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JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E
GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA NO ÂMBITO DO
PODER LOCAL
Rômulo Guilherme Leitão
Fortaleza-CE
Setembro, 2008
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
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RÔMULO GUILHERME LEITÃO
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E
GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA NO ÂMBITO DO
PODER LOCAL
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de
Fortaleza como requisito parcial
para a obtenção do tulo de
Mestre em Direito Constitucional,
sob a orientação do Prof. Dr.
Martonio Mont´Alverne Barreto
Lima
Fortaleza-Ceará
2008
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_________________________________________________________________________
L533j Leitão, Rômulo Guilherme.
Judicialização da política” e governabilidade democrática no âmbito do
poder local / Rômulo Guilherme Leitão. - 2008.
107 f.
pia de computador.
Dissertação (mestrado) Universidade de Fortaleza, 2008.
“Orientação : Prof. Dr. Martônio Mont'Alverne Barreto Lima.”
1. Jurisdição constitucional. 2. Democracia. 3. Poder executivo.
4. Judicialização da política. I. Título.
CDU 342(1-29)
_________________________________________________________________________
3
RÔMULO GUILHERME LEITÃO
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E
GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA NO ÂMBITO DO
PODER LOCAL
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. Martonio Mont´Alverne Barreto Lima Orientador
Universidade de Fortaleza UNIFOR
_________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Luciano Lima Rodrigues 1º Examinador
Universidade de Fortaleza UNIFOR
_________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz 2º Examinador
Universidade Federal do Ceará - UFC
Dissertação aprovada em: 12/09/2008
4
Aos meus pais, Domingos e Helena,
responsáveis maiores pela minha formação e
meus modelos de conduta para a vida;e
à Renata, Rômulo Filho e Clara, por tudo,
amor, alegria, responsabilidade.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Martônio MontAlverne Barreto Lima, pela orientação
acadêmica, mas, principalmente, por me haver instigado a estudar o tema que ora
me proponho dissertar, com suporte na experiência profissional vivenciada por
mim.
Aos Professores Doutores Francisco Luciano Lima Rodrigues e Márcio
Augusto de Vasconcelos Diniz que gentilmente aceitaram compor a Banca
Examinadora.
Ao Professor Titular Arnaldo Vasconcelos por haver me mostrado o caminho
da Ciência do Direito ainda na Faculdade.
Aos professores e colegas do Mestrado, pelos debates e ensinamentos tão
importantes.
À Procuradoria Geral do Município de Fortaleza e aos colegas procuradores,
que, por intermédio do Fundo de Aperfeiçoamento da PGM, me deram o apoio
financeiro que me permitiu realizar o Mestrado em Direito Constitucional.
Aos Amigos das Sextas-Feiras, pelos acalorados debates, inclusive sobre
temas políticos.
A todos aqueles que direta ou indiretamente vivenciaram o processo de
produção deste trabalho, o meu reconhecimento e amizade.
6
A Constituição fez bem ou mal? Ela fez. Nenhum
dos poderes detém o monopólio do saber: os poderes
erram e acertam. Felizmente acertam mais do que erram. É
humano. E aquele que toma a última decisão, erra ou
acerta por último. Contra isso não há remédio. Erro e
acerto estarão aqui para sempre. Esta banal verdade não
pode ser esquecida. Nem homens nem suas instituições
são perfeitas e infalíveis.
Paulo Brossard
7
RESUMO
Objetiva analisar a crescente interferência do Poder Judiciário nas decisões
políticas do Poder Executivo, fenômeno denominado, nos dias de hoje, de
Judicialização da Política. Essa análise toma por base os limites impostos pela
Constituição Federal na separação dos poderes e na sua coexistência, ressaltando
que os órgãos do Poder Judiciário (juízes e tribunais) não são votados, portanto,
não aptos a tomar decisões de natureza eminentemente política. A tensão e as
conseqüências surgidas dessa invasão de competência constitucional são o objeto
da presente análise, cujo modelo é a experncia do Município de Fortaleza/CE, em
juízo, entre os anos 2001 e 2004. Aborda-se, de igual modo, o protagonismo de
instituões de caráter nacional na utilização dos meios judiciais como o Conselho
Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE) em questões de natureza
tributária (taxa de coleta de resíduos sólidos, taxa de coleta de lixo domiciliar etc.);
bem como as freqüentes ações diretas de inconstitucionalidade e ações civis
públicas movidas pelos partidos de oposição (Partido dos Trabalhadores - PT,
Partido Democrático Trabalhista PDT e Partido Comunista do Brasil PC do B)
contra obras e serviços de competência do Município de Fortaleza, para se concluir
que a judicialização da política está presente no âmbito do Estado brasileiro com a
participação cada vez mais ativa do Supremo Tribunal Federal com decisões de
natureza política, invadindo competências de outros poderes, bem como, de igual
modo, no âmbito local, no período delimitado.
Palavras-chave: Jurisdição Constitucional. Teoria da Democracia. Judicialização da
Política. Questões Políticas. Poder Executivo.
8
ABSTRACT
The work has for objective to analyze to growing interference of the Judiciary
Power in the political decisions of the Executive Power, phenomenon denominated
in the days today of Judicialização of the Politics. That analysis takes for base the
limits imposed by the Federal Constitution in the separation of the Powers and in
his/her coexistence, standing out that the organs of the Judiciary Power (judges and
tribunals) they are not voted for, therefore, no capable to make nature decisions
eminently politics. The tension and appeared consequences of that invasion of
constitutional competence are the object of the present analysis that has as model
the experience of the Municipal district of Fortaleza/CE in judgment, among the
years 2001 and 2004. To approach, in equal way, the protagonism of institutions of
national character in the use of the judicial ways like State Council of the Order of
the Lawyers of Brazil (OAB/CE) in subjects of tax nature (it rates of collection
solid residues, it rates of collection of home garbage, etc); as well as the frequent
direct actions of unconstitutionalities and public civil actions moved by the
opposition parties (Party of the Workers - PT, Labor Democratic Party - PDT and
Communist Party of Brazil - PC of B) against works and services of competence of
the Municipal district of Fortaleza to conclude that the judicialização of the politics
is more and more present in the extent of the Brazilian State with the participation
active of Federal Supreme court with decisions of political nature, invading
competences of other powers, as well as, in equal way, in the local extent, in the
delimited period.
Word-key: Constitutional Jurisdiction. Theory of the Democracy. Judicialização of
the Politics. Political Subjects. Executive Power.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................ . 10
1 A DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES......................... . 14
1.1 Delimitação do conceito...................................................... . 14
1.2 Separação dos poderes em John Locke.................................... . 16
1.3 Separação dos poderes em Montesquieu.................................. . 17
1.4 Separação dos poderes na doutrina dos Estados Unidos.. . 21
1.4.1 Os federalistas.... 21
1.4.2. O caso Marbury x Madison.. 23
1.5 Poder Judiciário: lugar na Teoria da Separação dos Poderes......... . 25
2 AS QUESTÕES POLÍTICAS NA JURISPRUDÊNCIA..................... . 30
2.1 Delimitação do conceito..................................................... . 30
2.2 Questões políticas na jurisprudência...................................... . 33
2.2.1 Suprema Corte dos Estados Unidos................................... 34
2.2.2 Supremo Tribunal Federal........................................... 37
2.3 Questões políticas e o Supremo Tribunal Federal..................... 49
3 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA............................................. . 52
3.1 Delimitação do conceito.................................................... . 52
3.1.1 A expansão global do poder judicial: C.N. Tate e T. Vallinder 53
3.1.2 O guardião das promessas: Antoine Garapon..................... 60
3.1.3 Juízes legisladores: Mauro Cappelletti............................. 63
4 A JUDICIALIZAÇÃO DA POTICA E O CASO BRASILEIRO. 66
4.1 A Judicialização da Política e das relações sociais no Brasil: Luiz
Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manoel Palá-
cios Cunha Melo e Marcelo Bauman Burgos................................ 67
4.2 Ministério Público e política no Brasil: Rogério Bastos Arantes... 73
4.3 Judicialização da Política e Poder Legislativo............................. 75
5 A JUDICIALIZAÇÃO NO ÂMBITO LOCAL.................................... 80
5.1 Partidos e parlamentares de oposição.......................................... 82
5.2 Ministério Público estadual e federal.......................................... 86
5.3 Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil OAB/CE. 93
10
5.4. Grupos de interesse sindicatos, associações............................ 96
CONCLUSÃO............................................................................... 99
REFERÊNCIAS........................................................................... 104
11
INTRODUÇÃO
A presente dissertação aborda o tema da Judicialização da Política que é a
crescente expansão dos poderes dos juízes na tomada de decisões de natureza
política tendo como assunto central saber se há legitimidade democrática para os
membros do Poder Judiciário decidir em temas de competência do Poder Executivo.
Esse fenômeno, da expansão do poder judicial, se verifica em todos os continentes
e o texto abordou exemplos de alguns países, mas manteve a preocupação de
demonstrar judicialização manifesta da política em âmbito nacional, bem como no
contexto local, do Município de Fortaleza, entre os anos 2000 e 2004, mais
precisamente.
É comum nos dias de hoje os meios de comunicação abordarem o julgamento
de questões de repercussão nacional no plenário do Supremo Tribunal Federal
(STF) ou do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde regras sobre eleições e
infidelidades são gestadas e passam a balizar, com suporte nesses ambientes
judiciais, todo o sistema político brasileiro. São cada vez mais presentes no
vocabulário de pessoas sem formação jurídica expressões técnicas como Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), liminar ou tutela antecipada o que é
salutar para a democracia mas também demonstra a crescente expansão desse
poder judicial a assuntos tradicionalmente discutidos no parlamento ou em debates
entre Executivo e Legislativo.
Questões como essas impõem a um trabalho da natureza dessa dissertação que
sejam discutas a separação de Poderes, a doutrina das questões políticas e a
Judicialização da Política em âmbito mundial, nacional e local.
Com efeito, o primeiro capítulo cuida da teoria da separação dos poderes com
base em uma perspectiva histórica iniciada com John Locke, Montesquieu e a
doutrina dos Estados Unidos com os autores federalistas. Ainda nesse segmento, é
analisada a decisão da Suprema Corte dos EEUU de 1803, no caso, envolvendo o
juiz de paz nomeado William Marbury contra o Secretário de Estado James
Madison. Tal julgamento é apontado como aquele que inaugura o controle da
12
constitucionalidade das leis infraconstitucionais realizado por um órgão
jurisdicional.
O capítulo aborda, ainda, a separação entre Direito e Política tendo como
ponto de partida a Revolução Francesa, quando o papel do Poder Judicrio ficou
relegado a ser a boca da lei, ou seja, no estado burguês, houve uma neutralização
dos poderes judiciais por conta de uma profunda desconfiança dos revolucionários
em relação aos juízes. Desde o advento do Estado do Bem-Estar Social e da
conseqüente exigência de prestações positivas a cargo desse novo Ente, o papel do
Poder Judiciário assume novo rumo e o controle de constitucionalidade das leis tem
papel fundamental nessa nova etapa.
O segundo capítulo trata das questões políticas nas jurisprudências
estadunidenses e brasileiras, tema que guarda absoluta sintonia com o objeto do
presente estudo, uma vez que se abordam as decisões de natureza política tomadas
por membros do Poder Judiciário. O capítulo inicia um escorço histórico desde a
decisão Marbury v. Madison, já mencionada no capítulo anterior, e, no Brasil, trata
das decisões de um Supremo Tribunal Federal que iniciava suas atividades,
notadamente o Habeas Corpus n.º 300, impetrado pelo advogado Rui Barbosa no
ano de 1898. Cuidam-se as questões políticas de tema polêmico que teve na Águia
de Haia um dos principais autores nacionais a se dedicar com maior profundidade,
ao ponto de elaborar um rol de assuntos que seriam de competência exclusiva do
soberano e onde o Poder Judiciário não poderia se imiscuir. A parte continua com a
análise de precedentes que consolidaram o entendimento do STF sobre questões
políticas até a posição atual daquela corte em pontos como a intervenção judicial
em comissões parlamentares de inquérito ou no caso Collor.
O terceiro capítulo refere-se à Judicialização da Política com a referência aos
autores Tate e Vallinder, organizadores da obra coletiva denominada The Global
Expansion of Judicial Power que congrega trabalhos de juristas e cientistas
políticos de vários países e onde se verifica essa tendência global de aumento do
poder judicial em questões de natureza política e até mesmo a presença de decisões
judiciais em todos os aspectos cotidianos, o que pode ser denominado de
judicialização das relações sociais, como anota Luiz Werneck Vianna. Nos Estados
Unidos, país considerado o berço da Judicialização da Política, o capítulo analisa
13
algumas decisões da Suprema Corte dali, inclusive fazendo referência a Martin
Shapiro, outro estudioso da matéria.
A seção discorre, ainda, sobre a visão de Antoine Garapon, autor francês do
livro O Guardador de Promessas Justiça e Democracia, onde a realidade do
ativismo judicial dos juízes franceses é contraposta à dos julgadores de outros
países de tradição da Common Law, notadamente os Estados Unidos.
Esse capítulo faz a análise, por fim, da experiência italiana, expressa por
Mauro Cappelletti na obra Juízes Irresponsáveis? Nesse livro o Autor peninsular
expõe seus cuidados com a criação judicial do Direito e faz a ressalva de que
autores como Jeremy Bentham (1748/1832) já se ocupavam desse tema há centenas
de anos. Essa criação judicial do Direito, na opinião de Cappelletti, é inevitável e
ele se propõe encontrar os limites dessa atividade no lugar de negá-la. Apesar de
reconhecer limites, o autor é crítico daqueles que enxergam nessa atividade judicial
uma ausência de legitimidade democrática, apontando os motivos.
O quarto capítulo trata da Judicialização da Política no âmbito nacional e
local, com a referência expressa à decisões do Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará e de juízes estaduais. No plano nacional, a obra coletiva de Luiz Werneck
Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manoel Pacios Cunha Melo e Marcelo
Bauman Burgos denominada Judicialização da Política e das Relações Sociais no
Brasil analisa as decisões do Supremo Tribunal Federal em ações diretas de
inconstitucionalidade movidas pelos principais legitimados, notadamente,
Procuradoria Geral da República, governadores, partidos políticos e associações de
trabalhadores, profissionais e empresarias. Os autores analisaram as ações direta de
inconstitucionalidade (ADIns) em tramitação entre os anos de 1988 a 1998, para
reconhecer a Judicialização da Política, arrimando-se na análise dessas decisões,
mas indicam que o STF ainda age de forma tímida, apesar dessa posição se
contrapor à posição restritiva adotada antes da Constituição de 1988.
Ainda no capítulo quarto, estuda-se o papel do Ministério Público como
agente público que contribui para a Judicialização da Política representando
apenas o Procurador Geral da República 21,9% das ADIs entre os anos 1988-2008.
Da abordagem de Rogério Bastos Arantes, na obra Ministério Público e Política no
14
Brasil, extrai-se a visão messiânica que parte considerável dos membros do
Ministério Público possui em relação as suas atuações como legitimados ao uso de
ações civis públicas ou ações de improbidade administrativa.
O quinto capítulo trata da Judicialização da Política no âmbito do Município
de Fortaleza entre os anos 2000 e 2004. Pretende, pois, identificar a Judicialização
da Política com origem numa perspectiva local. Para tanto, tomando o modelo
apresentado por Tate e Vallinder, no capítulo terceiro, que vê como condições
necessárias para o surgimento da Judicialização da Política a presença da
democracia; da separação de poderes; da existência de uma política de direitos; da
utilização dos tribunais por grupos de interesses; pela oposição; da constatação da
ineficncia das instituões majoritárias pela população, e por fim, da delegação
aos tribunais de assuntos polêmicos, o apresentados decisões judiciais tomadas
em demandas judiciais movidas por partidos ou parlamentares de oposição,
Ministério Público Estadual e Federal, Conselho Seccional da Ordem dos
Advogados do Brasil/CE e por grupos de interesses contra o Município de
Fortaleza/CE.
A conclusão pretende responder ao questionamento central há pouco
apresentado, ou seja, a Judicialização da Política é legítima, democrática,
compatível com o moderno Estado de Direito? Para oferecer-lhe resposta, restam
analisados os cinco capítulos integrantes da dissertação com apresentação de
conclusões parciais de cada um.
Segue-se a relação ordenada de obras e autores que apoiaram teórica e
empiricamente as conclusões e remates aqui esposados.
15
1. A DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
1.1 Delimitação do conceito
O objetivo do presente capítulo é analisar o tema da separação dos poderes e
as implicações dessa análise em relação ao fenômeno denominado de Judicialização
da Política no âmbito do Estado brasileiro.
A unidade de idéias separação dos poderes tem ltiplas acepções e enseja
ainda hoje acirrados debates nos estudos político-jurídicos, notadamente no
contexto da discussão entre unidade e pluralidade de poderes. O texto adota a
terminologia separação e não divisão de poderes por motivos eminentemente
históricos.
De igual modo, será abordada a vigorosa expansão do papel do Poder
Judicrio na busca da concretização das promessas das constituições dirigentes.
Este incremento resulta da pressão da sociedade e descrédito de que os poderes
tradicionalmente políticos são alvo, o que institui um estado de tensão entre os
Poderes Executivo e Judicrio, com a tomada de decisões políticas por parte deste
último, invadindo ou supostamente usurpando competências que lhe eram alheias
historicamente o que se convencionou denominar de Judicialização da Política.
Desde a Grécia antiga, a separação ou divisão dos poderes entre grupos
distintos é uma fórmula usada para evitar a tirania, na medida em que, se atribuindo
funções para cada grupo ou agência de poder, as chances de concentração em
pessoa única ou centro de decisão tenderiam a desaparecer. O filósofo Aristóteles
já distinguia no Estado três poderes principais: a) o que delibera sobre os negócios
do Estado; b) o que compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos; c)
o que abrange as tarefas da jurisdição.
1
Para os fins do presente capítulo, entretanto, interessam mais os pensamentos
políticos seiscentista e setecentista que mais inovaram em relação aos precursores,
nos quais é possível identificar três sistemas que se ocupam das formas de governo:
i) Teoria do Governo Misto; ii) Teoria do Governo Equilibrado e iii) Teoria da
1
MORAIS FILHO, J.F.; SOUZA NETO, C.P.; LIMA, M.M.B. Teoria da Constituição: estudos
sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.154.
16
Separação dos Poderes Pura.
A primeira forma Teoria do Governo Misto sugere que a melhor forma de
governo é aquela que combina as diferentes modalidades de governo (monarquia,
aristocracia e democracia), com supedâneo na existência de três corpos: do
monarca, o dos aristocratas e o do povo.
2
. Nessa forma de governo, não há
separação em funções, pois se acredita que o poder repartido, por si , limita o poder
absoluto.
A Teoria do Governo Equilibrado trouxe a idéia de que os poderes, além de
serem repartidos em potências parecidas, deveriam controlar um ao outro
3
, mas a
divisão ainda se mantinha pela existência das forças politicamente organizadas
(monarca, Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns).
A Teoria da Separação de Poderes Pura traz uma inovação no que concerne às
duas outras teorias, a de que cada poder deveria possuir uma função específica e
que não poderia cada um invadir as atribuições do outro e proibindo uma pessoa
(ou pessoas) ocupar cargos em dois dos poderes.
Os autores cssicos que tratam do tema separação ou divisão dos poderes
Locke, Montesquieu e federalistas partem dessas teorias:
[...] é o amálgama entre as três teorias (separação de poderes, governo
misto e governo equilibrado) que proporciona o surgimento, nas figuras
de Locke, Montesquieu e dos Federalistas, da teoria da separação parcial
de poderes, na qual é permitido certo grau de compartilhamento
funcional, especialmente na função legislativa, isto é, por exemplo, um
outro poder (o Executivo) também dispõe de atribuições legislativas,
como o veto. O resultado desse compartilhamento inscreve-se na
perspectiva da teoria do governo equilibrado, em que um poder controla o
outro. Tal compartilhamento funcional, entretanto, não é principalmente
positivo. É enviesado, no sentido de cumprir uma determinação: ser um
procedimento de freio e contrapeso.
4
1.2 Separação dos poderes em John Locke
Nos estudos sobre a Moral e a Política, John Locke reconhece a precedência
de Estado de natureza em relação ao Estado civilizado, com regras preestabelecidas
2
GROHMANN, Luis Gustavo Mello. A separação de poderes em países presidencialistas: a
América Latina em perspectiva comparada. Revista de Sociologia e Política, n. 17, p. 75-106,
nov. 2001, p. 76.
3
Id. idib. 2001, p. 76.
4
Id. Ibid. 2001, p. 78.
17
e onde cada indivíduo abre mão de ser o senhor absoluto de sua própria pessoa e
suas posses
5
e passa a submeter-se ao controle de outro poder, constituído em uma
sociedade potica.
A finalidade da renúncia à total liberdade que deveria reinar no Estado de
natureza é justificada por Locke diante da necessidade de conservar a propriedade:
É assim que os homens não obstante todos os privilégios do estado de
natureza , dada a má condição em que nele vivem, rapidamente são
levados a se unirem em sociedade. Donde se segue que raramente vemos
um grupo de homens vivendo nesse estado. As inconveniências a que se
vêem expostos em razão do exercício irregular e incerto do poder que
cada um tem de castigar as transgressões de terceiros impelem-nos a se
refugiarem sob as leis estabelecidas de um governo e a nele buscarem a
conservação de sua propriedade.
6
A análise do pensamento de John Locke indica que são três os poderes do
Estado: Legislativo, poder supremo de cada Estado, responsável pela elaboração de
leis e delegação da execução da justiça; Executivo, cujas atribuões podem ser
resumidas em convocar e estabelecer a duração das reuniões do Legislativo,
modificar a base de constituão do corpo Legislativo, bem como agir livremente
onde a lei não exista podendo expedir legislação ou atuar contrariamente à lei
vigente, independentemente da aprovação do Legislativo
7
e, por fim, o Poder
Federativo que tem como atribuição o relacionamento com outras nações, Estados
ou pessoas estrangeiras.
Como se verifica da classificação de Locke, não há preocupação com a
limitação entre os poderes, pois somente o Executivo detém prerrogativa que se
assemelha a um controle entre poderes. Esse privilégio se justifica porque
há muitas coisas que a lei não pode prover de maneira alguma, e essas
devem necessariamente ser deixadas ao discernimento daqueles que
detém o poder executivo em suas mãos, para ser bem reguladas por ele da
forma como o exijam o proveito e bem público.
8
É importante destacar o momento histórico que permitiu a Locke produzir suas
idéias: o liberalismo. O Poder Legislativo - responsável pela elaboração de leis e
delegação da execução da justiça era composto pelos proprietários e não pelos
5
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fonte, 1998. p.494.
6
Id. ibid. 1998. p.497.
7
GROHMANN, Luís Gustavo Mello. op. cit. 2001, p. 78.
8
LOCKE, John. op. cit. 2001, p. 80.
18
miseráveis que representavam apenas instrumentos de produção. A essa classe de
pessoas não era sequer pensada a concessão de direitos políticos. Sobre esse tema,
Domenico Losurdo expõe de forma clara a visão dos liberais daquela época:
Que sentido teria conceder direitos políticos àqueles que por causa da
natureza e inalterável estado de coisas neste mundo estão destinados é
Locke quem se expressa nestes termos a permanecer no nível de uma
besta de carga puxada para frente ou para trás pelo mercado, numa trilha
restrita e num caminho sujo, e que são separados dos homens das classes
superiores por uma distância maior do que aquela entre alguns homens e
alguns animais?
9
A defesa da propriedade privada no pensamento dos liberais, notadamente
Locke, é levada ao extremo e o não-proprietário a besta de carga não integrava,
obviamente, o Parlamento. Um ataque à propriedade privada justificaria
não só medidas excepcionais, mas uma espécie de guerra total, tanto que
seus responsáveis merecem ser tratados como qualquer animal feroz ou
bruto nocivo com o qual o gênero humano não pode ter relações de
sociedade e segurança.
10
1.3. Separação dos poderes em Montesquieu
O Barão de Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, ou simplesmente Charles de
Montesquieu, senhor de La Brède), dos autores clássicos que trataram do tema da
separação dos poderes, foi o que mais fama granjeou e mais influência espalhou,
seja entre os próprios franceses, seja entre os estadunidenses ou ingleses, com a
publicação da obra O Espírito das Leis, em 1748, apesar de aconselhado a não
publicar esse livro por causa de defeitos apontados pelo comitê de amigos cultos
da época.
A classificação de Montesquieu acerca dos poderes do Estado é a seguinte:
Legislativo, que fazia as leis; Poder Executivo, das coisas que dependam do Direito
das Gentes (paz, guerra, segurança), que é o Poder Executivo do Estado e, por fim,
o Poder Executivo, das coisas que dependem do Direito Civil (punição de
criminosos, julgamento de conflitos de interesses), a saber, o poder de julgar.
O autor, considerando que é próprio da natureza humana abusar dos poderes
de que dispõe, toma por base essa peculiaridade para propor a separação dos
9
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Rio
de Janeiro: UNESP, 2004. p. 46.
10
Id.ibid. 2004. p. 109.
19
poderes, com a idéia de que um poder tem capacidade de barrar ao outro de modo
a forçar um acordo, e vice-versa, criando a moderação nas decisões e gestão do
Estado, o que acabava esse arranjo por forçar os integrantes dos poderes a
caminhar para um acordo, do contrário o resultado poderia ser a paralisia
11
Afinal,
Montesquieu via na divisão dos poderes mu ito mais um preceito de arte política do
que um princípio jurídico
12
O autor de O Espírito das Leis inova em relação a Locke ao tratar da
possibilidade de um poder controlar o outro e esses controles seriam na lição de
Luis Gustavo Melo Grohmann: i) o veto do Executivo sobre o Legislativo e ii) a
compensar a impossibilidade do veto do Legislativo sobre o Executivo, a
capacidade que aquele teria de punir os funcionários deste poder. É importante
ressaltar, no entanto, que a doutrina da separação de poderes tem viés liberal, na
medida em que se tratava de estratagema para impedir a concentração do poder na
pessoa do rei em detrimento dos interesses dos ricos, senhores de propriedades, ou
seja, a separação de poderes, assim, não era invocada em nome do povo, mas da
elite que se opunha ao Estado. O cidadão a que se refere o Barão de Montesquieu
não é a imensa massa sem rosto denominada povo:
A liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que
provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se
tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não
possa temer outro cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo
de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não
existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo
senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe
liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do
executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e
a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se
estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um
opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo
dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de
fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes
ou as querelas entre os particulares.
13
Em verdade, toda a história do Estado Liberal, destaca Bobbio, é a busca
incessante da realização do princípio da limitação do poder, uma obsessão liberal.
11
GROHMANN, Luís Gustavo Mello. op. cit. 2001, p.80.
12
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em
decadência? Revista USP. São Paulo. Dossiê Judiciário nº 21, mar/abr/mai de 1994, p. 93.
13
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espítito das leis. São Paulo: Martins
Fontes, 1993, Livro XI, capítulo VI.
20
Esse controle de um poder em relação ao outro remete ao tema da relação entre
poder e direito, discussão travada entre dois pontos de vista: de um lado aqueles
que admitem a preexistência do poder (soberania, sumo poder) em relação ao
direito ou à ordem jurídica, que não existiria sem um poder que a mantivesse viva
(Bobbio). Em contraposição a esse ponto de vista, existem aqueles que reduzem o
Estado a uma ordem jurídica, ou seja, antes existe o direito e depois o poder,
aquele controlando este, aquele domesticando este último, a teoria normativista de
Kelsen. E opina Bobbio sobre o assunto:
Contudo, que se trate apenas de dois pontos de vista distintos, que não
eliminam a ligação indissolúvel dos dois conceitos, pode ser provado pelo
fato de que o problema fundamental dos teóricos da soberania sempre foi
apresentá-la não como um simples poder, como um poder de fato, mas
como um poder de direito, isto é, como um poder também ele autorizado
e regulado, como os poderes inferiores, por uma norma superior, seja esta
de origem divina, seja uma lei natural ou então uma lei fundamental (hoje
diríamos constitucional), derivada da tradição ou de direito
consuetudinário. O problema fundamental do normativista, ao contrário, é
mostrar que um sistema normativo pode ser considerado direito positivo
apenas se existirem, em rias instâncias, órgãos dotados de poder
capazes de fazer respeitar as normas que o compõem. O poder sem direito
é cego, mas o direito sem poder é vazio.
14
O tema da domesticação do poder ou seja, a submissão da Potica ao Direito
, origina-se nas revoluções francesa e estadunidense quando se pretendeu superar
a dicotomia entre Estado e sociedade civil, passando o poder a pertencer ao povo e
a legitimação a ocorrer na forma da representação. Nesse contexto consolidam-se a
Teoria da Separação dos Poderes e a Teoria da Soberania Popular, bem como a
forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático. Nas palavras
de Luiz Moreira, Essas restrições tinham como propósito limitar o arbítrio estatal,
garantindo o fortalecimento das demais esferas de modo a fortalecer a sociedade
civil e assegurar legitimidade material e formal às ordenações estatais.
15
O principal instrumento moderno de domesticação do poder é o controle
jurisdicional da constitucionalidade das leis, realizada por um órgão integrante do
Poder Judiciário, como sucede no Brasil, ou tribunais constitucionais, como é o
modelo europeu. O alemão Carl Schmitt, escrevendo no período entre guerras e
referindo-se à situação da República de Weimar, criticou o liberalismo e repudiou o
14
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. 12. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 239-
240.
15
MOREIRA, Luiz. Sobre a reeleição. Disponível em <www.gomesuchoua.adv.br/publicacoes
/Sobre%20a%20reelei%C3%A7%C3%A3o.pdf> Acesso em: 15 de maio de 2008.
21
controle jurisdicional, argumentando que esse tipo de controle jurisdicional
caracteriza um Estado Judicialista onde a política fosse submetida ao controle dos
tribunais. De acordo com Bercovicci, muito da resistência de Carl Scmitt ao
controle judicial de constitucionalidade está ligado à sua concepção de
Constituição. A constituição é válida, para Scmitt, quando proveniente de um
poder constituinte e estabelecida por sua vontade.
16
Em outras palavras, a
essência da Constituão é a vontade potica do poder constituinte.
O controle da constitucionalidade realizado pelo Parlamento, de igual modo,
recebe crítica de Schmitt, haja vista que a composição fragmentária dos integrantes
do Poder Legislativo impede o surgimento de uma força que se ponha acima das
forças que debatem no Parlamento. Segundo Bercovicci, referindo-se à Schmitt,
[...] a fé no parlamentarismo é fruto do liberalismo, não da democracia. A
característica essencial da democracia, segundo Carl Schmitt, é a
homogeneidade do povo. A democracia de massas tenta realizar a
identidade entre governantes e governados, provocando o fim do
dualismo liberal entre Estado e Sociedade: o Estado passa a ser a auto-
organização da sociedade.
17
Essa concepção de Schmitt demonstra sua preferência por um Estado
Decisionista em contraposição a um Estado Deliberativista, porquanto o
deliberativismo praticado no Parlamento, onde representantes de parcialidades
defenderiam interesses de grupos diferentes, jamais resolveria a crise da Alemanha
de Weimar, às vésperas da subida ao poder do Partido Nacional-Socialista Aleo
dos Trabalhadores. De outro lado, o decisionismo político seria a exclusão da
tomada das decisões de todos os outros agentes sociais - como os partidos políticos
-, fruto de uma reflexão antidemocrática, mas necessária, na sua óptica, para
manutenção de um Estado forte.
Negado que foi ao Parlamento e ao Judiciário o papel de responsável pelo
controle da constitucionalidade, a teoria de Schmitt aponta o presidente do Reich
como guardião da Constituão porque eleito diretamente por todo o povo alemão,
ou seja, o Presidente era o centro de um sistema plebiscitário e capaz de fazer
frente ao pluralismo dos grupos sociais e econômicos representados no
16
BERCOVICCI. Gilberto. Carl Schmitt, o Estado total e o guardião da Constituição. Revista
Brasileira de Direito Constitucional. São Paulo, nº 1, jan./jun. 2003, p. 196.
17
Id. ibid. p. 197.
22
Parlamento.
18
O presidente do Reich era o garante da Constituição e da unidade
do povo alemão. Cuida essa teoria (de privilegiar o Poder Presidencial em
detrimento do Poder Parlamentar) de uma visão conservadora de Estado que
contribuiu para a derrocada do sistema que antecedeu aos horrores do nazismo.
Sobre o controle da constitucionalidade e quem deva figurar como guardião da
Constituição, é importante mencionar o fato de que mais importante do que saber se
o controle deva ser realizado pelo cortes de justiça, membros do Parlamento ou
presidentes, é evitar que esse controlador/guardo passe a sentir-se senhor da
Constituição e não seu guardião.
1.4 Separação dos poderes na doutrina norte-americana
1.4.1 Os federalistas
Os federalistas
19
foram responsáveis pela instituição do primeiro governo
baseado na separação de poderes, quando do movimento que culminou com a
primeira Constituição Republicana, nos Estados Unidos, em 1787. É curioso
destacar, no entanto, não constar no Texto Constitucional uma explícita separação
sistemática das competências legislativa e administrativa porque
a preocupação da Comissão Redatora da Constituição de 1787 foi bem
mais genérica, no sentido fundamental de repartir objetiva e
taxativamente quais matérias ou temas in concreto seriam objeto de
competência da União Federal, em oposição às matérias ou temas in
concreto que seriam objeto de competência dos Estados-Membros.
20
Os autores federalistas, notadamente Madison, entendiam necessária a
absoluta separação dos poderes em corpos diferenciados, cada qual com suas
atribuições e funções, ou seja, na esteira dos demais pensadores que os
antecederam; compreendiam que o poder o deveria ser concentrado na o de
uma mesma pessoa
21
, sob pena de se estar caracterizada uma tirania.
18
BERCOVICCI, Gilberto. op. cit. 2003, p. 198.
19
Alexander Hamilton (1757-1804), James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829).
20
RODRIGUES, Itiberê Oliveira. Fundamentos dogmático-jurídicos do sistema de repartição das
competências legislativa e administrativa na Constituição Federal de 1988. Revista Diálogo
Jurídico. n.15, p. 1-34, Salvador, jan.-mar. 2007. Disponível em: <http://www.direitopublico.
com.br/pdf/itibere.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2008.
21
Madison ainda destaca que para o perfeito funcionamento desse sistema dois elementos eram
vitais, ou seja, independência financeira ao poder e remuneração condizente para os exercentes
dos cargos.
23
Nota característica e ponto de inovação do pensamento dos federalistas diz
respeito à posição de centralidade que o povo deve exercer na república que nascia,
ou seja,
o gênio republicano exige não somente que o poder emane sempre do
povo, mas também que aqueles a quem o poder é confiado estejam sempre
na dependência do povo, tanto pela curta duração dos seus cargos quanto
pelo grande número dos depositários do poder público.
22
A presença da vontade popular na escolha dos representantes dos poderes, no
entanto, já naquela época, foi objeto de limitação em relação aos membros do Poder
Judicrio, dado o caráter técnico de quem deveria exercê-lo, os magistrados.
A experiência ianque também se distancia do contexto de Montesquieu porque
a sociedade estamental que sustentava a divisão de poderes não estava
mais disponível. Ao contrário, a revolução norte-americana havia
afirmado o princípio da igualdade perante a lei, abolindo os títulos de
nobreza e forjando uma sociedade liberal.
23
Apesar da posição de centralidade que o povo exercia no modelo dos
federalistas, na Convenção da Filadélfia, cuidavam-se eles próprios de
representantes das conias com visão conservadora:
[...] a Convenção convocada para a Filadélfia é quase exclusivamente
composta de homens extremamente conservadores, os quais trabalhando
em rigoroso segredo e indo muito além do mandato recebido, que prevê
apenas uma obra de reforma dos Artigos da Confederação, elaboraram
um texto constitucional totalmente novo, reforçando enormemente o
poder central.
24
Domenico Losurdo aponta o resultado da Convenção da Filadélfia como um
coup d´Etat, onde, haja vista que houve uma reforma da Constituição sem o
consenso dos Estados signatários para sua reforma, os protagonistas
da Convenção da Filadélfia se preocupavam não em agradar o país, mas
salvá-lo. Isto é: a virada político-constitucional não estava legitimada
nem pela ordem jurídica existente, nem pelo apelo à soberania popular,
mas pela absoluta necessidade de poupar ao país os ataques à
propriedade, o caos e a anarquia que sobre ele pendiam
ameaçadoramente.
25
22
MORAIS FILHO, J.F.; SOUZA NETO, C.P.; LIMA, M.M.B . op. cit. 2003, p.157.
23
MAUES, Antônio Gomes Moreira. Instrumentos de democracia direta e divisão de poderes
no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 63.
24
LOSURDO, Domenico. op. cit. 2004, p. 98.
25
LOSURDO, Domenico. op. cit. 2004, p. 98.
24
1.4.2 O caso Marbury x Madison
A decisão da Suprema Corte dos EEUU proferida em 1803, no caso
envolvendo o juiz de paz nomeado William Marbury contra o secretário de Estado
James Madison, é o marco inicial do controle de constitucionalidade das leis
infraconstitucionais em face da Constituição, por meio de decisão do Poder
Judicrio.
Com efeito, John Adams, presidente federalista, nomeou em 1801, no apagar
das luzes de seu governo, vários juízes de paz. Essa nomeação consistia na decisão
política do Presidente de nomear após confirmação do Senado e da entrega de
diploma, a cargo do Secretário de Estado. Entre a indicação e entrega do diploma
do indicado Marbury, assumiu a presidência Thomas Jefferson e este indica James
Madison para o cargo de Secretário de Estado, que por sua vez, se nega a entregar o
diploma ao indicado pelo presidente John Adams.
O interessado ajuizou um writ perante a Suprema Corte, invocando o
Judiciary Act de 1789, uma lei que estruturou o sistema judiciário federal, inclusive
a Suprem Court e que reconhecia, dentre outras atribuições, a jurisdição dessa corte
para tratar de assuntos relacionados à nomeação de pessoas para cortes judiciais.
A decisão de Marshall, no entanto, foi pela desobrigação da entrega do
diploma (comission) a William Marbury indicado, repita-se, para juiz de paz
sob o argumento de que o Judiciary Act havia inovado em relação ao artigo III,
seção II da Constituição, que só tratava de conceder competência à Suprema Corte
quando figuravam como partes embaixadores, cônsules e ministros, do que não se
tratava.
A justificar ao Poder Judiciário exercer esse controle de constitucionalidade,
Marshall,
ao interpretar a seção II, onde diz The Judicial power shall extend to all
cases [...] arising under this Constitution, define que ela significa que o
poder judicial pode ser exercido em todos os casos em que haja uma
questão de constitucionalidade.
26
26
PAMPLONA, Danielle Anne. O processo de decisão de questões políticas pelo Supremo
Tribunal Federal: a postura do juiz. Tese. (Doutorado em Direito). Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2006, p.63, mimeo.
25
Estava criado, com origem em uma causa aparentemente banal, o controle
difuso da constitucionalidade.
Do ponto de vista político, o caso Marbury v. Madison representa uma reação
da Suprema Corte contra o projeto revolucionário de Thomas Jefferson, que possuía
visão oposta aos federalistas, ou seja, que o povo deveria ser “protegido de si
mesmo, e que, portanto, a constituição existia também contra a vontade popular do
momento.
27
Vale ressaltar que o juiz Marshall foi o Secretário de Estado do
Presidente John Adams e fora nomeado no final do mandato como Chief Justice, o
que demonstra a atmosfera hostil em relação ao novo presidente, Jefferson. Para
Thomas Jefferson, o povo é responsável por seus atos e o rule of law não pode
substituir o princípio republicano do governo da maioria
28
e um Estado de Direito
sem vontade popular é considerado tirania dos tribunais.
A decisão do caso Marbury fortalece sobremaneira o Poder Judicrio dos
EEUU que, a partir daquele momento em diante, também declara a opinião do povo,
ou seja,com a supremacia da Suprema Corte nos Estados Unidos, chega-se ao
fenômeno da corte se arrogar ser a representante da opinião do povo
29
, afastando
ou diminuindo a importância do poder constituinte ou da soberania popular
naquelas plagas.
Com esse quadro de fortalecimento da Corte, tem-se o bonapartismo no
âmbito do Poder Judiciário, ou seja, além de haver uma desautorização dos dois
outros poderes em detrimento da decisão judicial, a Suprema Corte se apresenta
como se fosse um Messias que pode conduzir os destinos do país. Nesse contexto,
deve-se entender a expressão bonapartismo como
forma de governo em que é desautorizado o poder legislativo, ou seja, o
Parlamento, que no Estado democrático representativo, criado pela
burguesia, constitui normalmente o poder primário, e em que se efetua a
subordinação de todo o poder ao executivo, dirigido por um grande
personagem carismático, que se apresenta como representante direto da
nação, como garante da ordem pública e como árbitro imparcial diante
dos interesses contratantes das classes.
30
27
BERCOVICCI, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p.179.
28
Id. ibid. p. 179.
29
Id. ibid .p. 180.
30
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 4.
ed. Brasília: EDUNB, 1992, p. 83.
26
1.5 Poder Judiciário: lugar na Teoria da Separação dos Poderes
A teoria clássica da Separação dos Poderes foi responsável pela separação
entre Política e Direito. O Poder Judiciário que emerge da Revolução Francesa é
limitado pelas disposições da Constituição Francesa de 179, ao dispor que oo
poder judicrio não pode ser exercido pelo corpo legislativo, nem pelo rei” e que
os “tribunais não podem se imiscuir no exercício do poder legislativo, nem
suspender a execução das leis (artigos 1º, capítulo V e artigo 3º, capítulo 1º), ou
seja, o Estado que nasce da Revolução Francesa é responsável pela neutralização do
Poder Judiciário.
Essa neutralização é fruto do movimento revolucionário de 1789, como se lê
em passagem de um clássico da Revolução Francesa:
A virtude do poder judiciário, quando ele permanece inteiro e forte, está
em suprir todos os outros; e a ele, nenhum supre. Ele foi o sustentáculo, o
recurso de nossa antiga França, em suas mais terríveis crises. No século
XIV e XVI, manteve-se imutável e firme, de modo que, na tempestade, a
pátria quase perdida se reconhecia, se reencontrava sempre no santuário
inviolável da justiça civil. Não, o povo não pode se fiar no poder
judiciário.
31
O estilo rontico se justifica por se tratar de texto escrito entre 1833 e 1867,
mas confere uma dimensão próxima do sentimento do povo em relação ao Poder
Judicrio e a justificativa para mantê-lo fraco, neutro, la bouche de la loi. Com
efeito, a neutralização do Judiciário é uma das peças importantes na caracterização
do estado de direito burguês. Ela se torna, no correr do século XIX, a pedra angular
dos sistemas políticos desenvolvidos.
32
É importante anotar que essa neutralização não tem o significado de
alheamento, mas gerar uma indiferença controlada, ou seja, estabelecer uma
relação em que a indiferença é garantida contra expectativas de influência.
33
Com o advento do Estado do Bem-Estar Social, as prestações positivas
(sociais) impuseram uma expansão das atribuições do Poder Judiciário uma vez que
sua concretização carecia de sua intervenção:
31
MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003,
p. 185.
32
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. op. cit. 1994, p. 22.
33
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. op. cit. 1994, p. 22.
27
Os direitos sociais, produto típico do estado do bem-estar social, não são,
pois, conhecidamente, somente normativos, na forma de um a priori
formal, mas têm um sentido promocional prospectivo, colocando-se como
exigência de implementação. Isto altera a função do Poder Judiciário, ao
qual, perante eles ou perante a sua violação, não cumpre apenas julgar no
sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei
(responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas
também e, sobretudo examinar se o exercício discricionário do poder de
legislar conduz à concretização dos resultados objetivados
(responsabilidade finalística do juiz que, de certa forma, o repolitiza).
34
Após a democratização e o fortalecimento do Estado, com a intervenção mais
efetiva no campo social e econômico, o papel do Poder Judiciário assume contornos
diferentes da posição neutra anteriormente imposta pelo sistema político. Nessa
nova realidade, o principal mecanismo que se afirma para conter o abuso do poder
pela maioria governante é o controle de constitucionalidade das leis.
35
Hans Kelsen teve papel fundamental na criação da Corte Constitucional
Austríaca, responsável pelo controle de constitucionalidade dos atos do Legislativo
e do Executivo. Esse modelo concentrado depois foi seguido por diversas cartas
européias (Espanha, Itália) e hoje está presente em grande parte das constituições
ocidentais.
É tema de acirradas discussões o controle de constitucionalidade das leis e
atos normativos, e merece breve digressão histórica o debate travado entre Hans
Kelsen e Carl Schmitt acerca de quem deveria ser o guardião da Constituão,
aquele defendendo o controle jurisdicional da Constituição e este último autor
apontando para o presidente do Reich Alemão como o único legitimado a
desempenhar esse papel de controle da constitucionalidade, por ter sido eleito pela
totalidade do povo. O contexto onde se desenrola essa polêmica pública foi a
República de Weimar (Alemanha), tendo a tese de Schmitt aparecido pela primeira
vez em março de 1929 e a resposta de Kelsen publicada pela primeira vez no
volume 6 (1930-1930) do perdico denominado Die Justiz.
Para o professor de Direito Público Carl Schmitt, o controle judicial de
constitucionalidade só poderia existir em um Estado Judicialista (Justizstaat ou
Jurisdiktionsstaat), em que toda a vida política fosse submetida ao controle dos
34
FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em
decadência? Revista USP. São Paulo. Dossiê Judiciário nº 21, mar/abr./mai de 1994.
35
MAUES, Antônio Gomes Moreira. Instrumentos de democracia direta e divisão de poderes
no Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar.2006.p.52.
28
tribunais
36
, ou seja, um Estado regulado em toda a sua extensão por juízes, onde a
conseqüência seria não a Judicialização da Política, mas a politização da justiça,
alerta Bercovicci. Com efeito, partindo da teoria de Benjamin Constant do pouvoir
neutre, intermediaire e regulateur, o publicista
37
constrói um arcabouço teórico
para justificar o presidente do Reich como o guardião da Constituição e concluir:
O fato do Presidente do Reich ser o guardião da Constituição
corresponde, porém, apenas também ao princípio democrático, sobre o
qual se baseia a Constituição de Weimar. O Presidente do Reich é eleito
pela totalidade do povo alemão e seus poderes políticos perante as
instâncias legislativas (especialmente dissolução do parlamento do Reich
e instituição de um plebiscito)o, pela natureza dos fatos, apenas um
apelo ao povo. Por tornar o Presidente do Reich o centro de um sistema
de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-
partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar,
justamente a partir dos princípios democráticos, um contrapeso para o
pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a
unidade do povo como uma totalidade política.
38
O professor Hans Kelsen opôs-se com vigor à concepção de Schmitt e começa
criticando a utilização de uma doutrina aplicável a monarquias constitucionais a
uma situação completamente diferente, ou seja, o presidente do Reich, um Estado
republicano, como a doutrina do poder neutro de Benjamin Constant.
De igual modo, Kelsen levanta uma questão, ao criticar a idéia de Schmitt de
que o presidente do Reich seria o legitimado para controlar a Constituição,
invocando um princípio jurídico básico, ou seja, ninguém pode ser o juiz da sua
própria causa:
[...] caso se deva mesmo criar uma instituição através da qual seja
controlada a conformidade à Constituição de certos atos do Estado
36
BERCOVICCI, Gilberto. op. cit. 2003, p. 196.
37
PODER NEUTRO nas palavras de Carl Schmitt: As divergências de opinião e diferenças entre
os titulares de direitos políticos de decisão e influência não podem ser decididas, no geral,
judicialmente, caso não seja exatamente o caso de punições por violações constituci onais abertas.
Elas são eliminadas ou por meio de um poder político mais forte situado acima das opiniões
divergentes, isto é, por intermédio de um terceiro superior - mas isso não seria, então, o guardião
da Constituição, e, sim, o senhor soberano do Estado, ou então são conciliadas ou resolvidas por
meio de um órgão não em relação de subordinação, mas de coordenação, isto é, por meio de um
terceiro neutro - este é o sentido de um poder neutro, de um pouvoir neutre ET intermédiaire,
localizado não acima, e, sim, ao lado dos outros poderes constitucionais, mas dotado de poderes e
possibilidades de ação singulares. (SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de
Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey. 2007 p. 193).
38
Id. ibid. p. 233/234.
29
particularmente do Parlamento e do Governo , tal controle não deve ser
confiado a um dos órgãos cujos atos devem ser controlados.
39
Um ponto omisso da discussão entre os dois publicistas alemães diz respeito
ao Judiciário como produtor de conflito, ou seja,
[...] se é verdade que, à época que Kelsen escreveu Quem deve ser..., o
exemplo do court placking plan de Roosevelt contra a Suprema Corte
dos Estados Unidos da América ainda não tinha surgido, tampouco havia
se dado em toda a sua intensidade, não há como esquecer, há história, o
papel da Suprema Corte na sangrenta luta pela igualdade racial desde
1857, com o julgamento Dredd Scott v e seu papel de policy maker.
40
Esse ponto pretende demonstrar somente a tensão que surge entre os poderes
do Estado após o ingresso do Poder Judicrio no palco das decisões políticas, o
que se convencionou modernamente chamar de Judicialização da Política.
Em resumo, a separação dos poderes é tema polêmico que remonta à Grécia
antiga, mas se mantém na pauta das discussões até os dias de hoje, tendo havido
releituras em John Locke, Montesquieu e nos federalistas.
O papel desempenhado pelo Poder Judiciário com origem na Revolução
Francesa até os dias de hoje, passando pela Áustria de Kelsen, vai da neutralidade
até o ativismo jurídico dos petit judges franceses.
Essa tetica da separação dos poderes, com o novo papel desempenhado pelo
Poder Judiciário, é denominada de Judicialização da Política, que trata do processo
pelo qual os juízes e tribunais influenciam ou determinam as políticas públicas
previamente previstas em atos do Poder Legislativo ou Poder Executivo, expresso
de outra forma, é uma reação do Judiciário diante da provocação de um terceiro e
tem por finalidade revisar a decisão de um poder potico, tomando como base a
Constituição.
41
Esse fenômeno tem amplitude global e é estudado do ponto de vista do Direito
comparado e, individualmente, em cada país onde se verifica sua existência. No
39
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Tradução de Alexandre Krug. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 240.
40
BARRETO LIMA, Martonio MontAlverne. A guarda da Constituição em Hans Kelsen. Revista
Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, nº 01, jan./jun. 2003, p. 205.
41
CARVALHO, Ernani Rodrigues. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos
para uma nova abordagem. Revista Sociol. Polit. [on line], n. 23, p.127-139, nov. 2004.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rscop/n23/24626.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2006.
30
Brasil, há uma visão que reconhece a Judicialização da Política, mas não acredita
que o Direito venha a substituir a política, com uma radicalização de dessa posição
do Poder Judiciário em relação aos demais Poderes.
De outro lado, há autores, como Bastos Arantes
42
, que creditam esse
fenômeno da Judicialização da Política ao protagonismo dos membros do
Ministério Público que, se estribando em uma premissa falsa hipossuficiência da
população brasileira , pretendem utilizar o Poder Judicrio na conquista de espaço
institucional. A visão dos críticos dessa posição ideológica prefere privilegiar a
separação de poderes, a fim de manter o predomínio de decisões políticas tomadas
por parte de representantes eleitos pelo povo, com limitação à atuação do Poder
Judicrio ante as decisões políticas dos Poderes Executivo e Legislativo.
42
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: FAPESP/
EDUC, 2002.
30
2 AS QUESTÕES POLÍTICAS NA JURISPRUDÊNCIA
2.1 Delimitação do conceito
O tema das questões poticas guarda conexão com o objeto do presente
trabalho ao se pretender demonstrar que o Poder Judiciário não pode invadir esfera
de competência privativa do Poder Executivo, notadamente em matéria de natureza
política, porque os representantes daquele poder não detêm a legitimidade do voto
popular, sendo-lhes vedado fazer escolhas pertencentes à esfera tipicamente da
Administração Pública.
A doutrina das questões políticas é objeto naturalmente pomico e até a
terminologia é polissêmica, havendo dificuldades para delimitar até onde a questão
é jurídica e, de igual modo, se determinadas questões são poticas ou não. Em
verdade, cuida-se a discussão até mais ampla de saber os limites entre o Direito e a
Política ou a domesticação do poder pelo Direito.
A doutrina das questões políticas teve início no Direito estadunidense, com a
decisão do Chief Justice John Marshall no caso Marbury x Madison, de 1803, já
mencionado no item precedente 2.4.2., onde ficou assentado que, se por um lado, o
Poder Judiciário está autorizado a reconhecer a nulidade de atos da legislatura,
quando contrários à Constituição, por outro, não lhe é lícito ingressar no campo da
política.
1
O fundamento da decisão de Marshall proveio do entendimento de que existem
alguns atos praticados pelo titular do Poder Executivo que não dizem respeito aos
direitos individuais, mas, sim e tão-somente, aos interesses do Estado-Nação, que
será em última instância quem julgará seu presidente. Essa razão de decidir vale
ressaltar, aplica-se, de igual modo, às ações dos auxiliares do chefe do Executivo,
1
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. A doutrina das questões políticas no Supremo Tribunal
Federal. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2005, p.25.
31
quando sob suas ordens. O tema será retomado no item específico.
No Brasil, a introdução do tema das questões poticas coube a Rui Barbosa,
no alvorecer da República, quando do julgamento do Habeas corpus n.º 300, de
1892, que pretendia a libertação de 46 pessoas senadores, deputados, marechais,
coronéis, civis e até o poeta Olavo Bilac que se opunham a Floriano Peixoto
porque este se recusava a convocar eleições presidenciais após a renúncia de
Deodoro da Fonseca, como previa o art. 42 da Constituição de 1891, quando se
dava a renúncia antes de decorrido o prazo de dois anos do período presidencial. O
Habeas Corpus n.º 300 e outros casos de igual importância serão apreciados no
tópico seguinte, que trata da jurisprudência sobre questões políticas.
Coube a Rui Barbosa, de igual modo, delimitar pela primeira vez em que
consistia uma questão política, apresentando uma lista
2
das matérias que seriam
sujeitas somente à vontade (poder discricionário) dos chefes do Executivo e
Legislativo, prática que já foi comum na Argentina e nos Estados Unidos, mas que
nos dias de hoje o tem mais a força que possuía na República Velha, como
ensina Teixeira:
Esse expediente de catalogação de assuntos abrangidos pela doutrina das
questões políticas, no entanto, gradativamente tem perdido prestígio, na
medida em que, como observa Bonavides, não é possível mais demarcar,
numa esfera autônoma, as questões políticas, para efeito de evitar o
controle de constitucionalidade. Com efeito, no Estado social
contemporâneo, os direitos individuais se politizaram e as regras que
antes serviam para estabelecer a fronteira entre o indivíduo e o Estado
se afrouxaram.
3
Uma visão mais atualizada da doutrina das questões políticas é apresentada
2
1) A declaração da guerra e a celebração da paz. 2. A mantença e direção das relações
diplomáticas. 3. A verificação dos poderes dos representantes dos governos estrangeiros. 4. A
celebração e rescisão de tratados. 5. O reconhecimento da independência, soberania e governo de
outros países. 6. A fixação das extremas do país com os seus vizinhos. 7. O regime de comércio
internacional. 8. O comando e disposição das forças militares. 9. A convocação e mobilização da
milícia. 10. O reconhecimento do governo legítimo nos Estados quando contestado entre duas
parcialidades. 11. A apreciação nos governos estaduais, da forma republicana, exigida pela
Constituição. 12. A fixação das relações entre a União ou os Estados e as tribos indígenas. 13. O
regime tributário. 14. A adoção de medidas protecionistas. 15. A distribuição orçamentária da
despesa. 16. A admissão de um Estado à União. 17. A declaração da existência do estado de
insurreição. 18. O restabelecimento da paz nos Estados insurgentes e reconstrução neles da ordem
federal. 19. O provimento dos cargos federais. 20. O exercício da sanção e do veto sobre as
resoluções do Congresso. 21. A convocação extraordinária da representação nacional.
3
BARBOSA, Rui. O direito do Amazonas ao Acre setentrional. In: Obras completas. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, v. 37, tomo V, 1983,
p. 118/119.
32
por Cristina Queiroz,
segundo o qual a oportunidade para a incidência da doutrina surge
quando: a) não há norma jurídica que possa ser aplicada ao caso concreto;
b) a decisão final do tribunal diz respeito ao princípio constitucional da
divisão dos poderes em princípio; c) a questão foi reservada, em
princípio, ao eleitorado.
4
Em estudo sobre a questão dos atos poticos e dos direitos sociais, Sérgio
Victor Tamer aponta a political question doctrine e os actes de gouvernement como
dois marcos decisivos da história do constitucionalismo, que influenciara a doutrina
dos atos políticos para em seguida indagar:
Se cabe, em relação a tais atos, um Poder determinar ao outro o que deve
ou não fazer sem violar o princípio clássico da separação? Ou, sob outro
ponto de vista, é de perquirir-se: qual o ponto de equilíbrio entre a
promoção do controle judicial dos atos políticos, e a autonomia política
da Administração? E se os atos políticos ferirem direitos subjetivos,
imediatos ou não, que tipo de controle poderá haver sobre eles? E em
ferindo a Constituição, o ato político executivo, ou legislativo, poderá ser
anulado pelo Poder Judiciário?
5
Como se verifica, cuida-se de assunto de grande amplitude que, nos limites do
presente capítulo, será abordado nos tópicos que seguem.
Com efeito, a doutrina das questões políticas tem estreita ligação com o
princípio da separação de poderes e a análise de precedentes jurisprudências
assume importância fundamental, como será demonstrado em seguida. É matéria de
grande relevância atualmente o estudo das prestações positivas do Estado (saúde,
educação, segurança, assistência social) em face da impossibilidade material de
atender a esses comandos constitucionais, ou seja, são as escolhas dramáticas que
têm de um lado a escassez ou ausência de recursos e de outro lado a crescente
demanda por serviços públicos, isso tudo num ambiente de alta litigiosidade, em
que qualquer cidadão tem hoje maior facilidade de acionar o Poder Judiciário. A
passagem de Gustavo Amaral merece transcrição:
Ao nosso ver, deslocar a decisão para o Judiciário em hipóteses que
envolvam escolhas dramáticas, é querer alargar para aquele Poder
competências que não são suas. O Judiciário não está legitimado pelo
voto para tomar tais posições. Muito pelo contrário, é a própria
Constituição que cerca a magistratura com garantias próprias para que
4
QUEIROZ. Cristina M.M. Os actos políticos no Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 1990,
p.113.
5
TAMER. Sérgio Victor. Atos políticos e direitos sociais nas democracias. Porto Alegre: Sérgio
Fabris Editor, 2005, p. 109.
33
possa ela desempenhar seu ofício alheia a pressões de momento.
6
O entendimento da doutrina brasileira sobre a relação entre ato político e
controle jurisdicional é divergente, como de resto na doutrina internacional, ou
seja, uma parte sustenta a impossibilidade de controle jurisdicional do ato político,
admitindo-o, tão-somente, no caso de afronta a direitos individuais e, de outro lado,
os juristas que vêem no princípio da inafastabilidade do controle judicial (CF/88,
art. 5º, inciso XXXV) a autorização para o controle dos atos políticos por parte do
Poder Judiciário.
2.2 Questões políticas na jurisprudência
A doutrina das questões políticas, como mencionado anteriormente, origina-se
da decisão proferida pela Suprema Corte dos EEUU no paradigmático caso
Marbury x Madison de 1803
7
, que inaugura o tema das questões políticas, ainda
que de forma indireta, haja vista que a primeira decisão que tomou como
fundamento autônomo a auto-restrição dos poderes judiciais se deu em 1849
8
no
julgamento do caso Luther x Borden. Nos dois tópicos seguintes, alguns casos da
jurisprudência estadunidense e brasileira serão apresentados e comentados, onde se
perceberá a evolução das decisões das cortes de justa no sentido de cada vez
menos restringir sua atuação em questões de natureza política, sempre se tomando
por fundamento o Princípio da Supremacia da Constituição.
O papel das cortes de justiça tem fundamental importância no trato das
questões políticas, de igual modo, quando se analisam decisões judiciais que
obrigam o Estado a prestações positivas (item 3.1.). Com efeito, quando uma
decisão judicial invade competência privativa do Poder Executivo e determina onde
um posto de saúde deva ser construído porque o direito à saúde é assegurado pela
Constituição, tem-se Judicialização da Política, e esse fenômeno acontece
exatamente porque o Poder Judiciário não auto-restringe os limites de sua atuação.
A tensão entre os direitos sociais postos na Constituição de 1988 e a
impossibilidade material de cumprimento de alguns desses preceitos pelo Estado
6
AMARAL, Gustavo. Teoria dos direitos fundamentais: interpretação dos direitos fundamentais
e o conflito entre poderes. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a, p.112.
7
ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Marbury x Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803).
8
ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Luther x Borden, 7 How. 48. U.S. 1 (1849).
34
brasileiro são fartamente encontradas nos dissídios jurisprudenciais, notadamente
na área de saúde, onde decisões determinando que o Estado responda por
tratamentos de grande custo financeiro comprometem parte considerável dos
orçamentos públicos em detrimento de prioridades coletivas que alcançam um
universo de pessoas carentes.
2.2.1 Suprema Corte dos Estados Unidos
A doutrina das questões políticas tem a mesma matriz do controle
jurisdicional da constitucionalidade (judicial review), pois oriundas ambas da
decisão Marbury x Madison de 1803. Com efeito, esta decisão registrou o fato de
que, se por um lado, o Poder Judiciário está autorizado a reconhecer a nulidade de
atos da legislatura, quando contrários à Constituição, por outro, não lhe é lícito
ingressar no campo da potica.
9
Como expresso a pouco, no entanto, a primeira
decisão na qual a doutrina das questões políticas foi invocada como fundamento
autônomo, a impor a auto-restrição aos juízes, foi no caso Luther x Borden, de
1849. Relata Elaeres que o caso-paradigma se originou de uma ação proposta por
Luther, que teve sua residência invadida por tropas do governo de Rhode Island. O
motivoteria sido o seu ativo apoio ao governo paralelo que se havia formado
naquele Estado, tendo como chefe Thomas W. Dorr.
10
A revolta liderada por Dorr foi motivada por uma tentativa frustrada de
reforma da Constituão daquele Estado, fato que acarretou a votação de nova
Constituição e a instituição de outro governo. Com as duas constituições e os dois
governos em Rhode Island, a questão foi submetida à Suprema Corte, que evitou se
intrometer na disputa por se tratar de questão política e não judicial, e que caberia
ao Poder Executivo central deliberar sobre a vexata questio.
A Suprema Corte, nesse caso, elegeu como razão de decidir a interpretação da
Cláusula de Garantia (Artigo IV, Seção 4 da Constituição dos EEUU), que assegura
aos Estados a manutenção da forma republicana de governo e a defesa, por parte da
Uno, em caso de invasão e na ocorrência de comoção interna que impossibilite a
ação dos Poderes Executivo e Legislativo.
9
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 25.
10
Id. ibid. p. 27.
35
Há outros eventos emblemáticos na jurisprudência ianque, aqui enumerados
em ordem cronogica: i) Pacific States Tel. & Tel. Co. x Oregon, de 1912, que
tratava de processo de referendum naquele Estado; ii) o caso Coleman x Miller, de
1939, restando afirmado que, para determinar quando uma questão é ou não
política, o relevante a se considerar deveria ser a característica de ato final de
departamentos públicos e dificuldade em classificá-la como judicial
11
; iii) caso
Colegrove x Green, julgado em 1946, no qual a Suprema Corte se negou a atuar em
matéria eleitoral, quando uma lei do Estado de Ilininois, que distribuiu o eleitorado
em distritos eleitorais, teve sua constitucionalidade contestada. Nesse caso, a
ressalva é feita por Elaeres: A Corte não afastou a hipótese de se tratar de um caso
sujeito à tutela judicial, optando pelo argumento de que a natureza do conflito
recomendava que se abstivesse de julgar.
12
Uma decisão da Suprema Corte que merece destaque, de 1962, é a do caso
Baker x Carr, cuja discussão concernia ao pleito de alguns cidadãos, dentre eles
Baker, acerca da distribuição dos lugares na Assembléia Legislativa, haja vista que
desde 1901 era mantida a divisão dos distritos eleitorais, apesar do aumento
populacional e da migração no Estado haver modificado a realidade eleitoral. Nesse
caso, houve mudança no entendimento da Suprema Corte que conheceu e decidiu
que [...] a Constituição do Tennessee continha disposições que obrigavam a
redistribuição de votos de acordo com o número de eleitores, a cada dez anos.
13
Essa mudança de paradigma evolução para alguns mostra-se clara quando
se transcreve trecho da análise dessa decisão:
Expressando o pensamento da maioria da Corte, o juiz Brennan firmou o
entendimento segundo o qual o postulado à proteção de um direito
político, como o de igual valor do voto, não configurava uma questão
política não sujeita ao Judiciário. Rejeitou, por outro lado, o argumento
de que casos que envolvessem a legislatura estadual estavam sujeitos à
cláusula de garantia da forma republicana de governo, considerada em
decisões anteriores como imune à ação judicial.
14
Com efeito, a decisão no caso Baker estabeleceu que, num caso para ser
considerada a questão política, deve-se observar o seguinte:
11
PAMPLONA. Danielle Anne. op. cit. 2006, p. 73. mimeo.
12
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 29.
13
PAMPLONA. Danielle Anne, op. cit. 2006, p. 73.
14
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 27.
36
Importante na superfície de qualquer caso que se diga tratar de questão
política é encontrar se: (1) um compromisso constitucional textualmente
demonstrável com um departamento político coordenado; (2) a falta de
padrões que possam ser descobertos e manuseados para resolvê-lo; (3) a
impossibilidade de decidir sem uma ordem política inicial não se
subsuma à discrição judicial; (4) a impossibilidade de a Corte tomar uma
decisão independente sem expressar a falta de respeito para com os outros
poderes; (5) uma necessidade incomum de não questionar a aderência a
uma decisão política já tomada; (6) a possibilidade de embaraço pelos
diferentes pronunciamentos por rios departamentos sobre a mesma
questão.
15
Por fim, outro aspecto, apontado por Comparatto
16
, em que a decisão inovou
foi a que diz respeito às relações entre Judiciário Federal, no caso a Suprema Corte,
e os demais poderes da União. Nesse caso, não se aplicaria a exceção de questão
política, mas sim e tão-somente, nas relações entre o Executivo Federal e os
Estados, como no caso do Estado do Tennessee. De igual modo, a decisão do caso
Baker assentou a idéia de que a questão política diz respeito à garantia da
separação de poderes, desde que aplicada em linha horizontal, ou seja, entre
Judicrio e Executivo federal.
Entre os autores estadunidenses modernos, merece destaque o posicionamento
do professor Mark Tushnet, da Georgetown University, que é um crítico mordaz da
supremacia judicial da Suprema Corte no controle da constitucionalidade e investe
contra o judicial review. Ele inicia sua obra indagando o porquê de todos pensarem
ser a Supremacia Judicial a melhor forma de entender a Constituição. É porque isso
faz o trabalho dos juízes parecer mais interessante e importante, responde com uma
indagação mordaz e acrescenta:
[...] what reason could we have to think that a rule requiring deference to
the judgments of five people, who are replaced at random intervals,
produces more stability than a rule requiring deference to the judgments
of a majority of the House of Representatives and the Senate, ordinarily
concurred in by the President?
17
No capítulo denominado Against Judicial Review, o autor imagina um Estado
onde não exista mais o controle judicial das leis estaduais ou federais e, indagando
se essa situação mudaria a vida e a liberdade dos cidadãos, conclui que os efeitos
seriam bem menores do que se pode imaginar e que haveria um retorno do povo
15
PAMPLONA, Danielle Anne. op. cit. 2006, p. 74.
16
COMPARATO, Fábio Konder. A questão política nas medidas provisórias: um estudo de caso.
Boletim dos Procuradores da República. ano III, n. 36, p. 3-9, abril, 2001.
17
TUSHNET, Mark. Taking the constitution away from the courts. New Jersey: Princeton
University Press, 2000, p. 29.
37
politicamente ativo ao centro das decisões, o que permitiria existir apenas uma
populist constitutional law e não mais apenas uma populist constitutional law.
18
Um mundo sem o controle judicial das leis pareceria um Estado stalinista ou se
assemelharia mais à Inglaterra, que não possui uma Constituão escrita ou à
Holanda, que possui Constituão escrita, mas as cortes não fazem seu controle? E
responde o autor:
The examples of Great Britain and Netherlands show that it is possible to
develop systems in which the government has limited powers and
individual rights are guaranteed, without having U.S. style judicial
review. Part of the reasons is that we can have legal restraints on
government without have constitutionals ones. The difference is that
legislatures can override legal restrictions but not constitutionals ones.
19
O autor propõe uma populist constitutional law que seria uma legislação
constitucional inspirada pelos princípios da Declaração da Independência e pelo
preâmbulo da Constituição, comprometida com os direitos humanos e a serviço do
autogoverno, o que se justificaria porque o poder dos governantes é oriundo do
consenso dos governados.
20
2.2.2 Supremo Tribunal Federal
A posição do Supremo Tribunal Federal no trato das questões políticas, desde
a sua criação até os dias de hoje, oscila entre um absoluto alheamento até
manifestações que beiram o ativismo judicial puro e simples. Não comporta os
limites do presente trabalho, no entanto, a análise exaustiva dessa trajetória, mas
impõe-se tratar de algumas das principais decisões daquela Corte onde o tema das
questões políticas foi objeto de análise.
A introdução deste capítulo já fez menção ao Habeas Corpus n.º 300, de 1892,
cujo pedido, repita-se, consistia na libertação de 46 pessoas senadores, deputados,
marechais, coronéis, civis e até o poeta Olavo Bilac , que se opunham a Floriano
Peixoto porque este se recusava a convocar eleições presidenciais após a renúncia
de Deodoro da Fonseca, como previa o art. 42 da Constituição de 1891, quando se
dava a renúncia antes de decorrido o prazo de dois anos do período presidencial. O
requerente, advogado Rui Barbosa, não conseguiu convencer os ministros do
18
TUSHNET. Mark .op.cit. 2000, p. 155.
19
Id. ibid. p. 163.
20
Id. ibid. p. 181.
38
Superior Tribunal Federal (STF) de que as liberdades individuais não poderiam ser
diminuídas pela força ou pela lei e que consistia em argumento sofístico dizer que,
naquele caso posto a julgamento, a natureza política da questão impediria a atuação
da jurisdição. Os integrantes do STF de então eram influenciados mais pelo Direito
Público francês e pelas Ordenações Filipinas do que pelas novidades ianques,
apesar de registros históricos apontarem como fonte de inspiração para o modelo
brasileiro de Supremo Tribunal Federal a organização do Supremo Tribunal dos
EEUU. Nas palavras de Rui Barbosa (apud TEIXEIRA),
Dizem: Este assunto é vedado à justiça, pela natureza política das
atribuições que envolve. Não vos enredeis em tal sofisma. Qual é a
disposição constitucional, onde se acha essa exceção limitativa à vossa
autoridade geral de negar execução às leis inconstitucionais e aos atos
inconstitucionais do Poder Executivo? Se a suspensão das garantias
envolvesse unicamente interesses políticos, se pelos direitos que interessa
constituísse um fato de ordem exclusivamente política, nesse caso sim.
Com os atos de puro governo não têm que ver os tribunais. Mas aqui não.
Vós, Tribunais Supremo, fostes instituído para guarda dos direitos
individuais, especialmente contra os abusos políticos; porque é pelos
abusos políticos que esses direitos costumam aparecer.
21
Apesar dos argumentos trazidos pelo advogado baiano Rui Barbosa, o
Acórdão relatado por Joaquim da Costa Barradas não acatou o argumento, como se
verifica das seguintes passagens:
Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso, não
pode o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República
daquela atribuição constitucional, e que, também, não é da índole do
Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder
Executivo ou Legislativo.
Considerando que, ainda quando na situação criada pelo estado de sítio,
estejam ou possam estar envolvidos alguns direitos individuais, esta
circunstância não habilita o Poder Judicial a intervir para nulificar as
medidas de segurança decretadas pelo Presidente da República, visto ser
impossível isolar esses direitos da questão política, que os envolve e
compreende, salvo se unicamente tratar-se de punir os abusos dos agentes
subalternos na execução das mesmas medidas, porque a esses agentes não
se estende a necessidade do voto político do Congresso.
22
A doutrinação de Rui Barbosa não convenceu os integrantes do Supremo
Tribunal Federal - não afeito a envolver-se em questões de natureza política da
alçada dos Poderes Executivo e Legislativo - à exceção do voto de Piza e Almeida,
21
BARBOSA, Rui. O Estado de Sítio, sua natureza, seus efeitos, seus limites. In: Obras
completas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, v.
19, tomo 3, 1993, p. 16.
22
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão no Habeas Corpus n.º 300, de 30 de abril de
1892. Disponível em: <http://www.stf.gov.br.> Acesso em: 5 abr. 2008.
39
única voz dissonante naquela Corte que acatou o argumento acerca da cessação das
medidas de detenção ou desterro após o final do estado de sítio. Esse julgamento
representou um marco histórico em que o Supremo Tribunal Federal criousua
doutrina das questões políticas, a qual, no entanto, nada tinha a ver com a doutrina
forjada por Marshall no caso Marbury v. Madison.
23
Essa tendência apresentada
em 1892, no entanto antecipou um julgamento realizado em 1946 na Suprema Corte
(Colegrove v. Grenn) e onde os juízes se abstiveram de julgar por pretextos
similares aos ministros brasileiros do século XIX. Sobre o tema anota Teixeira:
Tal como viria a ocorrer com a Corte norte-americana em Colegrove v.
Grenn, o Supremo Tribunal Federal, em 1892, fechou os olhos aos
direitos individuais para evitar o confronto com o poder político. Lá,
ficou sacrificado o direito à igualdade; aqui, o direito à liberdade.
24
Questão de igual importância, que demonstrou uma guinada expressiva no
posicionamento do STF ocorreu em novembro de 1897, quando da decretação de
estado de sítio por Prudente de Moraes, primeiro presidente civil. Com efeito, o
estado de exceção foi motivado pela tentativa de assassinato do Presidente por um
soldado, fato que ocasionou a morte do Ministro da Guerra, Marechal Carlos
Machado Bitencourt, que, ao defender Prudente de Moraes, foi atacado e morto por
um punhal, o que teria caracterizado uma conspiração contra o governo. O estado
de sítio foi acatado pelo Congresso pelo prazo de 30 (trinta) dias no território do
Distrito Federal e Niterói. Esse prazo foi prorrogado até 23 de fevereiro do ano
seguinte e o inquérito apontou como co-participantes um senador, cinco deputados
e outros civis e militares e com base nessa apuração, três dos parlamentares e mais
três implicados, um militar e dois civis, foram desterrados, por interdio do
Decreto de 21 de janeiro de 1898, para a ilha de Fernando de Noronha.
25
Em março de 1898, novamente o advogado Rui Barbosa apresenta petição de
habeas corpus pleiteando o reconhecimento do final da pena de desterro para os
presos políticos porque o prazo de estado de sítio havia cessado, ou seja, o mesmo
argumento apresentado em 1892, quando do estado de sítio solicitado por Floriano
Peixoto. Dessa vez, não obstante o julgamento desfavorável no Habeas corpus n.º
1.063 de 1898, a pregação encontrou eco na Corte, eis que a nova composição
23
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 75.
24
Id. ibid. p. 75.
25
Id. ibid. p.92.
40
reconheceu a possibilidade de julgar Habeas corpus apresentado contra medida
repressiva adotada durante estado de sítio está entre as atribuições do STF, ou seja,
pela primeira vez reconheceu que os direitos individuais não poderiam ficar à
mercê de medidas de natureza política; antes, encontravam amparo no Judiciário.
26
A questão teve desfecho favorável quando do julgamento de outro Habeas
corpus, n.º 1.073, ajuizado vinte dias depois do julgamento do Habeas corpus n.º
1.063. Nesse processo, estiveram presentes três ministros
27
que o participaram
do primeiro julgamento, e o relator do Habeas corpus n.º 1.063, Bernardino
Ferreira, mudou de posição, resultando em uma placar de nove votos a favor da tese
da liberação dos desterrados contra quatro votos contrários. Segue transcrição de
trecho do acórdão onde restam expostas as razões de decidir:
Considerando que com a cessação do estado de sítio cessam todas as
medidas de repressão durante ele tomadas pelo Poder Executivo,
porquanto:
1º, essa extrema medida, medida de alta polícia repressiva, só pode ser
decretada por tempo determinado (Const., art. 80) e fora dar-lhe duração
indeterminada o prorrogar-lhe os efeitos além do prazo prefixado no
decreto que a estabelece;
2º, absurdo seria subsistirem as medidas repressivas, somente autorizadas
pelas exigências da segurança da República, que determinam a declaração
do sítio, quando tais exigências têm cessado pelo desaparecimento da
agressão estrangeira, ou da comoção intestina, que as produziram, pois
seria a sobrevivência de um efeito já sem causa, e certo é, na hipótese
ocorrente, que a comoção interna, motivo do decreto legislativo de 12 de
novembro do ano passado e dos decretos do Poder Executivo que o
prorrogaram, desde muito terminou, pois, desde 23 de fevereiro cessou o
estado detio que a atestava, e, pois, com ele, não podiam deixar de
cessar as medidas de exceção que só ela legitimava;
3º, outro e não menor absurdo seria que pudessem durar indefinidamente
transitórias medidas de repressão deixadas ao artrio do Poder
Executivo, quando nas próprias penas impostas pelo Judiciário, com todas
as formas tutelares do processo, é requisito substancial a determinação do
tempo que hão de durar (Ruy Barbosa, O estado de sítio, pág. 178);
4º, já a Constituição do império, no art. 179, § 35, dispunha que nos
casos de rebelião ou invasão de inimigo, pedindo a segurança do Estado
que se dispensassem por tempo determinado algumas das formalidades
que garantiam a liberdade individual, poder-se-ia fazer por ato especial
do Poder Legislativo; não se achando, porém, a esse tempo reunida a
assembléia, e correndo a pátria perigo iminente, poderia o Governo
exercer esta mesma providência, como medida provisória e indispensável,
suspendendo-a imediatamente que cessasse a necessidade urgente que a
motivara. E leis posteriores - a de 22 de setembro de 1835, que suspendeu
no Pará por espaço de seis meses, a contar da data de sua publicação
26
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 96.
27
Os ministros Lúcio de Mendonça, Américo Lobo e João Barbalho.
41
naquela província, os §§ 6º a 10º do art. 179 da Constituição, para que
pudesse o Governo autorizar o presidente da referida província para
mandar prender sem culpa formada e poder conservar em prisão, sem
sujeitar a processo durante o dito espaço de seis meses, os indiciados em
qualquer dos crimes de resistência, conspiração, sedição, rebelião e
homicídio, a de 11 de outubro de 1836, prorrogada pela de 12 de outubro
de 1837, e o decreto do Poder Executivo de 29 de março de 1841,
prorrogado pelo de 14 de maio de 1842, suspendendo as garantias no Rio
Grande do Sul, e os de 17 de maio de 1842, suspendendo-as em S. Paulo
e Minas Gerais - todos declaram terminantemente que a faculdade que
tem o Governo para mandar prender e conservar em prisão um cidadão
sem ser sujeito a processo é somente durante o tempo da suspensão de
garantias, que deve necessariamente ser fixo e determinado (voto vencido
do Sr. Piza e Almeida, no acórdão deste Tribunal de 27 de abril de 1892);
5º, o próprio Regimento Interno do Tribunal, no art. 65, § 3º, consagra
esta doutrina, quando dispõe que o Tribunal se declarará incompetente
para conceder a ordem de habeas corpus se se tratar de medida de
repressão autorizada pelo art. 80 da Constituição, enquanto perdurar o
estado de sítio.
28
A tese defendida pelo causídico nordestino Rui Barbosa finalmente fora
vencedora, ou seja, terminado o estado de sítio, a garantia do Habeas corpus é
restabelecida porque a restituão do direito individual ofendido no curso da
suspensão das garantias constitucionais não poderia esperar o julgamento político
do Congresso Nacional.
29
Terceiro caso paradigmático, protagonizado também pelo baiano Rui Barbosa
e que merece tópico separado, trata da questão do Direito do Amazonas ao Acre
Setentrional, obra do autor que expõe detalhes sobre essa contenda que nunca foi
efetivamente julgada pelo STF.
Com efeito, no início do século XX, brasileiros e bolivianos se enfrentaram na
região ocidental da floresta amazônica em busca de territórios fronteiriços; o que a
princípio se cuidava de contenda com coloração local acabou se transformou em
incidente internacional. Os brasileiros, na sua maioria nordestinos, foram liderados
pelo gaúcho Plácido de Castro que, em momento crucial da disputa, chegou a
aprisionar o ministro da Guerra da Bolívia. Até este ponto não havia envolvimento
do Governo brasileiro, cuidando-se, ainda, de conflito entre populações que
habitavam aquele rincão. Nas palavras de Silvio Augusto de Barros Meira, autor do
prefácio-tomo que trata desse assunto:
28
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão no Habeas Corpus nº 1.073, de 30 de março de
1898. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 abr. 2008.
29
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p. 94.
42
Havia uma guerra não declarada, não entre nações, mas entre populações
movidas por interesses comerciais e patrimoniais. A terra exuberante e
rica, embora considerada inóspita pelos bolivianos, habituados aos seus
altiplanos, constituía, no entanto, um verdadeiro paraíso para os homens
do nordeste, acossados pela seca, pela pobreza e pela necessidade de
sobrevivência, se suas áridas plagas natais.
30
A intervenção oficial do Governo brasileiro foi liderada pelo Barão do Rio
Branco (José Maria da Silva Paranhos Júnior), ministro do Interior, e culminou com
a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903, cujas cláusulas
em resumo previam transferência de territórios para o domínio brasileiro;
pagamento de indenização ao Governo boliviano; nomeação de comissão para
demarcar fronteiras; construção de ferrovias para utilização comum das duas
nações; conclusão de tratados de comércio e navegação, dentre outras disposições.
Esse tratado, no entanto, ocasionou uma questão jurídica das mais famosas. É que o
Decreto n.º 5.188, de 07 de abril de 1904, que organizou o território do Acre,
teria afrontado interesse do Estado do Amazonas, que se julgava com direito às
referidas terras. O advogado Rui Barbosa foi contratado pelo Estado do Amazonas
e, em 4 de dezembro de 1905, apresentou petição com o objetivo de reivindicar
parte da área supostamente apoderada pelo Governo Federal, notadamente aquela
que tradicionalmente sempre foi brasileira. A questão jurídica assumiu maiores
proporções com as publicações, em jornais, da petição inicial, contestação do
Governo Federal, réplicas e outras manifestações, num movimento que antecipou
em várias décadas as midiáticas disputas judiciais dos dias de hoje, algumas delas
acompanhadas pelos televisores e ao vivo.
Para a finalidade do presente tópico, interessa a réplica de Rui Barbosa à
primeira preliminar A incompetência da Justiça Federal para conhecer do pleito
intentado e, mais especificamente, o desdobramento dessa preliminar no tema
Objeção do caso político. Essa matéria havia fundamentado o Habeas corpus
n.º 300, de 1892, e fora retomada a discussão quando dos Habeant corpora nº 1.063
e nº 1.073, ambos de 1898, como relatado há pouco. Desta feita, Rui Barbosa foi
ainda mais enfático e contundente na defesa da tese da possibilidade da reparação
judicial dos abusos políticos:
Bordão clássico de todas as ditaduras e de todos os atentados eram favas
contadas que a exceção da natureza política do caso nos embargasse logo
30
BARBOSA, Rui. op. cit. 1983, p. XII.
43
o passo, ao intentar desta ação. Já em 1892, quando, ao primeiro
alvorecer da Constituição atual, assumimos a iniciativa de estrear, com o
pleito das vítimas da ditadura de abril, a proteção da justiça criada neste
regimen contra as usurpações do poder, este foi o subtergio, com que se
tentou matar, à nascença, a melhor instituição do novo sistema. Daquela
feita não vingou o artifício. Nem por isso, entretanto, o repudiaram.
Antes, de então a esta parte, a casa invasão de uma das nossas ditaduras
do domínio do direito constitucional, a tentativa da reparação judiciária,
o primeiro obstáculo onde tropeça, é infalivelmente a razão política,
invocada pelos interesses do abuso contra o curso do remédio legal.
31
As razões finais do Estado do Amazonas visitaram toda a doutrina dos EEUU
sobre as difíceis relações entre a Suprema Corte e as questões políticas, acerca do
Direito e a Política, para, após a citação de vários autores contemporâneos ou
clássicos, concluir pela necessidade de delimitar qual questão não poderia ser
submetida ao Judiciário advertindo que não basta que a questão estreme com a
política, ou com ela prenda; que tenha relações políticas, ofereça aspectos políticos,
ou seja susceptível de efeitos políticos; que à potica interesse, ou sobre ela possa
atuar por algumas das suas faces, algumas das suas ligações, alguns dos seus
resultados; e continua: é mister que seja simplesmente, puramente, meramente
política, isto é que pertença ao donio político totalmente, unicamente,
privativamente, exclusivamente, absolutamente. Só então cessa a competência
judicial.
32
Em passagem posterior e fechando o raciocínio, o autor inventaria 21
situações nas quais o juízo discricionário afasta o controle jurisdicional.
33
Essa ão foi acompanhada pelo estadista Rui Barbosa até as razões finais,
mas seu desfecho foi melancólico, como relata Bastos Meira no prefácio da edão
mencionada:
O litígio não chegou a ser decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Os
autos ficaram decênios, sem solução, até que, em 1934, a Constituição,
no art. 5º das Disposições Transitórias, mandou que a pendência fosse
resolvida mediante arbitramento. [...] Somente em 1955, deu entrada o
Estado do Amazonas em petitório de 28 de abril, solicitando indenização
pela desanexação do Acre, conforme tudo consta do Processo n .º
32.894/55.
34
A história do Supremo Tribunal Federal entre 1898 e 1910 é apontada pelos
historiadores como de relativa calmaria, iniciando período conturbado apenas entre
1910 e 1930, quando da decretação de estado de sítio por Hermes da Fonseca e com
31
BARBOSA, Rui. op. cit. 1983, p. 95.
32
Id. ibid. p.114.
33
Conf. nota 17.
34
BARBOSA, Rui. op. cit. 1983, p. LXXXII.
44
os levantes militares com início em 1922 que culminaram com o movimento de
1930. De acordo com Teixeira, nesse período a
doutrina das questões políticas também foi empregada em casos de: a)
verificação de poderes; b) duplicata de governos estaduais e assembléias
legislativas; c) cassação de mandato parlamentar e impeachment de
governantes estaduais, entre outros.
35
Nesse período 1910-1930, a tendência do STF foi pela autocontenção, com o
não-envolvimento do Judiciário em questões políticas dos demais poderes. Nos
parágrafos logo seguintes há um demonstrativo dessa tendência consolidação da
doutrina das questões política , com suporte em pesquisa levada a efeito por
Teixeira:
CONSOLIDAÇÃO DA DOUTRINA DAS QUESTÕES POLÍTICAS
Decretação de Estado de Sítio
HC n.º 3.527: incompetência do Judiciário para julgar o Estado de Sítio (1914).
HC n.º 3.558: o Judiciário não deve ingressar em atribuições de outro poder
(1914).
HC n.º 3.539: o Judicrio não aprecia atos políticos não ofensivos a direitos
individuais (1914).
HC n.º 14.583: os motivos para o Estado de Sítio têm natureza exclusivamente
política (1925).
Decretação de Intervenção Federal
HC n.º 3.513 e 3.688: o Tribunal não podia obrigar o Presidente da República a
intervir num Estado por meio de requisão do próprio Governador (Ceará
levante revolucionário de 1914).
Verificação de Poderes
RHC n.º 4.003 (Espírito Santo 1916): o STF não acatou o recurso contra
decisão do Judiciário espírito-santense porque exorbitaria sua funções legais e
35
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p.104.
45
atentaria, assim, contra o regime federativo.
HC n.º 6.880 (Piauí 1920): o STF decidiu que a função de verificação de
poderes é de competência exclusiva do Senado Federal.
Recurso n.º 8.584 (1922): o STF decidiu que atos exclusivamente políticos são
subtraídos ao controle judicial, à revisão do Poder Judiciário.
Duplicata de Poderes
HC n.º 4.104 (Amazonas 1916): o STF decidiu que o tema dualidade de
governador e Congresso Legislativo do Estado do Amazonas é de competência
do Congresso Legislativo Federal.
Cassação de Mandato Parlamentar
RHC n.º 8.598 (Amazonas 1922): o STF decidiu que a cassação é ato
exclusivamente potico por tratar da organização de um órgão político
pertencente a um Estado da Federação e mantida deveria ser a cassação do
parlamentar.
Impeachment de Governantes Estaduais
Revisão Criminal n.º 104 (Piauí 1895): o Tribunal decidiu que impeachment
tem natureza exclusivamente política de domínio do Poder Legislativo.
Revisão Criminal n.º 343 (Sergipe 1899): o Tribunal decidiu que contra
julgamento político não cabia recurso ao judiciário.
O Caso Conde DEu
HC nº 5.491(1919): o banimento, por configurar pena política, não poderia ser
revogado por decisão judicial, cabendo exclusivamente ao Congresso fazê-lo,
uma vez que, de acordo com o Decreto nº 78-A (1889) e o art. 7º das Disposições
Transitórias da Constituão de 1891, o banimento continuava em vigor.
Evolução da Doutrina das Questões Políticas
O Caso Raul Fernandes
46
HC nº 8.800 (Rio de Janeiro 1922): tratou-se de um caso de duplicidade de
assembias legislativas e Governador, no qual o Tribunal reconheceu a efetiva
dualidade e, diante dos títulos líquidos, certos e incontestáveis, a questão
política envolvida não poderia ser empecilho ao conhecimento e julgamento da
causa, ou seja, a jurisdição do Tribunal era insuperável e irrevogável por
qualquer dos outros poderes, desde que, anexa à questão política estivesse em
jogo a liberdade individual.
Rejeição de Veto a Projeto de Lei
Recursos em Mandado de Segurança nº 1.006 (Minas Gerais 1949): o
relator do RMS nº 1.006 entendeu que a partir da Constituição de 1946, houve
uma dilatação da esfera de atribuições do Poder Judiciário, permitindo a análise
de atos de natureza política, pois, ainda que não fosse essa competência
funcional do STF, deveria o Poder Judiciário Estadual analisar a questão.
Convocação Extraordinária do Congresso Nacional
MS n.º 1.423 (1951): o Tribunal acatou os argumentos do impetrante porque a
questão convocação extraordinária do Congresso Nacional para período que
ultrapassava a legislatura ,o envolvia aspectos de oportunidade, acerto ou
conveniência do ato, hipóteses em que não caberia a apreciação judicial. Esses
critérios, oportunidade, acerto e conveniência, foram utilizados pela primeira vez
nesse julgamento.
Caso do Inquérito do Banco do Brasil
MS nº 1.959 (Rio de Janeiro 1952): nesse julgamento, o Tribunal firmou
entendimento segundo o qual se é competente para julgar ato do Presidente do
STF e da Mesa Diretora de qualquer das casas parlamentares, também o é para
apreciar ato de uma das casas parlamentares.
Caso Café Filho
MS n.º 3.557 (1955): nesse julgamento, ficou assentado que o STF possui
competência para apreciar pedido de mandado de segurança contra resolução
legislativa de caráter político, ainda que no caso em exame isso não tenha se
47
dado porquanto prejudicado o objeto
Posição Atual do Supremo Tribunal Federal
A posição atual da doutrina das questões políticas pode ser demonstrada com a
análise de alguns casos paradigmáticos, mas a discussão jurídica advinda da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Reforma da Previdência, de 1995,
retrata a posição atual do STF acerca dos limites da investigação judicial em
relação aos atos dos demais poderes. A questão jurídica disse respeito ao Mandado
de Segurança n.º 22.503-DF movido por deputados do Partido dos Trabalhadores
(PT), Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido Democrático Trabalhista
(PDT) e Partido Socialista Brasileiro (PSB), que se insurgiram contra a aprovação
de uma emenda aglutinativa assinada pelo deputado Michel Temer após a rejeição
do substitutivo Euler Ribeiro. Em apertada síntese, a causa de pedir do Mandado de
Segurança dizia que a
Emenda Aglutinativa resultara do aproveitamento de dispositivos do
Substitutivo Euler Ribeiro, anteriormente rejeitado, e que novas
disposições haviam sido inseridas, estranhas às emendas objeto da
aglutinação, em desrespeito ao processo legislativo e à ordem político-
constitucional.
36
As informações prestadas pela Câmara dos Deputados invocaram a posição
precedente do Mandado de Segurança n.º 20.247-5/DF e que a matéria se resolvia
no âmbito do Poder Legislativo. O Mandado de Segurança n.º 22.503-DF foi
submetido a julgamento em 08 de maio de 1996 e parcialmente conhecido e
indeferido
contra os votos dos Ministros Carlos Velloso e Octávio Gallotti, que se
posicionaram pelo não cabimento do mandado de segurança, e dos
Ministros Marco Aurélio (Relator), Celso de Mello e Ilmar Galvão, que,
ao contrário, conhecerem integralmente da impetração, os Ministros
Maurício Corrêa, Francisco Rezek, Sydney Sanches, Neri da Silveira,
Moreira Alves e Sepúlveda Pertence entenderem que o conhecimento da
ação deveria se limitar à matéria constitucional, ou seja, ao alegado
desrespeito ao art. 60, § 5º da Constituição.
37
A tese vencedora de resto já ventilada por Moreira Alves ainda na década de
1980 , diferenciava a violação de dispositivo constitucional da violação de regra
do Regimento, de natureza meramente ordinatória, ou seja, a observância dessas
36
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p.173.
37
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op.cit. 2005, p.174.
48
normas regimentais ordinatórias se exaure na esfera do Poder Legislativo, sendo
imune à jurisdição desta Corte.
38
Sobre o assunto merece transcrição outra
passagem do ex-Ministro Moreira Alves, extraída de voto seu proferido do M.S nº
22.503-DF:
Ato discricionário é aquele em que o Poder Judiciário não pode interferir
para a verificação da sua conveniência, oportunidade ou justiça. Questão
exclusivamente política é questão de discricionariedade política, também
infensa ao controle jurisdicional. Já com referência aos atos interna
corporis, esta Corte, por vezes, ao meu juízo, tem entendido que são os
que dizem respeito a questões relativas à aplicação de normas
regimentais, quando não violam direitos subjetivos individuais, quer de
terceiros como foi o caso do impeachment do Presidente da República -,
quer dos próprios membros do Congresso.
39
Além do caso da reforma da previdência, impõem-se referências a outros
julgamentos a seguir delineados.
Eleição Para a Mesa da Câmara dos Deputados
MS n.º 22.183-6/DF (1995): nesse julgamento ficou assentado contra o voto do
ministro relator Marco Aurélio que a questão central não se enquadrava no art.
58, §1º da Constituição, limitando-se à observância de regras regimentais.
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bancos
MS n.º 22.494-1 (1996): ação impetrada por 17 senadores na tentativa de instalar
a CPI dos Bancos para apurar a responsabilidade de agentes públicos e privados
vinculados ao Sistema Financeiro Nacional. No julgamento desta ação, ficou
assentado que não pode o STF anular um ato pelo fundamento constitucional se o
mesmo ato sobrevive por outro fundamento, fora do alcance de sua jurisdão.
Caso Sarney
MS n.º 20.941 (1989): ação impetrada contra resolução do Senado Federal, que
rejeitou denúncia oferecida em virtude de CPI contra o presidente José Sarney e
alguns ministros e o consultor geral da República. O STF entendeu que o ato está
sujeito a sua jurisdição, mas indeferiu o pedido.
38
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 20.257. Rel. Min. Moreira
Alves, j. 8-101980.
39
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 22.503-DF. Rel. p/ Acórdão
Min. Maurício Corrêa j. 08.05.96.
49
Caso Collor
MS n.º 21.564/DF (1992): confirmou a competência do Judicrio para examinar
questões essenciais do processo de impeachment.
MS n.º 21.689/DF (1993): reafirmou que a natureza política do impeachment não
afasta o controle judicial sobre o seu processamento. Nesse julgamento, o último
dos cinco mandados de segurança impetrados pelo ex-presidente Collor, o STF
confirmou a sua jurisdição no caso, ingressando no rito, para decidir que era
constitucional a decisão que inabilitou o Presidente Collor de Melo para o
exercício, nos oito anos seguintes, de função pública.
40
2.3 Questões políticas e o Supremo Tribunal Federal
A história da discussão das questões políticas perante o Supremo Tribunal
Federal demonstra que a doutrina que teve início tímido naquela Corte passou por
uma fase de consolidação até chegar aos dias atuais como uma doutrina que tende à
interferência nos assuntos de natureza política discutidos no âmbito do Poder
Legislativo ou do Executivo.
O tema é pomico haja vista que a discussão de limites é sempre conflituosa.
Assim, divisar Política e Direito ou delimitar assunto interna corporis de decisão
que afronta a Constituição é questão controversa por natureza e só se vislumbram
no ximo as tendências. O que se pode em casos dessa natureza, portanto, é
apontar linhas gerais para o assunto, considerando a profusão de votos e de
membros daquela Corte, muitos deles com entendimentos contraditórios em
julgamentos semelhantes no curso da história.
Dessa maneira, a tendência que se vislumbra da análise de algumas questões
paradigmáticas em curso ou que tramitaram perante o STF , e de resto nos
julgamentos dos diversos órgãos jurisdicionais no Brasil é o do alargamento das
atribuições judiciais, da invasão de competências políticas dos demais poderes da
República sempre em nome da inafastabilidade do controle judicial em questões
que digam respeito a afronta à Constituição. Esse alargamento da competência do
Poder Judiciário tende a se tornar maior ainda quando se verifica uma crise de
40
TEIXEIRA, José Elaeres Marques. op. cit. 2005, p.195.
50
legitimidade dos representantes populares, um descrédito no Congresso Nacional e
sucessivas questões de natureza ética pairando ao lado do Executivo.
O representante do Poder Judiciário no Brasil sente-se tentado a tomar
decisões de natureza política em nome da democracia porque os representantes do
povo e da política em geral não são capazes de mudar um quadro que parece, aos
olhos dos juízes, de afronta à Constituição. Com efeito, essa tendência tem como
exemplo a decisão do Tribunal Superior Eleitoral
41
, confirmada pelo Supremo
Tribunal Federal, no caso da fidelidade partidária. Essa decisão, de resto tão
aclamada por diversos setores da sociedade, aponta para uma criação de norma
geral de competência exclusiva do Parlamento, por mais insólita que se tenha
transformado a fidelidade partidária no Brasil. É como se uma tendência messiânica
insuflasse os membros do Poder Judiciário a dar um basta em situações que atentem
contra a democracia.
Não se verifica, por outro lado, em decisões de qualquer corte brasileira, o
exercício da autocontenção (self-restraint), que se traduz no reconhecimento de
limites à atuação do Poder Judiciário por seus próprios membros. Como expresso há
instantes, a tendência é no sentido de cada vez mais alargar o espectro de atuação
em nome da inafastabilidade da tutela jurisdicional e, por via de conseqüência, cada
vez mais restringir o exercício da política pelos políticos.
Questão que se impõe nessa altura é como compatibilizar o aparente conflito
entre o princípio de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judicrio lesão
ou ameaça a direito (Art. 5º, XXXV, da Constituição Federal) dos casos
excepcionais onde a matéria é de competência dos Poderes Legislativo ou
Executivo. Invocando passagem de Paulo Brossard, referindo a casos de
impeachment, há uma resposta:
Dir-se-á que esse entendimento conflita com o princípio segundo o qual
nenhuma lesão pode ser excluída de apreciação judicial. Esse conflito,
porém, não ocorre no caso concreto, pois, a mesma Constituição que
enuncia essa regra de ouro, reserva privativamente a uma e outra Casa do
Congresso o conhecimento de determinados assuntos, excluindo-os da
competência de qualquer outra autoridade. Assim, no que tange ao
processo de responsabilidade do primeiro ao último ato, ele se desenvolve
no âmbito do Poder Legislativo, Câmara e Senado, e em nenhum
momento percorre as instâncias judiciárias. Como foi acentuado, é uma
41
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n.º 1.398, do Partido da Frente Liberal (PFL).
51
exceção, mas exceção constitucionalmente aberta, ao monopólio
jurisdicional do Poder Judiciário. A lei não poderia dispor assim. A
Constituição poderia. E assim o fez.
42
O tratamento das questões políticas nos tribunais tem absoluta pertinência e
influência sobre o tema da Judicialização da Política, uma vez que o deficit de
legitimidade popular dos membros do Poder Judiciário não permite a discussão de
questões que por sua natureza pertencem aos Poderes Legislativo e Executivo.
42
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n.º 20.941-DF.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 13 maio 2008.
52
3 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
3.1 Delimitação do conceito
O tema da judicialização tem estreita ligação com a separação dos Poderes,
das questões políticas, do federalismo e da democracia e cuida-se de marca presente
na maioria dos Estados democráticos. No projeto de pesquisa de C.N. Tate e T.
Vallinder The Global Expansion of Judicial Power (1995), a expressão
Judicialização da Política passou a compor o cenário das Ciências Jurídicas e
Sociais em diversos países, não obstante se tratar de assunto que existe desde a
discussão sobre a natureza política ou jurídica de uma constituição.
O conceito de Judicialização da Política é posto por Tate e Vallinder como o
processo por interdio do qual juízes e tribunais passam a influenciar ou
determinar as políticas públicas previamente previstas em atos do Poder Legislativo
ou do Poder Executivo
1
. De igual modo, é possível definir o fenômeno da expansão
do poder judicial como[...] a reação do Judiciário frente à provocação de um
terceiro e tem por finalidade revisar a decisão de um poder político tomando como
base a Constituição.
2
Para Castro,
3
A Judicialização da Política ocorre porque os tribunais são chamados a se
pronunciar onde o funcionamento do legislativo e do executivo se mostra
falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições ocorre uma
aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se difícil
distinguir entre um direito e um interesse político.
Nas décadas que seguiram à promulgação da Constituição de 1988, assistiu-se
1
No original: [...] The process by which courts and judges come to make or increasingly to
dominate the making of public policies that had previously been made (or, it is wildely believed,
ought to be made) by other government agencies, especially legislatures and executives [...] em
TATE. C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of judicial power. New York and
London: New York University Press, 1995, p. 28.
2
CARVALHO, Ernani Rodrigues. op. cit. 2004, p. 128.
3
CASTRO, Marcos Faro. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo n. 34, 1997, p. 148.
53
cada vez mais ao debate de questões de natureza política no âmbito do Poder
Judicrio, bem como a elevada utilização de instrumentos como a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI), perante o Supremo Tribunal Federal, por diversos
agentes integrantes da comunidade política ou empresarial, sejam partidos
políticos, associações com representação em âmbito nacional, Ministério Público e
governadores. Temas de grande relevância nacional como o caso Collor (MS
21.564/DF 1992 e MS 21.689/DF - 1993), discussões sobre a liberdade de
expressão, no caso do editor que publicou obra com certa conotação nazista (HC nº
82424 / RS - 2003), pesquisa com células-tronco (ADI nº 3.510-0/DF 2008, ainda
pendente de julgamento) acabaram desaguaram nos tribunais, notadamente o
Supremo Tribunal Federal. Esses fatos, no entanto, não querem apontar que
exista Judicialização da Política quando da atuação do Poder Judiciário em sede de
controle de constitucionalidade. O presente estudo pretende demonstrar no capítulo
5 que há manifestação desse fenômeno também no âmbito local em decisões
tomadas por juízes de primeira instância e em assuntos municipais, mas é imperioso
reconhecer que a carga de dramaticidade de julgamentos como os mencionados é
maior e tem repercussão nacional.
O conceito nesse item delimitado pretende, assim, examinar a Judicialização
da Política arrimada na visão dos pesquisadores Tate e Vallinder, Antoine Garapon
e Mauro Cappelletti. Essa análise foi primeiramente empreendida por Vanessa
Oliveira e Ernani Carvalho em artigo intitulado Judicialização da Política: um
tema em aberto.
3.1.1 A expansão global do poder judicial: C.N. Tate e T. Vallinder
A obra The Global Expansion of Judicial Power
4
congrega trabalhos de
estudiosos que se preocupam em demonstrar a Judicialização da Política em
diversos países da América do Norte, Europa, Ásia, Oceania e até mesmo da África.
Os textos são precedidos por introdução dos editores que vislumbram nesse
fenômeno uma das mais significativas tendências dos sistemas poticos nos finais
do século XX e início do século XXI. Os autores apontam, ainda, que nem todos os
analistas ou ensaístas que se ocupam com a Judicialização da Política são
entusiastas desse rumo, havendo, por parte de alguns, uma suspeita acerca dos
4
TATE, C.Neal; VALLINDER, Torbjörn. op. cit., 2006.
54
julgamentos políticos realizados por parte de representantes não eleitos da elite
social, econômica e política, em detrimento da ação/julgamento de instituições
políticas (majoritarian political institutions).
As causas necessárias para o surgimento da Judicialização da Política, na
visão de Vallinder e Tate, dizem respeito ao declínio do império soviético e à
manutenção dos Estados Unidos como superpotência mundial, livre para expandir a
revisão judicial (judicial review) a sua zona de influência. Não é à toa que em se
tratando de direito ianque, Tocqueville, ainda no século XIX, assevera não existir
questão política que não seja encarada e decidida por uma corte judiciária: Não há,
por assim dizer acontecimento político em que não ouça invocar a autoridade do
juiz; e daí conclui naturalmente que nos Estados Unidos o juiz é uma das primeiras
forças políticas.
5
A par dessas causas, anota Castro, comentando a obra de Tate e Vallinder, que
a Judicialização também resulta do desenvolvimento histórico de instituições
nacionais e internacionais e de renovação conceitual em disciplinas acadêmicas
6
.
O autor aponta, ainda, que
[...] a reação democrática em favor da proteção de direitos e contra as
práticas populistas e totalitárias da II Guerra Mundial na Europa, que deu
origem, por exemplo, à adoção de uma ampla carta de direitos na
Grundgesetz alemã; a preocupação das esquerdas com a defesa de
direitos contra oligopolistas e oligarcas, como no caso do
trabalhismo inglês (anos 50) ou sueco (anos 70); o resgate intelectual e
acadêmico de teorias dedireitos liberais, presente em autores como
Kant, Locke, Rawls e Dworkin e o concomitante desprestígio de autores
como Hume e Bentham; a influência da atuação da Suprema Corte
americana (especialmente a chamada Warren Court, nos anos 50-60); a
tradição européia (kelseniana) de controle da constitucionalidade das leis;
os esforços de organizações internacionais de proteção de direitos
humanos, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU, de 1948 - todos esses fatores, segundo Vallinder
(1995), contribuíram para o desenvolvimento da Judicialização da
Política.
7
Como se verifica ao se analisar as causas necessárias para o surgimento da
Judicialização da Política, cuida-se de realidade complexa que entremostra uma
conspiração dos fatos em favor do fortalecimento da expansão do poder judicial,
5
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
111.
6
CASTRO, Marcos Faro. op. cit. 1997, p. 148.
7
Id. ibid. p. 149.
55
cada vez mais chamado a decidir sobre questões de natureza política em
contraposição ao majoritarismo, que é a valorização das decisões tomadas pela
maioria, notadamente parlamentar, em detrimento das decisões judiciais.
Além das causas, Tate e Vallinder apontam as condições políticas que
propiciam o surgimento da Judicialização: a) democracia; b) separação de poderes;
c) política de direitos; d) utilização dos tribunais por grupos de interesse; e)
utilização dos tribunais pela oposição; f) inefetividade das instituições majoritárias;
g) percepção das instituições políticas; e h) delegação de assuntos pelas instituições
majoritárias.
Os autores põem a democracia como condição necessária, mas não suficiente,
para o surgimento da Judicialização, e mencionam não imaginar um ditador
convivendo com juízes independentes e tomando decisões de natureza política em
um Estado não democrático. O que parece um paradoxo se justifica em algumas
situações, como a que se vê no Egito, onde convivem regime autoritário e controle
de constitucionalidade. O professor Tamir Moustafa, em estudo sobre o tema,
justifica que a Judicialização da Política no Egito acontece em função de exigências
do mercado, na busca de atrair investimentos estrangeiros. No original,
[...] I examine the economic and political forces driving the
judicialization of politics in Egypt, despite its authoritarian political
structure. First, I contend that the establishment of an independent
constitutional court was primarily motivated by the regime´s pressing
need to attract investment during Egypt´s shift from a closed, command
economy to a market-driven economy in desperate need of global capita.
8
A separação de poderes aparece como a segunda condição política para a
judicialização e, nesse ponto, impõe-se destacar que a obra de Montesquieu
influenciou vários ramos do conhecimento, como a Sociologia, o Direito e a
Ciência Política. Nesse último ramo, o desenvolvimento da Teoria dos Três Poderes
ou da Separação dos Poderes permanece até os dias atuais como a base do
funcionamento do Estado de Direito.
Apesar de integrante da nobreza em decadência e com uma visão liberal do
8
MOUSTAFA, Tamir. Law versus the State: the judicialization of politics in Egypt. Law and
Social Inquiry, 28:4, p.883-930, 2003. Disponível em: <http://www.blackwell-
synergy.com/doi/abs/10.1111/j.1747-4469.2003.tb00826.x?journalCode=lsi>. Acesso em: 13 mar.
2008.
56
Estado, Montesquieu não teve como
objeto de reflexão política a restauração do poder de sua classe, mas sim
como tirar partido de certas características do poder nos regimes
monárquicos, para dotar de maior estabilidade os regimes que viriam a
resultas das revoluções democráticas.
9
A Teoria dos Três Poderes objetiva a manutenção do poder, ocupando-se de
entender como as instituições políticas funcionam e se relacionam. Dessa forma, no
estudo das instituições, Montesquieu preocupa-se com duas dimensões, a saber: a
natureza (quem detém o poder) e o princípio de governo (paixão que o move). Em
relação à natureza do governo, apresenta-os da seguinte forma:
Há três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico.
Para descobrir-lhes a natureza, basta a idéia que deles têm os homens
menos instruídos. Suponho três definições ou, antes, três fatos: um, que o
governo republicano é aquele em que todo o povo, ou apenas uma parte
do povo, tem o poder soberano; o monárquico, aquele em que uma só
pessoa governa, mas por meio de leis fixas estabelecidas; enquanto no
despótico, uma só pessoa, sem lei e sem regra, tudo conduz, por sua
vontade e por seus caprichos.
10
No que tange ao princípio do governo, o autor aponta que o princípio da
monarquia é a honra pois, ela corresponde a um sentimento de classe, a paixão da
desigualdade, o amor aos privilégios e prerrogativas que caracterizam a nobreza.
11
O princípio da república é a virtude, que nada mais é do que o espírito cívico, a
supremacia do bem público sobre os interesses particulares.
12
E, no despotismo, o
princípio é o medo, que por esse motivo o situa no limite entre regime político e
estado de natureza.
13
A Teoria dos Poderes é normalmente difundida como um sistema no qual três
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem suas funções separados e
cada um detentor de igual poder. Essa equipotência, ou equivalência entre os
Poderes também é refutada implicitamente por Montesquieu, quando afirma que o
Judicrio é um poder nulo, „os juízes são a boca que pronuncia as palavras da
lei.
14
Assim, a Teoria dos Poderes prevê uma imbricação e interdependência
9
ALBUQUERQUE. J.A Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, Francisco
(org.). Os clássicos da política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 113.
10
MONTESQUIEU, Charls de Secondat, Baron de. op. cit. 1993.
11
ALBUQUERQUE. J.A. Guilhon. op. cit. 2002, p. 117.
12
Id. ibid. p. 117.
13
Id. ibid. p. 117.
14
ALBUQUERQUE. J.A. Guilhon. op. cit. 2002, p. 119.
57
entre o executivo, o legislativo e o judiciário
15
, nas quais cada poder tem a
capacidade de contrariar outro poder:
Isto é, trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar
o poder do rei (do executivo). É um problema político, de correlação de
forças, e não um problema jurídico-administrativo de organização de
funções.
16
Outra relevante condição é a existência de uma potica de direitos previstos
formalmente na Constituição e que, por via de conseqüência, enseja o
reconhecimento do direito da minoria em face do direito da maioria.
A utilização dos tribunais por grupos de interesse e pela oposição propicia a
expansão do Poderes Judiciais, uma vez que os interesses sociais, econômicos e
políticos vislumbraram nas cortes judiciais uma possibilidade concreta de
consecução de seus objetivos. Os partidos de oposição, de igual modo, se utilizam
desse caminho, na tentativa de se contrapor às decisões tomadas por maioria de
votos em sede parlamentar. Dados estatísticos do Supremo Tribunal Federal
apontam que das 3.379 ADI´s em curso perante aquela Corte (dados de 2005),
45,34% procedem de propostas de partidos políticos (19,77%) e Confederação
Sindical ou entidade de classe (25,57%), o que confirma a tese posta nesse item.
É realidade facilmente identificável a dificuldade dos Estados modernos,
notadamente dos países periféricos, em desenvolver poticas públicas com partidos
políticos frágeis e problemas na manutenção das maiorias parlamentares. Esse
quadro de inefetividade das instituições majoritárias propicia a expansão do poder
judicial e da Judicialização da Política.
A percepção das instituições políticas
surge quando não existe acordo que propicie a governabilidade na cúpula
e uma insatisfação generalizada na base - seria, portanto, uma espécie de
crise aguda do item anterior. A tendência é que prevaleça a legitimidade e
o maior respeito que todos têm pelo Judiciário, que certamente não
estariam gozando os políticos.
17
Por fim, há que se reconhecer uma delegação de assuntos pelas instituições ao
15
Id. ibid. p. 119.
16
Id. ibid. p. 119.
17
Tate e Vallinder (apud CARVALHO, Ernani; OLIVEIRA, Vanessa. A judicialização da política:
um tema em aberto. In: XXVI Encontro Anual da ANPOCS, 2002. Disponível em:
<http://www.politicahoje.com/ojs/viewartiche.php?id=101>. Acesso em: 15 mar. 2008, p. 7.
58
Poder Judiciário. Questões de grande polêmica onde não há interesse do Legislativo
e Executivo opinarem podem vir a ser delegadas ao controle jurisdicional haja
vista o custo político-eleitoral que a tomada de posição nesses assuntos pode
acarretar.
No artigo Judicialização da Política: um tema em aberto, Ernani Carvalho e
Vanessa Oliveira analisam as condições apresentadas por Tate e Vallinder e
apontam que os autores reconhecem o apriorismo de que not to decide is to decide,
ou seja, não decidir pode significar uma atitude política: não se decidir ou não
alterar uma política pública não significa a ausência de decisão por parte dos
tribunais.
18
Esses autores criticam o funcionalismo encontrado na obra de Tate e
Vallinder, considerando que
fatores causais apresentados são em sua maioria macro-fatores
(globalização, fim do comunismo, hegemonia americana etc.). A junção
destes macro-fatores globais com algumas características institucionais
de um país (democracia, separação dos poderes, direitos políticos etc.)
tem como resultante um processo de expansão do modelo judicial
americano.
19
Apesar da importância da obra apontada como um marco no moderno estudo
do tema power of judges , não resta claro como os macro fatorespolíticos e
institucionais operam em conjunto e, dessa forma, como podemos considerá-los
fatores determinantes do fenômeno da Judicialização.
20
E finalizam os autores
brasileiros, indicando que as generalizações se tornem perigosas, por conta da
imprecisão.
No caso da Judicialização da Política nos Estados Unidos, é importante
destacar o artigo de Martin Shapiro, da Universidade da Califórnia, Berkeley. Esse
autor aponta que os EUA são a casa da Judicialização da Política e isso remonta às
origens, quando da organização das colônias e da posição de centralidade da
Suprema Corte nas decisões das principais questões políticas. Ao lado dos aspectos
históricos, Shapiro aponta o modo de seleção dos juízes americanos como fator
importante e até crucial para a judicialização: The American judge typically comes
to the bench after a life of deep and direct involvement in the private sector and of
representing private clients against government rather than vice versa. Para
18
Id. ibid. 2002, p. 8.
19
Id. ibid. 2002, p.8.
20
Id. ibid. 2002, p. 8.
59
concluir: Thus they have both the knowledge needed and the inclination to
intervene in affairs of state to a far greater degree than do European judges.
21
A principal causa da expansão do poder judicial, no entanto, é a judicial
review exercida pela Suprema Corte, mas essa expansão do poder judicial dos
EEUU sempre foi contestada em diversos períodos da história, sejam os partidários
de Thomas Jefferson contra Marshall, os abolicionistas, populistas ou ainda quando
do New Deal na década de 1930, sem mencionar caso mais recente, em 2000,
quando da eleição de George Bush contra Al Gore quando, pela primeira vez na
história, a Suprema Corte decidiu ou teve decisiva influência sobre a eleição
presidencial. Essa decisão, segundo autores estadunidenses como Alan Dershowitz,
foi a mais equivocada dessa Corte, porquanto em erros históricos do passado (Dred
Scott v. Sandford, Plessy v. Ferguson e Bradwell v. State) os juízes acreditavam
julgar de acordo com a Constituão, e seus argumentos guardavam coerência com
pretextos do passado, mas, nesse caso, a maioria deliberadamente violou seus
próprios precedentes.
Em relação aos motivos da expansão do poder judicial nos Estados Unidos,
Shapiro garante que em todo sistema em que há divisão de poderes, cada ramo de
poder pratica atividade de legislação, administração e julgamento, haja vista, o fato
de o veto presidencial ser atividade legislativa, bem como a interpretação da
legislação realizada pelas cortes. E indaga: If the legislative analysis has been done
already, why should do it again? Perhaps because three heads are better than two;
e continua: Judges may not be better than other governors, but they are slightly
different.
22
E o juiz, participando dessa atividade a terceira cabeça , daria, na
opino do autor, mais qualidade nas decisões políticas dos governantes.
Por fim, o autor aponta que o povo dos Estados Unidos abandonou a cabine de
votação em busca da sala do juiz, fortalecendo a expansão do poder judicial. Esse
fenômeno, no entanto, não quer significar que o eleitor/jurisdicionado veja a Justa
como substituto do Legislativo ou Executivo; encara-se a via judicial como
alternativa, mas a arena da discussão muda de acordo com as circunstâncias.
21
SHAPIRO. Martin. The United States In: VALLINDER, Torbjorn ; TATE, Neal, The global
expansion of judicial power: the judicialization of politics. New York and London: New York
University Press, 1995, p. 45.
22
Id. ibid. p. 62.
60
A título de desfecho, impõe-se breve nota acerca de uma tendência verificada
em obras publicadas nos Estados Unidos, notadamente que poderia ser denominada
de descritivismo, ou seja, uma atitude que se limita a descrever a realidade sem
qualquer preocupação crítica. O descritivismo afasta-se das questões reais da
política e em nada contribui para o aperfeiçoamento do constitucionalismo ou da
democracia. Essas atitudes meramente descritivas da realidade de sociedades
complexas consolidam-se e a análise coordenada por Tate e Vallinder - acerca da
expansão global do Poder Judiciário - não foge à regra geral.
3.1.2 O guardião de promessas: Antoine Garapon
Em obra com vs político, mais do que acadêmico, esse autor francês analisa
a justiça e a democracia na sociedade francesa, ocasionalmente tomando como
referência o direito anglo-saxônico, e reconhece o aumento do poder judicial em
detrimento do poder político, atribuindo esse fato a uma transformação da
democracia:
Quanto mais a democracia se emancipar, na sua forma dupla de
organização política e de sociedade, mais ela procurará na justiça uma
espécie de proteção: eis a unidade profunda do fenômeno da vigorosa
ascensão da justiça.
23
Antoine Garapon vislumbra, além do final da guerra fria, que reforça o
entendimento de Vallinder e Tate, outras causas para o surgimento da
Judicialização da Política, dentre elas a apatia popular e a inércia ou incapacidade
do poder político diante das demandas sociais. O Poder Judiciário torna-se, com
efeito, na crise das democracias atuais, uma salvaguarda para as frustrações dos
jurisdicionados, um refúgio de um ideal desencantado.
O sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta
as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e
pela perda do espírito público. A posição de um terceiro imparcial
compensa o déficit democrático de uma decisão política agora voltada
para a gestão e fornece à sociedade a referência simbólica que a
representação nacional lhe oferece cada vez menos.
24
Como se verifica, uma situação de controle sobre os demais poderes decorre
mais de um processo político do que de uma luta da magistratura por mais poderes,
23
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto
Piaget, 1998, p. 23.
24
GARAPON, Antoine. op. cit. 1998, p. 48.
61
apesar de reconhecer-se que há juízes ativistas por motivos políticos. Nesse sentido
assim se expressam autores nacionais referindo-se à obra do Juiz francês:
[...] a interferência judiciária é um fenômeno possibilitado, na prática,
pelos políticos. O ato de legislar sofreu um processo de inflação e isto
tem um rebatimento imediato no judiciário, já que aumenta a área de
atuação do mundo jurídico. Ou seja, a judicialização tem como uma de
suas causas a judicialização das relações sociais efetuada, em boa
medida, pelo mundo político.
25
No caso dos Estados Unidos, essa tendência, pioneiramente apresentada por
Alexis de Tocqueville
26
, das questões políticas desaguarem no Poder Judicrio
aborto, drogas, racismo , ainda pode ser explicada pela forma como os integrantes
desse poder são selecionados. O professor Martin Shapiro
27
aponta a forma como os
magistrados são selecionados como fator importante na expansão do poder judicial,
como expresso no item precedente, haja vista que o juiz estadunidense típico é
egresso de setores que têm interesses conflitantes com o governo.
Apesar do tom crítico na obra de Garapon, e da dúvida que ele próprio lança
sobre as conseqüências desse fortalecimento do poder dos juízes em detrimento da
fragilização dos demais poderes tradicionais (Executivo e Legislativo), vê o autor
como positiva essa transformação, mas alerta: A justa não nos livrará nunca da
perturbação de ter de fazer política, mas convida a inventar uma nova cultura
política.
28
Esse desafio político, no entanto, não pode significar a substituição da forma
tradicional de se fazer política por um governo de juízes, haja vista que
a justiça não pode regular todos os problemas e dizer, simultaneamente, a
verdade científica histórica, definir o bem político e responsabilizar-se
pela salvação das pessoas. Ela não o pode nem o deve, sob pena de nos
fazer afundar a todos num inferno processual frustrante, estéril e
destruidor que não é desejável por ninguém.
29
É de se destacar dois capítulos da obra de Garapon que merecem ser tratados
como pontos principais: o que analisa o inédito poder dos juízes na atualidade e
aquele que trata do novo papel desses agentes políticos, sempre de uma perspectiva
francesa.
25
CARVALHO, Ernani; OLIVEIRA, Vanessa. op. cit. 2002, p.4.
26
TOCQUEVILLE, Alexis. op. cit. 2005.
27
SHAPIRO. Martin. op. cit. 1995.
28
GARAPON, Antoine. op. cit. p. 283.
29
GARAPON, Antoine. op. cit. p. 283.
62
O poder inédito que os juízes detêm na atualidade pode ser justificado por
conta da atitude de guardião da virtude pública atribuída aos juristas nos dias de
hoje; decorre desse poder o ativismo judicial praticado por alguns dos integrantes
da magistratura francesa, entendendo-se por ativismo a escolha, dentre opções
possíveis, daquela que vai acelerar ou travar a mudança social. Constitui esse
entendimento, no entanto, uma simplificação do assunto, pois o avanço social por
decisão judicial construção de escolas, postos de saúde ou leitos de hospital
,nem sempre é possível ante a reserva do possível.
O Autor francês aponta a forma de seleção dos juízes como um dos fatores que
mais contribuem para o ativismo judicial, fato que lhes fortalece a aura de
guardiões da sociedade, dividindo em duas formas o acesso - aristocrático e
burocrático. Naquele, o modelo aristocrático, o recrutamento dos juízes ocorre
entre advogados com reconhecida capacidade e respeitabilidade no meio e é mais
comum nos países que adotam a Common Law. No modelo burocrático, a seleção
acontece por concurso público. Uma particularidade interessante é apontada por
Garapon, quando coteja os dois modelos e suas relações com a política:
Nos países de Common Law, o recrutamento dos juízes é político, como
nos Estados Unidos (temos ainda presente a dificuldade de alguns
presidentes americanos em obter o aval do congresso após ter sondado um
juiz), ou antidemocrático, como na Inglaterra, mas o poder político perde,
de seguida, qualquer tipo de controle sobre a carreira. No modelo
burocrático, como em França, é o contrário que se produz: o recrutamento
dos juízes por concurso é absolutamente democrático, mas a carreira é
política.
30
Ainda sobre o ativismo judicial, o autor o vê como um fator de desagregação
da magistratura, que mais se assemelha a uma soma de individualidades do que a
um poder coeso diante dessa prática. A falta de perspectiva de promoção é um
motivo que relaxa a pressão hierárquica e, por conseqüência, deixa alguns
magistrados tentados a enveredar por uma prática ativista, principalmente quando
os meios de comunicação estão prontos para dar repercussão a qualquer decisão
judicial que implique o aumento do número de jornais vendidos. Essa tentação
populista é criticada por Garapon ante a irresponsabilidade política dos juízes, que
não sofrem qualquer sorte de cobrança potica, e mais, uma política “que não é
30
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto
Piaget, 1998, p. 61.
63
sancionada através da contestação periódica do seu poder
31
, e assim, não é uma
política democrática.
Com relação ao novo papel que o Autor espera dos juízes, impõe-se
primeiramente condenar a infalibilidade atribuída às decisões judiciais,
consubstanciando essa prática uma ingenuidade semelhante à sacralização dos
positivistas em relação à regra jurídica. O juiz o autor refere-se à realidade
francesa , não pode mais ser encarado como um terceiro que se encontre
absolutamente fora do sistema e que por conta disso seja capaz de apontar a solução
mais justa nas questões; isso é ilusão e é imperativo que o juiz seja um terceiro
incluído, ou seja, sempre responsável por suas decisões perante a comunidade
política. Para isso impõe-se uma reformulação do sistema (francês), que passará até
pela necessidade de repensar os arranjos institucionais que hoje definem os limites
de cada poder.
3.1.3 Juízes legisladores: Mauro Cappelletti
A pergunta central de Cappelletti, na obra Juízes Legisladores, é saber se o
juiz é apenas intérprete do Direito ou se sua atividade tem cunho criativo, de
criação do Direito. Essa “criatividade jurisprudencial” é fenômeno que surgiu no
século XX tem absoluta correlação com o ativismo judicial de Antoine Garapon
e é fruto do crescimento das atribuições do Estado e da necessidade de um
aparelho administrativo mais complexo, com o objetivo de integrar e dar atuação às
novas intervenções legislativas.
32
O Autor ressalta que o tema da criatividade do juiz ou a expressão direito
judiciário remonta a Jeremy Bentham, que um século e meio antes já condenara a
liberdade dos juízes ingleses e lutava por uma codificação do Direito na busca de
um instrumento que assegurasse às partes maior grau de certeza.
Para Cappelletti, no entanto, o grande problema não é precisamente a disputa
entre intérprete e criador, mas, admitindo sempre a presença de criatividade do juiz
quando da prolação de decisões, determinar o grau de criatividade e dos modos,
31
GARAPON, Antoine. op. cit. 1998, p. 73.
32
CARVALHO, Ernani; OLIVEIRA, Vanessa. op. cit. 2002, p. 9.
64
limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários.
33
Esse grau de discricionariedade não é absoluto, livre de qualquer limite - alerta.
Um alto grau de criatividade ou ativismo se daria, defendem alguns, porque os
juízes são constantemente chamados a decidir, principalmente em uma sociedade
onde as relações sociais e políticas estão cada vez mais judicializadas, mas esse
argumento é combatido por Cappelletti:
Efetivamente, eles são chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente
a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o
direito. Isto não significa, porém, que sejam legisladores. Existe
realmente, como me proponho agora demonstrar, essencial diferença
entre os processos legislativo e jurisdicional.
34
Essa diferença é a posição de terceiro desinteressado no processo judicial,
livre de qualquer pressão das partes, bem como a regra histórica da impossibilidade
de iniciar-se o processo de ofício, sem provocação das partes, essas todas
características que Cappelletti denomina de virtudes passivas.
Outro tema de fundamental importância, abordado por Mauro Cappelletti, diz
respeito à legitimação democrática do Direito jurisprudencial, que constitui a mais
grave objeção contra essa prática, ou seja, que a atividade das cortes, criando
direitos, consubstancia prática antidemocrática. Isso ocorre porque, com a crescente
independência dos juízes, cada vez menos contas são prestadas à sociedade por
esses agentes políticos. Invoca passagem do juiz inglês Lord Devlin, que diz ser
grande a
tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar
dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo
democrático. Tratar-se, contudo, de desviação só aparentemente
provisória; em realidade, seria ela a entrada de uma via incapaz de ser
reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e
tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.
35
A fim de se contrapor à crítica da carência de legitimidade do ativismo
judicial ou dos excessos criativos de alguns juízes, Cappelletti aponta alguns
argumentos. O primeiro é o de que a classe política nos Poderes Legislativo e
Executivo , nunca foi um paradigma perfeito de democracia representativa, mas
33
CAPPELLETTI. Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999,
p. 21.
34
Id. ibid. p. 21.
35
CAPPELLETTI, Mauro. op. cit. 1998, p. 91.
65
sim representante de grupos de interesses. O segundo argumento contra o deficit de
legitimidade das cortes é a afirmação de que o próprio Poder Judicrio não é
inteiramente desprovido de representatividade. Esse ponto de vista já foi objeto
de estudo de Robert Dahl, que tratando da Suprema Corte, indicou que, a cada vinte
meses seria substituído um juiz, o que consubstanciaria rotatividade e renovação. O
terceiro argumento é a chance dada a grupos (marginais), que não tem chances de
obter apoio político, de obtê-lo por intermédio do processo judicial em que as duas
partes se mantêm em igualdade até a decisão. Um quarto argumento é o de que o
processo judicial é mais participativo do que o legislativo, haja vista que se
desenvolve em direta conexão com as partes, ao contrário das rotinas e manobras de
um processo legislativo. Esse argumento se contrapõe, inclusive, à crítica de que os
juízes não têm ligação com a realidade social, haja vista que o contato diário com
problemas reais dos jurisdicionados, os deixaria mais afinados ainda com a
realidade. E, por fim, o quinto argumento que ataca a noção de democracia como
majoritarismo, no qual um
judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez
momentâneos, da maioria, pode dar uma grande contribuição à
democracia; e para isso em muito pode colaborar um judiciário
suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de
assegurar a preservação do sistema de check and balances, em face do
crescimento dos poderes políticos.
36
36
Id. ibid. p. 107.
66
4 A JUDICIALIZÃO DA POLÍTICA E O CASO BRASILEIRO
O objetivo do presente capítulo é tratar do tema da Judicialização da Política
sob uma perspectiva do caso brasileiro, com ênfase nas relações entre o Poder
Executivo municipal e o Poder Judiciário. A análise da expansão do Poder judicial
no Brasil sempre toma por base as decisões judiciais tomadas em ações direta de
inconstitucionalidade, notadamente a produção jurisprudencial do Supremo
Tribunal Federal, não se considerando ou não se analisando as decisões de juízes
de primeiro grau de jurisdão em matérias de interesse local.
A Judicialização da Potica, como se sabe, apesar de se tratar de um
fenômeno com repercussões globais tem um forte componente local que deve ser
considerado. No caso brasileiro, ao se analisar as condições políticas para o
surgimento da Judicialização da Política, a saber, democracia, separação de
poderes, política de direitos, a utilização dos tribunais por grupos de interesse, a
uso dos tribunais pela oposição, inefetividade das instituições majoritárias,
percepção das instituões políticas e delegação de assuntos pelas instituições
majoritárias (classificação de Neal Tate), constata-se que todas elas estão presentes,
ainda que em diferentes graus.
A esse propósito, Ernani Rodrigues de Carvalho utilizou-se dessa
classificação e fez a aplicação desse quadro condicional ao caso brasileiro,
concluindo que
o mapeamento das condições políticas em torno do fenômeno da expansão
do poder judicial permite dizer que quase todas as condições estão
presentes no caso brasileiro, embora, algumas condições, apesar de
formalmente estabelecidas, não se tenham mostrado realidades factíveis.
1
1
CARVALHO, Ernani Rodrigues. op. cit. 2004, p.130.
67
4.1 A Judicialização da Política e das relações sociais no Brasil:
Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho,
Manoel Palácios Cunha Melo e Marcelo Bauman Burgos
Com o objetivo de delimitar o assunto, no entanto, somente alguns autores
nacionais serão objeto de registro, tomando-se por base a qualidade da produção
e/ou o ineditismo da abordagem. Assim, merece destaque a obra A Judicialização
da Política e das Relações Sociais no Brasil, ensaio desenvolvido por Luiz
Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e
Marcelo Baumann Borges que analisa o panorama da Judicialização da Política e
das relações sociais sob o ângulo das ações diretas de inconstitucionalidades dos
governadores, da Procuradoria-Geral da República, dos partidos políticos, das
associações de trabalhadores, profissionais e empresarias e, por fim, da Ordem dos
Advogados do Brasil, isso no que diz sobre a Judicialização da Política, adotando
análise diferente em relação à judicialização das relações sociais.
Os dados estatísticos expostos ao longo do trabalho demonstram uma
tendência na visão dos autores , à Judicialização da Política no caso brasileiro,
mas, segundo ele, essa tendência não aponta para uma radicalização da posão do
Poder Judiciário em relação aos demais poderes constituídos, tanto que,
o Judiciário, assim, não substituiria à política, mas preencheria um vazio,
que, nas sociedades de massa com intensa mobilização social (como a
brasileira), poderia vir a conceder consistência democrática a [um]
excedente de soberania popular que escapa à expressão do sufrágio.
2
Os autores apontam que o modelo de controle abstrato de constitucionalidade
das leis adotado pela Constituição de 1988 na qual uma comunidade de
intérpretes detém legitimidade para submeter a questão ao Poder Judicrio, é
causa da Judicialização da Política, ao contrário do que aconteceu em outros países,
como a França e o Conselho Constitucional (1958) ou nos Estados Unidos, onde
instituões assumiram novos papéis e foram responsáveis, em larga medida, pela
expansão do Poder judicial. Nesse último país, inclusive, era vontade dos
fundadores das instituições republicanas.
2
VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
Rio de Janeiro: Revan, 1999, p.258.
68
É importante acrescer a esse fato da comunidade de intérpretes , que, após
1988 todos os governos, à exceção do breve período Collor, tiveram ampla maioria
no Parlamento e abusaram na edição de medidas provisórias. E arrematam:
Foi esse o contexto que veio a favorecer a concretização dos partidos e
dos sindicatos no exercício de intérpretes da Constituição, convocando o
Poder Judiciário ao desempenho do papel de tertius capaz de exercer
funções de check and balances no interior do sistema político, a fim de
compensar a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira de
presidencialismo de coalizão.
3
Essa realidade apontada pelos autores, de que existe um processo de
Judicialização da Política em curso no Brasil, mas de forma branda ou não
radicalizada, merece reparo ou atualização, uma vez que os dados estatísticos
utilizados naquela pesquisa limitaram-se, por tratar-se de publicação de 1999, ao
período compreendido entre 1988 e 1998. O STF, cuja posição foi historicamente
defensiva ou restritiva, passou a atuar ativamente em questões de natureza política
após esse período, seja em decisões envolvendo a limitação dos poderes das
Comissões Parlamentares de Inquérito ou influenciando diretamente as políticas de
saúde pública ou educação, para mencionar apenas temas de grande repercussão nos
meios de comunicação.
Essa mudança de rumo, é bem verdade, não significa necessariamente uma
radicalização, mas antecipa uma tendência bem clara dessa judicialização, a partir
de 2000 até os dias de hoje, como se pode ver a tabela
4
a seguir:
76% das decisões limitaram a competência dos Estados
67% das decisões ampliaram direitos individuais
64% das decisões limitaram a competência do Executivo
59% das decisões foram alinhadas com teses do governo
54% das decisões implicaram em aumento de tributos
50% das decisões ampliaram direitos de empresas
46% das decisões implicaram em redução de tributos
35% das decisões implicaram ampliação de direitos de servidores
Revista Análise Jurídica
Como se verifica nos dados há patente participação do Poder Judiciário, nesse
3
VIANNA, Luiz Werneck, et al. op. cit. 1999, p. 51.
4
CHAER, Márcio. A suprema guinada. Revista Análise Justiça. Análise Editorial, Supremo
Tribunal Federal, n. 02. 2006, p.1.
69
particular, do STF, na condução das principais questões federativas, nas de direitos
fundamentais e nas questões de tributação, apesar da tendência, nesse último tema,
da majoração dos tributos (54%) em face da diminuição (46%).
De igual modo, não restam dúvidas de que o modelo de controle abstrato de
constitucionalidade e a comunidade de intérpretes são os grandes responsáveis pela
Judicialização da Política, como expresso há pouco, na medida em que levam ao
Judicrio demandas dos mais variados matizes na forma de ações
diretas/declaratórias de inconstitucionalidade/constitucionalidade. Esses
intérpretes, consoantes os dados estatísticos apontam, em grande percentual são
agentes do mundo político (governadores e partidos políticos), o que indica também
uma situação aparentemente paradoxal, porquanto reclamam da Judicialização da
Política, mas contribuíram em larga escala pela atuação do Poder Judiciário, haja
vista a tendência atual dos juízes e tribunais brasileiros de não auto-restringirem as
condutas às suas competências historicamente reservadas e se tornarem cada vez
mais agentes políticos (ativismo judicial).
Os partidos políticos - notadamente os de esquerda -, e os sindicatos
contribuíram muito com o aumento de ações diretas de inconstitucionalidade
perante o STF, apesar da participação ativa dos governadores de Estado e do
Ministério Público, ambos, de igual modo, objeto de comentários a seguir. As
estatísticas fornecidas pelo Supremo Tribunal Federal indicam isso, quando, de
4.101 ADI´S (1988/ junho. 2008), 39,3% foram interpostas pelos partidos políticos
e confederação sindical/entidade de classe. A seguir o quadro completo:
LEGITIMADOS
QUANT.
%
Presidente da República
6
0,1
Mesa do Senado Federal
1
0,0
Mesa da Câmara dos Deputados
0
0,0
Mesa da Assembléia Legislativa ou Câmara Legislativa do Distrito Federal
43
1,0
Governador de Estado ou do Distrito Federal
1.044
25,5
Procurador-Geral da República
891
21,7
Conselho Federal da OAB
166
4,0
Partido Político com representação no Congresso Nacional
734
17,9
Confederação Sindical e Entidade de Classe de Âmbito Nacional
876
21,4
Mais de 1 legitimado **
3
0,1
Outros (legitimados)
337
8,2
Total
4.101
100,0
70
Fonte: Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Legitimado - 1988 a 2008*.
* Dados de 2008 atualizados até junho.
** confederação sindical e partido político.
Como se verifica, e mencionado há pouco, somadas as participações dos
governadores e dos partidos políticos, chega-se à impressionante marca de 43,4%
do total de ADI´s desde 1988. Os autores da pesquisa apontam, no entanto, que
esses agentes políticos se valem da Judicialização da Política na
defesa da governabilidade e da racionalização da administração pública,
ameaçadas, de forma aguda no início dos anos 90, à época da elaboração
das Constituições estaduais, e, de modo permanente, após a promulgação
delas, em razão da capacidade de apropriação de uma parcela da
representação política por interesses corporativos.
5
Cenário mais grave apresenta-se na tramitação da Reclamação nº 4.335-AC,
ainda não julgada em definitivo pelo STF, cujo desfecho pode vir a pôr fim ao
papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade pela via difusa. A
Reclamação 4.335-5/AC, cujo julgamento ainda se encontra pendente
6
, foi acatada
pelos votos do relator, ministro Gilmar Mendes, e do ministro Eros Grau, e se
insurge contra decisão do Juízo da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio
Branco (AC), que indeferiu pedido de progressão de regime em favor de Odilon
Antônio da Silva Lopes e outras nove pessoas que estão cumprindo penas de
reclusão em regime integralmente fechado, em decorrência da prática de crimes
hediondos.
Os argumentos postos na Reclamação foram aceitos pelos dois ministros
citados. O ministro Sepúlveda Pertence negou seguimento ao pedido, mas concedeu
Habeas corpus de ofício, o que foi acompanhado pelo ministro Joaquim Barbosa,
que não conheceu da reclamação.
Apesar da pendência do julgamento, o tema se reveste de importância, eis que,
em sendo confirmada a posição do Ministro Relator, o Supremo Tribunal Federal
5
VIANNA, Luiz Werneck, et al. op. cit. 1999, p.73.
6
Tramitação da Reclamação 4.335-5/AC: Após o voto-vista do Senhor Ministro Eros Grau, que
julgava procedente a reclamação, acompanhando o Relator; do voto do Senhor Ministro Sepúlveda
Pertence, julgando-a improcedente, mas concedendo habeas corpus de ofício para que o juiz
examine os demais requisitos para deferimento da progressão, e do voto do Senhor Ministro
Joaquim Barbosa, que não conhecia da reclamação, mas igualmente concedia o habeas corpus,
pediu vista dos autos o Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Ausentes, justificadamente, o
Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presidência da Senhora
Ministra Ellen Gracie. Plenário, 19.04.2007.
71
extinguirá a atribuição prevista no art. 52, X, da Constituão Federal:
[...] suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, ou
seja, o julgamento em curso pode ser o réquiem do controle difuso no
âmbito da Teoria Constitucional brasileira, haja vista que reconhece o
cabimento de reclamações que comprovem prejuízo resultante de
decisões contrárias às teses do STF, em reconhecimento à eficácia
vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de
controle concentrado.
7
O voto do ministro Relator, ao tornar desnecessária a intervenção prevista no
inciso X, art. 52, CF/88, nesse particular, transforma o Senado Federal em órgão de
publicidade das decisões do STF. Em trabalho publicado logo após o voto do
ministro Eros Grau e consubstanciando autêntica reação à tendência da votação da
Reclamação 4.335-AC, Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e
Martonio MontAlverne Barreto Lima enfrentam o tema objeto do presente texto de
forma incisiva, já na abertura:
A recente polêmica que vem sendo travada no Supremo Tribunal Federal
a partir da Reclamação 4335-5/AC, cujo relator é o Ministro Gilmar
Mendes, não fará da decisão que vier a ser tomada, com certeza, apenas
mais um importante julgado.
1
Mais que isso: ao final dos debates entre os
ministros daquela Corte, pode-se chegar, de acordo com o rumo que a
votação tem prometido até o momento, a uma nova concepção, não
somente do controle da constitucionalidade no Brasil, mas também de
poder constituinte, de equilíbrio entre os poderes da república e de
sistema federativo.
8
Esse tema o desfecho da Reclamação n.º 4.335-AC trazido a título de
ilustração para os limites do presente texto, pode vir a representar uma
circunstância de invasão de competência constitucional do Poder Judiciário sobre
uma competência privativa do Senado Federal prevista expressamente na
Constituição Federal (inciso X, art. 52) e fruto da vontade do Poder Constituinte
originário, o que se mostra mais grave até do que a Judicialização da Política.
Além do aspecto atinente à participação do Senado Federal no peculiar modelo
de controle de constitucionalidade brasileiro, outras questões, de igual importância,
devem ser atingidas, mantida que seja a tendência manifesta nos votos dos
7
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n.º 1.880, 23.05.2002. Relator Ministro Marco
Aurélio.
8
STRECK, Lenio Luiz; CATTONI, Marcelo Andrade de Oliveira; LIMA, Martonio MontAlverne
Barreto. Mutações na corte: a nova perspectiva do STF sobre controle difuso. Revista Consultor
Jurídico, 3 ago. 2007. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/static/text/58199,1> Acesso
em: 21 fev. 2008, p.1.
72
ministros Gilmar Mendes e Eros Grau. Assim, também contraria a Constituão
invadir competência de outro Poder e estender ao controle difuso os mesmos efeitos
do controle abstrato. De igual modo, a decisão da Reclamação n.º 4.335-AC pode
determinar a substituição do poder constituinte (originário) pelo Poder Judiciário,
fator que afronta diretamente o sistema federativo e, em última análise, a
democracia.
Com efeito, a questão da vontade do poder constituinte originário ser
desprezada parece ser a principal e mais grave conseqüência da decisão que se
entremostra com o voto do ministro Gilmar Mendes, ou seja,em determinadas
situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição
do poder constituinte pelo Poder Judicrio. E com isso soçobra a democracia.
9
E
continuam os autores citados,
[...] a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma
concepção decisionista da jurisdição e contribui para compreensão das
cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes. Ora, um
tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode inventar
o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa
democracia.
10
4.2. Ministério Público e política no Brasil: Rogério Bastos Arantes
O papel desempenhado pelo Ministério Público brasileiro após a Constituição
de 1988 no sentido de contribuir diretamente com a Judicialização da Política é
bem claro, como se verifica das estatísticas apresentadas, ou seja, entre 1988 e
2008, o procurador geral da República foi responsável por 21,9% das Ações Diretas
de Inconstitucionalidade perante o STF.
A análise da participação desse agente no cenário da Judicialização da Política
é tema do estudo de Rogério Bastos Arantes, denominado Ministério Público e
Política no Brasil onde resta analisada a reconstrução institucional do Ministério
Público, iniciada com o advento do Código de Processo Civil de 1973 e consolidada
com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Apesar de tratar o problema
da justiça sobre outro ângulo participação do Ministério Público e Judicialização
9
Id. ibid. p.2.
10
Id. ibid. p. 2.
73
da Política , a opino do autor sobre a origem da expansão do Poder judicial é
semelhante ao ponto de vista de Werneck Vianna, ou seja,
que o problema da justiça tem suas raízes mais profundas na natureza
das novas funções assumidas pelo sistema judicial, muito além,
portanto, dos aspectos estruturais e processuais que têm sido
normalmente apontados.
11
Logo na introdução do livro, no entanto, o autor já deixa antever sua opino
sobre o fenômeno da judicialização, ou, mais genericamente, da relação entre poder
e direito:
No final, o que se percebe é que estamos diante de um mesmo e antigo
paradoxo: a democracia política deficitária dá chance à emergência de um
poder externo, pretensamente neutro ou apolítico, no qual são depositadas
velhas e novas esperanças. Passada a euforia inicial de sua chegada, logo
se percebe que um poder assim independente não pode seguir sem
controle. No momento dessa descoberta, o problema da representação se
coloca e a política toma o seu lugar novamente.
12
O autor aponta de forma incisiva para um voluntarismo dos membros do
Ministério Público, orientados ideologicamente em busca da auto-afirmação do
papel político da instituição, mas com base em premissa no mínimo discutível ou
simplista - a da hipossuficiência da sociedade brasileira, ou seja,
84% dos entrevistados (membros do Ministério Público) concordaram
total ou parcialmente com a afirmação de que a sociedade brasileira é
hipossuficiente, isto é, incapaz de defender autonomamente os seus
interesses e direitos, e que, por isso as instituições da Justiça devem atuar
afirmativamente para protegê-la.
13
Trata-se de uma visão messiânica do papel do Ministério Público que vem a
ser corroborada ou justificada por outro dado: 80% dos entrevistados apontam o
Congresso Nacional como o responsável pela crise da Justiça brasileira, ou seja,
causas externas ao sistema judicial. Sobre essa visão é importante destacar, o fato
de que
A decepção com o funcionamento do regime representativo, nos marcos
de uma sociedade civil supostamente frágil, conduz a tentativas de
contornar a esfera política em busca de efetividade dos direitos. Esse é
um dos elementos que compõem o universo ideológico do voluntarismo
político de promotores e procuradores de hoje, embora também remonte a
11
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC/
Fapesp, 2002, p. 13.
12
Id. ibid. p. 17.
13
ARANTES, Rogério Bastos. op. cit. p. 128.
74
uma antiga tradição de pensamento político.
14
Essa antiga tradição é apontada por Bastos Arantes, ao se referir à criação da
Justa Eleitoral e da Justiça do Trabalho ainda entre 1930-1940, quadra da história
republicana quando se teria conhecido a primeira onda de Judicialização da
Política, o que já demonstrava a inclinação brasileira no sentido de adotar o
método judicial de resolução de conflitos.
15
Aspecto importante para a análise do papel do Ministério Público na
Judicialização da Política diz respeito ao resultado da pesquisa O Ministério
Público e a Justiça no Brasil, desenvolvida entre 1996 e 1996 pelo Instituto de
Desenvolvimento Ecomico-Social (IDESP) e referida por Bastos Arantes.
Naquele estudo,
87% dos entrevistados concordavam total ou parcialmente com a
afirmação de que cabe obrigatoriamente ao Ministério Público exigir da
administração pública que assegure os direitos previstos na Constituição
Federal, nas leis e nas promessas de campanha eleitoral. Quando houver
lei garantindo os direitos não há discricionariedade administrativa.
Apenas 11% discordaram e 2% não tinham opinião a respeito. Ou seja, a
alegação de restrição orçamentária, ou outros motivos normalmente
invocados para sustentar decisões sobre políticas públicas em situação de
escassez, não podem afastar da apreciação judicial a conduta política do
administrador público, segundo opinião de integrantes do Ministério
Público.
16
Acerca do assunto, as escolhas dramáticas da Administração Pública e
decisões judiciais que determinam o cumprimento das prestações positivas,
independentemente de qualquer restrição orçamentária, é importante mencionar
passagem de Gustavo Amaral:
Ao nosso ver, deslocar a decisão para o Judiciário em hipóteses que
envolvam escolhas dramáticas, é querer alargar para aquele Poder
competências que não são suas. O Judiciário não está legitimado pelo
voto para tomar tais opções. Muito pelo contrário, é a própria
Constituição que cerca a magistratura com garantias próprias para que
possa ela desempenhar seu ofício alheia a pressões de momento.
17
Por fim, sobre o discurso de Bastos Arantes na obra em comento, Débora
Alves Maciel e André Koerner sintetizam suas opiniões nas seguintes palavras:
14
Id. ibid. p. 130.
15
Id. ibid. p.131.
16
Id. ibid. 134.
17
AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e o conflito entre poderes. In:
MELLO, Celso de Albuquerque et al. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 112.
75
Na abordagem de Arantes, o modelo de uma república constitucional com
marcada separação dos poderes, cujo equilíbrio mantém o predomínio das
instâncias eleitorais-majoritárias de representação. O modelo da
Constituição é o liberal e o do Judiciário, de órgãos técnicos voltados
predominantemente à aplicação da lei aos casos individuais e com
limitada interferência nas decisões legislativas e governamentais.
18
E sobre a obra de Werneck Viana, apontam o seguinte traço característico:
Werneck Vianna toma como modelo uma república constitucional, em que
há cooperação e complementaridade entre os poderes na produção de
decisões políticas, para as quais concorrem formas de representação
eleitorais e funcionais. As dimensões da participação política e a
deliberação pública são enfatizadas. O modelo da Constituição é o
democrático-comunitário, no qual o Judiciário tem o papel de formular,
segundo determinados procedimentos de que participa a comunidade de
intérpretes, os valores compartilhados, bem como o de servir de canal de
expressão para grupos que demandem a promoção dos objetivos comuns
expressos pelos direitos fundamentais. Assim, amplia-se o escopo, a
visibilidade e as ocasiões em que os seus agentes atuam em relação às
autoridades governamentais, à burocracia e outros espaços sociais.
19
4.3 Judicialização da Política e Poder Legislativo
A Judicialização da Política, como fenômeno, manifesta-se principalmente no
Poder Executivo, mais especificamente, quando da tomada de decisões judiciais
com a conformação política que deveriam ficar a cargo dos administradores
públicos. A expansão dos poderes judiciais, no entanto, também se verifica em face
de decisões do Poder Legislativo, como será demonstrado neste tópico.
As principais cortes brasileiras (TSE e STF), no ano de 2007, decidiram que
perderiam o mandato os parlamentares eleitos pelo sistema proporcional (deputados
federais, estaduais, distritais e vereadores) que houvessem mudado de partido no
curso da legislatura, configurando essas decisões verdadeira reforma no panorama
das regras do processo político, e como legislador positivo. A depender do
entendimento dos juízes brasileiros pelo menos a cúpula , a reforma política, que
é tema eminentemente político, deve ficar a cargo do Poder Judicrio.
20
18
MACIEL, Débora Alves; KOERNER, Andrei. Sentidos da judicialização da política: duas
análises. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 57, 2002.
19
Id. ibid.
20
No endereço eletrônico do Tribunal Superior Eleitora (<http://www.tse.gov.br>) consta o texto
seguinte orientando como os partidos devem proceder em caso de infidelidade partidária:
Fidelidade Partidária. O Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução - TSE n.º 22.610, de
25.10.2007, alterada pela Resolução - TSE n.º 22.733, de 11.03.2008, que disciplina o processo de
76
A questão se iniciou com a Consulta n.º 1398 (1997) do Partido da Frente
Liberal PFL perante o Tribunal Superior Eleitoral, onde restou indagado o
seguinte: Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo
sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação
ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda? . Em
resposta à Consulta, o Pleno do Tribunal Superior Eleitoral disciplinou a matéria
por meio da Resolução n.º 22.610, matéria relatada pelo ministro Cézar Peluso,
onde restou respondido que o parlamentar perderá o mandato, a menos que o pedido
de cancelamento ou transferência tenha se dado por justa causa, na íntegra:
Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça
Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de
desfiliação partidária sem justa causa.
§ 1º - Considera-se justa causa:
I) incorporação ou fusão do partido;
II) criação de novo partido;
III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
IV) grave discriminação pessoal.
§ 2º - Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30
(trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30 (trinta)
subseqüentes, quem tenha interesse jurídico ou o Ministério Público
eleitoral.
§ 3º - O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode pedir a
declaração da existência de justa causa, fazendo citar o partido, na forma
desta Resolução.
21
Após a Resolução do TSE, foram impetrados mandados de segurança perante o
Supremo Tribunal Federal, tombados sob os números 26.602, 26.603 e 26.604, onde os
dois primeiros foram indeferidos e o último deferido parcialmente. O STF
confirmou o entendimento apresentado pelo TSE no sentido de determinar que os
parlamentares eleitos proporcionalmente devessem perder seus mandatos em caso
de cancelamento ou transferência de partido sem justa causa.
perda de cargo eletivo e justificação de desfiliação partidária. De acordo com a Resolução, o
partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo
eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. Conforme § 1º, do art. 1º,
considera-se justa causa a incorporação ou fusão do partido, a criação de novo partido, a mudança
substancial ou desvio reiterado do programa partidário e grave discriminação pessoal. Podem
formular o pedido de decretação de perda do cargo eletivo o partido interessado, o Ministério
Público Eleitoral e aqueles que tiverem interesse jurídico, de acordo com a norma. O TSE é
competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal. Nos demais casos, é
competente o Tribunal Eleitoral do respectivo Estado. Leia, na íntegra, a Resolução - TSE n.º
22.610/2007, com redação dada pela Resolução - TSE nº 22.733/2008.
21
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 22.610 (2007).
77
Houve votos vencidos dos ministros Eros Grau e Joaquim Barbosa em relação
à possibilidade da perda dos mandatos, com a seguinte fundamentação:
a) a inexistência de previsão Constitucional de perda de mandato eletivo
em caso de cancelamento de filiação ou troca de legenda; b) a retirada
expressa pela Constituição de 1988 da norma prevista na Constituição
pretérita que consagrava da fidelidade partidária significa que o rol
taxativo do art. 55 não comporta a inserção de tal hipótese; c) a criação
de nova hipótese de perda de mandato transformaria o Poder Judiciário
em Poder Constituinte derivado e afrontaria os valores fundamentais do
Estado de Direito; d) o titular do poder é o povo e, portanto, a fonte de
legitimidade do exercício do mandato não poderia residir somente nos
partidos políticos.
22
O STF, ao julgar o mandado de segurança e confirmar o entendimento do TSE,
ainda entendeu em fixar o marco temporal a partir de quando as mudanças
partidárias gerariam a perda do mandato. Optou a maioria dos ministros pela data
da resposta à Consulta pelo TSE, ou seja, 27/03/07.
Sobre o tema reforma política e partidos, há alguns consensos, dir-se-ia até
unanimidades, no pensamento político nacional, ou seja, é fundamental para a
democracia que os partidos políticos tenham força, coesão, discurso; que sejam
capazes de fazer triagem ética nos seus candidatos e ter representatividade popular.
A dança de partidos, tão comum a considerável extrato de parlamentares que às
vezes mudam de partido antes de tomar posse no Parlamento , é prática nefasta e
deve ser combatida. Não se pretende fazer apologia do fisiologismo político ou do
sistema político desorganizado ou ainda das distorções verificadas no Estado
brasileiro.
O que não parece razoável e democrático é um órgão do Poder Judiciário,
ainda que a cúpula desse Poder empreenda uma reforma política com apoio em um
pedido de consulta perante o TSE, definindo quando o parlamentar deva perder seu
mandato, as exceções admissíveis, o período a partir de quando essa regra passa a
vigorar, como se o Congresso Nacional houvesse disciplinado a matéria após
exaustivo debate nas comissões parlamentares e plenário das duas casas
legislativas. Nesse sentido, a crítica bem ponderada de Letícia Pimenta Madeira
Santos:
22
SANTOS, Letícia Pimenta Madeira. A regulamentação da fidelidade partidária à luz do ativismo
judiciário. Jus Navegandi. Teresina, ano 12, n. 1748, 14 maio 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11156>. Acesso em: 19 jun. 2008.
78
Todavia, não há como se sustentar em bases jurídicas a disciplina de dois
processos de perda de mandato eletivo até então inexistentes no
ordenamento pelo TSE, pois isto implicou na disposição sobre direito
eleitoral e processual, invadindo a competência privativa da União para
legislar sobre referidas matérias, em flagrante contrariedade ao art. 22, I
da CF/88.
De fato, a leitura da Resolução TSE nº 22.610/07 não deixa dúvidas de
que esta traz normas gerais, abstratas, inovadoras e imperativas em
matéria de direito eleitoral (fixa hipóteses de justa causa para
manutenção do mandato) e processual (cria hipótese de revelia, estipula
os legitimados ativos, prazos de manifestação das partes e julgamento,
estabelece irrecorribilidade das decisões, etc.) sem, contudo, serem
validamente editadas pelo poder competente.
23
Fato que merece destaque a título de desfecho desse tópico é a reação da
denominada opino pública em relação a temas como tratado pelo TSE na
Resolução n.º 22.610/07, ou seja, verifica-se ampla aceitação dos rumos apontados
pelo Poder Judicrio pela maioria da população que cada vez mais se desilude com
a classe política e com as instituões políticas de um modo geral. Essa opinião da
população favorável a tudo o que combata a corrupção política -, contribui e
aguça a disposição dos juízes para eles próprios empreenderem reformas que
deveriam ficar a cargo do Parlamento.
Em pesquisa divulgada pelo Senado Federal, realizada em maio de 2007 com
1.094 eleitores de 27 capitais brasileiras, chegou-se à seguinte conclusão no que
concerne à fidelidade partidária:
Fidelidade partidária
Para 61% dos eleitores ouvidos sobre o tema, os parlamentares devem ser
obrigados a ficar pelo menos três anos no partido pelo qual se elegeram.
Outros 29% entendem que o político devolva o cargo para a legenda pela
qual se elegeu, caso queira trocar de partido. Apenas 7% acham que os
parlamentares podem continuar trocando de partido quantas vezes
quiserem.
Na análise do segmento por renda familiar, os eleitores que ganham até
dois salários mínimos são os que mais defendem a fidelidade partidária.
Para 65% desse grupo, os parlamentares devem ficar pelo menos três anos
no mesmo partido. Quanto ao gênero, as mulheres são as que mais
defendem a fidelidade partidária - 68% das mulheres contra 53% dos
homens ouvidos são favoráveis à permanência dos parlamentares na
mesma legenda durante três anos.
24
23
SANTOS, Letícia Pimenta Madeira. op. cit. 2007 [on line].
24
BRASIL. Senado Federal. O eleitor e a reforma política, jul./2007. Secretaria de Pesquisa e
Opinião Pública. DataSenado. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/senado/
centralderelacionamento/sepop/pdf/Relat%C3%B3rio%20Reforma%20Pol%C3%ADtica.pdf>.
Acesso em: 21 jun. 2008.
79
5 A JUDICIALIZAÇÃO NO ÂMBITO LOCAL
O presente capítulo aborda a Judicialização da Política considerando os
limites locais, ou seja, no âmbito municipal, especificamente em Fortaleza, entre os
anos 2000 e 2004. Os estudos nacionais sobre Judicialização da Política analisam a
questão com a partir de decisões em controle de constitucionalidade de leis ou atos
normativos realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda há autores que se
ocupam da perspectiva local relativamente à judicialização das relações sociais,
como se verifica da obra já mencionada em capítulo anterior A Judicialização da
Política e das Relações Sociais no Brasil
25
, onde é analisada a atuação dos
juizados especiais no Estado do Rio de Janeiro, e notadamente em Niterói.
O núcleo central de indagações deste capítulo é o seguinte: a Judicialização da
Política pode ser estudada sob a perspectiva local? São identificáveis os elementos
que caracterizariam a Judicialização da Política no Município? Esse fenômeno visto
sob o prisma local é mais dramático do que do ponto de vista nacional?
As respostas que se pretende buscar partem de uma adaptação do modelo
apresentado inicialmente por C. Neal Tate no capítulo 3, da obra The Global
Expansion of Judicial Power, onde são postas dentre as condições que favorecem a
expansão dos poderes judiciais: i) democracia; ii) a separação de poderes; iii)
existência de uma política de direitos (bill of writs); iv) utilização dos tribunais por
grupos de interesses; v) utilização dos tribunais pela oposição; vi) ineficácia das
instituões majoritárias e percepção dessa deficncia pela população em geral; e
vii) delegação, por parte das instituições majoritárias, aos tribunais, de assuntos
polêmicos do ponto de vista da opino pública.
Os elementos democracia, separação dos poderes e a presença de uma política
de direitos são de fácil verificação no atual estádio de desenvolvimento do Estado
25
VIANNA, Luiz Werneck, et al. op. cit. 1999.
80
brasileiro, principalmente após o advento da Constituão Federal de 1988 e da
esteira de avanços que surgiram após esse marco político. Além do mais, a
Constituição Federal impõe aos demais entes - e Estados, Distrito Federal e
municípios -, a observância de parâmetros como a democracia, a separação e
harmonia entre os poderes e um rol de direitos fundamentais.
Os demais elementos, por sua vez, têm relação mais direta com o objeto do
presente capítulo, uma vez que, no nível local, é de fácil constatação a utilização do
Poder Judiciário por grupos de interesses e partidos políticos de oposição, tudo isso
tendo como agravante a ineficiência das instituições majoritárias. Acresça-se a esse
elemento a ação do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil,
secção Ceará, como agentes importantes na Judicialização da Potica no plano
local. No que respeita à delegação de assuntos polêmicos para a opinião pública aos
tribunais, não se verifica essa prática no espaço municipal; daí não ser abordado
esse item.
Assim, o presente capítulo, tomando as condutas de quatro agentes com amplo
poder de articulação e influência na cena local, tentará responder aos
questionamentos feitos. Os agentes são os seguintes: i) parlamentares e partidos de
oposição; ii) Ministério Público Estadual e Federal; iii) Conselho Seccional da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE); e iv) grupos de interesse, como
sindicatos e associações de classe. Com base em casos judiciais restará
demonstrado como o Poder Judiciário influenciou as decisões de natureza políticas
no período delimitado na introdução, a saber, 2000 a 2004.
Uma questão que merece ser destacada e respeitante aos casos concretos
trazidos ao presente capítulo é a de que não se pretende discutir o acerto da decisão
do ponto de vista da Dogtica Jurídica, apesar de mencionados alguns erros
procedimentais, mas sim demonstrar a predisposição dos membros do Poder
Judicrio de interferir em temas afeitos exclusivamente ao Poder Executivo, com
origem na provocação dos agentes ou atores selecionados, jamais exercendo a auto-
contenção de sua atividade.
81
5.1 Partidos e parlamentares de oposição
Os partidos de oposão têm significativa parcela de responsabilidade na
expansão do Poder judicial no âmbito municipal, na medida em que protagonizaram
diversas ações judiciais contra legislações aprovadas pela maioria dos parlamentos,
notadamente nas áreas tributária e econômica. No período compreendido entre 2000
e 2004, o Município de Fortaleza foi governado por Juraci Vieira de Magalhães, do
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que exerceu o cargo de
prefeito pela terceira vez os mandatos anteriores foram exercidos entre os anos
1991/1992 e 1997/2000. Do ponto de vista político, teve como principais partidos
de oposição o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista
(PDT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Com auxílio da imprensa, vereadores integrantes do denominado centro-
esquerda, utilizaram-se com freqüência das ações populares e ações diretas de
inconstitucionalidade insurgindo-se contra leis que trataram de criar, majorar ou
modificar tributos.
É paradigmática a tentativa das últimas administrações municipais de
Fortaleza em tornar oneroso o serviço de coleta de lixo domiciliar, e, nesse
particular, não está em pauta o mérito das ações propostas; não se discute se as leis
eram ou não inconstitucionais. A abordagem diz respeito, tão-somente, à utilização
desse mecanismo (ação judicial) por minorias parlamentares derrotadas no voto em
plenário. As ações, em regra, eram precedidas de farta cobertura jornalísticas com
viés claramente político, não precisando dizer que medidas judiciais suspensivas de
exações tributárias granjeiam farta simpatia da população e dos meios de
comunicação em geral.
Essa constatação, a de que os partidos e parlamentares utilizaram a via
judicial com objetivos políticos, enseja reflexões e celeumas nacionais. O episódio
das CPIs dos Correios, onde todo informante ou testemunha depunha munido de
Habeas corpus preventivo, malgrado o acerto da maioria das decisões concedidas
pelo STF, produzem indignadas críticas dos deputados e senadores da República.
Os mesmos parlamentares que tanto utilizaram a via judicial hoje vociferam por
verem suas atribuições tolhidas por ordens judiciais.
82
Em levantamento apresentado pelo STF, os partidos políticos foram
responsáveis por 668 (seiscentos e sessenta e oito) ações diretas de
inconstitucionalidade ajuizadas desde 1988, o que representa 19,77% das ADI´s
apresentadas. Indica esse número uma ativa participação, levando-se em conta o
fato de que a Constituição Federal faculta legitimidade a 10 pessoas jurídicas e
entidades (art. 103, CF/88).
Fica evidenciado, portanto, o fato de que os atores políticos vereadores,
deputados e partidos poticos vêm contribuindo de forma ativa na Judicialização
da Potica ao deliberadamente lançar mão da via judicial para discutir a
constitucionalidade dos projetos de lei aprovados pela maioria dos parlamentos.
No período compreendido entre 2000 e 2004 os partidos políticos ou
parlamentares de oposão interpuseram diversas ações populares, ações civis
públicas e até mesmo ações ordinárias contra atos do Poder Público. A título de
exemplo enumeramos algumas delas.
Ação Popular de Francisco Lopes da Silva (Vereador Chico Lopes), na
Vara da Fazenda Pública (Processo n.º 2003.02.62769-3): contra a
implantação da concessão do sistema de limpeza urbana.
Ação Ordinária com pedido de tutela proposta pelo PDT, na 6ª Vara da
Fazenda Pública, (Processo n.º 2003.02.35934-6): contra a implantação da
concessão do sistema de limpeza urbana.
Ação Popular dos vereadores Luis Carlos Andrade Morais (Lula Morais),
Francisco Pinheiro, José Maria Pontes, Durval Ferraz; Rogério Pinheiro,
José Airton Cirilo, Paulo Mindelo, Paulo César Feitosa, Iraguassu
Teixeira, Luis Arruda, Elpídio Nogueira, Martins Nogueira, Armando
Barroso de Farias, na 4ª Vara da Fazenda Pública (Processo n.º
2003.02.40390-6): contra a implantação da concessão do sistema de
limpeza urbana.
Ação Popular do vereador Heitor Correia Férrer, na 1ª Vara da Fazenda
Pública (Processo n.º 2004.02.71482-2: contra a licitação para contratação
dos serviços de coleta do lixo indivisível (varrão, poda, entulho não
83
compreendidos na concessão)
Ação Popular do vereador José Maria Pontes, na 6ª Vara da Fazenda
Pública (Processo n.º 2003.02.63572-5): contra a implantação do Cartão
Saúde.
Ação Popular dos vereadores Inácio Arruda, Francisco Lopes, Lula Morais
e Heitor Ferrer, na 5ª Vara da Fazenda Pública (Processo n.º
2000.0120.8719-0): contra a implantação do pedágio da Ponte sobre o rio
Ceará.
Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Partido dos
Trabalhadores (PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido
Democrático Trabalhista (PDT), e Partido Comunista do Brasil (PC do B):
contra a criação de órgão de regulação dos serviços concedidos de limpeza
urbana; criação de um fundo municipal de limpeza urbana e contra a
concessão do serviço remunerado por tarifa.
Para os fins do presente título, será analisada a ADIN n.º 2002.0001.0070-3/0,
movida pelo PT, PSB, PDT e PC do B, mencionada por último no parágrafo
anterior. Com efeito, os partidos autores se insurgem na ação de
constitucionalidade contra os seguintes pontos, como se extrai da decisão do
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará: a) criação da Agência Reguladora de
Limpeza (ARLIMP); b) criação do Fundo Municipal de Limpeza Urbana; e c)
política de concessão do servo de limpeza urbana por meio de tarifa, tudo isso
objeto das disposições da Lei Municipal n.º 8.621/02.
As impugnações postas duas primeiras alíneas acima destacadas criação da
agência e criação do fundo , não foram providas pela relatoria da ADIN, que
reconheceram sua constitucionalidade. Dessa forma, a presente análise vai se deter
com profundidade no último item, ou seja, a possibilidade de utilizar-se da
concessão para contratação de serviço de limpeza urbana, a ser remunerado por
tarifa.
84
Não se pode, entretanto, deixar de destacar o que quatro dos principais
partidos com assento nos parlamentos brasileiros pretenderam com a ação movida,
que foi expurgar do ordenamento jurídico municipal não uma tarifa que se
julgava injusta ou exacerbadamente elevada, mas sim todo um sistema de limpeza
urbana planejado com base em um modelo que previa a remuneração do serviço por
tarifa. Cuida-se de movimento potico que demonstra a intenção de interferir
diretamente nas diretrizes da Administração Pública e propicia a Judicialização da
Política, sem mencionar que provimento dessa natureza instalaria situação caótica
em uma cidade com aproximadamente, na época, dois milhões de habitantes.
A ADIN dos partidos políticos foi acatada parcialmente para declarar a
inconstitucionalidade da remuneração do permissionário por meio de tarifa, onde se
lê o fundamento:
Enfim, é decorrência lógica do próprio Estado Democrático de Direito a
supremacia do interesse público sobre o particular. Logo, estou
convencida de que o serviço de limpeza urbana tem natureza compulsória
não podendo ser deferido ao particular a possibilidade de, por meios
próprios, outorgar ao seu lixo residencial o destino que entender menos
oneroso ou mais conveniente, porquanto certamente muitos não
utilizariam os métodos mais adequados, o que afetaria direta e
indiretamente todos os demais cidadãos.
Ademais, para a verificação da compulsoriedade do serviço de limpeza
urbana, deve-se recorrer às lições há muito emanadas do Supremo
Tribunal Federal, o qual por reiteradas vezes já proclamou, mutatis
mutandi, a inconstitucionalidade da cobrança de tarifa, ao declarar a
legitimidade da exigência de coleta do lixo, dada a divisibilidade e
especificidade do serviço prestado [...].
26
Não é prioridade no presente trabalho a discussão de aspectos tributários da
tese que se ocupa com a cobrança de tarifa ou taxa nos serviços urbanos, mas é
importante destacar o fato de que em passado imediatamente anterior ao do
julgamento cujo fundamento se transcreveu, o mesmo Tribunal declarou a
inconstitucionalidade da cobrança de taxa de coleta de lixo domiciliar, quando o
STF ainda não havia decidido sobre a matéria.
Como se verifica, a cobrança de taxas, tarifas e impostos municipais em geral
fica sempre condicionada ao julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade,
possibilidade prevista na Constituão, é bem verdade, mas que atinge diretamente
a arrecadação tributária e o planejamento dos gestores em geral e no longo dos
26
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Processo n.º 2002.0001.0070-3/0, folha 236.
85
últimos vinte anos e sistematicamente utilizada por partidos políticos, com grande
freqüência.
5.2 Ministério Público estadual e federal
O professor Rogério Bastos Arantes, já mencionado em capítulo anterior,
apresenta estudo sobre o Ministério Público e Política no Brasil
27
onde analisa a
reconstrução institucional do Ministério Público, com o advento do Código de
Processo Civil (1973), consolidada com a promulgação da Constituição Federal de
1988. Dessa perspectiva na instituição, pretende o autor apontar o papel da
instituão na Judicialização da Política, enfocando, principalmente, o ativismo de
membros do Ministério Público.
O autor aponta de forma incisa para um voluntarismo dos membros do
Ministério Público, orientados ideologicamente em busca da auto-afirmação do
papel político da instituição, mas com base em premissa no mínimo discutível ou
simplista: a da hipossuficiência da sociedade brasileira:
De todos os elementos que compõem o voluntarismo político do
Ministério Público, a caracterização da sociedade brasileira como
hipossuficiente ou incapaz de defender-se a si mesma é sem dúvida o
mais importante.
28
O resultado obtido, e de resto apresentado em capítulo anterior, aponta que
84% dos entrevistados (membros do Ministério Público) concordaram
total ou parcialmente com a afirmação de que a sociedade brasileira é
hipossuficiente, isto é, incapaz de defender autonomamente os seus
interesses e direitos, e que, por isso as instituições da Justiça devem atuar
afirmativamente para protegê-la.
29
O estudo Sentidos da Judicialização da Política: duas análises
30
aborda e
coteja os dois modelos apresentados sobre o fenômeno no Brasil moderno e aponta
para visões marcadamente diferentes entre os autores. Para Werneck Vianna:
O modelo da Constituição é o democrático-comunitário, no qual o
judiciário tem o papel de formular, segundos determinados procedimentos
de que participa a comunidade de intérpretes, os valores compartilhados,
bem como o de servir de canal de expressão para grupos que demandem a
27
ARANTES. Rogério Bastos op.cit. 2002.
28
ARANTES. Rogério Bastos, op.cit. p. 127.
29
ARANTES. Rogério Bastos, op.cit. p 128.
30
MACIEL, Débora Alves; KORNER, Andrei. op. cit. 2002.
86
promoção dos objetivos comuns expressos pelos direitos fundamentais.
31
Arantes, por sua vez, tem uma visão que privilegia a separação de poderes,
[...] cujo equilíbrio mantém o predomínio das instâncias eleitorais-majoritárias de
representação
32
, o que limita o campo de atuação do Poder Judiciário ante as
decisões políticas dos Poderes Executivo e Legislativo.
O Ministério Público (Estadual e Federal) atuou no Município de Fortaleza de
forma efetiva, e sempre com ampla repercussão jornalística em campos como saúde,
educação, tributos e obras públicas, ajuizando ações civis públicas de grande
impacto e expectativa na sociedade. Com efeito, os membros do Ministério Público
que atuaram em ações contra o Município de Fortaleza devem incluir-se na maioria
que vê na população a hipossuficiência para lutarem por seus direitos.
Não se nega ao MP, nesse particular, o cumprimento das funções previstas na
Lei Complementar n.º 75/93, art. 5º, I, de defesa da ordem jurídica, do regime
democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis. O
tema que aqui interessa é que pretendeu o Ministério Público influenciar nas
políticas públicas do Município de Fortaleza sob o argumento de que exercia
apenas a função institucional a si atribuída.
No período compreendido entre 2000 e 2004, merecem destaque duas ações
movidas pelo Ministério Público, sendo uma o Ministério Público Estadual (na área
de saúde) e a outra o Ministério Público Federal (na área de direitos dos cidadãos),
que serão analisadas individualmente em seguida.
A ação movida pelo Ministério Público Estadual diz respeito à carência de
leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs) no Município de Fortaleza. O
processo, tombado sob o n.º 2001.02.47261-0, tramita até os dias de hoje na 1ª Vara
da Fazenda Pública Estadual, ainda pendente de julgamento em primeira instância.
A petição inicial do Ministério Público historia o fato de que por interdio
de relatório elaborado pela Câmara Técnica de Terapia Intensiva do Conselho
31
MACIEL. Débora Alves e KORNER. Andrei. op.cit. 2002.
32
Id. ibid. p. 115.
87
Regional de Medicina do Estado do Ceará e por Comissão Especial da Câmara
Municipal de Fortaleza constatou-se a gravidade da situação do sistema municipal
de saúde. O Município de Fortaleza, prossegue peça inicial é responsável por nove
hospitais: Instituto Dr. José Frota (IJF), os Frotinhas (Parangaba, Messejana e
Antônio Bezerra), os Gonzaguinhas (Messejana, José Walter e Barra do Ceará), o
Hospital Nossa Senhora da Conceão e o Centro de Atenção à Criança (CROA),
especializado em Pediatria Clínica. Acresça-se a essas unidades terciárias a rede de
postos de saúde (aproximadamente cem postos) e as equipes de Saúde da Família.
A análise técnica que embasa a ação do Ministério Público se concentra na
crescente taxa de mortalidade da unidade hospitalar denominada Frotinha da
Parangaba. Ali entre novembro de 2000 e junho de 2001 foram registrados 191
óbitos nas unidades de tratamento de urgência (UTUs), que seriam enfermarias
localizadas no setor de emergência dos hospitais, onde pacientes graves recebiam
atendimento de urgência enquanto aguardavam leito vago nas UTIs. As vagas de
leitos, de acordo com o Ministério Público atendendo recomendação da
Organização Mundial de Saúde (OMS) devem obedecer a uma proporção de dois
a quatro leitos por 1.000 habitantes e o número de leitos em UTIs deverá ser de
cinco a dez por cento dos leitos hospitalares.
No mesmo sentido, é a resolução do Conselho Regional de Medicina do
Estado do Ceará (CREMEC) que aponta que cinco a dez por centos dos leitos de
hospitais com capacidade superior a cinqüenta leitos devem funcionar como leitos
de UTI. No caso específico do Frotinha da Parangaba, conclui a parte fática da
petição inicial, não existem leitos de UTI, mas tão-somente as UTUs.
O pedido de concessão de liminar do Ministério Público foi o seguinte:
a) concessão de medida liminar, inaudita altera pars, determinando ao
Promovido, a imediata ampliação do número de vagas de UTI´s (de cinco
a dez por cento) nos hospitais da rede municipal, com capacidade acima
de 50 leitos, conforme exigência da Resolução CREMEC n.º 012/97, de
04 de agosto de 1997, dotando as mesmas de material e pessoal
necessários ao bom funcionamento;
b) seja assinalado, prazo razoável, segundo arbítrio de Vossa Excelência,
para melhoria dos Postos de Saúde, situados na zona periférica e central
da Capital, conferindo aos mesmos melhor resolutividade, com relação ao
encaminhamento e internação de pacientes graves, inclusive na rede
privada, na hipótese de lotação total da rede pública, às expensas do
gestor competente;
c) implantação da Central de Atendimento de Curto Prazo, para evitar a
88
peregrinação de ambulâncias e pacientes, em busca de vagas, nas diversas
emergências da Cidade.
33
A decisão liminar foi concedida dias depois e, em resumo, após historiar a
petição inicial, reconhecer a legitimidade do Ministério Público, o juiz aduz a
seguinte gica:
É imperiosa a maior oferta de leitos na UTIs (sic) de Fortaleza. Até em
observância à Organização Mundial de Saúde, para quem (sic) uma
cidade deve ter de 2 a 4 leitos hospitalares por mil habitantes. Posto (sic)
que a região metropolitana de Fortaleza compreende um universo de 4
milhões de pessoas, necessários seriam, no mínimo 8 mil leitos no
município, sendo 10% destes, ou seja, 800 para UTIs. Essa a constatação
feita por experts da área.
34
A decisão reconhece a presença dos requisitos autorizadores apesar de
ignorar o art. 2º, da Lei n.º 8.437/92, que determina a ouvida prévia do Poder
Público no prazo de setenta e duas horas , e concede uma tutela liminar deferindo
os pleitos postos nos itens a, “b e c da petição inicial, ou seja, o item a
prevê a imediata construção de UTIs, não ficando claro se nos moldes do requerido
pelo Ministério Público ou do preconizado pela Organização Mundial da Saúde,
haja vista que, nas razões de decidir, o magistrado menciona a carência de 800
(oitocentos) leitos de UTIs, apesar de tomar como parâmetro a região
metropolitana, composta por treze municípios, cada um com suas responsabilidades
e sistemas municipais de saúde próprios.
A decisão atende o item b, mas confere um prazo de noventa dias, sob pena
de multa diária a ser revertida à Santa Casa de Misericórdia, Lar Torres de Melo e a
outras entidades filantrópicas, apesar da previsão expressa no art. 13, da Lei n.º
7.347/85 de atribuir a um fundo o gerenciamento desses recursos. E por fim, atende
o item c, que prevê a criação de uma central de regulação de leitos, determinação
reconhecida pelo Poder Público e implantada em maio de 2003.
A decisão liminar de que se cuida é exemplo de Judicialização da Política, ou
seja, pretende modificar uma situação de crise por meio de uma decisão judicial,
como num passe de mágica. Apesar de o próprio Ministério Público reconhecer na
petição inicial que o Município de Fortaleza é responsável por nove hospitais,
33
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Processo nº 2001.02.47261-0, em curso
perante a 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual, folha 08.
34
Id. ibid. folha 91.
89
quando seus esforços deveriam se voltar à atenção básica, os postos de saúde, a
decisão ignorando as regras de aquisição de bens e serviços, lei orçamentária, plano
plurianual e as impossibilidades burocráticas de construir imediatamente leitos de
UTIs em quantidade desarrazoada se tomados os parâmetros mencionados pelo
magistrado na sua decisão liminar.
Não resta dúvida alguma de que o sistema municipal de saúde de resto como
o das grandes cidades do Brasil opera em crise ou próximo ao caos; não há como
negar ao Ministério Público o papel de fiscalizar e exigir a observância e o
cumprimento de normas e procedimentos que balizam as ações de saúde; é
indiscutível que os gestores têm que gerenciar de modo mais profissional os
recursos em área tão vital quanto a saúde, mas não é razoável exigir do Poder
Público a ampliação imediata dos leitos de UTIs e a melhoria dos
aproximadamente 100 postos de saúde no prazo de noventa dias.
Decisões que atendem pedidos dessa natureza, como implantação de leitos de
UTIs, construção de escolas, creches, estradas e outros equipamentos públicos,
têm que necessariamente contrapor o princípio da proporcionalidade com a reserva
do possível, nas palavras do professor Nagib de Melo Jorge Neto:
Há um juízo de possibilidade e um juízo de proporcionalidade. Aqui
fazemos um paralelo com a proporcionalidade que deve guiar o julgador
na harmonização de princípios constitucionais em conflito. Propomos que
o juízo de proporcionalidade deverá guiar o controle das políticas
públicas; assim, além de materialmente possível, a intervenção judicial
sobre as políticas públicas haverá de ser adequada, necessária e
proporcional em sentido estrito.
35
Ademais, a ação proposta, que foi em 2001, até a presente data, não possui
julgamento definitivo. Nesse período, é importante destacar, foram interpostas
diversas ações cautelares incidentais à ação principal, com o objetivo de obrigar o
Município de Fortaleza a custear internações de pacientes na rede particular, ainda
que se tratasse de pacientes internados em hospital da rede estadual de saúde, como
é o caso que se transcreve:
[...] estão internados na Unidade de Terapia de Urgência UTU do
Hospital Geral de Fortaleza, os pacientes TJMR, de 63 anos encontrando-
se em estado de neoplasia de mama; b) EJSM, 71 anos, evoluindo com
35
JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas. Salvador:
Podivm, 2008, p. 149.
90
respiração mecânica, com acidente vascular cerebral isquêmico e infecção
respiratória grave; c) PAL, 70 anos, encontrando-se comatoso na sala de
parada do HGF, necessitando de suporte ventilatório mecânico e cuidados
na UTI e d) JEP, 72 anos, diabético e septicêmico com pé diabético,
encontrando-se com ventilação mecânica e monitorização cardíaca,
necessitando de tratamento em UTI.
36
Como se verifica, os pacientes internados apresentavam quadro grave e
estavam internados em hospital da rede estadual de saúde Hospital Geral de
Fortaleza - ente da Federação que também tem competência concorrente com os
municípios (art. 23, II da Constituição Federal), mas o pedido do Ministério
Público é no sentido de determinar ao Município o custeamento de despesas, como
se verifica da decisão:
Assim, concedo a liminar, para determinar que o Município de Fortaleza,
na falta de leito nas UTIs públicas e prazo prescrito no laudo medido,
interne aos requerentes T.J.M.R., E.J.S.M., P.A.L. e J.E.P. na UTI de um
hospital particular, assinando junto ao referido nosocômio documento
pelo qual se comprometa a arcar com a totalidade das despesas relativas à
internação do paciente, observada a média dos preços praticados no
mercado, até seu restabelecimento, ou até que sejam transferidos,
mediante prévia comunicação a este órgão monocrático, para uma UTI da
rede pública, até decisão ulterior deste juízo ou julgamento do mérito da
questão.
37
A decisão, malgrado a responsabilidade concorrente das três esferas de
governo, que não foi observada, afasta qualquer preocupação com previsão
orçamentária ou disponibilidade de recursos públicos suficientes para o pagamento,
limitando-se a atender ao pedido do Ministério Público que, indiscutivelmente, se
fundamenta na regra constitucional de que é obrigação do Estado prover a saúde,
mas olvida qualquer impossibilidade material para seu cumprimento.
A segunda ação, movida pelo Ministério Público Federal contra o Município
de Fortaleza e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA), se insurgiu contra a recuperação da faixa de praia no local
denominado Praia de Iracema. As obras de construção de um aterro hidráulico com
100 metros de largura por 1.110 metros de comprimento e um espigão de 45 metros
foram objeto de ão Cautelar preparatória, tendo sido determinada a paralisação
da obra. Essa decisão foi suspensa por ordem do Tribunal Regional Federal da 5ª
Rego, o que permitiu o prosseguimento dos trabalhos até o ajuizamento de nova
36
BRASIL. Justiça Estadual no Ceará. Ação Cautelar Incidental ao Processo nº 2001.02.47261-
0, folha 15.
37
Id. idib. folha 18.
91
ação cautelar contra o Município de Fortaleza, com o objetivo de paralisar a
construção do caadão e de uma galeria de drenagem para escoamento de águas
pluviais decorrente da conclusão do aterro hidráulico da Praia de Iracema. Em sede
de ação principal, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública com
pedido de liminar no sentido de suspender e anular a Licença de Instalação n.º
089/2000 e determinar a reabertura do processo de licenciamento ambiental do
projeto. Em resumo, houve Ação Cautelar preparatória, uma Ação Civil Pública
principal e uma Ação Cautelar incidental.
Essa sucessão de ações judiciais contra obra projetada pelo Município de
Fortaleza e autorizada pelo IBAMA permaneceu paralisada entre os anos 2003 e
2007, aguardando julgamento da Justiça Federal. Uma perícia realizada no local
impediu a recuperação do calçadão daquele aterro hidráulico e a ação jamais foi
julgada, uma vez que sua extinção em junho de 2007 se deu por conta da assinatura
de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre as partes envolvidas com a
sucessiva homologação em juízo.
A análise da presente ação não questiona a legitimidade do Ministério Público
ou de qualquer cidadão em discutir a legalidade de licenças ambientais, e se for o
caso, solicitar a paralisação de obras públicas, por mais prementes e indispensáveis
que elas sejam.
Cuida-se de demonstrar que questões dessa natureza que permanecem
suspensas por vários anos sub judice, além de causar na população uma sensação de
que o Poder Público não conclui suas obras, deslocam a competência do Poder
Executivo em disciplinar o uso e ocupação do solo para as os do Poder
Judicrio, apesar das ressalvas feitas pelo Juízo que não usurpa função
administrativa de um dos réus.
É que no período entre a realização da perícia judicial e a conclusão do
processo, com a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta
38
, diversos
eventos culturais, artísticos e esportivos prescindiram de autorização do Juízo para
realizar-se, uma vez que a área se encontrava em disputa judicial.
39
38
Instrumento de composição previsto no art. 5º, § 6º, da Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985.
39
A título de exemplo, a decisão que se encontra às folhas 837/838 em que a empresa P.C.
Comércio e Serviços Ltda. comparece aos autos solicitando autorização do juízo para realização
92
5.3 Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil OAB/CE
A Ordem dos Advogados do Brasil é instituição de indiscutível importância no
cenário republicano brasileiro, agente fiscalizador da Administração Pública e
implacável crítico das medidas que atentem contra o Estado Democrático de
Direito.
O Conselho Seccional atuou em ações de grande visibilidade contra o Poder
Público Municipal, notadamente em leis que criaram ou majoraram alíquotas ou
bases de cálculos de tributos. A composição eclética desses colegiados, com
membros de todas as correntes políticas e ideológicas e a subdivisão em comissões
temáticas permitiru, pode se antecipar, a utilização política das funções
institucionais da OAB em ações judiciais ou não contra as políticas públicas
municipais naquele quadriênio.
Em alguns momentos, o Conselho Estadual atuou concomitantemente com o
Ministério Público ou partidos de oposição, ao ajuizarem demandas semelhantes
contra a mesma lei municipal de natureza tributária, como é o caso da discussão
acerca do Imposto Predial Territorial Urbano de 2003.
Na área tributária, a interferência do Poder Judiciário, declarando a
inconstitucionalidade, suspendendo ou mesmo modificando a forma de cobrança de
impostos e taxas, é fenômeno de fácil verificação, até mesmo na jurisprudência do
da Copa Troller, em 17 de julho de 2004. Eis o trecho da decisão: Entende este Juízo Federal
que, de sua parte, não há qualquer obstáculo à realização do mencionado evento desportivo. Vale
ressaltar que até mesmo outros eventos de igual ou maior porte vêm sendo realizado na mesma
área sem que sequer seus organizadores se dignem de formular pedido de autorização judicial. Na
verdade, é de competência do Município de Fortaleza e da Gerência do Patrimônio da União no
Estado do Ceará a tomada de decisões técnicas e políticas adequadas para disciplinar, de modo
permanente, a utilização da área do aterro hidráulico da Praia de Iracema, mesmo antes do
julgamento do mérito desta Ação Civil Pública. O que este juízo tem percebido, concessa venia,
é a constatação da mais absoluta omissão e inércia das autoridades municipais e federais
competentes em exercer suas atribuições legais e constitucionais. Neste sentido, não cabe
responsabilizar o Ministério Público Federal nem tampouco a Justiça Federal por qualquer
percalço surgido com o ajuizamento da Ação Civil Pública em busca de evitar ou de reparar
eventuais danos ao meio ambiente natural em decorrência daquela obra pública. Este Juízo Federal
havia proferido decisão de natureza antecipatória, depois cassada pelo Eg. Tribunal Regional
Federal da 5ª Região, determinando a suspensão da execução da referida obra, por entender terem
sido violadas certas normas legais e regulamentares da legislação ambiental. Nestas condições,
cabe às autoridades municipais e federais competentes acompanhar e fiscalizar, nos limites de
suas competências institucionais, os eventos desportivos, culturais ou de entretenimento
realizados na área do aterro hidráulico da Praia de Iracema, cabendo a este Juízo Federal autorizá-
los em cada caso. Fica concedida, portanto, a autorização requerida pela empresa P.C. Comércio
Ltda. (Trilha Fort) (grifos inovados).
93
STF.
O caso do Imposto Predial Territorial Urbano a ser cobrado em 2004, é
sintomático. Naquele ano, duas ações diretas de inconstitucionalidade foram
apreciadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará: uma movida pelo Partido
dos Trabalhadores (PT) e outra pelo Conselho Estadual da Ordem dos Advogados
do Brasil Secção Ceará. Aquela não logrou êxito por razões de mérito e a segunda
será objeto de análise no presente tópico.
Em síntese, o objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade tombada sob o
n.º 2004.0002.3211-8/0 foi a modificação do modo de incidir das alíquotas do
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) por faixas dos valores dos imóveis.
Assim, a decisão judicial modificou a forma do cálculo, permitindo fazê-lo com
alíquotas diferenciadas em um mesmo imóvel, de acordo com as faixas de valores
dos iveis, como se verifica do trecho da decisão por maioria dos membros do
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará:
Primeiramente e principalmente -, a hermenêutica oficial (a patrocinada
pelo Município, a dizer) não pode ser considerada escorreita por fazer
incidir um sem-número de situações de fato virtualmente idênticas em
molduras normativas que consubstanciam tratamentos jurídicos
incrivelmente diferentes. Falamos daquelas hipóteses em que os valores
dos bens imóveis estão em zonas limítrofes, verificadas entre graus
menores e maiores de tributação (de imóveis, por exemplo, valendo R$
50.000,00 e R$ 50.000,01 ou R$ 180.000,00 e R$ 180.000,01), as
insignificantes diferenças valorativas de um centavo de Real são aptas a
lançar os bens tributados todo o valor dos mesmos noutras valas
fiscais, redundando na cobrança de exações magistralmente díspares de
pessoas que se encontram a perfazer o mesmo suporte fático.
40
Esse foi o fundamento judicial para concluir pela violência ao Princípio da
Isonomia, que determina tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais
na medida precisa de suas desigualdades. A forma de incidência das alíquotas
sugerida pela OAB/CE e de resto acatada pelo relator designado , foi modificada
para incidir até o limite de cada faixa, ou seja:
[...] à cada uma das específicas faixas deve ser atribuída a alíquota que
lhe é especialmente correspondente (evitando-se a incidência da alíquota
referente ao maior valor a todas as bandas tributárias, necessariamente
compreendidas na alíquota maior).
41
40
BRASIL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2004.0002.3211-8/0,
Diário da Justiça nº 185, 30 de setembro de 2004.
41
BRASIL. Tribunal de Justiça. op. cit. 30 de setembro de 2004.
94
Nos limites do presente trabalho deixam de ser discutidos aspectos tributários
do rito da decisão, como diferenças entre impostos reais (IPTU) e pessoais,
Imposto de Renda (IR), ou temas como base imponível ou princípio da legalidade
fiscal, mas sim verificar a presença da Judicialização da Política, ao se analisar
uma decisão judicial em sede liminar, cujos efeitos já perduram há quatro anos, que
diz como uma lei municipal deve fazer incidir as alíquotas de um imposto.
A decisão levada a efeito pelo Tribunal de Justiça criou direito e modificou
uma expectativa posta no orçamento e no plano plurianual, balizas que norteiam o
dia-a-dia de qualquer administrador público. Eis o trecho final:
Pelo exposto, considerando presentes assim o fumus boni juris como o
periculum in mora, somos pela concessão da medida cautelar
exordialmente solicitada, para que seja necessariamente imposta ao
amalgama normativo municipal que trata do Imposto Predial e Territorial
Urbano uma interpretação conforme a Constituição Estadual, garantindo a
incidência das alíquotas do referido tributo somente sobre a parcela da
base imponível contida estritamente dentro de cada faixa tributária, tal
como indicado pelo do Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do
Brasil; ressalva-se que, em tendo a decisão em Causa caráter
simplesmente liminar, à mesma deverão ser atribuídos efeitos imediatos e
não-retroativos (ex nunc”).
42
Houve queda na previsão inicial do gestor que faz suas projeções de gastos de
acordo com a arrecadação tributária, mas esse caso de modificação da forma de
cálculo do IPTU tem importânciao por conta do conteúdo econômico, mas
também porque demonstra que o Poder Judicrio, ao ensejar direito novo, invade
área de competência dos Poderes Executivo e Legislativo de forma direta, po is até
os dias atuais não declarou inconstitucional a forma de cobrança, expurgando-a do
ordenamento, mas sim aproveitou as faixa de cobrança e as alíquotas praticadas e
determinou uma nova sistemática do cálculo, agindo como legislador positivo.
Vale ressaltar, ainda, que a demora no julgamento de causas dessa natureza
cria uma expectativa entre os contribuintes todos acompanhando atentamente pela
imprensa local , que, aguardando o posicionamento da Justiça, deixam de pagar
seu imposto. Essa quebra no fluxo de arrecadação ocasiona grande dificuldade no
cumprimento das obrigações assumidas e previstas no orçamento anual.
43
42
Id. ibid. 30 de setembro de 2004.
43
Em função do ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2004.0002.3211-8/0 e da
decisão que modificou a forma de incidências das alíquotas do IPTU, foi editada a Lei
Complementar n.º 21/2004, publicada no Diário Oficial do Município de Fortaleza, em 29 de
95
Por fim, merece ser destacado novamente o fato de que a demora em uma
decisão definitiva no caso ora analisado são quatro anos desde o ajuizamento da
ação , é fator prejudicial às partes envolvidas, como é óbvio, não só por conta da
incerteza sobre a questão jurídica, mas também porque impede o questionamento
nos tribunais superiores.
5.4 Grupos de interesse sindicatos, associações
Em setembro de 2002 o Sindicato dos Permissionários Autônomos de Veículos
em Transporte Público Alternativo de Passageiro e Região (SINDVANS) ajuizou
ação ordinária
44
contra o Município de Fortaleza e a Empresa de Trânsito e
Transporte Urbano S.A. (ETTUSA), com o objetivo de suspender licitação pública
em curso para escolha dos novos permissionários do serviço público alternativo, as
denominadas topics ou vans, para os cinco anos subseqüentes. Não
concordando com a nova concorrência pública, haja vista previsão de prazo diverso
para as concorrências do transporte por ônibus, o Sindicato inicia batalha judicial
contra o Poder Público.
O Sindicato alegou em sua causa de pedir que os topiqueiros: i) integram de
modo complementar o sistema de transporte coletivo, fato que os equipara aos
serviços convencionais prestados pelas empresas de ônibus; ii) que os contratos de
adesão que haviam assinado determinavam a observância de várias normas federais,
municipais e as disposições do edital de concorrência; iii) que a Lei Orgânica do
Município de Fortaleza assegura prazo de vigência dos termos de permissão de pelo
menos dez anos.
A Empresa Pública e o Município de Fortaleza contestaram a ação, alegando,
em síntese, que: i) cabe ao Poder Público disciplinar o sistema de transporte
público que deve ser prestado diretamente ou sob o regime de concessão ou
permissão; ii) o prazo de vigência dos termos de permissão obedeceram à legislação
vigente e a edital, sem qualquer contestação quando de suas assinaturas por parte
dezembro de 2004, onde se instituiram redutores sobre o valor do lançamento do imposto a fim de
adequar-se aos termos postos na decisão do TJ-CE. Essa modificação representa mais o
pragmatismo de tentar remediar uma situação e diminuir a queda na arrecadação do principal
tributo municipal do que propriamente uma aceitação na juridicidade da intervenção do Poder
Judiciário na criação de nova forma de incidência do tributo.
44
CEARÁ. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça. Processo nº 2000.0122.7700-3/0, em curso
perante a 4ª Vara da Fazenda Pública Estadual.
96
dos permissionários; iii) as disposições da Lei Orgânica não se aplicam aos
permissionários de vans uma vez que as permissões de transporte público
alternativo não possuem caráter contratual, conforme previsto na legislação federal
aplicável; e iv) a permissão de serviços, por ser matéria exclusivamente
administrativa, não pode ter seu disciplinamento substituído por decisão judicial.
A decisão liminar lançada sem a ouvida do Poder Público concedeu a
antecipação dos efeitos da tutela pretendida sob o seguinte argumento:
A mim me parece, ainda que em análise perfunctória da matéria, que a
fixação do prazo de vigência dos contratos de adesão visando a outorga
de permissão para a execução do serviço alternativo de transporte de
forma diversa com redução de 50% dos que são firmados (sic) com as
empresas que operam o chamado sistema regular, além de
discriminatória, fere não só o princípio da legalidade que equipara ambos
os serviços (art. 1º, da Lei Municipal n.º 8.060/97), mas o próprio
princípio da razoabilidade na medida em que, exige a renovação da frota
a cada três anos, em fixando o prazo de validade do termo de permissão
em apenas cinco anos, impede o acesso ao crédito oficial que exige um
prazo de 10 anos.
45
E deferiu o pedido nos seguintes termos:
DEFIRO o pedido de antecipação parcial de tutela formulado pelo
SINDIVANS no sentido de determinar ao Município de Fortaleza e à
ETTUSA que, em condições sub judice, altere o prazo de validade dos
contratos de adesão para a outorga do Termo de Permissão pactuados
com os permitentes do Serviço de Transporte Alternativo de
Transporte Coletivo Municipal, firmados em 1998, de cinco para dez
anos [...].
46
A decisão do juiz alterou o prazo de validade de contratos de adesão firmados
em 1998, às vésperas do termo final do prazo de cinco anos, como previa o edital
de concorrência pública do qual participaram os permissionários. A decisão
demonstra a invasão de competência do Poder Executivo por parte do Poder
Judicrio, que substitui a vontade do administrador público em matéria de natureza
técnica, que regula um sistema de transporte complexo em constante crise. O que é
mais grave, a regulação da matéria se dá por meio de medida liminar sem a
ouvida do Poder Público , e até julho de 2008, ou seja, seis anos depois o rito
da questão não foi julgado. Os termos de permissão outorgados em 1998, no caso
trazido como exemplo, valeram pelo prazo de dez anos, ou mais, considerando-se
que ate o presente momento não houve julgamento sequer no primeiro grau de
45
Processo nº 2000.0122.7700-3/0, em curso perante a 4ª Vara da Fazenda blica Estadual, folha 77.
46
Id. ibid. folha 78.
97
jurisdão, repita-se.
A regulação de um serviço público prestado em regime de permissão não pode
ser substituída por uma tutela, notadamente liminar, que perdura há seis anos. O
Poder permitente, em circunstâncias como a mencionada, perde legitimidade e
poder de coerção sobre aqueles permissionários que obtêm a prorrogação das
permissões que há muito deveriam ter vencido, sempre por intermédio da via
judicial. É importante mencionar que o relacionamento do Sindicato com o Poder
Público no período compreendido entre os anos 2000 e 2004 foi pontuado por
diversas ações judiciais movidas contra o Município de Fortaleza ou a Empresa
Pública de Transporte (ETTUSA), havendo inclusive decisões
47
que determinam a
vistoria dos veículos dos associados independentemente do ano de fabricação, não
obstante as exigências legais de renovação periódica da frota que atende aos
usuários do sistema de transporte alternativo.
Os grupos de interesse ou entidades de classe ajuizaram 21,2% das ações
diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, como
mencionado em tópico anterior. No âmbito local, a atuação de sindicatos e
associações, como se verifica do resumo da disputa judicial entre Poder Público e
um sindicato de veículos alternativos é representativa e influencia na expansão do
Poder judicial, não quando invade esfera de competência de outro poder, mas
também quando não presta a tutela jurisdicional em tempo razoável, a fim de
permitir aos jurisdicionados (Município de Fortaleza e SINDIVANS), se for o
caso, se adequarem ao posicionamento jurídico do Poder Judiciário.
Como se verifica, não só perante o Supremo Tribunal Federal, mas também no
âmbito local, os grupos de interesse como sindicatos e associações são agentes
responsáveis pela Judicialização da Política.
47
CEARÁ. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça. Processo nº 2001.02.26089-3, em curso perante
a 2ª Vara da Fazenda Pública Estadual, folha 105.
98
CONCLUSÃO
1. Este trabalho faz uma indagação no capítulo introdutório: Há legitimidade
democrática para os membros do Poder Judiciário decidir em temas de
competência do Poder Executivo?;
2. Para responder ao questionamento, no primeiro capítulo analisou-se o tema da
separação dos poderes e a implicação com a Judicialização da Política, haja
vista que a expansão do poder judicial implica necessariamente numa invasão
das competências dos Poderes Executivo e Legislativo por parte do Poder
Judicrio;
3. Foi demonstrado, ainda, que à teoria liberal, que pretende um Poder Judiciário
neutro (a boca da lei), se contrapõe o Estado do Bem-Estar social com
exigências da implementação de direitos sociais que exigem posição mais ativa
do Poder Judiciário. As prestações positivas do Estado contribuíram, assim,
para uma expansão dos poderes dos juízes;
4. A submissão da Política ao Direito é analisada, ainda no capítulo primeiro, e se
conclui que o principal instrumento moderno de domesticação do poder é o
controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, decorrendo desse fato a
importância do estudo do caso Marbury x Madison, que inaugura essa
competência judicial com base em uma disputa aparentemente prosaica;
5. Tema de fundamental importância para a dissertação é apresentado no capítulo
segundo que é o estudo das questões políticas desde a perspectiva dos tribunais
brasileiros. Cuida-se de questão que novamente remete à decisão do Chief of
Justice John Marshall no caso Marbury x Madison, de 1803, que reconhecia
naquele momento a ilicitude do ingresso no campo da Política por parte da
Suprema Corte dos Estados Unidos;
99
6. No Brasil o tema das questões políticas veio a julgamento pela primeira vez
mas não foi acatado pelos membros do Supremo Tribunal Federal , em 1892,
quando do julgamento do Habeas corpus nº 300, impetrado pelo advogado Rui
Barbosa, jurista e advogado responsável pela elaboração da Doutrina das
Questões Políticas no Supremo Tribunal Federal;
7. O reconhecimento de que as questões de direito individuais não poderiam ficar
sujeitas a medidas de natureza potica, no entanto, só ocorreu cinco anos
depois, quando do julgamento do Habeas corpus n.º 1.073. É importante
salientar que a consolidação da doutrina das questões políticas e a posição atual
do STF são no sentido de alargar a sindicabilidade de qualquer ato que
supostamente afronte a Constituição, principalmente quando da violação dos
direitos e garantias constitucionais. Essa tendência é reforçada pelo atual
estádio de fragilidade das instituições majoritárias, notadamente no âmbito
local, onde a ausência de recursos e a gestão indicam a incapacidade do
Poder Público em atender a demanda social;
8. O terceiro capítulo trata da Judicialização da Política, fenômeno no âmbito do
qual as decisões judiciais determinam ou influenciam a arena política,
tradicionalmente a cargo dos Poderes Executivo ou Legislativo. Essa expansão
do Poder judicial acontece conta da provocação de partes institucionalmente
fortes ou ainda com amplo poder de articulação como o Ministério Público,
partidos políticos, associações e sindicatos;
9. O crescente aumento do Poder judicial aconteceu em diversos países e foi
identificado como uma das mais importantes tendências dos sistemas políticos a
partir do final das décadas do século XX e início do século XXI. O capítulo
aponta que uma das principais causas para o crescimento do poder dos juízes
foi a manutenção dos Estados Unidos como superpotência, livre para irradiar a
judicial review para sua zona de influência, cada vez mais alargada. Acresça-se
a esse fato, a reação democrática e histórica aos regimes populistas e
totalitários que fizeram eclodir a 2ª Guerra Mundial e instauraram nova ordem;
10. O capítulo terceiro aponta ainda as condições políticas que propiciam o
surgimento da judicialização que são: a) democracia; b) separação de poderes;
100
c) política de direitos; d) a utilização dos tribunais por grupos de interesse; e) a
utilização dos tribunais pela oposição; f) inefetividade das instituições
majoritárias; g) percepção das instituições políticas; h) delegação de assuntos
pelas instituões majoritárias;
11. O terceiro capítulo aponta ainda a tendência que se verifica, notadamente na
França, da sacralização das decisões judiciais. Adotando a visão crítica de
Antoine Garapon, é necessário cobrar dos membros do Poder Judicrio a
responsabilidade por suas decisões perante a sociedade, evitando-se populismos
judiciais que enveredem por decisões materialmente impossíveis de
cumprimento;
12. O quarto capítulo aborda a Judicialização da Potica reportando-se ao caso
brasileiro, onde se aponta a produção de autores brasileiros que se ocuparam do
tema. A conclusão sinaliza para a inexistência de uma radicalização da posição
do Poder Judiciário em relação aos demais poderes constituídos, mas o modelo
adotado pela Constituão de 1988, na qual uma comunidade de intérpretes tem
legitimidade para promover o controle jurisdicional é causa relevante para a
expansão do poder judicial no Brasil;
13. O capítulo quarto demonstra, ainda, que o Supremo Tribunal Federal está em
vias de suprimir uma competência privativa do Senado Federal, art. 52, X, da
Constituição Federal, incluída pelo Poder Constituinte originário, ou seja,
suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional
por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. O julgamento da
Reclamação nº 4.335-AC, ainda não concluído, representa o fim do controle
difuso na Teoria Constitucional brasileira, ao tornar desnecessária a
intervenção prevista na Constituição Federal;
14. Merece destaque a posição do Ministério Público como agente responsável por
21,9% das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal entre 1988 e 2008 e, assim, pela Judicialização da Política. Nesse
particular, é feita a crítica ao voluntarismo de seus membros cujas visões
messnicas de suas atribuões e papéis ensejam demandas com grande
repercussão nos meios de comunicação por deslocar a arena das escolhas
101
dramáticas para o Poder Judiciário;
15. As relações entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo são objeto de crítica
no capítulo quarto, onde a Resolução n.º 22.610 do Tribunal Superior Eleitoral
que engendra uma reforma política no sistema brasileiro, disciplinando a
fidelidade partidária. Dessa decisão do Tribunal Superior Eleitoral, foram
impetrados três mandados de segurança perante o Supremo Tribunal Federal,
que confirmou o entendimento da resolução no sentido de determinar a perda do
mandato. Nesse caso da fidelidade partidária, o Poder Judicrio invadiu
competência exclusiva do Poder Legislativo e legislou, malgrado a necessidade
premente que se realize uma reforma política no Brasil;
16. O capítulo quinto aborda a judicialização do ponto de vista local, da cidade, do
município, especialmente, do Município de Fortaleza entre 2000 e 2004. Para
tanto, analisou decisões judiciais tomadas contra o Poder Executivo municipal,
adotando como critério os autores das demandas: i) partidos e parlamentares de
oposição; ii) Ministério Público Estadual e Federal; iii) Conselho Seccional da
Ordem dos Advogados do Brasil OAB/CE; e iv) sindicatos e associações;
17. A indagação feita nesse capítulo, saber se existe judicialização da esfera
municipal, deve ser respondida afirmativamente, com arrimo nas decisões
tomadas por juízes de primeiro grau de jurisdão ou até mesmo do Tribunal de
Justa do Estado do Ceará. A intervenção do Poder Judiciário em questões de
natureza tributária, obras públicas e políticas sociais apontam para essa
realidade, como se conclui da leitura de algumas dessas medidas liminares,
sentenças e acórdãos;
18. Assim, obras de grande impacto na vida cotidiana da comunidade, como o
aterro da Praia de Iracema, ficaram paralisadas por oito anos em virtude da
inércia do Poder Judicrio, que vedou qualquer intervenção física na área, mas
jamais tomou uma decisão definitiva, haja vista que a questão se encerrou por
conta de Termo de Ajustamento de Conduta;
19. Em outros casos há decisões judiciais determinando que a cobrança de um
tributo ocorra na forma requerida pelo autor da ação, ou seja, o texto da lei que
criou o tributo não é inconstitucional, mas o cálculo do imposto deve ser
102
realizado de forma diversa na prevista na lei. Há ainda decisões que prescrevem
a construção de leitos de UTIs sem previsão orçamentária ou disponibilidade
de recursos e assinalam prazo para criação de estruturas administrativas;
20. As decisões, referidas algumas delas, demonstram clara interferência do
Poder Judiciário nas questões de natureza política de competência do Poder
Executivo Municipal. A ingerência no plano local é ainda mais dramática e
visível do que na esfera federal, perante o Supremo Tribunal Federal, uma vez
que obras, tributos e serviços públicos municipais atingem de maneira mais
concreta o dia-a-dia da população;
21. Constata-se que os magistrados que lidam diretamente com questões
envolvendo o Poder Público não demonstram preocupação em invadir o campo
de atuação dos administradores públicos, e se isso ocorre por conta da
sensação/constatação da ineficiência dos governos, municipais notadamente, no
trato com questões complexas. Acresça-se a esse fato a ampla cobertura dos
meios de comunicação em questões como grandes obras públicas paralisadas ou
ausência de leitos de UTI, tendo-se um quadro que propicia a interferência, um
quadro tentador;
22. Ao questionamento posto no início do trabalho e repetido no item 01 deste
capítulo - Há legitimidade democrática para os membros do Poder Judiciário
decidir temas de competência do Poder Executivo? , deve ser respondido não,
uma vez que nas modernas democracias a Judicialização da Política
compromete a separação de poderes e a própria democracia.
103
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