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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERAMGEM
CURSO DE MESTRADO EM ENFERMAGEM
AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO: qual a repercussão na vida dos
trabalhadores da enfermagem?
VERÔNICA SIMONE DUTRA VERAS
NATAL
2003
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VERÔNICA SIMONE DUTRA VERAS
AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO: qual a repercussão na vida dos
trabalhadores da enfermagem?
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
Orientadora: Soraya Maria de Medeiros
NATAL
2003
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AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO: qual a repercussão na vida dos trabalhadores
da enfermagem?
VERÔNICA SIMONE DUTRA VERAS
Dissertação submetida ao processo de avaliação pela Banca Examinadora para obtenção
do título de Mestre em Enfermagem e aprovada em sua forma final em 15 de dezembro de 2003,
atendendo às normas vigentes do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Dr.ª Soraya Maria de Medeiros
Orientadora
___________________________________________
Dr.ª Heloísa Maria Mendonça de Morais
Titular
____________________________________________
Dr.ª Berta Cruz Enders
Titular
___________________________________________
Dr. José Willington Germano
Suplente
DEDICATÓRIA
Ao meu pai que desde criança tornou-se um trabalhador em um país de desiguais,
e a minha mãe que me ensinou a importância da independência na vida da mulher.
Aos meus irmãos e a minha querida sobrinha Letícia.
Aos servidores públicos eleitos os vilões da história pelos governos neoliberais.
Aos lutadores que permanecem firmes diante da difícil luta de classes.
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Soraya Maria de Medeiros por ter me ensinado os fundamentos da pesquisa,
proporcionando-me a possibilidade de ligação entre a experiência vivida no movimento de classe
dos trabalhadores e o conhecimento teórico que permeia o mundo do trabalho; pelo incentivo à
produção científica; pela paciência e a dedicação que tanto me auxiliaram na construção deste
estudo.
À Profª Drª Berta Cruz Enders que mesmo não sendo minha orientadora não se furtou a
contribuir com o presente estudo, mostrando-se sempre disponível.
Ao Dr. José Willington Germano pela contribuição dada para definição do objeto de pesquisa
desse trabalho.
A todos os professores da Pós-graduação em Enfermagem que direta ou indiretamente
contribuíram com o meu conhecimento durante os dois últimos anos.
Às colegas do mestrado de Enfermagem pelos tantos debates em sala de aula que contribuíram
para troca de conhecimento.
Às bolsistas Laiane Medeiros Ribeiro e Olívia Luciana dos Santos Silva.
Aos trabalhadores da enfermagem, gestores e representantes de entidade de classe que
participaram da pesquisa pela disponibilidade e pelas valiosas informações prestadas.
À Secretaria de Saúde Pública do Rio G. do Norte.
Ao companheiro João Bezerra de Castro pela revisão de português.
Às colegas de trabalho e usuários do Centro de Saúde de Jardim Lola pelas vezes que tive que me
fazer ausente durante a finalização deste estudo.
Ao Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do RN por ser para mim um espaço político
privilegiado para conhecer a dura situação dos profissionais de saúde.
Às companheiras e companheiros do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do RN pela
solidariedade e compreensão nos momentos de ausência.
Eu quero uma licença de dormir.
Perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar a leve palha
de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida foi o
sono profundo das espécies, a graça
de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Adélia Prado
RESUMO
O trabalhador do serviço público vem perdendo seu poder aquisitivo mediante às políticas de
ajuste fiscal. As saídas encontradas no setor da saúde, sobretudo na enfermagem, vêm sendo o
ingresso em outros empregos. O multiemprego e a adesão à escala-extra de plantão, fomentada
pelo Estado, têm se materializado como um aumento na jornada de trabalho. Este trabalho tem
por objetivo identificar as possíveis repercussões do aumento da jornada de trabalho no cotidiano
dos trabalhadores da enfermagem do serviço público. A metodologia empregada foi a pesquisa
qualitativa do tipo exploratória. As informações foram coletadas através de entrevista com
perguntas abertas semi-estruturadas. A análise foi realizada através das categorias gerais,
trabalho e cotidiano. Na análise, constatou-se que predominou entre os entrevistados a utilização
de aumento de jornada de trabalho entre 80 a 120 horas mensais na forma de multiemprego;
escala-extra de plantão; multiemprego e escala-extra simultaneamente e substituição em escalas
de terceiros, denominada de sublocação. O cansaço e o estresse são fatores de redução do ritmo
de trabalho. A redução do tempo livre produz nos trabalhadores angústia devido à diminuição da
convivência familiar assim como de tempo para dedicação ao aperfeiçoamento técnico-científico
e para o cultivo de outros aspectos da subjetividade, tais como lazer, auto-cuidado e cultura.
Outro aspecto constatado foi a retirada de direitos, tais como férias e licença médica para os
trabalhadores que atuam em escala-extra. Os baixos salários e o não reajuste são as causas
apontadas para adoção por parte dos trabalhadores pelo aumento da jornada de trabalho, tendo
sido o governo responsabilizado por esta situação. Concluiu-se que o aumento da jornada de
trabalho tem fortes repercussões no cotidiano profissional e pessoal dos trabalhadores
pesquisados.
Palavras-chaves: trabalho; jornada de trabalho, cotidianidade
ABSTRACT
The worker of the public service is loosing your acquisitive power by means of the politics
of fiscal settlement. The ways out that were found in the health sector, especially in nursing,
is being the increasing workday for beyond 40 or 20 hours established in the link of the
work with the state. This survey has the object to identify the possible repercussion of the
increasing workday in daily life workers from nursing in the public service of Rio Grande
do Norte. The theory reference used was the work of Marx (1982) and Antunes (2000,2001)
and the daily living in Heller (1991,1992). The methodology used was a qualitative survey in
the exploration kind. The informations were gathered through interviews with open
questions almost structured with workers of nursing, managers and representatives of
entity. The analysis of informations were made through general categories, work, and daily
life, using elements from dialetics-hermeneutics according to Minayo (1992,2002). In the
analysis, it was identified that the ways that were found for the overcoming of the loss of
acquisitive power were the many-employment; the extra scale of shift; the subletting of
work posts and the substitution of friends in scales of work, and all of them being changed
in increase. Other aspect realized was the move of rights, like vacation and medical license
for the workers that act in extra scale. The tiredness, stress, and bad humor are influents
factors in the development of work.. The reduction of free time makes in the workers
ahguish because of the familiarity decreasement just as time to dedicate themselves to the
technical-scientific improvement and for the cultivation of other aspects of subjectivity, as
leisure, care and culture. The low salary and the non reajustment are the reasons for the
adoption of part workers for the increasing workday, and government has been responsible
for this situation. The conclusion was that the increasing workday has strong repercussions
in the professional and personal daily life workers that made part of the survey.
Key Words: work; workday; daily living
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................11
2 OBJETIVOS..........................................................................................................................17
3.0 GERAL....................................................................................................................................17
4.0 ESPECÍFICOS............................................................................................................. ..........17
5 O REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................................18
3.1 OTRABALHO E O SENTIDO PARA A VIDA....................................................................18
3.2 O MUNDO DO TRABALHO ATUAL..................................................................................21
3.3 A SAÚDE NO CONTEXTO DO MUNDO DO TRABALHO ATUAL...............................27
3.4 O TRABALHO E A VIDA COTIDIANA.............................................................................36
4 PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................... .........42
5 APROXIMANDO-SE DA REALIDADE DOS TRABALHADORES DA
ENFERMAGEM ...................................................................................................................53
1.0 CARACTERIZANDO A ESFERA DE TRABALHO .......................................................53
1.0.0 Estrutura física e serviços ofertados.............................................................................53
2.0.0 Condições de trabalho, financiamento e estrutura administrativa............................55
3.0.0 Política salarial e trabalhista ........................................................................................59
2.0 O TRABALHO E A REALIDADE VIVIDA.....................................................................63
1.0.0 Buscando saídas..............................................................................................................64
2.0.0 Vivenciando o ser trabalhador em saúde.....................................................................74
5.3 VIVENDO O COTIDANO...................................................................................................82
1.0.0 Cotidiano vivido/cotidiano roubado..............................................................................82
2.0.0 Vida pessoal sem tempo livre?!......................................................................................91
3.0.0 Ter e ser: dilemas da vida cotidiana..............................................................................97
4.0.0 Refazendo o caminho....................................................................................................100
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................106
REFERÊNCIAS BIBFLIOGRÁFICAS.................................................................................110
ANEXOS
1 INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho vem passando por grandes transformações que emergem da crise
do capitalismo dos anos 70. As estratégias de superação da crise pelo capital se assentam por um
lado no redesenho do processo produtivo em que se altera a relação capital/trabalho por meio da
chamada reestruturação produtiva que redefine a posição do trabalhador frente ao processo
produtivo. A outra estratégia é a adoção das políticas neoliberais pelos Estados que vem
permitindo a expansão do capital por meio da ampliação do mercado dos países centrais para os
periféricos.
A reestruturação produtiva que vem trazendo grandes mudanças na relação capital-
trabalho em todo o mundo tem como pilares o avanço tecnológico através da robótica e da
informática; o trabalho polivalente; a terceirização; a flexibilização do emprego e dos direitos
trabalhistas, entre outros (ANTUNES,2001). Estas mudanças no mundo do trabalho iniciam-se
no setor industrial e ganha espaço em todos os setores da economia. Pires (2001) aponta estas
transformações também no setor saúde onde é crescente a terceirização de serviços; os contratos
temporários, sobretudo na rede hospitalar, e os programas de saúde fomentados pelo governo
federal como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), o Programa de Saúde da
Família (PSF) e o Programa de Interiorização dos Trabalhadores da Saúde (PITS), nos quais
imperam os contratos precários sem vínculo empregatício e a flexibilização dos direitos
trabalhistas.
A derrota imposta mundialmente aos trabalhadores pela reestruturação produtiva pela
política neoliberal é sentida também pelos servidores públicos, apesar de alguns sinais pontuais
de recuperação como a existência de alguns movimentos paredistas em 2001, a exemplo das
greves nas universidades federais e, mais recentemente, a greve dos servidores públicos contra a
Reforma da Previdência proposta pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.
Essa desaceleração na organização sindical tem possibilitado o avanço dos ataques aos direitos
conquistados e o sindicalismo não tem se convertido numa saída para a maioria dos trabalhadores
que procuram a resolução dos seus problemas salariais.
Especificamente sobre o setor público de saúde, é relevante destacar as orientações e
diretrizes que nortearam a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 que deu as
diretrizes básicas para a formulação da Constituição Federal no capítulo da saúde. Em relação aos
trabalhadores da saúde, as recomendações eram o fortalecimento destes no trabalho através da
estabilidade no emprego, o incentivo ao horário integral, a existência de um plano de cargos e
carreira e a isonomia entre as três esferas de governo, entre outros. A Constituição Federal
absorveu parte destas diretrizes que estão explicitadas nos Princípios e Diretrizes para Norma
Operacional Básica (NOB, 2000) de Recursos humanos.
A despeito da Constituição Federal, o que vem se dando na prática é a ausência de uma
política de correção dos salários; a falta de incentivo e valorização dos trabalhadores através de
um plano de cargos e carreira; a retirada e a negação de conquistas empreendidas pelos governos,
colocando os servidores numa situação de pauperização crescente. Esta compressão salarial é um
aspecto integrante do conjunto de políticas reservadas aos servidores públicos, conseqüentes dos
ajustes fiscais impostos pelos organismos financeiros internacionais aos quais o Brasil tem
dependência econômica e política, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco
Mundial.
Um arcabouço de leis foi criado para dar respaldo jurídico à implementação das políticas
neoliberais, como a Lei de Responsabilidade Fiscal que limita os gastos no setor público,
inclusive com salários dos servidores, e a Emenda 19 ao texto da Constituição Federal que altera
a relação de trabalho dos servidores públicos, introduzindo a flexibilização dos direitos
trabalhistas. Estas leis que fazem parte da Reforma Administrativa do Estado têm princípios e
diretrizes completamente opostas aos incorporados na Constituição de 1988.
Os ajustes fiscais que fazem parte da pauta dos governos neoliberais que se sucederam a
partir dos anos 90 no Brasil vêm impondo uma desvalorização dos salários, sobretudo no serviço
público, por meio da desindexação destes frente à inflação. A argumentação de que os reajustes
salariais fazem crescer a inflação e a necessidade de contenção dos gastos e o “equilíbrio” das
contas públicas vem impondo uma série de restrições aos trabalhadores do serviço público.
Segundo informações do Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos e Sócio-Econômicos
(DIEESE, 2003), os servidores federais, em sua maioria, têm uma defasagem salarial, de acordo
com o Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getúlio Vargas, de cerca de 149,43%; os
servidores estaduais, especificamente da saúde, de 169,90%, variando entre algumas categorias
que tiveram em 2000 algum reajuste; e os servidores municipais de Natal que também tiveram
uma defasagem de 169,90% nos últimos oito anos, estando o valor real do salário, isto é, o poder
de compra efetivo dos salários, em setembro de 2003, de 37,05% em relação ao salário de janeiro
de 1995.
A conjuntura atual vem mostrando que as saídas buscadas pela grande maioria de
servidores públicos da saúde para enfrentar essa realidade vêm sendo o ingresso em outros
empregos, tanto no setor público como no privado. Para os que desenvolvem suas atividades
através de escalas de plantão, há uma facilitação na conciliação das escalas, podendo o servidor
acumular duas ou até três escalas de trabalho.
O aumento da jornada de trabalho através de multiemprego ou de horas extras vem
sendo a solução encontrada por alguns trabalhadores, mesmo que seja uma saída sacrificante e
que traz prejuízos para a vida pessoal e coletiva. Outra forma é a ampliação de horas de trabalho
e de remuneração através de escalas extras de serviço na mesma instituição. Médicos,
enfermeiros, dentistas, auxiliares e técnicos de enfermagem, entre outros, vêm cumprindo
jornadas de trabalho superiores a 40 horas semanais e, vêm acumulando 24, 36 e até 48 horas ou
mais seguidas de trabalho através do mesmo vínculo de trabalho. Esta situação torna permanente
a utilização de horas extras de caráter provisório, e que, segundo o Regime Jurídico Único (RJU)
do Estado do Rio G. do Norte, não deveria passar de duas horas.
Outras formas que se apresentam como mecanismos de superação do crescente
empobrecimento imposto aos servidores da saúde têm sido a sublocação (termo utilizados pelos
próprios servidores) em que o titular do posto de trabalho é lotado na instituição, porém não
exerce suas funções nela e delega a uma terceira pessoa para lhe substituir, repassando no final do
mês a remuneração de forma integral ou parcial. E a substituição de colegas de trabalho nas
escalas de plantão, constituindo um grupo de trabalhadores da instituição que estão sempre
disponíveis para substituírem colegas nas escalas de plantão por eventual falta. Nesta forma, a
maioria não tem controle sobre as horas trabalhadas, pois está sempre numa espécie de
sobreaviso.
Todas as formas adotadas para a complementação da renda pelos trabalhadores,
mediante a falta de perspectiva de valorização salarial, resultam no aumento da jornada de
trabalho. Ao ingressar no serviço público, na maioria dos casos, os servidores assumem uma
jornada de trabalho de 40 horas semanais ou 144 horas mensais, mas com o multiemprego e
escalas extras, a sublocação e a substituição, as horas efetivamente trabalhadas podem chegar a
80, 120 ou mais horas semanais.
Outro aspecto que se coaduna com o apelo ao multiemprego é o fortalecimento de
valores consumistas estimulados pelo capital como uma das formas de sua sustentação. A
produção de valores de troca, isto é, a produção de mercadorias, em detrimento da produção de
valores de uso que atendam às necessidades humanas, coloca os trabalhadores numa condição de
“[...] exaurir-se num consumismo coisificado e fetichizado, inteiramente desprovido de sentido”
(ANTUNES, 2001, p.178). Esta questão coloca os trabalhadores em uma corrida pela aquisição
de bens de consumo que, na maioria das vezes, são objetos de curta duração que alimentam uma
cadeia desenfreada de consumo e que sustentam o modo de produção capitalista.
A discussão a respeito do consumismo abre o debate sobre o limite entre utilização do
trabalho como meio de atendimento das necessidades humanas básicas e a aquisição de produtos
e bens de serviços para além destas necessidades, mostrando-se uma questão essencial para
evidenciar a aparência e a essência da questão do aumento da jornada de trabalho no seio da
classe trabalhadora, uma vez que ela mesma é utilizada pelo capitalismo para absorver as
mercadorias, criando comportamentos e valores.
Considerando o aumento da jornada de trabalho como um fenômeno relevante que pode
estar trazendo mudanças significativas no mundo do trabalho no setor saúde do Rio Grande do
Norte, o presente estudo tem como propósito identificar e analisar as repercussões do aumento da
jornada de trabalho no cotidiano da vida dos profissionais da enfermagem no serviço público,
decorrente do multiemprego e do cumprimento de múltiplas escalas de plantão. Para tanto
buscou-se responder os seguintes questionamentos: quais as repercussões do aumento da jornada
de trabalho no cotidiano da vida dos trabalhadores da enfermagem dentro e fora da esfera do
trabalho? Como se inseriu e vem se conformando o multiemprego e/ou escalas extras de plantão
no contexto do hospital? Quais as possíveis causas do aumento da jornada de trabalho por meio
do multiemprego e/ou escalas extras? Há interferência no processo de trabalho? O que os
trabalhadores da enfermagem pensam sobre essa questão? E os demais atores envolvidos neste
processo?
A opção pela enfermagem vem da sua expressão quantitativa no conjunto dos
trabalhadores em saúde, sendo maioria; pela existência majoritária de mulheres que coloca o
debate sobre o trabalho remunerado e o trabalho doméstico, bem como o papel de homens e
mulheres na família; pela divisão social do trabalho dentro da equipe de enfermagem que
evidencia elementos de aproximação e diferenciação na vida cotidiana de enfermeiros e
auxiliares e técnicos de enfermagem frente às condições em que o processo de trabalho se
desenvolve; em fim, pela natureza do trabalho da enfermagem que a expõe mais a riscos, uma
vez que na divisão social do trabalho na equipe de saúde, cabe a ela o acompanhamento em
tempo integral dos paciente, ficando em maior tempo de exposição ás condições de trabalho.
Os motivos que levaram a abordar esta temática é a própria condição da pesquisadora
como trabalhadora no serviço público; a sua convivência no Sindicato dos Trabalhadores em
Saúde do Rio Grande do Norte que possibilitou um maior contato com a situação de precarização
salarial e das condições de trabalho e de vida dos profissionais de saúde; a retração na
consciência de classe dos trabalhadores da saúde, uma vez que os trabalhadores estão optando por
saídas particulares em detrimento do enfrentamento coletivo da realidade em que vivem, tendo
como reflexo o enfraquecimento do movimento sindical; por fim, pela possibilidade de que em se
aproximando mais do cotidiano dos trabalhadores no contexto, poder-se-ia contribuir para a
reflexão destes trabalhadores como forma de refletir neles as imagens captadas por este estudo.
Esse trabalho é de relevância social por colaborar com a reflexão dos trabalhadores da
enfermagem sobre as repercussões que tem o aumento da jornada de trabalho no cotidiano de
suas vidas, bem como permitir desvendar os fatores estruturais e conjunturais historicamente
construídos que estão levando a esse processo. É também de relevância científica por existir
poucos registros no Rio Grande do Norte acerca do tema, lançando luzes sobre a assistência e o
cotidiano de vida e trabalho dos trabalhadores da enfermagem que fazem os serviços públicos de
saúde.
1 OBJETIVOS
2.0 GERAL
Analisar a repercussão do aumento da jornada de trabalho através do multiemprego e/ou
das escalas extras de trabalho no cotidiano dos trabalhadores da enfermagem em um hospital
público de Natal/RN.
3.0 ESPECÍFICOS
¾ Identificar possíveis fatores que vêm determinando a busca do multiemprego e de escalas
extras pela enfermagem em um hospital público de Natal/RN;
¾ Analisar as características e a conformação do multiemprego e/ou escalas extras, mediada
pela fala dos trabalhadores da enfermagem em um hospital público de Natal/RN;
¾ Analisar a repercussão do processo de trabalho permeado pelo multiemprego e/ou escalas
extras no cotidiano dos trabalhadores de enfermagem.
4 O REFERENCIAL TEÓRICO
3.1 O TRABALHO E O SENTIDO PARA A VIDA
O trabalho é por Marx (1982) definido como um processo em que estão envolvidos
homem e natureza. O homem coloca as forças naturais do seu corpo para apropriar-se dos
recursos da natureza e transformá-los em formas úteis para o atendimento das suas necessidades.
Por isto, a sua força de trabalho é chamada força produtiva. O processo de trabalho é composto
pelo próprio trabalho, pelo objeto e meios de trabalho.
O objeto de trabalho é a matéria extraída do seu meio natural sobre a qual se opera o
trabalho, como, por exemplo, a madeira extraída da floresta e os minerais retirados das minas. O
meio de trabalho “é uma coisa ou complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o
trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre o objeto” (MARX, 1982, p.203). Os meios de
trabalho se materializam através de instrumentos, das instalações físicas, da técnica, entre outros.
O processo de trabalho tem a finalidade de transformar para alcançar um determinado
fim e se acaba com a aquisição do produto. Para Marx (1992, p.205)
O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. Concretizou-se e a matéria está
trabalhada. O que se manifesta em movimento ao lado do trabalhador, se revela agora
qualidade fixa na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido.
Este produto tem a finalidade de atender a uma necessidade do homem, sendo por Marx (1982)
designada de valor-de-uso.
A forma como se dá a relação entre os meios de produção e as forças produtivas, isto é,
entre a propriedade dos meios de produção e o trabalho, é chamada de modo de produção. A
apropriação dos meios de produção vai definir a divisão social do trabalho entre quem trabalha e
os que detêm os meios de produção e se apropriam do produto final do trabalho, isto é, entre o
trabalhador e o capitalista.
No modo de produção capitalista o objeto de trabalho, os meios de produção e o produto
pertencem ao capitalista, restando ao trabalhador vender-lhe a sua força de trabalho. O produto,
agora chamado de mercadoria, não mais tem valor-de-uso para o seu produtor, tomando a forma
de valor-de-troca para o seu dono, o capitalista. Nesta sociedade há uma subordinação do
trabalho ao capital (MARX, 1982).
Na sociedade onde prevalecia o valor de uso para o atendimento das necessidades
humanas, o tempo empregado no processo de trabalho era o necessário para este fim. Com o
modo de produção capitalista, este tempo deixa de ser o necessário e passa haver um tempo
excedente que é apropriado pelo capitalista, gerando o que Marx (1982) chamou de mais-valia.
O trabalho produtor de valores-de-troca assume um caráter assalariado, baseado no
tempo de trabalho excedente; fetichizado e estranhado, isto é, avesso à descrição primitiva da
natureza do trabalho para o homem, sendo a antítese da atividade laborativa livre e autônoma
(ANTUNES, 2001).
A materialização das relações sociais fundadas na produção de valores-de-troca tem
reflexo na relação homem-trabalho e na vida cotidiana. Michael Lovy (apud ANTUNES, 2001,
p.180) coloca que “O capitalismo, regulado pelo valor-de-troca, pelo cálculo do lucro e pela
acumulação de capital, tende a dissolver e destruir todo valor qualitativo: valores de uso, valores
éticos, relações humanas, sentimento. O ter substitui o ser [...]”.
Dentro desse debate, a jornada de trabalho ocupa um papel central. Marx (1982) afirma
que a jornada de trabalho é uma grandeza variável e não constante, composta pelo tempo
necessário para reprodução da força de trabalho do trabalhador e pelo tempo do trabalho
excedente, sendo este último a parte variável. O autor afirma ainda que no modo de produção
capitalista, a jornada de trabalho nunca pode fixar um limite mínimo ao tempo necessário de
trabalho, já que o tempo excedente é o que gera a mais-valia. Mas que, ao contrário, a jornada de
trabalho tem limite máximo estabelecido a partir dos limites físicos como o desprendimento de
força física e a necessidade de descanso, e os limites morais determinados pelas necessidades
espirituais atribuídas por cada civilização.
Falando sobre a ganância dos burgueses capitalistas em aumentar os seus lucros a partir
do aumento da jornada de trabalho, Marx (1982, p.300-1) coloca que
[...] em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o
capital os limites extremos, físicos e morais da jornada de trabalho [...] Rouba o tempo
necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado
às refeições [...] O sono necessário para restaurar, renovar e refazer as forças físicas
reduz o capitalista a tantas horas de torpor estritamente necessárias para reanimar um
organismo absolutamente esgotado [...] Não é a conservação normal da força de trabalho
que determina o limite da jornada de trabalho, ao contrário, é o maior dispêndio possível
diário da força de trabalho, por mais prejudicial, violento e doloroso que seja, que
determina o limite do tempo de descanso do trabalhador.
Retomando o debate sobre uma sociedade livre da subordinação ao capital, Antunes
(2001) coloca como uma das principais reivindicações dos trabalhadores a redução da jornada de
trabalho. Para o autor, esta ação pode combinar o combate à opressão e à exploração do trabalho,
como também na esfera fora do trabalho, regido pelo consumo material e simbólico. A realização
do trabalho dentro de um tempo necessário para o atendimento das necessidades humanas e a
utilização do tempo livre sem a determinação material e subjetiva do mercado, com acesso à
cultura, ao lazer, ao esporte, ao convívio familiar, são os elementos essenciais para o resgate do
sentido do trabalho no cotidiano da vida.
Visualizando outra forma de organização social do homem, Antunes (2001) coloca a
premência da busca por uma sociedade onde o trabalho esteja a serviço da satisfação das
necessidades humanas, resgatando a sua essência; que o trabalho seja desenvolvido dentro de um
tempo necessário para produzir os valores-de-uso e não no trabalho excedente, produtor de
valores-de-troca e mais-valia; que o trabalho por isso seja autônomo e livre, em que o homem não
esteja alienado do processo produtivo e da apropriação do seu produto de trabalho. A
conseqüência de um trabalho livre e autônomo é refletida na “esfera livre e autônoma da vida
fora do trabalho”, sendo este tempo autodeterminado e livre dos ditames consumistas do mercado
(ANTUNES, 2001).
3.2 O MUNDO DO TRABALHO ATUAL
O mundo do trabalho atual está marcado por profundas transformações nas relações
capital-trabalho decorrentes da reestruturação do setor produtivo. A reestruturação produtiva
surge no início dos anos 70 como saída para a crise do sistema capitalista em decorrência do
declínio nas suas taxas de lucro; do esgotamento do modelo taylorista/fordista que levou a um
grande excedente de produção; do avanço do capital especulativo que tirava capital da esfera
produtiva; da concentração dos monopólios e oligopólios; e da crise do Estado de bem-estar-
social que levou a uma crise fiscal do Estado capitalista (ANTUNES, 2001).
Visando a saída para essa crise, deu-se um processo de reorganização do capital, tanto do
ponto de vista das forças produtivas, quanto político e ideologicamente. As principais estratégias
para a recomposição do capital foram: a privatização do Estado; a desregulamentação dos direitos
trabalhistas; a desestruturação das empresas estatais; e a reestruturação da produção e do trabalho
(ANTUNES, 2001).
A reestruturação produtiva teve início no Japão, na indústria da Toyota, sendo por isto
denominada de toyotismo. Alves (2000,p.52-3) define o toyotismo como
[...] sendo principalmente uma nova articulação de dispositivos organizacionais da
produção capitalista, com poderosa carga ideológica, cujo objetivo é a captura da
subjetividade do trabalho (o que o diferencia, em termos qualitativos, do fordismo e do
taylorismo) [...].
As transformações estruturais do sistema produtivo, que vêm alterando profundamente o
mundo do trabalho, passam a reger todos os setores da sociedade, conformando um novo
paradigma na relação capital-trabalho. Estas mudanças prevêem a desconcentração da produção;
a flexibilização de direitos trabalhistas; o avanço tecnológico, trazendo o desemprego estrutural;
o trabalho polivalente; a desconcentração da produção; a produção de mercadorias atrelada à
demanda do mercado; os Círculos de Qualidade (CCQs), entre outras (ANTUNES, 2001).
A flexibilização do processo produtivo se dá através da execução de várias tarefas por
um só operário, surgindo o trabalho polivalente. O operário deixa de executar uma só tarefa no
processo de trabalho, e passa a desempenhar várias, diminuindo o contigente de trabalhadores
necessário para a produção das mercadorias. Na fábrica da Toyota, no Japão, um operário chega a
operar cinco máquinas de uma só vez (ANTUNES, 2000).
Outra forma de flexibilização produtiva é o da organização do trabalho, em que há uma
mudança da produção através de grandes indústrias concentradas e verticalizadas, para a
produção descentralizada através de empresas terceirizadas, havendo uma pulverização dos
trabalhadores numa organização horizontal do trabalho (ANTUNES, 2000).
A flexibilização dos trabalhadores ocorre com a redução do contingente de operários
necessários ao processo produtivo, reduzindo, por conseguinte, os gastos com a força de trabalho.
Por outro lado, a produção é incrementada a partir de horas extras, trabalhadores temporários ou
subcontratados (ANTUNES, 2000).
Agudizada pelo incremento da robótica e da micro-eletrônica que substitui o trabalho vivo
por trabalho morto, a flexibilização do trabalho traz o desemprego estrutural, bem como a
subproletarização do trabalho expressada através do trabalho precário, parcial, temporário,
subcontratado, terceirização, entre outros. Toda esta massa de trabalhadores passa a ter uma
flexibilidade do emprego e do salário; a desregulamentação das condições de trabalho, de direitos
trabalhistas e sociais. (ANTUNES, 2000).
Dados do DIEESE (2001) sobre o perfil da classe trabalhadora no Brasil apontam para o
crescimento do desemprego no setor industrial. Em São Paulo, entre 1989 e 1999, houve a
destruição de 720 mil postos de trabalho, correspondendo a uma perda de 13,4% da participação
da indústria no total de ocupações geradas; na região metropolitana de Porto Alegre, entre 1993 e
1999, foram 5,2% e na de Belo Horizonte foi 1,7% entre 1996 e 1999, de decréscimo da
participação do setor industrial na geração de empregos.
O DIEESE (2001) aponta dados sobre o crescimento da flexibilização do emprego, tendo
a contratação direta pela empresa sem carteira assinada como a principal forma de precarização,
com crescimento em todas as regiões metropolitanas de importância industrial. A segunda forma
de flexibilização foi o assalariamento indireto através das terceirizações de serviços que também
crescem em todas as regiões. A terceira forma de precarização apontada pelo DIEESE é o
trabalho autônomo que vem crescendo ainda mais que o terceirizado
Apesar da reestruturação produtiva atingir homens e mulheres da classe trabalhadora, a
divisão sexual do trabalho é um elemento diferenciador no que tange às mudanças no mundo do
trabalho atual. Num estudo sobre flexibilidade, trabalho e gênero, Hirata (1999) afirma que “a
flexibilidade é sexuada”. A autora aponta dois tipos de flexibilidade: a interna e a externa. A
flexibilidade interna na qual prepondera a polivalência, a rotação e o trabalho em equipe, é
atribuída à força de trabalho masculina, situando-se no interior das empresas. Já o emprego
precário, o trabalho de tempo parcial, os horários flexíveis e a anualização do tempo de trabalho,
próprios da flexibilização externa, têm sido atribuídos à força de trabalho feminina.
Segundo dados publicados pela Fundação SEADE (2001) sobre a mulher no mercado de
trabalho, no Estado de São Paulo, do total de empregos celetistas gerados, apenas 34,5% estavam
ocupados por mulheres. Os mesmos dados indicam que para haver um equilíbrio entre a
proporção de mulheres ocupadas com carteira assinada com a de homens nesta mesma situação,
este número deveria ser 15,6% maior, o que mostra que para a mulher a flexibilização e
vulnerabilidade do emprego é maior do que para a força de trabalho masculina.
Segundo Hirata (1999), a flexibilização do tempo de trabalho feminino, por exemplo, só é
possível porque há legitimidade social em nome da conciliação entre a vida familiar e a vida
profissional, pressupondo-se que essa conciliação é de responsabilidade da mulher. Há também
outra legitimidade social para o uso da flexibilidade do emprego e dos salários para as mulheres:
a representação corriqueira do salário feminino como “complementar”, embora as modalidades
de atividade crescente das mulheres no mundo do trabalho profissional em todo o mundo se
afastem cada vez mais, na prática, dessa representação.
Fazendo uma reflexão sobre as conseqüências da reestruturação produtiva no mundo do
trabalho, Antunes (2000, p.151-2) afirma que
É visível a redução do operariado fabril, industrial, gerado pela grande indústria
comandada pelo binômio taylorismo-fordismo [...]. Porém, paralelamente a este
processo, verifica-se uma crescente subproletarização do trabalho, através da
incorporação do trabalho precário, temporário, parcial etc. [...] há um fortíssimo
processo de terceirização do trabalho, que tanto qualifica como desqualifica e com
certeza desemprega e torna muito menos estável a condição operária. Deslancha o
assalariamento dos setores médios, incorpora-se o trabalho das mulheres no processo
produtivo [...]. Como se constata, a processualidade é complexa e multiforme e tem
como resultado uma classe trabalhadora mais heterogeneizada, fragmentada e
complexificada.
Para Vakaloulis (2000, p.45), a reestruturação representa para a classe trabalhadora “[...] a
desaparição do pleno emprego, o fim do aumento dos salários reais e a diminuição, até mesmo a
supressão [...] de um número considerável de serviços ligados à cidadania do welfare”.
Estas mudanças atingem diretamente a subjetividade do trabalhador na sua consciência
de classe, afetando profundamente os seus organismos de representação. As organizações
sindicais que atuam em cooperação com o capital, atuam nos limites da ordem capitalista, sem
questionar os seus pilares de sustentação como o mercado, o lucro, a lógica da produtividade, a
propriedade privada, entre outros (ANTUNES, 2000). Este sindicalismo
Incapaz de apreender a amplitude e a dimensão da crise do capitalismo, postado numa
situação desfavorável que lhe obsta a possibilidade de visualizar e agir para além do
capital [...], em seus traços e tendências dominantes nos países avançados, conduzido
pelo ideário que tem conformado suas lideranças, a cada passo dado, recua a um patamar
anterior, assemelhando-se a um indivíduo que, embora pareça caminhar para frente,
desce uma escada de costas, sem visualizar o último degrau e menos o tamanho do
tombo (ANTUNES, 2000, p.151).
Essas transformações no mundo do trabalho ganham corpo aliada à política neoliberal
implementada pelos países de economia central e também periférica. O neoliberalismo surge
como uma retomada do liberalismo clássico que Toledo (2002, p.73) o caracteriza com as
seguintes características: o individualismo em que a sociedade é composta por um conjunto de
particulares que desenvolveriam ações racionais entre meios e fins; a liberdade do homem
assenta-se na possibilidade de ser proprietário, assim “A sociedade política só se justificaria para
proteger a propriedade e cuidar para que as relações mercantis transcorram de forma ordenada”;
e, por fim, a relação de progresso da sociedade com a prosperidade dos sujeitos proprietários.
Toledo (2002, p.80) identifica algumas características econômicas, políticas e
ideológicas que permeiam os Estados neoliberais. O mercado como regulador de toda a
economia, tendo reflexo em todas as esferas da sociedade, pois esta passa a ter uma espécie de
leis próprias que tomam uma dimensão objetiva e ideológica que rege toda a sociedade. O
individualismo metodológico em contraposição à solidariedade, influenciando não só os sujeitos
da sociedade, mas também orientando as políticas públicas onde o “Individualismo, liberdade e
menor incidência na previdência social podem ir de mãos dadas”.
Ainda sobre as características dos Estados neoliberais, Toledo (2002) afirma que a
desigualdade é vista como necessária para alavancar a liberdade e o empreendimento do
mercado. O conceito de liberdade atrelado a uma conduta individual é o pano de fundo utilizado
para justificar as políticas de desregulamentação estatal e a privatização.
Segundo Antunes (2001), o neoliberalismo iniciou-se na Inglaterra, tendo como
principal agenda: a privatização de estatais; a redução ou até extinção do capital produtivo do
Estado; a desregulamentação de leis trabalhistas e direitos sociais; e a aprovação de atos no
Parlamento Conservador que limitam a atuação das organizações sindicais.
O neoliberalismo e a reestruturação produtiva avançam nos países dependentes do capital
externo através dos ajustes impostos pelos organismos financeiros como o Fundo Monetário
Internacional – FMI – e o Banco Mundial. Segundo Braga (2000), uma das fases do reajuste dá-
se pela redução do emprego no setor público acompanhado por grandes cortes financeiros nos
programas de caráter social.
No Brasil, desde os anos 90, vem sendo implementado pelos governos neoliberais um
duro conjunto de ajustes estruturais na economia e do Estado que Braga (2000) chama de
armadilha do ajuste em que, por meio de negociação do endividamento do país, várias
desregulamentações no campo da economia e das políticas públicas vem sendo impostas pelos
órgãos financeiros como o FMI e o Banco Mundial e obedecidas pelo Estado brasileiro.
Segundo Braga (2000), a política neoliberal desenvolvida no Brasil tem como pilares a
redução do emprego no setor público e cortes nos programas sociais, com impacto direto nos
níveis salariais; desregulamentação dos preços dos alimentos e a liberalização das importações;
desatrelamento dos reajustes salariais do custo de vida; quebra de tarifas alfandegárias de
proteção aos produtos internos; privatização das empresas estatais; e perda de autonomia nacional
do sistema financeiro com a privatização dos bancos estatais.
Desta forma, essa política de desnacionalização e de neocolonização por meio da
apropriação da economia dos países periféricos pelos países centrais é combinada com as
mudanças no mundo do trabalho impostas pela reestruturação produtiva, que para Braga (2000,
p.68) “[...] se apresenta enquanto um movimento de contra-ofensiva social e ideológica, em
escala mundial, disposto a transformar todo o mundo à sua imagem e semelhança: a barbárie
social”.
1.0 A SAÚDE NO CONTEXTO DO MUNDO DO TRABALHO ATUAL
Antes de abordar o setor saúde no atual momento do mundo do trabalho, é importante
fazer uma rápida exposição sobre processo de trabalho em saúde, posto que neste estudo o mundo
do trabalho é analisado na perspectiva do materialismo histórico.
O processo de trabalho em saúde é analisado por Mendes Gonçalves (1992) a partir da
teoria de Marx sobre processo de trabalho produtivo. Ao descrever os componentes do processo
de trabalho em saúde, Mendes Gonçalves (1992, p.28) afirma que o objeto de trabalho sobre o
qual opera a transformação para se obter um resultado ou finalidade é o próprio homem,
considerado em sua objetividade a qual inclui naturalmente sua subjetividade, historicamente
construída. Esta é apreendida enquanto “relações mediadas por desejos, ódios, normatividade e
trabalho”.
Os meios de trabalho são os instrumentos e o conhecimento com as quais os agentes
desenvolvem sua prática direcionada a totalidade social. O produto do processo de trabalho em
saúde é a geração e a satisfação das necessidades humanas ou carecimentos sociais como destaca
Medeiros (2000) ao abordar Mendes Gonçalves.
Comparando o processo de trabalho em saúde com o do trabalho industrial, Mendes
Gonçalves (1992) afirma que, subtraindo a produção da mercadoria e de mais-valia, o processo
de trabalho em saúde não se diferencia daquele, sendo ambos, portanto, organizados dentro da
mesma lógica.
O setor saúde, apesar de não estar dentro do processo de produção de mais-valia, assume
um papel social que, segundo Mendes Gonçalves (1992, p.48), “O indivíduo é protegido da
doença para que melhor possa ser consumida sua força de trabalho pelo capital que o explora, o
que necessariamente exclui a saúde de suas possibilidades vivenciais”, estando, portanto,
totalmente incorporado ao modo de produção capitalista.
Trazendo o trabalho em saúde para o atual contexto histórico do mundo do trabalho, é
relevante olhá-lo incorporado ao setor de serviço. Este vem passando, a exemplo dos demais
setores econômicos, pelo processo de reestruturação produtiva. Para Antunes (2001), nas últimas
décadas houve um grande aumento do contingente de trabalhadores nesse setor oriundos da
indústria que vive um movimento descendente do emprego. O autor coloca que as mudanças
organizacionais e tecnológicas vêm impactando o setor de serviços, e cita os bancos e a
privatização do setor público como exemplo de redução do contingente de trabalhadores.
Quanto ao assalariamento dos trabalhadores do setor de serviços, Antunes (2001)
argumenta que este cada vez mais se aproxima da lógica e da racionalidade do mundo produtivo.
Os serviços de saúde sofrem, a exemplo dos demais setores, reflexos da reestruturação produtiva,
aliados à política neoliberal implementada pelos governos. Fazendo uma análise sobre as
mudanças vividas pelos trabalhadores da saúde no Brasil, Pires (2001) coloca como relevantes as
relações de trabalho no interior das políticas desenvolvidas pelo governo para a saúde a partir dos
anos 90; o emprego na saúde; a precarização do trabalho; o ascenso da terceirização; e a
organização do trabalho no setor saúde.
Segundo Pires (2001), o Estado brasileiro vem abrindo o caminho para a precarização do
trabalho através da desregulamentação dos direitos trabalhistas constitucionais e pela redução dos
investimentos na saúde e na educação. A autora destaca algumas ações com significativos
reflexos no setor público, como a desvalorização do salário, levando ao agravamento da exclusão
social; a redução da jornada de trabalho com a redução de salário; os planos de demissões
voluntárias;a redução do acesso ao seguro desemprego; a contratação de pessoal não qualificado
e com relação precária de trabalho.
A reforma administrativa aprovada pelo Senado em 1998 tem como eixo a orientação para
o mercado, colocando o Estado brasileiro à disposição dos ajustes do projeto neoliberal. Para
Almeida (apud PIERANTONI, 2001), os consensos construídos em torno da reforma
administrativa passam pela quebra de monopólios estatais; redução do quadro de funcionários
públicos; implantação da política de controle de qualidade total no aparato do Estado;
implantação de uma gerência eficiente para a competição de mercado; utilização da terceirização
e investimento em novas tecnologias em detrimento da reorganização do Estado .
Em relação ao emprego na saúde, Pires (2001) destaca que, ao contrário do que vem
ocorrendo no setor industrial, é notório o seu crescimento neste setor. Nos Estados Unidos, entre
1996 e 2006, a saúde é o setor com maior previsão de crescimento de postos de trabalho. No
Brasil, não é verificado recuo na geração de emprego. A autora destaca a contratação de 145 mil
agentes comunitários de saúde e 10 mil equipes de saúde da família nos anos 90. Outra
caracterização da oferta de emprego na saúde é por meio da municipalização dos serviços de
saúde após a implantação do SUS; e o crescimento do setor privado.
Mesmo verificado o incremento da microeletrônica e da informática, ao contrário de
muitos setores, não houve redução de postos de trabalho. Isto é explicado pela difícil substituição
do trabalho humano no cuidado das pessoas; pelo fato de que novos equipamentos demandam
novos setores e aumentam a força de trabalho; e pela crise social que aumenta a demanda dos
problemas de saúde (PIRES, 2001).
Apesar da expansão do emprego no setor saúde, grande parte dos postos de trabalho
criados trazem a marca da precarização do trabalho, com baixos salários e com vínculos
temporários. É o caso do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS); o Programa de
Saúde da Família (PSF); o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS); e do
crescimento das contratações nos hospitais públicos com caráter temporário, por plantão e sem
direitos trabalhistas efetivos. Todos estes trabalhadores têm grandes dificuldades em sua
organização sindical devido à insegurança do vínculo trabalhista, o que dificulta a conquista de
direitos de proteção social como a licença-maternidade, licença médica, aposentadoria, entre
outros (PIRES, 2001).
Em relação à organização do trabalho em saúde, Pires (2001) coloca a predominância
ainda do modelo taylorista/fordista, sobretudo na enfermagem, em que estão presentes princípios
da organização científica do trabalho, tais como a rígida hierarquia e a divisão social do trabalho
com forte dicotomia entre o pensar e o fazer. A autora coloca que algumas instituições vêm
adotando mudanças na gestão por meio da incorporação dos preceitos da qualidade total como a
flexibilização do trabalho; forte responsabilização dos trabalhadores; maior autonomia no
trabalho, oportunizando que o trabalhador desenvolva ações em prol da instituição e da clientela.
Fazendo uma reflexão crítica a esses novos modelos de gestão, Pires (2001,p.14) afirma
que
[...] os novos modelos de organização, mesmo com um discurso de valorização do ser
humano, não permitem visualizá-lo em sua integralidade, pois a valorização do
trabalhador é um meio de manter a produtividade, e não um valor em si mesmo. Esta
mudança de concepção, garantido ao trabalhador ser sujeito e ator social, só é possível
desde que se garanta que ele possa, no trabalho, exprimir sua subjetividade e sua
criatividade [...] Os novos modelos de gestão introduzidos não permitem suplantar o
taylorismo/fordismo. Normas, regras e rotinas ainda determinam o que fazer, como fazer
e inclusive o que sentir, desconsiderando a dimensão humana e subjetiva do trabalho da
enfermagem.
Enfocando os problemas de saúde vivenciados pelos trabalhadores de saúde no atual
mundo do trabalho, Pires (apud PIRES, 2001) expõe que estudos feitos no Brasil indicam que o
trabalhadores da enfermagem são os que mais sofrem com problemas ligados ao trabalho. Dentre
as mais relevantes, a autora destaca: as perdas auditivas e o stress em setores que utilizam
instrumentos que produzem ruídos, como no caso dos Centros de Terapia Intensiva; as Lesões
por Esforço Repetitivo (LER) adquiridas pelo uso intensivo da informática, trazendo também
agravos pelos esforços físicos realizados anteriormente, sobretudo pela enfermagem; o aumento
das cargas físicas e emocionais condicionadas pelas precárias condições de trabalho, baixos
salários, sobrecarga de trabalho, falta de valorização profissional e a responsabilidade com o
cuidado de pessoas em situação de risco de vida; e o stress e os problemas emocionais gerados
pela excessiva jornada de trabalho advindos do duplo ou triplo emprego e do trabalho doméstico
para as casadas ou chefes de família.
Num estudo realizado sobre a saúde de enfermeiras do setor público do Chile,
Avendaño; Grau; Yus (1997) levantam características do perfil ocupacional da enfermagem,
definindo-a como uma profissão de riscos à saúde. O gênero feminino, perfil profissional do
enfermeiro e a localização no setor público, configura-se como uma combinação que gera
múltiplos riscos à saúde. A pesquisa mostra que o ser mulher-enfermeira em si é um fator de
risco, visto os estereótipos sexuais atribuídos à profissão e as constantes posturas machistas no
trabalho.
Quanto ao trabalho, a pesquisa analisa tanto o trabalho remunerado, quanto o trabalho
doméstico que em si constituem-se numa dupla jornada de trabalho para as enfermeiras. No que
se refere ao trabalho doméstico, a pesquisa aponta como riscos o contato com agentes físicos,
químicos e biológicos e fatores inerentes à profissão, como o sofrimento físico e psicológico, e
mesmo a morte de pacientes; o acelerado ritmo de trabalho; as emergências constantes e o grau
de atenção na prestação do cuidado.
Ainda no trabalho remunerado, aparecem como fatores de risco o aumento da jornada de
trabalho; o trabalho em sistema de rodízio e horário noturno; a falta de controle sobre o trabalho;
as baixas remunerações; a falta de condições de trabalho no que concerne a recursos materiais e
técnicos e a falta de pessoal, entre outros.
No trabalho doméstico, a pesquisa indica como risco o tamanho e a composição do
grupo familiar, uma vez que é a mulher que freqüentemente assume as tarefas de cuidado e
educação dos filhos, bem como o cuidado com doentes crônicos e idosos da família. A falta de
recursos para a realização de serviços domésticos, como equipamentos, máquinas, e a falta de
serviços externos de apoio ao cuidado e à educação dos filhos, também são fatores de risco para a
saúde das enfermeiras. A chefia do lar é um dos mais relevantes fatores de risco apontados pela
pesquisa por aumentar as responsabilidades e demandas da mulher, inclusive de ordem
financeira.
Numa correlação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico, Avendaño; Grau; Yus
(1997,p.127) colocam que
[...] a dupla jornada implica em geral uma diminuição do tempo de recuperação do
desgaste por prolongamento global da jornada de trabalho (somatória do desgaste dos
tempos de trabalho doméstico e remunerado) e por falta de descanso e recreação ou pela
baixa qualidade destes.
Quanto aos efeitos ocasionados pelos riscos à saúde das enfermeiras, as autoras
colocam: a redução do bem-estar e a existência de mal-estares inespecíficos; efeitos psicológicos
expressos através de depressão e irritabilidade; efeitos corporais, como cansaço físico, dores de
cabeça e insônia; efeitos laborais expressos por insatisfação no trabalho ou desempenho
insuficiente; efeitos familiares ligados ao funcionamento das relações familiares.
Apesar do estudo citado localizar-se no Chile, arriscamos atribuir grande parte do
quadro de riscos também para a enfermagem brasileira, não só no caso das enfermeiras, mas
sobretudo das auxiliares e técnicos de enfermagem que historicamente realizam a maior parte do
trabalho de cuidado direito ao paciente. O fato de o Chile estar no contexto das políticas
neoliberais impostas pelas instituições financeiras internacionais para o conjunto da América
Latina e as condições de funcionamento dos serviço público de saúde também sustentam esta
afirmação.
Os serviços públicos de saúde no Brasil passaram por mudanças concretizadas na
Constituição Federal de 1988 resultantes de um processo de ampla discussão na sociedade, sendo
a 8ª Conferência Nacional de Saúde a sua maior expressão.
O debate sobre política de recursos humanos fez parte da 8 ª Conferência Nacional de
Saúde, cujo relatório destaca alguns princípios como:
[...] remuneração condigna e isonomia salarial entre as mesmas categorias profissionais
nos níveis federal, estadual e municipal, e estabelecimento urgente e imediato do plano
de cargos e salários; [...] admissão através de concurso público; estabilidade no emprego;
composição multiprofissional das equipes , considerando as necessidades de demanda de
atendimento de cada região e em consonância com os critérios estabelecidos pelos
padrões mínimos de cobertura assistencial; [...] cumprimento de carga horária contratual
e incentivo à dedicação exclusiva; direito à greve e sindicalização dos profissionais de
saúde [...].
Estes princípios foram incorporados na Lei 8080 e na Norma Operacional Básica –
NOB- de Recursos Humanos . O avanço no arcabouço de leis que definem um modelo de saúde
estatizante e que, do ponto de vista dos profissionais de saúde, preserva as bandeiras da 8ª CNS e
os direitos trabalhistas dos servidores públicos, não garantiu a efetivação desta política.
Paradoxalmente, a partir da Constituição de 1988, vem sendo implantado um processo acelerado
de desmonte do Estado enquanto responsável maior das políticas públicas, inclusive de saúde, e
de desregulamentação da malha de direitos trabalhistas dos servidores públicos.
A conseqüência da política neoliberal no setor saúde é nefasta tanto para usuários que
cada vez mais perdem o direito à assistência, quanto para o servidor público que se encontra
numa situação de trabalho precário, seja pelo vínculo e direitos trabalhistas flexibilizados, seja
pelo empobrecimento conseqüente do não reajuste salarial, da inexistência de Plano de Cargos,
Carreiras e Salários, ou ainda pelas precárias condições de trabalho a que estão submetidos.
Essas questões têm conseqüências fundamentais na vida dos trabalhadores,
determinando a sua vida dentro e fora da esfera do trabalho. O aumento da jornada de trabalho
através do multiemprego e horas extras, como forma de superação da pauperização crescente,
rouba-lhe o tempo livre que deveria estar à disposição do descanso necessário para a recuperação
das energias físicas; para o lazer; para a convivência familiar de forma mais harmônica e menos
conflituosa; e para a participação política nos fóruns e atividades de organização dos
trabalhadores.
No Rio Grande do Norte, estudo realizado por Medeiros (2000) sobre a força de trabalho
em saúde no município de Natal aponta para a existência de um processo de transformação no
mundo do trabalho caracterizado pelos contratos temporários; flexibilização do emprego e dos
direitos trabalhistas; terceirizações; entre outras.
Os contratos temporários, a flexibilização do emprego e dos direitos trabalhistas são
evidenciados através da existência de 17% de trabalhadores do quadro de pessoal contratados
sem concurso, por meio da prestação de serviço, e da existência de 312 agentes comunitários de
saúde e 456 agentes de combate ao dengue. Todos têm em comum a flexibilidade da concessão
dos direitos trabalhistas e a insegurança no vínculo com o emprego, dependendo sempre de
negociações e da vontade política dos gestores (MEDEIROS, 2000).
Em estudo sobre o PSF, Veras; Medeiros; Germano (2002) apontam para a existência de
traços característicos da reestruturação do trabalho em saúde em Natal/RN, entre eles a
polivalência de enfermeiros e auxiliares de enfermagem que estão realizando atividades de outros
profissionais, como nutricionistas e assistentes sociais na execução do Programa do Leite em
unidades de saúde da família; a eliminação de postos de trabalho para categorias de serviço
social, nutrição e psicologia; a flexibilização do vínculo e dos direitos trabalhistas; e o retrocesso
no movimento sindical.
Outro forte indício da influência da reestruturação produtiva no setor saúde em
Natal/RN é a terceirização que vem se dando através de empresas, como é o caso de um hospital
público que teve terceirizado a gestão e o corpo de trabalhadores, e por meio de cooperativas
médicas que têm uma participação cada vez mais crescente na prestação de serviços de saúde
(MEDEIROS, 2000).
Frente a essas discussões, é necessária uma reflexão sobre o processo de trabalho em
saúde no atual contexto histórico, para que se responda: como está o ser humano envolvido neste
processo? Seja ele o objeto de trabalho a ser transformado, isto é, seja este homem a totalidade a
ser trabalhada, seja o homem-força de trabalho, responsável pela transformação e atendimento
das necessidades em saúde.
O desenvolvimento do processo de trabalho em saúde no atual contexto onde o tempo
necessário para a reprodução da força de trabalho é cada vez maior, mediante o aumento da
jornada de trabalho, coloca em jogo tanto o resultado deste processo que é a satisfação dos
carecimentos em saúde, como também a essência e o significado do trabalho para o seu produtor:
o trabalhador da saúde.
Resgatando Antunes (2002) quando fala em produção de sentido do trabalho, é
necessário que se busque resgatar o trabalho em saúde como espaço de satisfação e de
significados onde é imprescindível o desenvolvimento pleno das atividades em saúde para
satisfação dos usuários, e onde o trabalhador seja respeitado na sua integralidade, tanto do ponto
de vista da remuneração e valorização profissional, como pela jornada de trabalho compatível
com o pleno desenvolvimento deste trabalho, permitindo o gozo do tempo livre.
2.0 O TRABALHO E A VIDA COTIDIANA
A vida cotidiana é o espaço do homem na sua particularidade no qual ele desenvolve
possibilidades de reprodução social. É só conhecendo o homem neste espaço, da vida cotidiana,
que se pode compreender a sua totalidade. É nesta esfera da vida onde se explicita as questões
mais simples às mais complexas que caracterizam a natureza humana. Todo homem,
independentemente do lugar que ocupa na sociedade, tem uma vida cotidiana e é nela que o
homem se apresenta por inteiro, utilizando todos os seus sentidos, capacidades intelectuais,
sentimentos, idéias e ideologias (HELLER, 1991, 1992).
A vida cotidiana é heterogênea, pois nela o homem desenvolve as mais variadas
atividades: a organização do trabalho, a vida privada, o descanso, as relações sociais, o
intercâmbio e a purificação. Ao mesmo tempo ela também é hierárquica, isto é, as atividades são
realizadas de acordo com a prioridade dada a cada uma, a depender da estrutura econômica em
que se vive (HELLER, 1991, 1992).
O pensamento cotidiano, segundo Heller (1991), caracteriza-se pelo antropomorfismo,
isto é, a realidade é vista pelos limites da vida cotidiana, e o antropologismo que é o
conhecimento superficial imediato sobre os fatos e experiências concretas da vida, prescindindo
do desenvolvimento da ciência e da técnica. O pensamento não cotidiano, que é o científico-
filosófico caracteriza-se pela superação do antropomorfismo e do antropologismo para a
construção de uma outra leitura da realidade (HELLER, 1991).
Heller (1991) diz que o homem já nasce inserido na sua cotidianidade em um sistema de
produção e distribuição no qual ocupa um lugar na divisão social do trabalho. Ao nascer, ele
encontra um sistema de uso de coisas necessárias a sua vivência e desenvolverá capacidades para
utilizá-las. Assim, também estará desenvolvendo relações sociais. O homem só é considerado
maduro quando está apto a manipular as coisas do seu meio ou reproduzir comportamentos
inerentes a sua comunidade.
A forma como o homem se apresenta na vida cotidiana é através de sua particularidade.
Esta é socialmente construída na medida em que ao se inserir num conjunto de relações
determinadas pelo uso de objetos e “sistema de aspirações sociais” (HELLER, 1991, p.36), ele
necessita desenvolver características particulares que venham a proporcionar sua vivência na
comunidade determinada por estas características. Da mesma forma, nenhuma sociedade pode
existir sem o homem particular, tendo esta também uma cotidianidade.
O homem na sua particularidade tem características próprias, ponto de vista e
motivações particulares que existem pela necessidade natural de autoconservação. A relação do
homem particular com o mundo é alienada, pois não dá conta da totalidade da vida. Ao contrário
da particularidade, a genericidade é a inserção do homem consciente de si, seu gênero humano e
do mundo (HELLER,1991).
A partir daí, a autora inicia a discussão deste homem particular e motivado pela
autoconservação e de sua relação com o gênero humano, a genericidade, isto é, com a vida na sua
integralidade. Heller (1991) faz o seguinte questionamento: se todo homem nasce dotado do
instinto de autopreservação e para isto é aguçado o seu aspecto particular, como alcançar a
genericidade? Ela mesma responde dizendo que a genericidade é alcançada através da relação
consciente do homem com o seu gênero, o gênero humano, e que isto só é possível através do
conhecimento. Sinteticamente pode-se afirmar que na particularidade está em evidência a relação
alienada do homem com o mundo e que na genericidade está presente a relação consciente do
homem com o mesmo.
Marx (apud HELLER, 1991), afirma que o homem é o único animal que tem uma
relação genérica com sua própria essência. É através da consciência que o homem tem a noção da
totalidade da vida, o que o diferencia dos outros animais, e que é justamente, e só por isso, que
ele é um ser genérico. Heller, ao citar Marx, afirma que ele faz uma crítica à alienação a partir da
vida cotidiana das sociedades de classe, da propriedade privada e da divisão social do trabalho.
Este autor diz que o trabalho alienado transforma a essência do homem, sua atividade vital, num
simples meio para garantir sua existência, pois está excluída neste trabalho o entendimento e a
integralidade dos aspectos mais diversos e amplos da vida, isto é, no trabalho alienado o homem
não desenvolve suas qualidades genéricas. Heller (1991, p.52) afirma que “[...] su cualidad
genérica, se convierte al miesmo tiempo en um medio para negar su esencia genérica y, en efecto,
el hombre hace de sua esencia el medio de sua existencia”.
Marx (apud HELLER, 1991, p.53) afirma que na sociedade em que prepondera a
propriedade privada, os homens só reconhecem algo como seu se tocar, comer, beber, enfim,
possuir. Desta forma, todos os sentidos físicos e sentimentos são alienados para dar lugar ao ter.
“El ser humano tenía que ser reducido a esta absoluta pobreza para que pudiera alumbrar su
riqueza interior”. Em cima disto, Heller (1991) afirma que se as forças vitais do homem se
convertem como meio de sua existência e, se todos os sentidos humanos vão a busca do ter,
significa que a vida cotidiana se concentra apenas em torno da mera existência e do ter. Neste
sentido não há espaço para o desenvolvimento da genericidade.
Heller (1991, p.55) faz uma distinção entre o homem particular e o indivíduo. Este é o
homem consciente de si mesmo mediado pela genericidade; “El individuo es um singular que
sintetiza en sí a unicidade accidental de la particularidad y la universalidad de la generacidad”. A
motivação do indivíduo não passa apenas pela autoconservação. Ele tem valores no seu cotidiano
que transcendem a autopreservação. Só o indivíduo tem a consciência de si mesmo, o que leva a
querer dar forma a si e a seu mundo. A autora afirma que o homem vive ao mesmo tempo o ser
particular e o individual. No entanto, o indivíduo tem consciência das suas motivações
particulares, mas prioriza suas motivações ligadas à genericidade.
Para se reproduzir a si mesmo como particular, o homem deve efetuar um trabalho,
sendo este a base da vida cotidiana. As outras atividades se organizam a partir dele. O tempo
também é definido a partir do trabalho, seja na intensificação ou na redução das horas trabalhada,
seja no tempo livre. A autora diz que o tempo do trabalho tem diminuído a realização de outras
atividades cotidianas como dialogar, comer, relacionar-se, entre outras.
Marx (apud HELLER, 1991) diferencia o trabalho enquanto atividade humano genérica
que chama de work, e como a execução da vida cotidiana que chama de labour. O work é uma
atividade humano-genérica porque produz valor de uso que satisfaz uma necessidade social e é
realizado dentro de um tempo socialmente necessário. Sobre o Labour, Marx (apud HELLER,
1991) conceitua como uma atividade na qual o produto do trabalho não pertence ao produtor e
por isto lhe é estranho, sendo, portanto, um trabalho alienado. Ao perder esta noção da
integralidade do processo produtivo, o trabalho deixa de ser uma atividade de auto-realização do
homem, passando a ser uma “maldição”. Neste sentido o trabalho deixa de ser um meio de
integralização do homem para satisfação de suas necessidades para ser um meio de satisfação de
necessidades fora do trabalho. Sob esta ótica, o trabalho apesar de ser uma atividade humano-
genérica, no momento em que se torna processo alienado, serve apenas para a reprodução do
particular.
É com o surgimento da sociedade de classe que se rompem as barreiras naturais entre a
particularidade e a genericidade. A divisão social do trabalho confina o homem a uma dimensão
restrita e parcial do mundo em decorrência da alienação. Marx (apud HELLER, 1991) faz a
distinção de classe social em si e classe social para si. Segundo o autor, uma classe é em si
quando simplesmente ocupa um lugar na divisão social do trabalho e nos meios de produção,
sendo elemento intrínseco a esta estrutura. Uma classe para si é aquela que tem consciência da
dimensão do lugar que ocupa na mesma estrutura, desenvolvendo uma consciência de classe
própria, o que Lukács (apud HELLER, 1991, p.227) chama de “consciência atribuída de direito”.
A crescente divisão social do trabalho em que o homem desenvolve atividades cada vez mais
específicas, ocorre em detrimento da totalidade do homem, favorecendo, portanto, à alienação.
Uma classe torna-se para si quando seus membros tomam consciência do lugar que
ocupam na divisão social do trabalho, e isto se dá por meio do conhecimento, Só a classe para si
pode conduzir a vida no sentido de uma relação consciente do indivíduo com o humano-genérico.
Heller (1991) fala sobre a influência da política na vida cotidiana. Na definição lato
sensu da palavra, a política está relacionada com atividade genérica necessariamente, isto é, ela
sempre está voltada para uma integralidade. Na definição stricto sensu é uma atividade que
objetiva o poder. A autora afirma que esta atividade ao longo da história vem sendo exercida
mais pelas classes dominantes. As classes dominadas exercem a política quando tomam
consciência “do nós”, isto é, da coletividade.
Para exercer uma atividade política, é necessário transcender o pensamento cotidiano,
isto é, o antropomorfismo e antropologismo. Lenin (apud HELLER, 1991, p.175) diz que “[...] de
la relación recíproca entre consciencia cotidiana y consciencia de classe referida inmediatamente
a la integración o a la perspectiva que encarna la generacidad”. A vida cotidiana está fortemente
influenciada pelas transformações econômicas e políticas, e estas vão determinar o particular.
Sobre a participação política dos operários, Heller (1991,p.181) afirma que a limitação das lutas
ao aspecto econômico se coaduna com a conservação do particular e, que ao contrário, estas lutas
devem ampliar-se no sentido da superação do particular em busca da genericidade: “El objetivo
inmediato de la toma del poder deberia ser la humanización de los hombres [...], la lucha contra
la alienación deberia pasar de ser parcial, a ser universal”.
2 PERCURSO METODOLÓGICO
Tendo como objetivo estudar o aumento da jornada de trabalho e sua relação com o
cotidiano como um fenômeno social, buscou-se elemento da pesquisa qualitativa para assim
compreendê-lo. Minayo (1992) afirma que a pesquisa qualitativa trabalha com a profundidade
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à quantificação.
Richardson (1999) afirma que a pesquisa qualitativa caracteriza-se pela tentativa de compreensão
dos significados e características apreendidos dos entrevistados, em vez de se produzir medidas
que quantifiquem as características do comportamento humano.
Entendendo que o aumento da jornada de trabalho é um fenômeno determinado pelas
relações econômicas e de classe historicamente construídas, optou-se pela utilização de
elementos do materialismo histórico dialético como forma de iluminar o trajeto da compreensão
do fenômeno em estudo.
O materialismo histórico assenta-se no entendimento de que a existência do ser humano
é determinada pelo seu lugar na divisão social do trabalho, isto é, a partir da apropriação ou não
dos meios de produção. A existência da divisão social do trabalho pressupõe a existência de
classes sociais. Marx (apud CHAUÍ, 2002) considera que são duas as classes sociais básicas: a
trabalhadora, que vende sua força de trabalho, e a burguesa, detentora dos meios de produção
(CHAUÍ, 2002).
As relações entre as classes sociais são conflituosas e contraditórias, resguardando um
movimento dialético de unidade e contradição, uma vez que, no modo de produção capitalista,
uma não existe sem a outra e, ao mesmo tempo, são antagônicas, pois uma se apropria do que a
outra produz. Neste sentido, há uma luta permanente entre as classes que exprime as contradições
da realidade social, sendo esta luta o motor da história (CHAUÍ, 2002).
Ao identificar que o processo histórico é guiado pelas contradições existentes na
realidade social, Chauí afirma que o materialismo histórico é dialético.
É através do materialismo dialético que se pode compreender na realidade estudada o
desenvolvimento das forças produtivas; das relações sociais; as classes sociais existentes e a luta
de classe; a divisão social do trabalho; o Estado; entre outras especificações que definem o ‘modo
de vida’ das pessoas. Este modo de vida é definido pelo modo de produção (MINAYO, 1992).
Discorrendo sobre a dialética, Minayo (1992) afirma que Marx desenvolveu a sua teoria
a partir de Hegel. Para Chauí (2002, p.202) esse filósofo, antecessor de Marx, desenvolveu sua
teoria a cerca da dialética articulando natureza e cultura como exteriorização do Espírito. Ambas
se movem para dentro e para fora do Espírito através da história, a história do Espírito. A lógica
como este processo se dá é definido como dialética. A autora afirma que Hegel considera que “A
dialética é a única maneira pela qual podemos alcançar a realidade e a verdade como movimento
interno da contradição”.
A dialética desvela as contradições da realidade, através da negação interna na qual “[...]
um ser é a supressão de seu outro, do seu negativo”. Esta negação não é entendida como
destruição do outro, mas como a sua transformação:
A contradição dialética nos revela um sujeito que surge, se manifesta e se transforma
graças à contradição de seus predicados, tornando-se outro do que ele era pela negação
interna de seus predicados. Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito [...], ela
é o que movimenta e transforma o sujeito, fazendo-o síntese ativa de todos os predicados
postos e negados por ele (CHAUÍ, 2002, p.203).
Hegel é considerado um filósofo idealista, uma vez que a sua teoria assenta-se na idéia
como prerrogativa da percepção da realidade, isto é, os fenômenos existem porque temos
consciência dele. Sem essa percepção, os fenômenos não existem (CHAUÍ, 2002).
Minayo (2002) afirma que para Marx a dialética é utilizada para conhecer a realidade
social como algo concreto, objetivo. A compreensão do mundo, do sistema econômico, das
relações sociais, dos fatos históricos e das idéias ocorre por meio do materialismo histórico. A
autora apresenta duas hipóteses fundamentais da dialética em Marx: na realidade nada é eterno,
fixo ou absoluto, tudo está em constante transformação e que a totalidade da existência humana
se articula dentro da realidade na particularidade e no geral, isto é, no encadeamento da unidade
específica com o todo. Assim, pra uma compreensão da realidade com base na dialética é
importante
- compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial;
- buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre
as várias instâncias da realidade e o processo da totalidade parcial;
- entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e
efeitos de sua manifestação (MINAYO, 1992, p.70).
Triviños (1987, p.51) define o materialismo dialético como a base filosófica do
marxismo e “[...] como tal realiza a tentativa de buscar explicações coerentes, lógicas e
racionais para o fenômeno da natureza, da sociedade e do pensamento”. O autor ressalta ainda
que uma das idéias mais originais do materialismo é a importância dada à prática social como
critério da verdade.
Sobre o conhecimento do objeto ou fenômeno a partir do materialismo dialético,
Triviños (1987, p.74) coloca que este tem como procedimento geral: a contemplação viva do
fenômeno, conhecendo suas sensações, percepções, representações; a análise do fenômeno
através da penetração na sua dinâmica abstrata, estabelecendo as relações sócio-históricas do
fenômeno na qual se elabora juízos de valor, raciocínio e conceitos; e a apreensão da realidade
concreta do fenômeno estabelecendo “os aspectos essenciais do fenômeno, seu fundamento, sua
realidade e possibilidades, seu conteúdo e sua forma, o que nele é singular e geral, o necessário e
o contingente, etc.”.
Richardson (1999) aborda o materialismo dialético como o que reúne potencialmente as
condições de compreender um fenômeno a partir de sua construção histórica e social. Baseando-
se na Teoria Marxista, o autor afirma que o materialismo dialético parte da análise de dois
princípios filosóficos: que os fenômenos são objetivos, isto é, existem independentemente da
consciência do homem e que a realidade apresenta relações contraditórias.
A opção pela abordagem, no presente estudo, de elementos do materialismo dialético, se
deu em face do entendimento de que este reúne as condições teórico-metodológicas para explicar
a realidade social em toda a sua complexidade. No entanto, é importante explicitar a relatividade
da utilização do materialismo dialético, uma vez que não houve uma apreensão de toda sua
profundidade filosófica e metodológica.
O olhar sobre o aumento da jornada de trabalho e sua repercussão na cotidianidade tem
como referencial teórico o trabalho em Marx (1982) e em Antunes (2000, 2001) e a cotidianidade
em Heller (1991, 1992). Neste estudo, o trabalho e o cotidiano são categorias analíticas gerais.
O aumento da jornada de trabalho é um fenômeno que vem ocorrendo entre muitos
trabalhadores da saúde, sejam médicos, enfermeiros, assistentes sociais, auxiliares de
enfermagem, entre outros. Porém, neste estudo, optou-se pelos enfermeiros, auxiliares e técnicos
de enfermagem como sujeitos da pesquisa.
Também fizeram parte deste estudo os gestores do hospital e da Secretaria de Saúde
Pública do Rio Grande do Norte (SESAP), bem como os representantes do Sindicato dos
Trabalhadores em Saúde do RN. Estes, no entanto, não foram o foco do presente estudo, sendo
suas informações utilizadas de forma a dar suporte ou confrontar as falas dos sujeitos da
pesquisa.
Os sujeitos entrevistados foram aglutinados em grupos e codificados de acordo com a
função que exercem no trabalho: Grupo E para enfermeiros; Grupo AT para auxiliares e técnicos
de enfermagem; Grupo G para os gestores e Grupo R para os representantes do sindicato. Cada
entrevistado recebeu uma numeração de acordo com a seqüência das entrevistas. Minayo (1992,
p.102) afirma que na escolha da amostragem qualitativa deve-se priorizar os sujeitos sociais que
têm especificidades que o pesquisador pretende conhecer; que o tamanho do grupo estudado deve
ser o suficiente para permitir a repetição de informações e ao mesmo tempo não deve descartar as
informações diferenciadas da maioria; deve ser diversificado para permitir captar semelhanças e
diferenças nas informações; e por último, que os entrevistados tenham “o conjunto de
experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa”.
Os critérios utilizados para a definição dos grupos tiveram como base: a inserção de
cada um na divisão social do trabalho e a representação dos mesmos no contexto abordado,
visando captar as várias visões sobre o tema.
Especificamente sobre os grupos E e AT, utilizou-se, para a escolha dos entrevistados, a
inserção destes em uma jornada de trabalho superior a 40 horas semanais definidas pelo vínculo
com a SESAP, seja pelo multiemprego ou pelas múltiplas escalas de plantão no hospital em
estudo. A escolha dos entrevistados dentro do critério estabelecido partiu da indicação da Divisão
de Enfermagem do hospital e a partir daí pela disponibilidade de eles participarem da pesquisa.
No Grupo AT os entrevistados foram classificados como auxiliares e técnicos de
enfermagem de acordo com a formação técnica. A intenção foi evidenciar a contradição entre
qualificação profissional e a falta de valorização da força de trabalho por meio da carreira ou da
remuneração, uma vez que apesar de terem formação de nível médio, alguns auxiliares ou
técnicos de enfermagem são contratados como atendente de enfermagem, isto é, nível elementar.
O total de entrevistados foram: oito auxiliares de enfermagem; onze técnicos de
enfermagem; dez enfermeiras; quatro gestores e duas sindicalistas (anexo 1). O critério utilizado
para definir o número de entrevistados dentro da enfermagem foi à proporção entre auxiliares e
técnicos de enfermagem e os enfermeiros, sendo os primeiros a maioria.
O campo de pesquisa foi um hospital público de referência do Estado do Rio Grande do
Norte, sediado em Natal. O período histórico compreende o ano de 2003.
A entrada no campo de pesquisa foi precedida pela aprovação da pesquisa pelo Conselho
de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (anexo 2) e da gerência do hospital.
Para a coleta das informações necessárias à pesquisa foram utilizadas entrevistas semi-
estruturadas abertas; um diário de campo para o registro das impressões subjetivas no percurso da
pesquisa e de documentos oficiais.
Minayo (1992) considera que na entrevista pode-se obter informações objetivas que se
reportam a fatos que o pesquisador poderia obter por meio de outras fontes como, dados
estatísticos, documentos oficiais em geral, e as informações relativas às atividades, valores e
opiniões do entrevistado, definidas pelos cientistas sociais como informações “subjetivas”
*
.
Baklin (apud MINAYO, p.110) interpreta a palavra como um fenômeno ideológico e
que é através da comunicação verbal que as pessoas deixam refletir os “[...] conflitos e
contradições do sistema de dominação, em que a resistência está dialeticamente relacionada com
a submissão”.
Depois de selecionados os sujeitos da pesquisa, ocorreram contatos com eles no sentido
de obter autorização e agendar as entrevistas. Foi esclarecido para os entrevistados o objetivo da
pesquisa; esclarecido que a participação era de livre arbítrio, podendo este se retirar em qualquer
fase da pesquisa; que os entrevistados teriam um código para preserva o anonimato; e por último,
apresentado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido (anexo 2). Para os que se dispuseram
a participar da pesquisa, foi solicitado o consentimento para gravar a entrevista em fita K7, o que
foi autorizado por todos os participantes.
*
Grifo da autora.
As entrevistas foram realizadas com base em dois roteiros distintos (anexos 4 e 5), sendo
um para os grupos E e AT (anexo 4) e outro para os grupos G e R (anexo 5). As entrevistas
foram realizadas pela pesquisadora e por uma estudante de graduação. Após o término de todas
as entrevistas, estas foram transcritas.
A análise das informações foi iniciada já a partir da coleta como recomenda Triviños
(1987) quando afirma que na pesquisa qualitativa a coleta e a análise das informações não se dão
de forma estanque. Elas interagem, influenciando uma a outra. A análise das informações foi
realizada com base em elementos da hermenêutico-dialética.
A Hermenêutica é, segundo Gadamer (apud MELLO, 2002), definida como o estudo da
compreensão. Em tempos mais antigos, era utilizada para compreender textos teológicos e
jurídicos. No início do século XIX Schleiermacher (apud MELLO, 2002, p.01) estendeu a sua
aplicação para todos os tipos de textos, “dando-lhe o status de ciência geral da compreensão”.
Minayo (2000) explicita algumas características da hermenêutica a partir da
compreensão como categoria que move a atitude do investigador: o investigador não deve buscar
a intenção do autor no que está e sim, procurar revelações para além do que está escrito; o
investigador não deve ter uma postura contemplativa, pois a alienação frente ao que está escrito
dificulta a aproximação dele com a realidade histórica; a compreensão não passa pela captação da
vontade e planos do autor, pois ele está inserido num contexto e vai além da conjuntura em que
vive. O autor deve ser visto dentro de um contexto em que se move do específico para o geral e
vice-versa; o que se interpreta não pode ser compreendido de uma só vez nem de uma vez por
todas, isto é, o compreender é um processo crescente de aproximação da realidade; por último, a
autora afirma que o investigador deve buscar compreender o autor melhor do que ele mesmo
pode se compreender .
Para Minayo (1992, p.231), é este método que se apresenta com maior possibilidade de
dar uma interpretação aproximada da realidade, pois “Ele coloca a fala em seu contexto para
entendê-la a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e totalizante em que é
produzida”.
Minayo (1992) refere-se à hermenêutica-dialética como um “caminho do pensamento”
na investigação de fenômenos sociais. A autora afirma que há uma complementariedade entre a
hermenêutica e a dialética num movimento de aproximação e de diferenciação entre ambas.
Segundo Minayo (1992), hermenêutica e a dialética se aproximam pelas as seguintes
característica: ambas admitem que a vida humana é social e que é historicamente determinada; a
dialética marxista articula a objetividade e a subjetividade como componentes do ser social, e a
hermenêutica, da mesma forma, tem a intersubjetividade como ‘locus da compreensão’
*
; por
último, aproximam-se na proposição de superação do ‘quantitativismo’ e do ‘qualitativismo’
*
no
entendimento dos fenômenos sociais quando a dialética afirma que a quantidade transforma-se
em qualidade e a hermenêutica se propõe a compreender a realidade para além dos fenômenos em
si
A hermenêutica e a dialética se diferenciam quando: enquanto a primeira move-se para
a compreensão, a segunda se coloca numa postura crítica; enquanto a hermenêutica move-se em
busca do consenso e da compreensão por meio da tradição e da linguagem, a dialética coloca na
compreensão o germe do conflito e da contradição.
Nessa relação de distanciamento e complementaridade pode-se afirmar que a
hermenêutica se propõe a compreender o significado do texto, considerando o contexto histórico
em que se insere o autor na busca de interpretar o que tem além do escrito. A dialética é um
*
Grifo da autora.
*
Grifo da autora.
elemento que desconstrói os significados questionando o seu sentido. Ambas se complementam
quando têm o ser social como objeto e sujeito da sua análise; quando consideram este ser social
histórico. transcendem o positivismo quando superam a mera quantificação dos significados do
texto e adentram na realidade social para explicar os fenômenos, não se restringindo apenas a sua
constatação. Neste movimento se dá uma relação dialética entre a hermenêutica e a dialética, pois
se complementam na contradição.
A utilização de elementos da hermenêutica para a compreensão das informações
colhidas entre os entrevistados neste estudo, deu-se pelo fato da hermenêutica representar uma
forma de instrumentalizar o olhar a partir do materialismo dialético, na medida em que possibilita
a compreensão para além do que está escrito. No entanto, é importante assinalar que este não é
um estudo hermenêutico, mas, sim, uma primeira aproximação com esse método de interpretação
que desencadeou um desejo de aprofundar o conhecimento filosófico e metodológico, podendo se
caracterizar como um vir a ser de outros estudos.
Para operacionalizar a utilização da hermenêutica dialética na interpretação de textos,
Minayo (1992) afirma que se pode aproveitar a técnica da análise de discurso com a prerrogativa
de submeter o conteúdo à superação dialética. Para tanto, a autora propõe uma seqüência de
passos que vão da organização inicial dos textos até a análise teórica das informações, a qual foi
utilizada como instrumento para análise das informações colhidas.
A análise das informações através da categorização limitou-se aos grupos E e AT por
representarem os sujeitos da pesquisa que são os trabalhadores da enfermagem. As informações
dos demais grupos, G e R, foram utilizadas de forma suplementar . Assim, seguiu-se os seguintes
passos para ordenamento da análise:
1º- As entrevistas transcritas foram organizadas de acordo com o grupo a que pertenciam
e em seguida encadernadas;
2º- Foi realizada leitura exaustiva dos textos para apreensão das idéias centrais e ds
momentos chaves sobre o objeto de pesquisa. Minayo (1992) afirma que esta atividade
ajuda à construção de categorias empíricas que serão confrontadas com as categorias
analíticas centrais preestabelecidas;
3º- Foram constituídos os Corpus (Minayo, 1992) por meio do agrupamento das
entrevistas de acordo com as características comuns. Neste caso os grupos serviram de
base para esta organização;
4º - Cada Corpus foi submetido à leitura transversal e recortadas as unidades de registro
constituídos por frases, orações ou expressões significativas. Cada unidade de registro
foi sendo agrupada de acordo com categorias empíricas que surgiram durante este
processo.
Nesta fase surgiram as seguintes categorias:
Jornada de Trabalho;
Direitos Trabalhistas;
Trabalho e Cotidiano;
Trabalho e Saúde;
Situação do Servidor Público;
Condições de Trabalho;
Vida Pessoal e Relações Familiares;
Tempo Livre;
Explicando a Realidade;
Mudando a Realidade.
5º - Procedeu-se o enxugamento das categorias empíricas que foram sintetizadas e
agrupadas a partir das duas dimensões analíticas teóricas da pesquisa:
Trabalho: Buscando saídas e Vivenciando o Ser Trabalhador em Saúde;
Cotidiano: Vivendo o Cotidiano.
6º- Por fim, buscou-se o referencial teórico para contribuir com a interpretação e análise
das informações.
Nesta última etapa, talvez a mais complexa, procurou-se apreender das falas a
objetividade da realidade social vivida pelos trabalhadores da enfermagem de modo a ligar as
suas especificidades à estrutura econômica e a sua inserção na classe social determinada pela
construção histórica do modo de produção capitalista na sua fase atual da reestruturação
produtiva e do neoliberalismo.
Buscou-se também apreender o conteúdo subjetivo das falas, algumas vezes colocadas
de forma explícita, por vezes presentes de forma subliminar por expressões, palavras, símbolos,
entre outros. A utilização da dialética deu-se nos momentos da explicitação das contradições
inerentes ao processo vivido pelos trabalhadores, como também nos próprios sujeitos da pesquisa
que por muitas vezes desvelaram conflitos e contradições num eterno movimento entre o que a
particularidade e a genericidade (HELLER, 1991).
1 APROXIMANDO-SE DA REALIDADE DOS TRABALHADORES DA
ENFERMAGEM
1.0 CARACTERIZANDO A ESFERA DE TRABALHO
1.0.0 Estrutura física e serviços ofertados
O presente estudo desenvolveu-se em um hospital público estadual, integrante do
Sistema Único de Saúde, de referência para todo o Rio Grande do Norte. Está subordinado à
administração da Secretaria Estadual de Saúde Pública (SESAP), sendo o acesso universal em
todas as faixas etárias.
O referido hospital foi inaugurado em 1973 e tinha uma estrutura física verticalizada
com quatro andares. Em 2001, sofreu uma ampliação com a construção de um pronto-socorro que
alojou vários serviços executados anteriormente no prédio antigo. Hoje coexistem as duas
estruturas, sendo, no entanto, ainda insuficientes para a demanda. Uma parte da clínica médica
funciona em um outro hospital de especialidade, também estadual.
A ampliação das instalações deu-se devido às pressões da crescente demanda, pois o
serviço de urgência e emergência funcionou em precárias condições por muito tempo. Com a
construção do pronto-socorro passaram a coexistir duas estruturas físicas, uma mais nova e
conservada, e outra mais antiga que apresenta vários problemas nas instalações, a exemplo de
infiltrações, presença de fungos nas paredes e tetos, entre outros. A nova estrutura também
apresenta problemas que foram identificados nas informações obtidas por T3:
[...] a arquiteta que fez [o hospital] parece ... parece uma pessoa que não tem o mínimo
conhecimento do que é um hospital, do que é um setor de urgência, um setor de
reanimação, um politrauma, porque pega um banheiro que é pra paciente e coloca
dentro do posto de enfermagem. Então se você vai construir um hospital, você não pode
pegar dois engenheiros que só tem a visão de engenharia [...]. Então você tem que
juntar a enfermeira, a nutricionista, a assistente social, você tem que juntar outros
especialistas pra formar uma comissão pra trabalhar com esses enfermeiros [...] foi
construído tudo errado porque se você for no hospital, não tem cabimento você
construir uma UTI onde não tem um ralo pra lava , que é um setor que tem que tá
fazendo desinfecção constantemente. Um centro cirúrgico, uma UTI tem que ter
repouso, um banheiro que é um setor fechado, não tem. O funcionário tem que sair lá
fora pra tomar banho no hospital.
As afirmações de T3 demonstram a existência de uma política de gerenciamento que não
envolve o conjunto dos trabalhadores que desenvolvem as práticas em saúde e da dicotomização
entre o pensar e o fazer tão característico da equipe de saúde.
Além de ser o maior serviço de urgência e emergência do Rio Grande do Norte, o
hospital têm os seguintes serviços: clínica médica; pediatria; clínica cirúrgica; ortopedia; buco-
maxilo-facial; curativo de queimados; cirurgia vascular; hematologia; urologia; neurologia;
neurocirurgia; oftalmologia; endoscopia; otorrinolaringologia e nefropatia. Para dar suporte a
estes serviços, o hospital conta com um laboratório de análises clínicas; radiologia; endoscopia;
anatomia patológica; ecocardiologia; ultra-sonografia e tomografia. Conta ainda com serviços de
fisioterapia; nutrição; social e psicologia.
Alguns atendimentos de alta complexidade não existem no hospital ou são insuficientes
para a demanda, sendo ampliados por meio da compra de serviços terceirizados ao setor privado.
Os mais freqüentes são cirurgias de fraturas e ortopédicas. Com relação a exames, os principais
são a ressonância magnética, arteriografia, angiologia, cateterismo cardíaco, cintilografia óssea e
colonoscopia. Conta com 298 leitos, sendo a maioria para a clínica médica. As UTIs geral,
cardiológica e pediátrica têm, respectivamente, nove, cinco e cinco leitos.
1.0.0 Condições de trabalho, financiamento e estrutura administrativa
As condições de trabalho são bastante deficientes, sendo constantes as denúncias na
imprensa local a respeito do funcionamento do hospital. A presença de pacientes internados em
macas e até em cadeiras é um dos principais problemas enfrentados pelo hospital e pelos usuários
que dependem deste serviço de saúde. Por meio da observação de campo, pôde-se constatar
pacientes nos corredores do pronto-socorro recebendo infusão de soro intravenoso em cadeiras e
até no chão, inclusive idosos. Os acompanhantes de idosos e menores de idade dormem no chão,
em baixo das macas dos pacientes. Outro problema enfrentado pelo hospital é a falta de leitos nas
UTIs, havendo, inclusive, ocorrência de óbitos na fila de espera, sendo este fato duramente
denunciado pela imprensa local.
A falta de insumos básicos, de manutenção dos equipamentos e a deficiência de pessoal
marcam as condições de trabalho desse hospital, sendo um dos fatores de maior estresse
considerados pelos entrevistados, chegando uns a firmarem que, embora a jornada de trabalho
seja longa e cansativa, as péssimas condições de trabalho representam a causa principal de
estresse dos trabalhadores estudados.
Ao serem questionados sobre as causas das precárias condições de trabalho, alguns
entrevistados atribuíram à superlotação do hospital em decorrência do não funcionamento da
atenção básica de responsabilidade dos municípios.
Hoje no [hospital] tem uma superlotação [...], mas se a rede básica funcionasse [...] eu
não teria a lotação que eu tenho hoje. Eu tenho um índice de amputação...gente, eu
tenho duas amputações por dia [...]. Isso reflete a falta de controle do diabético, que
não é pra ser feito no [...] [hospital], é pra ser feito na unidade básica [...]. Não é
admissível hoje que um paciente ampute uma perna porque não teve uma glicemia, não
teve uma insulina, não teve um endocrinologista, não teve um centro de saúde pra se
tratar (G4).
Isso ocorre a despeito de todos os municípios do Rio Grande do Norte receberem
recursos do SUS através do Ministério da Saúde. É recorrente a remoção de pacientes de outros
municípios para o hospital com o intuito de realizar procedimentos que, pela hierarquização da
rede de saúde preconizada na Lei 8080, deveriam ser executados na rede básica. A utilização de
ambulância é uma prática muito utilizada no Estado, sendo, na maioria das vezes, utilizada como
um benefício a ser trocado pelo voto no período eleitoral.
A superlotação, segundo alguns entrevistados, faz com que o suprimento de insumos e
medicamentos enviados ao hospital sejam insuficientes e a utilização constante dos equipamentos
aumenta a necessidade de consertos, que por muitas vezes, demoram a acontecer.
[...] ontem à noite no plantão [...] [estava] tomógrafo quebrado, a ultra quebrada, Raio
X quebrado e os elevadores parados. Ou seja, inviável. Um dia falta feijão, outro dia
falta a carne e num dia falta luva, no outro esparadrapo [...] (G4).
Outros entrevistados apontaram como causas das precárias condições de trabalho ao
pouco investimento no setor saúde, levantando hipóteses de desvios e de vantagens que o setor
privado pode estar levando em relação ao mau funcionamento dos serviços.
No serviço público existe aqueles que...existe aqueles que tem [...] que lucram com
aquela situação [...] que lucram com aquele que tá jogado ali no corredor, detectou
uma pneumonia, jogado ali, o paciente tem péssimas condições, adquire infecções
maiores e vai a óbito. A gente sabe que têm os grupinhos isolados que lucram com isso
aí, então é como se fosse um câncer essas feridas [...]. Então têm esses grupinhos que se
prevalecem dessa situação pra viver melhor, pra tirar os altos lucros, pra assegurar o
padrão de vida deles. [...] quantas clínicas e hospitais que a gente sabe e a história diz,
o SUS ajudou a construir? Quantos planos ajudou a construir? (T3);
Hospitais grandes reclama “ah! o SUS paga pouco”, mas a maioria dos hospitais
daqui, particular, atende gente pelo SUS, entendeu? Tomografia ... o hospital X sai
muita gente daqui pra lá, que dizer, se desse prejuízo [...] por que eles aceitam ... o
próprio hospital Y que é um hospital imenso aí, mas aceita muita gente do SUS. Então
eu acho que a cultura ... eles acham o seguinte: quanto pior melhor! (A16).
A relação do Estado com o setor privado na saúde é histórica, sendo na década de 70 o
maior prestador de serviços de atenção médica. A transferência de recursos públicos para a
iniciativa privada no Brasil serviu como instrumento de capitalização dos empresários do setor
saúde (MENDES, 1993).
Esse fato ainda é uma realidade hoje. Observa-se que no setor público, a atenção básica
vem ficando na responsabilidade do setor público, enquanto que serviços de média e alta
complexidade são desativados no Estado na mesma proporção em que cresce a participação da
iniciativa privada neste nível de atenção, por meio de compra de serviços com recursos do SUS.
Ainda sobre o investimento no setor saúde, G3 fala sobre a insuficiência deste
investimento pelas esferas de governo:
[...] eu não vejo como sem aumentar os recursos para o atendimento médico que pode
ser não só através do aumento da cotação pelo governo federal, Ministério da Saúde,
mas também que haja um aporte também por parte dos prefeitos e do governo estadual.
A questão do financiamento do setor saúde é um problema que permeia os três níveis de
governo. Durante os últimos anos em que vem prevalecendo o ajuste fiscal, a exemplo dos
demais setores públicos, o setor saúde tem sido alvo de inúmeros cortes no orçamento pelo
governo federal com o objetivo de garantir as metas de superávit primário acordadas com o FMI.
Além desta questão, muitos estados e municípios esperam pelos recursos do SUS que vêm do
Ministério da Saúde, utilizando os recursos do tesouro apenas para pagamento de pessoal.
Segundo informações colhidas no setor financeiro do hospital, recursos do SUS a ele
destinados são de cerca 680 mil reais, sendo que, deduzindo o valor da Gratificação de
Produtividade paga aos funcionários, restam cerca de 430 mil para o seu funcionamento.
Em outubro de 2002 o hospital recebeu a autonomia financeira, porém a maior parte das
compras são centralizadas no nível central da SESAP, restando ao hospital a compra de
impressos; contratação de pessoa física ou jurídica, bem como a compra de material elétrico e
hidráulico para manutenção. A entrevistada G4 deixa claro como se dá a relação com os recursos
do hospital:
Nós recebemos há mais ou menos quatro meses da governadora, a autonomia
financeira. O nome autonomia financeira! Só que a gente...é um dinheiro virtual, a
gente não pega nesse dinheiro. É um dinheiro que vem direcionado pra manutenção e
uma quantia mínima pra equipamentos [...] A gente ainda não sentiu o valor ainda [da
autonomia financeira]. Pelo contrário, pra gente piorou, porque agora nós temos o
problema e somos culpados.
Na realidade, como deixou claro G4, a descentralização de recursos financeiros para o
hospital é relativa uma vez que grande parte do processo de compra é ainda centralizada, o que
dificulta a resolução de problemas que poderiam ser resolvidos em nível local. Por outro lado, o
montante de recursos é insuficiente frente às despesas, pois o SUS só repassa o valor referente ao
teto financeiro estabelecido, o que não cobre todos os procedimentos realizados.
A estrutura organizacional do hospital é composta por uma direção geral e os
departamentos de enfermagem; médico; técnico e administrativo/financeiro. Todos os
departamentos são compostos por divisões e seções. Ligados à direção geral encontram-se ainda
a assessoria de recursos humanos e a secretaria. O departamento de enfermagem é composto da
divisão do SAU (Serviço de Atendimento de Urgência); centro cirúrgico e central de
esterilização; e a divisão das enfermarias.
A escolha da direção do hospital é feita por meio de indicação do governador(a), sendo o
atual diretor integrante do quadro de pessoal. A exemplo dos demais departamentos, a escolha
do chefe do departamento de enfermagem é feita pela direção geral. Na definição da atual gestão,
no entanto, ocorreu uma consulta entre os enfermeiros sobre possíveis nomes para o
departamento, tendo sido indicadas três enfermeiras. No entanto, a escolhida não foi a mais
votada. Os auxiliares não participaram deste processo.
Os gestores são do quadro do hospital, ao contrário do que vinha ocorrendo na gestão do
último governador que, por meio de uma empresa privada, terceirizou a gestão de todos os
hospitais estaduais sob seu comando.
Não foi identificada a existência de qualquer instrumento ou espaço que amplie e
democratize a gestão com usuários ou funcionários. Esta ausência ou pouca participação dos
funcionários foi registrada por T3 :
[...].quando o novo diretor assumiu, nós fizemos uma crítica. Num primeiro documento
nós colocamos que ... assim ... que nós estávamos nos sentindo tristes, por quê? Porque
vieram e assumiram e não disseram nem boa noite e nem boa tarde pra gente, pros
funcionários, principalmente pros funcionários de nível médio e nível elementar. Então
eles chegaram e fizeram reuniãozinha entre eles, determinam e pronto, você fica e
só...você fica à mercê, fica já sabendo por terceiros [...]. E eu coloquei no documento, a
gente tem o direito de pelo menos ser ouvido [..].
Pires (1998, p.126) constata a mesma situação em seu estudo sobre a reestruturação
produtiva na saúde
Entre os profissionais de nível superior, da mesma categoria profissional, ocorre um
relacionamento mais democrático, mais horizontal de discussão entre pares, mas a
relação dos profissionais de nível superior, com os de nível médio, ou elementar, é de
subordinação e exclusão do processo de decisão [...].
Fica claro que ainda perdura uma forte hierarquia na administração dos serviços de
saúde, sobretudo nos hospitalares. Esta relação reflete que não há um processo de democratização
da gestão que garanta a participação dos trabalhadores que estão na execução das práticas em
saúde, sobretudo o pessoal de nível médio que, historicamente, é excluído dos espaços de
decisão. Continua a se reproduzir o modo taylorista e fordista com o qual se definiu a divisão
social do trabalho dentro da equipe de saúde, como também da enfermagem.
1.0.0 Política salarial e trabalhista
O hospital dispõe de 1525 funcionários efetivos. Na enfermagem são 672 profissionais,
sendo 74 enfermeiros e 598 auxiliares e técnicos de enfermagem. Apesar do hospital não dispor
de informações precisas, parte dos auxiliares de enfermagem é contratada como auxiliares de
serviços gerais (ASG), isto é, como nível elementar, apesar do processo de qualificação que
ocorreu com estes profissionais por meio de cursos de auxiliares e técnicos de enfermagem.
Todos os funcionários são regidos pela Lei de nº 122 que normatiza o Regime Jurídico
Único (RJU) dos Servidores do Estado e das Autarquias e Fundações Públicas Estaduais. No
conjunto dos servidores do hospital existem alguns que foram considerados efetivos após a
promulgação da Constituição de 1988. Os demais servidores são concursados.
O último concurso para todas as categorias da saúde realizado no Estado foi em 1990,
sendo que em 1996 foi realizado um outro, porém para categorias e vagas limitadas. O concurso é
uma necessidade apontada entre os entrevistados, porém, o gestor G2 faz algumas ponderações:
[...] nós temos muitos servidores municipalizados. Municipalizaram-se os prédios, os
equipamentos e os servidores que lá estão. [Há] Mais em outras esferas de governo: o
governo federal e dentro da esfera estadual, nas repartições alheias à saúde, nós temos
muito. E isso é um problema que traz porque nós temos que provar pra fazer o concurso
que não temos servidores.
A ingerência política é outro problema enfrentado para a manutenção de um contingente
adequado de servidores:
Há um tempo atrás no [hospital] foram chamados o pessoal do concurso. De duzentas
ficaram cinqüenta. Porque veio pedido político pra tirar do [hospital]. Porque no
[hospital] se trabalha muito, ta! Aí vai pedir aos políticos pra sair e sai. (G4).
Tendo em vista que são treze anos sem concurso público para todas as categorias, o
hospital, a exemplo de toda a rede estadual, vem adotando medidas ilegais do ponto de vista
trabalhista para a superação da falta de pessoal, como é o caso da escala extra. Outra
conseqüência da ausência do concurso público é a crescente substituição de servidor público por
força de trabalho terceirizado. R1 fala da relação entre a ausência de concurso e a terceirização.
Então o concurso público não é feito [e] há uma terceirização muito grande. Toda área
de serviços gerais ta terceirizada, é ... até uma parte do setor burocrático. A questão da
ambulância, do SAMU, é terceirizada. É uma grande terceirização do município [de
Natal] e também do Estado.
Os serviços de vigilância e higienização são terceirizados por empresas privadas. A
nutrição e a lavanderia continuam como serviços realizados por funcionários do hospital. No
entanto, há presença de trabalhadores terceirizados da higienização, o que poderá passar a ser
integral futuramente, uma vez que por muito tempo não se faz concurso público para ASG.
Especificamente sobre a terceirização, observa-se que há uma rotatividade das empresas
que se revezam entre um contrato e outro, alterando constantemente a relação entre trabalhador e
patrão. Os salários são abaixo dos pagos pelos servidores estaduais na mesma função. Os direitos
trabalhistas são garantidos. No entanto, não são raros os atrasos dos salários e demissões
imotivadas quando há algum tipo de organização no sentido de reivindicar seus direitos.
A terceirização no setor saúde segue a lógica da reestruturação do setor produtivo, sendo
uma política adotada em vários estados, não só na contratação de pessoal de serviços de apoio,
mas também na contratação de profissionais de saúde através de cooperativas. Ao mesmo tempo
em que horizontaliza a prestação dos serviços, a terceirização atende à lógica da política
neoliberal de desresponsabilizar o Estado de algumas atividades que pela Constituição de 1988,
lhe são atribuições inerentes, como é o caso da prestação de serviço de saúde.
A jornada de trabalho dos funcionários efetivos do hospital é de 40 horas semanais,
sendo exercida em forma de plantão de 6 ou 12 horas, em período diurno ou noturno, o que
perfaz uma jornada efetivamente trabalhada de 144 horas mensais devido ao caráter de serviço
com horas ininterruptas.
Quanto á política salarial, não existe um Plano de Cargos e Salários (PCCS) que
normatize os salários e a carreira dos servidores da saúde, sendo este uma antiga reivindicação do
movimento sindical. A remuneração dos servidores é composta de por vencimentos, ou salário-
base, e as vantagens pecuniárias que são as indenizações, gratificações e adicionais. Com exceção
dos médicos, os níveis superior, médio e elementar, tem salário-base de R$ 240,00, ou seja, um
salário mínimo. Os médicos recebem R$ 296,00 de salário tendo sido quebrada a isonomia entre
os servidores de nível superior em 1995 quando os mesmos conquistaram dez salários mínimos
na remuneração, por ocasião de uma luta específica dos médicos que tinha como principal
instrumento de pressão, a ameaça de demissão coletiva.
A maior parte da remuneração dos servidores é composta de gratificações e adicionais,
quais seja: Gratificação de Desenvolvimento e Saúde (GRADES) existente apenas para
profissionais de nível superior, sendo também diferenciada para os médicos; Gratificação de
Produtividade; Gratificação de Plantão; Gratificação Natalina; Adicional de Insalubridade;
Adicional por Tempo de Serviço (ADTS); Adicional de Serviço Extraordinário; Adicional
Noturno e Adicional de Férias.
Em termos de valor, as gratificações, em alguns casos representam a maior parte da
remuneração. A Gratificação de Plantão pode chegar a representar 80% da remuneração total em
um mês de profissionais de nível superior. O valor desta gratificação também é diferenciada entre
médicos, R$178,80, e demais profissionais de nível superior, R$101,64 (valores de plantão de 12
horas).
Para o nível médio e elementar, o valor da Gratificação de Plantão não é definida por
plantão, e sim, é estipulado um valor único por mês de R$ 149,76 para o nível médio e de R$
99,00 para o nível elementar, independente do número de plantões a serem realizados
mensalmente. Pelo fato de existirem auxiliares e técnicos de enfermagem contratados como ASG,
alguns podem receber o menor valor da Gratificação de plantão.
O último reajuste salarial que atingiu o conjunto dos servidores foi conquistado por uma
greve em março de 1994. Este movimento caracterizou-se pela participação de servidores de
todos os níveis, independente do cargo ocupado. As perdas salariais nos últimos nove anos são de
cerca de 169,90% no índice de IGP da Fundação Getúlio Vargas (DIEESE, 2003). Tem havido
reajustes nos valores da Gratificação de Plantão de acordo com o nível de cada hospital
estabelecido em lei.
Com a municipalização dos serviços de saúde, ocorreu um fracionamento dos servidores
do ponto de vista de política salarial e organização sindical. As lutas não mais são no conjunto
dos servidores estaduais, e vem ocorrendo, do ponto de vista de pressão sobre o governo estadual,
nos hospitais. No entanto, mesmo entre os servidores dos hospitais, as lutas por melhoria salarial,
PCCS e condições de trabalho ocorrem de forma fracionada. O nível superior não participa,
havendo a presença majoritariamente do pessoal de nível médio e elementar.
A terceirização é outro fator de divisão, embora já haja o envolvimento do Sindicato dos
Trabalhadores em Saúde do RN (SINDSAÚDE/RN) com algumas reivindicações do pessoal
terceirizado, no entanto não é conjuntamente com os demais servidores.
Atualmente atuam na base do hospital o Sindicato dos Médicos (SINMED/RN), o
SINDSAÚDE/RN que atuam entre o conjunto dos servidores, o Sindicato dos Odontólogos
(SINDODONTO) e o Sindicato dos Trabalhadores de Empresas de Locação de Mão-de-obra e
Condomínios (SINDCOM), representante legal dos trabalhadores terceirizados.
A fragmentação dos trabalhadores da saúde vem sendo um dos principais problemas no
enfrentamento dos grandes desafios colocados para o movimento sindical.
2.0 O TRABALHO E A REALIDADE VIVIDA
Neste item o trabalho é abordado como categoria geral de análise e a partir dele, as
categorias empíricas que emergiram do processo investigado: buscando saídas e vivenciando o
ser trabalhador em saúde. Na saúde como já foi referido anteriormente, o processo de trabalho é
composto pelo objeto sobre o qual se opera a transformação que é o homem, os meios de trabalho
que são os instrumentos e o conhecimento em saúde e o produto final que é o atendimento das
necessidades humanas individuais ou coletivas. O trabalho em saúde e, conseqüentemente, da
enfermagem está dentro do contexto da sociedade capitalista.
[Nesse contexto da sociedade capitalista] Isso contribui para que o controle do processo
coletivo de trabalho na enfermagem seja expropriado dos trabalhadores parciais
vinculados a esta área, para ser reconstituído pelo capitalista num processo sob seu
controle. Esse modo opressivo de organizar o trabalho conduz à afirmação do poder dos
administradores e capita1listas da saúde sobre os trabalhadores da enfermagem, na
sociedade brasileira, como assalariado, antagonizado e alienado” (ALVES, 2000, p.20).
No trabalho como categoria geral, buscou-se agregar as informações fornecidas pelos
entrevistados que refletissem as condições em que o trabalho é realizado, colocando luz sobre
algumas questões que emanaram das falas e que são partes intrínsecas desse processo: a jornada
de trabalho; a condição salarial; os direitos trabalhistas; a saúde do trabalhador; as condições
materiais para a realização do trabalho e o aspecto subjetivo simbolizado pela auto-estima.
5.2.1 Buscando saídas
As saídas buscadas pelos servidores na tentativa de superação da perda de poder de
compra dos salários vêm sendo, a princípio, a inserção em outros vínculos empregatícios,
constatada nas entrevistas realizadas. No entanto, outras formas se explicitaram na realidade
estudada, objetivadas através da escala extra de trabalho; da sublocação (termo citado pelos
entrevistados) de postos de trabalho e da substituição de colegas na escala de plantão. Qualquer
forma adotada por estes servidores para manter um nível remuneratório maior do que tem no seu
vínculo empregatício com o Estado, invariavelmente, implica em aumento da jornada de trabalho.
Nessa categoria empírica foram agrupadas as informações que revelam como vem se
conformando essas formas de inserção no trabalho; qual o dimensionamento da jornada de
trabalho e qual a motivação para o aumento dessa jornada.
A escala extra foi a forma encontrada pela SESAP para suprir a necessidade de pessoal
sem realizar concurso público. Nela os atuais funcionários do quadro de lotação são convidados a
cumprirem uma outra jornada de trabalho, geralmente de 40 horas semanais, além da já existente.
O valor da escala extra pago aos auxiliares e técnicos de enfermagem é de R$ 234,00.
Este valor é fixado, independentemente do número de plantões realizados em um mês. Para as
enfermeiras o valor é de R$101,00 por plantão, havendo, portanto, uma diferença na forma de
cálculo dessa gratificação entre os dois grupos.
Há uma preferência pela escala extra entre as enfermeiras explicada por elas próprias
que afirmam existir mais vantagem em dobrar a carga horária no próprio local de trabalho do que
se deslocar de um hospital para outro em que o desgaste é ainda maior. Para o auxiliar e o técnico
de enfermagem, segundo referiram, não é mais vantajoso optar pela adoção de escala extra.
A remuneração recebida na escala extra é menor em relação à escala normal, uma vez
que somando salário-base e gratificações, o auxiliar e o técnico de enfermagem recebem em
média R$ 530,00 (valor bruto) e os enfermeiros, aproximadamente R$ 1.550,00 (valor bruto com
base em dez plantões). A escala extra de trabalho é um ato institucional que torna permanente o
serviço de caráter extraordinário, devidamente regulamentado no Regime Jurídico Único (RJU)
dos Servidores do Estado e das Autarquias e Fundações Públicas Estaduais (2001, p.3.10). O Art.
80 do Capítulo II do RJU reza que “O serviço extraordinário é remunerado com acréscimo de
50% (cinqüenta por cento) da hora normal de trabalho” e o Art. 81 que “Somente é permitido
serviço extraordinário para atender a situações excepcionais e temporárias, respeitado o limite
máximo de 2 (duas) horas por jornada” . Este valor da hora extra poderá ser maior se o plantão
for noturno, como está citado no Art. 82:
O serviço noturno, prestado em horário compreendido entre 22 (vinte e duas) horas de
um dia e 05 (cinco) horas do dia seguinte, tem o valor acrescido de 25% (vinte e cinco
por cento), computando-se cada hora como de 52 (cinqüenta e dois) minutos e 30 (trinta)
segundos”. Parágrafo Único: Se prestado o trabalho noturno em caráter extraordinário, o
acréscimo previsto neste artigo incide sobre a remuneração prevista no artigo 80.
Apesar do artigo citado anteriormente, não incide sobre a escala extra o Adicional
Noturno, sendo mais uma ilegalidade evidenciada com a instituição da escala extra.
Essa situação revela um movimento de precarização do trabalho por dentro do emprego
formal no serviço público bancada pelo próprio Estado. Para amoldar-se ao ajuste fiscal, o Estado
retira do trabalhador a possibilidade de se reproduzir dentro de uma jornada de trabalho de 8
horas, conduzindo-o à extensão das horas diárias trabalhadas até 12 ou mais, através de formas
precarizadas. Essas formas de inserção no trabalho sugam as energias dos trabalhadores e lhe dão
em troca menos da metade do que esses teriam direito. Além disto, comprimem o mercado de
trabalho na medida em que não geram novos empregos, contribuindo para o aumento do
desemprego no setor saúde.
A escala extra, entretanto, não é um fato isolado do hospital em estudo, é uma prática em
quase toda rede hospitalar da SESAP. Em algumas situações, a precarização da força de trabalho
no Estado pode se apresentar de uma forma ainda mais intensa, como deixa claro a entrevistada
R2:
Aqui ainda não tem, mas em Mossoró no hospital [da rede estadual] [...], já existe
banco de horas lá [...] não de uma forma oficial, mas pela falta e deficiência de
profissionais, a pessoa vai dando a sua carga horária a mais e o hospital fica devendo
... pra pagar quando der. Então, ou seja, isso é o quê? Exatamente pela questão do
concurso público.
A reestruturação produtiva tem início na indústria, mas como já afirmado anteriormente,
avança para todos os setores da economia, inclusive a saúde, situada no setor de serviços. O
toyotismo como primeira expressão da reestruturação produtiva, estrutura-se a partir de um
número mínimo de trabalhadores, utilizando mecanismos para potencializar a força de trabalho
existente por meio de horas extras, trabalhos temporários ou subcontratações. “O ponto de partida
básico é um número reduzido de trabalhadores e a realização de horas extras” (ANTUNES, 2001,
p.36).
A escala extra como se apresenta na realidade estudada, é um mecanismo
potencializador da força de trabalho, pois através da intensificação da jornada de trabalho utiliza
os trabalhadores já existentes para desenvolver um volume de atividades que necessitariam de um
outro contingente de trabalhadores. O poder público não tem política de reajuste salarial, mas ao
mesmo tempo reconduz os seus trabalhadores para uma dupla jornada oferecendo-lhe um valor
abaixo do que paga em uma escala normal de trabalho, desconhecendo, portanto, as leis que
regulamentam a vida funcional do servidor por ele mesmo criadas.
A busca por mecanismos que possam aumentar a remuneração dos servidores públicos
não parece ser exclusividade do Rio Grande do Norte. Pires (1998) estudando a reestruturação
produtiva e do trabalho em saúde em um hospital público, afirma que 32,5% dos trabalhadores da
enfermagem têm outro emprego e que fazem hora-plantão, o correspondente à hora-extra.
Segundo a autora, a hora-plantão é utilizada para garantir o funcionamento dos serviços do
hospital devido à insuficiência de funcionários. Para os trabalhadores conforma-se em uma
complementação da sua renda.
A sublocação de postos de trabalho ocorre quando, por motivos particulares, algum
funcionário do quadro de pessoal deixa de cumprir sua jornada de trabalho na unidade de saúde e
paga para um colega fazê-lo em seu lugar. Neste caso, a remuneração pode ser integral ou não,
isto é, o sublocatário pode receber integralmente o salário e gratificações ou apenas o valor a ser
negociado entre as partes. No caso dos auxiliares e técnicos, há preferência pela sublocação. O
argumento utilizado pelos mesmos é que, enquanto na escala extra o valor pago é apenas de R$
234,73, na sublocação geralmente a remuneração é integral, isto é, inclui salário e demais
gratificações, podendo chegar a R$ 530,00 (valor bruto).
Os gestores ouvidos a respeito da sublocação deixaram transparecer uma posição
contrária a sua existência e acentuaram o caráter ilegal dessa prática:
Isso ocorre e eu tenho conhecimento. É um grave problema que nós temos [...]. Na
prática são pessoas que não têm vínculo mais com o Estado. Então, algumas há anos
[estão] fora do Estado e do País até [...] e sendo substituída por outras pessoas
que...normalmente na escala nem o nome tá. Isso, até do ponto de vista legal é um
problema grave, né? E se acontece algo é porque o profissional precisa ser
responsabilizado, quem vai se responsabilizar é quem está dando o plantão realmente”
(G2);
É significativa a resistência dos funcionários em perder a sublocação, uma vez que é a
forma mais rentável dentre as que se apresentam para os trabalhadores em questão:
Ao tomar conhecimento disso, chamei a direção do hospital, a direção da divisão de
enfermagem. E pra minha surpresa recebi apelos da própria chefia no sentido de
prorrogar a tomada da decisão alegando motivos financeiros daquelas pessoas que
estavam substituindo (G2).
A sublocação de postos de trabalho é mais uma das deformações consentidas no interior
do Estado que, além da quebra da institucionalidade, não resguarda nenhum amparo legal ou
ético para a sua existência. Se de um lado banaliza a instituição e o emprego público, por outro
traz no seu conteúdo questões de cunho ético para os servidores na sua relação com a coisa
pública e dentro da classe trabalhadora. Na relação entre os trabalhadores envolvidos, ainda há
espaço para a exploração de um pelo outro, como deixa claro A8:
[...] se a colega tiver consciência que eu tô assumindo horário dela, né ... que eu tô [...]
guardando o lugar dela, né ... para uma futura aposentadoria [...] ela pode pegar o
salário dela todinho e me passar, repassa a produtividade e tudo [...] uma escala
normal...dá quatrocentos e pouco, dependendo quatrocentos e cinqüenta [...] mas ela
fica com mais [...]. Eu acho que das pessoas que trabalham aqui...que tem escala extra
[na realidade “sublocação”] ... a que ganha menos sou eu [...] 270 (A8).
A sublocação, no entanto, não é apenas uma responsabilidade do trabalhador, uma vez
que vem se perpetuando ao longo dos vários governos, não só entre auxiliares e técnicos de
enfermagem, mas entre médicos, enfermeiros, entre outros profissionais com o consentimento ou
omissão do Estado. A última informação, no entanto, é que as sublocações tinham sido suspensas
a partir do mês outubro de 2003, por ordem do secretário estadual de saúde.
A substituição de colegas na escala ocorre quando o funcionário do quadro de lotação
que cumpre sua jornada na unidade de saúde, por alguma eventualidade, não pode comparecer no
dia em que está escalado, e paga a algum colega para substituí-lo. O valor pago é por plantão e
varia de acordo com o dia da semana e o turno, como afirma T12:
[...] um plantão noturno até à sexta-feira dá R$ 30,00, um plantão no sábado e domingo
R$ 40,00 [de 12 horas], aí as seis horas R$ 20,00.
A entrevistada E10 confirma a variação do valor do plantão entre os enfermeiros:
A gente recebe 101 [valor do plantão dos enfermeiros], o governo paga 101, a gente
cobra 101 [...] muitas vezes você coloca seu nome lá no quadro que está se oferecendo
pra dar um plantão e não consegue ninguém, às vezes você aumenta o valor pra 150 ou
200 aparece um mercenário pra tirar.
Foi observado que na substituição há pessoas que estão sempre disponíveis para
trabalhar pelos colegas nas escalas, comprometendo, muitas vezes, suas próprias folgas, férias e
seu direito à licença prêmio.
O multiemprego é entendido como a vinculação dos trabalhadores em dois ou mais
vínculos de trabalho. Dentre as formas de inserção no trabalho estudadas, essa é a menos citada
pelos entrevistados, ocorrendo mais entre os auxiliares e técnicos de enfermagem. A inserção dos
trabalhadores identificados no multiemprego foi por meio do vínculo público-público, público-
privado ou ainda público-público-privado. As instituições citadas pelos entrevistados que têm
multiemprego foram: a SESAP, a Secretaria Municipal de Saúde de Natal/RN, Secretaria
Municipal de Saúde de Bom Jesus/RN, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU),
e hospitais da rede privada. Comparando com as demais formas de vinculação estudadas, o
multiemprego é a que não ficou explicitada a precarização das relações trabalhistas, uma vez que
a vinculação dos trabalhadores se dá por meio do emprego formal, regulamentado no público
pelo RJU ou no privado pela CLT.
Olhando o vínculo de trabalho pelo lado da SESAP, o presente estudo revela relações
precárias de trabalho mediadas pelo emprego formal. Em relação à Secretaria Municipal de
Saúde de Natal, Medeiros (2000) demonstra que há duas formas de vínculos formais de trabalho:
os servidores advindos da SESAP, incorporados por meio da municipalização, e os próprios
servidores municipais. A autora identifica ainda modalidades de precarização nas relações de
trabalho por meio de contratação através do serviço prestado ou ainda por meio de cargos
comissionados, o chamado médico do posto.
A implantação do SAMU em Natal foi marcada também por relações de trabalho
flexibilizadas e a utilização de hora extra para reduzir o contingente de trabalhadores. A jornada
de trabalho de auxiliares e técnicos de enfermagem permanece de 180 horas mensais,
ultrapassando as 144 horas estabelecidas pela Constituição Federal para serviço de atividades
ininterruptas. O estudo mostra que
[...] vinte postos de trabalho foram subtraídos com o estabelecimento dos quinze
plantões e a não existência dos 20% [de reserva para cobrir licença-médica, férias, entre
outros], o que significa, na prática, economia financeira para a empresa empregadora às
custas da intensificação da jornada de trabalho (VERAS; MEDEIROS, 2002, p.12).
A situação da força de trabalho na rede privada de serviços de saúde em Natal, no
contexto da atual reestruturação produtiva, é uma discussão que necessita ainda ser investigada
com mais profundidade, e se constituir, possivelmente, como objeto de futuros estudos das
autoras supracitadas.
Como já foram referidas anteriormente, todas essas saídas buscadas para o aumento da
remuneração pelos servidores em questão têm, em comum, o fato de que implicam objetivamente
em aumento de suas jornadas de trabalho. Entre os enfermeiros a carga horária dedicada ao
trabalho identificada variou de 288 horas mensais a 312, e, às vezes mais. É o caso de E5 que ao
ser questionada sobre o tempo de permanência contínuo no hospital, responde:
Mais ou menos 18 horas, só que tinha vezes que ultrapassava pra 36, até 48 horas ... 60
horas eu já fiquei aqui, e tem colegas que continuam ainda nesse ritmo.
A entrevistada E10 afirmou já ter permanecido 72 horas ininterruptas no hospital entre
escala normal, escala extra e substituições.
Entre os auxiliares e técnicos de enfermagem a jornada de trabalho variou entre 204 e
404 horas mensais, sendo que algumas entrevistadas que faziam substituição não puderam
mensurar sua jornada, uma vez que não tinham controle do número de horas trabalhadas, como
afirma T17:
[...] eu dou horário que aparece [...] às vezes eu tiro até 18 plantões noturno. Tem dia
que eu passo dois dias sem ir em casa.
Através da observação no campo de pesquisa foi verificada uma verdadeira adaptação de
algumas instalações do hospital e do modo de vida do pessoal da enfermagem, sobretudo do nível
médio. Em um dos repousos foi instalada uma cozinha na qual a entrevistada A8 afirma ter sido
montada para permitir uma melhor alimentação para os trabalhadores entrevistados. Esta questão
é também confirmada na fala de R1 que afirma que os auxiliares do hospital são conhecidos pelas
suas grandes sacolas e que lá contém tudo que precisam para ficar vários dias fora de casa.
Ao serem questionados sobre os motivos que levaram à procura de outras formas de
vinculação com o trabalho, todas os entrevistados se referiram à ausência de reposição salarial e
conseqüente perdas do poder aquisitivo. No entanto, identifica-se nas falas dos grupos E e AT
diferença significativa. É sentido que os auxiliares e técnicos se reportaram mais ao atendimento
de necessidades de primeira ordem como alimentação, moradia, manutenção dos filhos na escola,
entre outras. Entre as enfermeiras, a referência maior foi quanto à manutenção dos filhos na
escola privada, inclusive universidade, plano de saúde, entre outros. Neste grupo ainda é citada a
necessidade de profissionais no hospital como motivação inicial para a inserção na escala extra
de trabalho:
A hora extra no início foi necessidade do hospital. Ampliação do pronto socorro, a
gente teve que ajudar o hospital na organização, então a gente entrou com a
necessidade do hospital [...]. E agora eu quero sair e já não posso porque faz parte do
meu orçamento [...]. Então agora ela ta sendo por necessidade minha (E2).
A crescente demanda do hospital, historicamente reprimida é pressionada pelas questões
sociais acima colocadas, forçando o governo estadual a ampliar a unidade com a construção de
um pronto-socorro anexo. A necessidade de pessoal para o pronto-socorro anexo ao hospital é o
marco inicial para a instalação da escala extra, na medida em que não havia trabalhadores
disponíveis selecionados em concurso público. Esta situação vem se coadunar com a dos
servidores há muito sem reajuste salarial que, mesmo se sacrificando com uma jornada maior de
trabalho, acomodam-se a essa saída disponível, conformando-se uma cumplicidade entre
instituição e trabalhadores.
A implementação do modelo neoliberal materializa-se no setor público com retração dos
salários dos servidores públicos, com a falta de criação de novos postos de trabalho
oportunizados, pelo corte de recursos públicos, entre outros (BRAGA, 2000). No entanto, as
conseqüências não se restringem apenas ao setor público, como deixa claro Laurell (2002, p.151):
A queda vertiginosa dos salários e o crescente aumento do sub e do desemprego na
América Latina da última década leva ao reconhecimento unânime de que houve nesses
anos um retrocesso social dramático; o problema revela-se no empobrecimento
generalizado da população trabalhadora e na incorporação de novos grupos sociais à
condição de pobreza ou extrema pobreza.
O debate sobre a jornada de trabalho no contexto discutido é uma questão central. A
definição de Marx para jornada de trabalho (1982), já citada neste estudo, corresponde ao tempo
necessário para a força de trabalho se reproduzir somado ao tempo excedente de trabalho não
pago, produtor de mais valia. Alves (2000) afirma que em relação aos trabalhadores da
enfermagem, assim como todo produtor de serviços, o tempo de trabalho é totalmente pago, pois
não há geração de mais valia, ao contrário do setor produtivo.
Alves (2000, p.24) levanta um questionamento importante que serve ao debate feito
neste estudo: por quanto tempo é permitido o empregador consumir a força de trabalho da
enfermagem? A própria autora responde, recorrendo a Marx: “O limite máximo da jornada de
trabalho é determinado pelos limites físicos, sociais e históricos da força de trabalho. Estes
limites são de natureza elástica e diretamente proporcionais à força dos trabalhadores”. Neste
sentido, é oportuno levantar outro questionamento: quanto vale a força de trabalho da
enfermagem dentro de uma jornada de trabalho 80, 100 ou 120 horas semanais? Marx (1982,
p.622) desvenda o que chama de mistificação do salário:
Sendo o valor do trabalho apenas uma expressão irracional que se dá ao valor da força
de trabalho, daí resulta necessariamente que o valor do trabalho tem que ser sempre
menor que o valor que produz, pois o capitalista põe a força de trabalho a funcionar por
tempo mais longo que o necessário à reprodução do seu próprio valor [...]. A forma
salário apaga, portanto, todo vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho
necessário e trabalho excedente, em trabalho pago e trabalho não pago.
Como o próprio Marx (1982) afirma, a definição do valor da força de trabalho é uma
irracionalidade. Em se tratando do trabalho em saúde, esta falta de razão vai a limites infinitos.
Alves (2000) afirma que a determinação salarial é estabelecida a depender da disputa entre
patrões e empregados, conseqüentemente, o poder de pressão dos trabalhadores é decisivo nesta
determinação. A realidade vivida pelos trabalhadores da enfermagem no atual contexto das
políticas neoliberais e da reestruturação produtiva revela o grau de desvalorização da sua força de
trabalho, na medida em que para se reproduzirem, necessitam ampliar sua jornada de trabalho, o
que Alves (2000) vê como uma forma de redução de salário.
Essa análise leva a concluir que com a ampliação da jornada de trabalho, o aumento da
remuneração não se traduz em aumento do valor da força de trabalho, pelo contrário, significa a
sua desvalorização. Neste sentido, é oportuno dizer que os trabalhadores da enfermagem na busca
por saídas individuais para resolver o crescente empobrecimento imposto, se fragilizam enquanto
categoria organizada e enquanto classe.
1.0.0 Vivenciando o ser trabalhador em saúde
Nesta categoria empírica, procurou-se congregar as informações que abordam a
condição do servidor público no que se refere a direitos trabalhistas, condições de trabalho, saúde
do trabalhador e auto-estima. No setor privado, os entrevistados dos grupos E e AT, os que têm
multiemprego, afirmam que os direitos trabalhistas são garantidos, no entanto, eles ponderam:
[...] na iniciativa privada eles molda como querem [...]. Se acontecer alguma eles vão
dizer: ... só posso dar suas férias tal dia [...]. Aí eu tenho que engolir [...]. Porque já
vem seu nome na escala (A2).
No setor público, os entrevistados fazem uma distinção entre os direitos na escala
normal de plantão e na escala extra. Na escala normal há reconhecimento da existência dos
direitos trabalhistas, no entanto, alguns também ponderaram que
[...] no público a gente não percebe estes direitos. Na realidade um direito que eu
coloco entre aspas que tem é segurança [...] você não é cobrado, tão explorado de certa
forma (T3).
A licença-prêmio, que é o direito do servidor se afastar do trabalho por três meses a
cada qüinqüênio, na realidade não está sendo garantida, pois não há pessoas para substituir quem
se afasta e a direção vem fazendo uma espécie de calendário, priorizando os que têm mais tempo
de serviço. A gestor G4 se refere à licença-prêmio:
Eu precisaria ter 100 funcionários a mais [...] pra suprir as necessidades mínimas [...]
pra dar licença-prêmio aos funcionários que têm direito. Porque eles têm direito e eu
não posso dar.
Na escala extra é unânime a referência à completa falta de direitos trabalhistas. Os que
estão na escala de plantão extra não podem gozar férias e nem é permitido colocar atestado
médico. A falta no plantão significa a saída da escala extra. No que tange às férias, os
entrevistados afirmam que desde que a escala extra iniciou, a aproximadamente de três anos, não
gozam férias integrais, isto é, apenas entram de férias da sua escala normal, mas trabalham na
extra. Para conseguirem férias integrais, as alternativas são pagar para alguém trabalhar no seu
lugar ou intensificar a jornada de trabalho cumprindo os plantões previamente e negociando
trocas com as colegas.
Destacou-se a ausência de direitos trabalhistas na escala extra por ser esta parte de uma
política institucional e que, portanto, existe uma implicação direta do gestor sobre esses
trabalhadores e sobre o tipo de relação de trabalho que se estabelece. O mesmo ocorre na
sublocação, embora esta ocorra não com a intervenção direta do Estado, mas com sua conivência
ou omissão. Essa posição faz do Estado também responsável por esses trabalhadores na medida
em que estão trabalhando no hospital no momento em que deveriam estar de folga e a instituição
remunera alguém que no efetivamente não existe na instituição de saúde.
No que diz respeito à licença-médica, os entrevistados declararam que ou vão trabalhar
doente ou pagam para outro assumir o seu plantão. Entre algumas enfermeiras foi colocada a
flexibilidade da chefia de enfermagem atual em deixar que a ausência no plantão possa ser
compensada posteriormente, o que não ocorria na gestão anterior. Porém, a regra estabelecida
pela SESAP é não aceitar atestado médico, como fica claro na fala da entrevistada E4 marcada
por um traço de ironia e angústia:
Escala extra a gente não tem direito a nada, não tem direito à férias, não tem direito a
atestado médico. A gente só tem direito a colocar atestado de óbito na escala extra [...]
direito de colocar um atestado médico quando você tá doente, isso é um direito ou uma
necessidade?
Ao ser indagado sobre os direitos trabalhistas dos servidores públicos, o gestor G2
responde:
[...] eu acho que do ponto de vista dos direitos trabalhistas [...] tanto o trabalhador do
setor privado quanto do setor público, eles estão bem aquinhoados em termos de
direitos. Agora, com baixos salários não adianta nada você ter direitos.
Questionando o gestor citado anteriormente, sobre o fato da SESAP não acatar a licença
médica e não permitir férias na escala extra, ele responde:
Isso aí eu tô sabendo agora que não tem todos os direitos. Eu julgava que tivesse todos
os direitos [...] mas isso aí é uma deturpação da escala extra.
Ouvindo R1 sobre o mesmo tema, ela afirma que
A pessoa não pode botar atestado, não pode sair pra um congresso, não pode adoecer,
não pode, não pode fazer nada! Porque eles dizem logo que faltou uma vez é sumário!
Você pode tá doente, pode tá pra morrer. Eles tiram e como as pessoas precisam dessa
escala extra, se sujeitam a trabalhar doente. Até me contaram um episódio muito
engraçado e ao mesmo tempo trágico, que era uma auxiliar de enfermagem [no
hospital] na escala extra deitada numa maca tomando soro, que ela não podia faltar
porque era escala extra, então ela ficou lá como se estivesse trabalhando deitada na
maca, ao mesmo tempo trabalhando e ao mesmo tempo sendo paciente.
A situação descrita pelos entrevistados sobre a ausência de direitos trabalhistas na escala
extra indica pelo menos duas incongruências da Secretaria de Saúde Pública. Uma se refere ao
fato de afirmar e negar ao mesmo tempo direitos para o mesmo trabalhador, isto é, se pela manhã
ele está doente e apresenta um atestado médico, à tarde esse direito lhe é negado e ele terá que
trabalhar no horário da tarde mesmo doente. Isso é confirmado por T1 e T17:
Por último eu fui mordida por um gato e fiquei de atestado na minha escala normal, mas
na escala que eu tiro dos colegas, tive que trabalhar doente. Eu acho isso errado.
Como na escala extra [...] se a pessoa ... tem que vim. Tem que vir doente. Eu já
fraturei o dedo e tive que vim todos os dias [...] mesmo doente ... foi ... porque eu não
podia faltar a escala da menina. Pra faltar a escala da menina não tinha lógica porque
[...] eu ia ficar o dia e à noite trabalhando mesmo.
A outra incongruência é uma instituição que tem por missão assistir e zelar pela saúde de
qualquer pessoa, nega ao seu trabalhador o direito de se tratar e recuperar ao ser acometido de
algum agravo à saúde, inclusive podendo esse agravo ser fruto do próprio ambiente de trabalho.
Alguns estudos indicam que os trabalhadores de enfermagem estão expostos a uma série
de riscos no seu cotidiano de vida e trabalho (AVERDAÑO, GRAU, YUS, 2000). Procurando
identificar alguma relação entre jornada de trabalho e saúde, alguns entrevistados se disseram
saudáveis apesar do cotidiano de trabalho. Outros se referiram a algumas doenças e
sintomatologias específicas. Entre estas foram citadas hérnia de disco, bursite, tendinite,
lombalgias e dores nas pernas, atribuídas à natureza do trabalho da enfermagem e às precárias
condições oferecidas para o desenvolvimento do trabalho, como por exemplo, a escassez de
maqueiros que obriga o pessoal da enfermagem estar constantemente removendo pacientes para
leitos e macas. O aumento da jornada é reconhecido como um fator potencializador destes
agravos como afirma (E2):
[...] eu sempre tive lombalgia adquirida no [...] setor de queimados e no pronto socorro
também porque, muitas vezes, a gente entra numa urgência e corre com o paciente pra
maca, de uma maca pra outra e a gente termina fazendo esforço físico muitas vezes de
forma errada e devido a isso eu depois entrei na jornada dupla [...] fiz uma sobrecarga
de trabalho e desenvolvi hérnia de disco, terminei indo pra cirurgia [...].
Picagula (1983, p.26) confirma esta declaração quando afirma que
Quanto menor o salário mais o trabalhador se verá forçado a prolongar sua jornada de
trabalho para aumentar seus rendimentos e atender suas necessidades básicas [...].
Quanto maior a jornada de trabalho maior será o seu desgaste físico e mental.
Outros agravos referidos pelos entrevistados foram hipertensão, aumento de colesterol e
triglicérides, enxaquecas, hipertireoidismo, colelitíase, nefrolitíase e colite. As causas
identificadas pelas entrevistadas e que dizem respeito ao trabalho, foram o estresse, falta de
tempo para tomar água, a falta de horários definidos para as refeições e a qualidade da
alimentação. A depressão também é citada nos dois grupos, como confirma E9 e A8:
[...] às vezes me dá muita depressão quando eu sei que vou dar muitas horas [...], mas
eu tô tão habituada que eu nem sei ficar em casa final de semana [...] um dia que eu
tiro, eu fico sem saber o que fazer.
[...] agora eu tô com problema de depressão, acho que devido a situação, assim dentro
do hospital, não saio pra canto nenhum, você só me vê de branco na rua, eu não compro
uma roupa porque não dá.
É significativa a fala de E5 quando diz que
[...] o trabalhador tá indo pro paciente quase igual a ele, quase na mesma condição do
paciente.
Para corroborar essa afirmação nos registros de campo pôde-se observar A8 vestida de
branco e tomando soro no repouso dos auxiliares para recuperar-se de uma enxaqueca. A fala do
gestor G4 também corrobora as informações do pessoal da enfermagem :
Meu índice de, de ... vamos botar um ponto simples: enxaqueca, de cefaléia, de
irritação, de descontrole emocional, de hipertensão é alta. Lesões, a LER é uma coisa
freqüente. Lesões por esforço repetitivo, freqüente você ter isso. Coluna, distensão,
tendinite, tudo isso leva ... eu vivo isso na pele. O índice de atestado é alto, é alto.
Segundo Giannasi (1997), os impactos das transformações do mundo do trabalho são
sentidos, principalmente, pela mudança do perfil de morbidade dos trabalhadores: por um lado,
mantêm-se ainda, nos setores produtivos tradicionais, os casos de silicose, acidentes fatais,
amputações de membros superiores; por outro lado, encontra-se hoje, um crescimento abrupto
dos casos de LER-DORT (lesões por esforço repetitivo – doenças osteomusculares relacionadas
ao trabalho), como as tenossinovites, tendinites, bursites, entre outras.
Outro aspecto atual desta mesma realidade é a exposição a riscos e agravos à saúde,
muitas vezes conscientes, porém optados não por escolha e/ou negligência com a saúde
simplesmente, mas por um imperativo de sobrevivência econômica:
[...] o raio x você não pode ter mais de vinte e seis horas semanais. É a lei tá? Você tem
que ter 26 horas semanais, 96 por mês, [...] Mas se você fornece a ele uma escala extra,
ele se submete, tá certo? Mesmo sabendo que se expõe (G4).
Alves (2000) discorre sobre a fadiga como um dos efeitos mais comuns das condições
de trabalho entre as trabalhadoras de enfermagem. A autora afirma que:
A intensidade exigida para o trabalho e que corresponde ao grau em que consomem
energias físicas e mentais por unidade de tempo, ao lado do ritmo, que corresponde à
velocidade em que o trabalhador realiza uma operação e começa outra, se utilizados com
freqüências elevadas, induzem ao cansaço; distúrbios psicológicos se transformam em
orgânicos, em doenças. Inicialmente, aparecem distúrbios da memória e da atenção que
predispõem o trabalhador ao acidente. Surgem os distúrbios de humor, irritabilidade,
ritmo do sono, seguidos de distúrbios somáticos, tipo cefaléia, taquicardia, pirose
gástrica e distúrbios tipo colítico. Por necessidade de manter a intensidade do ritmo do
trabalho, surge a ansiedade que tem caracterizado a condição de trabalho de um número
de cada vez maior de trabalhadores. Além disso, ressaltamos os esforços físicos e as
posições incômodas e repetidas que determinam efeitos sobre as articulações e a
musculatura e, consequentemente, a fadiga. Como conseqüência cai o rendimento do
trabalho e aumenta o absenteísmo, as doenças gerais, os acidentes no trabalho e a
renovação da mão-de-obra. Tudo isso é retomado com um ulterior aumento da fadiga.
Assim, caso a condição de trabalho não seja modificada, a cessação do estado de bem-
estar transforma-se em doença e aparecem distúrbios neuróticos, úlceras
gastroduodenais, colite crônica e/ou outros.
A intenção desse estudo não é aprofundar a discussão a respeito da saúde do trabalhador,
mas é simbólica a relação entre as doenças citadas pelos entrevistados às condições de trabalho
da enfermagem. Considera-se, no entanto, que é importante assinalar no presente estudo essa
relação causal, embora que brevemente, sendo necessário, no entanto, estudos específicos a
respeito do tema para que possa averiguar o nexo causal entre condições de vida e trabalho e o
quadro nosológico que caracteriza esses trabalhadores.
Alves (2000, p.21) constrói o conceito de condições a partir de Marx quando afirma que
estas “[...] representam todas aquelas condições materiais que concorrem para o desenvolvimento
do processo de trabalho, as quais não se identificam diretamente com o referido processo, mas
sem as quais este não poderia ser executado, ou seria de modo imperfeito”. Este conceito é
transversal neste estudo, no entanto, em virtude do que foi enfatizado nas falas dos entrevistados,
serão destacados neste momento, os aspectos relacionados aos objetos, instrumentos e ambiente
de trabalho. A falta de insumos básicos, de manutenção de equipamentos e das instalações, é uma
constante nas falas:
[...] há três anos atrás eu tomava conta de cinco, quatro paciente. Hoje eu tomo conta
de nove, oito [...] (A16);
Você vê um velhinho [...] precisando de um leito, não tem [...]. Fica internado numa
cadeira . Isso dói, dói (A2);
Hoje mesmo eu tenho quatro pacientes internados numa cadeira: uma mulher cirrótica,
ictérica, abdome ascítico. Fez uma paracentese e voltou pra cadeira (E4).
É interessante destacar a alusão que a entrevistada T12 faz do corredor do hospital com
uma avenida:
[...] corredor não é lugar de paciente, eles têm que se adaptar à maca, à claridade, à
passagem porque é como uma avenida, [...] todo mundo passa, todo mundo comenta e o
paciente tá ali deitado, mas é uma avenida [...] corredor é lugar de transeuntes e não de
paciente [...].
A gente trabalha praticamente sem recurso. Aqui na UTI, geralmente falta equipo de
bomba de infusão, falta medicação vasoativa [...]. Paciente chocado e...medicações que
é feito em microgotas que era pra ser feita em bomba de infusão [...] (T13).
Ao indagar sobre a avaliação que faziam do serviço público de saúde, G2 responde:
O nosso hospital trabalha com duas realidades: o paciente, ele é atendido aqui e se ele
precisar fazer um cateterismo cardíaco ele é encaminhado no mesmo dia para uma
clínica privada [...]. Ao mesmo tempo, um paciente hipertenso não tem vaga na clínica
médica e nós não temos pra onde mandar (G2);
A deficiência da rede assistencial foi retratada por Vasconcelos (1997) em estudo sobre
a reforma sanitária no Rio Grande do Norte. O autor caracteriza a rede pela pouca resolutividade
e baixa qualidade, bem como pela descontinuidade da assistência devido a fatores como escassez
de pessoal, falta de conservação e manutenção de instalações físicas e equipamentos, falta de
insumos básicos e equipamentos.
Pelo que se observa, na verdade há uma continuação de uma realidade constatada, mas
que se aprofunda na medida em que crescem as demandas sociais pressionadas pela exclusão
social. Estas circunstâncias têm grandes repercussões na vida dos trabalhadores que necessitam
da assistência, mas também na daqueles que desenvolvem o trabalho em saúde.
A exposição a longas jornadas de trabalho, a precarização das relações de trabalho, a
desvalorização salarial, a grave deficiência nas condições de trabalho, desencadeiam, além de
processos físicos e emocionais, sentimentos que revelam trabalhadores com a auto-estima em
queda. Essa relação de aviltamento à sobrevivência humana é patente e se encaminha para o
entorpecimento da sua dimensão humana, depressão, alienação, entre outros.
Questionados sobre como avaliavam a situação do servidor público nos últimos dez
anos, os trabalhadores entrevistados respondeu de forma negativa:
[...] decadente, numa situação de estresse, de desvalorização [...] você não tem direito a
nada. Você é desvalorizado [...] profissionalmente, financeiramente, moralmente [...] você
não tem valor pro governo, nem pra tua clientela (E4);
[...] eu vejo que há cinco , seis anos atrás eu trabalhava é ... uma escala [...] de 144
horas e que meu dinheiro dava, só que agora, apesar de serem duas escalas, uma
jornada dobrada e que é...esse dinheiro a gente tem que se desdobrar pra poder dar
[...], então eu vejo como se a qualidade de vida da gente tivesse diminuído (E8).;
A auto-estima desse funcionário é muito baixa, muito baixa mesmo [...] eu vejo lá
minhas colegas que vivendo do que ganha no serviço público [...] realmente é de ter
uma baixa estima, de ficar desestimulado. Como é que você pode [...] exigir dela se nem
sequer ... se ela sai de casa deixando comprometido a saúde do seu filho [...] a
segurança do seu filho! Como tem colega que deixa duas crianças sozinhas em casa
porque não tem com quem deixar, não tem como pagar uma pessoa [...] (T3).
Dejours (2001, p.34) atribui ao não reconhecimento do trabalhador o sentido do
sofrimento no trabalho.
Há os indolentes e os desonestos, mas em sua maioria, os que trabalham se esforçam por
fazer o melhor, pondo nisso sua energia, paixão e investimento pessoal. É justo que essa
contribuição seja reconhecida. Quando ela não é, quando passa despercebida em meio à
indiferença geral ou é negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento que é muito
perigoso para a saúde mental.
A falta de reconhecimento dos trabalhadores em relação aos trabalhadores em discussão
pode ser constatada nos vários ângulos em que se processa o trabalho. A baixa remuneração; a
pressão das demandas sociais que eclodem nas instituições de saúde; a dificuldade em prestar um
serviço de boa qualidade; a própria posição que a enfermagem ocupa na divisão social do
trabalho na saúde, traduzem-se de forma subjetiva a falta de reconhecimento e a baixa autoestima
destes trabalhadores.
Dejours (2001) afirma que o sofrimento produzido pela falta de reconhecimento, leva a
mais sofrimento, tornando-se um ciclo vicioso e desestruturante com condições de desestabilizar
a identidade e a personalidade e de levar à doença mental.
3.0 VIVENDO O COTIDIANO
Neste item é abordado a categoria de análise cotidiano e seus desdobramentos, isto é, a
formulação das categorias empíricas, a saber: cotidiano vivido/cotidiano roubado; ter e ser:
dilemas da vida cotidiana e refazendo o caminho.
Partindo da afirmação que o cotidiano é a dimensão da vida em que o homem se
apresenta por inteiro, tomou-se essa categoria como instrumento para melhor entender o ser
trabalhador da enfermagem em estudo. Foi da objetivação do trabalho que se partiu para entender
as outras esferas da vida desse trabalhador. Assim, este ser trabalhador é visto na sua relação
com a esfera do trabalho, no espaço doméstico e familiar, na sua particularidade e na sua relação
com a classe a qual pertence.
5.3.1 Cotidiano vivido no trabalho/cotidiano roubado
Com a categoria cotidiano, buscou-se agrupar as informações dos entrevistados que
retratam o cotidiano dos trabalhadores da enfermagem, a partir das condições em que o trabalho
vem se processando e a sua repercussão para as outras esferas da vida desses trabalhadores.
Heller (1991) afirma que em função da centralidade do trabalho na vida cotidiana, o tempo é
definido a partir deste, estando as demais atividades na dependência do tempo do trabalho. Neste
sentido, tempo de trabalho e tempo livre são transversais para o conhecimento da cotidianidade
dos trabalhadores em estudo.
Ao serem solicitados para descrever o seu cotidiano, os entrevistados fizeram uma
relação direta ou indireta ao trabalho:
Meu dia-a-dia é aqui dentro desse hospital, lazer não tem. Porque eu tirando duas
escalas eu pego quase todos os finais de semana ... assim das colegas também. Elas
pagam e eu tiro [plantão] (E10);
Aqui, eu vivo mais aqui. Hoje eu vou pra casa à tarde, amanhã eu já tô voltando.
Amanhã eu já estou à tarde de novo. Eu vivo mais aqui do que em minha casa (T17);
É muito difícil. Minha rotina quando eu estou [no hospital] que é do Estado, eu
trabalho de manhã e à tarde eu faço cursinho, à noite o curso técnico. Então eu só
chego em casa lá pras dez horas. Quando eu trabalho no SAMU [...], eu só chego em
casa dezenove horas (A12);
Fica claro em algumas falas que o tempo dedicado para o trabalho vem sendo bem maior
do que para outras atividades da vida cotidiana. A busca pelo aumento da remuneração no sentido
de compensar a defasagem salarial vem fazendo com que alguns trabalhadores da enfermagem
praticamente morem no hospital. Esta realidade caminha na contramão da luta pela redução da
jornada de trabalho como forma de viver o tempo livre, aumentar a oferta de postos de trabalho e
como contraposição à extração do sobretrabalho. Antunes (2001) afirma que a redução da jornada
de trabalho é uma questão básica para uma vida emancipada, isto é, livre.
Neste sentido, é sugestiva a fala de T12 quando indagada sobre o tempo livre de que
dispõe:
A gente faz uma troca de serviço [no final de semana para poder sair com a família]. É
uma troca compreensiva que a gente faz, enquanto isso, muitas vezes a gente paga o
serviço [para outro colega] e é uma taxa elevada [...]. É um grande sacrifício, mas pra
quem quer a liberdade...as gente prefere comprar a nossa liberdade.
A compra da liberdade aludida está relacionada com a possibilidade de viver o tempo em
outra dimensão que não a do trabalho, e nesta outra esfera estão a relação consigo mesmo e as
relações interpessoais. Esta é uma demonstração clara da transversalidade do trabalho nas várias
esferas da vida pela forma como este trabalho vem se organizando. Por outro lado, quem precisa
comprar a liberdade é porque, de certo modo, está preso ou é escravo deste trabalho. Há também
outro aspecto a considerar que consiste no sentimento de opressão advindo das condições de
trabalho.
O desenvolvimento do trabalho da enfermagem nas condições já explicitadas, é marcado,
além do tempo, por um compasso de ritmo acelerado. A execução de tarefas no ambiente de
trabalho é, na maioria das vezes, de forma corrida, uma vez que o hospital é superlotado e a falta
de pessoal sobrecarrega os profissionais. Desta forma, questões como estresse, mau humor,
irritação nervosa, agressividade, cansaço, são referidas pela maioria das entrevistadas,
abrangendo os dois grupos, como fica claro na fala de E4 e T3:
[...] a gente não deixa de ficar estressada, nervosa, de repente a gente perde a
sensibilidade. Ás vezes a gente se pega gritando no corredor, falando alto, quando isso
não é...faz parte do nosso ser [...].
Hoje eu me vejo que ... fazendo as coisas muito rápido, falando muito [...] então isso é
conseqüência de um estresse [...] vem dessa carga horária exagerada.
Neste sentido, a redução da jornada de trabalho por si só não alteraria o tempo de
trabalho, uma vez que as condições oferecidas impõem um ritmo célere para a execução das
atividades. Antunes (2001) alerta que a redução da jornada de trabalho não se traduz
necessariamente em redução do tempo de trabalho. Bernardo (apud ANTUNES, 2001, p.175)
afirma que
Um trabalho contemporâneo cuja atividade seja altamente complexa e que cumpre um
horário de sete horas por dia, trabalha muito mais tempo real do que alguém de outra
época, que estivesse sujeito a um horário de quatorze horas diárias, mas cujo trabalho
tinha um baixo grau de complexidade.
Antunes (2001) conclui dizendo que a luta pela redução da jornada de trabalho envolve
também a luta pela redução do tempo opressivo de trabalho. Obviamente, esta citação refere-se
ao trabalho fabril, no entanto, a transposição para a realidade estudada é perfeitamente
compatível, uma vez que as condições de trabalho ofertadas para o desenvolvimento do trabalho
da enfermagem vêm levando à intensificação do ritmo de trabalho e, conseqüentemente,
aumentando o tempo opressivo de trabalho.
Essa opressão tem repercussão na realização de outras atividades heterogêneas
(HELLER, 1991) da vida cotidiana, como tomar água, alimentar-se, ir ao banheiro, entre outras:
Chega aqui vai trabalhar no pronto socorro que, às vezes, quando dá pra gente lanchar
de dez horas a gente vem, quando não dá ... já é meio dia, agora que eu tô tomando café
com biscoito, um café puro com biscoito [...] daqui a pouco de uma hora passo o
plantão pra minha colega [...], depois [...] dou aula pros alunos do PROFAE [...] tenho
cálculo renal, de não tomar líquido [...] de não ter tempo de tomar líquido, aí essas
coisas a gente vai se expondo quando a gente trabalha demais não tem tempo pra
cuidar da gente (E4).
Na homogeneização da vida cotidiana em torno do trabalho (HELLER, 1991), o tempo e
o ritmo deixam de definir apenas o espaço do trabalho para repercutir na particularidade do
trabalhador, inclusive no seu corpo e na sua saúde.
Para outros entrevistados, no entanto, o cotidiano de trabalho é descrito também como
algo prazeroso e como um espaço para desenvolvimento dos afetos. É principalmente entre os
auxiliares e técnicos que se percebe uma maior relação de carinho, solidariedade e afeto no
desenvolvimento da prática da enfermagem:
Meu dia-a-dia é ... bem é aqui [...] cuidado dos doentes, brincando com eles, dando
carinho a eles, dando amor ... sabe ... o que eu não recebo de carinho ... às vezes eu
recebo carinho dos meus filhos, quando eu chego...e eu procuro levar isso para os
pacientes Eu amo, sabe ... eu acho que nasci pra ser auxiliar de enfermagem, pra cuidar
de doente ... porque por mais que eu esteja doente e, hoje eu tô com depressão! Eu tô
hoje doente, mas se você for lá no vôzinho, sabe ... do leito 1, eu já fui lá, já brinquei
com ele, sabe ... já beijei uma doente [...] e ela ficou feliz [...] aí eu acho que eu
melhoro, eu estando aqui melhoro da minha situação, da minha depressão [...](A8).
O cotidiano é aquela luta, mas é gostoso porque eu faço por amor. Amo minha
profissão. Fico um pouco cansadinho, mas eu relaxo e no outro dia já estou preparado
pra entrar em campo [...] o dia-a-dia...a jornada de trabalho ... o que eu faço é por
amor. Foi Deus quem me deu esse dom e cada dia que eu venho aqui, que eu vejo
aqueles necessitados ... me dedico, cada dia é uma coisa diferente [...] (A2).
Vaz (1999, p.60) abordando o trabalho como elemento central no processo de vida,
afirma que
O trabalho, então, por seu movimento e significação, compõe o significado da cultura
do mundo humano e nele a linguagem que permeia e permite a produção e reprodução
de relações entre indivíduos, seus modos de viver e pensar, suas criações, recriações e
descobertas.
O trabalho em saúde, e que tem como objeto o próprio homem, é por si só um espaço
privilegiado para a reprodução das relações humanas, muitas vezes dificultadas pelas condições
em que se dá o processo de trabalho.
Heller (1991), discorrendo sobre o trabalho e o labor, afirma que todo trabalho é uma
atividade genérico-humana, porém na medida em que é alienado, a sua execução perde a
autovalorização e presta-se apenas à conservação da existência particular. Neste sentido, as
relações interpessoais dentro da enfermagem cujo objeto do seu trabalho é o homem, apontam
para o desenvolvimento da genericidade na medida em que, neste momento, o trabalho não está a
serviço apenas da autopreservação. É importante ver que, embora com todas as dificuldades
enfrentadas, ainda encontra-se afeto no desenvolvimento do trabalho da enfermagem, podendo
esta ser uma via de auto-realização e produção de sentido no e com o trabalho, como define
Antunes (2001).
As várias formas de tratar o desenvolvimento de afetos, a humanização no cuidado com
o outro, enfim a sensibilidade humana, capitadas neste estudo - explicitadas ou não pelos
entrevistados - têm matizes múltiplos e passíveis de interpretações que nos remetem a outras
dimensões: se, por um lado, os auxiliares e técnicos explicitaram mais diretamente a relação de
amor e carinho com os doentes e com o trabalho, os enfermeiros demonstraram alguns desses
aspectos de forma diferente. Quando indagados sobre a interferência da jornada de trabalho no
desenvolvimento profissional os entrevistados assinalaram a preocupação com a perda da
qualidade da assistência:
É porque existe o cansaço [...]. Então a gente tem o sono limitado [...]. Você pode ficar
displicente, relaxa em algumas coisas. E na sua própria conduta [...] já me peguei nessa
situação (T13).
A entrevistada E5 introduz uma discussão interessante:
A supervisão fica a desejar, o desenvolvimento do trabalho ... então é assim, eu acho
que é até uma falta de ética esse nosso comportamento, dessa maneira, de não ter essa
consciência, sabe? Mas, preocupa isso, essa falta de ética, a gente sentindo rompendo
assim, com ... valores que são extremamente importantes na relação do dia-a-dia com
as pessoas, por conta de excesso de trabalho e sem a perspectiva disso melhorar, sabe?
E isso é muito, muito, muito ... ruim. Então eu me lembro que um dos conflitos maiores,
meus há um tempo atrás era essa questão da ética profissional, ou seja, do respeito com
as pessoas, com os pacientes, a qualidade desse serviço, como estava a desejar com essa
sobrecarga de trabalho muito grande. Então assim, isso me angustiava muito, muito
mesmo [...] agora eu ... eu não sei como é que eu vou lidar daqui pra frente com essas
duas situações: a falta de ... desse tempo pra melhorar essa qualidade e a necessidade
que a gente tem na realidade do dia-a-dia ter que ter um aumento salarial e sem essa
perspectiva [...].
Questionando se os aspectos da ética e da qualidade do serviço eram discutidos com os
colegas, a entrevista E5 respondeu:
Não, não. Aqui não é discutido nada, ninguém quase consegue descansar e a gente é
como se fosse máquina, a gente não consegue conversar nada, ninguém não pensa. Aqui
os enfermeiros praticamente não pensam, não refletem no dia-a-dia em nada. Só
trabalhando ... Só trabalhando. E isso é muito ... ruim. Porque você não pensar no dia-
a-dia é ... fica muito alienada.
Como já foi citado anteriormente, o limite da jornada de trabalho é o próprio corpo que
impõe, quando, após desprender energia, necessita de repouso e descanso (MARX, 1982). A falta
ou a insuficiência do repouso necessário tem vários efeitos, tanto na particularidade do
trabalhador, como já foi demonstrado, quanto na própria realização do trabalho, isto é, no aspecto
humano-genérico.
A fala de E5 acima citada revela-se bastante significativa, pois no momento da
entrevista ficou claro o movimento que ela fez da sua particularidade para a genericidade, na
medida em que se transpôs para apreciar a realização do seu trabalho na perspectiva do outro, o
homem objeto do seu trabalho. É uma constante na fala a polêmica entre a sua necessidade e a
deficiência no desenvolvimento do trabalho mediada pelo excesso de horas trabalhadas que tira a
possibilidade objetiva de prestar uma boa assistência. É a disputa entre a particularidade e a
genericidade, isto é, entre o atendimento das suas necessidades, que habitam a esfera da
particularidade e a relação estabelecida com o ser humano, mediada pelo trabalho.
Heller (1991) afirma que a particularidade é alienante uma vez que tem por única
finalidade atender às necessidades da autoconservação. A autora diz que o homem para
transcender de um ser particular para tornar-se um indivíduo, só o faz com o fim da alienação.
Neste sentido, pode-se afirmar que ao identificar questões no trabalho que afetam diretamente ao
outro ser humano, esta ação é um exercício da atividade genérico-humana.
Mas, como resolver o conflito entre a particularidade e a genericidade? Heller (1991)
afirma que a particularidade não pode ser superada. O indivíduo, ser consciente, eleva a própria
particularidade a um nível mais alto. Isto requer uma escolha, uma tomada de posição que é
norteada por valores éticos. A autora afirma que o homem tem, em sua vida cotidiana, constantes
possibilidades de fazer escolhas e para isto conta com a sua autonomia. Esta autonomia não é
absoluta e sim, relativa, tendo seus limites aumentados ou diminuídos de acordo com as situações
historicamente construídas.
Bianco (2000, p.44), analisando a autonomia no cotidiano do enfermeiro, afirma que
Como pessoa é possível dedicar-se ao alargamento do espaço da autonomia não só
quanto à satisfação das próprias necessidades ou das escolhas profissionais, mas também
no aspecto de enfrentar o contexto. ‘Enfrentar o contexto’ entendido como fazer
julgamento sobre os atores, analisar, criticar, aceitar ou rejeitar os fatos e as instituições
políticas, dentro e fora do raio de ação profissional.
Bianco (2000) continua dizendo que é necessário também colocar a subjetividade,
entendida a partir do indivíduo consciente, contra as estruturas de dominação e unir o pensar, o
sentir e o agir. A autora conclui afirmando que
[...] a autonomia é um valor a ser assumido pelo profissional enfermeiro consciente –
que age na sua cotidianidade com a menor automação possível – e sentida como
capacidade de escolha entre alternativas. Isso vai além do saber e do fazer do
enfermeiro, enquanto noções mecânicas, e o inclui como atores sujeitos. Ser-saber-fazer
embasam a autonomia do profissional. Ser sujeito portador de valores que incluem a
vida, a democracia e a consideração pelo outro; ser portador de direitos e autonomia
relativa dada pelas interdependências dos vários sujeitos que agem num espaço-tempo,
em constante renovação, composto por atitudes e gestos que ora se aproximam da
particularidade, ora do humano-genérico.
Neste sentido, a resolução do conflito entre a particularidade e a genericidade passa pela
desalienação de cada trabalhador da enfermagem no contexto em que estão colocados. A partir
daí podem se forjar indivíduos que exercitem sua autonomia escolhendo atitudes que convirjam
para sua particularidade, dando respostas às suas necessidades, assim como para a genericidade
que permite atender às necessidades do outro ser humano, objeto do seu processo de trabalho.
Na tentativa de compreender as possíveis repercussões da jornada de trabalho na vida
cotidiana, questionou-se aos entrevistados se havia alguma interferência dessa no
desenvolvimento profissional e na vida pessoal. Sobre o desenvolvimento profissional houve
referência a aspectos positivos e negativos. Dentre os positivos destacou-se a possibilidade de
ampliação do conhecimento, na medida em que a jornada de trabalho ocorria com a inserção do
trabalhador em vários setores do hospital, como se pode constatar na fala de E1:
Até a questão da vida profissional para o lado positivo a gente tem porque eu tenho uma
variedade de trabalho [...]. Essa variedade dá a gente um conhecimento mais
abrangente, isso é um lado positivo que a gente acaba conhecendo diferente é ... etapas
ou diferentes especificações do serviço da enfermagem.
Permeia, entre os entrevistados citados, a idéia de que, dentro de uma jornada de
trabalho maior que a estabelecida, aumenta a possibilidade de ampliar o conhecimento, como
confirma a fala de (T13):
Tem [influência] porque cada dia a gente aprende mais. Quanto mais você trabalha,
mais você aprenda.
Esse argumento de aprendizado, na verdade, em parte pode ser uma tentativa de
justificar a própria prática de busca do aumento da jornada de trabalho, que tem em sua essência
uma outra motivação principal: o aumento dos valores salariais recebidos. A questão do
aprendizado poderia facilmente ser contemplado, sem o aumento da jornada, apenas com a
adoção de uma política institucional de formação continuada e o revezamento entre setores,
favorecendo na mesma medida a ampliação do conhecimento.
A ausência de uma política de formação permanente e sua relação com a jornada de
trabalho é sentida quando alguns enfermeiros apontam a falta de tempo para atualização de seus
conhecimentos como um fator gerador de ansiedade e de angústia:
Eu não tenho tempo pra fazer um curso da atualização, por exemplo: eu sou liberada
da escala normal, da escala extra você não tem liberação [...] você tem dúvida em
determinada coisa ... ou aparece ... porque aqui é pronto socorro e sempre tá
aparecendo coisa diferente e você quer enriquecer a assistência que aquele tipo de
paciente e você ... aí quando eu chegar em casa eu vou dar uma lida pra me atualizar,
pra tirar uma dúvida, aí quando chega em casa você esquece porque já tem outros
afazeres, então eu deixo de implementar (E2).
Em relação ao nível médio, a instituição vem estimulando a qualificação dos auxiliares
de enfermagem através do curso técnico, porémo há liberação do horário de trabalho e estes
têm que utilizar as suas horas de folga:
[...]agora eu vou fazer o técnico de enfermagem [...]. Eu falei para os meninos: agora
mainha vai ficar seis meses dentro do hospital [risos] porque a aula vai ser à noite e eu
não vou pra casa (A8).
Alguns trabalhadores de nível médio da enfermagem têm o vínculo empregatício com a
SESAP como atendente no hospital estudado, isto é, nível elementar. Ao longo dos anos ocorreu
um processo de qualificação onde estes puderam passar para a função de auxiliar de enfermagem.
A mesma situação vem se dando na atualidade com relação ao técnico de enfermagem. Há,
portanto, um processo de qualificação em curso para o nível médio da enfermagem que, com
certeza resultará em melhoria da assistência e em crescimento pessoal e profissional da
enfermagem.
Pires (2001) afirma a importância das estratégias de qualificação-requalificação da força
de trabalho da enfermagem como forma de melhoria dos serviços de saúde da maioria da
população excluída. A autora acrescenta que a qualificação deve transcender a questão formal da
titulação, valorizando a subjetividade do trabalhador e se apoiando em valores éticos que vão
além da racionalidade econômica.
Neste sentido, na realidade estudada, há pelo menos duas incongruências da SESAP em
relação aos trabalhadores. A primeira é que a qualificação não vem se revertendo em melhoria na
condição de vida destes trabalhadores, uma vez que não altera a realidade salarial. A outra é que
não há liberação do hospital para que estes cursos sejam feitos no expediente de trabalho, uma
vez que não há pessoal para substituir na escala. Assim, o trabalhador usa o seu tempo livre para
fazê-lo.
Na realidade, percebe-se que o que poderia fazer parte de uma política institucional de
dar condições dignas para a realização do trabalho em saúde, considerando a subjetividade do
trabalhador e do paciente, mais uma vez torna-se um fator a subtrair o seu tempo livre, uma vez
que não prevê dentro da jornada de trabalho este tempo de qualificação. Desta forma é reafirmada
a interpenetração da esfera do trabalho no espaço privado pessoal e interpessoal.
1.0.0 Vida pessoal sem tempo livre?!
Sobre a repercussão da jornada de trabalho na vida pessoal, a primeira questão expressa
pelos entrevistados foi a preocupação com os filhos no que se refere à afetividade e no
acompanhamento da educação e disciplina:
Tem essa [influência] com mais ênfase porque eu tenho filhos pequenos ainda e que
sentem a ausência e às vezes cobram da agente estar de plantão ou quando a gente
troca um plantão, aí a gente acumula e ainda mais a carga horária e isso às vezes dá na
gente um mal estar, principalmente eu tenho esse lado emotivo quando meus filhos ...
assim distantes de mim [...] (E1);
[...] você não tem tempo pros meninos.
Quando você chega os meninos já estão grandes,
já tão enormes. Aí você diz assim: já tá um rapaz! Quem é aí dentro de casa? É os seus
filhos que cresceu e você não teve tempo nem pra ver o desenvolvimento do rapaz (T13);
[...] eu tenho um filho que morreu e que esse filho foi conseqüência também da minha
jornada de trabalho, eu não tinha como olhar meus filhos [...] acredito que a jornada de
trabalho atrapalha a educação dos nossos filhos. Impreterivelmente invade a nossa
privacidade [...] na realidade eu não tive tempo de dar um conhecimento maior da vida
do meu filho lá fora [...] eu não tive tempo foi de ver o outro lado, o lado do outro
educador dele que foi o mundo [...] (T12).
O aumento do tempo dedicado ao trabalho por meio do multiemprego e das outras
formas precárias já descritas vem levando à redução do tempo de convivência familiar, sendo um
fator de angústia, como deixam claras as falas dos entrevistados. Observa-se que tanto as
mulheres quanto os homens manifestam esta preocupação, sobretudo com relação aos filhos.
Sarti (1997) afirma que a centralidade que o trabalho assume na vida cotidiana dos indivíduos
diminui a disponibilidade, tanto do homem quanto da mulher, para a vida familiar, inclusive no
que concerne à sua relação com os filhos.
Apesar do acompanhamento dos filhos apresentar-se como uma preocupação dos
homens e das mulheres entrevistadas, há que se considerar a distinção dos papéis de ambos na
esfera familiar. Estudos mostram que embora haja um significativo aumento da participação da
mulher no mercado de trabalho nos últimos anos, inclusive como um fenômeno da reestruturação
produtiva, os papéis sociais do homem e da mulher não se alteraram no espaço doméstico,
ficando ainda para a mulher a maior responsabilidade com as atividades de cuidado com a família
(HIRATA, 2002).
Santos (2003, p.306) afirma que “[...] como ao entrar no espaço da produção não são
aliviadas das tarefas no espaço-tempo doméstico, as mulheres tendem a ser duplamente
vitimizadas com os efeitos negativos da globalização da economia”. Esta questão se confirma no
atual estudo quando, ao ser indagada sobre o seu tempo livre, A8 e E2 referem que
[...] é pra cuidar ... lavar a roupa, sabe...fazer uma faxina melhor em casa [...].
amanhã eu vou chegar em casa, vou fazer almoço, vou colocar roupa no tanquinho,
pronto! Aí deixo, pra esperar a próxima folga;
Praticamente a gente não tem [tempo livre]. Por ser mulher você tem uma
tripla jornada. Tem casa, tem filho, tem o trabalho, tem a extra. Então sobra
muito pouco.
O uso do tempo livre para o trabalho doméstico se agrava quando se trata de auxiliares e
técnicos de enfermagem que, por receberem os menores salários, geralmente não podem dispor
de uma estrutura de retaguarda doméstica. Avendaño; Grau; Yus (1997, p.128), estudando os
riscos identificados para enfermeiras chilenas, afirmam que
O risco da ausência de apoio instrumental no trabalho doméstico expressa-se na falta de
recreação, na diminuição do tempo livre e na maior contaminação trabalho-lar. A
enfermeira que carece desse apoio usa grande parte do seu tempo livre para realizar as
tarefas do lar. Assim, a carga de trabalho doméstico que deve realizar conduz a uma
redução da qualidade no uso do tempo de trabalho não remunerado e a uma escassa
quantidade do tempo do qual dispõe para repor energias e se distrair.
A condição hoje muito freqüente de ser a mulher, chefe de família, situação encontrada
nos dois grupos entrevistados, é mais um fator a dificultar a vida cotidiana, tanto porque recai
sobre a mulher a exclusividade de manter financeiramente a família, quando não há participação
do companheiro, quanto na responsabilidade de educar os filhos:
[...] o salário do Estado não dá pras minhas despesas. Eu tenho um casal de filhos,
pago aluguel e tenho que me virar para mantê-los. Meu marido foi embora e eles [os
filhos] dependem de mim (T1);
O salário que a gente ganha do Estado que é pouco. Num dá pra manter a família, eu
tenho três filhos. Sou só. Sou ... é o marido e a mulher, porque só tem eu com meus
filhos, o pai não dá a pensão, e eu tenho que me virar dessa forma mesmo [...] (T4);
[...] eu tô pagando uma faculdade pra minha filha. É um esforço que eu tô fazendo [...] e
a faculdade é cara [...] aí fica muito pesado porque ela não tá trabalhando no momento
. Aí são dois filhos, um faz cursinho [...] eu sou divorciada e não recebo nada, nada,
nada! Desde os três anos de idade ... e meu filho tem dezoito, sou eu quem pago tudo.
Tudo por minha conta (E10).
Ainda sobre os riscos no trabalho doméstico, Averdaño; Grau; Yus (1997, p.128)
afirmam que
Entre os fatores de risco mais importantes para a saúde das enfermeiras estão o exercício
da chefia do lar, que aumenta globalmente as demandas e responsabilidades, e a
relevância de seu ganho pessoal quando são fundamentais para o orçamento do grupo
familiar.
A exacerbação de horas trabalhadas e a involuntária ausência do espaço doméstico pelos
trabalhadores, sobretudo pela mulher, não encontram apoio nas políticas públicas, uma vez que o
ajuste fiscal vem retirando investimento em equipamentos sociais que poderiam estar confluindo
para o apoio à manutenção das famílias e da educação dos filhos. Há, portanto, uma
desresponsabilização do Estado com a família, sobretudo as mais pobres, resultando para a
mulher a dupla tarefa de manter financeiramente a família, seja parcial ou integralmente, e ainda
proporcionar as condições objetivas e subjetivas para a educação dos filhos. Schirmer (1997,
p.111) ressalta que
É necessário encontrar soluções para viabilizar a permanência das mulheres no mercado
de trabalho, de forma a diminuir os custos da conciliação entre a opção pela maternidade
e a vida profissional. A busca de políticas sociais mais igualitárias passa por ações que
ultrapassem a proteção da mãe trabalhadora. É preciso redefinir as responsabilidades no
âmbito da família.
Ainda sobre a repercussão da jornada de trabalho na vida pessoal, alguns entrevistados
destacaram a preocupação no tocante a relação com seus companheiros (as):
Eu tenho uma relação muito boa com meu esposo, graças a Deus, mas eu sinto que
poderia ser melhor se eu tivesse mais tempo de conviver com ele. A gente senta pra
conversar, fica ele no computador querendo me mostrar alguma coisa, eu sento na
cama, vou ler alguma coisa [...], mas acabo adormecendo e ele lá falando comigo [...]
Até na própria questão sexual também, ela fica de certa forma [...] comprometida
porque você vai cansada pra cama [...] eu não tenho paciência de esperar por ele [...]
(T3);
E ... outras coisas, a vida sexual também. Influencia muito. Você tá cansado. Você pode
até ... a chegar a uma disfunção erétil [...]. Já aconteceu comigo. Tô sendo tratado já
[...]. Até mesmo o relacionamento a coisa [...], sua esposa. Porque você não vê, você vai
pra casa descansar. Porque sua casa não é um lar, é apenas um local de descanso.
Geralmente você vive mais no local de trabalho do que na sua própria casa (T13).
Mais uma vez é evidenciado a penetração do trabalho no espaço das relações
interpessoais. A convivência entre casais, até mesmo nas questões mais naturais que é a relação
sexual, no contexto do uso da maior parte do tempo para o trabalho, ocupa espaço secundário.
Esta questão é ainda mais evidenciada quando existem tarefas e responsabilidades que o casal
tem com relação aos filhos, principalmente a mulher.
No tocante à dimensão do ser em sua singularidade, algumas entrevistadas mostram seu
descontentamento pela falta de tempo de dedicarem-se a si mesma no trato da saúde ou mesmo
em atividades culturais, de lazer, de conhecimento, entre outras:
Praticamente eu não tenho mais vida pessoal [...] eu não tenho tempo de ir a um
cinema, a um teatro, fazer amizades ou participar de uma entidade de classe [...].
participar de algum movimento [...] É como se eu não tivesse contato com o mundo
externo [...]. Uma alienação quase que completa [...] às vez eu vejo o jornal [...] uma
coisa ou outra, uma coisa fragmentada [...] nada assim, do dia-a-dia, não tenho
elaboração do dia-a-dia, do que tá acontecendo por falta de leitura, tempo, contato com
o mundo, discussão [...] (E5).
Essa dimensão da vida dos entrevistados foi a que se considerou emblemática do ponto
de vista da interpenetração do trabalho e particularmente está relacionada com uma questão
transversal a toda essa discussão: o tempo dedicado ao trabalho versos tempo livre. Questionados
sobre o tempo livre, responderam:
[...] meu tempo livre, três dias no mês [...] forçado [...] eu teria tempo livre, mas como
eu faço cursinho [...]. E meu tempo de descanso é os três dias que eu disse e às vezes à
noite (A6);
No mês de julho, o único dia que eu tive de folga [...] vai ser o próximo sábado...não
tenho tempo pra cuidar de mim, dentista, um exame, ler uma revista [...] eu vou tirar
horários e vou ficando [...] você não ter lazer é horrível! Muitas vezes passo seis meses
sem ir ao centro da cidade, sem entrar numa loja. De casa pro trabalho ... do trabalho
pra casa. Às vezes eu tô aqui dentro, vejo na janela o sol e queria tá lá fora, mas nem
dá. Aí eu fico só olhando o sol lá da janela...querendo ir ao shopping, passear, andar
[...] passo tanto tempo sem ir que quando vou acho estranho [...] (E10);
Tem [influência na vida pessoal] porque eu só trabalho. Ultimamente eu só trabalho,
trabalho ou melhor, desde que eu fui mãe, mãe solteira [...] eu só trabalhei, lazer muito
pouco [...]. Tem dias que você quer mudar um pouquinho [...] mas me acostumei. Eu
não sei dançar, eu não bebo [...], agora eu sinto vontade de repousar, sem fazer nada,
quieta [...] sem nada, só ... deitada, principalmente (T18).
A entrevistada E6 sintetiza em uma fala o sentimento que tem em sendo mulher, mãe e
enfermeira:
[...] é muito difícil ser enfermeira, você conciliar casa, marido, filho, o seu dia-a-dia,
você se esquece de você e cuida só do paciente [...] do enfermo e da família, filho,
marido, parente e você não tem tempo de ir pra um dentista, [...] pra uma academia [...]
no médico [...].
Essa fala demonstra as várias dimensões em que estão inseridos os trabalhadores da
enfermagem, sobretudo a mulher trabalhadora, que nos muitos papéis que precisa desempenhar,
encontra pouco tempo para viver para si mesma, sendo, portanto, a mulher, a mais expropriada
em seu tempo livre.
Na forma como o trabalho se organiza e o espaço que ocupa na vida cotidiana, vem
retirando a possibilidade dos trabalhadores viverem as múltiplas dimensões da vida que não seja
apenas o trabalho. A interpenetração deste nas outras esferas da vida vem retirando do
trabalhador a possibilidade de viver a omnilateralidade que dá o verdadeiro sentido à vida.
Antunes (2001) resume este pensamento, quando fala que uma vida cheia de sentido em todas as
esferas do ser social, será conferida pela omnilateralidade humana. Esta omnilateralidade
somente poderá existir quando houver uma superação dos limites entre tempo de trabalho e
tempo livre, que no momento atual, mantém uma divisão hierárquica que subordina o trabalho ao
capital. Essa superação consubstanciará uma atividade vital cheia de sentido e autodeterminada,
sob bases inteiramente novas, desenvolvendo uma nova sociabilidade.
Uma sociabilidade tecida por indivíduos
*
(homens e mulheres) sociais e livremente
associados, na qual ética, arte e filosofia, tempo verdadeiramente livre e ócio, em
conformidade com as aspirações mais autênticas, suscitadas no interior da vida
cotidiana, possibilitem as condições para a efetivação da identidade entre indivíduo e
gênero humano, na multilateralidade de suas dimensões ( ANTUNES, 2001, p.177).
Esta discussão da multilateralidade remete à discussão de valores em uma sociedade e da
forma de expressão destes valores, passando necessariamente pelo debate do ter e do ser.
2.0.0 Ter e ser: dilemas da vida cotidiana
‘La propried privada nos há hecho tan estúpidos y unilaterales
que un objeto sólo es nuestro cuando es inmediatamente poseído lo
tenemos, quando existe para nosostros como capital o quando es
inmediatamente poseído, comido, bebido, vestido, habitado, en
resumen, utilizado...’. ‘Em lugar de todos los sentidos físicos y
espitituales ha aparecido aquí la simple enajenación de todos estos
sentimjentos, el sentido del tener. El ser humano tenía que ser
reducido a esta absoluta pobreza para que pudiera alumbrar su
riqueza interior’ (MARX apud HÉLLER, 1991, p.53).
A angústia vivida pelos entrevistados devido à restrição do tempo de convivência com a
família, sobretudo com os filhos, é retratada de forma enfática por E4 que tem na sua fala uma
importante reflexão sobre valores que norteiam essa postura:
Às vezes quando eu não tenho aula à tarde, aí é ... eu chego em casa eu vou só dormir,
quando eu não tenho ... quando eu terminei de checar tudo em casa que tá tudo ok , aí
eu vou dormir; aí eu não tenho tempo de conversar com minha filha que é adolescente,
os problemas dela da adolescência, ela fica só trancadinha dentro do quarto dela
ouvindo, escutando o sonzinho ou então no celular com as amigas dela, porque a mãe
dela tá muito cansada e vai dormir.
Essa entrevistada chamou a atenção pelo conflito que levantou acerca da relação dos
valores ético-morais na sociedade atual, entre o ser e o ter. Perguntada se a falta de tempo para
dedicar à filha adolescente a angustiava, ela respondeu:
Muito, muito mesmo. Porque a minha mãe era só dona de casa e ela era muito minha
amiga e eu dividia as coisas com ela, e eu não posso fazer isso com minha filha [...] às
vezes a gente fica só ligada em dar, dar, dar coisas materiais e as coisas afetivas, os
sentimentos, o afeto a gente se esquece. Outro dia eu cheguei em casa e falei assim: Ou
nem dá um abraço em mainha? Ah, mãe, eu já tô tão acostumada com você fora... aí faz
a gente refletir, até que ponto ... você trabalha tanto pra ter qualidade de vida, que
qualidade de vida é essa, só as coisas materiais? E a parte sentimental, e a parte de
relacionamento e o ser? O ser da minha filha, o ser da minha família, o ser do meu
marido, o meu ser, tá se transformando e eu só quero ter, ter, ter, ter ... mas de repente
se eu não puder também trabalhar, se eu não trabalhar isso, eu não posso pagar um
plano de saúde, aí se eu não pagar eu vou vir pro corredor do [hospital] (E4).
Esta fala remete a uma discussão acerca do ter e do ser. Na forma como é colocado pela
entrevistada, fica claro um conflito entre ter tempo livre para desenvolver as relações afetivas
com a família, tratando do ser na sua essência, e o fato concreto de ter acesso a objetos e serviços.
*
Grifos do autor
O fato real que atravessa todo este estudo, por um lado, é a deterioração dos salários dos
trabalhadores da enfermagem e a busca de superação por meio do aumento da jornada de
trabalho. Por outro lado, os conflitos gerados pelo que se vem sacrificando em termos de
sensibilidade humana em nome dessa superação, colocando o conflito do ter e do ser no centro do
debate. Neste sentido, é precedente a discussão sobre a necessidade de consumo que dá sentido,
na maioria das vezes, ao trabalho.
Discorrendo sobre a teoria da necessidade, segundo Marx, Heller (1991) faz a distinção
entre necessidades fisiológicas básicas e as necessidades historicamente determinadas com o
avanço das forças produtivas.
O consumo dos produtores que advêm do trabalho é a forma pela qual o homem se
reproduz como indivíduo e como ser social, estando contida no trabalho produtor de valor de uso.
Sob a égide do capitalismo em que o trabalho assume a face de produtor de mercadorias, isto é,
de valor de troca, o consumo se caracteriza pelo consumo de mercadorias. Bottomore (1983,
p.79) acrescenta que
O consumo capitalista, portanto, relaciona-se cada vez mais com a produção capitalista.
Isso envolve tanto uma ampliação da esfera de consumo como uma determinação
potencial de sua qualidade e implica [...] uma crescente manipulação do
consumidor
pelas empresas capitalistas nas esferas de produção, de distribuição e de publicidade.
Neste sentido, é importante ponderar no depoimento dos entrevistados o que é
necessidade básica e o que é consumo construído na sociedade capitalista.
O avanço tecnológico que cria inúmeros bens de consumo cria também costumes e
necessidades que vão delineando a vida cotidiana. Para Marx (1982), os objetos materiais na
sociedade capitalista assumem uma característica de importância tal que são considerados como
naturais ao meio. No entanto, o autor traz à tona a subjetividade que permeia os objetos materiais,
afirmando que estes produzem relações sociais de dominação. Assim, pode-se afirmar que o
consumo de mercadoria serve para sustentar o sistema capitalista e que há, na maioria das
pessoas, uma subordinação a este sistema de valores baseados no consumo.
Trazendo o debate do consumo no contexto da vida cotidiana, Heller (1991) afirma que
a presença ou ausência da alienação determina o grau de atividade ou passividade do sujeito
particular diante do consumo. A autora afirma que quanto mais o sujeito da vida cotidiana é um
ser particular, portanto alienado, mais ele se mostra consumista. Quanto mais se forja um
indivíduo, ou seja, que tenha superado a alienação, menos consumista será este sujeito.
Neste sentido, pode-se inferir que o ter está relacionado ao consumo alienado e
corresponde à particularidade. E o ser, que corresponde à superação dessa alienação, corresponde
à genericidade.
Lowy (apud ANTUNES, 2001) afirma que o capitalismo, regulado pelo valor de troca,
pelo cálculo dos lucros e pela acumulação de capital, tende a dissolver e a destruir todo valor
qualitativo: valores de uso, valores éticos, relações humanas, sentimentos. Em outras palavras, o
ter substitui o ser.
Retomando o conflito entre o ser e o ter vivenciado pelos entrevistados, considera-se que
a sua saída passa pela superação da alienação que mascara o que realmente é necessidade básica e
necessidade forjada pela sociedade de consumo, assim como quais são os valores e atitudes
cotidianas que se quer preservar e fortalecer como vivência, qualidade de vida e herança para a
posteridade. As angústias e sofrimentos identificados nos entrevistados mostraram que, apesar
das saídas utilizadas estarem aparentemente resolvendo temporária e parcialmente esses desafios,
trazem por outro lado em seu cerne, o germe da alienação e, a curto, médio e longo prazo,
conseqüências nefastas para a vida dos trabalhadores e seu entorno.
Essas conseqüências revelam-se no âmbito da saúde desses trabalhadores, nas suas
relações humanas afetivas, e mais fortemente, na dimensão macro social, denotada em parte pela
fragilidade crescente das organizações de classe pelo seu enfraquecimento enquanto
enfrentamento entre sujeito social e poder político/econômico instituído. Portanto, ressalta-se que
a saída em sua essencialidade objetiva para essa problemática, será sempre em termos de uma
ação política coletiva, resgatando o sentido de classe para si, segundo Heller (1991).
3.0.0 Refazendo o caminho
Ficou claro até o momento que as saídas buscadas pelos trabalhadores da enfermagem
no sentido de superar a defasagem salarial são saídas particulares, embora sejam adotadas por
grande parte do conjunto dos trabalhadores em questão. A adoção destas saídas particulares vem
trazendo problemas que são comuns ao conjunto desses trabalhadores. Então o que fazer? Quais
as reais saídas? Alguns entrevistados afirmam que
As saídas seriam mais austeridade na fiscalização das verbas públicas e a gente tivesse
realmente o funcionamento dos conselhos municipais de saúde, os conselhos estaduais
com o objetivo real mesmo e não colocado com pessoas políticas [...], mas que fossem
colocadas pessoas técnicas [...]. Para os servidores [...] seria o Plano de Cargos e
Salários [...] e urgentemente uma questão da reposição das perdas de 8 anos [...] na
medida do possível, uma redução da carga horária [...] (E1);
A entrevistada E5 refere:
[...] eu chego a ficar sem esperança mais, eu tô ficando sem esperança. Já tô cansada e
é muito triste uma pessoa cansada da esperança [...].
Questionada sobre a participação sindical, a entrevistada respondeu:
Eu nem sei, como eu não participo de nada ... então eu me omito a fazer algum
comentário.
Perguntada se ela queria falar mais alguma coisa, a entrevistada expressa um desejo de
saídas coletivas:
Eu queria que minhas colegas tivesse essa ... uma reflexão sobre essa questão do nosso
trabalho porque se a gente se unisse e começasse a pensar ... pra que se a gente tivesse
união, de força, talvez conseguisse alguma melhoria [...].
A entrevistada T1 demonstra em sua fala um descrédito quanto às políticas governamentais:
Eu não costumo ser pessimista, mas não vejo muita coisa. As pessoas dizem: fulana vai
mudar, fulano vai mudar. O Fome Zero, por exemplo, quem vem fazendo o fome zero? È
o governo? Não. É o contribuinte que vai pra um show e leva alimentos ou quando vai
ao supermercado e compra mercadoria.
Poucos entrevistados trouxeram para si a tarefa de tentar modificar a realidade vivida.
Não se percebe a implicação deles como sujeitos ativos e decisivos na definição do rumo de suas
vidas. Concordam que não há investimento necessário na saúde; que há desvio de recurso e que
os cargos no serviço público são definidos critério por político-eleitoral, entre outras coisas. No
entanto, diante desta situação, não é apontada nenhuma ação coletiva. Algumas falas diferem
deste pensamento:
Saída ... eu acho assim ... se as pessoas que está lá em cima quisesse ... ou ... precisava
querer pra melhorar, pra mudar, pelo menos tentar mudar. Você acha que depende do
governo. Eu acho que depende da consciência, da organização (T 13);
A saída na realidade é juntarmos os servidores públicos e procurarmos saber uma
forma mais precisa da gente fazer pressão no governo, fazer pressão mesmo! Eu acho
que o servidor devia se unir pra ganhar uma situação, ganhar essa situação [...] (T12).
Uma das representantes de classe entrevistada afirma que
[...] a saída dos trabalhadores está nos próprios trabalhadores e trabalhadoras [...] o
grande problema é que eles não têm percepção, a consciência dessa capacidade [...]aí
entra o papel do sindicato [...] das CIPAS [...] (R2).
A entrevistada R1, referindo-se ao funcionamento dos serviços de saúde, diz que
[...] não tem saídas sem uma mudança geral no País e no mundo. Não vai existir a
saúde funcionando muito bem e o resto [a sociedade] funcionando mal.
Nas lutas desenvolvidas pelo sindicato da categoria, é evidenciada a presença quase que
exclusiva de auxiliares e técnicos de enfermagem. Os trabalhadores graduados, inclusive os
enfermeiros, normalmente não participam das atividades sindicais, sejam assembléias, atos
públicos, greves ou outras atividades. Ainda no ano de 2001, ocorreu uma greve no hospital
estudado que perdurou 33 dias. Porém, foi um movimento capitaneado apenas por auxiliares e
técnicos de enfermagem, apesar do objetivo da luta ser em nome de todos os trabalhadores da
saúde.
Com certeza há motivos para a não participação dos enfermeiros no movimento sindical.
Porém, a compreensão deste fato passa por um estudo que se debruce especificamente sobre esta
questão e que não se constitui na temática central do presente estudo. Porém, a postura do
trabalhador diante da sua classe é uma questão de relevância neste estudo enquanto prática social
de indivíduos em sua cotidianidade. Antunes (2000, p.117) afirma que
[...] classe é a mediação que particulariza os seres sociais que vivenciam condições de
similitude em sua existência concreta no mundo da produção e reprodução social. A
consciência de uma classe é, pois, a articulação complexa, comportando identidades e
heterogeneidade, entre singularidade que vivem uma situação particular.
Antunes (2000) diz que a consciência do ser que trabalha é um processo contínuo de
aproximação, ora com sua particularidade, ora da consciência auto-emancipadora que ultrapassa a
alienação, em uma incursão à genericidade. A consciência de classe é gestada no interior da vida
cotidiana. O autor, recorrendo a Lukcás, cita uma fala deste autor que afirma que na vida
cotidiana as discussões estão presas a inúmeros ‘se’ e ‘mas’. Nas situações de revolução, estas
questões singulares são condensadas em questões centrais que apontam para a maioria dos
homens o rumo de suas vidas, o que se contrapõe à imediatização da cotidianidade.
Antunes (2000) afirma que é no agir e no pensar das classes que surge a necessidade de
elementos de mediação
*
que possam alavancar a consciência de classe. As expressões desses
elementos de mediação são os sindicatos, os conselhos e os partidos. Os sindicatos estão mais
ligados à especificidade imediatas da classe, embora possa transcender este patamar. Nos partidos
[...] o ser genérico deixa de ser uma abstração vazia [...]; ao contrário, os indivíduos
elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais articulada, até alcançarem a
síntese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, como
gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si (ANTUNES,
2000, p.118).
*
Grifos do autor
Ambos os elementos de mediação, sindicato e partidos, passam na contemporaneidade
por uma crise (ANTUNES,2000). Limitando-se à discussão da participação sindical, são
evidenciadas nas falas dos representantes de classe as dificuldades enfrentadas:
Nós estamos passando por uma dificuldade e aí está o grande desafio pra nós do
movimento sindical [...]. É da gente encontrar formas de atingir esses trabalhadores
[...]. Nós temos esse grande inimigo que é essa máquina, que é esse modelo [...] ele cria
todas essas formas pra que o trabalhador não tenha tempo [...] pela necessidade de
comer, de se alimentar, de sobrevivência, que ele viva como uma máquina [...] (R2).
As dificuldades vividas no movimento sindical hoje não se constituem um fato isolado.
Antunes (2001) situa a crise no movimento a partir da década de 1970, em nível mundial. O autor
aponta como principais causas os seguintes elementos: a crise estrutural do capital e a
conseqüente reestruturação produtiva que afetou profundamente as relações de trabalho; o fim da
experiência socialista da União Soviética e dos países do Leste Europeu; a expansão da social-
democracia, levando grande parte da esquerda a conciliar com o capital; e a expansão do projeto
neoliberal do ponto de vista econômico, social e político.
Estes problemas tiveram repercussões objetivas no movimento operário, na medida em
que houve perdas pelos trabalhadores, a exemplo do aumento do desemprego estrutural; a
intensificação do ritmo de trabalho; a flexibilização de direitos trabalhistas; a retração no valor
dos salários, entre outros. Também houve repercussão no aspecto da subjetividade da classe
trabalhadora, trazendo o medo do desemprego, a insegurança, a competição desenfreada, a
retração da consciência de classe com conseqüência para o movimento operário, principalmente o
enfraquecimento das entidades de classes.
Essas conseqüências para os trabalhadores que os ferem na sua consciência de classe e
fortalecem a tendência à particularidade, é reforçada na medida em que algumas entidades de
classe fazem um recuo na luta contra a dominação do capital em relação ao trabalho. A adoção de
políticas de conciliação das principais entidades de classe no Brasil tem forte repercussão em
todo o movimento. Alves (2001, p.57) refletindo sobre o movimento sindical sob a égide do
toyotismo afirma que:
O que é exigido é um tipo de sindicalismo de empresa, com política de atuação restrita e
setorial; um sindicalismo que preserve um controle sócio-burocrático sobre os
trabalhadores, exercendo o papel de regulador das expectativas capitalistas e das
demandas corporativas dos trabalhadores. Mas exige, antes de tudo, um sindicalismo
pró-ativo (e propositivo) diante das novas estratégias do capital na produção.
Alves (2001) afirma ainda que a lógica fracionária do toyotismo na produção exige o
fracionamento da classe trabalhadora, principalmente da consciência. Assim, numa postura de
baixar a cabeça ao capital, muitas entidades sindicais passam a desenvolver políticas focalizadas
que a autora chama de “arranjos neocorporativos”. É esta caracterização que a mesma autora faz
sobre a Central Única dos Trabalhadores (CUT):
São tais novos ‘arranjos corporativos’ que deram o lastro político-ideológico para o
sindicalismo neocorporativo de participação que passou a predominar a CUT [...]. Diante
de um cenário de crise capitalista, de ofensiva do capital na produção (e na política), o
sindicalismo neocorporativo, baseado na lógica corporativa setorial, com sua ideologia
(e prática) da ‘concertação social’ restrita e dos fóruns tripartites setoriais, tende a ser
expressão de uma ideologia política estruturada, através do staff administrativo de
partidos ou sindicados, tende a promover uma rendição subjetiva da classe à lógica do
capital, sendo um dos componentes da crise do sindicalismo no Brasil.
A CUT, maior central da América Latina, ao desenvolver uma política de colaboração,
imprime em todo o movimento sindical uma rendição dos trabalhadores, enfraquecendo a
consciência, inclusive de categorias que têm sindicatos com uma concepção classista. No entanto,
seguindo a lógica dialética, inicia-se no Brasil hoje um processo mais ostensivo que aponta para o
rompimento do sindicalismo de colaboração instituído no interior da CUT. Este processo de
mudança já é visualizado quando da luta dos servidores públicos contra a Reforma da
Previdência do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Toda a organização do
movimento, incluindo a greve, foi feita sem a direção nacional da CUT.
A divergência que marcou o 8º Congresso Nacional da CUT (CONCUT) deu-se pelo
fato de que, enquanto a direção da Central queria fazer emendas ao projeto de Emenda
Constitucional (PEC) n. º 40 da Reforma da Previdência, os servidores públicos, representados
pelos seus sindicatos, propunham o rechaço completo da PEC por entenderem que ela, na sua
essência, trazia o germe da privatização. Os caminhos divergentes apontam para um possível
rearranjo nas forças políticas no interior do movimento sindical, a exemplo do que se deu nos
anos 80 entre o “sindicalismo de resultados”
*
e o Novo Sindicalismo de caráter classista do qual
nasceu a CUT (ANTUNES, 1994).
A retomada de um movimento que evidencie as diferenças de classe e explicite as
conseqüências nefastas do modo de produção capitalista para os trabalhadores e para a
humanidade, é um elemento fundamental para mudar a correlação de força entre trabalho e
capital. Daí dizer que a luta dos trabalhadores não passa apenas pela imediatização das questões
financeiras, mas envolve uma discussão sobre um outro tipo de sociedade em que o trabalho não
seja uma fonte de exploração e opressão para os trabalhadores, e sim, que seja uma atividade
intrínseca a ele por ser um espaço de exercício da sua liberdade.
Neste sentido, refazer o caminho para os trabalhadores da enfermagem passa pela
construção da consciência de si e da classe que ocupa a partir do seu cotidiano, para então fazer
uma ponte com as questões maiores que ligam o local ao geral, isto é, as questões específicas da
vida cotidiana à estrutura econômica, política e social que define e rege a vida de todos. Esta não
pode ser uma postura apenas de uma categoria, mas depende de mudanças no interior de toda
classe trabalhadora. Assim, os sindicatos, partidos políticos ou outros instrumentos de mediação
tem o papel fundamental de alavancar possíveis mudanças na realidade social vivida. Portanto,
está posto para os trabalhadores esse desafio de fazer leituras atualizadas das
conjunturas/estruturas da sociedade na qual encontra-se inserido e de encampar saídas coletivas
em todas suas dimensões, na busca de seus direitos e da construção de uma nova sociedade.
TP
*
Grifo do autor.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que este estudo buscou compreender a relação entre o aumento da jornada
de trabalho e a sua repercussão na vida cotidiana dos trabalhadores da enfermagem, destacou-se
alguns aspectos mais relevantes no percurso da pesquisa. O aumento da jornada de trabalho foi
vista enquanto saídas particulares adotadas pelos trabalhadores na tentativa de superação da perda
do valor real dos salários face à política de ajuste fiscal.
Apesar da carga horária contratual dos servidores ser de 40 horas, o valor dos salários
pagos por esta jornada de trabalho não vem sendo suficiente para a manutenção destes
trabalhadores e suas famílias. A vinculação à escala de trabalho extra vem se configurando como
uma das saídas adotadas pelos trabalhadores da enfermagem. A hora extra passou a ser um
instrumento permanente na relação de trabalho e significando para o hospital estudado um meio
de fazê-lo funcionar, uma vez que há deficiência de pessoal. Essa situação é correlata ao setor
industrial onde a hora extra é um dos instrumentos de fomentação da produção sem o aumento do
custo da força de trabalho, sendo a hora extra um dos pilares sobre o qual se apóia a
reestruturação produtiva ( ANTUNES, 2000).
Outras formas encontradas pelos trabalhadores da enfermagem para o aumento da
remuneração são a sublocação de postos de trabalho e a substituição de colegas nas escalas de
plantão. A sublocação se mostrou como uma deformação no interior do serviço público trazendo
conseqüências do ponto de vista da ética com a coisa pública entre os trabalhadores e destes com
os usuários.
O multiemprego apareceu como a forma menos utilizada na busca de aumento dos
rendimentos, sobretudo para as enfermeiras. A precarização das relações de trabalho no setor
saúde por meio de contratos sem vínculo efetivo da flexibilização de direitos trabalhistas e de
terceirização foi constatado por Pires (2001), Medeiros (2000), entre outros autores. Somando-se
a esta constatação identificou-se que no RN está em curso um processo de precarização das
relações de trabalho de servidores públicos, por dentro do Estado. Ao ter duas jornadas de
trabalho o servidor público passa a ter também duas identidades: o funcionário efetivo com
direitos trabalhistas definidos em lei e o trabalhador com uma relação de trabalho precária.
Além desta constatação, a adoção da escala extra pelo governo estadual vem
contribuindo para a estagnação do emprego no setor público de saúde, na medida em que faz com
que os funcionários do seu quadro assumam postos que poderiam estar ofertados no mercado de
trabalho.
Apesar da criação de postos de trabalho no setor saúde por meio das políticas públicas e
do incremento da tecnologia observadas por Pires (2001), no presente estudo fica claro que o
mercado de trabalho pode ser impossibilitado de abrir novos postos de trabalho, pela adoção de
políticas que priorizem a hora extra como forma de redução de custos com a forças de trabalho.
Sob o aspecto da vida cotidiana, ficou evidenciada a repercussão do aumento da jornada
de trabalho no desenvolvimento das atividades profissionais; nas relações familiares e na vida
particular dos trabalhadores da enfermagem em virtude da redução do tempo livre.
Em se tratando da força de trabalho feminino, foi verificado que a ampliação do tempo
de trabalho não significa a desresponsabilização da mulher frente ao trabalho doméstico. Ao
contrário, há a utilização do restrito tempo livre para a realização das tarefas domésticas.
A situação dos trabalhadores da enfermagem evidenciada neste estudo está intimamente
relacionada com a reestruturação produtiva que imprimiu a flexibilização das relações de trabalho
e pelo neoliberalismo que por meio do ajuste fiscal vem restringindo o investimento em saúde e
limitando o gasto com os servidores públicos.
A reestruturação produtiva, assim como o neoliberalismo, colocou a classe numa
posição que Laurell (2002) chamou de avanço em direção ao passado. A perda de direitos, a
utilização da força de trabalho e também infantil para intensificação da produção a baixo custo; o
aumento da jornada de trabalho por meio de horas extras; a intensificação do ritmo de trabalho
aumentando o tempo de trabalho opressivo; o desemprego estrutural (ANTUNES, 2000); entre
outros, submete os trabalhadores, em alguns aspectos, às condições de vida da período da
Revolução Industrial quando não havia nenhum ou pouca regulação do trabalho sobre o capital.
Em um movimento dialético, a profunda exploração do trabalho pelo capital fez com
que a classe trabalhadora se fortalecesse, questionando as entranhas do modo de produção
capitalista e fazendo com que vários direitos viessem a minimizar os efeitos da exploração sobre
ela. No entanto, estes limites colocados estão sendo minados de forma paulatina com a ofensiva
do capital após os sinais de recuperação da crise dos anos 70, tendo forte impacto sobre os
mecanismos de organização como os sindicatos e partidos da classe trabalhadora (ANTUNES,
2000, 2001).
[...] estão tomando de nós, tirando de nós conquistas que são históricos, de muitos anos,
de muitas décadas. Centenas de trabalhadores morreram, deram seu sangue, sua vida pra
que hoje tivéssemos trinta dias de férias [...] um terço de férias [...] licença-maternidade,
pra que você tivesse o plantão noturno com direito à folga e repouso. Então tudo isso
foram lutas que muitas pessoas tiveram, só que estão sendo tiradas de nós [...] (R2).
Hoje, com as perdas impostas pelo capital, a classe trabalhadora está diante do desafio
de retomar a luta contra as formas de sociabilização do capital (ANTUNES, 2000, 2001), e faz-se
necessário voltar a questionar as suas entranhas por meio do fortalecimento da consciência de
classe, elemento imprescindível para mudança da sociedade.
Dessa forma, a discussão abordada por Antunes (2001) sobre os sentidos do trabalho, é
relevante a afirmação de que para que o capital se reproduzisse foram geradas profundas
transformações na sociedade, desde relações de gênero, passando pela produção de bens e objetos
de consumo até as manifestações subjetivas como a arte. Toda a sociedade move-se em função da
reprodução do capital, inclusive criando valores subjetivos que definem as relações e o
comportamento humano.
Mediante essa constatação, Antunes (2001) identifica dois desafios para a humanidade:
o primeiro é a recuperação da sociedade no sentido de retornar à lógica do “atendimento das
necessidades humanas básicas”. O segundo desafio é a conversão do trabalho em atividade livre
baseada no tempo disponível e não no tempo excedente para a geração da mais valia.
Medeiros (2000) em consonância com o pensamento de Antunes afirma que só a partir
da re-inversão da submissão do trabalho ao capital é que se cria a possibilidade para a
manifestação de uma subjetividade autêntica e por isso cheia de vida
*
.
Essa re-inversão deve ser orientada pela produção do trabalho que se questiona em
relação ao quanto no que se refere á jornada e em relação ao seu significado,
indagando-se sobre para que e para quem serve este trabalho, produzindo, portanto,
dentro e fora do trabalho, o sentido que se tornaria a extensão fora do trabalho.
Só com transformação da lógica societal passando da reprodução do capital para a
reprodução da vida, é que o trabalho tornará a ser uma atividade fundante do homem, sendo fonte
de realização e dando sentido à vida na sua particularidade e coletividade.
*
Grifo da autora.
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ANEXOS
ANEXO 1
QUADRO DE IDENTIFICAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
GRUPO
CODIFICAÇÃO
DATA DAS
ENTREVISTAS
AUXILIARES E
TÉCNICOS DE
ENFERMAGEM
T1
A2
T3
T4
T5
A6
A7
A8
A9
T10
A11
T12
T13
T14
T15
A16
T17
T18
A19
25/05/03
26/05/03
27/05/03
28/05/03
28/05/03
28/05//03
09/06/03
30/06/03
30/06/03
30/06/03
09/07/03
12/07/03
17/07/03
17/07/03
19/07/03
21/07/03
21/07/03
21/07/03
22/07/03
ENFERMEIROS
E1
E2
E3
E4
E5
E6
E7
E8
E9
E10
09/06/03
09/06/03
09/07/03
12/07/03
12/07/03
14/07/03
15/07/03
19/07/03
19/07/03
27/07/03
GESTORES
G1
G2
G3
G4
23/07/03
11/08/03
18/08/03
20/08/03
REPRESENTANTES DE
ENTIDADE DE CLASSE
R1
R2
30/08/03
30/08/03
ANEXO 3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROJETO DE PESQUISA “AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO: QUAL A
REPERCUSSÃO NA VIDA DOS TRABALHADORES DA ENFERMAGEM?”
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Informante n° ( ) Iniciais do informante: ( )
Data de Nascimento: ______/______/________
a) Objetivo e justificativa da pesquisa:
Obrigado(a) pela sua participação como voluntário(a) em nossa pesquisa. O objetivo é
estudar as repercussões do aumento da jornada de trabalho na vida dos trabalhadores da
enfermagem de um serviço público de saúde. Com isto serão obtidas informações capazes de nos
auxiliar a produzir novos conhecimentos para contribuir com a reflexão dos trabalhadores em
saúde, das instituições e entidades de classe sobre o mundo do trabalho em saúde na atualidade.
b) Riscos possíveis e benefícios esperados:
Não identificamos riscos nesta pesquisa uma vez que limita-se a obter dados qualitativos
a partir da fala dos entrevistados. Os benefícios que esta pesquisa pode trazer é a contribuição
para reflexão dos trabalhadores, instituição e entidades de classe sobre as repercussões do
aumento da jornada.
c) Procedimentos:
Inicialmente será feita uma entrevista gravada, se você permitir, onde você responderá a
algumas perguntas sobre o seu trabalho. As perguntas lhe serão entregues previamente para que
tenha conhecimento do seu teor. Será também utilizado um diário de campo para registrar
eventuais observações.
Ressarcimento: se tiver algum gasto financeiro pelo seu deslocamento, será devidamente
ressarcido.
Não há previsão de ressarcimento financeiro para outras despesas pessoais.
d) Acesso às informações:
A entrevista será previamente marcada e combinada com você, que escolherá a melhor
data e hora para sua realização. Você também poderá desistir da pesquisa em qualquer momento,
mesmo que você tenha assinado este termo de consentimento.
As informações obtidas de cada participante são confidenciais e somente serão usadas
com o propósito científico, sem divulgar o nome do participante. Para garantir a
confidencialidade, cada entrevistado terá um código de identificação de acordo com a ordem
cronológica das entrevistas, por exemplo: informante I1, I2, I3. As informações dos dados brutos
e de um caderno-síntese para a consolidado das respostas sistematizadas ficarão guardados sob a
minha responsabilidade por um período de 5 anos. A pesquisadora, os demais profissionais
envolvidos nesse estudo e o Comitê de Ética e Atividades Reguladoras terão acesso aos arquivos
dos participantes para verificação de dados sem, contudo, violar a confidencialidade necessária.
e) Tratamento dos dados
Após a conclusão da pesquisa será feito um relatório de acesso público; haverá uma
apresentação do relatório para uma banca de professores na UFRN; e uma apresentação pública
no hospital pesquisado, no sentido de retornar as informações obtidas e o resultado final da
pesquisa.
f) Termo de consentimento:
Declaro que, após ter lido e compreendido as informações contidas neste formulário,
concordo em participar desse estudo. E através deste instrumento e da melhor forma de direito,
autorizo a mestranda de Ciências da Saúde da UFRN/Natal, Verônica Simone Dutra Veras,
brasileira, Enfermeira, portadora da carteira de identidade SSP/PB 936.002 e COREn 46040, a
utilizar as informações obtidas sobre minha pessoa através do que for falado, escrito e visto, com
a finalidade de desenvolver trabalho de cunho científico na área da Enfermagem.
Autorizo também a publicação do referido trabalho de forma escrita, podendo utilizar os
depoimentos dados por mim. Concedo também o direito de retenção e uso para quaisquer fins
de ensino e divulgação em jornais e/ou revistas científicas do país e do estrangeiro, desde que
mantido o sigilo sobre minha identidade, podendo usar pseudônimos.
Declaro ter ciência que tal trabalho será desenvolvido através da realização de
observação, entrevista e diário de campo.
Natal,________________________________________
De acordo,
____________________________________________
Endereço:____________________________________
____________________________________________
____________________________________________
CI: _________________________________________
CPF:________________________________________
ANEXO 4
INSTRUMENTO DE ENTREVISTA 1
N° DO QUESTIONÁRIO: _____________
CATEGORIA PROFISSIONAL: ________________________________
FUNÇÃO: __________________________________________________
IDADE: ___________ SEXO:_____________
GRAU DE INSTRUÇÃO: _____________________________________
1- Quantas horas de trabalho semanal? E mensal?
2- Quais os seus vínculos trabalhistas?
3- Você tem escala extra de trabalho?
4- Quais os direitos trabalhistas no vínculo de trabalho e/ou na escala extra?
5- Quais os motivos que a (o) levaram a procurar outras formas de emprego e/ou escalas extras
de trabalho?
6- Você poderia descrever o seu cotidiano?
7- Qual é o seu tempo livre?
8- Sua jornada de trabalho tem influência sobre sua vida profissional e pessoal? Por quê?
9- E na sua saúde, a jornada de trabalho tem alguma influência?
10- Você participou de algum curso de atualização profissional ultimamente?
11- Como você avalia a situação dos servidores públicos de saúde nos últimos 10 anos?
12- Como você avalia a situação dos serviços públicos de saúde?
13- Você visualiza saídas para os servidores e para o setor de saúde?
ANEXO 5
INSTRUMENTO DE ENTREVISTA 2
N° DO QUESTIONÁRIO: _______________
CATEGORIA PROFISSIONAL: _________________________
FUNÇÃO: ____________________________________________
IDADE: _______________ SEXO:______________
GRAU DE INSTRUÇÃO: ________________________________
1- Como você vê a ocorrência do multiemprego e de escalas extras entre os trabalhadores da
enfermagem? E da escala extra?
2- Alguns entrevistados referiram-se a existência de sublocação de postos de trabalho, como
você avalia esta situação no hospital?
3- A que você atribui a ocorrência do multiemprego, escala extra e sublocação?
4- Você identifica diferença no desempenho dos profissionais que têm multiemprego e/ou
escalas extras para os que não têm? Como?
5- Para você o que são direitos trabalhistas e como você avalia estes direitos em relação aos
servidores na atualidade?
6- Como você vê a atual política de recursos humanos no serviço público de saúde?
7- Como você avalia a situação dos servidores públicos de saúde nos últimos 10 anos?
8- Como você avalia a situação dos serviços públicos de saúde?
9- Você visualiza saídas para os servidores e para o setor de saúde?
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