenção e na aplicação dos recursos, liberdade, igualdade e
democracia se entrelaçam. Afinal, a obtenção dos recursos deve ser limitada de sorte a não
restringir a liberdade, e sua aplicação deve ser regida de sorte a promover a igualdade,
ampliando a liberdade de um maior número de pessoas.
13
E tais medidas não são
necessárias para que as pessoas tenham maiores condições de participar do processo
democrático, como serão tanto mais efetivadas quanto maior for a participação democrática
na elaboração das normas de direito tributário e financeiro.
14
Nos itens seguintes, serão indicadas algumas – dentre várias outras possíveis – práticas
que podem levar, especialmente no âmbito da atividade financeira do Estado e em seus
limites (negativos e positivos, na obtenção e na aplicação dos recursos), a uma maior
liberdade dos indivíduos, a uma maior igualdade e a um implemento da democracia, a fim de
que, com isso, criem-se mecanismos para que a ordem jurídica brasileira se torne tanto no
alíquotas progressivas de modo a que os ricos paguem uma percentagem mais elevada dos seus rendimentos e de
sua riqueza do que os pobres, e então utiliza o dinheiro que recolhe para financiar uma variedade de programas
que proporcionem benefícios aos desempregados e aos aposentados, serviços de saúde, ajuda a crianças pobres,
suplementos alimentares, habitação subsidiada, e outros benefícios.”
13
No dizer de Dworkin, “a theory of just taxation must therefore include not only a theory of what equal concern
demands on the best understanding but also a conception of the true consequences of personal responsability,
and it must find a way to satisfy both of these requirements in the same structure
.” Ibid., 2006, p. 105.
14
A democracia permite que se evite que o grupo responsável pela feitura da lei tributária procure aliviar a
própria situação na imposição do ônus, bem como favorecer-se com a aplicação do montante arrecadado. Isso
porque a tributação, como fato político, está “visceralmente ligada à luta de classes por ser esta elemento
subjacente do fenômeno da conquista e manutenção do poder. Ontologicamente considerada, a Política tem por
objeto o estudo do poder como fenômeno social. Tributar exigir dinheiro sob coação é uma das
manifestações do exercício do poder. A classe dirigente, em princípio, atira o sacrifício às classes subjugadas e
procura obter o máximo de satisfação de suas conveniências com o produto das receitas. Em um país governado
por uma elite de fazendeiros, por exemplo, é pouco provável que o imposto de renda sobre proventos rurais seja
aplicado com o rigor com que atinge os demais rendimentos e bens. Foi o que fizeram a nobreza e o clero por
toda a parte. Mais tarde, quando as despojou do poder político, a burguesia preferiu sistemas tributários que
distribuíssem a carga fiscal predominantemente sobre o proletariado. É a fase do apogeu dos impostos reais,
como o de consumo.” BALEEIRO, Aliomar.
Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed. Atualizada por
Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 232.
202
plano da abstração, como no plano da concreção
15
- mais próxima do que os sujeitos por ela
disciplinados consideram justo.
6.2 Restrições aos gastos com propaganda governamental
Um maior investimento em saúde e, principalmente, em educação, como afirmado,
parece ser, no caso do Brasil, um meio para incrementar a liberdade e a igualdade das pessoas,
e, com isso, a efetividade do regime democrático, viabilizando a aproximação entre o
ordenamento jurídico positivo, de um lado, e aquele conteúdo considerado mais justo pelos
que têm por ele a conduta disciplinada, de outro.
Para que esses investimentos aconteçam, é preciso, primeiro, que existam recursos.
Isso é elementar. Mas não basta que existam recursos. É preciso que sejam aplicados nessas
finalidades.
E, neste ponto, uma ressalva importante deve ser feita. Deve-se afastar a ideia de que
um aumento na arrecadação de tributos está, necessariamente, ligado a uma redução das
desigualdades sociais. Conquanto evidente seu desacerto, muitos usam essa ideia para
justificar a majoração de tributos ou, o que é pior, para justificar, ou tentar justificar, a
cobrança de tributos em termos incompatíveis com as leis ou a Constituição, esquecendo que
a existência de recursos financeiros é tão necessária quanto insuficiente para a promoção dos
direitos sociais e para a redução das desigualdades.
16
No caso, os recursos, além de
disponíveis, devem efetivamente ser aplicados nessas finalidades, sendo este o principal
problema. A arrecadação de tributos sempre ocorreu, sendo inerente ao poder político. Seu
displinamento jurídico, que a ela impõe limites, e a imposição de que os recursos arrecadados
sejam aplicados em finalidades determinadas, de relevância social, são conquista recente,
sendo a História testemunha de que arrecadação de tributos e ações governamentais em prol
da sociedade nem sempre estão associados.
15
Para os efeitos deste trabalho, deve-se entender por “plano da abstração” a norma jurídica considerada de
forma hipotética, da forma como posta em vigor. “Plano da concreção”, por sua vez, diz respeito ao mundo dos
fatos, no qual a norma incide e produz efeitos que devem ser (mas nem sempre são) observados. É no plano da
concreção que se o fenômeno da ineficácia social, assim entendida a não produção de efeitos concretos, na
realidade social, pela norma incidente, à míngua de observância por parte daqueles obrigados à prestação nela
prevista, e de aplicação por parte das autoridades competentes para impor o cumprimento dessa mesma
prestação.
16
Vale recordar, aqui, a advertência de José de Albuquerque Rocha, que alerta para “o papel autoritário e
reacionário do Estado e do direito periféricos, por trás da máscara do Estado social”. ROCHA, José de
Albuquerque.
Estudos sobre o poder judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 134.
203
Não se adota, aqui, portanto, a visão criticada por Dworkin, segundo a qual “muitos
conservadores desejam tributos mais reduzidos porque querem reduzir ou eliminar programas
sociais que esses tributos tornam possíveis.”
17
No Brasil (e não se descarta que em outros
países se o mesmo), alguns dos que são contrários ao aumento de tributos, ou favoráveis à
sua redução, não o são por pretenderem o fim de programas sociais, mas por terem a
consciência que os programas sociais não são implantados com maior eficiência por razões
outras que não a falta de recursos.
A existência de gastos expressivos com propaganda governamental é uma
demonstração disso. Se faltam recursos para a educação, o que poderia justificar seu emprego
desmedido em campanhas publicitárias institucionais? Não se pode dizer, parece claro, que os
gastos com propaganda governamental nada têm a ver com os gastos com saúde e educação.
Têm, sobretudo quando estes últimos não são feitos em patamares considerados suficientes
por conta da alegada falta de recursos financeiros. Diante da finitude dos recursos públicos, é
evidente que a escolha de gastar mais para atender um objetivo implica gastar menos para
atender outros objetivos. A questão, portanto, é saber qual deles é mais relevante. A esse
respeito, Ronald Dworkin faz observação bastante pertinente:
How can officials decide how much to spend on military hardware without also
deciding how much to spend on education and health care, and how can they decide
those questions without a theory about what the citizens of all economic classes are
entitled to have?
18
Modificando a expressão equipamentos militares (military hardware) por propaganda,
a observação de Dworkin se aplica por inteiro ao Brasil. Em face da finitude dos recursos
públicos, cuja escassez é invariavelmente o motivo alegado para a não implementação de
diversos direitos sociais ligados à ideia de igualdade, sobretudo no âmbito da saúde e da
educação, não se pode afirmar que a decisão a respeito de quanto gastar com propaganda
17
No original: [m]any conservatives want taxes to be lower because they wish to reduce or eliminate welfare
programs that taxes make possible
.” (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? (principles for a new
political debate). Princeton University Press: Princeton, 2006, p. 92). Ainda nas palavras do mencionado autor,
“conservadores acreditam que esse papel do Estado deveria ser reduzido e as reduções de tributos são um meio
apropriado para esse objetivo porque, eles pensam, a tributação mesmo nos níveis atuais é injusta para aqueles
que trabalham duro para ter seus rendimentos e tornam possível uma economia vibrante que beneficia a todos.”
(tradução livre do original:
[c]onservatives believe that this role of government should be reduced and that tax
reductions are an appropriate means to that goal because, they think, taxation at even its present level is unfair
to those who work hard for their income and who make possible a vibrant economy that benefits everyone
.
Ibid
., p. 92-93). Não é esse o caso de muitos dos que, no Brasil, se opõem à majoração de tributos, sobretudo
quando o fazem não por serem contrários à majoração em si mesma, mas por serem contrários à cobrança de
tributos em desacordo com a lei ou com a Constituição, justificada apenas em um suposto incremento na
promoção dos direitos sociais.
18
DWORKIN, Ronald, op. cit., 2006, p. 100.
204
governamental não tem qualquer relação com a redução das desigualdades. Pode-se dizer, em
verdade, que cada real gasto com propaganda é, potencialmente, um real a menos gasto com
educação e com saúde.
A questão, portanto, reside em saber qual desses gastos é mais importante. De tão
evidente, a resposta nem demandaria justificativa mais detalhada. Uma maior igualdade, a ser
obtida com um maior implemento das oportunidades ofertadas a todos, é seguramente mais
importante, relacionada como está à liberdade e à democracia, e, com elas, a uma adequada
fundamentação da ordem jurídica, do que despesas com propaganda governamental, a qual é,
no mais das vezes, inteiramente desnecessária, sendo usada não no interesse da coletividade,
mas no interesse de quem momentaneamente ocupa funções políticas e deseja promover-se
com vistas às próximas eleições.
19
Paulo Bonavides, a respeito deste problema, escreveu:
Só este ano o governo despenderá em publicidade 650 milhões de reais.
Que absurdo, que irresponsabilidade, que acinte!
Quantas grimas não poderiam ser enxugadas, quantas crianças alimentadas,
quantas escolas construídas, quantos remédios adquiridos, quantos hospitais
providos e equipados, quantas universidades e laboratórios e bibliotecas instalados,
quanta miséria socorrida, quanta indigência amparada, quantas dores estiladas em
pranto não poderiam ser mitigadas!
Todo esse dinheiro se gasta nas orgias publicitárias de um regime que busca nos
meios de comunicação o derradeiro asilo, o derradeiro artifício com que recompor a
imagem poluída e estragada de uma gestão de incompetência e desmazelo. [...]
[...]
É dinheiro do erário financiando pois a lavagem cerebral da sociedade, inculcando,
deste Governo, virtudes que ele não possui, alardeando obras que não saíram do
papel, renovando promessas que não serão cumpridas, formulando planos que a
mesa da burocracia ministerial depois arquivará.
20
Não se está aqui a dizer, convém esclarecer, que o poder público nada pode gastar com
publicidade. Longe disso, até porque a transparência e a publicidade são indispensáveis à
democracia e, por isso mesmo, determinadas em diversos pontos do texto constitucional.
21
A
19
“A propaganda governamental na verdade é feita para promoção pessoal dos governantes, tanto que no
passado veiculava seus nomes e fotografias. Já não pode fazê-lo, mas veicula, ainda que indevidamente,
mensagens que, de algum modo, ainda que apenas em razão das circunstâncias, identificam os favorecidos com a
divulgação.” MACHADO, Hugo de Brito. Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização.
Interesse público, Curitiba: Notadez, ano VIII, n. 38, p. 177-186, 2006, p. 179.
20
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de
luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 102-103. O ano a que o autor se refere é o de 2000, no qual foi proferida a conferência a que o texto
corresponde.
21
“Todos os atos oficiais dos agentes públicos devem ser submetidos ao regime de integral publicidade. Todo
cidadão tem o direito fundamental de saber a verdade e tomar conhecimento daquilo que foi feito em nome do
205
publicidade é exigida para que se considerem válidos, ou mesmo existentes, diversos atos do
poder público, a começar pelas leis. E, em outras hipóteses, pode ser um instrumento muito
eficaz para combater doenças, reduzir mortes no trânsito ou conscientizar a população de
qualquer outra postura importante a ser adotada. É o caso de programas que visam a
conscientizar a população a respeito do risco de contágio e das formas de prevenção de certas
doenças (
v.g., AIDS durante o carnaval, dengue no período das chuvas etc.), da importância
de certas condutas (p.ex., do aleitamento materno), e assim por diante.
O que não se admite, e pode ser considerado desperdício puro de dinheiro público,
aplicado em evidente desvio de finalidade, é a propaganda institucional, que visa a levar ao
conhecimento da população os “feitos” daquele que circunstancialmente ocupa um cargo
público. Esse tipo de propaganda beneficia e gera dividendos unicamente para o governante
que por ela é promovido (e para o veículo que a divulga), não havendo o menor interesse
público em sua realização. Álvaro Ricardo de Souza Cruz, a esse respeito, pondera:
A questão é se faz sentido a União, os Estados e os Municípios gastarem milhões e
milhões em publicidade, que de fato está favorecendo o ‘dono do poder no
momento’. Por certo, que nossa crítica não se faz quando de uma campanha de
vacinação, e sim contra anúncios dispediosos de obras públicas e ações
governamentais.
22
Aliás, despesas expressivas com propaganda governamental são responsáveis ainda
por outro problema. Além de implicarem menos recursos para investimento em educação e na
consecução de outros direitos ligados à promoção da igualdade de oportunidades entre os
cidadãos, ensejam ainda graves danos à democracia, pois não raro têm a finalidade de
construir uma imagem da pessoa do governante, ou de seu partido, perante a sociedade, às
custas do patrimônio público.
23
As ditaduras, de uma maneira geral, valeram-se de maciça
propaganda, a fim de (de)formar a consciência dos cidadãos a respeito da idoneidade dos
povo, do qual ele, cidadão, é um dos componentes.” COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 635.
22
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é
aplicável ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 203.
23
Raquel Cavalcanti Ramos Machado destaca, a esse respeito, que “não pode o Estado gastar mais com
propaganda do que realizando os atos prestacionais e materiais que divulga, sobretudo no caso de propaganda
institucional. Isso decorre da própria noção de Estado Social e de democracia efetiva. Do contrário, possibilitar
divulgações mais dispendiosas do que a própria atuação é privilegiar a retórica em prejuízo de incrementos reais
efetivos, o que possibilita o surgimento de uma democracia forjada, que fundada em uma imagem irreal de
prosperidade estatal.” MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. A propaganda governamental no diálogo entre
Estado e sociedade.
Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1972, 24 nov. 2008. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12000>. Acesso em: 01 dez. 2008.
206
governantes.
24
E isso ocorre por vários meios. Além da própria influência gerada pela mensagem
transmitida pela propaganda, os meios de comunicação, que com ela passam a ter no governo
seu principal cliente e anunciante, perdem o interesse em criticá-lo. Os gastos com
propaganda governamental são, nesse contexto, “um instrumento de corrupção na medida em
que contribuem para calar os órgãos de comunicação de massa, evitando que estes exerçam o
seu importante papel na sociedade democrática.”
25
A imprensa livre fica, por outras palavras,
comprometida, porquanto passa a ser financiada por expressivos anúncios e publicidades
feitas pelo poder público, que naturalmente não tem o interesse de perder, criticando o
governante ou suas posturas.
6.3 Terceirização, gastos públicos e eleições
Demonstrando que liberdade, igualdade e democracia são conceitos interligados e
interdependentes, a falta de qualidade no gasto público não compromete apenas uma maior
igualdade entre os cidadãos, que seria obtida com a prestação, a estes, de serviços públicos
essenciais; assim como não compromete apenas a ampliação de sua liberdade, decorrente
dessa maior igualdade. prejuízos, também, para a democracia, que inclusive não se
limitam àqueles diretamente decorrentes da não redução das desigualdades.
É o caso do emprego de expressivas quantias nas campanhas políticas, que, além de
implicar influência do poder econômico nos resultados das eleições, pode ensejar o
comprometimento do candidato eleito com aqueles que colaboraram com a sua campanha.
Trata-se de uma causa, e também de uma consequência, da má-qualidade do gasto público,
que termina por beneficiar não os mais necessitados, que sem ele teriam maior dificuldade
para exercer sua liberdade e viver com dignidade, mas sim aqueles que contribuíram com a
campanha e, assim, viabilizaram a eleição do candidato vencedor. Cria-se um círculo vicioso.
O desvio beneficia terceiros que, com os recursos assim obtidos, e evidentemente não-
contabilizados, em seguida custeiam a campanha dos políticos que, uma vez vencedores,
24
O poder necessita de legitimidade. Quando esta não é obtida por meio de suas ações reais e concretas, ou pela
própria forma como é exercido ou como se escolhe quem o exerce, torna-se necessário o uso de recursos
destinados a dar-lhe uma
aparência capaz de manter sua legitimidade. A propósito, confira-se: LUHMANN,
Niklas.
Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. Brasília: UnB, 1985, p. 22. No mesmo
sentido: COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 595.
25
MACHADO, Hugo de Brito. Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização. Interesse público,
Curitiba: Notadez, ano VIII, n. 38, p. 177-187, 2006, p. 186.
207
serão coniventes com novos desvios.
O financiamento público de campanhas, que permitiria que “candidatos não
milionários participem do jogo político”
26
, e um mais rigoroso controle dos gastos feitos nas
campanhas eleitorais e da origem dos recursos correspondentes, consistente em uma
“articulação que deve existir entre Justiça Eleitoral, Receita Federal e Banco Central”
27
, são
ferramentas com as quais se pode tentar minimizar esse problema. Com tais mecanismos,
pode-se tentar controlar, e de alguma forma minimizar, a influência do poder econômico no
processo eleitoral. Outra ferramente disponível reside em um maior controle no gasto público,
sendo necessário fechar as válvulas por onde escapam de forma menos controlável os recursos
públicos. Uma dessas válvulas é a propaganda governamental, da qual cuidou o item anterior.
Como não é possível dimensionar o valor de um trabalho publicitário, ou mesmo se a
quantidade de serviço contratada e paga foi a mesma quantidade efetivamente prestada, é
inegável tratar-se de despesa que torna mais difícil o controle e, por conseguinte, mais fácil o
desvio. A propaganda, contudo, é nociva independentemente disso, sendo essa a razão pela
qual foi tratada em item apartado. Os prejuízos que traz independem da existência de desvio
ou superfaturamento no gasto a ela inerente, pois mesmo que o poder público pague por
serviços publicitários e por espaços na mídia exatamente a mesma quantia que qualquer
empresa privada pagaria, trata-se de um desperdício porque a despesa não é necessária.
Outra dessas válvulas de saída dos recursos públicos é a terceirização, mas a ela não se
pode fazer exatamente a mesma crítica feita à propaganda. E o motivo é o tratar-se de forma
de simplificar a contratação de mão de obra que, se bem utilizada, poderia trazer bons
resultados para a Administração Pública. O seu problema é criar condições que facilitam sua
incorreta utilização, propiciando o desvio de recursos públicos.
Por terceirização, é o momento de explicar, se está designando a celebração, pelo
Poder Público, de contratos de locação ou de cessão de mão de obra, termos aqui usados
como sinônimos, que consistem, a teor do art. 31, § 3.º, da Lei 8.212/91, na “colocação à
disposição do contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de segurados que
realizem serviços contínuos, relacionados ou não com a atividade-fim da empresa, quaisquer
26
LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. A democracia da atualidade e seus limites: o financiamento público
de campanhas eleitorais.
Revista brasileira de direito eleitoral, Fortaleza: ABC, n. 17, p. 119-141, p. 132,
2005. Trata-se, ainda no dizer do referido autor, não de uma possibilidade, mas de uma necessidade “que poderá
representar apenas um passo inicial de um longo e doloroso caminho a ser percorrido por quem deseja a
construção de partidos políticos que protagonizem uma educação cívica, laica e republicana.” (p. 134)
27
Ibid., p. 119-141, 2005, p. 135.
208
que sejam a natureza e a forma de contratação.”
O primeiro problema, trazido pela terceirização, consiste na não realização de
concurso público para provimento de cargo público. Em vez de contratar servidor público
para preencher cargo público e desempenhar a função de vigilante, por exemplo, a
Administração contrata pessoa jurídica de direito privado que lhe cede um vigilante. Abre-se
a possibilidade, com isso, de o governante, com a finalidade de agraciar este ou aquele aliado,
determinar à empresa de locação
quem contratar e quanto pagar ao contratado, com violação
dos princípios da impessoalidade, da moralidade e da isonomia.
Mas os problemas trazidos pela terceirização são ainda mais profundos. Com efeito,
não é feita a cessão de um vigilante, como se exemplificou de forma simplificada no
parágrafo anterior. A cessão é feita em relação a um número expressivo de pessoas, o que
dificulta demasiadamente o controle do
sinalagma correspondente. Por outras palavras, torna-
se difícil avaliar se o contrato de cessão de mão de obra está, ou não, superfaturado.
Se a Administração realiza concurso público para a contratação de 100 porteiros para
suas repartições, por exemplo, sabe-se quanto cada um desses servidores receberá. Seus
vencimentos são conhecidos publicamente, e bastará multiplicar o valor dos vencimentos pelo
número de servidores para que se tenha conhecimento da despesa por eles representada para o
Erário, despesa que, por sinal, consistirá na quantia que eles, porteiros, receberão.
Diversamente, quando se trata de terceirização, é feito um contrato com empresa de
cessão de mão de obra, que oferece, por determinado preço, uma quantia expressiva de
porteiros. Quando se realiza o controle do gasto público correspondente, a figura da cessão
serve de biombo entre a Administração e os porteiros, e o contrato não aparece como
representando o pagamento de uma quantia individualizada para cada porteiro. Ao contrário,
o contrato é avaliado como representando o pagamento de uma quantia por “cessão de mão-
de-obra”, sendo preciso, para avaliar a eventual absurdez do que se está a pagar por ela,
descer nas minúcias para saber quantos porteiros foram efetivamente contratados. Além disso,
é difícil de saber se todos os porteiros que constaram do contrato foram efetivamente cedidos,
ou se cedidos foram apenas dois terços, ou menos ainda.
E o problema se torna mais grave quando se constata que os porteiros, que
efetivamente prestaram o serviço à Administração, receberam salário infinitamente menor do
que o valor que receberiam se fossem concursados. Embora a Administração gaste talvez até
209
mais com a mão de obra terceirizada do que gastaria com servidores próprios, a diferença é
toda devida à pessoa jurídica de locação de mão de obra, que pode eventualmente pertencer a
um dos que contribuiu para com a campanha do governante. Aliás, além da concentração de
renda, o incremento do círculo vicioso, pois poderá ser formado caixa, assim, para novas
contribuições em eleições futuras. Hugo de Brito Machado, por isso, afirma que
[e]ntre os males da terceirização, temos o aumento de oportunidades para a prática
de corrupção, a dificuldade no controle das contas públicas e o significativo
aumento da concentração de renda no País. Enquanto a remuneração de servidores
públicos direciona a renda para camadas economicamente mais modestas, a
terceirização permite que empresas explorem os trabalhadores, pagando a estes
salários os menores que o mercado permite, de sorte que o gasto com terceirização
termina por carrear as maiores somas para o bolso do empresário, na forma de
lucro.
28
Curiosamente, um maior rigor contido nas normas da Constituição vigente em relação
à exigência de concurso público e ao controle nos gastos públicos levou, de forma
sintomática, a uma proliferação sem igual da “terceirização” no âmbito de todos os setores da
Administração Pública. E escândalos ligados a irregularidades nas administrações, das
diversas esferas, estão invariavelmente ligados à contratação de tais empresas.
A respeito da publicidade, mencionada no item anterior, e da terceirização, neste item
examinada, o escândalo conhecido no Brasil como “mensalão” serve de exemplo do que se
está aqui a afirmar. Sem entrar no mérito de saber se a prática era comum em governos
anteriores, o que parece mais provável, ou se implantada pelo Partido dos Trabalhadores, no
âmbito do qual fora descoberta, o que importa é que, através dela (e da publicidade, cumpre
lembrar que era essa a atividade de Marcos Valério), recursos públicos eram desviados e não
só financiavam despesas com campanhas eleitorais subsequentes, mas custeavam até mesmo a
compra da fidelidade de membros do Poder Legislativo, por parte dos que ocupavam o Poder
Executivo, revelando o tamanho do prejuízo causado às instituições democráticas.
Proibindo-se a terceirização no âmbito da Administração Pública, o que seria o ideal,
ou, caso seja ela mantida, realizando-se um controle muito mais intenso e cuidadoso nos
contratos correspondentes, sobretudo na relação entre o montante pago pela “cessão” e o
número de pessoas efetivamente cedidas (e sua remuneração), tornar-se-á possível fechar
importante válvula que propicia a má-qualidade do gasto público no Brasil e, com ela, o
amesquinhamento do processo democrático e do papel do Estado de agente redutor das
28
MACHADO, Hugo de Brito. Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização. Interesse público,
Curitiba: Notadez, ano VIII, n. 38, p. 177-187, 2006, p. 185-186.
210
desigualdades e promotor das liberdades dos cidadãos.
6.4 Imunidade às instituições de educação condicionada à oferta de vagas ao
poder público
Talvez a principal forma de assegurar aos cidadãos condições para o amplo exercício
de suas liberdades seja através da educação. Com ela, não apenas se ampliam os horizontes e
se disponibilizam os meios para que cada indivíduo desenvolva seus potenciais da forma
como considerar mais adequada, como se criam condições para que esses indivíduos sejam
mais atuantes politicamente,
29
tanto no exercício de direitos políticos ativos como passivos,
vale dizer, tanto para que avaliem com maior propriedade os atos do poder público,
30
como
para que participem do próprio funcionamento do poder público. Daí dizer-se que “a
educação dissolve o poder, porque substitui verdade a vontades. A educação igual eleva; o
homem regressivo, que aparecesse não encontraria 'multidão' em que se apoiasse.”
31
O amplo oferecimento de educação gratuita e de qualidade pelo poder público,
portanto, é o principal caminho para a redução das desigualdades entre os indivíduos, sem que
essa redução seja prejudicial à liberdade ou à democracia. Ao contrário, trata-se de redução
das desigualdades que implica, por igual, incremento também da liberdade e da democracia,
como explicado.
Aliás, é preciso lembrar que a educação não beneficia apenas individualmente quem a
recebe. Seu efeito global beneficia, de forma inegável, toda a sociedade. A criança e o
adolescente ocupados na escola têm menores probabilidades de se envolverem com atividades
ilícitas, nocivas à sociedade e ao seu próprio desenvolvimento. Além disso, conscientes,
podem participar ativamente da vida em sociedade.
32
E mais: com um maior número de
29
“A lição dos antigos é irrefutável: há sempre uma íntima ligação entre educação e política, entre a formação do
cidadão e a organização jurídica da cidadania.” COMPARATO, Fábio Konder.
Ética. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p. 241.
30
O analfabetismo pode ser barreira formidável à participação em atividades econômicas e políticas, impedindo,
por exemplo, que alguém leia jornal que veicula críticas ao governante. SEN, Amartya.
Desenvolvimento como
liberdade
. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 56.
31
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade, os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001,
p. 644.
32
A esse respeito, Nelson Saldanha registra que a carência de educação, “além de conservar o fosso entre
comunidades e elites, dificulta a
politização do país, e destarte enfraquece todas as tentativas de sustentação de
uma ordem democrática no país: pois que o esquema democrático supõe obviamente uma participação
consciente por parte dos governados sendo neste ponto pouco relevante a distinção entre democracia
governante e democracia governada –, e essa participação supõe um povo minimamente informado e
211
pessoas estudando, aprendendo e ensinando, são também maiores as chances de se fazerem
descobertas úteis à sociedade como um todo, como a cura de doenças, a construção de novas
teorias, novos inventos tecnológicos etc.
33
Por isso mesmo, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em
1988 (CF/88), define o direito à educação como um direito social (art. 6.º,
caput),
determinando o estabelecimento de um salário mínimo suficiente para atender, dentre outras,
as necessidades inerentes a ela (art. 6.º, IV). Reserva à União competência privativa para
legislar sobre as diretrizes básicas a serem seguidas na educação (art. 21, XXIV), e assevera
competir à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios “proporcionar
os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.” (art. 23, V) e legislar concorrentemente
sobre cultura, educação e desporto (art. 24, IX). Aos Municípios assevera competir
privativamente, em cooperação financeira com a União e o Estado, programas de educação
infantil e de ensino fundamental (art. 30, VI). No art. 150, VI, “c”, a CF/88 assegura
imunidade tributária a instituições de educação sem fins lucrativos e, a partir do art. 205,
passa a tratar especificamente da educação, definindo-a como direito de todos e dever do
Estado e da família (art. 205), devendo o ensino ser ministrado com base em princípios como
o da liberdade, o da igualdade e o da gratuidade nos estabelecimentos oficiais (art. 206).
Comentando a Constituição de 1891, João Barbalho destacava a conquista
representada pelos direitos individuais e a relação destes com a educação. Em suas palavras, a
Constituição oferece
um rico catálogo de direitos e garantias, verdadeiras conquistas que o espírito de
liberdade e a dignidade humana foram obtendo no correr dos séculos à custa de
muito sangue e ingentes sacrifícios preciosíssimo tesouro que fica sob a guarda e
vigilância do patriotismo e zelo cívico dos que compõem a nação brasileira.
Para a efetividade e valia dessa guarda é porém indispensável que se instrua o povo e
tenha ele verdadeira consciência de seus direitos, a fim de que os saiba defender e
possa acertar na escolha de seus mandatários.
34
A liberdade é importante, especialmente quando assegurada pela convivência de
instituições públicas e privadas, pois assim as ideias podem ser livremente transmitidas e
identificado com os problemas nacionais.” SALDANHA, Nelson. O poder constituinte. São Paulo: RT, 1986,
p. 10.
33
SEN, Amartya, op. cit., 2000, p. 154.
34
BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira comentários por João Barbalho. Brasília: Senado
Federal, 1992, p. 4.
212
discutidas no âmbito da sociedade, sem sofrer controles por parte do Poder Público.
Entretanto, a igualdade, com o oferecimento da educação para todos, em um contexto em que
entre as pessoas grandes desigualdades sociais, depende fundamentalmente da gratuidade
do ensino nos estabelecimentos oficiais. Gratuidade que depende de recursos públicos, os
quais, todavia, não parecem estar sendo suficientes apesar da arrecadação de valores cada
vez mais expressivos – para garantir esse direito fundamental.
Daí porque um dos caminhos que podem ser seguidos, para assegurar a um maior
número de pessoas a educação de qualidade, dando-lhes igualdades de oportunidades e
ampliando-lhes as liberdades, é a modificação na imunidade tributária de que cuida o art. 150,
VI, “c”, da CF/88,
35
hoje regulamentada pelo art. 14 do CTN, competente para tanto em face
do disposto no art. 146, III, “b”, da CF/88.
Atualmente, têm direito à imunidade tributária em relação a impostos as instituições
de educação sem fins lucrativos, assim entendidas aquelas que atendam aos seguintes
requisitos:
36
I não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a
qualquer título; (
Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
II - aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus
objetivos institucionais;
III - manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de
formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
Entende-se que, sendo a educação e a assistência social atividades essenciais que o
Estado deve exercer, e sendo inegável a deficiência deste nesse exercício, os particulares que
resolvam exercer tais atividades devem ser estimulados, desde que o façam sem o intuito de
lucrar.
O propósito da norma imunizante é nobre, mas sua aplicação prática enfrenta algumas
dificuldades, sem as quais tanto sua eficácia como sua efetividade poderiam ser melhores.
37
35
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: [...] VI - instituir impostos sobre: [...] c) patrimônio, renda ou serviços dos
partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de
educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; [...]”
36
Código Tributário Nacional, art. 14.
37
Para a distinção entre eficácia e efetividade, confira-se: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 48. A eficácia (no sentido social) verifica-se quando normalmente se a
213
A primeira dificuldade é que o particular que se dispõe a prestar serviços educacionais
geralmente espera, caso obtenha êxito, auferir lucros com a sua exploração. São poucos,
portanto, os que se dispõem a atender os requisitos do art. 150, VI, “c” da CF/88 e do art. 14
do CTN. A segunda é que, mesmo aqueles que decidem se submeter às exigências necessárias
ao gozo da imunidade enfrentam uma série de entraves burocráticos, impostos pelas
autoridades da administração tributária, para o seu reconhecimento. E, finalmente, a terceira, a
de que existem aqueles que dizem exercer atividade sem fins lucrativos, e preencher os tais
requisitos, a fim de ter direito à imunidade a impostos, mas que na verdade não o fazem.
Uma solução, aliás apontada pela doutrina especializada, seria alterar tanto o art.
150, VI, “c”, da CF/88, como a legislação complementar que estabelece os requisitos
necessários ao gozo da imunidade, para estabelecer que têm direito ao benefício todos aqueles
que ofereçam determinado número de vagas para preenchimento pelo Poder Público,
independentemente de terem finalidade lucrativa ou não.
Assim, em vez de ofertarem vagas apenas a quem pudesse pagar pelo serviço prestado,
e de ficarem impedidas de distribuir os lucros assim obtidos, as instituições de educação
poderiam distribuir os lucros experimentados com o exercício de sua atividade, e não
pagariam quaisquer tributos, mas seriam obrigadas a oferecer, para o Poder Público, um
determinado número de vagas, a ser estabelecido em lei complementar. Conforme preconiza
Hugo de Brito Machado,
se o governo não pode ou não quer prescindir totalmente dos tributos sobre as
escolas, poderia pelo menos cobrar esse tributo em forma de vagas destinadas ao
Poder Público, com o que reduziria os gastos públicos com educação. Para tanto
bastaria que uma emenda constitucional alterasse a redação da alínea
c, do inciso VI,
do art. 150, dela excluindo a referência a instituição de educação, e inserisse no
mesmo inciso a alínea
e, atribuinte a imunidade ao patrimônio, renda ou serviços
das instituições de educação que destinem ao poder público tantos por cento das
vagas em seus estabelecimentos, atendidos os requisitos estabelecidos em lei.
A lei complementar estabeleceria as providências necessárias a evitar a
discriminação, por parte dos estabelecimentos educacionais, entre alunos
particulares e alunos indicados pelo governo, tais como a exigência de que o
percentual de vagas fosse mantido em cada sala de aula, e a proibição de
observância (eficácia primária) ou a aplicação (eficácia secundária) de uma norma jurídica. Normas que são
habitualmente seguidas pelas pessoas, e que têm suas sanções aplicadas em caso de eventual descumprimento,
são, nesse sentido, normas eficazes. Cogita-se de efetividade, por sua vez, quando se cogita a respeito da
consecução dos propósitos ou dos objetivos da norma. Se esta, mesmo observada (eficaz), não atinge os
objetivos visados com sua edição, diz-se que não é efetiva. Uma lei que proíbe as pessoas de dirigirem com
qualquer teor de álcool no sangue, por exemplo, tem a finalidade de reduzir o número de acidentes
automobilísticos. Se as pessoas observam a lei e deixam de dirigir quando tenham bebido, diz-se que a norma é
eficaz. Mas se, mesmo assim, por hipótese, o número de acidentes não for reduzido, diz-se que não teve
efetividade.
214
identificação dos alunos indicados pelo governo. A indicação governamental seria
simplesmente um problema a ser tratado pela tesouraria do estabelecimento, sendo o
aluno indicado igual aos demais para todos os efeitos administrativos e didáticos.
Assim estaria estabelecida uma parceria entre o Estado e o setor privado capaz de
resolver a questão educacional no País. Na verdade, porém, falta em nossos
governantes vontade política para resolver essa importante questão. Talvez prefiram
mesmo governar um povo pouco instruído, assim fica mais fácil manterem-se no
poder, pois com certeza é muito mais difícil enganar um povo esclarecido.
38
Como a imunidade dependeria da opção do contribuinte, e teria como consequência o
não pagamento de tributos por parte da instituição imune, não haveria qualquer restrição de
direitos para este. O percentual das vagas a serem ofertadas, por sua vez, seria estabelecido de
sorte a ser preenchido em cada sala de aula, de modo a que não houvesse distinção de
qualquer natureza entre o ensino oferecido aos alunos egressos por essa sistemática e aqueles
que pagam por ele.
Para a instituição de ensino seria assaz vantajoso, pois alguns alunos a mais a menos
dentro de cada sala de aula não implicariam uma modificação tão grande nos custos
correspondentes, vale dizer, na energia elétrica, nos empregados a serem contratados etc. E,
ainda que houvesse aumento nos custos, sem o correspondente aumento na receita, a ampla
imunidade tributária o compensaria à saciedade.
Para o Poder Público, por sua vez, a medida implicaria a imediata obtenção de um
expressivo número de vagas, diluídas nas mais diversas instituições de ensino existentes no
país. Tais vagas poderiam ser preenchidas por alunos indicados pela União, pelo Estado ou
pelo Município, dentro de suas competências e seguindo os critérios e procedimentos
adotados para o preenchimento das vagas existentes nos estabelecimentos públicos de ensino.
Com isso, quem perderia seriam aqueles que, hoje, se beneficiam com o desvio das
quantias arrecadadas pelo Poder Público. Em vez de arrecadar X para investimento em
educação, aplicando-se efetivamente nessa finalidade apenas uma fração de X (com a
dissipação de todo o restante), a proposta pode fazer com que o Poder Público deixe de
arrecadar X, mas obtenha com isso um número de vagas com valor correspondente a X.
A instituição de ensino continuaria sujeita a todos os controles relativos à qualidade do
ensino, ao cumprimento das diretrizes, etc., como qualquer outra instituição, pública ou
38
MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003. v.1, p.
197.
215
privada. E, tendo optado pelo regime de imunidade, seria submetida ainda ao controle do
efetivo preenchimento, por alunos egressos por indicação do Poder Público, do percentual das
vagas a ser legalmente determinado, e da inexistência de qualquer distinção ou diferença de
tratamento entre estes e aqueles que a própria instituição selecionou, admitiu e contratou a
prestação remunerada do mesmo serviço.
Quanto aos aspectos disciplinares, deveria haver também igualdade de tratamento. A
instituição continuaria livre para expulsar o aluno que comprovadamente houvesse
descumprido normas internas necessárias à boa convivência entre alunos, professores e
demais colaboradores. Da mesma forma como pode, eventualmente, expulsar o aluno que,
não obstante esteja a pagar pelo ensino, agride colegas, insulta professores e depreda o
patrimônio da instituição, pode fazê-lo em relação àqueles egressos por conta da adesão ao
regime da imunidade. Mas, nesse caso, a vaga correspondente deverá ser preenchida por outro
aluno, indicado pelo mesmo procedimento.
6.5 Redução da regressividade na tributação
Para que haja a preservação da liberdade e da democracia, é importante que se
assegure o direito à propriedade privada. Afinal, sem ela, “o ser humano se despoja de sua
individualidade e, de certo modo, até mesmo de sua personalidade”,
39
motivo pelo qual
“Aristóteles chamou a atenção para o fato de que a necessidade de chamar alguma coisa de
sua encontra raízes na
natureza humana.
40
Mas, por igual, para que se promova a redução
nas desigualdades, é preciso que o Estado, através da tributação, obtenha daqueles dotados de
capacidade econômica para contribuir os recursos necessários às atividades (
v.g., educação e
saúde pública) destinadas ao oferecimento de iguais oportunidades para todos.
41
Para usar termos rawlsianos, a preservação da propriedade privada e da livre iniciativa
representam a implementação do “princípio da liberdade”, vale dizer, o princípio segundo o
qual “cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades
fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras
39
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 138.
40
ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 95.
41
Daí a associação, feita por Hugo de Brito Machado, entre a tributação e o capitalismo, dizendo ele ser a
tributação “a grande e talvez a única arma contra a estatização da economia.” MACHADO, Hugo de Brito.
Curso de direito tributário. 29.ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 26.
216
pessoas.”
42
A conjugação disso com uma tributação moderada, com a qual se possam
redistribuir os recursos arrecadados e sobretudo aplicá-los na proteção do mínimo existencial
e na promoção da igualdade de oportunidades, representa a concretização do “princípio da
diferença”, assim entendido aquele segundo o qual “as desigualdades sociais e econômicas
devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se
estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições
acessíveis a todos.”
43
A tributação, portanto, é um importante instrumento não de mudança social,
44
mas
de uma mudança social que se pode prestar à implementação de uma sociedade mais justa,
quer se entenda como tal aquela que seria escolhida na “posição original”, de Rawls, quer se
considere aquela que se aproxima o mais possível daquilo que seus membros esperam ou
desejam, proximidade que será tanto mais quanto maior for a proteção à liberdade e a
promoção da igualdade, em um ambiente democrático.
Mas, para isso, é preciso que os tributos realmente sejam exigidos de quem possui
capacidade econômica, como preconiza o art. 145, § 1.º, da CF/88, e, sobretudo, que sejam
aplicados em programas que visem à redução das desigualdades, e não ao seu incremento. É
necessário, por outras palavras, que os dois extremos da atividade financeira do Estado, o da
receita e o da despesa, estejam comprometidos com a isonomia em seu sentido material.
Deve-se cobrar de quem tem maiores aptidões para contribuir, e aplicar em favor dos que têm
menores oportunidades de se desenvolver, dentro de estrutura de tributação organizada da
forma que seria escolhida por pessoas em uma hipotética “situação original”, vestidas com um
“véu de ignorância”, para mais uma vez fazer uso de expressões tipicamente rawlsianas. Do
contrário, o Estado funcionará como uma máquina destinada a incrementar as desigualdades
já verificadas na sociedade.
No Brasil, contudo, o sistema tributário é bastante regressivo e, com isso, não realiza a
igualdade no momento da arrecadação. Alterar essa realidade seria outro passo importante
para o aperfeiçoamento da ordem jurídica brasileira.
Considera-se progressivo o tributo cujo ônus é tanto maior quanto maior for a
grandeza econômica tributável, o que faz com o que o seu montante não seja apenas
42
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 73.
43
Ibid., 2008, p. 73.
44
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981, passim.
217
proporcionalmente maior, mas progressivamente maior.
45
Quem tem mais paga sensivelmente
mais, considerando-se a chamada utilidade marginal da riqueza.
Ao onerar com uma alíquota de 10% salário de R$ 500,00 mensais, por exemplo,
retira-se do patrimônio do contribuinte quantia que lhe fará seguramente muita falta no
atendimento de suas necessidades básicas. O mesmo percentual de 10%, incidente sobre um
salário de R$ 5.000,00 faria também falta ao empregado, mas, embora a proporção seja a
mesma, essa falta seria menor. Em se tratando de um salário de R$ 100.000,00, 10% não
fariam praticamente falta nenhuma. É essa utilidade, cada vez menor, que a riqueza tem para
quem a acumula que justifica, por imposição dos princípios da isonomia e da capacidade
contributiva, uma tributação progressiva. Daí porque Sousa Franco destaca, com razão, que
essa forma de tributação apareceu ligada a intenções sociais de maior igualdade e que, “apesar
de se encontrar hoje perfeitamente enquadrada em sistemas econômicos capitalistas, convirá
recordar a ênfase que lhe é dada no 'Manifesto do Partido Comunista' de Karl Marx e
Friedrich Engels.”
46
Klaus Tipke e Joachim Lang, ainda a propósito da origem da progressividade,
registram que ela
foi introduzida em 1891 na Prússia (0,67 até 4 por cento). A convicção de que a
imposição tem de ser progressiva remonta ao Século XVIII e recebeu um impulso
principalmente através dos conflitos sociais do século XIX na mudança da sociedade
agrária feudalística para sociedade industrial. Base da justiticação era a assim
chamada
Teoria do sacrifício (Opfertheorie), que Jean Jacques Rousseau em 1755
projetou abrindo perspectivas em seu ‘Discours sur l´économie politique’. Ele
demonstrou que o tributo deveria ser escalonado segundo o tamanho do patrimônio.
Quanto maior o patrimônio for, tanto mais supérfluo será para a satisfação das
necessidades vitais. O necessário à vida deveria ficar isento, o luxo poderia em alta
proporção e o supérfluo poderia no todo quitar o imposto.
47
A tributação regressiva, por sua vez, consiste precisamente no contrário da
progressiva. O ônus do tributo é tanto
menor quanto maior for a grandeza tributada, o que faz
com que as pessoas dotadas de menor capacidade contributiva suporte, proporcionalmente,
uma carga tributária muito maior.
45
Se entiende por progresividad aquella característica de un sistema tributario según la cual a medida que
aumenta la riqueza de cada sujeto, aumenta la contribución en proporción superior al incremento de riqueza
.
Los que tienen .más contribuyen en proporción superior a los que tienen menos.” ROYO, Fernando Perez.
Derecho financiero y tributario parte general. 7.ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 39.
46
FRANCO, Sousa. Finanças públicas e direito financeiro. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de
Direito de Lisboa, 1980, p.196.
47
TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário (steuerrecht). Tradução de Luiz Dória Furquim. 18.ed.
Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2008. v. 1, p. 739.
218
Os tributos sobre o patrimônio e a renda, como é o caso do imposto de renda e do
imposto sobre propriedade predial e territorial urbana, por exemplo, comportam o
estabelecimento de alíquotas progressivas e podem, com isso, realizar uma tributação
materialmente igual, embora, especialmente em relação ao imposto de renda, isso não venha
acontecendo.
os tributos que oneram o consumo, por sua própria natureza, são regressivos, pois
mesmo o cidadão com rendimentos abaixo dos limites de isenção, fixados em atenção ao
chamado mínimo existencial, empregará sua renda no consumo de mercadorias e serviços
necessários à sua sobrevivência. E, nesse momento, terá, indiretamente, toda a sua renda
tributada. Quanto maior o rendimento do contribuinte, menor será o percentual dele que
precisará, necessariamente, ser empregado no consumo, pelo que se diz que tanto maior o
rendimento, menor o peso, sobre ele, dos impostos incidentes sobre o consumo. Aliomar
Baleeiro, a propósito, esclarece que
impostos proporcionais, quando incidem sobre o consumo em geral gêneros de
primeira necessidade e coisas que não são de luxo - , operam regressivamente,
porque a maior parte da população, em todos os países, é composta de proletários e
classes submédias, que aplicam a quase totalidade de seus rendimentos na aquisição
do estritamente indispensável. Uma tributação sobre alimentos, roupas de uso
comum, aluguéis de casa, objetos de uso doméstico, remédios, artigos de higiene e
coisas imprescindíveis à vida tem como efeito retirar das classes menos remuneradas
fração maior do que a exigida das classes abastadas, que despendem naqueles bens
apenas uma parte reduzida de seus proventos. Christian L. E. Engel, cerca de um
século, provara estatisticamente que quanto menor for a renda de uma família
tanto maior será a proporção gasta com alimentos.
48
Não que, por isso, não se deva tributar em absoluto o consumo, recaindo a tributação
apenas sobre o patrimônio e a renda. A tributação sobre o consumo é necessária, tanto pela
elevada arrecadação que propicia, como pela amplitude da base de contribuintes. Na verdade,
não é possível fazer com que a tributação recaia apenas sobre fatos de determinada espécie,
dada a pluralidade de formas pelas quais a capacidade econômica para contribuir se
manifesta. Além disso, no âmbito do direito positivo brasileiro, a tributação sobre o consumo
é expressamente determinada pelo texto constitucional. O que se preconiza, na verdade, é que
a tributação sobre o consumo não seja muito elevada, e que seja seletiva, recaindo de forma
mais pesada sobre produtos considerados suntuosos, luxuosos, nocivos ou ecologicamente
48
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed. atualizada por Dejalma de Campos.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 269.
219
inconvenientes,
49
e de forma mais branda sobre produtos essenciais.
No Brasil, não obstante, a tributação sobre o consumo é muito elevada. Considerando-
se o imposto estadual incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), o imposto
federal sobre produtos industrializados (IPI) e as “contribuições” que oneram a receita bruta
das empresas (PIS e COFINS), o ônus muitas vezes ultrapassa os 30%.
50
Enquanto isso, em relação ao imposto sobre a renda, cuja natureza permite uma
tributação progressiva, e que teve alíquotas que variavam de 5% a 55%, as alíquotas atuais
são apenas de 15% e de 27,5%, em relação às pessoas físicas, esta última incidindo a partir de
valores que, a rigor, deveriam estar ainda situados no limite de isenção.
Relativamente ao imposto de renda, o estabelecimento de um maior número de
alíquotas e uma ampliação do limite de isenção fariam com que esse tributo atingisse de
forma mais significativa pessoas dotadas de efetiva capacidade contributiva, realizando maior
igualdade material no âmbito do custeio dos gastos públicos. Essa medida deveria ser
acompanhada de uma tributação sobre o consumo efetivamente seletiva, com a concessão de
isenções ou o estabelecimento de alíquotas reduzidas para mercadorias e serviços essenciais, e
alíquotas mais elevadas para produtos supérfluos, suntuários ou luxuosos. Isso, aliás, é
expressamente determinado pela Constituição brasileira de 1988,
51
restando apenas dar
efetividade às suas disposições.
52
Um parlamento efetivamente preocupado em representar o
49
Para um exame do uso ecológico da tributação sobre o consumo, confira-se: TIPKE, Klaus; LANG, Joachim.
Direito tributário (steuerrecht). Tradução de Luiz Dória Furquim. 18.ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,
2008. v. 1, p. 229.
50
Como se isso não bastasse, a tributação indireta, no Brasil, não é transparente, e a opacidade verificada em sua
cobrança beneficia apenas o interesse arrecadatório do Poder Público. Isso porque nunca foi regulamentado o art.
150, § 5.º, da CF/88, segundo o qual “[a] lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos
acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”, o que faz com que se instale a seguinte situação:
os consumidores, que do ponto de vista econômico suportam o peso do tributo, não o percebem, parecendo-lhes
que a tributação é um problema que não lhes diz respeito. E os agentes econômicos, por terem a possibilidade de
acrescer seus preços e assim recuperar, do ponto de vista econômico, o tributo pago, não se sentem estimulados a
reclamar. Como se isso não bastasse, essa falta de transparência quanto ao efetivo sujeito passivo de tais tributos
faz com que, no caso de pagamento indevido, o Poder Público se procure esquivar da respectiva devolução.
Quando esta é pleiteada pelo comerciante, diz-se que repassou o tributo ao consumidor, através do preço, sendo
a restituição, para ele, um locupletamento sem causa. Quando pleiteada pelo consumidor final, diz-se que o
tributo fora pago pelo comerciante, e que ele, o consumidor, não tem com a Fazenda Pública qualquer relação
jurídica.
51
CF/88, art. 153, III, IV, §§ 2.º, I e 3.º, I e art. 155, § 2.º, III.
52
Curiosamente, o imposto de renda, no Brasil, tinha alíquotas progressivas, mesmo quando isso não era
expressamente preconizado pela Constituição. Com a promulgação da CF/88, e a inserção, no art. 153, § 2.º, I,
de determinação para que o imposto de renda seja progressivo, a progressividade praticamente desapareceu. Das
diversas alíquotas antes existentes, relativamente às pessoas físicas, subsistiram apenas duas, de 15% e 25%, esta
última posteriormente agravada para 27,5%. Somente a partir do ano-calendário de 2009, vinte e um anos depois
220
povo o faria, o que mostra que não é apenas a liberdade e a igualdade que garantem a
democracia, mas também esta que, efetivamente exercida, assegura maior liberdade e maior
igualdade.
Não procede, a propósito, a afirmação segundo a qual, em um sistema de tributação
assim organizado, haveria o “êxodo dos capitais”, com efeitos prejudiciais à economia
nacional. Na verdade, tal êxodo não ocorreria. Suas causas são outras, sendo possível
combatê-las, atraindo investimentos, sem que seja necessário instituir forma desigual e injusta
de tributação. Merecem registro, a respeito, as palavras de Aliomar Baleeiro, para quem
[a]rgumento muito louvado em prol de favores fiscais à burguesia, que alcançara o
poder no século XIX, era o de que impostos sobre a renda e a herança provocavam o
êxodo dos capitais. Estes não tinham pátria e procuravam a hospitalidade dos países,
que os remuneravam bem e não os perseguiam com as exigências do Fisco.
Naquela época, havia, realmente, grande mobilidade de capitais. Era fácil transferi-
los de um país para o outro. A praça de Londres funcionava como grande câmara de
compensação do mundo.
Mas o argumento, pouco a pouco, foi perdendo a importância porque, para os
capitalistas, o mais relevante não consistia em não pagar tributos, mas em gozar de
condições jurídicas e políticas de segurança, a par de oportunidades de colocação das
disponibilidades. Nações novas e irrequietas, que trocavam violenta e abruptamente
de instituições e padeciam juízes corruptos, ou que não dispunham de
amadurecimento tecnológico e boa rede de serviços públicos, não poderiam oferecer
possibilidades de investimento. Nenhum capitalista poderia arriscar somas vultosas
em indústrias nos países amenizados por endemias, banditismo, pronunciamentos
militares, inflação crônica, ou destituídos de transportes ferroviários, comunicações
telegráficas, Bolsas de Valores e todos os elementos de êxito dos grandes negócios.
[...]
No auge do seu esplendor, a Inglaterra foi dos países que começaram a tributar as
rendas do capital. Provavelmente, os impostos americanos sobre os lucros dos
investimentos e sobre a renda individual das pessoas físicas são os mais altos de todo
o mundo, na atualidade. Isso não impede que Nova York seja o coração financeiro
do universo e, ali, se concentrem os maiores capitais, a despeito de vigorarem
impostos mais suaves no Brasil e em outros países que ainda não apresentam as
mesmas condições de segurança política, jurídica ou econômica. Os homens de
negócios, que os preferirem, buscarão compensação ao risco ou aos estorvos e
incômodos, pedindo juros ou lucros maiores.
A instabilidade da moeda de representar sempre um dos maiores empecilhos ao
êxodo de capitais. Os países da América Central e do Sul, inclusive o Brasil,
debatem-se na inflação crônica, com surtos agudos e mal reprimidos. Suas moedas
não têm curso internacional, de sorte que seus governos são obrigados a lançar mão
de atos de autoridade contra repatriamento de capitais ou transferência de
respectivos dividendos e rendas.
de promulgada a Constituição de 1988, ensaiou-se uma progressividade com um maior número de alíquotas
(7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%), embora de bases ainda muito reduzidas, com o advento da Medida Provisória 451,
de 15 de dezembro de 2008.
221
A despeito desses tributos esmagadores, grande esforço desenvolve o governo
americano para impedir a entrada de indivíduos de todos os povos no ade fixação
nos Estados Unidos. Com dinheiro ou sem ele, ninguém quer sair e muitos querem
entrar e ficar nesse país de altos impostos.
53
Em verdade, quanto mais expressiva for a tributação baseada na efetiva capacidade
contributiva dos indivíduos,
tanto mais atividade financeira aparece como processo de repartição de encargos
e redistribuição da renda nacional. Fora de qualquer ponto de vista ideológico, essa
redistribuição propicia a permanência e o crescimento da prosperidade geral, assim
como as possibilidades de desenvolvimento, embora alguns sustentem que este
depende da concentração de capitais em grupos restritos.
Sob esse argumento, advogam tributação benévola para tais capitais e grandes
fortunas ou rendas.
As classes mais opulentas agarram pelos cabelos esses raciocínios simplistas e
advogam, em nome do desenvolvimento nacional, as teses mediante as quais a
burguesia, no século XIX e no começo deste, acastelou-se em privilégios fiscais,
atirando ao operariado o peso dos impostos indiretos.
54
Uma menor e mais transparente tributação do consumo, aliada a uma maior tributação
do patrimônio e da renda, poderia tornar a tributação no Brasil mais igualitária, do ponto de
vista material. Restaria, em seguida, aplicar os recursos assim obtidos em favor daqueles
desprovidos de oportunidades.
55
6.6 Contribuições e direitos sociais e econômicos
A redução das desigualdades sociais depende, por certo, de recursos com os quais se
possam custear políticas públicas relacionadas à saúde e sobretudo à educação. Mas não
depende apenas disso. É preciso que sejam, quando existentes, efetivamente aplicados em tais
finalidades.
Deve-se insistir na ideia de que um Estado do bem-estar social, ligado ao chamado
liberalismo igualitário, não deve ser associado a uma mitigação da liberdade dos indivíduos,
53
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed. Atualizada por Dejalma de Campos.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 214-215.
54
Ibid., 2008, p. 217.
55
É ainda Baleeiro quem observa que “o caráter regressivo de um sistema tributário atenua-se, em seus efeitos
perniciosos, como causa de pauperismo, fomento da tendência à concentração de riqueza em um grupo
limitadíssimo, embaraços à saúde e ao bem estar do povo etc., se as despesas públicas, bem ou mal, satisfazem
as necessidades mais prementes do povo. A assistência médica integral, inteiramente gratuita, como concedeu o
'Públic Health Service', introduzido na Inglaterra por Bevan, exemplifica essa hipótese.”
Ibid., 2008, p. 269.
222
como se uma coisa estivesse relacionada a outra, ou como se as conquistas obtidas com o
advento das revoluções burguesas tivessem perdido a sua relevância.
Na verdade, a proteção da liberdade continua tendo inegável importância, e a
promoção da igualdade não lhe é contrária nem com ela conflita, conforme já se salientou em
itens anteriores. A promoção da igualdade nada mais deve representar que a promoção, a
todos e não só a um pequeno número, da máxima liberdade possível.
As determinações, sobretudo de cunho constitucional, ligadas ao Estado Social, devem
ser vistas como limitações adicionais ao poder. Em outras palavras, se o Estado absoluto não
se submetia ao Direito, e o Estado liberal tinha na ordem jurídica apenas limites negativos à
sua atuação, o Estado social tem, além dos limites negativos, representados por normas que
dizem a ele o que não fazer, limites positivos, que lhe dizem o que fazer.
Em matéria tributária e financeira, por exemplo, o Direito do Estado liberal
determinava a este como
não cobrar tributos, que não poderiam ser estabelecidos senão em
virtude de lei anterior aos fatos tributáveis, por exemplo. Mas nada se dizia sobre como
aplicar os recursos arrecadados. Com o advento do Estado social, o ordenamento passou não
a determinar ao poder público como não cobrar tributos, mas também a como aplicar os
recursos correspondentes. Os limites à atuação estatal, como se vê, são maiores, e não
menores: o Estado não está adstrito a normas que disciplinam a cobrança de tributos,
limitando-a, mas também a normas que impõem a aplicação dos recursos arrecadados em
determinadas finalidades. Sumariamente, limites adicionais aos liberais, e não o afrouxamento
destes.
56
No caso brasileiro, a Constituição vigente, de fato, contempla todas as limitações ao
poder de tributar que poderiam ser classificadas como liberais, porque destinadas à proteção
da liberdade e da propriedade. E, sem prejuízo de sua aplicabilidade, contém normas que
impõem ao Estado, dentro de certos limites, a aplicação dos recursos em despesas mínimas
com saúde e educação, por exemplo.
Mas, além disso, no âmbito especificamente tributário, a Constituição cuida de
exações que têm, em seu âmbito, já incluída a ideia de limitações positivas adicionais, ligadas
à aplicação dos recursos: as contribuições.
56
MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Interesse público e direitos do contribuinte. São Paulo: Dialética,
2007,
passim.
223
Contribuições são espécie de tributo
57
cuja instituição compete, em regra, apenas à
União,
58
e que se caracterizam pelo fato de servirem de instrumento à consecução de
finalidades constitucionalmente determinadas. Essas finalidades, essencialmente, estão
ligadas a direitos fundamentais sociais e econômicos.
Daí dizer-se que as contribuições são tributo típico de um novo perfil de Estado, em
relação ao qual o contribuinte não está preocupado apenas em proteger-se de investidas
indevidas, mas especialmente na destinação que é dada aos montantes arrecadados. Não se
paga
apenas por que se revelou capacidade contributiva, mas também para que certas
finalidades sejam atingidas. É muito importante, contudo, ter atenção para as expressões
apenas e também, pois a exigência de que certas finalidades sociais sejam atendidas, com o
produto arrecadado pelas contribuições, não suprime ou torna supérfluas garantias pré-
existentes, relativas aos tributos em geral, o que eventualmente é deslembrado por alguns
autores que cuidam do tema.
59
As contribuições, não obstante, servem de eloquente demonstração de que as
exigências constitucionais relativas ao Estado do bem-estar social e à promoção de uma maior
igualdade devem ser vistas como
limites adicionais ao poder público,
60
de natureza positiva, e
não como afrouxamentos de limites negativos pré-existentes, conquistados no âmbito das
chamadas revoluções burguesas.
61
E mais: demonstram que a maior igualdade, a ser obtida
57
Não obstante algumas manifestações doutrinárias em contrário (ROCHA, Valdir de Oliveira. Determinação
do montante do tributo
. São Paulo: Dialética, 1995, p. 96), as contribuições são, hoje, pacificamente tratadas
como tributo pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, Ao julgar o RE 146.733, o STF
consignou, sob a relatoria do Min Moreira Alves: “Perante a Constituição de 1988, não tenho dúvida em
manifestar-me afirmativamente. De efeito, a par das três modalidades de tributos (os impostos, as taxas e as
contribuições de melhoria) a que se refere o artigo 145 para declarar que são competentes para instituí-los a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, os artigos 148 e 149 aludem a duas outras modalidades
tributárias, para cuja instituição a União é competente: o empréstimo compulsório e as contribuições sociais,
inclusive as de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais e econômicas.”
Confira-se, a respeito: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito.
Contribuições e federalismo. São Paulo:
Dialética, 2005,
passim.
58
São exceções apenas a contribuição de custeio do serviço de iluminação pública (COSIP), de competência
municipal (CF/88, art. 149-A), cuja validade é posta em dúvida pela doutrina e ainda não foi apreciada pelo
Supremo Tribunal Federal, e as contribuições destinadas ao custeio de sistemas de previdência social de
servidores públicos estaduais e municipais, de competência, respectivamente, de Estados-membros e Municípios
(CF/88, art. 149, § 1.º).
59
Confira-se, a respeito, GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo:
Dialética, 2000, p. 138.
60
Sobre os limites materiais positivos à produção normativa, veja-se: BOBBIO, Norberto. Teoria do
ordenamento jurídico
. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: UnB, 1999, p.
55.
61
Aliomar Baleeiro registra que as lutas em torno do limite e dos fins do tributo são causa direta ou indireta das
mais famosas revoluções e transformações sociais “(revolta dos barões contra João-Sem-Terra e Carta Magna de
1215, decapitação de Carlos I e 'gloriosa revolução', de 1688, na Inglaterra; independência americada em seguida
às tentativas de tributação, por parte da metrópole, sem voto dos colonos; Inconfidência Mineira; Revolução
224
através da tributação, não se realiza apenas através da arrecadação de recursos financeiros, por
mais equânime que seja a base tributada, vale dizer, por mais que se observe a isonomia
material na cobrança dos tributos: nada disso terá relevância se a igualdade não inspirar o
gasto dos recursos correspondentes.
De fato, as contribuições, especialmente as destinadas ao financiamento da seguridade
social, são instrumento com o qual o Estado brasileiro poderia construir sistema de seguridade
dos mais avançados do mundo.
62
Excelente mecanismo de redução das desigualdades sociais
verificadas no país, que segue deficitário não obstante o significativo aumento da carga
tributária brasileira propiciado pelas contribuições.
Convém recordar que, para a construção de tal sistema de seguridade social, a
envolver importantes ações não apenas no campo da previdência, mas também no âmbito da
assistência e da saúde, o constituinte não poderia buscar recursos apenas na folha de salários,
fonte tradicional de recursos para o então Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). E
o motivo para isso é de fácil compreensão: a
curva de laffer, usada para demonstrar, no
âmbito econômico, a ideia de que nem sempre um aumento do ônus representado por um
tributo enseja um aumento na mesma proporção (ou mesmo um aumento em qualquer
proporção) da arrecadação correspondente. Isso porque, quanto maior o ônus representado por
um tributo, maior a tendência do contribuinte a escapar dele, por meios lícitos
63
ou ilícitos.
Caso se elevasse, ainda mais, a alíquota da contribuição previdenciária incidente sobre
a remuneração do empregado, poderia haver, em vez de aumento na arrecadação, diminuição.
Não apenas porque contribuintes passariam a admitir trabalhadores sem assinar-lhes a carteira
de trabalho ou pagando salário superior ao registrado, mas porque aumentaria a automação
das indústrias e estabelecimentos comerciais em geral. O custo tributário da mão de obra seria
muito alto, desestimulando sua formalização, ou mesmo sua contratação em absoluto, o que
prejudicaria não apenas a arrecadação necessária ao custeio da seguridade, mas especialmente
o próprio trabalhador.
A solução encontrada, pelo constituinte, foi a instituição de outras fontes de custeio
Francesa etc.).” BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed. Atualizada por Dejalma
de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 326.
62
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29.ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 421.
63
O contribuinte pode simplesmente deixar de realizar o fato imponível (fato gerador, suporte fático, fattispecie,
tatbestand), desistindo da atividade correspondente, ou pode realizar esse fato de forma a que a carga tributária
sobre ele incidente seja legalmente menor, através de práticas conhecidas como planejamento tributário.
225
para a seguridade. Em vez de apenas a contribuição sobre a folha, foram previstas
contribuições de seguridade que poderiam ser criadas sobre outras bases, das quais merecem
destaque as incidentes sobre o faturamento e o lucro das empresas. Ao onerar o lucro e o
faturamento, as contribuições não têm qualquer vinculação com o número de empregados
de uma empresa ou com o valor de sua remuneração. não importa se as carteiras de
trabalho foram assinadas, ou se o salário que nelas consta corresponde à realidade, ou mesmo
se boa parte dos empregados foi substituída por máquinas automáticas. As contribuições serão
calculadas sobre o faturamento e sobre o lucro da empresa e, com elas, é possível financiar a
seguridade social e, com ela, os programas de saúde, assistência e previdência necessários à
redução das desigualdades sociais que envergonham o país.
Não obstante, logo quando da instituição desses tributos, essa ideia foi desvirtuada.
Tanto a contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) como a contribuição de
financiamento da seguridade social (COFINS) foram instituídas como tributos a serem
arrecadados pela Receita Federal, e não pelo Instituto que, por disposição constitucional, seria
seu destinatário, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
No âmbito dos Tribunais Regionais Federais chegou a ser acolhida a tese de que essa
arrecadação pela Receita Federal, e não pelo INSS, desvirtuaria as contribuições,
transformando-as em impostos,
64
mas o STF entendeu de forma diversa.
65
Considerou que a
64
Para o TRF da 1.ª Região, “o que distingue a contribuição social do imposto é sua destinação às atividades
próprias da seguridade social. 2. Não tendo a contribuição criada pela Lei 7.689, de 15.12.88, qualquer
comprometimento com a seguridade social, revela-se autêntico imposto, inconstitucional visto não terem sido
observadas as regras próprias estabelecidas na Constituição.” (Ac un da T do TRF da R - REO
89.01.11499-2-BA, Rep. de Jur. IOB n.8/90, c. 1, p.119) O TRF da 3.ª Região, em termos análogos, decidiu:
“Contribuição para seguridade social. Lei 7.689, de 15.12.88. Regime tributário das contribuições sociais na
Constituição de 1988, por força do art. 149. - Necessária a observância dos princípios que regem o sistema
tributário, mormente, legalidade, anterioridade, nos termos do artigo 195, parágrafo 6º, não retroatividade,
exigibilidade de lei complementar. [...] IV - O orçamento da seguridade social não pode integrar o orçamento da
União. V - Impossibilidade de se dar interpretação conforme à Constituição, nos termos dos artigos 1º, 2º, 3º e
da Lei 7.689/88, sob pena de se erigir o intérprete em legislador. VI - Inconstitucionalidade reconhecida pela
maioria do Plenário” (Ac mv da TRF da R - Pleno - AMS 90.03.17294-3 - Rel. Lúcia Figueiredo - DJ SP
01.07.91 p.68, IOB n.15/91, c. 1, p. 271).
65
Ao reformar o leading case do TRF da 5.ª Região, o STF decidiu: “O acórdão recorrido deu especial ênfase à
questão de integrar a contribuição o orçamento fiscal da União. Teria sido criada uma forma de custeio indireto
da seguridade social, quando a Constituição somente admite o custeio direto. O fato de a arrecadação ter sido
atribuída à Secretaria da Receita Federal, estaria a desnaturar a contribuição criada pela Lei n.º 7.689/88. O
embasamento jurídico da arguição estaria nos artigos 194 e parág. único, 195 e parágrafos, e 165, parág. 5.º, III,
da Constituição, que não admitem a contribuição pela própria União. A receita não poderia integrar o orçamento
fiscal da União, porque deveria ficar vinculada à autarquia previdenciária e integrar o orçamento desta. Essa
questão, entretanto,
data venia, não tem a relevância jurídica que lhe emprestou o Egrégio Tribunal a quo. O que
importa perquirir não é o fato de a União arrecadar a contribuição, mas se o produto da arrecadação é destinado
ao financiamento da seguridade social (C.F., art. 195, I). A resposta está na própria Lei 7.689, de 15.12.88, que,
no seu artigo 1.º, dispõe, expressamente, que “fica instituída contribuição social sobre o lucro das pessoas
jurídicas, destinada ao financiamento da seguridade social.” De modo que, se o produto da arrecadação for
226
Receita estaria atuando como mera arrecadadora de recursos que, posteriormente, seriam
todos repassados à Seguridade Social.
Embora fosse previsível, desde então, que esse repasse não iria ocorrer, pois do
contrário ter-se-ia permitido ao próprio INSS que arrecadasse diretamente as contribuições, a
realidade dos anos subsequentes deixou isso muito claro. Seria realmente possível que a
Receita Federal repassasse todos os valores à Seguridade Social, mas o que se deu foi
exatamente o contrário. Com a criação da Receita Federal do Brasil, vulgarmente conhecida
como “Super-Receita”,
66
o INSS perdeu as atribuições arrecadatórias que tinha, mesmo em
relação às contribuições incidentes sobre a folha de salários, passando a cuidar apenas dos
benefícios.
É preciso reconhecer que, mesmo com a arrecadação de todas as contribuições pela
Receita Federal, sua destinação para a Seguridade Social poderia ocorrer, se não se
derespeitasse o disposto nos arts. 165, § 5.º, 194 e 195 da CF/88, que dispõem:
Art. 165. [...]
[...]
§ 5.º A lei orçamentária anual compreenderá:
I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e
entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público;
II o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou
indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;
III o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela
vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público.
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a
seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
[...]
VII caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos
desviado de sua exata finalidade, estará sendo descumprida a lei, certo que uma remota possibilidade do
descumprimento da lei não seria capaz, evidentemente, de torná-la inconstitucional.” (
RTJ 143, p. 321 e 322).
66
Lei 11.457/2007. Para análise crítica, confira-se: MACHADO, Hugo de Brito; MACHADO SEGUNDO,
Hugo de Brito.
Direito tributário aplicado. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 745-761.
227
aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e
indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes
contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei,
incidentes sobre
:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a
qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo
empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
[...]
Como se percebe, a seguridade social, conquanto ligada à União, é tratada pela
Constituição como algo apartado. Além de dever ser administrada de modo autônomo e
descentralizado,
com a participação do Governo e de outros setores, a seguridade deve possuir
orçamento autônomo, inteiramente destacado do orçamento fiscal da União, custeado por
tributos específicos. Não se trata de novo ente federado porque a seguridade não tem sequer
capacidade legislativa, mas há evidente separação desta em relação aos demais, especialmente
em relação à União.
Note-se que o orçamento da União envolve os seus três Poderes, todas as suas
autarquias, fundações etc. Mesmo assim, a seguridade social deve possuir orçamento próprio
e inconfundível. E não só. O art. 195 da Constituição é bastante claro ao definir as
contribuições nele previstas como destinadas ao custeio da seguridade social. Logo, tais
contribuições devem compor o orçamento da seguridade social. Basta conjugar e a
interpretação sistêmica da Constituição é o mínimo que se espera de seu intérprete o
caput
do art. 195 com o art. 165, § 5.º, III.
A Constituição Federal de 1988 seguiu, nesse ponto, tendência bastante moderna e
atual do federalismo fiscal, segundo a qual a seguridade social deve ser tratada, sob o prisma
tributário/financeiro, como ente apartado e diverso dos entes federados, tanto do central como
dos periféricos. É o que se depreende das lições de Asensio, para quem a seguridade social,
“dada su relevancia conforma una suerte de estado dentro del estado ‘megasubsistema’ dentro
228
del sistema o, si se quiere, ‘gobierno funcional’ en términos de Olson (1969).”
67
Em outras palavras, dentro do perfil traçado pelo Constituinte de 1988 para as
contribuições de seguridade social, a União jamais poderia delas se utilizar para aumentar a
arrecadação de seu Tesouro (leia-se: de seu orçamento fiscal previsto no art. 165, § 5.º, inciso
I, da CF), e assim obter mais recursos para suas despesas em geral. Para isso teriam de ser
empregados os impostos que, como se sabe, são partilhados com Estados e Municípios.
68
Não obstante, com a elaboração de um orçamento fiscal, de um orçamento de
investimentos e de um orçamento para a previdência (e não para a seguridade), ao qual são
destinadas apenas as contribuições incidentes sobre a folha de salários, a União contempla em
seu orçamento fiscal despesas com saúde e assistência, e, sob essa justificativa, a esse
orçamento destina as receitas oriundas das demais contribuições de seguridade. Uma vez
inseridas no orçamento fiscal, torna-se mais difícil o controle de sua destinação, que de resto
passou a ser reconhecidamente diversa da finalidade social que as justifica com o advento da
Desvinculação de Receitas da União (DRU), prevista no art. 76 do ADCT. Daí seu uso em
toda uma gama de despesas não necessariamente ligadas à seguridade e, pior, não partilhadas
com Estados e Municípios.
Em suma: as contribuições em exame, que supostamente se justificam em face dos
direitos sociais que visam a efetivar, prestam-se hoje como meio de centralização política,
alijando Estados e Municípios da partilha das rendas tributárias. Daí porque é importante
destacar que, quando se afirma que o tributo se justifica – como o Estado, de resto, se justifica
como instrumento de promoção dos interesses da coletividade, e um desses interesses é a
redução das desigualdades, não se deve pensar apenas em legitimar a
cobrança do tributo,
meio tão necessário quanto insuficiente para a promoção do fim visado. É indispensável que o
fim seja realmente atingido, sob pena de o próprio meio contaminar-se, tornando-se inválido
por desvio de finalidade. Afinal, como observa Thomas Fleiner-Gerster, a
solidariedade dos cidadãos, fator indispensável para todo e qualquer
desenvolvimento autêntico da democracia, não será salvaguardada senão quando
entre os parceiros houver uma negociação baseada na idéia contratual de prestações
e contraprestações. Os cidadãos m de estar convencidos de que recebem uma
contraprestação equivalente às prestações que aceitam fornecer ao Estado. Na falta
67
ASENSIO, Miguel Angel. Federalismo fiscal – fundamentos, analisis comparado y el caso argentino. Buenos
Aires: Universidad del Salvador, 2000, p. 48.
68
Confiram-se os arts. 157 e ss. da CF/88.
229
desta convicção, eles questionarão o Estado e o combaterão.
69
Cumpre notar que até para que os recursos arrecadados com os tributos revertam em
proveito da população – favorecendo uma maior igualdade, e, por conseguinte, maiores
oportunidades para o exercício das liberdades um incremento na democracia é necessário, a
demonstrar, mais uma vez, como democracia, liberdade e igualdade estão intimamente
relacionadas, complementando-se e pressupondo-se mutuamente. Tanto que, uma vez que a
determinação a respeito de quais necessidades serão satisfeitas com os recursos públicos
envolve decisões políticas,
[s]e o país for dominado por uma elite rica e requintada, esta exigirá do governo,
provavelmente, construções de luxo e obras de conforto ou embelezamento.
Se as circunstâncias mudam, e, nesse país, devido à natural evolução democrática ou
graças a reformas específicas, como, por exemplo, a efetividade do sufrágio
universal, as massas humildes conseguem a partilha do poder político, as despesas
públicas se dirigirão para a construção de hospitais, maternidades, postos de
puericultura, escolas primárias e outros serviços, que, de modo geral, correspondem
aos interesses do proletariado.
70
Quanto às contribuições, importante maneira de reduzir desigualdades sociais, e com
isso incrementar a igualdade, a liberdade e a democracia necessárias à legitimação da ordem
jurídica brasileira, consistiria na elaboração de orçamentos que respeitassem especialmente o
inciso III do art. 165, § 5.º, da CF/88, permitindo maior transparência no destino dado às
receitas que se justificam porque destinadas à promoção da saúde, da assistência e da
previdência social.
6.7 Incremento da participação política
Outra providência que pode ser adotada, para aperfeiçoamento da legitimidade da
ordem jurídica, é o incremento na participação política dos cidadãos. Afinal, a democracia
69
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 464.
70
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16.ed. Atualizada por Dejalma de Campos.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 91. Por isso mesmo, o mencionado autor associa, diretamente, a evolução pela
qual passou a democracia (desde o final da Idade Média), os direitos fundamentais e a tributação, observando:
“A lenta e secular evolução da democracia, desde a Idade Média até hoje, é marcada pela gradual conquista do
direito de os contribuintes autorizarem a cobrança de impostos e do correlato direito de conhecimento de causa e
escolha dos fins em que serão aplicados. Da Carta Magna e das revoluções britânicas do século XVII às
revoluções americana e francesa do século XVIII uma longa e penosa luta para conquista desses direitos que
assinalam a íntima coordenação de fenômenos financeiros e políticos.”
Ibid., 2008, p. 93.
230
pressupõe a participação
71
. Essa participação, para a qual a educação é indispensável, pode
dar-se não apenas no momento de eleger representantes, mas no acompanhamento de suas
atividades, hoje tornado possível e acessível a todos por meio da
Internet, instrumento de
baixo custo (comparativamente aos demais), cada vez mais acessível a um número maior de
brasileiros, e que pode ter seu uso incrementado para ampliar o diálogo entre representantes e
representados. Norberto Bobbio refere-se, inclusive, à “ampliação dos espaços da democracia
direta, tornada possível com a difusão dos meios eletrônicos”.
72
Cada cidadão deve, por meio da Internet, contatar membros do Executivo e do
Legislativo, e mesmo do Judiciário, mandando-lhes mensagens eletrônicas com comentários,
reivindicações, elogios e críticas. O diálogo é importante, e a grande rede um instrumento
rápido e acessível que pode aproximar a sociedade de seus representantes, a fim de que estes
saibam o que deles se espera, e o que se pensa do que fizeram ou estão fazendo.
73
Parece uma
evidência de que a
Internet está diretamente relacionada com a democracia o fato de que, na
China, o seu acesso é objeto de intenso controle governamental, que restringe o acesso a
diversas páginas no mundo.
Através da
Internet os usuários, realmente, têm meios para exercer a sua liberdade,
seja para manifestar o pensamento, seja para ter acesso ao que pensam outras pessoas. E isso é
feito com muito maior igualdade (de oportunidades) entre eles, pois qualquer usuário da
grande rede tem acesso a sites que oferecem gratuitamente espaço para a divulgação de ideias,
seja por meio de um
blog,
74
seja através de sites convencionais. Não é necessário o
investimento relativo a um jornal impresso, que alguém dotado de maior poder econômico
pode fazer, em estabelecimento, máquinas impressoras, tinta, papel, empregados etc.
71
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana.
Tradução de Cláudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 49.
72
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de
Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Campus, 2000, p. 382. No mesmo sentido:
Id. O futuro da democracia
uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p. 54;
BONAVIDES, Paulo.
Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de
luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 64.
73
Barack Obama, a propósito, tão logo eleito Presidente dos Estados Unidos, em 2008, anunciou que pretende
usar a
Internet para se aproximar da população, mantendo contato através da rede com os seus eleitores. Confira-
se, a propósito: FOLHA DE SÃO PAULO.
Obama quer usar internet para se manter próximo à população.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u466073.shtml>. Acesso em: 2 mar. 2009.
74
Blog é abreviatura de weblog, e designa “página da internet que pode ser criada por qualquer pessoa, com
conteúdo livre, geralmente pessoal, e que depende de autorização do criador para que os visitantes possam
adicionar comentários.” AULETE, Caldas.
Minidicionário contemporâneo da lingua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 107.
231
Conquanto exista, é certo, grande número de pessoas sem acesso à
Internet, ou mesmo
sem qualquer alfabetização, o número de pessoas com acesso à tecnologia e à grande rede
cresce a cada ano, inclusive nas camadas mais pobres da população. Além disso, como,
através da
Internet, é cada vez maior a quantidade de direitos subjetivos que podem ser
exercidos,
75
se pode falar, hoje, que o acesso a ela é um serviço essencial, que todos devem
ter à disposição.
Não se pode esquecer que as alterações na forma como as sociedades se organizam
acontecem não raro de forma paulatina, por meio de pequenas modificações graduais.
Percebendo-se o caminho dessas mudanças quando de seu início, torna-se mais fácil dar-lhes,
de forma consciente, a direção pretendida.
76
No caso da Internet, se faz possível fiscalizar
contas públicas pela rede,
77
entrar em contrato com os mais diversos órgãos públicos, e
especialmente com cada um dos representantes parlamentares. Isso, é inegável, em um futuro
bastante próximo, pode modificar radicalmente para melhor - a forma como se exerce a
democracia. É o caso de, percebendo-se o potencial, dar início à sua utilização da forma mais
expedita e eficaz possível.
Aliás, a rede propicia maior igualdade no acesso à informação, beneficiando não o
exercício da cidadania, de forma imediata, mas a própria formação do cidadão, que mais
facilmente tem contato com livros, jornais, revistas, dicionários, enciclopédias e uma
infinidade de informações. E, o que é mais notável, incrementam-se, com ela, também as
oportunidades de divulgar informações. É possível construir
site de qualidade e através dele
obter acessos de todo o mundo, divulgando ideias através de textos, fotos, som e vídeo, com
investimento irrisório, não sendo mais este um privilégio de que, apoiado pelo poder
75
Em muitos casos, a internet é o principal, e, em alguns, o único meio de o cidadão obter certidões junto aos
órgãos públicos (
v.g., certidões negativas de débitos tributários), cumprir obrigações tributárias acessórias, ter
acesso à jurisdição (por meio dos processos virtuais), ter acesso aos parlamentares, à prestação de contas pelo
poder público etc.
76
Há pouco mais de dez anos, quando a internet já se estava popularizando, Bill Gates escreveu livro tratando do
que ele imaginava vir a ser, no futuro, uma superestrada da informação, através da qual as pessoas poderiam se
comunicar, trocar informações, publicar trabalhos, ter acesso a notícias, realizar negócios etc. (Em inglês,
information superhighway). Ele descreve uma realidade muito próxima daquela na qual a internet se foi
transformando, gradativamente, logo depois da publicação do livro. Não obstante, Gates afirma, no livro, que a
superestrada da informação, à qual se refere, não é nem será a
internet (GATES, Bill. The road ahead. New
York: Penguin, 1996,
passim.) à qual ele, na ocasião, não dava muita importância. Essa, como se sabe, foi a
causa para o grande atraso da Microsoft em relação à internet, inicialmente dominada pela
Netscape.
77
Confiram-se, a propósito, além dos sites oficiais nos quais são divulgados os resultados do Tesouro (BRASIL.
Tesouro nacional. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/>. Acesso em: 2 mar. 2009 e BRASIL.
Portal da transparência. Disponível em: <http://www.portaldatransparencia.gov.br/>. Acesso em: 2 mar.
2009), aqueles nos quais tais resultados são interpretados e criticados (
v.g., CONTAS ABERTAS. Contas
abertas
. Disponível em: <http://contasabertas.uol.com.br>). Acesso em: mar. 2009).
232
econômico, ou dele titular, pode adquirir e manter a infraestrutura necessária ao
funcionamento de um jornal ou de uma rede de televisão.
Embora os preços dos computadores e de seus periféricos, bem como dos provedores
de acesso, estejam em queda constante, e cada vez mais acessíveis às parcelas mais pobres da
população, a fundamentalidade dos direitos que através da
Internet podem ser mais facilmente
exercidos faz com que a sua universalização, com o oferecimento de equipamentos e de
acesso à rede de forma gratuita à população, seja uma medida com a qual o poder público
certamente incrementaria a liberdade e a igualdade dos cidadãos, e com isso aperfeiçoaria a
democracia no Brasil, facilitando a aproximação do direito posto, tanto quanto possível, do
conteúdo que a população brasileira deseja que ele possua.
Outra medida que pode ser adotada para incrementar a participação popular nas
decisões que afetam seus interesses, legitimando-as, é através de uma maior utilização das
formas, já previstas no texto constitucional vigente, de democracia direta, vale dizer, de
plebiscito e de referendo. Embora a realização de referendos e plebiscitos tenha um custo para
os cofres públicos, não se deve esquecer que, se um preço a pagar pela democracia, pela
falta dela o preço é muito maior.
78
Finalmente, para participar, seja por qual meio for, é importante que o cidadão tenha
interesse para isso, interesse que lhe deve ser estimulado por meio da educação. Nas escolas,
as crianças devem ser estimuladas, cada vez mais, a pensar sobre e a se preocupar com as
questões de interesse coletivo, de seu bairro, de sua rua, de sua cidade, de seu país e de seu
planeta, e não apenas sobre seus problemas individuais. E mais: devem, através da educação,
receber as informações e adquirir os meios para avaliar as decisões a serem tomadas.
Educação livre, e concedida a todos. Isso reconduz, no caso do Brasil, às questões
anteriormente abordadas, relativas aos gastos com propaganda, ao incentivo às instituições de
educação que ofereçam vagas ao poder público e à aplicação dos recursos arrecadados com as
contribuições sociais.
78
LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. A democracia da atualidade e seus limites: o financiamento público
de campanhas eleitorais.
Revista brasileira de direito eleitoral, Fortaleza: ABC, n. 17, p. 119-141, p. 137,
2005.
233
CONCLUSÃO
Em razão do que foi explicado ao longo deste trabalho, suas conclusões podem ser
sintetizadas da seguinte forma:
a) o Estado não surgiu para criar o Direito, mas para assegurar o respeito às
prescrições jurídicas existentes, inerentes à criatura humana e decorrentes de seus traços
essenciais e intimamente interdependentes, moldados pela seleção natural, que são a
liberdade, a racionalidade e a sociabilidade. Existe, portanto, padrão de juridicidade fora do
Estado, embora a ele se deva, no mundo contemporâneo, a organização da produção e a
tentativa de aplicação e efetivação do ordenamento jurídico;
b) as correntes filosóficas componentes do chamado jusnaturalismo partem da
premissa de que existe um conjunto de normas não positivas que deve servir de modelo ao
direito posto. Esse é o seu elemento comum, havendo, contudo, divergências quanto à origem
ou à natureza desse modelo ideal de direito, chamado direito natural, já tendo ele sido
creditado à natureza, aos deuses, à razão divina e à razão humana. O principal defeito
atribuído ao jusnaturalismo, por isso mesmo, reside na insegurança e na falta de critérios
objetivos e científicos para se determinar o conteúdo do direito natural. O problema, em
suma, está em saber
quem determinará o conteúdo do direito natural e, portanto, quem julgará
a correção, ou não, do direito positivo;
c) o positivismo jurídico, por sua vez, caracteriza-se pela recusa ou afastamento, de
suas cogitações, de tudo o que não pode ser apreendido pelos sentidos, vale dizer, centra-se na
realidade sensível, que pode ser medida, pesada e experimentada. Como consequência disso,
afasta de suas considerações os valores, deixando de examinar o direito como este deveria ser,
focando-se apenas no direito que é;
d) o pós-positivismo se proclama fruto de uma síntese dialética entre positivismo e
jusnaturalismo. Essa síntese seria viabilizada pelo reconhecimento da positividade de
princípios, que seriam a positivação de valores. Tais princípios consistiriam na positivação de
direitos humanos, sendo compreendidos como direitos fundamentais. Toda uma teorização
234
construída em torno deles tornaria desnecessário o recurso ao direito natural, retiraria o
subjetivismo ou o decisionismo inerente a tal recurso, mas não teria os defeitos próprios do
positivismo jurídico, pois permitiria ao intérprete adequar a norma ao caso concreto à luz dos
valores positivados no ordenamento, de forma racionalmente justificável e
intersubjetivamente controlável;
e) faz-se possível, assim, responder a uma das perguntas formuladas na introdução,
qual seja, a que indagava: “se determinado ordenamento consagrar normas injustas, como será
seu tratamento por juristas, intérpretes e aplicadores pós-positivistas?”. A resposta é: se essas
normas forem válidas à luz da ordem jurídica na qual estão encartadas, o pós-positivismo,
pelo menos nos moldes em que delineado pelos seus principais teóricos, não oferece meios ou
critérios sequer para que sejam assim julgadas, vale dizer, consideradas injustas. A maior
parte dos autores que se dizem pós-positivistas definem essa corrente como superação
dialética do positivismo jurídico e do jusnaturalismo pelo fato de a ordem jurídica dos Estados
contemporâneos consagrar normas com estrutura de princípio que decorrem da ideia de
proteção à dignidade da pessoa humana. Vale dizer, afirmam superado o antagonismo porque
uma norma contrária à dignidade da pessoa humana seria contrária ao direito positivo, que a
protege através de regras e princípios;
f) sendo o Direito uma realidade institucional, assim entendida aquela criada pela
racionalidade humana e que somente existe em face do reconhecimento dos demais membros
de uma coletividade (tal como o dinheiro, um pênalti ou um movimento de uma peça de
xadrez), é essencial para caracterizá-lo o reconhecimento, e não a imposição forçada, que o
equipararia à ordem dada a um animal com o uso de um chicote, igualando o homem ao
destinatário desta ordem, que a obedece irracionalmente por medo;
g) tal reconhecimento depende da convergência entre as normas jurídicas positivas, no
plano da realidade
, e as normas jurídicas pretendidas por quem as avalia, no plano da
possibilidade. Como as normas não se confundem com os textos que as veiculam, sendo, em
verdade, o significado destes, a tensão entre realidade e possibilidade manifesta-se já, dentro
de certos limites, no momento da determinação, pelo intérprete, do conteúdo das normas
postas;
h) é impossível retirar da criatura humana a capacidade de distinguir o
real do
possível, sendo este o traço de sua humanidade. É igualmente impossível suprimir-lhe a
235
capacidade de
comparar realidade e possibilidade, seja para com isso, à luz dos valores
atribuídos a uma e a outra, preservar a primeira ou pugnar pela concretização da segunda;
i) a ordem jurídica deve ter por fundamento, por conseguinte, o direito tido por ideal
pelos cidadãos que a ela se submetem, que lhe deve servir de modelo. A forma humanamente
possível de aproximá-la de tal modelo é fazendo-a produto da vontade da maioria dos
cidadãos, todos livres e iguais. assim se pode aproximar o conteúdo das normas daquilo
que esperam ou aceitam os sujeitos cuja conduta por elas será disciplinada;
j) essa vontade encontra limites lógicos, que não podem ser por ela transpostos,
naquilo que lhe serve de pressuposto, a saber, na proteção e na promoção à igualdade e à
liberdade de todos que, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, a manifestam;
l) faz-se possível, com isso, responder a segunda pergunta formulada na introdução,
assim redigida: “se, em tempo ou lugar diverso do nosso, existir ordenamento injusto, poderá
ele, ainda assim, ser chamado de Direito? Qual o critério de justiça para fazer esse
julgamento?” A resposta é: o critério de justiça para fazer o julgamento é a adequação da
ordem jurídica existente àquela aspirada pelos que têm sua conduta por ela disciplinada e, por
conseguinte, deveriam reconhecê-la como tal. A questão, portanto, é de grau. E, em um grau
elevado de divergência ou inadequação, a ordem jurídica, para se impor, passa a depender
unicamente da força, desnaturando-se enquanto Direito e não mais se diferenciando do grito
do assaltante ou do chicote estalado em frente ao animal. Para que essa adequação seja levada
ao grau mais elevado possível, é necessário que o ordenamento jurídico se fundamente, como
apontado, no ideal de justiça expresso pela vontade dos cidadãos livres e iguais cuja conduta
será por ele disciplinada.
m) para viabilizar essa aproximação entre o direito positivo e o direito considerado
ideal por aqueles que por ele terão a conduta disciplinada, deve-se assegurar a liberdade
destes, a fim de que os indivíduos possam exprimir suas opiniões a respeito do que o Direito
é, de seus defeitos e virtudes, e de como ele deveria ser, dos fins e das metas que ele deveria
atingir. Com liberdade, os indivíduos podem preconizar mudanças na ordem jurídica e
procurar convencer a maioria, também livre para lançar no debate opiniões em sentido
contrário, a fazê-lo ou a preservá-la como está. São caminhos para assegurar a liberdade o
respeito à livre iniciativa, à propriedade privada e, especialmente, à livre manifestação do
pensamento;
236
n) é necessário, também, assegurar a igualdade, que não passa de uma maneira de
permitir a todos e não apenas a algumas pessoas o efetivo exercício da liberdade. Mas,
para que essa igualdade não suprima o direito à liberdade, da qual não é antítese mas sim
instrumento de universalização, deve ser implementada no âmbito das oportunidades, e não
dos resultados. assim se resguarda o respeito à liberdade, que pressupõe não a
responsabilidade pelas escolhas feitas, mas sobretudo a possibilidade de se escolher ser
diferente;
o) são meios possíveis para reduzir as desigualdades um maior investimento público
em educação e em saúde. Entretanto, é preciso cautela para, a pretexto de obter os recursos a
tanto necessários, não se agir desproporcionalmente e chegar-se, desse modo, ao resultado
contrário do pretendido. Em verdade, diante de Estados já dotados de carga tributária elevada,
a não consecução de tais fins não se deve tanto à falta de recursos, mas à inadequada
aplicação destes. Para evitar isso, pode-se coibir o gasto público desnecessário, assim
entendido não aquele mais evidente, desviado por meio de esquemas de corrupção, mas
também aqueles empregados de forma aparentemente legítima, a exemplo das expressivas
despesas públicas com propaganda governamental, despesas que, além de comprometerem os
gastos necessários à promoção da igualdade, prejudicam a democracia diretamente, por
ensejarem o sugestionamento da população com o uso do dinheiro público para promover a
imagem daquele que momentaneamente representa o povo no exercício do poder.
A discrepância entre o que se preconiza nessas últimas conclusões e a realidade
verificada em diversos países, sobretudo no Brasil, não é motivo para que sejam consideradas
improcedentes ou equivocadas. Pelo contrário. Talvez nenhum Estado no mundo tenha
ordenamento jurídico fundado em um modelo ideal de Direito, decorrente da efetiva
manifestação da vontade da maioria de seus cidadãos, todos livres e iguais. Umas estão mais
próximas, outras mais distantes. O que se pretendeu aqui, em verdade, foi, em vez de apenas
descrever assepticamente a realidade, sugerir como ela deve ser, apontando caminhos
possíveis para tanto.
237
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255
ÍNDICE REMISSIVO
A
aborto............................................. 34, 67
acesso ao mundo suprassensível
marco diferenciador da criatura humana
.....................................................60
adultério............................................... 51
agressividade humana......................... 136
AIDS.................................................. 205
aleitamento materno ........................... 205
Alemanha nazista .................................68
ambiente livre e democrático
como necessário à verdade científica
................................................... 181
análise positivista
natureza objetiva e descritiva............ 50
antimetafísicas...................................... 95
antropocentrismo.................................. 33
antropofagia ......................................... 91
antropologia jurídica............................. 26
aprendizado
de uma cultura com as outras.......... 195
aptidão de elaborar regras de conduta
como característica humana............ 107
associação de malfeitores ..................... 19
atividade financeira ............................ 200
autoritarismo .......................186, 187, 189
B
bacanais romanas ............................... 188
Banco Central..................................... 207
Banco Imobiliário............................... 173
Big-bang ............................................ 180
C
capacidade de abstrair......................... 107
características da criatura humana
criação de regras de conduta............. 22
interligação ...................................... 22
liberdade .......................................... 22
linguagem ........................................ 22
sociabilidade .................................... 22
caráter imutável e apriorístico
do direito natural .............................. 40
cessão de mão-de-obra ................207, 208
ciência... 16, 17, 39, 42, 46, 49, 52, 54, 55,
58, 59, 60, 65, 66, 99, 100, 102, 113, 114,
115, 118, 119, 121, 123, 124, 130, 137,
156, 179, 180, 184, 211
a-valorativa ...................................... 58
jurídica.......................... 46, 66, 84, 179
não é mera descrição da realidade..... 55
natureza prescritiva ........................ 130
neutralidade...................................... 57
purificada......................................... 59
seu progresso por meio de conjecturas e
refutações................................... 102
Ciência............................................... 120
ciência prescritiva................................ 17
cientificismo ........................................ 49
civilidade natural.................................. 40
coação. 53, 60, 68, 94, 108, 127, 130, 197,
201
COFINS......................................219, 225
Comitê de 50...................................... 149
comunidades autóctones....................... 29
comunidades de formigas, de castores e de
abelhas................................................. 21
conceitos de natureza e de cultura
como antitéticos ............................... 41
concurso público .........................208, 209
conhecimento científico . 54, 78, 114, 115,
119, 120, 177, 180, 181
caráter auto-questionador ............... 114
natureza evolutiva .......................... 118
provisoriedade de suas verdades..... 120
conhecimento comum ........................ 114
conhecimento filosófico ..................... 114
conhecimento humano
256
conhecimento religioso....................... 114
Conselho de 500................................. 149
crítica ao consenso como fundamento da
ordem jurídica .................................... 141
considerações valorativas
inafastabilidade ................................ 42
contrato social
paralogismo hobbesiano ................... 26
correntes antimetafísicas....................... 16
correntes jusnaturalistas ao longo da
história e seu elemento comum............. 31
correntes metafísicas ............................ 16
corrupção .................... 162, 206, 209, 236
COSIP................................................ 223
criança cega-surda-muda .................... 104
critério de justiça.................................. 14
para comparar e julgar ordenamentos 15
críticas ao jusnaturalismo .................... 37
CSLL ................................................. 225
cultura oriental ................................... 186
D
Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão......................... 132
democracia
aperfeiçoamento pelo exercício....... 157
e a supressão de liberdade em nome do
"desenvolvimento"...................... 163
na Idade Moderna........................... 150
não pode minar seus próprios alicerces
................................................... 163
natureza desejável........................... 143
pontos em comum entre grécia antiga e
atualidade ................................... 157
representativa ................................. 151
seus críticos.................................... 151
na Grécia antiga.............................. 146
democracia direta ............................... 154
democracia representativa .................. 154
demofilia.................................... 164, 165
desigualdade........ 139, 168, 169, 176, 198
diferença entre o homem e os outros
animais........................................... 21, 23
diferenças culturais............................... 13
diferenciar o real do possível
capacidade humana de.43, 59, 107, 108
dignidade da pessoa humana
promoção pela preservação da
liberdade, da igualdade e da
democracia................................. 163
dignidade humana ........... 15, 82, 141, 172
dignidade humana (como origem do
direito natural) ..................................... 33
direito
anti-democrático............................. 158
como inerente ao ser humano ........... 20
como ordenamento jurídico .............. 20
como sistema hierárquico de normas 18
natureza dialética............................ 144
Direito
injusto ............................................ 158
só pode ser definido através de seus fins
..................................................... 52
direito como compartição de liberdade 24
direito constitucional............................ 14
direito de porta................................... 195
Direito é
anterior ao Estado ................. 26
Direito enquanto realidade institucional 24
direito ideal........43, 45, 47, 111, 113, 182
Direito Internacional .......................... 145
direito justo...................................47, 184
direito natural....14, 32, 35, 37, 38, 39, 40,
46, 50, 58, 63, 72, 76, 80, 82, 84, 86, 87,
113, 128, 137, 142, 182, 233, 234
acientificidade.................................. 37
agrava os problemas que visa a resolver
..................................................... 39
como cadáver a cuja ressureição se
assiste........................................... 44
como idéia supinamente ridícula....... 40
como justificativa para desrespeito do
direito posto ................................. 64
como origem do conteúdo dos direitos
humanos....................................... 72
conceitos antigo e moderno .............. 36
constante renascimento..................... 43
eterno e imutável.............................. 40
eterno e invariável.....................40, 103
eterno e universal ............................. 39
étnico ............................................... 63
improcedência da crítica segundo a qual
não pode ser invocado perante
tribunais ....................................... 43
insegurança e incerteza..................... 37
invocação em períodos de crise ........ 44
quem o determina? ........................... 38
serve também às ditaduras................ 37
tão sem sentido quanto gramática
257
natural .......................................... 41
direito natural........ 31, 33, 34, 35, 44, 113
como uma prostituta à disposição de
todos............................................. 63
renascimento ....................................68
direito natural absoluto....................... 103
direito natural eterno e imutável ...........36
direito natural eterno e invariável ......... 31
direito natural variável.......................... 35
direitos de animais................................ 21
direitos fundamentais ... 14, 64, 70, 71, 81,
84, 88, 129, 131, 153, 154, 168, 174, 197,
201, 223, 229, 233
fundamento moral............................. 86
direitos humanos .... 13, 15, 17, 18, 68, 70,
72, 75, 82, 85, 86, 87, 88, 89, 91, 92, 160,
163, 168, 169, 183, 186, 187, 188, 191,
192, 193, 233
direito que é depende de certa forma do
direito que deve ser ...................36, 41, 45
discriminação ............................. 168, 213
distinção entre realidade e possibilidade53
ditadura ...64, 85, 151, 156, 164, 166, 170,
171, 173, 174, 187, 188
do proletariado ....................... 170, 173
ditadura provisória.............................. 173
diversidade cultural .............................. 91
divórcio................................................ 67
dogmatismo........................................ 178
E
educação81, 165, 170, 172, 191, 195, 199,
202, 203, 205, 207, 210, 211, 212, 213,
214, 215, 221, 222, 230, 232, 236
egoísmo humano ................................ 136
elites conservadoras............................ 190
empatia (como fundamento do dever ser
para o outro).........................................25
escola do Recife ................................... 40
escola sociológica............................... 100
Estado (função) .................................... 20
Estado (surgimento) ............................. 25
Estado (surgiu para garantir o direito)... 28
Estados teocráticos ............................... 32
estrutura neurológica .............21, 106, 107
estupro ............................................... 184
eutanásia .............................................. 34
evolução
da ciência e de outras criações
humanas ..................................... 102
execução de judeus............................... 63
F
fanatismo ............................................. 67
fantasma metafísico.............................. 46
filosofia ocidental............................... 186
filosofia oriental................................. 186
financiamento público de campanhas 207,
232
fins do direito
o positivismo não os considera ......... 49
seu tangenciamento como defeito do
positivismo................................... 65
fórmula do peso, ................................ 133
Führer.................................................. 63
fundamento da ordem jurídica
importância de sua determinação...... 19
no que consiste procurá-lo................ 18
G
globalização....................................14, 89
contra-hegemônica ......................... 183
governo de sábios................................. 38
crítica kantiana................................. 38
mesma dificuldade do direito natural 67
regressão ao infinito ....................... 156
gramática natural.............................40, 41
Grécia antiga................. 32, 146, 147, 165
H
história do direito ................................. 26
Hitler ...................61, 62, 64, 67, 146, 153
homem
como animal metafísico.............98, 105
como animal simbólico .................... 98
equiparado a um animal domado ...... 60
equiparado ao jumento do verdureiro
................................................... 109
I
258
Idade Média ....25, 33, 130, 149, 155, 187,
229
idéia de direito.....................36, 40, 47, 72
Igreja católica....................................... 33
Igreja Católica......................................33
igual valor dos seres humanos como idéia
metafísica............................................. 92
igualdade
de oportunidades ............................ 173
ex ante............................................ 140
ex post............................................ 140
exige igual liberdade para todos...... 159
natureza relativa ............................. 139
razões para sua promoção............... 138
definição......................................... 140
III Reich............................................... 61
iluminismo ........................................... 33
impostos
sobre a renda .................................. 218
sobre o consumo............................. 218
sobre o patrimônio.......................... 218
imunidade tributária ........................... 211
indivíduo (não é apenas uma peça da
sociedade) ............................................ 29
INPS .................................................. 224
INSS .......................................... 225, 226
intolerância religiosa .................. 187, 192
intolerantes
não defendem relativismo moral ou
axiológico..................................... 67
inventividade sociológica (do homem) .24
inventos culturais ................................. 40
IPI...................................................... 219
isonomia...................... 208, 216, 217, 224
J
jumento do verdureiro ........................ 109
jusnaturalismo.. 14, 35, 36, 37, 41, 44, 61,
63, 66, 76, 79, 80, 84, 86, 91, 158, 233,
234
à serviço de ditaduras ....................... 63
superação ......................................... 14
justiça
como algo puramente emocional e
pessoal.......................................... 50
como indiferente para o positivista ... 50
e verdade........................................ 124
Justiça Eleitoral.................................. 207
justiça universal e absoluta................... 29
L
laços de solidariedade (como responsável
pela observância da norma).................. 25
leis divinas........................................... 33
leis retroativas...................................... 63
liberalismo igualitário .................136, 221
liberdade
como característica humana............ 107
como forma de implementar a
democracia................................. 162
como garantia de que as ações
governamentais possam ser criticadas
................................................... 165
conceito e origem............................. 21
de expressão............................156, 161
e responsabilidade .......................... 133
econômica...................................... 135
impossibilidade de seu absoluto
exercício..................................... 131
intrínseca relação com igualdade .... 133
na grécia antiga .............................. 148
necessidade de sua igual compartição
................................................... 127
negativa.......................................... 136
política ........................................... 133
por que deve ser escolhida.............. 175
positiva .......................................... 136
quando pode ser restringida............ 132
razões pelas quais deve ser prestigiada
e protegida.................................. 131
sempre existiu, mas nem sempre para
todos .......................................... 159
sua ausência na forma leninista de
Estado ........................................ 171
supressão em regime de igualdade de
resultados ................................... 173
validade de restrições proporcionais ao
seu exercício............................... 166
definição ........................................ 131
para participar do processo democrático
................................................... 160
limitações humanas............................ 180
linguagem
como característica humana.......22, 107
linguagem (como traço diferenciador do
259
homem )............................................... 24
M
macaco autor de romances.................. 164
'Manifesto do Partido Comunista' ....... 217
metafísica....16, 40, 48, 49, 55, 60, 92, 95,
96, 98, 100, 101, 102, 103, 180
afastamento ...................................... 50
origem da palavra ............................. 95
mínimo de eficácia social
como necessário à existência e à
validade da ordem jurídica............ 54
Monopoly........................................... 173
moral natural ........................................ 40
moralidade ......................................... 208
multiculturalismo . 16, 87, 88, 89, 93, 191,
194
mutilação da realidade.......................... 58
N
nacional-socialismo.............................. 62
natureza humana
caracterizada pela distinção entre real e
possível ........................................ 21
consiste em distinguir real do possível
.....................................................45
e o senso de realidade e de
possibilidade............................... 128
relatividade..................................... 105
natureza humana (liberdade, direito,
linguagem) ........................................... 24
natureza humana (natureza egoísta) ...... 28
natureza humana (sociabilidade, a
linguagem e as regras de conduta) ........ 22
nazismo...............................39, 61, 64, 93
neopositivismo ..................................... 15
noção do justo .................................... 142
O
objetividade
como um processo infinito de
aproximação ............................... 121
objetividade epistêmica ...................... 112
objetividade ontológica ...................... 112
obrigação moral
de observar as normas jurídicas ........ 62
ordenamento injusto............................. 15
ortografia natural.................................. 40
P
padrão de justiça
completamente subjetivo e de
impossível cognição ..................... 34
pena de morte....................................... 34
pensamento pós-metafísico .................. 95
PIS..................................................... 219
pluralismo...............................76, 93, 129
ponderação......................................... 133
posição original...................175, 176, 216
positivação de princípios
como característica do pós-positivismo
..................................................... 14
positivismo
como rejeição à metafísica ............... 48
e a impossibilidade de se examinarem
valores subjetivos ......................... 50
e o nazismo ...................................... 61
grande contribuição para o estudo do
direito........................................... 65
não confundir com positividade........ 82
natureza matafísica de suas premissas
antimetafísicas............................ 100
negação da natureza humana ............ 59
precariedade de suas premissas
epistemológicas.......................... 123
positivismo jurídico 14, 16, 48, 49, 50, 57,
58, 61, 64, 71, 80, 86, 233, 234
abstém-se de valorações éticas ......... 48
compromisso com determinada
concepção de ciência .................... 54
e o exame neutro e objetivo da
realidade....................................... 66
superação ......................................... 14
positivismo sociológico 49, 54, 60, 65, 66,
100
contradição na pretensão de melhorar
os fatos (em que sentido?) .......... 100
pós-modernismo............ 72, 73, 74, 76, 77
pós-positivismo.15, 16, 68, 69, 71, 72, 73,
76, 86, 88, 91, 128, 233, 234
260
como aperfeiçoamento no trato do
direito posto................................ 128
como síntese do positivismo e do
jusnaturalismo .............................. 14
falta de clareza da expressão............. 14
principais características................... 70
postulado da proporcionalidade ............ 71
prática tradicional............................... 183
pré-compreensão .................................. 58
preservação da propriedade (como
equivocada explicação para o surgimento
do Estado) ............................................ 26
preservação da vida
como valor universal ........................ 34
pretensão de correção ..................... 43, 47
princípios e regras ................................ 35
privilégio............................................ 168
progressividade .................................. 217
propaganda governamental.202, 203, 204,
205, 206, 207, 236
proporcionalidade............................... 133
na atividade do médico ................... 133
proteção às minorias........................... 171
proteção da minoria............................ 167
proteção das minorias......................... 129
psicologismo ...................................... 178
pureza metodológica............................. 58
R
racionalidade
como característica humana............ 107
razão divina............... 33, 67, 94, 129, 233
razão humana ..... 31, 40, 67, 80, 129, 181,
233
realidade social............................. 66, 198
realidades institucionais........................ 23
Receita Federal....................207, 225, 226
redução ao infinito.............................. 178
regimes nazi-fascistas........................... 63
rejeição à metafísica ....................... 49, 59
relativismo axiológico ..........................29
relativismo moral ........................... 67, 92
República de Weimar ........................... 64
revogação da lei da gravidade............... 67
Revolução Francesa............................ 131
roubo.................................................... 51
S
saúde77, 81, 172, 194, 199, 201, 202, 203,
215, 221, 222, 224, 225, 226, 228, 229,
236
sedentarização...................................... 24
Segunda Guerra Mundial.... 39, 44, 61, 68,
81
Seguridade Social........................225, 226
senso de justiça .................................... 47
separação entre direito e moral............. 50
simulacro ........................................... 175
sistema de fundamentos óbvios ............ 15
sistema nazista ..................................... 63
sociabilidade
como característica humana.......22, 107
sorteio................................................ 149
superação dialética
do positivismo e do jusnaturalismo.. 14,
68
superação epistemológica do positivismo
jurídico ................................................ 55
Super-Receita..................................... 226
supressão da liberdade
em nome da "vontade do povo"...... 169
T
teoria dos direitos fundamentais ........... 84
Teoria dos mundos (Popper)
Mundo 1........................................... 97
Mundo 2........................................... 97
Mundo 3...................... 97, 98, 111, 112
Teoria Pura do Direito....... 49, 58, 84, 143
terceirização.........204, 206, 207, 208, 209
tolerância .. 76, 92, 93, 123, 137, 138, 144,
145, 170, 193
tortura .................................124, 184, 187
tributação regressiva........................... 217
trilema de Fries ................... 177, 178, 180
U
União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas........................................... 170
universalização dos direitos humanos... 16
261
URSS ......................................... 172, 174
utilidade marginal da riqueza.............. 217
V
valores
sempre presentes em qualquer obra
humana......................................... 57
Valores ocidentais .............................. 182
valores supremos da raça germânica..... 63
verdade..16, 54, 55, 59, 72, 73, 74, 76, 77,
78, 81, 86, 105, 111, 116, 118, 122, 123,
124, 129, 137, 138, 155, 162, 163, 170,
171, 186, 189, 204, 210, 218, 236
absoluta............................................ 59
natureza consensual........................ 123
natureza intersubjetiva.................... 123
natureza provisória......................... 123
natureza relativa ............................. 123
véu de ignorância............. 175, 177, 216
visão não-positivista do direito e
resistência a ditaduras .......................... 64
visão puramente formal do direito
insuficiência..................................... 68
vontade da igreja
como determinante do conteúdo do
direito natural de origem divina.... 38
Será definitivamente elaborado apenas depois de concluída a tese.
262
ÍNDICE ONOMÁSTICO
A
AFTALIÓN, Enrique R...................... 118
ALEXY, Robert ............................. 32, 64
AL RAZIK, Ali Abd .......................... 193
ALMEIDA, Guilherme Assis ............... 67
AN-NA´IM ........................................ 194
AQUINO, Santo Tomás ................. 33, 34
ARENDT, Hannah ............................. 110
ARISTÓTELES ........................22, 23, 95
ASCENSÃO, José de Oliveira..30, 35, 61,
81, 100
ASENSIO, Miguel Angel ................... 228
AUDARD, Catherine ........................... 28
AULETE.................................18, 96, 230
ÁVILA, Humberto ............................... 85
B
BACON, Francis.................................. 27
BALEEIRO, Aliomar. 160, 201, 218, 221,
224, 229
BARAK, Aharon................................ 163
BARBALHO, João............................. 211
BARRETO, Tobias 22, 27, 39, 40, 41, 42,
66, 148
BARROSO, Luís Roberto ..49, 51, 61, 72,
82, 86
BATIFFOL, H................................ 42, 44
BECKER, Alfredo Augusto............ 15, 96
BERCOVICI, Gilberto .................. 25, 79,
80
BERGBOHM, Karl .............................. 44
BERGEL, Jean-Louis..........49, 50, 53, 66
BERTING, Jan..................................... 91
BITTAR, Eduardo................................ 67
BIX, Brian
……………………………….... 44
BOBBIO, Norberto 20, 28, 33, 48, 50, 53,
55, 125, 158, 160, 161, 223, 230
BONAVIDES, Paulo.... 61, 68, 69, 70, 89,
129, 151, 157, 168, 170, 204, 230
BOSCH, Philippe van den .................... 73
BRONOWSKI, J...........................56, 239
BRUNO, Giordano............................. 171
BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F.
....................................................... 192
BUENO, José Antonio Pimenta........22,
37
BUENO, Silveira ................................. 18
BUSCH, George W. ............................ 88
C
CALAMANDREI, Piero ...................... 63
CAMPOS, Francisco.......................... 187
CANDEL, Miguel................................ 21
CARBONELL, Miguel .................90, 183
CARNAP............................................. 95
CARRIÓ, Genaro......................41, 48, 62
CASSIRER, Ernst ..... 21, 60, 98, 104, 106
CASTRO, Cláudio Moura .................. 102
CATTONI, Marcelo........................... 153
CHORÃO, Mário Biggote.. 15, 18, 19, 32,
48, 61
CHURCHILL, Winston...................... 155
COMPARATO, Fábio Konder ...187, 192,
205, 206, 210
COMTE-SPONVILLE, André .....93, 117,
183
CORBISIER, Margarida....................... 67
COSSIO, Carlos............................. 65, 99
COSTA, Eduardo................................. 64
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza...105,
117, 119, 123, 124, 205
CUNHA, Antônio Geraldo da .............. 95
D
DARWIN, Charles ............................. 107
DEL VECCHIO, Giorgio ...22, 26, 27, 28,
33, 114, 147, 155
DEMO, Pedro ...............................70, 114
DEW, Thomas ..................................... 63
263
DIMOULIS, Dimitri .... 36, 37, 40, 48, 49,
51, 54, 63, 69, 71, 86
DONNELY, Jack ................................. 91
DORF, Michael............................ 94, 166
DOSTAL, Robert J............................. 122
DUARTE, Écio Oto ............................. 86
DURANT, Will.................................. 121
DWORKIN, Ronald29, 35, 36, 41, 42, 45,
69, 87, 108, 134, 136, 139, 140, 141,
152, 167, 172, 174, 199, 200, 203
E
EDMUNDSON, William...................... 45
ENGELS, F. ...................................... 217
F
FAGAN, Garret.............................. 73, 78
FALCÃO, Raimundo Bezerra ............ 216
FARALLI, Carla ............................ 61, 69
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves
....................................................... 188
FERREIRA, Pinto .............................. 158
FEYERABEND, Paul .... 59, 96, 102, 120,
121
FILIPE DA MACEDÔNIA ................ 149
FINNIS, John .......................... 23, 54, 56,
58, 101
FLEINER-GERSTER25, 26, 28, 30, 32,
136, 143, 150, 151, 159, 162, 167, 178,
186, 193, 229
FLETCHER, George P....................... 113
FRANCO, Sousa................................ 217
G
GADAMER, Hans-Georg.53, 57, 77, 106,
122
GANDHI, Mahatma ........................... 194
GARGARELLA, Roberto ..29, 72, 82, 93,
134, 136, 164, 181, 190
GASPARI, Elio............................ 64, 188
GATES, Bill....................................... 231
GERNG-WU........................................ 26
GEWIRTH, Alan ......................41, 54, 62
GHANEA, Nazila .......................... 88, 89
GLEISER, Marcelo............................ 180
GOLDING, Martin............................... 45
GOMES ....................................18, 26, 30
GOYARD-FABRE, Simone.....32, 36, 44,
47, 49, 51, 59, 60, 62, 73, 77, 81, 100,
104, 128, 143, 145, 147, 149, 150, 151,
157, 160, 161, 200, 230
GRÓCIO, Hugorócio ........................... 34
GRONDIN, Jean ................................ 122
GROPPALI...............................18, 35, 47
GUERRA FILHO, Willis Santiago.61, 68,
83
H
HABERMAS, Jürgen27, 71, 74, 88, 91,
98, 103, 120, 123, 130, 132, 141, 148,
159, 161, 168, 169, 172, 190, 193
HART .... 18, 27, 41, 45, 49, 51, 52, 53, 61
HEGEL, G. W. F. .......................... 39, 64
HEIDEGGER, Martin .......................... 95
HELD, David...................... 147, 148, 151
HELLER, Herman....... 20, 25, 30, 35, 108
HERMANNS, Klaus ...................187, 192
HERVADA............... 18, 82, 84, 100, 101
HESSEN, Johannes............................ 116
HOBBES, Thomas . 26, 27, 28, 50, 51, 63,
150, 151, 154
HOLMES, Stephen ............................ 136
HOUAISS, Antonio ....................... 18, 96
HUME, David...........................22, 27, 29
I
IKAWA, Daniela .......... 90, 183, 190, 194
IUDIN, P.............................................. 55
J
JAPIASSU, Hilton ......................116, 122
JUNG, Kim Dae................................. 186
264
K
KHALDÛN, Ibn................................... 25
KANT, Immanuel ...... 24, 38, 96, 99, 100,
102, 103, 104, 115, 141, 159, 165, 167,
197
KAUFMANN, Arthur .. 21, 39, 49, 63, 68,
69, 72, 76, 101, 137, 163, 184
KAUTSKY, Karl................................ 170
KELLER, Helen................................. 104
KELSEN, Hans.. .... 20, 31, 34, 36, 49, 58,
61, 83, 84, 124, 125, 143, 160, 161, 171
KERVÉGAN, Jean-François ..44, 61, 101,
102, 168
KUHN, Thomas ..........................119, 122
KRAVCHENKO, Victor.................... 173
KYMLICKA, Will ......................190, 191
L
LANG, Joachim ..........................217, 219
LAO-TSÉ............................................. 26
LARENZ, Karl..................................... 58
LATORRE, Angel......... 37, 48, 50, 62, 63
LAW, Stephen.................................... 176
LIMA, Martônio Mont´Alverne Barreto
... 64, 154, 186, 187, 192, 198, 207, 232
LIMA, Paulo Jorge de .......................... 35
LLOSA, Mario Vargas ....................... 170
LOCKE, John................................. 26, 28
LOPES, Ana Maria D'Avila ........... 69, 82
LUHMANN, Niklas .. 15, 18, 27, 165, 206
LUKES, Steven.. 42, 77, 78, 93, 103, 184,
186, 187, 191
LUNARDI, Soraya Gasparetto ............. 86
M
MACCORMICK, Neil ....................... 145
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito
........................................105, 223, 226
MACHADO, Hugo de Brito.35, 204, 206,
209, 214, 215, 224, 226
MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos
........................................164, 205, 222
MALBERG, R. Carré de ...................... 26
MALUSCHKE, Günter .......154, 187, 192
Marcos Valério................................... 209
MARÍN, Rafael Hermández ................. 35
MARMELSTEIN, George 61, 62, 71, 154,
198, 215
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho
............. 40, 66, 114, 115, 116, 117, 121
MARX, Karl .........................26, 130, 217
MCGOLDRICK, Dominic ............. 88, 89
MENEZES, Djacir 95, 100, 146, 152, 171
MERLE, Jean-Christophe ..... 50, 54, 102,
109, 130, 161, 168, 169, 181, 193, 197
MILL, Stuart....................... 132, 162, 167
MIRANDA, Jorge...................25, 85, 170
MIRANDA, Pontes de21, 22, 40, 54, 61,
66, 89, 100, 107, 109, 116, 118, 146,
148, 151, 152, 155, 156, 157, 159, 163,
165, 170, 174, 190, 192, 210
MONTAIGNE, Michel de.............. 90, 92
MONTESQUIEU, Baron C. S.............. 29
MORA, José Ferrater ..................... 95, 96
MOREIRA, Luiz.... 50, 54, 102, 109, 130,
161, 168, 169, 181, 193, 197
MORRIS, Clarence 22, 23, 24, 26, 27, 29,
33, 34, 132, 158, 162, 167
N
NAWIASKY, Hans.............................. 67
NEVES, Marcelo ..97, 129, 152, 153, 168,
169, 212
NIETZSCHE, F.............................74, 106
NINO, Carlos Santiago....................... 110
NOZICK, Robert.... 24, 97, 106, 121, 122,
123, 175, 177
O
OBAMA, Barak ................................. 230
ORTEGA, Manuel Segura.................... 87
OWEN, J.............................................. 27
OZ, Amós .....................................67, 169
P
PALMER, Richard............................... 59
PALOMBELLA, Gianluigi ............ 35, 62
265
PAPIN, Pierre ...................................... 57
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves..... 55, 86
PERELMAN, Chaïm.............57, 109, 197
PESSES-PASTERNAK, Guitta............ 57
PETTIP, Philip....................134, 155, 181
PINKER, Steven .................................. 28
PIOVESAN, Flávia ....... 90, 183, 190, 194
PLATÃO......................... 38, 67, 151, 154
PLAUTO.............................................. 27
POINCARÉ, Henry.............................. 56
POPPER, Karl...96, 97, 98, 101, 102, 117,
118, 119, 125, 131, 133, 157, 175, 178,
179, 183, 187, 199
POSNER, Richard................................ 42
PRESTON, John .................................. 59
R
RADBRUCH, Gustav... 38, 39, 52, 62, 68,
72, 101, 164
RÁO, Vicente.................. 24, 45, 133, 170
RAWLS, John.............................175, 216
REALE, Miguel 41, 44, 51, 55, 59, 63, 82,
105, 113, 144
REDFIELD, Robert.............................. 93
REIS, Márcio Monteiro ........................ 65
RIDLEY, Matt ................................... 105
ROBLES, Gregório .............19, 82, 86, 87
ROCHA, José de Albuquerque........... 202
RODES, Andronico de......................... 95
RODRIGUES, J. M. Resina................ 120
ROSS, Alf...................................... 61, 63
ROTERDAM, Erasmo de..................... 27
ROULAND, Norbert.... 22, 23, 24, 25, 30,
76, 87, 88, 89, 90, 138, 142
ROUSSEAU, J. J.....................23, 26, 158
ROYO, Fernando Perez...................... 217
ROSENTAL, M ................................... 55
RUSSEL, Bertrand............................. 165
S
SAGAN, Carl................ 24, 107, 118, 124
SANTHAKI, Alexandra ................. 88, 89
SANTOS, Boaventura de Sousa ... 13, 17,
90, 183, 194
SARMENTO, Daniel .... 90, 183, 190, 194
SARTORI, Giovanni... 146, 164, 166, 173
SCHMITT, Carl ................................. 188
SCHMIDT, Eberhard ......................... 164
SEARLE, John........ 23, 24, 107, 109, 112
SEN, Amartya.....131, 134, 135, 138, 164,
165, 169, 183, 185, 186, 187, 188, 189,
190, 191, 192, 210, 211
SHANG-KUN-SHU............................. 26
SHAPIRO, Ian .............. 77, 125, 188, 189
SMITH, Barry.................................... 113
SÓFOCLES ......................................... 33
SOKAL, Alan ................................ 73, 78
SOUZA, José Pedro Galvão ................. 67
SOUZA, Paulo César de..............106, 107
STRAUSS, Leo.................................... 32
STRECK, Lenio Luiz......................... 153
SUNSTEIN, Cass R. .......................... 136
SUPIOT, Alain ...... 23, 60, 89, 91, 93, 98,
107, 111, 159, 187, 192
SVEVO, Italo..................................... 173
T
TAYLOR, Charles ............................... 92
TELLES JÚNIOR, Goffredo.............. 188
TENG-HUI, Lee ................................ 186
TEUBNER, Gunter .............................. 53
TIPKE, Klaus..............................217, 219
TORRES, Ricardo Lobo....................... 65
TRIBE, Laurence ..........................94, 166
TRUYOL Y SERRA, Antonio .24, 32, 33,
186
TUCÍDES .......................................... 147
TUFAYL, Ibn ...................................... 21
V
VASCONCELOS, Arnaldo 20, 21, 22, 24,
30, 34, 35, 40, 41, 43, 44, 53, 55, 59,
60, 65, 80, 98, 100, 101, 109, 110, 113,
121, 128, 130, 132, 133, 148, 158, 159,
160, 163, 195
VELÁSQUEZ, Diego......................... 112
VERDU, Pablo Lucas ........................ 109
VIANNA, Francisco José de Oliveira. 168
VIGO, Rodolfo .................................... 35
VILLAR, Mauro de Salles.............. 18, 96
266
VILLEY, Michel.... 42, 44, 49, 52, 58, 61,
65, 68, 69, 71, 81, 84, 108, 142, 144,
147, 148, 166
VITA, Álvaro de . 93, 139, 140, 183, 188,
189, 190, 191, 195, 198
VITÓRIA, Francisco de ....................... 27
W
WACHTERHAUSER, Brice.............. 122
WALZER, M ....................................... 91
WARD, Glenn...........................74, 75, 77
WELZEL, Hans ................................. 164
WINDSCHEID, B................................ 44
Z
ZIMAN, John............................... 56, 254
ZIPPELIUS, Reinhold 139, 153, 160, 166,
174, 215
267
o apenas depois de concluída a tese.
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