A personagem está conformada com seu "Destino de mulher", mãe, esposa e doadora.
No entanto, é infeliz. E com o tempo percebeu que assim como ela, havia outras. Mas
esta vida fora escolha dela. Porém, em alguns momentos, a situação a incomodava,
mas procurava não dar lugar às insatisfações: "Olhando os móveis limpos, seu coração
apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse
ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides da casa
lhe haviam transmitido." (1998a, p.20) Ana encarna, nessas linhas, a mulher
mencionada em A História da sexualidade de Michel Foucault (2003, p. 129): "As
cortesãs, nós a temos para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo dia; as
esposas, para ter um descendência legítima e uma fiel guardiã do lar." Ana cumpre
muito bem esse papel. No entanto, um fato ocorrido nessa sua rotina, em sua vida
sempre monótona, sólida e firme a faz vacilar, a mão forte enfraquece. Ana, tão
asceta, desprovida de desejos e felicidade começa a desejar. Ela que nunca queria
nada para si, ela que apenas se doava. A personagem vê um cego mascando chicles.
O olhar, o observar, o ver é algo marcante nos contos de Clarice. Neste não é diferente.
Se o cego, por sua deficiência, não enxerga. Ana quando o vê passa a enxergar coisas
que antes não percebia, apesar de possuir a visão perfeita. O casamento a cegara.
Cegara sua alma. O casamento, então, exposto aqui, aprisiona a mulher sugando dela
sua vitalidade, venda seus olhos para o mundo. O matrimônio faz esquecer os perigos,
os desejos, as coisas saborosas da vida as doces e as amargas. Ao se entrar para o
enlace matrimonial, morre-se. Ana, até o encontro com o cego, estava morta. Porque
dava sua "corrente de vida" à família. Mais um fato mexe com a personagem, algo mais
perturbador ainda. Ela entra no Jardim Botânico e encontra ali um turbilhão, uma
explosão de vida com a qual não estava acostumada a ver, a lidar, pois até então a
cegueira a impedira de ver. Conforme Chauí
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(1988, p. 33), a visão é a janela da alma,
ela “se faz em pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo
tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.” É esse o mundo que Ana passa
a enxergar após avistar o cego: “era um mundo de se comer com os dentes..." (1998a,
p.25) O jardim era o mundo: cheio de cores, sabor, cheiro, morte e vida, um mundo
desejoso e ela pode senti-lo. Ela que como uma boa lavradora plantara apenas suas
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In: O Olhar. Adauto Novaes organizador. 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.