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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
MARIA ISABEL FILIPPON
A CASA DO IMIGRANTE ITALIANO,
A LINGUAGEM DO ESPAÇO DE HABITAR
Caxias do Sul
2007
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MARIA ISABEL FILIPPON
A CASA DO IMIGRANTE ITALIANO,
A LINGUAGEM DO ESPAÇO DE HABITAR
Dissertação de Mestrado em Letras e
Cultura Regional para a obtenção do título
de Mestre em Letras e Cultura Regional
Universidade de Caxias do Sul Programa de
Pós-Graduação em Letras e Cultura
Regional.
Orientadora: Drª. Marília Conforto
Caxias do Sul
2007
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MARIA ISABEL FILIPPON
A CASA DO IMIGRANTE ITALIANO,
A LINGUAGEM DO ESPAÇO DE HABITAR
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras e Cultura Regional, da
Universidade de Caxias do Sul, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do Título de
Mestre em Letras e Cultura Regional, Área de
Concentração: Estudos de Identidade e Cultura
Regional no dia 13 de setembro de 2007.
Profª. Drª. Marília Conforto – Universidade de Caxias do Sul - Orientadora
Prof.Dr. João Cláudio Arendt – Universidade de Caxias do Sul
Prof.Drª. Vitalina Maria Frosi – Universidade de Caxias do Sul
Prof.Draª. Rosemary Fritsch Brum – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Esta dissertação é dedicada ao meu
pai, Jairo Celso Filippon (in
memorian), arquiteto autodidata,
que muito me ensinou sobre o valor
do espaço de habitar.
Agradecimentos:
À equipe de professores do Mestrado
em Letras e Cultura Regional pelos
ensinamentos recebidos.
À professora Dra. Marília Conforto
pela sua liberdade intelectual.
À minha mãe Leonora, e aos meus
irmãos Maria Cristina e Paulo César,
que proporcionaram o apoio
necessário para a realização deste
empreendimento.
RESUMO
Este trabalho parte de uma de uma investigação que perpassa a literatura,
arquitetura e história, no qual se procura identificar os significados e as
transformações do espaço de habitar do imigrante, no contexto da cultura da Região
Colonial Italiana, no nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. O enfoque histórico é
concebido desde o cenário europeu, no período da imigração italiana, e dos avanços
tecnológicos do século XIX, até meados da década de 1940. O estabelecimento dos
imigrantes italianos, no sul Brasil, se efetivou no período do Governo Imperial, na
Província de São Pedro, e as terras a eles destinadas localizavam-se na região
serrana gaúcha. O imigrante italiano manipulou a natureza de acordo com a sua
cultura, ergueu suas moradas conforme o seu conhecimento atávico e os materiais
disponíveis na região. Pela Análise de Conteúdo se busca refletir sobre as
transformações da casa do imigrante italiano através do domínio lingüístico, tendo
como corpus de pesquisa a trilogia de José Clemente Pozenato, “A Cocanha”, “O
Quatrilho” e “A babilônia”, sendo analisados os aspectos objetivos e subjetivos do
espaço de habitar. O domínio icônico apresenta imagens, fotografias e desenhos de
casas construídas pelos imigrantes italianos, em que é retratada a transformação
física do espaço de habitar. A literatura ultrapassa os aspectos objetivos, revela o
espaço vivido, traz à luz os aspectos subjetivos, atribuindo diversos significados à
casa do imigrante italiano.
Palavras-chave: cultura italiana; romance; casa do imigrante; espaço de habitar.
ABSTRACT
This study arises from an investigation which addresses literature architecture
and history. It also tries to find the meanings and the transformations of the
immigrants’ environment in the context of culture of the colonial Italian region in the
northeast of the state of Rio Grande do Sul. The historical focus conceived from
European scenery during Italian migration and from the technological advances of
the 19
th
century until the 1940s. The Italian immigrant settlement in the south of Brazil
happened during the Imperial Government in Província de São Pedro and the land
given to them were located in the highlands. The Italian immigrants manipulated
nature according to their culture. They built their houses using their atavic knowledge
and all materials available in the region. Analysing the context, we try to reflect on the
transformations in the Italian immigrant houses though the linguistic dominance
having as a body of research the trilogy of José Clemente Pozenato, “A Cocanha”,
“O Quatrilho” e “A babilônia”, where the objective and subjective aspects of the
environmental space are analysed. The iconic dominance presents images,
photographs and drawings of houses built by the Italian immigrants where the
physical transformation of the environmental space is represented. The literature
goes beyond the objective aspects revealing the living space and gives light to the
subjective aspects, giving various meanings to the Italian immigrant house.
Key-words: Italian culture, romance, immigrant house, environmental space.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1 HISTÓRIA, TECNOLOGIA E IMIGRAÇÃO .......................................................... 14
1.1 O Cenário Europeu no Período da Imigração Italiana................................ 14
1.2 A Itália dos Migrantes.................................................................................... 17
1.3 Os Imigrantes Italianos Chegam ao Brasil.................................................. 19
1.4 Os Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul............................................ 22
1.4.1 As Transformações Ocorridas na Região Colonial Italiana, no Final do
Século XIX ao Início do Século XX................................................................. 25
2 A CASA DO IMIGRANTE ITALIANO.................................................................... 33
2.1 O Homem Transformando a Natureza ........................................................ 33
2.2 A Linguagem do Espaço de Habitar............................................................ 38
2.3 O Espaço de Habitar do Imigrante Italiano.................................................. 41
3 A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DE HABITAR ATRAVÉS DO TEXTO
LITERÁRIO .......................................................................................................... 48
3.1 As Categorias de Análise dos Textos Literários ....................................... 48
3.2 A Cocanha..................................................................................................... 58
3.3 O Quatrilho ................................................................................................... 74
3.4 A babilônia ................................................................................................... 92
4 A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DE HABITAR ATRAVÉS DA ICONOGRAFIA... 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 137
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 142
ANEXOS ................................................................................................................. 147
INTRODUÇÃO
Uma casa tem como função básica garantir a proteção; é um invólucro, que
nos seus intramuros, encerra um palco de manifestações da cultura do homem que
a construiu. O espaço da casa, não é apenas o espaço geométrico, o volume de
planos, as linhas retas e curvas que envolvem o homem; é vívido, e adquire valores
humanos. A morada é o espaço da intimidade, lugar em que se pode livremente
cantar e desvendar a geometria dos sonhos. A partir desse conceito é possível olhar
a casa, a morada, sob várias perspectivas, não apenas como um artefato construído
para o abrigo humano, mas também como um objeto que pode adquirir vários
significados, e que, portanto, tem a sua própria linguagem, sua própria
representação.
O foco desta investigação é estudar a transformação do espaço de habitar do
imigrante italiano e dos seus descendentes, na Região Colonial Italiana (RCI),
através da literatura ficcional que permite fazer o intercâmbio entre a história e a
arquitetura. Pela narrativa, o leitor pode acessar um mundo novo, através da
palavra; toca a história, percorre os caminhos da cultura, e pode entender pelas
letras uma realidade não-conhecida ou reconhecida por ele.
O presente trabalho atende a linha de pesquisa Região e Regionalidade no
Programa de Mestrado de Letras e Cultura Regional, procurando relacionar de forma
interdisciplinar, a arquitetura, a literatura e a história da imigração italiana. Pretende
contribuir para a compreensão da transformação da casa do imigrante italiano, em
um determinado período histórico, procurando preencher uma lacuna em relação
aos estudos arquitetônicos e valorizar o patrimônio cultural da Região Colonial
Italiana. Objetiva, também, verificar se o texto literário consegue expressar, no
espaço da narrativa, os aspectos objetivos e subjetivos do espaço de habitar dos
imigrantes italianos e dos seus descendentes. O interesse pelo assunto surgiu em
decorrência da observação do patrimônio cultural arquitetônico, em particular, o
espaço de habitar e suas representações.
O fenômeno da imigração italiana no Rio Grande do Sul, iniciado em 1875 e
praticamente encerrado em 1914, foi estudado por muitos pesquisadores,
principalmente sob o ponto de vista econômico, social e cultural; as pesquisas
reportam-se geralmente ao artesanato, gastronomia, religiosidade, música, e a
língua, entre outras manifestações. As investigações relacionadas ao espaço, modo
de habitar e viver dos imigrantes foram objeto de alguns estudos e este trabalho tem
o intuito de ampliar a elucidação deste tema.
A casa é um espaço comum a todos; existe uma relação intrínseca do homem
com ela, mas nem sempre são percebidas e entendidas as suas mais secretas
mensagens (formas/ imagens/ linguagens). O estudo da transformação da casa, das
suas origens e do reconhecimento de suas características objetivo-subjetivas, pode
levar o homem a uma maior compreensão da importância do seu espaço de habitar,
e a valorizar a herança recebida por parte daqueles imigrantes italianos que
construíram, em novas terras, suas novas casas.
Após 130 anos de imigração, as novas gerações pouco ou nada lembram de
como eram as casas de seus avós, bisavós e a importância que a casa teve na vida
dessas pessoas. O patrimônio cultural arquitetônico é uma herança que não pode
ser aviltada, e a investigação do passado não é um simples saudosismo, mas a
busca de um resgate cultural, que permita a compreensão do presente e suas
implicações no futuro, no que diz respeito à linguagem, à representação do espaço
de habitar da Região Colonial Italiana.
Assim, a investigação foi norteada por algumas questões: como o contexto
histórico, as mudanças econômicas, sociais, culturais e políticas, na RCI,
influenciaram na transformação da casa do imigrante italiano e dos seus
descendentes? Qual a relação entre a representação do espaço de habitar através
as imagens arquitetônicas e do texto literário? É possível desvelar através da
literatura a linguagem do espaço de habitar (aspectos objetivos e subjetivos) do
imigrante italiano e dos seus descendentes?
10
Para responder a essas indagações constituiu-se um corpus capaz de dar
conta do desenvolvimento deste estudo neste caso os romances escritos por José
Clemente Pozenato: “A Cocanha”, “O Quatrilho” e “A babilônia” que abrangem o
período histórico de 1883 a os primórdios na Segunda Guerra Mundial, na Região
Colonial Italiana. A primeira obra narra a saga de um grupo de italianos que partem
do porto de Gênova em 1883, com destino ao Brasil, em busca de uma vida nova,
em que o tempo da narrativa se estende até a virada do século. A segunda obra
trata de uma questão familiar, um jogo, a troca de casais, retratado entre 1909 e
meados de 1930. A terceira, prossegue no tempo, narrando a história da família
oriunda destes casais, focalizando as questões políticas, ideológicas e econômicas,
no período do início do Séc. XX até o ingresso do Brasil na Segunda Guerra
Mundial.
O tratamento metodológico dado a este estudo refere-se à Análise de
Conteúdo, que se alicerça na elaboração de categorias de análise e de uma
interpretação por parte do investigador. “Não é possível uma leitura neutra, toda a
leitura constitui uma interpretação”.
1
A Análise de Conteúdo define como seus
domínios possíveis de aplicação o Lingüístico e o Icônico
2
. Nesse caso, o domínio
Lingüístico são os romances acima citados e o Icônico são as fotografias e
desenhos referentes às casas dos imigrantes italianos.
O pesquisador Roque Moraes define que a matéria da Análise de Conteúdo
pode constituir-se de qualquer material procedente de comunicação verbal ou o
verbal, como livros, fotografias e etc. Os dados advindos dessas fontes chegam ao
investigador em estado bruto, necessitando, então ser processado para, dessa
maneira, facilitar o trabalho de compreensão interpretação e inferência a que aspira
a análise de conteúdo.
3
Por sua vez, Bardin define esse método como “uma
hermenêutica controlada, baseada na dedução a inferência. [...] Absolve e cauciona
o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não aparente, o
potencial de inédito (do não-dito) retido por qualquer mensagem”.
4
Dessa maneira, este estudo científico apresenta, no primeiro capítulo, um
panorama do período em que vivia o homem que migrou da Europa para terras sul-
1
MORAES, Roque. Análise de Conteúdo. Porto Alegre: PUCRS, 2000, p.3.
2
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. p.35.
3
MORAES. Op.cit., p.2.
4
BARDIN. Op.cit., p.35.
11
rio-grandenses. Dentro de uma visão objetiva, procurou se focar este imigrante
italiano no contexto sócio-histórico de seu tempo e espaço; inicialmente, abrangendo
a situação econômica e política da Europa, principalmente na Itália, que forçou a
saída de seus habitantes; para eles era padecer diante da fome ou aventurar-se na
América em busca de uma nova vida. Depois, trazendo à pauta a tecnologia
existente na Europa no final do Séc. XIX, como a existência dos barcos a vapor, das
tecnologias construtivas vigentes, inserindo o imigrante nesse contexto.
Além disso, destaca-se o momento que o Brasil vivenciava, o seu interesse
pela ocupação de seu território por homens livres e brancos. Já, no Rio Grande do
Sul, havia uma porção de terras devolutas e, por ser um estado que faz fronteira
com outros países, havia interesse em que essas terras restassem ocupadas. Entre
outras regiões do Brasil, a região nordeste do estado do Rio Grande do Sul, abrigou
os imigrantes italianos, que formaram a Região Colonial Italiana (RCI), promovendo
nessa região uma transformação evidente do ponto de vista econômico e cultural.
O segundo capítulo descreve várias noções relacionadas à Cultura, que é
um conceito fluido e de múltiplos usos. Neste trabalho, Cultura relaciona-se com a
integração do homem e a natureza. Ao transformar a natureza, o homem transforma
a si mesmo; cria instrumentos para garantir a sua sobrevivência e se adapta ao novo
de acordo com suas aprendizagens e experiências anteriores. A casa é uma
manifestação cultural que revela os modos de viver do homem. Ao edificar seu
espaço de habitar o imigrante imprimiu nela seus conhecimentos, seus sentimentos,
sua visão de mundo.
Nessa investigação, busca-se a representação do espaço de habitar, ou seja,
seus aspectos objetivos e subjetivos. A leitura dos aspectos objetivos pode ser feita,
dentre outras maneiras, através da identificação da forma e dos usos da casa, da
tecnologia construtiva utilizada, os aspectos subjetivos se revelam pelo implícito,
pelas necessidades motivacionais e pelas relações de poder. O termo “linguagem”,
aqui, é conceituado como sendo representação, como significado que pode ser
atribuída a uma manifestação cultural, nesse caso, a casa do imigrante italiano.
No terceiro capítulo as obras literárias são analisadas, conforme a
metodologia proposta, a Análise de Conteúdo. As categorias de análise de domínio
Lingüístico, a serem construídas neste trabalho e que serão utilizadas para a análise
12
das três obras literárias que compõem o corpus deste trabalho, são as que seguem.
Do ponto de vista objetivo: (a) as relações histórico-sociais conforme indicadas pela
pesquisadora Vitalina Frosi;
5
(b) a cronologia relativa aos tipos de construção
estabelecida pelo arquiteto Júlio Posenato;
6
e (c) funções dos espaços: estar, íntimo
e serviço de acordo com os arquitetos Bittar e Veríssimo.
7
Do ponto de vista
subjetivo: (a) as relações de poder que se estabelecem entre os personagens em
relação ao espaço de habitar, a partir de estudos do filósofo Foucault;
8
(b) as
necessidades do homem que abrangem desde a sobrevivência até a necessidade
estética, segundo o psicólogo Maslow;
9
e (c) os valores oníricos que fazem
referência às questões afetivas e inconscientes, apontados pelo fenomenólogo
Gaston Bachelard.
10
Dessa forma é possível realizar cruzamento de dados,
estabelecendo um encontro entre o espaço de habitar do imigrante italiano e os
textos literários de Pozenato.
O quarto capítulo trata do domínio Icônico, em que é apresentada uma
amostra da iconografia da casa do imigrante italiano. Representações gráficas e
fotográficas ilustram casas situadas em municípios da Região Colonial Italiana. As
imagens possibilitam visualizar a transformação que o espaço de habitar sofreu,
nessa região, ao longo do tempo, bem como relacioná-las com o texto literário.
Por fim, são apresentadas as considerações finais, ou seja, o resultado da
aprendizagem que o estudo proporcionou à pesquisadora, sobretudo no que tange a
significação e conseqüente valorização da casa do imigrante, patrimônio
arquitetônico na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul.
5
FROSI, Vitalina. Provérbios dialetais italianos. In: CHRONOS, Revista da Universidade de Caxias
do Sul, v.29, n.1, Caxias do Sul, 1996(a), p.37.
6
POSENATO, Júlio. Assim vivem os italianos. Arquitetura da Imigração Italiana no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: EST/EDUCS, 1983(a), p 97.
7
BITTAR, William; VERÍSSIMO, Francisco. 500 anos da casa no Brasil. Rio de Janeiro:
Ediouro,1999, p.14.
8
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert L., RABINOW, Paul. Michel
Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995(a), p.242.
9
MASLOW, apud LA ROSA, Jorge (org.) O significado do aprender. 7.ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003, p.182.
10
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.26.
13
1 HISTÓRIA, TECNOLOGIA E IMIGRAÇÃO
1.1 O Cenário Europeu no Período da Imigração Italiana
O processo da imigração italiana na Província de São Pedro, atual Estado do
Rio Grande do Sul, teve como marco inicial ano de 1875, data reconhecida como tal,
pois é nessa época que foram localizadas as mais remotas fontes primárias que
registram esse fenômeno, como escritos, documentos, dentre outros, além de ser o
ano em que houve o fluxo mais significativo de migrantes para essa região do Sul do
Brasil.
No período em que se deu esse grande deslocamento de pessoas, na
Europa, sobretudo, eclodia a chamada Segunda Revolução Industrial, quando
ocorreu uma estreita relação entre a ciência e a técnica, entre o laboratório e a
fábrica. O estudo de tal momento da história se reveste de essencial importância
para a compreensão deste trabalho, que procura analisar a transformação do
espaço de habitar, do imigrante italiano e dos seus descendentes, revelada nos
textos literários “A Cocanha”, “O Quatrilho” e “A babilônia”, de José Clemente
Pozenato, que abarcam o período histórico, que vai de 1883 até os primórdios da
Segunda Guerra Mundial.
Traçando uma comparação entre os dois períodos inaugurais da Revolução
Industrial, é possível dizer que enquanto a primeira fase, de 1760 a 1850, se
concentrou na produção de bens de consumo especialmente o algodão, limitando-
se, praticamente, à Inglaterra, a segunda fase se caracteriza pelo desenvolvimento
da indústria pesada, englobando outros países, como a Alemanha e tardiamente a
Itália.
A partir da Segunda Revolução Industrial (da metade do século XIX até
meados do século XX) é que houve as chamadas grandes invenções, descobertas
pela valorização dos diversos campos científicos, com aplicação na indústria, nos
meios de comunicação e de transportes. A indústria têxtil foi aperfeiçoada por meio
de máquinas automáticas, desenvolveram-se a indústria do aço e extrativa do
petróleo. Surgiu o telefone, criado por Bell, em 1876,
11
a fotografia a cores, os
primeiros filmes em rolo, que permitiram o aperfeiçoamento do cinema, em 1889. Os
Siemens construíram as primeiras locomotivas e bondes elétricos; Benz criou o
primeiro automóvel. O norte-americano Edison, em 1879, inventou a lâmpada
incandescente, que substituiu a luz a gás (querosene), o que provocou uma
verdadeira revolução no sistema de iluminação.
12
Em 1900, a luz elétrica era um
fato consumado na vida urbana de Nova York, Londres e em todas as grandes
cidades da Europa.
Uma vez que a eletricidade havia entrado nas casas, ela poderia ter outras
utilidades domésticas, além do seu uso na iluminação. Singer, em 1889, lançou um
modelo elétrico da sua máquina de costura; em 1909, a Westinghouse lançou o ferro
elétrico. Sucederam-se invenções de aparelhos domésticos, como fogões, chapas
elétricas, grelhas de assar. Com a descoberta dos motores elétricos, surgem os
ventiladores, as máquinas de lavar roupas, sendo o primeiro modelo criado por Thor,
em 1909.
13
Esses avanços tecnológicos influenciaram diretamente na vida
doméstica. Para as pessoas que tinham acesso, a mecanização da casa
representou uma economia de tempo e de esforço na realização das tarefas diárias.
Quanto à arquitetura, o grande desenvolvimento da indústria possibilitou o
emprego de outros materiais de construção, passando a ser usado o vidro e o ferro,
nas edificações. A maior construção elaborada com a utilização de estrutura de ferro
e fechamento com vidros, por exemplo, data de 1851, em Londres, e se denomina
Palácio de Cristal, destinado a exposições e feiras.
14
O cimento, que igualmente
revolucionou os métodos construtivos, foi quimicamente processado, em 1824, por
Joseph Aspdin
15
, através de uma mistura de pedras calcárias e argila. Em seguida, o
material começou a ser empregado nas construções, existindo inclusive, desde
1850, pequenas fábricas de cimento na Inglaterra e na França. A junção do ferro
11
“O Brasil foi um dos primeiros países a contar com serviços telefônicos, graças à visão do
imperador Dom Pedro II. Aliás foi o próprio Dom Pedro quem chamou atenção do mundo para o
evento de Graham Bell. Isso ocorreu em 1876, na célebre Exposição de Filadélfia, nos Estados
Unidos. Em 1877, o imperador, mandou instalar o primeiro telefone do país no Palácio de São
Cristóvão no Rio de Janeiro”. In: ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História.
História Geral e História do Brasil. 12.ed. São Paulo: Ática, 2003, p.314.
12
“Em 1882, Edison construiu um gerador na área de Wall Street em Nova York e através de uma
rede de distribuição de cabos subterrâneos, forneceu energia a uma área de 2,6 Km²”. In:
RYBCZNSKI, Wiltold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 158.
13
Idem, p.159.
14
BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983, p.587.
15
PETRUCCI, Eladio G. Materiais de Construção. Porto Alegre: Globo, 1980, p.309.
15
com o cimento, resultou, então, na criação do “concreto armado”, muito resistente,
tanto à compressão (força executada no sentido vertical) quanto à tração (força
executada no sentido horizontal).
Além dessas tecnologias, o desenvolvimento dos meios de transporte
representou uma revolução à parte, conforme afirmam os historiadores Arruda e
Piletti:
As estradas de ferro foram o maior investimento industrial no século 19. No
fim de 1860, os Estados Unidos contavam com 93 mil quilômetros de trilhos
e a Europa, 104 mil. Depois que Robert Fulton inventou o Barco a vapor em
1808, também a navegação marítima se transformou. As viagens
transoceânicas ganharam impulso em 1838, com a invenção da hélice. Os
novos barcos passaram a cruzar o Atlântico na linha Europa-Estados
Unidos em apenas dezessete dias.
16
E, referindo-se ao fenômeno imigratório, a pesquisadora Loraine Slomp Giron
considera:
As máquinas que, em parte, aumentaram os capitais e a burguesia, e, em
parte desalojaram os operários de suas ocupações, garantiram a expansão
em direção à América. A mesma expansão técnica que expulsava os
homens garantiria seu transporte para outras terras, através dos navios à
vapor. A Europa passou a exportar em larga escala produtos
industrializados, religião, costumes, idéias, e, especialmente, europeus.
17
Essas transformações ocorridas na sociedade e no processo produtivo
também são importantes para se compreender o momento histórico, ou seja, a
imigração da grande massa de camponeses oriundos da Itália foi possível também
por conta do desenvolvimento da tecnologia, principalmente, pelo surgimento dos
meios de transportes como as estradas de ferro e as novas embarcações.
A fala de Cósimo, personagem da obra “A Cocanha”, na partida de um grupo
de imigrantes da estação de Verona para Gênova, no ano de 1883, ilustra essa
relação entre a imigração e o desenvolvimento tecnológico, na época. Assim ele se
refere ao vagão do trem:
Nunca tinha visto casa em cima de rodas – continuou Cósimo, brincalhão.
Acho que vou levar uma dessas para a América. está pronta, pintada,
16
ARRUDA e PILETTI. Op.cit., p.296.
17
GIRON, Loraine Slomp. A imigração Italiana no RS: fatores determinantes. In: DACANAL, José
Hildebrando. (org.) RS: imigração & colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p.49.
16
tem vidro nas janelas. E não vou precisar de carroça. A casa vai ser a
carroça.
18
O narrador continua contando a viagem dos imigrantes que após percorrerem,
de trem, o trajeto entre Verona e Gênova, permanecem em Gênova, numa
hospedaria, e ouve-se o seguinte:
De repente, ergueu-se a voz cantante, de quem discursa para uma
multidão. A Itália sangra pelo porto de Gênova. A Itália tem no corpo um
veneno a lhe desmanchar o sangue, que corre pelas fronteiras do norte e
pelo cais da Europa...
19
Estes dois excertos do referido romance de Pozenato demonstram, primeiro,
a descrição do vagão do trem da época, e a idéia que este vagão poderia ser
utilizado como casa na América. Uma casa construída de metal, com vidros,
devidamente pintada, e com rodas, consoante com a tecnologia da época, embora
não sendo utilizada no cotidiano dos camponeses, mas presente no imaginário do
homem do século XIX. A emigração italiana se estendeu para muitos países: Brasil,
Argentina, Canadá, Estados Unidos, Austrália. O segundo trecho apresenta uma
bela metáfora a respeito da migração de Italianos para outros continentes, neste
caso a América. Esse “veneno a lhe desmanchar pelo sangue” sugere a idéia que o
modelo produtivo que passou a se adotar – com os meios de produção
concentrados nas mãos dos capitalistas , alterou as antigas estruturas sociais,
expulsando muitos da sua própria pátria.
1.2 A Itália dos Migrantes
A Itália, unificada em 1870, após um longo processo, “continuava sendo um
país agrário, regido por relações sociais muito atrasadas que freavam o seu
desenvolvimento econômico e condenava as massas populares à miséria e fome”.
20
O fracionamento de terras, na península itálica, comportava, de um lado os grandes
latifúndios e, por outro, um grande mero de minifúndios de pequenas dimensões,
em média de 2,5 hectares, incapazes de gerar o sustento de uma família. As
18
POZENATO, José Clemente. A Cocanha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000 (a), p.15.
19
Idem, p.33.
20
IANNI, Constantino. Homens sem paz. São Paulo: Civilização Brasileira [s.d], p.49.
17
pequenas terras acabavam, então, nas mãos dos grandes proprietários. A maioria
dos colonos italianos o era proprietária de áreas cultiváveis; eles trabalhavam
para os senhores das terras.
As transformações econômicas produzidas pelos efeitos da Revolução
Industrial na Europa, nesse período, também atingiram o norte da Itália que, graças
à produção industrial, tornara-se mais forte que o sul agrário. Em nome da requerida
modernização, foram tomadas algumas medidas, entre elas, o liberalismo
alfandegário, isto é, a oferta de produtos industriais estrangeiros a preços reduzidos,
o que, por sua vez, atingiu o sistema artesanal de produção que representava uma
complementação na renda dos colonos. Esses ficaram cada vez mais entregues à
produção agrícola, contra a qual erguiam-se os mais diversos obstáculos, dentre
eles a concorrência de produtos estrangeiros, o aumento excessivo de impostos e a
colheitas pouco produtivas. Segundo os escritores Luiz A. De Boni e Rovilio Costa,
”com a destruição da pequena indústria do tipo artesanal, a elevação dos impostos,
acompanhados pela redução do preço dos produtos, houve uma rápida deterioração
do campo, com sinais evidentes de uma regressão sócio-econômica”.
21
Comparados com a população rural de outros países da Europa, os colonos
italianos apresentavam um quadro lúgubre: eram os mais atrasados, com índices de
analfabetismo elevado, enquanto outros países séculos, por vezes, haviam
erradicado este mal. Começava a sobrar gente nos campos e as cidades não
estavam em condições de absorver tantas pessoas.
A médio prazo, parecia que a Itália teria que optar entre duas soluções: a de
reformas de base modificando principalmente o sistema fundiário e a
distribuição dos encargos sociais e a revolução de cunho socialista. Em
vez de uma destas alternativas, surgiu, porém, a emigração em grande
escala, permitindo à classe dirigente manter e mesmo aumentar seus
privilégios, enquanto os pobres rumavam, em número incalculável para
outros países, principalmente de além-mar.
22
Ademais, o grande movimento migratório italiano dos fins do século XIX está
diretamente relacionado com a grave crise econômica que o país atravessou logo
após a sua unificação em 1870. Nesse sentido, afirma a pesquisadora nia B. M.
Herédia:
21
DE BONI Luis A.; COSTA, Rovílio. Os italianos do Rio Grande do Sul. 2.ed. Porto Alegre:
Vozes,1982, p.52.
22
Idem, p.53.
18
Com a unificação italiana os problemas econômicos agravaram-se. O
processo de unificação não havia trazido consigo a solução de problemas
que haviam nascido da decadência do feudalismo e da instalação do
sistema capitalista. A agricultura ainda estava estruturada em moldes
arcaicos, e não propiciava condições necessárias à população agrária para
enfrentar a crise instalada. A influência da unificação sobre a economia
italiana não resolveu questões que a população acreditava que fossem
solucionadas pela via política, como a diminuição do custo de vida, salários
mais altos e redução das taxas alfandegárias. A Itália convivia com regiões
desenvolvidas de regiões atrasadas e as contradições desses dois modelos
era gritante para àqueles que não tinham o mínimo para viver.
23
Por sua vez, a professora, Vitalina M. Frosi, também tratando do contexto
histórico em que se deu a saída dos inúmeros italianos da terra natal, estabelece
que:
A economia era dependente de poucos industriais e de muitos latifundiários
ainda afetos a esquemas econômicos medievais de feudalismo e de
exploração da força operária e agrícola. A unificação política não destruíra o
fenômeno escravagista de uma economia tradicional e ultrapassada. A
formação da nova Itália, como Reino, não abria perspectivas propícias à
revogação dos esquemas antiquados de grandes proprietários feudais com
títulos hereditários de posse de terras e do elemento humano que as
trabalhavam. Se uma reconstrução geopolítica tivesse acarretado uma
reforma econômica de base, com uma reformulação de estatutos de terras e
posses, com uma agricultura baseada na pequena propriedade, os
movimentos migratórios que se verificaram no norte da Itália, em fins do
século XIX, talvez não se tivessem registrado nas proporções que
ocorreram.
24
Portanto, pode se dizer que a principal causa da imigração dos camponeses
italianos foi a sua situação de miséria; ao abandonarem a sua pátria-mãe, buscavam
uma alternativa de sobrevivência, uma vez que as perspectivas de dias melhores, na
Itália, eram remotas.
1.3 Os Imigrantes Italianos Chegam ao Brasil
O Brasil, no final do século XIX, contava com um governo imperial. A
formação social da população brasileira, até então, era caracterizada pela mescla de
várias etnias: o índio nativo, o africano escravo e o português colonizador. A mão-
23
HERÉDIA, Vânia Beatriz Merlotti. Contexto histórico da Itália antes da unificação. In: RIBEIRO,
Cleodes Maria Piazza; POZENATO, José Clemente. (Orgs). Cultura, Imigração e Memória:
percursos e horizontes, 25 anos do ECIRS. Caxias do Sul: EDUCS, 2004, p.299.
24
FROSI, Vitalina Maria, MIORANZA, Ciro. Imigração Italiana no nordeste do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Movimento, 1975, p.12.
19
de-obra era baseada no trabalho escravagista; porém, a partir de 1850, cedendo às
pressões inglesas, decorrentes da necessidade da formação de novos mercados,
25
o
Brasil aprovou a extinção do tráfico negreiro, e a busca por mão-de-obra livre tornou-
se uma necessidade, seja para laborar na lavoura cafeeira, seja para o restante da
agricultura nacional.
Neste contexto, chegaram os imigrantes italianos ao Brasil. Eles foram
empregados, na maior parte, como trabalhadores nas fazendas de café em o
Paulo; apenas uma minoria de colonos restou enviada para as colônias da então
Província de São Pedro (RS). Diversamente dos imigrantes estabelecidos nos
cafezais paulistas, aqueles que ocuparam as áreas localizadas no extremo sul do
país passaram, de imediato, a ser proprietários de terras. Além de São Paulo e Rio
Grande do Sul, os imigrantes italianos também foram introduzidos em outras regiões
do país, nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina.
26
Como se pode perceber, a finalidade do governo imperial, ao promover a
imigração, era múltipla. Dentre elas, a evidente necessidade da substituição da mão-
de-obra escrava nas lavouras; a ocupação de espaços vazios no território, as
chamadas terras devolutas; e o cuidado pela defesa, organizando um exército
nacional.
27
O processo de colonização era um grande empreendimento estatal e o
governo imperial, não possuindo escritórios de propaganda ou qualquer organização
própria no exterior, foi obrigado a entregar a procura do imigrante a empreendedores
que, por sua vez, confiaram o aliciamento às próprias companhias de navegação.
28
O escritor italiano Franco Cenni esclarece que as empresas eram pagas pelo
governo para introduzir os imigrantes, com o que, agiam em diversos lugarejos da
Itália para recrutar interessados. Esse procedimento é assim descrito:
[...] as companhias colocaram representantes ou agentes em todas as
cidades, grandes e pequenas, até em longínquos e perdidos lugarejos a fim
de ‘fazerem a carga’. O proprietário que perdera suas terras confiscadas
pelas dívidas; o negociante falido; o desempregado que não tinha
esperanças ou o pobre camponês analfabeto ouviam de pessoas que talvez
25
Após consolidada a Revolução Industrial, a Inglaterra tinha interesse em criar e consolidar
mercados consumidores sempre mais amplos. Isso seria possível se os trabalhadores fossem
assalariados, portanto, o regime escravocrata deveria ser extinto. In: ARRUDA e PILETTI. Op.cit.,
p.234.
26
FROSI e MIORANZA. Op.cit., p.38.
27
DE BONI. Op.cit., p.26.
28
CENNI, Franco. Italianos no Brasil. 3.ed. São Paulo: EDUSP, 2003, p.221.
20
nunca tivessem visto o Brasil sequer num mapa as afirmações mais
estimulantes. Aquele era o paraíso, o próprio Éden, onde o dinheiro surgia
nas ruas, obrigando apenas ao trabalho, nem sempre incômodo de recolhê-
lo.
29
Acredita-se que o sonho de “fazer a América”, a idéia do paraíso perdido,
estava presente no imaginário daqueles que não tinham outra alternativa para fugir
da fome. Apesar de toda a propaganda, que parecia ser enganosa, feita para trazer
os imigrantes dado que o país, seja na região de plantação do café, seja no
Nordeste Gaúcho, estava longe de ser o Jardim do Éden ou de ter a abundância do
Paese di Cuccagna
30
–, é certo que o governo brasileiro, de fato, possibilitou a
aquisição de terras por parte dos estrangeiros, sobretudo para os que ocuparam as
colônias no sul do Brasil.
A Lei de Terras, promulgada pelo governo imperial, em 18 de setembro de
1850, de 601, determinava que “as terras poderiam ser adquiridas através da
compra. Dispunha também sobre a legitimação da posse de terra e a legalização da
propriedade através da posse efetiva da sesmaria”.
31
Essa legislação modificou o
modo de posse da terra, que antes era feita por necessária concessão do império e
que após podia ser adquirida, portanto, se tornando mercadoria. Isso possibilitou
que, com o trabalho desenvolvido na lavoura, os colonos italianos conseguissem
obter os recursos necessários para adquirir, de forma parcelada, o domínio das
terras onde laboravam e viviam.
29
CENNI. Op.cit., p.221.
30
“A topografia do ‘Paese di Cuccagna’ é dominada por uma montanha, na verdade um vulcão que
expele, continuamente, moedas de ouro.Quando chove, nesse país, chovem pérolas e diamantes,
mas podem chover também raviólis.Em direção ao porto, denominado de Porto dos Ociosos,
navegam embarcações carregadas de especiarias, mortadelas, toda a sorte de embutidos e
presuntos. Rios de vinho negro são atravessados por pontes de fatias de melão, e lagos de molhos
soberbos estão coalhados de polpette e fegatelli. Fornadas permanentes de pão de farinha de trigo
abastecem os habitantes do lugar. Aves assadas despencam do céu, direto sobre a mesa,
enquanto as árvores cobrem-se de frutos nos doze meses do ano. As vacas parem um vitelo ao
mês e os arreios dos cavalos são de ouro, mas as rédeas são lingüiças... A topografia se completa
com uma colina na qual está destinada aos infratores da única lei que vigora no país: não trabalhar
e gozar a vida”. RIBEIRO, Cleodes Piazza. Descrição do país da Cocanha, onde quem menos
trabalha mais ganha. In POZENATO. Op.Cit. (a),.p.7.
31
BERGAMASCHI, Heloisa Eberle; GIRON, Loraine Slomp. Colônia: um conceito controverso.
Caxias do Sul: EDUCS, 1996, p.26.
21
1.4 Os Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul
Em relação ao resto do Brasil, o Rio Grande do Sul teve uma ocupação
tardia, sendo que esta se deu em várias etapas. As reduções jesuíticas, fundadas a
partir de 1626, foram os primeiros núcleos estáveis no espaço rio-grandense.
32
Por
volta de 1640, os jesuítas abandonaram a área, e passaram para a outra margem do
Rio Uruguai. Cerca de 40 anos depois, começaram a retornar, organizando a
estrutura comunitária dos Sete Povos das Missões. Estes se tornaram centros
econômicos importantes, dedicando-se à produção de erva-mate, à extração de
couro e às atividades criatórias.
No século XVIII, a estratégia adotada pela Coroa Portuguesa para garantir a
posse e defesa das terras localizadas ao sul de sua colônia foi a instalação de
acampamentos militares, a construção de fortes e presídios, como o de Rio Grande,
edificado em 1737,
33
bem como a distribuição de sesmarias para pessoas de
prestígio. Até a metade do século XVIII, desenvolveu-se no Rio Grande do Sul uma
pecuária voltada à produção de charque, ciclo responsável pelo crescimento das
cidades localizadas no extremo sul gaúcho.
Os açorianos vieram a partir de 1748, fixando-se em Rio Grande, Porto
Alegre, Viamão, Santo Amaro e Rio Pardo.
34
Receberam gratuitamente terras para
desenvolver atividades agrícolas, principalmente a produção de trigo, e, dessa
forma, abastecer a Colônia. Até então, na formação étnica sul rio-grandense,
destacava-se a presença de descendentes de povos indígenas, africanos e os
portugueses.
Já, durante todo o século XIX, o Rio Grande do Sul foi alvo do processo de
assentamento de imigrantes europeus, inicialmente de origem alemã, em 1824, e
posteriormente os italianos, em 1875. Os alemães foram instalados na região da
depressão central do estado em terras planas, e os italianos na região nordeste do
estado que apresenta topografia acidentada, a chamada encosta superior do
32
KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. 2.ed. Porto Alegre:Leitura XXI, 2004, p.40.
33
Idem, p.55.
34
Idem, p.58.
22
nordeste. O norte do Estado foi povoado basicamente através das áreas coloniais
alemães e italianas, e da chegada de novos grupos étnicos.
35
A situação do Rio Grande do Sul, encontrada pelos primeiros imigrantes
italianos em 1870, era bem diferente daquela encontrada pelos alemães 50 anos
antes. Segundo os estudiosos De Boni e Costa “a população provincial saltara de
110 para cerca de 440 mil pessoas. Em vez de 5 municípios eram agora 28,
divididos em 73 paróquias. A cidade de Porto Alegre contava com 30.583 habitantes,
pelos dados do recenseamento de 1872”.
36
Ou seja, estava em curso um
incipiente processo de urbanização, com a apropriação, pelos habitantes da região,
de algumas das novas técnicas descobertas na época. Loraine Slomp Giron, assim
descreve a situação da Província, neste período:
A Província em 1872, possuía 5/6 da população concentrada da Depressão
Central e Litoral, e apenas 1/6 na Encosta Inferior do Planalto. Eram
extensas as área de terras devolutas, ainda não povoadas. Estas terras
correspondiam à região das matas que cobriam as encostas do Planalto, as
quais não tinham interessado aos criadores de gado, que haviam se
instalado na região dos campos, tanto da campanha, como sobre o
Planalto. A imigração alemã em sua expansão, seguira os vales dos rios da
Depressão Central, interrompendo-as nas encostas inferiores da Serra
Geral. Assim, a encosta superior permanecia desabitada.
37
Reflexos da Revolução Industrial faziam-se sentir: havia estradas de ferro,
rede telegráfica, um sistema bancário em formação e uma organizada navegação
fluvial, com barcos a vapor. A Província, embora basicamente marcada pela
pecuária, contava com uma grande produção agrícola, proveniente principalmente
das colônias alemãs. Politicamente, estavam curadas as feridas separatistas
provocadas pela Guerra dos Farrapos. A Guerra do Paraguai e as campanhas do
Prata eram fatos passados.
38
A administração provincial tomou várias iniciativas criando outras colônias
além da alemã, após a Guerra dos Farrapos. Em 1869, solicitou ao Governo Imperial
uma área de 32 léguas quadradas. O pedido foi atendido em fevereiro de 1870, e
em maio do mesmo ano o Presidente da Província, João Sertório, criou as colônias
35
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 3.ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1984, p.46.
36
DE BONI e COSTA. Op.cit., p.62.
37
GIRON. Op.cit., p.61.
38
DE BONI e COSTA. Op.cit., p.63
23
Conde d’Eu e Dona Isabel, situadas nos atuais Municípios de Garibaldi e Bento
Gonçalves. Essas
[...] localizavam-se, as colônias, entre o rio Caí, os campos de Vacaria e o
município de Triunfo. Tomando por divisa entre ambas o caminho dos
tropeiros que seguia do Maratá em direção ao rio das Antas, situando-se a
primeira colônia à esquerda e a segunda a direita do mesmo caminho.
39
A colonização promovida pela Província, destas duas áreas, não obteve o
êxito desejado. O governo imperial, então, assumiu as novas colônias. Ainda, devido
à ação do Imperador Dom Pedro II, foi criada mais uma colônia chamada, de Fundos
de Nova Palmira em 1875, que em 1877 passaria a chamar-se Colônia Caxias, hoje
Município de Caxias do Sul. Neste mesmo ano, o governo resolveu instalar,
também, uma quarta colônia no atual município de Santa Maria, na região central do
Estado, chamada de Silveira Martins.
40
Estas quatro colônias formam o núcleo
básico da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
A área de assentamento de colonos italianos situada no nordeste do Rio
Grande do Sul, em 1975 foi denominada pelo pesquisador italiano Mario Sabbatini
de Regione di Colonizzazione Italiana, termo traduzido por Região Colonial Italiana,
a chamada RCI. Observando-se esta região, percebe-se que nela não está
contemplada chamada 4ª Colônia, situada na região central do Rio Grande do Sul.
A ocupação da região do nordeste do estado pelos imigrantes italianos, com a
denominação das Colônias e o período histórico em que ocorreu a colonização é
perfeitamente compreensível através da visualização do quadro elaborado pela
pesquisadora Vitalina M. Frosi,
41
que segue:
Antiga
Colônia
Antiga Colônia I: Caxias, Dona Izabel, Conde d’Eu
Antiga Colônia II: Antônio Prado e Alfredo Chaves
Fundadas em 1875 – na época do Império
Fundadas em 1884-1885 – época do
Império
Nova
Colônia
Nova Colônia: Guaporé ( e Encantado)* Fundada em 1892 – época da República
Novíssima
Colônia
Novíssima Colônia: Expansões das diversas
colônias anteriores
Formam-se a contar de 1900 em diante
* A contar de 1882, aproximadamente, inicia-se a imigração interna dos colonos italianos da Colônia Dona Izabel
e Conde D’Eu para as terras de Encantado.
Quadro 1 – Ocupação pelos imigrantes italianos da Região Nordeste do Rio Grande do Sul
Fonte: Adaptado de Frosi (In: HERÉDIA e ZUGNO, 2003).
39
DE BONI e COSTA. Op cit., p.64.
40
Idem, p.65.
41
FROSI, Vitalina Maria. Proveniências dos Imigrantes Italianos e suas falas dialetais. In: HERÉDIA,
Vânia B.M.; ZUGNO, Paulo Luiz. (orgs.) Anais do Seminário Internacional Vêneto/RS. Modelos
de desenvolvimento comparados – 1945-2000. Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p.26
24
A Região Colonial Italiana é composta, então, pelas Antigas Colônias, Nova
Colônia e Novíssima Colônia, e compreende hoje mais de 55 Municípios, localizados
no Nordeste do Rio Grande do Sul,
42
sendo que o número de imigrantes que
entraram no Estado, de acordo com o Anuário Estatístico do Rio Grande do Sul, de
1911-1915, no período compreendido entre 1882 e 1914, foram de 154.682
imigrantes. O número de 66.901 imigrantes italianos representa um percentual de
43,25% do total, faltando elementos correspondentes aos sete primeiros anos, de
1875 a 1881, que fonte alguma registra.
43
Sobre o tema, estudiosos sustentam que
os italianos que aportaram nas terras do extremo sul o Brasil, entre 1875 e 1914,
foram cerca de 80 mil pessoas, número bastante expressivo para a população
regional da época.
1.4.1 As Transformações Ocorridas na Região Colonial Italiana, do Final do Século
XIX ao Início do Século XX
Como mencionado, o nordeste do Rio Grande do Sul, quando da chegada
dos imigrantes oriundos da Itália, não era o sonhado Paese di Cuccagna”; pelo
contrário, os novos ocupantes da região se depararam com uma densa floresta de
pinhais, áreas com significativas depressões, com grande variação climática entre
as regiões altas e os terrenos que margeiam os rios –, o que fez com que, num
primeiro momento, tivesse de haver uma atividade baseada na derrubada e
exploração da madeira ali localizada.
Essas terras onde os imigrantes se instalaram, primeiramente, “foram
divididas em Linhas ou Travessões e estes em lotes coloniais numerados, as
divisões eram feitas, em geral sobre mapas, não respeitando acidentes geográficos
a não ser os de maior relevo como o rio das Antas e afluentes”.
44
Observando o
42
A RCI é composta seguintes municípios (dados obtidos em 2001): Anta Gorda, Antônio Prado,
Arvorezinha, Bento Gonçalves, Boa Vista do Sul, Camargo, Carlos Barbosa, Casca, Caxias do Sul,
Ciríaco, Coqueiros do Sul, Coronel Pilar, Cotiporã, David Canabarro, Doutor Ricardo, Encantado,
Fagundes Varela, Farroupilha, Flores da Cunha, Garibaldi, Gentil, Guabiju, Guaporé, Ilópolis,
Marau, Montauri, Monte Belo do Sul, Muçum, Muliterno, Nicolau Vergueiro, Nova Alvorada, Nova
Araçá, Nova Bassano, Nova Bréscia, Nova Pádua, Nova Prata, Nova Roma do Sul, Paraí, Protásio
Alves, Putinga, Relvado, Santa Bárbara do Sul, Santa Teresa, o Domingos do Sul, São Jorge,
São Marcos, São Valentim do Sul, Serafina Correa, Vanini Veranópolis, Vespasiano Correa, Vila
Flores, Vila Maria e Vista Alegre do Prata. FROSI, In: HERÉDIA e ZUGNO. Op.cit.(b), p.127-128.
(ver mapa em anexo)
43
CENNI. Op.cit., p.175.
44
FROSI e MIORANZA. Op.cit., p.39.
25
mapa, da colônias, verifica-se que essas linhas eram desenhadas no sentido norte-
sul, e que as colônias apresentavam formatos retangulares, com medidas variáveis
em média correspondendo a 200 metros de frente e 1.000 metros de profundidade,
configurando um lote com 20 hectares de área. Dessa forma, não se estava mais
diante de grandes latifúndios próprios das ocupações rio-grandenses em períodos
históricos anteriores –, mas de pequenas propriedades de terras.
Tais lotes receberam o nome de colônia, ou seja, consistia na área de terras a
ser cultivada pelos imigrantes italianos, de onde deveriam conseguir os recursos
para comprar a propriedade e sustentar a família. Daí o nome de colono, como
sendo aquele imigrante que laborava nessas pequenas propriedades, em regime de
economia de subsistência. Essa divisão dos lotes foi realizada pela chamada
Comissão de Terras, e seguiu o modelo cartesiano, obedecendo a eixos ortogonais,
sem levar em conta os acidentes geográficos, que, de certo, era o modo mais
simples e eficaz de ser traçado. E existia, na época, tanto o conceito de medidas
de terras como os meios necessários para que fosse executada a marcação dos
lotes. Aliás, a pesquisadora italiana Carla Pagano afirma que o surgimento da
geometria (geo = terra, metria = medidas), teria surgido a partir da necessidade do
homem medir as terras, nas quais desenvolvia a lavoura. A sua afirmação deriva da
existência de registros, do período de domínio do faraó egípcio Sesostri (IIº milênio
a.C.), em que eram distribuídas terras aos egípcios, às margens do rio Nilo, traçadas
em forma retangular.
45
Inclusive, mesmo sendo simples o método cartesiano, era necessário, para a
demarcação dos lotes, o uso de uma determinada tecnologia, que propiciasse a
existência de equipamentos de precisão. Assim, a bússola, como instrumento de
referência, e a presença de técnicos que soubessem fazer levantamentos
planialtimétricos, através do quais os terrenos são medidos em projeção, levando
em consideração a sua inclinação, consistiram, certamente, em elementos
indispensáveis para que divisão das terras fosse efetuada.
Ademais, para desbravar a densa mata de pinhais existente, também foram
usados instrumentos, como machados, facões, e serrotes, que seriam fornecidos
pelas empresas colonizadoras, além de um auxílio quanto ao modo de derrubar as
árvores, conforme ilustra a seguinte passagem do romance “A Cocanha”:
45
PAGANO, Carla. Origini della geometria. Turim: Edizioni “il Capitello”, 1995, p.120.
26
Chega a tropa de mulas com as tábuas, eles as descarregam e o tropeiro
toma o caminho de volta, depois de comer seu feijão com farinha. O velho
Nicola vai agora ensinar a derrubar uma árvore:. “Pensam que elas estão
presas no chão? Elas estão presas em cima. Não adianta cortar em baixo
se elas ficam penduradas pelas copas”. Esta é a parte mais difícil de
aprender, mais de um italiano morreu debaixo das árvores que estava
derrubando. Mais adiante, cada um terá de fazer isso sozinho, na sua
colônia, e Nicola não quer que o culpem se acontecer algum desastre.
46
Tal narrativa trata de um episódio de derrubada da mata, sendo que o velho
Nicola é descrito como um italiano, que pertence ao primeiro grupo de imigrantes
chegado a colônia de Caxias em 1877, e que, portanto, conheceria a técnica
necessária para realizar o desmatamento. A história contada na obra “A Cocanha”
se inicia em 1883, ou seja, se passaram alguns anos do início da ocupação, pelos
imigrantes, da RCI, e o velho Nicola seria um dos pioneiros a se instalar na região, e
repassava o que apreendera para quem recém estava aportando nas novas terras.
Os estudiosos De Boni e Costa, lembram que “a província, conforme lei
anterior (Lei de Terras de 1850 601), comprometia-se a transportar os colonos
desde Rio Grande, hospedá-los, dar-lhes um auxílio inicial, derrubada e casa
própria, instrumentos, sementes e assistência”.
47
Dessa maneira, é de ter como certo
que cada grupo de imigrantes recebia alguma forma de ajuda, sem a qual não seria
possível dar continuidade a sua permanência na colônia. Afinal estava tudo para ser
feito e o propósito do governo era o de efetiva ocupação destas áreas.
Além da demarcação em linhas ou travessões dos lotes a ser ocupada pelos
imigrantes chegados da Itália, existia, igualmente, uma prévia indicação do local
onde seriam os vilarejos, com seu arruamento pré-definido:
[...] o traçado de cada colônia previa o local das vilas. No caso as ruas
eram demarcadas em linha reta, com transversais cortando-as
perpendicularmente, em forma de xadrez, e as quadras divididas em lotes
urbanos, e vendidos para pessoas que desejavam instalar-se no local,
geralmente por não serem agricultores. Nestas localidades residiam a
administração da colônia e, geralmente os poucos luso-brasileiros da região.
Inúmeras outras vilas sugiram somente com o passar do tempo, por uma
série de fatores não previstos pelos planejamentos.
48
Esses espaços urbanos, que abrigaram diversos imigrantes italianos que
conheciam algum ofício e/ou não tinham vocação para atividade rural, são
46
POZENATO. Op.Cit. (a), p.133.
47
DE BONI e COSTA. Op.cit., p.64.
48
DE BONI e COSTA. Op.cit., p.81.
27
igualmente retratados no livro “A Cocanha”. O personagem Domênico, que desejava
laborar como fotógrafo e alfaiate, ao percorrer o Campo dos Bugres, primeiro nome
dado a Caxias do Sul, se depara com um lugarejo que o narrador assim descreve:
No topo da rua, deu com um descampado pedregoso, que terminava no
alto, com uma igrejinha com tábuas encardidas. Árvores imensas e
pinheiros a rodeavam por trás. Devia ser ali a praça Dante Alighieri, que
teria ainda muito a se embelezar para ser uma praça e honrar o grande
poeta florentino. Também a igrejinha teria muito a mudar para ser uma
verdadeira igreja. As ruas e casas muito a melhorar para serem de fato
cidade.
49
Tais assertivas estavam corretas, pois, conhecendo as cidades italianas
como os imigrantes conheciam , a Campo dos Bugres da época muito deveria
evoluir para se tornar uma verdadeira cidade, consoante com os padrões que se
tinha conhecimento. No entanto, as bases estavam colocadas, existia um traçado
básico que definiria a ocupação do núcleo, sobre o qual se desenvolveu a cidade,
que se tornaria, posteriormente, um grande pólo regional: o Município de Caxias do
Sul.
A propósito, a pequena igrejinha de madeira, referida no romance citado
que supostamente descreve a situação do vilarejo em 1883 –, em menos de doze
anos se tornaria a elegante Catedral de alvenaria, que permanece imponente, ainda
hoje. A edificação desse monumento arquitetônico é assim relatada pelo arquiteto
Evaldo L. Schumacher:
A catedral teve o lançamento de sua pedra fundamental em 1895. Iniciou-se
a nova construção em substituição a uma antiga pequena igreja,
provisoriamente feita em madeira com 8m de frente por 13 de fundo. A nova
igreja em alvenaria passa a ter 15 m de frente por 25m de fundo.
50
Estabelecendo uma relação entre a arquitetura religiosa no Rio Grande do
Sul, no que diz respeito ao período de sua execução, e, portanto, à ocupação dos
territórios, cumpre referir que enquanto a Catedral de Caxias do Sul foi edificada em
1895, a Igreja de São Miguel na região missioneira, foi projetada por um italiano da
Companhia de Jesus, o irmão Batista Primoli, e edificada no período de 1735 a
49
POZENATO. Op.Cit. (a), p.107.
50
SCHUMACHER, Evaldo Luiz. Guia didático da arquitetura de Caxias do Sul. v.1. Caxias do Sul:
EDUCS, 2004, p.20.
28
1744.
51
Já, a igreja mais antiga, ainda existente do Estado, é a de São Pedro,
localizada na cidade de Rio Grande, inaugurada em agosto de 1755 autoria do major
brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, nascido na Colônia de Sacramento.
52
Ou
seja, quase dois séculos separam a construção da Catedral caxiense das outras
duas edificações religiosas de vulto no Estado, antes referidas, demonstrando que a
obra efetuada na RCI não era pioneira, pelo contrário, surgiu concomitante com o
crescimento e desenvolvimento da ocupação feita pelos imigrantes italianos, e, para
ser erguida, devem ter sido utilizadas as técnicas empregadas em obras anteriores.
Nas vilas, além da edificação de igrejas e das moradias, também se via surgir
indústrias pioneiras, instaladas e administradas pelos imigrantes italianos. A
preferência do italiano e dos seus descendentes no setor da indústria transformativa
se dirige para a vinificação, pois o colono, espalhando parreirais, mirava,
evidentemente, numa larga produção de vinho. Porém, o aproveitamento suíno e o
beneficiamento da madeira, também atraíram a atenção dos imigrantes, que desde o
início de suas atividades passaram a contar com numerosas varas e grandes
serrarias. Nessas indústrias, porém verificava-se um profundo entrosamento entre
portugueses, alemães e italianos, de forma que seria difícil estabelecer, com
segurança, o valor da contribuição de cada um deles.
53
Mais propriamente italianas
são as atividades moageiras e metalúrgicas. O escritor italiano Franco Cenni,
tratando do tema, relata os acontecimentos que ensejaram o surgimento da atual
empresa Germani Alimentos Ltda., que segue:
Pioneiro o apenas no cultivo do trigo, mas também de sua
industrialização, foi Aristide Germani, que desde rapaz tinha trabalhado num
grande moinho da Itália do norte. Órfão de pai e mãe em 1885 chegava ao
Campo dos Bugres, onde seu tio materno vivia numa pequena casa de
madeira no meio de uma mata. Poucos anos mais tarde, com as economias
conseguidas trabalhando em pequenos moinhos da redondeza, Germani
uma pequena área de terra nos arredores de Caxias, que viria a se
constituir num centro de irradiação e aperfeiçoamento técnico do plantio e
da industrialização do trigo. Seu moinho era hidráulico e o único, em 1910, a
ser iluminado por energia elétrica.
54
51
DE CURTIS, J. N. B. O espaço urbano e a arquitetura produzida pelos Sete Povos das Missões. In:
WEIMER, Günter (Org.). A arquitetura no Rio Grande do Sul. 2.ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto,1987, p.34
52
MACEDO, Francisco R. de. Arquitetura Luso-Brasileira. In: WEIMER. Op.cit., p.72.
53
CENNI. Op.cit., p.131.
54
CENNI, Op.cit., p.174.
29
Também curioso e significativo é o retrato que a historiadora Heloisa D.
Eberle Bergamaschi faz da atividade desenvolvida por Abramo Eberle, fundador,
ainda em 1896, da Metalúrgica Eberle. Ela conta que os lucros com
comercializações feitas por seu avô, aplicados na indústria, foram fundamentais para
impulsionar a empresa. Igualmente demonstra como a chegada da linha férrea e da
energia elétrica, em Caxias do Sul, por exemplo, permitiu o progresso do negócio. A
autora explica que:
Em 1910 a sede da antiga Colônia de Caxias se torna vila e recebe a linha
férrea. Agora, a comercialização dos produtos regionais bem como a
aquisição de matérias-primas são feitas mais intensamente com outros
centros comerciais. Com o comércio e as comunicações facilitadas, o
desenvolvimento aumenta da região. O negócio de Abramo também é
beneficiado. A partir de 1913, com a instalação da energia elétrica em
Caxias a empresa pode ampliar a sua produção. Compra motores elétricos
(1915), constrói novos pavilhões, aumenta o número de empregados.
Cresce a região cresce a empresa.
55
Na trilogia apresentada por José Clemente Pozenato “A Cocanha, “O
Quatrilho” e “A babilônia” –, que tem como cenário os primórdios da colonização
italiana no Estado do Rio Grande do Sul, igualmente, se constata a presença de
personagens que tinham esse perfil empreendedor, e que se utilizavam do capital
que amealhavam, de uma forma ou outra, para adquirirem os meios de produção,
constituir as empresas e obterem lucros. O personagem Ângelo Gardone, filho de
imigrantes, um menino ruivo, nascido no Brasil, quando adulto se envolve numa
trama amorosa que resulta na troca de sua esposa pela mulher de um amigo e
sócio, consegue, junto de sua nova companheira, obter recursos financeiros e
desenvolver a indústria “Productos Alimentícios Gardone”,
56
a partir de um moinho
de cereais. Ele se tornou rico, tanto que exigia que sua nova consorte se vestisse
bem, usasse colar de pérolas e bracelete de ouro, pois “não deviam parecer
miseráveis”.
57
Esse personagem carrega em si o perfil do “capitalista” entendido
como aquele que progride economicamente através do seu trabalho e do acúmulo
de capital, nem sempre obtido de forma lícita.
A importância do trem, ao realizar o transporte mais rápido e seguro das
pessoas e das mercadorias, é ímpar, nas transformações que se verificaram com a
55
BERGAMASCHI, Heloísa D. Eberle. A Eberle: uma indústria metalúrgica. In: Coletânea CCHA:
cultura e saber. Caxias do Sul: UCS, 1998, p. 30.
56
POZENATO, José Clemente. A babilônia. Caxias do Sul: Maneco, 2006(b), p. 33.
57
POZENATO, José Clemente. O Quatrilho.16.ed.Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001(c). p. 203.
30
chegada dos migrantes na RCI, pois permitiu a melhoria nas ligações entre os
pequenos núcleos urbanos e entrepostos comerciais, fazendo com que circulassem
as riquezas, se divulgassem as notícias e se difundissem as novas técnicas. Sobre
esse tema, cabe transcrever o que menciona o escritor Franco Cenni:
O ano de 1910 torna-se decisivo para a viticultura da zona do nordeste sul
rio-grandense, com a inauguração da estrada de ferro Montenegro-Caxias
do Sul, que permitia a ligação direta da região com Porto Alegre, eliminando
o transporte em carretas até os portos fluviais de Caí e Montenegro.
Estabelecido um contato direto entre as praças produtoras e consumidoras,
o viticultor dedicou-se com novo alento ao seu trabalho, plantando nas
derrubadas antigas, transformando novas parcelas de florestas em coivaras
para o cultivo do milho ou do trigo.
58
A respeito do desenvolvimento de Caxias do Sul, principal centro econômico
da RCI, e da repercussão do uso de novas tecnologias que se incorporavam ao dia-
a-dia dos imigrantes, ainda, cumpre trazer à baila a síntese feita pela professora
Vânia B. M. Herédia:
O acúmulo de capital por parte dos comerciantes, que se expandiu a partir
de 1910 com a construção da ferrovia, com a emancipação do município e
com a instalação elétrica em 1913, favoreceu a expansão das indústrias,
acrescida do clima de necessidade de substituição às importações
decorrentes da Primeira Guerra Mundial.
59
Enfim, constata-se que a transformação ocorrida na Região de Colonização
Italiana, desde a chegada dos primeiros imigrantes, até os primórdios da Segunda
Guerra Mundial período da ambientação dos romances utilizado por José
Clemente Pozenato como pano de fundo para a sua trilogia –, é enorme e muito
rápido. Isso é enaltecido pelo pesquisador italiano Mario Sabbatini que assim
descreve esse momento histórico:
[...] in circa mezzo secolo (1875 - 1930), durante il quale si realizza il
passaggio da un’economia agricola fondamentalmente di sussistenza, tipica
della fase degli insediamenti ‘coloniali’, ad un’economia agricola
commercializzata in cui nascono anche le prime industrie.
60
58
CENNI. Op.cit. p.159.
59
HERÉDIA, Vânia B. M. Processo de industrialização da Zona Italiana: estudo de caso da
primeira indústria têxtil do Nordeste do Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: EDUCS, 1997.p.60.
60
“[...] em cerca de meio século (1875 1930), durante o qual se realiza a passagem de um
economia agrícola fundamentalmente de subsistência, típica da fase dos assentamentos ‘coloniais’,
a uma economia agrícola comercializada na qual nascem também as primeiras indústrias”. In:
SABBATINI, Mario. La regione di colonizzazione italiana in Rio Grande do Sul: gli insediamenti
nelle aree rurali. Firenze: Cultura Cooperativa Editrice, 1975, p. 13.
31
O veloz desenvolvimento da região decorre do contato que os imigrantes
italianos e seus descendentes puderam ter com os seus vizinhos alemães, com os
colonizadores portugueses, com a Capital da Província e até com São Paulo, mas
principalmente porque traziam consigo uma enorme bagagem cultural, sabiam
cultivar a terra e extrair dela o que precisavam para sobreviver, tinham
conhecimentos de técnicas de plantio, marcenaria, cutelaria, culinária, entre seus
fazeres e saberes.
32
2 A CASA DO IMIGRANTE ITALIANO
2.1 O Homem Transformando a Natureza
O abrigo sempre foi uma necessidade básica do homem. O homem primitivo
buscou resguardo nas copas das árvores, depois nas cavernas. Quando começou a
cultivar, fixou-se nos espaços e passou a construir abrigos mais definitivos com os
materiais disponíveis na natureza, como o barro, a madeira e a pedra. Aos poucos,
criou o seu espaço de habitar, dividindo os cômodos, conforme as suas funções
(cozinhar, dormir, receber visitas), espaço este chamado de casa, que também tem
o sentido de caverna. E a casa do homem diverge conforme a sua localização e o
seu uso: o esquimó, por exemplo, constrói o seu abrigo diferentemente do que o
índio que habita nas florestas. Cada civilização edifica o seu espaço de habitar
conforme o meio em que vive, as suas necessidades e a sua cultura.
Ao examinar o conceito de Cultura observa-se que o termo tem origem latina (
colere, cultivar ou instruir; cultus, cultivo, instrução) e vem sendo ampliado,
transformado ao longo de décadas por antropólogos, historiadores e intelectuais em
geral. Segundo a filósofa Chauí, dois são os significados iniciais da noção de
Cultura. O primeiro expressa o cuidado do homem com a Natureza (agricultura), o
cuidado do homem com os deuses (culto) e, ainda, o cuidado do homem com as
crianças, com a sua formação e a sua educação (puericultura). O segundo, a partir
do século XVIII, passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos
seres humanos, expressos em obras, ou seja, torna-se sinônimo de Civilização.
61
O antropólogo Laraia afirma que o termo germânico Kultur era utilizado para
simbolizar os aspectos espirituais de uma comunidade, a palavra francesa
Civilization referia-se principalmente às realizações e que Edward Tylor sintetizou os
dois termos no vocábulo inglês Culture, na sua obra Primitive Culture de 1871:
61
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 7.ed. São Paulo: Ática, 1996, p. 292.
A cultura ou civilização, entendida no seu estilo etnográfico amplo, é
conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o
direito, o costume e toda a demais capacidade ou hábito adquiridos pelo
homem enquanto membro de uma sociedade.
62
Essa definição foi utilizada por décadas pelos antropólogos. Mais tarde,
contudo, outros estudiosos, como Marconi e Presotto, afirmaram que a Cultura pode
ser analisada sob vários aspectos ao mesmo tempo, dentre eles: idéias, crenças,
valores, normas, atitudes, padrões de conduta, abstração de comportamentos,
instituições, técnicas e artefatos.
63
Isto é, o conceito de cultura passou a ser
multifacetado, denso, fluido, tanto que Laplatine assim trata do tema:
É difícil dar uma definição que seja absolutamente satisfatória da cultura
[...]. Propomos esta: a cultura é um conjunto dos comportamentos, saberes
e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade
dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de
aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus membros.
64
Por sua vez, Berruto, sociolingüista italiano, refere que Cultura é o conjunto
de hábitos, de valores, de atitudes, de posicionamentos, de comportamentos, de
ideologias e de recursos instrumentais elaborados por uma determinada sociedade;
em síntese, é o repertório de soluções com que uma comunidade organiza a própria
vida sobre a terra.
65
A partir dessas noções, pode-se chegar a um conceito de
Cultura que integra o Homem e a Natureza. Laraia cita que, tradicionalmente, dizia-
se que os humanos diferem da Natureza graças à linguagem e a ação por liberdade,
afirma que “a linguagem humana é um produto da cultura, mas o existiria cultura
se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de
comunicação oral.”
66
Ainda, para muitos antropólogos a diferença entre Homem-Natureza surge
quando os homens decretam leis como a lei da proibição do incesto
67
que,
quando transgredidas, podem causar a ruína do indivíduo e da comunidade. No
62
LARAIA, Roque de Barros. Cultura. Um conceito antropológico. 11.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997, p. 25.
63
MARCONI, Mariade; PRESOTTO, Zélia M. N. Antropologia: uma introdução. São Paulo:
Atlas, 2001, p.45.
64
LAPLATINE, François. Aprender Antropologia. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.120.
65
BERRUTO, Gaetano; BERRETA, Mônica. Lezioni di sociolinguistica e linguistica applicata.
Napoli: Linguori, 1980, p.19.
66
LARAIA. Op.cit., p.53.
67
“Claude Levi-Strauss, o mais destacado antropólogo francês, considera que a cultura surgiu
no momento em que o homem convencionou a primeira regra, a primeira norma - o incesto, que
proíbe a relação sexual de um homem com a sua mãe, sua filha ou irmã.” In: LARAIA. Op.cit., p. 56
34
romance “O Quatrilho” é possível observar uma lei que, embora não estivesse
escrita, regia a conduta das famílias na época. A norma determinava que por
ocasião do casamento de um filho, o mais velho, se estivesse residindo na casa
paterna e utilizando as mesmas terras, deveria procurar uma nova colônia, caso a
existente não fosse suficiente para a manutenção das famílias. Essa norma era
assim descrita pelo narrador: “A colônia era pequena, não dava para todos. O mais
velho teria que ser o primeiro a procurar outro pedaço de terra. Era lei.”
68
Outra lei, positivada, ou seja, expressa no ordenamento jurídico e não
meramente costumeira, aparece no romance “A babilônia”, que trata da transmissão
de bens. Na época em que se passa trama do romance, durante as décadas de
1930 e 1940, de acordo com as leis brasileiras, com o falecimento de um dos
cônjuges, os bens seriam divididos, metade para o viúvo ou viúva (meação), e o
restante para os filhos legítimos (herança), caso não houvesse testamento.
Com o falecimento de Ângelo Gardone, que vivia maritalmente com Pierina,
mas era casado com Teresa que fugiu com o sócio Mássimo Boschini –, se
estabeleceu uma discussão com relação a quem ficariam com os bens deixados
pelo falecido a indústria e a casa, onde vivia Pierina, dentre outros –. Como o
único casamento legal do falecido era com Teresa e a única filha legítima era Rosa,
elas é que ficariam com os bens. Assim, Máximo Segundo Boschini, filho de Pierina
e Mássimo, do tempo em que eles eram casados, busca, com o advogado da
família, uma solução para não perder o patrimônio do padrasto, e é aconselhado a
se casar com Rosa:
– Doutor Alfredo. Espero que traga boas notícias.
Não há boas notícias sem más notícias rio o advogado, sentando e
abrindo a pasta de documentos. – Por onde começamos?
– Quero saber da herança.
O falecido não fez disposições de última vontade. Quer dizer, não deixou
testamento. De modo que temos a lei para seguir. As regras da partilha
estão em lei. A herança fica para os herdeiros legítimos.
– Trocando em miúdos, como fica?
É complicado. A sua família é um caso atípico. Abriu um largo sorriso,
como se estivesse fazendo um elogio. – A dona Pierina, por exemplo. Não é
cônjuge. Nem ela seria herdeira. A herdeira seria a outra, a njuge
legítima...
– Teresa Besana Gardone.
– Isso. Com os filhos também é a mesma coisa. O senhor, por exemplo, não
é filho do falecido...
68
POZENATO. Op.cit. (c), p.62.
35
Não, mas é como se fosse. Sempre fui tratado por ele como filho.
69
(grifo
nosso).
As normas que tratam da sucessão hereditária, originada do direito romano,
prevista nas leis brasileiras, então, refletem a cultura e os valores daquele tempo,
que por ter no casamento uma união indissolúvel e que deveria ser sempre
respeitada, não reconhecia direitos para as concubinas e filhos bastardos.
Atualmente, com a mudança comportamental e cultural, a legislação, que não tem
como se dissociar da realidade, mudou, permitindo que filhos, legítimos ou não, bem
como, os companheiros e companheiras, mesmo que não casados, possam receber
bens por herança.
A lei humana é um imperativo social que organiza a ordem dos indivíduos;
não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras, mas é a
afirmação de que o homem é capaz de criar uma ordem de existência que não é
simplesmente natural, ou seja, física e biológica. Esta é uma ordem simbólica.
Então, quando o homem transforma a natureza, ele lhe atribui significados.
Quando é dito que a Cultura é uma invenção de ordem simbólica, entende-
se que por ela e por ela os humanos atribuem à realidade significações
novas por meio das quais são capazes de se relacionar com o ausente: pela
palavra, pela diferenciação do tempo (passado, presente futuro) pela
diferenciação do espaço (grande, pequeno, alto, baixo), pelo trabalho
(transformação da Natureza).
70
A transformação da natureza pode ser observada quando os povos de uma
determinada região migram para outra, constroem, adaptando as suas moradas às
condições no novo local de assentamento. Com os migrantes italianos não foi
diferente. Esses, assim como muitos povos, foram obrigados a deixar a tria-mãe
em busca de outras alternativas para sobreviver. Ao se estabelecerem, no segundo
quartel do século XIX, os imigrantes italianos que vieram ao Rio Grande do Sul,
trouxeram uma bagagem que não fica reduzida à mala ou ao baú, contendo
ferramentas, algumas peças de roupas, sementes e uns poucos livros. Trouxeram
consigo, além das coisas visíveis, o invisível a sua Cultura que se tornou
aparente e presente, entre outros aspectos, através do seu modo de vestir, trabalhar
e habitar.
71
69
POZENATO. Op.cit. (b), p. 223-224.
70
CHAUÍ. Op.cit., p.294.
71
FILIPPON, Maria Isabel; MENEGUZ, Sílvia regina Facchin. Humanismo latino e o padrão estético:
portas e janelas na arquitetura dos imigrantes italianos em Monte Belo do Sul do prático ao
36
O fenômeno imigratório não significou a mera transferência ou a importação
dos modelos culturais existentes na Europa peninsular; os imigrantes recriaram na
Região Colonial Italiana o seu próprio estilo de vida, embasados na cultura que
possuíam. Nesse sentido,
Poder-se-ia falar da vida italiana na Itália e dizer que esta forma de vida,
hoje está presente em muitas partes do mundo. Mas se olharmos para a
Itália e para o Rio Grande do Sul, podemos falar da cultura italiana do Rio
Grande do Sul [...]. Os agricultores aqui chegados trouxeram consigo a
esperança de fazer sua caminhada, de organizar sua família, de contribuir
com o seu trabalho para a formação de uma nova cultura. Não implantaram
aqui um pouco da Itália, mas deram ao Rio Grande do Sul a marca de sua
dedicação à terra, de seu espírito societário , de sua fé, de sua alegria de
viver que os tornou “os italianos do Rio Grande do Sul”, com vida, costumes
e tradições próprias.
72
Na sua maioria os imigrantes italianos eram camponeses, de pouca instrução
e pobres. Alguns tinham uma profissão, como carpinteiros, funileiros, ferreiros.
Podiam não ter posses, porém carregavam consigo a sua cultura, o seu modus
vivendi, o que foi um fator diferencial para o um rápido progresso. Sabiam aproveitar
e transformar aquilo que a natureza lhes oferecia. Comumente,
[...] a força motriz que determina o progresso histórico assim postulado é
geralmente considerada de natureza econômica e ecológica. As sociedades
humanas modificam o seu ambiente, à medida que se desenvolvem e
adaptam-se a essas modificações
73
.
A construção de uma casa, do seu mobiliário, é uma manifestação cultural; se
constitui numa criação, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelo
homem. 0 imigrante italiano, além do sonho da posse da terra, tinha o desejo de
construir o seu lar, e assim o fez. Sendo proprietário da sua terra, podia edificar
sobre tal território, a casa, os fornos, os abrigos para os animais e, imbuídos pelo
espírito societário, também os capitéis, as capelas, criando um cenário que
expressava a sua cultura. A designer Nojima afirma que:
Toda a produção humana é orientada, desde o início de sua existência, pelo
princípio da ação do HOMO FABER ao meio que ele vem transformando,
segundo a dimensão do seu sonho, pois o homem sempre foi, e será capaz,
iconográfico. In: BOMBASSARO, Luiz Carlos; DAL RI, Júnior Arno; PAVIANI, Jayme. (Orgs.). As
interfaces do Humanismo Latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
72
COSTA, Rovílio, apud POSENATO. Op.cit.(a), p.38.
73
ENCICLOPÉDIA EINAUDI. v.5 . Anthropos-Homem. Porto: Imprensa Nacional 1984 -1997,
p.115.
37
de gerar o que é necessário para dar a seus sonhos a potência e a precisão
próprias da realidade e, de outro lado, impor a esta realidade alterações
crescentes que a aproximem dos seus sonhos.
74
A casa foi, sem dúvida, um sonho que se tornou em realidade no universo da
colônia. O imigrante italiano, ao construir a sua casa, além de atender a uma
necessidade básica, de abrigo, agrega em si um símbolo que revela, além do status
social do seu proprietário, a sua cultura. É exatamente o que reverbera Cuche,
quando sentencia: “A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu
meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e
seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza.”
75
2.2 A Linguagem do Espaço de Habitar
O homem é um ser que fala e a palavra se constitui na senha de entrada para
o mundo humano. É através da linguagem verbal que o homem expressa suas
idéias e seus conceitos. A linguagem “é um sistema simbólico e o homem é o único
animal com a capacidade de criar símbolos“.
76
Os símbolos são signos arbitrários e
convencionais. Assim, por exemplo, a designação de determinado objeto pela
palavra CASA resulta de um ato arbitrário, convencional e aceito pela sociedade que
utiliza a Língua Portuguesa. A partir deste enfoque, a linguagem também pode ser
conceituada como “um sistema de representações aceitas por um grupo social que
possibilita comunicação entre os integrantes desse mesmo grupo”.
77
No momento em que nós, todos os seres que falam determinada Língua,
damos nome a qualquer objeto, o individuamos, o diferenciamos do resto que o
cerca. A linguagem é o produto da razão e pode existir onde racionalidade.
Através das palavras, portanto, se torna possível a transmissão do conhecimento, e
a linguagem é, por isso, um dos principais instrumentos na formação do mundo
cultural. Muitos o os tipos de linguagens criadas pelo homem, entre elas a da
matemática, da informática, das línguas, das artes (arquitetura, música, pintura,
74
NOJIMA, Vera Lúcia. O homem, seus objetos e a comunicação In: CONTO, Maria de Souza.
Formas de Design. Rio de Janeiro: PUC RJ, 2004, p.13.
75
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999, p.10.
76
ARANHA, Maria Lúcia Arruda. Filosofando: Introdução à Filosofia 2.ed. São Paulo: Moderna,
1993, p.28.
77
Idem, ibidem.
38
escultura, teatro, cinema, moda), etc. O repertório, as regras de combinação e de
uso dos signos, em cada uma das diferentes linguagens, pode ser mais ou menos
flexível. Ainda, segundo Aranha,
78
como existem diferentes tipos de linguagem,
diversos tipos de pensamentos. Existe o pensamento concreto, formado a partir da
percepção, da representação de objetos reais, e o pensamento abstrato, que
estabelece relações, não visíveis, e cria conceitos.
A Língua, então, é um sistema de signos simbólicos, formada pelo
pensamento abstrato, pois possibilita transcender da realidade e construir um mundo
de idéias. Cada Língua possui uma estrutura própria, em nível de repertório e regras
de combinação e uso. As linguagens artísticas, no entanto, são mais adequadas ao
pensamento concreto. O universo humano também é simbólico, e o signo relaciona-
se com o objeto de forma a explicá-lo. Assim, na tentativa de expressar para uma
criança o que é uma casa, se pode utilizar o desenho de uma moradia, utilizando o
pensamento concreto, artístico, para definir o que significa casa. O desenho, signo,
composto por paredes, aberturas e telhado, se legível, seria suficiente para a criança
entender o objeto.
A Arquitetura, enquanto linguagem, apresenta-se não apenas como uma
manifestação artística, pois depende das condições materiais, e excluir os aspectos
econômicos, históricos e geográficos dentro dos quais ela se desenvolveu implicaria
não compreender seu significado e sua própria razão de ser. Sobre isso, o
importante arquiteto brasileiro, Lúcio Costa, sentenciou que “em arquitetura existem
três problemas intimamente relacionados, o técnico, o social e o plástico”.
79
Ou seja,
as edificações erguidas em determinada comunidade por não se construírem
numa mera obra tecnicamente efetuada, que segue padrões estéticos de seus
idealizadores, mas por também estar inserida em determinado meio –, revelam o
modo de viver, de pensar, de agir, desse grupo social, enfim, a sua Cultura.
Tedeschi, teórico da arquitetura, explicita que a Natureza, Sociedade e Arte
são todos os argumentos necessários ao trabalho do arquiteto. Como elementos da
Natureza são considerados a paisagem natural, o terreno, a vegetação, o clima.
Como Sociedade, o uso físico e suas funções, o uso psicológico e as emoções, o
uso social, a técnica, a economia, o programa de necessidades e a metodologia de
78
ARANHA. Op.cit., p.31.
79
BRUAND, Yves. A arquitetura contemporânea no Brasil. 2.ed.São Paulo: Perspectiva, 1991,
p.120.
39
projeto. E como Arte, o autor indica a forma, a plástica, a escala, o espaço, o gosto e
a personalidade.
80
Levando em conta todos esses aspectos que deveriam ser
seguidos pelo arquiteto, a questão que se impõe é: qual seria a linguagem mais
adequada para representar os espaços, especificamente, o espaço de habitar?
Seriam suficientes as representações concretas, artísticas, ou outros modos de
representação capazes de revelar o espaço de habitar?
Comumente, no mundo da tecnologia, os espaços, como a casa, são
representados a partir de uma imagem. Os registros das imagens são feitos de
várias formas: pode ser fotográfica; gráfica, através do desenho das suas plantas-
baixas, das fachadas e dos cortes; e por desenhos livres das normas técnicas, como
um croqui feito à mão. Ultimamente, com o auxílio do computador, é possível simular
os ambientes que serão construídos e até “penetrar” nos ambientes futuros. Ou seja,
as edificações são representadas através de imagens; podemos ver fotos destas
casas, desenhos, representações próprias do pensamento concreto desenvolvidas
pelas artes. Entretanto, seriam suficientes tais imagens para garantir uma ampla
representação do espaço de habitar? A representação gráfica e fotográfica do
espaço garantirá uma análise objetiva do edifício, da sua forma, da sua dimensão e
do seu uso. Todavia, parecem ser insuficientes para interpretar a subjetividade do
espaço. Sendo assim, como desvelar os valores afetivos do espaço de habitar?
A resposta pode advir da representação não-concreta do objeto,
proporcionado pela Língua. Como vimos anteriormente, a Língua é formada por um
pensamento abstrato e possibilita “construir” as idéias, representar uma realidade.
Segundo Rajagopalan “a idéia de que a função principal e imprescindível da
linguagem, ou seja, a de representar o mundo está muito fortemente arraigada entre
nós e escancaradamente presente em quase todas as teorias lingüísticas”.
81
Ele
também confirma que as sentenças declarativas desempenham, em uma língua,
sempre a sua função central: a de representar o mundo. Dessa maneira, busca-se
nos textos a representação abstrata, subjetiva do espaço de habitar.
Assim, nesta investigação, a linguagem é conceituada, como representação,
como significado que pode ser atribuído a uma determinada manifestação cultural, e
não apenas como a faculdade que o homem possui para comunicar os seus
80
TEDESCHI, Enrico. Teoría de la arquitectura. Buenos Aires: Nueva Visión, 1981, p.28.
81
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e questão ética.
São Paulo: Parábola, 2003, p.29.
40
pensamentos, seja através da língua ou por meio de outros signos. A expressão, a
linguagem do espaço de habitar significa o que “moradia” pode representar tanto nos
aspectos concretos (objetivos) quanto nos abstratos (subjetivos). A casa é
objetivamente o abrigo, mas inclui também uma visão subjetiva, incorporal, imaterial;
a casa representa o abrigo, o corpo, e também o ninho, a alma.
82
Na busca de todos estes aspectos, a fim de compreender a totalidade do
significado de habitar, é inicialmente estudado, a partir de textos descritivos, o
espaço de habitar do imigrante italiano, para posteriormente avançar na análise dos
textos literários, que compõem o corpus deste trabalho.
2.3 O Espaço de Habitar do Imigrante Italiano
O imigrante italiano construiu a sua casa própria ao se instalar em terras sul-
rio-grandenses. Porém, o primeiro abrigo foram os barracões de madeira que
abrigavam várias famílias. Ficavam ali instalados até construírem as suas moradias
definitivas. Esta situação é assim referida pelo narrador de “A Cocanha”: “O
barracão era agora um reino de mulheres e crianças, ao menos enquanto não
chegasse outra leva de imigrantes. A maioria dos homens tinha seguido para o
mato, para derrubar árvores e erguer a primeira casinha de madeira”.
83
No país de origem, o imigrante italiano morava em edificações que abrigavam
várias famílias, agora, no seu novo habitat, as casas seriam construídas
individualmente para cada família. Ou seja, o modo como ocorreu o assentamento
das casas nas áreas rurais da RCI constitui-se de maneira diversa do que havia na
Itália. A este respeito, Júlio Posenato arquiteto e pesquisador, pioneiro no estudo da
habitação imigrante italiano explana:
Em relação à arquitetura rural do norte italiano da época da imigração,
guarda uma relação eo transposição inequívoca sob o ponto de vista
construtivo, porém quanto à organização dos espaços verifica-se um
antagonismo: na Itália, geralmente todas as funções aglomeravam-se numa
edificação, em aldeias rurais, e no Brasil, a cada atividade corresponde
sua própria construção, no próprio lote de cada colono.
84
82
BACHELARD. Op.cit., p.78.
83
POZENATO. Op.cit.(a), p.125.
84
POSENATO. Op.cit.,(a) p.174.
41
Instalados primeiramente em um barracão, os imigrantes traçavam seus
planos para o futuro, para o momento em que a iriam se transferir para a nova casa.
Na obra ficcional, acima citada, o narrador assim se refere às expectativas dos
recém-chegados, quanto ao sistema de assentamento, ao qual seriam sujeitos:
Rosa Gardone sentou-se à janela da rua, com sua agulha de crochê e seus
pensamentos. Sentia-se dividida. Ansiava ir logo para própria casa, onde
teria o filho e, enfim, a vida que sonhara com Aurélio. Mas tinha receios,
também. O maior deles, pensava, era a solidão em que iram ficar. Nunca
tinha vivido só, longe dos outros. Na Itália, os vizinhos eram tão próximos
que eram quase parte da família até para os mexericos. [...] O tempo todo,
desde que decidiram vir para a América, ela imaginara que iam morar em
pequemos povoados e vilas, como os paesi da Itália, onde todos moravam
juntos e de onde saíam para trabalhar nos campos ao redor. Fora uma tola.
no dia da chegada, quando viu as casas de colonos à beira da estrada,
descobrira que não havia povoados. As casas eram isoladas, distantes
umas das outras. Mesmo gritando, no caso de uma necessidade, o vizinho
mais próximo não iria ouvir.
85
Quanto aos materiais utilizados na edificação das casas, o historiador Thales
de Azevedo cita que as primeiras edificações foram feitas de taquara e barro,
86
técnica mais rudimentar utilizada para construções de abrigos. Havia abundância de
madeira e de basalto na região e o imigrante italiano dominava com maestria o uso
da pedra para a construção,
87
uma vez que era originário de regiões onde a pedra
era utilizada como principal material das edificações. O domínio do emprego da
madeira nas construções foi sendo adquirido pelo imigrante através da experiência,
da sua capacidade de adaptação ao meio e da introdução de tecnologias como o
uso de serras.
Na obra “A Cocanha”, a propósito, se uma descrição do modo como a
madeira das árvores nativas era trabalhada pelos imigrantes:
Ao cabo de uma hora, o pinheiro está descascado igual a um grande palito.
O velho Nicola desdobra o metro e mede as toras. Dois metros e vinte para
as tábuas de parede, sessenta centímetros para as tabuinhas do telhado.
Bépi e Antônio pegam o serrote com entusiasmo. Mas em pouco tempo
baixam os braços exaustos. – Que pesado! parece que a madeira prende a
serra reclama Bépi. Nicola ri. Eles têm ainda muito a aprender: manter o
serrote no prumo, usar as cunhas depois de a lâmina penetrar na madeira.
88
85
Idem, p.125.
86
AZEVEDO, Thales de. Italianos e gaúchos. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1975, p.
172.
87
BERTUSSI, Paulo Iroquez. Elementos de arquitetura da imigração italiana. In: WEIMER, Gunter. A
arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1987, p.127.
88
POZENATO. Op.cit.(a), p.140.
42
O imigrante construiu as suas casas, utilizando os materiais que a natureza
dispunha: o bambu, o basalto e a madeira. Encontra-se aqui um exemplo de
aculturação: diante da natureza, o homem, utilizando a sua bagagem cultural,
transforma os elementos da natureza para construir a sua morada, a sua proteção. A
esse respeito Thales de Azevedo afirma que:
[...] tanto no material empregado na edificação quanto no partido das
habitações rurais e do terreno, os colonos combinaram elementos de sua
cultura do país de origem com elementos do novo meio natural e da
sociedade nacional com a qual veio integrar-se”.
89
Trata-se de um exemplo de arquitetura vernacular, definida por Carlos Lemos
como:
A arquitetura feita pelo povo, por uma sociedade qualquer, com seu limitado
repertório de conhecimentos num meio ambiente definido, que fornece
determinados materiais ou recursos em condições climáticas bem
características. Com o seu próprio e exclusivo “saber fazer” essa sociedade
providencia suas construções, suas casas, satisfazendo a peculiares
necessidades expressas em programas caracterizados por próprios e
únicos usos e costumes. A casa vernácula é, portanto, uma expressão
cultural. pode ser daquele povo e daquele sítio. É uma arquitetura que
percorre gerações. É funcional. Está fora dessas questões ligadas a estilos
arquitetônicos. É a oca do índio brasileiro, é o iglu esquimó, é a tenda árabe
[...]. Quase sempre a casa é rural, porque a arquitetura erudita, com seus
estilos e modismos, instala-se inicialmente nas cidades.
90
Essa genuína arquitetura vernacular guardava em si, tanto nas casas do meio
rural, quanto nos primeiros núcleos urbanos construídas primeiro em madeira e
pedra e posteriormente em alvenaria de tijolos –, proporções, como a relação entre
as suas três dimensões, largura, altura e profundidade, presentes nas esquadrias,
na inclinação dos telhados, que confirmava, por parte destes construtores, um
domínio de técnicas construtivas e de conhecimentos de geometria.
Thales de Azevedo aponta que, sobretudo nas casas urbanas, o imigrante
utilizou “o plano de disposição e de uso dos espaços, bem como certas técnicas
construtivas tão antigas a ponto de serem conhecidas de Vitruvius,
91
como a do
89
AZEVEDO. Op.cit., p.176.
90
LEMOS, Carlos. História da Casa Brasileira. São Paulo: Contexto, 1996, p.14.
91
Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto romano e teórico, serviu a Júlio César (46 a.C.), escreveu um
tratado de arquitetura em dez volumes De architectura, não reconhecido na sua época mas que
exerceu enorme influência na renascença primitiva, sendo considerado o vademacum para todos
os arquitetos. In: FLEMING, Jonh. Dicionário Enciclopédico de Arquitetura. Rio de Janeiro:
Artenova, 1977, p.261.
43
corte e da disposição dos blocos de pedra nos muros e alicerces.”
92
Os conhecidos
atributos vitruvianos da arquitetura são: utilitas, firmitas e venustas (utilidade, solidez
e beleza).
93
Essas três características são visíveis em todas as casas construídas
pelos imigrantes italianos, sobretudo, no período que pospôs as suas instalações
provisórias.
Em uma definição clássica, apresentada por Aurélio Buarque de Holanda, a
casa é tida como edifício de um ou poucos andares, destinado, geralmente a
habitação, morada, vivenda, lar, família.
94
E, de fato, a imagem da casa está
associada à família, tanto que o imigrante italiano construiu a sua com o objetivo
maior de abrigar a sua família, com o intuito de construir um lar, como se percebe
pela descrição feitas por Gutierrez, arquiteta e historiadora gaúcha:
Na propriedade, a casa, assim chamada consistia no prédio erguido com o
acabamento mais esmerado e maior volume. Usualmente, possuía três
pavimentos, que correspondiam, respectivamente, aos três setores: o porão,
a ala residencial e o sótão. O porão podia ocupar todo o subsolo, ou parte
deste, o pavimento térreo ou até situar-se isoladamente. Tanto nas casas
rurais como nas urbanas, o mais comum era o aproveitamento das
encostas, para no sentido transversal serem implantadas as moradias [...]
Erguidos quase sempre de alvenaria de pedras alguns porões com
ventilação quase sempre permanente, orientados na direção sul. No
pavimento térreo, o acesso dava-se por uma porta ampla de duas folhas,
que conduziam à sala de visitas, conhecida como saloto, e simetricamente
ladeada pelos quartos de dormir. [...] Acima dos quartos ficava o sótão.
Normalmente sem forro, contava com -direito baixo e aberturas
pequenas. Nessas condições, o sótão conservava um ar quente e seco,
adequado à conservação dos cereais que ali eram guardados. [...] Próxima
à residência, em alguns casos, ligada por uma pequena cobertura, situava-
se a cozinha, que servia de estar, lugar de convívio antes e depois das
refeições.
95
Adentrando na casa construída pelos imigrantes italianos, verifica-se que um
dos espaços mais utilizados, principalmente no seu convívio familiar, certamente era
a cozinha. Sobre este loccus, existem algumas descrições, dentre elas, esta de Júlio
Posenato: “a cozinha é uma sala singela, com o fogo de chão de um lado, sobre o
qual pende uma corrente do teto, para sustentar as panelas. Rodeando o fogo,
92
AZEVEDO. Op.cit., p.177.
93
FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p.5.
94
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3.ed. Curitiba:
Positivo, 2004, p.362.
95
GUTIERREZ, Éster. Arquitetura e assentamentos ítalo-gaúchos 1875-1914. Passo Fundo:
UPF, 2000, p.47-51.
44
bancos ou cadeiras reuniam a família e os vizinhos para orações e conversas”.
96
O
referido pesquisador cita também um texto de Ducatti Neto, que assim descreve
esse espaço doméstico:
No interior de uma cozinha de madeira, ligada à casa principal por uma
passarela, na parte dos fundos, um fogão de terra batida com cerca de
dois metros quadrados de área, no centro do qual arde um bom fogo. Ao
redor do fogão, encostados às paredes da cozinha, há bancos para que as
pessoas de casa possam se assentar e aquecerem-se, exceto na parte da
frente, reservada à cozinheira. Uma corrente de ferro pende do teto até o
centro do fogão e nele são dependuradas as panelas contendo feijão, a
carne, ou mesmo a água para o café ou o chimarrão, para todas as coisas,
enfim, que se deseja cozinhar ou ferver. À noite quando faz frio, as pessoas
de casa reúnem-se à roda do fogo até altas horas para comer pinhões,
tomar mate e conversar.
97
Na obra de ficção “O Quatrilho”, o narrador apresenta a cena de um filó
encontro que se dava no período da noite realizada pelas famílias de determinada
comunidade –, ocorrido na casa do personagem Aurélio, em que os vizinhos e
amigos se encontram, em torno do “fogolar”, instalado na cozinha, para um
momento de lazer.
Aurélio apanhou o baralho alto da prateleira. Fazia bem dez anos que não
era usado. Ainda cheirava um pouco a querosene que passara nas cartas, à
tarde, para tirar o mofo. Abancou-se da mesa com o velho Cósimo, Beppe e
o pai de Teresa. Os mais novos vão jogar cartas brincou o velho
Cósimo. Os velhos vão esquentar o reumatismo perto do fogo. O que é
que se joga? O quatrilho - propôs Aurélio. Ângelo, Mássimo, mais o
Giácomo e o Agostinho, ficaram por ali para apreciar o jogo. As mulheres se
acomodaram nos bancos em roda do fogolar.
98
O arquiteto Paulo Bertussi traça a seguinte descrição da casa do imigrante,
focalizando o espaço cozinha e a sua transformação:
Ao escolher o lote rural para implantar a colônia o imigrante recebia pronta
ou fazia a sua pequena casa. [...] Servia, inicialmente para todas as
funções: comer, dormir, estar. Ao fazer a casa nova, fosse ela de qualquer
natureza, a função da cozinha por muitas vezes continuou sendo na casa
primitiva. Esta situação com o decorrer do tempo tomou duas direções
diversas. A primeira, poderíamos dizer, acompanhou a evolução dos fogões.
Após o fogo de chão do início foram construídos os “Focolaro”, “Focoler” ou
“Larin”, assim chamados de acordo com a região de proveniência e que se
apresentavam em diversas versões: uma plataforma elevada do chão, tipo
96
POSENATO, lio. A organização doméstica na Imigração Italiana. In: COSTA, Rovílio.
Antropologia Visual da Imigração Italiana. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: UCS, 1976 (b).
p.18.
97
DUCATTI, apud POSENATO. Op.cit. (a), p.247.
98
POZENATO. Op.cit.(c)., p.44.
45
caixão raso cheio de terra, ao centro o fogo, mais tarde a plataforma de
tijolos provida de coifa e chaminé. No centro em um dos barrotes da
cobertura era pendurada a corrente para prender a panela. Em seguida, o
fogão de chapa, plataforma de tijolos provida de chapa de ferro sob o qual
se fazia o fogo, e finalmente o fogão a lenha e a gás.
99
A respeito do uso do fogo nas habitações, o arquiteto Carlos Lemos ensina
que também na casa portuguesa o centro de interesse da casa era o fogão, o centro
irradiador de calor. Ele afirma que a casa deve ser entendida como um todo, como
uma unidade, cuja função abrigo tem a primazia e o resto dela decorre. Prossegue
dizendo que:
Principalmente, abrigo do fogo nos diz a história, do fogo aceso visando as
divindades, tanto em Roma como na casa do índio; do fogo culinário; do
fogo aquecedor nas noites de inverno inclemente. Lar, a pedra onde se
acendia o lume desde os tempos romanos passou, em sentido figurativo, a
significar a própria moradia. Em Portugal, até pouco tempo, e no Brasil
colonial, sempre se chamou a morada de fogo ou fogão. Qualquer
recenseamento dizia que determinada cidade possuía tantos habitantes e
tantos fogos.
100
O uso do fogo por parte do homem, como é sabido, representou uma
passagem de nível de cultura; com o uso do fogo o homem passa a comer alimentos
cozidos e a dominar técnicas como a confecção de utensílios e ferramentas. Na
RCI, especificamente no atual município de Caxias do Sul, o professor Fernando La
Salvia, em sua pesquisa sobre habitações subterrâneas, no Rio Grande do Sul,
afirma que um grupo de coletores-caçadores instalaram-se nesta região,
aproximadamente em 1750 a.C. e erigiram habitações em forma circular escavadas
na terra, com cobertura em forma cônica feita de ripas e revestida com palha, tendo
sempre a existência de um fogão semi-escavado.
101
No século XX, da era Cristã, o
uso do fogão localizado na cozinha dos imigrantes italianos, como fonte de calor, e
elemento agregador do espaço, parece ser tão importante, como para o grupo de
coletores e caçadores de outrora.
A casa-habitação, além de ser uma invenção humana para atender uma
necessidade física de proteção das intempéries e dos elementos estranhos,
apresenta outras finalidades. Para Papanek, “Nascemos no interior, vivemos
99
BERTUSSI. Op.cit., p.125.
100
LEMOS. Op.cit., p.11.
101
LA SAVIA, Fernando. A habitação subterrânea: uma adaptação ecológica. In: WEIMER, Gunter. A
arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1987, p.125.
46
amamos, criamos nossas famílias, veneramos, trabalhamos envelhecemos e
morremos dentro da casa. A arquitetura espelha cada aspecto das nossas vidas -
social, econômico e espiritual”.
102
A casa não existe sem o ser humano, é ele quem
confere o seu caráter a sua casa. Como explica o fenomenólogo Bachelard: “na
comunhão dinâmica entre o homem e a casa, [...] estamos longe de qualquer
referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O
espaço habitado transcende o espaço geométrico.”
103
A fim de investigar os valores subjetivos da casa, não expressos nas suas
representações gráficas, fotográficas e descritivas, busca-se, através dos romances,
a revelação desses valores subjetivos da casa. O romance, segundo Bakthin,
104
é
uma polifonia das vozes, um tipo de narrativa de linguagem múltipla que pode
revelar aspectos que uma descrição não alcança. A intenção é, ir além,
compreender o significado da morada além dos seus muros, como diz Ludmila
Brandão, construir “um texto sobre casas não uma casa sobre textos”.
105
102
PAPANEK, Victor. Arquitectura e Design, Ecologia e Ética. Lisboa: Edições 70. 1995. p.83.
103
BACHELARD. Op.cit., p.62.
104
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. A teoria do romance. 4 ed. São Paulo:
Unesp, 1998.p.101.
105
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matéria, afectos e espaços domésticos. São
Paulo:Perspectiva, 2002.p.17.
47
3 A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DE HABITAR ATRAVÉS DO TEXTO
LITERÁRIO
3.1 As Categorias de Análise dos Textos Literários
A metodologia adotada neste trabalho é a Análise de Conteúdo que prevê a
elaboração de categorias que norteiam a análise e interpretação feita pelo
pesquisador do objeto de estudo. Laurence Bardin definiu o método da Análise de
Conteúdo como uma hermenêutica controlada.
106
A palavra hermenêutica pode ser
entendida como a interpretação de algo; no entanto, tal interpretação, na
metodologia proposta, não é feita de modo livre, devendo ser balizada, controlada.
Para atingir este controle, neste trabalho foram estabelecidas, dentre as diversas
possibilidades existentes, determinadas categorias de análise, procurando
contemplar os aspectos objetivos e subjetivos, relativos ao espaço de habitar do
imigrante italiano, perfazendo os campos referentes à arquitetura, história e
literatura.
Este método apresenta em seus domínios possíveis de aplicação o Icônico e
o Lingüístico. Os aspectos lingüísticos são analisados neste capítulo através dos
romances “A Cocanha”, “O Quatrilho” e “A babilônia” que constituem o corpus deste
trabalho. Antes de tratar de cada uma das categorias, vinculadas aos aspectos
objetivos, cumpre mencionar que na produção de um romance, conforme Antônio
Dimas,
107
são considerados como componentes da narrativa, dentre outros, o foco
narrativo, personagem, estrutura, espaço e tempo. Esses dois últimos, constituem a
base da análise proposta nesse estudo.
Para a análise das obras literárias de Pozenato foram eleitas três categorias
referentes aos aspectos objetivos: as relações histórico-sociais, os tipos de
construção da casa do imigrante e de seus descendentes e as funções do espaço
de habitar. Ainda, restaram escolhidas outras três categorias a respeito dos
106
BARDIN. Op.cit.. p.35.
107
DIMAS, Antônio. Espaço e Romance. São Paulo: Ática, 1994, p.5.
aspectos subjetivos, que são: as relações de poder, as necessidades motivacionais
do homem e os valores oníricos.
A primeira categoria, sob os aspectos objetivos diz respeito às relações
histórico-sociais, podendo ser compreendida através dos estudos de Vitalina Maria
Frosi, que identifica quatro fases da evolução do contexto sociolingüístico e
econômico
108
da RCI. Essas são perfeitamente aplicáveis à arquitetura, uma vez
que, tanto a linguagem falada e escrita de um povo, quanto a sua arquitetura, são
manifestações culturais decorrentes de uma determinada situação sócio-histórica,
política e econômica.
O período de 1875 a 1910, se constitui na primeira fase, em que “o processo
foi de translação de cultura italiana esta área geográfica, não de aculturação com a
sociedade brasileira. Modos de vida, normas de comportamento, tradições, usos e
costumes italianos das províncias de origem foram preservados.”
109
Ainda sobre este
período a pesquisadora afirma:
Os primeiros aglomerados populacionais da RCI formaram-se ao longo das
linhas ou travessões e constituíam comunidades de fala, em termos
dialetais mistas, salvo algumas exceções. As vias de comunicação eram
precárias, o meio físico agreste e hostil e grande foi a luta pela
sobrevivência. Esses fatores mantiveram imigrantes e seus descendentes
nesse espaço físico, isolado da comunidade brasileira, seja estadual, seja
nacional. Formou-se assim, uma sociedade local do tipo vêneto-lombarda,
tradicionalista e católica. A vida social e religiosa das pequenas
comunidades desenrolou-se em torno das capelas. A capela representou o
lugar de encontro não para a realização do culto religioso mas, também,
para a vida social.
110
A segunda fase do processo sócio-econômico e cultural inicia em 1910, ano
em que é inaugurada a estrada de ferro que faz a ligação entre Caxias do Sul e
Porto Alegre, e se estende até 1950. Nessa época prosperidade econômica e
maior integração com a comunidade brasileira. Na década de trinta, inclusive, foi
proibido, por questões políticas, o uso da fala dialetal italiana. A respeito desta fase,
a estudiosa, detalha:
No aspecto econômico, este período é marcado pela comercialização e pela
industrialização dos produtos agrícolas. Ao mesmo tempo em que a
108
A expressão contexto sociolingüístico e econômico é compreendida, neste trabalho, como sendo
contexto sócio-econômico e cultural.
109
FROSI. Op.cit.(a), p.37.
110
FROSI, Vitalina M. A linguagem oral da região da colonização italiana no sul do Brasil. In: MAESTRI,
Mário. (Coord.) et al. Nós, os ítalo-gaúchos. Porto Alegre: EDUFRGS, 1996 (c), p.160.
49
policultura continua a ser praticada como solução para as necessidades de
subsistência, acontece também o cultivo intenso da videira. O vinho torna-se
o principal produto, sua industrialização e comercialização rompem as
barreiras de isolamento da RCI. [...] O italiano e seus descendentes
adquirem mobilidade geográfica e social, seja através de melhores vias de
comunicação, seja pelos contatos comerciais. As pequenas comunidades
da RCI se inter-relacionam. [...] A integração com a sociedade brasileira,
embora seja lenta é uma fato.
111
A terceira fase da evolução sócio-econômica e cultural na RCI, inicia em 1950
e se estende até 1975. Algumas características deste período são evidenciadas pela
pesquisadora:
No aspecto econômico – a diversificação industrial – metalúrgica, mecânica,
eletrônica, têxtil e outras relega a um segundo plano a industrialização e
comercialização do vinho. A RCI, por seu expressivo desenvolvimento
econômico, projeta-se no Estado e no País. As vias de comunicação são
melhoradas, novas estradas são abertas, a eletrificação chega a todas as
comunidades rurais. Em todos os lares, o aparelho de rádio transmite suas
mensagens em língua portuguesa.
112
Nessa fase, também sucede uma alternância dos padrões culturais dos
imigrantes italianos e dos seus descendentes:
Nesse, período a fala dialetal e a cultura italiana sofrem um processo de
aniquilamento determinado por diversos fatores decorrentes da expansão
econômica da RCI. [...] anulação de traços importantes na cultura
tradicional oral que foram preservados e cultivados nos antecedentes
períodos do processo social.
113
O ano de 1975, alusivo às comemorações do centenário da imigração italiana
no Rio Grande do Sul, marca o início da quarta fase da evolução cio-econômica e
cultural que se estende até os dias de hoje. Segundo a autora, este período:
[...] é marcado pela integração da RCI no contexto brasileiro maior. O
crescimento e expansão econômica da região, seu parque industrial, a
moderna tecnologia e tudo o que disso decorre instaura e determina uma
nova ordem e um novo universo de valores. Novos modelos culturais são
introduzidos, principalmente através da televisão, presente em todos os
lares, são assimilados e passam a integrar a vida do dia-a-dia. [...]
anulação da cultura tipicamente italiana, abandono de usos e costumes
italianos, aniquilamento das formas tradicionais populares da expressão
oral, dentre elas, a fala dialetal italiana e os provérbios dialetais italianos.
111
FROSI, In: MAESTRI. Op.cit. (c), p.161.
112
Idem, p.163.
113
FROSI. Op.cit. (a), p.39
50
Mesmo nas comunidades rurais, mostra-se a desintegração do patrimônio
oral tradicional.
114
Aqui, no entanto, apesar de se verificar, de fato, a perda de interesse do
patrimônio, tanto oral quanto o arquitetônico, por parte dos descendentes italianos,
como manifestado por Frosi, observa-se, também, que nas décadas de oitenta e
noventa surgem manifestações em sentido contrário, na defesa da manutenção e
valorização desse patrimônio cultural. A propósito, é nesse contexto que se inserem
os diversos estudos sobre a RCI, que passaram a ser publicados.
Além das fases da evolução do contexto sócio-econômico e cultural da RCI,
apresentadas pela pesquisadora Vitalina Frosi, é necessário assinalar que, ao
estudar os tipos de construção da casa do imigrante e de seus descendentes no Rio
Grande do Sul, o arquiteto Júlio Posenato, estabeleceu, por seu turno, igualmente,
quatro períodos no espaço de tempo compreendido entre 1875 a 1960. Ele definiu
como primeiro critério de classificação o da expectativa de duração das edificações,
ou seja, construções provisórias e permanentes, e o segundo as transformações
ocorridas na economia do período.
Posenato, contudo, afirma que: “devido ao seu caráter dinâmico, não
podemos estabelecer uma cronologia rígida para nenhum dos períodos
arquitetônicos da imigração italiana, tanto os provisórios quanto os permanentes.”
115
Cita como exemplo, que enquanto nas colônias antigas como a de Caxias do Sul
eram utilizados materiais industrializados, como madeira de serrarias e tijolos de
olarias, as novas colônias estavam em fase de implantação. Assim, como adverte
Posenato, as referências cronológicas podem valer apenas para uma determinada
localidade, e ainda, com aproximações arbitrárias, “porqueque levar em conta as
situações familiares, o modo de produção dos materiais, a estrutura de transportes,
a proximidade ou distância das indústrias de beneficiamento.”
116
Não obstante essas
colocações, o pesquisador propõe uma classificação, nos seguintes termos:
Cedendo à tentação, estabeleço datas, mas ressalvo imediatamente que se
aplicam às colônias antigas, onde se conservou o acervo mais
representativo da imigração italiana, e apenas como indicação de uma
média: 1 - construções provisórias: primeira década da imigração; 2 -
114
FROSI, In: MAESTRI. Op.cit. (c), p.165.
115
POSENATO. Op.cit.(a), p.96.
116
Idem, ibidem.
51
período primitivo: segunda década da imigração; 3 - período de apogeu:
desde cerca de 1890 até em torno de 1930; 4 - período tardio: desde cerca
de 1930 até fins da década de 1960.
117
O primeiro período que corresponde aos anos de 1875 a 1880, ciclo das
construções Provisórias, correspondeu, segundo o autor, “ao tempo de implantação
da sociedade colonial, tanto urbana quanto rural. Com prioridade reservada ao
estabelecimento da atividade produtiva, cabia à arquitetura uma atenção residual.”
118
Já, a arquitetura dita como Permanente é dividia em três ciclos: de 1880 ao início de
1890, o período Primitivo; do final de 1890 a 1930, o período do Apogeu; e de 1930
a 1960, o período Tardio. O pesquisador justifica essa classificação evidenciando os
fatores econômicos, e também afirmando que:
[...] a evolução das construções acompanha as mutações de sentimentos da
sociedade que as erigem, compreendendo um momento de sedimentação,
seguido de uma fase de euforia, à qual sucede o arrefecimento, que por sua
vez desemboca na decadência.
119
O período Primitivo
120
corresponde às “edificações que sucederam
imediatamente as construções provisórias. Foram erguidas numa época em que o
ritmo de vida, estabelecido, permitiu mais dedicação ao conforto de habitar.”
121
Nesse período,
[...] a área construída das edificações aumentou consideravelmente em
relação às construções provisórias. [...] As coberturas, geralmente em
quatro águas, se faziam com tabuinhas. Os materiais se preparavam a
domicílio artesanalmente. Não havia vidros. A expressão plástica baseou-se
no despojamento.
122
O período do Apogeu é definido como sendo o da fartura, proporcionada
graças aos fatores indutores de boas safras, como a fertilidade do solo, e ao
trabalho intenso na policultura. Havia também pouca circulação de dinheiro e uma
reduzida comercialização dos produtos coloniais. Os materiais para a construção,
117
POSENATO. Op.cit.(a),p.97.
118
Idem, p.73.
119
Idem, p.76.
120
O nome dado a este período como Primitivo, pode gerar dúvida em relação ao significado da
palavra, uma vez que o vocábulo conduz a uma primeira interpretação a um sentido de antiquado,
arcaico e atrasado, termos que não correspondem com o significado da arquitetura do período
mencionado. O que sugere que o autor tenha utilizado a palavra primitivo referindo-se ao termo
como sendo, o primeiro, o original, o que é primeiro a existir.
121
POSENATO. Op.cit.,(a). p.77.
122
Idem, p.78.
52
sobretudo a madeira e a pedra, disponíveis, na natureza, eram abundantes. Tanto
os materiais, quanto a mão-de-obra não tinham ainda um valor monetário.
Essa situação refletiu-se nas edificações, nesse período estão as construções
de maior porte do ciclo da arquitetura dos imigrantes italianos. Segundo Posenato:
“mais do que uma necessidade de dimensionamento, a escala mostra a arquitetura
como monumento à auto-afirmação do indivíduo como ser livre e realizado.”
123
As
casas apresentavam grandes dimensões, nem sempre refletindo as reais
necessidades da família. Como havia abundância de materiais e facilidade de mão-
de-obra, não haveria necessidade de economia. Quanto à sua expressão, a
arquitetura continua sendo austera, os elementos construtivos são limitados ao
essencial, sendo aplicado, por vezes, nas fachadas, alguns singelos ornamentos.
O período Tardio caracteriza-se pela natural integração das comunidades de
imigração italiana com a sociedade brasileira. Posenato afirma que “o melhoramento
dos transportes e o aprimoramento de vias de escoamento e comércio dos produtos,
modificaram a estrutura da vida colonial: paulatinamente trouxe a conotação de
custo, surgindo daí, a expectativa de lucro.”
124
A mudança no perfil econômico,
provocou algumas alterações nos modos de produção, também na área da
construção. O beneficiamento mecânico e industrial dos materiais e a
profissionalização da mão-de-obra elevaram os custos das construções, e,
conseqüentemente, as casas sofreram uma redução de tamanho em relação ao
período do Apogeu. Esse acesso a outros materiais também trouxe alterações,
como o uso freqüente de vidro nos caixilhos das janelas e telhas de barro ou ferro
galvanizado na cobertura dos telhados, ao invés das tabuinhas de madeira. Para o
autor, “diversamente da geração dos pioneiros, a casa não mais significou a auto-
afirmação, mas apenas o local para morar.”
125
Observa-se, tanto no texto de Frosi quanto no do Posenato, que o movimento
cultural parece ser expresso por uma curva ascendente e descendente. Num
primeiro momento, aparece a manutenção dos valores oriundos com a imigração
italiana, num segundo, a perda ou desprezo dos mesmos, com a valorização apenas
do novo e o esquecimento das tradições. Mais adiante, a partir dos nos anos oitenta,
é que surgem manifestações em defesa da manutenção e valorização desse
123
POSENATO. Op.cit., p.83.
124
Idem, p.89.
125
Idem, ibidem.
53
patrimônio cultural, com um olhar crítico sobre a herança cultural deixada pela RCI,
no qual este trabalho se insere.
Outra categoria de análise dos aspectos objetivos o as funções do espaço
de habitar, procurando focar o uso do espaço doméstico pelo imigrante italiano.
Enrico Tedeschi, em seu estudo sobre Teoria da Arquitetura,
126
explicita que o
arquiteto ao projetar deve levar em consideração três itens: a Natureza, a Sociedade
e a Arte. Como elementos da Natureza são considerados a paisagem natural, o
terreno, a vegetação e o clima. A Sociedade engloba o uso físico do prédio, suas
funções, ou seja, para que ele se destina; o uso psicológico, as emoções e
sensações; o uso social, referindo-se a técnica e a economia. Como indicativo de
Arte o autor refere-se à plástica, à forma, ao gosto, à personalidade e à escala;
aponta também, no item Sociedade, a atenção que dever ser dada à metodologia de
projeto e à elaboração do programa de necessidades.
A casa brasileira, foi tema de estudo de alguns teóricos, dentre eles os
arquitetos e professores Bittar e Veríssimo que se propuseram a traçar o perfil da
transformação da arquitetura e da utilização do espaço da moradia no Brasil,
percorrendo um período de 500 anos, isto é, desde a Independência do país até a
virada do século XX. A metodologia adotada para essa investigação foi a de passar
pela análise de cada um dos setores da casa, configurando-os no tempo e nos
espaços urbano e rural, em todas as interdependências com a sociedade brasileira.
Os setores analisados são os mesmos apontados por Plazola,
127
quando indica que
as partes características do programa de uma casa-habitação são classificadas em
três grupos: estar, íntimo e de serviço, e queo utilizados comumente nos projetos
de residências, elaborados por arquitetos. Conforme os referidos arquitetos, a sala
compõe o setor social; os quartos e banheiros, o setor íntimo; e a cozinha, copa,
áreas de serviço e alojamento de empregados o setor de serviços. Assim, segundo
Bittar e Veríssimo:
Cada setor é analisado cronologicamente, abordando-se o espaço físico e
social, verificando-se as suas inter-relações. Em muitas ocasiões, para a
compreensão da arquitetura temos que nos valer de outros conhecimentos
acessórios como a estética, a antropologia cultual, a sociologia, a história,
sem a pretensão de dominar todas estas áreas, mas utilizando-as como
ferramentas essenciais.
128
126
TEDESCHI. Op.cit., p.28.
127
PLAZOLA, Alfredo Cisneros. Arquitectura habitacional. México: Editorial Limusa, 1982.p.345.
128
BITTAR e VERÍSSIMO. Op.cit., p.14.
54
Na elaboração deste estudo, os autores tentam inicialmente conceituar a casa
e lançam os seguintes questionamentos: “Mas o que é a casa? É o abrigo? O ninho?
O repouso do guerreiro? O local de trabalho? O recanto dos encontros e
reencontros? A personalização e identificação fechada de um universo? Um símbolo
de status ou de refinamento? Uma brincadeira formalista?
129
A estas questões
apresentam a seguinte resposta: “é de tudo um pouco, a casa, é o reduto da família
e, portanto, seu próprio espelho, refletindo também, numa maneira mais abrangente,
a sociedade da qual essa mesma família faz parte, ao mesmo tempo em que é sua
geradora.”
130
Para a análise da transformação do espaço de habitar dos imigrantes italianos
e seus descendentes, revelada nas obras literárias que compõem o corpus deste
trabalho, optou-se por utilizar as funções do espaço de habitar indicadas por Plazola,
Bittar e Veríssimo, e reconhecidas no meio profissional dos arquitetos, compondo a
categoria: funções do espaço de habitar – íntimo, social, serviço.
As três categorias que abordam a análise dos aspetos subjetivos tratam das
relações de poder que se estabelecem entre os personagens das obras literárias em
relação ao espaço de habitar, que são entendidas a partir de estudos do filósofo
Foucault; as necessidades motivacionais do homem que abrangem desde a
sobrevivência até a necessidade estética, segundo o psicólogo Abram Maslow; e os
valores oníricos apontados pelo fenomenólogo Gaston Bachelard fazem referência
às questões afetivas e inconscientes.
O espaço não poderia deixar de ser analisado também sob a ótica das
relações de poder, que necessariamente se estabelecem entre os habitantes desse
espaço. Segundo o filósofo Foucault:
Parece-me que, no final do século XVIII, a arquitetura começa a se
especializar, ao se articular como os problemas da população, da saúde, do
urbanismo. Outrora a arte de construir respondia sobretudo à necessidade
de manifestar o poder, a divindade, a força. O palácio e a igreja constituíam
as grandes formas, às quais é preciso acrescentar as fortalezas,
manifestava-se a força, manifestava-se o soberano, manifestava-se Deus. A
arquitetura durante muito tempo se desenvolveu em torno destas
exigências. Ora, no final do século XVIII, novos problemas aparecem: trata-
se de utilização do espaço para alcanças objetivos econômico-políticos.
Aparece uma arquitetura específica. Philippe Áries escreveu coisas que me
parecem importantes a respeito da casa, até o século XVIII, continuar sendo
129
Idem, p.21.
130
Idem, ibidem.
55
um espaço indiferenciado. Existem peças: nelas se dorme, se come, se
recebe, pouco importa. Depois, pouco a pouco o espaço se especifica e se
torna funcional. [...] Seria preciso fazer uma “história dos espaços” que
seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” que estudasse desde
as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat.
131
O autor, um dos pioneiros no estudo do poder nas relações humanas,
descreveu o poder como um o conjunto de ações de um sujeito sobre o outro.. Num
primeiro momento o sujeito é detentor do poder, em outro momento, este mesmo
sujeito, sofre a ação do poder. Segundo o pensador:
O exercício do poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis; opera
sobre o campo da possibilidade ou se inscreve no comportamento dos
sujeitos atuantes: incita, induz, seduz, facilita, extrema, constringe ou proíbe
de modo absoluto; contudo, sempre é uma maneira de atuar sobre um
sujeito atuante ou sobre sujeitos atuantes, conquanto que atuem os sejam
suscetíveis em atuar. Um conjunto de ações sobre outras ações.
132
Prossegue, ainda, explicando que o poder: Não é um lugar que se ocupa,
nem um objeto, que se possui. Ele se exerce, se disputa. E não é uma relação
unívoca, unilateral; nessa disputa ou se perde ou se ganha.”
133
Na sua visão, o poder
se caracteriza como uma prática social:
O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros”
individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. O que
quer dizer, certamente, que não algo como o “poder” ou o “poder” que
existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou
distribuído: poder exercido por “uns” sobre os “outros”; o poder
existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade
esparso que se apóia sobre estruturas permanentes.
134
Além das relações de poder, referidas por Foucault, a motivação, investigada
por Abraham Maslow, é outro fator imprescindível na compreensão do
comportamento humano, e o seu estudo pode ser aplicado para a análise dos
espaços de habitar. Maslow, que integra o grupo de psicólogos humanistas, aliás,
teve na motivação a sua principal preocupação ao estudar a personalidade. Os
motivos são as próprias necessidades humanas, as quais, o referido psicólogo
131
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. 17.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002(b), p.212.
132
FOUCAULT, Michel. El sujeto y el poder. Revista Mexicana de Sociologia, v.2, n.3. jul.set.
1988(c), p.25.
133
FOUCAULT. Op.cit.(b), p.15.
134
FOUCAULT, In: DEYFUS e RABINOW. Op.cit.(a), p.242.
56
hierarquizou em conjuntos, dentre elas: as fisiológicas; de segurança; de amor e
pertinência; de estima e estéticas.
As necessidades de fisiológicas contemplam as necessidades de
sobrevivência, ou seja, de alimento, de líquido, de descanso. Satisfeitas estas,
imediatamente emergem outras. O autor, inclusive, faz um questionamento:
É verdade que o homem vive apenas pelo pão quando não pão. Mas o
que acontece aos desejos do homem quando abundância de alimento e
quando a sua barriga está cheia? Outras necessidades imediatamente
emergem, as quais mais do que as necessidades fisiológicas, dominam o
organismo. E quando tais necessidades são satisfeitas, outras (ainda mais
superiores) surgem, e assim sucessivamente. Isto é o que queremos dizer
quando afirmamos que as necessidades básicas do homem estão
organizadas numa hierarquia de prepotência relativa.
135
A partir do momento em que estão satisfeitas as necessidades fisiológicas,
surge a questão da segurança, que consiste na evasão de situações de perigo e
recuo diante de condições estranhas, emergindo, portanto, a necessidade da busca
por um abrigo. Estando essa a contento, aparece, na hierarquia de Maslow, a
necessidade de amor e de pertinência, que revela o desejo de relações afetivas com
pessoas de modo geral, e de pertencer a um grupo seja familiar, social,
profissional, religioso. A necessidade seguinte é a de estima, que diz respeito ao
valor que o próprio sujeito se dá, ou seja, a auto-estima, e ao reconhecimento do
seu valor pelos demais. A necessidade estética, a última da gradação, está presente
nos indivíduos que buscam beleza e que rechaçam a feiúra. O autor assim
exemplifica:
Tentei estudar o fenômeno em uma base clínico-personalógica, com
indivíduos selecionados e convenci pelo menos a mim mesmo de que em
alguns indivíduos uma necessidade estética básica. Eles ficam doentes
com a feiúra e são curados por ambientes bonitos. [...] Evidências de tal
impulso são encontradas em todas as culturas e em todas as idades,
mesmo que se recue ao homem da caverna.
136
A última categoria analisada, nos aspectos subjetivos refere-se aos valores
oníricos que vincula a casa a um ninho, uma concha, revela noções mais gerais
associadas à moradia, quais sejam, de proteção, sossego, concentração,
estabilidade, ou o contrário. Uma afirmação clássica do autor e que pode expressar,
135
MASLOW, Abraham H. Motivation and personality. New York: Harper & Row, 1970. p.38
136
Idem,. p.51.
57
em síntese, o seu pensamento é a seguinte: “Porque a casa é o nosso canto no
mundo. Ela é como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro
cosmos.”
137
Continuando essa idéia Bachelard, diz que os filósofos conhecem o
“universo antes da casa, o horizonte antes da pousada. Ao contrário, os verdadeiros
pontos de partida da imagem, se estudarmos fenomenologicamente, revelarão
concretamente os valores do espaço habitado, o não-eu que protege o eu.”
138
Ainda,
de acordo com o autor:
[...] todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores
oníricos consoantes. não é em sua positividade que a casa é
verdadeiramente “vivida”, não é somente no momento presente que
reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um
passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. A
velha locução: Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos.
139
Desta forma, a partir da configuração dessas seis categorias, ficam definidos
os critérios de análise, a fim de estabelecer as possíveis relações entre os aspectos
objetivos de subjetivos do espaço de habitar e o texto literário.
3.2 A Cocanha
Ao abrir as asas do imaginário, a narrativa ficcional do romance permite ao
autor mergulhar no cerne da natureza humana, na dinâmica dos relacionamentos,
na relação com o tempo e o espaço, e o meio circundante. Ao criar um espaço o
autor determina o cenário em que se estabelece a trama da história e a ação dos
seus personagens. Na trilogia de Pozenato, as descrições feitas pelo narrador e as
falas dos personagens que designam o espaço de habitar, são doravante
analisadas, a partir das categorias pré-estabelecidas, a fim de averiguar a
transformação desse espaço e o significado da casa do imigrante italiano na RCI.
A primeira obra analisada “A Cocanha”,
140
é ambientada no final do século
XIX, no ano de 1883 com a partida de um grupo de imigrantes italianos do porto de
Gênova, anterior ao marco oficial da imigração italiana que acontece no ano de
137
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 24.
138
Idem, ibidem.
139
Idem, p.25.
140
O termo “cocanha”, em dialeto vêneto, cucagana, significa fortuna, sorte, pepineira. Apud
STAWINSKI, Alberto Vitor. Dicionário Vêneto Sul-Rio-Grandense Português. Porto Alegre:
ESTEF; Caxias do Sul: EDUCS, 1987.p.49.
58
1875. O romance conta a saga desse grupo de imigrantes italianos que se
estabeleceu no nordeste gaúcho, em busca de um sonho: possuir a sua própria terra
e construir uma nova vida. A narrativa apresenta a vida coletiva, permeada de uma
cultura própria, com seus conflitos, a busca pela sobrevivência, a união por objetivos
comuns. Entretanto, nem todos os personagens saíram vitoriosos desta empreitada.
O casal, Rosa e Aurélio Gardone são os protagonistas do romance, e
representantes da primeira geração da trilogia. No início da obra “A Cocanha”,
quando os italianos entraram no barco a vapor que os levaria ao Brasil, conduzidos
e acomodados na terceira classe, a personagem Rosa, tem um devaneio a respeito
da vida que tinha e da vida que poderia vir a ter:
Rosa lamentou não ter trazido o seu colchão de penas. A cama era dura, e
tinha sobre ela um cobertor encardido de lã. Pelo menos tinha seu
travesseiro, ainda com cheiro de casa. Arrumou o leito às pressas. Não
queria perder o momento da partida, de olhar pela última vez a Itália, para
onde nunca mais iria retornar. Chamou Aurélio e subiram ao convés.
141
(grifo nosso)
O pensamento de Rosa traz à tona o “cheiro da casa”. O olfato é o sentido
mais primitivo do homem, aquele que permanece mais tempo retido na memória. O
travesseiro que acompanhará Rosa na sua viagem além-mar, traz em si o cheiro de
casa ao guardar a lembrança da sua terra natal. Dessa maneira a subjetividade do
significado da casa aparece representada por um valor afetivo e por um valor de
segurança.
Na chegada do grupo de imigrantes ao Brasil, a imagem que marca é a visão
do morro do Pão de Açúcar na cidade do Rio de Janeiro. Uma paisagem formosa.
Depois de uma breve estada, aportaram em Porto Alegre, bem mais próximos do
seu destino. O narrador descreve que Domênico, um dos personagens,
quase sentiu-se em casa ao desembarcar em Porto Alegre. A cidade não
era maior que Verona e havia muitos italianos nas ruas. O barracão da
Praça da Harmonia, destinado aos imigrantes, tinha uma disciplina que o fez
lembrar dos tempos de caserna.
142
Este trecho denota que o lugar se apresenta como um núcleo urbano em
constituição, e o personagem, ao quase se sentir em casa, quando relaciona Porto
141
POZENATO. Op.cit. (a), p.47.
142
POZENATO. Op.cit. (a), p.85.
59
Alegre a Verona, expressa a sua necessidade de pertinência, ou seja, representa a
necessidade humana de pertencer a um lugar, a um grupo e ser aceito nele.
Continuando sua trajetória, o grupo foi destinado, a ocupar as terras ao
nordeste da Província de São Pedro. Assim como na história da imigração, os
italianos que formaram a RCI enfrentaram muitas adversidades para vencer a
topografia íngreme da serra gaúcha, desbravar a mata nativa, e providenciar desde
logo um abrigo. O narrador da história descreve a primeira casa que os imigrantes
avistaram:
Depois de quatro ou cinco horas de escalada, aparece a primeira casa de
um colono italiano. O lugar tem o nome de São Pedro, o que parece um
bom augúrio, pois ele é o santo que abre a porta do paraíso. É uma casa
pobre, de tábua, rodeada pela roça de milho plantada na clareira.
143
A caminhada prossegue até o Campo dos Bugres, local onde serão
instalados. Essa primeira casa feita em madeira e de modo singelo é um tipo de
construção provisória e a presença da roça mostra que o morador está se
apropriando do espaço, está se fixando no local.
Estando no Campo dos Bugres, o grupo de imigrantes parte para um lugar
chamado Santa Corona, onde se instalarão definitivamente. Ao chegarem “no
meio da manhã, o velho Nicola escolhe o lugar do barracão e manda abrir uma roça
com foices”.
144
A construção de um barracão precedia a feitura das casas. O velho
Nicola é um italiano da primeira leva, que domina os métodos construtivos, e ensina
os outros:
Ele mede no chão três metros de lado por oito de comprimento. Vai ser uma
construção provisória, explica, mas melhor do que um chiqueiro. Até vinte
homens vão poder dormir ali, se ficarem enfileirados como leitões mamando
na porca, com folga para guardar as ferramentas e os mantimentos. As
paredes vão ter dois metros de altura, o para carregar tábuas
maiores no lombo das mulas. Mas com a cumeeira, até o bergamasco vai
poder ficar de pé. E pode ir se acostumando a cozinhar em cima de duas
pedras. Vai ser assim, com sol ou com chuva.
145
O barracão, primeiro espaço de habitar do imigrante servirá para o abrigo e
para dormir. A comida será feita ao ar livre. Depois de muito esforço e seguindo as
143
Idem, p.127.
144
Idem, p.133.
145
POZENATO. Op.cit.(a), p.133.
60
instruções do velho Nicola, os colonos concluem a construção do barracão, em que
ficarão alojados até construírem todas as casas. Cósimo, um dos líderes do grupo,
inclusive, “tenta calcular quanto tempo levarão para fazer quinze casas. Quinze não,
dezesseis, porque tinham se comprometido a construir também a casa da viúva
Gioconda.”
146
Durante a edificação das casas, o velho Nicola também tenta ensinar como
fazer as tábuas e as tabuinhas para o telhado. “Isto sei fazer diz um dos irmãos
Bertolini. Diante dos olhares de surpresa, explica com uma ponta de orgulho: A
gente fazia scándole nas montanhas. Somos tiroleses.”
147
No final de um turno de
trabalho, eles fazem algumas reflexões: “[...] se perguntam se não teria sido mais
negócio receber a casa pronta do governo. Ela ficaria incluída no total da dívida.
Mas, concordam, quanto menos ficarem devendo, melhor.”
148
Nicola explica que é
possível usar a serra ao invés do machado para cortar as tábuas, mas eles decidem
deixar este método para mais adiante.
Esses excertos indicam a primeira fase do processo sócio-lingüístico dentro
da categoria das relações histórico-sociais elaboradas por Frosi –, pois revelam,
ainda, a manutenção das tradições usos e costumes italianos das províncias de
origem. A narrativa também sugere que os imigrantes sofreram para construir as
casas, o trabalho feito manualmente demandava muita energia física. Seguindo o
pensamento trazido por Bachelard, pode se dizer que os imigrantes construíram as
casas como um pássaro, operário desprovido das melhores ferramentas. “Não tem
nem a mão do esquilo e nem o dente do castor. A ferramenta, na verdade, é o
próprio corpo.”
149
Embora o século XIX tenha se caracterizado pelo avanço
tecnológico, marcado pela Revolução Industrial, esses imigrantes contavam apenas
com machados, serras como ferramentas e o a energia do próprio corpo.
Superado o momento em que os imigrantes se imbuíram de erguer uma
habitação para cada família, passaram a ocupá-las. A moradia destinada ao casal
Rosa e Aurélio Gardone ganha destaque na narrativa, sendo assim descrita a sua
ocupação:
146
Idem, p.134.
147
Idem, p.139.
148
Idem, p.140.
149
BACHELARD. Op.cit., p.113.
61
Rosa respirou fundo o cheiro das paredes, de tábuas ainda verde. Era a
casa, a sua casa. Tinha três por quatro metros, uma janela na frente e
outra nos fundos, mas parecia enorme. O piso era de terra batida e a
mesa, de tábua áspera, mais parecia mesa de carpinteiro. Não
importava, era dela a casa. [...] Num prego atrás da porta Aurélio
pendurou, cheio de zelos, a sua espingarda. Gastara na compra dois
marengos, dos que trouxera cosidos no cós das calças. Mas fora um gasto
necessário, para se protegerem dos bichos selvagens, e também para a
caça. Na prateleira, ela acomodou os utensílios de cozinha: a frigideira, a
panela grande, o balde de madeira, as três bacias de folha, duas tigelas, os
poucos talheres de metal. E também as ferramentas: o serrote de mão, o
martelo, o machadinho, dois formões, o trado, duas limas, o facão, três
maços de pregos. Num canto ficaram as enxadas, a foice, a pá, o machado.
E ela tinha ainda todas as coisas vindas no baú.
150
(grifo nosso)
A apropriação do espaço de habitar por parte do casal demonstra que as
necessidades fisiológicas estavam sendo atendidas e a existência da casa própria,
passa a satisfazer também as necessidades de segurança e de pertinência. Para
Rosa, o fato de ter a casa, a sua casa, mesmo sem conforto, é a realização do
sonho de ter uma propriedade. Desejo, esse de todo o imigrante. O texto ainda
mostra que os imigrantes possuíam utensílios necessários para o dia-a-dia, que
foram ganhos do governo, ou pagos com os seus proventos, o que evidentemente
era de extrema valia e necessidade na formação da Região Colonial Italiana. A
narrativa prossegue descrevendo sobre o apossamento do espaço de habitar dessa
região:
A cama era um estrado de tábuas, junto à parede. Rosa estendeu o saco de
brim do colchão e encheu-o com palha de milho desfiada. [..]. Do baú, tirou
os lençóis brancos e as fronhas bordadas de seu enxoval de noiva. A
primeira noite merecia o melhor, era como um novo casamento. O seu
travesseiro, que teimosamente trouxera desde casa debaixo do braço,
estava feio, manchado das tantas chuvas e da poeira da viagem. Ela o
apertou contra si antes de pô-lo na cama. Deitada nele, a sua vida não
ficava partida em duas, uma do lado de lá e outra do lado de cá do mar.
Ela continuava a ser a mesma Rosa de sempre, e não alguma outra que ela
não conhecia bem. Pôs nele uma fronha limpa e acomodou-o com carinho,
ao lado do travesseiro novo do Aurélio. Olhou então ao redor para ver se
estava tudo em ordem.
Falta alguma coisa? perguntou Aurélio. Ela não ia dizer o que faltava,
estavam apenas no começo, o resto iam conseguir com o tempo. Mas disse
que queria um lugar para a santa. Uma prateleira pequena, perto da cama.
Na cabeceira ou nos pés? Nos pés. Quero ver a santa quando estou
deitada. Ele serrou uma ponta de tábua e pregou-a na quina da parede,
encaixada nas travessas. Rosa tirou do fundo do baú, o quadro da Madona
e a toalhinha de crochê. Entronizou a Madona na prateleira e disse,
como se falasse a uma amiga: – Cuida bem desta casa. (grifo nosso)
151
150
POZENATO. Op.cit.(a), p.152.
151
POZENATO. Op.cit.(a), p.152.
62
Nesta parte do romance, percebe-se que as construções seriam do período
provisório, de acordo com classificação proposta por Posenato – a casa apresentava
dimensões diminutas e era desprovida de conforto. Conforme Thales de Azevedo: “a
casa provisória, no lote rústico, era geralmente um singelo abrigo de cerca de 4m
por 6m, apenas suficiente para acolher os anos pioneiros do estabelecimento nas
‘colônias’”.
152
Nessa moradia não setorização de usos, pois o mesmo espaço é
destinado para rias funções, sobrepondo-se os usos social, íntimo e de serviço,
descritos por Bittar e Veríssimo ao estudar a história da casa no Brasil.
Quando Rosa escolhe um lugar de destaque para a imagem de Nossa
Senhora, a Madona, simboliza a sua identificação com a sociedade tradicionalista e
católica formada pelos imigrantes italianos. Rovílio Costa afirma que “a devoção
mariana, sendo uma devoção doméstica fazia parte do dia-a-dia, da vida do
imigrante e descendente”
153
, é tida pelo imigrante como a “Mãe que sempre decide
em favor de seus filhos, mãe que protege e que salva.”
154
Para o autor, os imigrantes
faziam alusão a Deus como um ente ligado à Natureza, enquanto que Maria se
relaciona à proteção do espaço doméstico. Frosi destaca que a vida religiosa e
social, próprias dessa sociedade, se encontra muito presente na primeira fase da
evolução do contexto sócio-econômico e cultural da RCI.
Outro objeto, que continua conservando significativa simbologia, é o
travesseiro que acompanhou a personagem Rosa ao longo da trajetória, desde a
Itália até a sua nova casa. Ele reforça a necessidade de pertinência, ao estabelecer
um elo de ligação entre o país de origem e o Brasil. Rosa, como todo o imigrante,
trouxe na sua cultura, os seus usos e costumes, a religiosidade, o valor do trabalho,
a tecnologia do meio rural italiano europeu. Ela ainda se sente de certa forma
pertencendo àquela cultura, mas se defronta com uma nova realidade, que exigirá
uma adaptação. O travesseiro funciona psicologicamente, neste caso, como um
objeto transitório entre a realidade passada e a futura, que está sendo construída no
presente.
De acordo com a narrativa, na casa de Rosa,
152
AZEVEDO. Op.cit., p.172.
153
COSTA, Rovílio. Culto a Maria entre os descendentes italianos do Rio Grande do Sul. In: DE
BONI, Luis A. A presença italiana no Brasil. v. II. Porto Alegre: EST, Turim: Fondazione Giovanni
Agnelli, 1990, p.535.
154
Idem, p. 536.
63
[...] para cozinhar, Aurélio erguera um telhado coberto de palmas, apoiado
em estacas. Debaixo dele estavam alinhadas duas pedras, com restos de
cinza entre elas. É provisório desculpou-se ele. Esta casa vai ser a
cozinha, depois de fazer outra casa de dormir.
155
Aurélio, dessa forma, revela não dar muita importância ao espaço de
cozinhar. Logo depois de se instalar e na casa e nessas condições, Rosa recebe a
visita das irmãs Giulieta e Gema. Rosa fica contente com o encontro, mas o café
ainda não está pronto para ser servido. Então, a Gema passa a vistoriar o local e
tecer suas considerações:
Gema riu e avisou, que antes do café, ia inspecionar tudo, ver se a Rosa
estava bem instalada. Arregaçou um pouco a saia, como via fazer as damas
ricas, empinou o nariz com ar de autoridade e começou a pôr defeito em
tudo. Mal feito, esse canteiro. Muito alta, essa escada. Onde estão os vidros
das janelas? Feia, essa cama. Não havia melhor lugar para a santa? Mas
ao ver o fogão improvisado de pedras começou a elogiar.
Grande, bonita, esta cozinha. Tem tudo, não falta nada. É a melhor
cozinha que eu vi. E, de súbito, furiosa: Quem foi o ignorante que fez
isto? O Aurélio nunca viu uma cozinha?
– Coitado – disse a Giulieta – , ele ainda não teve tempo.
Coitado, coitado. Coitada é quem tem de cozinhar aqui. Está decido.
Quando o Aurélio estiver fora, a Rosa come em casa. Pelo menos tenho
uma cozinha decente. Avisei o pi. Primeiro me faz a cozinha. Depois o
resto. Vem comigo, Rosa, vamos tomar o café na minha casa.
Sentindo-se protegida, Rosa acompanhou-as pela picada no meio do mato.
A casa da Gema ficava a uma boa distância e, mais longe um pouco, a da
Giulieta. Não era de fato uma casa, mas uma grande cozinha com o estrado
de dormir num canto. Tinha o fogoler aceso, com a corrente presa ao teto, a
mesa no centro, dois bancos compridos, uma prateleira com as tigelas e os
pratos. – A cozinha é o mais importante da casa. Diz isso para o Aurélio. Os
homens não entendem nada dessas coisas.
156
(grifo nosso)
A personagem Gema se vale de um tom irônico para criticar a casa “nova” de
Rosa, sobretudo a cozinha. Expressa a falta de cuidado que o cunhado teve ao
construir a casa, sugerindo, sutilmente, a existência de conflitos na relação entre
Rosa e Aurélio. Aparecem em evidência as relações de poder, mencionadas por
Foucault, quando Gema diz que “os homens não entendem nada dessas coisas”. O
universo doméstico, na sua compreensão, pertence às mulheres; portanto, cabe a
elas exercer o domínio sobre tal ambiente. Reforça esta idéia, quando afirma que o
seu marido, Bépi, construiu a sua casa de acordo com as suas exigências.
No momento seguinte Gema conduz a irmã Rosa para a sua casa, onde o
fogo está aceso, e ao priorizar a cozinha como o lugar mais importante da casa,
155
POZENATO. Op.cit.(a), p. 158.
156
Idem, p.158-159.
64
sugere que é um local de acolhida, de conversa. A casa da Gema era uma grande
cozinha, e atendia além das necessidades fisiológicas, as necessidades de amor e
pertinência, pois se caracterizava pelo “calor” e pelo aconchego. a casa de Rosa
parece satisfazer apenas as necessidades fisiológicas e de segurança, pois sua
cozinha em nada lembrava um lugar de encontro.
No prosseguimento da história, também é apresentada a visão dos brasileiros
estabelecidos na Colônia de Caxias, em relação aos imigrantes. O personagem, da
narrativa, Barata Góes, engenheiro chefe da Comissão de Terras, relata para o novo
funcionário, José Bernardino, que era porto-alegrense e escritor:
Você deve ter visto. Esses imigrantes são uma gente paupérrima. São
mil e novecentos colonos. Com as famílias, devemos ter umas dez mil
pessoas na Colônia Caxias. O que mais faço é enviar ofícios ao Palácio do
Governo, reclamando providências. Estamos fornecendo ferramentas,
sementes e um pequeno subsídio. Esse subsídio devia ser para dezoito
meses, tempo de o colono começar a roçar, plantar e colher o seu
produto.
157
A fala de Barata Góes indica o período em que ainda não havia uma
integração entre a cultura brasileira e a dos imigrantes italianos. A relação dos
imigrantes italianos era preponderantemente com o governo, pois dependiam do seu
auxílio para receber os utensílios domésticos, as ferramentas, as sementes; meios
que possibilitaram o início do processo de ocupação e cultivo das terras a eles
destinadas. por sua vez, o personagem José Bernardino surge, no romance, com
o olhar do estrangeiro sobre o processo de formação da RCI. Ele tem a pretensão
de escrever um romance e registra a sua visão sobre a região.
Notas sobre o cenário. Este é um povoado de barro, anda-se no barro, leva-
se o barro nas botas onde se vá. Desse barro informe, espero, irão tomando
corpo as formas todas da vida. As casas são de madeira, que a chuva e o
sol vão deixando cinzentas. Estão postas ao longo das ruas, melhor seria
chamá-las estradas, sem cuidado com o alinhamento: algumas estão à
beira da rua, outras no fundo do lote. [...] Continuando o cenário. Não é nem
povoado nem roça. Uma mistura das duas coisas. [...] Muito curiosas as
manhãs de domingo na praça Dante. Chegam os colonos, de todos os
lados, com suas mulheres e filhos. A impressão é de que ninguém fica em
casa. Muitos deles caminharam seis ou oito horas pelas picadas. Estranho é
que raras são as mulheres e crianças que chegam a cavalo. Quem vem
montado são os homens. Quem vem a traz o calçado na mão e o
coloca antes de chegar na igreja.
158
(grifo nosso)
157
POZENATO. Op.cit.(a), p.177-178.
158
POZENATO. Op.cit.(a) p.196-198.
65
As anotações do personagem, José Bernardino, que também era um escritor,
ilustram que o agrupamento das casas configura o início do núcleo urbano. Na sua
forma construtiva a casa urbana não difere muito da rural. Nesse período da obra
ficcional, as construções podem ser classificadas, segundo os parâmetros
apresentados por Posenato, como permanentes, mas primitivas, tanto no espaço
urbano quanto no espaço rural. É nesta fase que ocorre a sedimentação do
assentamento dos imigrantes na RCI.
Retornando ao espaço rural e para a situação do casal Rosa e Aurélio
Gardone, a narrativa denota muitos conflitos entre eles. Rosa estava grávida do
primeiro filho, ele aparecia freqüentemente bêbado, parecia estar arrependido de ter
vindo para a América, e se afigurava pouco afetuoso com Rosa.
Ele estava muito diferente de quando casara com ela. Havia dias em que
estava animado e trabalhava sem descanso, como se o mundo fosse
terminar no dia seguinte. Passara assim semanas rachando tábuas para
fazer a casa de dormir. Queria deixá-la pronta antes do inverno, para
poderem usar a primeira casa como cozinha. [...] Depois de pronta a casa,
ao invés de ficar contente, passava o dia inteiro sem dizer ao menos uma
palavra, como se tivesse raiva dela. Ela então chorava, sozinha, para não
deixá-lo ainda mais aborrecido.
159
Apesar dos conflitos, Aurélio consegue cumprir a promessa, e constrói uma
outra edícula também em madeira
160
que será utilizada para dormir. Nesse trecho,
observa-se as especificações de funções do espaço de habitar, em que os
ambientes aparecem com usos diferenciados, a cozinha como serviço e social, e
o quarto como íntimo. O quarto também é o lugar do nascimento dos filhos e quando
Rosa a luz ao primogênito da família, Ângelo, seu pai Aurélio Gardone faz um
presságio: “– Esse vai fazer a América de verdade. Não como nós.”
161
Uma vez que
ele nascera num outro contexto da imigração italiana, em que havia um maior
desenvolvimento econômico.
159
Idem, p. 201.
160
A respeito do uso dos materiais nas construções do período provisório é importante salientar que:
“as casas de pedras irregulares naturais, ou pedras irregulares lascadas, ou pedras irregulares
talhadas, foram surgindo, em menor número, ao lado das casas de madeira. A abundância do
pinus araucária fez com que as casas de madeira prevalecessem em toda a área rural. Mesmo
assim, quer nos centros coloniais, quer nas diferentes linhas rurais, houve exemplares de casas de
pedra. Mais abundantes surgiram, após a primeira década, as casas de tijolos domésticos secados
ao sol (adobe), de tijolos cozidos, de boa textura, e finalmente tijolos industrializados em olarias.”
DE BONI e COSTA. Op.cit., p.141.
161
POZENATO. Op.cit.(a), p.212.
66
Um outro personagem, Roco, ferreiro de profissão, também ambicionava fare
la Mérica
162
, mas de modo mais imediato. Para isso tencionava se estabelecer na
área urbana e casar-se com Nina, que pertencia a uma família de gaúchos. A praça
era o local de encontro dos dois. Num desses encontros ela comenta com Roco:
– O meu pai me perguntou quem é o gringo que vem falar comigo na praça.
Roco não soubera o que dizer do susto. Mas logo Delfina mostrava todos os
dentes alvíssimos, para completar: Ele quer que eu te apresente em
casa, domingo que vem. É para tu ires tomar um simarón e comer um
sorasco. E pode ir vestido de bombassa.
163
Delfina (Nina) ao aglutinar uma palavra típica gaúcha a um acento do dialeto
italiano, na sua fala, demonstra um dos elementos de aculturação dos imigrantes
italianos com o povo gaúcho, e um contato inaugural estabelecido entre diferentes
culturas, no caso, a gaúcha e a italiana, que se expressa no modo de falar.
Analisando as relações histórico-sociais, o texto sugere a passagem da primeira
fase para a segunda fase da evolução sócio-lingüística e econômica da RCI.
Os encontros de Roco e Nina resultaram no pedido de casamento, e como diz
o brocado “quem casa quer casa”, ele instala a sua oficina no meio urbano, para
angariar fundos e construir a futura moradia do casal. Trabalha exaustivamente,
compra um terreno e inicia a edificação de uma casa
164
com proporções
avantajadas. Roco sabia que: “a casa deveria de atender ao regulamento: tamanho,
altura e número e posição das janelas”.
165
O período da obra é de cerca cinco anos.
Nina, neste período, contrai varicela e vem a falecer. Com a morte de Nina, a casa
que teria apenas a função de habitação sofre modificações, dentre elas:
162
Fazer a América. Expressão utilizada pelos imigrantes que partiram da Europa e se destinaram
para as Américas.
163
POZENATO. Op.cit.(a), p. 221.
164
“Em 1893, o Código de Posturas Municipais de Caxias, que também normatizava as áreas de
Nova Trento, Nova Pádua, Nova Milano e Ana Rech,o foi diferente das demais leis municipais
do seu tempo. Sobre as edificações nas áreas citadinas, exigia plano de obras; determinava, para
casas térreas urbanas que ficassem no alinhamento, pelo menos quatro metros de pé-direito. Os
sobrados teriam de ter mesmos quatro metros de direito do andar térreo, 3,80 cm para o
pavimento superior e 3,55 para o terceiro e assim por diante, na mesma proporção.[...] As janelas
de frente para as ruas e praças deveriam ter, pelo menos 1,75cm de altura; as portas 2,75cm.
Ambas as aberturas teriam de dispor de 1,10cm de largura”. GUTIERREZ e GUTIERREZ. Op.cit.,
p.35.
165
POZENATO. Op.cit.(a), p.224.
67
A oficina de Roco era agora no porão da casa [...]. Depois de muito lamentar
e sofrer a morte da Delfina, ele decidira transformar a casa em pensão,
que tão cedo não ia poder enchê-la de filhos [...]. Contratara uma moça, a
Marieta, para o serviço. E tinha alguns hóspedes permanentes, com
quem podia jogar cartas e tornar as noites menos compridas.
166
O espaço erigido com o intuito de abrigar uma família, por ter sido construído
de forma superdimensionada, pôde ser transformado num albergue, habitação do
proprietário e também local de trabalho, a sua oficina. Essa casa é um exemplo do
típico de construções do período do apogeu. A casa grande, ampla, não se
constituía apenas em uma mera moradia, pois representava a ascensão social do
seu proprietário. Ou seja, esse trecho da narrativa também pode incluir uma análise
atinente aos valores oníricos, pois “a casa é um corpo de imagens que dá ao homem
razões ou ilusões de estabilidade” como refere Bachelard.
167
Para Roco, a casa
pronta antes de casar, significava segurança e conquista, no entanto, isso se revelou
uma ilusão. A sua amada veio a falecer antes da casa estar concluída. Essa
perdeu, então, o seu uso original, precisou ser transformada para adquirir um novo
significado para o seu dono.
O desejo de ser dono de uma propriedade acompanhada da prosperidade,
nem sempre se realizou. Na narrativa, retornando a Santa Corona, as irmãs Rosa e
Gema vão visitar Aurora, cuja filha adolescente tinha sido levada pelos fazendeiros
da região dos campos de cima da serra e, da qual, não recebera mais notícias. Ao
chegarem se deparam com a seguinte situação:
A casa de Aurora era de uma peça. No meio dela, no chão um pau de
lenha queimava, enchendo tudo de fumaça e cheiro de fuligem. Ao redor,
junto às paredes estavam os estrados cobertos por trapos sujos, onde devia
dormir toda a família. Aurora, deitada na meia escuridão, tossia. Rosa
chegou a sentir uma revolta no estômago. [...] Tudo era de uma miséria de
fazer chorar.
168
Para agravar a situação triste de Aurora, o seu marido, Pier, acaba se
enforcando, sendo o seu destino, a própria morte logo em seguida.
Assim terminava a América que o Pier tinha vindo buscar. A terra, que ele
ainda não tinha pago, seria comprada por outro. Os filhos, quando
crescessem, não iam ter onde plantar nem o direito de receber uma nova
colônia. As meninas resolviam o problema casando, quando chegassem na
166
Idem, p.318.
167
BACHELARD. Op.cit., p.14.
168
POZENATO. Op.cit.(a), p.245.
68
idade. Mas os meninos teriam de começar tudo do nada, ou passar a vida
trabalhando para os outros, como teria sido o destino deles se os pais
ficassem na Itália.
169
Percebe-se que a casa da desaventurada Aurora atendia apenas a
necessidade fisiológica e a necessidade do abrigo, não se constituindo num espaço
de amor e pertinência. Nesse espaço de habitar, uma única peça, servia para todas
as funções, social, íntimo e serviço, inexistindo setorizações. A história dessa família
representa aqueles imigrantes que, não conseguindo tornar realidade os seus
sonhos, permaneciam na mesma situação de miséria, como se tivessem ficado na
sua pobre Itália. Bachelard considera “a casa mais do que uma paisagem é ‘um
estado da alma’”,
170
e a penúria da casa dessa infeliz personagem, refletia o estado
da sua própria alma.
Em contrapartida, para alguns outros habitantes de Santa Corona, a
promessa do paraíso, a cocanha, parecia se concretizar, tanto que, podiam na
véspera da Páscoa, preparar uma grande festa; essa comemoração era regada pela
melhor comida e bebida que eles conseguiam prover. A celebração de suas
conquistas se ao redor da mesa, num espaço privado, onde estão reunidos os
mais próximos:
Chega enfim a hora de sentarem todos à comprida mesa feita de tábuas,
apoiadas em cavaletes. Os olhares convergem num silêncio religioso para a
polenta fumegante e para as travessas repletas de dourados passarinhos. É
tão grande a comoção que, se alguém não disser uma brincadeira para
provocar riso, as lágrimas vão começar a correr. É Bépi quem diz, vamos
comer logo antes que venham os bugios. Riem todos, e com isso descem
dos us à terra. As mãos avançam sobre os pratos. Os passarinhos são
tão bem assados que os dentes podem moer até mesmo os ossos, a
começar pela cabeça, sem perder nada de nada. Para mais proveito de
tanta delícia, lambem os dedos, juntam na polenta a gordura que escorre, e
ninguém diz uma palavra. depois de passada a sofreguidão é que
percebem como estão em silêncio. Saciada a fome mais urgente, podem
então, em rito mais lento, explorar a fundo os sabores e entornar os copos
de vinho, vendo as estrelas no u, quem sabe imaginando-se no
paraíso.
171
(grifo nosso)
Os moradores de Santa Corona, também tinham a ambição de construir de
uma capela. O narrador assim expressa o desejo do grupo: Ninguém está
sonhando em conseguir um padre para eles, como tinham na Itália. Mas o certo é
169
Idem, p.249.
170
BACHELARD. Op.cit., p.84.
171
POZENATO. Op.cit.(a), p.255.
69
que depois de terem a igreja podem pensar até mesmo numa pequena vila, com
escola, ferraria, quem sabe um agente postal.
172
Para a construção da capela,
existem duas opiniões em relação ao material, o senhor De Bastiani, um dos
membros da comunidade, “pergunta se está decidido se a igreja será de pedra ou
de madeira. Ninguém resposta, e ele avança a sua opinião. Se é para fazer, que
se faça logo uma igreja para durar, de pedra e de bom tamanho”
173
. Um dos tiroleses
diz que se a igreja for de madeira, mas bem feita, poderá durar muito tempo. Cósimo
toma a palavra em meio à discussão e propõe: “– Por que não se faz uma igreja
provisória de madeira, não muito grande, e depois se pensa numa maior, que pode
ser de tijolo? Afinal, foi assim que a gente fez com as nossas casas.”
174
A maioria
decide que a capela será construída provisoriamente de madeira.
A edificação das capelas, na primeira fase da evolução histórico-social da RCI
segundo a pesquisadora Vitalina Frosi, caracterizou o surgimento de um espaço da
comunidade, destinado não somente para os encontros de caráter religioso, porém,
igualmente usado para outras atividades da vida social. O próprio personagem Miro,
que prometeu doar o terreno para a construção da capela, alerta a todos “o quanto a
igreja é importante para o progresso do lugar.”
175
Na continuação da narrativa, nas anotações para um romance realista do
personagem José Bernardino, funcionário público, pode-se ler que tanto no meio
urbano quanto no meio rural, o governo não zela pela vida dos cidadãos, referindo-
se a falta de assistência médica, caso ocorresse uma epidemia de varíola, como a
que causou a morte da noiva de Roco, a Nina. Ele registra o seguinte: “O senhor
Júlio de Castilhos fez a sua constituição e elegeu-se Presidente do Estado, mas
parece totalmente atarefado em extirpar as facções rivais e fazer sua pequena
demagogia.“
176
O próprio escritor veio a falecer de pneumonia, sendo velado na sua
própria casa. O seu corpo fora posto sobre a mesa da sala que, por ser pequena, foi
acrescida a ela, outra mesinha. O seu amigo Bento “decidiu mentalmente que a
cabeça do querido amigo repousaria nessa mesinha e que depois a guardaria
172
Idem, p. 279.
173
Idem, p. 280.
174
Idem, p. 281.
175
Idem, p. 279.
176
POZENATO. Op.cit.(a), 296.
70
consigo. Seria a lembrança do último lugar de descanso do genial poeta na face da
terra.”
177
É possível perceber que nesta época, havia uma pluralidade nas funções do
espaço de habitar: a sala da casa, usada para as atividades sociais, torna-se uma
sala de velório. Durante o velório, os visitantes utilizam também os demais espaços
da casa que transforma-se num lugar transitório, entre o público e o privado. O
pensamento do personagem Bento designa também um valor onírico, no momento
em que guarda a mesinha do amigo falecido. A presença da mesinha evocará a
lembrança do genial poeta. Como diz Bachelard, “são objetos-sujeitos. Têm como
nós, por nós, para nós uma intimidade.”
178
Na continuação do romance, Gema noticia para a sua irmã Giulieta que,
finalmente, o Roco tinha casado, depois de ter sofrido muito com a morte da noiva,
com a mulher que cuidava da sua pensão. “A moça se chama Marieta e era muito
boa na cozinha e no serviço. A vila estava cada vez maior, até casas de tijolo
estavam sendo construídas.”
179
Percebe-se, nesse trecho da obra, que a casa de
Roco, que somava as funções de oficina e albergue, consolidou a sua função
múltipla, contemplava todas as funções do espaço de habitar, ou seja, social, de
serviço e íntimo, tendo também agregadas as funções de local para a produção de
peças (oficina) e de hotelaria. A vila urbana desenvolvia-se, as casas de madeira
foram sendo substituídas pelas de alvenaria, caracterizando o período do apogeu
das construções dos imigrantes e dos seus descendentes.
Mais adiante, a personagem Gema oferece um almoço ao padre Giobbe, na
sua casa, em Santa Corona. Conseguiu convencer o padre de almoçar na sua
moradia e não na da Marieta, esposa de Cósimo. Naturalmente, no encontro,
estavam presentes o seu marido pi e sua filha Pierina. Rosa, irmã de Gema,
também fora convidada e, durante a refeição lembrou do seu marido Aurélio, bem
como, dos filhos, que ficaram em casa: “Ele e as crianças deviam ter se arrumado
com o almoço, o Ângelo sabia mexer a polenta, tinha oito anos.”
180
Naquele
mesmo dia, Cósimo conta ao padre Giobbe que pretendiam substituir a capela
antiga:
177
Idem, p.312.
178
BACHELARD. Op.cit., p.91.
179
POZENATO. Op.cit.(a), p.324.
180
POZENATO. Op.cit.(a), p.335..
71
[...] estavam pensando em fazer uma igreja nova, de pedra ou de tijolo,
sentiam vergonha da igrejinha de tábua. Padre Giobbe não estimulara
esse desejo, nem tentara convencer do contrário. Se de um lado ele não via
razão para terem vergonha da pobreza da igreja, de outro era bom que
alimentassem o sonho de uma igreja mais bonita. Os sonhos eram a melhor
alavanca para a luta. [...] Claro, ele não era sonso para não perceber que o
desejo de uma bela igreja tinha também a ver com razões mundanas, de
sentir e mostrar o próprio sucesso ou até de fazer inveja aos vizinhos.
181
(grifo nosso)
A edificação da nova igreja, que poderia dar inveja aos outros, mostra o
desejo e necessidade de buscar o belo, mesmo que seja para mostrar aos outros a
sua capacidade de conquista. Segundo a escala das necessidades humanas,
descritas por Maslow, essa busca remete além da necessidade de pertinência a
necessidade da estética, ou seja, quando os indivíduos passam a buscar beleza,
rechaçando a suposta feiúra.
Ao encaminhar-se para o final, a narrativa descreve o falecimento de Rosa.
Durante o trabalho de parto, que acontecia no ambiente onde dormia, ela gera mais
uma filha, que não terá a mãe para zelar. O filho mais velho, Ângelo, que tem
quatorze anos, é quem vai cuidar dos irmãos mais novos, como determina o pai
Aurélio. Novamente se percebe que os espaços da casa recebem funções, pois o
quarto é o lugar do “dormir eterno” e a sala da casa se transforma no local para o
velório de Rosa.
O término do romance acontece no final do século XIX. Giulieta Besano, irmã
de Rosa, e seus familiares decidem viajar para participar da festa alusiva à virada do
século em Nova Milano. A filha Teresa, de 12 anos, é a mais animada com a
viagem, sendo que ao chegar na localidade, fica encantada com “tantas casas, uma
do lado das outras, tantas carroças, tantos cavalos tanta gente nas ruas, com roupas
tão bonitas”
182
A família Besano é recebida na casa do seu Tommaso, que assim
percebida por Teresa:
A casa do seu Tommaso, o amigo do pai, era imensa. Um palácio, como os
das histórias que a mãe contava da Itália. Era toda de tijolos, tinha vidros
nas janelas, e o assoalho brilhava com o sol batendo nele. Era numa casa
como essa que gostaria de morar. “Um dia vamos ter uma assim”, disse a
mãe, “seu Tommaso foi um dos primeiros a chegar no Brasil.” Uma grande
escada levava ao sótão e, para a alegria de Teresa, foi para que a
levaram com as irmãs. O quarto em que ficaram tinha cortina de crochê na
janela e um espelho quase maior que ela na porta do guarda-roupa. Não
181
Idem, p. 337.
182
POZENATO. Op.cit.(a), p.369.
72
resistiu e pôs-se a dançar na frente dele, até que as imãs, impertinentes, a
atrapalharem.
183
A casa de Tommaso simboliza a realização do sonho. Construída em
alvenaria, com caixilhos de vidro, e assoalho de madeira, mobiliada, com cortinas de
crochê na janela, representava para Teresa, o “palácio” descrito nas histórias que a
sua mãe contava referentes à Itália. Essa edificação representa o período do apogeu
no que se refere ao tipo de construções e o seu dono parece ter superado as
motivações meramente fisiológicas, ou mesmo de segurança, de amor e pertinência,
pois ao construir uma nobre casa, certamente, se auto-afirma e atende também as
necessidades estéticas.
Nas últimas linhas do romance, é descrita a festa que representa a
comemoração e a diversidade de sentimentos por parte de alguns dos imigrantes
que se instalaram e construíram o seu novo mundo na RCI, permeado de tristeza,
mas também de alegria:
A banda de música tocava sem parar, enquanto a praça da igreja se enchia
de gente. De repente o sino começou a tocar e o coração de Teresa
disparou. Chegava a hora esperada. Tiros de morteiros e de foguetes quase
a deixavam surda. E então, no céu escuro, explodiu uma bola colorida e
uma chuva de luzes iluminou a torre da igreja. Depois outra e mais outra.
Teresa ouviu a mãe dizendo que os fogos no céu pareciam lágrimas
caindo. Não era o que ela pensava. Para Teresa eram ramalhetes de
flores, feitas de luz.
184
(grifo nosso)
Ao finalizar análise percebe-se que a narrativa posta no texto literário
estudado consegue revelar as transformações havidas no espaço de habitar do
imigrante, que ocupou a RCI. Descreve como eram as edificações provisórias, que
serviam para satisfazer, minimamente, as necessidades fisiológicas dos recém-
chegados, informa, ainda, que os imigrantes, no período em que residiam nesses
barracos, se dedicaram a erigir uma habitação própria, para cada família, com os
poucos materiais e ferramentas que dispunham, em que as necessidades de
segurança, amor e pertinência também seriam satisfeitas. Apresenta, igualmente, as
alterações ocorridas nas edificações, com o incremento de novos materiais, e a
necessidade de que as casas fossem divididas, para que houvesse ambientes
próprios para cada uma das funções social, íntimo e de serviço. De fato, para muitos
183
Idem, p.370.
184
Idem, p.371.
73
imigrantes, como para os personagens Roco e Tommaso, a edificação de suas
casas representou a conquista de uma fortuna, a sua “cocanha”.
3.3 O Quatrilho
O segundo romance “O Quatrilho”,
185
inicia com a cena do casamento de
Ângelo, filho de Rosa e Aurélio Gardone, com 24 anos e Teresa Besana, 19 anos,
filha de Giulieta, irmã de Rosa, na capela de Santa Corona, em cerimônia presidida
pelo padre Giobbe. Os noivos, nascidos no Brasil, são representantes da segunda
geração dos imigrantes italianos retratados no primeiro livro da triologia. Segundo a
descrição do narrador, o dia da festa, era quente, típico de verão em que acabou
desabando um temporal, e a festa de casamento precisou ser realizada dentro da
casa de Aurélio Gardone. Gema, tia de Teresa, por parte de mãe, e as irmãs do
noivo, Dosolina e Bambina, ficaram encarregadas dos preparativos da festa.
Dosolina e Bambina pareciam atrapalhadas, com toda aquela gente
espremida dentro de casa, cheirando a suor e roupas molhadas. Por sorte,
tia Gema tomava conta da situação e dava ordens à esquerda e à direita.
Aurélio Gardone achava a tia Gema uma mulher disposta e despachada,
mas podia fazer menos espalhafato e menos barulho.
– Fora, fora daqui, aqui mando eu – gritou tia Gema para Teresa, assim que
a viu entrar na cozinha. Vai cuidar do teu marido. Amanhã e depois não
vai faltar trabalho. Descansa para hoje de noite.
E Teresa ria, concordava achava engraçado. Tia Gema berrava:
Quem não me obedece eu empurro para debaixo da chuva. Quem não
ajuda também não estorva. E despachava mulheres com louça, pratos de
comida, garrafas de vinho. Teresa retornou à sala pelo corredor aberto, e de
novo não o viu quando passou. Estava entretida demais com a festa. Aurélio
Gardone sentia-se como um peixe fora da água, em sua própria casa. Pelo
seu gosto, não teria havido festa alguma, ao menos na sua casa. Mas
ninguém mais lhe perguntava a sua opinião e, mesmo que perguntassem,
nada teria respondido. Os negócios da casa lhe davam incômodo, e ele
queria paz. Já não tinha ido à igreja porque preferia ficar na toca.
186
A casa de Aurélio, edificada por ele, descrita no romance “A Cocanha”,
permanece com dois volumes, sendo um a cozinha, e o outro a “casa de dormir”,
ligados por um corredor. A casa de dormir também serviu como um espaço de estar,
lugar onde foram servidas as comilanças da festa, preparadas na cozinha. Essa
185
O quatrilho é um jogo de baralho (cartas), em que quatro pessoas participam e os parceiros se
trocam o tempo todo. Um dos jogos preferidos para o entretenimento dos imigrantes italianos.
186
POZENATO, José Clemente. O Quatrilho.16.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001(b),p.21.
74
casa apresenta as funções do espaço de habitar: social, íntimo e serviço; está,
portanto, setorizada.
Com a realização da festa de casamento na casa, a sala, local de pouca
permanência, torna-se o espaço de recepção dos convidados. Aurélio ao sentir-se
“um peixe fora da água em sua própria casa”, revela a falta de privacidade com a
chegada dos convidados. Subjetivamente, segundo Certau, numa casa, “todo o
visitante é um intruso, a menos que tenha sido explícita e livremente convidado para
entrar. Mesmo neste caso, o convidado deve saber ‘ficar no seu lugar’, sem atrever-
se a circular por todas as dependências da casa”
187
. Aurélio parecia não estar
disposto a dividir a sua casa, conquistada com muito esforço, com os convivas da
festa. Ao mesmo tempo, Gema se preocupa em servir os convidados e ordem a
todos. O espaço da cozinha é de domínio e poder feminino. A “boa” festa supõe um
eficaz serviço culinário, e parece depender exclusivamente da atenção das mulheres
na elaboração dos pratos e no serviço dos mesmos.
Durante a festa, em seus devaneios, Aurélio, lembra do seu relacionamento
com a sua esposa já falecida.
Aurélio Gardone lembra como se fosse hoje. Quando chegou na colônia que
lhe foi destinada, deixando Rosa no barracão dos imigrantes, e viu a altura
das árvores que teria de derrubar par plantar ao menos umas covas de
milho, chorou. Parecia ter ficado sem força. E foi chorando que deu a
primeira machadada, e outra, e outra. A primeira árvore caiu e ele deu um
grito de alegria. Alguns dias depois tinha erguido um rancho e trouxe a
sua Rosa. [...] Esperando já a Dosolina, Rosa o ajudava a rachar as toras de
pinheiro para a sua primeira casa de verdade. [...] Aurélio Gardone olha as
paredes do paiol. São estas as tábuas que fizeram juntos. Esta foi a casa
em que nasceram todos os filhos.
188
O casamento de seu filho traz a memória, lembranças da sua vida nesta casa
com Rosa. Casa que foi palco de cenas de alegrias e de muita tristeza. O mesmo
espaço que assistiu ao nascimento de seus filhos e também a morte da sua esposa,
agora recebe os convidados da festa. Como afirma Certeau nas casas,
[...] as famílias se reúnem para celebrar os ritmos do tempo, confrontar a
experiência das gerações, acolher os nascimentos, solenizar as alianças,
superar as provas, todo aquele longo trabalho de alegria e de luto que só se
187
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2. Morar,cozinhar.
2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 203.
188
POZENATO. Op.cit.(b), p.24.
75
cumpre ‘em casa’, toda aquela lenta paciência que conduz da via à morte no
decorrer dos anos.”
189
Essa idéia também é corroborada por Bachelard, a casa “em seus mil
alvéolos retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço.”
190
Thales de Azevedo, em seus estudos sobre a imigração italiana, assim
descreveu a casa do imigrante italiano:
A vida associativa começa ao nível da família nuclear, na casa rural onde
decorre grande parte da existência entre a morada e a cozinha: a dormida, a
preparação da cozinha diária e das conversas, as refeições principais, o
encontro depois do trabalho, as orações da noite, a conversa, os
nascimentos e a morte, os banquetes de casamento, os bailes [...].
191
Após dois meses da realização do casamento, Teresa visita sua tia Gema que
ao recebê-la deseja saber sobre a vida de casada:
Tia Gema trancou a porta da cozinha, com exagerado ar de precaução.
Puxou um banquinho para frente de Teresa e prendeu-lhe as duas mãos
entre as suas:
– Agora me conta que estamos sozinhas, me conta, me conta.
– Contar o quê, tia?
Contar o quê! Ora não te faz de boba. Tudo quero saber tudo, tudo. Me
conta do teu maridinho. Que lindo frango pegaste!
192
Teresa parece desentendida, mas também tinha o desejo latente de fazer
confidências, quando a tia perguntou como estava o seu relacionamento com o
marido respondeu: “Cosi, cosi, como dona senza marì”
193
Esse diálogo, entre a tia e
a sobrinha, na cozinha, demonstra que na casa do imigrante italiano, a cozinha,
tinha como principal função a de serviço, porém também era o local das
confidências, de revelação de segredos. Na longa conversa, igualmente, fala a
respeito da vida da mulher na colônia, que é de muito trabalho e sofrimento. Teresa
pergunta a tia Gema a respeito da prima Pierina que havia casado com Mássimo,
sobrinho do padre Giobbe. Gema assim responde a sua sobrinha:
Eu não queria que ela casasse com o Máximo. Onde se viu, aqui na
colônia, andar com aquelas polainas brancas? Vai ver que é um vagabundo,
189
CERTEAU, GIARD e MAYOL. Op.cit., p. 206.
190
BACHELARD. Op.cit., p.27
191
AZEVEDO. Op.cit., p. 180.
192
POZENATO. Op.cit.(b), p.29.
193
POZENATO. Op.cit.(b), P.29. “Assim, assim, como mulher sem marido.”
76
eu pensava. Ele é sobrinho do padre Giobbe, mas isso não quer dizer nada.
Mas a Pierina se engraçou por ele. Acho que o padre Giobbe deu também
uma mãozinha, para se ver livre do sobrinho. Deus me perdoe. O ssimo
é muito instruído. Ele almanaque, sabe. Sabe fazer as contas. Escreve
cada desenho que vendo, parece de verdade. Foi o Mássimo que fez
a casa deles, os móveis, tudo ele fez. Parece que está dando certo, ao
menos por enquanto. Queira Deus que continue.
194
(grifo nosso)
A casa construída por Mássimo, revela que foi edificada com um certo
planejamento, uma vez que ele sabia desenhar. Possivelmente elaborou um croqui
da casa, ao contrário da maioria, que teria sido construída de forma mais
espontânea. O tipo de construção remete ao período permanente do apogeu. O fato,
de que o personagem erigiu a sua própria casa com certa rapidez e com melhor
qualidade técnica, demonstra uma maior prosperidade, característica da segunda
fase da evolução sócio-econômica e cultural da RCI.
No decorrer da história, se realiza o filó, pacientemente articulado por Teresa.
A reunião entre familiares e conhecidos, ocorreu numa noite na casa de Aurélio
Gardone. O narrador assim descreve a ocasião social: “Dosolina, solícita,
providenciara bancos para todos. Teresa cruzou com pupà e piscou o olho. O velho
Aurélio sorriu satisfeito. Era o primeiro filó que se fazia naquela casa, desde a morte
de Rosa, a pobrezinha.”
195
Nesta reunião, o jogo de cartas proposto por Aurélio para
a diversão dos mais velhos foi o quatrilho. Os homens mais jovens apreciavam o
jogo. As mulheres se acomodaram, ao redor do fogolar, e os seus assuntos
versaram sobre o crochê, o próximo casamento que seria de Dosolina e Bambina,
cunhadas de Teresa e sobre a comida e bebida a ser servida. Foi servido batata-
doce e pipoca, quentão e vinho. Aconteceu a primeira troca de olhares entre Máximo
e Teresa. Ainda durante as conversas, Teresa diz a prima Pierina que gostaria de
conhecer a sua casa.
A descrição do filó desvela aspectos tipicamente culturais da RCI. Os homens
se divertiam jogando cartas e as mulheres disputavam as prendas domésticas e
colocavam as notícias em dia. É interessante observar que, mesmo nos dias de
hoje, em pequenas comunidades rurais, permanece uma diferença nos modos de
lazer nos fins-de-semana. Enquanto que os homens jogam cartas nos bares, as
mulheres encontram-se na missa para a oração e troca de informações. Outro
aspecto cultural, se refere à questão gastronômica. Os alimentos e a bebida servida
194
Idem, p.33.
195
Idem, p.43.
77
é fruto do trabalho na terra. A cozinha é um lugar essencial na casa do imigrante, o
fogolar exerce um poder aglutinador, as pessoas ficam ao seu redor, cumprindo as
suas lidas diárias, bem como nos raros momentos de lazer. É, portanto, um lugar
que não cumpre apenas a função de serviço, é também o local de estar, dos
encontros sociais.
No retorno à sua casa, Pierina tem uma leve desconfiança a respeito das
atenções dispensadas por Máximo à Teresa, durante o filó. Essa dúvida se dissipou
quando lembrou: “beleza não põe a mesa. O pai cansava de dizer que os homens
namoram as bonitas, mas casam com as que sabem governar a casa.”
196
Ela se
julgava digna do marido que era instruído e muito bem apessoado, porque apesar de
não ser tão formosa,
[...] tinha a cabeça no lugar, porque não era avoada. Não ficava perdendo
tempo com bordados, crochês e coisas finas. Tinha as mãos grossas de
lavar, cozinhar, fazer o pão, tirar o leite. Desde menina sabia fazer tudo isso.
E que ninguém pensasse que era facial. Ela não queria se gabar, porque
isso é feio. Mas ninguém sabia governar uma casa como ela. Chão
limpo, panelas areadas, comida na hora. E no cabo da enxada ou foice na
mão não perdia para um homem.
197
(grifo nosso)
Assim, quando chegaram em casa, Mássimo abriu a porta da cozinha,
pendurou a lanterna e pediu um café bem quente com graspa. “A casa continuava
em ordem”.
198
Para Pierina, quando o marido repete as ações de costume ao chegar
em casa lhe confere a sensação de que nada mudou. O poder de gerenciamento da
casa está em suas mãos, isto parece lhe dar a certeza que ainda tem o domínio da
situação.
Como tinha sido tratado no filó,Teresa vai visitar a sua prima Pierina. Ao
chegar na casa, Teresa ficou aliviada por não ter encontrado Mássimo, e se
impressiona pelos cuidados que a prima tinha com a casa. Pierina oferece um c
à prima e:
Atiçou o fogo embaixo da chaleira e saiu, dizendo que ia colher umas folhas
de cidreira. Sozinha, Teresa distendeu as pernas e os braços e respirou
fundo. Sentou-se melhor. Fechou os olhos. Havia um cheiro de limpeza, o
calor era aconchegante, a chaleira chiava no fogo. Pierina estava de volta,
apressada, solícita.
196
POZENATO. Op.cit.(b), p.48.
197
Idem, p. 50.
198
Idem, ibidem.
78
Que bom que está na tua cozinha disse Teresa, sem nenhum esforço
para agradar. Sentia-se realmente confortável.
199
(grifo nosso)
O sentimento de Teresa reforça que a cozinha da casa do imigrante era, em
geral, um lugar confortável, acolhedor. Era também o lugar de recepção da casa,
cumprindo por isso, as funções de estar e serviço. Através da cozinha, tudo entrava
e tudo saía. Pierina convida a prima para ver o restante da casa.
Teresa acompanhou-a. A casa não era grande, mas via-se que era bem
construída. Tinha até mesmo janelas com vidraças. Atravessaram o
pequeno corredor que ligava a cozinha ao corpo da casa e entraram na
sala. Era uma peça bastante espaçosa, com três portas dando para os
quartos. No centro, a mesa, de pés torneados. Na parede maior, um armário
com portas de vidro, deixando ver nas prateleiras alguns copos e tigelas
floreadas.
Os móveis foram todos feitos pelo Mássimo. Olha estas cadeiras exibia
Pierina.
Teresa estava realmente encantada. Nunca tinha visto uma sala tão
bonita. Pierina, de mãos na cintura, saboreava ostensivamente os seus
olhos admirados. Teresa não fez questão de esconder o seu
encantamento. E não era apenas para se tornar agradável. Mais do que o
orgulho da prima, o que ela via naqueles veis era a mão do Mássimo.
Que coisas lindas ele era capaz de fazer. Como seria bom morar numa
casa assim.
200
(grifo nosso)
Durante a visita Teresa tem muitas surpresas:
Teresa entrou no quarto e prendeu a respiração. Antes que pudesse ver
qualquer coisa, foi atingida em cheio por uma nuvem cheirosa. Era um
cheiro forte, penetrante, diferente de todos os que até então sentia. Parecia
perfume, mas não era só perfume. O cheiro dele, pensou. Abriu as narinas e
respirou fundo. Sabia que pelo resto da vida não ia esquecer aquele lugar.
Sentia-se mesmo um pouco tonta, como depois de um copo de vinho. A
prima saboreou o seu ar embevecido:
Eu te disse que não tinhas visto nada. Olha os trabalhos de madeira na
cama. É puro cedro. Olha a cômoda. Cabe tudo nas gavetas e ainda
sobra lugar. O espelho veio especialmente de Porto Alegre. Mássimo não
disse, mas custou um dinheirão. Tudo aqui se fosse vender, dava um
bom dinheiro. Mas gosto é gosto.
Teresa olhou a prima e não disse nada. Que idéia mais tola essa de
pensar em vender tudo. De repente, estava imaginando que aquele era o
seu quarto, ela se arrumando no espelho.
201
(grifo nosso)
A casa construída por Mássimo apresentava a mesma configuração que a de
Aurélio, isto é, a cozinha era separada do corpo principal da casa. Conforme
Gutierrez:
199
POZENATO. Op.cit.(b), p.51.
200
Idem, p.52.
201
POZENATO. Op.cit.(b), p. 52.
79
Próxima à residência em alguns casos ligadas por uma cobertura situava-se
a cozinha, que servia de estar, lugar de convívio antes e depois das
refeições. Parece ser incorreta a interpretação de que era necessário
separar a área de dormir da cozinha devido ao perigo de incêndio; porém, é
certo que isto aconteceu.
202
A descrição do interior da casa de Pierina reitera que Mássimo, ao fazer os
móveis buscava a beleza, a sua motivação era estética. No entanto, para Pierina o
belo significava um poder, um status que agregava valor monetário aos produtos,
uma vez que poderiam ser vendidos por um bom dinheiro; os objetos eram tidos
como mercadoria, tendo mais significado material do que afetivo. Teresa, ao
contrário, atribuía aos móveis um valor afetivo, ao se imaginar morando numa casa
mobiliada daquela forma. Tanto que pede à prima:
Eu estava pensando se o Mássimo não podia fazer uma cômoda como
essa para mim.
Gostou de si mesma. A voz tinha lhe saído natural, como se fosse isso
mesmo que estava pensando.
– É só falar com ele – disse Pierina, sem entusiasmo.
Eu falo com ele. Fiquei apaixonada por essa cômoda. Nem que eu fique
um ano sem comer, quero uma igual.
– Por isso não – disse Pierina. – para ti ele é capaz de fazer de graça.
203
Mássimo chega em casa, ele e Teresa, fazem um acerto sobre a feitura da
cômoda. Teresa pagaria a madeira e Mássimo não cobraria pelo seu trabalho. A
visita de Teresa sugere uma aproximação dela e Mássimo. A cômoda, como
mobiliário da casa que serve para guardar coisas, adquire um significado simbólico,
ao guardar também o desejo de uma possível relação entre ambos. Como afirma
Bachelard: “o armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e
seu fundo falso são os verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta.”
204
Na continuação da história, surge uma novidade na casa de Aurélio, na qual,
moravam Teresa, Ângelo e todos os seus irmãos. Agostinho Gardone, com 19 anos,
irmão mais novo de Ângelo, pediu Adelaide Bertuol em casamento. Ângelo,
preocupado com essa situação reflete: “A colônia era pequena, não dava para todos.
O mais velho teria que ser o primeiro a procurar outro pedaço de terra. Era lei.”
205
A
alternativa era comprar uma outra colônia. A aquisição de uma área de terra, não
202
GUTIERREZ e GUTIERREZ. Op.cit., p.51.
203
POZENATO. Op.cit.(b), p. 53.
204
BACHELARD. Op.cit., p.91.
205
POZENATO. Op.cit.(b), p.62.
80
seria nada fácil, pois as terras disponíveis nas novas colônias estavam distantes de
Santa Corona. Aconselha-se com padre Giobbe que lhe sugere conseguir uma
colônia nas proximidades e não partir para as novas colônias e o personagem, nono
Cósimo lhe sugere ir a Caxias, procurar o seu amigo Roco, a fim de conseguir um
bom negócio. Ângelo decide morar em Caxias, seria mais fácil conseguir um bom
negócio e também um trabalho, na indústria ou no comércio. Ele e Teresa partem
de carroça para Caxias, com um destino certo, a pensão de Roco. Levavam consigo
uma arca com as suas roupas e sacos de milho, todos os outros seus bens foram
vendidos ao irmão Agostinho. Teresa reservou a cômoda para si, “por nada no
mundo se desfaria dela. Um dia viria buscá-la”.
206
Durante a emocionada despedida,
Teresa diz ao seu sogro Aurélio, que se o filho que está esperando for menina, se
chamará Rosa, em homenagem a sua avó.
Roco recebeu pessoalmente em seu albergue os novos hóspedes, Ângelo e
Teresa. Na hora do jantar, servido pela sua esposa, “Roco apostava com seu vizinho
de mesa que a estação do trem ia ser inaugurada antes do inverno terminar. O outro
duvidava. Mas os dois estavam de acordo que Caxias, de agora em diante, ia
mostrar o que era progresso.”
207
No final do jantar, Roco convida a todos a jogar
cartas. Teresa lembra que é seu costume rezar o terço, e não jogar cartas após o
jantar. Percebe que a esposa de Roco, acompanhada de uma outra senhora, iniciam
a reza do terço. Ela aceita jogar cartas para fazer companhia, mas se sente
constrangida.
No dia seguinte. Ângelo levantou cedo e foi até a Intendência para obter
informações sobre compras de terras, mas não obteve sucesso no tal órgão público.
Saiu a caminhar e ouviu uma conversa, “um homem falava em voz alta no centro de
um grupo. Dizia que com a inauguração do trem, daí a pouco mais de um mês,
Caxias ia se tornar a terra da promissão.”
208
Entrou em um bar e pediu um café.
Avistou pessoas estranhas e perguntou quem eram. “- Fazendeiros respondeu o
moço, olhando para o balcão. Fazendeiros? repetiu Ângelo, sem entender.
Sim, Fazendeiros. Criam bois e ovelhas. Têm muitas terras. Não são italianos como
nós. São brasileiros.”
209
Ângelo entendeu que era difícil encontrar terras para
206
Idem, p. 73.
207
Idem, p. 78.
208
POZENATO. Op.cit.(b), p. 80.
209
Idem, p.81.
81
comprar, pensou que o melhor, primeiro, seria procurar um trabalho, fazer economia,
e mais adiante procurar um bom negócio.
Na pensão, Roco conta à Teresa sobre outros atrativos da cidade, entre eles
o Clube, onde passam filmes à noite, as lojas e edifícios, incentivando-a a conhecer
a cidade. Enquanto Ângelo tenta resolver a questão do trabalho, Teresa se aventura
e sai para passear; se depara com a fábrica de Abramo e depois avista o Clube, e ali
é caçoada por algumas moças, sendo chamada de colona.
Ângelo e Teresa ao chegarem precisaram enfrentar uma nova realidade que
se apresentava; com certeza a vida na cidade era muito diferente da colônia, fato
que a princípio os deixou estupefatos. um contraste nos hábitos. Teresa ficou
admirada porque o terço ficou em segundo plano em relação ao jogo de cartas,
dando a impressão que na cidade tem mais o valor o prazer do que o dever. Ângelo,
por sua vez, ao encontrar os fazendeiros-brasileiros, percebe a diferença na sua
vestimenta, no seu tipo de atividade econômica, e fica impressionado por que o
ricos, mesmo sem cultivar a terra. Da mesma forma, a conclusão da estrada de ferro
cria uma grande expectativa, sobre o que esse avanço tecnológico poderia
proporcionar para a cidade de Caxias do Sul.
O ano de 1910, em que é inaugurada a estação férrea, marca o início da
segunda fase da evolução cio-lingüística e econômica, proposta por Frosi,
caracterizada por uma maior integração com a comunidade brasileira. Os italianos
adquirem mobilidade geográfica e social e, conseqüentemente, incremento na
economia. A presença do cinema também representa um avanço cultural para a
cidade.
Por conta das dificuldades encontradas e por estar grávida Teresa se
obrigada a retornar para Santa Corona, sendo que até Santa Vicenza, parte da
viagem, pode ser feita agora de trem. Na chegada é recepcionada por Aurélio, que
passa a ser chamado por ela de nono e não mais pupa, que em breve será avô.
Pierina, que também está grávida resolve visitar Teresa.
Teresa recebeu a prima com abraços e beijos, radiante. A ele estendeu a
mão, um pouco cerimoniosa. Mássimo assistiu, com ar distante, as trocas
de gentilezas das duas numa corrida para ver quem ganhava o filho antes.
Ele se sentia esquecido e um pouco irritado. Arrependia-se de ter vindo.
Finalmente Teresa pareceu lhe dar atenção:
– E o Mássimo, não tem nada para contar?
82
Ainda não me deram ocasião retrucou, sem esconder uma ponta de
irritação.
Viu que Teresa recolheu por um instante o sorriso, mas logo se recompôs:
– Vim visitar a minha cômoda. Estava com saudade dela.
Mássimo tratou de se mostrar mais cordial, com remorso da agulhada:
Muito obrigado pela parte que me toca. Eu estava com saudade era da
dona da cômoda. E o Ângelo, como vai? – acrescentou imediatamente.
Acho que vai bem. Batendo picareta nas pedras riu Teresa.
210
(grifo
nosso)
No reencontro das primas, aflora novamente um sentimento amoroso entre
Teresa e Mássimo, demonstrado no filó, quando ele diz claramente que tem
saudade da dona da cômoda. Simbolicamente, este móvel continua sendo o
elemento que possibilita os dois apaixonados manifestar veladamente os seus
sentimentos.
Enquanto isso, em Caxias, Ângelo continua trabalhando e está instalado
numa pensão mais barata do que a de Roco. Passado alguns meses recebe, no
mesmo dia, a notícia do nascimento da sua filha e de que Batiston, um comerciante
e proprietário de terras, tinha uma colônia à venda. Ângelo encontra-se com
Ambrósio Batiston na sua casa de negócio. A princípio o comerciante diz que não
tenciona vender a colônia porque queria colocar um moinho naquelas terras, mas
que dependendo das condições faria o negócio, e propôs:
[...] posso dizer que o preço é uma pechincha. O senhor mesmo vai
concordar quando conhecer as terras. São quarenta hectares, metade ainda
de mato.falei no rio, que vale ouro. E tem casa, paiol, estrebaria. Tudo
pronto para ir morar. É perto de Caxias. Três horas a cavalo. senhor
Gardone, que eu realmente não devia vender essa colônia. Não por menos
de cinco contos de réis.
211
(grifo nosso)
Ângelo Gardone fica fascinado com a idéia da compra e mesmo não tendo
todo o dinheiro, decide conhecer a colônia. Pensa que o único meio de adquiri-la
seria com a ajuda de um sócio. Volta para Santa Corona e faz a proposta de compra
da colônia, em sociedade, para Mássimo Boschini. Durante a explanação, Ângelo
fala de todas as vantagens do negócio, em que o único problema é que a casa
precisava de reparos antes de ser habitada, e diz a Mássimo:
Acho que entendeu. A única solução é comprar em sociedade. Pensei
em vocês, que também estão sem terra. Têm as terras do Beppe, mas não
210
POZENATO. Op.cit.(b), p. 99.
211
POZENATO. Op.cit.(b), p. 104.
83
é a mesma coisa. A gente trabalha os dois juntos, até pagar a colônia.
Depois divide, cada um com a sua escritura.
Mássimo ficou em silêncio, tirando a felpa imaginária da mesa. Olhou para a
mulher. Pierina estava atônita, respirava ofegante. Não era para menos.
Eu pensei assim: e continuou Ângelo A casa é grande. Depois de
arrumada, dá para duas famílias morar juntas. São só duas crianças.
Mássimo não acreditava no que ouvia. Aquilo era mais do que teria
sonhado. Na mesma casa com Teresa, e assim caído do céu, sem ele
movesse um dedo.
212
(grifo nosso)
Mássimo aceita ser cio, com a condição de que possa ser construído o
mais breve possível um moinho, para que, com os lucros dessa atividade, além das
colheitas, pudessem garantir o pagamento da dívida. Ângelo concorda e fala que
Teresa já havia aceito a proposta, inclusive, dela e a prima Pierina usarem a mesma
cozinha da casa. Pierina questionada pelo marido afirma: “– O que vocês resolverem
está bom – disse ela, obediente.”
213
Assim, depois de Gardone ter acertado com o Batiston que o valor total da
colônia seria de cinco contos de réis e que a entrada seria de um conto e
quinhentos, os dois novos sócios trataram de providenciar o conserto da casa e
plantar o milho, no período de setembro a dezembro, para que pudessem levar as
famílias para a nova moradia antes do Natal. O que acabou acontecendo, conforme
o plano traçado. Chegam em San Giuseppe e são recebidos pelos vizinhos Nane
Mondo e Santina. Depois de se acomodarem e jantarem na nova casa, assim o
narrados os sentimentos de Teresa:
À noite, exausta, Teresa podia sentir doendo cada parte do corpo. O menino
da Pierina chorava. Quando pôde enfim, ir para o quarto, estirou-se na
cama, sem mesmo tirar o vestido emprestado. Antes de apagar a lamparina,
contemplou demoradamente a sua cômoda. Ao lado, Rosa dorme no berço
feito pelo nono Aurélio. No quarto ao lado, Mássimo devia também estar
dormindo. Deu um suspiro de satisfação e apagou a luz. Ouviu então o
barulho do rio. Esta era a sua casa. Podia dormir feliz.
214
(grifo nosso)
Analisando os acontecimentos da história, percebe-se que a aquisição dessas
terras e dessa casa se reveste de múltiplos significados. O primeiro, mais evidente
do ponto de vista econômico, diz respeito a uma mobilidade, uma ascensão social;
os jovens casais passam a ter a sua própria propriedade, ao invés de morar em
terras de outrem Gardone morava na propriedade do pai e Mássimo na do sogro.
212
Idem, p.107.
213
Idem, p.108.
214
POZENATO. Op.cit.(b), p.113.
84
A posse de um pedaço de terra e da sua própria casa, sempre foi um objetivo
fortemente almejado pelos imigrantes e descendentes da RCI, demonstrado pelas
falas dos personagens, na primeira obra da trilogia.
Além disso, a casa para esses dois casais representou o “ninho”, que acolhe
a família. De acordo com Bachelard: “o benefício mais precioso da casa, diríamos: a
casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em
paz.”
215
Mássimo já havia pensado na alegria de estar morando na mesma casa com
Teresa, ainda quando o negócio estava por ser feito, e Teresa por sua vez fica
contente por ele estar dormindo no quarto ao lado. Pode admirar tranquilamente a
cômoda feita por ele, morar na mesma casa sugere que algo está para acontecer
entre eles.
De acordo com os planos, o moinho foi desenhado e construído sob a
orientação de Mássimo, com auxílio da comunidade San Giusepe, que será
beneficiada com a instalação desse empreendimento. Ângelo encontra uma maneira
de quitar a dívida, trabalhando na lavoura, com o serviço da moagem da farinha e
tomando emprestado o dinheiro dos colonos, pagando baixos juros, revelando a sua
veia de capitalista.
Na divisão das tarefas domésticas, Teresa ficou responsável pela cozinha e
de cuidar das crianças, enquanto Pierina fazia a limpeza e arrumação da casa,
considerado o serviço mais pesado. Mássimo ficou responsável pelo moinho e
Ângelo com o resto, e pelas transações fora de San Giuseppe. Da maneira como as
coisas ficaram acomodadas, criaram-se oportunidades para os encontros de Teresa
e Mássimo, que iniciaram no moinho, instalado próximo ao rio, e que culminou numa
ardente paixão. Pierina, em casa, sem desconfiar do romance do marido com
Teresa, divaga:
A Teresa estava demorando. Era sempre assim. Quando saía, para ir até o
rio, ou na casa de algum vizinho, parecia que não ia mais voltar. A Teresa
não era de ficar em casa, como ela. Até era melhor, assim não ficavam as
duas se empurrando. Duas mandando na mesma casa não certo. No
começo ela tivera receio, até chegara a pensar em ter tudo separado. Mas a
prima deixara a casa por conta dela e se encarregara da comida, e assim
ficou. Uma o metia o nariz no que a outra fazia. Varrer, lavar, esfregar o
chão, ninguém fazia melhor do que ela. [...] Também ele e o Ângelo tinham
dividido as tarefas. Um cuidava do moinho e o outro do resto, e o que
ganhavam era de todos. Nem numa família, pensou Pierina, as coisas
poderiam dar tão certo. Não podia acreditar que os dois estivessem
215
BACHELARD. Op.cit., p.26.
85
brigados. Se a escritura não saía é porque ainda não era a hora.
216
(grifo
nosso)
O pensamento de Pierina revela que o poder é uma prática social e que
circula nas relações sociais. O fato de cada cônjuge ter as suas atividades bem
definidas, e não sobrepostas, proporcionava a cada um o domínio sobre um
determinado espaço. Esse esquema, na idéia de Pierina, parecia funcionar. Havia
um conjunto de ações de uns sobre os outros, sem aparentar conflitos no exercício
do poder. Na comunidade italiana, os papéis masculinos e femininos eram muito
bem definidos, competindo ao homem as tomadas de decisão relativas a negócios,
ao tipo de atividade agrícola. Ele detinha o dinheiro na mão e o rendimento das
safras estava sob a sua administração. Para a mulher, restava, aparentemente,
apenas o domínio da casa e do e o seu entorno. Fazia a lida doméstica, cultivava a
horta, tratava dos animais, e também trabalhava na roça. No entanto, exercia o seu
poder de forma velada, dando opiniões, por vezes decisivas, e vendendo os
produtos coloniais produzidos por elas, a fim de arrumar alguns trocados. A
preocupação de Pierina, em relação à feitura da escritura era pertinente, pois ela
sabia que tal documento garantiria a posse legal da terra e das benfeitorias.
Ampliando os negócios, Ângelo se torna sócio de Stchopa, proprietário do
armazém da localidade. No dia da festa de San Giuseppe, padre Gentile conversa
com Ângelo, considera-o uma pessoa bem sucedida na localidade, convida-o para a
diretoria da igreja, e também aproveita para comentar sobre a necessidade de
construção da nova igreja. Ele aceitou a proposta do padre, essa nova posição
apesar de contabilizar despesas, não previstas, também lhe garantiria status social.
Teresa, logo após a festa de San Giuseppe, vai a Caxias levando consigo a
sua filha Rosa, colocando em prática o plano de fuga que vinha sendo articulado por
ela e Mássimo meses. Ângelo pensava que a esposa estava visitando os
parentes em Santa Corona. Mássimo, com o pretexto de fazer as compras
necessárias para o Moinho e para o armazém, parte para Caxias na companhia de
Stchopa. Teresa o aguardava havia dois dias, no Hotel Menegotto.
Quando chegaram na cidade, observaram nas ruas o movimento das
carroças, dos cavaleiros e das carruagens. “Na praça da igreja, em frente ao Hotel
Menegotto, amarraram as mulas. Mássimo quisera que Teresa esperasse bem
216
POZENATO. Op.cit.(b), p.140.
86
instalada no melhor hotel de Caxias.”
217
Teresa recebe Mássimo na portaria, e
quando Stchopa viu os dois de braços dados ficou pálido, assustado. Mássimo
mandou que ele fosse cuidar dos negócios e que estivesse à uma hora da tarde na
estação de trem. Ele, Teresa e Rosa, almoçaram na casa do velho Roco. Na
estação de trem, Stchopa já os aguardava. Mássimo foi incisivo com o sócio dizendo
a ele que não retornariam a San Giusepe e que não tinham destino certo. “Quando
deu o sinal de embarque, abraçou Teresa e deu-lhe um longo beijo na boca. Era a
última lembrança que queria deixar deles. Fizesse o Stchopa bom uso dela.”
218
Stchopa chega a San Giusepe à noite. Ainda em estado de choque, é
recebido por Gardone que estava dormindo e se sente incomodado. Stchopa conta o
que viu, Ângelo atônito manda-o embora. Com o barulho, Pierina levanta e Ângelo
conta a notícia. Numa mistura de sentimentos de raiva, dor, espanto, ambos estão
atônitos, não imaginavam que um dia isso pudesse acontecer. Depois de blasfemar,
“No silêncio, Ângelo chegou a temer que a casa, em castigo, caísse por cima dele.
Acabava de desafiar o céu, a santa mãe de Deus. Para o seu espanto, nada
aconteceu.”
219
Pierina, mesmo diante da dor, tem uma postura pragmática:
E agora? Agora não adiantava querer tirar leite da orelha da vaca. A casa
caiu e pronto. O jeito era erguer tudo de novo. O marido quis ir ao diabo,
que fosse! Ela nada tinha com isso. Ele que acertasse as contas com
Deus. Quem faz por sua cabeça, paga do seu bolso. Para ela, Mássimo
estava morto e enterrado. Não tivessem morado na mesma casa, até
ontem, era capaz de jurar que ele não existia. Não ia tirar o leite de orelha
de vaca. Saberia pôr cada coisa no seu lugar.
220
(grifo nosso)
A história teve uma grande repercussão na comunidade. Pierina e Ângelo
continuam morando na mesma casa, e Joanin que trabalhava no moinho, filho dos
vizinhos, Santina e Nane Mondo, passou a morar com eles. Padre Giobbe, que não
estava em San Giusepe, recebe um bilhete escrito por seu sobrinho, entregue por
Roco a Cósimo, que por sua vez o entregou ao padre. Os dois conversam:
É uma história meio cabeluda, padre vigário. Parece que o seu sobrinho
roubou a mulher do Gardone e fugiram. Pegaram o trem até Porto Alegre e
de iam para São Paulo, Rio de Janeiro, Argentina. Não sabiam, ou não
quiseram dizer. Almoçaram na casa do compadre no dia em que foram
217
POZENATO. Op.cit.(b), p.156.
218
Idem, p. 158.
219
POZENATO. Op.cit.(b), p.158
220
Idem, p. 165.
87
embora. O Roco disse que estavam muito contentes. Pareciam estar
casados há tempo.
Imagino, imagino disse o padre Giobbe. Quer dizer que o caso vinha
de longe?
Não sei, isso não sei retrucou o velho Cósimo, ajeitando os bigodões
brancos. – Sei que eles moravam todos na mesma casa, os dois casais.
Padre Giobbe apoiou a mão no queixo, estupefato:
– Não me diga, Cósimo. Não me diga.
Eles saíram daqui acertados assim tornou o velho. E a proposta, se
não me engano, foi do Gardone.
E esse Gardone quis saber o padre Giobbe continua morando na
mesma casa com a, com a, com a outra?
– Com a Pierina? Não sei, mas acho que sim. Eles só tinham uma casa.
221
(grifo nosso)
Ao final da conversa, Cósimo acrescenta:
Nunca tinha visto uma história como essa comentou o velho Cósimo se
despedindo. – parece um jogo de quatrilho.
– Jogo de quatrilho? – perguntou o padre sem entender.
Sim riu o Cósimo. Cada mão de cartas, troca de parceiro.
222
(grifo
nosso).
Diante desses acontecimentos e da reviravolta que se sucede na história, a
casa tem um papel decisivo; foi um elemento facilitador para a concretização do
romance. A casa, ao mesmo tempo que garantia o abrigo, a segurança, a
estabilidade, poderia se tornar, também, um embuste, uma armadilha. Bachelard,
metaforizando, escreve: “assim como casas que são ciladas, há conchas
armadilhas.”
223
Assim como as conchas, as casas se abrem e se fecham, elas
abrigam e expulsam, há sempre um vai e vem de vivências e sentimentos.
Ângelo Gardone e Pierina Boschini passaram a viver maritalmente, e Joanin
retorna a sua casa. Padre Gentile não aprova, e aconselha Gardone a afastar-se de
Pierina. Isso não acontece. Pierina engravida e ambos pensam sair de San Giusepe.
O padre Gentile articula um movimento para que na comunidade ninguém mais faça
negócios com Gardone, e o destitui da diretoria da igreja. Essa atitude do padre os
isola da comunidade, forçando Ângelo a buscar negócios em outras localidades. A
situação fica insustentável para o casal. Pierina, antes da missa, em que todos
estavam presentes, dirigiu-se à sacristia e enfrenta corajosamente Gentile, no seu
desabafo, o chamou de padre falso devido a sua maledicência em relação ao casal.
221
Idem, p.175.
222
Idem, p.179.
223
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.135.
88
Gardone é obrigado a permanecer fora de San Giusepe por vários meses, em
busca de alternativas para os seus negócios. Pierina fica em casa sozinha com os
quatro filhos. Num desses dias,
À noite, com as crianças acomodadas na cama, viu uma lanterna que se
aproximava. Pegou a espingarda no prego e apagou o lampião da
cozinha. Agachada atrás do fogão, ficou esperando. O primeiro que
arriscasse a entrar, pelo menos levava uma carga de chumbo. Com o
coração saltando pela boca, ouviu as vozes se aproximando. Alguém
disse:’acho que ela já foi dormir’. Parecia a voz da Santina.
– Pierina – ouviu então – está acordada?
Reconheceu a voz do vizinho, o Nane Mondo. Assim mesmo não
respondeu. Aquele cachorro era igual aos outros.
– Pierina! – Chamou Nane Mondo, de novo.
– Pára aí senão eu atiro – gritou Pierina, sentindo o corpo todo arrepiado.
– Calma, Pierina – gritou Nane Mondo. – É de paz!
– Então vem devagar. Um por vez – gritou ela.
Pierina esperou uma eternidade. Sentiu a boca seca. De repente o Nane
apareceu na porta da cozinha, com as duas mãos erguidas, a lanterna
iluminando o rosto.
– Onde é que está, Pierina? – perguntou, assustado.
Espera disse ela. Levantou-se de trás do fogão e caminhou para a
porta, sem largar a espingarda.
224
(grifo nosso)
A casa de Pierina subjetivamente sofre uma transformação, de abrigo, ninho,
passou a ser o palco da cilada, e agora adquire ares de fortaleza. Como um reduto,
a casa mantém seguros os seus habitantes. Concordando com a visão de
Bachelard, “o refúgio contraiu-se. E, mais protetor tornou-se exteriormente mais
forte. De refúgio passou a reduto. A choupana transformou-se em fortaleza da
coragem para o solitário que nela deve aprender a vencer o medo.”
225
Pierina guarda
a sua espingarda, atende os seus vizinhos que puderam ir visitá-la, depois que o
padre Gentile mandou dizer que terminou o tempo do castigo para o casal. Pierina
diz que o casal tem a idéia de comprar um armazém e morar em Caxias, o que
acaba ocorrendo.
O último capítulo da obra “O Quatrilho” inicia na casa nova de Pierina e
Ângelo, localizada no centro da cidade, com um almoço oferecido justamente ao
padre Gentile, enquanto ela se arruma no seu quarto, reflete:
Afinal de contas, tinham construído uma das melhores casas de
Caxias. Toda de pedra e tijolo com dois andares, portão de ferro trabalhado,
enfeites em cima da porta e das janelas. Ela mesma gostava de parar na
224
POZENATO, Op.cit.(b), p.193.
225
BACHELARD. Op.cit., p. 62.
89
frente, do outro lado da rua, para ficar admirando. E era a sua casa que
todos olhavam com inveja.
226
(grifo nosso)
Do seu quarto se dirigiu à sala:
Passou à sala, fazendo a última inspeção. Tudo estava em ordem.
Nenhum pó nos móveis, os sofás alinhados, o espelho brilhante. Na sala de
jantar, contemplou orgulhosa, os copos de cristal enfileirados sobre a toalha
de linho, os pratos em porcelana inglesa, os talheres de prata. Tudo
brilhava. Pierina gostava de coisas brilhantes. Ia passar à cozinha, para ver
como estava a empregada com o almoço, quando ouviu tocar a campainha.
Sorridente, retornou à sala.
227
(grifo nosso)
O padre Gentile é recebido por Pierina e ao dar a bênção na casa diz: “- Bel
che fato anunciou, retornando à sala. Mas que bonita casa! Meus parabéns!”
228
Pierina se sente vitoriosa e ao apresentar os filhos diz: “– Estes dois disse
apontando são os mais velhos. Esses são Boschini, o Lourenço e o ximo. Os
outro sete são Gardone. Os meus sete pecados capitais – acrescentou ferina.”
229
Em
seguida o almoço foi servido.
230
Padre Giobbe, que mora com padre Gentile, na canônica do centro da cidade,
recebe uma bela carta de Teresa contendo uma foto da família: Mássimo, Rosa e
seus dois outros filhos. A mãe de Teresa, Giulieta, que nesse momento se encontra
na casa canônica, diz sentir-se culpada pela situação, por Teresa ter sido fruto de
uma relação fora do casamento. Padre Giobbe a consola e lhe absolve. Mário, o
jovem padre o chama para o almoço. Pensa que seria uma oportunidade para contar
essa história ao jovem, como entretenimento e como lição. Finalizando o romance,
padre Giobbe, introspectivamente, analisa:
Mas que lição? Era uma história incomum, e exatamente por isso sem
sentido. Importantes eram as coisas que todos vivem e que, de tão comuns,
nunca vêm à tona. Pensando melhor, não contaria essa história ao padre
Mário. E a mais ninguém.
231
226
POZENATO. Op.cit.(b), p. 203.
227
Idem, ibidem.
228
Idem, p. 204.
229
POZENATO. Op.cit.(b), p. 204.
230
Através da breve descrição dos ambientes (há um refinamento nos objetos), o número de filhos
do casal (partiram de San Giusepe com quatro filhos e agora fazem parte da família nove filhos), a
revelação da personagem Pierina ao padre Gentile, que está com quarenta e cinco anos, o uso da
campainha pelo padre (a energia elétrica chegou em Caxias em 1913), pode-se deduzir que o
romance que teve seu início na década de dez, chega ao seu desfecho na década de trinta.
231
POZENATO. Op.cit.(b), p. 211.
90
A casa de Pierina e Ângelo, em Caxias, representa o máximo que um
imigrante poderia conseguir. Ao saírem do espaço rural para o urbano fazem uma
grande mudança de hábitos, de atitudes, de comportamento, na casa tudo passa a
ser mais refinado. A casa simboliza o status social alcançado. No aspecto
construtivo, faz parte do período do apogeu. Os espaços são bem definidos e cada
um corresponde a uma função, a sala corresponde ao social, o quarto ao íntimo e a
cozinha ao serviço. O período corresponde a segunda da fase da evolução sócio-
lingüística e econômica, em que um expressivo desenvolvimento econômico, a
casa representa a prosperidade de alguns imigrantes italianos.
Dessa forma, no romance “O Quatrilho”, os aspectos subjetivos, relacionados
ao espaço de habitar, são predominantes em relação aos aspectos objetivos. A casa
passa por mudanças; primeiramente atende as necessidades fisiológicas e de
segurança, depois de pertinência e de estética. A casa que abrigou os protagonistas
da história, se mimetiza, é um ninho, o abrigo das famílias que se transforma numa
armadilha para o casal de amantes, para depois tornar-se uma fortaleza, protegendo
aquela que foi traída, pela prima e pelo marido. E por fim, a casa construída na
cidade, representou a virada do casal sobre todas as adversidades. Revestida do
mais belo, do bom e do melhor, é um troféu que podem exibir à sociedade, como
símbolo de uma vitória.
3.4 A babilônia
O último romance da trilogia continua, dando seqüência ao segundo livro,
retratando o destino dos casais que trocaram de parceiros, e a vida dos seus filhos,
representantes da terceira geração dos imigrantes italianos. O romance, “A
babilônia”,
232
voz às questões políticas e ideológicas, atinentes a RCI, enfocando
o cenário nacional e internacional. Tem como pano de fundo o capitalismo instituído
nessa sociedade. O romance sugere estar ambientado no período 1934 a 1942,
232
Grande confusão ou algazarra em que todos falam e ninguém se entende.
91
iniciando no período de realização de uma Festa da Uva,
233
em Caxias do Sul, e
termina mencionando a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
A história começa mostrando a vida cotidiana do personagem padre Giobbe,
o mesmo que encerrou “O Quatrilho”, com suas reflexões a respeito da natureza
humana. Padre Giobbe, de idade avançada, mora na casa canônica com o padre
Gentile, seu único compromisso é rezar a missa matutina no hospital e atender os
doentes. Com dificuldades de andar, utiliza um Ford modelo 1930, guiado por
Ambrósio, para ir a o hospital. No retorno da sua missão, padre Giobbe, podia
ouvir o rádio ligado na casa canônica:
Padre Giobbe detestava o rádio, mas não tinha como fugir da tortura. O
silêncio, com o qual se acostumara a vida inteira, não existia mais em lugar
nenhum. As pessoas não sabiam mais viver sem algum barulho atordoando
os ouvidos. Quando o nego Gentile estava em casa ouvia os noticiosos
de todas as estações. Quando ele não estava era a empregada quem ouvia
músicas o dia todo, pela “onda sonora da Rádio Mayrink Veiga, do Rio de
Janeiro”. De tanto ouvir, até ele aprendera de cor alguns sucessos do
carnaval, a marchinha “morena, linda morena que me faz penar, a lua cheia,
que tanto brilha, o brilha tanto como o teu olhar”. Mas essa era do ano
anterior. O sucesso de 1934 era o “O orvalho vem caindo”, de Noel Rosa.
234
O padre Giobbe ainda podia ouvir pela voz do speaker: “‘Sua casa ainda não
tem telefone?! Ele é uma exigência da vida moderna’. Na mesma voz empolada, em
que pôs um tom sarcástico, padre Giobbe retrucou: Nossa casa tem telefone!
temos vida moderna!”
235
Durante a primeira refeição do dia, os padres conversam
sobre questões políticas internacionais, padre Giobbe ainda guarda algumas
atitudes dos tempos de penúria.
O Cônego Gentile tomou um café frugal e levantou-se da mesa avisando à
empregada que não voltaria para o almoço. Padre Giobbe tornou a encher a
taça com leite e café. Juntou os farelos de pão, no prato e na toalha, com a
ponta do dedo, e levou-os à boca. Não era fome. Nem excesso de
economia. Apenas um cacoete adquirido no tempo em que nada podia ser
jogado fora, porque podia fazer falta no dia seguinte. Os tempos eram
233
“Caxias inaugura hoje a IV Festa da Uva, glorificação justa e magnífica do trabalho agrícola dos
seus habitantes e mostra admirável, ao mesmo tempo, do adiantamento e da perfeição que atingiu
a vitivinicultura na zona colonial italiana. Revive, assim, a bela cidade colonial, a pompa das festas
helenas a Dionisius e a alegria rumorosa e pitoresca com que o velho Lazio comemorava a
vindima para agradecer a Baco a colheita opina e ao vinho generoso” (Diário de Notícias, Porto
Alegre, p.12, fev.1934). RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza. Festa & Identidade: como se fez a
Festa da Uva. Caxias do Sul: EDUCS, 2002, p.99.
234
POZENATO, José Clemente. A babilônia. Caxias do Sul: Maneco, 2006 (c), p.12.
235
POZENATO. Op.cit.(c), p.13.
92
outros, eram tempos de fartura, mas a ponta dos dedos não esquecia a
fome passada.
236
(grifo nosso)
O progresso assistido por padre Giobbe, não é obra do acaso, as tecnologias
existentes decorrem a partir das necessidades do homem, das descobertas
científicas e da consolidação do capitalismo como sistema econômico. Na década
de 30, o automóvel, o rádio e o telefone, estavam a serviço de muitas pessoas na
RCI, período correspondente a segunda fase do processo sócio-econômico e
cultural, demarcada por Frosi, em que um crescimento econômico na região,
dado pela comercialização e industrialização dos produtos agrícolas. “No âmbito
interno da região, muitos colonos prosperam e atingem um nível econômico elevado,
urbanizam-se.”
237
É o caso do casal Gardone: Ângelo e Pierina deixaram de morar
na colônia e faz cerca de vinte anos que estão na cidade. A família mantém alguns
costumes da vida rural mesclados com os da vida urbana:
Pierina ia aproveitar o dia para comandar uma faxina geral na casa. Ontem
tinha chegado ao fim sua tarefa de verão: fazer a marmelada, num tacho em
cima de tijolos, nos fundos da casa. O tacho ficava na sombra das árvores,
mas assim mesmo ela quase cozinhava junto com o figo, a uva, o marmelo.
Era uma semana de sacrifício. Mas fazia por gosto. Atrás da casa tinha
quase todas frutas de que precisava, como na colônia. [...] Do trabalho não
tinha medo. Para ajudar tinha a Ignes, uma menina que trouxera da colônia
para criar, e basta. Uma vez por semana pagava faxineira. Precisava, a
casa era grande, não dava conta sozinha. As filhas tinham que estudar,
aulas de piano, francês, sempre cheias de compromissos.
238
Numa manhã, em sua casa, Pierina recebe dona Gervársia que deseja ter
uma conversa em particular. As duas se dirigem ao quarto, para que a faxineira não
possa escutar a conversa. Pierina mostra com orgulho o novo mosquiteiro bordado
que mandou comprar em Porto Alegre. Por sua vez, dona Gervásia oferece produtos
de beleza da marca Coty para Pierina, que diz não precisar. No entanto, o que a
conhecida vem realmente dizer a Pierina é que o seu filho mais velho, Lourenço
Boschini, que estuda Direito em Porto Alegre, é comunista. Pierina fica apavorada, e
no dia seguinte se dirige a a canônica para conversar com o padre Giobbe. Ela
pretende que o padre alguns conselhos para o seu filho Lourenço, que está de
férias acadêmicas.
236
Idem, p.16.
237
FROSI, Op.cit.(a), p.38.
238
POZENATO. Op.cit.(c), p. 17.
93
No mesmo dia, como de costume, após o jantar com toda a família,
constituída de dois enteados, e seus sete filhos com Pierina, Ângelo Gardone se
dirige a uma saleta, que chamava de escritório. Pensa que os negócios na sua
empresa de produtos alimentícios estavam indo bem, apesar da crise mundial,
ocasionada pela queda da bolsa em Nova Yorque. Observou que havia sido
marcado no jornal um anúncio de venda de telefone, e pensou:
Pierina, ou algum dos filhos, estava em campanha para ele colocar um
telefone dentro de casa. Não iam convencê-lo tão fácil, isso era um luxo
sem necessidade. Na firma, sim. Hoje em dia era impossível fazer negócios
sem telefone. Ficaria comendo a poeira dos concorrentes.
‘Abandonada’, dizia o anúncio. Estava falando para as mulheres:
‘abandonadas na ilha’. Presas em casa. Era um truque de vendedor.
Esperto, muito esperto. Convencia a mulher, a mulher convencia o marido,
vinha o telefone para dentro de casa, as vizinhas ficavam sabendo, não iam
suportar o ciúme, iam querer o seu. Desde que comprara as terras do
Batiston, por cinco contos de réis, aprendera muito sobre como funcionava o
comércio, não ia cair nessa lábia. Pierina teria caído? Na colônia, no meio
do mato, aquilo sim era viver abandonado. Em caso de morte, tinha o
sino para dar aviso. Pierina nunca tinha sido de luxos, de despesa sem
necessidade, por que ia agora querer telefone dentro de casa? Só para falar
com as amigas? Nem tinha tantas amigas. Mas enfim, ela podia estar
precisando mostrar que era moderna. Em poucos anos até ele, que vivia
na roça, tinha se acostumado com automóvel, com gramofone, com
eletrola, com geladeira, com rádio. Nem conseguia mais imaginar
como dava para viver sem tudo isso.
239
(grifo nosso)
Constata-se, a partir da narrativa, que a casa de Ângelo e Pierina é equipada
com os aparelhos existentes na época e acessíveis a uma determinada classe
social. Ângelo, ao expressar que não sabe como viviam sem essas modernidades,
sugere que está adaptado ao meio urbano. A existência dos aparelhos elétricos
denuncia, igualmente, a existência de circulação de mercadorias, produzidas no
Brasil e no exterior. O seu rádio, a sua geladeira, provavelmente seriam das marcas
Zenit e General Eletric, produtos importados. Pierina também incorporou hábitos
urbanos, como o de poder contar como auxílio de uma empregada; suas filhas
não ajudam nos serviços diários, como acontecia na colônia, elas devem freqüentar
aulas de música e língua estrangeira. Para Pierina, o seu universo era a sua casa.
Os acessórios da casa podem ser comprados em Porto Alegre, e é possível
adquirir um telefone. A casa acolhe funções mais específicas, não apenas existe o
espaço social, mas também o social íntimo, como por exemplo, o escritório de
Gardone.
239
POZENATO. Op.cit.(c), p.29-30.
94
O personagem Ângelo Gardone, vivendo na cidade, agora podia contar com o
conforto que os avanços tecnológicos proporcionavam, nem ele mais se imaginava
vivendo como no passado. Pierina entra no escritório, serve o chá, e diz estar
preocupada com o Lourenço. Ângelo se refere ao enteado, como fosse realmente
uma ameaça, uma vez que Lourenço havia lhe perguntado como havia sido a
partilha dos bens dos casais quando se separaram. Para Ângelo, os que partiram,
Teresa, sua legítima esposa, e Mássimo, legítimo esposo de Pierina, não teriam
direito ao capital adquirido.
No dia seguinte, Pierina convence Lourenço a conversar com padre Giobbe
sobre o comunismo, e que ele visitar a fábrica do seu pai, a Productos
Alimenticios Gardone. Lourenço pensou em dizer a sua mãe que o seu pai era um
Boschini, e não um capitalista explorador, mas achou melhor acatar os pedidos da
mãe. Ao visitar a fábrica constatou as práticas de exploração adotadas em relação
aos empregados, o que conhecia apenas na teoria.
Durante a Festa da Uva, realizada na praça Dante Alighieri, Lourenço
Boschini conhece Sílvia, professora em San Giuseppe e filha de Mário Stranieiro,
comerciante conhecido de seu padrasto. Na praça “os artigo exibidos, dos vinhos à
cutelaria, eram mostra da pujança das colônias, do trabalho tenaz do imigrante
italiano, alardeava a propaganda da festa.”
240
A significativa produção mostrava que
estava surgindo em Caxias uma classe operária. “O programa anunciava para o fim
da tarde um corso de automóveis e batalha de flores. Mas nada disso lhe despertava
interesse. Sílvia parecia ter mudado todas as coisas de lugar na sua hierarquia de
preferências.”
241
Depois de ter participado ativamente da festa, vendendo cestinhos de uvas e
atendendo os visitantes, Sílvia chegou em casa tarde da noite:
Na cozinha não havia mais fogo, apenas o cheiro de cinza quente, mas a
luz estava acessa para esperá-la. [...] A água da chaleira ainda estava
morna, podia fazer uma salmoura. Arrastou a gamela de madeira para perto
do banco, jogou nela um punhado de sal grosso e despejou água.
242
Enquanto lvia descansava os pés na salmoura, todo tipicamente
utilizado pelos imigrantes italianos para relaxar depois de um dia extenuante, tia
240
POZENATO. Op.cit.(c), p.45.
241
Idem, ibidem.
242
Idem, ibidem.
95
Bela entra na cozinha e conversa com Sílvia, perguntando como tinha sido o seu
dia. Sílvia acaba revelando que conheceu um rapaz chamado Lourenço.
A Tia Bela, com quarenta anos, assim chamada pelos sobrinhos, morava no
Rio de Janeiro, e veio a Caxias participar da Festa da Uva. Casou-se aos dezesseis,
teve uma filha, e logo descobriu que o seu marido era um aventureiro. Não restando
outra solução para o seu caso, decidiu ir morar com a filha no Rio de Janeiro e
comar uma vida nova. “Como tinha sido o pai, ela era agora também uma imigrante
recomeçando a vida em outro lugar no mundo.”
243
Por ocasião do banquete oficial da
Festa, sentam-se próximas na mesma mesa, Tia Bela, Sílvia e Pierina. Conversam
sobre o Rio de Janeiro, e Sílvia diz a Pierina ter conhecido o seu filho.
Gardone participa de uma reunião dos que são adeptos ao fascismo de
Benito Mussolini. Diziam que os homens de negócios deviam estar metidos na
política. Na hora do almoço, Lourenço pergunta ao padrasto: “- Quer dizer que
temos um novo fascista na cidade?”
244
E a discussão assim prossegue depois de
trocarem farpas e de Ângelo dizer que exigia respeito na sua casa, e que nela não
havia lugar para comunista.
Sua Casa? prosseguiu Lourenço friamente. Esta casa é tanto dos
Gardone quanto dos Boschini. Tenho tanto direito nela como o senhor.
– Esta casa é da família Gardone. E não vai ser entregue aos vermelhos.
Então tentou rir Lourenço Boschini como sempre suspeitei, estou na
família errada. Vou procurar minha família certa.
– Já vai tarde – berrou Gardone, descontrolado
.
245
Lourenço sai de casa e se dirige a praça procurando o banco onde teve a sua
primeira conversa com Sílvia. Sentia ter rompido de vez as amarras com seu
mundo pequeno-burguês. Estava pronto para ser um revolucionário.”
246
Decidiu ir até
a casa de Sílvia, disse ter sido expulso de casa por Ângelo, e comenta que vai se
instalar na Pensão Central, e que não aceitaria dinheiro dos “velhos”.
A saída de Lourenço de casa demonstra uma mudança de valores. Não tem
receio de enfrentar o padrasto, que tem convicções contrárias as suas. A disputa
pela posse da casa revela que o espaço de habitar, mais uma vez passa pela
questão da relação de poder. A definição dos legítimos herdeiros gera uma celeuma.
243
Idem, p. 59.
244
POZENATO. Op.cit.(c), p.70.
245
Idem, p. 71.
246
Idem, p.72.
96
Lourenço querendo fazer justiça, diz que a casa é de todos, no entanto, Gardone,
ignorando as leis, crê que a propriedade lhe pertença de direito e de fato. Para
Lourenço, permanecer na casa significaria aceitar os conceitos do padrasto; ao
invés, sair de casa, significa uma ruptura dos padrões capitalistas. A casa, para ele,
perdeu o valor de pertinência.
Lourenço passa a morar na Pensão Central e conhece Justino Andreani,
ex-seminarista, que trabalhava como caixeiro em uma loja, mas tinha um gosto
especial pelas palavras. “Economizava agora para comprar uma máquina de
datilografia. As palavras adquiriam um brilho novo em letra de máquina.”
247
No transcorrer da história, na casa de Gardone:
Quando Ângelo na hora do chá, depois da janta, abriu diante dela a caixa
com o telefone novo, Pierina teve certeza. Ele tinha mesmo outra mulher.
Olhava o aparelho preto e brilhante, mas essa idéia martelava a sua
cabeça. Então era verdade.
– Não gostaste? Achei que ias gostar. Pediste diversas vezes.
– Gostei, gostei. Estava fazendo falta – fez ela sem entusiasmo.
Ângelo fechou a caixa, desenxabido. Pierina deu de ombros e voltou para a
cozinha. Não ia esconder o que sentia. Era uma tristeza grande, muito
grande, e vontade de chorar que nem criança.
Pierina percebe que Gardone tem amantes, pensa numa possível separação,
mas como o casamento não foi legalizado, sabe que perderá tudo com essa
dissolução. Sílvia procura Lourenço na pensão Central, e ele lhe diz que o seu
compromisso era com a revolução do proletariado e que não poderia assumir um
relacionamento com ela. Terminada a Festa da Uva, retorna a rotina, Sílvia retoma
suas atividades como professora em San Giusepe e Lourenço se instala na pensão
Amazonas, em Porto Alegre, e consegue um emprego no jornal. “Mudou-se para o
quarto da pensão, com a cama, o guarda-roupa de duas portas e a mesa minúscula.
O banheiro era no fim do corredor. O quarto ficava no topo de uma escada com os
degraus gastos.“
248
O lugar era fétido, cheirava a mofo e a urina, Lourenço se depara
com essa nova realidade. Na sua trajetória de comunista convicto, irá habitar em
várias pensões. Esse espaço de habitar transitório atende apenas as necessidades
fisiológicas e de segurança. Nele não são encontrados os valores de amor,
pertinência e muito menos de estética.
247
Idem, p.76.
248
POZENATO. Op.cit.(c), p.105.
97
Em Caxias, Sílvia perde o seu pai, que se suicida. Ele foi velado na sua
própria casa. Após o enterro,
Sílvia trancou-se no gabinete. Assim o pai chamava a saleta onde tinha
seus papéis e seus livros. Eram muitos livros, uma estante cheia. Por isso a
saleta era também chamada de a biblioteca. Sílvia lera todos ou quase
todos eles. Era a única dentre os cinco irmãos a se interessar pela biblioteca
do pai e talvez por isso escolhera ser professora, seu o pai achara difícil
demais par uma mulher ser advogada.[...] Sílvia sentou-se à escrivaninha
com um suspiro. Ali estavam o tinteiro, a caneta e o mata-borrão em linhas,
tristes, de repente abandonados por seu dono.
249
Da mesma forma como os cômodos da casa, os seus objetos também
guardam significados. É o espaço da biblioteca com seus livros que possibilitam uma
aproximação, mesmo se imaginária, de Sílvia com o seu pai que partiu. Bachelard
refere que: “a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na
narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se
interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos.”
250
As memórias de um casa
“transportamo-nos ao pais da infância imóvel, imóvel como imemorial. Vivemos
fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de
proteção.”
251
Após o falecimento do pai, Sílvia visita Lourenço em Porto Alegre. Depois de
jantarem e assistirem um filme, ele a deixa no Hotel dos Viajantes. Um outro
acontecimento triste abala a cidade. Padre Giobbe vem a falecer e é considerado
um santo pela comunidade. No seu velório estavam presentes os representantes de
todas as facções “partidários do fascismo, do integralismo, do getulismo e até
mesmo do comunismo.”
252
Lourenço retorna a Caxias com o codinome de Bruno Boeira, encontra-se
novamente com Sílvia na pensão Central; estava indo em missão para o Rio de
Janeiro e Sílvia deu-lhe o endereço da Tia Bela. Antes de chegar a seu destino,
deseja conhecer a casa do seu pai Mássimo Boschini, em São Paulo:
O trem parou na Estação da Luz rangendo os freios. Bruno Boeria saiu para
a gare fartamente iluminada, que fazia a noite clara como o dia, conforme a
predição de Thomas Edison. Eis uma grande cidade industrial moderna,
pensou, com seu modo de penetrar em mundos desconhecidos com
249
Idem, p.114-115.
250
BACHELARD. Op.cit., p.25.
251
Idem, ibidem.
252
POZENATO. Op.cit.(c), p.127.
98
segurança. Um conceito bem definido clareava a realidade mais que as
lâmpadas elétricas. Eis uma cidade industrial moderna, com seu brilho
ostentatório e, nas sombras, a luta de classes. Esse brilho dava ao
proletariado a ilusão de estar usufruindo as benesses do progresso
capitalista, e portanto criava a alienação. Mas por outro lado revelava do
quanto era capaz o trabalho humano.
253
O progresso da cidade de São Paulo impressiona o personagem; instala-se
na pensão Universal, próxima da estação e obtém o endereço de seu pai na
companhia de Força e Luz. No quarto da pensão “além da cama de ferro com o
cobertor cinza, havia o criado-mudo, e no canto, a mesinha com jarra de água, bacia
e sabão. Os lençóis estavam limpos, talvez não fossem comidos pelos percevejos.
Estirou-se na cama e acendeu um cigarro.”
254
O narrador apresenta mais uma
descrição do espaço de habitar transitório a pensão que parece estar em
melhores condições do que a de Porto Alegre.
Lourenço “chegou na Barra Funda no final do dia. O endereço que obtivera
na Força e Luz coincidia com o de um sobrado de janelas verde, pequeno jardim na
frente e portão de ferro. Parecia-se com todos os sobrados da rua.”
255
É recebido por
Teresa, seu pai está na cidade a negócios; além de Rosa conhece seus outros dois
meio-irmãos Aurélio e Guilherme. Conta à Teresa que Pierina casou com Gardone,
e à noite ele janta com a família.
Deixa São Paulo e segue para o Rio de Janeiro, cidade que, para ele, “não
era como São Paulo, que avançava em todas as direções como um polvo
monstruoso, que a gente não ia nunca conseguir abraçar. O Rio era como que um
punhado de cidades pequenas.”
256
Dirigiu-se logo para a Ilha do Governador, onde
morava tia Bela. Encontrou uma casa branca, de janelas azuis e com árvores ao
redor. Na conversa com tia Bela, ela lhe conta como adquiriu a propriedade
juntamente com o seu marido.
Dei a entrada e depois trabalhei como doida, dia e noite, bordei e bordei
para fora, Antônio ajudando. Hoje está tudo pago. A casa é nossa.
– Uma bela casa – cumprimentou Lourenço.
Quando se quer muito uma coisa completou ela se consegue.
257
(grifo nosso)
253
Idem, p.140.
254
Idem, p.142.
255
POZENATO. Op.cit.(c), p. 144.
256
Idem, p. 154.
257
Idem, p. 160.
99
A personagem tia Bela, ao empenhar-se ao máximo para adquirir a sua
propriedade, demonstra ter herdado o legado cultural dos seus antepassados. O
desejo pela posse da terra e de ter a sua casa, é o mesmo dos imigrantes italianos.
Leva consigo o valor da propriedade impresso pela cultura, mesmo estando fora da
RCI. Por este comportamento, pode-se inferir que as pessoas, ao mudarem de um
lugar para outro, tendem a levar consigo a sua bagagem cultural.
Lourenço permanece no Rio de Janeiro, por conta das suas atividades
políticas e hospeda-se num pequeno hotel no centro. Tem a oportunidade de
conhecer o líder Prestes. Com a perseguição política em torno dos comunistas, ele
foge para Santa Maria, e se refugia de casa de Tovar, seu colega de faculdade,
onde soube que Prestes teria sido preso. Desmotivado pelo desfecho dos
acontecimentos do Partido Comunista, Lourenço decide ir para a Guerra Civil na
Espanha, e Tovar se encarrega de angariar fundos com a família Gardone,
afirmando que a verba seria destinada para a saúde de Lourenço, que necessitava
de uma cirurgia. Com a ajuda de Justino Andreani, Tovar obtém os recursos para a
viagem de Lourenço. Após a partida de Lourenço, Sílvia não recebe mais notícias
suas, e sem esperança de revê-lo, casa com Esteves Ribeiro de Alencar, funcionário
público.
Com a ausência de Lourenço e a debilidade física de Gardone, Máximo
Segundo assume os negócios da empresa do padrasto. Pierina no seu devaneio,
pensa no presente e lança um olhar para o futuro:
Desde que Máximo Segundo começara a trabalhar com o pai na firma,
parecia ter vontade de ser o dono sozinho. Isso era bom, alguém precisava
gostar do negócio. Mas ia dar encrenca, era certo que ia dar encrenca. O
Ângelo já não estava bom, não respirava direito, mais. E ela também estava
virando um caco. No dia que os dois faltassem, adeus família. Ia ser um
para cada lado. Igual a esse mundo de hoje, onde ninguém mais se
entendia.
258
(grifo nosso)
Pierina, na sua intimidade, começa a ter consciência de que os tempos
mudaram, há uma multiplicidade de idéias, a vida não é mais linear; o mundo
parecia uma verdadeira babilônia, “onde ninguém mais se entendia.”
258
POZENATO. Op.cit.(c), p. 203.
100
Com o falecimento de Gardone, Máximo Segundo Boschini, de estilo esnobe,
se torna o mais jovem empresário da cidade. Preocupado com a herança chama o
advogado:
– Doutor Alfredo. Espero que traga boas notícias.
Não há boas notícias sem más notícias rio o advogado, sentando e
abrindo a pasta de documentos. – Por onde começamos?
– Quero saber da herança.
O falecido não fez disposições de última vontade. Quer dizer, não deixou
testamento. De modo que temos a lei para seguir. As regras da partilha
estão em lei. A herança fica para os herdeiros legítimos.
– Trocando em miúdos, como fica?
É complicado. A sua família é um caso atípico. Abriu um largo sorriso,
como se estivesse fazendo um elogio. – A dona Pierina, por exemplo. Não é
cônjuge. Nem ela seria herdeira. A herdeira seria a outra, a njuge
legítima.
– Teresa Besana Gardone.
– Isso. Com os filhos também é a mesma coisa. O senhor, por exemplo, não
é filho do falecido...
– Não, mas é como se fosse. Sempre fui tratado por ele como filho.
259
O advogado esclarece que a herança seria dividida entre as legítimas
herdeiras, a esposa legal do falecido Teresa Besana Gardone e sua filha Rosa
Gardone. Lourenço por sua vez, depois de suas peripécias na Europa, e com o fim
da Guerra Espanhola, retorna por Montevidéu e se dirige à Porto Alegre, onde se
encontra com Afrânio, colega de faculdade e de partido, que lhe comunica o
falecimento do seu padrasto e que existe uma possibilidade de trabalho em Caxias
como redator de um jornal. Lourenço vai a Caxias e procura a sua mãe:
Pierina estava sentada na cozinha, junto ao fogão a lenha, com um
cobertor enrolado nas pernas. Era triste ficar assim, parada, sem fazer
nada. Mas estava um traste. Depois do reumatismo, tinha agora essa
tremedeira na mão. Não era mais capaz nem de segurar direito uma xícara.
Entre um cochilo e outro lembrava coisas da vida. Não é que quisesse
lembrar. As lembranças vinham sozinhas, as boas e as ruins. Por sorte,
mais as boas que as ruins. Era o que a consolava.
A cozinheira acendeu a luz. No inverno anoitecia mais cedo. Quando era
moça gostava disso, sobrava mais tempo par aos trabalhos de casa. Agora
não gostava mais. As noites ficavam compridas demais, pareciam não
terminar nunca. Quando se tem trabalho, o tempo passa ligeiro. Era uma
tristeza não poder fazer nada.
Elza entrou na cozinha. era sua filha caçula e a que mais lhe fazia
companhia. Os outros não paravam em casa.
Mãe, está uma pessoa que a senhora vai gostar de ver.
260
(grifo
nosso)
259
POZENATO. Op.cit.(c), p. 223-224.
260
Idem, p. 230.
101
A princípio Pierina tem um pouco de dificuldade de reconhecer o filho, pois
está com problema de visão, mas o reconhece pelo seu cheiro característico. É
Lourenço. Passa a mão pela sua testa e uma cicatriz, ele diz que é a marca da
cirurgia, mas na verdade era uma bala que lhe havia passado de raspão durante a
sua participação na Guerra. Lourenço fica morando com a família Gardone, trabalha
como advogado para o sindicato dos trabalhadores e como redator do jornal “A
Hora”, fica sabendo que Sílvia casou, e ela, em contrapartida, toma conhecimento
que ele retornou e que estava solteiro. O derradeiro encontro da mãe com o filho
Lourenço, o militante comunista que vagou pelo país e participou de milícias no
estrangeiro, quando retorna, se dá na cozinha. A cozinha aparece, novamente na
narrativa, como local onde, além das alquimias culinárias, ocorrem os desencontros
e os encontros. Apesar das transformações da sociedade, o fogão, na casa do
imigrante italiano, continua sendo o elemento que atrai e que agrega.
O jornal em que Lourenço passa a trabalhar se manifestava como um veículo
de comunicação inovador e dinâmico, a sua linha política apoiava a ditadura do
Estado Novo, que pregava a nacionalização de tudo que tivesse traço estrangeiro. O
narrador assim descreve a situação sócio-política da época em Caxias do Sul:
A cidade, nascida de imigrantes pouco mais de cinqüenta anos, tinha
muito caminho a andar antes de se tornar “brasileira”. Todos pareciam
andar esquecidos de que durante metade desses anos, nem escola em
língua nacional existia para os filhos de imigrantes. Agora havia pressa.
Escrevia-se contra as escolas que ensinavam em italiano. Exigia-se o fim
dos sermões em língua “estrangeira”. Fazia-se chacota contra a língua
“bastarda” que falava nas ruas da cidade, em concorrência com a língua
nacional. Clamava-se ferozmente pelo fechamento dos jornais em língua
italiana. Cobrava-se com boa dose de fúria, que as professoras pusessem
de castigo que falassem italiano bastardo no pátio das escolas. Mas onde a
verberação chegava ao ponto de fervura era na campanha pelo fim dos
nomes estrangeiros em lugares públicos e logradouros. Uma cidade que
tinha na praça central o nome de Dante Alighieri, que tinha uma rua Itália,
um rua Mântua, um hotel Roma daria, ao ilustre visitante ou amável touriste,
a falsa idéia de estar entrando em uma cidade estrangeira.
261
A campanha de nacionalização imposta pelo governo também afeta as
comunidades da RCI. Segundo Frosi:
[...] o uso da língua portuguesa torna-se obrigatório. Ela passa a ser o
instrumento lingüístico a ser usado na comunicação, na escola, na igreja, na
vida em sociedade, em todo o lugar. Ela é língua oficial, adquire ‘status’,
261
POZENATO. Op.cit.(c), p. 241-242.
102
ganha prestígio como língua nacional e passa a exercer uma função
niveladora.”
262
As pessoas que o adotassem a Língua Portuguesa eram invariavelmente
perseguidas e excluídas socialmente.
No Café Sport, Lourenço e Justino, seu amigo e redator de um jornal
concorrente discutem sobre o cenário mundial, as imagens do exército nazista
invadindo a Polônia podiam ser vistas no cinema Apolo, o assunto era quanto tempo
essa guerra ira durar, e se o Brasil acabaria envolvido.
Enquanto Lourenço se preocupa com as questões políticas, Mássimo
Segundo trata de resolver a questão da herança. No período do afastamento do
irmão mais velho foi designado como inventariante, e por sugestão do advogado, a
solução legal de tomar a posse de todos os bens seria o de contrair matrimônio com
a única herdeira legítima, Rosa Gardone. Máximo e seu advogado providenciam a
vinda das herdeiras legítimas a Caxias do Sul. Ficaram hospedadas no Hotel
Menegotto, o mesmo que serviu de palco para fuga de Teresa e Máximo Boschini,
há muitos anos atrás.
Diante desse fato, Lourenço propõe a mãe Pierina que faça um acordo com
as herdeiras. Idéia refutada por ela, crê que tem direito sobre o capital que ajudou a
construir. Nesse ínterim Lourenço pede demissão do jornal “A Hora” e recebe uma
proposta de trabalho para dar aula de francês na mesma escola em que Sílvia
trabalha. O resultado do processo sobre a herança de Gardone, resultou depois da
aprovação do juiz, Rosa Gardone como legítima herdeira, em vista de não ter sido
aceita a proposta de Teresa de nomear Lourenço como gestor da sua parte. É
conferido a Máximo plenos poderes sobre o mandato de gestão da empresa. A
pedido de Máximo, o advogado Alfredo mostra a Lourenço o documento final a
respeito da herança. Lourenço decide que não pode mais dividir o mesmo teto com
o irmão.
Pierina não quis concordar.
– Mas vai se mudar por quê? A casa está quase vazia.
– O problema não é a casa. O problema é o Máximo.
Santo Deus! - afligiu-se ela. Brigaram de novo? Mas vocês o irmãos.
Não custava se entenderem. É por causa da herança?
Lourenço não respondeu.
262
FROSI, In: MAESTRI. Op.cit., p.62.
103
Deviam ao menos pensar na mãe de vocês. Estou uma velha, quase sem
poder caminhar, quase cega das vistas.
– O Máximo vai cuidar da senhora, mãe.
– Não é a mesma coisa.
E não era. Então alguma coisa começou a aparecer no fundo da sua
lembrança. Uma conversa, tempo atrás, em que o Lourenço dizia que ela
devia fazer um acordo com a Teresa, aquela vaca, senão perdia tudo. E ela
dizendo que perdia tudo, mas não chorava. Sentiu uma palpitação ruim.
– Me diz, Lourenço. Fiquei sem nada?
Lourenço outra vez não respondeu.
– Perdi também esta casa.
– Sim, mãe. Ficou sem nada, sem casa, sem nada.
Tinha feito promessa de não chorar, mas desta vez não conseguia segurar
as lágrimas. Tanto esforço para terminar assim. Passou por seus olhos um
monte de lembranças.
263
(grifo nosso)
Pierina lembra com amargura de todos os seus sofrimentos físicos e morais.
O quanto foi desprezada em San Giusepe, “trabalho dela e do Ângelo para fazer
tudo o que tinham. Para agora ficar sem ter onde cair morta”.
264
Ela pergunta a
Lourenço:
– Ficou com quem então, a casa? Com aquela...?
Com a Teresa? Não, mãe. A Teresa não quis nada. Ficou para a filha, a
Rosa.
Pierina fez um muxoxo de desdém. Imagine se aquela vaca ia perder de
ficar com a casa. A história não estava bem contada. Mas, enfim, não ia
nem se importar com isso. Precisava era saber onde ia morar.
– A filha dela vai me tirar daqui?
– Não mãe. Não vai.
– Vai me cobrar aluguel? Não tenho com que pagar.
Não ninguém vai lhe cobrar aluguel. O seu filho não vai tirar a senhora
daqui.
– Qual filho?
– O Máximo. Quem mais poderia ser?
– Como é que sabes?
É ele que administra, que manda nos negócios. E depois, ele vai casar
com a Rosa.
Pierina sentiu o coração parar, e começar a bater de novo.
– Eles vão casar?! – perguntou, precisava ouvir de novo para acreditar.
– Estão se acertando.
Pierina ficou com um na cabeça. Não sabia dizer se isso era bom ou era
ruim. Mas parecia ser bom. Afinal juntava tudo de novo, o que era dele e do
Ângelo. Mas como ficavam os outros?
265
Lourenço diz a Pierina para falar com Máximo Segundo como ficaria a
situação dos irmãos, e a mãe diz ao filho para que pode partir e cuidar da sua vida.
Depois de Lourenço levar os seus pertences, livros e roupas e se despedir, Pierina
sente que esse era o seu filho mais amado, e “nunca tinha se sentido tão sozinha. E
263
POZENATO. Op.cit.(c), p. 289.
264
POZENATO. Op.cit.(c), p.290.
265
Idem, ibidem.
104
lhe vinha uma idéia, que girava e girava dentro dela: porque Deus não a levava
agora? Não tinha mais nada a fazer neste mundo.”
266
Ao deixar pela segunda vez a casa da mãe, dessa vez por outros motivos e
triste por tomar essa decisão, percebe que é um tempo de mudanças. Aluga uma
casa de madeira, numa rua chamada Itália; ali iria abrir o seu escritório de
advocacia. Decide desligar-se do Partido Comunista Brasileiro, em uma reunião do
partido em Porto Alegre, ao apresentar o seu pedido de desligamento é proposta a
sua expulsão pelos seus correligionários que ele mesmo referenda.
Na escola em que Sílvia trabalha e Lourenço é professor de Língua Francesa,
os dois encontram-se, ele conta que abandonou o partido, que sente muita
saudades dela, Sílvia por sua vez também diz ter muita saudades. Na cidade alguns
acontecimentos se sucedem por conta da política de nacionalização, até é proposta
a troca do nome da praça Dante Alighieri
267
para praça Rui Barbosa.
268
Em sua casa, Lourenço encontra dificuldades com as atividades domésticas,
era um dia de sábado, e a empregada não viera,
[…] depois de diversas tentativas, conseguia estabelecer um padrão para
a quantidade de e a temperatura da água. Não era fácil viver sozinho,
sem ter quem cuidasse dessas tarefas minúsculas mas decisivas. Como
não começar o dia de mau humor se o café saísse aguado, ou morno?
269
Naquela manhã, redigia uma petição sobre a herança que “baseava-se na
acusação de esbulho e no pedido de restituição. Alimentava pouca esperança de
que o argumento prosperasse, mas era a única forma de tentar salvar direitos dos
nascidos depois da separação dos casais legalmente unidos.”
270
A luta de Lourenço
para realizar as mais simples tarefas domésticas retrata quanto o espaço doméstico,
na RCI, era de domínio feminino. Os papéis atribuídos ao homem e a mulher eram
muito bem determinados: para o homem era reservado o mundo dos negócios e o
intelectual; e para a mulher, a casa, o seu entorno, chegando no máximo a exercer a
profissão de professora, considerada uma atividade feminina.
266
Idem, p. 291.
267
Poeta italiano que escreveu a Divina Comédia. Nasceu em Florença, em 1265, e faleceu em
Ravenna, em 1321.
268
Escritor e expoente da vida intelectual e política brasileira. Nasceu em Salvador, em 1849, e
faleceu em Petrópolis, em 1932.
269
POZENATO. Op.cit.(c), p. 305.
270
Idem, Ibidem.
105
O narrador assim anuncia um rigoroso inverno em Caxias:
Aquele inverno de 1942 tinha tudo para ficar na história. Nevadas jamais
vistas cobriram a cidade. Todos os ângulos da praça, todas vistas da cidade
foram fotografados, vestidos de branco. A população inteira, crianças e
adultos, saiu às ruas encarniçadas guerras de neve. Festas de neve, na
realidade.
Esse inverno ficaria também na lembrança da cidade pela declaração de
“estado de guerra” ao Eixo. Na noite da notícia houve foguetes e uma
passeata tentou agitar as ruas, apesar do frio de gelar os ossos.
271
Com a declaração de guerra do Brasil ao Eixo, representado pela Itália,
Alemanha e Japão, o país, liderado por Getúlio, se coloca a favor dos Aliados e
acaba enviando para a Itália um corpo expedicionário. Devido a essa posição
política tomada pelo Brasil os descendentes de italianos são perseguidos, e tudo o
que lembrasse a italianidade era duramente censurado, como exemplifica a narrativa
“falar em italiano, ou cantar as velhas canções trazidas pelos imigrantes, é tratado
como crime”.
272
Caxias passa ser a cidade dos perseguidos e dos perseguidores, a
arbitrariedade da polícia não tem limites, e, na história, rumores que na empresa
Productos Alimentícios Gardone pessoas estão presas nos porões. Lourenço vai
falar com o juiz, denunciando o caso, e este monta um esquema para verificar a
existência do cárcere privado. Encontram preso o integralista Carlo Petacci, acusado
por ter pendurado na estátua da Liberdade da praça Dante um cartaz “O tenente me
prendeu”.
Máximo Segundo, que estava em Porto Alegre quando da descoberta do
cativeiro, não gostara da idéia do doutor Alfredo de deixar a polícia usar o fundo do
galpão, tão pouco aprovara a atitude do irmão de levar o juiz até lá. E pensa que “o
certo é que tendo dinheiro não se ia para a cadeia. Dinheiro era o melhor negócio do
mundo.”
273
Depois que terminasse a guerra pretendia comprar um carro alemão, um
Mercedes-Benz, mas “o que lhe dera água na boca tinha sido um Nash 1940,
enorme inteiramente vermelho. Um automóvel imponente
274
que tinha visto nas
revendas em Porto Alegre. Não podia se queixar da guerra; com a carestia, a sua
empresa se transformara numa fábrica de dinheiro. A farinha de trigo triplicou de
271
Idem, p. 310.
272
POZENATO. Op.cit.(c), 319.
273
Idem, p.327.
274
Idem, p.326.
106
preço. Além disso, ficou noivo da Rosa, mas não lhe agradava a idéia de
casamento.
Nesse entrevero, Lourenço faz algumas reflexões sobre a sua experiência de
vida, e a sua relação com Sílvia. Ao abrir o seu Diário de Guerra percebe como o
nome dela está lá, escrito muitas vezes:
De repente, Lourenço ouviu um ruído de xícaras vindo da cozinha. Não
podia ser a empregada. Não era seu horário de trabalho. Gato também não,
a não ser que algum gato de rua tivesse encontrado a porta dos fundos
aberta. Ou um ladrão. Mas ladrão não ia entrar interessado em xícaras. Em
todo o caso, não era bom arriscar. Pegou no fundo da gaveta o revólver que
dera com ele a volta ao mundo. Pela fresta da porta vi quem era. Sílvia,
cheia de cuidados procurava alguma coisa na cozinha. Ode café, talvez.
Guardou o revólver no cinto, atrás das costas, e pensou em entrar. Mas
desistiu. Deixaria para ela imaginar que lhe estava fazendo uma surpresa.
ante retornou para o escritório e guardou a arma. Minutos depois
ouviu passos e Sílvia apareceu na porta com uma bandeja e duas xícaras
de café.
– Serviço de mucama – anunciou ela, feliz.
Bem eu me pareceu ter ouvido barulho na cozinha brincou ele.
Cheguei a pensar que fosse ladrão.
– E quem te garante que não sou ladra?
275
Sílvia serviu o café, e viu sobre uma mesa o “Diário da Guerra da Espanha”;
pediu a Lourenço se poderia olhá-lo. Ele assentiu ao pedido. Após conhecer a
intimidade do seu diário “caminhou até ele, apertou o seu rosto contra os seios e
deu-lhe um beijo na cicatriz da testa. Depois, pegou-lhe a mão e o arrastou atrás
dela para o quarto. Lourenço se esqueceu de si, do tempo, e do espaço.”
276
Depois
de muitos contratempos eles parecem poder viver com intensidade um desejo
acalentado muitos anos. A casa simples, de madeira, é além do abrigo, o ninho
do amor de Lourenço e Sílvia. O conceito de Bachelard sobre a casa-ninho justifica
a narrativa e confirma um valor subjetivo do espaço de habitar,
A casa-ninho nunca é nova. Poderíamos dizer, de um modo pedante, que
ela é o lugar natural da função de habitar. Volta-se a ela, sonha-se voltar
como o pássaro volta ao ninho, como a ovelha volta ao aprisco. Esse signo
de volta marca infinitos devaneios, pois os regressos humanos acontecem
de acordo com o grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os
anos, que luta pelo sonho contra todas as ausências. Nas imagens
aproximadas do ninho e da casa repercute um componente íntimo de
fidelidade.
277
275
POZENATO. Op.cit.(c), p. 333.
276
Idem, p. 334.
277
BACHELARD. Op.cit., p.111.
107
Após esse encontro, Sílvia pede o desquite a Esteves, o que para ele não era
surpresa, pois havia notado a aproximação dela e Lourenço. Facilita as coisas e
pede transferência para outra cidade. Sílvia volta a morar na casa da mãe, e a sua
avó lhe aconselha a ir embora de Caxias. Corre o processo de desquite de Sílvia
que continua se encontrando discretamente com Lourenço.
Numa manhã, estando em sua casa Lourenço é avisado por Ignes que a dona
Pierina morreu e pergunta à empregada da sua mãe como ela havia falecido.
– A dona Pierina morreu mais foi de desgosto – disse Ignes de repente.
Por quê? interessou-se Lourenço. Ele podia ter parte nesse desgosto.
Ignes estivera sempre ao lado da mãe e podia avaliar.
Ela não se conformava de ter perdido a casa. Vivia dizendo: depois de
tudo o que fiz, ficar morando em casa dos outros, parece castigo. De vez
em quando ela estremecia. Eu perguntava: o que foi, dona Pierina? São os
meus pecados, dizia, estou pagando os meus pecados. Mas que pecados, a
senhora não tem pecado nenhum. Ela me olhava e dizia: tu não sabes de
nada, eu é que sei. Era assim.
278
(grifo nosso)
Como Máximo Segundo viajou para Porto Alegre, Lourenço assume os
cuidados do velório e do enterro, mas ao chegar na casa da sua mãe, as primeiras
providências haviam sido tomadas. O caixão estava disposto sobre a essa,
com as velas acesas e cercado de flores. A mãe tinha o rosto tranqüilo, com a coroa
de cabelos grisalhos, cobertos por um véu de renda preta, e os olhos fechados. [...]
E o rosário enrolado nas mãos cruzadas sobre o peito.”
279
O ritual do velório transcorreu conforme os costumes da Região Colonial
Italiana; foi servida comida para os presentes, massa, brodo, bem como os aspectos
religiosos eram seguidos à risca, a benção do padre, o terço sobre as mãos do
defunto, as velas acessas. A sala, o espaço de habitar com função social, amplia o
seu uso, passa a receber os conhecidos e também desconhecidos da família. O
velório também é um acontecimento social.
A vida para Pierina não tinha mais sentido desde que perdera a casa.
havia manifestado o desejo de morrer, como Ignes contou, ela “morreu de
desgosto”. Perder a casa era perder o poder sobre o espaço doméstico, o único
poder que tinha. A essa ruína material estavam associadas, tantas outras
278
POZENATO. Op.cit.(c), p. 340.
279
Idem, p. 341.
108
frustrações, a traição de Máximo, depois a de Ângelo, a sua indisposição com a
figura clerical, os conflitos dos filhos mais velhos, e a sua crescente debilidade física.
Concordando com Bachelard,
Nosso objetivo está claro agora: pretendemos mostrar que a casa é uma
das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e
os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o
devaneio. O passado, o presente e o futuro dão a casa dinamismos
diferentes, dinamismos que não raro interferem às vezes se opondo, às
vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta
contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela o
homem seria um ser disperso.
280
(grifo nosso)
Durante o velório, Silvia procura Lourenço. Combina um encontro no quarto
que era dele, no andar superior da casa. Quando lá chegam diz ter um assunto sério
a tratar. Conta que o seu desquite foi homologado e que decidiu sair de Caxias.
Encaminhara a transferência para lecionar no Rio de Janeiro e morar na casa de Tia
Bela que a esperava. Mostrou-lhe então o telegrama recebido: A MINHA CASA EH
TUA CASA PT TRAZ JUNTO FIGURINHA DIFICIL VG BEIJOS PT TIA BELA”
281
Sílvia, muito contente, diz que tem mais uma coisa importante para dizer:
– A maior novidade eu não falei. Adivinha o que é.
Lourenço não precisou adivinhar. Leu dava para ler, na alegria que
transbordava dela. Pousou a mão no ventre de Sílvia, onde estava o seu
filho ainda em botão, e foi escorregando até ficar de joelhos, o rosto
afundado nela. Sílvia mergulhou os dedos em seus cabelos e ele se sentiu
fundido como o mundo numa única peça. Mundo que não era uma
babilônia.
282
No desfecho da história, na intimidade do quarto, uma revelação, uma
nova história começa para o casal Sílvia e Lourenço, mesmo estando em tempo de
guerra, o relacionamento entre eles parece ser genuíno, nem tudo é uma babilônia.
A casa acolhe os sentimentos e intenções mais profundas.
Ela mantém o homem através das tempestades da vida. É corpo e é alma.
É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo”, como
professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da
casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande berço. A vida
começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa.
283
280
BACHELARD. Op.cit., p.26.
281
POZENATO. Op.cit.(c), p. 343.Grafado conforme a obra.
282
Idem, ibidem.
283
BACHELARD. Op.cit., p. 26.
109
Na mesma casa, o cenário pode ser de morte e de vida. Na casa de Pierina, o
seu velório no andar térreo, e no superior o anúncio de uma nova vida. A casa
emoldura o ciclo da vida que se refaz. Depois de diversos encontros e desencontros,
com mil peripécias, o romance é concluído no espaço doméstico.
Essa obra, então, no que diz respeito ao espaço de habitar do imigrante
italiano, coloca em evidência, de um lado, a casa de Ângelo e Pierina, como aquela
que representou o auge da ascensão social, é uma casa grande, equipada com os
últimos aparelhos que a tecnologia da época poderia oferecer.
Em contrapartida, mostra o espaço de habitar transitório de um dos
protagonistas, Lourenço, que mora em pensões, casa de amigos e até em um
alojamento em trincheira de guerra. É a morada transitória, passageira, como é
passageiro esse período da sua vida de militante político. A narrativa sempre indica
o local onde o personagem está instalado. Primeiro as pensões em Caxias, em
Porto Alegre, e São Paulo, a casa do pai, na capital paulistana, a casa de tia Bela no
Rio de Janeiro, novamente a pensão no Rio, hotéis, a casa do amigo em Santa
Maria, o alojamento de guerra na Europa, e o retorno à pensão em Porto Alegre.
Ainda, as saídas da casa da mãe, por duas vezes, a primeira por motivo político, e a
na segunda por um desentendimento com seu irmão, por causa das questões de
herança. Por fim, ele se instala em uma casa alugada, também caracterizada por um
espaço transitório. São espaços que respondem as necessidades de abrigo e
segurança, não atendendo as questões de pertinência e tão pouco de estética.
A casa de Pierina e Ângelo, por questões legais de sucessão de bens, após o
falecimento de Ângelo, passa a ser propriedade de sua filha legítima, Rosa. Pierina,
ao perceber que não mais possui nenhum bem, nem a sua casa, espaço sob o qual
detinha o poder, deseja morrer. A casa a qual era atribuía o sentido de status, já não
mais tinha para ela significado, não era mais sua. A casa que respondia as
necessidades de abrigo, segurança, indicava o sentido da pertença e também o
estético, de um momento para o outro, perdeu todas essas qualidades. Pierina
sentiu-se “um ser disperso” ao não ter mais o seu espaço de habitar, e por isso
prefere morrer.
Observa-se nessa obra a construção e a desconstrução do sentido do espaço
de habitar; primeiro a casa do imigrante economicamente bem sucedido, representa
110
o auge do que pode ser conquistado, para, após, significar a perda, a dispersão, a
falta de sentido para viver. Do ponto de vista objetivo, a casa continua existindo,
representa o período do apogeu da arquitetura, é um ícone, no entanto,
subjetivamente, ela parece não mais existir para a pessoa que morou tantos anos
nela, por não ser mais de seu domínio. A casa perdeu o significado de morada, de
lar. Isso denota o quanto os aspectos subjetivos o relevantes, não são visíveis,
todavia, podem alterar radicalmente o significado do espaço de habitar, da
segurança para a instabilidade, da pertinência para a perda total.
No entanto, nesse mesmo espaço, onde se pode assistir ao rito de despedida
de um ser humano, é possível também ser anunciada uma nova vida. O ciclo da vida
se repete, e a casa do imigrante se constitui em testemunha de muitas histórias, das
diversas gerações que a habitaram.
111
4 A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DE HABITAR ATRAVÉS DA ICONOGRAFIA
Após ter sido realizada a análise das obras literárias, nas quais foi possível
identificar a transformação do espaço de habitar através da narrativa ficcional do
romance, neste capítulo, procura-se analisar algumas imagens da casa do imigrante
italiano, a fim de averiguar a possibilidade de se reconhecer a transformação do
espaço de habitar, também através das imagens. O domínio icônico deste trabalho é
constituído de fotografias e representações gráficas de casas dos imigrantes
italianos, abrangendo o arco temporal do período das edificações provisórias até as
permanentes, de 1875 até meados de 1940, que constitui também, em média, o
período em que se desenrola as narrativas ficcionais estudadas.
Ulpiano Meneses destaca que as fontes visuais (iconografia) deveriam ser
vistas como enunciados, e que os historiadores deveriam considerar a fotografia
como parte viva de uma realidade social.
284
Sendo assim, o tratamento dado ao
domínio icônico, ou seja, a seleção das imagens a serem apresentadas, foi realizada
a partir do critério da transformação do espaço de habitar do imigrante italiano, do
ponto de vista visual e funcional, ocorrida em um determinado tempo. O mesmo
autor prossegue afirmando que “as imagens não têm sentido em si”
285
e que devem
estar sempre relacionadas a problemática histórica. Assim são apresentadas
imagens das casas representativas dos períodos primitivo e permanente, que
sofreram modificações na medida em que a economia, na RCI, também se alterava.
Neste trabalho as imagens são tratadas como ilustrativas e esclarecedoras,
não competindo com os textos tanto de cunho histórico e nem tão pouco como os
textos literários. Busca-se, uma ligação entre o texto e a imagem, entendidos como
sendo linguagens distintas, mas complementares. Apresenta-se inicialmente o texto
de um historiador e imagens que fazem referência ao mesmo, para depois observar
visualmente a transformação da casa do imigrante italiano e, na medida do possível,
buscar uma aproximação entre a imagem e o texto literário.
284
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Revista
Brasileira de História, São Paulo. V.23, n.45, p 26.
285
MENESES. Op. cit. p. 28.
A respeito das primeiras edificações construídas pelos imigrantes Thales de
Azevedo afirma:
A julgar por algumas indicações, a estrutura seria de taipa simples.
Escrevendo sobre a sua infância um colono recorda que nos primeiros anos
de colonização a mais bela casa seria construída de taquara e barro’,
apenas um rancho para proteger-se das feras, com um fogo sempre aceso
à noite quando vinham assustar-nos’, [...] as mais recentes se faziam de
pranchas de madeira cortadas a machado, portanto ainda muito
grosseiramente talhadas.
286
Figura 1 - Casa provisória de taipa
Fonte: Posenato, 1983, p.114.
Figura 2 - Casa provisória de madeira em Bento Gonçalves
Fonte: Cinquantenario della Collonizzazione Italiana nel Rio Grande del Sud, 1875-1925, v.I, p.455.
286
AZEVEDO. Op.cit., p.173.
113
Essas primeiras imagens apresentadas neste estudo representam a casa de
taipa e a casa de madeira construída pelos imigrantes, observando que a casa de
taipa é coberta por palha e a de madeira por telhas de madeira (scándole). Estas
imagens remetem à literatura, quando são lembradas por alguns personagens da
história, como na obra “A Cocanha”. Depois que os primeiros imigrantes executaram
a estrutura de madeira do barracão o velho Nicola ordena e exclama: “E podem ir já
buscar taquaras e folhas de coqueiro. Na América, diz o velho Nicola gracejando, as
telhas estão prontas nas árvores, é pegar e usar.”
287
A respeito da primeira casa
do imigrante, o historiador Thales de Azevedo complementa: “a casa provisória no
lote rústico, era geralmente um singelo abrigo de cerca de 4m por 6m apenas
suficiente para acolher a família durante os anos pioneiros do estabelecimento nas
‘colônias’.”
288
A seguir, as imagens mostram a casa de pedra e de madeira o singelo
abrigo constituída apenas de um módulo, com porta central e janelas nas laterais,
formando uma composição simétrica. Nota-se que as telhas de madeira, originais na
casa de pedra, foram substituídas por folhas de zinco, e na casa de madeira, foram
substituídas por telhas cerâmicas. A casa de madeira apresenta também um
elemento decorativo, o óculo (abertura superior às esquadrias), que serve para
melhorar a ventilação da edificação. As fotografias retratam os materiais que
compõem a casa, a sua forma básica e volumetria. Para analisar com precisão os
espaços, pode-se se utilizar também a representação gráfica da edificação.
287
POZENATO. Op.cit.(a), p.134.
288
AZEVEDO. Op.cit., p.172.
114
Figura 3 - Casa Cavalleri, em pedra, Monte belo do Sul – 100 da Leopoldina.
Provável data de construção: 1885, período provisório. Fotografia de Maria Isabel Filippon, agosto 2003
Figura 4 - Casa Delmiro Dallé, em madeira, Monte belo do Sul, 100 da Leopoldina;
Provável data de construção: 1880, período provisório. Fotografia de Maria Isabel Filippon, abril 2002.
A representação gráfica de uma edificação demonstra com exatidão as suas
dimensões, a distribuição dos ambientes internos, os elementos arquitetônicos, as
aberturas, os detalhes construtivos. Para uma análise mais precisa da
transformação do espaço de habitar do imigrante italiano, o dados os desenhos
técnicos de quatro construções situadas no município de Monte Belo do Sul, Rio
Grande do Sul. Primeiro são apresentadas duas fotografias da casa do imigrante
italiano, de modo que possa ser feita a compreensão da mesma como um todo;
depois os desenhos para a identificação dos dados concisos da edificação. Além
disso, através da leitura das plantas-baixas é possível ver a distribuição dos
ambientes e as sua dimensões, e através das fachadas podem ser identificadas as
aberturas e a altura das construções.
O desenho técnico das edificações tem por objetivo, representar com exatidão
a casa construída, nos seus mínimos detalhes, dentro da técnica das projeções
ortográficas e normas pré-estabelecidas de desenho. Entretanto, o desenho técnico
também permite interpretações; cada sujeito percebe uma imagem de acordo com
as suas motivações e sua bagagem cultural. Bachelard faz um interessante
comentário a respeito do desenho das casas antigas:
115
Inicialmente podemos desenhar essas casas antigas, dar-lhes
consequentemente uma representação que tem todas as características de
uma cópia do real. Esse desenho objetivo, desligado de qualquer devaneio,
é um documento rígido e estável que marca uma biografia.
Mas essa representação exteriorista, se pelo menos demonstrar habilidade
de desenho, talento e representação, logo se torna insistente, convidativa; e
a simples apreciação da expressão adequada, da construção adequada
prolonga-se em contemplação e em devaneio. O devaneio volta a habitar o
desenho exato. A representação de uma casa não permite que um
sonhador fique indiferente por muito tempo.
289
Dessa forma, o leitor pode estabelecer relações entre as fotos e os desenhos,
conforme o seu próprio entendimento, ou seja, sua contemplação e devaneio.
A primeira casa representada através de fotografias e desenhos é a casa de
Aristides Fantin, sendo a sua característica principal a construção em módulos. O
primeiro módulo, situado à direita no desenho, é o de maior dimensão, onde existia o
fogoler. os módulos seguintes, os menores, foram acrescentados posteriormente
e serviam de dormitórios e outras funções.
CASA ARISTIDES FANTIN
289
BACHELARD. Op.cit., p.64.
116
Figura 5 – Casa Aristides Fantin – Monte Belo do Sul – Capela Nossa Senhora do Rosário
Data provável de construção 1880, período Provisório. Fotografia: Maria Isabel Filippon - abril de 2002
CASA ARISTIDES FANTIN
FACHADA LATERAL E CORTE TRANSVERSAL
FACHADA FRONTAL E PLANTA-BAIXA
117
Figura 6 – Casa Fantin, levantamentos métricos e desenho de Maria Isabel Filippon, abril 2003.
Figura 7 – Casa Magnan/Tramontina – Monte Belo do Sul – Capela Santa Rita
Data de construção: 1885 Fotografia: Maria Isabel Filippon – abril 2003
Novamente podemos relacionar o domínio lingüístico ao domínio icônico ao
lembrar no romance “A Cocanha” a descrição da cozinha da personagem Gema:
A casa da Gema ficava a uma boa distância e, mais longe um pouco, a da
Giulieta. Não era de fato casa, mas uma grande cozinha com o estrado de
dormir num canto, tinha o fogoler aceso, com a corrente presa ao teto, a
mesa no centro, dois bancos compridos, uma prateleira com as tigelas e os
pratos.
290
(grifo nosso)
290
POZENATO, José Clemente. A Cocanha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000, p.159.
CASA MAGNAN/TRAMONTINA
Composta de três volumes: o principal
de dois pavimentos,
o segundo volume é a cozinha,
anexada ao volume principal, e o
terceiro uma garagem anexa.
(acrescida à casa original)
Construída em pedra, com presença
do ballatoio, (sacada),
elemento típico da arquitetura friulana.
Figura 8 - Casa da região de Friuli/Venenezia/Giulia
Fonte: I magnifici borghi: Frisanco, Poffabro, Casasola. 2004
Fotografia: Antônio Zuccon - 2004.
Figura 9 – Interior da cozinha da casa Magnan/tramontina
FOGOLER – fogão típico da cozinha da casa do imigrante
Fotografia: Maria Isabel Filippon – abril 2003
118
CASA DE CECCO/TRAMONTINA
A casa situada no meio rural de Monte Belo do Sul, anteriormente
propriedade da família De Cecco e atualmente propriedade da família Tramontina,
apresenta o volume da cozinha totalmente separado da casa de dormir. O subsolo
da cozinha, em pedra, era um espaço reservado para os animais, o subsolo da
casa de dormir, também em pedra era utilizado como cantina. As fotografias
mostram uma vista frontal e uma vista de fundos do conjunto arquitetônico. Data
provável da construção 1885.
Figura 10 – Casa De Cecco/Tramontina (vista frontal) – Monte Belo do Sul – Capela Nossa Senhora da Saúde
Cozinha (volume menor) e Casa de dormir (volume maior) – Fotografia: Maria Isabel Filippon, setembro 2002.
119
Figura 11 – Casa De Cecco/Tramontina (vista fundosl) – Monte Belo do Sul – Capela Nossa Senhora da Saúde
Cozinha (volume na frente) e Casa de dormir (volume ao fundo) – Fotografia: Maria Isabel Filippon, abril 2004
CASA DE CECCO/ TRAMONTINA CASA DE DORMIR
PLANTA-BAIXA DO PORÃO DA CASA DE DORMIR (em pedra)
120
CASA DE CECCO/TRAMONTINA - CASA DE DORMIR
CASA DE CECCO/ TRAMONTINA - CASA DE DORMIR
PLANTA – BAIXA DO PAVIMENTO TÉRREO DA CASA DE DORMIR (em madeira)
Figura 12 – Casa De Cecco/ Tramontina, levantamento métrico de Maria isabel Filippon e Marliesi Gisele Tams,
desenho de Marliesi Gisele Tams, abril 2004.
121
FACHADA NORTE (frontal) E FACHADA SUL (fundos)
Figura 13 – Casa De Cecco/Tramontina, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Marliesi Gisele Tams,
desenho de Marliesi Gisele Tams, abril 2004.
CASA DE CECCO/ TRAMONTINA - COZINHA
PLANTA-BAIXA DO PORÃO DA COZINHA (EM PEDRA)
122
Figura 14 – Casa De Cecco/Tramontina, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Marliesi Gisele Tams,
desenho de Marliesi Gisele Tams, abril 2004.
CASA DE CECCO/TRAMONTINA - COZINHA
PLANTA – BAIXA DA COZINHA PAVIMENTO TÉRREO DA COZINHA (EM MADEIRA)
123
FACHADA LESTE (frontal) e FACHADA OESTE (fundos)
Figura 15 – Casa De Cecco/Tramontina, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Marliesi Gisele Tams,
desenho de Marliesi Gisele Tams, abril 2004.
Uma das características da casa do imigrante italiano é a construção da
cozinha separada do volume principal da casa, o motivo era o perigo de incêndio
124
que havia por que o fogão ficava aceso durante o dia, enquanto todos trabalhavam
na roça. Um exemplo desse tipo de construção com dois volumes separados é a
casa De Cecco/Tramontina. Por vezes o volume menor (cozinha) era ligado ao
volume maior (casa de dormir) por uma circulação coberta chamada de corredor.
A edificação composta com dois volumes e corredor coberto aparece no
romance “O Quatrilho” que inicia com a cerimônia e a festa de casamento dos
personagens Ângelo e Teresa. Era um dia chuvoso e por isso a festa realizou-se na
casa do pai do noivo, Aurélio Gardone. Pode-se observar que a casa descrita
apresentava o corredor coberto, elemento característico da casa do imigrante
italiano, Dosolina, Bambina e Teresa estavam na cozinha, enquanto que os convivas
estavam na sala:
Dosolina e Bambina pareciam atrapalhadas, com toda aquela gente
espremida dentro de casa, cheirando a suor e roupas molhadas. Por sorte,
tia Gema tomava conta da situação e dava ordens à esquerda e à direita.
Aurélio Gardone achava a tia Gema uma mulher disposta e despachada,
mas podia fazer menos espalhafato e menos barulho.
– Fora, fora daqui, aqui mando eu – gritou tia Gema para Teresa, assim que
a viu entrar na cozinha. Vai cuidar do teu marido. Amanhã e depois não
vai faltar trabalho. Descansa para hoje de noite.
E Teresa ria, concordava achava engraçado. Tia Gema berrava: Quem
não me obedece eu empurro para debaixo da chuva. Quem não ajuda
também não estorva. E despachava mulheres com louça, pratos de comida,
garrafas de vinho. Teresa retornou à sala pelo corredor aberto, e de
novo não o viu quando passou. Estava entretida demais com a festa.
291
(grifo nosso).
CASA ALDO FILIPPON
291
POZENATO. Op.cit.(c), p. 20.
Figura 16 – Casa Somensi – Bento Gonçalves – São Pedro
Data de construção: 1923 – período permanente primitivo
cozinha em alvenaria – casa de dormir em madeira
Fotografia: Maria Isabel Filippon - junho 1007
Figura 17 – Casa Tomasi – Bento Gonçalves – São Pedro
Data de construção: 1910 – período permanente primitivo
cozinha e casa de dormir em madeira
Fotografia: Maria Isabel Filippon - junho 1007
125
A casa de Aldo Filippon representa uma construção do período permanente e
do apogeu, com porão em pedra e pavimento térreo e sótão em madeira. O porão
além de servir como cantina, também abrigava uma ferraria.
Figura 18 – Casa Aldo Filippon – Monte Belo do Sul – Capela Nossa Senhora da Saúde
Data provável de construção 1900 – Fotografia: Maria Isabel Filippon, novembro 2002.
Figura 19 – Casa Aldo Filippon – Monte Belo do Sul – Capela Nossa Senhora da Saúde
Data provável de construção 1900 – Fotografia: Maria Isabel Filippon, novembro 2002
CASA ALDO FILIPPON
FACHADA OESTE (frontal) e FACHADA LESTE (fundos)
126
0 1 2
(m)
Escala Gráfica
Figura 20 – Casa Aldo Filippon, levantamento métrico e desenho de Maria Isabel Filippon, novembro 2002.
CASA ALDO FILIPPON
127
PLANTA-BAIXA DO TÉRREO (em madeira) E DO PORÃO (em pedra)
80X110/90
80X110 /90
80X110/90
80 4
ESTAR/J ANTAR
31,16 m ²
90x2 10
90x21 0
90x2 10
120x2 35
11 95
80X110 /90
310
108 187
70x2 10
494
8
0
X
1
1
0
/
9
0
28 8
85x2 10
90x2 10
1195
80X110/90
80X110 /90
90x2 10
80X110/90
1
2
3
4
5
6
7
8
DORM ITÓRIO
13,01 m ²
DORM ITÓRIO
10,64 m ²
DORM ITÓRIO
15,21m ²
DORM ITÓRIO
15,21m ²
COZINHA
13,44 m ²
BA N HO
4,4 8 m ²
CIRC.
2,00 m ²
69 0
108 355 55
55
PORÃO
74,72m ²
205X2 10
119 3
85X110 /90
85X110/90
55
75X110/90
85X110/90
80X60/160
00 0
- 27 7,5
A
800
B
A
B
D
C
C
D
0 1 2
(m)
Escala Gráfica
Figura 21– Casa Aldo Filippon, levantamento métrico e desenho de Maria Isabel Filippon, novembro 2002.
128
Aproximando mais uma vez a obra literária às imagens da casa, apresenta-
se agora a Casa Salton, situada em Monte Belo do Sul. Esta foi erigida pela família
De Marco, é um exemplo do período permanente/apogeu. É uma residência de
alvenaria, rebocada, com detalhes em alto relevo. É constitda por um volume
principal e um anexo. O volume principal, contém o porão com função de cantina, o
nível térreo como comércio e o nível superior servindo para os dormirios. O
volume menor em anexo é a cozinha. Tem uma sacada no nível superior
conferindo à casa uma certa imponência.
Essa edificação representou um símbolo de status para os seus
proprietários. Da mesma forma, que a casa de Tommaso descrita, no final de “A
Cocanha” representava para a personagem Teresa, a casa-palácio:
A casa do seu Tommaso, o amigo do pai, era imensa. Um palácio, com os
das histórias que a mãe gostava de contava da Itália. Era toda de tijolos,
tinha vidros nas janelas, e o assoalho brilhava como o sol batendo nele. Era
numa casa como essa que gostaria de morar:’ Um dia vamos ter uma
assim’, disse a mãe, ‘seu Tommaso foi dos primeiros a chegar no Brasil.
Uma grande escada levava ao sótão e, para alegria de Teresa, foi para
que a levaram com as irmãs. O quarto em que ficaram tinha cortina de
crochê na janela e um espelho quase maior do que ela na porta do guarda-
roupa.
292
CASA SALTON
Está situada na zona urbana de Monte Belo do Sul, numa quadra frontal à
praça principal do cleo urbano. Representa a mais bela, elegante e imponente
construção do núcleo central da cidade.
Edificada em 1938, com a dupla função de residência e comércio, foi o
elemento de referência para os habitantes de Monte Belo, na época distrito de
Bento Goalves.
292
POZENATO. Op.cit.(a), p.370.
129
CASA SALTON
Figura 22 – Casa Salton - Monte Belo do Sul
Fotografia: Maria Isabel Filippon, outubro de 2002.
Figura 23 – Casa Salton - Monte Belo do Sul
Fotografia: Maria Isabel Filippon, abril de 2003.
130
CASA SALTON - FACHADA PRINCIPAL
1938
LUIZ PEDRO DE MARCO
0 1 2
(m)
Escala Gráfica
Figura 24 – Casa Salton, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Ângela Petroli,
desenho de Ângela Petroli, abril de 2004.
131
CASA SALTON - PLANTA-BAIXA DO PORÃO
1
2
h: 17,5cm
h: 17,5cm
h: 17,5cm
h: 17,5cm
h: 15cm
h: 15cm
2828
1316,5
725
254
46 82 28 28 60
4394519546
46 46
83,5
28,5
460,5
26,5
34
46
15
15
280 46
15
15
25241
46
15
15
327,5
46
15 15
350
42
404
41
8
3
4
7
6
5
Projeção edificação 1943
Projeção edificação 1938
Pilares de
tijolo a vista
Parede de pedra basalto
regular (a135cm de
altura, acima tijolo)
Porão
Área: 78,11m²
Piso: chão batido
P.D.: 2,22m
h: 9cm
h: 18cm
1
2
-2,22
-0,60
JEM 01
26,5 x 60/ 12028,5 x 54/ 120
JEM 02
0 1 2
(m)
Escala Gráfica
Figura 25 – Casa Salton, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Ângela Petroli,
desenho de Ângela Petroli, abril de 2004.
132
CASA SALTON - PLANTA-BAIXA DO PAVIMENTO TÉRREO
Cantina Salton
Piso: concreto
21 degraus
h: 18,38cm
b: 21,4cm
833
349 484
254
454
13,5
86,5
13,5
28
3
28 103
2024,5
28
1316,5
725
Despensa
Piso: madeira
284,5
100
83,5
117
88,5
23 406,570
82,5
127
61 116
10790231
1078197
241
30
120
56
115
2813528 141
15
107
28
95,5 98,5 96,5
30 28 28
178
86,5
163,5
412,5
2,5
265
2814877287,5167,5 99
10794227
708
1316,5
2828 758,5
2,5
499,5
28 213 122,5 234 122,5 237 122,5 209,5 104,5 86,5 110 104,5 2879,586,5109
2828 669
95 2828 289
28 619 28
84,5
557
2828
137,5 115,5
165
115,5
135
1
2
3
6
Banheiro
Área: 4,10m²
Piso: cerâmico
P.D.: 2,60m
Serviço
Área: 7,18m²
Pis o: c imento
P.D.: 2,60m
Cozinha
Área: 11,42m²
Piso: madeira/ cerâmico
P.D.: 2,60m
Copa
Área: 29,28
Piso: madeira
P.D.: 2,60
Escritór io
Área:13,79
Pis o: madei ra
P.D.: 3,69m
Sala estar
Área:14,55
Piso: madeira
P.D.: 3,69m
Arma zém
Área: 84,97
Piso: madeira
P.D .: 3,69m
130,5 x 211/ 88
JEM 03
130,5 x 211/ 88
JEM 04
128,5 x 302,5
PEM 01 PEM 02
128,5 x 302,5 128,5 x 302,5
PEM 03
PEM 04
110,5 x 248
JEM 05
110,5 x 160,5/ 90 110,5 x 160,5/ 90
JEM 06
86,5 x 151,5/ 90
JEM 07
98,5 x 141,5/ 90
JEM 08
101 x 217,5
PEM 05
56 x 61/ 183
JEM 09
99 x 154/ 87
117 x 173,5/ 88
JEM 10
JEM 11
90,5 x 200
PEM 06
Projeção cobert ura
7
9
8
12
13
11
10
1
2
3
5
15
14
4
-0,19
-0,38
11
-0,19
-0,38
1
-0,19
-0,38
+0,00
1
-0,19
-0,38
-0,28
-0,47
-0,60
-0,08
+0,00
0 1 2
(m)
E sca la Gr áfica
Figura 26 – Casa Salton, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Ângela Petroli,
desenho de Ângela Petroli, abril de 2004.
133
CASA SALTON - PLANTA-BAIXA DO PAVIMENTO SUPERIOR
Cantina Salton
Piso: concreto
474
244
359 489
20 20
7081316,5
28
225,590,5
57
32,5
279,5
32,5
28
1316,5
28
725
28
6
5
4
1
2
3
449
359
32,5
6528
2,5444,5
2,5
413 398
289 285
2,5
92,5
377,5
2,5
289
332,5
2,5
334
491
2,5
444,5
2,5
320
28
142,5
105,5
37
2,5
143
105,5
133
82
2,511,52,5
125
90,5
229
28
135,5115,5
165,5
115,5
137
2810095296
2,5
46
100,5
173
2,5
21599
130,5
14
15
10
11
13
12
18
19
17
16
21
20
Laje de concreto
Projeção cobertura
Projeção da
edificação
Dormitório 2
Área: 14,84m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
Dormitório 3
Área: 9,04m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
Dormitório 4
Área: 15,74m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
Dormitório 5
Área: 11,34m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
Estar Í ntimo
Área: 16,18m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
Dormitório 1
Área: 14,91m²
Piso: madei ra
P.D.: 3,30m
+4,01
130,5 x 174,5/ 94
JEM 12JEM 13
130,5 x 174,5/ 94
105,5 x 174,5/ 96
JEM 14 JEM 15
105,5 x 174,5/ 96
PEM 07
128 x 275,5
125,5 x 174,5/ 96105,5 x 174,5/ 94,5
JEM 17JEM 16
JEM 18
110 x 160,5/ 110114 x 160,5/ 109 115,5 x 170,5/ 96
JEM 19JEM 20
0 1 2
(m)
Escala Grá fica
Figura 27 – Casa Salton, levantamento métrico de Maria Isabel Filippon e Ângela Petroli,
desenho de Ângela Petroli, abril de 2004.
134
A TRANSFORMAÇÃO DA CASA DO IMIGRANTE ITALIANO
QUADRO COMPARATIVO DE IMAGENS – fachadas e fotografias
Figura 28 – Casa Aristides Fantin – período provisório
Figura 29 – Casa Aldo Filippon – período permanente/primitivo
1938
LUIZ PEDRO DE MARCO
0 1 2
(m)
Escala Gráfica
Figura 30 – Casa Salton – período permanente/apogeu
135
Figura 31 – Casa Aristides Fantin – período provisório
Figura 32 – Casa Aldo Filippon – período permanente/primitivo
Figura 33 – Casa Salton – período permanente/apogeu
136
Essa amostra de imagens das casas dos imigrantes italianos construídas no
período do final do século XIX até o início da década de quarenta, demonstra
visualmente as transformações ocorridas no espaço de habitar dos imigrantes
italianos. Quanto aos materiais utilizados nas construções, no primeiro momento de
assentamento foi utilizada a pedra como principal elemento construtivo, por estar
disponível na natureza e porque os imigrantes dominavam a técnica de execução
em cantaria. O uso da madeira era reservado para a estrutura da cobertura, para as
esquadrias, entrepisos e feitura de telhas.
No segundo momento, quando os imigrantes começaram a aprender o corte
da madeira, este foi o material mais utilizado para a edificação das casas, por ser
encontrado em abundância no ambiente natural. O porão continuava sendo
executado em pedra e o restante da casa, o pavimento térreo e o sótão, em
madeira. Na seqüência, as técnicas construtivas acompanharam o desenvolvimento
econômico da região, a alvenaria de tijolos começou a ser utilizada. As casas feitas
de tijolos cozidos recebiam como acabamento reboco, muitas vezes com adornos
em relevo.
Quanto à forma e função, as primeiras casas constituíam-se apenas de um
volume, onde todas as funções do espaço de habitar eram ali realizadas. Uma
variação dessa casa do período provisório, é a criação de um outro modelo em que
foram acrescidos outros módulos, como por exemplo a casa Alcides Fantin. Na
medida em que as casas foram aumentando de tamanho, os espaços adquiriram
uso específico, sendo possível diferenciar as funções, social, estar e de serviço,
como mostra a casa de Aldo Filippon e a casa Salton, que abrigava também uma
função comercial.
Formalmente as edificações tinham um caráter austero com predomínio do
uso do ângulo reto, tanto nos volumes construídos quanto nas esquadrias. A
simetria é o princípio compositivo adotado e pode ser observada desde as casas do
período provisório até nas casas do período permanente. Através dessas imagens,
fotografias e desenhos, é possível verificar os materiais utilizados; a forma e função,
itens que atendem aos aspectos objetivos do espaço de habitar.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O espaço de habitar, como salientado no início deste estudo, é de suma
importância para qualquer ser humano, uma vez que serve de abrigo e proteção;
mas não apenas isso: nele se insere uma série de significados que, ao final deste
trabalho, se pode dizer que é tão ou mais importante que a sua utilidade. Esta
constatação é possível após a realização da análise dos aspectos objetivos, quais
sejam, as relações histórico-sociais, os tipos de construção e os usos dos espaços,
e dos aspectos subjetivos, ou seja, as relações de poder, as necessidades
motivacionais e os valores afetivos e oníricos, presentes nos textos literários em
exame, no que tange ao espaço de habitar do imigrante italiano na RCI.
Ao estudar os romances de Jo Clemente Pozenato, que compõem a
trilogia da imigração italiana no Rio Grande do Sul, A Cocanha”, “O Quatrilho” e “A
babilônia”, que constituem o corpus deste estudo, através de categorias objetivas e
subjetivas percebeu-se que as narrativas desvelam a presença de fortes elementos
imateriais nos ambientes vividos e a transformação da casa do imigrante através dos
tempos. A casa e suas dependências não são apresentadas apenas como meras
edificações, com muros inanimados, como caixas inertes, mas sim, espaços cheios
de significados decorrentes da interação de seus moradores, que carregam consigo
seus valores, seus hábitos, sua cultura. A casa-habitação, portanto, que seria uma
invenção humana feita para atender uma necessidade física de proteção das
intempéries e dos elementos estranhos, vai além disso; como explica Maffessoli, “a
casa é o pivô em torno do qual vai se articular toda a vida social.”
293
A obra literária que trata do início da saga dos imigrantes italianos,
ambientada nos idos de 1883, descreve as transformações do espaço de habitar
293
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. 2.ed. Porto Alegre: Vozes, 1999, p.104.
desses recém-chegados à América, mostrando como ocorreu a passagem das
edificações provisórias às permanentes. As casas, referidas na narrativa, evoluíram
a partir dos acréscimos tecnológicos, pelo desenvolvimento econômico da RCI e, ao
mesmo tempo, demonstram como o espaço de habitar não se consistia em mero
abrigo, que a sua conquista representava ter chegado à fortuna, conquistado a
“cocanha”. Contudo, nem todos os personagens alcançaram o sucesso prometido
pelos colonizadores, sendo vencidos pelos infortúnios em sua trajetória.
No livro “A Cocanha” percebe-se que as casas retratadas, na maior parte do
tempo, são tidas como abrigo, para que os imigrantes pudessem se proteger dos
riscos que o ambiente apresentava, mas que, em seguida, passaram a ser vistas
também como símbolo de status. Dessa forma, a casa, como indica o texto de
Pozenato, representou para o imigrante, o sonho realizado, o símbolo da posse, da
propriedade, o abrigo que o dignifica. Ter a casa própria institui-se como um valor na
cultura da RCI.
Já, na segunda obra de Pozenato, “O Quatrilho”, cuja narrativa inicia por
volta do ano de 1909, os espaços de habitar mais relevantes são a casa reformada
pelos personagens principais da história, localizada no meio rural e a casa adquirida
na cidade de Caxias do Sul, situada em ambiente urbano. A primeira habitação, que
os casais protagonistas foram ocupar serviu, num primeiro momento de moradia,
depois, de espaço propício para que houvesse a relação adulterina era uma
armadilha, uma cilada para o casal de amantes e, enfim, se transformou numa
fortaleza, para proteger a família ocupante de hostilidades da comunidade. A
edificação comprada na cidade, por Ângelo e Pierina, por sua vez, representou a
virada do casal traído, sobre todas as adversidades. Essa residência apresentava
elementos decorativos, era de grande porte, demonstrava o apogeu econômico do
casal e podia reproduzir o rápido o progresso que região experimentava.
Em “A babilônia” são colocadas em evidência, as transformações da casa:
de um lado, a casa grande e refinada, equipada com os mais modernos aparelhos
disponíveis na época, isto é, durante as décadas de 30 e 40, mostrando o auge da
família Gardone, mas que, ao fim da história com a perda do domínio por parte da
matriarca Pierina, acabou trazendo-lhe a melancolia e a morte, e, de outro lado, as
habitações transitórias ocupadas pelo personagem Lourenço, seja nas pensões,
hotéis e na casa de amigos utilizadas em suas estadas por diversas cidades, seja na
139
casa de aluguel, em Caxias. Espaços que satisfaziam às necessidades de abrigo
e segurança, e não as demais, como de pertinência e de estética.
A transferência da propriedade da casa dos Gardone para a filha legítima,
Rosa levou à perda do poder que Pierina exercia nesse espaço. Ela não foi
despejada, continuava ocupando a casa, mas o sentimento de que não era mais
sua, fez com que o seu mundo desmoronasse. A aquisição da casa, com sacrifício,
significou uma conquista, pois para o imigrante italiano, ter a sua propriedade, era
um valor fundamental. Ao, de uma hora para outra, com o óbito do companheiro,
perder o domínio sobre tal bem, mesmo que não tenha tido que desocupar a
habitação, fez com que a sua vida perdesse sentido. Provavelmente, em uma outra
cultura, em que ter uma propriedade não fosse tão significativo, a mesma situação
resultaria em outro desfecho, pois, na prática não houve o despejo. Pierina pôde
continuar morado na casa.
Igualmente relevante é o fato da casa Gardone, ao mesmo tempo em que
abrigou o velório da personagem Pierina, também foi o local do anúncio de que uma
nova vida estava chegando, quando no antigo quarto de Lourenço, Sílvia comunica-
lhe que estava grávida. A casa é testemunha do ciclo da vida que se repete.
Esses episódios contidos na narrativa demonstram os valores subjetivos do
espaço de habitar. Apresentam significados para a casa, que vão além daquilo que o
olhar consegue apreender. Como salienta Pozenato, “todos sabem que no dicionário
não estão os significados. O significado se realiza num discurso. No dicionário a
palavra casa não tem significado. Ela tem significado no discurso em que ela
aparecer.”
294
A linguagem literária mostra o espaço vivido, a interação do morador com o
seu espaço de habitar, permitindo que a casa e seus ambientes adquiram
significados. Ou seja, é ultrapassada a idéia de casa como mera proteção, pois ela,
além da casa-abrigo, torna-se a casa-ninho, a casa-cilada, a casa-fortaleza, a casa-
palácio, a casa-status, a casa-transitória, a casa-morte, a casa-vida. Essas o
representações que a morada assume com a atuação do homem nesse espaço a
casa é palco das representações da vida cotidiana.
294
POZENATO, José Clemente. Processos culturais: reflexões sobre a dinâmica cultural. Caxias do
Sul: EDUCS, 2003(d), p.49.
140
Por outro lado, apesar das obras literárias estudadas retratarem um contexto
sócio-histórico bem definido, relatando o dia-a-dia de uma população com valores
culturais bastante singulares, que passavam por transformações específicas, é
possível constatar que os valores simbólicos atribuídos a casa podem ser
encontrados em outros tempos e lugares. Certamente, não dificuldade de se
localizar as ditas casas-status, edificações com a pretensão de ser suntuosas, em
diversas culturas e épocas.
Além da análise do texto literário (domínio Lingüístico), as imagens das casas
construídas pelos imigrantes na RCI (domínio Icônico), que ainda permanecem
erguidas, serviram para que se visualizasse a transformação dessas edificações nos
períodos descritos por Frosi e Posenato, que igualmente é percebida na trilogia de
Pozenato.
Constata-se, ainda, que enquanto na arquitetura e na história se está atento
ao registro das edificações e dos fatos, na literatura a recondução dos fatos e a
apresentação do ponto de vista do escritor, que interpreta, analisa e evidencia
discursos específicos sobre o contexto cultural, histórico e arquitetônico. Tanto a
arquitetura, quanto a literatura o tipos de arte que utilizam meios diferentes de
expressão. A arquitetura tem como meio a forma e a literatura, a palavra. Por isso,
através da literatura podemos “conhecer” os espaços, mesmo sem tê-los visto ou
penetrado neles. O texto oferece ao leitor, por meio da voz do narrador e dos
personagens, uma descrição do espaço, revelando os seus aspectos subjetivos, os
sentimentos, as relações humanas, enquanto que a arquitetura serve para
demonstrar a forma e a função prevista para o espaço construído.
Diante disso, pode-se considerar que a imagem e o texto são meios de
representação complementares, como cita Walty: “colocar imagem e escrita em
campos opostos e excludentes é no mínimo, ingenuidade, que, mesmo à nossa
revelia, tais códigos se encontram em constante interação“.
295
Assim, a linguagem do
espaço de habitar, entendida como a representação do espaço doméstico, pode ser
compreendida através de várias formas de representação: a gráfica-imagem ou a
escrita-texto. Ambas possuem as suas vantagens e a suas limitações, o desenho
295
WALTY, Ivete, Lara Camargos. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2.ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001, p.90.
141
preza pela objetividade, enquanto que o texto literário oferece ao investigador a
subjetividade.
Tal subjetividade, por se apresentar com grande relevância como demonstrou
a análise das obras de Pozenato, é de se concluir que não pode, de forma alguma,
ser desprezada por aqueles que planejam e projetam o espaço de habitar. É
necessário humanizar o entendimento da própria arquitetura, levando em conta os
aspectos imateriais, construindo uma Arquitetura para o Homem.
Enfim, é de salientar que o presente estudo respondeu as questões
norteadoras, ao mostrar pela linguagem literária que o contexto histórico, as
mudanças econômicas, sociais, culturais e políticas, na RCI, influenciaram na
transformação da casa do imigrante italiano e dos seus descendentes; além disso, a
metodologia utilizada proporcionou, pela análise dos romances, o reconhecimento
de aspectos objetivos e subjetivos do espaço de habitar do imigrante italiano. A
pesquisa revelou-se mais uma motivação para a preservação do patrimônio cultural
arquitetônico na RCI. Não bastasse a relevância histórico-arquitetônica, manter
esses ambientes dignamente utilizáveis representa resguardar o significado que o
espaço de habitar teve para as gerações que construíram em outras terras, suas
novas moradas, e que podem continuar sendo preservadas pelas gerações futuras.
142
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questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.
RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza. Festa & Identidade: como se fez a Festa da Uva.
Caxias do Sul: EDUCS, 2002.
RYBCZNSKI, Wiltold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro:
Record, 1996.
146
SABBATINI, Mario. La regione di colonizzazione italiana in Rio Grande do Sul:
gli insediamenti nelle aree rurali. Firenze: Cultura Cooperativa Editrice, 1975.
SCHUMACHER, Evaldo Luiz. Guia didático da arquitetura de Caxias do Sul. v.1.
Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
STAWINSKI, Alberto Vitor. Dicionário Vêneto Sul-Rio-Grandense Português.
Porto Alegre: ESTEF; Caxias do Sul: EDUCS, 1987.
TEDESCHI, Enrico. Teoría de la arquitectura. Buenos Aires: Nueva Visión, 1981.
WALTY, Ivete, Lara Camargos. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2.ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
ZUCCON, Antonio. I Magnifici Borghi: Frisanco, Poffabro, Casasola. Treviso:
Vianello, 2004.
147
ANEXOS
MAPA DE LOCALIZAÇÃO DA REGIÃO COLONIAL ITALIANA
Localização da
Região Colonial Italiana -RCI
e Monte Belo do Sul
Fonte: WWW.metroplan.rs.gov.br/
RIO GRANDE DO SUL
BRASIL
RIO GRANDE DO SUL
AMÉRICA DO SUL
Digitalização do mapas
por Marliesi Gisele Tams (MAR/2004)
Fonte: WWW.metroplan.rs.gov.br/
RCI
CAXIAS DO SUL
Figura 34 - Mapa da RCI
Marco no desenvolvimento da RCI: a construção da estrada de ferro
Figura 35 – Inauguração da Estrada de Ferro Montenegro – Caxias do Sul
Caxias do Sul 1910. Fotógrafo Domingos Mancuso
Acervo Histórico Municipal de Caxias do Sul. A. 5377. Doação Francisco Fortuna.
149
Figura 36 – Via Júlio de Castilhos em 1885 – Caxias do Sul
Fonte: Cinquantenario della Colonizzazione Italiana nel Rio Grande del Sud 1875-1925, vol I, p.130.
Figura 37– Praça Dante Alighieri em 1925 – Caxias do Sul
Fonte: Cinquantenario della Colonizzazione Italiana nel Rio Grande del Sud 1875-1925, vol II, p.4.
150
Figura 38 - Capa do livro “A Cocanha”
Projeto Gráfico: Marco Cena - Descrição do país da Cocanha - gravura pintada a mão, 1606.
151
Figura 39 - Capa do livro “O Quatrilho”
Projeto gráfico: Marco Cena
152
Figura 40 - Capa do livro “A babilônia”, projeto gráfico: Permière Comunicação Ltda.
Foto da capa: Praça Rui Barbosa (Dante Alighieri) em dia de neve. Caxias do Sul 1942.
Fotógrafo: Studio Geremia. Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
153
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