Download PDF
ads:
unesp UNIVERSIDADE ESTADUA L PAU LISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
MARIA CLARA BACCARIN
A
P
O
É
T
I
C
A
ON
T
O
L
Ó
G
I
C
A
D
E
UM
A
AP
R
E
N
D
I
Z
A
G
E
M
O
U
O
O
LI
V
R
O
D
O
S
PR
A
Z
E
R
E
S
A
A
P
P
O
O
É
É
T
T
I
I
C
C
A
A
O
O
N
N
T
T
O
O
L
L
Ó
Ó
G
G
I
I
C
C
A
A
D
D
E
E
U
U
M
M
A
A
A
A
P
P
R
R
E
E
N
N
D
D
I
I
Z
Z
A
A
G
G
E
E
M
M
O
O
U
U
O
L
L
I
I
V
V
R
R
O
O
D
D
O
O
S
S
P
P
R
R
A
A
Z
Z
E
E
R
R
E
E
S
S
ARARAQUARA – SÃO PAULO.
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
M
ARIA CLARA BACCARIN
A
A
A
P
P
P
O
O
O
É
É
É
T
T
T
I
I
I
C
C
C
A
A
A
O
O
O
N
N
N
T
T
T
O
O
O
L
L
L
Ó
Ó
Ó
G
G
G
I
I
I
C
C
C
A
A
A
D
D
D
E
E
E
U
U
U
M
M
M
A
A
A
A
A
A
P
P
P
R
R
R
E
E
E
N
N
N
D
D
D
I
I
I
Z
Z
Z
A
A
A
G
G
G
E
E
E
M
M
M
O
O
O
U
U
U
O
O
O
L
L
L
I
I
I
V
V
V
R
R
R
O
O
O
D
D
D
O
O
O
S
S
S
P
P
P
R
R
R
A
A
A
Z
Z
Z
E
E
E
R
R
R
E
E
E
S
S
S
Trabalho de Dissertação de Mestrado,
apresentado ao Programa Pós-Graduação da
Faculdade de Ciências e Letras –
Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção
do título de Mestre em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Teoria e crítica da poesia
Orientador: Guacira Marcondes Machado
Leite
Co-orientadora:
Bolsa: CNPq
A
RARAQUARA – SÃO PAULO.
2008
ads:
M
ARIA CLARA BACCARIN
A
A
A
P
P
P
O
O
O
É
É
É
T
T
T
I
I
I
C
C
C
A
A
A
O
O
O
N
N
N
T
T
T
O
O
O
L
L
L
Ó
Ó
Ó
G
G
G
I
I
I
C
C
C
A
A
A
D
D
D
E
E
E
U
U
U
M
M
M
A
A
A
A
A
A
P
P
P
R
R
R
E
E
E
N
N
N
D
D
D
I
I
I
Z
Z
Z
A
A
A
G
G
G
E
E
E
M
M
M
O
O
O
U
U
U
O
O
O
L
L
L
I
I
I
V
V
V
R
R
R
O
O
O
D
D
D
O
O
O
S
S
S
P
P
P
R
R
R
A
A
A
Z
Z
Z
E
E
E
R
R
R
E
E
E
S
S
S
Trabalho de Mestrado apresentado ao Programa
de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e
Letras – UNESP/Araraquara, como requisito
para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Teoria e crítica da poesia
Orientador: Guacira Marcondes Machado
Leite
Co-orientadora:
Bolsa: CNPq
Data de aprovação: ___/___/____
M
EMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Nome e título
Universidade.
Membro Titular: Nome e título
Universidade.
Membro Titular: Nome e título
Universidade.
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
À professora orientadora Guacira Marcondes Machado Leite,
espelho intelectual que sempre amparou-me no árduo caminho do conhecimento;
Á meus pais: Mirian e José Giacomo;
Á meus irmãos: Mariana, Pedro, Cíntia e Vinícius;
AGRADECIMENTOS
Deixo aqui meus sinceros agradecimentos a todos que contribuíram para a
realização deste trabalho, tanto de forma direta quanto indireta.
Aos professores da fclar, que me introduziram nos caminhos dos questionamentos
ontológicos e poéticos. E em especial à professora Guacira, que abriu espaço para a
realização desse sonho.
Aos meus pais e irmãos, que sempre me apoiaram, ampararam e incentivaram
mesmo nos momentos mais insólitos e ardilosos.
As amigas e companheiras de todas as horas, que contribuíram para meu
crescimento pessoal e intelectual.
“As obras de arte nascem sempre de quem afrontou o perigo, de
quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que
nenhum ser humano pode ultrapassar. Quanto mais longe a
levamos, mais nossa, mais pessoal, mais única se torna uma vida.
[...]
Viver, viver verdadeiramente uma imagem poética, é conhecer,
em cada uma de suas pequenas fibras um devir do ser que é uma
consciência da inquietação do ser. O ser é aqui de tal maneira
sensível que uma palavra o inquieta.”.
(RILKE apud BACHELARD, 1989, p.253-254).
RESUMO
Este trabalho surge da preocupação inicial com dois temas: a poesia e a ontologia. O
contato abissal com o livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e com a literatura de
Clarice Lispector, de uma forma geral, faz emergir a vontade de compreender, tanto pelo
lado sensível quanto pelo intelectual, um pouco mais os temas ontológicos e poéticos que
são essenciais na obra clariceana. É a partir desses dois temas essenciais que surge um
mundo inesgotável de material de estudo na obra da autora. A linguagem poética é um dos
grandes focos deste trabalho, já que é a partir desse tipo de linguagem que a obra literária
de Clarice deixa entrever faces pouco acessíveis do ser, e ainda é através desse tipo de
linguagem que a obra se amplia, desloca valores, ultrapassa delimitações, inunda de
imaginação o campo das significações. Clarice Lispector chega no ápice do uso e abuso da
língua, utiliza a palavra como forma de expressão ontológica, que toca o silêncio e o
indizível, que chega no limite da própria palavra e do próprio ser, que degusta e esmiúça a
língua para expressar de forma mais plena e fiel o que é residual, condensado, inato do
homem. O caminho deste trabalho é, assim, o da linguagem, o da literatura, o da poesia e o
do ser. Aspectos que são, na verdade, partes de uma mesma totalidade, constituintes de um
cosmo. Em Clarice quebram-se as dualidades, as oposições e as diferenciações qualitativas,
o caminho é o da comunhão. A forma de entendimento de mundo é cosmológica, abrange
o sensível e o empírico, o racional e o emocional; ás vezes fragmenta-se o todo, mas a
noção de todo não pode perder-se. Clarice Lispector é a mulher, a escritora consciente da
unidade presente no mundo. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é o livro expressão
da comunhão: entre homem e mulher, entre poesia e prosa, entre razão e sensação, entre ser
e linguagem.
Palavras – chave: Poesia, Ontologia, Deslocamentos, Comunhão.
ABSTRACT
This work appears of the initial preoccupation with two subjects: the poetry and the
ontology. The abysmal contact with the book An apprenticeship or the book of the
pleasures and with the literature of Clarice Lispector of a general form, become manifest
the wish of the comprehend, such as the sensitive side how as the intellectual side, a little
more ontológical and poetic subject that are essential in the clariceana work. It is from these
two essential subjects that there appears an inexhaustible world of study’s material in the
work of the author. The poetic language is one of the great focuses of this work, since it is
from this type of language from which the literary work of Clarice lets glimpse not much
accessible faces of the being and which is through this type of language which the work is
enlarged, move values, exceed delimitation, it floods of imagination the field of the
significations. Clarice Lispector arrives in the top of the use and abuse of the language, uses
the word like the form of ontological expression, what touches the silence and the
unspeakable thing, what arrives in the limit of the word itself and of the being itself, which
tastes and examines the language in detail to express in the fuller and loyal form what is
residue, condensed, innate of the man. The way of this work is, so, the language, the
literature, the poetry and the being. Aspects that are, in fact, sides of the same totality,
constituent from a cosmos. In Clarice there are broken the duality, the oppositions and the
qualitative differentiation, the way is it of the communion. The form of world
understanding is cosmological, it includes the sensitive thing and the empirical thing, the
rational thing and the emotional thing; sometimes break up all, but the notion of all cannot
be lost. Clarice Lispector is the woman, the conscious writer of the present unity in the
world. An apprenticeship or the book of the pleasures is the book communion expression:
between man and woman, between poetry and prose, between reason and sensation,
between being and language.
Keywords: Poetry, Ontology, Dislocations, Communion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................p.10
1. CLARICE LISPECTOR: o dizer plural.......................................................p.12
2. TRAJETÓRIAS POÉTICAS........................................................................p.28
2.1. O que é poesia? Qual a sua função?..........................................................p.28
2.2. O discurso poético........................................................................................p.34
2.2.1. A metáfora.................................................................................................p.39
2.2.2. O ritmo.......................................................................................................p.42
2.3. O poeta...........................................................................................................p.43
2.4. A máquina de fazer poesia...........................................................................p.46
2.5. Poesia – a linguagem original.......................................................................p.51
2.5.1. A imaginação...............................................................................................p.51
2.6. Os gêneros literários......................................................................................p.55
2.7. Poesia + prosa................................................................................................p.58
2.8. A linguagem poética em Clarice...................................................................p.64
3. A COMUNHÃO DOS OPOSTOS...................................................................p.70
3.1. Luminescência................................................................................................p.81
3.2. A aprendizagem pela arte.............................................................................p.119
CONCLUSÃO.......................................................................................................p.130
REFERÊNCIAS....................................................................................................p.131.
Introdução
Estamos iniciando mais uma jornada no caminho doce e tortuoso de estudo da
linguagem de Clarice Lispector. Amparando-nos em diversos trabalhos da vasta fortuna
crítica da autora, começamos a trilhar o nosso próprio caminho. A amplitude de trajetórias
que a crítica percorre ao estudar Clarice Lispector e seu rico legado artístico, trajetórias que
se apresentam até contraditórias algumas vezes, nos faz questionar qual seria a postura
deste trabalho e o porquê de escrever mais um estudo nesse caminho já tão trilhado.
Nesse ano (2007) do trigésimo aniversário da morte da autora, ainda podemos
encontrar muitos estudos sendo feitos em cima dessa figura misteriosa e de seu rico legado
artístico. Parece que é inesgotável o que se tem para dizer sobre o trabalho criativo de
Clarice Lispector e sobre sua própria vida.
Os estudos tentam destrinchar desde os fragmentos pessoais deixados por ela (tanto
nas memórias de amigos e parentes, quanto em objetos pessoais, cartas, etc) até mergulhar
profundamente em seus textos, buscando desvendar cada símbolo; olhar atentamente para
cada espaço, para cada novo ritmo, etc. Tudo isso para tentar assimilar o que é que há
nessas escrituras que desperta olhares, que assusta e apaixona, que reaviva um lado
escondido do ser. É um tipo de literatura que fertiliza as mentes e abrasa os corações de
quem tem a coragem de reavivá-la cada vez que abre um dos livros da autora e coloca
muito de si na difícil leitura.
No nosso contato com algumas obras de sua vasta fortuna crítica, pudemos observar
alguns temas bem recorrentes focalizando sua obra; como por exemplo: a escritura
intimista, subjetiva, hermética; a apreensão fenomenológica da realidade; as questões
ontológicas; a tentativa de adentrar nos caminhos do inconsciente; a feminilidade
exacerbada; a crise da ficção; a linguagem poética; etc.
Observando essa abertura ampla de percorrer por tão diferentes e pesados
caminhos teóricos e conceituais que o trabalho criativo de Clarice possibilita aos leitores e
estudiosos, surge a pergunta: o que é que há de tão interessante e mágico em seus livros,
que tanto enfeitiça as pessoas e que as faz buscar sempre novas veias interpretativas?
10
As respostas são muitas, e podem ser encontradas em todos esses estudos e
trabalhos. Acreditamos que há algo na literatura clariceana que planta sentimentos,
percepções, e emoções e que continua vigorando e crescendo mesmo depois de terminada a
leitura do livro. Tentando encontrar a nascente dessa fertilidade, o caminho aqui escolhido
para compreender um pouco mais essa riqueza artística e essa capacidade de frutificar
sempre novas mentes é o da investigação atenta da linguagem. Queremos focalizar
essencialmente o que é a matéria prima da literatura, ou seja, a palavra, essa matéria crua
que toma forma com o fazer literário. E nas mãos de Clarice Lispector a palavra vira obra
de arte poética; a palavra se torna uma possibilidade de abertura à sensibilidade, revelando
estratos íntimos do ser.
Então, o que objetivamos com esse estudo é continuar trilhando um pouco mais esse
denso caminho da linguagem poética. Queremos destrinchar a linguagem: capturar
símbolos, perceber as metáforas, nos familiarizar com os desvios, etc. Tudo isso para que
possamos encontrar o ontológico e o poético.
Nosso objetivo, assim, é apreender e demonstrar a ligação do poético com o
ontológico, pois acreditamos que essa ligação é o que constitui essencialmente a obra
clariceana.
Este trabalho, assim, desenvolve-se em três sessões que exploram questões
relacionadas com a poesia e com a ontologia. A primeira parte apresenta e introduz o livro
que estamos trabalhando (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres) e o modo de criação
poética de Clarice Lispector. Esta sessão apenas enuncia alguns temas importantes que
serão explorados no decorrer das outras sessões.
A segunda sessão desenvolve um olhar atento para as questões poéticas. Baseada na
visão crítica e teórica de alguns estudiosos de poesia, esmiúça temas e características do
modo poético de expressão artística. A intenção é apreender a constituição essencial da
linguagem poética: entender como esse tipo de linguagem surge na prosa e o que esse modo
híbrido de fazer literatura pode desencadear e, a partir daí, compreender o trabalho criativo
de Clarice Lispector.
A terceira sessão se focaliza mais estritamente na análise de Uma aprendizagem ou
o livro dos prazeres. Nesta sessão desvendaremos os símbolos e temas do livro estudado,
tentando encontrar os aspectos poéticos e ontológicos.
11
1. Clarice Lispector: o dizer plural
Para entrar em contato com essa linguagem trabalhada, utilizada pela autora no
decorrer de seu trabalho criativo, escolhemos o livro Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres como suporte base para nossas investigações.
O livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres foi um dos últimos escritos por
Clarice Lispector, editado pela primeira vez no ano de 1969 pela editora Sabiá. Foi escrito
em uma fase em que Clarice já havia alcançado uma grande maturidade criativa e fixado
bem seu estilo; além de ela também já se encontrar em uma fase em que sua posição no
campo das Letras no Brasil (e no mundo?) já estava consolidada. Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres é a narrativa longa que sucede o livro mais insólito e abstrato da
ficcionista, A paixão segundo G.H. (1964).
Depois do “susto” de A paixão..., surge o doce e “tranqüilizante” Uma
aprendizagem que pareceu desanimar, em alguns momentos, a crítica, por considerá-lo um
livro secundário e menos profundo. No entanto, acreditamos que essa idéia deve-se
justamente por este livro ter surgido em seguida àquele, e eles possuírem temas e
requererem posicionamentos de vida bem diferenciados. Em uma análise inicial, parece que
A paixão segundo G.H. apresenta uma maior maturidade no campo filosófico/metafísico e
articula-se através de uma linguagem mais hermética que pouco se ampara nos conteúdos
da realidade; enquanto que Uma aprendizagem... desenvolve o “fácil” tema da relação
amorosa entre um homem e uma mulher, mantendo uma linguagem que se ampara em
aspectos mais concretos da realidade. Dessa forma, fica parecendo que Uma aprendizagem
destoa do percurso criativo que a obra de Clarice vinha tomando até então e seria, assim,
um livro menor.
O crítico Assis Brasil (apud SÁ, 2000, p.61), que escreveu alguns ensaios sobre o
trabalho criativo de Clarice Lispector nas décadas de 60 e 70, diz sobre Uma
aprendizagem:
No romance seguinte, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
(1969), Clarice Lispector parece fazer uma opção: larga toda a sua
12
pesquisa, a que já aludimos, e dos temas “profundos” parte em busca de
uma “realidade” do amor, onde estariam implícitos todos os valores
humanos. A sua própria linguagem sofre um retrocesso, neste sentido da
pesquisa sem mais a inquirição parafilosófica da Paixão.
Ainda, segundo parte da crítica, Loreley, a protagonista do livro, seria apenas uma
extensão de Joana (protagonista de Perto do coração selvagem), Lóri estaria apenas
continuando a busca que Joana havia começado e que já havia sido solucionada por G. H.
(A paixão...).
No entanto, discordamos de Brasil quando ele diz que a linguagem sofreu um
retrocesso em Uma aprendizagem... Acreditamos que o livro, comparado com A paixão... é
mesmo menos insólito e hermético, cultivando um tema aparentemente clichê. Mas a forma
de tratamento dada à palavra continua sendo a mesma que apareceu desde o inaugural Perto
do coração selvagem (1944). Como observaremos, a linguagem de Uma aprendizagem é
poética, contata com temas ontológicos e existenciais, assim como ocorre em todo o
percurso criativo de Clarice.
Como o delicado e cuidadoso trabalho com a palavra é característica vital nas obras
da autora, pensamos que a grandeza dessa obra que estamos estudando está mais na sua
forma poética de dizer do que nos temas de que trata. Ou seja, a riqueza e a beleza surgem
na obra através do diferenciado trabalho com a palavra que faz nascer poesia mesmo em
acontecimentos clichês e cotidianos. O modo cuidadoso de trabalho com a palavra valoriza
e eleva o tema. E é no jogo que se estabelece entre um bom tema e uma boa estruturação
deste que se faz uma grande literatura.
Acreditamos nessa possibilidade de fazer poético da escritora, ou seja, essa
possibilidade de acionar “beleza” e vida em coisas, atitudes e sentimentos quaisquer; então
concordamos que através do olhar e do trabalho poético tudo pode virar poesia.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres apresenta algumas particularidades que
parecem diferenciá-lo de outras obras clariceanas. Segundo a própria autora o livro foi
escrito em um quarto de hotel em apenas alguns dias e ela diz ainda que este livro se
enquadra na qualificação de obra escrita com “as pontas dos dedos” (ARÊAS, 2005, p.15),
ou seja, é uma obra que foi escrita mais com o esforço do trabalho de composição do que
pela “inspiração” ou pela liberdade de tempo e de vontade. Foi escrito mais através do
13
trabalho de recortes e colagens de anotações antigas, por isso poderíamos dizer que o livro
é estruturado através de fragmentos que formam uma colcha de retalhos, reutilizando temas
e frases de outras obras da autora e dando-lhes um novo sentido dentro de um novo
contexto. Uma aprendizagem... é uma montagem de intratextualidades.
Podemos até encontrar alguns trechos desse livro em algumas crônicas presentes no
livro A descoberta do mundo, livro este que abrange um grande número de crônicas que a
autora escreveu para o Jornal do Brasil entre os anos de 1967 a 1973. Como diz Benedito
Nunes: “(...) Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres pode ser considerado um romance
de romances.” (apud ARÊAS, 2005, p.25, grifo da autora).
Uma outra diferença que é bem notável nesta obra em relação às outras é que a
trama principal da história se desenvolve em cima de um diálogo travado entre um homem
(Ulisses) e uma mulher (Loreley), e não mais em um monólogo feminino, como é mais
recorrente nas obras de Clarice. Segundo Vilma Áreas (2005, p.25) as maiores diferenças
desse livro em relação aos outros são:
[...] a narrativa polarizada pelo diálogo e não pelo monólogo, as variações
internas (registros, anotações diárias, história dentro da história etc), as
ligações com experiências anteriores.
Mas, independente dessas diferenças e dessas especificidades da montagem e do
trabalho criativo, a nossa preocupação é observar e entender o surgimento do efeito
poético/ontológico. Para isso teremos que adentrar no jogo estrutural das frases, observando
os deslocamentos, a liberdade criativa, o uso excessivo de metáforas e oxímoros, os
constantes simbolismos, o intimismo dos aspectos narratológicos, etc. Além de absorver,
também, questões relacionadas ao mito, e aos questionamentos ontológicos de apreensão do
real.
Como a língua, as palavras, as frases se estruturam na narrativa clariceana de modo
a despertar o poético e a libertar os traços íntimos do ser? É uma das interrogações que
gostaríamos de percorrer.
Ao tentar entender um pouco melhor a riqueza e a densidade do trabalho artístico de
Clarice, começamos a observar atentamente o seu esforço criativo. A autora nos deixa claro
14
que suas obras estão sempre em busca de liberdade. No livro que aqui estamos estudando,
por exemplo, isso fica explicito quando a autora (1998) diz, logo no início, na nota de
abertura, que o livro pediu uma liberdade maior:
Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito
acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte que eu.
C.L.
O que seria essa “liberdade maior”, que precisa da força para surgir? Uma liberdade
que vem da coragem. Coragem de dizer o que muitas vezes não tem nome; de ir em busca
do autoconhecimento através dessa linguagem reflexiva, que reflete sobre o eu e sobre o
mundo; coragem de focalizar o olhar para outros lados do ser e das coisas no mundo; de
mexer não apenas no lado belo do ser, mas no sujo, no reprimido, no escondido; enfiar as
mãos na massa amorfa da vida, sem cor, sem cheiro, sem gosto, sem nome, e tentar dar
forma através da língua. Coragem de tentar tornar o sensível inteligível e simbolizar o
silencioso. A escritura de Clarice se revela uma escritura-coragem, e a partir daí começa a
grandeza de sua obra.
É claro que essa coragem e essa liberdade devem estar intimamente atreladas ao
árduo trabalho de lidar com a matéria-palavra. Aliás, talvez a riqueza das palavras e das
estruturas surja justamente na tentativa de encontrar as formas mais adequadas e mais
precisas para dizer o que se pretende, para nomear e mostrar esse lado ardiloso e esquivo do
ser.
Para se revelar esse outro lado é preciso eliminar as convencionalidades, as
banalidades, as cristalizações do ser e da língua. Na busca de uma linguagem mais íntegra,
menos corrompida e menos desgastada o ser acaba encontrando também seu lado mais
íntegro, menos corrompido e menos desgastado. E daí surge aquela velha discussão entre o
que veio primeiro: homem (consciência) ou língua? O homem molda a língua ou a língua
molda o homem? Segundo Barthes
(1984, p.20):
O homem não preexiste à linguagem, nem filogeneticamnete, nem
ontogeneticamente. Não atingimos nunca um estado em que o homem
existisse separado da linguagem, que em seguida elaboraria para
15
‘exprimir’ o que se passasse em si: é a linguagem que ensina a definição
do homem, não o contrário.
O que sabemos é que em Clarice, linguagem e ser, matéria verbal e conteúdo se
formulam paralelamente, uma coisa não é sem a outra. Ou seja, pode-se dizer que linguagem
e consciência (o ser) nascem juntamente. Quando se cria o discurso se cria o ser do discurso.
As coisas não existem pela linguagem, ou para a linguagem; mas na linguagem. Esse tema
também servirá de matéria para entendermos posteriormente as questões das personagens
clariceanas, personagens que se fundam na linguagem e são linguagem.
Percebemos que um novo mundo vai nascendo na narrativa. A linguagem não
cotidiana constrói uma nova possibilidade de sentimento do real, e a literatura é ainda o
grande centro em que a linguagem consegue se manter preservada, revelando uma face não
burocratizada e não endurecida. Clarice faz uso do espaço literário para preservar ser e
linguagem da anestesia do mundo; a literatura é uma possibilidade de despertar os sentidos.
Então, parece que Clarice não apenas consegue dizer o indizível, olhar e nomear
lados obscuros; mas também consegue pegar a massa concreta da linguagem cotidiana e
remodelá-la, construí-la de outra forma. Esse experimentalismo lingüístico coloca as
palavras em situações inusitadas, deixando o que era “duro” maleável e desloca o modo de
apreensão do mundo.
A escritura, assim, dança, oscila, adquire ritmo próprio. A sintaxe se desestrutura,
muitas vezes, e se reestrutura de um jeito novo e esse novo agrupamento de palavras cria
uma semântica que exala imagens e sensações. A metáfora rica estruturada, muitas vezes,
em antíteses e oxímoros, torna-se matéria básica para cada novo expressar, e cada novo
expressar fica tão cheio de cores, figuras e ritmos que consegue criar o sentimento de
epifania, não apenas nas personagens, mas também nos leitores. O poeta Haroldo de
Campos (2000, p.15-16)
diz sobre a escritura de Clarice, no prefácio do livro de Olga de
Sá, o seguinte:
Clarice, congenialmente, no seu “escrever com o corpo”, na sua
resistência ao dizer e ao dito (aos ditames do Logos instituído), tira
partido dessa natureza ambígua do metafórico, através de um uso
particular e aliciante de símiles de impacto imediato, unidades semânticas
16
devolvidas ao estado abrupto, “ressensibilizadas”, apanhadas em
conjunção estranhante, “desautomatizadora”.
Vemos que tudo está entrelaçado em sua obra - linguagem, estruturação, criação, ser
– compondo uma literatura condensada e diferenciada. Como diz Antonio Candido (1989
p.208): “Ela [Clarice] é provavelmente a origem das tendências desestruturantes, que
dissolvem o enredo na descrição e praticam esta com o gosto pelos contornos fugidios”.
A ficção adquire a capacidade de criar para nós novos mundos, inesgotáveis, na
medida em que utiliza uma linguagem maleável e focaliza temas oscilantes; somos
convidados também, enquanto leitores, a entrar na dança das palavras e deixá-las ecoar em
nosso interior. Essa utilização da palavra não cristalizada abre sempre novos caminhos de
entendimento e a literatura assim é rica e grande como uma poesia, perpassa os tempos
históricos, pois traz sempre a possibilidade de novos frutos nascerem.
Não se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a
este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que crie para
nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que é
discurso literário. Este fato é requisito em qualquer obra, obviamente; mas
se o autor assume maior consciência dele, mudam as maneiras de escrever
e a crítica sente necessidade de reconsiderar os seus pontos de vista [...]
(CANDIDO, 1989, p.206-207).
Tendo em vista a abertura da obra a possibilidades interpretativas, e a flexibilidade
que o discurso adquire para tentar sustentar mais fielmente questões intimistas, e
ontológicas, a literatura assume o papel de destruir as verdades acabadas e de descartar as
hierarquias.
Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres notamos que existem alguns
deslocamentos hierárquicos. A linguagem é a primeira coisa deslocada que observamos, e é
o que neste estudo estamos querendo focalizar prioritariamente. Mas percebemos que
alguns outros focos pré-estabelecidos de poder também são deslocados na narrativa, como
por exemplo: a desvalorização do tempo como instância generalizada e cronológica; o
deslocamento da instância racional e automática de apreensão do real; o deslocamento da
17
supremacia masculina, etc. A intenção seria: “escrever para além do sexo, da origem, da
linguagem, da língua dominante, maior, que se dispõe a ‘interpretar, transformar,
enunciar’.” (CURI, 2001, p.60).
Nessa busca pela palavra mais “pura”, limpa e deslocada do mundo corrompido e na
tentativa de fugir dos valores e poderes pré-estabelecidos que desestruturam a linguagem
convencional, a narrativa cria um universo paralelo, um microcosmo com leis próprias e
com “verdades” diferentes. Na verdade, as palavras “verdade”, “lei”, “valores pré-
estabelecidos” parecem não ser mesmo as importâncias, ou onde a narrativa busca se
estruturar. Pelo contrário, talvez a narrativa busque uma fuga das verdades, de qualquer
verdade, acreditando numa visão relativa do mundo. Então esse mundo novo que se cria na
narrativa é um mundo estranho, não familiar, causa impacto e faz acordar em nós o que
estava adormecido.
É um cosmo que emerge através do olhar poético que o artista inquire sobre o
mundo. Olhar que é primitivo, no sentido de que é um olhar primeiro, que consegue se
surpreender e se admirar com o mundo e olhar que é também vidente, que enxerga além, vê
o lado isolado, particular e não habitual do ser. Olhar artístico que desnuda as coisas no
mundo, retira o valor de utensílio, de ferramenta para ver as coisas em sua existência
isolada, particular, apenas como coisas que são em si antes de servir para algo mais. E
ainda é um olhar intuitivo, que cria o mundo a partir do que sente, a partir do desejo pré-
sentido e por isso muitas vezes é chamada de inspiração.
E é nesse ponto que a apreensão do conceito de mito se faz necessária. Em uma
narrativa em que o olhar é deslocado e tem a possibilidade de criar uma nova visão de
mundo, com leis próprias, que busca as origens das coisas, instaura-se uma percepção de
mundo mitológica. Neste modo de percepção, não há uma divisão dos planos de mundo,
aqui sentimento de transcendência presentifica-se no mundo concreto; a divisão entre razão
e sensação, entre existência e essência se rompe e instaura-se uma comunhão, uma unidade
maciça do todo.
Esse tema da “comunhão”, aliás, é um dos temas centrais de Uma aprendizagem...,
comunhão não apenas no tema amoroso em que homem e mulher vão compartilhando
conhecimentos e sensações até chegar ao auge da comunhão amorosa; mas também a
comunhão se faz presente no nível discursivos da narrativa, a partir do momento em que as
18
diversas instâncias narrativas procuram se tornar equivalentes e interligadas. Como já
dissemos: ser, linguagem, atividade criativa, estruturação narrativa se condensam, se
refletem, como se cada instância justificasse seu modo de ser e se auto-afirmasse na outra.
Podemos observar a comunhão dos níveis do discurso e o modo de ser do trabalho
criativo através de aberturas e esclarecimentos que o próprio material ficcional e as várias
instâncias narrativas nos legam. Muitas vezes, por exemplo, encontramos na própria ficção
questionamentos sobre o fazer literário, como se a forma, a estrutura que está sendo usada,
falasse sobre si mesma, se questionasse sobre o que está dizendo e o modo como esta
dizendo.
Percebemos isso, por exemplo, quando aparece, em vários momentos, a conjunção
“ou” ligando duas orações, como se a escritura se perguntasse: o que é melhor dizer: isso
“ou” aquilo? Qual seria a forma mais precisa de dizer: esta “ou” aquela? E o próprio título
do livro é um exemplo disso: Uma aprendizagem “ou” O livro dos prazeres.
Constatamos também essa atitude metaficcional quando aparecem diversos pontos
de interrogação como se a autora estivesse perguntando se é aquilo mesmo que está
tentando dizer, ou mesmo se perguntando como aquilo que está tentando dizer poderia ser
dito da melhor forma. Surgem perguntas como:
“Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio?” (LISPECTOR,
1998, p. 36);
“Como é que se pede? E o que se pede? Pede-se vida?” (LISPECTOR, 1998, p.55);
“O que é o real?” (LISPECTOR, 1998, p.55);
“Seria talvez possível que a um certo ponto da vida o mundo se tornasse óbvio?”
(LISPECTOR, 1998, p.65).
Esses questionamentos surgem através das vozes das personagens e do narrador, e
na maioria das vezes não são dadas respostas a eles, apenas são proferidos para despertar o
pensamento e a imaginação. Por isso também, muitas vezes, a leitura desse tipo de narrativa
nos faz sair do comodismo de apenas virarmos as páginas do livro, degustando
passivamente a história que nos é narrada. O leitor começa a ter uma função ativa, pois os
questionamentos instigam a capacidade criativa e imaginativa. E ele torna-se parte essencial
da construção significativa da narrativa, imbuindo na mesma interpretação e sentimento de
mundo.
19
Neiva Pitta Kadota (1997, p.65-66) fala sobre o interesse de se escrever
questionando:
Ao expor a “olho nu” o trabalho de montagem do texto, o projeto
estrutural da narrativa, há um desvirtuamento do processo de contar, do
relato factual, e uma tendência a explicitar sua essência verbal e
negar/anular seu compromisso representativo com o homem e o mundo
nos moldes do narrar tradicional. Uma recusa consciente porque
interessada no cavar e descobrir/liberar tensões, essas linhas de força que
demonstram o estar-se vivo e presente e o poder ainda, apesar dos séculos
de aprisionamento pelos comportamentos condicionados, tornar-se um ser
não-autômato, ou seja, um ser de linguagem, capaz de realizar em sua
plenitude, ainda que contra a ideologia que tudo cerceia, a façanha
espetacular de viver.
Nesse expor a “olho nu” o trabalho de montagem do texto, nos perguntamos se a
autora não se coloca, dessa forma, vivamente dentro do texto. E essa é mais uma questão
que nos choca na leitura dos livros de Clarice: será que ela se expõe assim cruamente em
seus textos, ou será isso mais um jogo ficcional?
Não nos interessa responder com certeza a isso, apenas acreditamos que se trata de
uma característica que causa estranhamento e desestrutura a narrativa. Essa atitude
metalingüística é mais uma característica que torna esse tipo de escritura diferenciada.
Ainda segundo Neiva Pitta Kadota (1997, p.102), nas narrativas de Clarice
Lispector, essa atividade auto-reflexiva de metalinguagem se faz presente também na
atividade de intertextualidade e de intratextualidade:
Nesse novo modo de composição literária que melhor se coaduna com a
sociedade contemporânea, o texto literário, rompendo os limites de seu
espaço predeterminado, dialoga com outros textos na dimensão interna de
sua própria obra – a intratextualidade -, ou externa a ela – a
intertextualidade, num processo metalingüístico que o valoriza pela sua
hibridização e dessacralização, cujo resgate dá origem à operação
tradutória ou recriação estética.
20
A fragmentação do discurso, o trabalho de recortes e colagens, o permanente
diálogo entre as obras clariceanas e com a própria linguagem que utiliza são fatores que
contribuem na afirmação da liberdade criativa e da descristalização da obra.
Tudo isso nos dá mais um indício dessa coragem de narrar. A coragem de revelar a
nudez do trabalho criativo. De revelar que tudo pode (deve) ser questionado, inclusive o ato
ficcional. A coragem de não se ter uma firmeza (certeza) ao dizer, de revelar posições
oscilantes. Como diz Nunes (1998, p. 44):
Depois desce mergulho no subsolo escatológico da ficção, nas águas
dormidas do imaginário, comuns ao sonho, aos mitos e às lendas, a voz
reconstruída de quem narra só poderá ser uma voz dubitativa, entregue à
linguagem – aos poderes e à impotência da linguagem, distante e próxima
do real extralingüístico, indizível.
Esses questionamentos que ficam expostos na narrativa revelam um pouco o
trabalho criativo, revelam que a obra busca o dizer preciso e que esse dizer talvez não
exista, por isso a obra quando se diz se questiona.
É, ainda, interessante observar que a partir dessas dúvidas expressas no ato de
narrar, a palavra começa a mostrar-se flexível. Se não se pode dizer nada com certeza, se
não há como chegar à exatidão plena, se a palavra não pode ser mais um padrão, mesmo
porque a palavra é uma metáfora, se há várias formas de se dizer o que se quer dizer, então
a palavra se revela modelável, inconstante e não fixa, assim como é o ser.
A nudez da palavra e os desvios da estrutura da narrativa procuram espelhar-se no
conteúdo da mesma. O narrador de Uma aprendizagem diz, em certo momento: “A
coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, e no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer
exige coragem.” (LISPECTOR, 1998, p.79). Esse modo de agir corajoso da personagem
Lóri, que entra em lados pouco conhecidos do ser é o mesmo modo de agir que a ficcionista
desempenha.
Assim como a palavra vagueia em sua forma e suas significações, os temas das
narrativas de Clarice também se constroem sobre aquilo que oscila e é inconstante.
21
É um tipo de narrativa que tece a esfera do sensível. Como já dissemos, tenta revelar
o lado sem forma do ser. Narrativa que entra em questões ontológicas, ou seja, questões que
direcionam para respostas múltiplas e variadas; ou simplesmente para respostas nulas.
Segundo Alfredo Bosi (1989, p.442), o deslocamento maior das ficções clariceanas
é justamente o fato de ultrapassarem a esfera do psíquico, desembocando na esfera do
ontológico/metafísico. Ele até nomeia esse tipo de narrativa, tentando enquadrá-la nos
moldes da teoria literária tradicional, mas compreendendo que esse tipo de literatura
ultrapassa demarcações. Ele nomeia de: “romance de tensão transfigurada” que se
caracterizaria da seguinte forma:
O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente
pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. [...] O conflito, assim
“resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a
tragédia.
A linguagem poética seria a forma mais plena e expressiva para falar sobre os temas
míticos e metafísicos. O modo de dizer poético seria a causa e ao mesmo tempo a
conseqüência desse questionamento exacerbado e profundo sobre o ser. O ser, na busca da
identidade e percorrendo caminhos obscuros, desenvolve uma linguagem mais expressiva e
questionadora. A linguagem detalhada, lapidada e desautomatizada, invade o caminho sem
volta da busca ontológica.
Porém, o contato direto com essas questões filosóficas não faz com que a literatura
vire filosofema, o narrar é a expressão, e a filosofia é a “explicação” retórica da realidade.
Clarice é a artista da expressão (impressão?). Como diz Olga de Sá (2000, p. 138-139, p.22,
grifo da autora), tentando diferenciar um pouco a função filosófica da literária:
Um literato nem sempre pode, no domínio das idéias, apresentar a
originalidade de um verdadeiro pensador. Sua grandeza específica é dar
valor literário ao que o filósofo daria uma expressão técnica.
Ou ainda:
22
Analogamente, o engajamento radical de Clarice com a própria
linguagem, que mesmo quando afirma se interroga. Ao dizer que ela
inaugura, entre nós, o romance metafísico quisemos significar: Clarice
não é um filósofo, um pensador, mas uma escritora, fundamentalmente
comprometida com o ser sob linguagem; ou, melhor, com a linguagem,
espessura do ser.
Em meio a isso tudo, não podemos pensar que pelo fato de a narrativa tratar de
questões oscilantes e usar uma estruturação lingüística deslocada, o trabalho criativo não
tenha sido árduo e pesado. Pelo contrário, talvez seja mais árduo justamente por lidar com
essas questões. O trabalho corajoso de entrar no lado difícil das coisas, sentir esses lados e
ainda dizer, dar nomes e formas a eles é um trabalho extremamente pesado, de poeta
garimpeiro mesmo.
Por isso o uso da técnica é sempre muito grande; “pode-se dizer até que a equação:
técnica + sensibilidade = arte, é verdadeira.” (KADOTA, 1997, p.69).
Para falar de temas instáveis como os que as narrativas clariceanas se propõem, é
preciso fazer uso de técnicas narrativas específicas para transmitir da melhor forma o que se
quer transmitir. Clarice Lispector faz uso, por exemplo, do fluxo de consciência; do
monólogo interior; desenvolve a narrativa contínua, sem interrupções; tenta dar forma ao
mundo ficcional através do olhar intimista que tudo desorienta. Nasce uma escrita que,
muitas vezes, parece nos transportar para um mundo onírico, em que tudo se reanima com
novas cores e formas.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, como já dissemos, se diferencia de
muitas outras obras da autora pela introdução do diálogo ao invés de unicamente
desenvolver o monólogo feminino. Neste livro, temos a possibilidade de entrar em contato
com duas consciência: a de Ulisses e a de Lóri. Mas vamos percebendo que o caminhar que
essas consciências vão traçando na narrativa é mesmo o de uma comunhão plena,
comunhão que chega à instância da consciência, do sentimento de mundo equivalente e
uno. Por isso podemos dizer que o diálogo nesta obra representa um “monólogo a dois.”
(SÁ, 2000, p.54).
Mas há também, nesta obra, monólogos “a um”, ou “diálogo da consciência consigo
mesma.” (SÁ, 2000, p.54). A protagonista tem momentos de isolamento, em que pensa na
23
própria condição, conversa consigo mesma, e muitas vezes parece que dois estados de
consciência da mesma personagem se dividem e dialogam. Acontece isso quando, por
exemplo, Lóri se olha no espelho e se estranha perante a própria imagem. Muitas vezes
também, Lóri conversa com Ulisses, mas na verdade está travando um monólogo, como se
ela precisasse da presença física de outra pessoa para se auto-questionar e se auto-
encontrar.
O fluxo de consciência (Stream of Consciusness) é outra técnica de que a narrativa
se apropria. Técnica que havia sido tão bem manipulada por Joyce, Virginia Woolf e
outros.
Muitas vezes a estruturação da narrativa que segue sem recortes, com uma
pontuação desordenada, desenvolvendo enormes períodos no discurso, é justamente a
tentativa de a consciência fluir o mais naturalmente possível, tentando fazer as palavras
adequarem-se à velocidade e à intensidade do pensamento.
Daí surge, então, a instauração de um novo tempo narrativo. A narrativa busca se
estruturar em um tempo próprio e subjetivo, diferenciado do tempo cronológico, objetivo.
O tempo cronológico é o tempo da lógica, é uma convenção artificial, que enquadra o
mundo em um tempo instituído socialmente. O tempo subjetivo, psicológico, ou metafísico,
como alguns autores costumam chamar, é o tempo do ser, sempre relativo, sempre próprio,
sempre diferente.
Por isso, na tentativa de desenvolver esse tempo particular na narrativa, a autora faz
uso do fluxo de consciência. Por isso, também, a narrativa adquire estruturação própria,
tentando acompanhar o tempo “natural” do ser, do sentir.
Por exemplo, se reduzíssemos um acontecimento da história ao tempo cronológico,
a percepção do que foi dito se despojaria de toda sua grandeza. Algo que acontece em
apenas segundos do tempo cronológico acarreta sentimentos, sensações, pensamentos e
conflitos que têm um espaço de tempo inominável e pode ocupar grande parte do
contundente esquema ficcional. Por isso o tempo é outra instância narrativa
desautomatizada, não pode mais ser quantitativo e simétrico, pois o ser não é quantitativo e
simétrico.
A idéia de durée desenvolvida por Bergson, que diz que o tempo é qualitativo e tem
um ritmo próprio, caberia bem para identificar os tempos clariceanos.
24
Há também o fator de sobreposição de épocas temporais, uma interpolação de
presente, passada e futuro. O passado seria o tempo da memória que mescla acontecimentos
transcorridos com desejos, fantasias, e criações novas e estaria presente ativamente no
tempo presente; e o tempo futuro seria apenas uma criação imaginativa que o presente
concebe. Daí surge a idéia de tempo circular, da eterna volta ás origens.
Desejos e fantasias podem não só ser lembrados como fatos, como
também os fatos lembrados são constantemente modificados,
reinterpretados e revividos à luz das exigências presentes, temores
passados e esperanças futuras (MEYERHOFF apud SÁ, 2000, p.98).
Não é só a instância temporal que ganha ares subjetivos, a descrição do espaço, das
coisas no mundo, também é retratada de forma subjetiva. O espaço não é mais como um
retrato de fotografia. Todas as coisas nos são expressas depois de passadas pelo crivo da
interioridade para então surgirem na exterioridade. As instâncias espaciais, então, aparecem
imbuídas de sentimentos, de cores e formas que dizem respeito às cores e formas do interior
do ser.
Às vezes nos sentimos como que diante de uma pintura expressionista ao nos
depararmos com frases cheias de figuras de imagens, que parecem carregadas de cores
resplandecentes, fundidas e vibrantes, com traços que deformam a realidade para retratar o
sentimento.
Também, muitas vezes, parece que a narrativa adquire uma música própria que
surge através dos ritmos desencadeados por figuras de linguagem (assonâncias, aliterações),
pela disposição própria das frases e períodos e também pelos símbolos “despejados” nas
folhas. O som do sino badalando, o barulho do mar, a chuva, o vento na noite... ajudam a
nos transportar para esse mundo de sensações.
A escrita mexe com nossos sentidos, e a literatura, assim, se torna ampla,
transbordando para o campo de outras formas de representação artística: a música, a
pintura, o cinema e até a culinária.
No livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
em vários momentos, nos
deparamos com uma exacerbada descrição de sensações: a personagem Lóri entra em uma
sintonia profunda com objetos e coisas do mundo e parece alcançar um estado de êxtase. As
25
coisas parecem despertar esse êxtase, mas pode ser que Lóri precisasse dessas matérias
unicamente como mediadoras para se permitir essa abertura sensível. Na verdade, o estado
de êxtase surge na possibilidade de deixar o estado interior fluir e se expressar no exterior.
No decorrer da história, Lóri vai experimentando esses estados isolados, que são como
prelúdios da sexualidade, são experiências eróticas que colocam a personagem no caminho
do auto-conhecimento e da liberdade de expressão, e que culmina na entrega sexual, ao
final do livro.
Lóri precisa desses falsos apoios, desses objetos mediadores, para revelar-se a si
mesma; assim como precisa da presença mediadora de Ulisses para ajudá-la nesse caminho
da auto-aprendizagem. Mas, na verdade, ela chega ao ápice da liberdade e do auto-
conhecimento sozinha.
Esse estado de êxtase seria a epifania, que “[...] é um modo de desvendar a vida
selvagem que existe sob a mansa aparência das coisas, é um pólo de tensão metafísica, que
perpassa ou transpassa a obra de Clarice Lispector.” (SÁ, 2000, p.135).
O estado epifânico surge no estranhamento, como se fosse um momento de
sobriedade em que a personagem se abrisse para um entendimento maior sobre sua
condição no mundo.
No contato íntimo com as coisas (Natureza), a narrativa se enche de descrições
detalhadas, as frases ficam cheias de adjetivações para tentar descrever da melhor forma
esse fascínio que o mundo material desencadeia. Carlos Felipe Moisés (1989, p.154),
escreve sobre a ficção em crise de Clarice Lispector:
A tendência aí anunciada, em termos de analitísmo, ourivesaria
minudente, atenção aos detalhes, não constitui simples opção estilística,
mas a metaforização de uma forma de ver o mundo e as coisas.
Como já dissemos, a escolha dessa escrita cheia de figuras, deslocamentos,
metaforizações, descrições, é a tentativa de ser o mais fiel possível ao sentimento, ao
mundo que está se querendo dizer.
Carlos Felipe Moisés (1989, p.154) diz ainda sobre esse modo de produção literária:
“Partes, detalhes, fragmentos: a realidade jamais é buscada como um todo, pelo temor de
que a sua completude avantajada venha a sufocar a fragilidade do mundo interior.”
26
Essa opção de escrever em fragmentos e deslocamentos é a tentativa de revelar a
interioridade. E a interioridade tem uma realidade relativa, fragmentada, com ritmo próprio,
com tempo próprio; é um mundo à parte.
Com todas essas observações e constatações, percebemos que a narrativa entra
mesmo em crise, não pode mais ser chamada de romance. O relato poético é a forma
desenvolvida nesse tipo de narrativa. Relato que escolhe o espaço maior da narrativa longa
para que o fluir dos detalhes e das construções que correm em fluxo possam aflorar de
forma mais abrangente.
O hibridismo entre poesia e prosa é o que podemos observar neste livro, que utiliza
a prosa poética. E, sobre o qual, discorreremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
A meditação apaixonada, feita de lampejos intuitivos, e a ficção
propriamente dita, sempre meditativa, feita de súbitas iluminações,
produzem-se reciprocamente, produzindo o movimento dubitativo,
dramático, de uma escrita errante, autodilacerada, à procura de sua
destinação, impelida pelo vago objeto de desejo, que desce ao limbo da
vida impulsiva para subir a uma forma de improviso, intérmino, no qual
parece abolir-se a distinção entre prosa e poesia, e que, fluxo verbal
contínuo, sucessão de fragmentos da alma e do mundo, já não pode mais
receber a denominação de conto, romance ou novela – improviso porque
desenrolado, tal o impromptu musical, ao léu de múltiplos temas e
motivos recorrentes (autoconhecimento, expressão, existência, liberdade,
contemplação, ação, inquietação, morte, desejo de ser, identidade pessoal,
Deus, o olhar, o grotesco e/ou o escatológico). (NUNES, 1998, p.45-46).
27
2. Trajetórias poéticas
Nesta segunda parte, adentraremos mais profundamente na teoria poética. Como
acreditamos que a linguagem que Clarice Lispector utiliza em seu trabalho criativo é
poética, tentaremos percorrer mais detalhadamente essa expressão artística. Caminharemos
na busca das definições essenciais de poesia e de linguagem poética, para depois imbricar o
trabalho criativo clariceano nesse viés teórico.
Alguns temas que percorreremos serão: a poesia e sua função; o poeta e o trabalho
criativo; a linguagem poética; fantasia e imaginação; a prosa poética; a poesia em Clarice.
2.1 O que é poesia? Qual a sua função?
A palavra “poesia” vem do grego póiesis e significa: “forma de expressão
lingüística destinada a evocar sensações, impressões e emoções por meio da união de sons,
ritmos e harmonia e utilizando uma seleção de vocábulos essencialmente metafórica.”
(LAROUSSE, 1998, p.722).
Falando de outra forma: a poesia é a harmonização e a integração de sons, ritmos,
vocábulos metafóricos que criam uma expressão lingüística com capacidade de evocar
sensações, impressões e emoções. Dessa forma, temos que atentar, quando lidamos com
poesia, para cada elemento que constitui essa harmonização, tentando captar como essa
integração de elementos diversos faz nascer uma estrutura orgânica e auto-suficiente.
A poesia é como uma poção, uma mistura de elementos diversos, constituindo um
todo e nós, enquanto degustadores e pesquisadores, temos que desestruturar e fragmentar
essa mistura, captando cada elemento que foi cuidadosamente adicionado para entender a
constituição inicial.
Quando pensamos em poesia uma das primeiras idéias que vem a nossa cabeça é
que a poesia é uma forma de expressão artística.
28
Nas diversas definições do vocábulo “expressão”, encontramos uma que diz:
“Maneira de representar algo através de uma técnica artística” (LAROUSSE, 1998, p.414,
grifo nosso), e outra que diz ainda: “Aquilo pelo qual algo se manifesta” (LAROUSSE,
1998, p.414, grifo nosso).
A expressão é uma forma de representação em que algo se manifesta. Como nosso
estudo está interessado na linguagem poética, interrogamos: o que é representado na arte
poética? O que se manifesta?
Em um sentido mais genérico, Benedito Nunes (1966, p.100, grifo nosso) diz que a
expressão: “[...] é o ato que consiste em relacionar certos dados atuais ou presentes a
objetos ocultos ou distantes [...] Diz-se que as palavras exprimem o pensamento, porque
servem de veículo às idéias”.
Voltado mais especificamente para a expressão poética, o filósofo diz ainda que:
“expressão é o conjunto de efeitos exteriores da consciência, efeitos esses que são sintomas
de processos interiores ou sinais de estados psíquicos, sentimentais e emotivos.” (1966, p.
100-101).
Nessa linha de pensamento, apreendemos que o que se manifesta na arte poética é a
interioridade, que só pode ser representada através de suportes exteriores, e por isso a
expressão poética é o ato de relacionar, é o diálogo travado entre interioridade e
exterioridade que se materializa na forma de palavra.
Como dissemos logo acima: a poesia é uma forma de expressão artística. Já que
percorremos um pouco o terreno da expressão, agora nos perguntamos: o que é arte?
Recorremos mais uma vez à significação do dicionário, que diz que arte é: “criação
de objetos ou de organizações específicas destinadas a produzir no homem um estado
particular de sensibilidade.” (LAROUSSE, 1998, p.90, grifo nosso).
Acreditamos que arte é mesmo uma criação, mas a palavra “criação” no processo
artístico deve ser observada como verbo e como substantivo. A arte é um ato de criação,
requer trabalho, disposição. A arte também é um objeto de criação, ou seja, uma concretude
resultante do ato de criar. Ela não é só o objeto artístico, mas é também o trabalho de
criação que começa no artista que a produz e continua nos apreciadores que a partir dela
também criam. A arte é o processo.
29
Arte é uma organização específica, trabalha com a palavra de forma exclusiva,
reunindo elementos determinados. A poesia é a arte de desestruturar e reestruturar, como
poderemos observar mais à frente.
A definição de arte diz ainda que ela é uma organização 17 768.o
Póiesis – É produção, fabricação, criação. Há, nessa palavra, uma
densidade metafísica e cosmológica que precisamos ter em vista.
Significa um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma
criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova, um ser.
Criação não é, porém, no sentido hebraico de fazer algo do nada, mas na
acepção grega de gerar e produzir dando forma à matéria bruta
preexistente, ainda indeterminada, em estado de mera potencia.
A poesia é, então, o trabalho artístico sobre matéria bruta, e muitas vezes
corrompida, do mundo, que faz surgir uma realidade cosmológica e abre espaço para lados
pouco acessíveis do ser emergirem. Por isso a poesia é a arte essencialmente ligada à
expressão ontológica.
[...] o que chamamos poesia implica a mais profunda penetração no ser
de que é capaz o homem. Sedenta de ser, enamorada de ser, a poesia
cruza as camadas superficiais sem iluminá-las de todo, centrando seu
foco nas dimensões profundas. E então ocorre que como o homem está
fenomenicamente em relação com suas essências como a massa de esfera
em relação com seu centro, a poesia incide no centro, instala-se no plano
absoluto do ser, e só a sua irradiação reflexa volta à superfície e envolve
seu conteúdo em seu luminoso continente. (CORTAZAR, 1993, p.66-
67).
No que concerne à arte, é, ainda, interessante observar que derivada da palavra
“arte” há a palavra “artefato”. O artefato é: “produto ou obra do trabalho mecânico”
(LAROUSSE, 1998, p.90), algo que é construído para um fim utilitário. Essa definição
parece muito distante da definição de poesia, pois a poesia não é funcional, não é criada
para um fim utilitário. Mas, a poesia é a concretização de um ato de criação, assim como o
artefato. A poesia, assim como o artefato, é produto de um trabalho. Ambos surgem de um
esforço criativo e por isso artístico. E o poeta, assim como um artesão, quebra, torce,
entorna, desloca, colore uma matéria-prima, transformando-a em objeto lapidado.
Então, se a poesia se diferencia do artefato principalmente por não ser criada para
um fim utilitário, qual seria a função da poesia?
31
Poderíamos dizer: a poesia tem função de despertar sensações e emoções no
homem, ou, a poesia tem função de comover, evocar. A poesia pode, e talvez essa seja uma
de suas características, despertar o lado sensível do homem, mas essa não é sua função, essa
é uma de suas conseqüências. Ela não tem uma causa além de si mesma para nascer e
existir, e isso quer dizer que a poesia é linguagem, é a linguagem em sua essência e não
utiliza a linguagem com fins comunicativos ou outros fins. Ela não é uma ferramenta
destinada a cumprir algo, o destino da poesia é ser em si mesma; como já dissemos: a
poesia é auto-suficiente e gratuita. Ela é a expressão de uma sensação ou um sentimento
que se avivou, tomou forma, mas que continua no espaço da liberdade de ser ou não-ser, de
sentir ou não sentir.
Essa noção de auto-suficiência da poesia começou a ser muito difundida na
modernidade. Em Estrutura da lírica moderna, Hugo Friedrich (1978, p.16) desenvolve um
panorama amplo da poesia e seus expoentes na modernidade; ele diz sobre a intenção da
poesia nessa época:
A poesia quer ser [...] uma criação auto-suficiente, pluriforme na
significação, consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças
absolutas, as quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas
também deslocam em vibrações as zonas de mistério e conceitos.
Friedrich (1978, p.17) fala da poesia como um deslocamento e explica que esse
deslocamento é relativo à realidade externa do mundo:
A realidade [da poesia] desprendeu-se da ordem espacial, temporal,
objetiva e anímica e subtraiu as distinções – repudiadas como prejudiciais
-, que são necessárias a uma orientação normal do universo: as distinções
entre o belo e o feio, entre a proximidade e a distância, entre a luz e a
sombra, entre a dor e a alegria, entre a terra e o céu. Das três maneiras
possíveis de comportamento da poesia lírica –sentir, observar, transformar
– é esta última que domina na poesia moderna [...].
Percebemos que a poesia rompe com as leis da realidade a partir do momento em
que a transforma. A poesia transforma a realidade e quebra conceitos estabelecidos,
32
quando, por exemplo, não mais coloca termos e conceitos opostos como contrastantes,
quando destrói a idéia de verdade, de bom e de ruim e reorganiza o mundo de uma forma
própria. A poesia transforma a palavra corrente em palavra poética quando liberta a língua
de regras gramaticais, da seqüência lógica e rompe com conceitos e formas fixas do
discurso; ela possui suas próprias verdades e seus próprios modos de estruturar essas
verdades.
A poesia transforma o mundo e o resultado dessa transformação é a fundação de um
novo mundo, de uma realidade paralela. E esta é outra noção que também começa a ser
muito difundida na modernidade.
Parece que a poesia quer preservar sua integridade e seu espaço na rede social. E,
numa sociedade em que o valor das coisas é medido pela eficiência e pelos resultados
práticos, diretos, que economizam tempo e trazem benefícios lucrativos, a poesia parece
não encontrar terrenos muito acolhedores para frutificar. Mas ela não morre, não se esgota;
talvez ocupe um lugar marginal na sociedade moderna, mas permanece nascendo,
crescendo e se preservando mesmo que em um ambiente próprio, em um Olimpo
salvaguardado e pouco corrompido.
Se a poesia não se mantivesse às margens das leis da realidade externa poderia se
corromper com as “tentações” do mundo, com as leis do mercado, com as exacerbadas
mudanças e perderia suas características essenciais, podendo até deixar de pertencer ao
campo da arte.
[a lírica] é uma ‘defesa contra a vida habitual’. Sua fantasia goza da
liberdade ‘de misturar todas as imagens’. A lírica é uma oposição que
canta contra um mundo dos hábitos, no qual os homens poéticos não
podem mais viver, pois são ‘homens divinatórios, magos’. (NOVALIS
apud FRIEDRICH, 1978, p.28).
Dentro do mundo da linguagem usual e cotidiana, a linguagem poética torna-se
obscura e hermética, é como se preservasse um código próprio, se instaurasse no mistério e
precisasse de uma senha para ser decifrada. A poesia se preserva principal e essencialmente
no modo de dizer não habitual e incomum.
33
Mas queremos nos deslocar, neste estudo, mais intimamente pela estruturação do
organismo poético. Como a palavra se molda de tal forma que cria novos mundos? O que
acontece com a palavra para que ela seja poética? Como se estrutura o discurso poético?
2.2 O discurso poético
“Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo”.
Oscar Wilde
A poesia é um processo que ocorre, antes de tudo, na palavra. A palavra designada
Na poesia a materialidade da palavra é simbólica, ou seja, o significante é um
símbolo. O símbolo se diferencia do mero significante que transmite um significado
preciso, pois é redondo, plural, inesgotável, impreciso. Na linguagem cotidiana as palavras
são somente signos, enquanto na poesia, as palavras são símbolos.
O símbolo evoca pensamentos, deve ser percebido em si mesmo ante um contexto;
mostra não a idéia acabada, mas a produção desta. No símbolo cabem imagens, cabem
idéias contrárias que se unem para expressar um mundo que pode ser indizível; cabem
interpretações diversas e destoantes. O símbolo é o espaço das dualidades e da obscuridade
acessível. “O símbolo é, portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto,
ele é a epifania de um mistério” (DURAND, 1988, p.15).
[...] (1) O símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção, e
não o produto acabado. (2) O símbolo é intransitivo, não serve apenas
para transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. (3)
O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo
isolado é motivado (não-arbitrário). (4) O símbolo realiza a fusão dos
contrários, e mais especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e
o material, do geral e do particular. (5) O símbolo exprime o indizível,
isto é, aquilo que os signos não-simbólicos não chegam a transmitir; é,
por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – inesgotável.
(TODOROV, 1978, p.97).
Segundo Tzvetan Todorov (1978), as palavras se tornam simbólicas quando
recorrem ao que a retórica chama de figuras de linguagem. Segundo ele, o símbolo se
apropria essencialmente de três figuras que são: a inverossimilhança, a ambivalência, e a
antítese.
A inverossimilhança ocorre quando um fato descrito não se enquadra nos hábitos
comuns e temos que contrapô-lo, dessa forma, aos fatos dos acontecimentos normais.
A ambivalência ocorre quando dois termos contrários se unem para caracterizar um
único e mesmo objeto. “Às vezes, de modo mais propriamente racional, a ambivalência se
explica como o contraste entre o que as coisas são e o que parecem ser [...].” (TODOROV,
1978, p.115).
35
E, finalmente, a antítese é “[...] a justaposição de dois seres, fatos, ações ou reações,
dotados de qualidades contrárias.” (TODOROV, 1978, p.116).
Ou seja, “qualquer que seja o objeto ou o sentimento descrito, ele termina por se
integrar numa pluralidade de ecos [...].” (TODOROV, 1978, p.117, grifo nosso).
É interessante observar que é esse trabalho figurativo e cuidadoso com o
significante que faz com que o significado também se torne amplo, rico, plural e denso. É
como um círculo: a riqueza da poesia se faz na relação mútua entre significante e
significado; quanto mais arduamente trabalhado for o modo de dizer, mais exato e denso
será o que se está dizendo. Ou seja, forma e conteúdo são faces da mesma moeda, podem
até ser analisados dissociadamente, mas não podem ser entendidas como unidades
independentes. Clarice diz em uma crônica intitulada Forma e Conteúdo:
Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de
escrever; até se diz: o conteúdo é bom mas a forma não, etc. Mas, por
Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro uma
forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que
já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está
no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a
verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma.
(LISPECTOR, 1984, p.390).
Como já dissemos, a linguagem poética é a linguagem dos desvios. Segundo
don1 a linguag( )Tj0.0008 Tc 054239 Tw 12 0 0 12 85.0847.850.99 Tm( poéti: (a )TT/3T2 1 Tf0.050 Tc 0 Tw 12 0 0 11 437.680847.850.99 Tmd(o)Tj12 0 0 12 1.72680847.850.99 Tme(o)Tj12 0 0 12 527.982847.850.99 Tmso eru(o)Tj12 0 0 127305.5.0847.850.99 Tmtura j na )TT/TT2 1 Tf0.0108 Tc 054639 Tw 12 0 0 1.0227.680847.850.99 Tmve “quagundcert Maregr Maundc(digndo )Tj0.0002 Tc 054839 Tw 12 0 0 13 386.680847.850.99 Tmordi, npr s nãesv( las.122(p60.)(a )Tj0.0002 Tc 0.8839 Tw 12 0 0 12 85.0008 22157197 Tme (a )TT/3T2 1 Tf0.030 Tc 0 Tw 12 0 0 11 308.0008 22157197 Tme erutura j n a )TT/TT2 1 Tf.617 0 Tw 12 0 0 11726260008 22157197 Tme “quagundnov Mae erutura(s1 que nãco )Tj0.0002 Tc 0.9839 Tw 12 0 0 1359.820008 22157197 Tm coradizagem
significação, estrutura, imagens, sons e símbolos. Poderíamos dizer: quer adequar de forma
própria e equivalente a aparência (forma, estrutura) e a essência (conteúdo significativo).
Por isso, esse tipo de linguagem remodela os níveis do discurso: desestrutura a sintaxe,
brinca com a semântica, renova a morfologia e reaviva a fonética.
O discurso poético apresenta a intenção de espelhar forma no conteúdo ou vice-
versa: a linguagem ao debruçar-se sobre si mesma, transmite-se a si mesma. A atividade
poética é a busca dos significantes que melhor, mais claramente e mais fielmente
expressem um conteúdo. Como os conteúdos que a poesia se interessa têm a ver com o lado
sensível, as palavras escolhidas para melhor definir os estados interiores são metafóricas e
simbólicas, não são lógicas e diretas. Os conteúdos da linguagem poética são amplos, não
delimitados, por isso o jogo significante também deve ser amplo para dar conta do que quer
expressar. A tentativa é de o significante ser a imagem real do significado, como se fosse
possível a forma ser a expressão exata do conteúdo. O significante é um símbolo, não pode
ser a própria coisa em si, é apenas uma imitação que representa a coisa em si.
É claro que esta imitação de que estamos falando não é a imitação verossímil que
visa copiar o mundo de forma fotográfica e realista. É antes a tentativa de imitar as coisas
do mundo de forma deslocada, adentrando no universo da fantasia onde a palavra dita sua
própria lei.
A palavra é então experimentada como palavra e não como simples
substituto do objeto nomeado, nem como explosão da emoção. As
palavras e sua sintaxe, sua significação, sua forma externa e interna não
são então indícios indiferentes da realidade, mas possuem o seu próprio
peso e o seu próprio valor. (JAKOBSON, 1978, p.177).
Essa intenção de encarnar significante e significado nunca consegue ser plena. E a
partir do momento em que o discurso poético tenta unificar estes termos, demonstra seu ar
idealista, sua busca eterna pela linguagem ideal, originária e pura. Isso seria inviável,
mesmo porque “um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria, literalmente,
indizível.” (PAZ, 1996, p.51-52).
No entanto, não é porque é inviável a unificação de significante e significado que a
poesia deixa de existir e deixa de percorrer esse caminho da tentativa. Ela continua
37
percorrendo-o e torna-se, assim, não um resultado, mas o caminho. A poesia é o próprio
caminho, não é o começo nem o fim. E o fato de a poesia estar sempre trilhando o caminho
da linguagem ideal é que a torna rica e bela, não perfeita, mas bela.
No discurso cotidiano a relação entre o conceito e o signo se torna automática, o
signo é anulado em função da “necessidade” de transmissão rápida da idéia. No discurso
poético há a ruptura dessa concepção pré-estabelecida, como já disse Jakobson: na poesia
“a palavra é experimentada como palavra”, a palavra é apenas signo antes de ser conceito, e
não tem pressa de chegar ao seu destino, mesmo porque, seus destinos não são delineados e
delimitados.
É, justamente por pensar em si mesma que a linguagem poética aparece reavivada e
enriquecida, sempre procurando novas formas de se auto-preservar da corrupção do mundo.
É na poesia que a palavra não se perde totalmente, se mantém um pouco mais intacta, já
que no uso cotidiano, habitual e prosaico ela vai perdendo características que lhe eram
inatas para facilitar a transmissão da mensagem.
Por pensar tanto na própria constituição, a palavra poética trabalha detalhadamente
os dois eixos discursivos, o sintagmático e o paradigmático: “A função poética projeta o
princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.” (JAKOBSON,
1968, p.130, grifo nosso).
O poeta não apenas escolhe cuidadosamente os vocábulos que irá utilizar, mas
também procura organizá-los em uma estrutura propícia, por isso podemos pensar no
principio de equivalência dos eixos discursivos.
É no trabalho sobre o eixo de seleção que o poeta procura as palavras mais
adequadas para evocar uma imagem ou expressar com precisão uma sensação e um ritmo.
E é no eixo das combinações que surgem os agrupamentos inusitados, as inversões
sintáticas, etc. Os eixos se entrelaçam formando a teia discursiva.
A ordenação poética do discurso é como um quebra-cabeça em que as peças foram
removidas e deslocadas da constituição inicial para serem reordenadas de uma forma nova
e diferente, formando um novo jogo.
Por isso a linguagem poética adquire um significado oscilante e pluriforme. A
palavra sugere, evoca, suscita, abre caminhos, trabalha sempre no espaço da liberdade e da
38
pluralidade. Ela não indica, não aponta, não induz a uma experiência única e lógica. A
linguagem não é mais comunicação, é apenas expressão e sugestão.
Ao problematizar o código lingüístico, a poesia desenvolve uma atitude
metalingüística. Sempre há metalinguagem na atividade poética, pois, mesmo quando a
poesia não expressa claramente em seu conteúdo o modo de sua estruturação, ainda assim
continua preocupando-se com sua materialidade constituinte. Cada palavra do discurso
poético é um símbolo do trabalho e da preocupação com o código.
O discurso poético é uma peneira, uma membrana semi-permeável altamente
seletiva. Deixa passar os excessos, os termos gastos, os pesos lingüísticos, as figuras
cristalizadas. E mantém as preciosidades, a limpidez; tenta preservar só o que é essencial.
Como já diria algum poeta, a poesia não é para os fracos nem para os pouco
persistentes. Se conseguirmos ultrapassar o hermetismo das palavras (significantes),
teremos, ainda que nos deparar com os avassaladores significados. Quebrar os mistérios da
poesia é uma tarefa que exige não apenas empenho, mas, sobretudo coragem para enfrentar
o desconhecido e deparar-se com algo novo e assustador.
A linguagem poética quebra a resistência que o mundo exterior impõe, rompe a
película protetora, desvirgina a proteção alienante e abre-se, revelando-se internamente,
cruamente para o mundo. A poesia é o grau da lente da população míope, mas nem todos
conseguem ou querem enxergar melhor.
2.2.1 A metáfora
Já, enumeramos logo acima, algumas figuras de linguagem que compõem o
universo poético e que conservam a característica simbólica do signo. Mas queremos
destacar ainda a metáfora dentro desse universo, porque acreditamos que ela é a figura
primordial, e, de certa forma, está presente em todas as outras figuras de estilo e de
pensamento.
A metáfora é uma forma alegórica de expressão que representa a estreita ligação
entre ser e linguagem, ou entre o sentimento e a materialidade da palavra. A metáfora,
39
dentro do discurso poético, é a analogia dos sentidos, é a concretização do sensível através
de imagens e símbolos. Ela une extremos tentando denunciar a plenitude da interioridade.
Todo conhecimento é analógico, mas a metáfora poética é a analogia da alma,
analogia das emoções e dos sentidos. Quando um estado de alma é retratado de forma
poética as comparações enriquecem o modo de dizer e transmite-se de forma mais integra o
sentimento. A poesia não quer explicar um sentimento, ela quer nos convidar a senti-lo
também.
Como diz também Ortega y Gasset (apud CASTRO, 1973, p.75): “a metáfora é um
procedimento intelectual por meio do qual conseguimos apreender o que está para além da
nossa potencia conceptual”.
A analogia da metáfora poética não é direta e precisa. A metáfora não é um nomear
através da lógica, é um relacionar, diz através de construções imagéticas, por isso é o tipo
de linguagem que está mais próxima do ser.
Ullman
(apud CASTRO, 1973, p.75) diz ainda:
[...] a característica essencial da metáfora é que deve haver uma certa
distância entre os dois termos que se aproximam. A sua semelhança deve
ser acompanhada por uma disparidade, devem pertencer a diferentes
esferas de pensamento. Se são muito próximos um do outro, não podem
produzir a perspectiva de dupla visão que é peculiar da metáfora.
A metáfora poética consiste em empregar um termo com significado diferente do
habitual, por isso é uma forma de desvio. É uma comparação, que cria uma relação de
similaridade entre o sentido próprio e o figurado, e em que o termo conectivo fica
subentendido. Estreita-se o caminho entre as duas palavras relacionadas e entre o sentir e o
entender.
Segundo Cohen (1978, p.95): “A estratégia poética tem por último objetivo a
mudança de sentido.”. A metáfora é justamente a figura que desloca os termos habituais e
introduz no discurso os desvios significativos.
Lefebve (1980, p.28) parece caminhar no mesmo sentido quando diz que a metáfora
é a chave das desestruturações e das estruturações do discurso poético: “[...] a metáfora é
desestruturação na medida em que afasta a palavra própria e estruturação na medida em que
40
reúne, segundo certas relações, os termos que introduz em lugar daquela palavra.”. É o
desvio que age no eixo das combinações e no eixo das seleções.
A metáfora é a energia que move a linguagem, desloca-a do convencional e cria
poesia. Ela abre espaço para o inusitado, e para o aparentemente inviável; explora quiasmas
semânticos; inaugura trajetos. A metáfora “[...] fala obliquamente, explora conotações
laterais, insinua coisas sem verdadeiramente dizê-las, sugere idéias sem explicitá-las.”
(BENNINGTON, 1991, p.90). É um meio de cortar caminho entre o que se sente e o que se
diz, encurta o cordão vital da escrita poética. No entanto, esse caminho mais curto não é,
necessariamente, mais facilmente inteligível.
Mas, não podemos esquecer, que a metáfora também está extremamente presente no
discurso cotidiano. Com o uso excessivo, uma metáfora pode tornar-se clichê e banalizar-
se, perdendo o brilho poético inicial. Nesses casos, a metáfora não é mais um desvio e não
mais caracteriza um tipo de discurso dito poético. “[...] de certo modo, a linguagem íntegra
é metafórica, referendando a tendência humana para a concepção analógica do mundo e o
ingresso (poético ou não) das analogias nas formas da linguagem”. (CORTAZAR, 1993,
p.86).
A metáfora só é poética enquanto se renova nas eternas desestruturações e
reestruturações, na medida em que é símbolo e desvio.
Como estamos apreendendo, o discurso poético utiliza uma linguagem em que se
exacerbam as polissemias, as ambigüidades, ou seja, as conotações.
A conotação é o nome do modo de dizer que utiliza essencialmente metáforas, e que
foge da significação literal, ou denotativa. É conotativa a palavra que desvia semântica e
pragmaticamente do dizer usual. “Uma verdadeira conotação só se manifesta quando a
palavra é empregada precisamente por oposição à palavra corrente [...].” (LEFEBVE, 1980
p.58).
Na atividade poética se estabelece um contexto à parte do contexto “real”
instaurado; o contexto poético é o contexto conotativo por excelência.
É o tipo de discurso da incerteza e do risco, os sentidos não são dados a priori. É o
discurso alegórico, em que o leitor não deve se ater ao sentido primeiro das palavras que lê,
mas deve procurar significações segundas, pois o signo metafórico/poético cria o que
Lefebve (1980) chama de “transparência” e “opacidade”, abre possibilidades de apreensões
41
sensíveis que se semi-escondem na opacidade e nos mistérios das palavras. “Pela
linguagem poética, ondas de novidade ocorrem sobre a superfície do ser. E a linguagem
traz em si a dialética do aberto e do fechado. Pelo sentido, ela se fecha; pela expressão
poética, ela se abre”. (BACHELARD, 1989, p.224).
2.2.2 O ritmo
O ritmo é parte constituinte da essência da palavra. Segundo Octavio Paz (1996), o
ritmo é natural a todo tipo de discurso, desde o mais cotidiano ao mais metafórico. Isso
porque as palavras possuem freqüência, intervalos, entonações, entoações. Além disso, Paz
acredita que o ritmo é inato ao ser humano, talvez tenha surgido mesmo antes da própria
fala.
Paz segue a linha de pensamento de que a poesia é a linguagem original do homem,
acredita que esta surgiu antes da linguagem prosaica. E como o ritmo é inato ao ser
humano, originariamente a linguagem do homem era poética e ritmada e não prosaica,
direta, precisa.
O ritmo poético é a expressão de um espírito amplo, que dança e vaga por caminhos
diversos e novos, que quer retomar o ritmo originário por excelência.
Já foi universalmente notado o caráter instintivo do ritmo: ele mexe com
o sangue, excita, arrasta, arrebata, entontece, hipnotiza... Ritmo: onda que
se divide, mas para remontar à origem una, redobrando e tresdobrando as
próprias forças. (BOSI, 2004, p.118).
A linguagem poética pode diferenciar-se da prosaica justamente pelo ritmo que
estabelece. “Poesia e prosa não se distinguem, pois, senão pelo ritmo. O ritmo corresponde,
é certo, a um movimento intimo da alma [...].” (PESSOA, 1974, p.273).
A linguagem poética observa o ritmo interno e em um primeiro momento procura
entendê-lo em sua estrutura original. “O caráter imprevisível, gratuito, do ritmo exige,
porém, um segundo tempo de fixação, esforço plenamente intelectual de fidelidade aos
42
movimentos mais sutis da sensibilidade formal, essa zona de intersecção do corpo com o
espírito, ‘nas fronteiras da alma e da voz’.” (BOSI, 2004, p.102).
em relação à realidade e tem a capacidade de transformar, destruir e reorganizar a matéria
do mundo.
Para falar de sentimentos, o olhar do artista deve ser altamente perceptivo e
detalhista, absorvendo não apenas novas nuances das coisas no mundo, mas também
transportando-se para sentimentos alheios. Faz um tipo de arte da com-paixão (pensamos
aqui em paixão no sentido originário grego – pathos), ou seja, sente com o outro. Podemos
dizer que ele sente o que descreve, não porque viveu inúmeras situações concretas na vida,
ele não descreve sua biografia sensível, mas porque consegue se transportar para o
sentimento alheio e, assim, entendê-lo intimamente, senti-lo.
Uma outra palavra que caracteriza bem a relação que o poeta estabelece com outros
seres é “altruísmo”; o poeta é altruísta não só porque possui um sentimento sem
compromisso pelo outro, mas principalmente porque se transporta para outra consciência,
se coloca empaticamente no lugar de. Por isso a criação poética de um único artista pode
ser vasta e muito rica, o poeta se faz um ser plural a partir do momento em que tem a
possibilidade de viver (ou entender) diferentes e variadas sensações.
O poeta também é um ser altamente intuitivo, ele pré-sente algo sem que este algo
tenha acontecido com ele mesmo, ou com outra pessoa. Ele tem a sensibilidade à flor da
pele, intui o mundo, sente sem precisar de um pretexto firme e concreto. O mundo para ele
é um universo de possibilidades sensíveis, cada novo olhar pode representar uma nova
criação, um novo cosmo. A intuição poética não precisa de conteúdo nem de forma. Clarice
diz: “Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição
é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir
à tona, se trabalha.” (LISPECTOR, 1984, p.390).
Além disso, o poeta é o artista do indizível, tenta simbolizar através da
materialidade da palavra a matéria amorfa da interioridade. Essa atividade de expressar
sensações e sentimentos, de tentar dizer o que muitas vezes é indizível, de revelar o mundo
particular na folha de papel, exige um grande esforço e muito trabalho.
Ou seja, o poeta é o ser que não apenas sente, mas trabalha o que sente, possui
inteligência sensível, criatividade, curiosidade e paixão para desenvolver um pensamento
até o fim. Por isso, ele pode ser comparado com diferentes figuras, podemos dizer, por
44
exemplo, que ele possui a fineza e a delicadeza sensível de um nobre e, ao mesmo tempo, a
brutalidade, a força e a resistência de um trabalhador.
Uma outra figura que se encaixa bem com a figura do poeta é a do perfumista. O
perfumista é o ser que, não apenas tem a sensibilidade de captar e misturar diversos odores
elaborando uma fórmula única, mas também possui a técnica de conservar e fixar as
essências em um frasco material. E essas essências serão reavivadas toda vez que alguém
abrir o frasco e se deleitar com elas. Assim como o poeta, que também tem a sensibilidade
dos sentidos aguçada e a técnica de aprisionar as emoções na materialidade da palavra.
O perfumista criativo e ativo tenta sempre se superar, criando novas fórmulas,
misturando novas essências, inventando novas tendências. Não muito diferente, o poeta
produz um trabalho cada vez mais criativo e rico na medida em que cria novas construções
lingüísticas, movimenta diferentes imagens e símbolos, combina fórmulas raras.
Dentre os diversos estudos sobre teoria poética existem muitas outras figuras a que
o poeta é comparado. Ainda gostaríamos de elevar mais algumas que são muito
interessantes.
Uma figura que é bem recorrente é a do demiurgo. Como já dissemos anteriormente,
a poesia é um organismo, um universo particular, e o poeta seria o criador absoluto desse
universo. O poeta/demiurgo cria leis, ordena seu mundo, insufla vida nos movimentos
lingüísticos e imagéticos. O poeta é o pai, o Deus, o criador do universo poético; criador
que, no entanto, não é dono do mundo por ele criado, pois a poesia, depois de lançada ao
mundo, faz-se criatura livre, sempre conservando seus traços primordiais, mas
movimentando-se por diferentes caminhos significativos.
Outra figura que queremos lembrar ainda é a do feiticeiro ou do alquimista. “[...] o
poeta continua e defende um sistema análogo ao do mago, compartilhando com ele a
suspeita de uma onipotência do pensamento intuitivo, a eficácia da palavra, o ‘valor
sagrado’ dos produtos metafóricos”. (CORTAZAR, 1993, p.89). Jogando com o inusitado,
fundindo elementos díspares, desvendando os seres em profundidade, captando essências,
“O artista atua como aquelas altas temperaturas sob as quais as combinações atômicas se
dissociam para se reunirem num agrupamento completamente diverso.”(PROUST apud
FRIEDRICH, 1978, p.202).
45
O sujeito poético não apenas enxerga diferente de todo mundo, mas,
conseqüentemente, diz o mundo de forma diferente, utilizando uma linguagem anormal, por
isso comete poesia.
[...] só o poeta é esse indivíduo que, movido por sua própria condição, vê
na analogia uma força ativa, uma aptidão que se converte, por sua
vontade em instrumento; que escolhe a direção analógica, nadando
ostensivamente contra a corrente comum, para a qual a aptidão analógica
é surplus, floreiro de conversa, cômodo clichê que descarrega tensões e
resume esquemas para a comunicação imediata – como os gestos ou as
inflexões vocais. (CORTAZAR, 1993, p. 87).
Inundando a vida com uma imaginação fina e uma fantasia imperiosa, o poeta intui,
absorve, organiza o caos interno, trabalha arduamente modelando a matéria palavra e
expele o resultado dessa atividade na forma de arte.
2.4 A máquina de fazer poesia
“Talvez nós julguemos receber de um objeto tanta mais vida quanto mais
somos obrigados a lha dar”
Valéry
O universo poético se diferencia da mera imitação da Natureza. Utilizamos a
palavra Natureza grafada com letra maiúscula, pois estamos trabalhando com uma
significação específica deste termo. Esta Natureza seria a Terra, o espaço físico onde o
homem instala-se, a Physis. É o que existe a priori, antes do mundo criado pelo homem. A
Natureza é a matéria primordial que nos foi legada.
Quando dizemos que o universo poético se diferencia da mera imitação da Natureza,
não queremos dizer que a Natureza não existe no universo poético, pelo contrário, ela é
46
matéria essencial deste universo. Mas a Natureza não é utilizada de forma estritamente
mimética no discurso poético.
Ora, todo dizer é sempre um dizer de algo, um falar de isto e aquilo. O
dizer poético não difere nisto das outras maneiras de falar. O poeta fala
das coisas que são suas e de seu mundo, mesmo quando nos fala de outros
mundos: as imagens noturnas são compostas de fragmentos das diurnas,
recriadas conforme outra lei. (PAZ, 1996, p.55).
A poesia não é a arte de fixação exata da matéria a priori do mundo, a poesia funda
mundos novos a partir dessa matéria pré-concebida.
Estabelece-se na poesia uma disposição particular e não-habitual da Natureza,
ditada através de uma estrutura discursiva “anormal”. Concomitantemente a esse novo
modo de estruturação material emerge um novo modo de sentimento de mundo.
Ou seja, a reestruturação da materialidade da Natureza e a instauração de um novo
mundo significativo são faces da mesma moeda chamada poesia.
Como a atividade poética transforma a materialidade da Natureza e cria uma
realidade fantasiosa?
Iremos deslocar, neste tópico, um pouco nosso olhar da apreensão do que ocorre no
nível discursivo; nos voltaremos agora para questões mais gerais da constituição da arte
poética.
Entre a Natureza propriamente dita e a poesia existe o ser, o homem que faz poesia.
É a partir deste homem que a Natureza é transformada em poesia. Por isso o sujeito é
essencial à poesia. O homem é a essência da poesia. Já dizia Wilde (1972, p.10): “a arte
reflete o espectador e não a vida.”.
Chamaremos essa essência do homem que transforma Natureza em poesia de
interioridade, e chamaremos a Natureza de exterioridade. O homem que cria poesia
estabelece um diálogo entre a realidade externa e a realidade interna. E a partir deste
dialogo emerge, também em forma de matéria, uma natureza nova que chamamos poesia.
A Natureza é a matéria-prima que passa pela interioridade do sujeito poético e é
transformada em matéria trabalhada e artística.
47
Dissemos acima que o homem é a essência da arte (da poesia), pois é através da
necessidade de revelar esse mundo interno que a engrenagem de criação poética começa a
se movimentar. A interioridade é a energia propulsora da poesia:
Em todas as estruturas verbais literárias, a orientação definitiva da
significação é interna. Em literatura, as exigências da significação externa
são secundárias, pois as obras literárias não pretendem descrever ou
afirmar e, portanto, nem são verdadeiras, nem falsas... Em literatura, as
questões de realidade e de verdade são subordinadas ao objetivo literário
essencial que é o de produzir uma estrutura verbal que encontre sua
justificação em si mesma; e o valor designativo dos símbolos é inferior à
sua importância enquanto estrutura de motivos ligados. (FRYE apud
TODOROV, 1978, p.19, grifo nosso).
A realidade interna é diferente da externa; ela possui cores, formas, sons próprios;
não existe a priori e sua essência não é material como a essência da realidade externa. A
poesia é o resultado da tentativa de dizer a interioridade que em essência é indizível e
amorfa.
Para Cassirer (apud NUNES, 2004, p.99)
essa lógica trabalha com movimentos:
[...] que articulam as cores, as linhas, os ritmos, as palavras, em conjuntos
significativos, que não apenas ‘traduzem’ os sentimentos do artista, mas
lhes conferem uma existência palpável e objetiva, que não somente
exteriorizam a sua percepção das coisas, mas transformam essa percepção
num modo autêntico de ver e de sentir.
Maurice-Jean Lefebve (1980) chama de “distorção da percepção” o resultado
fascinante da “interferência entre o imaginário (o que o espírito se representa interiormente)
e o real (o que se oferece efetivamente aos nossos sentidos)”.(p.12).
Esse jogo em que o artista utiliza formas do mundo “real” para compor e expressar
seu mundo imaginativo interno pode ser chamado de interseccionismo. É um efeito que:
48
[...] revela-se sempre como a intersecção de uma parte do real (o
significante da linguagem e suas diversas combinações objetivas) e de
uma parte de irreal (o significado, as conotações e evocações derivadas).
(LEFEBVE, 1980 p.13).
O que denominamos, logo acima, de Natureza seria para Lefebve, voltando
restritamente ao nível discursivo, o significante. E o que designamos de ordem interna é
para ele o significado, as conotações.
Como já observamos, o poeta é o ser que tem a capacidade de apreender o mundo
externo através do olhar intuitivo e deslocado. E essa percepção ganha forma material
através da palavra poética. O poeta tem a necessidade de expressar sua sensibilidade e a
linguagem poética é a forma de expressão que mais se encaixa no fluir dessa sensibilidade.
Como já dissemos também, o poeta não só tem um olhar altamente perceptivo, mas
A interioridade reorganiza as formas da realidade e libera essa nova organização na
materialidade da palavra. O discurso poético, tentando adequar-se a essa realidade interna,
inunda-se de combinações inusitadas de palavras, de imagens, cores, ritmos, símbolos, etc.
tornando-se incomum. Cohen (1978, p.97) especifica: “[...] o poema não é a expressão fiel
de um universo anormal, mas a expressão anormal de um universo comum.”
Poderíamos, assim, demonstrar um formula de criação poética:
Realidade organizada (Natureza) Æ absorção sensível da Natureza Æ caos interno
(imaginação)Æ trabalho árduo de mente e coração Æ reorganização do caos Æ poesia em
materialidade.
É claro que essa formula é uma ilustração de um possível esquema da atividade
poética, mas na verdade, essa atividade não tem uma forma pré-determinada; a poesia é,
antes de tudo, liberdade e sua máquina de criação e funcionamento não pode ser
matematicamente formulada, apenas esboçada.
Denominamos esse esboço de “máquina de fazer poesia”. É uma máquina que
justamente por materializar a interioridade, produz algo que não se esgota. A poesia, uma
vez produzida e materializada, poderá continuar sempre a despertar magia e encantamento.
Gilbert Durand (1988, p.16) desenvolve um olhar parecido com esse nosso esboço
da dimensionalidade da palavra poética, quando analisa a palavra enquanto símbolo.
Constata três faces da palavra simbólica: a parte ligada à exterioridade, o vínculo com o
interior e com o inconsciente coletivo e a finalização poética em forma de símbolo:
[...] todo símbolo autêntico possui três dimensões concretas: ele é, ao
mesmo tempo, ‘cósmico’ (ou seja, retira toda sua figuração do mundo
visível que nos rodeia); ‘onírico’ (enraíza-se nas lembranças, nos gestos
que emergem em nossos sonhos e constituem, como bem mostrou Freud,
a massa concreta de nossa biografia mais íntima); e, finalmente, ‘poético’,
ou seja, o símbolo também apela para a linguagem, e a linguagem mais
impetuosa, portanto a mais concreta.
50
Pensando no discurso poético e suas especificidades, podemos, ainda, desenvolver o
esboço de uma fórmula do que acontece com a palavra até virar material poético, dessa
forma:
Matéria-prima bruta e corrompida (palavra no mundo) Æ quebra sintática, semântica,
morfológica, fonológica Æ reorganização própria dos níveis do discurso (in absentia, in
praesentia) Æ poesia em materialidade.
Podemos dizer ainda que: poesia é a materialização da essência. Isso que chamamos
essência é o sentimento imaginativo do poeta, é o que designamos de constituição interna e
que pode ser chamada também de: mente, espírito, coração, ou ainda, subjetivismo e
interioridade.
Como já suscitamos acima, para a essência tornar-se materialidade poética, utiliza
palavra e, em seu conteúdo, aspectos da Natureza, ou o que podemos chamar de aparência.
Assim, surge outra formula:
Aparência + essência = materialidade essencial (poesia)
A palavra é a matéria prévia, o barro sem forma de que o poeta se utiliza para
expressar a essência da sua fantasia imaginativa. A poesia é a idealização concretizada de
uma essência naturalmente indizível, amorfa, inodora, e que, no entanto, vive dentro e quer
viver fora também. A poesia é dependente da palavra apesar de querer transcendê-la.
2.5 Poesia – a linguagem original.
Como se obedecessem a misteriosa lei de gravidade, as
palavras retornam à poesia espontaneamente.”
Octávio Paz
51
A poesia é a tentativa de dizer o ser em sua profundidade. Quando dizemos “ser em
profundidade”, estamos falando de algo que é inato do homem, da essência. Porém não
estamos falando de uma essência imanente que seria algo que está no homem desde antes
de ele existir, ou que vem de algo superior a ele. Essa essência inata se faz existir em
sociedade, em conjunto, dentro de uma cultura, de um sentimento de mundo e por isso é
algo que é comum.
No entanto, essa essência inata existe no homem mesmo antes de ele aprender a
falar ou utilizar palavras. Ou seja, essa essência já existia nos homens primitivos que ainda
não haviam inventado uma forma institucionalizada para se comunicar (o alfabeto). Assim
como existe nas crianças pequenas que ainda não aprenderam a se comunicar através de
palavras.
O material de interesse da poesia é justamente essa essência inata. “Esse estrato, que
tem o seu lugar na sensação anterior ao discurso [...].” (BOSI, 2004, p.37). A poesia
começa a existir antes de ser dita, no cerne dessa interioridade comum. Por isso é a forma
de expressão que simboliza através das palavras a constituição essencial do homem. É a
linguagem essencial por natureza.
Alguns estudiosos acreditam que a poesia é a forma de linguagem original, é o elo
direto que liga essência imanente e expressão exterior. A palavra “original” aqui quer dizer
que a poesia não é somente a linguagem “verdadeira” do ser, que expressa a interioridade,
mas também é original pois foi a primeira linguagem utilizada pelos homens. “A poesia
pertence a todas as épocas: é a forma natural de expressão dos homens.” (PAZ, 1996, p.12).
Não é difícil entender isso quando pensamos que o homem primitivo, assim como o
poeta, para dizer o mundo, tentava expressar plenamente os aspectos do ser, dizer
concretamente a sua interioridade, ou seja, as sensações, os sentimentos, as emoções de
forma geral. A linguagem surge como uma metáfora da interioridade, um símbolo da
ebulição existencial. Era uma época em que mithos e logos eram duas faces da mesma
moeda e a sensação de mundo era integra e plena, por isso mais próxima do ser em sua
totalidade.
O homem que faz poesia é aquele que justamente quer desvendar essa origem, quer
ligar o mais diretamente possível interioridade e exterioridade. Quer expressar suas
emoções da forma mais fiel e pura e para isso utiliza essa linguagem pouco corrompida que
52
é altamente simbólica, que tem ritmo próprio. “Com fórmulas mágicas ou encantações
rituais, ela [a poesia] responde ao sonho de uma comunhão direta do homem com o mundo
e o seu criador.” (LEFEBVE, 1980 p.33).
Essa tentativa de aproximação direta de exterioridade e interioridade é o que
Lefebve chamou de encarnação. A encarnação é na verdade uma utopia, não existe
concretamente, como dissemos, é uma “tentativa” que nunca se concretiza.
A encarnação constitui, pois, a tentativa de superar a contradição
opacidade – transparência e de reaproximar a linguagem literária dessa
linguagem adequada e original, essa linguagem em que o significante e o
significado coincidem, essa linguagem dos deuses que [...] é o mito da
literatura. (LEFEBVE, 1980 p.69).
A poesia é a arte que tenta restabelecer a capacidade originária de percepção.
Octavio Paz (1996, p.68-69) diz que a “palavra poética funda os povos”, pois é a
transcrição imediata de um instante, de um arquétipo, ou seja, de um modelo de vida, de
realidade.
A sensação de comunhão de mundo é mítica, é como o sentimento cósmico do
homem primitivo em que a razão e a emoção não são aspectos separados de compreensão
de mundo. “Razão e imaginação (“transcendental” ou “primordial”) não são faculdades
opostas: a segunda é o fundamento da primeira e o que permite perceber e julgar o
homem”. (COLERIDGE apud PAZ, 1996, p.77).
Para o poeta e para o primitivo, a forma de compreensão empírica não é a única e a
mais satisfatória para absorver o mundo. A comunhão do sensível com o inteligível é que
cria a real dimensão cosmológica. “Muito antes que o mundo seja dado à consciência como
um conjunto de ‘coisas’ empíricas e como um complexo de ‘propriedades’ empíricas, ele se
lhe dá como um conjunto de forças e efeitos míticos”. (CASSIRER, 2004, p.14).
2.5.1 A Imaginação
53
A imaginação é justamente a carga pensante necessária para que a interioridade se
plasme na palavra. A imaginação é a instância não racional que vê os sons, as cores que
existem por dentro e transporta-os para a linguagem na forma de imagem. Os sentimentos
são transpostos por um imaginar que sente.“A imagem é um modo da presença que tende a
suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em
nós.” (BOSI, 2004, p.19).
A imaginação trabalha com a matéria da Natureza que existe a priori e a partir dessa
matéria cria uma realidade fantasiosa e diferente. Ela capta o existente e cria o novo,
absorve e constrói.
A imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma
forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e
construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para
o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de
luz que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um
complicado processo de organização perceptiva [...]. (BOSI, 2004, p.22).
A realidade fantasiosa que emerge é vaga, fugaz, mas materializa-se e fica
registrada na linguagem poética. A fantasia está mais próxima da impressão, da sensação
do que do entendimento lógico e empírico. A linguagem poética consegue aprisionar um
pouco o mundo das sensações na folha de papel, nasce um mundo híbrido com diversos
horizontes que mescla mito e razão; experiências e essências; que evoca, suscita, ressuscita.
A imaginação é uma forma de conhecimento que tem a faculdade de expressar através de
símbolos e mitos.
Imaginação e razão, em sua origem, são uma e mesma coisa, terminam
por fundir-se em uma evidência que é indizível exceto através de uma
representação simbólica: o mito. Em suma, a imaginação é,
primordialmente, um órgão de conhecimento, posto que é a condição
necessária de toda percepção; e, além disso, é uma faculdade que
expressa, mediante mitos e símbolos, o saber mais alto. (PAZ, 1996,
p.78).
54
Esse saber mais alto, ligado ao lado sensível, muitas vezes não é facilmente
expressável. Dessa forma, a imaginação é um projetar do que, muitas vezes, não existe.
Delineia o inexistente para estabelecer uma nova contingência das coisas e distanciar-se do
mundo ordenado. Imaginar significa colocar-se fora através da linguagem. A consciência
imaginativa esta livre das determinações do real; o sujeito, pela imaginação, tem a
liberdade de tematizar e narrar o que é inexistente no mundo.
E a poesia é a forma de linguagem que não busca nomear e relacionar diretamente
coisa e nome (isso se chama X), seu dizer se baseia nas imagens e no silêncio e por isso é o
tipo de linguagem que está mais próxima do ser.
Por isso a realidade da fantasia é a tentativa de dizer o absoluto, ou seja, é o lugar
onde as diferenças se somam para criar uma realidade única e plena. Na fantasia preserva-
se o sentimento original e a visão mitológica. A realidade transcrita é multicolorida,
relativa, sugestiva, ilimitada, epifânica. A fantasia é a instância em que o ser tenta saciar
uma necessidade supra-real, de que a religião, imbuída da carga racional, não dá conta.
[A imaginação] decompõe toda a criação, segundo leis que provêm do
mais profundo interior da alma, recria e articula as partes (daí resultantes)
e cria um mundo novo. (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, 1978, p.55).
2.6 Os gêneros literários
Quando falamos em gênero literário, podemos pensar que são estruturas discursivas
que apresentam um conjunto de traços comuns e pré-definidos. Como se cada gênero
(prosaico, poético...) desempenhasse uma função específica e constante.
Mas essa noção já vem sendo deturpada e contestada desde meados do século XIX,
quando começaram a se desenvolver atividades literárias que pareciam não se enquadrar
nas definições de um único gênero.
Um exemplo disso é o que se desenvolveu nos trabalhos literários dos pré-
românticos alemães, que utilizavam um estilo novo e que culminou no início da crise do
romance.
55
Na modernidade evidenciou-se a inviabilidade de se construir um gênero puro, que
não absorvesse traços de outros gêneros, de outros discursos ou mesmo de outros tipos de
arte. Temos em mente, hoje em dia, que todos os gêneros literários são corrompidos e
“sujos”: não existe gênero puro. A modernidade é a época em que há a possibilidade da
fusão dos contrários: poesia e prosa, sonho e razão, etc... E é nessa época que o termo
identidade começa a ser questionado.
Na verdade, nunca existiu gênero puro, havia apenas a idéia de que isso era
possível. O método de escritura que mescla aspectos de mais de um gênero constituindo
uma obra de arte não é uma atividade moderna, o gênero misto sempre existiu.
A diferença é que na modernidade esclareceu-se a noção de inviabilidade da pureza
do gênero. E, mais do que isso, a mescla de gêneros começou a ser uma técnica cada vez
mais utilizada por escritores e artistas em geral. O hibridismo começou a ser visto como
vantajoso e completo na tentativa de fazer uma arte que saciasse as amplas necessidades
modernas. Como qualquer instituição, os gêneros evidenciam aspectos constitutivos da
sociedade a que pertencem, refletem as necessidades de uma época.
Mas, não podemos perder de vista que: “o fato de a obra ‘desobedecer’ a seu gênero
não o torna inexistente.” (TODOROV, 1978, p.44). As artes ainda são classificadas
segundo o gênero a que pertencem, mas o que aconteceu foi uma necessidade de ampliação
terminológica para dar conta dos diversos modos de estruturação discursiva que começaram
a se delinear.
Também não podemos esquecer que um novo gênero sempre surge de um gênero
antigo. “Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos:
por inversão, por deslocamento, por combinação.” (TODOROV, 1978, p.46). Ou seja, não
nascem do nada.
No nosso presente estudo, voltamos-nos atentamente para o gênero poético.
Quisemos percorrer as origens, as bases, e as características essências da linguagem poética
para, então, entendermos posteriormente como esse tipo de linguagem surge num texto
estruturado (aparentemente) em prosa. Queremos ainda e prioritariamente coadunar as
definições desse tipo híbrido de discurso com a obra Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres. E é o que faremos no capítulo seguinte.
56
Na modernidade ampliaram-se tanto os estudos que pretendiam dar conta desse tipo
de mescla genérica, que o termo “narrativa poética” começou a ser utilizado como
denominativo de um gênero novo.
Acreditamos, e temos provas para tanto, que Clarice Lispector utiliza a prosa
poética em sua atividade literária. Seus livros são narrativas poéticas, não são romances,
não são poemas, mas se apropriam de características desses dois gêneros literários.
Na verdade, talvez a denominação de narrativa poética aos escritos de Clarice ainda
seja incompleta. A autora produziu um trabalho criativo único que mescla não só aspectos
poéticos e prosaicos, mas também questionamentos filosóficos, declarações pessoais, etc. É
um tipo de escrita ampla e abrangente de que nós, aqui, escolhemos apenas percorrer as
incidências poéticas.
O gênero poético, como já tanto dissemos até agora, é o gênero do desvio, que
destrói as categorias lógicas da linguagem. Talvez seja na utilização excessiva de temas e
características poéticas que as escrituras clariceanas se abram para a chuva obliqua de
diversas vertentes artísticas.
O gênero clariceano está muito próximo do que chamamos de estilo. É um gênero
que não preexiste a obra: nasce ao mesmo tempo que esta. “Quem cria com sucesso gêneros
novos é homem de gênio; o gênio nada mais é do que um genoteta.” (TODOROV, 1978,
p.37).
Observaremos mais atentamente o estilo clariceano num tópico abaixo. Terminamos
este tópico com uma citação de Blanchot (apud TODOROV, 1978, p.44):
Apenas o livro importa, tal como é, distante dos gêneros, fora das
rubricas, prosa, poesia, romance, testemunho, sob as quais recusa-se
colocar e às quais denega o poder de lhe fixar seu lugar e de determinar
sua forma. Um livro não pertence mais a um gênero, todo livro depende
tão somente da literatura, como se esta detivesse antecipadamente, em sua
generalidade, os segredos e as fórmulas, os únicos que permitem dar ao
que se escreve realidade de livro.
57
2.7 Poesia + Prosa
Como a poesia surge na prosa? Como uma linguagem auto-suficiente pode nascer
num tipo de discurso que utiliza a linguagem como finalidade comunicativa?
Apesar de prosa e poesia serem formas de expressão literária que utilizam a palavra
como material, são essencialmente diferentes e gostaríamos de percorrer aqui algumas das
diferenças mais marcantes para depois entendermos como ocorre o interseccionismo desses
dois gêneros.
Como dissemos, a diferença entre poesia e prosa é de nível essencial, por isso a
mescla desses dois discursos parece, inicialmente, dificilmente viável. A poesia é a
linguagem anti-descritiva, é a linguagem do “eu” e a prosa é a descrição do não-eu.
A poesia mostra, sugere, evoca; utiliza uma linguagem opaca, turva, figurada;
trabalha no espaço da liberdade, da gratuidade, da anarquia. A prosa descreve, elucida,
narra história; utiliza uma linguagem cristalina, pura, corrente; trabalha no espaço do rigor
e do princípio.
A figura geométrica que simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa,
espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta
precisa. [...] O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou
uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente e
no qual o fim é também um princípio que volta, se repete e se recria.
(PAZ, 1966, p.12-13).
A linguagem poética diz a essência, revela o símbolo; a linguagem prosaica utiliza a
materialidade da palavra para dizer coisas além de si mesmas, aí a palavra é instrumento
que está a serviço de algo além.
Baseando-nos, novamente, em Estrutura da linguagem poética de Jean Cohen
(1966, p.12), observamos que, segundo ele, a linguagem “pode ser analisada a dois níveis,
fônico e semântico. A poesia opõe-se à prosa por caracteres existentes em ambos os
níveis.”. O teórico adota o termo “semântico” num sentido mais amplo, que abrange o
significado gramatical. A poesia seria o discurso que trabalha exacerbadamente esses dois
58
níveis. Já pudemos apreender como a linguagem poética faz isso. Ele completa dizendo
que:
Entre poesia e prosa romanesca, a diferença é menos qualitativa que
quantitativa. É pela freqüência dos desvios que esses dois gêneros
literários se distinguem, podendo a diferença de freqüência ser a menor
possível. (COHEN, 1966, p.23).
Mais uma vez a diferença entre prosa e poesia estabelece-se com relação à
freqüência de desvios. O prosaico tende ao desvio nulo e o poético ao desvio máximo. A
linguagem prosaica científica tende ao grau zero da escritura, ou seja, comete o mínimo de
desvios possíveis. E como a diferença de freqüência pode ser a menor possível, muitas
vezes é bem difícil delimitar as fronteiras dos gêneros.
Cohen acredita que no cruzamento poesia e prosa o que ocorre é justamente um
desvio na utilização desses dois níveis (fônico e semântico). A prosa poética explora os
níveis que tradicionalmente são explorados pela poesia, é a linguagem que conta e que se
auto-conta ao mesmo tempo.
Lefebve (1978), por sua vez, em Estrutura do discurso da poesia e da narrativa não
faz uma distinção genérica entre prosa e poesia, pensa no discurso literário de uma forma
geral, diferenciando esse tipo de discurso do chamado discurso cotidiano. Pudemos
percorrer algumas características do caminho traçado pelo autor no decorrer deste capítulo,
apreendendo a diferença entre linguagem poética e linguagem usual.
Para ele a literatura em geral é um discurso poético, ele eleva algumas
características que comprovam isso, quando diz, por exemplo que: é na literatura de forma
geral que se asseguram a ambigüidade das palavras e os desvios em relação ao uso habitual;
é nela que novos meios de expressão são criados, e nunca se fazem completos; a obra
literária jamais é totalmente fechada; as regras do código literário são sempre ‘suspeitas’,
suscetíveis de serem contestadas, transgredidas, repudiadas.” (1980 p.26).
59
O discurso literário obedece a um código que é, em grande parte, o do
discurso ordinário, mas que deve, contudo, diferenciar-se dele, se a
literatura consiste efetivamente num uso particular da linguagem.
(LEFEBVE, 1980, p.24).
Todorov, em seu turno, pensa na diferença entre poesia e prosa num sentido não tão
centrado no signo, ele pensa mais no conteúdo que esses tipos de discurso desenvolvem. “A
diferença entre poesia e não-poesia está, em suma, no próprio conteúdo do que é dito: ali,
os sentimentos; aqui, as idéias”.(TODOROV, 1978, p.96).
[...] a poesia nada conta, nem designa evento algum, mas se contenta,
freqüentemente, em formular uma meditação, uma impressão. O termo
específico “ficção” não se aplica à poesia, porque o termo genérico
“imitação” deve perder qualquer sentido preciso para permanecer
pertinente; a poesia, freqüentemente, não evoca qualquer representação
exterior, bastando-se a si mesma. (TODOROV, 1978, p.14).
Como fica claro, a poesia não está necessariamente no verso. E ainda, a poesia
surge não só na prosa, mas em diversas formas de expressão artística.
Nosso estudo preocupa-se com o quiasma que se estabelece entre linguagem poética
e linguagem prosaica que se denomina “prosa poética”. Uma tarefa não tão simples de se
delinear, pois não há regras apriorísticas para a definição de uma prosa poética, esta não é
uma forma fixa.
Nesse tipo de discurso que cruza aspectos poéticos e aspectos prosaicos há um
embate das diferenças, mas esse embate não visa uma superação em que um tipo de aspecto
sobreponha ao outro. Pelo contrário, esses aspectos advindos de gêneros diferentes, querem
coexistir numa relação de troca em que as diferenças cooperem e se enriqueçam
mutuamente. É como um gênero de enxerto: aspectos poéticos implantados na estrutura
prosaica, em que cada ramo preserva suas características próprias, desabrochando suas
folhas, espalhando suas sementes, mas sendo alimentados pela mesma raiz discursiva.
60
Não podemos esquecer a diferença entre narrativa poética e prosa poética. A
narrativa poética é um produto da prosa poética, é o gênero literário. A prosa poética é o
método discursivo que pode resultar em narrativa poética, mas não necessariamente, pois
diversos gêneros (ensaios, textos filosóficos, dissertações...) podem fazer uso da prosa
poética.
A narrativa poética é o gênero que tem uma tendência a ser poesia, mas que não
abre mão de contar uma história. A poesia deixa de ser expressa na narrativa poética através
do verso e da métrica, e se revela no ritmo, nas figuras de linguagem, nos simbolismos, nas
imagens e nos temas universais e míticos.
Como dissemos, a narrativa poética é a prosa inundada de liricidade, mas que não
abre mão de contar uma história. No entanto, essa história depois de mergulhar no oceano
poético, não poderá mais ser contata da mesma forma e representar o acontecimento da
mesma maneira. É contada de forma vaga, difusa e ampla, elevando temas existenciais,
intimistas, abstratos e universais.
Na narrativa poética os elementos estruturais (narrador, personagem, tempo,
espaço...) esfacelam-se, desvirtuam-se de suas características essenciais, sendo até
abstraídos algumas vezes. É comum a linguagem ser auto-reflexiva e atitudes
metalingüísticas incidirem demasiadamente nas páginas.
A narrativa poética é a poesia que ousou ocupar o contundente espaço descritivo da
prosa. Escrever em prosa poética é a tentativa de discorre em um espaço bem maior o que é
material do instantâneo, do absoluto, do condensado; o que é o sumo. E é árduo descrever o
resíduo, o fenômeno da vida no grande espaço de um “romance”.
A narrativa poética é o gênero da soma dos contrários: “prosa e poesia, liberdade e
rigor, anarquia destruidora e arte organizadora”.(BERNARD apud TODOROV, 1978,
p.112). Gênero em que:
[a] essencial impureza brota [da] constante oscilação entre a prosa e a
poesia, o conceito e o mito. Ambigüidade que lhe vem do fato de ser o
gênero épico de uma sociedade fundada na análise e na razão, isto é, na
prosa. (PAZ, 1996, p.68-69).
61
Paz acredita que o que diferencia essencialmente a narrativa poética da narrativa
convencional é o ritmo. Na narrativa poética “o ritmo permanece: subsistem as pausas, as
aliterações, as paronomásias, o choque de ruídos, o fluxo verbal.” (PAZ, 1996, p.15).
Ralph Freedman, no livro The lyrical novel, estuda o “romance lírico” nas obras de
Hermann Hesse, André Gide e Virginia Woolf. Freedman encontra focos de contigüidade
entre as escrituras desses autores e a partir disso, cria uma teoria do “romance lírico”. É
interessante observar algumas definições desse tipo de gênero, pois é a base da narrativa
poética.
Freedman observa as diferenças da narrativa lírica e da não lírica . Logo no início
diz: “[...] what distinguishes lyrical from non-lyrical writing is a different concept of
objectivity.”
1
(1971, p.1). Parece que as narratives líricas não se interessam pelas questões
da conduta humana, mas, na verdade é só uma questão de freqüência, esses temas incidem
in a different light
2
(p.2).
Freedman também caracteriza a narrativa lírica como um gênero híbrido (hybrid
genre) “[...] that uses the novel to approach the function of a poem
3
(1971, p.1). Há em
Freedman a idéia de que esses tipos de narrativa não são ordenados por uma forma pré-
estabelecida, mas, segundo ele, “[...] by poetic manipulation of narrative types [...].”
4
(p.3).
No decorrer dessa caracterização percebemos que, para Freedman, o traço essencial
que distingue narrativa lírica da narrativa convencional é o ponto de vista. Na narrativa
lírica o ponto de vista é reduzido a um “eu” que tudo manipula e organiza, como se fosse
um eu-lírico tal como o do poema; a partir desse “eu” que olha cria-se uma diferença na
disposição de mundo na narrativa. É como ele diz:
________________________________________________________________________________
1. tradução nossa: “[...] o que distingue a narrativa lírica da não-lírica é uma diferente concepção de objetividade” (p.1);
2. tradução nossa: “em um foco diferente” (p.2);
3. tradução nossa: “[...] que usa o romance para se aproximar da função de um poema”. (p.1);
4. tradução nossa: “[...] pela manipulação poética de tipos narrativos [...]” (p.3).
62
A decisive difference between the two forms, however, is the locus of that
world. In conventional narratives, the outer world is the thing. […] In the
lyrical mode, such a world is conceived, not as a universe in which men
display their actions, but as a poet’s vision fashioned as a design. The
world is reduced to a lyrical point of view, the equivalent of the poet’s
“I”: the lyrical self.
5
(FREEDMAN, 1971, p.8).
Pensando nesse “eu” que se coloca ativamente no romance lírico, pensamos nas
funções do narrador e das personagens nesse tipo de discurso. O narrador é a personagem
principal, é ele que é esse “eu” que organiza o mundo, que imbui sentimento nas páginas,
que diz a interioridade. Isso acontece sempre, mesmo quando o narrador está em terceira
pessoa. As personagens são como fantoches conduzidos por oscilações internas desse “eu”.
O protagonista é um ser passivo nesse tipo de narrativa, apresenta contornos fugidios, esta
nas mãos da liricidade, da expressão ontológica que inunda todas as instâncias.
Na verdade não há uma distinção precisa entre narrador, personagens e mesmo
autor. Essas instâncias se interpõem na narrativa, através de falas que se cruzam, de
mudanças repentinas dos focos narrativos, que fazem com que as delimitações se tornem
imprecisas e nesse momento questionamos se esse “eu”, na verdade, não está em tudo.
Freedman (1971, p.271-272) diz que a liricidade da narrativa é uma maneira
peculiar de desorganizar os enfoques da percepção.
The “I” of the lyric becomes the protagonist, who refashions the world
through his perception and renders it as a form of the imagination. The
poetic imagination of the lyrical novelist, however, functions differently
from that of his confrère. [Por isso] lyricism in the novel assumes a
5. tradução nossa: “De toda forma, uma diferença decisiva entre as duas formas é o lócus do mundo [que está sendo
representado]. Em narrativas convencionais, o mundo de fora é o foco [...]. Na narrativa lírica, mesmo que haja um
mundo, não é um universo em que os homens praticam suas ações, mas é como uma visão [íntima] do poeta feita
imagem. O mundo é reduzido a um ponto de vista lírico, equivalente ao “Eu” do poeta: o eu lírico.” (p.8).
63
significance which it does not posses in verse. […] The lyrical process
expands because the lyrical “I” is also an experiencing protagonist. The
poet’s stance is turned into an epistemological act. […] the contribution
of lyrical fiction has been this peculiar way of looking at perception.
6
O autor ainda estabelece algumas características básicas da ficção lírica, como, por
exemplo: a inundação de imagens, e os jogos simbólicos; os fluxos de consciência, e as
revelações oníricas; o ritmo e as figuras, etc.
[...] o que há de mais notável é que o contraste evocado se compõe
precisamente do “prosaico” e do “poético” - entendidos agora não mais
como categorias literárias, mas como dimensões da vida e do mundo.
(TODOROV, 1978, p.118).
Enfim, esse modo interpolado de narrar é o que queremos evidenciar na narrativa de
Clarice Lispector.
2.8. A linguagem poética em Clarice
“Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces
secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres: trouxeste a chave?” Carlos Drummond
de Andrade.
6. tradução nossa: “O ‘eu’ da lírica torna-se o protagonista, recria o mundo através de suas percepções e submete a uma forma de
imaginação. Contudo, a imaginação poética do romancista lírico funciona diferente daquela do seu confrère [confrade]. [Por isso] o
lirismo desse tipo de romance assume uma significância que não pode assumir em verso. [...] O processo lírico se expande porque o
‘eu’ lírico é também protagonista de experiências variadas. A postura do poeta torna-se ato epistemológico [...]. A contribuição da
ficção lírica tem sido essa maneira peculiar de enfocar a percepção.” (p.271-272).
O trabalho criativo de Clarice Lispector pode ser chamado de escritura do mistério.
Primeiramente porque tece no nível dos significantes uma teia hermética, redonda, plural,
aparentemente indecifrável e também porque esses significantes guardam em si
significados oscilantes, amplos, que são a expressão da essência.
Clarice Lispector desenvolve no nível da expressão literária um caminho acolhedor
para que o ser emirja na linguagem. As personagens clariceanas são seres sempre em busca
da identidade e do auto-conhecimento; mulheres corajosas que mergulham no mar turvo e
fosco da possibilidade de ser e sentir.
O tipo de narrativa que se desenvolve é um derramamento de fluxos existenciais, e
de epifanias das sensações, em que o ser, aberto e em carne viva, liberta-se das
convencionalidades adentrando num nível mais profundo.
A necessidade vital desse tipo de escritura é revelar os lados pouco acessíveis do
homem. E é justamente essa necessidade que desencadeia a utilização da linguagem
poética. É na tentativa de dizer da forma mais fiel possível o intimo do ser que a linguagem
se torna poética? Ou será que é através da utilização do dizer poético que o intimo do ser
surge na escritura?
Acreditamos, e já pudemos discorrer sobre isso, que linguagem e tema surgem
concomitantemente: a poesia desencadeia o intimo do ser, e o intimo do ser desencadeia o
dizer poético; esses processos estão intimamente imbricados e começam a existir ao mesmo
tempo no processo de escrita. Quando a autora pensa na própria matéria-prima que utiliza e
trabalha cuidadosamente com essa matéria, construindo cada combinação de palavra, cada
símbolo nas frases, constrói também um ninho acolhedor para o intimo do ser extravasar.
“A missão própria da poesia é oferecer ao mais sólido da linguagem e ao mais misterioso
do mundo o lugar de uma misteriosa coincidência.”(COHEN, 1966, p.25).
O discurso inunda-se de metáforas e oxímoros, cada espaço em branco é um
símbolo. A sintaxe não se apóia mais na linearidade e nas regras pré-estabelecidas da
gramática e um tipo de discurso de desvio é o que se instaura. Além disso, os ritmos e as
imagens ondulam pelas frases, transferindo-nos para esse mundo das sensações em que as
personagens e o narrador estão inseridos. Por isso, podemos dizer que a linguagem desse
tipo de narrativa é poética, é um tipo de poesia que preferiu explorar o espaço grande de um
texto em prosa.
65
Depois desse mergulho no subsolo escatológico da ficção, nas águas
dormidas do imaginário, comuns ao sonho, aos mitos e às lendas, a voz
reconstruída de quem narra só poderá ser uma voz dubidativa, entregue à
linguagem – aos poderes e à impotência da linguagem, distante e próxima
do real extra-linguístico indizível. (NUNES, 2004, p. 298).
O processo de escrita parece desenvolver-se por aquela fórmula que tentamos
esboçar sobre a máquina de fazer poesia, em que a Natureza depois de passada pelo crivo
da interioridade extravasa em forma de poesia. Talvez seja justamente esse crivo da
interioridade que a Natureza atravessa que faz com que a linguagem que emirja seja
poética. A ação direta de um “eu” transforma totalmente a forma da narrativa. E “[...] é na
linguagem poética que encontramos essa encruzilhada humana entre uma revelação
objetiva e o enraizamento dessa revelação no mais obscuro do indivíduo biológico”
(DURAND, 1988, p.65-66).
Clarice quer apregoar uma escritura em que o cordão vital que liga interioridade e
mundo seja o mais curto possível. O dizer busca uma imediaticidade tentando preservar a
massa amorfa em sua forma mais intacta. No entanto, muitas vezes, o resultado dessa
imediaticidade é o silêncio.
O que chamamos poesia implica a mais profunda penetração no ser de
que é capaz o homem. Sedenta de ser, enamorada de ser, a poesia cruza as
camadas superficiais sem iluminá-las de todo, centrando seu foco nas
dimensões profundas. (CORTÁZAR, 2004, p.66-67).
A beleza da poética de Clarice Lispector advém da coragem e da liberdade. A
escritura quer revelar o ser em transparência, deixando emergir os lados crus e nus fora da
máscara social.
Seus livros oferecem um mergulho no indivíduo – o ser particular,
diferente de todos os outros, perdido na massa informe que chamamos
sociedade. Um olhar arguto e sem condescendência, mas carregado de
66
afeto, sobre nossas mazelas, contradições, medos e gestos de amor e
grandeza. Em um mundo marcado pela crise de instituições e sistemas de
pensamento, a obra de Clarice é cada vez mais relevante. (GULLAR;
PEREGRINO, 2007).
Clarice é uma poeta de olhar intuitivo, que cria poesia através do olhar simples,
gratuito e afetivo que dá ao mundo. Olhar simples, porém corajoso, que diferencia e
particulariza, retira as coisas de suas instrumentalidades, fazendo “o de dentro da gente”
fluir.
No mundo da rapidez, da lógica e da eficiência, um olhar simples parece incomum,
novo e estranho. Sentir a vida intimamente parece mais artificial do que coca-cola.
A realidade de mercado não é apenas a realidade da lógica e do lucro, mas é a
realidade da massificação; os seres vivem inseridos em uma filosofia de automação, de
robótica, em que a mídia molda as essências, essências estas que se igualam para facilitar a
abrangência da dominação.
Clarice escreve contra essa corrente, observa o ser no mundo enquanto
possibilidade de experimentar, criar e sentir. Talvez seja a tentativa da fuga da moral de
rebanho: inserir o ser em um lance de dados, em um xadrez de estrelas, apagar as pegadas
do caminho, acabar com as garantias e as certezas, des-instituir o telos, conservando apenas
um estar no mundo. Deixar o ser ser na possibilidade inesgotável. Segundo Candido (apud
ROSSONI, 1994, p.729) esta é “uma tentativa impressionante para levar a nossa língua
canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de
mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva mas
um instrumento real do espírito capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais
retorcidos da mente”.
A literatura de Clarice não é apenas desautomatizante, mas também desalienante,
pois desloca o olhar anestesiado da existência no mundo. Escrita que constata e vê a
situação de que faz parte.
Na visita ao Museu da Língua Portuguesa, em que materiais que fazem parte do
acervo de Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa estavam expostos,
encontramos fragmentos de uma lista deixada pela escritora em que ela registrou alguns
itens que julgava essenciais em seu método de escrita. Em um papel de caderno escrito à
67
mão, a autora topicaliza elementos que precisava observar em seus livros justamente para
que eles pudessem ser escritos da forma mais simples possível. São dezoito itens, e é
interessante observar que em mais da metade deles, a autora utiliza os verbos “tirar” e
“apagar”. Por exemplo: “ (1) ler tirando o excesso de adjetivos brilhantes (isso é isso, isso é
aquilo); 3) ler tirando tudo o que sinceramente não parece bem; 7) tirar certo grandiosismo;
11) tirar os brinquedos, o tom falsamente inocente. Tudo é sério.” (RÓTULO PARA
REVISÃO, grifos nossos).
A ficcionista parece querer coar seus textos, retirando os acessórios excessivos, os
rebuscamentos sem necessidade, para tentar encontrar a limpidez do dizer pouco
corrompido.
Em um dos itens dessa lista, ela diz que deve: “tirar os ‘como’ da analogia: a coisa é
o que ela simboliza. Não era bonita como um lírico, mas era um lírio.”. Fica claro o seu
gosto pelas metáforas, e o desgosto pelas tautologias. Sempre que era possível a
substituição de uma palavra, a autora o fazia, tornando, assim, o discurso mais poético,
integro e condensado.
O discurso tenta não se corromper por uma ideologia, um engajamento, ou uma
filosofia pré-estabelecida. De certa forma, é impossível o discurso não ser engajado, mas
esse tipo de discurso quer manter laços fortes apenas com o ser, com a entidade existencial,
desnudando essência e aparência, o resto é conseqüência.
No entanto, esse modo de dizer tem consciência do esfacelamento e da
fragmentação do ser. Por isso a linguagem que a autora utiliza se reveste de símbolos,
figuras e organizações não convencionais, tentando expressar o ritmo interno:
Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é regressar ao ritmo; as
razões se transformam em correspondências, os silogismos em analogias e
a marcha intelectual em fluir de imagens. (PAZ, 1966, p.12).
As estruturas narratológicas desviam-se, relativizam-se ou esfacelam-se; não
podendo ser definidas e caracterizadas com clareza.
A autora joga com termos e conceitos contrastantes, mas que, bem diferente de uma
tendência dialética discursiva em que os opostos caminham para uma superação, os termos
e conceitos opostos se unem na construção de um universo uno, não buscam se superar,
68
eles apenas se revelam partes de uma mesma totalidade. Os oxímoros surgem na teia
descritiva, figura antitética que aproxima termos e conceitos normalmente incompatíveis,
mas que é apropriada para exprimir estados complexos da alma.
A diferença valorativa entre belo e feio, entre falso e verdadeiro é eliminada. A
noção de que a realidade é uma teia de convenções é bem nítida em Clarice, parece que a
instância “negativa” só existe na instância “positiva”, ou seja, concomitantemente. Tudo
tem dois lados e a definição de qual desses lados é positivo e qual é negativo é feita pelo
homem dentro do mundo em que vive. Na ficção clariceana, essas convenções se desnudam
à luz da palavra poética, revelam-se enquanto convenções, e uma escritura
anticonvencional emerge tanto nos temas de que trata, como na forma lingüística que
utiliza, que descristaliza, desloca e desvirtua os níveis do discurso.
Percebemos que Clarice Lispector, ao dar um tratamento específico à palavra, cria
um estilo próprio. A narrativa como expressão do “eu” torna-se personalizada e única. A
denominação “narrativa poética” é conseqüente do estilo de narrar utilizado pela autora. O
gênero surge do estilo.
A autora faz um tipo de literatura que revela por todos os lados a impossibilidade de
ser classificável através de um único gênero. Mescla não apenas aspectos poéticos e
prosaicos, mas também insufla questionamentos filosóficos e declarações pessoais em suas
narrativas. O gênero clariceano está muito próximo do que chamamos de estilo. É um
gênero que não preexiste à obra: nasce ao mesmo tempo que esta.
O estilo de Clarice Lispector é o de quem antes escreve para viver do que vive para
escrever. Clarice diz:
[...] escrever me é uma necessidade. De um lado porque escrever é um
modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da
imaginação é apenas um modo de chegar); de outro escrevo pela
incapacidade de entender sem ser através do processo de escrever”.
(LISPECTOR apud GOTLIB, 1995, p.146).
69
3. A comunhão dos opostos
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres explora, em diversos níveis, símbolos e
temas dualísticos e, na maioria das vezes, antitéticos. Como dissemos anteriormente, a
trama desenrola-se através do posicionamento de duas personagens centrais, Loreley e
Ulisses. Essas personagens, como iremos perceber, m
a des.00a297d6Tw 12 0 0 12 322.019 1 otagon661 Tw 1290 0 12 852.0199 575.579944TE7r, m
Ul70.554.870.2245s
comodismo, não entraria tão extremamente em suas intimidades enquanto ser e enquanto
mulher se não tivesse sido despertada e amparada por Ulisses. Ulisses é a energia
propulsora, a engrenagem, a força que adiciona movimento à mulher e é a partir dessa
energia que ela começa a caminhar por terrenos novos e insólitos.
Na primeira parte do livro, a personagem Loreley nos é apresentada intimamente.
Esta parte é constituída por quatro “capítulos”, que em apenas um aparecem falas de
Ulisses, no restante tudo o que vemos são fluxos de consciência e monólogos interiores de
Lóri. Esses fluxos e monólogos são expressos através de um jogo sintático em que se
alternam terceira e primeira pessoa; há um narrador que conta em terceira pessoa, mas o
que ele conta é o que Lóri sente, o que se passa no seu mundo interno de personagem; não
há como dizer que ele é uma terceira instância da narrativa. O narrador não apenas
oniscientemente conhece Lóri e compartilha de seus sentimentos, mas ele é Lóri. Esse tipo
de narrador é como o eu-lírico do poema, um eu-poético que diz um mundo que faz parte
dele intimamente, ele não é apenas um ser que olha, que conhece a história e as
personagens, mas ele é as próprias personagens, o próprio universo que está sendo narrado.
Essa tensão entre um aparente narrador de fora – como se os fatos fossem
apresentados a partir de um ângulo de visão exterior – e o efetivo
narrador de dentro – como se os fatos jamais pudessem desprender-se da
linguagem e da percepção da personagem – estabelece um duplo olhar,
uma espécie de visão que não é de dentro nem de fora, mas “com” [...]
(SANTOS, 1987, p.16).
Logo na primeira página do livro, entramos no mundo feminino de Lóri, em seu
universo particular. O parágrafo, que começa com uma vírgula e segue em um grande
período com apenas um ponto final, expõe pensamentos da personagem que mesclam a
vida cotidiana com os seus sentimentos e sensações. Somos apresentados às duas
personagens logo neste primeiro parágrafo: Lóri aparece inserida em seu universo
doméstico, feminino e existencial e Ulisses aparece delineado pelos pensamentos de Lóri
que, a todo o momento desta primeira parte, pensa nele, e pensa no encontro que haviam
combinado.
71
Este encontro com o homem será o fio desencadeador de todos os questionamentos,
sensações e pensamentos da personagem feminina nesta primeira parte. O fato de ela não
conseguir decidir se vai ou não ao tal encontro a faz percorrer labirintos internos, tentando
encontrar respostas para suas angustias, dúvidas e medos. A história desta primeira parte é
justamente a da dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses, mas essa dúvida se desenrola
por várias páginas, pois a complexidade de um intimismo é que é a grande preocupação da
narrativa. Conhecemos Lóri através do contato com a narração das sinuosidades deste
labirinto angustiante de sua intimidade.
Dissemos que o livro pode ser divido em duas partes, e estas duas partes
apresentam características específicas. O subtítulo “Luminescência” é um divisor de águas
do livro, é a partir desta luminescência que o percurso existencial entra em um novo
caminho. A primeira parte apresenta alguns símbolos e temas que marcam o sentimento de
mundo de Lóri naquele momento. E Lóri se sente angustiada, pesada, seca, se sente
insegura, sem saber como ser, como ter a coragem de ser.
A primeira situação em que Lóri aparece na narrativa é em meio a atributos
domésticos, ela chega do mercado e está cheia de ocupações e de tarefas domésticas, o
narrador diz que Lóri, então, “[...] fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na
fruteira as maçãs que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma
fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma
fruteira [...]” (LISPECTOR, 1998, p.13).
Lóri precisava aprender a embelezar uma fruteira, tinha que aprender a apreciar as
maçãs. A maçã, símbolo bíblico do fruto proibido, que guarda o pecado, é a melhor fruta de
Lóri, e Lóri, ao contrário de Eva, não sabe como apreciar a maçã, talvez precisasse da ajuda
de um homem para ter a coragem de libertar-se para o pecado. Delineia-se, logo neste
primeiro parágrafo, o caminho existencial de Lóri que já explica o título do livro:
aprendizagem dos prazeres. Lóri precisa aprender a se possibilitar comer e experimentar a
maçã. E em Uma aprendizagem, comer a maçã representa experimentar um prazer amplo: é
a soma do prazer carnal com o místico. Morder a maçã é experimentar o sublime e o trivial,
mergulhar de corpo e alma.
Nesta primeira parte, Loreley é apenas um ser querendo entrar neste caminho da
aprendizagem, é apenas alguém que está começando a despertar, que já não é mais a
72
mesma pessoa, pois a possibilidade de experimentar a maçã já está clara e o mediador desta
aprendizagem já está em seu caminho, “Ulisses já encenara-lhe”(LISPECTOR, 1998, p.13).
Mas ela ainda se sente insegura, ainda se sente parte de uma vida consolidada, em que o
Nada é o seu Deus e este Deus, apesar de frio e duro, lhe dá segurança.
A angustia da personagem está justamente na questão de como passar do Nada para
a maçã, ou seja, como sair de sua situação segura e cômoda e se permitir a liberdade de
sentir e se entregar ao desejo e ao amor. Angustiante não é apenas o questionamento de
“como” ela deve seguir este caminho, mas também se deve mesmo seguí-lo. Muitas vezes,
Lóri parece titubear, tem a vontade acolhedora de continuar onde está, de não ir ao encontro
de Ulisses, de continuar sentindo apenas sentimentos e sensações facilmente inteligíveis.
Mas, mesmo se quisesse, ela percebe que já não pode mais, Ulisses já acenara e com este
aceno, acenaram na vida dela novas possibilidades de ser. Como o narrador diz, Lóri sentia
como se houvesse uma “farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.”
(LISPECTOR, 1998, p.23). A farpa ainda estava incrustada, mas também já estava bem
visível.
Nesta primeira parte, vemos, o tempo todo, este embate entre o Nada e a
possibilidade de Abertura, várias metáforas e símbolos caracterizam estes dois lados. A
apresentação de Lóri fica concentrada em seu mundo doméstico e feminino, e é através dos
traços de sua feminilidade que muitos símbolos de seu estado interior surgem:
Então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal
se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o
tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo – e em
sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo
rasgando a terra – veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som
algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele
que não quisera jamais e não previa – sacudida como a árvore frágil –
afinal rebentados canos e veias, então sentou-se para descansar [...].
(LISPECTOR, 1998, p.14).
Esta passagem representa bem o embate interno que a protagonista trava consigo
mesma, ela sente algo maior invadindo-a, sente que há coisas internas que poderiam
73
transbordar, mas não sabe como e nem se deve deixar essa “coisa” ganhar vida. Esta
“coisa” é ininteligível, não tem tamanho, nem forma; como Lóri poderia deixar isso ser?
Como poderia deixar o que não conhece tomá-la por inteiro? Mas a dor de se manter onde
está, nessa posição do Nada, também é grande, e a atitude da personagem é sempre de
alguém que titubeia, que como em um estado de náusea, sente a vontade de expelir algo,
mas este algo parece tão grande e pesado (ou seria leve?) que ela, no ato de regurgitamento,
recua fecha-se como um animalzinho indefeso.
Nos estados de recuo, a personagem é simbolizada como um animalzinho, ou como
um
filosofia e Lóri sempre sentia que além de ele ser superior a ela no que diz respeito aos
entendimentos ontológicos, ele também tinha mais sabedoria de vida. E Lóri tinha medo de
aprofundar mais seus conhecimentos ontológicos. Mas ela também estava começando a
compreender que o excesso de medo evita a vida, o excesso de medo afasta o prazer maior;
estava percebendo que a maior prisão do ser humano é o medo.
Ulisses representa para ela a ruptura dos medos, e por isso o que ela, neste início,
sente por ele é uma mescla de amor e ódio. Ele apareceu e tudo mudou, agora mesmo se ela
quisesse voltar ao útero, simbolizado pelo seu pequeno apartamento de janelas e portas
fechadas, já não poderia mais. Mesmo que ela não fosse ao encontro, Ulisses e tudo o que
ele passou a representar, estaria incrustado nos meandros de seu ser e um novo sentimento
de mundo já pululava em sua alma.
Em súbita revolta ela não quis aprender o que ele pacientemente parecia
querer ensinar e ela mesma aprender – revoltava-se sobretudo porque
aquela não era para ela época de “meditação” que de súbito parecia
ridícula: estava vibrando em puro desejo como lhe acontecia antes e
depois da menstruação. Mas era como se ele quisesse que ela aprendesse
a andar com as próprias pernas e só então, preparada para a liberdade por
Ulisses, ela fosse dele – o que é que ele queria dela, além de
tranqüilamente desejá-la? (LISPECTOR, 1998, p.15-16).
Lóri revolta-se pois percebe que Ulisses, muito diferente dos outros homens que
havia tido, não queria apenas desejá-la e possuir apenas uma parte fácil e dócil de seu ser.
Ulisses parecia querer Lóri por inteiro, tanto seus lados dóceis como os selvagens, e para
isso, ela teria que abrir uma fenda para que seus lados selvagens e pouco cognitivos
pudessem se libertar. Parecia que os lados que Lóri sempre tentou reprimir, pois nunca
soubera como lidar com eles e nunca quisera saber, agora teriam que transparecer a todo o
momento, teriam que ganhar asas. E Ulisses seria a pinça que ajudaria a puxar a ponta
daquela incrustada farpa para fora.
Mas, apesar de recuar por causa do medo, Lóri também, de uma forma feminina e
particular, cria atrativos para que Ulisses não se esquive e desista dela totalmente. Ou seja,
depois que Ulisses surgiu em sua vida, juntamente com o medo de se entregar e se conhecer
75
melhor, surgiu o medo de perdê-lo. Por isso, Lóri tenta, da forma que sabe, continuar
“prendendo” Ulisses com atrativos que ela julga sedutores e que já haviam funcionado com
seus outros amantes. Nesta fase em que ela se encontra, com a impossibilidade de recuar
totalmente e com o medo de prosseguir, ela procura continuar na posição do “quase”. Lóri é
um ser que quer se ocultar, mas algo nela quer se revelar, ela “quase” é um grande mistério,
mas também é “quase” uma grande revelação. E nesse embate entre ocultação e revelação o
ser encontra-se em movimento, mesmo que estático. Mesmo Lóri querendo permanecer no
estado do “quase” em que não precisasse desabrochar, explodir, já há nela uma fresta que
denuncia extratos profundos do ser.
Então, na superfície do ser, nessa região em que o ser quer se manifestar
e quer se ocultar, os movimentos de fechamento e abertura são tão
numerosos, tão freqüentemente invertidos, tão carregados de hesitação,
que poderíamos concluir com esta fórmula: o homem é o ser entreaberto.
(BACHELARD, 1989, p.225).
O fato de ir ou não ao encontro com Ulisses, ligar ou não para ele, sempre são
decisões pesadas e difíceis, pois as duas possibilidades que ela tem para agir causam medo
e podem tirá-la dessa sua segura posição de “quase”.
Era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo isso e resolvesse não
dá-la – e agora a angústia vinha porque de novo descobria que precisava
de Ulisses, o que a despertava – queria poder continuar a vê-lo, mas sem
precisar tão violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente só,
como era antes, saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas
Ulisses, entrando cada vez mais plenamente em sua vida, ela, ao se sentir
protegida por ele, passara a ter receio de perder a proteção – embora ela
mesma não soubesse ao certo que idéia fazia de “ser protegida” [...]
(LISPECTOR, 1998, p.19).
No entanto, Lóri sente vontade de se arrumar para Ulisses, como uma fêmea
instintiva, quer chamar atenção através de seus atrativos, que no caso dela, são bastante
76
artificiais. No ato de se vestir, Lóri cria um ritual em que cada detalhe deve ser muito bem
pensado, porque para ela se vestir, na verdade é criar uma imagem, criar uma
personalidade. Ela se veste como quem se mascara, como quem quer criar uma capa
protetora. “[...] parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela liquidaria de
uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma segunda vida, um
renascimento”; seria um motivo para fixar um sonho (BACHELARD, 1991, p.169):
Enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um
mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que
com o seu corpo ela dava corpo [...] Lóri então pintou cuidadosamente os
lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito,
passou perfume na testa e no nascimento dos seios [...] usava um perfume
levemente sufocante, gostoso como húmus, como se a cabeça deitada,
esmagasse húmus, cujo nome não dizia a nenhuma de suas colegas-
professoras: porque ele era seu, era ela, já que para Lóri perfumar-se era
uma ato secreto e quase religioso (LISPECTOR, 1998, p.16-17).
O ato de se vestir também revela o titubear de Lóri, o jogo que ela trava consigo
mesma de ocultação e revelação, de tentativa de se revelar um pouco, mas não perder as
seguranças antigas. Ela, no ato de se vestir, sente necessidade de deixar “alguma coisa
modestamente nua” (LISPECTOR, 1998, p.17). Havia algo nela, que apesar da intensa
maquiagem e do vestido grosso, queria ser decifrado; já havia uma fresta para o ser:
“descobriu-as [as orelhas], esticando os cabelos para trás das orelhas incongruentes e
pálidas: rainha egípcia? Não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também algo
em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigada
a devorar-te [...]” (LISPECTOR, 1998, p.17).
Lóri ainda sente uma grande vontade de se manter protegida, porém começa a
perceber que sua concepção de proteção pode não ser mais fiel a seu interior. “[...] pensou
que a proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe,
como agora, a impressão de que fora cortada de si própria [...]” (LISPECTOR, 1998, p.19).
A personagem olha-se no espelho e entende que sozinha está muito longe de conseguir ser
plena, e que a proteção que sente é apenas uma passividade perante si mesma e perante o
77
mundo, que a deixa num estado de semi-morte. “[...] seu descompasso com o mundo
chegava a ser cômico de tão grande: não conseguia acertar o passo com as coisas ao seu
redor.” (LISPECTOR, 1998, p.20).
O estado de Lóri é de alguém que “não consegue parar de ser”, ela se sente cansada
de tanto travar uma luta entre a vontade de transparecer e transbordar com a vontade de se
mascarar e se “proteger”. Esse estado de vivência em que Lóri se encontra é pesado e
cansativo. A narrativa, nesta primeira parte, se insufla de imagens que simbolizam esse
peso interno da personagem. Ela se sente como uma velha de “quatro milênios”, o ambiente
é quente e denso, parece que é sempre meio-dia e nunca chove.
Não, a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. E lá fora
só voavam pássaros de penas empalhadas. Se a mulher fechava os olhos
para não ver o calor, pois era um calor visível, só então vinha a
alucinação lenta simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem,
elefantes doces e pesados, de casca seca, embora mergulhados no interior
da carne por uma ternura quente insuportável; eles eram difíceis de se
carregarem a si próprios, o que os tornava lentos e pesados.
(LISPECTOR, 1998, p.22).
A figura do elefante aparece várias vezes nesta parte do livro: animal lento, pesado,
de couro grosso, que não transpira e consegue represar calor internamente. Lóri se sente
como um elefante que represa em si uma grande quantidade de calor e que é pesada e seca.
Outros símbolos são bastante utilizados para representar esse estado de peso e de dureza de
Lóri, como por exemplo: o diamante, a pérola, a cigarra que não canta, o eterno meio-dia, a
Índia, etc. Tantos símbolos de peso e secura são insuflados na narrativa que ao lermos
parece que as páginas são vermelhas, laranjas e amarelas, parece que há um deserto
escaldante cheio de pedras e elefantes e este deserto está trancafiado em um vidro com
tampa cerrada. O calor causa uma grande dilatação que faz as veias ficarem alarmadas, mas
nada explode. “E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas
pérolas secas.” (LISPECTOR, 1998, p.24).
78
Não chove por ódio, por medo, por inocência, por Lóri ter desaprendido (ou nunca
ter aprendido) como se deixa chover. Não há mais Deus, não há grito, não há dor, “o peito
[está] vazio, sem contração”, só existem faltas, silêncios, “uma doçura pesada”. Lóri diz:
Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade.
Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois
tudo isso é a morte parada. É a Eternidade de trilhões de anos das estrelas
e da Terra, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o
bem e o mal não existem. (LISPECTOR, 1998, p.24).
Porém, ao final desta primeira parte do livro, o peso começa a dar espaço para um
sentimento mais brando, “[...] enfim o céu se abranda” e “[...] o diamante dos olhos se
liquefaz em duas lágrimas” (LISPECTOR, 1998, p.25). Lóri, finalmente, começa a sentir
um pouco de alívio por poder extravasar um pouco e por dar uma trégua à guerra diária
consigo mesma. A personagem conversa com Ulisses por telefone e ele, didaticamente, diz
a ela:
[...] Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.
Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de
que nos empurra para a frente. [...] Foi apesar de que parei na rua e fiquei
olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo
desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo
que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. (LISPECTOR,
1998, p.26).
E nesta fala, Ulisses, ao mesmo tempo que acalma Lóri, deixa claro que o que ela
tanto temia era verdade: ele a quer por inteiro. Mas ela também descobre que ele esperará
por ela, esperará o tempo dela. A partir desse pequeno contato com Ulisses, Lóri se acalma
e o ódio abre espaço para que uma leveza comece a transparecer. “[...] é que chegara agora
a poder amar. Até aquela glorificação: ela amava o Nada. A consciência de sua permanente
queda humana a levava ao amor do Nada.” (LISPECTOR, 1998, p.27).
79
Nessa fase o animal que surge simbolizando o estado interno de Lóri é um cavalo
selvagem, ela escreve em um papel que daria a Ulisses:
Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente
selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram
rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha
mão. Seu focinho é úmido e fresco. (LISPECTOR, 1998, p.28).
O cavalo selvagem, sem rédeas, sem sela, representa a liberdade, a grandeza interna,
a leveza que tem vida própria e se auto-guia. Representa também um ser cru, pouco
corrompido, sem rumo, sem enquadramentos. Segundo a psicanálise junguiana, o cavalo
selvagem é o símbolo da perturbação erótica, Lóri ainda não aprendeu a domar seus anseios
e desejos, não aprendeu a domar a si mesma e também não aprendeu a deixar-se fluir. De
toda forma, agora já se vislumbra o cavalo selvagem dentro dela.
Agora Lóri caminha para um estado oposto ao que se encontrava. O peso começa a
dar lugar à uma aspiração de leveza, os elefantes transformam-se em cavalos e gazelas, os
quatro milênios tornaram-se átimos de segundos. “Ela se tornara mais habilidosa: como se
aos poucos estivesse se habituando à terra, à Lua, ao Sol, e estranhamente a Marte
sobretudo. Estava numa plataforma terrestre de onde por átimos de segundos parecia ver a
superrealidade do que é verdadeiramente real.” (LISPECTOR, 1998, p.30). E então surge a
“luminescência” e com ela a segunda parte do livro.
Esses dois diferentes estados de alma que Clarice Lispector explora tão
poeticamente no livro são símbolos do dualismo antitético em que o livro se estrutura e que
comentamos logo no começo deste capítulo.
É interessante observar que Clarice cria, neste livro, algumas inversões, como por
exemplo, de passagens bíblicas. Loreley parece seguir um caminho oposto ao de Eva
depois de experimentar a maçã; a abertura para uma nova possibilidade de mundo que
advém do desejo e do pecado, introduz Lóri e Ulisses no caminho do paraíso e os tira do
inferno humano, ao contrário do que ocorre com Adão e Eva. Lóri depois de aprender a
“enfeitar a fruteira” começa a perder seus medos, a sair do Nada.
80
Uma Aprendizagem, logo no começo, traz uma epígrafe que é uma citação de um
versículo do livro do Apocalipse da Bíblia:
Depois disto olhei, e eis que vi uma porta aberta no céu, e a primeira voz
que ouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe aqui, e
mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas.
Apocalipse, IV, I.
O Apocalipse é o ultimo livro da Bíblia que conta a história do fim dos tempos.
Uma Aprendizagem começa com uma citação do Apocalipse e desemboca, bem no
finalzinho da narrativa, na reformulação da parábola de Adão e Eva, ou seja, de uma
parábola que pertence ao livro dos Gêneses que é o primeiro livro da Bíblia que narra o
nascimento do mundo e dos homens. Dessa forma, observamos ai mais uma inversão de
temas dualísticos que a narrativa explora. Uma Aprendizagem passa da morte para a vida,
da “inocência” ao pecado e as conseqüências são positivas.
[...] reiteradamente, aparece este recurso retórico, tom maior de uma
ficção que toca o pólo místico, pelo caminho do profano. Há elementos
bíblicos presentes em situações invertidas ou deslocadas. A fruta
preferida de Lóri é a maçã, mas mordê-la produz o efeito contrário,
abrindo os olhos da personagem para o bem. (SÁ, 2004, p.160).
3.1. Luminescência
Começa o que aqui denom
rosas e nem sempre tem formas, tem pegadas ou direções bem definidas. Muitas vezes é
vaga, silenciosa e sem forma.
Iremos perceber que a personagem, nesta parte, quer esmiuçar meticulosamente essa
sua situação de vida, quer pegar com as palmas das mãos, com a voracidade da boca, com a
abertura de todos os sentidos, o âmago desse estado, a essência dessa dor. E é nesta parte do
livro que as epifanias começam a aparecer. Nessa tentativa corajosa, seu modo de
expressão não é mais tão simbólico como na primeira parte. Na primeira parte era como se
ela regurgitasse aquilo que crescia nela internamente, ela apenas expelia aquilo que não
cabia mais dentro e que não havia mais como reter, por mais que tentasse. Agora,
percebendo essa impossibilidade de guardar-se a si mesma, ela tenta entender e dizer,
porém não logicamente, isso que a está incomodando, essa grandeza que explode. Agora
Lóri consegue falar sobre aquela sensação de contato com o Nada. Já que não há como
retroceder, Lóri quer, então, entender ao máximo, quer cutucar a ferida com as palmas das
mãos. E dessa forma o poético torna-se parte natural de seu ser. Perceberemos que Lóri
alcançou o estágio poético, mas o alto estágio poético do ser, aquele que está intimamente
ligado com o ontológico. E a partir daí começa a grande aprendizagem.
Na primeira parte, as falas do narrador dominam a grande maioria da narrativa. Lóri
e seus estados íntimos são descritos através das falas metafóricas desse narrador. Há apenas
uma conversa entre Lóri e Ulisses, no restante, quase tudo aparece em terceira pessoa, com
uns pequenos cortes de pensamentos da personagem feminina em primeira pessoa.
Na segunda parte, as conversas de Lóri e Ulisses são muito mais freqüentes,
começamos a conhecer a personagem masculina através das próprias falas dele e
conhecemos mais a personagem feminina através das próprias falas dela também. Agora os
diálogos inundam as páginas, o contato direto homem/mulher aumenta e a aprendizagem
ganha mais energia para se desenrolar. E é justamente através dos excessivos diálogos que
Lóri vai adquirindo coragem para poder ser. Nesta segunda parte Lóri: “Queria entender o
bastante para pelo menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia. Embora no
fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que
pensara que se compreendera era por ter compreendido errado.” (LISPECTOR, 1998, p.44)
82
A primeira parte do livro poderia ser resumida como: a fase em que a personagem
tem o cuidado de tocar o Nada com as pontas dos dedos; e a segunda parte seria: a coragem
de experimentar o Nada com todos os sentidos.
A personagem julga que foi através de Ulisses que ela aprendera a ter coragem, foi
ele o grande motivo de agora ela se encontrar caminhando nesses terrenos insólitos. O
homem representa a possibilidade de abertura para os sentidos, para o conhecimento maior
e para o amor. E, ao mesmo tempo, o homem também representa a ameaça da estabilidade,
a possibilidade de queda e de sofrimento. Lóri está desabrochando para o novo, mas ainda
com receio de sofrer. “Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de
Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria
que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair [...]” (LISPECTOR, 1998,
p.32). Para ela, nesse estágio, a queda é inevitável, abandonar Ulisses, ou se entregar ao
amor de Ulisses representam quedas. Qual seria a melhor queda? Existiria uma queda
melhor? O que deveria escolher? Ainda era tempo de escolher?
Agora Lóri já esta na nova estrada, e cada passo novo repercute a destruição do
passo antigo, a estrada que ficou para trás se desfaz assim que Lóri caminha. E o que resta
atrás é abismo, não há como voltar, não há como construir outra estrada no abismo. Lóri se
dá conta disso: “Ela quis retroceder. Mas sentia que era tarde demais: uma vez dado o
primeiro passo este era irreversível, e empurrava-a para mais, mais, mais! O que quero,
meu Deus.” (LISPECTOR, 1998, p.74).
Como uma menina que está se transformando em mulher, os estados de fertilidades
em Lóri aumentam: fertilidades hormonais, sexuais e também fertilidades existenciais. Ela
se sente acordada e sóbria e na madrugada fica de olhos bem abertos e sem sono, se
permitindo, agora, ocupar o terraço de seu pequeno apartamento. “De madrugada ia ao
pequeno terraço e quando tinha sorte era madrugada com lua-cheia.” (LISPECTOR, 1998,
p.34). A lua-cheia representa a fertilidade, a energia que faz brotar novas vidas, é o auge
dos hormônios, dos movimentos da natureza. Lóri agora se identificava com a madrugada
e com a lua-cheia e com a pequena liberdade que o terraço de seu apartamento pode
oferecer. Segundo o dicionário de símbolos “Na mitologia, folclore, contos populares e
poesia, este símbolo [a lua] diz respeito à divindade da mulher e à força fecundadora da
83
vida, encarnadas nas divindades da fecundidade vegetal e animal, fundidas no culto da
Grande Mãe.” (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982, p.568).
A lua-cheia fertiliza os instintos femininos de Lóri e ao mesmo tempo, fervilha seus
insólitos pensamentos:
Ela simplesmente sentira, de súbito, que pensar não lhe era natural.
Depois chegara à conclusão de que ela não tinha um dia-a-dia mas sim
uma vida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era
sobrenatural com suas inúmeras luas banhando-a de um prateado líquido
tão terrível. (LISPECTOR, 1998, p.34-35).
Segundo ainda o dicionário de símbolos, “A Lua é um símbolo do conhecimento
indireto, discursivo, progressivo [...]. A Lua, astro das noites, evoca metaforicamente a
beleza e também a luz na imensidade tenebrosa [...]”. “Simboliza o princípio passivo, mas
fecundo, a noite, a umidade, o subconsciente, a imaginação, o psiquismo, o sonho, a
receptividade, a mulher e tudo que é instável [...]” (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982,
p.564, grifo do autor). Lóri, assim, metaforicamente se identifica com a Lua, ela sente seus
pensamentos tão insólitos invadirem-
pensamentos e sua sensação de mundo são feéricos, obscuros, nada claros, cheio de
imagens, de cores distorcidas. E, apesar da obscuridade, Lóri tenta entender esse seu
universo particular e continua o percurso.
Esse modo de tentar entender o que nela fervilha, o que nela causa medo, o que está
nela nos momentos solitários, rompe com um modo lógico e empírico de compreensão da
realidade. Seu modo de percepção torna-se todo emocional, lírico. Lóri caminha
sobriamente na descoberta do poético. “Sobretudo aprendera agora a se aproximar das
coisas sem ligá-las à sua função. Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as
pessoas antes que lhes tivéssemos dado o sentido de nossa esperança humana ou de nossa
dor.” (LISPECTOR, 1998, p.35). Como diz Staiger (1997, p.165): “No modo de ser lírico
ainda não existe distância entre o ser e o objeto. O eu escoa-se com o transitório.”
Porém, a apreensão lírica de Lóri parece não ser mais, agora, essa do primeiro
estágio de apreensão do mundo, como o estágio de uma criança que ainda não aprendeu a
nomear tudo, a explicar o mundo, e confunde objeto e ser. Lóri já aprendera a nomear o
mundo, a viver logicamente, a enquadrar o mundo em explicações científicas e racionais.
Agora ela encontra-se não retrocedendo, mas, pelo contrário, avançando, sai do estágio
lógico, para adentrar em um estágio pós-lógico e contactar com a plenitude do ser. Ela já
experimentou o modo de viver lógico e não alcançou a plenitude, agora, ela busca uma
abertura ampla, um entendimento mais completo de si. Busca a sensibilidade de compactar
com as coisas, com o mundo, com a natureza, para encontrar fragmentos de si mesma, que
parece terem sido deixados para trás ou terem se perdido durante seu caminho de vida. “O
bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter
loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto,
uma doçura de estupidez.” (LISPECTOR, 1998, p.44).
Esse tipo de sentimento de mundo pós-lógico ampara-se no símbolo da noite, a
noite também:
[...] simboliza o desaparecimento de todo conhecimento distinto,
analítico, exprimível; mais ainda, a privação de toda evidência e de todo
suporte psicológico. Em outras palavras, como obscuridade, a noite
convém à purificação do intelecto, enquanto que vazio e despojamento
dizem respeito à purificação da memória, e aridez e secura, à
85
purificação dos desejos e afetos sensíveis, até mesmo das aspirações mais
elevadas. (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982, p.640, grifo do autor).
O percurso da personagem, em certo sentido, é o percurso da purificação tanto no
nível sensível quanto no intelectual. E esse percurso se assemelha a um percurso da alta
experiência religiosa. É como se Loreley tivesse recebido uma religião herdada na infância
e a partir disso tivesse construído um Deus místico, inquestionável, criador de todas as
coisas. Mas, depois de um tempo, depois de vivências, de contatos com o mundo lógico,
terminasse por matar seu modo religioso-infantil de conceber o mundo. E agora, tentando
ser sincera consigo mesma e plena, sente necessidade de ampliar seu modo de expressão,
sente necessidade de se esparramar em êxtase, de atingir a fé epifânica. Sente necessidade
de: “[...] reatar o mundo ‘objetivo’ do acontecimento ao mundo ‘subjetivo’ e interpretá-lo
de acordo com as categorias deste ultimo.” (CASSIRER, 2004, p.266).
Renasce seu sentimento religioso-infantil, porém mesclado com sua sabedoria de
vida. Foi o fato de ter chegado ao extremo com as explicações lógicas de si mesma que fez
com que a necessidade de outra forma de se auto-entender e de entender o mundo surgisse.
A forma lógica parece ter chegado num ápice e muitas questões ainda haviam ficado sem
respostas. Agora Lóri crê em um Deus, mas é um Deus desmistificado dos valores bíblicos,
um Deus que não surgiu para ela a partir do contato com uma religião. É um Deus que veio
do lado interno, dela mesma, é um Deus que representa o mistério de não entender,
representa o sem nome, o indizível, o Nada e o infinito.
O seu Deus até agora fora terrestre, e não era mais. De agora em diante,
se quisesse rezar, seria como rezar as cegas ao cosmos e ao Nada. [...]
Descobriu que até agora rezava para um eu-mesmo, só que poderoso,
engrandecido e onipotente, chamando-o de o Deus e assim como uma
criança via o pai como a figura de um rei. (LISPECTOR, 1998, p.66).
Lóri, em muitos momentos, fala desse Deus quando tenta expressar seus mistérios
interiores. É como se “Deus” fosse o substantivo mais amplo que desse conta de uma
totalidade indizível, seria a melhor expressão daquilo que na verdade não se expressa.
86
Nesse sentido, o sentimento religioso de contato com esse Deus pode ser comparado
com um modo mítico de concepção da realidade, pois:
Não é absolutamente com coisas que o homem lida no processo
mitológico; movem-no, isto sim, forças que surgem no interior da
própria consciência. O processo teogônico, através do qual se origina a
mitologia, é um processo subjetivo na medida em que ocorre na
consciência e se manifesta na produção de representações: mas as causas
e, portanto, também os objetos dessas representações são forças
efetivamente em si teogônicas, justamente as mesmas através das quais a
consciência é o que originalmente põe Deus. (CASSIRER, 2004 p.25,
grifo do autor).
A concepção de mundo mítica torna-se:
[...] uma segunda ‘natureza’, porque antes a própria natureza se
transformara para ele numa espécie de mito, uma vez que sua
significação e verdade puramente empíricas foram suprimidas por sua
significação espiritual, por sua função de ser a auto-revelação do
absoluto. (CASSIRER, 2004, p.28).
Lóri, em seus estados de dor, rezava, mas esse rezar era como um pedir algo a si
mesma, era como uma busca de concentrar energias para suportar as dores que viriam e
para conseguir continuar corajosa em seu caminho de aprendizagem. A personagem se
apóia nesse Deus, pois está sedenta de ser. E o terror diante do caos que a envolve
corresponde ao terror diante do nada, porém apoiar-se no Deus é apoiar-se no tudo, no
cosmo. Ela pede ao Deus:
[...] alivia minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à
minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já
estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que
a entrega de si mesmo não significa a morte [...] faze com que eu receba
o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada
87
e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre
esse mistério do mundo e o nosso [...]. (LISPECTOR, 1998, p.68).
Dessa forma, podemos entender que Deus e o homem estão inseridos, na narrativa,
num mesmo plano ontológico em que se somam imanência e transcendência. O narrador de
Uma aprendizagem diz: “ ‘Não entender’ era tão vasto que ultrapassava qualquer entender
– entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito,
ao Deus.” (LISPECTOR, 1998, p.43).
Esse modo de visão do mundo, que já ultrapassou o estágio de compreensão lógica e
desembocou em um estágio místico superior é altamente poético. A forma poética de
encarar o mundo é justamente aquela que quebra as barreiras entre o sentir e o entender e
expressa o mundo através da comunhão do imaginativo com o empírico, unindo
pensamento sensível e pensamento lógico. Criando uma realidade mítica:
[...] aquele mundo no qual todos nós, uma vez fora da esfera da reflexão
consciente, crítico-científica, estamos e vivemos continuamente -, este
mundo contém uma abundância de traços que, do ponto de vista mesmo
dessa reflexão, só podem ser caracterizados como míticos. (CASSIRER,
2004, p.36).
Loreley é a personagem expressão da poesia. Ulisses diz a Lóri:
[...] é só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos é que
começamos a saber. Então pensei em você que não fala uma palavra de
filosofia comigo e quando estamos juntos, pois é, quando estamos juntos
você até parece um sábio que não quer mais ser sábio e até, sabe, até se
dá ao luxo de disfarçadamente se angustiar como qualquer um de nós.
(LISPECTOR, 1998, p.52-53).
Loreley é uma sábia, porém uma sábia intuitiva, tem uma sabedoria de mulher que é
diferente da do homem. A sua sabedoria vem dos sentidos, vem do sexto sentido, do
contato emocional e direto com o mundo. Seu conhecimento de mundo surge através da
88
interioridade e o que, muitas vezes, ela desvenda e descobre de si mesma e do mundo é
como que uma descoberta religiosa, porque tem a magia e a grandeza do êxtase religioso.
Ela concebe o mundo em êxtase divino.
Apreender pela intuição implica ascender a uma forma de conhecimento
imediato, sem intermediários. Uma assistência presente ao espírito. Esse
pensamento vem da origem latina do termo – tueri – que significa “ver”.
Assim, a captação intuitiva sugere uma visão súbita, logo inefável.
(ROSSONI, 2002, p.27).
O narrador diz da revelação intuitiva de Lóri:
[...] veio-lhe outra revelação que durou pois era o resultado intuitivo de
coisas que ela pensara antes racionalmente. O que lhe veio foi a
levemente assustadora certeza de que os nosso sentimentos e
pensamentos são tão sobrenaturais como uma história passada depois da
morte. (LISPECTOR, 1998, p.140).
E se, em alguns momentos, sua sabedoria intuitiva não flui é porque ela mesma se
torna obstáculo de si mesma e não deixa a grandiosidade erigir: “Mas existe um grande, o
maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu
caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.” (LISPECTOR,
1998, p.53). “- Sou um monte instransponível no meu próprio caminho.”(LISPECTOR,
1998, p.53)
Nesse ponto em que as explicações coerentes, as explicações lógicas não dão conta
da plenitude interna, Lóri depara-se com o silêncio. O silêncio é, na narrativa, muitas vezes,
onde desembocam todas as perguntas a respeito do ser, é o espaço em branco que surge
depois de muito se questionar e perceber que nenhuma lógica pode delinear os reais traços
do ser. Lóri, o narrador, Clarice, silenciam depois de muito auto-questionarem-se. Lóri diz:
Quantas horas perdi na escuridão supondo que o silêncio te julga – como
esperei em vão ser julgada pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas
89
justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade. Tão suave é
para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a
justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença. Até que
se descobre, Ulisses – nem a tua indignidade ele quer. Ele é o silêncio. Ele
é o Deus? (LISPECTOR, 1998, p.37-38).
O silêncio, algumas vezes grafado com letra maiúscula, pode ser comparado ao
Deus, à experiência religiosa. O Silêncio é o cume onde desembocam todos os
questionamentos que não encontram respostas. Não podendo dizer, muitas vezes, a
grandeza do mundo interno, Lóri silencia para tentar não trair a real expressão de sua
essência. “O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e
intransmissível como a voz de um ser humano calado. Só o silêncio da montanha lhe era
equivalente. O silêncio da Suíça, por exemplo.” (LISPECTOR, 1998, p.35). E ela se
pergunta: “Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio? Desse silêncio
sem lembrança de palavras. Se és morte, como te abençoar?” (LISPECTOR, 1998, p.36).
E constata:
Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. O silêncio é a
profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se
fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há
uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo
sem palavras. (LISPECTOR, 1998, p.37).
O narrador constata que “Não se pode falar do silêncio como se fala da neve”, ou
seja, não se pode falar do silêncio como uma coisa palpável, facilmente inteligível. E, de
toda forma, o narrador se preocupa em defini-lo, para isso utiliza metáforas e imagens que
parecem identificar melhor o que representa esse silêncio para Lóri. “[...] a imagem é um
recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a
terrível experiência do que nos rodeia e de nós mesmos”. (PAZ, 1996, p.48). O silêncio é a
noite, é o secreto, é o misterioso. O silêncio é algo hermético que pertence a uma
maçonaria, a um grupo de pessoas que o cultuam, mas se preocupam em não falar dele.
Nesse sentido, podemos perceber outra associação do Silêncio com o Deus na narrativa:
90
ambos representam o mistério de uma experiência religiosa em que não há palavras que
consigam traduzir plenamente a experiência que transmitem. Deus e o Silêncio fazem parte
de estratos do ser que só são realmente captados pelos sentidos, pelo contato íntimo com o
êxtase, como o êxtase religioso.
A experiência de contato com o silêncio não deixa de ser dolorosa. Lóri percebe que
se auto-definir é insuficiente, que a expressão através de palavras não abrange a grandeza
interna, e que, no entanto, não há mais como recuar e voltar para o estado do Nada, antes
deve se permitir o Silêncio, apenas senti-lo. Já que não há justificativa para tudo, já que não
se pode retroceder no caminho, o silêncio abrange todas as coisas ainda não delimitadas e
explicadas logicamente. E “se não há coragem, que não se entre.” (LISPECTOR, 1998,
p.38).
O que atraiu Lóri em Ulisses, primeiramente, foi o fato de ele ser um professor de
filosofia e com isso parecia que ele poderia dar a ela respostas para esses seus
questionamentos ardilosos que dizem respeito ao ser. Lóri, inocentemente, acreditava que
Ulisses, o conhecedor da ciência ontológica, saberia ensinar a ela coisas sobre ela mesma.
Na verdade, ela quer dele a possibilidade de compartilhar um pouco de si mesma e ser
interpretada e entendida por outra pessoa. Ulisses, de fato, desencadeou em Lóri o caminho
do auto-conhecimento, ou melhor, acordou em Lóri esses lados que já existiam nela, mas
que estavam intencionalmente dormentes por causa do medo do contato direto com eles.
“Ele, que se interessara por Lóri apenas pelo desejo, parecia agora ver como ela era
inalcançável. E mais: não só inalcançável por ele mas por ela própria e para o mundo.”
(LISPECTOR, 1998, p.40). Porém, não foi pelo fato de ele ser um professor de filosofia
que os lados obscuros de Lóri despertaram, mas sim pelo fato de ele desejá-la e de ela, ao
se sentir desejada, encontrar uma intimidade de alma com um outro ser e se sentir segura
para começar a desabrochar.
O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão
profunda que os motivos lhe escapavam – ela havia por medo cortado a
dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor – senão
se sofria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que
em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes.
91
Sem dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem
forma de contato. (LISPECTOR, 1998, p.40).
A primeira impressão que Ulisses teve de Lóri quando a conheceu foi a de que ela
era “uma tela nua e em branco” (LISPECTOR, 1998, p.52) e que ele só precisaria começar
a “usar os pincéis” (LISPECTOR, 1998, p.52). Mas foi percebendo que, na verdade, Lóri
era uma tela “enegrecida por fumaça densa, vinda de algum fogo ruim, e que não seria fácil
limpá-la” (LISPECTOR, 1998, p.52). Ou seja, Lóri já era um ser carregado de medo, se se
mantinha num caminho fácil de vida não era porque seu ser era fácil e simples, mas
simplesmente porque resolvera, por medo, por comodidade, manter-se “segura”.
O cavalo selvagem dentro da mulher estava se libertando, mas não sem dificuldade
e medo ainda. “Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que
poderia galopar e levá-la Deus sabe onde. Ela se segurava. Por que e para quê? Para o que
estava ela se poupando? Era um certo medo da própria capacidade, pequena ou grande,
talvez por não conhecer os próprios limites”.(LISPECTOR, 1998, p.41-42). A dificuldade,
muitas vezes, se encontra em continuar caminhando no escuro, em não ter certeza, nem
segurança de nada e no entanto prosseguir, a dificuldade é não se conhecer e não conhecer
o caminho e mesmo assim prosseguir.
Clarice trabalha o texto o tempo todo nesse formato de perguntas soltas, que
algumas vezes parece responderem-se, outras vezes apenas divagam. Onde estariam todas
as respostas? A aprendizagem é o caminho, é a busca, é o trajeto do pensamento sensível, e
o formato desse caminho é poético. Loreley é a expressão da angustia poética, dessa
angústia da busca da poesia mais pura, da poesia cume, da poesia essência, da poesia sumo.
O caminho da aprendizagem é dolorido pois mexe justamente com a nata do ser, com o que
sobra, com o residual, com o lado pouco dócil. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
é poético, antes de tudo, por lidar com as essências; as formas lingüísticas, as imagens, os
símbolos que se criam poeticamente surgem da tentativa de revelar o ser.
Lóri, a mulherzinha que veio do interior, professora primária, que ainda recebia
mesada do pai, percebe-se corajosa também para ser uma mulher menos humilde, em certo
sentido. Ela não quer mais aceitar humildemente o que a vida lhe oferecia e ainda
agradecer, agora ela se sente forte para pedir mais, para pedir o que o seu selvagem cavalo
92
interno lhe pede. Lóri não quer mais se enquadrar nos moldes de uma mulherzinha
satisfeita com pouco, com sentimentos corriqueiros de uma mulher romântica, com a
mediocridade; ela quer extravasar molduras, mas aceitar essa sua nova vontade é que é
difícil. Vemos ai outro jogo dualístico que se desenvolve na história de Uma aprendizagem:
o conflito entre a mulher romântica X a mulher moderna. A personagem diz, meio sem
jeito, mas admitindo para si mesma: “-É que eu não queria... não queria me casar, queria
certo tipo de liberdade que lá [no interior] não seria possível sem escândalo, a começar pela
minha família, lá tudo se sabe, meu pai me manda mesada porque o dinheiro da escola eu
não poderia -.”(LISPECTOR, 1998, p.49-50).
Uma aprendizagem resulta de um esforço por construir uma
representação que flagre, no eixo da simultaneidade da experiência
erótico-amorosa de uma mulher moderna, a presença de opostos e de
contraditórios que tanto afirmam como dissolvem, particularmente na
experiência do corpo e dos sentidos, um eixo de oposições binárias, que
cinde a experiência feminina contemporânea entre os limites da herança
patriarcal e os limites do que se propor como sua superação. (FRANCO,
2006, p.3).
Nesse universo novo e alógico que Lóri adentrara, as sensações poéticas, algumas
vezes, a transportam para a reminiscência do universo infantil. A sua origem agrária, ligada
à terra, encontrava nesta Lóri mais sensível, espaço para voltar a suscitar sentimentos mais
íntegros em relação ao mundo. Retornar às origens é o símbolo da busca do renascimento
pessoal. Voltar ao estado pretérito do qual emergiu é uma anamnese que empreende o
resgate do ser. “[...] não, eu não quero ser eu somente, por ter um eu próprio, quero é a
ligação extrema entre mim e a terra friável e perfumada.” (LISPECTOR, 1998, p.42).
Porém, “O que chamava de terra [agora] já se tornara o sinônimo de Ulisses, tanto ela
queria a terra de seus antepassados.” (LISPECTPOR, 1998, p.42).
Lóri se liga à terra, se liga ao passado. O agrário representa os laços fortes com a
natureza, ou seja, representa uma ligação extrema entre ser e mundo. E agora ela não queria
menos que a si mesma, menos que o mundo. “Sua alma incomensurável. Pois ela era o
Mundo. E no entanto vivia o pouco. Isso constituía uma de suas fontes de humildade e
93
forçada aceitação, e também a enfraquecia diante de qualquer possibilidade de agir.”
(LISPECTOR, 1998, p.43). Para encontrar sua plenitude que não quer mais aceitar o
“pequeno silêncio”, a humildade, ela teve que admitir para si mesma que apesar das
dificuldades o que ela quer é a coragem de enfrentar o “grande Silêncio”, o Deus e resgatar
todas as partes que essencialmente compõem seu mundo. Lóri é lua, pois é o astro do ritmo
do eterno retorno, que tenta se auto-resgatar para se auto-conhecer melhor: “Astro que
cresce, decresce e desaparece, cuja vida depende da lei universal do vir-a -ser, do
nascimento e da morte...[...] Este eterno retorno às suas formas iniciais, essa periodicidade
sem fim fazem com que a lua seja por excelência o astro dos ritmos da vida...”
(
CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982, p. 561).
Nesse imbricado jogo que mexe com a memória sensível, passado, presente e futuro
se sobrepõem e se justapõem formando um todo orgânico. Esse tempo orgânico representa
a busca da identidade autêntica, representa a tentativa de contactar o tempo do ser e essa
busca é ideológica, pois o tempo ontológico é sem fim e as metas desejadas nunca são
atingidas. O sentimento temporal ontológico de mundo é uma duração, é um tempo puro
em que instantes passados e projeções futuras permanecem e se somam ao presente. Porém
o tempo puro não pode ser transcrito, o que se apreende e se fixa é um momento, isto é, um
espaço. A duração interna não se mede, não pode ser espacialmente materializada. Ela não
se dá à medição cronológica convencional. Por isso, a duração é ritmo infixável e é circular.
Lóri é o que foi e o que será, o tempo dela está ligado aos instantes que deixaram rastros
sensíveis; é uma ubiqüidade em espiral, prolonga-se em um eterno encontrar-se e um eterno
perder-se a si mesma.
Por Ulisses representar um guia do encontro de Lóri consigo mesma, e também por
ser o “possibilitador” do crescimento existencial e o encorajador da liberdade para o amor,
ele tornara-se parte da integridade de Lóri enquanto ser. Ulisses era a terra, Lóri já não mais
se reconhecia sem ele. Os dois já estavam sendo partes de uma única coisa. E essa união
surgia do excesso de partilha de sensações e experiência. O estado de comunhão em que
eles caminham é o de comunhão compartilhada dos sentidos. Ulisses, em algumas
pa0 0 .253o6eixa claro que ele quer Lóri integralmente, porque para eles poderem se
completar, ela teria que estar íntegra de corpo e alma. Ulisses diz: “Esperarei nem que
sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar.”(LISPECTOR, 1998, p.47).
94
Ulisses, em um certo sentido, se situa em um grau mais elevado de sabedoria de
vida do que Lóri. Lóri até então havia preferido na vida “a largueza tão ampla e livre e sem
erros que era não-entender” (LISPECTOR, 1998, p.44). Enquanto Ulisses, como bom
representante de um estudioso de filosofia, buscava dar nomes e definir os acontecimentos
e os sentimentos. Ele consegue dizer de forma mais lógica e precisa o que é aquilo que se
passa entre os dois. Tentando guiar Lóri para a saída do medo ele diz, pedagogicamente:
Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso
considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas
as coisas. Não temos aceitado o que não se entende porque não queremos
passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos
termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido
catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as
catedrais que nós mesmo construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma
vida larga e nós a tememos. [...] Temos disfarçado com o pequeno medo
o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa.
[...] Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso
consideramos a vitória nossa de cada dia. Mas eu escapei disso, Lóri,
escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei
até você também estar mais pronta. (LISPECTOR, 1998, p.47-48).
Ulisses já conquistou uma certa liberdade de ser, já perdeu alguns medos que ainda
são tão fortes em Lóri. Mas ele, almejando a integridade da mulher, pacientemente esperará
até que ela o encontre. E para isso, Lóri “[...] antes precisava tocar em si própria, antes
precisava tocar o mundo.” (LISPECTOR, 1998, p.57).Ulisses diz a Lóri:
Lóri, Lóri! Nós estamos tentando a alegria! Você ao menos sente isso? E
sente como nos arriscamos no perigo? Você sente que há mais segurança
na dor morna? Ah, Lóri, Lóri, você não consegue recuperar, mesmo
vagamente, na lembrança da carne, o prazer que pelo menos no berço
você deve ter sentido por estar? Por ser? (LISPECTOR, 1998, p.59).
95
Lóri não poderia mais permanecer no estágio de dor mansa, do “quase” em que se
evitam grandes sofrimentos e também grandes felicidades. Pois, como diz Ulisses, antes de
morrer deve-se viver. Sair do estado do “quase” representa mergulhar na vida e caminhar
para a morte. Essa é uma necessidade humana e Lóri agora “[...] sabia que teria de dar a
alguém o que ela era, senão o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em
silêncio?” (LISPECTOR, 1998, p.61).
As duas personagens parecem estar caminhando pela mesma estrada existencial,
talvez a diferença seja que os dois estejam caminhando em direções contrárias nessa
estrada, ou seja, um ao encontro do outro. Eles se identificam, mas ainda não se depararam
com o limite do cruzamento das trajetórias.
De toda forma, o jeito superior de Ulisses se portar diante de Lóri, às vezes a
irritava. Ela, ao irritar-se com ele, irritava-se também consigo mesma, pois estava
percebendo que seu jeito de ser, muitas vezes quieto, sem jeito, tímido, fazia com que o
homem lidasse com ela como se estivesse lidando com uma criança sem muita experiência.
Lóri, como vimos anteriormente, se identificava com a lua. A lua, segundo o dicionário de
símbolos, se caracteriza por “[...] ser privada de luz própria e não passar de um reflexo do
Sol. [...] É por isso que ela simboliza a dependência e o princípio feminino.”. “ [...] a Lua é
yin em relação ao Sol yang: ela é passiva, receptiva.” (CHEVALIER; CHEERBRANT,
1982, p.561-562, grifo do autor). Loreley, sentia-se insegura para brilhar sem o apoio de
um outro ser. Lóri, em um estágio anterior, permanecia no terraço de seu obscuro
apartamento, banhando-se pela noite misteriosa que nada pode revelar nitidamente e
igualando-se à lua que só tinha luz porque antes existia um sol que a iluminasse.
Lóri fez de Ulisses seu sol, porém agora ela queria a ousadia de ser lua sozinha,
mesmo que sem luz, ela queria se descobrir na escuridão. E a aceitação de si mesma era
mais um passo para a aprendizagem. “Ela agora estava só para a dor que tivesse que vir”
(LISPECTOR, 1998, p.65). A Lua também é símbolo da renovação, da tranformação e do
crescimento e nesse sentido Lóri também é Lua.
Dado este novo passo rumo à aprendizagem, Lóri encontra-se mais uma vez com
Ulisses. O encontro ocorre em volta da piscina de um clube. Lóri, sem saber como estar
semi-nua ao lado desse homem, timidamente balança seus pés na água. A água representa
um “meio de purificação”, um “centro de regenerescência” (CHEVALIER;
96
CHEERBRANT, 1982, p.30). A água da piscina, calma, represada, representa para a
mulher a segura possibilidade de purificação e renascimento. Mesmo assim, Lóri ainda não
estava preparada para mergulhar. Loreley, a sereia, rainha das águas, desaprendeu a viver
em seu universo natural, desaprendeu a si mesma.
Esse contato com as águas da piscina é um prefácio do contato maior que a
personagem terá, mais à frente da trama, com as águas epifânicas do mar. Parada, banhando
os pés na água da piscina, ao lado do homem, Lóri, sente uma paz aguda, uma iluminação
interior e um estado de epifania preanuncia-se. Ela olha o espaço a sua volta e tudo parecer
ter adquirido novas cores, novos tons; é como se o espaço tivesse passado pelo mundo
interior da mulher e reaparecesse pintado com um expressionismo novo, altamente
subjetivo e poético:
Olhou para as mesinhas com pára-sol dispostas em torno da piscina:
pareciam sobrepairar na homogeneidade do cosmo. Tudo era infinito,
nada tinha começo nem fim: assim era a eternidade cósmica. Daí a um
instante a visão da realidade se desfazia, fora apenas um átimo de
segundo, a homogeneidade desaparecia e os olhos se perdiam numa
multiplicidade de tonalidades ainda surpreendentes: à visão aguda e
instantânea seguira-se algo mais reconhecível na terra. (LISPECTOR,
1998, p.69).
Em Uma aprendizagem a caracterização dos espaços explorados
transubstancializam-se depois de passados pela subjetividade. Conhecemos os ambientes
que as personagens ocupam através da visão poética do narrador e das personagens, visão
esta que está intimamente ligada a estados emocionais. É como se a personagem tivesse
sido assimilada pela instância espaciais. A visão exterior ganha ares sagrados, o espaço
perde a relatividade, a funcionalidade e a objetividade profana para adequar-se ao estatuto
ontológico e contribuir na desocultação da intimidade. “O espetáculo exterior vem ajudar a
revelar uma grandeza íntima.” (BACHELARD, 1989, p.197). O espaço torna-se, assim,
mais uma instância que simboliza os estados interiores, é mais uma ferramenta que ajuda na
criação do universo lírico, imagético e metafórico dos estados de ânimo e contribuem para
que compartilhemos das sensações das personagens. Espaço exterior e interior convivem,
97
na trama, em uma relação mutualística em que compartilham e dividem características
comuns. Essa relação cria um movimento em que o abstracionismo da interioridade se
ampara nos suportes materiais do mundo objetivo e a exterioridade se transmuta em novas
cores e formas para se adequar melhor à interioridade. “O ser é sucessivamente
condensação que se dispersa explodindo e dispersão que reflui para um centro. O exterior e
o interior são ambos íntimos; estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade.”
(BACHELARD, 1989, p.221).
Nas palavras de um poema do poeta Rilke (apud BACHELARD, 1989, p.200), o
espaço deve ser assimilado pela interioridade para que possamos alcançar a poesia presente
no mundo:
O espaço, fora de nós, ganha e traduz as coisas:
Se quiseres conquistar a existência de uma árvore,
Reveste-a de espaço interno, esse espaço
Que tem seu ser em ti. Cerca-a de coações.
Ela não tem limite, e só se torna realmente uma árvore
Quando se ordena no seio da tua renúncia.
Praticamente todas as marcações espaciais de Uma aprendizagem estão imbuídas de
um significado amplo e devem ser observadas como altamente simbólicas. De toda forma,
essas marcações nos orientam para criamos uma seqüência dos caminhos percorridos por
Loreley na trama e conhecer um pouco mais a vida desta personagem. Através das
lembranças da personagem, conhecemos os ambientes que ela ocupou no decorrer de sua
vida e podemos, assim, construir o percurso de sua existência. O texto, ao nos transportar
para a infância agrária da personagem, para sua vida na Europa, etc, não apenas retrata o
roteiro cronológico e linear de sua vida, mas principalmente, pela forma em que é narrado
este roteiro, contribui para que nos familiarizemos com seus sentimentos de mundo e é a
soma de seus fragmentos sensíveis que constrói a sua complexidade enquanto ser.
Através dos espaços que a personagem percorreu construímos uma idéia concreta de
tempo. Pois a idéia de tempo surge atrelada à idéia de espaço. Só podemos falar de tempo
porque podemos falar de espaço. O tempo é expresso através de marcações espaciais, o
percurso temporal do relógio é marcado pela mudança espacial de um ponto a outro, de um
98
segundo a outro. O tempo cronológico é percurso espacial. E o tempo só passa, porque há
movimento espacial. O tempo é a exteriorização no espaço da duração interna.
Há na narrativa algumas marcações temporais convencionais: algumas horas, o
início das estações do ano, etc. Mas a narrativa não se preocupa em descrever um percurso
linear de passagem de tempo, a preocupação é elevar instantes culminantes, que foram
passos importantes na trajetória da aprendizagem; são instantes que denunciam grandes
dores ou grandes prazeres.
O verdadeiro tempo interior, como dissemos, não se detém, é duração, são fluxos de
sensações e sentimentos de mundo e não tem forma. “[...] a duração interior se exterioriza
em tempo espacializado e como este, antes espaço que tempo, é mensurável”.(BERGSON,
ano, p.67). Assim, tentando não trair tanto essa duração interna, a narrativa decide fixar
apenas instantes descontínuos, momentos importantes soltos na linearidade de tempo. Esses
instantes se conectam com os outros instantes narrados através das semelhanças
ontológicas, através dos ecos sensíveis que se difundem e se resgatam em diferentes tempos
da linha vivencial de Lóri. Esses instantes são expressos no tecido diegético através de
fluxos de consciência que desarticulam as normas de pontuação e da seqüência narrativa,
tentando acompanhar a fluidez do tempo interno.
Durand (1999, p.51-2) explica o fenômeno da duração:
Não há dúvida de que o tempo, para nós, confunde-se inicialmente com a
continuidade de nossa vida interior. O que é essa continuidade? A de um
escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento e de uma
passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o escoamento não
implica uma coisa que se escoa e a passagem não pressupõe estados
pelos quais se passa: a coisa e o estado não são mais que instantâneos da
transição artificialmente captados; e essa transição, a única que é
naturalmente experimentada, é a própria duração. Ela é memória, mas
não memória pessoal, exterior àquilo que ela retém, distinta de um
passado cuja conservação ela garantiria; é uma memória interior à
própria mudança, memória que prolonga o antes no depois e os impede
de serem puros instantâneos que aparecem e desaparecem num presente
que renasceria incessantemente. Uma melodia que ouvimos de olhos
99
fechados, pensando apenas nela, está muito perto de coincidir com esse
tempo que é a própria fluidez de nossa vida interior; mas ainda tem
qualidades demais, determinação demais, e seria preciso começar por
apagar a diferença entre os sons, e depois abolir as características
distintivas do próprio som, conservar dele apenas a continuação do que
precede no que se segue e a transição ininterrupta, multiplicidade sem
divisibilidade e sucessão sem separação, para encontrar por fim o tempo
fundamental. Assim é a duração imediatamente percebida, sem a qual
não teríamos nenhuma idéia do tempo.
Segundo Gilda de Mello e Souza (1980, p.80), Clarice concebe “um tempo
fracionado, feito de pequenos segmentos de duração”. E Pontieri (2001, p.110) completa:
“Numa romancista cujo objetivo seria a apreensão do instante exemplar, o fluxo temporal
se constituiria como a soma desses instantes.”. O tempo em Uma aprendizagem é a soma
de momentos de cumes de sensibilidade.
A presentificação da experiência, do instante é feita através da escrita em fluxos,
“escrever é o que salva o fluxo temporal da destruição, é preciso engendrar continuamente
novos gestos de escritura: cada qual monadicamente fechado sobre si, mas ao mesmo
tempo reverberado nos outros.” (PONTIERI, 2001, p.118).
Dessa forma, podemos dizer que o tempo em Uma aprendizagem é antes vertical do
que linear e horizontal. Os instantes são linhas verticais que incidem em alguns pontos da
horizontalidade contínua da vida da personagem. A verticalidade marca o instante poético,
quebra a continuidade, cria abismos e marca a atemporalidade. “A meta é a verticalidade, a
profundeza ou a altura; é o instante estabilizado no qual as simultaneidades, ordenando-se,
provam que o instante poético possui perspectivas metafísicas.” (BACHELARD, 1991,
p.184).
A poesia escapa do domínio do tempo. “No instante poético o ser sobe ou desce,
sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao
sucessivo.” (BACHELARD, 1991, p.184).
O tempo aqui não é descritivo, é um derramar de imagens e símbolos que se
repetem para denunciar a semelhança das sensações vividas. Revelam a amplitude do ser
que abrange o que foi, o que é e o que será, que percorre um caminho circular.
100
A identidade não localizável, o tempo não-assimétrico e a redundância e
metonímia “halográfica” definem uma lógica “inteiramente outra” em
relação àquela, por exemplo, do silogismo ou da descrição eventualista,
mas muito próxima, por alguns lados, daquela da música. (DURAND,
1999, p.87).
De toda forma, a captação dos instantes é espacial, não há como traduzir a
interioridade sem o amparo da espacialidade. Por isso tempo e espaço estão imbricados na
narrativa.
Como já dissemos, é nessa segunda parte do livro que Loreley experimentará
estados de epifania. São pequenos estados de êxtase que a personagem passa e que
desembocarão na grande epifania do livro que se realizará quando a personagem se
encontrar com o mar. Essas pequenas epifanias são passos decisivos para Lóri se abrir
plenamente para o amor. “Descobrindo o sublime no trivial, o invisível sob o tangível – ela
própria toda desarmada como se tivesse naquele momento sabido que sua capacidade de
descobrir os segredos da vida natural ainda estivesse intacta”.(LISPECTOR, 1998, p.70-
71). Na lucidez das sensações, a personagem olha para o homem com olhos novos e
redescobre a atração, a paixão, a vontade de se dar e de receber: “[...] Ulisses estava agora a
um tempo sólido e transparente, o que o enriquecia de ressonâncias e esplendor. Podia-se
chamá-lo de um homem belo. Pela primeira vez então olhou-o sob o ponto de vista de
beleza estritamente masculina, e viu que havia nele uma calma virilidade.” (LISPECTOR,
1998, p.69).
O encontro na piscina é o primeiro momento em que Lóri entra em contato com um
estado de êxtase místico que a faz transcender. “Lóri, pela primeira vez na vida, sentiu uma
força que mais parecia uma ameaça contra o que ela fora até então.” (LISPECTOR, 1998,
p.72). “Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram
úmidos: era felicidade.” (LISPECTOR, 1998, p.73). Ela já não consegue explicar mais
nada, apenas sente a enorme energia, uma energia que vem de dentro, que vem do cosmo,
que vem de Deus e transborda, aguça seus sentidos, transforma o mundo:
101
Até a luz que precedia o crepúsculo foi se esgarçando entre penumbras e
maiores transparências, e o céu ameaçava uma revelação. A luz se
espectralizou em quase ausência, sem que aquela espécie de neutralidade
fosse ainda tocada pela escuridão: não parecia crepúsculo e sim o mais
imponderável de um amanhecer. (LISPECTOR, 1998, p.72).
E volta o medo: “Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de
pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa
desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade; Ela se despediu de Ulisses
quase correndo: ela era o perigo.” (LISPECTOR, 1998, p. 73).
Então, o próximo “capítulo” do livro narra o primeiro passo do encontro epifanico
de Lóri com o mar. Desta vez, estando sozinha na madrugada de seu apartamento, a
personagem, em mais um embate consigo mesma, ouve o mar de Ipanema, ouve as ondas
se quebrando. “Como eles haviam estado na piscina e lá, não somente soubera ver pela
primeira vez a mutação feérica e ao mesmo tempo opaca do sol, como sentira o mundo,
então iria experimentar o mundo sozinha para ver como era.” (LISPECTOR, 1998, p.76).
Agora “[...] ela já ansiava por novos êxtases de alegria e de dor.” (LISPECTOR, 1998,
p.75), ou seja, ansiava por novas aprendizagens:
Também a Aprendizagem é uma demanda. Mas seu roteiro, do não ser ao
ser, da insconsciência à consciência, é um caminho rumo à alegria e à
vida, volta ao Éden dos humanos, aprendizagem do prazer e dos sentidos,
através da água lustral do banho marinho. (PICCHIO, 1989, p.19).
E a personagem, bem no começo do dia, denunciado pelo relógio que marcava “[...]
cinco e dez da manhã clara e límpida.” (LISPECTOR, 1998, p.76), caminha para o mar:
Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. [...] Escura, machucada,
cega – como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que
fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres.
[...] Alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar.
(LISPECTOR, 1998, p.76-77).
102
Lóri encontra-se com o mar, e esse mar é comparado à mulher, mar e mulher são as
mais ininteligíveis das existências, segundo o narrador. O mar é personificado, é uma
existência, é um ser; o mar é retratado com o pronome “Ele” grafado com letra maiúscula, o
que indica sua personificação e a sua grandeza. E Lóri sente vontade de entregar seus
mistérios a este ser, sente vontade de fundir-se ao mar, de se integrar a sua grandiosidade e
a sua vastidão, ao infinito:
Descobrimos aqui que a imensidão íntima é uma intensidade, uma
intensidade de ser, a intensidade de um ser que se desenvolve numa vasta
perspectiva de imensidade íntima. Em seu princípio, as
“correspondências” acolhem a imensidão do mundo e transformam-na
numa intensidade do nosso ser íntimo. Instituem transações entre dois
tipos de grandeza. (BACHELARD, 1989, p.198).
A personagem agora é retratada como “a mulher”, ela não é mais um ser delimitado
por um nome, ela representa a mulher, todas as mulheres, o símbolo do feminino, é um
arquétipo. “O arquétipo é uma espécie de aptidão para reproduzir constantemente as
mesmas idéias míticas; se não as mesmas, pelo menos parecidas.” (JUNG, 1998, p.61).
A mulher sente o mar com todos seus sentidos, como em um devaneio, a imensidão
dela se confunde com a imensidão do mar. O encontro com o mar também representa o
retorno às origens, o mar é o ser das águas, e “[...] as águas existiam antes da Terra
(conforme se exprime o Gênesis, ‘as trevas cobriam a superfície do abismo, e o Espírito de
Deus planava sobre as águas’)”. (ELIADE, 2001, p.109). A mulher mergulha nas águas do
mar para se resgatar enquanto ser, mesmo que sem forma.
[...] a imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a
reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete
o gesto cosmogônico da manifestação formal; a imersão a uma
dissolução das formas. É por isso que o simbolismo das águas implica
tanto a morte como o renascimento. (ELIADE, 2001, p.110).
103
Nesse encontro profundo da mulher com o mar, o narrador utiliza termos que
evocam os cinco sentidos: “Esse corpo entrará no ilimitado frio [...]” (LISPECTOR, 1998,
78, grifo nosso); “O mar salgado não é sozinho [...]” (LISPECTOR, 1998, p.79, grifo
nosso); “O cheiro de uma maresia tonteante que a despertava de seu mais adormecido sono
secular.” (LISPECTOR, 1998, p. 79, grifo nosso); “[...] tudo líquido deixavam-na por uns
instantes cega [...]” (LISPECTOR, 1998, p.79, grifo nosso).
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do
devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados;
mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E
a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um
estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do
mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
(BACHELARD, 1989, p.189).
A narração do contato da mulher com o mar ocupa um capítulo inteiro do livro. E
este capítulo é narrado como uma parábola bíblica, as personagens (mulher e mar) são
símbolos universais, são arquétipos e alegorias. A parábola é uma “Narração alegórica,
[uma] comparação que serve de véu a uma verdade.” (LAROUSSE, 1999, p.688). É uma
narração velada de algo que deve ser decifrado e entendido através da apreensão dos
símbolos.
Em Uma aprendizagem a entrada da mulher no mar é retratada como uma alegoria
distorcida da passagem bíblica do evangelho em que Cristo anda sobre as águas. Assim
como Moisés “[...] ela [a mulher] abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisava de
coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios.” (LISPECTOR,
1998, p.79). Povoada de símbolos, a passagem alegórica da entrega da mulher ao mar
acentua a diferença entre o milagre bíblico com o “0 0 12 461.474 2w 12 0 0 12 3111Tm(ilagre bíblicoECTORara o12 co 0 12 454.2316 28763o a Tm(ilagre b 0 12 461.474 204.86.787Tm(ilagre b 12 467.4741 20497 847Tm(ilagre bj12 08 Tc 0.0005 Tc 0.0595 Tw 12 114 12 85.08 328.9196 1 Tm63o92 rendizagem)Tj/TT3 1 Tf0.0008 Tc 0.06066Tw 12 114 12 85.0798 2251.6183 Tm63o92 rendiMCA0 12 231.742 184.14o a1m63o92 rendi 12 226.638 246.10o a1m63o92 rendij12, n re3o vtiva, 461.Nsava dest2 0 0ca474 2w 12 0 0 12196535Tm63o92 rendiinh341 s12 467.4741 20433o95 Tm63o92 rendi1guas. Assi)Tj1 4616 ah Tc 0.0992 12 85.08 287.5195 1 Tm42)Tj347unga fa007 iss.00ep23[Rara 12 0 0 12 412.247 2252.1152 Tm42)Tj347” (LIS antigTc 0.1999 Tw 12 0 0 12 231.9599 266.4139 Tm42
A passagem bíblica é evocada no livro, porém totalmente invertida. Em Uma
aprendizagem é uma mulher que caminha sobre as águas, e o milagre está justamente em
esta mulher tornar-se parte do todo, de integrar-se com as águas e com o mundo e não,
como na Bíblia, ser superior e dominar o mar, como fez Cristo. A mulher se funde ao mar
com todos os seus sentidos, é como se os limites do ser mar e os limites do ser mulher se
perdessem para que ambos pudessem integrar-se profundamente e formar uma única
existência. A grandeza do mar torna-se intimamente familiar à mulher.
O encontro íntimo da mulher com o mar é narrado de forma poética, a poesia surge
nos excessos de símbolos e metáforas, na sugestão de imagens e na narração de sensações
profundas, deslocando-nos para a essência de um sentimento pleno de êxtase que é como
uma epifania milagrosa. “[a mulher] Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo
que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos
escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo
quanto o ser humano.” (LISPECTOR, 1998, p.80).
Esse encontro é um dos prelúdios da comunhão que ocorrerá ao final do livro. É um
encontro epifânico: a mulher está em êxtase e se deixa possuir. E esse êxtase narrado é uma
mistura do êxtase religioso com o êxtase sexual, é uma experiência profunda que advém da
soma das sensações da carne e da alma. É uma gnose mítica em que as revelações interiores
levam ao conhecimento das coisas divinas.
A mulher, ao sair do mar, sente-se como um náufrago: um ser que se perdeu na
imensidão e se salvou, neste caso, se salvou justamente porque se perdeu na imensidão de
seus devaneios de corpo e alma. O mergulho no mar representa a limpeza espiritual e a
possibilidade de renascimento e representa também a entrega para a morte, ou para o
grande gozo, a saída do estado do “quase”. Segundo o dicionário de símbolos, o mar é:
Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar
dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Água em
movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades
ainda informes às realidades configuradas, uma situação de
ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se
concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem
105
da vida e a imagem da morte. (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982,
p.593).
No encontro com o mar, a mulher se purifica, morre e renasce, milagrosamente sai
do mar com as energias renovadas, brilhante e iluminada. “Em qualquer conjunto religioso
em que as encontremos, as águas conservam invariavelmente sua função: desintegram,
abolem as formas, ‘lavam os pecados’, purificam e, ao mesmo tempo, regeneram”.
(ELIADE, 2001, p.110). Por isso, podemos dizer que o contato da mulher com o mar
desencadeou um estado nirvânico. “O mar é também o símbolo das Águas superiores, da
Essência divina, do Nirvana, do Tao.” (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1982, p.65, grifo
do autor). O Nirvana é a experiência livre de construções mentais, onde desemboca a
epifania, é uma “[...] visão intuitiva do Sentido da Realidade tal como ela é... Como
resultado desse desabamento do feixe dos fenômenos conscientes e da consciência
diferenciada, atinge-se o Conhecimento místico da interioridade [...].” (CHEVALIER;
CHEERBRANT, 1982, p.636, grifo do autor).
O ser que sai do mar é a mulher, o substantivo “mulher” é usado para identificar
Lóri, pois ela é o símbolo do feminino, é o yin, a Lua, a noite; símbolos que representam: a
intuição, o conhecimento alógico advindo dos sentidos, o misticismo, o mistério, etc. A
epifania de Loreley no contato com o mar é a de, ao integrar-se ao todo, resgatar-se
enquanto mulher, e de mergulhar em seu mundo de devaneios particulares, herméticos.
Na seqüência da narrativa, Lóri dá mais um passo rumo à leveza de ser. Ela
conversa com sua amiga cartomante, buscando alcançar uma calmaria para outro estado de
insegurança em que se encontra: agora a necessidade de enfrentar sem máscaras o mundo
social de que faz parte. No encontro com o mar, Lóri rompeu barreiras consigo mesma,
encontrando seus arcaicos estratos femininos, agora essa mulher renovada precisaria
encarar o mundo e manter-se mulher, suportar-se enquanto ser, sem os falsos apoios de
máscaras. A cartomante é como um auter-ego de Lóri, ao conversar com essa sua amiga,
parece estar conversando consigo mesma. A cartomante é a figura que simboliza o
conhecimento intuitivo, que desvenda o mundo através dos sentidos, ela diz a Lóri,
encorajando-a a ir a um coquetel de confraternização da escola: “Você precisa andar de
cabeça levantada, você tem que sofrer porque você é diferente dos outros – cosmicamente
106
diferente, é assim que dizem as tuas cartas, então aceite que você não pode ter a vida
burguesa dos outros e vá ao coquetel, e entre na sala com tua cabeça bem levantada.”
(LISPECTOR, 1998, p.82).
E Lóri vai ao coquetel, porém não deixa de recorrer ao apoio da máscara:
[...] pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto branco de
pó parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro:
esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de
si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era. [...] ah
“persona”, como não te usar e ser! (LISPECTOR, 1998, p.83).
E surge a nova aprendizagem: Lóri percebe que já não precisa mais ser uma
“persona”, não precisa mais se apoiar em uma personalidade exterior. O peso de interpretar
para se proteger é grande demais e por mais que a leveza de não usar máscaras ainda lhe
cause medo, ela sente que, agora socialmente, tinha que conquistar a liberdade de ser: “[...]
de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços
irregulares caíam no chão com um ruído oco. E eis agora o rosto nu, maduro, sensível
quando já não era mais para ser.” (LISPECTOR, 1998, p.86).
Esse novo passo rumo à aprendizagem simboliza o começo da abertura para a
despersonalização, para um caminhar sem disfarces ao encontro dos reais traços do ser. A
intenção é encontrar em si mesma a mulher de todas as mulheres. Agora Lóri é anima e não
persona, abre-se para que a porção mais interiorizada da psique feminina, transpareça as
frestas de seu ser. Esta é mais uma atitude libertadora: enfrentar o mundo social sem
máscaras, sem apoios, apenas com a nudez de si mesma. A tentativa de ser sincera consigo
mesma é mais um passo para que a mulher pudesse entrar no caminho do amor a dois. Ao
revelar esse arquétipo anímico que existe por detrás da persona, a mulher avançava rumo
ao homem, ao animus, de uma forma mais plena; agora ela o percebe de outra maneira,
através da alma: “[...] inesperadamente a visão dele, bem longe ainda, provocou-lhe uma
feliz e terrível grandeza humana, grandeza dele e dela. Parou um instante estupefacta.
Parecia assustada por estar avançando dentro de si talvez depressa demais e com os riscos –
em que direção?” (LISPECTOR, 1998, p.87).
107
O encontro com o mar foi um grande passo para que a protagonista entrasse em um
íntimo contato consigo mesma. O mar é uma metáfora da aprendizagem, representa a
vastidão do ser, e a abertura para um mergulho profundo nesta vastidão. Lóri mergulhou no
mar, mas a mulher e o mar estão em um estado de contigüidade profunda, o mar é Lóri:
Lóri mergulha em si mesma.
A vastidão e os mistérios do mar se identificam com a feminilidade, a mulher
encontra a si mesma no mar, porém, o mar também guarda símbolos masculinos: a força, a
espuma, a maresia. “Lóri quereria dizer a Ulisses como o cheiro de maresia lhe lembrava
também o cheiro de um homem sadio [...]” (LISPECTOR, 1998, p.99). “Era a maresia,
palavra feminina, mas para Lóri o cheiro maresia era masculino.” (LIPECTOR, 1998,
p.110). O encontro de Lóri com o mar representa um prelúdio do ato sexual. A mulher
enfeitiçada, com todos os sentidos alarmados, se entrega ao mar, se entrega ao prazer do
encontro do homem com a mulher. “O mar a fecunda, num ritual antiqüíssimo e ela veicula
até nós as imagens de Iemanjá, da Uiara, de Afrodite (ou “Vênus”): a mulher e o mar.”
(SÁ, 2004, p.p.189-190).
Depois desses passos de auto-aprendizagem “Segue-se um longo e tenebroso
inverno [...]” (LISPECTOR, 1998, p.100). Surge esse tempo frio e chuvoso, de um “[...]
inverno mais frio que os outros [...]” (LISPECTOR, 1998, p.100). As personagens
encontram-se resguardadas, solitárias, em um tempo de assimilação e espera. Depois de
passos grandes, Lóri e Ulisses se preservam, mas de quê? Se preservam do peso de uma
entrega precipitada, se preservam da pesada vontade de morte antes do tempo. Nesse
momento, as personagens encontram-se poucas vezes, Lóri ainda digere os pesos das
aprendizagens e caminha em direção a uma leveza de ser. “Lóri precisa ficar só para
fortalecer sua identidade antes de unir-se com Ulisses, caso contrário corre o risco de diluir-
se nessa união.” (SILVA, 2007, p.189). Agora, quem age mesmo é o tempo: as personagens
alcançam uma brandura de deixar o tempo comandar seus destinos. Lóri “[...] queria que as
coisas ‘acontecessem’ e não que ela as provocasse.” (LISPECTOR, 1998, p.104).
Esse período de inverno e de resguardo não representa uma castração, mas uma
contenção de energias e apaziguamento do espírito para que homem e mulher pudessem se
iniciar em um amor mais intenso. O resguardo abre espaço para que uma imensidão leve
108
emerja. O ser se expande no estado de resguardo, de movimento estático. A imensidão
surge no deixar-se ser.
A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser
que a vida refreia, que a prudência retém, mas que retorna na solidão.
Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo
imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é
uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo.
(BACHELARD, 1989, p.190).
Esse novo estado de serenidade e leveza é o resultado da trégua que a protagonista
se permite depois de muita guerra consigo mesma, depois de muito tentar entender; ela
percebe que precisa aprender agora a crer no que não entende e a não indagar tanto isso,
apenas deixar fluir e osmotizar as energias boas do mundo. Percebe que modos extremos de
viver dificultam a aprendizagem: se ela fosse apenas um ser que não se questionava,
perderia aprendizagens na vida, seria apenas mais um cordeiro de Deus, que apenas aceita o
que existe; mas se ela continuasse indagando a ponto de se forçar a responder a mais
insólita pergunta (quem eu sou?) se tornaria um grande farto ininteligível para si mesma e
permaneceria onde está. A aprendizagem é se permitir um equilíbrio: de ser X tentar
entender. Agora ela está se permitindo ser, depois de muito se entender. É a tensão entre
esses dois diferentes estados de alma que produz energia e movimento rumo a novas
aprendizagens. “A alegria verdadeira não tinha explicação possível, não tinha sequer a
possibilidade de ser compreendida – e se parecia com o início de uma perdição
irrecuperável.” (LISPECTOR, 1998, p.119). E o que aconteceria em sua vida depois disso
seria resultado da atração que sua alma leve exercia.
[...] a ficção fenomenológica de Clarice Lispector é uma meditação
(sempre poética) em torno do ato cognitivo do ser humano, um ato
sempre recíproco em que o sujeito (a consciência humana) e o objeto (as
outras “coisas” no mundo) se relatam dinamicamente. (FITZ, 1989, p.
34).
109
Às vezes, a leveza era tão grande que Lóri a sentia insustentável. O estado de
leveza, até então, não lhe era familiar, ela nunca antes aprendera a viver sem ser pela dor,
pelo peso. Lidar com a leveza exigia, assim, que ela aprendesse a ter paciência. E muitas
vezes ela, em sobressalto, sentia-se viva e alerta, mas sabendo que ainda não era o tempo
certo, pacientemente agüentava. “Então com ternura aceitou estar no mistério de ser viva.
[...] Pouco a pouco foi adormecendo de doçura, e a noite era bem dentro. [...] Por enquanto,
ela estava delicadamente viva, dormindo”.(LISPECTOR, 1998, p.113).
E um ano se passa, é primavera novamente, tempo de renascimentos e de clareza:
“Ah como a dor era mais suportável e compreensível que aquela promessa de frígida e
líquida alegria da primavera. E com tal pudor a esperava: a pungência do bom.”. Agora
“[...] desejava a vida mais cheia de um fruto enorme.” (LISPECTOR, 1998, p.115). Estava,
enfim, preparada para a alegria.
Lóri se encontra em um estado de serenidade e paciência tântrica, cultivava
cuidadosamente uma alegria branda que se estendia pelos dias, vivia em um período de
vigília em que “Dia e noite não deixava apagar-se a vela [da felicidade, do desejo] – para
prolongá-la na melhor das esperas.” (LISPECTOR, 1998, p.116).
Como se tivesse permanecido em um estado de meditação profunda, alcançara uma
clareza profunda, uma calma absoluta. “Estava sentindo agora uma clareza tão grande que a
anulava como pessoa atual e comum: era uma lucidez vazia, assim como um cálculo
matemático perfeito do qual não se precisasse. Estava vendo claramente o vazio.”
(LISPECTOR, 1998, p.118).
Este estado em que a mulher se permitia apenas fluir, deixando o ser ser em
liberdade, pode ser comparado com o estado do Zen budista. O estudioso Igor Rossoni, em
seu livro Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector, faz um estudo comparativo
entre a forma de escrita clariceana e a experiência Zen budista. As experiências das
personagens clariceanas, muitas vezes, deparam-se com a dificuldade e, às vezes, até a
impossibilidade de serem traduzidas fielmente através de palavras. Com a experiência Zen
ocorre o mesmo: o Zen é uma forma de conhecimento que é impossível de ser definido,
apenas pode ser vivenciado. Clarice quer justamente expressar as vivências e não definir
inteligivelmente os estados de alma. Por isso o Zen e a escrita clariceana se deparam com o
silêncio.
110
Loreley em seu estado de serenidade profunda se depara com a experiência Zen,
pois sua apreensão de mundo se torna direta, sem intermédios, e ela aprende a não indagar
tanto sobre o que nela surge. Rossoni cita Siddharta: “Caso desejeis alcançar as alegrias do
Nirvana, deveis afastar as estéreis discussões teóricas...” (apud ROSSONI, 2002, p.28).
De certa forma, uma das aprendizagens de Lóri foi aceitar o Zen, o conhecimento
direto, intuitivo, inquestionável. Ela teve que aprender a aceitar a não questionar tanto o
que não tem respostas lógicas. “[...] a consciência Zen é a máxima expressão da ‘não-
conciência’”. (ROSSONI, 2002, p.29). Tentar entender o mundo não faz com que o rumo
dos acontecimentos mude. “[...] compreender é viver em si a experiência.” (ROSSONI,
2002, p.30). Verbalizar logicamente as experiências é escravizar e modificar o verdadeiro
valor e rumo das coisas. Ter total consciência do mundo não faz com que o curso das coisas
mude.
Esse tipo de experiência é poética, porque o poeta é o ser que foge do método lógico
de definição da realidade. O poeta não diz “isto é triste, mas faz com que o objeto seja
triste, sem a necessidade de acentuá-lo” (PAZ, apud ROSSONI, 2002, p.30). O poeta
expressa e não define. Clarice Lispector expressa e não define. Lóri é expressão.
Atrelada à alegria e à leveza de sentir o mundo, surge a beleza. Lóri mantém os
sentidos calmamente alarmados, e consegue captar a beleza presente na simplicidade, a
magia na banalidade, o insólito no familiar.
De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre
extraordinário. E que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela
queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas
coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária para
que nela se sentisse o extraordinário. (LISPECTOR, 1998, p.119).
Esse modo de apreensão do mundo faz nascer poesia em cada novo olhar. Lóri vai à
feira e tudo ganha nuances poéticas: as frutas, os legumes são descritos com uma beleza
extraordinária. É “como se ela fosse um pintor que acabasse de ter saído de uma fase
abstracionista, agora, sem ser figurativista, entrara num realismo novo.” (LISPECTOR,
1998, p.123). “Aqui reside o cerne da visão de mundo mágica, completamente saturada por
111
essa atmosfera do agir, e que não é senão uma tradução e transposição do mundo das
paixões e pulsões subjetivas para uma existência sensível-objetiva.” (CASSIRER, 2004,
p.268-269).
Via tudo até encher-se de plenitude de visão e do manuseio das frutas da
terra. Cada fruta era insólita, apesar de familiar e sua. A maioria tinha um
exterior que era para ser visto e reconhecido. O que encantava Lóri. Às
vezes comparava-se às frutas, e desprezando sua aparência externa, ela se
comia internamente, cheia de sumo vivo que era. (LISPECTOR, 1998,
p.124).
A beleza surge na contemplação. No ato de contemplação o mundo se
metamorfoseia de forma mágica e abre espaço para a imensidão interna emergir.
Contemplar é expressar a interioridade através do mundo, é apenas ver e sentir, isento de
qualquer intenção ou julgamentos. Lóri aprende a contemplar, aprende a desaguar sua
interioridade e a encontrar-se nas coisas do mundo; aprende a ver as coisas sendo, seguindo
seus fluxos naturais e é nessa naturalidade que surge a magia.
[...] a atitude contemplativa é um valor humano tão grande que confere
imensidão a uma impressão que um psicólogo teria toda a razão em
declarar efêmera e particular. Mas os poemas são realidades humanas;
não basta referir-se a “impressões” para explicá-las. É preciso vivê-las
em sua imensidão poética. (BACHELARD, 1989, p.214).
Segundo Novalis há duas vias para atingir o conhecimento:
Uma difícil e sem fim, com inúmeros desvios, que é a via da experiência;
a outra, um salto único, ou quase, que é a via da contemplação interior.
Quem caminha pela primeira via está reduzido a deduzir uma coisa das
outras, numa contabilidade que não tem fim; mas pela outra, ao contrário,
vê imediatamente e conhece logo, por intuição, a natureza de todas as
coisas e de cada circunstância que pode desde então examinar na viva
diversidade de seus encadeamentos, comparando uma com todas as
112
outras tão facilmente quanto se pode fazê-lo com as figuras de um
quadro. (apud TODOROV, 1978, p.100).
Lóri estava caminhando pela segunda via. A contemplação a torna plena para o
amor, agora ela está preparada para experimentar a maçã. “Era uma maçã vermelha, de
casca lisa e resistente. Pegou a maçã com as duas mãos: era fresca e pesada. [...] Depois de
examiná-la, de revirá-la, de ver como nunca vira a sua redondez e sua cor escarlate – então
devagar, deu-lhe uma mordida.” (LISPECTOR, 1998, p.131). “E, oh Deus, como se fosse a
maçã proibida do paraíso, mas que ela agora já conhecesse o bem, e não só o mal como
antes. Ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso. [...] Era o começo – de
um estado de graça.” (LISPECTOR, 1998, p.131).
Esse estado de graça era leve, lúcido e pleno, era um estado incompreensível, sem
obstáculos lógicos, deixava o ser apenas existir, é como um estado de meditação profunda:
No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra
pessoa. Tudo, aliás, ganhava uma espécie de nimbo que não era
imaginário: vinha do esplendor da irradiação quase matemática das
coisas e das pessoas. Passava-se a sentir que tudo o que existe – pessoa e
coisa – respirava e exalava uma espécie de finíssimo resplendor de
energia. Esta energia é a maior verdade do mundo e é impalpável.
(LISPECTOR, 1998, p.132).
O que se aprendia com esse estado de graça era justamente a amar mais e a esperar
mais. “Passava-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas
vezes intoleráveis.” (LISPECTOR, 1998, p.134).
E chega o fim da espera. A mulher depois dessa odisséia está pronta para receber
Ulisses. Só depois que a mulher aprendeu a andar com as próprias pernas, só depois que
aprendeu a ser sozinha, sem o “apoio” de outro ser é que ela pôde amar de verdade. “-Amor
será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode
dar de si, disse Ulisses.” (LISPECTOR, 1998, p.155).
Agora a mulher é um ser íntegro: de corpo e alma. Lóri percebera que sua
capacidade para amar é grande, pois a medida da capacidade de sofrer é a mesma da
113
capacidade de amar. E Lóri sabia que sua capacidade de sofrer é enorme e também sabia
que a dor e a felicidade são estados contingentes, muito próximos, um vive no limiar do
outro. Esse limite entre dor e alegria já é simbolizado nas duas epígrafes do começo do
livro. A primeira é um poema de Augusto dos Anjos:
Provo............................................................
Que a mais alta expressão
da dor................
Consiste essencialmente
na alegria.............
A segunda epígrafe é uma citação do Oratório dramático de Paul Claudel para
música de Honneger, é uma citação da voz de Joana D’Arc que diz:
Je ne veux pas mourir! J’ai peur!
...................................................................
Il y a la joie qui est la plus forte!
[Eu não quero morrer! Tenho medo! Existe a alegria que é mais forte!]
[tradução nossa].
Chegara a vez do amor e da alegria para Lóri, chegara a hora de ela experimentar
onde culminaria “a mais alta expressão da dor”. Ela “[...] estava plena e não precisava de
ninguém, bastava-lhe saber que Ulisses a amava e que ela o amava. Fora o fato de estar
coberta de um amor novo pelas coisas e pelas pessoas.” (LISPECTOR, 1998, p.137).
Lóri acorda de sobressalto em uma madrugada quente, em que “não se via a lua. O
ar estava abafado, o cheiro de jasmim vinha forte do jasmineiro da vizinha.” (LISPECTOR,
1998, p.139). Todo o universo particular do apartamento de Lóri está inundado por uma
atmosfera sensual meio sufocante.
Havia uma ameaça de chuva, o cheiro de jasmim torna-se cada vez mais sufocante e
ela se sente muito viva. Quando a chuva, enfim, desaba, Lóri permite-se o contato intenso
114
com ela. “A chuva e Lóri estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva.”
(LISPECTOR, 1998, p.142):
Soube que estava procurando na chuva uma alegria tão grande que se
tornasse aguda, e que a pusesse em contato com uma agudez que se
parecia com a agudez da dor. Mas fora inútil a procura. Estava à porta do
terraço e só acontecia isto: ela via a chuva e a chuva caía de acordo com
ela. Ela e a chuva estavam ocupadas em fluir com violência.
(LISPECTOR, 1998, p.141).
Essa vontade de se deixar fluir é violenta e ao mesmo tempo mansa, o cavalo
interno fora domado: “E apesar de apenas viva era de uma alegria mansa, de cavalo que
come na mão da gente. Lóri estava mansamente feliz.” (LISPECTOR, 1998, p.142). Lóri
submete-se ao desejo e controla suas perturbações eróticas: o cavalo fora domado.. E “o
que se manifesta no desejo é a primeira e mais primitiva consciência da capacidade de
configuração do ser.” (CASSIRER, 2004, p.269).
Pronta para o amor, Loreley caminha para o encontro da comunhão plena com o
homem. A mulher transborda e exala sensualidade, assim como o jasmim, e esse
transbordar atinge o ambiente à sua volta e atinge o homem. Ela não pode mais conter a si
mesma, precisa se dar e ao se dar abre-se para receber. “Nunca um ser humano tinha
estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de Lóri era o de enfim abrir as mãos e
deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que estava antes encarniçadamente prendendo-
a.” (LISPECTOR, 1998, p.144).
E acontece o ato sexual entre Ulisses e Loreley, o ato simboliza o encontro amoroso
pleno dos corpos e das almas, do feminino com o masculino, da poesia com a prosa, da
lógica com a emoção, do caos com o cosmo. As personagens, finalmente, encontram-se no
limiar do caminho da aprendizagem e se abrem para o grande prazer: o de estarem prontas
para o amor e para a morte (cume da vida). As personagens perdem suas diferenças, se
despersonalizam. Ulisses perde seu tom de superioridade e Lóri perde sua insegurança
infantil, ambos se encontram na igualdade e se tornam partes de uma mesma totalidade. A
voz de Ulisses agora “[...] era outra, perdera o tom de professor, sua voz agora era a de um
115
homem apenas. [...] Lóri pôde enfim falar com ele de igual para igual.” (LISPECTOR,
1998, p.151).
O pólo de Clarice é sempre e só aquela fronteira indefinível da alma
(anima feminina versus animus masculino, como querem os teósofos e
os ocultistas), em que vida e morte, Deus e eu, tudo e nada, mas também
angústia e prazer, alma e corpo, espírito e carne, tocam-se, fundem-se e
são uno, indivisível ainda que inexprimível. (PICCHIO, 1989, p.17, grifo
do autor).
O sexo, no livro, é salvador e milagroso; o milagre surge do contato carnal, do
êxtase de dois corpos plenos em comunhão. O sexo ocupa a esfera do sagrado, é um ritual
mítico, representa um acontecimento primordial, arquetípico; é o encontro exemplar da
mulher com o homem, é um modelo. O sentimento que surge é cosmológico, é um
sentimento de que a realidade é uma unidade viva e articulada. Lóri diz, sentindo a intensa
comunhão amorosa: “[...] eu sou tua e tu és meu, e nós é um.” (LISPECTOR, 1998, p.150).
Agora o fruto proibido é dela e é libertador. “Meu amor, disse ela sorrindo, você me
seduziu diabolicamente. Sem tristeza nem arrependimento, eu sinto como se tivesse enfim
mordido a polpa do fruto que eu pensava ser proibido.” (LISPECTOR, 1998, p.151).
Em Uma aprendizagem, é a mulher, Loreley, que é seduzida pelo homem.
Apresenta-se ai mais uma inversão. Loreley é o nome da sereia de uma lenda alemã, como
explica Ulisses na narrativa: “Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore
alemão, cantado num belíssimo poema de Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os
pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar [...]”
(LISPECTOR, 1998, p.97). Junito Brandão
(2005, III, p.310-311) fala sobre as sereias:
Meio mulheres e meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e
peixe da cintura para baixo, [...] as sereias simbolizam a sedução mortal
[...], traduzem as emboscadas, provenientes dos desejos e das paixões.
Como se originam de elementos indeterminados do ar (pássaros) ou do
mar (peixes), configuram criações do inconsciente, dos sonhos
116
alucinantes e aterradores em que se projetam as pulsões obscuras e
primitivas do ser humano.
Já o nome “Ulisses” faz referencia explícita ao canto XII da Odisséia de Homero.
Na Odisséia Ulisses resiste ao canto sedutor das sereias, ninfas aquáticas que atraem o
homem para dentro do mar, levando-o à morte.
No Livro dos prazeres, a inversão ocorre em dois níveis. Primeiro: quem é o ser que
atrai é o homem e não a sereia; a sereia é que é atraída. Segundo, o ato de sedução é
libertador, não traz perdição ao homem, mas traz alegria e plenitude.
Porém, Lóri conserva as características de sereia, descritas por Brandão, de ser que
projeta pulsões obscuras e primitivas. Loreley aprendeu a se deixar ser sereia. A sereia é
metade mulher e metade animal, ou seja, metade ser cultural e metade ser instintivo. Lóri
aprendeu a deixar seus dois lados conviverem harmoniosamente, sem que tivesse que
reprimir drasticamente um deles.
Junito Brandão (2005) diz que as sereias são formas personalizadas das forças
afrodisíacas; resistir a elas equivale a resistir à Afrodite, a deusa do amor instintivo. Lóri
resistia a seu lado animal, não sabia apreciar suas melhores frutas, resistia, assim, ao amor
afrodisíaco. Mas Ulisses seduziu Lóri integralmente, ele quis a sereia por inteiro, como um
ser uno e íntegro; ele quis a mulher instinto juntamente com a mulher culta, consciente,
quis o amor ideal que é o encontro do Eros (filho de Afrodite, representa o amor instinto e
primitivo) com a Psique (representa o conhecimento, a consciência, o desenvolvimento
psíquico).
O amor pleno:
Só se torna possível quando os amantes conquistam a luz da consciência
sofrida de si mesmos como indivíduos únicos, separados um do outro. O
mito de Eros e Psique nos narra, portanto, uma estória de humanização
através do desenvolvimento da consciência: de como Eros, o amor só
instinto, só corpo, transformou-se até ser humanizado, através da união
consciente com a Psique, a alma humana. (SILVA, 2007, p.186).
117
A comunhão amorosa só é plena quando osnh8 2006ime11E12udos adquire Tm(m)Tj12 0 458.98536ime11aTmnsciòncia do os004.0005 2196.0245 Tw 12 0 0 12 8689.36ime1de suas situa(u7osa5e2lenato seresozinhos, unit(u1rios no mua q. OsTm(o a)Tj12 0 439.776689.36ime1 Tm(m)Tj12 0 449236689.36ime1natedevem se do os011.0005 1426.0245 Tw 12 0 0 12 8668.69986ime1mnhecer1aTsi (A com)Tj12 0 065.28038668.69986ime1ehã)Tj12 0 0 0.62278668.69986ime1s(A com)Tj12 0 084.54638668.69986ime1odeTmrpoTm(m)Tj12 0 043.36038668.69986ime1 e al Tm(m)Tj12 0 0 1208298668.69986ime1m(o a)Tj12 0 281.42538668.69986ime1 para do os005.0005 14 0.0245 Tw 12 0 311.5668.69986ime1q(o a)Tj12 0 317.46668.69986ime1u(o a)Tj12 0 323.46668.69986ime1e a2(o a)Tj12 0 354.88238668.69986ime1trega a Tm(m)Tj12 0 398 21718668.69986ime1oTm(ocrie u Tm(m)Tj12 0 466.988668.69986ime1m iategra(u7os43oTm(m)Tj12 0 527858668.69986ime1 do os008.0005 252980245 Tw 12 0 0 12 8647.76ime1mosa s(A com)Tj12 0 034698647.76ime1ica. 23Nas trevas dm iamnsciòncia,do os002.0005 254880245 Tw 12 0 284.04.647.76ime1 ondeTE1seTmnfua ehã)Tj12 0 406.37398647.76ime1 Tm(m)Tj12 0 415.61638647.76ime1 m( u , o ehã)Tj12 0 495 27568647.76ime1nhã)Tj12 0 496 27558647.76ime1montro do os005.0005 07 0.0245 Tw 12 0 0 12 8627276ime1autònticosó imposros55vel. Esteorosa sseTtor1 pposros55velplena quas trevas sos43o ilu Tm(m)Tj12 0 4 1279668627276ime1iTm(m)Tj12 0 4 7.15918627276ime1nadas pi  luz do os006.0005 1830.0245 Tw 12 0 0 12 8606.5996.0me1daTmnsciòncia sofridaTde si (A com)Tj12 0 240.50368606.5996.0me1eA com)Tj12 0 245.84598606.5996.0me1sA comA comA com
Você enfim aprendeu a existir. E isso provoca o desencadeamento de
muitas outras liberdades, o que é um risco para a tua sociedade. Até a
liberdade de se ser bom assusta os outros. (LISPECTOR, 1998, p.154-5).
O livro termina, porém a trajetória existencial não. Houve o encontro, houve a
plenitude, a realização do amor humano e do amor místico, o percurso de uma
aprendizagem; houve a concretização de um ciclo. E tudo isso renova energias para que
novos ciclos recomecem. Ulisses diz: “Em primeiro lugar devemos seguir a Natureza, não
esquecendo os momentos baixos, pois que a Natureza é cíclica, é ritmo, é como um coração
pulsando.” (LISPECTOR, 1998, p.151).
A narrativa se fecha com uma fala de Ulisses inacabada, ele diz: “eu penso o
seguinte:” (LISPECTOR, 1998, p.155). Os dois pontos simbolizam a narrativa sem
desfecho, a abertura para interpretações, ou para continuações. Lóri e Ulisses não são o
exemplo de casal que depois de se encontrarem no amor viveram felizes para sempre. A
narrativa, através de sinais de pontuação, parece deixar simbolizado que a obra não tem
início nem fim. Ela é um recorte de vidas amplas, conta a história de um ciclo de
aprendizagem, de um intervalo da existência de duas pessoas. E ao final do livro os dois
pontos talvez representem o início de um novo ciclo.
Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído do
ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito,
tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de permanências, tudo é
refrão de esforços sem fim. (BACHELARD, 1989, p.217).
3.2.
A aprendizagem pela arte
Esse mergulho analítico na história de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
nos propiciou captar muitos traços poéticos na obra de Clarice Lispector. A autora
desenvolve um ato de escrita que busca o autoconhecimento, sua atividade é de coadunar
linguagem e meditação sobre o ser, atividade de quem mexe com lados opostos e consegue
119
encontrar a congregação plena das coisas no mundo. A autora percebe que tudo está
interligado, em estado de simbiose, tudo faz parte de tudo: o silêncio faz parte da
linguagem, o nada faz parte do ser, Deus faz parte do humano, a mulher faz parte do
homem, a lógica faz parte do mistério, etc. Como diz Chuang-Tsé
(apud PAZ, 1996, p.41):
Não há nada que não seja isto; não há nada que não seja aquilo. Isto vive
em função daquilo. Tal é a doutrina da interdependência de isto e aquilo.
A vida é vida diante da morte. E vice-versa. A afirmação o é diante da
negação. E vice-versa. Portanto, se alguém se apóia nisto, teria que negar
aquilo. Mas isto possui sua afirmação e sua negação e também engendra
seu isto e seu aquilo.
E Franco Junior (2006, p.3) completa:
A ambição do projeto de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é:
afirmar a distinção entre tais pólos e, simultaneamente, negá-la, como
que a demonstrar que eles, antinômicos a uma visada racional,
manifestam-se ao mesmo tempo no jogo erótico-amoroso de Lóri e
Ulisses, anulando, na própria vivência do tempo da paixão, o que os
distingue. Tal projeto não teme a contradição, incorpora-a. Nesse sentido,
distancia-se do que há de ordinário na vida e na linguagem já que estas,
inscritas sob o primado da razão e do chamado bom senso, pautam-se
pela exigência da eliminação ou da minimização da contradição no texto
e no comportamento do indivíduo.
Por esses motivos é que o modo de expressão de Clarice “[...] rompe com a
linearidade que congrega o raciocínio dualístico e relativo, buscando abri-lo para a
verdadeira e absoluta comunhão com a própria vida, integral e plena.” (ROSSONI, 2002,
p.22).
O ato de fazer literatura para Clarice é também um ato de conhecer-se a si mesma,
por isso a autora está tão emocionalmente presente em suas narrativas ficcionais. E ela faz
questão de deixar sua presença na ficção bem clara através de algumas características
recorrentes em sua obra, como por exemplo: as protagonistas de seus livros são na grande
120
maioria das vezes mulheres que apresentam, muitas vezes, características físicas e
psicológicas da própria Clarice; as personagens moram ou atravessam cidades em que a
própria escritora viveu e/ou atravessou; as personagens passam por situações de vida pelas
quais a própria autora passou, etc. Porém, essas semelhanças não representam um
biografismo, na verdade o discurso não visa retratar a autora, sua vida prática e social, mas
o discurso “parece buscar, sim, o ser preexistente nela e, mais do que isso, em todos os
indivíduos. [...] A literatura de Clarice, embora não se dissociando dela, sugere ultrapassar
os limites táteis e psicológicos dela própria [...]” (ROSSONI, 2002, p.38).
Através de algumas instâncias narrativas, a autora, portanto, implicitamente, marca
presença na obra. Ao conciliar narrador e personagem, fazendo-os, por vezes, confundirem-
se, a autora, na verdade, está marcando também a própria presença dela no texto. Não é
apenas narrador e personagens que se confundem, Clarice também se coaduna
ontologicamente a essas instâncias.
[...] Clarice instala uma terceira instância de representação do feminino
em Uma aprendizagem, que pretende debruçar-se sobre as outras duas,
articular-se para discuti-las, não sem ironia, em seus impasses e
limitações. Essa instância corresponde à presença da autora implícita na
tessitura do texto [...] (FRANCO, 2006, p.2).
Além disso, o modo de criação literária desenvolvida pela autora também se
denuncia no texto através da atividade de metaficção.
Em Uma aprendizagem, nos deparamos com algumas falas das personagens,
principalmente da personagem masculina, que denunciam o método de escritura de Clarice.
Ulisses fala de seu método de apreensão do mundo e da construção de seus textos, e o que
observamos é que o método dele é igual ao de Clarice e igual ao que se desenvolve em toda
a estruturação lingüística de Uma aprendizagem. Ulisses diz: “Faço poesia não porque seja
poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem. Em geral sai
incongruente, e é raro que tenha um tema: é mais uma pesquisa de modo de pensar.”
(LISPECTOR, 1998, p.92). E diz ainda:
121
- Se um dia eu voltar a escrever ensaios, vou querer o que é o máximo. E
o máximo deverá ser dito com a matemática perfeita da música,
transposta para o profundo arrebatamento de um pensamento-sentimento.
[...] Meus poemas são não-poéticos mas meus ensaios são longos poemas
em prosa, onde exercito ao máximo a minha capacidade de pensar e
intuir. Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou
falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio
que é frio. (LISPECTOR, 1998, p.92).
Através dessas observações, podemos constatar que o encontro vida/arte nas obras
de Clarice é intenso e muito presente. É através do tecido literário e por intermédio das
ações das personagens, que a autora realiza buscas ontológicas e apreende coisas sobre o
ser que há nela. Clarice cria pela necessidade de transbordar um excesso de substância
ontológica. O subjetivismo de Clarice Lispector é ontológico e não biográfico. Dizer o “eu”
é dizer o ser, é dizer os lados comumente ininteligíveis, dizer o que há de mistério, de vida
e de enigma dentro do ser humano, e não dentro de uma mulher posicionada em uma
determinada época no mundo. Esse é um dos motivos, aliás, que fazem a obra literária
clariceana ultrapassar tempos e espaços. Tangenciando a massa comum do ser, a obra
continua e continuará repercutindo efeito em leitores de diferentes períodos de vida. Clarice
diz: “Ressoam os tambores anunciando o sem-começo e o sem-fim. Abrem-se as cortinas.
Eu sinto que a realidade é tridimensional. Por quê? Não consigo explicar. O que sinto é no
sem-tempo e no sem-espaço. O tempo no futuro já passou.” (BORELLI, 1981, p.15-7).
Clarice Lispector revela que esse fazer literário poético ontológico surge de um
árduo trabalho e de uma difícil tarefa de contato íntimo consigo mesma. A autora diz: “Eu
me uso como forma de conhecimento.”(BORELLI, 1981, p.15-7). Na literatura, a autora
relata os sinuosos caminhos interiores que percorreu em contato com seu lado
subjetivo/ontológico. A literatura clariceana é a expressão dos fluxos de pensamento que
buscam ampliar a compreensão das coisas e apreendê-las em totalidade, contactar o
Absoluto, ou, segundo Uma aprendizagem, o Deus, o Silêncio. “Assim, o texto pode ser
concebido como uma ação que se põe a caminho da essência das coisas existentes em seus
movimentos interiores.” (ROSSONI, 2002, p.40).
122
E é interessante notar que, muitas vezes, é através do contato com o cotidiano do
mundo, com o que há de banal, que Clarice faz surgir o sublime em suas obras. “Poucos
escritores podem fazer isso, sem cair na pieguice. Clarice pousa na felicidade um olhar de
ceticismo, não porque despreze o itinerário para ser feliz. Pelo contrário, o refaz. [...] Para
ir, ela foi em texto de prazer, no prazer do texto, em ficção.” (SÁ, 2004, p.197).
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres denuncia, desde o título, que é uma obra
que segue o percurso de uma aprendizagem, aprendizagem que nada mais é que um
percurso ontológico, de apuração do corpo e do espírito. A obra é um caminhar não linear,
antes em ondas, em eternos retornos, de um ser em essência que se encontra e se
desencontra, se desencontra e se preserva. “É um livro de ‘aprendizagem’ porque de fato
contém os passos de uma pedagogia amorosa, a sucessão dos movimentos de uma dança
prenhe de erotismo, e concomitantemente postulada por um lato sentido ético: nele o
espiritual é realidade carnal”. (MOUTINHO, 1977, p.86).
Simone Curi
(2001, p.30) acredita que o percurso de aprendizagem que as
personagens clariceanas desempenham passa por três graus de conhecimento: o afetivo, o
racional e o perceptivo/divino. A pesquisadora explica:
[...] no primeiro grau, a razão subjetiva que diz respeito aos afetos, o que
quer dizer, conhecimento de si através dos encontros realizados com
outros corpos, entendendo-se para estender-se ao outro. Ganha-se, com a
experiência, uma compreensão – de si e do outro, do mundo, das coisas e
suas relações. [...] O segundo grau de conhecimento é o da razão
objetiva, porque além do movimento, o que anima o ser é o seu poder de
eleição: tudo aquilo que potencialize seu agir. Logo, pautado pelas idéias
adequadas, o ser do pensamento lógico pode, através da atividade de
percepção, discriminação e distinção, estender-se no conhecimento do
perfeito, do divino princípio de todas as coisas. Processo que retorna ao
humano, mas no melhor dele, para eternamente voltar.
“Ao fim destas provas, sabemos menos mas estamos mais leves; podemos
empreender a viagem e nos defrontarmos com a mirada vertiginosa e vazia da verdade”.
(PAZ, 1996, p.42). A aprendizagem é a busca, e o caminho da busca nunca chega a um
123
ponto final. O movimento é “[...] a eterna vontade de geração, de fecundidade, de retorno; o
sentimento da unidade entre a necessidade do criar e do aniquilar”. (NIETSZCHE, 1978, p.
393). Loreley é um ser aprendendo a ser, ela passa por diferentes fases, através do contato
íntimo consigo mesma e com o amor que brotou nela depois do contato com o homem. Lóri
aprende a equilibrar ser e entender; aprende a aceitar o ininteligível e conviver com isso de
uma forma mais leve e serena; aprende a ter paciência mesmo para o sofrimento; aprende a
encontrar beleza na vida comum. Essas aprendizagens são duras de se alcançar, surgem do
embate contínuo do ser consigo mesmo, da vontade de ocultar com a necessidade de se
revelar. Por isso surgem como ondas, em que as passadas largas se “amparam” em
titubeações e cansaços de tanto contato íntimo. A aprendizagem não é apenas seguir em
frente, superando etapas desse caminho insólito, mas também é deixar, algumas vezes, a
canseira dominar o ser, se entregar a um tempo de recolhimento existencial. A aventura
ontológica de Lóri é o caminhar e não o encontrar, é o eterno ir e o eterno retornar. “O
mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece,
mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, - conserva-se em ambos... Vive
de si próprio: seus excrementos são seu alimento”. (NIETSZCHE, 1978, p. 396). Esse
caminhar ontológico:
Não vive no reino da sucessão, que é precisamente o dos contrários
relativos, mas está em cada momento. É o próprio termo engendrando-se,
fluindo-se, abrindo-se a um acabar que é um contínuo começar. Jorro,
fonte. Aí, no próprio seio do existir – ou melhor, do existindo-se – pedras
e plumas, o leve e o pesado, nascer-se e morrer-se, ser-se, são uma e
mesma coisa. (PAZ, 1996, p.42).
A aprendizagem ontológica é, de certa forma, como a vontade de potência
nietzschiana: o caminhar sem luz no fim do túnel, sem encontrar os alvos, caminhar que
empreende encontros e desencontros, colisões e dispersões. É um eterno circular, não há
nada além e nada aquém. E esse eterno circular se manifesta no discurso através das
repetições, das semelhanças semânticas e da sobreposição dos sentimentos de tempo. O
texto se torna um sistema em que seus componentes estão correlacionados, os fios estão em
permanente cruzamento.
124
Segundo a psicanálise freudiana, há dois impulsos que movem o homem: o impulso
de vida (Eros) e o impulso de destruição (Tanatos). “A meta do primeiro é estabelecer
unidades cada vez maiores e conservá-las; logo, é união. A meta do outro, ao invés, é
dissolver relações e assim destruir as coisas. Por isso, também é chamado de instinto de
morte”. (apud JUNG, 1998, p. 21). É a tensão que surge da diferença desses impulsos
extremos que gera energia para ativar o ciclo da vida. A morte gera o renascimento, a vida
leva à morte. Lóri e Ulisses se encontram em dois pontos do círculo: saem da morte, se
separam, renascem e se reencontram prontos para novas mortes e novos renascimentos.
O resultado de fazer uma literatura dessa forma revela-se na linguagem diferenciada
das obras de Clarice. A autora utiliza uma linguagem propícia para contactar o corpo
residual, o que há de comum no indivíduo; linguagem que relaciona forma e conteúdo,
essência e existência. Clarice empreende o encontro de extratextualidades com
textualidades, de vivencias e pensamentos com fixações diegéticas dos conteúdos
narrativos. Utiliza o encontro dessas instâncias como força propulsora para desencadear a
revelação interior. A literatura clariceana, assim, torna-se experimentativa e nova, pois o
jogo de mesclar conteúdos ficcionais com conteúdos “reais” (que dizem respeito aos reais
questionamentos do ser) desloca algumas concepções acerca da teoria da literatura. A
autora utiliza artifícios literários para expressar a essência, utiliza “suportes” literários para
dizer a “realidade”. Assim, tudo na literatura clariceana está inundado de essência: as
personagens, o narrador, o tempo, o espaço, o discurso, a história.
Outro fator de comunhão na obra clariceana é, desta forma, a simbiose entre
aspectos intratextuais e extratextuais. O encontro realidade/ficção é um dos
experimentalismos da autora e representa uma transgressão nos moldes literários, é a
tentativa de expressar o microcosmo interno através do espaço do macrocosmo literário.
Clarice transgride enquadramentos tanto nas estruturações formais quanto nos conteúdos
das ficções.
Toda essa movimentação de forças acaba por sugerir a ruptura de um
esquema canônico – dúplice e estático – que posiciona em extremos
opostos realidade vivencial e ficção, para revolucioná-lo numa relação
isenta de quantificação opositiva, superadora de limites dualísticos,
caracterizada então apenas por sua dinamicidade. Parece pertinente dizer
125
que o rompimento com essas marcas separadoras é que confere à obra de
Clarice Lispector um caráter essencialmente dinâmico. [...] O encontro
intencionalmente provocado por Clarice faz que realidade vivencial e
ficcional se superem e, sem perderem suas características individuais, se
consagrem em signo de outra natureza, inteiramente novo e revelador.
(ROSSONI, 2002, p.41-2).
Esse encontro vida/ficção é o resultado da intenção de se chegar à própria natureza
das coisas. A obra clariceana é o limiar, o ponto de intersecção de vida e ficção. Clarice cria
esse ponto de interseção, e os limites dessa intersecção são delicados: vida e texto se
qualificam como quase destituídos das respectivas funções. Mas criam uma outra realidade
que ultrapassa limites, que comunga o um no todo. Essa atividade de trabalhar com a
intersecção vida/obra é mais uma tentativa de encontrar a intersecção fundamental: a dos
seres. Clarice Lispector quer encontrar o que é comum em todos os seres. Essa intenção da
autora se manifesta em uma passagem de A paixão segundo G.H. em que o narrador diz:
A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo. A maior
exteriorização a que se chega. Quem se atinge pela despersonalização
reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação
ao outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens.
(LISPECTOR, 1998, p.112).
A busca da despersonalização é um processo de desprendimento que procura
superar a dualidade ser/não-ser para encontrar os estratos essenciais do humano. O
procedimento de individuação e resguardo solitário/subjetivo culmina em
despersonalização. “Ao buscar o ser que nela habita – ao mesmo tempo – abre vazamento
para conhecer o ser presente em todos os indivíduos”.(ROSSONI, 2002, p.54).
A cada momento de nossa vida interior corresponde assim um momento
de nosso corpo e de toda a matéria circundante, que lhe seria
“simultânea”: essa matéria parece então participar de nossa duração
consciente. Gradualmente, estendemos essa duração ao conjunto do
mundo material, porque não vemos nenhum motivo para limitá-la à
126
vizinhança imediata de nosso corpo: o universo nos parece formar um
único todo [...]. Nasce, desse modo, a idéia de uma Duração do universo,
isto é, de uma consciência impessoal que seria o traço-de-união entre
todas as consciências individuais, assim como entre essas consciências e
o resto da natureza. (BERGSON, 2006, p.52-53).
O tipo de literatura que surge transgride ainda mais um limite: o do papel do
receptor. Essa literatura instiga o leitor a também participar sensivelmente da trajetória
existencial, isto é, também propicia ao leitor acesso ao encontro interior profundo. E o final
do livro, aberto e ambíguo, “força” um posicionamento do leitor que passa a ter um papel
ativo na narrativa.
Essa ambigüidade é o ponto mais forte e, talvez, o mais frágil do que
ousa esse romance. Clarice não dissolve o conflito estabelecido entre os
planos do que foi tematizado e encenado pelo texto, antes entrega ao
leitor o problema de encontrar a sua própria saída – se é que há saída.
(FRANCO, 2006, p.12).
A obra de Clarice é expansiva, quer que a experiência ontológica expanda-se em
diversos níveis e seres, “[...] objetiva demonstrar a si própria e comunicar ao outro a
possibilidade de se lançarem o tanto quanto possível à experiência do grande salto.”
(ROSSONI, 2002, p.49-50)
Nessa nossa atividade de tentar captar os traços poéticos presentes em Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, nos deparamos com essas transgressões de limites
que a obra clariceana empreende em diversos níveis. O universo que surge em Uma
aprendizagem é mítico: rode6 1o.3icar ao outro a 6t Tm1 m
Uma das nossas principais intenções neste trabalho, foi justamente constatar a
transgressão dos limites do gênero romance e a abertura para o livre acesso da linguagem
poética que cria o organismo cósmico-mitológico na narrativa. Todos os símbolos,
percursos existenciais, imagens e instâncias narrativas analisados são exemplos de quebra
de barreiras da obra. A diferença qualitativa com que são tratadas as instâncias literárias
cria uma despersonalização do gênero romance. A obra:
[...] busca distanciar-se dos clichês e do kitsch que manipula por meio
dos recursos literários característicos dos gêneros discursivos que
mobiliza para construir o romance. Essa posição é também solitária,
angustiada pela tentativa de criar uma outra via, de buscar uma saída. É a
via da artista que pesquisa um modo de escapar às armadilhas tanto da
tradição como daquilo que, contestando tal herança, propõe-se como
inovação. (FRANCO, 2006, p.p.11-12).
Segundo Teresinha V. Z. da Silva (2007, p.183):
[...] a desproporção entre o ‘sublime’ da referência mitológica e o
‘prosaico’ da situação romanesca é intencional, ainda que tudo seja feito
a sério, sem o tom de paródia ou ironia que explicitariam a intenção.
Clarice Lispector estaria atualizando então situações míticas para um
contexto moderno ou pós-moderno, a fim de escrever uma ‘odisséia às
avessas’.
Poderíamos dizer que o texto clariceano busca não ter formas, porque a única tarefa
é justamente dizer o sem forma “[...] dizer algo que vinha do tênue, obscuro e liso [...]”
(ARÊAS, 2005, p.23-24). E isso é perigoso, mas o perigo nunca foi evitado, Clarice quer
tocar o perigo porque quer dar passos além. E, às vezes, a transgressão verbal, a
transgressão dos limites literários é uma maneira de “[...] forçar a língua e radicalizar a
expressão, submetendo-a a um curto-circuito provocado principalmente pelo choque radical
entre os níveis de estilo, o ‘sublime’ e o ‘humilde’ questão auerbachiana sempre
tematizada.” (ARÊAS, 2005, p.24).
128
Não é apenas a ligação do sublime com o humilde que cria um curto-circuito no
texto, também a confluência entre o conhecimento afetivo com o intelectual que só podem
ser definidos a partir da transgressão de limites que busca explorar novas imagens, novas
associações, diferentes das comuns, cria um curto-circuito nos moldes da literatura.
Talvez se possa dizer, principalmente em relação aos romances de
Clarice, o mesmo que observara o filósofo Merleau-Ponty na pintura de
Cézanne: “Cézanne (-Clarice-) não acha que deve escolher entre a
sensação e o pensamento, assim como entre o caos e a ordem. Não quer
separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua maneira fugaz
de aparecer, quer pintar a matéria ao tomar forma, a ordem nascendo por
uma organização instantânea”. (SANTOS, 1987, p.75).
129
Conclusão
Concluímos que a obra de arte literária de Clarice Lispector é tão ampla e
inesgotável justamente porque estrutura-se através da linguagem poética e abre fissuras
para que o ser, a entidade comum a todos os homens, emerja.
Dessa forma, pudemos constatar, através desse mergulho profundo em Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, que a poesia e a ontologia são materiais essenciais
da obra clariceana.
130
Referências:
ARÊAS, V. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
________ A moralidade da forma. Suplemento Literário Minas Gerais. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, n. 1091, dez. 1987. p.12-14
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Ediouro: Rio de Janeiro, 1998.
AUERBACH, E. MIMESIS. São Paulo: Perspectiva, 1971.
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins fontes, 1989.
___________. O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1991.
BARROS, D. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994.
BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
____________ Escrever, verbo intransitivo? In: O rumor da língua. Lisboa: Coleção
Signos, 1984. p.20-40.
BAUDELAIRE, C. Poesia e Prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BEAINI, T.C. Máscaras do tempo. São Paulo: Vozes, 1994.
BENNINGTON, G.; DERRIDA, J. A metáfora. In: Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1991. p.89-98.
BERGSON, H. A natureza do tempo. In: Duração e Simultaneidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. P.135-170.
131
BORELLI, O. Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989.
_________ O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 2004-2005, vols.I-II-III.
BRASIL, A. A nova literatura – I. O romance. São Paulo: Americana, 1973.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
CAMPOS, H. Prefácio. In: SÁ, O. A Escritura de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2000. p.10-16.
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CASSIRER, E. O problema de uma “filosofia da mitologia”. In: A Filosofia das Formas
Simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.11-57.
____________. O mito como forma de vida – descoberta e determinação da realidade
subjetiva na consciência mítica. In: A Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo:
Martins Fontes, 2004. p. 265- 388.
CASTELLO, J. A literatura na poltrona. Rio de Janeiro: Record, 2007.
CASTRO. E. M. de Melo. O Próprio poético. São Paulo: Quíron, 1973.
CHEVALIER, J.; CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da Costa e
Silva, Raul de Sá Barbosa, Ângela Melim, Lúcia Melim. Rio de Janeiro: José Olympio,
1982.
132
COHEN, J. Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Cultrix, 1966.
CORTAZAR, J. Valise de cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CURI, S. A Escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.
DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
___________ O imaginário. Tradução René Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1999.
ECO, H. definição da arte. Rio de janeiro: Elfos, 1972.
_________Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1997.
ELIADE, M. Aspectos do mito. Rio de Janeiro: Edições 70, 1986.
__________. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FITZ, E. E O lugar de Clarice Lispector na história da literatura ocidental: Uma avaliação
comparativa. Remate de Males. Campinas, n. 9, 1989.p.31-37
FRANCO, A. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, romance
moderno e romance de mocinha. Signótica . v.18, n.1, 2006. p.1-16.
FREEDMAN, R. The lyrical novel. Princeton: University Press, 1972.
FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna: (da metade do século XIX a meados do
século XX). São Paulo: Livraria duas cidades, 1978.
FRYE, N. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1978.
GOTLIB, N. B. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
133
____________Uma aprendizagem dos sentidos. In: Três vezes Clarice. Rio de Janeiro:
CIEC/ Escola de Comunicação da UFRJ, 1989. p.12-24.
GULLAR, F.; PEREGRINO, J. Aventura da palavra. MUSEU DA LÍNGUA
PORTUGUESA. Clarice Lispector: A Hora da Estrela. São Paulo, 2007. 01 folder.
HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1996.
IANNACE, R. Guia para a aventura clariceana. Entre livros, São Paulo, ano 2, n. 21, jan.
2007. p.38-43.
JAKOBSON, R. Lingüística e Poesia In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix,
1968.
____________ O que é poesia? In: TOLEDO (Org). Estruturalismo e semiologia. São
Paulo: Globo, 1978.
JOBIM, José Luis (org). Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo da
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
JUNG. C.G. Psicologia do inconsciente. Tradução de Maria Luiza Appy. Petrópolis:
Vozes, 1998.
KADOTA, N. P. A Escritura Inquieta: linguagem, criação, intertextualidade. São Paulo,
Estação Liberdade, 1999.
___________ A tessitura dissimulada (o social em Clarice Lispector). São Paulo: Estação
Liberdade, 1997.
LAROUSSE. Larousse cultural: grande dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Nova
Cultural. 1998.
LEFEBVE, M. J. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra: Livraria
Almedia, 1980.
134
LISPECTOR, C. Correspondência. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
___________ Forma e Conteúdo. In:_____. A descoberta do mundo. [Reunião de Paulo
Gurgel Valente]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.390.
____________A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998,
____________ Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
____________ Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
MELLO, A. C. de. Reflexões sobre Clarice. Entre livros, São Paulo, ano 2, n. 21, p.38-43,
jan. 2007.
MELO, J.C.. Introdução geral. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994.
MOISÉS, C. F. Clarice Lispector: Ficção em crise. Remate de males, Campinas, n. 9,
1989. p.153-169.
MONTEIRO, A. C. A palavra essencial (estudos sobre a Poesia). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965.
MOISÉS. M. Guia prático de análise literária. São Paulo: Cultrix, 2002.
MONTERO, T. Correspondências – Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
MOUTINHO, José G. N. O Livros dos Prazeres. In: A fonte e a forma. Rio de Janeiro,
Imago, 1977, p.86-89.
NIETZSCHE, F. O eterno retorno. In: Os pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho. 2. ed. São Paulo: Abril cultural, 1978.
NUNES, B. A filosofia contemporânea. São Paulo: EDUSP, 1967.
135
__________ A narração desarvorada. In: Caderno de literatura brasileira – Clarice
Lispector. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, nº 17-18, 2004, p.292-301.
___________ Introdução à filosofia da arte. São Paulo: coleção buriti, 1966.
____________ O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1995.
____________Tempo In: JOBIM, J. L.(Org) Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992. p.345-361.
PAZ. O. O arco e a lira. 2.ed. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995.
_________ Ambigüidade do romance. In: Signos em rotação. Tradução Sebastião Uchoa
Leite, 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p.63-74.
_________ Verso e prosa. In: Signos em rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.
p.11-50.
PESSOA, F. Fernando Pessoa – obras em prosa. Rio de Janeiro: Companhia José
Aguilar, 1974.
PERRONE-MOISÉS, L. Apresentação. In: Crítica e verdade. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1999. p.9- 10.
PICCHIO, L. S. Epifania de Clarice. Remate de males, Campinas, n. 9, 1989. p.17-20.
POE, E. A. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987.
PONTIERI, R.L. Leitores e leituras de Clarice Lispector. São Paulo: Hedra, 2004.
__________Clarice Lispector – uma poética do olhar. 1 ed. São Paulo: Ateliê, 2001.
136
RODRIGUES, C. Uma mulher simples. Entre livros, São Paulo, ano 2, n. 21, jan. 2007.
p.28-29
ROSENBAUM, Y. Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:
EDUSP, 1999.
ROSENFIELD, K. H. Inconsciente. In: JOBIM, J. L. (Org). Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992. p.201-220.
ROSSONI, Igor. Zen e a Poética auto-reflexiva de Clarice Lispector (Uma literatura de
vida e como vida). São Paulo: Unesp, 2002.
SÁ, O. A escritura de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.
________ A Pauta da Felicidade. In: Clarice Lispector – A travessia do oposto. 3. ed. São
Paulo: Anhablume, 2004.
________ Uma metafísica da matéria ou uma poética do corpo. Caderno de literatura
brasileira. Rio de Janeiro, n.17-18, dez. 2004. Edição especial. P.280-291.
SANT’ANNA. A. R. de. Análise estrutural de romances brasileiros. São Paulo: Ática,
1990.
SANTOS, R. C. dos. Lendo Clarice Lispector. São Paulo: Atual, 1987.
SARTRE, J. P. Que é literatura? São Paulo: Ática, 1993.
SILVA, T. V. Z. da. Clarice Lispector: Odisséia às Avessas. Revista Cerrados. Brasília,
n.24, ano 16, Universidade de Brasília, 2007. p. 183-190.
SOUZA, G. de M. O Vertiginoso Relance. In: Exercícios de leitura. São Paulo, Duas
Cidades, 1980. p.20-31.
STAIGER, E. Da fundamentação dos gêneros poéticos. In: Conceitos fundamentais da
poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997. p.131-150.
137
138
TELLES, Norma. Autor+a. In: JOBIM, J. L. (Org). Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
Imago, 1992. p.32-64.
TODOROV, T. Poética da prosa. Lisboa: Signos, 1971
___________ Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
___________Estruturalismo e Poética. São Paulo: Cultrix, 1968.
VALERY, P. Variedade. São Paulo: Iluminuras, 1991.
WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Abril, 1972.
ZILBERMAN, R. Clarice Lispector: a narração do indizível. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1998.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo