Download PDF
ads:
1
Verônica Moreira dos Santos Pires
A CIDADANIA DESAFIADA NO ESTUDO DO CASO FRANCÊS
Dissertação defendida como parte
dos requisitos para obtenção do
Título de Mestre do Programa de Pós-
Graduação em História Comparada
(PPGHC) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
Orientador:
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira Da Silva
Linha de Pesquisa:
Instituições e Formas Políticas
Rio de Janeiro
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Ficha Catalográfica
Pires, Verônica Moreira dos Santos, 1967-
A cidadania desafiada no estudo do caso francês / Verônica
Moreira dos Santos Pires. – 2008.
189 f. : il. color. ; 30 cm
Orientador: Francisco Carlos Teixeira Da Silva.
Trabalho de conclusão de curso (mestrado) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-Graduação em
História Comparada (PPGHC), 2008.
1. Cidadania. 2. Estado. 3. Identidade. 4. Imigrante. 5. França.
I. Teixeira Da Silva, Francisco Carlos. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Programa de Pós-Graduação em História
Comparada (PPGHC). III. Título.
ads:
3
Folha de Aprovação
Autor: Verônica Moreira dos Santos Pires
Título: A Cidadania Desafiada no Estudo do Caso Francês
Dissertação a ser defendida como parte dos
requisitos para obtenção do Título de Mestre
do Programa de Pós-Graduação em História
Comparada (PPGHC) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Banca de Avaliação
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira Da Silva (Orientador) – PPGHC/UFRJ
Profa. Dra. Sabrina Evangelista Medeiros – PPGHC/UFRJ
Profa. Dra. Cristina Buarque de Hollanda – IUPERJ/UCAM
Suplentes
Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho – PPGHC/UFRJ
Prof. Dr. Antônio Celso Pereira – PPGCP/UFRJ
Resultado:
Data:
4
À Maria Nilma, uma
força que deixou
muita saudade.
5
Agradecimentos
Conheci muitas pessoas e acumulei dívidas ao longo do caminho. Registro
aqui a minha gratidão aos funcionários da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), em especial aos membros do Programa de Pós-Graduação em História
Comparada (PPGHC), sempre envolvidos com o bom andamento dos trabalhos.
Algumas dessas pessoas me ajudaram e me incentivaram mais diretamente e de
diferentes formas. A professora Regina Bustamante, o professor Fábio Lessa e as
secretárias Márcia e Leniza estão entre elas.
Cinco amigos têm sido meus instigadores constantes nos últimos dois anos.
Nossas intensas conversas amenizaram em muito minha luta solitária ao longo da
elaboração e redação deste texto. São eles: Bárbara Lima, Josélia de Castro, Cesar
Ignácio, Magda Silva e Daniel Chaves.
Também tive o prazer de contar com o auxílio de diversos professores. Com o
professor Helion Póvoa Neto, sempre carinhosamente atento, entrei em contato com
a Geografia Humana. Com o professor Alexander Zhebit, e suas contribuições na
área das Relações Internacionais, pude ter meu espectro de análise ampliado. Em
conversas menos formais com os professores Silvio Carvalho e Cristina Buarque de
Hollanda levei comigo valiosas reflexões. E, no momento da qualificação do projeto
de pesquisa, os elogios, as críticas e sugestões do professor Luiz Eduardo Soares
foram e ainda são para mim motivo de grande orgulho.
Tarefa difícil é agradecer à professora Sabrina Evangelista Medeiros.
Iniciamos com as aulas de Teoria Política; passamos pelo auxílio, leitura e
comentários sobre o projeto de pesquisa; atravessamos a construção do texto; e hoje
consolidamos uma grande amizade.
Tarefa ainda mais difícil é agradecer ao meu orientador, professor Francisco
Carlos Teixeira Da Silva. Profissional competente, dotado de inexplicável
capacidade de indicar qual documento explorar e qual texto ler, ainda esbanja
habilidade em misturar, em doses exatas, confiança, crítica, encorajamento e
paciência. Eternamente grata...
Meus familiares suportaram durante esses dois anos, não apenas as variações
de humor; na verdade, eles fizeram muito mais. Meus sinceros agradecimentos vão
para minha mãe, Maria Nilda, todo o tempo disposta a encher bolsas e mais bolsas
de livros, para que não me faltasse bibliografia. Além disso, sempre se manteve
aberta a discussões acaloradas sobre opiniões divergentes relativas ao trabalho. Para
minha filha, Raquel, que soube respeitar a necessidade do silêncio dentro de casa,
indispensável à concentração. O volume da música ficava, a cada dia, mais baixo.
Para meu marido, Mario, que não poupou esforços para que eu pudesse permanecer
diante do computador, mergulhada neste trabalho, pelo tempo necessário. Para
minha sogra, Sônia que, por várias vezes, não me deixou com fome e para minha
avó, Maria, que muito rezou...
6
Os homens nunca seriam tão estúpidos a ponto de
assumir compromissos que pudessem ser vantajosos
apenas aos outros, sem nenhuma perspectiva de
melhorar sua própria condição.
David Hume
7
RESUMO
Analisar a conjuntura dos distúrbios ocorridos nas periferias francesas, em
2005, e seus envolvidos, com base nas fontes e no suporte teórico-metodológico é o
objetivo geral de nosso trabalho. Com isso, busca-se evidenciar o parcial
deslocamento do Estado-nação e seu conseqüente afastamento das questões sociais
estabelecendo, desta forma, uma nova relação entre indivíduo e sociedade.
A legitimidade e a solidez do nosso modelo de organização e convivência
política, ou seja, do Estado-nação, além de suas ões - na esfera do social - serão
então questionadas a partir da análise sobre a atualidade do vínculo entre cidadania,
nacionalidade e identidade nacional. Esta se fará sentir através de uma abordagem
comparada entre os textos clássicos, a produção recente sobre o tema e as fontes
primárias selecionadas.
RÉSUMÉ
Analyser la conjoncture des troubles survenus dans les périphéries françaises,
en 2005, et de qui en a fait partie, prenant pour base les sources et le support
théorique et méthodologique est l'objectif général de notre travail. De la sorte, on
cherche à mettre en évidence le déplacement partiel de l'État-nation et son respectif
éloignement des questions sociales, établissant ainsi un nouveau rapport entre
individu et société.
La légitimité et la solidité de notre modèle d'organisation et convivance
politique, à savoir, de l'État-nation, au-delà de ses actions - dans le domaine social -
seront donc questionnées à partir de l'analyse sur l'actualité du lien entre
citoyenneté, nationalité et identité nationale. Celle-ci se fera sentir par l'entremise
d'un abordage comparé entre les textes classiques, la production récente sur le
thème et les sources primaires sélectionnées.
8
Sumário
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................199
CAPÍTULO 1. SOBRE O FUTURO DO ESTADO-NAÇÃO.........................................................377
1.1. SOBRE A GLOBALIZAÇÃO E SEUS IMPACTOS.................................................................377
1.2. SOBRE O DESLOCAMENTO DO ESTADO...........................................................................444
1.3. SOBRE AS FORMAS DE CONVIVÊNCIA POLÍTICA ...........................................................56
CAPÍTULO 2. O DEBATE ACERCA DA CIDADANIA NA ATUALIDADE.............................69
2.1. UMA BREVE ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A TRAJETÓRIA DA CIDADANIA.....69
2.2. ALGUMAS DIMENSÕES DA CIDADANIA NA CONTEMPORANEIDADE ..................77
2.3. A CIDADANIA NACIONAL EM PERSPECTIVA: O CASO FRANCÊS .............................81
CAPÍTULO 3. A CIDADANIA EM QUESTÃO? ..............................................................................99
3.1 ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DO VÍNCULO SOCIAL..................................................99
3.2. O PERFIL DA IDENTIDADE NACIONAL FRANCESA PARA O SÉCULO XXI ............109
3.3. UM NOVO MODELO DE CIDADÃO PARA UM NOVO MODELO DE CONVIVÊNCIA
POLÍTICA?.............................................................................................................................................119
CONCLUSÃO .....................................................................................................................................1366
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 147
FONTES ................................................................................................................................................. 159
ANEXOS ................................................................................................................................................ 164
9
Apresentação
Milhares de carros queimados, prédios públicos destruídos, algo em torno de
4.700 pessoas detidas, mais de 400 condenadas à prisão fechada e, entre outras ações,
a instauração do estado de urgência no território francês. Tal quadro informa o saldo
dos acontecimentos que, entre 27 de outubro e 8 de novembro de 2005, sacudiram a
França e chamaram a atenção do restante do mundo.
Iniciada nos bairros pobres das periferias de Paris a Révolte des Banlieues’ ou
‘Revolta das Periferias’ (como ficou conhecida) durou menos de 15 dias, porém o
tempo suficiente para alastrar-se na direção de várias das principais cidades
francesas. Aproximadamente 300 localidades, incluindo Nice, Lyon, Marselha, Rennes,
Nantes, Rouen e Quimper foram atingidas pela onda de violência. A forma
aparentemente desordenada das primeiras ações mostrava, no transcorrer de cada
noite, uma crescente e surpreendente organização. Mas, afinal, como tudo começou?
E quem são os envolvidos?
Há, de fato, uma unanimidade entre os autores no que diz respeito à seqüência
de fatos relevantes que teriam desencadeado a ‘Revolta das Periferias’, a saber: em
junho daquele ano (quatro meses antes do início dos ‘motins’) o então Ministro do
Interior Nicolas Sarkosy, fazendo referência a um crime cometido na periferia da
região metropolitana de Paris, teria afirmado, em entrevista, ser necessária uma
limpeza com Karcher (equipamento que remove a sujeira através de jatos de água
quente sob pressão) na ‘escória’ dos bairros pobres.
Em seguida, no dia que marca o início das ‘revoltas’ (27 de outubro de 2005)
com o saldo de 15 veículos incendiados, dois jovens (um de 15 e outro de 17 anos de
idade) do bairro pobre de Clichy-sous-Bois, localizado à nordeste de Paris, morrem
eletrocutados em um gerador da EDF (Electricité de France). De acordo com Muttin,
testemunha e sobrevivente, os três fugiam de uma perseguição policial.
Por fim, diante de um crescente número de ocorrências, enfrentamentos e
detenções, no dia 30 de outubro uma bomba de gás lacrimogêneo, lançada pela
polícia, interrompe um ritual religioso de uma mesquita em Bilal, bairro também
localizado na periferia. Desde então, o agravamento do cenário podia ser
diariamente acompanhado pela grande mídia.
1
A seguir, o mapa das regiões afetadas permite-nos visualizar a dimensão das
‘revoltas’ na periferia parisiense.
Fonte: Instituto Rosa Luxemburgo
Quanto aos envolvidos, também registra-se uma unanimidade que aponta na
direção dos habitantes desses bairros pobres localizados nas periferias das grandes
cidades francesas. De acordo com Gérard Mauger, tudo indica, por meio de uma
amostra dos que foram detidos pela polícia e apresentados aos tribunais, que os
manifestantes venham sobretudo das fileiras dos chamados ‘jovens em dificuldade’ [...]. Eles
1
Maiores detalhes sobre os acontecimentos consultar ALBALA, Nuri & SIRE-MARIN, Evelyne. Sob Estado
de Urgência. Le Monde diplomatique, Brasil, dez. 2005. Disponível em:
http://diplo.uol.com.br/imprima1205.
Acesso em: 5 jun. 2006; BONELLI, Laurent. Revoltes des banlieues: les raison d’une colère. Le Monde
Diplomatique, França, dez. 2005. Disponível em:
http://www.monde-
diplomatique.fr/2005/12/BONELLI/12993. Acesso em: 3 jan. 2006; COGGIOLA, Osvaldo. A revolta da
juventude na França. Instituto Rosa Luxemburgo. Portugal, 15 nov. 2005. Disponível em:
http://www.insrolux.org/textos2005/coggiolafranca.pdf. Acesso em 29 maio 2006; MAUGER, Gérard. O
outono dos motins. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 nov. 2005. Mundo, p. A 30; e VIDAL, Dominique.
Combater o apartheid. Le Monde diplomatique. Brasil, dez. 2005. Disponível em:
http://diplo.uol.com.br/imprima1207. Acesso em: 5 jun. 2006.
são originários de famílias populares, em sua maioria de imigrantes, fragilizadas [...] e
depauperadas pelo desemprego em massa e a precariedade”.
2
Por assim dizer, os distúrbios
iniciados em outubro de 2005 acabaram por denunciar a precária França dos
imigrantes e seus descendentes. Mais especificamente, as novas massas urbanas
formadas por cidadãos, nascidos na França, não brancos e não cristãos. Aqui
começam as nossas inquietações diante do atual modelo de organização política
conhecido como Estado-nação e da abrangência da cidadania, compulsoriamente
vinculada ao mesmo.
A condição de cidadão confere portanto ao indivíduo um status particular no
sistema sócio-político. Naturalmente, tal status corresponde a um conjunto
de funções. Por sua vez, cada um destes constitui um complexo de
expectativas de comportamento e deveres.
3
[A] Cidadania pode ser definida como o estatuto oriundo do relacionamento
existente entre uma pessoa natural e uma sociedade política, conhecida como
o Estado, pelo qual a pessoa deve obediência e a sociedade lhe deve proteção.
[...] estatuto baseado na regra da lei e no princípio da igualdade.
4
Quanto aos conceitos de Estado e de Estado-nação, seguem as contribuições
de William L. Kolb; e de David Held e Anthony McGrew:
Por Estado entende-se um agrupamento de pessoas que vivem num
território definido, organizado de tal modo que apenas algumas delas são
designadas para controlar, direta ou indiretamente, uma série mais ou menos
restrita de atividades desse mesmo grupo, com base em valores reais ou
socialmente reconhecidos e, se necessário, na força.
5
As grandes inovações do Estado-nação moderno a territorialidade que fixa
fronteiras exatas, o controle monopolista da violência, a estrutura impessoal
do poder político e a afirmação singular da legitimidade, com base na
representação e na responsabilização marcaram seus traços definidores (e,
às vezes, frágeis).
6
A conjuntura dos distúrbios ocorridos nas periferias francesas e seus
envolvidos informam não apenas o nosso estudo de caso, como propõe, para que o
trabalho seja levado a bom termo, o período que compreende o ano de 2002 ao ano
2
MAUGER, loc. cit.
Gérard Mauger é sociólogo, diretor de pesquisas do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e
diretor adjunto do Centro de Sociologia Européia (fundado por Pierre Bourdieu).
3
QUINTANA, Juan Blasco. Cidadão (Ciudadano). In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de ciências
sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986, p. 178.
4
SVARLIEN, Oscar. Cidadania (Citizenship). In: Id. Ibid., p. 177.
5
KOLB, William L. Estado (State). In: Id. Ibid., p. 416.
6
HELD, David & MCGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,
p. 26.
de 2007 e alguns fatores que contribuem para a escolha desse recorte temporal. Em
2002, a França e o mundo assistiam, perplexos, a chegada do partido de extrema-
direita francês, Frente Nacional (FN), liderado pelo emblemático Jean-Marie Le Pen
e seu discurso abertamente racista antiimigração, ao segundo turno das eleições
presidenciais.
7
o ano de 2007, também marcado por eleições presidenciais,
inspirou novas inquietações, uma vez que Nicolas Sarkosy, ministro do interior no
período dos distúrbios ocorridos nas periferias francesas e líder da União por um
Movimento Popular (UMP), partido circunscrito à esfera da direita, foi candidato
favorito desde o início da corrida presidencial. Dado relevante é que Sarkosy, atual
presidente da França, após exitosa estratégia de afastamento das ideologias
partidárias e de oportuna aproximação com parcela significativa de eleitores de
centro-direita durante sua campanha, foi acusado, como mencionamos, de ser o
estopim da onda de violência que marcou o país em 2005 e se fez anunciar
novamente em 2006, levando o mesmo a tomar severas precauções no intuito de
impedir uma reedição dos acontecimentos do ano anterior.
8
Acrescente-se às balizas temporais de nosso trabalho o fato de que nossas
fontes, especialmente importantes para o nosso objeto de estudo, inserem-se no
contexto acima apresentado. E é, através da análise das manifestações que permeiam
a proposta de pesquisa em questão, que defendemos um real aprofundamento no
campo das instituições e formas políticas, com ênfase nos recursos teórico-políticos e
metodológico-comparativo. Assim sendo, o estudo da festejada divisa ‘Liberdade,
Igualdade e Fraternidade’, bem como da abrangência da cidadania a partir de seu
próprio ‘berço’ não está limitado aos aspectos isolados daquela sociedade, mas, por
assim dizer, à parcela dos cenários hodiernos que contribuem com processo
histórico.
7
Para maiores informações sobre as eleições presidenciais na França em 2002 ver TEIXEIRA DA SILVA,
Francisco Carlos. Revoluções Conservadoras, Terror e Fundamentalismo: Regressões do Indivíduo na
Modernidade. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org.). O século sombrio: uma história geral do
século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004a (pp.169-173).
8
Detalhes sobre a candidatura de Nicolas Sarkosy em CARTA, Gianni. Cenário eleitoral francês começa a se
definir para 2007. In: BBC Brasil. De Paris, 05 maio 2006. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/printabl...
Acesso em: 17 nov. 2006.
Nossas reflexões iniciais partem do caloroso debate sobre a intensificação dos
movimentos migratórios e os problemas que os mesmos suscitam em nível
planetário. No entanto, podemos afirmar que tais movimentos não fazem parte
apenas de nossa história mais recente, haja vista o imediato pós-Segunda Guerra
Mundial e os milhões de migrantes coloniais que fizeram parte da reconstrução da
Europa.
O estudo de caso envolvendo os distúrbios iniciados nos bairros pobres das
periferias de Paris, em outubro de 2005, oferecerá, neste caso, preciosa oportunidade
para analisarmos, não apenas a anunciada precária França dos imigrantes e seus
descendentes, consubstanciada nas novas massas urbanas formadas por cidadãos,
nascidos no país, o brancos e o cristãos. Mas, também, oportunizará questionar
se, no atual contexto, a cultura política liberal de um país (no caso, de uma
democracia) pode manter-se cristalizada em torno da Constituição em vigor, sobre
um patriotismo constitucional.
Identificada a Democracia propriamente dita sem outra especificação, com a
Democracia direta, que era o ideal do próprio Rousseau, foi-se afirmando,
através dos escritores liberais, de Constant e Tocqueville e John Stuart Mill, a
idéia de que a única forma de Democracia compatível com o Estado liberal,
isto é, com o Estado que reconhece e garante alguns direitos fundamentais,
como são os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de
reunião etc., fosse a Democracia representativa ou parlamentar, onde o dever
de fazer leis diz respeito, não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um
corpo restrito de representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são
reconhecidos direitos políticos.
[...] o processo de democratização, que consiste no cumprimento cada vez
mais pleno do princípio-limite da soberania popular, se insere na estrutura do
Estado liberal entendido como Estado, in primis, de garantias.
9
Dentro dessa lógica, o presente trabalho enfrentará o embate acerca do
deslocamento do Estado-nação, desafiado pela globalização e seus impactos,
analisando o quanto a mudança de foco por parte dos Estados inseridos na maré
globalizante pode ter levado expressiva parcela de suas populações, marginalizada
social e economicamente, a demonstrar desinteresse e falta de energia para atuar em
lutas políticas internas legítimas, percebidas, então, como secundárias.
9
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. (1983) 12 ed.
2 v. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 323-324.
Envolvida por diálogos múltiplos, é sabido que a globalização não viabiliza um
conceito simples ou mesmo coerente.
Dentro das tradições compartilhadas da investigação sociológica, seja da
economia neoclássica, seja da teoria sistêmica mundial, nenhuma explicação
singular da globalização atingiu o status de uma ortodoxia. Ao contrário, as
avaliações rivais continuam a ordenar a discussão.
10
E é sob o risco de desprivilegiar alguns aspectos não menos importantes, que
nos deteremos às questões espaço-temporais, materiais e cognitivas da globalização,
acreditando serem as mesmas de especial valor para a nossa reflexão ao longo deste
trabalho.
Em assim sendo, e em conformidade com Held e McGrew conceberemos a
globalização:
1- Como ‘compressão espaço-temporal’ fazendo alusão à forma como a informação
e a comunicação vêm revolucionando as percepções de distância e de tempo dentro
e entre as sociedades;
2. Como ‘interdependência acelerada’ ou a partir da nova dinâmica como se
entrelaçam economias e sociedades distintas e distantes, fazendo com que
acontecimentos no interior de um Estado possam refletir de forma impactante em
outros Estados ou no mundo como um todo;
3- Como ‘um mundo em processo de encolhimento’ causado pela pressão da
atividade econômica nas fronteiras e barreiras geográficas;
4- Como ‘integração global’ no sentido da reordenação das relações de poder inter-
regionais e da tomada de consciência do cenário global por grande parte da
população mundial.
11
A percepção do deslocamento parcial do Estado chama a atenção para a
emergência de diversas fontes alternativas de identidades sociais atreladas a
perspectivas civilizacionais, religiosas, étnicas etc., colocando, aparentemente, a
noção de cidadania subordinada a de identidade social. Ou, ainda, para a
10
HELD & MCGREW, op. cit., p.9.
11
Id. Ibid., p. 11.
emergência de um novo modelo de convivência política, diferente da configuração
contida no modelo Estado-nação, com uma cidadania reconfigurada.
Para nortear parte de nossas reflexões privilegiaremos o conceito de Allan G.
Johnson sobre identidade social ou self, termos tratados como sinônimos pelo autor.
Quanto ao conceito:
De uma perspectiva sociológica, o self é um conjunto relativamente
estável de percepções sobre quem somos em relação a nós mesmos, aos outros
e aos sistemas sociais.
O self é organizado em torno de um autoconceito, ou seja, as idéias e
sentimentos que temos sobre nós mesmos. Essas idéias têm origem em várias
fontes. [...] Em um nível mais estrutural, o self baseia-se também em idéias
culturais sobre os status sociais que ocupamos. [...] Este componente do
autoconceito, que se baseia nos status sociais ocupados pelo indivíduo, é
conhecido como identidade social.
O self é socialmente “construído”, no sentido de ser moldado através de
interação com outras pessoas. [...] o indivíduo não é um participante passivo
desse processo, e pode exercer uma influência muito forte sobre a maneira
como o processo e suas conseqüências se desenvolvem.
12
Outros conceitos-chave como, por exemplo, soberania, identidade nacional e
Estado-mercado serão extraídos da literatura clássica sobre os temas e serão
destacados ao longo do texto. O objetivo da utilização desses e de outros conceitos é
transformá-los em ferramentas analíticas para o bom andamento do trabalho com o
nosso objeto.
Por sua amplitude e em defesa de um real aprofundamento no campo das
instituições e formas políticas, nosso estudo apresentará, obrigatoriamente, uma face
multidisciplinar, não hierarquizada. Aqui, a História dialogará com a Antropologia,
a Ciência Política, a Sociologia, o Direito e as Relações Internacionais entre outras
áreas do conhecimento não menos importantes. Além da análise dos textos e seus
contextos, e da contribuição da estatística, uma abordagem com ênfase nos recursos
metodológico-comparativos informará algumas possibilidades de análise,
distanciando-se da univocidade e estimulando a discussão sob diversos ângulos.
Analisar a conjuntura dos distúrbios ocorridos nas periferias francesas, em
2005, e seus envolvidos, com base nas fontes e no suporte teórico-metodológico é o
objetivo geral de nosso trabalho. Com isso, buscaremos evidenciar o parcial
12
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997, p. 204.
deslocamento do Estado-nação e seu conseqüente afastamento das questões sociais
estabelecendo, desta forma, uma nova relação entre indivíduo e sociedade.
A legitimidade e a solidez do nosso modelo de organização e convivência
política, ou seja, do Estado-nação, além de suas ações (na esfera do social) dentro do
contexto da globalização serão questionadas a partir da análise sobre a atual relação
entre nacionalidade, identidade nacional e cidadania. Esta se fará sentir através de
uma abordagem comparada entre os textos clássicos e a produção recente sobre o
tema.
[...] a identidade nacional é definida como o “sentimento de
pertencimento em relação às instituições do Estado-nação”, enquanto
o caráter nacional é definido como o “sentimento de participação em
relação às instituições do Estado-nação”.
13
Caberá identificar, a partir da proposta comparativista, a possibilidade de uma
cidadania de ‘segunda classe’, sugerida por Eric Hobsbawm, dentro do modelo
Estado-nação, ou a existência de uma cidadania reconfigurada nos moldes de um
novo modelo de convivência política e de uma nova identidade nacional, como por
exemplo, o modelo apresentado como Estado-mercado por Philip Bobbitt.
14
Com o foco direcionado para os distúrbios iniciados nos bairros pobres da
periferia de Paris, em outubro de 2005, envolvendo imigrantes e seus descendentes,
vemos desafiada a capacidade de abrangência da cidadania francesa, haja vista o
fato de que é sabido que nos referimos às novas massas urbanas formadas, em
grande parte, como revelado por Gérard Mauger, por cidadãos, nascidos na França,
e nas condições de sua existência e reconhecimento como tal.
15
Sem a pretensão de criar uma diferenciação interna neste segmento da
população (imigrantes e seus descendentes), em que parte do mesmo é composta
13
CAPPELLO, Héctot Manuel. Efeitos da Globalização Econômica sobre a Identidade e o Caráter das
Sociedades Complexas. In: MENDES, Candido (coord.) & SOARES, Luiz Eduardo (ed.). Pluralismo cultural,
identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 117.
14
Hobsbawm se refere à possibilidade de uma cidadania de segunda classe em HOBSBAWM, Eric J. O novo
século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 173-178.
Já Philip Bobbitt desenvolve sua teoria sobre o Estado-mercado em BOBBITT, Philip. A guerra e a paz na
história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro:
Campus, 2003, pp. 635-775.
15
MAUGER, loc. cit.
por cidadãos franceses, não se pode descartar, através deste estudo de caso, a
preciosa possibilidade de analisar, para além das questões que envolvem a discussão
sobre racismo e xenofobia, a relação entre nacionalidade e cidadania, considerando o
fato de que esta ainda é, para um mundo amplamente constituído, em princípio, por
Estados-nação, a única forma conhecida e legítima de obter garantias plenas
fundamentadas na igualdade de direitos e de deveres.
Diante do exposto, este trabalho estará norteado pela hipótese de um parcial
deslocamento do Estado-nação que, ao deixar de desempenhar o papel de principal
mediador dos conflitos sociais internos, abre espaço para um novo modelo de
organização e de convivência política, ou seja, um novo modelo de Estado.
Este novo modelo de Estado será analisado a partir da mencionada
contribuição de Philip Bobbitt, que nos apresenta o Estado-mercado como a
emergente forma de organização e de convivência política, na medida em que o
Estado-nação vai, gradativamente, sofrendo seu inevitável deslocamento. De uma
forma sumariada, se o Estado-nação tem em sua concepção a idéia de um
instrumento a serviço da nação e tem sua legitimidade fundamentada na crença de
sua habilidade para garantir o bem-estar dos seus cidadãos, o que abandona o
Estado-mercado é a pretensão de oferecer bem-estar para todos os cidadãos. Busca,
de acordo com o autor, sua legitimidade através de sua habilidade para garantir que
o maior número de indivíduos, mas inevitavelmente não todos, façam uso das
oportunidades que o mercado oferece. Mais poderoso política e militarmente, suas
ações parecem bastante inclinadas para as condições de segurança garantidoras do
livre jogo do mercado.
16
Se, seguindo a lógica de Martin Van Creveld, o Estado-nação mostra-se
internamente enfraquecido face ao processo de globalização e a noção de uma
cidadania de segunda classe ganha fundamento através da reflexão de Eric J.
Hobsbawm, cabe lembrar que o princípio da igualdade não viabiliza a fragmentação
da cidadania em cidadanias diferenciadas. Assim sendo, podemos sustentar a
16
Cf. BOBBITT, Op. cit., pp. 635-775).
hipótese de uma única concepção de cidadania, ainda que reconfigurada e
excludente.
17
Esta cidadania, para além de sua questionável relação compulsória com a
nacionalidade e com a esfera do Jurídico, resultaria, em parte, da perda da confiança
depositada no Estado sob a forma de contrato. Apareceria consubstanciada na
habilidade de auto-gestão das demandas individuais, na trajetória bem-sucedida
independente da atuação Estatal, e no status social do indivíduo agora idealizado
como receita e, não mais, como despesa.
17
VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HOBSBAWM, loc. cit.
Introdução
Refugiados climáticos, exilados políticos, imigrantes econômicos, expatriados
formam, a cada ano, grupos de milhões de pessoas entre a opção de mudar de país,
ou de submeter-se às condições de permanência. Para os que migram a acolhida tem
sido, em geral, independente do continente, difícil e as leis são cada vez mais
restritivas. Ainda assim, as dificuldades não impedem que as migrações atinjam, na
atualidade, uma amplitude sem precedente.
Para além dos acontecimentos registrados nas periferias francesas, em 2005,
como descrito em nossa apresentação nas páginas anteriores, relatórios de
consagradas organizações como o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados), a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a ECRI
(European Commission against Racism and Intolerance), a CEPAL (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe), a Anistia Internacional e, entre outras, a The
Human Rights Watch freqüentemente apresentam denúncias de desrespeito e, a
mesmo de violações dos direitos humanos envolvendo imigrantes e seus
descendentes em diversos países.
Vale ressaltar, que os movimentos migratórios não fazem parte apenas de nossa
história mais recente e que a ‘revolução’ da informação pode, atualmente,
influenciar nossas percepções a respeito de temas diversos. Contudo, em que pese a
ferocidade da mídia, a citada implementação do estado de urgência e sua
prorrogação por três meses, votada no Senado francês ainda sob o calor dos ‘motins’,
acaba por informar a gravidade dos acontecimentos. Sobre o estado de urgência na
França destacam-se o aumento dos poderes da polícia possibilitando incriminações
de contornos pouco nítidos, a intensificação do poder geral de vigilância e de
controle atribuído ao Executivo e, entre outras possibilidades, a suspensão da
liberdade de circulação.
18
A lei francesa sobre o estado de urgência foi elaborada em
18
Para maiores detalhes sobre o estado de urgência na França verificar o conteúdo da Lei n°55-385 du 3 avril
1955. Loi instituant un état d’urgence et en déclarant l’application en Algérie in: Le Journal officiel de la
1955 para coibir os conflitos na Argélia. Nunca antes utilizada na própria França,
nem mesmo o agitado maio de 1968 assistiu sua implementação. A título de
ilustração, em maio de 1968 a França entrava em ebulição a partir da mobilização
estudantil. Tal mobilização iniciou-se em março do mesmo ano, chegou ao seu ápice
em maio e se estendeu até junho. Os estudantes ocuparam todas as universidades,
realizaram passeatas e enfrentaram a polícia francesa em violentas batalhas.
19
A opção pelo estudo do caso francês se impõe na medida em que estudos de
caso apresentam possibilidades surpreendentes para o pesquisador que tem pouco
ou nenhum controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em
fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real.
20
Em todas as situações, a clara necessidade pelos estudos de caso surge do
desejo de se compreender fenômenos sociais complexos. Em resumo, estudo de
caso permite uma investigação para se preservar as características holísticas e
significativas dos acontecimentos da vida real – tais como ciclos de vida
individuais, processos organizacionais e administrativos, mudanças ocorridas
em regiões urbanas, relações internacionais e a maturação de setores
econômicos.
21
Ademais, os estudos de caso, da mesma forma que os experimentos, podem
ser, em geral, generalizáveis a conjuntos claros de proposições teóricas bem
formuladas (e não a populações ou universos), assim como às circunstâncias nas
quais se acredita que as proposições sejam verdadeiras. Com o estudo de caso único,
por exemplo, pode-se, ao invés de enumerar freqüências (generalização estatística),
expandir teorias (generalização analítica). Baseado em várias fontes de evidências,
beneficia-se do desenvolvimento prévio de proposições teóricas para conduzir a
coleta e a análise de dados. O caso único “pode, então, ser utilizado para determinar se as
proposições de uma teoria são corretas ou se algum outro conjunto alternativo de explanações
Republique Française. Disponível em: <http:www.legifrance.gouv.fr? WAspad?Ajour?nor=&num=55-
385&ind=1&laPage=1&demande=ajour>. Acesso em: 18/02/2006.
19
Informações mais detalhadas sobre o chamado Maio Libertário dos estudantes e trabalhadores franceses
consultar: RIDENTI, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, FERREIRA, Jorge &
ZENHA, Celeste (org.). O século XX. 2 ed. 3 v. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações –
v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.133-159.
20
YIN, Robert K. Estudo de caso. Planejamento e métodos. 3 ed. Porto Alegre: Bookman, 2005 (p. 19).
21
Id. Ibid., p. 20.
possa ser mais relevante”.
22
Assim sendo, o presente estudo informa o resultado da
investigação levada por indagações diversas a respeito da ordem da constituição do
Estado Democrático e da cidadania.
Com o objetivo de sinalizar, com mais detalhes, que problemas com indivíduos
com origens mais ou menos longínquas no estrangeiro não estão circunscritos ao
território francês, apresentaremos um breve panorama da realidade de alguns
grupos de imigrantes distribuídos por todo o planeta.
23
Do Extremo-Oriente Seiji Umezawa observa que grande parte dos países aceita
acolher entre 5% e 10% de estrangeiros. Sendo o Japão uma, entre outras possíveis
exceções.
24
O Vice-Ministro da Justiça, Taro Kono, é o responsável pelo projeto que
limita o número de imigrantes no país em 3% da população total. Distante desta
cifra, o grupo de estrangeiros que vive no Japão atinge o percentual de apenas 1,2 da
população total.
Entre esses estrangeiros que vivem no país, Kazuhiko Yatabe e Kyoko Mori
trazem à tona uma triste realidade social: a dramática situação dos jovens latino-
americanos.
25
Explicam que a partir de 1990, ano de transformações na política
referente à entrada de estrangeiros no país, os descendentes de 250 000 emigrantes
japoneses instalados na primeira metade do século XX na América Latina, sobretudo
no Brasil, receberam o estatuto de ‘residentes permanentes’ desde viessem ao país
para trabalhar na terra de seus ascendentes.
26
Confrontada com a penúria da mão-de-obra no país, a sociedade japonesa
assistiu a abertura de suas fronteiras às populações consideradas, segundo Yatabe e
Mori, familiares’. Legal, mas também comercial, haja vista o fato dessas
22
Id. Ibid., p. 62.
23
Desde 1992, a Agência Courrier International presta serviço de informação a partir, sobretudo, da imprensa
escrita estrangeira. Tem por compromisso difundir, com periodicidade semanal, as diversas, ou mesmo, as
divergentes abordagens internacionais sobre temas variados como economia, saúde pública, atualidade científica
e cultural etc. Dispõe de acesso à mais de 800 periódicos em todos os continentes, além de diversas bases de
dados. As informações que nos ajudaram a montar o dito panorama foram extraídas da edição especial destinada
aos migrantes, conforme referência a seguir: DESTINS d’émigrés. Courrier International, França, n. 814, jun.
2006.
24
UMEZAWA, Seiji. L’école s’adapte aux étrangers. Ibid., p. 32.
25
YATABE, Kazuhiko & MORI, Kyoko. “Monko” La Porte. Loc. cit.
26
Para maiores detalhes sobre a situação dos trabalhadores brasileiros no Japão consultar declaração disponível
em: http://www.tfemploy.go.jp/htdocs/port/common/bbs/psengen.html . Acesso em: 3 out. 2006.
transferências de pessoas terem sido agenciadas por empresas especializadas, o
Japão experimentou uma nova realidade para a qual não parecia estar preparado.
Na seqüência, a crise econômica dos anos recentes acabou por fragilizar as
comunidades das vilas industriais, como a da Toyota e a da Hamamatsu, formadas
sobretudo por brasileiros; ao mesmo tempo em que a ausência de uma infra-
estrutura adaptada, principalmente no que tange à educação, conduzia os jovens
imigrantes a uma situação dramática crescente. Os autores chamam atenção para
uma sociedade que transformou laços de sangue em garantia de integração.
Aqui deparamos com o desafio de refletir sobre fenômenos coletivos, suas
origens, suas metamorfoses e suas significações. E é nesse sentido que procuraremos
delinear, com Eugène Enriquez, entre outros, em que sentido um mal-estar social
pode determinar condutas patológicas na dinâmica social; as razões através das
quais a sociedade civil se envolve em processos homogeneizadores fornecendo ao
Estado as bases de transmissão de seu poder a partir da multiplicação de
instituições; e o porquê destas instituições funcionarem mais como órgãos de
repressão do que como conjuntos edificadores de uma identidade sólida e
maleável.
27
O autor se debruça na questão da violência e da harmonia. Em outros
termos, na criação de instituições que representam o tipo social desejado e na da
construção de mitos (religiões ou ideologias) garantidores de coerência mínima à
sociedade.
Para além das questões econômicas que permeiam, praticamente, todos os
casos descritos, nossa análise pode ser ainda mais valorizada se apresentarmos e
discutirmos, com o auxílio de Michael Walzer, a característica fundamental do
elemento imigrante, ou seja, o costume de reunir-se em grupos os quais mantêm
relações com grupos semelhantes.
28
Nesta sociedade surge o que o autor denomina
identidade hifenizada ou dupla. O exemplo ítalo-americano ajuda-nos a entender o
que vem a ser esta categoria de identidade, a saber: em ‘ítalo’ deve estar embutida
apenas uma identidade cultural, enquanto que em ‘americano’ a referência seja um
indicativo de identidade política. Para o autor, a identidade hifenizada vem obtendo
27
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1991.
28
WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
mais sucesso no âmbito mais específico da religião e justifica o relativo sucesso das
comunidades religiosas a partir do alto grau de intolerância que as mesmas foram
submetidas ao longo de suas histórias. Assinala que a intolerância tem, como
conseqüência, unir e reforçar grupos.
29
Indo além, dependendo do grupo em questão, essa identidade pode ser
considerada duplamente hifenizada. Para esta categoria podemos utilizar o exemplo
franco-magrebino: uma cultura que, transformada em sua origem (a região do
Magreb), acabou por assumir uma forma intensamente ‘afrancesada’. Melhor
dizendo, é uma adaptação de estilos e práticas políticas locais.
30
Na Alemanha, Vera Gaserow informa a implementação de testes aos
candidatos à naturalização, a partir de 2006, em dois Estados Federais (Länder).
31
Adverte que tais testes podem ser estendidos por todo o país. Bade-Wurtemberg e
Hesse introduziram questionários sobre cultura e valores gerais nos processos de
aquisição da cidadania alemã. No dia 5 de maio de 2006 os Ministros do Interior dos
dezesseis Länder que formam a Alemanha acordaram sobre a validade da aplicação
dos referidos questionários.
De acordo com Gaserow, a Alemanha possui dispositivos precisos sobre os
antecedentes criminais, a conduta no trabalho e, entre outros requisitos, os
conhecimentos lingüísticos exigidos aos candidatos à naturalização. No entanto, o
problema não parece residir no cumprimento das regras, mas na vida cotidiana. A
sociedade não vem se mostrando muito simpática aos ‘novos alemães’ (dois em cada
três cidadãos alemães são favoráveis aos questionários).
A última reforma elaborada para facilitar a obtenção da nacionalidade,
especialmente para os nascidos no país, objetivava uma melhor integração. Esse
automatismo esperado surtiu pouco efeito. Gaserow sugere que este resultado é
devido, em grande parte, aos sinais de rejeição emitidos, como mencionado, pela
própria sociedade, incluindo a classe política; mesmo quando se tratam de grupos
considerados absolutamente integrados. Diante do exposto, os novos testes que
29
Id. Ibid., p. 45.
30
Cf. Id. Ibid., p. 46.
31
GASEROW, Vera. Qui veut gagner son passeport? Courrier International, França, n 814, jun. 2006, p. 18.
exigem dos estrangeiros que eles sejam ‘os melhores alemães’, sob a ótica da autora,
podem trazer graves problemas para toda a sociedade.
Novamente com Michael Walzer nos debruçaremos sobre a temática da
tolerância, como a possibilidade e a condição necessária à coexistência pacífica de
grupos de pessoas com histórias, culturas e identidades diferentes. “A tolerância
torna a diferença possível: a diferença torna a tolerância necessária”.
32
A partir de sua tipologia da tolerância, o autor verifica que o Estado-nação, ao
contrário do que se possa pensar, não representa, necessariamente, uma
homogeneidade seja no âmbito da nacionalidade, da etnia ou da religião. Sua
existência se sob a forma de organização da vida social, a princípio por parte de
um grupo específico (o grupo dominante). Do sucesso dessa organização dependem
a continuidade de sua história e a preservação de sua cultura. Educação cívica e
cerimônias públicas, símbolos e feriados estatais ilustram bem seu caráter. Seus
membros podem atuar em vários níveis, como na economia, no bem estar social e,
entre outros, na política. “Mas o que justifica seus empreendimentos é a paixão humana
pela sobrevivência ao tempo”.
33
Sem a pretensão de esgotar as características da tolerância no âmbito do
Estado-nação achamos oportuna, para nossa discussão, a reflexão de Walzer, ao
remarcar que a tolerância tende a ir por terra quando seus ‘diferentes’ se mostram
perigosos, ainda que no nível do imaginário ou a partir de discursos construídos.
Nesses casos é que se pode observar com clareza uma característica extremamente
marcante do Estado-nação, a saber: a existência de uma maioria permanente como
fonte única da tolerância.
Na Grécia, assim como na Espanha, a imigração aparece como um fenômeno
recente. Vasilis Nedos explica que há aproximadamente 15 anos, principalmente
devido a sua posição geográfica, a Grécia tornou-se um país de acolhimento.
34
Grande parte de seus imigrantes são oriundos de países fronteiriços. Romenos,
32
WALZER, 1999, op. cit., p.11.
33
Id. Ibid., p. 35.
34
NEDOS, Vasilis. Le sud des Balkans zone de transit. Courrier International, França, n. 814, jun. 2006, p. 22.
albaneses e búlgaros formam, em geral, o contingente de imigrantes econômicos; ao
passo que afegãos, paquistaneses e turcos formam o grupo de refugiados políticos.
Nedos ressalta as dificuldades enfrentadas por esses grupos, a saber: um
trabalhador com, por exemplo, 10 anos de atividades laborativas comprovadas no
país, inclusive com participação na arrecadação de impostos, é atendido
gratuitamente nos hospitais públicos, mas não tem a garantia de que permanecerá
na Grécia no ano seguinte. Pois, a cada dez meses o imigrante que vive e trabalha no
país deve renovar sua carta de permanência. Ponto de encontro entre o Ocidente e o
Oriente, ou ainda, primeira fronteira européia com o Oriente-Médio, a Grécia
caminha, de acordo com parcela da sociedade que se diz amedrontada, para um
processo de ‘guetificação’. A nova geração de imigrantes está sendo acusada de não
se integrar tão bem quanto a que chegou no início da corrente migratória, 15
anos.
Todavia, recuando ao início da década de 1990, a título de esclarecimento, o
autor não registra mudanças significativas no processo de acolhimento do primeiro
grupo de imigrantes: de 1991 até os dias atuais, apenas algo em torno de 400 entre 1
milhão de imigrantes obtiveram uma permissão permanente. No que tange aos
refugiados, dados recentes denunciam o quanto o governo grego reflete sua própria
sociedade: em 2004, de acordo com os dados do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (ACNUR), apenas 11, dos 3 450 solicitantes de asilo
político, receberam uma resposta favorável, ou seja, 0,3% do total.
35
A realidade vivida pela Grécia não é, de fato, um caso isolado. Assim sendo, a
partir das análises de rgen Habermas e Liszt Vieira ressaltaremos a influência de
alguns recentes eventos históricos, os quais teriam tornado a relação entre cidadania,
nacionalidade e identidade nacional uma questão altamente relevante para o debate
atual sobre o nosso tema.
36
Primeiramente, a derrubada do Muro de Berlim (1989) e a
conseqüente desintegração do bloco formado pelos Estados da Europa oriental,
dando origem a inúmeros conflitos de nacionalidade. Tais eventos teriam
35
Cf. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), disponível em:
http://www.cidadevirtual.pt/acnur/news/news.htm . Acesso em: 22 set 2006.
36
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004
e VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio da Janeiro: Record, 1999.
contribuído para a atualização dos questionamentos sobre o futuro do Estado-nação.
Em segundo lugar, a tensão causada pela forma supranacional assumida na
formação da União Européia, contrastando fortemente com os processos de
formação dos Estados-nação europeus.
37
E, por fim, a intensificação dos fluxos
migratórios. Pois, a presença cada vez maior de grupos de origens diversificadas
parece conflitar os princípios das democracias constitucionais e as reivindicações
particulares das comunidades que visam a preservação de suas culturas.
As influências supracitadas teriam provocado, por um lado, a emergência e
ampliação da cidadania através de novas associações voluntárias (como nos casos
tcheco e eslovaco); por outro lado, a geração de graves conflitos étnicos, territoriais
etc. (a exemplo dos servos e kosovares). Esse paradoxo acabaria por denunciar a
contraditória relação entre cidadania e Estado-nação, ou ainda, entre cidadania e
identidade nacional. Ameaçada por pressões locais e globais, a cidadania nacional
reage, em defesa de sua identidade, através de um nacionalismo de cunho
separatista, inverso ao viés aglutinador de outrora.
[...] existe inscrita no auto-entendimento do Estado-nação uma tensão
entre o universalismo de uma comunidade legal igualitária e o particularismo
de uma comunidade cultural a que se pertence por origem e destino.
38
Aishwarya Subramanyam, por sua vez, denuncia uma Inglaterra que nunca
havia se mostrado tão abertamente hostil ao indivíduo de origem estrangeira como
na atualidade.
39
A onda de descontentamento crescente pelos imigrantes aparece
consubstanciada na nova regulamentação do trabalho desta categoria formada,
sobretudo, por profissionais de origem indiana.
Diante da crise financeira e da ameaça de supressão de cargos na área da saúde
pública britânica (NHS - National Health Service), o autor chama a atenção para as
37
Diferentemente das sangrentas batalhas que deram origem à grande parte dos Estados europeus e suas atuais
configurações territoriais, a chamada Comunidade Econômica Européia surgiu pacificamente em 1958, unindo
seis países: Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França, Alemanha e Itália. Dinamarca, Irlanda e Grã-Bretanha se
uniram ao grupo em 1973, formando a Comunidade Européia. Em 1981, foi a vez da Grécia de ingressar nesse
bloco, e, em 1986, de Portugal e Espanha. Uma quarta ampliação do grupo aconteceu em 1995, quando Áustria,
Finlândia e Suécia tornaram-se membros dessa organização, que, nesse estágio, já era chamada de União
Européia.
38
HABERMAS, 2004, op. cit., apud VIEIRA, 1999, op. cit., p. 3.
39
SUBRAMANYAN, Aishwarya. Les médicins indiens découragés. Courrier Internacional, França, n 814, jun.
2006, p. 21.
novas diretrizes anunciadas pelo Ministério da Saúde, as quais exigem dos
diplomados em medicina, oriundos de países extra-comunitários, a posse de uma
permissão de trabalho para prosseguirem sua formação na Inglaterra. Assim sendo,
um médico indiano que venha à Inglaterra para completar sua formação em
hospitais não poderá ocupar um cargo caso este convenha a um candidato britânico
ou a qualquer candidato pertencente aos países que compõem a União Européia.
Para o autor parece claro que o mérito deixou de ser uma prioridade para o
Ministério da Saúde britânico. Eric J. Hobsbawm acrescenta:
Os países ricos relutam cada vez mais em conceder o direito de
entrada ou de cidadania aos estrangeiros. A situação atual de forte demanda,
por um lado, e de medidas restritivas, por outro, corre o risco de criar duas
sociedades: a primeira desfrutando de plena cidadania e de todos os direitos, e
a segunda, constituída pelos estrangeiros, apresentando todos os traços de
uma cidadania de segunda classe.
40
Ainda segundo Subramanyam, o NHS emprega algo em torno de 15 000
médicos indianos. Milhares deles foram admitidos ao longo dos últimos anos devido
à penúria em que o sistema de saúde se encontrava por falta de pessoal
especializado. A política vigente no período não apenas encorajava a vinda de
médicos indianos para trabalhar no NHS, como muitas vezes os convidava.
Paradoxalmente, junto a essa nova regulamentação, a Inglaterra tem se esforçado,
mais do que nunca, para atrair estudantes indianos. Mas, para o autor, talvez não
seja uma questão tão paradoxal quanto parece, se considerarmos os mais de 4
milhões de livros que os estudantes estrangeiros rendem, por ano, ao país.
Mudando o foco para a América Latina, Alfred Rexach traz uma contribuição
digna de nota: para alguns latino-americanos, a esperança de uma vida melhor
passa pela emigração em direção aos países vizinhos localizados na região sul do
continente.
41
Porém, uma vez estabelecidos no país de destino, eles são tão vítimas
de discriminação quanto seus concidadãos o são nos países ricos. Informa que, a
cada ano, centenas de milhares emigrantes latino-americanos atravessam as
40
HOBSBAWM, 2000, op. cit., p. 175.
41
REXACH, Alfred. Ces Latinos-Américains qui vont vers le sud. Courrier International, França, n. 814, jun.
2006, p. 27.
fronteiras dos países vizinhos para fugir da precariedade e da privação de serviços
básicos como saúde e educação, ou seja, em busca de uma vida melhor.
Ainda que a CEPAL já tenha denunciado o racismo, a xenofobia e outras
formas de discriminação enfrentadas pelos imigrantes regionais latino-americanos
nos países de acolhimento (ricos ou pobres), a realidade deste grupo não parece ter
sido alterada. Estima-se, por exemplo, que a Argentina some 3 milhões de residentes
estrangeiros provenientes do continente sul americano, entre os quais, somente em
Buenos-Aires, de acordo com o governo local, 4000 bolivianos vivem em condições
de trabalho próximas a um regime de escravidão’. Indígenas imigrados costumam
ser discriminados por sua forma de falar, de comer ou de vestir.
42
Em outro pólo, Dubai, o mais pobre em petróleo dos sete Emirados Árabes
Unidos, está assistindo, praticamente uma década, a um boom imobiliário que fez
desta região um dos mais populares destinos turísticos do mundo. Dan McDougall
indica que esta região forma, atualmente, o maior canteiro de obra do Oriente Médio
e conta com numerosos hotéis de luxo, além de três dos maiores centros
comerciais do planeta.
43
Contudo, esse frenesi na construção, responsável por um dos centros turísticos
mais modernos do mundo e mais atraentes do Oriente dio, é tributário de uma
mão-de-obra estrangeira visivelmente descontente e progressivamente privada de
seus direitos mais elementares, como denunciou a organização Human Rights
Watch.
44
Um recente relatório desta organização mostra uma face bastante
preocupante da vida dos imigrantes desta região dos Emirados. Registra um
aumento progressivo na taxa de suicídios entre os trabalhadores estrangeiros de
Dubai, fenômeno que a organização atribui a condições de vida muito dura,
conjugadas a longas horas de trabalho e a remunerações excessivamente baixas. Em
2005 a organização registrou 80 suicídios de imigrantes indianos, contra 67 em 2004.
42
Cf. CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) disponível em:
http://www.eclac.cl/analisis/default.asp?idioma=ES&unbisCategory=8&unbisNumber=08.01.00 . Acesso em: 22
set 2006.
43
MCDOUGALL, Dan. Emeute sur le chantier. Courrier Internacional, França, n. 814, jun. 2006, p. 35.
44
Cf. Human Rights Watch disponível em: http://hrw.org/english/docs/2006/03/28/uae13090.htm. Acesso em:
23 set 2006.
Estima que 880 trabalhadores estrangeiros tenham morrido por acidente naqueles
canteiros de obra.
45
Em maio de 2006, no canteiro de construção da Burj Dubai Tower, que em 2008
se tornará a mais alta torre do mundo, trabalhadores promoveram o maior motim
visto nos Emirados. Movidos pelo não pagamento de seus salários e pelo tratamento
que recebem de seus empregadores, 2 500 trabalhadores enfrentaram seus patrões e
a polícia local causando um prejuízo de aproximadamente 1 milhão de dólares ao
destruírem veículos e escritórios do canteiro. Ali Al-Kaabi, Ministro do Trabalho dos
Emirados Árabes Unidos, anunciou que caso sejam julgados culpados, os
participantes detidos no motim serão expulsos para que sirva de ‘lição’ para os
outros.
46
Ao abordar o continente africano, Issa Sall descreve uma cena no mínimo
estarrecedora: uma embarcação carregada de passageiros, todos mortos,
provenientes do Senegal.
47
A hipótese é a de que perderam-se no mar, mas o registro
não é um fato isolado. Após a utilização de aviões, de barcos, dos caminhos
perigosos das caravanas saarianas, das travessias suicidas do Estreito de Gibraltar
com canoas e do enfrentamento dos arames farpados de Ceuta e de Melilla (enclaves
espanhóis no Marrocos) nada restou senão a via mais direta: o mar. O meio de
transporte, o mais inusitado: a piroga. As pirogas construídas para alto mar são
utilizadas para a pesca. No entanto, atualmente carregam candidatos à imigração a
o território espanhol via oceano. A Cruz Vermelha das Ilhas Canárias confirma que,
em apenas uma noite, 500 passageiros, conhecidos como boat people, desembarcaram
nesta costa transportados pelos ‘pirogueiros’ senegaleses. Em uma semana eles eram
milhares.
48
Segundo Sall, os estados europeus oferecem regularmente suporte financeiro
aos países africanos para que estes bloqueiem a ação de grupos candidatos à
imigração. Mas, a impossibilidade de conter os fluxos cada vez mais intensos vem
45
Id., Loc.cit.
46
Id., Loc. cit.
47
SALL, Issa. Une pirogue pour le paradis. Courrier Internacional, França, n. 814, jun. 2006, p. 38.
48
Cf. Informe Canárias 2006 disponível em: www.apdha.org/documentos/InformeCanariasJunio2006.doc .
Acesso em: 22 set. 2006.
levando a própria Europa a alargar suas fronteiras. Primeiramente eram os postos
de polícia de fronteiras nos aeroportos. Em seguida, as ações passaram para as
margens européias do Mediterrâneo, da Sicília e da Península Ibérica. Depois foi a
vez dos portos marroquinos. Nos últimos tempos, a fronteira européia chegava à
costa da Mauritânia. A Europa, constantemente voltada para novas políticas que
visem conter a imigração; da mesma forma que os estados africanos, dispostos a
acatar medidas para interromper os fluxos de emigrantes parecem não estar obtendo
êxito. Sall esclarece: não possibilidade de êxito quando, para qualquer jovem
africano, o inferno parece tão próximo e o paraíso distante, mas tangível.
Para refletir sobre os latino-americanos, os trabalhadores estrangeiros de Dubai
e a população africana candidata à imigração achamos essencial a contribuição de
Zygmunt Bauman.
49
Para o autor, a produção de ‘refugo humano’ (os que não
puderam ou não quiseram ser reconhecidos; e os que não tiveram permissão para
ficar ou condição para partir) é produto inevitável da sociedade moderna.
Conseqüência inevitável do processo histórico em curso e efeito colateral da
construção da ordem e do progresso econômico. Afirma não haver mais espaço
social para os párias da modernidade, os inadaptados, expulsos e, entre outros, os
marginalizados.
De uma outra região de forte apelo imigratório, a América do Norte, mais
precisamente dos Estados Unidos, Charles Babington informa a apresentação, em 25
de maio de 2006, de um texto que, se colocado em vigor, ‘sacudirá’ a política norte-
americana de imigração.
50
O texto reforça a segurança das fronteiras, estabelece um
sistema de trabalhadores convidados e promete regularizar a situação de milhões de
clandestinos através da naturalização. Sob a ótica do autor, o texto é produto de uma
frágil coalizão entre republicanos e democratas (62 votos contra 36 do Senado) e alvo
de uma grande oposição conservadora. Além da construção de uma cerca de 600
quilômetros ao longo da fronteira com o México e de um complexo sistema de
49
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005a.
50
BABINGTON, Charles. On régularise, on tolere, mais on eleve un mur. Courrier International, França, n.
814, jun. 2006, p.26.
regularização de estrangeiros, propõe a criação de prisões suplementares para os
que aguardam expulsão e promove o inglês à idioma oficial único.
O texto também prevê o aumento de 1000 agentes na Polícia de Fronteiras que,
por sua vez, recebe apoio de milhares de agentes da Guarda Nacional ao longo de
800 quilômetros de barreiras móveis. Pretende ainda distribuir 200.000 vistos por
ano para trabalhadores convidados e vistos especiais para trabalhadores agrícolas. A
proposição mais controversa diz respeito aos estimados 11,5 milhões de
clandestinos, então divididos em três grupos, a saber: as pessoas que se encontram
no país há, no mínimo, cinco anos deverão ter sua situação regularizada e poderão
solicitar a naturalização com a condição de pagarem seus impostos em atraso, de
aprenderem o idioma oficial e de não terem cometido infrações graves. O segundo
grupo é formado por pessoas que vivem no país entre dois e cinco anos. Estas
deverão voltar a seus países de origem e formalizar, de lá, uma solicitação que lhes
permita retornar. Por fim, os quase 2 milhões de clandestinos presentes no território
menos de dois anos deverão deixar o país ou estarão sujeitos à expulsão. Os
condenados por crime ou por três delitos serão expulsos independente do tempo
que estejam nos Estados-Unidos.
51
na região do Golfo rsico, Mohamed Al-Assoumi discorre sobre a decisão
tomada por suas seis ‘Petrolideranças’ no final de 2005: limitar a permanência dos
trabalhadores imigrantes em seis anos não renováveis.
52
Todavia, em maio de 2006
os escritórios de comércio desses mesmos países se reuniram em Abou Dhabi para
publicar um comunicado segundo o qual esta decisão iria certamente prejudicar a
competitividade do setor privado e a atração dos investidores estrangeiros; em
outras palavras, o crescimento econômico. Apesar de terem conhecimento do alto
investimento feito, tanto pelas empresas locais para formar os trabalhadores, quanto
pelo governo, para acolhê-los, Al-Assoumi informa o principal argumento dos
dirigentes do Golfo, qual seja: a preocupação com o fato de que esses trabalhadores
51
Informações complementares sobre as novas diretrizes relativas à imigração propostas pelo Presidente George
W. Bush estão disponíveis em : http://www.whitehouse.gov/news/releases/01/40107-3.html . Acesso em: 22 set
2006.
52
AL-ASSOUMI, Mohamed. Impossible de se passer d’eux. Courrier International, França, n. 814, jun. 2006,
p. 36.
podem, em algum momento de suas vidas, reivindicarem a nacionalidade de seu
país de acolhimento. No entanto, ainda com o autor, para garantir o crescimento
econômico não é possível abrir mão da mão-de-obra estrangeira, sendo certo que a
não renovação das cartas de permanência significaria uma perda considerável para
ambas as partes.
À valiosa contribuição de Al-Assoumi acrescente-se o fato de que países do
Golfo, como Oman, Bahrein, Arábia Saudita, Kwait e Qatar sofrem pressões
constantes de organizações internacionais, como a Human Rights Watch e a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) solicitando que os direitos dos
imigrantes sejam mais bem observados e respeitados.
53
Não só a proposta norte-americana, mas também o conflito de idéias verificado
na região do Golfo deverão recair na calorosa discussão, proposta por Martin Van
Creveld, sobre o enfraquecimento do modelo Estado-nação e o possível surgimento,
passo a passo, de um novo modelo organizacional de convivência política que Philip
Bobbitt nos apresenta como Estado-mercado acompanhado, necessariamente, de
uma cidadania reconfigurada.
54
Acrescente-se que as questões aqui levantadas não podem furtar-se da
contribuição teórico-metodológica de Robert D. Putnam e sua concepção de capital
social para a atualidade.
55
Em sua pesquisa, pautada em valores e em
comportamentos, o autor dedicou-se ao mapeamento dos contextos cívicos e ao grau
de envolvimento dos cidadãos em tais contextos, analisando as ordens de
prioridade. A análise, atual e coerente, não é inédita. Porém, o que Putnan traz de
novo é uma concepção de capital social a partir de sua influência no
desenvolvimento econômico.
53
Cf. carta redigida pelo Human Rights Watch para o Sheikh Zayid bin Sultan al-Nahyan, Presidente dos
Emirados Árabes Unidos (UAE) disponível em:
http://www.hrw.org/press /2003/04/gccuae.htm . Acesso em 23
set 2006 e o texto da International Labour Organization (ILO) ou Organização Internacional do Trabalho (OIT)
- Regional Office for the Arab States disponível em:
http://www.ilo.org/public/english/region/arpro/beirut/rights/rights11.htm . Acesso em 23 set 2006.
54
VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004 e BOBBITT, op.
cit.
55
PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 5 ed. Rio de Janeiro:
FGV, 2006.
Ademais, não se observava, até meados do século XX, pelo menos não de
forma ostensiva, nenhuma demanda de legitimidade por parte de grupos formados
por minorias. Tolerava-se o indivíduo a partir dos valores criados pela cidadania.
No entanto, novas ideologias globais parecem desafiar o domínio, até então bem-
sucedido, do ideal republicano; do ideal unitário contido em vários países do
chamado ‘mundo desenvolvido’. Numerosos grupos, de origens distintas e com
profundas diferenças (desde a religião, até pequenas práticas culturais cotidianas)
surgem dispostos a preservar e reproduzir seus próprios valores. Uma tensão entre
os tradicionais assimilacionistas e os novos grupos em busca de legitimidade
fundamentada na concepção do multiculturalismo traz à tona uma conturbada
realidade.
56
É dentro desse contexto que Cristina B. de Hollanda e Sabrina E. Medeiros
identificam, a partir da valiosa análise sobre capital social, a existência de ‘ilhas de
capital social’.
57
O pertencimento a grupos conexos originários da imigração ou a
vinculação a comunidades religiosas oferecem bons exemplos, haja vista o fato de
que a produção de capital social desses grupos tem seu espectro, em geral, no limite
de suas fronteiras internas. Nestes casos, bem como em outros rios possíveis, as
externalidades produzidas apresentam-se de forma negativa no âmbito da
sociedade, como um todo, promovendo um afastamento entre os grupos e,
conseqüentemente, entre os cidadãos.
Não menos importante é a sugestão de Michael Hardt e Antonio Negri (2005)
no sentido de superar conceitos ultrapassados como classe trabalhadora e proletariado,
por sua incapacidade de lidar com as complexidades contidas nas noções de etnia,
raça, gênero e classes da contemporaneidade.
58
A contribuição dos autores também
possibilita, para além da teoria, uma base metodológica a qual visa organizar pontos
comuns recorrentes nas manifestações de protesto cada vez mais organizadas em
movimentos poderosos e contínuos.
56
Cf. WALZER, 1999, op. cit., p. 55.
57
HOLLANDA, Cristina B. de & MEDEIROS, Sabrina E. Alguns debates conceituais a partir do capital social
norte-americano. In MIGUEZ, Ricardo (org). Anglophone studies: an anthology. EUA: The group School of
Criticism, 2002, pp. 135-165.
58
HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
Sem mais nos determos na apresentação dos cenários promovidos pelos
movimentos migratórios presentes, como visto, em todos os continentes, destacamos
que as atenções também se mostram voltadas, nos debates atuais sobre migrações,
para o estado mais populoso do mundo: a China. De portas abertas, o país
possibilitou que a presença chinesa se tornasse uma realidade no mundo inteiro.
Comerciantes, trabalhadores da construção civil, estudantes, turistas, homens de
negócios, pesquisadores ou, resumindo, representantes de praticamente todas as
atividades; da França ao Japão, passando por toda a Ásia, pela África, Canadá ou
Rússia, a migração chinesa aparece como a nova fonte de inquietação dos
formadores de opinião. O que não se pode esquecer é o fato de que o aumento dos
fluxos migratórios constitui uma das mais importantes características do processo de
mundialização, melhor dizendo, são movimentos inexoráveis e impossíveis de
serem desvinculados ou tratados à margem da atual dinâmica mundial.
O mapa, na página seguinte, para além do que foi brevemente abordado,
oferece a dimensão planetária dos fluxos migratórios ao longo do ano de 2006.
Fonte:
Courrier International
,
n.814, França, junho/2006
Por fim, outras preciosas fontes teóricas, além de valioso corpo documental,
estarão distribuídos ao longo de nosso trabalho, que se encontra dividido em três
partes, a saber: primeiramente, a premissa de um Estado-nação deslocado será
analisada a partir da globalização e seus impactos, além das formas de convivência
política que se apresentam na contemporaneidade. Em um segundo momento,
promoveremos um debate sobre cidadania buscando em sua trajetória e em algumas
de suas dimensões possíveis, sobretudo, na esfera da cidadania nacional,
apresentando o estudo do caso francês, as condições e/ou entraves para seu
exercício na contemporaneidade. A terceira parte tem como foco a temática da
cidadania e sua abrangência no território francês perpassando, além de algumas
questões teóricas sobre o vínculo social, uma via de construção de uma nova
identidade nacional alinhada a um suposto novo modelo de convivência política que
informa a transformação do clássico modelo Estado-nação. Assim sendo, sem a
pretensão de esgotar a discussão sobre o tema ou definir um novo modelo de
cidadão, seguiremos para a conclusão buscando ter contribuído para o debate
teórico sobre a abrangência da cidadania na contemporaneidade.
Capítulo 1 Sobre o Futuro do Estado-Nação
O formato que assumirão os Estados nacionais no novo recorte político é
matéria que nos deve preocupar, pois dele dependerá a distribuição da
renda gerada por sistemas de produção progressivamente imbricados.
59
1.1 Sobre a Globalização e seus impactos
Neste fim de século prevalece a tese de que o processo de globalização
dos mercados há de se impor no mundo todo, independentemente da
política que este ou aquele país venha a seguir. Trata-se de um ‘imperativo
tecnológico’, semelhante ao que comandou o processo de industrialização
que moldou a sociedade moderna nos dois últimos séculos.
60
No final da década de 1960 os EUA viram exauridos os saldos positivos
acumulados durante os anos que se seguiram ao período do pós-Segunda Guerra
Mundial. Por outro lado, a Europa (notadamente a Alemanha) e o Japão passaram a
ter saldos comerciais positivos e a acumular dólares. O mercado internacional
ganhava novos competidores, ao passo que o centro do capitalismo enfrentava uma
terrível crise.
De forma concomitante, a importância da educação para maior qualificação
da mão-de-obra, entre outros fatores, fez despontar uma parcela da sociedade mais
crítica e mais exigente. O mencionado ano de 1968 fora marcado como o ano da
mobilização iniciada pelos estudantes franceses, com repercussão em vários outros
países e suas respectivas singularidades. Um arejamento geral do mundo
acadêmico, críticas às contradições de uma sociedade que começava a ter problemas
sociais crescentes, à burocratização, à massificação e à alienação fizeram parte do
movimento que ficou conhecido pelo nome de Maio Libertário’. Nos países menos
desenvolvidos, 1968 foi além. Incluiu a denúncia à opressão econômica externa, ao
subdesenvolvimento crônico e aos autoritarismos.
59
FURTADO, Celso. O capitalismo global. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 7.
60
Id. Ibid., p. 26.
No início da década de 1970, a combinação do esgotamento do sistema de
acumulação característico do pós-guerra e do surgimento e aprofundamento de
problemas de ordem conjuntural adquiriram um peso preponderante. Foi decretado
o fim da paridade fixa do dólar em relação ao ouro e às outras moedas, fazendo com
que o dólar passasse a flutuar de acordo com as leis de mercado. O condimento final
foi a represália à reação israelense na Guerra do Yom Kippur (1973), contra a Síria e
o Egito, e o ponto final na espera da devolução dos territórios ocupados por Israel
desde a Guerra dos Seis Dias (Israel versus países Árabes, 1967), a saber: os
membros da Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo (OPAEP)
reduziram em 5% o fornecimento de petróleo (essencial para o desenvolvimento do
mundo industrial contemporâneo), aumentaram em 70% o preço do barril e
decretaram o embargo total de fornecimento do produto energético aos países que
apoiavam Israel - especialmente aos EUA.
61
Em resumo, 1973 foi o ano da crise que salientou o esgotamento do
modelo econômico montado no s-guerra. Os cortes nos programas sociais
aguçaram, ainda mais, a crise que atingia em cheio um universo de
trabalhadores acuados pelas mudanças tecnológicas, pelas novas tendências
de investimento do capital e pelo avanço de projetos que esboçavam a
subordinação completa do Estado ao mercado.
62
O prestigiado economista Celso Furtado também assinala a década de 1970
como o período que fez a crescente e agressiva relação de interdependência política
e econômica, sobretudo entre os Estados ocidentais, ganhar maior visibilidade. Esta
interdependência intensificada seria, então, uma das circunstâncias responsáveis
pelo desencadeamento de ltiplas reflexões acerca das abordagens ortodoxas
sobre economia, política e cultura, mormente separadas por suas dimensões internas
61
Para maiores informações sobre os episódios que marcaram as décadas de 1960 e 1970 consultar: TEIXEIRA
DA SILVA (org.), Francisco Carlos. Enciclopédia de guerras e revoluções do Século XX: as grandes
transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004b e PADRÓS, Enrique S. Capitalismo,
prosperidade e Estado de bem-estar social. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, FERREIRA, Jorge & ZENHA,
Celeste (org.). O século XX. 2 ed. 3 v. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras – v.2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, pp. 227-266.
62
Id. Ibid., p. 264.
e externas, ou seja, pelas esferas do nacional e do internacional ou, ainda, do local e
do global.
63
Acontecimentos mundiais externos passam a fazer forte ruído no interior das
nações, da mesma forma que situações internas, antes restritas às fronteiras
nacionais, geram conseqüências e/ou reações para além de suas próprias
circunscrições.
Diante de profundas e inquietantes mudanças globais, ideologias e grandes
teorias tradicionais vivenciam suas fragilidades. Por assim dizer, a noção de
globalização adquire, nesse sentido, expressão de novo paradigma. No entanto,
ainda com Furtado, as idéias ainda estão pouco claras quando se busca elucidar o
processo mais conhecido pela rubrica de globalização e, por esse motivo, vive-se um
período de notória insuficiência de quadro conceitual para apreender uma realidade
em tão rápida transformação.
64
Cientes de que as definições apresentadas no início do nosso trabalho
distinguem-se entre si no momento em que a ênfase ao processo de globalização
recai ora sobre um aspecto (como o material), ora sobre outro (como o cognitivo),
por exemplo, defendemos, no que tange ao seu aspecto material, bastante bem
caracterizado pelos fluxos de comércio, de capital e de pessoas ao redor do planeta,
que:
a globalização representa uma mudança significativa no alcance espacial
da ação e da organização sociais, que passa para uma escala inter-regional
ou intercontinental. Isso não significa que, necessariamente, a ordem global
suplante ou tenha precedência sobre as ordens locais, nacionais ou
regionais da vida social.
65
Quanto ao tempo social e ao espaço geográfico, até então percebidos como
coordenadas vitais da vida social do homem, a nova realidade faz com que pareçam
barreiras frágeis diante das várias formas possíveis de interação e de organização
sociais. O avanço das tecnologias de informação e comunicação reflete bem este
aspecto.
63
FURTADO, op. cit., pp. 27-33.
64
Id. Ibid., p. 21.
65
Id. Ibid., pp. 12-13.
Na esfera do cognitivo podemos registrar transformações expressas na
crescente conscientização popular no que diz respeito aos impactos causados por
acontecimentos distantes, afetando destinos e comportamentos locais, assim como
sua relação inversa.
Contudo, a título de reflexão, vale ressaltar que a globalização, ainda carente
de políticas de integração adequadas, nas palavras de Held e McGrew:
não deve ser entendida como algo que prenuncie o surgimento de uma
sociedade mundial harmoniosa, ou de um processo universal de interação
global em que haja uma convergência crescente de culturas e civilizações. É
que a consciência da interligação crescente não apenas gera novas
animosidades e conflitos, como pode também alimentar políticas
reacionárias e uma xenofobia arraigada. Uma vez que um segmento
significativo da população mundial não é diretamente afetado pela
globalização, ou fica basicamente excluído de seus benefícios, ela é um
processo profundamente desagregador e, por isso mesmo, vigorosamente
contestado. A desigualdade da globalização garante que ela fique longe de
ser um processo universal, uniformemente experimentado em todo o
planeta.
66
Com a derrubada do muro de Berlim (1989) e o colapso da URSS (1991),
consolidando, assim, o capitalismo em escala praticamente global, nota-se uma
intensificação, não apenas do debate acadêmico, mas também um entrosamento de
parcela expressiva das populações de rios países nas discussões sobre a
globalização, enquanto, na mesma medida, aceleram-se os processos de difusão da
informação e de sofisticação da comunicação. O mundo tem dado provas de sua
rápida transformação e, ainda que a noção de globalização por vezes favoreça e ao
mesmo tempo dificulte nossa compreensão da contemporaneidade, não é mais
possível deixar de reconhecer a importância das discussões sobre o tema.
Furtado verifica que, grosso modo, não mais quem ignore a inquestionável
concentração de poder manifesta, atualmente, nos chamados ‘mercados financeiros’,
dominados por atividades especulativas cambiais. Com o avanço do processo
globalizante, estes são os mercados que apresentam as mais altas taxas de
rentabilidade, resultando em uma distribuição de renda, em escala mundial,
66
Id. Ibid., pp. 13-14.
crescentemente determinada por operações de caráter virtual, efetuadas na esfera do
financeiro.
67
O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas divulgou, em relatório
oficial, que a globalização está associada à acelerada defasagem entre Estados ricos e
pobres, bem como entre os povos, na medida em que determina a localização e
distribuição da riqueza e da capacidade produtiva na economia mundial.
68
Todavia,
cabe lembrar que a defasagem entre regiões, países e estratos sociais apresenta-se
como um dado de realidade bem anterior ao chamado processo de globalização
desencadeado, mais precisamente, a partir da década de 1970 como já mencionado.
69
Ainda assim, o novo cenário proposto pela dinâmica globalizante também é
apontado como responsável por parte da reformulação dos padrões globais de
hierarquia e desigualdade, gerando profunda insegurança no que diz respeito às
oportunidades dos indivíduos e das coletividades. E, em assim sendo, torna-se mais
fácil entender porque o tema desigualdade global tornou-se uma das questões mais
relevantes e prementes na pauta da agenda global.
Responsabilizada, em grande parte, pelo aumento das disparidades de
oportunidades de vida no mundo inteiro, a globalização, assim interpretada por um
expressivo grupo de estudiosos sobre o tema, vem aprofundando a polarização da
renda e da riqueza.
70
Essa pobreza, entretanto, não se restringe ao sul, ao mundo em
desenvolvimento, mas vem aumentando também em alguns setores do
norte abastado.
[...] Nas economias da OCDE, a desigualdade, o desemprego e a exclusão
social aumentaram, que muitos empregos não qualificados foram
transferidos para empreitadas mais lucrativas em países em
desenvolvimento.
71
Seguindo essa lógica, ganha sentido a idéia de segmentação da força de
trabalho mundial entre ‘ganhadores’ e ‘não ganhadores’, sob o risco de grosseira
simplificação do cenário mundial, com a conseqüente marginalização dos não
67
FURTADO, op. cit., p. 7.
68
UNDP. United Nations Development Programme – New York. Human Development Report. 1999.
Disponível em:
http://hdr.undp.org/reports/global/1999/en/pdf/hdr_1999_full . Acesso em: 14 jun. 2007.
69
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Dinâmicas da Economia no Século XX. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco
Carlos (org.), 2004a, op. cit., p. 62.
70
UNDP. Loc.cit.
71
HELD & MCGREW, op. cit., pp. 72-73.
ganhadores’ e uma fragilização da solidariedade social das nações que, por sua vez,
não podem (ou o querem) mais assumir a responsabilidade de proteger os mais
vulneráveis, numericamente expressivos a cada dia que passa.
A produção econômica ganha uma nuance cada vez mais voltada não só para
a produção de bens materiais, mas, em última análise, para a produção de
informação, de comunicação e de cooperação, entre outras. Em suma, para a
produção de relações sociais e de ordem social. E, em assim sendo, a cultura aponta
como elemento significativo tanto da ordem política quanto da produção
econômica.
72
Vale ressaltar que, em conformidade com Luiz Eduardo Soares, todos
sabemos como é importante uma lida base política institucional para enfrentar problemas
sociais decorrentes das diferenças culturais”.
73
Mesmo nas economias mais avançadas, a competição global vem interferindo
na coesão social e nos programas políticos de bem-estar social. Da mesma forma, nos
países em desenvolvimento, os programas dirigidos à assistência social
supervisionados pelos organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial,
vêem seus investimentos com o bem-estar social altamente pressionados. Somem-se
outras deficiências no crescimento e na administração de políticas econômicas
nacionais e setoriais (agrícola, educacional, industrial etc.) as quais também
respondem pela estagnação, ou mesmo pela regressão diante do capitalismo global
de caráter competitivo.
Sob a ótica de Furtado, a crescente internacionalização dos circuitos
econômicos, financeiros e tecnológicos não apenas debilitam os sistemas econômicos
nacionais, como tendem a intensificar ou, talvez, circunscrever as atividades estatais
internas às esferas do social e do cultural.
74
E, é dentro desse contexto, que Estados
marcados por acentuada heterogeneidade cultural e/ou econômica podem estar
submetidos a crescentes pressões de forças desarticuladoras. Pois, a contrapartida da
preeminência da internacionalização pode, inclusive, aparecer sob a forma de um
afrouxamento dos vínculos de solidariedade histórica que unem, no caso de certas
72
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 419.
73
SOARES, Luiz Eduardo. Considerações Sumárias em torno do “Background” Intelectual da Conferência do
Rio. In: MENDES & SOARES. Op. cit., p. 15.
74
FURTADO, op. cit., p. 38.
nacionalidades, populações marcadas por acentuadas disparidades culturais e/ou
sócio-econômicas. Aqui podemos apontar os vários conflitos de nacionalidade
desencadeados pela desintegração do bloco formado pelos Estados da Europa
oriental, após a derrubada do Muro de Berlim, em 1989.
Pelos quadros, o que se verifica, para além da polarização dos Estados (entre
os cada vez mais ricos, os novos ricos, os cada vez mais pobres e os novos pobres) é
uma aceleração do processo de segmentação no interior das sociedades, o que pode
estar potencializando a exclusão de diversos grupos dentro de uma mesma nação e,
por assim dizer, os conflitos sociais por todo o planeta.
À medida que o domínio impessoal do capital se estende por todos as
sociedades e, em termos geográficos, por todo o planeta, o comando capitalista
tende a tornar-se um ‘não-lugar’, ou, talvez, um ‘todo lugar’. Para Hardt e Negri não
existe mais um lado de fora do capital.
75
Hoje em dia, constatamos desenvolvimento desequilibrado e trocas
desiguais entre os bairros mais ricos e mais pobres de Los Angeles, entre
Moscou e a Sibéria, entre o centro e a periferia de cada cidade européia,
entre o norte e o sul da costa mediterrânea, entre as ilhas do sul e do norte
do Japão – a lista poderia prosseguir indefinidamente.
76
Em outras palavras, a crise consiste especificamente no fato de que as
populações ‘pobres’ estão aumentando tanto nas regiões dominantes do
mundo quanto nas subordinadas.
77
Na interpretação de Bauman, o atual cenário sombrio também responde pelos
alarmes sobre a superpopulação do globo; pela centralidade, para a agenda política
moderna de vários países, das questões que envolvem os imigrantes e as pessoas em
busca de asilo e pelo crescente papel desempenhado pelos vagos e difusos temores
relacionados à segurança nas estratégias globais emergentes.
78
A título de síntese de nossa breve abordagem sobre a globalização e seus
impactos, sem a pretensão, logicamente, de esgotar a discussão sobre o tema,
seguimos com Vieira e sua valiosa contribuição sobre algumas importantes
dimensões da globalização, a saber: quanto à dimensão econômica, os agentes mais
75
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 142.
76
Id. Ibid., p. 214.
77
Id. Ibid., p. 217.
78
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005a, p. 14.
dinâmicos não seriam os Estados e seus mercados comuns em busca de integração
econômica, mas os conglomerados e as empresas transnacionais responsáveis pela
maior parte da produção, do comércio, da tecnologia e das finanças mundiais. No
que diz respeito à dimensão política da globalização, ainda que o Estado continue no
papel de ator preponderante da política internacional, os conceitos dominantes das
ciências sociais parecem inadequados para a compreensão de fenômenos e de
cenários transnacionais emergentes que extrapolam a esfera do econômico. Já a
dimensão social vive, em grande parte e de forma cada vez mais acelerada, o
processo de reestruturação econômica acompanhado do desemprego, do
empobrecimento, da exclusão social e da degradação ambiental. A dimensão
ambiental, por sua vez, sinais cada vez mais claros que a produção industrial e
agrícola, o desenvolvimento das biotecnologias e a urbanização acelerada, entre
outras ações, estão ameaçando gravemente a atmosfera, os oceanos, os rios, os lagos,
os lençóis de água, as florestas, a fauna e a flora. Por fim, a dimensão cultural e sua
tese mais conhecida por americanização do mundo, acabam por circunscrever a
discussão à concepção de nação, em suas variadas formas de leitura, e deixam de
analisar a globalização como um processo real. A circulação de idéias e de objetos
culturais pode, quem sabe, receber melhor análise quando tratada em termos de
universalização, e não de difusão, sendo certo que não se pode abandonar ou perder
de vista as relações entre a globalização e as instâncias de poder globais.
79
1.2 Sobre o deslocamento do Estado
podemos reconhecer que hoje o tempo se divide entre um presente que
está morto e um futuro que nasceu e o abismo entre os dois vai-se
tornando enorme.
80
Dos territórios da Europa ocidental e de seus domínios coloniais nasceram,
como apontam Held e McGrew, nos séculos XVIII e XIX, os Estados modernos e seu
aparato de legitimidade e de soberania sobre seus respectivos territórios. A
79
VIEIRA, 1999, op. cit., pp. 80-100.
80
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 447.
reificação do Estado conferia à estrutura estatal algumas características até então
associadas exclusivamente à pessoa do príncipe, quais sejam: na esfera interna, o
monopólio do uso legítimo da violência, e nas relações exteriores, o direito de
soberania.
81
Em conformidade com Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino:
Em sentido restrito, na sua significação moderna, o termo Soberania
aparece, no final do século XVI, juntamente com o de Estado, para indicar,
em toda sua plenitude, o poder estatal, sujeito único e exclusivo da política.
[...] isso ocorre em decorrência de uma notável necessidade de unificação e
concentração de poder, cuja finalidade seria reunir numa única instância o
monopólio da força num determinado território e sobre uma determinada
população, e, com isso, realizar no Estado a máxima unidade e coesão
política.
82
Considere-se que os Estados modernos envolvem coletividades de classes
diversas compartilhando um sentimento de identidade e de destino coletivo. Porém,
sua base apoiada em traços culturais, lingüísticos e históricos comuns, reais ou
imaginários é extremamente maleável e fluida
A atividade humana, associada ao Estado moderno, passava a ser regida pela
sua lógica, tornando o Estado onipresente no papel de regulador das condições de
vida de seus cidadãos. Entre a noção de direitos e de deveres do Estado moderno
testemunhou-se seu crescimento e seu alcance como uma das poucas realidades
inconteste do século XX.
Para Held e McGrew, é comum atribuir a origem dessa configuração do
poder político aos tratados conhecidos como a Paz de Westfália (1648) – tratados que
puseram fim à Guerra dos Trinta Anos. Porém, os mesmos verificam que tais
tratados devem ser vistos como um sistema de normas codificado, responsável por
uma trajetória normativa do direito internacional.
83
[...] uma série de mudanças na estrutura dos Estados, uma morfologia de
ordens constitucionais ou arquétipos [...] culminaram no formato do
Estado-nação, em fins do século XIX. então arraigou-se a idéia de que o
Estado constitui-se de modo adequado ou seja, legítimo a partir das
81
HELD & MCGREW, op. cit., p. 40.
82
BOBBIO; MATTEUCCI & PASQUINO. Op. cit., pp. 1179-1180.
83
HELD & MCGREW, op. cit., p. 25.
fronteiras de seu povo nacional [...]. A cada estágio dessa morfologia, as
alterações constitucionais faziam-se acompanhar de inovações estratégicas,
à medida que os Estados capazes de consolidar seu poder dentro de
determinadas jurisdições fiscais, reguladoras e administrativas
desenvolviam novas estratégias ou copiavam as novidades estratégicas de
seus concorrentes. Foram os êxitos estratégicos do Estado europeu que
converteram suas estruturas constitucionais arquetípicas em modelos para
o mundo [...].
84
Em síntese, do estabelecimento e desenvolvimento do Estado moderno surge
a concepção de Estado-nação definindo governantes e governados como corpos
políticos distintos, jurisdição suprema sobre determinado território, monopólio da
força coercitiva, legitimidade através da lealdade ou do consentimento de seus
cidadãos.
Localizado no centro da história moderna, O Estado-nação assumiu
progressivamente o papel de defensor dos interesses coletivos. Passou a intérprete
desses interesses e a assegurador da legitimação dos frutos advindos das conquistas
coletivas. Note-se que tal processo foi acompanhado de crescente participação da
sociedade, melhor dizendo, da democratização do poder em boa parte do mundo
ocidental, dito liberal democrático. Furtado acrescenta que nos bastidores deste
processo esteve a crescente capacidade de organização das massas trabalhadoras e,
por trás das mesmas um modelo de organização política, o Estado-nação,
comprometido, entre outras coisas, com o nível de emprego da população através da
proteção do mercado interno.
85
Mesmo existindo diferenças, aceitava-se como imperativa uma
condição de dignidade humana que seria comum a todos, e os governos
se legitimariam na medida em que efetivamente fossem capazes de
assegurar tais condições.
86
Além de preponderante modelo de governança política, o Estado-nação
cristalizou-se, desde o período das descolonizações (século XX) e do colapso da
URSS (1991), como uma forma política particular, qual seja: em geral, uma
democracia liberal representativa. Considere-se, todavia, que não se trata de uma via
84
BOBBITT, op. cit., p. 200.
85
FURTADO, op. cit., p. 22.
86
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Século XX: Entre Luzes e Sombras. In: TEIXEIRA DA SILVA,
2004a, op. cit., p. 4.
do tipo evolutivo para a consolidação da democracia liberal, haja vista a quantidade
de fragilidades e obstáculos que o caminho apresenta. Nesse sentido, para inúmeras
comunidades políticas, o alcance e a sustentação da democracia liberal ainda se
apresentam precários e, muitas vezes, duvidosos.
Vale lembrar que mencionada crise de energia da cada de 1970 teve
efeitos diferenciados nas economias de vários países. Ainda assim, a maior ou a
menor intensidade do impacto trouxe, para a grande parte dos países em processo
de internacionalização de suas economias, uma combinação de inflação e
estagnação, sendo certo que a crise levou economistas consagrados a uma
reavaliação e uma profusão de críticas ao modelo assistencialista implementado
pelos Estados.
Entre as várias ões atribuídas ao Estado-nação moderno podemos destacar,
objetivando uma maior aproximação de nossa temática central, ou seja, das questões
referentes à cidadania, a sistematização de uma língua nacional ou oficial, a
promulgação de uma identidade nacional e a construção de um conjunto
diversificado de instituições políticas, econômicas e culturais essencialmente
nacionais. Acrescente-se, em parte como via de promoção e de reforço da
solidariedade nacional, a criação de aprimoradas instituições de bem-estar social
envolvendo a assistência pública à saúde e a previdência social.
87
Mas o crescimento das organizações e coletividades internacionais e
transnacionais, desde a ONU e seus órgãos especializados até os grupos de
pressão internacionais e os movimentos nacionais alterou a forma e a
dinâmica do Estado e da sociedade civil. O Estado transformou-se numa
arena fragmentada de formulação de decisões políticas, permeada por redes
transnacionais (governamentais e não governamentais) e por órgãos e
forças internos. Do mesmo modo, a vasta penetração das forças
transnacionais na sociedade civil alterou sua forma e dinâmica.
88
A título de reflexão, o surgimento e a atual relevância de foros internacionais
como a cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU), do G 8 (grupo formado
pelos países mais desenvolvidos do mundo), da União Européia, do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC),
entre outros, viabilizam uma sólida reflexão acerca do possível rompimento entre o
87
HELD & MCGREW, op. cit., p.28.
88
Id. Ibid., p. 31.
vínculo exclusivo entre o território e o poder político, na medida em que a
autonomia do Estado torna-se, em parte, dependente da cooperação de órgãos
políticos e econômicos exógenos para levar adiante muitas de suas demandas e
projetos internos.
A legitimidade do Estado é questionada porque, com a maior
interdependência regional e global, os Estados não conseguem oferecer bens
e serviços fundamentais a seus cidadãos sem a cooperação internacional, e
até esta pode ser insuficiente diante dos problemas globais desde o
aquecimento da Terra até os movimentos voláteis dos mercados financeiros
-, que podem escapar por completo à regulamentação política. Na medida
em que a legitimidade política depende da competência e da capacidade de
“cumprir o prometido” aos cidadãos, ela fica sob uma pressão crescente.
[...] O poder político está sendo reconfigurado.
89
Destaque-se, ainda, a contribuição de Van Creveld, a saber: em sucessivos
estudos apresentados a partir da década de 1960, o autor descreve as burocracias
estatais como extremamente exigentes, propensas a gafes, arbitrárias, ineficazes e
resistentes a mudanças. Os termos burocracia e burocrata passavam a significar
coisa ruim e ofensa respectivamente.
Ainda com o autor, talvez mais marcante seja o destino da palavra ‘público’.
Na maioria dos casos onde o termo é aplicado, sobretudo após a desestruturação do
bloco soviético em princípios da década de 1990, o ‘público’ com significado de
pertencente ou de fornecido pelo Estado, tornava-se sinônimo de ‘segunda classe’.
Sobre a escola, em vários países, o melhor termo para qualificá-la passava a ser
‘particular’. Dependendo do país, porém não poucos, o ‘público’ relacionado ao pior
que se pode ter também se aplicava aos serviços médicos, à habitação, instalações de
lazer, transportes e outros campos que tornariam esta lista, no mínimo, entediante.
As circunstâncias demonstravam que uma empresa pública merecia permanecer
de pé se pudesse comprovar ser tão eficiente quanto a melhor entre as particulares.
90
A difícil tarefa de avaliar, em parte por suas questões subjetivas de sentido, o
destino das culturas nacionais diante do público e do privado, do local e do global
encontra seu maior contraste no debate sobre a globalização e sua multiplicidade de
89
Id. Ibid., p. 36.
90
VAN CREVELD, op. cit., p. 584.
dados que vão desde o comércio de mercadorias até o investimento externo direto e
toda a sua volatilidade.
Ainda que carregada de objetividade, a globalização concentra pontos
cruciais de discordância, inaugurando uma calorosa discussão sobre as formas e a
eficácia da gestão econômica contemporânea e, entre outros pontos, sobre a robustez
da autonomia econômica e da soberania. Em outras palavras, podemos inferir que
continuam faltando respostas consistentes para o possível surgimento de um novo
sistema que supostamente se impõe por todo o globo; para a eficácia da
administração nacional e internacional diante da nova face da economia na
contemporaneidade; e para a suspeita de que a competição de abrangência
planetária por mercados equivalem ao enfraquecimento das políticas econômicas
nacionais e ao fim do Estado de bem-estar social.
Teoricamente, numa economia globalizada, as forças mundiais de mercado
têm precedência sobre a situação econômica nacional, já que o valor real das
principais variáveis econômicas (produção, preços, salários e taxas de
juros) reage à competição global.
91
Operações de empresas multinacionais inserem economias nacionais e locais
em redes globais e regionais. Tal lógica aponta para a perda de autonomia e de
geração de riqueza das economias nacionais, pois as fronteiras são cada vez menos
consideradas quando o tema é a condução e a organização da atividade econômica.
Nessa dinâmica está inserido um processo de desnacionalização das atividades
econômicas estratégicas, incluindo, aí, a transição da produção industrial, por parte
das empresas multinacionais, para os países recém-industrializados ou em fase de
transição da Ásia, da América do Sul e da Europa oriental.
Por assim dizer, a força de trabalho global tanto nos países ‘ricos’, quanto
nos países ‘pobres’ segmenta-se e a antiga divisão internacional do trabalho, entre
o norte e o sul, vem cedendo espaço, sugerem os globalistas, a uma nova divisão
global do trabalho. Tal mudança implica uma reordenação das relações econômicas
inter-regionais e um, até então desconhecido, padrão de riqueza e de desigualdade,
91
HELD & MCGREW, op. cit., p. 50.
uma vez que não se circunscrevem às economias pós-industriais e às que se
encontram em processo de industrialização. A título de informação:
[...] a visão globalista rejeita a afirmação de que o conceito de globalização
pode ser simplesmente descartado como um constructo puramente
ideológico, ou como sinônimo do imperialismo ocidental. Embora não negue
que o discurso da globalização pode realmente servir aos interesses de
poderosas forças sociais do Ocidente, a explicação globalista enfatiza
também que ele reflete mudanças estruturais reais na escala da organização
moderna.
92
Furtado assinala que a integração política planetária em crescente processo de
realização reduz o alcance da ão reguladora dos Estados nacionais em que se
apoiavam diversas organizações como, por exemplo, as organizações sindicais. Às
conseqüências do exposto, a organização da atividade produtiva tende a ser
planejada na esfera multinacional (ou mesmo planetária), em prejuízo do poder de
negociação das massas trabalhadoras. Para o autor, este cenário pode ajudar a
entender parte do duplo processo de desemprego e de exclusão social, por um lado,
e, por outro, da intensificação da concentração de renda por, praticamente, todas as
partes do chamado mundo globalizado.
93
A grande contradição desta nova dinâmica talvez resida no fato de que, na
medida em que ultrapassa a esfera de regulação dos governos nacionais, esbarra na
limitada autoridade das instituições multilaterais de governança global. Afinal, os
Estados, em geral, resistem em transferir qualquer forma de poder substancial,
receosos em abalar sua, quem sabe já abalada, soberania.
Na esfera de atuação interna, os atuais governos nacionais, desafiados pelas
regras dos mercados financeiros globais e ameaçados pelas opções de saída do
capital produtivo móvel, vêm de forma cada vez mais evidenciada adotando
estratégias econômicas similares, ainda que com regras próprias, o que acaba por
limitar a autoridade política do Estado diante da necessária disciplina financeira que
caracteriza cada Estado e sua inquestionável singularidade.
Talvez, para compensar sua impotência cada vez maior, muitos
Estados também criaram o perturbador hábito de se envolver nos menores
92
Id. Ibid., p.18.
93
FURTADO, op. cit., p. 22.
detalhes da vida do povo. Na República da Irlanda não se podem obter
informações sobre o controle da natalidade; na Holanda é preciso pedir
permissão ao governo para pintar a fachada da casa na cor escolhida. [...]
em certas circunstâncias, o cidadão tem de tornar-se informante sobre a
família e os vizinhos (método antes reservado aos piores regimes
totalitaristas).
94
Diante do exposto, a competição global parece informar uma crescente
incapacidade, por parte de um número cada vez maior de Estados, de sustentar seus
níveis de proteção social até então existentes, ou mesmo de manter seus programas
de bem-estar social devido à volatilidade do capital, antes assegurado pelas
fronteiras nacionais.
Cabe pensar que um outro fator responsável pelo ponto de ruptura em que se
encontra o Estado de bem-estar social teria sido o seu próprio êxito. Independente
de sua forma exata, os diversos programas de bem-estar foram criados para auxiliar
grupos populacionais desprovidos de autonomia para a própria sobrevivência
(biológica e/ou social). Aqui podemos incluir idosos, doentes, desempregados etc. O
tamanho da lista de benefícios pode variar de acordo com o país em questão;
contudo, logo se descobriu que, quanto maiores os benefícios oferecidos, maior era o número
de pessoas que a eles tinham direito”.
95
Em assim sendo, é lugar comum - entre os estudiosos de viés globalista que
“a autonomia econômica, a soberania e a solidariedade social dos Estados contemporâneos
estão sendo drasticamente reduzidos pelos processos contemporâneos de globalização
econômica”.
96
sob a ótica de Hardt e Negri, os Estados continuam a desempenhar um
papel crucial na determinação e na manutenção da ordem jurídica e econômica. E,
em concordância com Saskia Sassen, atestam que suas ações se orientam cada vez
mais para a emergente estrutura do poder global, e não para os interesses
nacionais.
97
Seguindo essa lógica, não há contradição entre Estado e globalização.
Em outras palavras, não se trata de uma antítese, mas de um binômio.
94
VAN CREVELD, op. cit., pp. 587-588.
95
Id. Ibid., p. 519.
96
HELD & MCGREW, op. cit., p. 68.
97
HARDT & NEGRI, op. cit., p.213. Já Sakia Sassen aborda este tema em: SASSEN, Saskia. The State and
Globalization. In: HALL, Rodney & BIERSTEKER, Thomas (org.). The emergency of private authority in
global governancy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp.91-112.
Muito embora os Estados continuem a exercer funções preponderantes nas
esferas interna e externa de seus limites territoriais, mais de dois séculos depois que
a Revolução Francesa arregimentou o nacionalismo de cunho moderno, parece faltar
quem neles ainda acredite ou confie.
Em muitos casos, o recuo do Estado apresenta um caráter voluntário, como
no caso de cortes na previdência, na seguridade social, na educação etc. Na mesma
medida, quando procura melhorar as oportunidades de comércio abrindo as
fronteiras, consolidando relações com países vizinhos ou distantes, afiliando-se a
diversos tipos de instituições internacionais e submetendo-se aos regulamentos que
essas instituições impõem. Por outro lado, o recuo pode ter um perfil involuntário,
melhor dizendo, pode ser produto de inexoráveis forças econômicas, tecnológicas e
culturais, entre outras, que, não obstante atinjam diversas regiões de diversas
maneiras, parecem estar além do controle até mesmo dos Estados mais poderosos.
Também pode-se considerar que este mesmo processo aconteça à revelia. Neste caso,
não se trata de o Estado decidir integrar-se ou isolar-se, mas da lenta ou intensa,
porém inerente, erosão da qualidade dos benefícios que o mesmo pode ou vem
oferecendo.
98
Tais questões se apresentam por praticamente todo o globo, haja vista
estarem ligadas ao avanço da tecnologia e à conformação do poder político mundial.
Contudo, isso não significa que não haja espaço para o exercício de uma política
nacional satisfatória. O atual modelo de convivência política parece desafiar uma
ressignificação, até mesmo para garantir sua sobrevivência e legitimidade.
Apontando para as questões de natureza essencialmente política como cruciais,
entendemos que o fator político, talvez a esfera mais representativa das atividades
humanas, possa estar necessitado de novo fôlego para que as sociedades hodiernas
recuperem o estímulo pelo exercício da imaginação e continuem ou façam valer sua
importância na construção da história.
O Estado moderno surgiu quando comprovou-se a necessidade de
desenvolver uma ordem constitucional capaz de uma eficácia bélica maior
que as ordens feudal e mercantil que viria substituir. A emergência de uma
nova forma de Estado e a decadência de outra mais antiga é parte de um
98
VAN CREVELD, op. cit., p. 598.
processo que remonta aos primórdios do Estado moderno e talvez mesmo
às origens da própria sociedade civil. [...] Cada nova forma de Estado
distingue-se por sua base exclusiva de legitimidade a reivindicação
histórica que confere ao Estado direito ao poder.
99
De forma sumariada, junto com Philip Bobbitt, apresentaremos as
dificuldades, cada vez maiores, que o Estado-nação vem enfrentando para cumprir
suas responsabilidades, contribuindo para sua deslegitimação. De acordo com o
autor, três inovações estratégicas poderiam ilustrar bem o processo: as armas
nucleares, as comunicações internacionais e a tecnologia da computação matemática
rápida. Esses fatores teriam, por sua vez, acarretado fortes alterações nos desafios
militares, culturais e econômicos enfrentados pelo Estado-nação. As esferas
atingidas estariam evidenciando a crescente dificuldade para sustentar a
credibilidade dos cidadãos quanto ao seu objetivo ou desejo de proporcionar bens
públicos à nação.
100
A existência do Estado-nação estaria vinculada à segurança: “ele surgiu para
estabelecer um monopólio sobre a violência doméstica – condição necessária para o direito e
para proteger sua jurisdição da violência externa a base da estratégia”.
101
No caso de
incapacidade para garantir suas promessas nessa esfera, estará passível a mudanças.
Se o impeditivo for de ordem constitucional, esta poderá ser alterada. Demonstrar
fragilidade para proteger seus cidadãos e seu território coloca em questão seus pré-
requisitos fundamentais.
102
Outro vínculo seria o bem-estar de suas populações. No entanto, vale lembrar
que as transformações na área da comunicação, em geral, aparecem acompanhadas
de um, a princípio gradual, abandono do controle da movimentação privada de
capital, culminando na permissão de um intenso fluxo de capitais entre alguns
Estados. Estes teriam, dessa forma, lançado mão do mercado para somar recursos
com eficiência dentro de suas economias domésticas. De promotor do bem-estar da
nação, garantindo um mercado nacional unificado e proporcionando proteção
contra a concorrência estrangeira, o Estado-nação se veria sobrecarregado quando as
99
BOBBITT, op. cit., p. XI.
100
Cf. Id. Ibid., pp. 201-202.
101
Id. Ibid., p. 202.
102
Id. Ibid., p. 202.
democracias liberais decidiram aplicar os mesmos princípios ao comércio e às
transações financeiras entre seus Estados.
103
Os efeitos da redução dos controles diretos e dos encargos sobre a
movimentação de capitais, da liberação de antigas restrições aos serviços
financeiros, da expansão das relações com abrigos financeiros no exterior e
da eliminação dos intermediários que acompanhavam essas etapas em
muito contribuíram para a prosperidade dos Estados. Mas isso teve um
preço.
O preço que esses mercados foram forçados a pagar foi um mercado
mundial que não se estrutura mais em linhas nacionais, mas sim de
maneira transnacional e, portanto, sob muitos aspectos opera de maneira
independente dos Estados [...].
A mais significativa conseqüência dessa evolução é que o Estado
parece cada vez menos digno de crédito como meio para o contínuo
aprimoramento do bem-estar de seu povo.
104
Outro fundamento do Estado-nação, sob a ótica de Bobbitt, diria respeito à
integridade da cultura. Sobre essa esfera, a velocidade das evoluções tecnológicas de
comunicação em massa teria possibilitado a propaganda ideológica imediata em
uma escala sem precedentes na história. A globalização das comunicações estaria
retirando do alcance dos Estados a inspiração’ e a ‘tranqüilidade’ necessárias à
manutenção do moral de suas respectivas sociedades.
A visibilidade que ganha a opressão de grupos minoritários pelo Estado (ou
pelo grupo dominante identificado com o Estado) e a resistência a uma assimilação
com regras explícitas seria nociva para a legitimidade do Estado-nação, baseado na
igualdade entre todos os seus nacionais.
105
Ademais, as telecomunicações seriam, inclusive, responsáveis pela exposição
de abusos dos direitos humanos. Nesse sentido, o Estado-nação envolvido ficaria no
foco da opinião pública que, por sua vez, não abriria mão de fazer pressões para que
se façam cumprir as leis internacionais. Técnicas de propaganda em massa também
estariam desafiando a legitimidade do Estado:
[...] locutores confiantes e plácidos apresentam os acontecimentos políticos
do dia como objetos repetitivos e formulistas de entretenimento. Os
próprios profissionais da imprensa logo se tornam os personagens de maior
destaque na narrativa histórica fornecida pelo jornalismo; políticos e
103
Cf. Id. Ibid., pp. 205-206.
104
Id. Ibid., p. 206-207.
105
Cf. Id, Ibid., p. 211.
membros do governo não passam de contra-regras. A história do governo
passa a ser a história de personalidades em conflito com a própria mídia e
da evasão e incompetência oficiais desmascaradas pelos investigativos
empreendedores do negócio midiático.
106
Provavelmente, ainda em conformidade com Philip Bobbitt, estamos
assistindo ao nascimento de um outro modelo de convivência política. Simultâneo
ao suposto enfraquecimento do Estado-nação, ganha forma a noção de Estado-
mercado. O primeiro teria sido concebido, sobretudo, como instrumento a serviço da
nação e sua legitimidade fundamentada na sua habilidade em garantir o bem estar
dos seus cidadãos (bem-estar este concebido de diferentes formas, como mostram as
variantes fascista, comunista ou liberal democrática). O que abandona o Estado-
mercado é a pretensão de oferecer o bem-estar para todos os cidadãos; busca, de
fato, sua legitimidade através de sua habilidade em garantir que o maior mero de
indivíduos, mas inevitavelmente não todos, façam uso das oportunidades que o
mercado oferece. Mais poderoso política e militarmente, suas ações parecem mais
focadas às condições de segurança garantidoras do livre jogo do mercado. Bobbitt
sintetiza o Estado-mercado como uma “ordem constitucional emergente que promete
maximizar as oportunidades de seu povo, tendendo a privatizar diversas atividades estatais e
aumentar a sensibilidade do governo representativo ao mercado”.
107
Contudo, será
necessária a retomada da discussão sobre o Estado-mercado na terceira e última
parte de nossa discussão.
Para finalizar nossa discussão sobre o deslocamento do Estado registre-se
que:
[...], governo e Estado não são, absolutamente idênticos. O primeiro é uma
pessoa ou grupo que pacifica, faz guerra, promulga leis, exerce a justiça,
eleva a receita, define a moeda e cuida da segurança interna em nome de
toda a sociedade, sempre tentando oferecer um foco para a lealdade das
pessoas e também, talvez, um pouco de bem-estar social. O segundo é
apenas uma das formas que, historicamente, a organização do governo
assumiu e que, em conseqüência disso, não precisa ser considerada mais
eterna e auto-evidente do que as anteriores.
108
106
Id. Ibid., p. 211.
107
Id. Ibid., p. 873.
108
VAN CREVELD, op. cit., p. 595.
1.3 Sobre as formas de convivência política
Ora, a imbricação dos mercados e o subseqüente debilitamento dos
atuais sistemas estatais de poder que enquadram as atividades econômicas
estão gerando importantes mudanças estruturais que se traduzem por
crescente concentração de renda e por formas de exclusão social que se
manifestam em todos os países. Essas conseqüências adversas, mesmo
quem as apresente como precondições de uma nova forma de crescimento
econômico cujos contornos ainda não estão definidos.
109
Um dos pilares da soberania do Estado-nação é o seu monopólio da violência
legítima, tanto no espaço nacional como frente a outros países. No interior da nação,
no papel de único detentor legal e legítimo do exercício da violência, qualquer outra
fonte de violência é a priori ilegítima, ou fortemente delimitada e reprimida. Sendo
certo que a violência do policial, do carcereiro ou do carrasco dentro do território
nacional está sujeita à prestação de contas, pelo menos em princípio, frente às leis
nacionais e internacionais em que se baseiam seus respectivos territórios.
No entanto, chamamos a atenção para a forma como, desde o fim do século
XX e início do século XXI, a utilização da idéia de guerra vem sendo utilizada.
Melhor dizendo, a concepção tradicional de guerra tinha claras delimitações
espaciais. Em geral, contra um Estado-nação, a guerra podia eventualmente
disseminar-se por outros países, mas seu fim era geralmente marcado por uma
rendição, uma vitória ou um acordo entre os Estados envolvidos. Acrescente-se o
fato de que a guerra, em sua essência, carrega consigo as noções de violência letal
(ou a ameaça do uso da violência letal), derramamento de sangue e destruição.
Atualmente, percebe-se que a retórica da guerra vem sendo utilizada para fazer
referência ao comércio, aos esportes e, entre outras atividades, à política interna de
um país (guerra contra as drogas, contra a pobreza, contra o terrorismo, contra a
corrupção etc.). Esse emprego metafórico da guerra muitas vezes é utilizado para
fomentar a mobilização de forças sociais em torno de um objetivo de união a favor
ou contra esses conceitos abstratos ou mesmo a favor ou contra um conjunto de
práticas semelhante ao tradicional esforço de guerra.
109
FURTADO, op. cit., pp. 26-27.
Nessas guerras, é cada vez menor a diferença entre o exterior e o interior,
entre os conflitos externos e a segurança interna. Passamos, assim, das
invocações metafóricas e retóricas da guerra para guerras reais contra
inimigos indefinidos e imateriais.
Uma guerra para criar ou manter a ordem social não pode ter fim.
Envolverá necessariamente o contínuo e ininterrupto exercício do poder e
da violência. Em outras palavras, não é possível vencer uma guerra dessas,
ou, por outra, ela precisa ser vencida diariamente. Assim é que se tornou
praticamente impossível distinguir a guerra da atividade policial.
110
E, em assim sendo, a violência pode estar com a sua legitimidade alargada
para além das estruturas legais ou, ainda, dos princípios morais.
111
Por essa lógica, a
legitimação da violência tende a manifestar-se, em alguns casos, depois dos
acontecimentos, com base em seus efeitos e em sua capacidade de (re)criar ou
manter a ordem.
Orientando a nossa reflexão, segue a contribuição de Held e McGrew:
Grosso modo, a teoria política tem tomado o Estado-nação como ponto de
referência fixo e procurado situá-lo no centro das interpretações sobre a
natureza e a forma apropriada de bem político. [...] O elemento central tem
sido a comunidade política territorial e suas muitas relações possíveis com o
que é desejável ou politicamente bom.
112
No entanto, há que se rever algumas questões inerentes às transformações
políticas trazidas na esteira da globalização. Primeiramente, deve-se refletir sobre a
solidez da identidade nacional compartilhada em comunidades territoriais, a qual,
historicamente, reflete o resultado de intensos esforços na construção política de
cada nação. Mesmo em comunidades muito consolidadas, a identidade nacional
vem sendo tencionada pelas classes sociais, por questões de gênero, pelos
compromissos locais de fidelidade, por grupos étnicos, pelas gerações subseqüentes
etc. Os ideais de justiça, de responsabilidade, de vigência da lei e de bem-estar social
são bons exemplos de uma linguagem comum, ainda que possuam concepções
distintas, de acordo com a realidade de cada Estado e suas singularidades. Talvez, a
exceção encontre-se em períodos de guerra, mas devemos considerar que a
110
HARDT & NEGRI, op. cit., pp. 35-36.
111
De acordo com JOHNSON, op. cit., p. 154. “Do ponto de vista sociológico, o comportamento moral possui
quatro características básicas:1) jamais tem o interesse pessoal do ator como objetivo principal; 2) inclui um
aspecto de comando, o que faz com que todas as pessoas sintam obrigação de fazer o que é certo; 3) é
vivenciado como sendo desejável e dele se tira certa satisfação e prazer; 4) é considerado como sagrado, no
sentido em que sua autoridade é experimentada como além do controle humano”.
112
HELD & MCGREW, op. cit., p. 79.
contemporaneidade, com sua extraordinária diversidade e dinâmica no âmbito da
informação e da comunicação, pode, através de imagens, conceitos, estilos de vida e
idéias distantes, influenciar os indivíduos de forma mais contundente do que suas
comunidades imediatas. E, em assim sendo, é viável e legítimo também considerar
que idéias, compromissos ou relacionamentos entre os indivíduos sejam mais
importantes para a formação e consolidação da identidade de pessoas, ou mesmo de
grupos inteiros do que a participação inquestionável numa comunidade de
nascimento. Por assim dizer:
[...] a existência de uma identidade política comum não pode ser
simplesmente depreendida dos símbolos vociferantemente proclamados da
identidade nacional. [Sendo certo que] a identidade cultural e política, hoje
em dia, está sob constante revisão e reconstrução.
113
Uma outra questão, para refletir sobre o bem político circunscrito às fronteiras
dos Estado-nação, aponta para a possibilidade de o indivíduo valorizar e engajar-se
em diferentes associações ou coletividades com diferentes fins e em diferentes
níveis. Um movimento social transnacional, como o de defesa dos direitos humanos,
independente de outras filiações políticas locais, pode ser ilustrativo para imaginar a
pluralização de orientações e compromissos políticos que o indivíduo pode assumir.
Essa pluralização das orientações e compromissos políticos pode ser ligada
ao desgaste da capacidade do Estado de manter uma identidade política
singular diante da globalização. [...] a globalização vem enfraquecendo a
capacidade de o Estado cumprir o que promete aos cidadãos, com isso
desgastando sua legitimidade e a confiança dos cidadãos em seu legado
histórico. Ao mesmo tempo, a globalização dos determinados grupos e
culturas entre si vem transformando a dinâmica das relações políticas,
acima, abaixo e paralelamente ao Estado.
114
Um outro questionamento sobre o bem político, pensado nos limites do
Estado-nação, surge com o ponto de orientação fixo que se criou pela economia
internacional. Ou seja, uma vez que a política econômica e social tem se voltado
quase que exclusivamente para a adaptação aos mercados financeiros globais, os
sinais expressos por esses mercados acabam tornando-se norma para o processo
decisório nacional.
113
HELD & MCGREW, op. cit., pp. 82-83.
114
Id, Ibid., p. 84.
Nesse sentido, os Estados se mostram sem instrumentos políticos para
contestar os imperativos da economia mundial. A busca do bem blico confunde-
se com o investimento na adaptação aos mercados globalizantes e não mais na
proteção e na representação da comunidade territorial.
Acrescente-se o fato de que o destino de uma comunidade nacional não
parece estar circunscrito às diretrizes do Estado-nação, uma vez que os processos
econômicos, ambientais e políticos regionais e globais interferem claramente nas
decisões nacionais.
E, é dentro desse contexto que não parece mais cabível questionar que
estamos diante do indivíduo com compromissos de lealdade complexos, com
identidades multifacetadas e superpostas capazes de unir pessoas em um número
cada vez maior de coletividades em condição de sustentar movimentos, órgãos,
estruturas jurídicas e institucionais transnacionais. Surge uma nova percepção de
‘destinos coletivos’ que exigem, por sua vez, soluções coletivas. Mais produtivo é
assimilar que o mundo contemporâneo “não é um mundo de comunidades fechadas, com
modos de pensar mutuamente impenetráveis, economias auto-suficientes e Estados
idealmente soberanos”.
115
Cabe lembrar que, tal como as leis dos Estados passaram por cima das formas
de justiça consuetudinária, tornando-as nulas e inválidas em casos de conflito, a
identidade nacional permitia ou tolerava outras identidades se estas não fossem
suspeitas de colidir com a irrestrita prioridade nacional. Diante do exposto, a
resistência, demonstrada por alguns Estados, em aceitar as transformações
supramencionadas indica que, em concordância com Hardt e Negri, “a tolerância, um
valor fundamental do pensamento moderno, está sendo solapada”.
116
E é sobre a tolerância
que passamos a dissertar.
Antes mesmo da coexistência ou da convivência, de acordo com Walzer:
[...] tolerar e ser tolerado tem algo do governar e ser governado de
Aristólteles: é tarefa dos cidadãos democráticos. [...] A própria tolerância é,
muitas vezes, subestimada, como se fosse o mínimo que podemos fazer por
nossos semelhantes, o menor de seus mínimos direitos. [...] Quero aqui
apenas sugerir o que a tolerância [como prática] sustenta. Ela sustenta a
115
O’NEILL, 1991 apud HELD & MCGREW, op. cit., p. 89.
116
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 38.
própria vida, porque a perseguição muitas vezes visa à morte, e também
sustenta as vidas comuns, as diferentes comunidades em que vivemos. A
tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância
necessária.
117
E, ao contrário do que se possa pensar, o Estado-nação não representa,
necessariamente, uma homogeneidade seja no âmbito da nacionalidade, da etnia ou
da religião. Sua existência se dá sob a forma de organização da vida social, a
princípio por parte de um grupo específico (o grupo dominante). Do sucesso dessa
organização dependem a continuidade de sua história e a preservação de sua
cultura. Educação cívica e cerimônias públicas, símbolos e feriados estatais ilustram
bem seu caráter. Seus membros podem atuar em vários níveis, como na economia,
no bem estar social e, entre outros, na política. “Mas o que justifica seus
empreendimentos é a paixão humana pela sobrevivência ao tempo”.
118
Nas palavras de Karl Marx, em obra publicada originalmente em 1843:
A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o
conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para
garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus
direitos e de sua propriedade.
119
Em geral, o Estado-nação liberal e democrático tolera minorias. Porém,
dificilmente promove ou permite alguma forma de autonomia. Aqui, o Estado
funciona como uma corporação detentora do monopólio cultural. A força dos
grupos é minimizada, ao passo que os indivíduos são valorizados. uma ênfase
significativa na cidadania. Em outras palavras, primeiramente uma pessoa é um
cidadão, em seguida, é membro de algum grupo ou de alguma minoria. Ao cidadão
é, a princípio, garantida a participação na esfera pública com igualdade de direitos e
de obrigações. Ao membro, é permitido participar, por exemplo, de associações
voluntárias ou de instituições de caráter privado sem jurisdição legal junto ao grupo
como um todo. A privacidade nas práticas de grupos compostos por minorias e a
117
WALZER, 1999, op. cit., pp. XI-XII.
118
Id. Ibid., p. 35.
119
MARX, Karl. A questão judaica. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2005, p. 37. A primeira edição desta obra foi
publicada originalmente em 1843.
assimilação à nação dominante, na esfera do público, aparecem aqui como condição
da tolerância.
A religião, cultura e história da minoria são questões que se referem ao que
se poderia chamar de coletivo privado a cujo respeito o coletivo público, o
Estado-nação, sempre mantém uma atitude suspeita. Qualquer
reivindicação de se expressar a cultura em público tende a produzir
ansiedade entre a maioria (daí a controvérsia na França sobre o hábito
muçulmano de cobrir a cabeça nas escolas públicas).
120
Somada aos elementos constituintes do Estado-nação assinalados, Walzer
também chama a atenção para a questão da língua enquanto elemento estratégico
para a homogeneidade almejada pelo grupo dominante. Após um longo processo de
padronização lingüística, Estados-nação dificilmente toleram, no espaço do público,
a utilização de outras línguas.
121
Apesar de, como foi mencionado, tolerar minorias, não muita abertura
para o exercício das diferenças dentro da organização que ora estamos retratando.
Membros de grupos minoritários, ainda que na condição de cidadãos, acabam sendo
submetidos à ‘aprovação’ da maioria ou da parcela dominante da sociedade
acarretando, ou mesmo legitimando formas de discriminação e de dominação.
Todavia, a despeito da falta de abertura, o autor indica que o êxito da
preservação de uma significante variedade de diferenças, especialmente no âmbito
das religiões, é um fato no interior desses Estados (liberais e democráticos).
De fato, as minorias muitas vezes se saem bem em praticar e
reproduzir uma cultura comum precisamente por sofrerem pressão da
maioria nacional. Elas se organizam, tanto social quanto psicologicamente,
para resistir, fazendo de suas famílias, vizinhanças, igrejas e associações
uma espécie de solo pátrio cujas fronteiras defendem com muito esforço.
122
Sem a pretensão de esgotar as características da tolerância no Estado-nação,
achamos oportuno remarcar que esta (a tolerância) tende a ir por terra quando seus
‘diferentes’ se mostram, ainda que no nível do imaginário ou a partir de discursos
construídos, perigosos. Nesses casos é que se pode observar com clareza uma
120
Id. Ibid., pp. 35-36.
121
Id. Ibid., p. 36.
122
Id. Ibid., p. 38.
característica extremamente marcante do Estado-nação, a saber: a existência de uma
maioria permanente como fonte única da tolerância.
Walzer verifica, no interior de alguns Estados-nação, uma conformação social
que o mesmo vai diferenciar dos Estados-nação clássicos, através da rubrica de
Sociedade Imigrante. E, como particularidade essencial dessa conformação
destacam-se indivíduos que, originários de outra base territorial, característica
fundamental do elemento imigrante, costumam reunir-se em grupos os quais
mantêm relações com grupos semelhantes. Assim como no Estado-nação clássico,
não possibilidade de autonomia regional legítima ou reconhecida.
123
Entretanto,
nas palavras do autor:
Se os grupos étnicos e religiosos quiserem se preservar numa
sociedade imigrante, devem fazê-lo simplesmente como associações
voluntárias. Isso significa que correm mais riscos por causa da indiferença
de seus próprios membros do que pela intolerância dos outros.
124
Nesta sociedade surge a classificação de identidade hifenizada ou dupla. O
exemplo ítalo-americano nos ajuda a entender o que vem a ser esta categoria de
identidade, a saber: em ‘ítalo’ deve estar embutida apenas uma identidade cultural,
enquanto que em americano’ a referência seja um indicativo de identidade política.
Contudo, ainda com o autor, registre-se que a identidade hifenizada vem obtendo
mais sucesso no âmbito mais específico da religião e que, dependendo do grupo em
questão, essa identidade pode ser ainda classificada como duplamente hifenizada.
125
Para esta categoria podemos utilizar o exemplo franco-magrebino: uma cultura que,
transformada em sua origem (a região do Magreb), acabou por assumir uma forma
intensamente ‘afrancesada’. Ou seja, é uma adaptação de estilos e práticas políticas
locais. Na avaliação de Walzer: “As formas de diferenças típicas das sociedades imigrantes
ainda estão emergindo”.
126
Sobre a Sociedade Imigrante o que se pode inferir é que a tolerância é
exercida sobre as atitudes individuais. Todos devem, na condição de indivíduos,
123
Id. Ibid., pp. 41-47.
124
Id. Ibid., pp. 42-43.
125
Walzer justifica o relativo sucesso das comunidades religiosas a partir do alto grau de intolerância que as
mesmas vêm sendo submetidas ao longo de suas histórias. Assinala que a intolerância tem, como contrapartida,
unir e reforçar grupos. Cf. Id. Ibid., p. 45.
126
Id. Ibid., p. 46.
tolerar-se mutuamente e as diferenças ganham o perfil de cultura de grupo. Dentro
de um grupo, seja ele qual for, o exercício da tolerância também pode ser observado,
uma vez que cada indivíduo, ainda que de um mesmo grupo, é único. Aqui, ao
contrário do Estado-nação, a tolerância se dá de forma descentralizada.
Para que a nossa reflexão seja levada a bom termo, torna-se indispensável
registrar, independente da tentativa de propor modelos distintos de análise para o
exercício da tolerância a partir de formações sociais diferenciadas, que cada
sociedade é única. Além de única, algumas sociedades podem ser consideradas
casos absolutamente complicados se tentarmos propor uma análise a partir de
modelos explicativos conforme os dois já discutidos até então.
A França, por exemplo e não por acaso, aparece aqui como um desses casos
complicados. De acordo com Walzer, “a França constitui um estudo de caso
especialmente útil por ser o Estado-nação clássico e, ao mesmo tempo, a principal sociedade
imigrante da Europa; na verdade, uma das principais sociedades imigrantes do mundo”.
127
Assim sendo, surge um primeiro questionamento: se a tolerância exercida no
Estado-nação é aparentemente antagônica àquela exercida na sociedade imigrante,
como se o exercício da tolerância na sociedade francesa? Seguindo o pensamento
do autor, uma resposta possível seria a preponderância, pelo menos até bem
recentemente, das características de Estado-nação clássico. Decorrente desta resposta
pode-se colocar um segundo questionamento: como foi possível tal preponderância?
Além de não se considerar e não ser considerada uma sociedade pluralista,
acrescente-se o fato de que a extensão de sua imigração tem sido ofuscada pelo
extraordinário poder assimilador da nação francesa de modo que imaginamos a França
como uma sociedade homogênea, com uma cultura muito singular e distintiva”.
128
Para compreendermos o longo período de inexistência de minorias
organizadas nesse Estado o autor sugere uma providencial ausência conceitual de
diferença cultural nas discussões internas daquele Estado, apesar de sua existência
física. Isto posto, retornamos à 1789; ano que marca o início da festejada Revolução
Francesa. Marca a coesão de uma grande parcela da população contra os privilégios
127
Id. Ibid., p. 52.
128
Loc. cit.
ostensivos gerados pelo Antigo Regime. Em outras palavras, marca o surgimento de
um corpo de cidadãos decididos pela causa republicana.
Em geral, eram bem-vindos aqueles que estivessem comprometidos com o
aprendizado da língua francesa, com as instituições e com os ideais republicanos.
Nesse sentido, a identidade francesa era aberta aos naturalizados e aos assimilados.
A única comunidade possível era a comunidade dos cidadãos. Qualquer outra
formação social era percebida como diferenciadora e passível de criar ‘naçõesno
interior da nação e divisões entre os cidadãos.
Para exemplificar esta realidade extraímos duas passagens dignas de nota,
quais sejam: na primeira passagem, em 1791 durante um debate na Assembléia
Legislativa, um deputado falava em nome de uma maioria que apoiava a
emancipação dos judeus. “Deve-se negar tudo aos judeus como nação, e dar tudo aos
judeus como indivíduos.
129
A segunda passagem traz as palavras de Jean-Paul Sartre,
em 1944, sobre o típico democrata francês, quais sejam: “Em sua defesa, o judeu é
poupado como homem e aniquilado como judeu (...) nada dele sobra (...) exceto o sujeito
abstrato dos direitos do homem e do cidadão”.
130
Surgia, assim, junto com a Revolução, uma ‘atitude francesa’. Um
republicanismo consubstanciado no ideal unitário. Parte do sucesso da manutenção
deste ideal deveu-se à indiscutível assimilação dos imigrantes que, por sua vez,
mostravam-se satisfeitos com o status de cidadãos franceses. Não se observava, até
meados do século XX, pelo menos não de forma ostensiva, demandas de
legitimidade por parte de grupos formados por minorias. Tolerava-se o indivíduo a
partir dos valores criados pela cidadania.
A partir da segunda metade do século XX, com a desintegração da França
Imperial e a chegada, à antiga metrópole, de um número significativo de grupos
identificados com diferentes religiões (judeus e muçulmanos), etnias e culturas
oriundas das ex-colônias da África, iniciava-se um processo de mudança dentro do
país. A etnia (ethnie), de acordo com Comte-Sponville, faz referência a um povo,
129
CLERMONT-TONNERRE apud WALZER, Id. Ibid., p. 53.
130
SARTRE apud WALZER, Id. Ibid., p. 54.
considerado de um ponto de vista cultural, em vez de biológico - não sendo, assim,
uma raça - ou político – não sendo, tampouco, uma nação ou um Estado.
131
Acrescente-se o fato de que novas ideologias globais parecem desafiar o
domínio bem-sucedido do ideal republicano, do ideal unitário. Grupos bem mais
numerosos, de origem não européia e com profundas diferenças (desde a chamada
etnia até pequenas práticas culturais cotidianas) surgem dispostos a preservar e
reproduzir seus próprios valores.
Uma tensão entre os tradicionais assimilacionistas e os novos grupos em
busca de legitimidade fundamentada na concepção de multiculturalismo traz à tona
uma conturbada realidade.
Por assimilação entende-se, “em sociologia, o processo pelo qual um grupo,
geralmente uma minoria ou grupo imigrante, graças ao contato, é absorvido pela cultura de
outro grupo ou grupos; e o resultado de tal absorção”
.
132
E por multiculturalismo:
[...] uma formação discursiva e não apenas uma posição essencialista.
Assim como o individualismo, o multiculturalismo é fonte inesgotável de
novos discursos, novos argumentos, novas certezas e novos desafios para
essas certezas. Não vou determinar tudo o que pode ser abrigado sob essa
categoria, mas apenas chamar a atenção para um dos paradoxos centrais
presente na maioria dos discursos multiculturalistas. O multiculturalismo
é um argumento em favor da diversidade que, freqüentemente, está
enraizado em uma demanda de singularidade integral.
133
Sabemos que penetrar de todo nas grandes transformações que vivemos não
nos parece, de fato, possível. A curta distância de tempo que as mesmas se
encontram e o fato de serem em tempo real são condições suficientes para que
encararemos avaliações de forma parcial e qualquer esboço de síntese como
provisório. Todavia:
Em seu vigoroso estudo sobre a genealogia dos medos modernos, Philippe
Robert descobriu que, a partir dos primeiros anos do século XX (ou seja,
131
Cf. COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 220.
132
FARIS, Robert E. L. Assimilação (Assimilation). In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de ciências
sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986, p. 89.
Na visão de Walzer, o governo, os partidos políticos não apenas de direita e, entre outros, os sindicatos de
professores formam o grande grupo de republicanos assimilacionistas. Cf. WALZER, 1999, op. cit., p. 55.
133
CALHOUN, Craig. Multiculturalismo e Nacionalismo, ou por que Sentir-se em Casa não Substitui o Espaço
Público. In: MENDES, Candido (coord.) & SOARES, Luiz Eduardo (ed.). Op. Cit., p. 200.
não por simples coincidência, os primeiros anos do Estado social), o medo
do crime começou a diminuir. Essa redução prosseguiu até meados dos
anos 1970, quando ocorreu na França uma súbita erupção de pânico sobre
“segurança pessoal” focalizada na criminalidade em aparência crescente
dos banlieues onde se concentravam os imigrantes.
134
O período da irrupção das preocupações com a segurança coincide com a
visível defasagem do ‘seguro coletivo’ que o Estado costumava oferecer, somada a
rápida desregulamentação do mercado de trabalho. Reapresentados como um risco
para a segurança, os imigrantes passam a oferecer um conveniente foco alternativo
para as súbitas instabilidades e vulnerabilidades trazidas pelo momento.
135
As periferias repletas de imigrantes e seus descendentes, uma vez vinculados
à criminalidade, tornam-se verdadeiras áreas de conflito dentro dessa nova
concepção de ‘guerra’ contra o inimigo abstrato (a insegurança e a delinqüência, por
exemplo) em favor da lei e da ordem.
Para enriquecer nossas reflexões achamos pertinente apresentar, a seguir, algo
que poderíamos qualificar de menos impessoal, como o depoimento da socióloga
francesa, ‘de origem magrebina’, Myriam Laabidi publicado pela Agência Courrier
International.
136
Atualmente estabelecida em Montreal, no Canadá, a socióloga alega não ser
mais capaz de suportar a discriminação do cotidiano na França. Afirma que a
Révolte des Banlieues’ e seus desdobramentos o foram responsáveis por sua
decisão de sair da França. Filha de imigrantes marroquinos, nasceu no sul da França
na década de 1970. Convencida por seus pais de que a única possibilidade de
conquistar um espaço na sociedade seria através de uma escolaridade bem-sucedida,
Myriam passou dez anos na universidade para tornar-se socióloga. Todavia, antes
de atingir seu objetivo afirma ter enfrentado fortes obstáculos.
Myriam alega ter sido submetida a professores com espírito e com
mentalidade colonialistas do século XIX. “Seus pais falam francês em casa?” foi a
pergunta feita por um professor de matemática, acreditando ter acertado em cheio a
origem de suas dificuldades na matéria.
137
Porém, seus pais haviam renunciado à
134
BAUMAN, 2005a, op. cit., p. 72.
135
Id., Loc. cit.
136
LAABIDI, Myriam. Mon pays, n’as-tu pás honte? Courrier Internacional, França, n. 814, jun. 2006, p. 15.
137
Tradução da autora a partir do texto original: “Est-ce que vos parents parlent français à la maison?”.
língua materna, o árabe, visto que o francês figurava como uma das condições de
mobilidade e de ascensão social. Passou 24 anos tentando se integrar,
constantemente justificando suas ações e seus gestos pelo simples fato de ser filha de
imigrantes. Para cumprir cada etapa de sua carreira testemunha ter trabalhado três
vezes mais do que a maioria de seus colegas e, uma vez garantido seu espaço, o
terreno ainda se mostrava minado, fazendo com que Myriam precisasse superar-se a
cada dia.
Como a grande maioria das famílias imigradas, o avô de Myriam veio para a
França após a Segunda Guerra Mundial como mão-de-obra para a reconstrução do
país. Entretanto, a socióloga acredita que seu diferencial em relação à juventude
francesa das periferias, onde a maioria é oriunda da imigração magrebina, reside no
fato de que, com o passar dos anos e com a distância (como foi mencionado,
Myriam está, atualmente, estabelecida no Canadá), ela se deu conta de que a França,
ou seja, a pátria que lhe concedeu a sua nacionalidade está assentada, utilizando
suas próprias palavras, sobre um barril de pólvora.
138
A discriminação e a segregação na França são, sob a ótica de Myriam, duas
práticas basicamente legitimadas que regem as interações cotidianas entre os
indivíduos. Quanto às instituições republicanas, a socióloga denuncia parte de uma
França que se mostra fatalista e derrotista diante da diversidade que constitui a
sociedade. Acrescenta que os milhões de franceses originários da imigração são
‘empacotados’, ‘empilhados’ e ‘guetificados’ dentro de uma França que não é única.
E por conta desta realidade, vários jovens de origens étnicas diferentes jamais se
relacionaram ou estiveram em condição de igualdade com os considerados
‘verdadeiros locais’. Nas palavras de Myriam os franceses-franceses preferem seus cães
a seus concidadãos de minorias étnicas”.
139
Confirma que políticos e intelectuais estão unidos para denunciar o problema
dos bairros desfavorecidos e do índice de desemprego entre os moradores desses
bairros. Mas quando a questão da discriminação racial é abordada, Myriam assinala
138
Traduzido, pela autora, do original: ‘‘C’est avec les années et la distance que je me suis rendu compte que la
France, patrie qui m’a donné (du bout des doigts et avec dédain) sa nationalité, était assise sur une poudrière’’.
139
Tradução da autora conforme texto original: “les Français-français préfèrent leurs chiens à leurs concitoyens
des minorités ethniques”.
que a ‘política do avestruz’ se instala e que não quem enfrente o problema do
racismo no país. Explica que a origem deste comportamento é obscura. Alguns
tentam explicar a partir da mentalidade colonialista, outros partem dos problemas
econômicos que afligem o país.
A partir do depoimento da socióloga francesa Myriam Laabibi, verifica-se que
uma das questões analíticas de base consiste em solidificar uma diferenciação
interna dentro desse segmento da população, ou seja, no interior de um grupo
reconhecido essencialmente pelo status de imigrante. Cabe sublinhar que origens
mais ou menos longínquas no estrangeiro não justificam uma vinculação ad eternum
à condição de imigrante, principalmente quando temos em conta, não apenas a
dimensão heterônoma, mas também a dimensão autônoma da construção das
identidades sociais. E é através de mais esta reflexão que encerramos o nosso
capítulo e nos aproximamos cada vez mais do cerne de nossos questionamentos,
qual seja: o papel desempenhado pela identidade nacional e a abrangência da
cidadania na contemporaneidade.
CAPÍTULO 2 O Debate acerca da Cidadania na Atualidade
hoje, em diversos países, a sensação de existência de déficit de
legitimidade do próprio processo jurisdicional, por sua incapacidade para
adjudicar direitos econômicos e sociais na ausência de lei concessiva.
140
2.1 Uma breve abordagem teórica sobre a trajetória da cidadania
Na teoria, todos são cidadãos, iguais perante a lei, e compartilham direitos e
deveres. Na prática, a desigualdade prospera, o preconceito racial impera e
a ilimitada criatividade nacional vai manobrando e dando seu jeitinho para
adaptar o país legal ao país real, e vice-versa.
141
Essa assertiva de Luiz Eduardo Soares insere-se em seu estudo sobre o Brasil.
No entanto, parece pertinente torná-la parte da realidade de muitos Estados, sejam
estes ‘ricos’ ou ‘pobres’. Noções que integram a concepção de cidadania na
atualidade encontram-se, sobretudo, no centro da filosofia política e nas demandas
por justiça. Estreitam-se ao sentimento de pertença, bem como à idéia de direitos
individuais oriundas do rompimento com o medievo. Tal rompimento, no entanto,
parece ter deixado lacunas ao longo do processo de reconhecimento dos direitos de
cidadania das populações, incluindo as categorias economicamente dependentes
(direito a ter direitos).
Na primeira metade do século XIX Alexis de Tocqueville registrava, em
seus textos, a crise nas relações humanas resultantes do impacto causado pelas
idéias igualitárias na convivência entre patrões e empregados.
142
E Reinhard Bendix
registra que: “Nos Estados-nação emergentes da Europa ocidental, o problema político
140
TORRES, Ricardo L. A cidadania multidimensional na Era dos Direitos. In: TORRES, Ricardo L. Teoria
dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 321.
141
SOARES, Luiz Eduardo. Legalidade libertária. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 277.
142
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes de certas leis e certos costumes
políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
A obra A Democracia na América, com a primeira parte publicada em 1835 e a segunda em 1840, desenvolve
uma aguda perspectiva sobre a democracia norte-americana. A análise feita por Tocqueville mantém, em
conformidade com muitos autores sobre o tema, extraordinário interesse e atualidade.
crítico era se, e em que extensão, o protesto social se ajustaria a toda cidadania das classes
mais baixas.
143
Nesse sentido, achamos oportuna uma breve abordagem teórica sobre a
trajetória da concepção de cidadania a partir de algumas de suas várias perspectivas
possíveis. Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre o tema, busca-se uma via de
análise, entre outras possíveis, acerca das problemáticas contemporâneas suscitadas
por tão complexa temática, com ênfase na cidadania e nos entraves para seu
exercício desde sua concepção.
Se considerarmos a noção de cidadania positivada surgida na Antigüidade
Clássica ficaríamos restritos à relação estabelecida entre o homem livre e a cidade.
Chegando ao Patrimonialismo, depararíamos com a possibilidade de conjuntos de
privilégios circunscritos a determinados grupos.
144
Dando continuidade, é lugar
comum que a Revolução Francesa (1789) teria sido a principal responsável pela
expansão da concepção (e não necessariamente da materialização) da cidadania,
abrangendo os direitos fundamentais do homem e do cidadão, traduzidos como
direito à liberdade (circunscrito ao espaço territorial) e vinculados à idéia de
igualdade e de justiça.
Ocupando um lugar de excepcional significado na história universal, a
Revolução Francesa constituiu-se num dos pilares do liberalismo e das
instituições democráticas. Ao romper uma estrutura secular de
privilegiados e submetidos, esse evento alterou praticamente o
comportamento do homem europeu e, de modo geral, de outras formações
sociais, possibilitando o surgimento de Estados modernos e democráticos.
145
143
BENDIX, Reinhard. Construção nacional e cidadania: estudos de nossa ordem social em mudança. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1996, p. 92. A obra de Bendix foi publicada
originalmente em 1964.
144
Na sociologia weberiana o Patrimonialismo corresponderia a um tipo de dominação política tradicional
caracterizada pelo fato do soberano organizar o poder político de forma análoga a seu poder doméstico. Esta
forma de exercício da autoridade sofreria modificações ao longo da história. Tanto seria possível atingir o status
de uma democracia representativa, quanto simplesmente modernizar a administração burocrática sem,
necessariamente, caminhar no mesmo sentido.
Sobre Patrimonialismo em Weber consultar: WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC
Ed., 1982. Esta obra foi publicada originalmente em 1946.
145
AZEVEDO, Antonio Carlos. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3 ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999, p. 395. A primeira edição desta obra data de 1990.
Para uma leitura mais detalhada sobre a Revolução Francesa consultar: HOBSBAWM, Eric J. A era das
revoluções: 1789-1848. 17 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Sua primeira edição brasileira foi publicada em
1977).
Nossa breve trajetória não pode se furtar, por exemplo, de algumas questões
que envolvem as relações de autoridade no contexto do surgimento da cidadania.
Autoridade no sentido de alguns poucos no comando contando com uma
quantidade de opções ampliadas; e subordinação como um reflexo dos muitos
cumpridores de ordens, com um espectro de escolhas significativamente reduzido.
Vale ressaltar que, como resposta, a não cooperação, ainda que tácita, tende a
ser variada, sutil e, algumas vezes, mais tocante do que um protesto manifesto. Essa
realidade pode, inclusive, definir o padrão de autoridade estabelecido. Some-se que
questionamentos conscientes das convenções e dos acordos anteriormente aceitos
não parecem suficientes para determinar crises de transição. Ajustes de direitos e
deveres podem freqüentemente ocorrer, enquanto relações de autoridade
tradicionais podem permanecer, em parte, intactas.
Sob a ótica de Bendix, somente faria sentido afirmar que as relações de
autoridade, oriundas do medievo, romperam-se por completo com o advento da
modernidade e, por conseqüência, da cidadania no caso de não mais verificarem-se:
de um lado, a responsabilidade e, de outro, a lealdade. As relações de autoridade /
subordinação teriam, de alguma forma, continuado como um padrão de
comportamento a ser mantido, ou mesmo, aprimorado. Nas palavras do autor: “As
relações de autoridade tradicionais permanecem intactas, enquanto as ações e crenças que
fogem desse padrão, bem como aquelas que o sustentam, o solapam a reciprocidade de
expectativas básica”.
146
Considere-se que quando nos referimos às revoluções ocorridas a partir do
século XVII na Inglaterra, para refletir sobre mobilização política de certa classe
emergente (trabalhadores), e no século VXIII nos Estados Unidos e na França, para
pensar a ascensão da burguesia, falamos de fenômenos históricos, não de princípios
gerais.
147
Contudo, cabe ressaltar que foi à luz destes fenômenos históricos que
inúmeros eventos políticos posteriores foram inicialmente concebidos como
desdobramentos diretos ou não de idéias e processos iniciados naquele contexto.
146
BENDIX, op. cit., p. 93.
147
Sobre as revoluções dos séculos XVII na Inglaterra, e XVIII nos Estados Unidos consultar, respectivamente:
ARRUDA, José Jobson de A. A revolução inglesa. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1999 (1 ed. publicada em
1984) & KARNAL, Leandro. Estados Unidos: a formação da nação. São Paulo: Contexto, 2001.
Subproduto do século XVIII, a divisão das classes desfavorecidas em pobres
diligentes e pobres imprevidentes colocou em jogo questões como o auto-respeito
daqueles que permaneceram pobres, não obstante seus mais intensos esforços.
Agravou-se, ainda mais, a situação quando o sucesso econômico passou a sinônimo
de virtude, enquanto o fracasso representava depravação moral. Relações
individuais de autoridade ganharam cunho político-nacional, traduzido por uma
tendência em negar a cidadania aos malsucedidos economicamente, sob o risco de
uma má interpretação da noção de direitos no momento de sua inclusão na
comunidade política nacional. O quadro é sombrio e, por mais que se queira falar
em rupturas quando nos referimos à contemporaneidade, cabe lembrar que a
História também é dotada de continuidades.
Por outro lado, reafirmar a importância do século XVIII torna-o, de fato, um
importante hiato na história ocidental, uma vez que o período anterior registrou, por
praticamente todo o continente europeu, a completa exclusão das massas populares
do exercício dos direitos públicos. Em outras palavras, teria sido, então, a partir do
século XVIII que a cidadania surgia como uma realidade possível. Todavia, quanto à
distribuição e à redistribuição de direitos e de deveres, estas não devem ser
interpretadas como meros subprodutos vinculados àquele contexto, mas como
dinâmicas reguladas pela posição internacional do país, pelas noções sobre o que
significa para cada comunidade nacional uma distribuição adequada e pelo ‘jogo’
inerente à luta política do momento.
Elemento essencial da concepção de nação é a normatização dos direitos e
deveres de seus cidadãos.
148
O que não teria ficado claro é o quão exclusiva ou
inclusiva a cidadania foi definida. Assim sendo, a idéia de que a concentração do
poder não foi completamente descartada ao longo do conturbado século XVIII faz
bastante sentido e, em concordância com Bendix:
Até certo ponto, as teorias sociais e econômicas modernas ainda refletem a
situação histórica na qual elas se desenvolveram inicialmente, mas um
148
De acordo com BOBBIO, MATTEUCCI & PASQUINO, op. cit., p. 796, uma das maneiras de conceber a
nação: [...] é dada pela confusa representação de uma “pessoa coletiva”, de um “organismo” vivendo vida
própria, diferente da vida dos indivíduos que o compõem. A amplitude destas “pessoas coletivas” coincidiria
com a de grupos que teriam em comum determinadas características, tais como a língua, os costumes, a
religião, o território etc.
século e meio depois deve ser possível salvaguardar-se contra tais
preconceitos.
149
Ademais, o forte desejo de liberdade, inserido no bojo das revoluções do
período, teria embaçado os reais anseios por igualdade, consolidando as condições
para o extremo individualismo que se seguiu. Por assim dizer:
[...] a Revolução Francesa não teria conseguido garantir a igualdade
abstrata que divulgou e pretendeu e, ao mesmo tempo, elevou a
determinados graus a liberdade, que pode ser ela mesma responsável pela
corrosão dos direitos do homem.
150
Ainda que a divisa ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’ seja, possivelmente,
a mais difundida do ocidente, originária da supramencionada Revolução Francesa,
esta não parece ter preenchido alguns ideais básicos vinculados aos valores liberais.
Reflexões sobre a igualdade nos remetem a um cenário nebuloso, uma vez que a
mesma somente pode ser medida de acordo com valores a que se agrega. Pode-se
dizer que a igualdade ainda é freqüentemente entendida no sentido de justiça, o que
acaba por se desdobrar no debate entre igualdade de chances e de resultados.
Debate este que encontra cada vez mais espaço no bojo da reflexão acerca da
abrangência da cidadania.
Enfraquecida ao longo do século XIX, a fraternidade ganha novo vigor
quando passa a fazer parte integrante da equação valorativa dos direitos
fundamentais e da justiça, no século XX. É recuperada através da noção de
solidariedade que, por seu turno, também informa um princípio obscuro, por não
trazer conteúdos materiais específicos. A solidariedade pode assim ser
simultaneamente ressaltada como um valor ético, de cunho absolutamente abstrato;
e jurídico, sob a forma de princípio positivado nas Constituições. Em suma, surge
como uma obrigação moral e um dever jurídico.
Para pensar a liberdade partimos da noção de um valor que se consolidou ao
longo do processo de formação dos direitos fundamentais. Consolidada na forma de
valor e dado existencial, a liberdade apresenta-se positivada como valor humano
149
BENDIX, op. cit., p. 135.
150
MEDEIROS, Sabrina Evangelista. Políticas Imigratórias: por uma avaliação dos seus fundamentos e limites
na contemporaneidade. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p.6.
básico e distingue-se dos outros valores porque transcende a esfera do axiológico e
informa seu aspecto existencial. Mescla-se aos direitos naturais, pois, aparentemente
vinculada ao pensamento de John Locke em obra publicada no ano de 1690:
nascendo titulares da liberdade e do direito das leis naturais, os homens têm, por
natureza, o poder e o direito de preservar aquilo que lhes pertence, isto é, sua vida,
sua liberdade e seus bens.
151
Todavia, chamamos a atenção para os excessos cometidos com a identificação
entre liberdade e legalidade; e para a exacerbação do sentido negativo conferido à
ausência de constrição estatal. Pouco adianta ser livre e não possuir condições
mínimas para se expressar ou manifestar idéias.
[...] homens que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e
doentes, é o mesmo que caçoar de sua condição: esses homens precisam de
instrução ou de cuidados médicos antes de poderem entender ou utilizar
uma liberdade mais ampla.
152
Em contexto favorável à ação providencial do Estado, visto como forma
superior e vitoriosa de organização política, surgia a percepção do desenvolvimento
histórico dos direitos civis no século XVIII, a afirmação dos direitos políticos no
século XIX (ambos considerados direitos de primeira geração) e, por fim, a inclusão
dos direitos sociais no século XX (direitos de segunda geração).
153
Essa visão exerceu
forte influência nos estudos sobre cidadania.
Apesar de altamente criticada, apontada como etnocêntrica e linear, acabou
servindo de base para que outros teóricos verificassem, a partir da segunda metade
do século XX, o surgimento dos chamados direitos de terceira geração, ou seja,
direitos de grupos, de minorias etc.
Também os chamados direitos difusos ganhariam força em todo o mundo, de
forma que questões relacionadas ao meio ambiente e à defesa do consumidor foram
incorporadas em várias legislações e discursos políticos. Nessa seqüência, é como se
a o difundida superação da sistematização da cidadania continuasse viva e atual
151
Cf. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Ed. Abril, 1973, p. 73.
152
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Ed. UNB, 1981, p. 138. A obra de Berlin teve
a sua primeira publicação em 1969.
153
Cf. MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. Esta
obra, considerada a mais expressiva do sociólogo inglês, foi originalmente publicada em 1963.
para alguns grupos; e os direitos, por alguma via evolutiva, pudessem ser
ampliados, necessariamente, com o passar do tempo e o ‘progresso’ da humanidade.
Dentro de um contexto de crise, mais especificamente a mencionada crise
da década de 1970, uma outra vertente passou a refletir sobre a abrangência dos
direitos sociais, no âmbito da cidadania, buscando delimitar o espectro de atuação
do Estado.
Procurava-se demonstrar que a noção de justiça social não tinha sentido em
uma ordem espontânea, sendo esta noção apenas uma justificativa para a demanda
de alguns grupos particulares. O Estado de Bem-estar Social (ou Welfare State)
passava a ser visto como uma ameaça. Ameaça às liberdades individuais, uma vez
que a intervenção estatal e o planejamento econômico-social implicariam no
esmagamento dos objetivos individuais (os únicos dotados de uma existência
legítima) por objetivos supostamente coletivos; e ameaça ao funcionamento das
instituições democráticas, na medida em que seria impossível o estabelecimento de
um consenso em torno da manutenção, por parte do Estado, das condições
essenciais à satisfação dos objetivos individuais.
154
Vozes críticas apontam esta
vertente como responsável pela redução dos direitos sociais a um mínimo existencial
relativo e questionável.
Atualmente, entre os sociólogos, há uma nítida mudança de orientação. Os
estudos sobre a temática da cidadania também ganharam fundamentação na
concepção ética e jurídica dos direitos humanos. As teorias partem do princípio que
a noção de direitos humanos deve complementar a de cidadania, ainda que a
concepção dos direitos humanos não esteja necessariamente vinculada ao Estado-
nação
.
155
Na busca de um sentido ontológico para a cidadania também podemos
acrescentar a crítica à idéia do cidadão como sujeito passivo, mero receptor do que é
distribuído pelas agências blicas. Para a autora, as teorias distributivas
154
Cf. HAYEK, Friedrich A. Von. Espejismo de la justicia social. V.2. Madrid: Union Editorial, 1988. A obra
do economista austríaco Hayek foi teve sua primeira publicação no ano de 1976. Em 1974 Hayek recebeu o
Prêmio de Ciências Econômicas (talvez não por acaso erroneamente chamado de Nobel de Economia).
155
Cf. TURNER, Bryan S. Handbook of citizenship studies. Londres: SAGE, 2003.
desconsideram a concepção pragmática do justo, do respeito e da consideração que
os cidadãos se devem mutuamente na ‘democracia da vida quotidiana’.
156
Tais
atributos, obviamente, não são passíveis de distribuição por parte do governo.
Uma outra discussão sobre as bases da cidadania é a sua adesão à idéia de
status ou contrato. Cabe ressaltar que a relação jurídica contratual entre o cidadão e o
Estado é, por origem, assimétrica. E essa realidade pode ser verificada quando
comparamos os deveres do cidadão com a quantidade de leis que informam seus
direitos fundamentais. A assimetria existente no bojo dessa relação prejudica,
sobremaneira, sua consolidação. Pois, toda relação contratual carrega em si a noção
de simetria.
157
com a fundamentação da cidadania na idéia de status torna-se possível
elaborar um conceito prescritivo e, nesse sentido, ultrapassar a análise meramente
descritiva.
158
Todavia, não se pode deixar de lado o aspecto pejorativo que tal noção
adquiriu na esfera do Estado de Direito Formal, de cunho nitidamente positivista
.
159
A partir da década de 1980 e da concepção de Estado Social de Direito
surgiram novas contribuições, ampliando a noção de status.
160
Passou-se a defender a
inclusão de outros aspectos ao lado dos formais. Pois, a decisão jurídica não deveria
estar reduzida à letra fria da lei, à metodologia jurídica pré-julgada, dogmática e
tradicional, mas - em todos os casos sofrivelmente problemáticos deveria
considerar a valorização moral ou extra jurídica.
161
Por fim, desde a década de 1990 registra-se um renovado interesse pelas
discussões sobre cidadania e pelas questões que o tema suscita na
contemporaneidade. Para além das difusas dimensões local e nacional, surge a
156
Cf. SHKLAR, Judith N. Justice et citoyenneté. In: AFFICHARD, J. & FOUCAULD, J. B. Pluralisme et
equité. Paris: Éditions Esprit, 1995.
157
Cf. TORRES, op. cit., pp. 249- 252.
158
Id., Loc. cit.
159
Para Vinício C. Martinez o Estado de Direito Formal destaca-se pela ênfase, a vigência e o rigor da forma
jurídica para conquistar e garantir o conteúdo do Direito. Mas, quando pensamos na Justiça ao alcance de amplos
e diversificados grupos sociais estamos no terreno do Estado Social de Direito – da justiça social como foro
privilegiado do próprio Estado de Direito Formal. Para maiores detalhes: MARTINEZ, Vinício C. Estado de
Direito formal. Enciclopédia jurídica Soibelman. Mar. 2005. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6622 . Acesso em: 22 jan. 2007.
160
Sobre a concepção de Estado Social de Direito consultar a nota anterior.
161
Cf. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. 2 ed. São Paulo: Ed. Landy, 2005.
clara e forte noção de cidadania global. Esta realidade redireciona a discussão e
desafia sua capacidade de agasalhar todas as dimensões possíveis.
Como se pôde perceber, nossa sumária abordagem sobre a trajetória da
cidadania reforçou o que não era uma novidade: a conturbada abrangência da
cidadania desde a sua concepção (concomitante ao surgimento do Estado moderno).
Ainda assim, acreditamos que a atualidade do debate sobre o tema, sua atual
extensão, abertura interdisciplinar, conotação política e multiplicidade de dimensões
podem, de certa forma, auxiliar na superação de incoerências e embaraços. Sendo
certo que noções como as de liberdade, justiça social, igualdade, solidariedade,
direitos fundamentais e sociais ainda se encontram submersos em nebulosos
conceitos, mas presentes nas mentes de parcela significativa da população mundial.
2.2 Algumas dimensões da cidadania na contemporaneidade
Cidadania – O próprio do cidadão, especialmente o conjunto dos direitos de
que ele desfruta e dos deveres que lhe cabem. O primeiro dever é obedecer à
lei (aceitar ser cidadão, não soberano). O primeiro direito, participar da sua
elaboração ou das relações de forças que tendem a esta (ser cidadão, não
sujeito). Duas maneiras de ser livre, no sentido político do termo, e numa
cidade não é possível sê-lo de outro modo.
162
[...] Contudo, essa é uma
história que ainda se escreve. Tem um grande passado, mas esperemos que
tenha ainda um maior e melhor futuro.
163
Buscar uma relativa compreensão sobre a abrangência da cidadania nos
remete, atualmente, aos direitos fundamentais, políticos, sociais e econômicos, além
dos direitos coletivos (relativos a grupos, categorias etc.) e difusos (dizem respeito à
humanidade, como, por exemplo, a concepção de direitos humanos). Todos esses
direitos, por sua vez, encontram-se em constante tensão, uma vez que vinculam-se
às noções de liberdade; de justiça política, social e econômica; de igualdade de
chances e de resultados; e de solidariedade. Sem desprezar o aspecto
multidimensional que hoje a noção de cidadania apresenta, para que nosso estudo
162
COMTE-SPONVILLE, op. cit., p. 100.
163
ODALIA, Nilo. A liberdade como meta coletiva. In PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi. História
da cidadania. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 168.
seja levado a bom termo direcionaremos nosso foco para suas dimensões temporal,
espacial, e processual.
Estabelecer um sentido para a dimensão temporal da cidadania significaria
relacionar os laços históricos envolvidos no contexto de seu surgimento e da
afirmação de seus direitos para sua concretização. Com isso, a temporalidade, ou
seja, a dimensão histórica da cidadania estaria vinculada à positivação dos direitos
humanos fundamentais, e não a sua existência propriamente dita.
Com os grandes textos constitucionais resultantes das revoluções do século
XVIII, a liberdade (ou os direitos naturais) se positivaria através dos direitos civis
(ou direitos de liberdade). Tais direitos ofereceriam o arcabouço inicial da cidadania
no liberalismo. “A conversão da pessoa em cidadão, no contexto do liberalismo moderno,
envolveu a interferência da noção de direitos.
164
Atualmente os direitos de liberdade também estariam positivados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e permaneceriam como parte
integrante do núcleo essencial da concepção de cidadania. Dita Declaração defende
o direito a condições mínimas de existência humana. Seu caráter seria inegociável,
indisponível e irrenunciável. Tal direito, denominado mínimo existencial, exigiria,
ainda, para seu pleno exercício, prestações estatais positivas. Não mensurável, por
envolver mais aspectos qualitativos do que quantitativos, informaria um princípio
vinculado à idéia de justiça social.
No entanto, a expressão justiça social carrega forte ambigüidade. Algumas
vezes reduz-se à própria justiça nas relações de trabalho. Ademais, não é apenas o
conceito de justiça social que demonstra contorno pouco nítido. O próprio termo
social parece indefinível e gera ambigüidades nas expressões as quais teria
adjetivado, quais sejam: Estado Social, Direito Social, Economia Social de Mercado,
Social Democracia etc. “O social aparece hoje como o moderno sub-rogado do amor ao
próximo e como virtude cristã socializada.
165
Contido na idéia de justiça social estaria, sobretudo, a necessidade da
redistribuição de rendas, direcionada especialmente aos despossuídos, capitaneada
164
SALDANHA, 1997 apud TORRES, op. cit., p. 261.
165
ISENSEE, 1982 apud TORRES, ibid., p. 271,n. 83.
por princípios como a igualdade e a solidariedade. Muitas vezes, a idéia também se
confunde com a questão da liberdade, melhor dizendo, seria vista como condição
para a liberdade. Incluiria o nimo existencial, tornando ainda mais nebulosa a
possibilidade da edificação de um conceito na contemporaneidade.
Na Declaração Francesa de 1789, os direitos do homem diluíram-se em
direitos do cidadão. Assim, no que tange à dimensão espacial da cidadania, o
espaço privilegiado para o exercício desses direitos eram as esferas nacionais e
locais. Sua dimensão universal, abstrata e não positivada, colocava o indivíduo
como centro de uma suposta ordem e o relevava diferenças fossem elas culturais,
regionais etc.
Fenômenos contemporâneos como a globalização e o recrudescimento de
interesses locais trariam uma nova percepção da relação espaço/tempo. Por assim
dizer, a cidadania teria ampliado o seu espaço e ganhado dimensões para além da
local e da nacional. Ganhariam contornos mais nítidos a cidadania universal, a
comunitária e, a mesmo, a virtual. Essa nova realidade, desencadeada pelas
últimas décadas do século XX, faria com que dimensões extremas, como a local e a
universal, se tocassem, evidenciando o que se poderia chamar de cidadania
multidimensional.
Assim sendo, direitos e deveres no espaço público são, então, influenciados:
1- pela positivação dos direitos humanos nos tratados internacionais;
2- pela globalização e seus reflexos nos planos político e social, ou seja, dificuldades
locais que responsabilizam a influência das ações mundiais;
3- pelo surgimento do espaço virtual (cyberspace), também responsável pela
aproximação do local e do universal, somada a uma nova percepção da noção de
liberdade;
166
4- pelo forte simbolismo trazido pela queda do muro de Berlin (1989), carregando,
em seu bojo, a idéia de uma nova era.
166
O Cyberspace, expressão criada pelo romancista William Gilbson, gera uma modalidade de relacionamento
social baseado na troca de informações. Seria um espaço virtual que não existe fisicamente, mas que reproduz o
espaço existencial.
Cabe ressaltar que a ligação jurídica essencial entre o cidadão e o ‘mundo’ não
deveria obscurecer o intenso relacionamento que se desenvolve no espaço local da
cidade. O enfraquecimento desta relação poderia causar danos incalculáveis à
existência do indivíduo. Moradia, emprego, enfim, o exercício cotidiano das
liberdades ainda estaria inserido no plano local. “[...] cada cálculo substantivo da justiça
distributiva é um cálculo local”.
167
A cidadania nacional teria surgido na esfera da nação, do Estado moderno, e
formaria o status constitucional do indivíduo. Traduz-se na afirmação jurídica do
conceito de cidadania, marcada pelo início do liberalismo, e adquire a conotação
política de pertencimento a um Estado. Garante a nacionalidade aos nascidos (em
geral) e, sob certas condições, aos residentes. Oferece proteção aos direitos políticos e
sociais, como desdobramento do ‘contrato social’. Porém, esta concepção de
cidadania sofre, desde a década de 1990, forte contestação. Não apenas os direitos
sociais, mas também os mínimos existenciais estariam saindo, aos poucos, da pauta
de preocupações do Estado Nacional. Este dado coincidiria com o processo de
globalização e carregaria certo desencanto com o poder central, aparentemente
ausente de seus tradicionais desafios.
Quanto à cidadania universal, ou mundial, desfrutável no plano
internacional, poderíamos dizer que a mesma adquire contorno de um direito
internacional vinculado aos direitos humanos, garantidor de status específico aos
cidadãos dos diversos países. Esta cidadania envolveria, sobretudo, os direitos
humanos declarados nos tratados e nas convenções internacionais. E poderia
adquirir dimensão política pela possibilidade de atuação reivindicatória que a
caracteriza.
Ainda dentro da concepção espacial da cidadania, surgiria a noção de
cidadania virtual. Traduz-se nas manifestações de liberdade pelas redes de
computadores e pela internet. Cria proximidade entre os homens em tempo real.
Consolida os direitos de liberdade dos indivíduos, independentemente das posições
políticas dos respectivos governos. Qualquer tentativa de regulação poderia
167
WALZER, 2003 apud TORRES, op. cit., p. 302, n. 162.
significar a sua própria destruição. Contudo, seria racional nos mantermos afastados
desta idéia de ausência completa de controle.
Em face de sua multidimensionalidade, a cidadania também poderia ser
analisada como fruto de processo político, social e econômico. Por esse ângulo, sua
dimensão processual informaria dinâmica própria e apresentaria diferentes
conotações decorrentes de distintas condições de tempo e espaço.
Ativa ou participativa e passiva, estas seriam duas modalidades de cidadania
possíveis e bem distintas. Tradicionalmente, a cidadania ativa estaria relacionada à
Antiguidade clássica, representada pela polis grega; ao passo que a passiva vincular-
se-ia ao liberalismo político em seus primórdios. Revitalizada no atual contexto da
globalização, a cidadania ativa estaria inserida na idéia de sociedade aberta, fundada
no diálogo, ampliando a perspectiva de sua processualidade. Essa concepção geraria
alguma forma de envolvimento na luta pela extensão dos direitos e concretização da
cidadania pela via dos direitos políticos e da própria política, na esfera do diálogo
democrático, antes de condená-la ao espaço do vazio.
Mesmo algumas vozes críticas da burocracia e da duvidosa eficiência do
sistema administrativo, apontado, por exemplo, por Habermas, como ‘colonizador’
da vida parecem, atualmente, aceitar a importância da administração pública no que
tange ao atendimento das reivindicações do cidadão.
168
Em suma, os direitos
fundamentais necessitariam da eficiência dos serviços públicos, ou de uma
regulação de qualidade desses serviços, para sua sobrevivência.
169
2.3 A cidadania nacional em perspectiva: o caso francês
[...] em um estado de tensão étnica, a atitude aparentemente neutra de
indiferença com relação à identidade étnica, de redução de todos os
membros de um Estado a meros cidadãos abstratos, favorece na verdade o
maior grupo étnico.
170
168
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre Faticidade e Validade. 2 v. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. Esta obra de Habermas foi publicada originalmente em 1992.
169
TORRES, op. cit., p. 323.
170
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 144.
Entre as dificuldades existentes para a criação de uma teoria da cidadania
encontra-se seu espectro potencialmente ilimitado, que pode abarcar todo e
qualquer problema de relacionamento entre o cidadão e o Estado. Diante dessa
realidade, focaremos a influência de alguns recentes eventos históricos, os quais
teriam tornado a relação entre cidadania, nacionalidade e identidade nacional uma
questão altamente relevante para o debate na contemporaneidade.
Primeiramente, a derrubada do Muro de Berlim (1989) e a conseqüente
desintegração do bloco formado pelos Estados da Europa oriental, dando origem a
inúmeros conflitos de nacionalidade. Tais eventos, entre outros, teriam atualizado os
questionamentos sobre o futuro do Estado-nação. Em seguida, registra-se a tensão
causada pela forma supranacional assumida na formação da União Européia,
contrastando fortemente com os tortuosos processos de formação dos Estados-nação
europeus.
171
Por fim, a intensificação dos fluxos migratórios, responsável pela
crescente presença de grupos de origens diversificadas, parecendo conflitar os
princípios de algumas democracias constitucionais com as reivindicações
particulares de comunidades que visam a preservação de suas culturas.
172
As influências supracitadas provocariam, por um lado, a emergência e a
ampliação da cidadania através de novas associações voluntárias (como nos casos
tcheco e eslovaco); por outro lado, gerariam graves conflitos - étnicos, territoriais etc.
– (a exemplo dos sérvios e kosovares). Esse paradoxo acabaria por denunciar a
contraditória relação entre cidadania e Estado-nação, ou melhor, entre cidadania,
nacionalidade e identidade nacional. Ameaçada por pressões locais e globais, em
expressiva parte do globo, a cidadania reage, em defesa de seu espaço,
171
A chamada Comunidade Econômica Européia surgiu em 1958, unindo seis países: Bélgica, Holanda,
Luxemburgo, França, Alemanha e Itália. Dinamarca, Irlanda e Grã-Bretanha se uniram ao grupo em 1973,
formando a Comunidade Européia. Em 1981, foi a vez da Grécia ingressar nesse bloco, e, em 1986, de Portugal
e Espanha. Uma quarta ampliação do grupo aconteceu em 1995, quando Áustria, Finlândia e Suécia tornaram-se
membros dessa organização que, nesse estágio, já era chamada de União Européia.
172
HABERMAS, 1995a apud VIEIRA, Liszt. Global Citizenship and the National State. Dados, Rio de
Janeiro, v. 42, n. 3, 1999a. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52581999000300001&lng=en&nrm=iso Acesso em: 25 ago. 2006, p.2.
aparentemente através de um nacionalismo de cunho separatista, inverso ao viés
aglutinador de outrora.
173
[...] existe inscrita no auto-entendimento do Estado-nação uma tensão
entre o universalismo de uma comunidade legal igualitária e o
particularismo de uma comunidade cultural a que se pertence por origem e
destino.
174
Uma alternativa, concebida por Habermas fala de uma perspectiva
denominada discursiva ou deliberativa, a qual entende a comunidade política como
um bem em si mesmo, irredutível aos propósitos individuais ou comunitários. O
autor é contra a visão liberal de comunidade política a serviço da identidade
individual, da mesma forma que se afasta da visão comunitarista de comunidade
política a serviço das identidades coletivas. Propõe o consenso através do diálogo,
utilizando a reflexão política para argumentação pública. Propõe uma identidade
cívica, fundada na participação política na esfera blica, como elemento essencial
da concepção de cidadania. É, enfim, uma perspectiva de caráter democrático
procedimental.
175
O projeto democrático moderno, a princípio, poderia ser adotado por
qualquer sociedade. “A sociedade em toda parte é um mito vivo sobre o significado da
existência humana, uma desafiadora criação de significado”.
176
Seus valores fundadores,
liberdade e igualdade, consagram o princípio da cidadania. Por assim dizer, a
cidadania o seria uma essência, mas uma construção histórica intimamente
vinculada às lutas pela conquista de direitos.
Vale lembrar, que a globalização informa, entre outras coisas, a aquisição de
consciência internacional. Seus impactos reorientam tanto o Estado, quanto as elites
dominantes, fornecendo-lhes perspectivas desvinculadas dos limites territoriais e
173
De acordo com BOBBIO, MATTEUCCI & PASQUINO, op. cit., p. 799: Em seu sentido mais abrangente o
termo nacionalismo designa a ideologia nacional, a ideologia de determinado grupo político, o Estado
nacional, que se sobrepõe às ideologias dos partidos, absorvendo-as em perspectiva. O Estado nacional gera o
nacionalismo, na medida em que suas estruturas de poder, burocráticas e centralizadoras, possibilitam a
evolução do projeto político que visa a fusão de Estado e nação, isto é a unificação, em seu território, de língua,
cultura e tradições.
174
HABERMAS, 1995a apud VIEIRA, 1999a, op. cit., p. 3.
175
Id. Ibid., p.4.
176
BECKER, 1973 apud BAUMAN, 2005a, op. cit., p. 121.
nacionais. Leva o Estado a rever seu papel em função de variáveis econômicas
exógenas, de políticas macroeconômicas e da grande volatilidade dos fluxos de
capital.
E é dentro desse contexto que expressiva parcela da população de diversos
Estados, marginalizada social e economicamente, parece demonstrar desinteresse e
falta de energia para atuar em legítimas lutas políticas internas, percebidas, na
atualidade, como secundárias, e mergulha em passividade ou, entre outras
conseqüências possíveis, se volta para a violência. A percepção do deslocamento
parcial do Estado chama a atenção para a emergência de diversas fontes alternativas
de identidades sociais atreladas a perspectivas civilizacionais, religiosas, étnicas etc.,
colocando, aparentemente, a noção de cidadania subordinada a de identidade social.
Sob essa lógica, a irrupção de identidades sociais infranacionais de feições
reivindicatórias e/ou separatistas vem sacudindo a relação entre cidadania e
nacionalidade.
177
Considere-se a tese da anterioridade da identidade social sobre a
cidadania. A primeira estaria fundamentada no autoconceito, no status social
ocupado, em imagens, lealdades etc. e a última vinculada à formação do Estado
nacional, a partir de valores de pertencimento historicamente construídos.
Já em 1843 Karl Marx atestava a fragilidade da cidadania. Pois, para o autor:
A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o
comerciante e o cidadão, entre o trabalhador e o cidadão, entre o
latifundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão. A
contradição que existe entre o ‘bourgeois’ e o ‘citoyen’, entre o membro da
sociedade burguesa e sua aparência política.
178
Talvez ainda mais relevante seja a crescente importância das dimensões
econômica e social na contemporaneidade, fazendo predominar os interesses
materiais sobre os laços políticos da cidadania. Junto a esses dados, acrescente-se o
fato de que o Estado não legisla mais sozinho, uma vez que há regras a serem
partilhadas com a comunidade internacional. Nesse sentido, avançaria a
177
Sobre identidades infranacionais entendemos identidades posicionadas sob a concepção ‘maior’ de identidade
nacional, não obstante a impossibilidade de definir valores entre esta e qualquer outra identidade elencada dentro
de um Estado-nação clássico.
178
MARX, op. cit., p. 24.
possibilidade do Estado-nação continuar sendo o berço, mas não mais o lar da
cidadania; nem, tampouco, a identidade política básica.
Torna-se oportuno relembrar que o possível enfraquecimento do Estado-
nação, evidenciado pela perda de parte de sua autonomia para elaborar e decidir
políticas ou projetos políticos nacionais, não o retira da condição de principal arena
política e de protagonista no cenário político internacional. Dar como superada a
esfera de atuação nacional pode significar a perda de forças na defesa dos direitos,
posto que ainda não há uma estrutura institucional de caráter universal forte e
legítima o suficiente para garantir, de fato, a defesa dos direitos humanos. Vale
ressaltar que as instituições internacionais as quais nos referimos vêm se
desenvolvendo com surpreendente rapidez.
Liszt Vieira destaca duas alternativas para aqueles que constatam a secção do
elo entre cidadania e nacionalidade. A primeira anuncia a possível falência da
cidadania política e propõe sua reformulação a partir de uma natureza
essencialmente sócio-econômica. A segunda visa a construção de uma cidadania
pós-nacional, estruturada nos princípios dos direitos humanos.
179
A título de reflexão, entre os vários fatores que vinculam as noções de nação e
nacionalidade, desde os primórdios do Estado moderno europeu, destacam-se, de
acordo com David Held e Anthony McGrew:
180
▪ O esforço das elites e dos governos na criação de uma nova identidade que
legitimasse o incremento do poder estatal e o comando da política;
A criação de um arcabouço comum de idéias, sentidos e práticas através de um
sistema de educação em massa promovido e coordenado pelo Estado;
O surgimento de novos sistemas de comunicação, como a imprensa e o telégrafo,
facilitando as trocas entre as classes e a difusão de histórias, mitos e rituais
nacionais;
▪ Fundamentado no sentimento de pátria e no apelo a lembranças arraigadas, muitas
vezes longínquas, o agrupamento das diferentes comunidades através de
uma
cultura popular comum, de direitos e deveres legais compartilhados e de uma
179
VIEIRA, 1999a, op. cit., p. 6.
180
HELD & MCGREW, op. cit., p. 38.
economia responsável por certa mobilidade para seus integrantes no limite de seus
territórios.
O Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social,
de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a
cultura e a ocupação do homem como diferenças não políticas, ao proclamar
todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, co-participante da
soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da
vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que
a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é,
como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer
sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o
Estado existe sobre tais premissas, se sente como Estado político e
faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus.
181
Diante de todo o exposto, buscaremos nos aproximar, um pouco mais, de nosso
estudo de caso, ou seja, da conjuntura dos distúrbios ocorridos nas periferias
francesas e seus envolvidos, como descrito na apresentação e introdução deste
trabalho. E é sobre a cidadania francesa que passamos, brevemente, a discorrer.
A princípio, são cidadãos franceses as pessoas que possuem a nacionalidade
francesa e exercem seus direitos civis e políticos.
182
Parece claro, de acordo com a lei
do país, que a cidadania, na sua objetividade, encontra-se vinculada à nacionalidade.
Nesse sentido, torna-se oportuno a observação das possibilidades de aquisição de
cidadania de acordo com a Lei de Nacionalidade Francesa:
183
▪ Por direito de sangue: é considerado francês todo indivíduo que possui pai ou mãe
francês (por nascimento ou aquisição);
Por direito de solo: torna-se automaticamente francês a pessoa que é nascida na
França. Para o nascido na França de pais estrangeiros (não naturalizados), a
nacionalidade é pleno direito aos 18 anos;
Por naturalização: um estrangeiro maior de 18 anos, residente em solo francês
pelo menos 5 anos (em alguns casos 2 anos) pode solicitar sua naturalização.
181
MARX, op. cit., p. 22.
182
Cf. VIE PUBLIQUE VIE PUBLIQUE. Tous les habitants de la France sont-ils des citoyens français?La
Documentation française, França, 2006a. Disponível em:
http://www.vie-
publique.fr/decouverte_instit/citoyen_1_1_0_q1.htm . Acesso em: 30 mar. 2006.
183
Cf. VIE PUBLIQUE. Comment devient-on citoyen français? La Documentation française. França, 2006b.
Disponível em:
http://www.vie-publique.fr/decouverte_instit/citoyen/citoyen_1_1_0_q3.htm . Acesso em: 30
mar. 2006.
Após a aprovação da ‘Lei Sarkosy’, em 2003, o solicitante deverá demonstrar sua
“assimilação à comunidade francesa” através de uma entrevista;
▪ Por casamento: a partir de 2003, um estrangeiro, após 2 anos de união a um
cônjuge francês, pode solicitar a aquisição da nacionalidade francesa por declaração
(há caso previsto para que o prazo se estenda para 3 anos).
Alguns marcos históricos tiveram papel fundamental ao longo do processo de
conquista e ampliação jurídica da cidadania francesa, a saber:
184
A Lei de 1927: Trata-se de uma lei de integração para centenas de milhares de
trabalhadores estrangeiros estabelecidos na França (representavam 7% da população
em 1930). Esta lei visava acordar e acelerar a aquisição da nacionalidade francesa.
A desigualdade entre colonos e colonizados gera grande insatisfação na Argélia
(colônia francesa até 1962). A demanda leva o governo francês, em 1947, a estender a
cidadania francesa aos argelinos e permite o acesso dos mesmos aos postos
governamentais. Houve forte resistência por parte dos ‘franceses’ da Argélia
(colonos).
Em 1962, com o Armistício de Évian, a independência da Argélia é reconhecida e,
entre os acordos, estão a livre circulação de pessoas entre a Argélia e a França, além
de garantias aos ‘franceses’ da Argélia. O desrespeito aos acordos levou o governo
francês a repatriar algo em torno de 1 milhão de cidadãos franceses na França
metropolitana.
185
O início da década de 1980 traz de volta a discussão sobre a nacionalidade em
torno do jus soli e da identidade nacional. Dificuldades políticas e protestos por
parte da comunidade argelina tornaram as reformas inviáveis.
186
▪ A Lei de 7 de maio de 1984 suprime as incapacidades cívicas dos naturalizados.
187
184
Cf. NATIONALITÉ. Les archives du ministère de la Justice. França, set. 2005. Disponível em:
http://www.justice.gouv.fr/archives/_private/niveau5/dacs/Droit_civ/nationalite/NATIO1.html . Acesso em: 12
fev. 2006.
185
Entre os repatriados da Argélia, todos de nacionalidade francesa, estão os muçulmanos ou harkis (ex-
colonizados militares e antigos suplementos do exército francês com seus familiares), os pieds-noirs (ex-colonos
de origem européia) e a comunidade judaica local. Somaram-se aos repatriados populações de ex-colonizados
vindas do Marrocos e da Tunísia. Loc. cit.
186
Cf. SOARES, Denise de Souza. A política de imigração da união européia: pavimentando o caminho para
a “Fortaleza Europa”. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2005, pp. 302-303.
187
Um exemplo relevante é a supressão do prazo para tornar-se elegível, cf. NATIONALITÉ, loc. cit.
A Lei de 16 de março de 1998 restabelece o duplo direito de solo (suprimido em
1993) para os filhos de argelinos e facilita a aquisição da nacionalidade francesa para
os refugiados.
188
não restam dúvidas sobre a árdua trajetória da aquisição da cidadania
francesa, principalmente por parte dos africanos da região do Magreb. Ainda que,
nas palavras de Denise de Souza Soares, “[...] a história legislativa da imigração em
França é um emaranhado sem fim de leis, emendas, circulares, anistias [...]”, sabemos que
estamos falando de cidadãos franceses quando nos reportamos à grande parte desse
grupo, melhor dizendo, ao grupo nascido na França originário da imigração das
antigas colônias do continente africano.
189
De acordo com Patrick Weil, no âmbito da nacionalidade-cidadania francesa
parecem subsistir marcas profundas de mudanças internas na política de imigração.
A política de nacionalidade seria, assim, produto complexo de uma história cuja
imigração contemporânea teria uma fraca parcela.
190
Para alimentar nossas inquietações e motivações sobre a relevância do tema
acrescentamos a reflexão do jornalista Karim Boutel:
Quantos seriam, esses franco-magrebinos o assediados? É difícil dizer: a
lei proíbe qualquer censo segundo a origem ou a religião. Calcula-se em 3
milhões o número de muçulmanos franceses. Mas de quem e de que se fala
quando se usam as expressões beur”, “francês de origem magrebina”,
“árabe” ou originário da imigração”? A que remetem, a não ser a uma
não-pertença, a uma “exterioridade social em relação aos que se arrogam a
qualidade de povo ‘autenticamente’ nacional e verdadeiramente legítimo”?
Quanto aos interessados, eles não suportam mais essas palavras que se
tornaram sufixos de suas identidades.
191
À reflexão de Bourtel acrescentamos o conteúdo de uma Pesquisa por
Sondagem de Opinião sobre Cidadania francesa realizada em 2004 e divulgada em
2007 pelo ISSP France (International Social Survey Programme ou Programme
international d’enquêtes sociales), vinculado ao órgão público de pesquisa CNRS
188
Sobre o duplo direito de solo: é francês por nascimento todo indivíduo nascido na França, de pai ou mãe
também nascido na França (atual art. 19-3 do Código Civil francês, antigo art. 23 do Código de Nacionalidade
Francesa), cf. loc. cit..
189
SOARES, op. cit., p. 308.
190
Cf. WEIL, Patrick. La France et sés étrangers. L’aventure d’une politique de l’immigration: 1938 – 1991.
França: Calmann – Lévy, 1991, p. 281.
191
BOURTEL, Karim. Manobras políticas em torno dos imigrantes. Le Monde Diplomatique, Brasil, out. 2003.
Disponível em: http://diplo.uol.com.br/imprima760 . Acesso em: 5 jun. 2006, pp. 3-4.
(Centre national de la recherche scientifique), em conjunto com outras três renomadas
instituições.
192
O ISSP (International Social Survey Programme) é um programa internacional
de pesquisas sociais fundado em 1983 por uma equipe de universitários de 4
países (Alemanha , Inglaterra, Austrália e Estados Unidos). Atualmente, cerca de
40 países ao longo dos 5 continentes participam deste programa, que realiza uma
pesquisa de opinião anual através de um questionário comum a todos os
participantes. O tema da pesquisa é mudado todos os anos, mas pode ser
reutilizado periodicamente para possibilitar a comparação através do tempo. A
pesquisa sobre cidadania contou com 39 países participantes.
A França juntou-se ao programa em 1996 e o ISSP France reúne pesquisadores
de diversas instituições, quais sejam: além do Centre national de la recherche
scientifique CNRS, trabalham em conjunto o Institut national de la statistique et des
études économiques – INSEE, o Politiques publiques, Action politique, Territoires – PACTE,
o Centre Maurice Halbwachs - CMH, a Loi sur la sécurité quotidienne – LSQ e a Fondation
nationale des sciences politiques - FNSP. O arquivo central do ISSP localiza-se no
Zentralarchiv für Empirische Sozialforschung da Universität zu Köln (Universidade de
Colônia na Alemanha).
193
Ainda que coloquemos em questão a confiabilidade das práticas de sondagem
por opinião, não podemos descartar o fato de que as Pesquisas, realizadas pelo ISSP
France, estão vinculadas e são publicadas, como mencionado, por reconhecidas e
respeitadas instituições públicas, como o CNRS, entre outras. Quanto a sua
capacidade de refletir a realidade destacamos que, em tais pesquisas, não apenas as
respostas, mas as questões, revelam-se, freqüentemente, muito interessantes.
Ademais, “a prática da sondagem produziu um novo tipo de opinião, a saber: a opinião
através da sondagem de opinião”.
194
192
ANEXO A
193
A tiragem, na França, foi de 10.000 questionários e o número de respostas válidas somou 1419.
Para maiores detalhes consultar:
http://64.233.169.104/search?q=cache:QN4hLgOct-oJ:solcidsp.upmf-grenoble.fr/cidsp/...
http://www.cmh.acsdm2.ens.fr/enquetes/XML/lil-0241.xml
http://www.gesis.org/en/data_service/issp/data/2004_Citizenship.htm
194
BOURDIEU, Pierre (coord.). A miséria do mundo. 5 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003, p. 258. A
edição original desta obra foi publicada em 1993.
Então, é da valoração possível da cidadania francesa ou, de outro modo, dos
atributos que a valoram, que trata esta pesquisa e, por conseguinte, este trabalho. A
princípio, como mencionado, são cidadãos franceses as pessoas que possuem a
nacionalidade francesa e exercem seus direitos civis e políticos. Os critérios objetivos
para definir a cidadania francesa são de natureza jurídica. Logo, o estatuto da
cidadania compreende, antes de qualquer coisa, o direito de voto e de elegibilidade,
não obstante inclua um conjunto de direitos e liberdades os quais podem ser
exercidos, sem entraves, fundamentados no interesse geral.
195
Interesse geral é o que
intenciona revelar a pesquisa sobre cidadania no território francês. E é sobre o
conteúdo desta pesquisa que passamos a refletir.
Partimos da afirmativa inicial que aponta a existência de diferentes opiniões
sobre o que é ser um ‘bom cidadão’. A partir desta assertiva, o ‘bom cidadão’
poderá ser elencado se, em contrapartida, pudermos aceitar a existência do ‘mau
cidadão’. Sob essa lógica, o ‘bom cidadão’, no caso francês, é, antes de qualquer
coisa, aquele que vota regularmente, que não frauda o fisco e que respeita as leis e as
regras. Este cidadão, que respeita a ordem blica, deve também ser instruído e
esclarecido. Por outro lado, ajudar pessoas desfavorecidas e participar de
associações sociais ou políticas são ações pouco prestigiadas na França. O ‘bom
cidadão’ francês é, enfim, mais fortemente ligado aos valores de uma democracia
representativa, do que aos valores de uma democracia participativa.
A pesquisa afirma que dentro das sociedades existem grupos variados.
Porém, questionar se as sociedades devem autorizar reuniões públicas entre os
extremistas religiosos, entre as pessoas que desejam tomar o poder à força e entre os
que defendem posições racistas não pode determinar as concepções de liberdade
dentro de uma democracia, como sugere o segundo bloco de perguntas. No limite,
chegaríamos facilmente a uma leviana lista de inimigos blicos; chegaríamos aos
sem direitos.
195
VIE PUBLIQUE. La citoyenneté n’est-elle aujourd’hui qu’une citoyenneté juridique? La Documentation
française. França, 2006c. Disponível em:
http://www.vie-
publique.fr/decouverte_instit/citoyen/citoyen_1_2_1_q5.htm . Acesso em: 30 mar. 2006.
O questionário sugere diferentes formas de ação política e social, sendo certo
que o ‘bom cidadão’ francês não se ocupa em participar, pela Internet, por exemplo,
de um fórum ou de um grupo de discussão política; não viabiliza meios de expressar
suas opiniões, nem assiste uma reunião ou um debate político. Ademais, não se
mostra muito atraído por manifestações, nem envolvido com doações em dinheiro
ou coletas de fundos para atividades sociais ou políticas. A passividade aparece aqui
como, praticamente, a principal característica do ‘bom cidadão’ francês. Seguindo
essa lógica, manifestações, definitivamente, não são bem-vistas.
Sugere, ainda, que todos podem pertencer a diferentes grupos ou associações;
mas o ‘bom cidadão’ francês não faz parte de partidos políticos, de associações
profissionais (como um sindicato) ou de organizações religiosas. A pesquisa parece
bastante empenhada em analisar as questões relativas aos grupos diferenciados, haja
vista esta ser a segunda abordagem sobre o tema. Vale ressaltar que entre os grupos
escolhidos para compor tais questões, o único que se repete é o grupo vinculado à
religião. Por assim dizer, o vínculo com a questão religiosa não tem valor e, em
alguns casos, pode ser desprezado. No entanto, desconhecer as diversas práticas
religiosas possíveis pode levar a uma condenação pueril.
O bom cidadão’ também deve se posicionar diante dos direitos dos
indivíduos dentro de uma democracia. Uma boa parcela dos franceses responsáveis
pelos questionários respondidos parece disposta a aceitar a desobediência civil no
caso de insatisfações com as ações governamentais. Este depoimento parece
contraditório quando comparado com o ‘bom cidadão’ francês que, acima de tudo,
respeita as leis e as regras, como registrado anteriormente. A saída encontrada para
esta contradição foi a análise de Pierre Bréchon, responsável pelos comentários
relativos à pesquisa em questão, a saber: alguns aderem às duas idéias e os que
somente aderem a idéia de desobediência civil são uma minoria contrária ao ‘bom
cidadão’ francês que deve, em qualquer situação, obedecer as leis e as regras.
196
O
comentário de Bréchon parece ter levantado uma outra questão. Ou bem se acredita
que o ‘bom cidadão’ francês deve obedecer, em qualquer circunstância, a lei e as
196
Pierre Bréchon é professor de Ciência Política e diretor do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble (IEP -
Grenoble) e pesquisador do CIDSP-PACTE ( Centre d'informatisation des données sociopolitiques) vinculado ao
CNRS (Centre national de la recherche scientifique).
regras; ou que este mesmo ‘bom cidadão’ francês pode empreender atos de
desobediência civil para se opor a ações governamentais. Curiosamente, algumas
respostas posteriores detectam a péssima imagem dos políticos franceses, dos
partidos políticos (em geral) e a falta de confiança nos membros do governo.
Dando continuidade, a pesquisa mostra que convém ser prudente nas
relações sociais e não demonstrar confiança nas pessoas de forma espontânea. O
estranhamento, para além deste resultado, parte do comentário de Bréchon. Pois, de
acordo com o mesmo, a atitude de confiança é muito mais freqüente entre as pessoas
que pertencem às classes favorecidas, com alta formação educacional e rendimentos
elevados. O que não fica claro é a lógica utilizada para justificativa tão generalizante.
E o que se pode inferir é que as questões que envolvem a falta de confiança, seja nas
pessoas, nos políticos ou nas ações do governo fazem parte do universo dos menos
favorecidos, os capazes de empreender atos de desobediência civil.
Vale ressaltar que o questionário foi direcionado por via postal de forma
aleatória. Para justificar a baixa representatividade da população de origem
estrangeira Bréchon assinala que: “esta pesquisa, assim como a grande parte das
pesquisas por sondagem de opinião anteriores, sub-representa as populações
estrangeiras por razões estruturais: essas populações respondem menos facilmente
às pesquisas de opinião por estarem menos integradas e por dominarem menos a
língua francesa”.
197
Questões que envolvem posicionamentos com relação ao cenário
internacional também fazem parte do questionário. Entre os pesquisados, apenas
uma pequena minoria acredita no poder de uma organização como a ONU e,
embora uma boa parte dos mesmos temam pela soberania dos Estados-nação, o
direito de ingerência para fazer valer os direitos humanos é uma idéia bastante
popular dentro da França.
Na esfera da administração interna as opiniões encontram-se divididas. A
metade dos pesquisados acredita que a administração e os serviços públicos estão a
197
Tradução da autora do original: “Le questionnaire est adressé par voie postale à um échantillon aléatoire de
ménages”. ANEXO A, p. 13. Comme beaucoup d’enquêtes, celle-ci sous-représente les populations étrangères
pour des raisons structurelles: ces populations respondent moins facilement aux enquêtes d’opinion, étant moins
intégrées et maîtrisant moins la langue française”. ANEXO B, p. 9.
serviço da população, ao passo que a outra metade mostra uma posição contrária. A
solução deste impasse pode estar no fato de que uma nítida maioria detecta que a
administração não reconhece seus erros e se porta com certa soberba.
Manifestar respeito pelas pessoas, sobretudo em um primeiro contato, é uma
atitude reconhecida como muito importante. Ser tolerante com as pessoas,
especialmente quando em situação de desacordo, também é um comportamento
valorizado pelo bom cidadão’ francês. Afinal, existem princípios de civilidade
cobrados dentro de uma sociedade. Fato é que tais princípios são difíceis em sua
prática, como demonstra a questão sobre relações sociais.
Diante do exposto e em conformidade com a pesquisa que acabamos de
apresentar, o ‘bom cidadão’ francês pode ser sumariado como um indivíduo que
vota regularmente, que não frauda o fisco e que respeita as leis e as regras, acima de
tudo. Acrescente-se o fato de que este ‘bom cidadão’ deve também ser esclarecido e
instruído. E é por esse motivo que as atitudes de confiança fazem parte dos atributos
apenas do ‘bom cidadão’ francês, uma vez que tais atitudes são muito mais
freqüentes entre as pessoas com alta escolaridade o que, por conseqüência,
acompanha elevados rendimentos e forma a classe favorecida. Chegamos a uma
minoria.
Apesar de votar regularmente, o ‘bom cidadão’ francês quase nunca participa
e nem assiste aos fóruns ou aos debates políticos, além não exigir meios de expressar
suas opiniões. Não faz parte de partidos políticos, de associações profissionais ou de
organizações religiosas. Ademais, não se mostra muito atraído por manifestações,
nem envolvido com doações em dinheiro ou coletas de fundos para atividades
sociais ou políticas. Chegamos a uma minoria passiva.
Diante da existência da ONU o ‘bom cidadão’ francês teme pela soberania dos
Estados-nação, mas quanto ao direito de ingerência, para fazer valer os direitos
humanos, se mostra favorável. Internamente, o ‘bom cidadão’ francês, em geral,
acredita que a administração e os serviços públicos estão a serviço da população.
Reconhece que a manifestação de respeito pelas pessoas, especialmente no
primeiro contato, é muito importante e que ser tolerante, principalmente em
momentos de discordância, também é um valor que informa alguns dos princípios
de civilidade do ‘bom cidadão’ francês. Trata-se de uma minoria internamente
passiva, ainda que simpática aos direitos fundamentais e conhecedora dos
princípios éticos e morais da boa convivência interna (independente de colocá-los
em prática ou não). Chegamos ao breve perfil do ‘bom cidadão’ francês.
Em contrapartida, o não dito é que o ‘mau cidadão’ francês, inserido em
grupos variados pode, possivelmente, ser encontrado freqüentando manifestações e
reuniões blicas, sobretudo religiosas. Além de fazer parte de partidos políticos,
associações profissionais e organizações religiosas, também pratica a desobediência
civil no caso de insatisfações com as ações governamentais.
O ‘mau cidadão’ francês não tem uma boa imagem dos políticos franceses,
sofre com a falta de confiança nos membros do governo e nos serviços públicos.
Talvez sejam essas as razões de sua prudência nas relações sociais, não
demonstrando confiança apriorística em todas as pessoas de forma espontânea.
Contudo, é cobrado quando as circunstâncias demandam os princípios de civilidade
da sociedade. Certamente não estamos nos referindo a uma minoria passiva.
Possivelmente, chegamos a uma parcela da sociedade atenta aos direitos
fundamentais e conhecedora dos princípios éticos e morais da boa convivência
interna (ainda que os utilizem apenas no interior de seus grupos). Seria esse o perfil
do ‘mau cidadão’ francês?
Outra pesquisa, nos mesmos moldes da pesquisa sobre cidadania que
acabamos de analisar, divulgada em 2003, traz como tema a identidade nacional.
198
Uma breve abordagem sobre essa segunda pesquisa também possibilita algumas
importantes considerações a respeito da cidadania francesa e sua abrangência na
contemporaneidade.
199
Iniciaremos, assim, apresentando uma das questões contida no questionário
de nossa segunda pesquisa, qual seja: “Em sua opinião, para ser verdadeiramente
198
ANEXO B
199
A pesquisa sobre identidade nacional contou com a participação de 33 países sendo a França o país que
participou com o maior índice de representatividade e nenhuma recusa (10 000 participantes). Para maiores
informações sobre a pesquisa consultar
http://www.za.uni-koeln.de/data/en/issp/codebooks/ISSP2003app.pdf .
Acesso em: 23 maio 2006.
Francês, é importante...”.
200
Retornando à contribuição de Pierre Bourdieu quanto à
importância, não apenas das respostas, mas também das questões propostas nas
pesquisas por sondagem de opinião, cabe ressaltar que a busca pelo perfil do
‘verdadeiro’ francês pressupõe a existência de um ‘falso’ francês.
201
Isto posto, o ‘verdadeiro francês’, de acordo com o documento, é aquele que
respeita a lei e as instituições francesas. Tal posicionamento reforça o perfil do ‘bom
cidadão’ francês, contido na analisada pesquisa sobre cidadania e, considerando o
que diz a lei: a princípio são cidadãos franceses as pessoas que possuem a
nacionalidade francesa e exercem seus direitos civis e políticos, parece claro que a
cidadania, na sua objetividade, encontra-se necessariamente vinculada à
nacionalidade.
202
Obedecer à lei e às instituições francesas como principal atitude do
‘verdadeiro’ e ‘bom cidadão’ francês pode significar, neste caso, não questionar que
a princípio, como mencionado, são cidadãos franceses as pessoas que possuem a
nacionalidade francesa e exercem seus direitos civis e políticos.
203
No entanto, o
atributo “ter a nacionalidade francesa“ não aparece nem em segundo lugar dentre os
oito atributos disponibilizados, nem tampouco com expressiva votação. Este
atributo ficou em quarto lugar, depois das alternativas “ser capaz de falar francês” e
“sentir-se francês”.
204
Diante desse resultado e seguindo a lógica que ambas as
pesquisas nos oferecem parece possível afirmar que o cidadão francês, ou seja, o que
possui a nacionalidade francesa, como informa a lei, não é, necessariamente, o
‘verdadeiro’ francês que a pesquisa procura identificar.
Outro dado precioso, capaz de ampliar a compreensão sobre a atualidade do
pensamento de parcela da sociedade francesa, é o fato de que, conforme resultado
registrado em outra questão proposta pela pesquisa sobre identidade nacional, o
grupo de pesquisados, em sua maioria, acredita que os imigrantes fazem aumentar a
taxa de criminalidade e que o governo dispensa muito dinheiro para ajudá-los.
200
Tradução da autora do original: “A.votre avis, pour être vraiment Français, est-il important ...”. ANEXO B,
p.2.
201
BOURDIEU, 2003, loc. cit.
202
Cf. VIE PUBLIQUE, 2006a, loc. cit.
203
Loc. cit.
204
Cf. ANEXO B, loc. cit.
Novamente Pierre Bréchon, também responsável pelos comentários da segunda
pesquisa aqui apresentada, denuncia e lamenta o desconhecimento, por parte da
sociedade francesa, das especificidades relativas à imigração e à significativa parcela
da população de origem mais ou menos longínqua no exterior. Por assim dizer, de
acordo com Bréchon, a noção de imigrante parece acomodar, aos olhos da sociedade
francesa, grupos distintos como estrangeiros (regularizados ou não), naturalizados e
cidadãos franceses descendentes da imigração a partir da idéia de uma exterioridade
comum. Para um maior entendimento do que foi sugerido por Bréchon segue a
valiosa contribuição de Abdelmalek Sayad:
[...] ser imigrante na França e ser, ao mesmo tempo, de nacionalidade
francesa já não constitui, como poderíamos pensar [...], uma contradição
dos termos. Ou, ao menos, esta contradição, apenas aparente, traz a prova
de que não basta [...] que ele se funda “naturalmente” [...] na categoria
política e jurídica do nacional para desaparecer na qualidade de imigrante,
imigrante definido, agora, do ponto de vista de sua condição social; para
desaparecer na paisagem, no sentido estético do termo nacional. [...] a
posição que ocupa na parte inferior da hierarquia social tem por efeito
lembrar a todos, ao imigrante e à sociedade de imigração, sua origem
nacional ou comunitária (quando não étnica ou racial) [...].
205
A constatação de um gap na reflexão sobre a abrangência da cidadania
francesa não pretende, de forma alguma, desconectar os imigrantes de seus
descendentes. A porque, a manutenção deste vínculo evita tanto a diluição das
questões específicas relativas à imigração na França, quanto reforça posições face a
este fenômeno.
206
Fenômeno este que nos habilita a refletir sobre o estigma, ou “a
situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”.
207
Em conformidade com Erving Goffman, parte da sociedade o estabelecimento
de formas de categorizar pessoas e os atributos a elas vinculados, como atributos
comuns e naturais para cada categoria então criada por esta mesma sociedade. Desta
205
SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de
São Pulo (EDUSP), 1998, pp. 267-268.
206
Sobre algumas questões específicas relativas à imigração na França consultar: Id. Ibid., p. 270, n. 4.
207
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro:
LTC Ed., 1988, p. 7. A obra de Goffman foi publicada originalmente em 1963.
De acordo com Goffman, na supramencionada obra, p. 32: O termo ‘categoria’ é perfeitamente abstrato e pode
ser aplicado a qualquer agregado, nesse caso a pessoas com um estigma particular. Grande parte daqueles que
se incluem em determinada categoria de estigma podem-se referir à totalidade dos membros pelo termo ‘grupo’
ou um equivalente, como ‘nós’ ou ‘nossa gente’.
forma, as relações sociais de rotinas, em ambientes estabelecidos viabilizariam
relacionamentos previsíveis, sem a necessidade de cuidados específicos.
Diante de um ‘estranho’, surge a necessidade de verificar sua categoria e seus
atributos, ou melhor, a sua identidade social que estão incluídas alguns
atributos como ‘honestidade’, além da ‘ocupação’ do indivíduo observado. Na
existência de um ou mais atributos que o torne diferente de outros que se encontram
em certa categoria, em geral atributos indesejáveis, desconsidera-se a possibilidade
desse indivíduo ser um ‘comum’.
208
Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a
uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma,
especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande algumas
vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma
desvantagem [...].
209
Contudo, ainda que o termo estigma possa ser utilizado quando o atributo
sob análise for profundamente depreciativo, entendemos que para uma melhor
compreensão sobre as reflexões que envolvem a noção de estigma, é necessário que
nos remetamos a uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que
estigmatize um indivíduo X pode conferir normalidade ao indivíduo Y.
As várias formas de discriminações surgem de teorias construídas, de
ideologias para explicar inferioridades, perigos etc. Algumas vezes uma
animosidade ganha racionalidade com base em diferenças como, por exemplo, a de
classe social.
Membros de uma categoria específica de estigma tendem a formar grupos
sociais cujos membros são oriundos da mesma categoria. Em geral, conseguem
patrocinar publicações ou buscam formas de expressar sentimentos compartilhados,
consolidando a real existência do grupo, sua ideologia, queixas e aspirações.
210
No caso francês, apoiada na idéia de que a exceção confirma a regra, observa-
se a técnica discursiva que define por contraste o imigrante ou descendente que não
obteve êxito em seu processo de integração: pobre ou desfiliado, incapaz de se
208
Cf. Id. Ibid., pp. 11-12.
209
Id. Ibid., p. 12.
210
Cf. Id. Ibid., pp. 13-34.
emancipar de critérios culturais e/ou religiosos, vai progressivamente se opondo à
identidade francesa. Parte dessa integração repousa na ascensão econômica. A título
de ilustração, cantores, cômicos ou esportistas, ou seja, imagens circunscritas ao
universo do espetáculo informam o imigrante valorizado. Como exemplo podemos
citar o famoso jogador de futebol Zinédine Zidane e o cantor Khaled.
211
O imigrante
constitui, em regra geral, uma ameaça, mas ele pode excepcionalmente se integrar, se for no
espaço do espetáculo”.
212
O estigma com relação aos imigrantes ou descendentes da imigração pode ser
verificado nos discursos sobre integração. Ainda que estejamos falando de cidadãos
franceses com origens mais ou menos longínquas no estrangeiro, se não for
espetacular, a imagem do ‘imigrante’ é uma ameaça econômica (‘imigrante
desempregado), uma ameaça política e social (‘imigrante’ terrorista e selvagem),
uma ameaça sobre o espaço (‘imigranteinvasor), uma ameaça religiosa e cultural
(‘imigrante’ muçulmano).
211
Cf. RIGOUSTE, Mathieu. L’immigré … mais qui a réussi”. In: VIDAL, Dominique (coord.). Banlieues.
Manière de voir 89. Le Monde diplomatique, n. 89, out./nov. 2006, pp. 59-61.
212
Id. Ibid., p. 60. Traduzido pela autora do original: “L’immigré constitue en règle générale une menace, mais
il peut exceptionnellement s’intégrer, si c’est dans l’ordre du spectacle”.
CAPÍTULO 3 A cidadania em questão?
Na Europa ocidental, ocorre a mais importante experiência de superação do
Estado nacional como instrumento de coordenação das atividades
econômicas em sociedades que conciliam os ideais de liberdade e de bem-
estar social.
213
3.1 Algumas reflexões acerca do vínculo social
Sem a confiança, a rede de compromissos humanos se desfaz, tornando o
mundo um lugar ainda mais perigoso e assustador.
A confiança é substituída pela suspeita universal. Presume-se que
todos os vínculos sejam precários, duvidosos, semelhantes a armadilhas e
emboscadas até prova em contrário. [...] Nascidos da suspeita, geram
suspeita.
214
Até o surgimento das nações e, por conseguinte, dos Estados-nação,
praticamente toda a interação cultural estava restrita às elites ou a níveis altamente
localizados e circunscritos. Com o processo desencadeado pelo movimentado século
XVIII e, por desdobramento após vários ajustes, o surgimento de um novo modelo
de convivência política – o Estado-nação contemporâneo – forjava-se uma nova
forma de identidade, unindo os dois pólos: a elite dominante e o restante da
população de cada respectivo domínio territorial.
A ascensão do Estado-nação e dos movimentos nacionalistas alterou a
paisagem da identidade política. Muitas vezes, as condições implicadas na
criação do Estado moderno foram também as condições que geraram o
sentimento de nacionalidade.
215
A centralização e reordenação do poder político em territórios circunscritos
dependiam, entre outras coisas, de recursos humanos e financeiros dos governados.
Criou-se uma relação não só de dependência, mas também de reciprocidade, entre
213
FURTADO, op. cit., p. 37.
214
BAUMAN, 2005a, op. cit., p. 115.
215
HELD & MCGREW, op. cit., pp. 37-38.
100
governantes e governados nas relações sociais e nas atividades do dia-a-dia como,
por exemplo, a formação do exército nacional. Constituía-se a percepção de que
participar de certa comunidade política significava um destino comum e “embora,
muitas vezes, a natureza dessa identidade emergente fosse inicialmente vaga, ela foi
ganhando mais clareza e precisão ao longo do tempo”.
216
Por outro lado, um mal-estar social pode determinar condutas patológicas na
dinâmica social e esse mal-estar também pode fazer com que a sociedade civil se
envolva em processos homogeneizadores fornecendo ao Estado as bases de
transmissão de seu poder a partir da multiplicação de instituições. Instituições essas
que, em alguns casos, podem funcionar mais como órgãos de repressão do que como
conjuntos edificadores de uma identidade sólida.
Nossa abordagem não pretende, de forma alguma, abarcar todas as
manifestações da realidade social. E, em conformidade com Eugène Enriquez,
defendemos que as estruturas não existem em si, mas são modeladas pelos homens
que as habitam e as imprimem significação.
217
Nossa sociedade ocidental é obcecada, há muitos séculos, pelo problema
do social como tal. Como favorecer a criação de uma comunidade satisfeita,
onde um verdadeiro contrato social uniria os homens entre si, [...]? Em
outras palavras, quais são as condições de uma verdadeira democracia,
[...]?
218
Para nortear nossas reflexões descreveremos o outro’, em conformidade com
Enriquez, como aquele que identifica ou responde, através do reconhecimento, certa
ação/reação observada, travando, assim, o jogo das identificações.
219
Ainda que se considere a esfera da economia (produção e distribuição de
bens) altamente relevante na determinação da maneira pela qual o poder pode e
deve ser exercido, questões que não podem ser descartadas, sob a ótica do autor, é a
da violência e a da harmonia. Em outros termos, a questão da criação de instituições
216
Id. Ibid., p. 38.
217
Cf. ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social.2 ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1991, pp. 16-19. A primeira edição da obra de Enriquez foi publicada em 1983.
218
Id. Ibid., p. 22.
219
Cf. Id. Ibid., pp. 16-19.
101
que estimulem e representem o tipo social produzido e a da construção de mitos
(religiões ou ideologias) garantidores de coerência mínima à sociedade.
Enriquez também assinala que um grupo só é imaginável através de um
projeto comum. Indivíduos, em grande parte, somente identificam o que desejam a
partir do momento em que conseguem definir o que rejeitam. Acrescente-se que o
nascimento do corpo social (instituições, organizações) assenta-se sob regras de
aliança e de filiação como condição de reconhecimento das diferenças entre os sexos,
as gerações, os povos etc.
220
A ‘realidade’, sob influência da sociedade humana e das instituições
coletivamente criadas por ela, visaria a criação de um mundo calmo oferecendo a
sensação de agir pelo bem comum. Contudo, fundar um mundo segundo nosso desejo,
fazer desaparecer aquilo que ele tem de nocivo é, no mínimo, trabalhar para a destruição do
outro”
.
221
Nesse sentido, a contemporaneidade e a prática política dentro desse
contexto vêm revelando o fascínio que as palavras exercem sobre milhões de
cidadãos, com soluções milagrosas que constituem um dos elementos fundamentais
do espetáculo do cotidiano, permitindo a alguns dirigentes assentar seu poder e
supor que a sociedade deva curvar-se aos projetos e leis por eles edificados.
222
A problemática identificatória, centrada na aceitação da lei e pronunciada por
quem está habilitado a proferi-la, ganha assim extrema relevância para o nosso
estudo. Sobretudo, se considerarmos que “a lei proíbe o que os homens seriam capazes
de fazer sob a pressão de alguns de seus instintos. Aquilo que a própria natureza proíbe e
pune não tem necessidade de ser proibido e punido pela lei.
223
A contra-ordem poderia emergir como uma manifestação de partidários de
diferentes ordens da sociedade e a ordem cultural, por sua vez, poderia surgir do
combate e da repressão às discrepâncias. Quanto à cultura de uma sociedade, para
que nossa análise seja levada a bom termo, esta consistirá: “não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa”.
224
Mais
220
Cf. Id. Ibid. pp. 32-36.
221
Id. Ibid., p. 39.
222
Cf. Id. Ibid., pp. 40-41.
223
Id. Ibid., p. 44.
224
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Ed., 1989, p. 4. A obra de Geertz foi
publicada originalmente em 1973.
102
especificamente: “A cultura de uma sociedade [...] consiste no que quer que seja que alguém
tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros”.
225
“A cultura é pública porque o significado o é”.
226
Preenche primariamente uma
função de interdição, ainda que tais interdições possam ser constantemente
renovadas, uma vez que o indivíduo, com freqüência, tende a transgredir leis e
regras estabelecidas.
Exigências culturais progressivamente internalizadas não são, contudo, a
única forma de realização possível. Pois, as satisfações que oferecem aos seus
membros, seus ideais e suas criações refletem, em boa parte, uma realidade
construída aparentemente para compará-la, hierarquicamente, com as realidades
construídas por outras culturas.
227
Em outras palavras, a cultura progressivamente
internalizada “dota os indivíduos de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar
e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dela, tomado
individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento”.
228
Formações coletivas, para serem compreendidas, devem estar associadas a
algum mecanismo de identificação. Um indivíduo pode ser parte integrante de
vários grupos e pode estar associado a vínculos de identificação diversos como, por
exemplo, sua classe social, seu credo, sua ‘etnia’, sua região. O grupo seria uma
forma de organização fundada sobre uma base de igualdade, a partir da ilusão de
um ‘chefe’ que ama igualmente todos os seus membros e que ocupa um lugar
idealizado. O vínculo criado no interior do grupo produz indivíduos talhados sob o
mesmo molde compartilhando apenas sentimentos positivos
.
229
As identificações
entre semelhantes em situações de igualdade podem, nesse sentido, ter uma
dinâmica múltipla de caráter não excludente.
De acordo com Clifford Geertz:
[...] a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de
comportamento costumes, usos, tradições, feixes de hábitos - , como tem
sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle
planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação
225
Id. Ibid., p. 8.
226
Id. Ibid., p. 9.
227
Cf. ENRIQUEZ, op. cit., p. 83.
228
Id. Ibid., p. 216.
229
Cf. Id. Ibid., pp. 61-66.
103
chamam de “programas”) para governar o comportamento. [E] o homem
é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais
mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas
culturais, para ordenar seu comportamento.
230
Ainda sobre as formações coletivas, vale ressaltar a distinção entre grupos
com der e sem líder. Nos primeiros verifica-se um ‘chefe’ visível (ou um grupo
dominante), nos últimos, uma tendência ou um desejo podem servir de sucedâneo.
Ainda que seja difícil imaginar uma idéia ou uma mensagem sem autor, o ‘chefe
pode ser representado por mensagens um dia pronunciadas, ou seja, por introjeção.
Tais mensagens sustentam e funcionam como a garantia da existência desses
grupos. Os Dez Mandamentos, Mein Kampf ou as idéias de Mao Tse-Tung podem
indicar bons exemplos de objeto introjetado.
231
E as idéias de liberdade ou de igualdade, as idéias dos direitos humanos,
não se referem obrigatoriamente a um autor qualquer, chamem-se eles os
Convencionais, Robespierre ou Saint-Just. Porém, mesmo nesse caso, essas
idéias testemunham a existência de lutas, de esperanças dos homens (dos
revolucionários) que conceberam um projeto instaurador de um novo tipo
de vida ou de um novo tipo de homens.
232
Para além da identificação por introjeção, que se considerar a identificação
por projeção. Ou seja, os desejos são projetados e encontram sentido no mundo
exterior. Esta modalidade de identificação permite a existência de grupos sem um
‘chefe’ anterior, ou melhor, sem um ‘chefe’ real. Existe, neste caso, um objeto
transcendente guiando vidas e respondendo à angústia de cada um dos
componentes de tais grupos. “Vê-se esboçar uma nova concepção de grupo, onde o
primeiro motor não seria uma pessoa, mas a complementaridade dos desejos das pessoas
[...]”.
233
Talvez essa afirmativa não pareça de todo estranha quando utilizamos parte
da descrição de Gérard Mauger para compreender os distúrbios que se alastraram
pelo território francês iniciados em outubro de 2005, qual seja: “essa revolta espontânea
não possui nem organização, nem porta-vozes reconhecidos capazes de explicitar uma causa,
de enunciar reivindicações [...]”.
234
230
GEERTZ, op. cit., pp. 32-33.
231
ENRIQUEZ, op. cit., pp. 66-74.
232
Id. Ibid., p. 74.
233
Id. Ibid., p. 75.
234
MAUGER, loc. cit.
104
Sabe-se, como mencionado, que nas nações atuais, o indivíduo pode
pertencer a um grande grupo, a uma grande diversidade de grupos e, além disso,
pode possuir múltiplas identificações dentro e fora de sua sociedade. Não obstante o
Estado imponha sua lei como lei extrema, o indivíduo, vinculado a afetos variados,
acaba por exercer papéis diferentes e transitar entre uma conduta e outra. Essa
multiplicidade de conexões o leva a refletir a respeito de preferências, a conviver
com conflitos de papéis a desempenhar e com conflitos de lealdades que podem
surgir entre os diversos grupos dos quais ele é membro. O risco que se corre é o da
perda de referencial, pois diante de uma identidade em pedaços, o indivíduo tende a
iniciar um processo de reorganização da personalidade.
235
Não menos importante, no caso do indivíduo inserido em um grupo coeso, é
o fato de que a noção de impossibilidade parece desaparecer. O grupo coeso, em
geral, desconhece incertezas e pode ser violentamente excitado por excesso de
estímulos. Pode ser tão intolerante quanto obediente à autoridade. O interesse
pessoal é força motivadora, mas raramente é predominante. Soma-se ao grupo o
efeito devastador das palavras quando ‘artisticamente’ evocadas. Estas podem
desencadear grandes tempestades como também apaziguá-las. Por assim dizer, uma
boa retórica pode favorecer o maniqueísmo, visto que uma boa parte das
características negativas, inerente a qualquer grupo, é projetada sobre os
adversários. Valores novos são criados enquanto laços de reciprocidade se
consolidam. Contra o inimigo externo o grupo faz a guerra, contra o inimigo interno
faz a guerra civil ou velada, faz a vigilância.
236
Avançaremos nas nossas reflexões acrescentando as contribuições de Robert
Putnam e seus estudos sobre capital social. Por capital social entende-se um
conjunto de características da organização social, que abrange as redes de relações,
as normas de comportamento, os valores, a confiança, as obrigações e os canais de
informação no sentido de contribuir para aumentar a eficiência da sociedade,
favorecendo ações coordenadas. Diferentemente do capital convencional,
tipicamente de caráter privado, nosso interesse recairá sobre o capital social
235
ENRIQUEZ, op. cit., pp. 75-77.
236
Id. Ibid., pp. 55-59.
105
justamente por sua especificidade, ou seja, por constituir-se, a princípio, em um bem
público.
237
Em termos gerais, o conceito de capital social se refere às redes, normas e
valores ativados por indivíduos ou grupos através de relações formais ou informais
para cooperar na realização de objetivos comuns. Em sentido estrito, o capital social
se refere unicamente aos recursos sociais criados e incorporados em grupos nos
quais indivíduos se afiliam voluntariamente, mantendo relações de forma direta e
regular como, por exemplo, uma associação ou um grupo de amigos, vizinhos ou
fiéis de alguma instituição religiosa.
238
Em suas conclusões, Putnam vincula as tradições cívicas e a capacidade de
organização social às disparidades sócio-econômicas e ao grau de distanciamento
dos cidadãos da vida pública existentes atualmente em várias regiões do mundo.
Todavia, para além de seu determinismo amplamente criticado, o autor não deixa de
assinalar que as evidências históricas apontam os fatores socioculturais como
indispensáveis na análise das diferenças regionais. O capital social tem base,
portanto, em tradições cívicas, práticas colaborativas e evidências históricas;
considerando que estas, por si só, não desencadeiam o progresso econômico
regional, não obstante forneçam sólida base para o enfrentamento e adaptação aos
desafios.
Para uma melhor compreensão da contribuição de Putnam cabe registrar que,
em sua pesquisa, pautada em valores e em comportamentos, o autor dedicou-se ao
mapeamento dos contextos cívicos e ao grau de envolvimento dos cidadãos em tais
contextos, analisando as ordens de prioridade. A análise é atual e coerente, mas não
inédita. O que a mesma traz de novo é a possível relação entre capital social e
desenvolvimento econômico.
Embora o conceito de capital social seja largamente utilizado na
recente produção bibliográfica das ciências sociais, sua definição ainda
paira num universo impreciso. Ao recorrer às suas origens, deveríamos
resgatar clássicos da sociologia do século XIX. A utilização recente do
237
Cf. PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 5 ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006, pp. 177-181. A edição original da obra de Putnam foi publicada em 1993.
238
Cf. WORMS, Jean-Pierre. Viejos y nuevos vínculos cívicos en Francia. In: PUTNAM, Robert (ed.). El
declive del capital social:un estudio internacional sobre las sociedades y el sentido comunitario. Barcelona:
Galaxia Gutenberg, 2003, p. 276.
106
termo, entretanto, aparece basicamente pautada nas obras dos sociólogos
Pierre Bourdieu, James Coleman e Robert Putnam.
239
Ao comparar as relações cívicas e a capacidade de organização social com o
desenvolvimento sócio-econômico de duas regiões da Itália com padrões de
desenvolvimento semelhantes (a Emila-romagna, ao norte e a Calábria, ao sul), ao
longo das décadas de 1900 e 1970, Putnam concluiu que as disparidades existentes
nas tradições cívicas e na capacidade de organização social podem estar
relacionadas à realidade sócio-econômica e ao grau de distanciamento dos cidadãos
da vida pública atualmente nas duas regiões. A Emila-romana, com grande
participação política e solidariedade social, é uma das regiões mais prósperas da
Europa, ao passo que a Calábria, fragmentada e isolada, é tida como a região, de
acordo com o autor, mais ‘atrasada’ da Itália. Vale ressaltar que as mencionadas
críticas à visão determinista de Putnam não podem ficar ao largo de nossas
reflexões, sob o risco de simplificação grosseira das causas de disparidades
econômicas entre regiões.
Entre os vários atributos contidos nos estudos sobre capital social realizados
por Putnam destacamos, para complementar e enriquecer os temas já elencados em
nosso trabalho, a confiança recurso que, com o uso aumenta a oferta, ao passo que
sua não utilização faz com que se esgote. Entretanto, até mesmo Putnam, um grande
defensor das políticas de apoio à cooperação, depara com a real fragilidade do
conceito, vinculado à noção de solidariedade, sobretudo, quando registra a crescente
retração das práticas participativas, do engajamento vico e do trabalho associativo
na sociedade civil. Some-se uma crescente acentuação do individualismo e, por
conseqüência, do declínio do capital social, desde o final do século XX. Ainda que o
autor tenha concentrado esta análise no caso norte-americano, ou melhor, nas causas
e efeitos da perda dos vínculos sociais entre os cidadãos e os Estados Unidos, o
mesmo defende que o cenário pode, em certa medida, caracterizar muitas
sociedades contemporâneas.
240
239
HOLLANDA & MEDEIROS, op. cit., p. 135.
240
Cf. PUTNAM, Robert D. Solo en la bolera: colapso y resurgimiento de la comunidad norteamericana.
Barcelona: Galaxia Gutenberg Ed., 2002. A publicação original ocorreu no ano de 2000.
107
A extensão da capacidade do conceito de capital social (especialmente
vinculado aos aspectos positivos) teria levado a uma série de tautologias e
estereótipos, embaçando seus aspectos negativos e seu potencial de desorganização
social. Indivíduos e comunidades podem, sem dúvida, se beneficiar da confiança
mútua e da participação social. No entanto, o resultado de tais comportamentos
pode variar de acordo com o tipo de relação interpessoal imposta e com a forma de
organização e sustentação comunitária. Por assim dizer, não nos parece ilógico que
esses fatores (confiança mútua e participação social) possam, inclusive, reduzir ou
ampliar ainda mais as desigualdades sócio-econômicas existentes entre as
comunidades e abalar profundamente o sentimento de pertença, bem como a noção
de cidadania em suas várias dimensões possíveis.
Debruçadas sobre os estudos relativos ao capital social, Cristina B. de
Hollanda e Sabrina E. Medeiros apontam para a existência de ‘ilhas de capital
social’. O pertencimento a grupos conexos originários da imigração ou a vinculação
a comunidades religiosas oferecem bons exemplos do que seriam as ‘ilhas de capital
social’, haja vista o fato de que a produção de capital social desses grupos tem seu
espectro, em geral, no limite de suas fronteiras internas. Nestes casos, bem como em
outros vários possíveis, as externalidades produzidas apresentam-se de forma
negativa no âmbito da sociedade, como um todo, promovendo um afastamento
entre os grupos e, conseqüentemente, entre os cidadãos.
241
Ainda com as autoras, um dado relevante, no sentido de reforçar a tese de
que a interação entre os cidadãos não necessariamente informa um ritmo crescente, é
a expressividade crescente de grupos como o Greenpeace, formado por uma
administração burocrática com milhares de afiliados contribuindo para sua
existência e atuação, ainda que distantes entre si e de qualquer forma de
participação direta nas decisões e nas diretrizes da organização a qual fazem parte.
Percebe-se, assim, uma real possibilidade de ruptura com os modelos
tradicionais de interação e de articulação entre os cidadãos organizados no espaço
territorial da nação e, em decorrência, um clima favorável ao declínio, cada vez
maior, do capital social na esfera nacional. Talvez essa reflexão possa ajudar a
241
Cf. HOLLANDA & MEDEIROS, op. cit., p. 138.
108
entender, por exemplo, o afastamento dos cidadãos comuns das práticas políticas
oficiais (como o aumento das abstenções em eleições de vários países onde o voto é
opcional) e o enfraquecimento da relação entre cidadania e nacionalidade, abrindo
espaço para a intensificação de novas esferas de pertença e da produção de capital
social internalizado, responsável, em certa medida, pela fragmentação da população
em comunidades que não interagem entre si. “De uma maneira geral, [Putnam] alerta
para o grave equívoco decorrente de ações governamentais que negligenciam a estruturação
das redes de relacionamento interpessoais vigentes na sociedade”.
242
Uma das noções que informam a concepção do capital social são os
mencionados sistemas de participação cívica. Ou seja, uma maior intensidade de
interação nessa esfera possibilitaria, sob a ótica de Putnam, que os cidadãos de uma
comunidade aumentassem sua capacidade de cooperação em benefício mútuo. A
título de ilustração, a vinculação a grupos organizados (como redes de associações
locais, associações comunitárias com participação ativa dos cidadãos, pactos de
observância das leis, etc.) estaria positivamente relacionada com a ão
governamental. E, em assim sendo, o capital social gerado a partir dessas formas de
participação cívica seria um dos condicionantes para o bom andamento do governo
e da economia, em oposição à economia forte, à sociedade forte, enfim, ao Estado
forte.
Talvez fosse oportuno refletir sobre uma estratégia política de
desenvolvimento regional não apenas voltada para ações ortodoxas, como créditos a
custos baixos, pequenos incentivos financeiros, educação ‘básica’ etc.. Mas uma
estratégia envolvida no fortalecimento da auto-organização social, estimulando a
prática de soluções colaborativas para problemas comuns, promovendo a
participação e a abertura ao diálogo com as diversas comunidades existentes.
Por fim, as pesquisas de Putnam deixaram um forte legado, a saber: a história
e o contexto social condicionam profundamente o desempenho das instituições; e o
bom andamento do governo (aqui incluída a economia) está estreitamente ligado ao
capital social. A produção endógena de capital social e sua conseqüente
externalidade negativa aparecem, desta forma, como fortes entraves, ainda que não
242
Id. Ibid., p. 143.
109
os únicos, para a manutenção da concepção clássica de cidadania, ou melhor, para a
sustentação dos pilares que informam o Estado-nação. Tal reflexão ganha espaço
ainda maior nas discussões sobre os desdobramentos dos processos migratórios,
pois o sentimento de pertença vinculado à nacionalidade ou às fronteiras nacionais
não vem impedindo a intensificação, o fortalecimento, ou ainda, a reformulação de
identidades infra ou supranacionais sob a forma de ‘ilhas de capital social’.
3.2 O Perfil da Identidade Nacional Francesa para o Século XXI
De acordo com um velho “tópos” marxista, a evocação do inimigo externo
serve para deslocar o foco da verdadeira origem das tensões, o antagonismo
inerente ao sistema basta lembrar a explicação comum do anti-semitismo
como o deslocamento para a figura do judeu, este intruso “externo” no
nosso corpo social, da causa dos antagonismos que ameaçam a harmonia
desse corpo. Há, entretanto, também a operação ideológica contrária, a falsa
evocação das causas “internas do fracasso. Em 1940, quando Pétain se
tornou líder dos franceses, ele explicou a derrota francesa como resultado de
um longo processo de degeneração do Estado francês causado pela
influência liberal-judia.
243
Ao colocar seus ideais sempre acima dos ideais individuais ou grupais o
Estado, quando obtém êxito, tende a aumentar, cada vez mais, seu poder de coerção
e suas exigências. É a concepção de formação coletiva nacional, solicitando
uniformidade de comportamento.
244
Todavia, chamamos a atenção para o fato de que a identidade nacional, ainda
que resultante de um projeto político explícito, não necessariamente ela foi uma
completa invenção. Não se inventam nações onde elas não possam se constituir.
Algumas nações foram concebidas com base em núcleos pré-modernos, tendo suas
culturas e suas fronteiras moldadas por mitos e lembranças, valores e símbolos
comuns, ainda que, por vezes, construídos ou ressignificados.
A ‘futura nação’ não era uma grande entidade social ou cultural qualquer;
antes, era uma comunidade de história e cultura’ que ocupava um
243
ZIZEK, op. cit., pp. 176-177.
244
Cf. ENRIQUEZ, op. cit., p. 77.
110
determinado território e, muitas vezes, reivindicava uma tradição singular
de direitos e deveres comuns para seus membros
.
245
A sustentação e o incremento da força desta identidade decorreu, em especial,
por parte dos nacionalistas. Acrescente-se o surgimento e a exploração da etno-
história’ e o destaque dado à singularidade de cada comunidade no mundo dos
valores políticos e culturais rivais. Cabe ressaltar que a bem-sucedida construção das
nações modernas, identidades nacionais e Estados-nação sofre grande contestação;
pois, o desenvolvimento de cada uma delas teve sua própria dinâmica e êxito
individuais.
Seguindo esta lógica, o Estado moderno pode abarcar, na maior parte dos
casos, uma diversidade de grupos étnicos, culturais e lingüísticos de inclinações e
lealdade variáveis. Não há, portanto, entre os grupos e o Estado, uma relação
uniforme; o que pode e, em geral, acarreta desde brandos até intensos conflitos.
Ainda assim, pode-se considerar que a ascensão das nações modernas, do
nacionalismo e dos Estados-nação foram, em geral, exitosos por terem levado um
grande número de grupos diversificados à organização de uma vida cultural em
moldes nacionais e territoriais.
O poder da idéia de “nação” não passou despercebido ao resto do mundo, e
as idéias de cultura nacional e de nacionalismo alastraram-se em parte
como resultado da expansão dos próprios impérios europeus pelas
Américas, Ásia, África e Oriente médio. Isso ajudou a alimentar os
movimentos de independência, voltando a cimentar um vínculo particular
entre a cultura, a geografia e a liberdade política.
246
Às conseqüências do exposto, para muitos se torna difícil pensar em um
desgaste da concepção moderna de nação e da identidade nacional por forças
transnacionais e, em particular, pelo desenvolvimento da denominada cultura global
de massa. No entanto, o que assistimos neste início do século XXI, por parte de um
expressivo número de Estados, é uma preocupação central com as culturas nacionais
e com a consolidação da relação entre identidade política, autodeterminação e
poderes do Estado.
245
HELD & MCGREW, op. cit., p. 39.
246
Id. Ibid., p. 41.
111
Novas circunstâncias, até mesmo as redes de comunicação que se formaram a
partir das transformações na tecnologia da informação, parecem contribuir com uma
interação mais densa e mais intensa entre integrantes de comunidades, muitas vezes
distantes geograficamente, mas que compartilham características culturais e/ou
expectativas comuns. Vale ressaltar que os novos sistemas de comunicação também
trazem à cena uma maior e explícita consciência das desigualdades, das diferenças e
das orientações de valor. Tal consciência pode fragmentar de forma contundente a
identidade social de muitas comunidades.
A existência desses novos sistemas globais de comunicação, além de
desvincular as identidades sociais de determinados momentos, lugares e tradições,
exercendo um impacto progressivamente variável em sua formação ou
reformulação, pode, também, produzir séries delas (agregadas aos hífens) com
características menos fixas ou unificadas. Nas palavras de David Held e Anthony
McGrew: “Os fluxos culturais estão transformando a política da identidade nacional e a
política da identidade em termos mais gerais”.
247
E sob essa ótica, pode-se supor um novo
sentido de participação que transcende a fidelidade ao Estado-nação.
O nacionalismo pode ter sido funcional e, talvez, até essencial para a
consolidação e o desenvolvimento do Estado moderno, mas hoje destoa de
um mundo em que as forças econômicas e sociais e muitas forças políticas
escapam a jurisdição do Estado-nação.
248
Todavia, ainda que Held e McGrew identifiquem uma perda de força por
parte dos apelos de cunho nacionalista na contemporaneidade, parece possível
afirmar que as complexidades da política da identidade nacional, moldada pelo
desejo de (re)afirmar o controle sobre as forças que moldam a vida de cada
indivíduo, ainda são uma realidade, uma forte preocupação de alguns Estados e das
parcelas dominantes dessas sociedades, como mostra a mencionada pesquisa
sobre identidade nacional. E é da continuidade de nossa reflexão sobre o conteúdo
dessa segunda pesquisa que retomaremos a nossa análise.
De início, a título de informação, o número de questionários distribuídos
tanto da pesquisa sobre cidadania, quanto da pesquisa sobre identidade nacional foi
247
Id. Ibid., pp. 46-47.
248
Id. Ibid., p. 43.
112
o mesmo, ou seja, 10 mil questionários. A pesquisa sobre cidadania contou com 1419
respostas válidas, ao passo que a pesquisa sobre identidade nacional obteve o
retorno de 1669 questionários plenamente respondidos.
249
A pesquisa afirma que “todos pertencemos a diferentes grupos e categorias,
sendo certo que alguns nos definem melhor do que outros”.
250
Para responder a
questão era necessário apontar os três atributos que melhor definiam cada indivíduo
pesquisado, por ordem de preferência. Os laços familiares e profissionais ocuparam
os dois primeiros lugares, nesta ordem, e a nacionalidade ficou em terceiro lugar,
praticamente empatada com “o fato de ser homem ou mulher”. A faixa etária, a
região onde reside, a classe social, a religião e o partido tiveram inexpressiva
votação.
Quanto à dimensão estritamente territorial, a ligação entre os indivíduos e o
país surge com mais força do que as relações locais. Por outro lado, os laços entre os
mesmos e a Identidade Européia é bastante fraco.
O ‘verdadeiro francês’, aos olhos da opinião pública, mostra algumas virtudes
com uma hierarquia levemente decrescente, quais sejam: respeitar a ordem pública
(leis e instituições francesas), falar o idioma do país e sentir-se francês. Ter nascido
na França, possuir a nacionalidade francesa ou ter vivido a maior parte da vida na
França parecem valores bem menos importantes para definir o ‘verdadeiro francês’.
Por assim dizer, ser francês não é fator preponderante, de acordo com a pesquisa,
para ser aquilo que a pesquisa denomina um ‘verdadeiro francês’.
Não obstante 95,7% dos pesquisados possuíssem a nacionalidade francesa,
14% dos mesmos alegaram pertencimento a diversos grupos, como grupos formados
por magrebinos, por africanos oriundos da África sub-saariana, por antilhanos,
europeus do leste do continente etc. Outros 22,5% afirmaram possuir origens no
estrangeiro. Apenas 2% dos pesquisados informaram não possuir a nacionalidade
francesa, enquanto 8% confirmaram que somente um dos pais, ou nem o pai, nem a
mãe possuíam a nacionalidade francesa, ou seja, a pesquisa contou apenas com 2%
249
Maiores detalhes relativos às pesquisas sobre cidadania e identidade nacional consultar respectivamente:
http://solcidsp.upmf-grenoble.fr/cidsp/publications/dossiers/ISSP/resultatsFranceISSP2004.pdf . Acesso em: 20
mar. 2007 e http://www.za.uni-koeln.de/data/en/issp/codebooks/ISSP2003app.pdf . Acesso em: 23 mai. 2006.
250
Traduzido pela autora do Anexo B, p.1. Nous appartenonts tous à différents groupes ou categories. Certains
nous définissent mieux que d’autres.
113
de estrangeiros e 8% de indivíduos que compõem a primeira geração de nascidos na
França de pais, somente pai ou somente mãe nascidos no estrangeiro, mas que
fazem jus ao direito de solo, como explicitado no capítulo 2 deste trabalho. Para
efeito de representatividade, os estrangeiros e seus descendentes imediatos
aparecem absolutamente sub-representados nesta pesquisa.
Dando segmento, o orgulho da sociedade francesa, de acordo com o
documento que analisamos, reside em sua própria história, sendo indispensável que
as minorias se adaptem, fundindo-se em seu interior. A maioria dos pesquisados
acredita que: “As pessoas que o compartilham nem os costumes, nem as tradições
francesas não serão jamais franceses por inteiro”.
251
E a idéia de que o governo
poderia ajudar os ‘estrangeiros’ na preservação de suas próprias culturas foi
fortemente rejeitada.
Quanto aos imigrantes, acredita-se na relação direta entre estes e o aumento
da taxa de criminalidade no país, além do gasto excessivo que o governo tem com
ações que visam ajudar e dar suporte ao grupo em questão. Ainda que a maioria dos
pesquisados descarte a possibilidade dos imigrantes tomarem o lugar dos
‘verdadeiros franceses’ no mercado de trabalho (até porque é sabido que o maior
índice de desemprego está localizado nas periferias francesas, onde mora grande
parte dos imigrantes e originários da imigração), poucos creditam alguma
contribuição, para a economia francesa e sua sociedade, advinda da existência (no
caso da economia) ou de novas idéias e novos costumes (no caso da sociedade)
trazidos pelos imigrantes.
Como esperado, diante do posicionamento descrito no parágrafo anterior,
uma maioria entende que muitos estrangeiros na França e que tal índice deve
diminuir consideravelmente. Bréchon, o comentarista das pesquisas que
apresentamos, lamenta, como mencionado, o desconhecimento, por parte da
sociedade francesa, das especificidades dos estrangeiros. Mas, se este é um dado de
realidade realmente lamentável, acreditamos que as questões, ou simples
afirmativas apresentadas no corpo da pesquisa teriam sido mais produtivas se
251
Traduzido pela autora do Anexo B, p.7. Les personnes qui ne partagent pas les costumes et les traditions
françaises ne seront jamais des Français à part entière.
114
carregassem um caráter esclarecedor. Viabilizar julgamentos ciente da falta de
informações sobre os julgados e da falta de espaço para qualquer modalidade de
defesa por parte dos mesmos é, para nós, motivo de forte estranhamento.
Motivo de estranhamento ainda maior é verificar que as noções de direito de
solo e de sangue são largamente aceitas: em síntese, de acordo com o texto da
pesquisa, aceita-se que crianças, nascidas na França, de pais estrangeiros tenham o
direito à nacionalidade francesa, da mesma forma que as nascidas fora da França, de
pais franceses. Dentro dessa lógica, o que se pode inferir é que parcela significativa
da população identificada por esta sociedade como ‘imigrante’ (ligado ao aumento
da criminalidade e um peso para os cofres públicos) é sabidamente formada por
franceses, sobretudo, franceses por direito de solo. Talvez isso não importe, porque
ser francês, pelo que se pode observar, não significa ser ‘verdadeiramente francês’.
Conhecidos como beurs (originários da imigração), têm seus filhos também
apontados como ‘imigrantes’, ainda que nascidos de pais com a nacionalidade
francesa por direito. Na sociedade francesa o conceito de imigrante parece bastante
ampliado.
252
Todos os povos desenvolveram estruturas simbólicas nos termos das quais
as pessoas são percebidas exatamente como tais, como simples membros
sem adorno da raça humana, mas como representantes de certas categorias
distintas de pessoas, tipos específicos de indivíduos. Em cada caso em
separado, surge, inevitavelmente, uma pluralidade de tais estruturas.
Algumas são centradas no ego, como por exemplo as terminologias do
parentesco; isto é, elas definem o status de um indivíduo em termos de sua
relação com um ator social específico. Outras se concentram em um ou
outro subsistema ou aspecto da sociedade, e são invariáveis no que diz
respeito às perspectivas dos atores individuais: categorias nobres, status de
grupos de idade, categorias ocupacionais. Alguns nomes pessoais e
apelidos são informais e particularizantes; outros títulos burocráticos e
designações de casta são formais e padronizados. O mundo cotidiano no
qual se movem os membros de qualquer comunidade, seu campo de ação
social considerado garantido, é habitado não por homens quaisquer, sem
rosto, sem qualidades, mas por homens personalizados, classes concretas de
pessoas determinadas, positivamente caracterizadas e adequadamente
rotuladas. Os sistemas de mbolos que definem essas classes não são dados
252
Quando nos referimos ao conceito de imigrante fazemos alusão ao indivíduo de nacionalidade estrangeira em
situação regular no país de acolhimento. Cf. VIE PUBLIQUE. Définitions Insee (un étranger/un immigré). In: La
Documentation française. Disponível em:
http://www.vie-publque.fr/documents-
vp/definition_immietrnag.shtml . Acesso em: 27 mar. 2006.
115
pela natureza das coisas eles são construídos historicamente, mantidos
socialmente e aplicados individualmente.
253
De volta com Erving Goffman, a manipulação do estigma é apontada como
uma das características da sociedade, um processo que ocorre, em geral, quando
normas de identidade. De acordo com o autor, a existência de um processo de
identificação social pode ser claramente observada se o ponto de referência for uma
grande organização (como o governo de um Estado), ao invés de um pequeno
grupo. Aceita-se, atualmente, como prática organizacional padronizada o registro de
elementos para uma identificação positiva do indivíduo. Dessa forma, uma vez que
o apoio a identidade esteja preparado, materializado e se torne disponível, acredita-
se que, como conseqüência, cresça a identificação pessoal dos cidadãos pelo Estado.
Os sinais devidamente considerados, quer de prestígio ou de estigma, pertencem à
identidade social de cada indivíduo ou grupo consolidado de indivíduos portadores
de atributos diferenciados. Possuir um passado ‘estranho’ (estranho para o grupo
dominante) pode ser um bom exemplo de impropriedade. Para o dono deste
passado, viver junto àqueles que ignoram esse passado, não são ou não querem ser
informados sobre ele informa um estigma plenamente capaz de impedir a formação
de uma identidade social positiva.
254
A sociologia nos diz que, em geral, falamos do ponto de vista de um grupo.
No caso do estigmatizado, a sociedade concorda que ele é um membro do grupo, do
grupo em sua dimensão mais ampla, ou seja, que ele é um ser humano. Mas, que de
alguma forma ele é ‘diferente’ e que seria absurdo negar essa ‘diferença’. Fato é que
as diferenças derivam da própria sociedade em questão, pois antes de serem
relevantes, as mesmas precisam ser coletivamente conceitualizadas por esta
sociedade.
Nessa seqüência, capitaneada por grupos dominantes da sociedade, a pessoa
estigmatizada vive, em geral, em uma arena de discussões e argumentações sobre o
que ela deve pensar de si mesma.
A seus outros problemas, ela deve acrescentar o de ser simultaneamente
empurrada em várias direções por profissionais que lhe dizem o que deveria
253
GEERTZ, op. cit., p. 151.
254
GOFFMAN, op. cit., pp. 67-75.
116
fazer e pensar sobre o que ela é e o é, e tudo isso, pretensamente, em seu
próprio benefício.
255
No entanto, adverte Goffman:
A estigmatização daqueles que têm maus antecedentes morais pode,
nitidamente, funcionar como um meio de controle social formal; a
estigmatização de membros de certos grupos raciais, religiosos ou étnicos
tem funcionado, aparentemente, como um meio de afastar essas minorias de
diversas vias de competição; e a desvalorização daqueles que têm
desfigurações físicas pode, talvez, ser interpretada como uma contribuição à
necessidade de restrição à escolha do par.
256
Inseridas na temática do estigma encontram-se as noções de ‘desvios’ e de
‘comportamentos desviantes’. Pode-se chamar de ‘destoante’ qualquer membro de
uma sociedade que não adere às normas, no caso de uma referência muito geral a
um grupo que compartilhe alguns valores e conjunto de normas sociais relativas à
conduta e atributos pessoais. O ‘desvio’ seria uma peculiaridade do ‘destoante’.
Indivíduos que voluntária e publicamente recusam-se a aceitar o lugar social que
lhes é reservado, agindo de maneira irregular no que se refere às instituições, são
classificados por Goffman como ‘desviantes desafiliados’. Os que se agrupam em
subcomunidades são classificados pelo autor, no caso, como ‘desviantes sociais’,
também constituindo um tipo de ‘destoante’.
Os vários tipos de ‘destoantes’ são percebidos como incapazes de utilizar as
oportunidades disponibilizadas pela sociedade para a ascensão social. São acusados
de demonstrar evidente desrespeito por seus superiores e falta de moralidade,
representando obstáculos nos esquemas motivacionais da sociedade. Ao ostentarem
sua recusa em aceitar seu lugar na hierarquia social, os ‘destoantes’ são
temporariamente autorizados a viver dentro dessa rebeldia, desde que esta fique
circunscrita às fronteiras de suas comunidades.
257
Para não nos afastarmos do objeto de nosso estudo, cumpre apresentar duas
categorias de ‘destoantes’ que, de acordo com Goffman, devem ser destacadas:
Em primeiro lugar, os grupos minoritários étnicos e raciais: indivíduos que
têm uma história e uma cultura comuns (e, com freqüência, uma origem
255
Id. Ibid., p. 136.
256
Id. Ibid., pp. 149-150.
257
Cf. Id. Ibid., pp. 151-156.
117
nacional comum), que transmitem sua filiação ao longo de linhas de
descendência, numa posição que lhes permite exigir sinais de lealdade de
alguns membros, e numa posição relativamente desvantajosa na sociedade.
Em segundo lugar, os membros da classe baixa que, de forma bastante
perceptível, trazem a marca de seu status na linguagem, aparência e gestos,
e que, em referência às instituições públicas de nossa sociedade, descobrem
que são cidadãos de segunda classe.
258
Diante de novas formas de discursos identitários, que parecem visar a
preservação ou a reconstrução de valores, bem como da integridade nacional,
cumpre não subestimar o poder dos meios de comunicação contemporâneos e sua
capacidade de produzir percepções, estereótipos, processos de estigmatização e
deformação do ‘outro’. Com pretextos identitários e justificativas culturalistas
podem ser apresentados temas como ‘guerras de civilizações’, ‘diálogo entre
culturas’ e, entre outros, ‘Islam versus Ocidente’.
Em uma cidade, as pessoas que pertencem a um bairro, uma região, um país,
sempre podem identificar-se tanto com grupos mais próximos, como com grupos
mais distantes (ser vizinho de A e ser francês, são exemplos de identidades
simultâneas possíveis não hierarquizadas). Porém, na medida em que pessoas
começam a invocar suas identidades separadamente, não se conhecem muito bem e
não buscam organizar-se de forma contínua, acabam constituindo uma categoria
social, no lugar de um grupo social estruturado. Nesse caso, o apelo a estas
identidades de contornos pouco tidos acabará sendo utilizado, em maior medida,
como um sistema de classificação e, conseqüentemente, como um recurso ou como
referência para a solução de questões práticas privadas como empregos, locação de
imóveis etc. Sob esta ótica as identidades sociais podem reduzir-se a um inventário
de valores culturais, a simples estereótipos.
Quantos aos estereótipos, o ‘outro’ dificilmente é definido de forma exata. É ,
em geral, ridicularizado, caricaturado, depreciado. A língua, os costumes, a arte e a
história seguem sendo uma forma bastante utilizada para criar fronteiras entre
pessoas. Ser um bom francófilo pode ser optar por palavras francesas em detrimento
das expressões estrangeiras de larga utilização. Deve utilizar a palavra télécopie no
lugar de fax; défi no lugar de challenge; bonne fin de semaine no lugar de bon week-end.
258
Id. Ibid., pp. 156-157.
118
A questão que se impõe é: qual a ligação entre o atual contexto de transformação do
mundo, as novas construções identitárias e as relações entre grupos humanos? O
Ocidente, ou melhor, os ‘Ocidentes’, reinventam pela enésima vez aspectos de sua
existência.
259
A identidade política seria uma das condições para uma possível unificação
política, e não cultural. A própria Europa, antes da constituição dos Estados-nação,
era, em grande parte, multicultural e, até onde se saiba, ainda o é. Estranhamente,
algumas dessas sociedades têm mostrado na contemporaneidade um
comportamento, frente às comunidades estrangeiras residentes em seus países,
semelhante ao de uma comunidade étnica e coesa a partir de um sentimento
altamente etnicizado. Nesse sentido, a idéia de nação, base para a concepção da
cidadania, sobre a qual se fundou a República, espaço político destinado a todas as
etnias, informa uma debilidade diante das noções de diferença cultural, religiosa e
étnica. A idéia de nação parece bastante identificada com a de etnia e talvez esse seja
um bom começo para refletir sobre o agravamento dos problemas relativos à
entrada e/ou permanência de culturas e grupos identificados com outras etnias
sobre certo território nacional. Se são vistos como etnias, não apenas as nações
européias, mas nós também (a nação brasileira) nos percebemos como tal. Assim
sendo, a possibilidade de legitimação desta idéia de nação no próprio seio das
nações consolidadas como, por exemplo, as da Europa vem a ser, para nós, fonte de
inúmeras inquietações.
260
Yolanda Onghena adverte que a questão da imigração é muito mais ampla do
que seu aspecto cultural (por reunir, minimamente falando, questões econômicas,
políticas e sociais), não oferecendo o melhor ângulo para examinar o intercultural.
261
De fato, mas se nosso foco não é o intercultural e pudermos seguir com Clifford
Geertz:
Uma das coisas que todo mundo conhece mas o sabe muito bem como
demonstrar é que a política de um país reflete o modelo de sua cultura. [...]
259
Cf. RACHIK, Hassan. Identidad dura e identidad blanda. In: ONGHENA, Yolanda et al. Revista CIDOB
d’Afers Internacionals, n. 73-74, maio-junho 2006, pp. 9-20
260
Cf. ONGHENA, Yolanda. De lo identitario a lo intercultural: líneas transversales de los debates. In: Id.
Ibid, pp. 155-182.
261
Cf. Id. Ibid., p. 181.
119
A cultura aqui não são cultos e costumes, mas as estruturas de significado
através das quais os homens dão forma a sua experiência, e a política não
são golpes e constituições, mas uma das principais arenas na qual tais
estruturas se desenrolam publicamente. Com essa reformulação das duas
cultura e política passa a ser um empreendimento mais praticável
determinar a conexão entre elas, embora a tarefa não seja modesta.
262
3.3 Um novo modelo de cidadão para um novo modelo de convivência política?
Sendo assim, neste fim de século o crescimento econômico passa a ter
como contrapartida o nascimento de uma nova forma de organização social
que redefine o perfil de distribuição da renda. Pode-se enxergar nessa
observação simples uma ameaça ou um desafio. Quando nada, o prenúncio
de uma era de incertezas.
263
Tanto na França, como em vários outros países desenvolvidos, as sociedades
se perguntam sobre os riscos da perda da coesão social e da essência democrática de
seus países. Soe responsabilizar as crescentes pressões da mundialização e o
individualismo como as principais forças que perturbam e erodem os vínculos
cívicos e sociais. A França se considera especialmente vulnerável, pois essa erosão
tem deixado suas marcas em elementos estruturais do país, identificados como os
bastiões sobre os quais giram seu modelo republicano, sua segurança interna e
externa: o Estado e os trabalhadores assalariados.
A coesão social de uma sociedade pode ser medida: por um lado, dentro de
cada grupo ou comunidade; por outro lado, entre estes grupos ou comunidades
distintos. Considere-se que a coesão interna de cada grupo concreto não provoca
forte coesão na sociedade em geral. A hipótese, amplamente aceita, de que o capital
social na França está declinando faz alusão a uma diminuição do capital social
dentro dos grupos tradicionais da sociedade francesa e à falta de conexão entre eles
e as instituições públicas.
264
O capital social é o produto volátil do intercâmbio social em uma relação
dinâmica de oferta e demanda. Se os cidadãos que recebem a oferta de certo capital
social preexistente o consideram improcedente para os fins que perseguem, se as
262
GEERTZ, op. cit., p. 135.
263
FURTADO, op. cit., p. 26.
264
Cf. WORMS, Jean-Pierre. Op. cit., p. 277.
120
vantagens que podem receber não são as que buscam, esse capital social pode decair
por falta de uso. Assim sendo, ao verificarmos a diminuição do capital social em
distintas esferas da sociedade francesa devemos nos perguntar pela pertinência
deste capital social ofertado para seus supostos beneficiários e dedicar a devida
atenção ao novo capital social que estes cidadãos podem estar criando em
substituição ao que se abandona.
O Estado é um produto da sociedade, não obstante sua relação inversa seja
igualmente certa. Por um lado, uma sociedade cria progressivamente seu Estado, ou
seja, suas instituições e regras requeridas para a coabitação pacífica de seus grupos
de acordo com a produção, a defesa e a distribuição de bens comuns. Mas, por outro
lado, as normas públicas e as instituições do Estado enunciam referências
normativas comuns que aglutinam os componentes da sociedade e criam um
sentimento de pertencimento e um desejo de participar de uma cidadania comum.
Na mesma medida, a burocracia do Estado acaba por dividir os cidadãos em
categorias com diferentes conjuntos de interesses a serem defendidos e promovidos;
e com identidades sociais específicas. Essa análise é particularmente significativa no
caso francês, haja vista o papel preponderante desempenhado por este Estado na
configuração de sua sociedade civil.
265
Em geral, quando o Estado reconhece e organiza novos interesses de grupos e
novos direitos sociais, incita os membros destes grupos a constituírem associações
para promover melhor seus interesses e defender seus direitos. Quando uma nova
legislação delimita e regula um novo campo de participação política, aberto às
iniciativas dos cidadãos, incita os mesmos a aproveitar a situação para realizar novas
atividades coletivas. Acrescente-se que as redes comerciais de radiodifusão, pelo
menos no caso francês, acabaram por ocupar rapidamente o espaço que puderam,
fazendo com que as rádios associativas proliferassem em plano local, criando
vínculos de informação, diálogo e participação ativa em assuntos comunitários
dirigidos a um grande número de grupos.
Há, ainda, uma modalidade de relação entre o Estado francês e as associações
que se faz presente quando esse Estado, através de financiamentos, transfere para as
265
Cf. Id. Ibid., p. 279.
121
associações uma responsabilidade parcial para a gestão conjunta de serviços
públicos. Neste caso, registra-se a necessidade de uma participação associativa ativa
por parte da população interessada. Sendo certo que o enfraquecimento na relação
entre essas associações e seus associados pode estar ligado à atual situação de crise
que faz com que o Estado anuncie crescentes demandas às associações, refletindo em
um aumento nas dificuldades para acomodar medidas públicas às necessidades
sociais cada vez mais diversas e complexas em uma sociedade que experimenta
transformações rápidas e, muitas vezes, traumáticas.
Essa co-responsabilidade nas medidas blicas ganha a forma de acordos
contratuais explícitos que vinculam as burocracias das associações francesas às do
Estado e, no processo de descentralização, vincula também as associações aos
governos locais. As condições contratuais acabam por limitar a liberdade de
movimento das associações, ao invés de somar dois tipos distintos de legitimidade,
reduzindo-as a uma espécie de departamento de serviços públicos.
Quanto aos cidadãos franceses que se afiliam às associações, registre-se um
crescente interesse por atividades ligadas ao esporte, à cultura, assim como por
associações humanitárias, que abrem perspectivas de desenvolvimento individual e
novas formas de solidariedade. É cada vez menor a procura por grupos de interesse
como, por exemplo, as associações de pais, os sindicatos, os partidos políticos etc.
266
Muito embora as afiliações a associações e o acesso a seu capital social seja,
em menor medida que antes, um privilégio de indivíduos com mais estudo, a
participação em algumas associações ainda constitui um ornato para uma condição
social privilegiada composta por categorias bem integradas, reproduzindo a
utilidade social de algumas associações do passado, refletindo as pretensões de uma
elite ilustrada de possuir uma virtude cívica superior.
Cumpre citar a influência discriminatória da educação. O acesso à educação
obrigatória e gratuita sempre representou um grande elemento nivelador da
sociedade francesa: a porta de entrada da cidadania. No entanto, numerosos estudos
têm mostrado que um igualitarismo formal e anônimo vem perpetuando as
266
Cf. Id. Ibid., pp. 284-294.
122
desigualdades sociais, ao invés de extingui-las.
267
A juventude francesa, por sua vez,
vem revelando a formação de novas modalidades de capital social associativo.
Muitas associações tradicionais se ressentem e denunciam o afastamento dos jovens.
Seus dirigentes não hesitam em culpar os valores individualistas e hedonistas dos
jovens, além de sua despreocupação com o bem-estar geral. Ainda que sejam
consideradas todas essas queixas, o atual contexto informa algo bem mais complexo.
As formas de sociabilidade associativa parecem experimentar rápidas mudanças. Os
jovens cidadãos franceses não têm mais se dedicado às mesmas associações que suas
gerações anteriores, ao passo que os mais velhos ignoram ou interpretam mal novas
formas de participação. Esses jovens não parecem demonstrar menor preocupação
do que as gerações anteriores por questões ou motivações éticas, mas muitos fatores
podem estar empurrando esse grupo para outras modalidades de socialização e
compromissos sociais distantes do ‘mundo adulto’ como, por exemplo, maiores
dificuldades de inserção social e profissional; o sentimento de não ser escutado ou
compreendido etc. Fato é que essa geração de jovens cidadãos franceses não pode
ser concebida como congenitamente incompetente para a atividade associativa.
Quase não se verifica, no caso francês, a adoção de formas
institucionalizadas de associações registradas, a menos que se trate de autoridades
locais que as exijam. As regras informais de sociabilidade densamente travadas
parecem substituir as limitações formais. E quando participam de alguma ão
coletiva, os jovens cidadãos desejam, em geral, satisfazer simultaneamente uma forte
necessidade de sociabilidade, um aporte razoável e eficaz de solidariedade social,
além de desenvolvimento pessoal. A estabilidade, a segurança, a integridade pessoal
e as oportunidades de desenvolvimento individual parecem, assim, convertidas nas
principais motivações para justificar a presença do indivíduo em qualquer forma de
coletividade.
Essa personalização do compromisso coletivo vem alterando as concepções
tradicionais de associações, sindicatos e outras formas institucionalizadas de capital
social na França. Acrescente-se que a atitude desses jovens vem se estendendo para
267
Cf. Id. Ibid., p. 298.
123
grupos de outras gerações, para pessoas com mais idade. Ao que parece, o capital
social institucionalizado ofertado não mais lhes parece pertinente.
A atualidade evidencia que cidadãos, sobretudo jovens cidadãos se associam
na medida em que se interessam por alguma ão em particular, dirigida para
resultados concretos e imediatos; e só prolongam sua filiação se sentirem-se
satisfeitos com os resultados e interessados no passo seguinte. De outra forma, se
filiam à outra associação.
268
À reflexão acrescentaremos a contribuição de Michel Hardt e Antonio Negri.
Ambos apresentam a concepção de multidão que, nas palavras dos próprios autores,
designa:
[...] um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades
têm em comum. A multidão é um sujeito social internamente diferente e
múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na
unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em
comum.
269
Entre as várias facetas que a multidão pode oferecer, conceberemos,
inicialmente e sobretudo, esta como uma rede:
[...] uma rede aberta e em expansão na qual todas as diferenças podem ser
expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da
convergência para que possamos trabalhar e viver em comum.
270
Essa nova ciência da multidão baseada no comum, cabe assinalar, não
implica qualquer subordinação de diferenças. A multidão é composta de
diferenças e singularidades radicais que nunca podem ser sintetizadas
numa identidade.
271
Cabe distinguir a multidão, em termos conceituais, de outras concepções de
sujeitos sociais. A saber: a multidão é múltipla, é uma multiplicidade de
singularidades. Composta por inúmeras diferenças internas, dificilmente poderá ser
reduzida a uma unidade ou a uma única identidade. Tal atributo a diferencia da
concepção unitária de povo. Sabe-se que uma população é formada, em geral, por
uma ampla diversidade. Mas, a idéia de povo pode reduzir esta diversidade a uma
268
Cf. Id. Ibid., pp. 301-303.
269
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 140.
270
Id. Ibid., p. 12.
271
Id. Ibid., p. 444.
124
unidade, a uma única identidade. No caso das massas, sua essência pode ser
encontrada no sentido de indiferença, melhor dizendo, as diferenças ficam
submersas no interior das próprias massas. E, em assim sendo, seus movimentos
adquirem características uníssonas oriundas de um aglomerado indistinto e
uniforme. Em contrapartida, a multidão procura negar a uniformidade ou a
indiferença; uma vez que a concepção de multidão propõe que uma multiplicidade
social seja capaz de se comunicar e de agir em comum, ainda que se mantenham
internamente diferentes.
272
Como um conceito aberto e abrangente, a multidão tenta apreender a
importância das recentes mudanças na economia global. Diferentemente de classe
operária ou de classe trabalhadora, a multidão refere-se a todos os trabalhadores
mais ou menos pobres, aos que prestam serviços muitas vezes sem vínculo (como os
imigrantes, entre outros), ou mesmo sem remuneração (serviços domésticos, por
exemplo) e a todos os demais sujeitos sociais que não possuem remuneração salarial
alguma (desempregados, por exemplo). A título de ilustração, uma rede como a
Internet também constitui base de observação da multidão. Pois, independente das
diferenças ou das singularidades as redes promovem conexões e novas relações que
podem incluir questões comuns a serem partilhadas mesmo entre os diferentes.
Desse modo, uma investigação da classe econômica, como uma investigação
da raça, não deve começar com um mero catálogo de diferenças empíricas, e
sim com os lineamentos da resistência coletiva ao poder. A classe é um
conceito político, em suma, na medida em que uma classe é e só pode ser
uma coletividade que luta em comum.
273
Certas formas de capital social evidenciam uma estreita relação com as
circunstâncias históricas e as respectivas posições que ocupam nas distintas
gerações. No caso francês, novos fatores são apontados como responsáveis por afetar
o capital social do país e, para nossa análise, daremos destaque aos subúrbios
franceses desfavorecidos.
Um dos resultados do rápido crescimento e industrialização nos anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial foi uma urbanização acelerada e uma forte
272
Cf. Id. Ibid., pp. 12-14.
273
Id. Ibid., p. 144.
125
demanda de trabalhadores imigrantes (oriundos especialmente dos territórios
colonizados).
A combinação dessas profundas transformações gerou subúrbios
desproporcionais que alojavam a maior parte dos trabalhadores imigrantes. As
condições de segregação étnica, social e espacial concentraram os problemas mais
visíveis da exclusão, polarizando a maioria dos temores, fantasias xenofóbicas e
racistas.
Os habitantes dessas periferias, encerrados em uma espécie de exílio social,
recorrem à vizinhança imediata para criar redes de sociabilidade indispensáveis
para a formação de uma identidade social. Essas redes de sociabilidade ajudam a
resolver problemas práticos diários ou mesmo a compartilhar algum mal-estar
(expulsão de inquilinos por inadimplência, associação de mães para protegerem
seus filhos das ações de gangues e vendedores de drogas etc.), além de organizarem
apresentações de atividades ligadas ao esporte ou à música. Na verdade as
atividades podem ser bem mais numerosas do que as poucas que acabamos de
listar. No entanto, trata-se de uma vizinhança fechada que nutre um capital social
com poucas ou nenhuma conexão com as amplas redes de capital social da
sociedade em geral. A escola, os serviços blicos, as vendas, o cinema e os estádios
estão construídos no próprio interior desses espaços periféricos e as pessoas que
trabalham ou freqüentam não cruzam, nem se relacionam de forma cotidiana com os
freqüentadores dos estabelecimentos centrais. Cabe ressaltar que o cruzamento das
fronteiras sociais e funcionais é vital para a comunicação entre as diferentes redes da
esfera privada e as mais institucionalizadas da esfera pública.
274
Quando as estruturas intermediárias de apoio ao capital social (associações,
escolas ou outras instituições públicas, edificações destinadas ao lazer, comunidades
locais organizadas, mercado de trabalho etc.) não conseguem cumprir com suas
funções integradoras entre as esferas pública e privada, os que se sentem excluídos
do acesso e da participação social e cívica soem canalizar sua energia exatamente
contra esses canais de integração fracassados.
274
Cf. WORMS, Jean-Pierre, op. cit., pp. 305-306.
126
De acordo com Hardt e Negri, as revoltas, em geral, mobilizam o comum sob
dois aspectos, quais sejam: aumentam a intensidade de cada luta e estendem-se a
outras lutas. De forma intensiva, no interior de cada luta local, a sinergia do comum,
ainda que as singularidades estejam presentes, traduz-se em formas comuns de
conduta, hábitos e performatividade. Ademais, a expansão geográfica de alguns
movimentos assume a forma de um ciclo de lutas no qual as revoltas disseminam-se
de um contexto local a outro, como um contágio, através da comunicação, das
práticas e dos desejos comuns.
275
Sabe-se que a variedade de queixas é imensa. Todavia os autores registram
três pontos comuns que recorrentemente se manifestam como condições para
qualquer projeto de um novo mundo democrático, quais sejam: a crítica as atuais
formas de representação, os protestos contra a pobreza e a oposição à guerra. Com
isso, não se pretende esgotar a lista de queixas, mas a parcialidade dessa seleção, de
acordo com os autores, poderá oferecer uma noção do alcance e da profundidade
das angústias contemporâneas de expressiva parcela da população mundial.
276
Com a ênfase nos dois primeiros fatores supramencionados, ou seja, na crise
de representação e na pobreza destacamos:
Hoje, com efeito, são constantes e generalizadas as queixas sobre os
sistemas institucionais internos de representação em todos os países do
mundo. A representação falsa e distorcida dos sistemas eleitorais locais e
nacionais muito vem sendo alvo de queixas. O ato de votar
freqüentemente parece não passar da obrigação de escolher um candidato
indesejado, o menor dos males, para nos representar mal por dois, quatro
ou seis anos.
277
A fome e a pobreza sempre foram e continuam sendo hoje os maiores
problemas do mundo. Depois de reconhecer o alcance da pobreza no mundo
hoje, devemos reconhecer também sua desigual distribuição geográfica. Em
cada Estado-nação, a pobreza é distribuída desigualmente segundo critérios
de raça, etnia e gênero.
278
Em termos mais gerais, muitas críticas ao sistema global baseiam-se na
pressuposição de que as desigualdades e as injustiças da economia global decorrem
275
Cf. Id. Ibid., pp. 276-277.
276
Cf. Id. Ibid., p. 241.
277
Id. Ibid., p. 342.
278
Id. Ibid., p. 352.
127
primordialmente do fato de que a cúpula dos poderes políticos mostra-se cada vez
menos capaz de regular a atividade econômica.
Ainda mais importante para nossa análise é o fato de que a opinião pública
tornou-se, sob muitos aspectos, a forma primordial de representação nas sociedades
contemporâneas. No entanto, a noção de opinião blica parece dividir-se, no
pensamento político moderno, em pelo menos dois pontos de vista opostos: uma
visão ‘utópica’ da representação perfeita da vontade do povo no governo e uma
visão ‘apocalíptica’ do domínio manipulado da turba.
Opiniões divididas sim, um dado de realidade dentro de qualquer discussão
sobre qualquer tema polêmico. Mas, o que não se pode desprezar é o fato de que
essas teorias da mediação não dão conta do espaço já ocupado pelos meios de
comunicação e pelas pesquisas de opinião na atualidade, como fatores essenciais na
construção e na expressão da opinião pública contemporânea.
Existe mesmo, naturalmente, algo de estranhamente circular na idéia de
que as pesquisas de opinião nos dizem o que pensamos. No mínimo, as
pesquisas de opinião têm um efeito psicológico centrípeto, induzindo todos
a se conformarem com a visão da maioria. Tanto na esquerda quanto na
direita, muitos denunciam que a mídia e suas pesquisas de opinião são
tendenciosas, servindo para manipular e mesmo fabricar a opinião pública.
Mais uma vez, a opinião pública parece presa entre o utopismo ingênuo da
informação objetiva e da expressão individual racional e o cinismo
apocalíptico do controle social de massa.
279
Da perspectiva das estratégias de contra-insurgências, Hardt e Negri
verificam que as formas de rebelião, revoltas e revoluções mudaram ao longo do
século XX. De estruturas militares centralizadas para organizações guerrilheiras e
finalmente para uma forma mais complexa disseminada em rede. Referimo-nos às
lutas cotidianas da multidão, seus atos de resistência, insubordinação e subversão
das relações de dominação no mercado de trabalho e na sociedade de maneira
geral.
280
Ainda com os autores, depois de 1968, o ano em que um grande ciclo de lutas
culminou simultaneamente em várias regiões - tanto dominantes quanto
subordinadas - do mundo, a forma dos movimentos de resistência e libertação
279
Id. Ibid., pp. 331-332.
280
Cf. Id. Ibid., p. 97.
128
começou a mudar visivelmente. A mudança mais marcante teria sido a transferência
dos movimentos de guerrilha do campo para a cidade, dos espaços abertos para os
fechados. Cabe ressaltar que tais movimentos sofreram, simultaneamente,
adaptações devido aos novos espaços de ação. Alguns ganharam subjetividade e
tenderam na direção de uma forma de organização em rede.
281
Cada vez mais, no entanto, o foco não estava em atacar os poderes
dominantes, mas em transformar a própria cidade. Nas lutas
metropolitanas, tornou-se cada vez mais intensa a estreita relação entre
desobediência e resistência, entre sabotagem e deserção, contrapoder e
projetos constituintes.
282
Nas últimas décadas do século XX também surgiram, especialmente
nos Estados Unidos, numerosos movimentos que costumam ser agrupados
sob a rubrica ‘política de identidade’, tendo nascido basicamente das lutas
feministas, das lutas de lésbicas e gays e das lutas de fundo racial. A
característica organizacional mais importante desses diferentes
movimentos é a insistência na autonomia e a recusa de qualquer hierarquia
centralizada, de líderes ou porta-vozes.
283
Tecnologias como a internet e a atual informação em tempo real atuando
como ferramentas de organização possibilitam a ordenação em rede e baseiam-se no
fluxo e na pluralidade contínua de seus elementos e informações. Nesse sentido,
acreditamos ser impossível a redução ou o retorno a uma estrutura de comando
centralizada e unificada. Não um centro, mas uma pluralidade de sujeitos,
grupos, coletividades em comunicação uns com os outros de forma aparentemente
irredutível. Ademais, as inúmeras e específicas modalidades de trabalho, estilos de
vida e localização geográfica não impedem a comunicação e a colaboração no caso
de um projeto político comum. Celso Furtado assinala que o ponto de partida é a
valorização dos fins, dos desejos e objetivos dos indivíduos. Em outras palavras, não
apenas a dimensão política, mas também a dimensão cultural de um projeto político
comum é de primordial importância.
284
A diferença cultural deve ser entendida em si mesma, como singularidade,
sem qualquer fundamentação no outro. Da mesma forma, não deve pensar
todas as singularidades culturais como remanescentes anacrônicos do
281
Cf. Id. Ibid., p. 118.
282
Id. Ibid., p. 119.
283
Id. Ibid., p. 124.
284
Aqui os fins significam os valores das coletividades, os sistemas simbólicos que constituem as culturas. Cf.
FURTADO, op. cit., p. 70.
129
passado, mas como participantes de nosso presente comum em de
igualdade.
285
Cabe ressaltar que a cultura, enquanto sistema e processo acumulativo, deve
ser observada como algo que tem uma coerência e cuja totalidade não se explica
através de efeitos de sinergia compostos pelas partes envolvidas. E, ainda, que as
descontinuidades entre presente e passado não representam apenas rupturas
criativas, como também refletem a prevalência da lógica da acumulação sobre a
coerência do sistema de cultura. Pensar, ou mesmo vestir-se de forma disfuncional
podem significar problemas, sendo certo que certas formas de urbanização têm o
poder de destruir importantes patrimônios culturais. Para que nossa reflexão ganhe
maior clareza, a importância dedicada à noção de identidade cultural enfeixa a idéia
de manter com o passado, de cada indivíduo, uma relação enriquecedora com o
presente.
286
Sem essa relação, possivelmente nos restará a submissão à lógica dos
mercados e das mercadorias, que se torna tanto mais decisiva na medida em que
tende a prevalecer (nesta lógica) a dimensão tecnológica. E, em assim sendo,
Zygmunt Bauman alerta para o fato de que, na atualidade, quem interprete toda
espera, toda procrastinação ou todo atraso sob a forma de estigma de inferioridade.
Subir na hierarquia social estaria, então, relacionado ao aumento da capacidade de
obter o que se deseja o mais rápido possível, sem demora.
287
Mas, em conformidade com Luiz Eduardo Soares:
Ser pobre o torna ninguém criminoso. [...] As explicações para a
violência e o crime não são fáceis. Sobretudo, é necessário evitar a
armadilha da generalização. Não existe o crime, no singular. Há uma
diversidade imensa de práticas criminosas, associadas a dinâmicas sociais
muito diferentes. Por isso, não faz sentido imaginar que seria possível
identificar apenas uma causa para o universo heterogêneo da
criminalidade.
288
Acrescente-se, à questão da pobreza, o fato de que é com muita freqüência
que as pessoas apontadas como ‘redundantes’, ou seja, os pobres em geral, são
285
HARDT & NEGRI, op. cit., p. 171.
286
Cf. FURTADO, op. cit., p.72.
287
Cf. BAUMAN, 2005a, p. 129.
288
SOARES, Luiz Eduardo. Legalidade Libertária. Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris, 2006, pp. 293-294.
130
considerados um problema financeiro.
289
Necessitam de meios para sua
sobrevivência e, para os que não simpatizam com a resposta fornecida pelo Estado,
sob a forma de benefícios, incentivos, isenções, concessões, pensões etc., fica a
sensação de carga financeira imposta aos contribuintes. E muito embora o
comentário possa parecer grosseiro, Bauman assinala: ainda que a ameaça à
sobrevivência biológica fosse identificada e enfrentada de modo efetivo, não
chegaríamos nem perto de assegurar a sobrevivência social.
290
As funções protetoras do Estado se reduzem para atingir uma pequena
minoria dos não-empregáveis e dos inválidos, embora a mesmo essa
minoria tenda a ser reclassificada e passar de um assunto do serviço social
para uma questão de lei e ordem a incapacidade de participar do mercado
tende a ser cada vez mais criminalizada. [...] Como sustenta Ulrich Beck,
agora se espera dos indivíduos que procurem soluções biográficas para
contradições sistêmicas.
291
De acordo com Jean-Pierre Worms, raras vezes a confiança nas instituições
políticas francesas esteve tão em baixa. O parlamento, as administrações e os
partidos políticos se encontram entre as instituições nas quais a sociedade francesa
vem depositando cada vez menos confiança e estima. Grande parte das instituições
políticas do país é objeto de crítica e desconfiança em graus muitas vezes extremos.
Em sua maioria, os cidadãos se dizem mal representados e mal governados. Por
assim dizer, o que parece um desinteresse pela política pode ser, de fato, uma
rejeição diante do mau funcionamento das instituições e da conduta dos que se
proclamam seus servidores.
292
Talvez seja proveitoso direcionar nossas atenções para o que poderíamos
chamar de uma dupla crise que, não necessariamente, teria se instalado, apenas no
território francês. Trata-se, em primeiro lugar, de uma crise de redistribuição social
de rendas e de emprego. Um grupo cada vez maior, vítima da exclusão social
encontra-se desvinculado de outro grupo, cada vez menor, composto por uma
maioria preocupada e inquieta de pessoas que participam do processo de
289
O ser redundante “significa ser extranumérico, desnecessário, sem uso – quaisquer que sejam os usos e
necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões de utilidade e de indispensabilidade”. BAUMAN,
2005a, p. 20.
290
Cf. Id. Ibid., p. 21.
291
Id Ibid., p. 67.
292
Cf. WORMS, op. cit., pp. 331-332.
131
transformações mundiais. Em uma sociedade onde os atuais valores liberais de
autonomia e responsabilidade individual alcançaram uma indiscutível hegemonia, o
dever de compartilhar referências cognitivas morais e cívicas com seus grupos
dominantes tornam ainda mais penosa a exclusão social e cívica para a classe dos
marginalizados. Por fim, pode-se falar em uma crise de representação, mediação e
regulação. Certos conceitos de bom governo praticados por uma elite ilustrada que
impõe a uma suposta cidadania imatura um interesse geral consubstanciado em
normas e procedimentos administrativos do Estado foi historicamente o que
distinguiu de forma afortunada o modelo republicano francês, entre outros. Agora
estes conceitos parecem convertidos em fatores de forte debilidade. Os cidadãos
parecem bem menos dispostos a aceitar essa forma de tutelagem e mais capazes de
atuar, inclusive, sem ela. Ademais, é possível que as instituições de mediação,
sindicatos, partidos políticos, governos locais e grandes associações tenham ficado
tão absortas em seu acesso privilegiado ao Estado e tão análogas ao mesmo, haja
vista seu modelo de organização, que hoje parecem imunes às demandas dos
cidadãos, tornando-se veículos desqualificados para a transmissão do capital social
existente ou potencial.
293
Diante do exposto, enriquece nossas reflexões a contribuição de Philip
Bobbitt. O autor apresenta, como mencionado na primeira parte de nosso trabalho,
um novo modelo de convivência política que estaria ocupando o lugar do Estado-
nação, fragilizado em suas bases.
Enquanto a legitimidade do Estado depender da garantia do bem-estar de
seus cidadãos, a globalização e interdependência de sua economia, a
vulnerabilidade e transparência de sua segurança e a acessibilidade e
fragilidade de suas instituições culturais cada vez mais negarão ao Estado
essa legitimidade. Este, por conseguinte, mudará – como já está mudando –
para readquiri-la, lançando novas bases a partir das quais possa reivindicá-
la. A transformação da ordem constitucional dos Estados acabará recriando
tanto a natureza da sociedade de Estados quanto sua própria ordem
constitucional.
294
293
Cf. WORMS, op. cit., pp. 335-336.
294
BOBBITT, op. cit., p. 746.
132
Ao que parece, a sensação de que nos encontramos em um ponto crucial da
história é generalizada. Ademais, o Estado já provou sua resiliência, através de
exemplar capacidade de transformações estruturais. Philip Bobbitt nos apresenta a
concepção de Estado-mercado, como a ordem constitucional que estaria
substituindo o Estado-nação.
Estado-mercado: ordem constitucional emergente que promete maximizar
as oportunidades de seu povo, tendendo a privatizar diversas atividades
estatais e aumentando a sensibilidade do governo representativo ao
mercado.
295
Enquanto o Estado-nação contemporâneo fundamenta sua legitimidade na
promessa de aumentar o bem-estar material de seus cidadãos, o Estado-mercado
acena com outro pacto: propõe-se a maximizar as oportunidades de seu povo. Aqui
nos distanciamos cada vez mais de uma instituição que seria o principal ator a falar
em nome da nação (o Estado-nação) e começamos a nos aproximar de um Estado
que se pretende facilitador de questões práticas. Ao recusar o papel de provedor e
juiz, o novo modelo vislumbra um papel de habilitador e árbitro. A minimização
dos custos transnacionais justificariam os atos do Estado-mercado. “Nesse contexto,
políticas de redistribuição e melhoramento sofrerão intensos ataques”.
296
[...] o mercado agindo sozinho, não estando submetido a regulamentações
impostas pelo Estado, é indiferente a essas questões. Por acaso o mercado
quer saber, por exemplo, se há regras internacionais de acesso à tecnologia?
Se é possível obter lucro com a venda de computadores de alta velocidade
para o Irã, ou peças de mísseis para o Iraque, ou materiais físseis para a
Coréia do Norte, sem dúvida tudo isso é do maior interesse do mercado.
297
No Estado-nação governos assumiram novas esferas das atividades sociais e
econômicas de seus cidadãos. Em contrapartida, a nação endossou, de algumas
formas, os atos desse Estado como, por exemplo, o voto (bem mais expandido), o
papel institucionalizado dos sindicatos trabalhistas e uma carga tributária maior. Na
nova ordem constitucional, os dois lados sofreriam alterações: existiriam menos
mecanismos formais de endosso pelos cidadãos e o Estado assumiria menos
compromissos. A utilização de pesquisas oficiais serviria bem a esse propósito.
295
Id. Ibid., p. 873.
296
Id. Ibid., p. 221.
297
Id. Ibid., pp. 751-752.
133
Evitaria que o político ficasse exposto após uma consulta legitimada pelo voto, se
vendo obrigado a apoiar ou repudiar decisões do coletivo.
298
De acordo com Bobbitt, evidencia-se, cada vez mais, a inabilidade do Estado-
nação no que tange ao seu compromisso com a melhoria do bem-estar de todos os
seus cidadãos, visto que “há uma crença generalizada de que muita gente em uma
situação desesperadora a quem o governo não pode e, por inúmeros motivos, talvez não
deva tentar assistir”.
299
Na vigência do Estado-mercado passaríamos, possivelmente,
a conviver com acentuadas e permanentes reduções do Estado previdenciário, com
sua rede de apoio à habitação pública, saúde gratuita, auxílio para crianças
dependentes e seguro-desemprego. “Quer esses programas sejam ou não extintos, a mera
recusa a manter seus custos crescentes com um financiamento também cada vez maior terá o
efeito de reduzir significativamente seu impacto em um futuro não muito distante”.
300
Originalmente hostis à educação particular, responsabilizada por extrair da
agenda nacional a experiência cultural, muitos Estados-nação baniram ou tentaram
bani-la de sua circunscrição. o Estado-mercado e seu compromisso com a escolha
individual veria com entusiasmo a perspectiva de confiar a educação aos pais do
educando.
301
Os métodos baseados no direito do Estado-nação serão substituídos pelos
métodos do Estado-mercado orientados pelo mercado e situando
controvérsias diversas, tais como os direitos de aborto e ação afirmativa, em
um contexto inteiramente novo. Por exemplo, os Estados-nação
costumavam endossar ou banir as orações nas escolas públicas porque
lançavam mão de regulamentações legais em favor de determinados
compromissos morais. É mais provável que o Estado-mercado proporcione
um fórum aberto para as orações das várias seitas diferentes, maximizando
a oportunidade de expressão sem apoiar nenhum ponto de vista moral
específico [...].
302
Sob a lógica de Bobbitt, a legitimidade dos Estados-mercado fundamenta-se
no compromisso pela maximização de oportunidades para seus cidadãos. Em
Washington, por exemplo, essa maximização de oportunidades poderia significar o
fornecimento de infra-estrutura (como, por exemplo, meios necessários para fazer
298
Cf. Id. Ibid., p. 223.
299
Id. Ibid., p.226.
300
Loc. cit.
301
Cf. Id. Ibid., p. 227.
302
Id. Ibid., p. XVII.
134
valer contratos) e o uso de empreendimentos privados para ampliar a escolha do
consumidor, minimizando os custos. Em Tóquio, a maximização de oportunidades
poderia implicar a proteção da indústria doméstica (visando um amplo leque de
oportunidades de emprego para as futuras gerações) e o subsídio à pesquisa e
desenvolvimento (em busca de inovações que possam ser exploradas). em Berlim,
maximizar oportunidades poderia consubstanciar-se na garantia de igualdade social
e econômica entre os cidadãos, utilizando as corporações. Em vez de ampliar os
lucros de curto prazo dos acionistas, as corporações se tornariam peças
fundamentais para o interesse público, maximizando as oportunidades ao alcance
das comunidades, dos trabalhadores e das gerações futuras.
303
Sabe-se, como mencionado, que o Estado-mercado asseguraria sua
legitimidade política mediante a promoção ativa de oportunidades para seus
cidadãos. Contudo, essa nova ordem constitucional se esquiva de especificar os
objetivos para os quais tais oportunidades devem ser utilizadas. Bobbit assinala que:
[...] cada cultura desenvolverá sua versão particular. [...] outras sociedades
poderão ajustá-lo às suas pprias preferências quanto à responsabilidade
coletiva, à modulação do mercado pelo Estado e à estabilidade social a longo
prazo.
304
Sob a ótica do autor, a transição para o Estado-mercado estaria fadada a
estender-se por longo período, marcado por conflitos gerados pelos ideais da ordem
constitucional do Estado-nação em confronto com os ideais da nova ordem
constitucional emergente. A transição, vista como processo, não permite definir qual
o exato formato que o Estado terá. “Todavia, seria uma falta de imaginação supor que a
única coisa que poderia tomar o lugar do Estado-nação seria outra estrutura com
características similares, porém maior”.
305
Cabe ressaltar que Bobbitt reconhece o fato de que os mercados não
formariam um cenário favorável para assegurar a representação política ou dar voz
aos grupos de interesse de forma equânime. Reconhece também que não
garantias que o processo político não ficaria subordinado aos atores mais poderosos
303
Cf. Id. Ibid., p.639.
304
Id. Ibid., p.227.
305
Id. Ibid., p. 219.
135
do mercado. Assim sendo, os mercados poderiam tornar-se alvos preferenciais dos
que se vissem despojados de seus direitos por qualquer afastamento das instituições
nacionais ou locais.
306
E sem resposta fica a pergunta de Bobbitt: “Será que a
governança é mais fácil no Estado-mercado, uma vez que se exige tão menos dela, ou será
mais árdua, devido ao desaparecimento dos bons hábitos de cidadania?”.
307
306
Cf. Id. Ibid., p. XII.
307
Id. Ibid., p.216.
136
Conclusão
Não devemos perder de vista que, por cima das querelas de escolas e mesmo
ideológicas, a ciência sempre coloca problemas inesperados que escapam ao
controle social.
308
No estilo clássico e ortodoxo da formulação teórica, a conceitualização teria a
função de gerar interpretações a respeito de temas sob alguma forma de controle.
Sendo certo que a idéia não é projetar resultados ou deduzir situações futuras sobre
determinadas circunstâncias. Isso também não significa que a teoria deva ajustar-se
a realidades passadas, ou mais especificamente, gerar interpretações convincentes.
Uma teoria deve sim sobreviver intelectualmente junto a realidades que estão por
vir. Por assim dizer, um arcabouço teórico utilizado para uma interpretação, quando
utilizado adequadamente, deverá render interpretações defensáveis à medida que
surgem novos fenômenos sociais.
309
As idéia teóricas não aparecem inteiramente novas a cada estudo; [...] elas
são adotadas de outros estudos relacionados e, refinadas durante o processo,
aplicadas a novos problemas interpretativos. Se deixarem de ser úteis com
referência a tais problemas, deixam também de ser usadas e são mais ou
menos abandonadas. Se continuarem a ser úteis, dando à luz novas
compreensões, são posteriormente elaboradas e continuam a ser usadas.
310
A miséria prolongada tem levado milhões de pessoas ao desespero. Na esteira
da globalização de caráter fortemente competitivo, não se pode duvidar que boa
parcela de trabalhadores esteja disposta a lutar contra esse quadro. Luta esta que,
entre outras ações, tem levado milhões de migrantes ao deslocamento em busca de
um espaço de sobrevivência social através do trabalho. A dimensão plena dessa
conseqüência, de suas repercussões ainda está por ser revelada e apreendida em
suas diversas ramificações. Nosso estudo do caso francês não carrega a pretensão de
elucidar um cenário de espectro maior do que sua própria circunscrição, mas, no
limite, evidencia o fato de que alguns conceitos ou fundamentos extraídos da
literatura clássica não parecem abrangentes o suficiente para promover uma análise
308
FURTADO, op. cit., p.12.
309
Cf. GEERTZ, op. cit., p.19.
310
Loc. cit.
137
satisfatória do contexto em que se inserem os acontecimentos iniciados em outubro
de 2005 nas periferias francesas, nem tampouco das fontes elencadas para tal análise.
Cada estudo luta para retirar amplas generalizações a partir de exemplos
especiais, para penetrar nos detalhes de forma suficientemente profunda
para descobrir algo mais que o simples detalhe. As estratégias adotadas
para consumar isso são, uma vez mais, muito variadas, mas o esforço
desenvolvido para fazer com que os corpos paroquiais do material falem
mais do que eles mesmos é uniforme.
311
Ainda que mergulhada em calorosas discussões e distante de alguma forma
de consenso que viabilize um conceito mais sólido, não é possível negar que a
globalização tem apresentado conseqüências negativas marcantes - ainda que não só
negativas. Para que nosso trabalho fosse levado a bom termo destacamos a crescente
vulnerabilidade externa e a agudização da exclusão social. Celso Furtado verifica, a
título de ilustração, que nos Estados Unidos a exclusão social pode ser expressa
como concentração da renda e da riqueza, ao passo que na Europa ocidental a
mesma vem se manifestando sob a forma de altos índices de desemprego.
312
As discussões suscitadas pela questão da exclusão social de parcelas
crescentes da população apontam para este tema como um dos mais graves
problemas da atualidade, tanto nas sociedades ‘pobres’, como nas sociedades ‘ricas’.
Todavia, esses desarranjos sociais não devem ser vistos como decorrentes apenas da
orientação assumida pelo ‘progresso tecnológico’, uma vez que também refletem a
incorporação da mão-de-obra mal remunerada e o desemprego no sistema
produtivo. Surpreende que um dos temas, senão o tema de maior relevância no
momento atual - a crescente exclusão social não tenha destaque nos currículos
universitários. “Talvez o mais apropriado seja apresentar um mapa do bem-estar social e
outro da penúria social”.
313
Em conformidade com o economista Celso Furtado acreditamos que uma das
alternativas cabíveis consiste em minimizar os desdobramentos negativos
provocados pela perda parcial de comando por parte dos Estados na esteira
globalizante, o que requer políticas que priorizem a especificidade de cada país e
311
GEERTZ, op. cit., p. 136.
312
Cf. FURTADO, op. cit., p. 74.
313
Id. Ibid., p. 81.
138
suas demandas. Fato é que a globalização parece estar longe de conduzir à adoção
de políticas uniformes, ou seja:
A miragem de um mundo comportando-se dentro das mesmas regras
ditadas por um super-FMI existe apenas na imaginação de certas pessoas.
As disparidades entre economias não decorrem de fatores econômicos,
mas também de diversidades nas matizes culturais e nas particularidades
históricas. A idéia de que o mundo tende a se homogeneizar decorre da
aceitação acrítica de teses economicistas.
314
A imaginação política terá assim que passar ao primeiro plano. Equivoca-se
quem imagina que já não existe espaço para a utopia. Ao contrário do que
profetizou Marx, a administração das coisas será mais e mais substituída
pelo governo criativo dos homens.
315
Quanto ao deslocamento do Estado-nação, aparentemente ausente de suas
questões sociais internas, cumpre lembrar que o mundo ainda é fortemente
constituído por este modelo de organização política, econômica e social. Em assim
sendo, é fato que a nacionalidade ainda define a ligação jurídica entre o Estado e a
população a ele ligada. E, se a nacionalidade não produz mais cidadãos, é possível
que as grandes instituições republicanas não estejam mais cumprindo seu papel de
socialização e não ‘fabriquem’ mais a identidade nacional.
316
A insatisfação com o sentido jurídico-político de cidadania, o que para Néstor
García Canclini não é privilégio francês, seria a condutora na busca de uma defesa
da existência, de uma cidadania cultural, racial, de gênero, ecológica e assim por
diante. A cidadania poderia assim ser fragmentada em uma multiplicidade cada vez
maior de reivindicações. Teria passado o tempo em que o Estado oferecia um único
enquadramento (não questionando se justo, injusto, limitado ou abrangente) a essa
variedade de participações na vida pública. Preocupa-nos a possibilidade, seguindo
a reflexão do autor, de que na atualidade quem esteja estabelecendo uma
convergência para essas formas de participação seja o mercado, através da ordem do
consumo.
317
314
Id. Ibid., p. 74.
315
Id. Ibid., p. 33.
316
WEIL, op. cit., p. 302.
317
Cf. CANCLINI, Nestor G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6 ed. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2006, p. 37.
139
Ainda com Canclini, a vinculação entre cidadania e consumo pode fazer
grande sentido se pudermos ou quisermos desconstruir algumas concepções.
Repensar os consumidores como indivíduos com comportamentos
predominantemente irracionais e os cidadãos como seres atuantes somente em
função da racionalidade dos princípios ideológicos seria um bom começo.
Acrescente-se que poderíamos estar cometendo grosseira simplificação ao
imaginarmos o consumo apenas como o espaço do supérfluo, alinhado aos estudos
de mercado e táticas publicitárias, atuando nos impulsos mais primários de cada
indivíduo. Simplificação talvez ainda mais grosseira seria reduzirmos a cidadania à
crença de que todas as pessoas votam e atuam em relação às questões públicas
somente em razão de suas convicções, como uma forma confrontar idéias.
318
Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos
aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com
as pticas sociais e culturais que o sentido de pertencimento, e fazem
que se sintam diferentes os que possuem uma mesma ngua, formas
semelhantes de organização e de satisfação das necessidades.
319
Sendo assim, quanto ao surgimento de uma nova ordem constitucional o
Estado-mercado - e sua premissa fundamental, ou seja, que a igualdade significa
tratar de igual modo os igualmente dotados, esta poderá, antes mesmo de se
consolidar, cair por terra quando os meios de alterar nossos dotes naturais
(inteligência, beleza, estabilidade emocional, força física, graça e até mesmo, quem
sabe, a sociabilidade) estiverem disponíveis alguns, inclusive, estão - para quem
puder pagar por eles. Percebe-se que no Estado-mercado o conceito de igualitarismo
é bem diferente do igualitarismo do Estado-nação, em que igualdade significa tratar
todos os cidadãos de igual forma, já que a cidadania era concedida a todos do
mesmo modo.
320
O Estado-mercado terá de decidir como distribuir tais benefícios, que
terá eliminado o fundamento sobre o qual ergueu-se para tomar esse tipo de
decisão a saber, o cultivo do mérito natural. Esse rumo dos
318
Cf. Id. Ibid., p. 35.
319
Loc. cit.
320
Cf. BOBBITT, op. cit., p. 765.
140
acontecimentos criará um ambiente muito propício para um conflito civil
violento.
321
Em geral, os caminhos utilizados pelo Iluminismo e pela Antropologia
clássica para definir a natureza humana tiveram muito em comum: seu viés
tipológico. O homem era visto como um modelo em relação ao qual homens reais,
como eu, você e Hitler, entre outros, não seriam mais que aproximações ou
distorções. Por esse caminho: “A individualidade passa a ser vista como excentricidade, a
diferença como desvio acidental do único objeto de estudo legítimo para o verdadeiro cientista:
o tipo normativo subjacente, imutável”.
322
No entanto:
Assim como a cultura nos modelou como espécie única e sem dúvida
ainda nos está modelando assim também ela nos modela como indivíduos
separados. É isso o que temos realmente em comum nem um ser
subcultural imutável, nem um consenso de cruzamento cultural
estabelecido.
323
Cumpre ressaltar que o estigma envolve tanto um conjunto de indivíduos
concretos que podem ser divididos entre estigmatizados e ‘normais’, quanto um
processo social no qual cada indivíduo poderá, em algumas circunstâncias ou fases
da vida, fazer parte ora do grupo de ‘normais’, ora do grupo de estigmatizados.
Pois, o ‘normal’ e o estigmatizado não são pessoas, mas perspectivas geradas em
situações sociais oriundas dos contatos mistos, a partir de normas não cumpridas
que possivelmente ficaram evidenciadas durante os próprios contatos.
324
No caso de estigmas muito visíveis ou transmissíveis ao longo de
descendências familiares, as conseqüências da interação podem provocar um efeito
bastante profundo sobre os que recebem o rótulo de estigmatizado.
Entretanto, a indesejabilidade percebida de uma propriedade pessoal
particular, e sua capacidade para acionar esses processos de normalidade e
estigmatização têm a sua própria história, uma história que é regularmente
mudada por uma ação social intencional.
325
321
Loc. cit.
322
GEERTZ, op. cit., p.37.
323
Id. Ibid., p. 38.
324
GOFFMAN, op. cit., pp. 148-149.
325
Id. Ibid., p.149.
141
O reconhecimento de que a opinião pública não é um espaço de representação
democrática, mas um campo de conflitos, não é o suficiente para nos fornecer
respostas, mas traz à tona uma inesperada reflexão:
O novo racismo do mundo desenvolvido é, de certa forma, mais brutal que
os anteriores: sua legitimação implícita não é naturalista (a superioridade
natural do Ocidente desenvolvido) nem culturalista (nós, ocidentais,
também queremos preservar nossa identidade cultural), mas um
desavergonhado egoísmo econômico o divisor fundamental é o que existe
entre os que estão incluídos na esfera de (relativa) prosperidade econômica e
os que dela estão excluídos. O que se esconde atrás dessas medidas de
proteção é a mera consciência de que o modelo atual de prosperidade
capitalista recente não pode ser universalizado [...].
326
Quanto às construções identitárias, estas aparecem produzidas sob formas
renovadas. A princípio, a noção de identidade pode ser utilizada para designar uma
afirmação de si, garantidora de uma permanência no tempo. Se as identidades pré-
moderna e moderna informaram o resultado da incorporação de alguns valores
como, por exemplo, as virtudes da religião e do capitalismo respectivamente, e a
atualização das normas; a produção da identidade contemporânea se assemelha,
sobretudo, com uma interrogação sobre si, através de uma forma avançada de
narcisismo, preocupada com as relações travadas individualmente com o mundo.
Segundo Zygmunt Bauman:
A idéia de “identidade”, e particularmente de “identidade nacional”, não
foi “naturalmente” gestada e incubada na experiência humana, não
emergiu dessa experiência como um “fato da vida” auto-evidente.
E o nascente Estado moderno fez o necessário para tornar esse dever
obrigatório a todas as pessoas que se encontravam no interior de sua
soberania territorial.
Não fosse o poder do Estado de definir, classificar, segregar, separar e
selecionar o agregado de tradições, dialetos, leis consuetudinárias e modos
de vida locais, dificilmente seria remodelado em algo como os requisitos de
unidade e coesão da comunidade nacional. Se o Estado era a concretização
do futuro da nação, era também uma condição necessária para haver uma
nação proclamando em voz alta, confiante e de modo eficaz um destino
compartilhado.
327
326
ZIZEK, op. cit., pp. 171-172.
327
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005b,
pp. 26-27.
142
Identidades sociais podem ser construídas seguindo distintas modalidades.
Nas sociedades tradicionais, a identidade coletiva podia ser considerada uma
realidade ligada à existência de um grupo (o clã, a tribo, o povo etc.). Na
modernidade, as identidades sociais pareciam construídas a partir de fortes
identificações ideológicas com um ‘nós’ (a raça, a pátria, a nação etc.). Na
contemporaneidade, as identidades sociais parecem ganhar forma na imitação de
práticas e imagens de indivíduos que se tornam exemplares porque conseguem
algum tipo de realização pessoal. As identidades sociais, assim como as estratégias
identitárias podem estar sendo construídas mais por desejo de realização individual,
do que por imersão em algum novo sistema de valores.
No final do culo XIX e durante o século XX o nacionalismo aparecia como
uma força que sustentava e respaldava a formação de vários Estados nacionais:
[...] a força que liga os Estados às nações: ele descreve a complexa fidelidade
cultural e psicológica dos indivíduos a determinadas identidades e
comunidades nacionais, assim como o projeto de criar um Estado em que
uma dada nação seja dominante.
328
No entanto, mais adequada ao contexto em que se insere nossa análise,
registre-se a descrição de Bobbio, Matteucci e Pasquino:
[...] outra existe, mais restrita, que evidencia uma radicalização das idéias
de unidade e independência da nação e é aplicada a um movimento político,
o movimento nacionalista, que se julga o único e fiel intérprete do princípio
nacional e o defensor exclusivo dos interesses nacionais.
329
Se considerarmos que os modelos de construção identitária interferem na
construção de relacionamentos, a forma de definir os anseios coletivos também
sofreria alterações. Grande parte porque as demandas contemporâneas assistem, na
esfera do público, a intervenção de uma multiplicidade de atores que se justapõem
àqueles constituídos pelas instâncias representativas clássicas. O fenômeno não é
novo, mas atualmente parece ampliado por pelo menos dois fatores: a crescente
individualização, que provoca flutuações nas pertenças coletivas e favorece a
constituição de grupos ad hoc, de acordo com as circunstâncias e possibilidades de
328
HELD & MCGREW, op. cit., p. 40.
329
BOBBIO, MATTEUCCI & PASQUINO, op. cit., p. 799.
143
pertencimentos diferenciados; e a expansão da informação midiatizada, sobretudo,
televisual. Através deste tipo de informação, os acontecimentos o (ou não são)
elaborados, os atos são criados, os indivíduos e os coletivos se em e se imaginam
pela imagem que lhes é enviada. A imaginação ganha um novo papel. Some-se o
fato de que as sociedades contemporâneas parecem angustiadas pela necessidade de
antecipar, o máximo possível, o que está por vir. O presente parece cada vez mais
pensado em função de um futuro esperado e provável.
330
Em determinadas sociedades o preço que se paga para protestar é muito alto.
Mas é fato que pessoas pagaram com a própria vida pela defesa de idéias. Este dado
denota, no mínimo, uma indicação da importância do papel que os indivíduos
desempenham nas transformações das sociedades.
Quando os movimentos no sentido de fugir da pobreza são acompanhados de
rebelião, quando as migrações abrem espaços de miscigenação e novas formas
antropológicas e culturais, quando as guerras de libertação estão associadas a
processos da diplomacia de baixo para cima e quando as aristocracias globais
interpretam os elementos multilaterais da desordem mundial e se vêem obrigadas a
reconsiderar a subordinação das multidões e eventualmente a estabelecer alianças
com elas, é porque existem novas possibilidades de transformação da ordem vigente
ou emergente.
Nesse sentido, a noção de ‘multidão’ tenta demonstrar que uma teoria que
utilize a classe econômica não precisa, na contemporaneidade, optar pela unidade
ou pela pluralidade. Uma multidão é uma multiplicidade irredutível. Suas
diferenças sociais singulares devem sempre ser expressas, uma vez que as mesmas
não devem ser aplainadas na uniformidade, na unidade, na identidade ou na
indiferença. Podemos considerar que, na atualidade muitas de nossas velhas
identidades se esfacelaram, haja vista o desafio às noções tradicionais de identidade
nacional trazido na esteira da globalização. Mas a fratura dessas identidades não
impede que as singularidades atuem em comum. Assim foi a definição de multidão
apresentada no início de nosso trabalho: singularidades que agem em comum. E, em
330
Cf. DASSETTO, Felice. Identidades e interacciones em los nuevos marcos sociales. In: ONGHENA,
Yolanda et al. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 73-74, maio-junho 2006, pp. 21-37
144
assim sendo, não há, em nosso entendimento, uma contradição conceitual ou real
entre a singularidade e o que é comum.
Jean-Pierre Worms registra que a população francesa, em geral, entende que
parte dos problemas de insegurança está relacionada à enfraquecida coesão social e
roga por instituições capazes de consolidar suas funções integradoras do capital
social.
331
A maioria dos cidadãos pede uma reafirmação de valores morais e cívicos
claros e estritos como referências permanentes para a esfera do blico. Pois não
parece confiar nem na virtude inerente de seus concidadãos, nem no modelo atual
de suas instituições, questionando, inclusive, a capacidade e legitimidade das
mesmas para fazê-lo
.
332
Diante do exposto, podemos considerar, inclusive, a possibilidade de o
judiciário não possuir aptidão para efetivar os direitos sociais e econômicos, haja
vista o fato de que tais direitos:
[...] não encontram no Judiciário a sua garantia institucional mais efetiva.
hoje, em diversos países, a sensação de existência de déficit de
legitimidade do próprio processo jurisdicional, por sua incapacidade para
adjudicar direitos econômicos e sociais na ausência de lei concessiva.
333
Eis aqui, na contemporaneidade, algo que não nos parece uma exclusividade
francesa: um enorme desafio à coexistência com base no exercício da tolerância.
O que quer que os cientistas sociais possam desejar, existem alguns
fenômenos sociais cujo impacto é imediato e profundo, até mesmo
decisivo, mas cuja significação não pode ser avaliada efetivamente até
bem depois de sua ocorrência, e um deles é, sem dúvida, a erupção de uma
grande violência doméstica.
334
Os estereótipos que definem de forma abrangente as comunidades imigrantes
como homogêneas e incapazes de integrarem-se (em uma percepção atual) ou, de
forma oposta, como assimilados ao país de acolhimento e desligados de suas
culturas de origem (em uma percepção culturalista) informam um conflito que
ensaia uma das faces da crise da identidade nacional na era da globalização.
331
Cf. WORMS, op. cit., p. 326.
332
Cf. Id. Ibid., p. 330.
333
TORRES, op. cit., p. 321.
334
GEERTZ, op. cit., p. 143.
145
Com o déficit de terminologias e conceitos apropriados para a complexidade
das situações de cunho ‘transnacionais’, ‘transculturais’ ou ‘interculturais’; e
submetida à hegemonia de uma visão dicotômica, os pensamentos podem se
dissociar formando oposições binárias mutuamente excludentes: Ocidente e Oriente,
progressista e reacionário, civilizado e selvagem.
Após algumas reflexões, muitas delas dolorosas, chegamos a uma realidade a
qual antigos meios de pertencimento político ou cultural o se fazem cumprir na
sociedade francesa. Marcos conceituais clássicos não podem proporcionar
explicações suficientes. As práticas da terceira geração oriunda da imigração não
conseguem sintetizar-se nem na forma de integração ‘moderna’, nem de um
isolamento ‘tradicionalista’. Na verdade, essa geração já não é uma geração de
‘imigrantes’. Estes novos atores, independente de possuírem ou não a cidadania,
formam parte da sociedade francesa e, através de suas práticas sociais cotidianas no
cenário blico colocam em evidência as fronteiras da cidadania naquele país. Essas
práticas denunciam uma existência cada vez mais híbrida, que combina referências,
tanto da vida da sociedade de acolhimento, como da ‘mãe pátria’ cada vez mais
distante. Um olhar sutil sobre o cenário que serviu de palco para nossas reflexões
ajudou a elucidar, ainda que parcialmente, o momento vivido pelo berço da
cidadania moderna e contemporânea, ou seja, pela França. Legitimada pela coisa
pública e historicamente questionada pelos menos favorecidos, a cidadania tem
encontrado, em geral, parte dos entraves para seu exercício não apenas na esfera do
público, mas, também, na esfera do privado, marcada por um jogo de tradições
culturais. Uma interminável construção de valores, atitudes e comportamentos. Sob
esse prisma, nossa reflexão final possibilita distinguir claramente uma dissociação
entre as esferas pública e privada, no que tange à abrangência da cidadania francesa
na contemporaneidade. A esfera pública mantém sua clássica definição de cidadania
baseada na igualdade e leis comuns, em uma economia aberta e no acesso igual aos
serviços públicos, tornando invisível a hegemonia de uma ideologia de classe ou as
relações de poder ocultas da lógica contemporânea. Por outro lado, cabe refletir
146
sobre a possibilidade das esferas pública e privada o formarem uma antítese, mas
uma tácita parceria.
335
Cumpre lembrar que Karl Marx, em 1843, já deixava registrada sua
contribuição, qual seja:
[...], o homem, enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado
como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar
do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o
homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral.
336
Algo de que tanto se fala e de conceito aparentemente esvaziado, a cidadania
agoniza por conteúdo capaz de propiciar uma reflexão sólida e conseqüente sobre o
sentido de pertença. E é sob a égide da imprevisibilidade e sobre terreno
desconhecido que vem acontecendo o embate entre as forças dominantes do Estado,
do mercado e dos cidadãos. Dos desdobramentos deste enfrentamento dependem o
destino da cidadania, enquanto processo em construção, e a nossa sorte.
335
Cf. KENTEL, Ferhat. Del “gueto” a lo “intercultural”: experiencias euro-turcas en Alemania y en Francia.
In: ONGHENA, Yolanda et al. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 73-74, maio-junho 2006, pp. 123-
153.
336
MARX, op. cit., pp. 41-42.
147
Referências
AL-ASSOUMI, Mohamed. Impossible de se passer d’eux, p. 36. In: Courrier International,
França, n.814, jun. 2006.
ALBALA, Nuri & SIRE-MARIN, Evelyne. Sob Estado de Urgência. Le Monde
diplomatique, Brasil, dez. 2005. Disponível em: http://diplo.uol.com.br/imprima1205
.
Acesso em: 05 jun. 2006.
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Massa e elite racham sistema universitário francês. Folha de
São Paulo, São Paulo, 22 jan. 2006. Caderno Mais!, p. 5.
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. 2 ed. São Paulo: Ed. Landy, 2005.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Dinâmicas da Economia no Século XX, pp. 47-70. In:
TEIXEIRA DASILVA. O século sombrio: uma história geral do século XX. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004a.
AMARAL, Kelly. Maio de 1968, pp. 539-540. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos
(org.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: as grandes transformações do
mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004b.
ANDERSON, Benedict. As promessas do Estado-nação para o início do século, pp. 155-
170. In HELLER, Agnes [et al.]. A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios
para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
APPIAH, Kwame Anthony. Cultura, comunidade e cidadania, pp. 219-250. In HELLER,
Agnes [et al.]. A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século
XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
ARÊAS, Camila. Eleição na França. Campanhas abandonam grandes paixões para focar
na globalização. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 abr. 2007. Caderno Internacional, p.
A25.
____________. Eleição na França. Eleição de Sarkosy na França fortalece eixo e expande
direita liberal no continente. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 maio 2007. Caderno
Internacional, p. A25.
____________. Eleição na França. Juventude apóia Ségolène por temor ao Estado policial
de Sarkosy. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 abr. 2007. Caderno Internacional, p. A26.
148
____________. Eleição na França. Nos últimos dias da corrida presidencial, direita e
esquerda se agarram à bandeira: o resgate da identidade nacional. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 8 abr. 2007. Caderno Internacional, p. A25.
ARRUDA, José Jobson de A. A revolução inglesa. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
AZEVEDO, Antonio Carlos. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3 ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
BABINGTON, Charles. On régularise, on tolere, mais on eleve um mur, p.26. In: Courrier
International, França, n.814, jun. 2006.
BADIE, Bertrand. Estado–nação, um agente entre outros? Label France. N.38, jan. 2000.
Disponível em: http://ambafrance.org.br/abr/label/label38/dernier/05etat.html
. Acesso
em: 10 maio 2006.
____________. O fim dos territórios. Ensaio sobre a desordem internacional e sobre a
utilidade social do respeito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005b.
____________. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005a.
BECKER, Ernest. The denial of death. Nova York: Free Press, 1973.
BENDIX, Reinhard. Construção nacional e cidadania: estudos de nossa ordem social em
mudança. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1996.
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1981.
BERLINCK, Deborah. “A 1ª vez que a esquerda fala de empresas”. Depoimento do
empresário Jean-Claude Turini. O Globo, Rio de Janeiro, 6 maio 2007. Caderno O Mundo,
p. 47.
____________. Na trilha da identidade francesa. O Globo, Rio de Janeiro, 15 abr. 2007.
Caderno O Mundo, p. 36.
____________ & BERTOL, Rachel. Vozes da conturbação. O Globo, Rio de Janeiro, 25 mar
2006. Caderno Prosa & Verso, pp. 1-2.
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
política. 12 ed. 2 v. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2002.
149
BOBBITT, Philip. A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos
e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
BOMMES, Michael, CASTLES, Stephen & WENDEN, Catherine W. Migration and social
change in Australia, France and Germany. In: IMIS-Beiträge. Alemanha: Universität
Osnabrück, 1999.
BONELLI, Laurent. Revoltes des banlieues: les raison d’une colère. Le Monde Diplomatique,
França, dez. 2005. Disponível em: http://www.monde-
diplomatique.fr/2005/12/BONELLI/12993. Acesso em: 3 jan. 2006.
BOURDIEU, Pierre (coord.). A miséria do mundo. 1993. 5 ed. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2003.
BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BOURTEL, Karim. Manobras políticas em torno dos imigrantes. Le Monde Diplomatique,
Brasil, out. 2003. Disponível em:
http://diplo.uol.com.br/imprima760 . Acesso em: 5 jun.
2006.
BRUBAKER, Rogers. Citizenship and nationhood in France and Germany. Londres:
Harvard University Press, 1992.
BUARQUE, Daniel. A sociedade da culpa. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 out. 2005.
Caderno Mais!, p. 4.
____________. Exclusão cordial. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 nov. 2005. Caderno
Mais!, p. 4.
____________. Via sacra. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 fev. 2006. Caderno Mais!, p. 4.
CALHOUN, Craig. Multiculturalismo e Nacionalismo, ou por que Sentir-se em Casa não
Substitui o Espaço Público, pp. 200-228. In: MENDES, Candido (coord.) & SOARES, Luiz
Eduardo (ed.). Pluralismo Cultural, Identidade e Globalização. Rio de Janeiro: Record,
2001.
CANCLINI, Néstor G. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.
____________. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6 ed.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
CAPPELLO, Héctor Manuel. Efeitos da Globalização Econômica sobre a Identidade e o
Caráter das Sociedades Complexas, pp. 115-145. In: MENDES, Candido (coord.) &
SOARES, Luiz Eduardo (ed.). Pluralismo cultural, identidade e globalização. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
150
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Repensando a construção do espaço. Revista de História
Regional, verão 1998. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/pg000023.pdf. Acesso em: 24 fev. 2006.
CARTA, Gianni. Cenário eleitoral francês começa a se definir para 2007. In: BBC Brasil.
De Paris, 05 maio 2006. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/printabl...
Acesso em: 17 nov. 2006.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 5 ed. - (A era da informação: economia,
sociedade e cultura, v.1). São Paulo: Paz e Terra, 2001.
____________. O poder da identidade. 5 ed – (A era da informação: economia, sociedade
e cultura, v.2). São Paulo: Paz e Terra, 2006.
CASTLES, Stephen & DAVIDSON, Alastair. Citizenship and Migration: globalization and
politics of belonging. EUA, NY: Routledge, 2000.
CHÂTELET, François & PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As concepções políticas do
século XX: história do pensamento político. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
COGGIOLA, Osvaldo. A revolta da juventude na França. Instituto Rosa Luxemburgo.
Portugal, 15 nov. 2005. Disponível em:
http://www.insrolux.org/textos2005/coggiolafranca.pdf
. Acesso em 29 maio 2006.
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CORNELIUS, Wayne A. [et al.]. Controlling immigration: a global perspective. 2 ed.
Califórnia: Stanford University Press, 2004.
DASSETTO, Felice. Identidades e interacciones em los nuevos marcos sociales, pp. 21-37. In:
ONGHENA, Yolanda et all. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 73-74, maio-junho
2006.
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. 2 ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.
FARIS, Robert E. L. Assimilação (Assimilation), p. 89. In: SILVA, Benedicto (coord.).
Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
FERREIRA, Ademir Pacelli. O migrante na rede do outro. Ensaios sobre alteridade e
subjetividade. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: Te Corá, 1999.
151
FINKIELKRAUT, Alain. Fanáticos sem fronteiras. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 fev.
2006. Caderno Mais!, p. 5.
FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
GASEROW, Vera. Qui veut gagner son passeport?, p. 18. In: Courrier International, França,
n. 814, jun. 2006.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1973. Rio de Janeiro: LTC Ed., 1989.
GIDDENS, Anthony. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio
de Janeiro: FGV, 2000.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed.
Rio de Janeiro: LTC, 1988.
GUIBERNAU i BERDUN, Maria Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o
nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2 ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2004.
____________. Citizenship and National Identity. Some Reflections on the Future of Europe. In:
BEINER, R. (org.). Theorizing Citizenship. EUA: State University of New York Press,
1995b.
____________. Direito e democracia: entre Faticidade e Validade. 1992. 2 v. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997.
____________. O Estado-nação europeu frente aos desafios da globalização. In: Novos
Estudos Cebrap, n. 43, nov. 1995a.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
____________. Territórios alternativos. Niterói: EdUFF; São Paulo: Contexto, 2002.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação on line. Disponível em:
http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp?f_id_artigo=450..
. Acesso em: 21 jun. 2006.
____________. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
152
HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Rio de Janeiro: Record, 2005.
HAYEK, Friedrich A. Von. Espejismo de la justicia social. V.2. Madrid: Union Editorial,
1988.
HELD, David & McGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
HERMET, Guy. História das nações e do nacionalismo na Europa. Lisboa: Editorial
Estampa, 1996.
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. 17 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
HOBSBAWM, Eric J. & RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
_____________. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
_____________. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990.
_____________. O novo século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
_____________. Os anos rebeldes. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. Caderno
Mais!, pp. 5-6.
HOLLANDA, Cristina B. de & MEDEIROS, Sabrina E. Alguns debates conceituais a partir
do capital social norte americano, pp. 135-165. In: MIGUEZ, Ricardo (org.). Anglophone
studies: an anthology. Nova York: The Group School of Criticism, 2002.
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: Unesp; Imprensa Oficial do
Estado, 2001.
JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e a sociedade de consumo, pp. 25-44. In
KAPLAN, E. Ann (org.). O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
KARNAL, Leandro. Estados Unidos: a formação da nação. São Paulo: Contexto, 2001.
153
KENTEL, Ferhat. Del “gueto” a lo “intercultural”: experiencias euro-turcas en Alemania y en
Francia, pp. 123-153. In: ONGHENA, Yolanda et all. Revista CIDOB d’Afers
Internacionals, n. 73-74, maio-junho 2006.
KOLB, William L. Estado (State), p. 416. In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de
ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
LAABIDI, Myriam. Mon pays, n’as-tu pás honte?, p. 15. Courrier Internacional, França, n.
814, jun. 2006.
LAMBERT, Christophe. La société de la peur. Paris: Plon, 2005.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Ed. Abril, 1973.
MAMÈRE, Noel. “França acha que direita a protege mais”. Entrevista à Folha de São
Paulo. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 maio 2007. Caderno Mundo, p. A25.
MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar Editores,
1967.
MARTINEZ, Vinício C. Estado de Direito formal. Enciclopédia Jurídica Soibelman. Mar.
2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6622
. Acesso em: 22
jan. 2007.
MARX, Karl. A questão judaica. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2005.
MAUGER, Gérard. O outono dos motins. Folha de S. Paulo, Mundo, p. A 30. São Paulo,
20 nov. 2005.
MCDOUGALL, Dan. Emeute sur le chantier, pp. 35-36. Courrier International, França, n.
814, jun. 2006.
MEDEIROS, Sabrina E. Políticas Imigratórias: por uma avaliação dos seus fundamentos e
limites na contemporaneidade. Tese (Doutorado em Ciência Política). IUPERJ - Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
MILL, John Stuart. Consideraciones sobre el gobierno representativo. Madrid: Alianza
Editorial, 2001.
NATALI, João Batista. Sarkosy pretende guinada liberal, com Estado menor. Folha de São
Paulo, São Paulo, 6 maio 2007. Caderno Mundo, p. A24.
NEDOS, Vasilis. Le sud des Balkans zone de transit, p. 22. Courrier International, França,
n.814, jun. 2006.
NEGRI, Antonio & COCCO, Giuseppe. O trabalho de luto. Folha de São Paulo, São
Paulo, 9 abr. 2006. Caderno Mais!, p. 3.
154
ODALIA, Nilo. A liberdade como meta coletiva. In PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla
Bassanezi. História da cidadania. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2005.
ONGHENA, Yolanda. De lo identitario a lo intercultural: líneas transversales de los
debates, pp. 155-182. In: ____________ et. al. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n.
73-74, maio-junho 2006.
PADRÓS, Enrique S. Capitalismo, prosperidade e Estado de bem-estar social, pp. 227-266.
In: REIS FILHO, Daniel Aarão, FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (org.). O século XX.
2 ed. 3 v. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras – v.2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
PERES, Marcos Flamínio. Um fantasma assombra a Europa. Folha de São Paulo, São
Paulo, 13 nov. 2005. Caderno Mais!, p. 6.
POUTIGNAT, Philippe & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de
Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
PÓVOA NETO, Helion. A criminalização das migrações na nova ordem internacional, pp.
297-309. In: _____________ & FERREIRA, Ademir Pacelli (org.). Cruzando fronteiras
disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 5 ed.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
____________. Solo en la bolera: colapso y resurgimiento de la comunidad norteamericana.
Barcelona: Galaxia Gutenberg Ed., 2002.
QUINTANA, Juan Blasco. Cidadão (Ciudadano), p. 178. In: SILVA, Benedicto (coord.).
Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
RACHIK, Hassan. Identidad dura e identidad blanda, pp. 9-20. In: ONGHENA, Yolanda et
all. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 73-74, maio-junho 2006.
REIS, Rossana Rocha. Políticas de Nacionalidade e políticas de imigração na França. In
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.14, n.39, fev. 1999. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1725.pdf
. Acesso em: 25 ago. 2006.
REXACH, Alfred. Ces Latinos-Américains qui vont vers le sud, p. 27. Courrier International,
França, n.814, jun. 2006.
RIDENTI, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias, pp. 133-159. In: REIS FILHO, Daniel Aarão,
FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (org.). O século XX. 2 ed. 3 v. O tempo das dúvidas:
do declínio das utopias às globalizações – v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
155
RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. São Paulo: M. Books do Brasil Ed. Ltda., 2005.
RIGOUSTE, Mathieu. “L’immigré … mais qui a réussi”, pp. 59-61. In: VIDAL, Dominique
(coord.). Banlieues. Manière de voir 89. Le Monde diplomatique, n. 89, out. - nov., 2006.
ROSSI, Clóvis. 1968, o ano que terminou em 2007. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 maio
2007. Caderno Mundo, p. A24.
____________. Eleição discute quem é filho da República: incorporação de imigrantes e
outras classes excluídas à igualdade prometida pela França é tema vital na votação de
hoje. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 abr. 2007. Caderno Mundo, p. A24.
SALL. Issa. Une pirogue pour le paradis, p. 38. Courrier International, França, n.814, jun.
2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o
pós-contratualismo, pp. 33-75. In HELLER, Agnes [et al.]. A crise dos paradigmas em
ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
SARFATI, Gilberto. Teoria das relações internacionais. Rio de Janeiro: Saraiva, 2005.
SASSEN, Saskia. Losing control? Sovereignty in age of globalization. Nova York: Columbia
University Press, 1996.
____________. The State and Globalization. In: HALL, Rodney & BIERSTEKER, Thomas
(org.). The emergency of private authority in global governancy. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002.
SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora da
Universidade de São Pulo (EDUSP), 1998.
SHKLAR, Judith N. Justice et citoyenneté. In: AFFICHARD, J. & FOUCAULD, J.B.
Pluralisme et equité. Paris: Éditions Esprit, 1995.
SILVA, Adriana Ferreira. As zonas francas. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 nov. 2005.
Caderno Mais!, p. 5.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
SOARES, Denise de Souza. A política de imigração da união européia: pavimentando o
caminho para a “Fortaleza Europa”. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
SOARES, Luiz Eduardo. Considerações Sumárias em torno do “Background” Intelectual
da Conferência do Rio, pp. 13-22. In: MENDES, Candido (coord.) & SOARES, Luiz
156
Eduardo (ed.). Pluralismo cultural, identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record,
2001, pp. 13-22.
____________. Legalidade Libertária. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2006.
SOARES, Weber. Emigração e (i)mobilidade residencial: momentos de ruptura na
reprodução/continuidade da segregação social no espaço urbano, pp. 167-192. In REIS,
Rossana Rocha & SALES, Teresa (org.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo
Editorial, 1999.
SUBRAMANYAM, Aishwarya. Les médecins indiens découragés, p. 21. Courrier
International, França, n.814, jun. 2006.
SVARLIEN, Oscar. Cidadania (Citizenship), p. 177. In: SILVA, Benedicto (coord.).
Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
SZKLARZ, Eduardo. E a história continua. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 nov. 2005.
Caderno Mais!, p. 5.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Revoluções Conservadoras, Terror e
Fundamentalismo: Regressões do Indivíduo na Modernidade, pp. 123-190. In: TEIXEIRA
DA SILVA, Francisco Carlos (org.). O século sombrio: uma história geral do século XX.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004a.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes de certas leis e
certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu
estado social democrático. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidos, 2000.
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na Era dos Direitos, pp.239-335 in
__________ (org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
____________. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. Bauru, SP:
EDUSC, 1998.
____________. Recusa do real e à diferença marca a França. Folha de São Paulo, São
Paulo, 13 nov. 2005. Caderno Mais!, p.6.
TURNER, Bryan S. Handbook of citizenship studies. Londres: SAGE, 2003.
____________. Status. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
157
UMEZAWA, Seiji. L’école s’adapte aux étrangers, p. 32. Courrier International, França, n.
814, jun. 2006.
VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. 7 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
VIDAL, Dominique. Combater o apartheid. Le Monde diplomatique. Brasil, dez. 2005.
Disponível em: http://diplo.uol.com.br/imprima1207
. Acesso em: 5 jun. 2006.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1999b.
____________. Global Citizenship and the National State. Dados, Rio de Janeiro, v. 42, n. 3,
1999a. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52581999000300001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 25 ago. 2006.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. O paradoxo França. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 mar.
2006. Caderno Mais!, p. 3.
VON HAYEK, Friedrich August. Contra Keynes y Cambridge. Espanha: Union Editorial,
1996.
WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. 2
ed. Rio de Janeiro: Revan; FASE, 2005.
WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
____________. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. 1983. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
WARE, Vron (org.). Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC Ed., 1982.
WEIL, Patrick. La France et sés étrangers. L’aventure d’une politique de l’immigration: 1938 –
1991. França: Calmann – Lévy, 1991.
WORMS, Jean-Pierre. Viejos y nuevos vínculos cívicos en Francia, pp. 273-343. In:
PUTNAM, Robert (ed.). El declive del capital social:un estudio internacional sobre las
sociedades y el sentido comunitario. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2003.
YATABE, Kazuhiko & MORI, Kyoko. “Monko” La Porte, p. 32. Courrier International. Le
Mot de la Semaine. França, n.814, jun. 2006.
158
YIN, Robert K. Estudo de caso. Planejamento e métodos. 3 ed. Porto Alegre: Bookman,
2005.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
____________. Sobre homens e lobos. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 out. 2005.
Caderno Mais!, p. 3.
159
Fontes
1-Boletim
INSEE PREMIÈRE. Institut National de la Statistique et des Études Économiques. La
Population Immigrée. Le Résultat d’une Longue histoire. N° 458 – jun. 1996. Disponível
em:
http://www.insee.fr/FR/FFC/DOCS_FFC?ip458.pdf
Acesso em: 09 maio 2006.
2-Periódico Oficial
LA DOCUMENTATION FRANÇAISE. Citoyenneté et société.Cashiers français, n° 281, mai
– jun 1997.
3-Relatórios Oficiais
COUR DES COMPTES. L’Accueil des Immigrants et l’Integration des populations issues de
l’Immigration. Rapport au Président de la République suivi des réponses des administration et des
organismes intéressés. Novembre/2004. In:La Documentation Française. Disponível em:
http://lesrappots.ladocumentationfrancaise.fr/BRP/044000576/0000.pdf
Acesso em: 03 fev. 2006.
ECRI. Troisième rapport sur la France adopté le 25 juin et rendí public le 15 février 2005. In:
Comisión européene contre le racisme et l’intolérance. Disponível em:
http://www.coe.int/t/f/droits_de_l%27homme/ecri/1%2Decri/2%2Dpays%2Dpar%2D
pays/france/france_cbc_3.asp#P237_37107 . Acesso em: 11 jan. 2007.
MINISTÈRE DE L’ÉCONOMIE, DES FINANCES ET DE L’INDUSTRIE. Immigration
sélective et besoins de l’économie française - Rapport (14 janvier 2006). In: La Documentation
Française. Disponível em:
http://www.ladocumentationfrancaise.fr/BRP/064000160/0000.pdf . Acesso em: 13 mar.
2006.
UNDP. Human Development Report. In: United Nations Development Programme – New
York, 1999. Disponível em:
http://hdr.undp.org/reports/global/1999/en/pdf/hdr_1999_full
Acesso em: 14 jun. 2007.
4-Informes Públicos
160
INFORME CANARIAS 2006. In: Asociación pro derechos humanos de Andalucía.
Espanha, 2006. Disponível em:
www.apdha.org/documentos/InformeCanariasJunio2006.doc. Acesso em: 21 set. 2006.
NATIONALITÉ. In: Les archives du ministère de la Justice. França, set. 2005. Disponível
em:
http://www.justice.gouv.fr/archives/_private/niveau5/dacs/Droit_civ/nationalite/N
ATIO1.html . Acesso em: 12 fev. 2006.
REFUGEE NEWS NET. In: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR), mar. 2001. Disponível em:
http://www.cidadevirtual.pt/acnur/news/newswire/newswire.htm
. Acesso em: 22 set.
2006.
RIGHTS AT WORK. In: International Labour Organization (ILO / OIT). Regional Office
for the Arab States. Líbano, 20 fev. 2004. Disponível em:
http://www.ilo.org/public/english/region/arpro/beirut/rights/rights11.htm
Acesso em: 23 set. 2006.
VIE PUBLIQUE. Comment devient-on citoyen français?. In: La Documentation française.
França, 2006b. Disponível em:
http://www.vie-
publique.fr/decouverte_instit/citoyen/citoyen_1_1_0_q3.htm . Acesso em: 30 mar. 2006.
VIE PUBLIQUE. Définitions Insee (un étranger/un immigré). In: La Documentation française.
Disponível em:
http://www.vie-publque.fr/documents-vp/definition_immietrnag.shtml
. Acesso em: 27 mar. 2006.
VIE PUBLIQUE. La citoyenneté n’est-elle aujourd’hui qu’une citoyenneté juridique?. In: La
Documentation française. França, 2006c. Disponível em:
http://www.vie-
publique.fr/decouverte_instit/citoyen/citoyen_1_2_1_q5.htm . Acesso em: 30 mar. 2006.
VIE PUBLIQUE. La politique d’immigration (1974 – 2005). L’aquisition de la nationalité
française. In: La Documentation Française. Disponível em:
http://www.vie-publique.fr/politiques-publiques/politique-immigration/acquisition-
nationalite-francaise/... . Acesso em: 09 jul. 2006.
VIE PUBLIQUE. La politique d’immigration (1974 – 2005). Les immigrés (étrangers ou français)
dans la cité. In: La Documentation Française. Disponível em:
http://www.vie-publique.fr/politiques-publiques/politique-immigration/immigres-
cite/... Acesso em: 09 jul. 2006.
VIE PUBLIQUE. L’integration républicaine fonctionne-t-elle encore face à la diversité culturelle?
In: La Documentation Française. Disponível em:
http://www.vie-publique.fr/decouverte_instit/citoyen/citoyen_3_4_0_q5.htm
Acesso em: 22 abr 2006.
161
VIE PUBLIQUE. Tous les habitants de la France sont-ils des citoyens français?In: La
Documentation française, França, 2006a. Disponível em:
http://www.vie-
publique.fr/decouverte_instit/citoyen_1_1_0_q1.htm . Acesso em: 30 mar. 2006.
5-Textos Oficiais
CASTILHO, Manuel Angel. Migraciones em el hemisfério. Consecuencias y relación com las
políticas sociales. In: Naciones Unidas. Comisión Econômica para América Latina y el
Caribe (CEPAL), Chile, maio 2003. Disponível em:
http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/1/12551/lcl1908-p.pdf
. Acesso em
22 set. 2006.
COMPREHENSIVE IMMIGRATION REFORM. In: The White House, Estados Unidos, 3
ago. 2006. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/infocus/immigration/#
. Acesso
em: 22 set. 2006.
DECLARAÇÃO DE SÃO PAULO E LONDRINA. In: Tokyo-Nikkeis, Brasil, ago. 2002.
Disponível em: http://www.tfemploy.go.jp/htdocs/port/common/bbs/psengen.html
.
Acesso em: 3 out. 2006.
LETTER to His Excellency Sheikh Zayid bin Sultan al-Nahyan, President of the U.A.E. In:
Human Rights Watch, Estados Unidos, 31 mar. 2003. Disponível em:
http://www.hrw.org/press/2003/04/gccuae.htm
. Acesso em: 23 set. 2006.
UAE: Address abuse of migrant workers. No free trade pacts without reform. In: Human Rights
Watch, Estados Unidos, 30 mar. 2006. Disponível em:
http://hrw.org/english/docs/2006/03/28/uae13090.htm
. Acesso em: 23 set. 2006.
6-Textos Jurídicos
FRANÇA. Avant-projet de loi relatif à l’immigration et à l’intégration. Document de travail – 30
janvier 2006. In: Ministère de l’interieur et de l’amenagement du territoire. Disponível em:
http://www.contreimmigrationjetable.org/IMG/pdf/2006-01-30_avant-projet.pdf .
Acesso em: 07 fev. 2006.
FRANÇA. Loi n°55-385 du 3 avril 1955. Loi instituant um état d’urgence et em déclarant
l’application em Algérie. Version consolidée au 16 juin 2000 – version JO initiale. 03/04/1955. In:
Legifrance. Le service public de la diffusion du droit. Disponível em:
http://www.legifrance.gouv.fr/WAspad/Visu?cid=339615&indice=1&table=LEX&ligne
Deb=1. Acesso em: 18 fev. 2006.
7-Documentação referente à pesquisa oficial sobre Cidadania
162
“CITIZENSHIP” – ZA No. 3950. In: ISSP 2004. Disponível em:
http://www.gesis.org/en/data_service/issp/data/2004_Citizenship.htm
Acesso em: 24 abr. 2007.
CNRS. Le CNRS en bref. In: Centre National de la Recherche Scientifique. Disponível em:
http://www2.cnrs.fr/band/6.htm?print=1 . Acesso em: 22 maio 2006.
ISSP. In: Enquêtes internationales. International Social Survey Programme (ISSP).
Disponível em:
http://www.solcidsp.upmf-grenoble.fr/cidsp/international/issp.htm
Acesso em: 22 maio 2006.
PACTE. Présentation de PACTE. In: Politiques Publiques, Action Politique, Territoires.
Disponível em:
http://www.pacte.cnrs.fr/rubrique.php3?id_rubrique=46
Acesso em: 22 maio 2006.
PACTE CIDSP. Disponível em:
http://www.solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/index_main.htm
Acesso em: 24 abr. 2007.
PRODUCTION DE DONNÉES. Disponível em:
http://solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/donnees/index_nouvelles_do... . Acesso em: 24 abr. 2007.
PUBLICATIONS. Disponível em:
http://solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/publications/dossiers/ISSP/resultatsFranceISSP2004.pdf
Acesso em: 20 mar. 2007.
RÉSULTATS. In: ISSP 2004 - France-. Disponível em:
http://www.solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/publications/dossiers/ISSP/resultatsFranceISSP2004.pdf
Acesso em: 20 mar. 2007.
8-Documentação referente à pesquisa oficial sobre Identidade Nacional
ADISP. Centre Maurice Halbwachs. In: ISSP – Identité nationale II – France – 2003.
Description de l’enquête. Disponível em:
http://www.cmh.acsdm2.ens.fr/enquetes/XML/lil-0240.xml
Acesso em: 23 maio 2006.
ISSP. General Information. In: International Social Survey Programme. Disponível em:
http://www.issp.org/homepage.htm . Acesso em: 23 maio 2006.
ISSP. Report to the ISSP General Assembly on monitoring work undertaken for the ISSP by
ZUMA, Germany. In: Study Monitoring 2003, nov. 2005. Disponível em:
http://www.za.uni-koeln.de/data/en/issp/codebooks/ISSP2003app.pdf
Acesso em: 23 maio 2006.
163
ISSP FRANCE. In: Programme international d’enquêtes socials. Disponível em:
http://cidsp.upmf-grenoble.fr/cidsp/ISSP_FRANCE/index_ISSPFRANCE.htm Acesso
em: 22 maio 2006.
“NATIONAL IDENTITY” – ZA No. 3910. In: ISSP 2003. Disponível em:
http://www.gesis.org/en/data_service/issp/data/2003_National_Ident...
Acesso em: 24 abr. 2007.
PRODUCTION DE DONNÉES D’ENQUÊTES. Disponível em:
http://solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/index_donnees.htm . Acesso em: 24 abr. 2007.
RÉSULTATS. In: ISSP 2003. Disponível em:
http://www.solcidsp.upmf-
grenoble.fr/cidsp/ISSP_FRANCE/resultatsFranceIssp2003.pdf
Acesso em: 11 maio 2006.
RÉSULTATS ISSP 2003. Disponível em:
http://www.za.uni-koeln.de/data/en/issp/codebooks/ISSP2003app.pdf
Acesso em: 23 mai. 2006.
RÉSULTATS ISSP 2003. In: PACTE. Politiques Publiques, Action Politique, Territoires.
Disponível em:
http://www.pacte.cnrs.fr/Recherche/presentationresultatsFranceIssp2003.pdf Acesso
em: 11 maio 2006.
164
ANEXOS
165
ANEXO A
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
1
ANEXO B
178
179
180
181
182
183
184
185
186
187
188
189
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo