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Auto da Alma
de Gil Vicente
ARGUMENTO
Assim como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens,
pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assim foi cousa conveniente
que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso
das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta
estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as
insígnias da Paixão. E desta prefiguração trata a obra seguinte.
Figuras: Alma, Anjo Custódio, Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S.
Jerónimo, S. Tomás, Dous Diabos.
Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e
representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu
mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças.
Era do Senhor de 1518.
Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com
seus quatro doutores: S. Tomás, S. Jerónimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho.
E diz Agostinho:
Agostinho
Necessário foi, amigos,
que nesta triste carreira
desta vida,
pera os mui p'rigosos p'rigos
dos inimigos,
houvesse alguma maneira
de guarida.
Porque a humana transitória
natureza vai cansada
em várias calmas;
nesta carreira da glória
meritória,
foi necessário pousada
pera as almas.
Pousada com mantimentos,
mesa posta em clara luz,
sempre esperando
com dobrados mantimentos
dos tormentos
que o Filho de Deus, na Cruz,
comprou, penando.
Sua morte foi avença,
dando, por dar-nos paraíso,
a sua vida
apreçada, sem detença,