Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
ANA PAULA FABRO DE OLIVEIRA
Enunciados verbovisuais na Ciência Hoje das Crianças: uma
abordagem dialógica
São Paulo
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
ANA PAULA FABRO DE OLIVEIRA
Enunciados verbovisuais na Ciência Hoje das Crianças: uma
abordagem dialógica
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filologia e Língua Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sheila Vieira de Camargo
Grillo
São Paulo
2010
ads:
3
OLIVEIRA, Ana Paula Fabro de. Enunciados verbovisuais na Ciência Hoje das
Crianças: uma análise dialógica. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. ____________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. ____________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ________________________________ Assinatura: ______________
4
A meu pai, Oraldo Romano de Oliveira (in memorian),
5
AGRADECIMENTOS
À professora Sheila Vieira de Camargo Grillo, não somente pela dedicada, exímia e
generosa orientação, mas, sobretudo, pela confiança, respeito e amizade que circunscrevem a sua
presença nesse trabalho.
Às professoras Maite Celada e Raquel Fiad Salek, pela leitura atenta e pelas valiosas
contribuições no exame de qualificação.
À Arlete Fernandes Machado Higashi, amiga preciosa e pesquisadora competente,
“personagem almodovariana” que, com seu jeito “carnavalizado”, conferiu comicidade, humor,
alegria e cor à tessitura da presente dissertação.
À Caroline de Cássia Baksa, pela amizade, pela pessoa “macanuda que eres”, pelo
exemplo de ser humano e de profissional que representa.
À Denise Libardi Colocero e à Marília Costa Reis, amigas caríssimas e “leitoras críticas”
de meus trabalhos acadêmicos.
A Gledson Suzuki, pelo incentivo, carinho, paciência, companheirismo e, principalmente,
por tornar a minha vida ainda mais feliz.
A meu saudoso pai, que regou a minha infância de indagações que convidavam à
desnaturalização da língua.
A minha amada mãe, Geni, e minha irmã, Cláudia, pelo simples fato de existirem, de
serem quem são e representarem o que representam em minha vida.
6
RESUMO
OLIVEIRA, Ana Paula Fabro de. Enunciados verbovisuais na Ciência Hoje das Crianças:
uma análise dialógica. 2010. 124 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo/SP.
A presente pesquisa busca identificar procedimentos e mecanismos, verbais e visuais, pelos quais
o discurso de divulgação científica para crianças, de autoria da SBPC (Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência) e materializado em reportagens de capa da Ciência Hoje das Crianças,
se direciona e se orienta por seu destinatário presumido, assim como visa identificar como e para
quais fins estabelecem-se relações dialógicas entre formas composicionais verbais e visuais.
Centrando-se em reportagens de capa enquanto concretização do projeto e vontades discursivas
de um sujeito histórica e socialmente situado, à luz de noções formuladas pelo Círculo de
Bakhtin, tais como dialogismo, acabamento, esfera e endereçamento do enunciado, o trabalho
explora duas hipóteses. Primeira, em se tratando de divulgação de conhecimentos científicos ao
público infantil, mais do que a seleção temática de assuntos de cunho científico que poderiam
interessar ao público infantil, a linguagem é a ponte que alinhava vínculos entre o autor, a ciência
e o cientista e o destinatário-criança, segunda, no discurso científico endereçado aos pequenos, a
reincidência de recursos lexicais típicos da ideologia do cotidiano é movida pelo objetivo de
“fazer entender”. A análise detida do corpus iluminou dois tipos principais de relações dialógicas,
a saber, 1) dialogismo entre as instâncias autoriais do autor-cientista e do ilustrador e 2)
movimentos dialógicos em direção ao universo do leitor.
Palavras-chave: Círculo de Bakhtin, dialogismo, destinatário presumido, reportagens de capa,
divulgação científica para crianças
7
ABSTRACT
OLIVEIRA, Ana Paula Fabro de. Verbal-Visual Utterances on Ciência Hoje das Crianças: a
dialogical approach. 2010. 124 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo/SP.
The present research aims at identifying the procedures and mechanisms, verbal and verbally-
visual, used by the scientific diffusion speech to children, written by SBPC (Brazilian Society to
the Science Progress) and materialized in cover articles of the magazine Ciência Hoje das
Crianças -Children’s Science Today. This research considers how this speech is aimed and led by
its presumed addressee, and also identifies how and for which purpose the dialogical relations are
established between verbal and visual compositional forms. This research is based on the notions
proposed by the Bakhtin Circle, such as dialogism, completion, sphere and utterance addressing.
Focusing on cover articles for this project building and the speech wills of a historically and
socially situated subject, the work explores two hypothesis. The first deals with the diffusion of
scientific knowledge to children, so that the language is the bridge that connects the author,
science and scientist and addressee (children) more than only a thematic selection of scientific
issues which could interest the children. The second hypothesis deals with the scientific speech
addressed to the little ones. The reincidence of the lexical resources typical to the day-by-day
ideology is moved by the objective of “make it understood”. The analysis taken from the corpus
enlightened two main kinds of dialogical relations: 1) dialogism between the author‟s instances
from the author-scientist and the illustrator; and 2) dialogical movements towards the reader‟s
universe.
Keywords: Bakhtin Circle, dialogism, presumed addressee, cover articles, scientific diffusion for
children
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Capa da revista CHC, edição de dezembro de 1986 ......................................... 60
Figura 2 - Excerto de página interna da revista CHC, edição de dezembro de 1986. ....... 61
Figura 3 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1986. ................... 64
Figura 4 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1986. ................... 65
Figura 5 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1986. ................... 65
Figura 6 - Capa da revista CHC, edição de julho 1987. .................................................... 66
Figura 7 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1986. ................... 68
Figura 8 - Capa da CHC, edição de dezembro de 1987. .................................................. 69
Figura 9 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1987. ................... 71
Figura 10 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1987. ................ 72
Figura 11 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1986. ................. 74
Figura 12 - Páginas internas da CHC, edição de julho de 1987 ........................................ 75
Figura 13- Excerto de página interna da CHC, edição de setembro de 1987. ................... 76
Figura 14 - Capa da CHC, edição de jan/fev de 2007. ...................................................... 81
Figura 15 - Páginas interiores da CHC, edição de abril de 2007....................................... 82
Figura 16 - Páginas interiores da CHC, edição de julho de 2007. ..................................... 84
Figura 17 - Capa da CHC, edição de abril de 2007. ......................................................... 85
Figura 18 - Páginas interiores da CHC, edição de abril de 2007....................................... 86
Figura 19 - Capa da CHC, edição de julho de 2007. ......................................................... 87
Figura 20 - Página interior da CHC, edição de julho de 2007........................................... 88
Figura 21 - Capa da CHC, edição de agosto de 2007. ....................................................... 90
Figura 22 - Excerto de capa da CHC, edição de agosto de 2007. .................................... 91
Figura 23 - Página interior da CHC, edição de agosto de 2007. ...................................... 93
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CH -Ciência Hoje
CHC -Ciência Hoje das Crianças
DC -Divulgação científica
DCC -Divulgação científica para crianças
SBPC -Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 11
1. A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA AS CRIANÇAS .................................................. 14
1.1 AS ESFERAS DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA OS PEQUENOS ..................................... 14
1.1.1 A divulgação científica para crianças na esfera educacional ......................... 15
1.1.2 A divulgação científica para crianças na esfera científico-acadêmica ........... 18
1.1.2.1 Práticas de leitura de textos de DCC: a voz de um especialista em
Educação ............................................................................................................................ 18
1.1.2.2 Como divulgar ciências para as crianças ................................................... 21
1.1.2.3 A DCC sob o viés da Linguística .............................................................. 26
1.2 A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA CRIANÇAS NA PERSPECTIVA DO DIVULGADOR .......... 29
1.3 BREVE DISCUSSÃO ........................................................................................................ 33
2. PARA UMA ANÁLISE DO ENUNCIADO VERBOVISUAL DA REVISTA CIÊNCIA
HOJE DAS CRIANÇAS ............................................................................................................... 36
2.1 RELAÇÕES DIALÓGICAS NA CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS ............................................. 36
2.2 OS ELEMENTOS VERBOVISUAIS E OS GÊNEROS DISCURSIVOS ......................................... 38
2.3 A DIMENSÃO VERBOVISUAL DO ENUNCIADO NO CÍRCULO DE BAKHTIN ........................ 41
2.4 A REPRESENTAÇÃO VISUAL DO OBJETO VERBAL: A FORMA ESPACIAL INTERNA ............ 45
3. METODOLOGIA .................................................................................................................... 52
3.1 A REVISTA CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS: PERFIL EDITORIAL ........................................ 52
3.2 A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E AS CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................ 55
4. ANÁLISE DO PRIMEIRO PERÍODO: RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE FORMAS
COMPOSICIONAIS VERBAIS E VISUAIS NA DCC ........................................................... 59
4.1 MOVIMENTOS DIALÓGICOS DE APROXIMAÇÃO AO UNIVERSO DO LEITOR ...................... 59
4.2 RELAÇÕES DIALÓGICAS DE RATIFICAÇÃO ..................................................................... 63
4.3 RELAÇÕES DIALÓGICAS DE CONFLITO ........................................................................... 68
4.4 RELAÇÕES DIALÓGICAS DE EXTRAPOLAÇÃO ................................................................. 73
4.5 PARA DIVULGAR A CIÊNCIA .......................................................................................... 77
5. ANÁLISE DO SEGUNDO PERÍODO: O FOCO NO DESTINATÁRIO PRESUMIDO
DO ENUNCIADO ....................................................................................................................... 79
5.1 O DIA-A-DIA DAS CRIANÇAS EM VERBO E IMAGENS....................................................... 80
5.2 AFINIDADES E SIMPATIAS DO LEITOR NA MATERIALIDADE VERBAL E VERBOVISUAL .... 84
5.3 UM BALANÇO ENTRE O PRIMEIRO E O SEGUNDO PERÍODO DE ANÁLISE .......................... 93
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 100
ANEXOS .................................................................................................................................... 101
11
INTRODUÇÃO
Atualmente, estudiosos de diferentes áreas do conhecimento têm se voltado à questão da
divulgação de conhecimentos científicos ao público não-especialista, no entanto, ainda são
escassos os trabalhos acerca da divulgação científica para as crianças.
Uma das pesquisadoras pioneiras neste assunto foi Massarani (2007) que, a partir de sua
experiência como editora na revista Ciência Hoje das Crianças, escreveu um artigo intitulado
Reflexiones sobre la divulgación científica para niños. Segundo nos informa a autora, os livros
didáticos de ciências, no contexto brasileiro, são o principal meio de estabelecer a relação das
crianças com os conceitos e o funcionamento da ciência. No entanto, tal veículo é inadequado
por, dentre outros fatores, não inserir a ciência no cotidiano das crianças, de forma a impedir o
estabelecimento de relações significativas entre o conhecimento dos saberes desse campo com o
ambiente que as entorna. Dessa maneira, ao relacionar as características fundamentais inerentes à
divulgação científica para as crianças, a pesquisadora ressalta a importância de se introduzir a
ciência no dia a dia desse público, de se estabelecer analogias e de não utilizar jargões
profissionais e uma linguagem demasiadamente técnica.
Entretanto, Massarani, talvez por não ser um de seus objetivos, não refletiu de maneira
mais aprofundada e necessária acerca das peculiaridades e características do discurso de
divulgação científica para os pequenos, o qual assume determinados aspectos que o diferencia do
discurso que se volta ao público composto por leitores adultos. Nessa perspectiva,
compreendendo a pertinência e a necessidade de uma reflexão à luz do prisma linguístico, este
trabalho procurará responder às seguintes perguntas, ancoradas na afirmação de Bakhtin de que
“um traço essencial (constitutivo) do enunciado é o seu direcionamento a alguém, o seu
endereçamento(BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 301, grifos do autor).
Quais as influências dos leitores presumidos na construção verbal e visual dos
enunciados de divulgação científica para crianças?
De que maneira se manifesta o dialogismo (entre formas composicionais verbais e
visuais) inscrito no discurso da revista e, em particular, nas reportagens de capa?
12
Dito de outro modo, buscar-se-á apurar como os leitores presumidos tomam forma a partir
de indícios textuais e discursivos.
Uma vez elaboradas as perguntas de pesquisa que orientarão o presente estudo, o tema do
trabalho está relacionado com a influência do leitor virtual em textos que visam divulgar saberes
científicos através de um meio de educação não formal, isto é, um meio educativo de ciência que
não está enleado, pelo menos diretamente, ao sistema formal de ensino.
Para tanto, será efetuada uma análise do discurso de divulgação científica concretizado
em textos de diferentes épocas na Ciência Hoje das Crianças, revista criada em 1986 pela
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cujo principal objetivo é divulgar
conhecimentos científicos para o público mirim. A revista caracteriza-se pela
multidisciplinaridade de temas e publica, por meio de variados gêneros discursivos, assuntos
relacionados às ciências humanas, biológicas, à saúde, ao meio ambiente, à tecnologia e cultura.
Outro propósito da publicação é promover uma maior aproximação entre a comunidade
científica, e seus saberes, e o público infantil. Ademais, tem como foco a divulgação de
peculiaridades da cultura brasileira, com vistas a ampliar o universo cultural dos pequenos. Em
linhas gerais, atualmente, a Ciência Hoje das Crianças é estruturada em torno de três temas
científicos aos quais são dedicados um maior espaço na revista, além de jogos, experiências,
poemas, contos, resenhas e uma seção dedicada às opiniões e sugestões dos leitores.
Os textos aqui analisados foram selecionados em função do período de sua publicação, a
saber, os exemplares de 1986 e 1987, que compõem os anos iniciais da revista e o ano de 2007,
que representa o período atual e de maturidade da Ciência Hoje das Crianças.
No tocante à opção de se efetuar uma análise longitudinal, ou seja, através de um recorte
diacrônico do corpus, a mesma se justifica por permitir que sejam verificadas quais as
transformações históricas ocorridas na imagem do destinatário projetada pelo enunciador.
O objetivo específico será relacionar quais as particularidades assumidas pelo enunciado
de divulgação científica endereçado às crianças que o caracterizam como tal, verificando de que
maneiras o locutor presentifica e se orienta por seu leitor presumido.
Formuladas as perguntas de pesquisa e delineados os objetivos deste estudo, as hipóteses
levantadas são as seguintes: 1) seria através da linguagem que o discurso científico para crianças
procuraria encontrar o principal chão comum entre autor, ciência e cientista, e destinatário-
criança; 2) na divulgação científica para o público pueril haveria uma variedade de recursos
13
lexicais coloquiais, recorrentes na ideologia do cotidiano, cujo maior interesse comunicativo seria
“fazer entender”.
Por fim, quanto à relevância da presente pesquisa, esta pareceu-nos importante,
primeiramente, pela necessidade de se analisar a divulgação científica para as crianças de uma
perspectiva discursiva, cuja unidade de fundamento da análise seja a concepção da linguagem
como interação; e, em segundo lugar, por possibilitar que sejam fomentadas as discussões acerca
do modo de divulgação de saberes do campo da ciência para o público formado por não-
especialistas, nesse caso, um público caracterizado por especificidades de diversas ordens.
Além disso, no que se refere a aspectos descritivos, esta pesquisa contribuirá com os
estudos discursivos ao descrever procedimentos e recursos, relacionados à percepção do leitor
pelo enunciador, presentes na divulgação de informações científicas para crianças, permitindo a
descrição e a compreensão dos modos de produção de sentido nos gêneros de divulgação
científica para o público mirim. E no que tange ao aspecto teórico, ao investigar de que maneira o
leitor influencia e se faz presente na construção do enunciado de divulgação científica, este
trabalho contribuirá com os estudos vinculados à Análise Dialógica do Discurso
1
.
Para responder às perguntas de pesquisa formuladas e desenvolver a análise a qual nos
propomos, apoiar-nos-emos, fundamentalmente, nas noções de dialogismo,enunciado,esferas,
acabamento e gêneros do discurso, tais como propostas por Bakhtin e por seu Círculo. Ademais,
será necessário debruçar-se sobre alguns autores que refletiram sobre a atividade de divulgação
científica para crianças.
A presente dissertação se organiza da seguinte maneira: no primeiro capítulo descrevemos
os principais trabalhos que se voltaram à questão da divulgação científica para as crianças, bem
como, apresentamos a nossa concepção da atividade de se divulgar saberes científicos. No
segundo capítulo, discutimos a dimensão verbovisual do enunciado sob a perspectiva de Bakhtin
e de seu Círculo; no terceiro capítulo é descrita a Metodologia e o material de análise. Nos
capítulos quarto e quinto, é realizada a análise das reportagens de capa selecionadas e, ao final, a
título de conclusão, é apresentada uma síntese final do trabalho.
1
O termo “Análise/teoria dialógica do discurso” foi proposto por Brait (2006) em um texto intitulado Análise e
teoria do discurso.
14
1. A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA AS CRIANÇAS
No presente capítulo, a partir da pesquisa a livros, dissertações de mestrado, teses de
doutorado e artigos científicos e jornalísticos, faremos uma breve contextualização acerca da
divulgação científica para as crianças enquanto objeto de estudo, pesquisa e reflexão, para, em
seguida, debruçarmo-nos sobre discursos anteriores, produzidos em diferentes esferas ideológicas
que tomam como objeto de dizer a divulgação de saberes científicos ao público mirim.
Nas últimas décadas do século XX, na esfera midiática, foram implementados diversos
programas de divulgação científica para crianças, tais como o programa de rádio Ciência Hoje
das Crianças e a publicação de revistas, como, por exemplo, Recreio, Dever de Casa, Lição de
Casa, Disney Explora entre outras.
Todavia, no contexto brasileiro, apesar de que, a partir da segunda metade do século XX
tenham sido empreendidas pesquisas sistemáticas com relação à divulgação científica, os estudos
sobre a divulgação científica para o público mirim em sistemas não-formais de educação, tais
como revistas, livros, jornais, programas de TV e rádio, ainda são escassos. Ou seja, embora os
programas de divulgação científica para os pequenos existam e tenham o seu lugar legitimado no
contexto social infantil, coloca-se em relevo que os estudos teóricos acerca da divulgação de
saberes científicos ao destinatário-criança são muito poucos. Aqui, traremos à luz aqueles que nos
parecem mais representativos nos limites de sua esfera de circulação.
1.1 As esferas da divulgação científica para os pequenos
Conforme verificar-se-á, no decurso do capítulo ora apresentado, a divulgação científica
para crianças não constitui objeto de discurso exclusivo de tal ou qual esfera da atividade
humana, mas, ao contrário, semelhante tema é digno de atenção de diversificadas esferas da
comunicação discursiva.
Assim sendo, a noção de esfera é fundamental aos princípios de organização desse
capítulo, bem como, à teoria dialógica do Círculo de Bakhtin, primeiramente, por estar
15
indissoluvelmente relacionada aos gêneros discursivos ao configurar o seu espaço de circulação
e, em segundo lugar, por ser o seu princípio classificatório. Ao mesmo tempo em que
representam domínios específicos da atividade humana nos quais os sujeitos materializam as suas
práticas discursivas, as esferas desempenham papel regulador e referencial às produções
discursivas que se dão em seu interior, colocando à disposição dos sujeitos um repertório de
gêneros discursivos aos quais devem reportar-se.
Assinala-se, por um lado, que as esferas o constituem domínios impermeáveis,
estruturados unicamente por preceitos próprios, mantendo independência de fatores que lhes são
alheios, e por outro que, não se submetem docilmente às pressões e demandas do mundo social
externo. Grillo (2006), estabelecendo uma relação entre semelhante noção do Círculo e a
categoria de campo, proposta por Bourdieu, concebe as esferas da comunicação discursiva
enquanto lugares da atividade social e da comunicação verbal nos quais imperam leis originadas
no seio de sua própria dinâmica de funcionamento, mas não irremediavelmente impenetráveis às
leis do mundo social mais abrangente, que lhes são exteriores.
Adotando-se a noção de esferas enquanto princípio de organização do capítulo ora
apresentado, classificamos os trabalhos aqui mencionados nas esferas educacional e científico-
acadêmica. Além disso, sem situá-los em uma esfera específica, bem ilustrando o caráter
imanentemente dialógico da divulgação científica enquanto modalidade discursiva cujo objeto de
sentido se exterioriza da esfera científica e circula interesfericamente (GRILLO, 2009),
discorreremos sobre as ideias de autores que, provindos de diferentes campos, se ocuparam tanto
em divulgar saberes aos pequenos, quanto em refletir sobre o seu próprio ofício.
1.1.1 A divulgação científica para crianças na esfera educacional
Como porta-voz de textos que circulam na esfera educacional, foi selecionado o trabalho
de Lima et al, o qual discorre sobre a divulgação de conhecimentos científicos a crianças em
espaços de educação formal, ou seja, na escola, por meio de livros de literatura infantojuvenil que
abordem temas científicos.
16
As autoras relatam, no texto Contando história... Apresentamos a Física, uma experiência
realizada em uma instituição educacional de ensino público, cujo objetivo consistia em, a partir
da literatura infantil, apresentar os conceitos físicos de calor e temperatura a alunos das séries
iniciais do Ensino Fundamental. Justificam a escolha por séries iniciais do Ensino Fundamental
por acreditarem na importância essencial do ensino de Ciências na infância, o qual contribuiria à
compreensão do mundo, ao desenvolvimento de formas de investigação, à consolidação de ideias
que auxiliassem na aprendizagem posterior de Ciências e ao desenvolvimento de atitudes
positivas e conscientes acerca de tal área do conhecimento enquanto atividade humana.
Frente à necessidade de se introduzir a Física no ensino de Ciências, de forma clara e
adequada, as autoras colocam em relevo que dentre as inúmeras dificuldades que se apresentam,
a primeira a ser vencida é a linguagem. “Dentre todas as dificuldades que se apresentam,
destacamos uma: aquela que desejamos, em primeiro lugar, abordar e vencer. Essa dificuldade é a
linguagem” (LIMA et al, 1996, p. 89).
À luz de tal asseveração, as autoras, ao considerarem que a Física possui uma linguagem
específica - a qual, por diversas vezes, emprega com sentido estrito palavras de uso cotidiano,
cujos significados são mais abrangentes - postulam o surgimento de uma nova ngua. Assim,
afirmam que o aprendizado de Física implicaria na “alfabetização” desta nova ngua. Neste
sentido, lançando mão da afirmação de Bakhtin (1981, p. 95) de que “a palavra está sempre
carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”, as cientistas concluem que:
Quando a Física toma por empréstimo uma palavra de uso comum, e a
transforma, traduzindo-a para a sua linguagem específica, esta palavra sofre uma
alteração em seu conteúdo ou em seu sentido ideológico ou vivencial e passa a
exprimir um conceito bem definido, podendo-se afirmar que surge uma nova
língua (LIMA et al, 1996, p. 90).
Assim, poder-se-ia dizer que, na perspectiva das autoras, um dos grandes vilões do
fracasso do ensino de Física nas escolas seria a incompreensão de palavras utilizadas no cotidiano
quando apropriadas pela Física, as quais teriam o seu conteúdo semântico alterado. Nesses
termos, as pesquisadoras fazem a seguinte ponderação:
17
Se a linguagem científica pode ser vista como uma ngua contida em outra,
maior e mais abrangente, é necessário uma „alfabetização‟ nessa língua contida,
a microlíngua, para que um sujeito se torne, ao mesmo tempo, consumidor e
gerador de conhecimento científico (LIMA et al, 1996, p. 91).
Nessa esteira, postulam que a aprendizagem de Física, enquanto disciplina escolar, teria
como pré-requisito a alfabetização em uma “nova língua”, ao mesmo tempo em que defendem,
pese a falta de justificativas, que o ensino de Física através da literatura em muito poderia
contribuir no processo de apropriação desta linguagem desconhecida que se lhes apresenta aos
alunos.
Fazendo um adendo, assinala-se que, ao desconhecerem os conceitos de língua e
linguagem, as autoras equivocaram-se ao afirmar que a linguagem científica pode ser concebida
como uma nova língua. Assim, verifica-se que concebem a língua simplesmente como um código
transparente, na medida em que o sujeito o domina, desconsiderando-se, dessa maneira, os
aspectos subjetivo e social, variável, heterogêneo, histórico e cultural intrínsecos a uma língua
2
.
Ao considerarem especificidades da linguagem científica, afirmam o surgimento de
uma nova língua - podendo-se afirmar que surge uma nova língua”. (LIMA et al, 1996, p.
90) - a qual exigiria um estudo, uma alfabetização, cujo objetivo maior seria não dar vazão a
equívocos produzidos quando os sujeitos se deparam com elementos da linguagem científica.
Em termos bakhtinianos, compreende-se que os enunciados circundantes na sociedade
refletem as especificidades e finalidades das diversas esferas da atividade humana, através de seu
1) conteúdo temático, 2) estilo, depreendido, dentre outros elementos, pela seleção dos recursos
lexicais, e 3) construção composicional. Posto isto, entender-se-ia que, do ponto de vista das
autoras, o fracasso da aprendizagem da disciplina pelos alunos seria decorrente da incompreensão
da alteração de valor semântico de uma dada palavra que pode ser utilizada tanto na ideologia do
cotidiano
3
quanto na esfera científica. Ressalte-se o fato de que a linguagem utilizada em textos
de divulgação científica não tratar-se-ia de uma nova língua, mas sim de uma linguagem própria.
2
As ideias aqui postuladas acerca da noção de língua podem ser melhor observadas no trabalho de Possenti (1988).
3
Em Marxismo e filosofia da linguagem (1929/1992), Bakhtin/Volochinov postula que a ideologia do cotidiano
refere-se às atividades socioideológicas realizadas na vida cotidiana, que compreendem desde eventos corriqueiros,
tais como um comprimento dirigido a um pedestre com quem nos encontramos, a acontecimentos diretamente
associados aos sistemas ideológicos constituídos. No que tange aos sistemas ideológicos constituídos, verificam
atividades relacionadas aos domínios culturais mais complexos, tais como a ciência, a religião, a filosofia, etc.
18
Assim como nas artes, os demais campos produzem uma linguagem própria para
nomear e caracterizar os agentes e seus produtos. Essa linguagem elabora
esquemas de classificação e de apreciação que visam, dentro da lógica interna do
campo, construir hierarquias e modos de percepção (GRILLO, 2006, p.151).
1.1.2 A divulgação científica para crianças na esfera científico-acadêmica
Relacionaremos, aqui, pesquisas realizadas nos âmbitos da academia, por pesquisadores
pós-graduados em diferentes áreas do conhecimento e que se voltaram à questão da divulgação
científica para os pequenos a partir de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas.
Todavia, antes de elencarmos os estudos de divulgação científica ao público mirim
pronunciados por vozes que encontram respaldo na academia, convém assinalar que duas das
cinco pesquisadoras relacionadas a seguir, Gouvêa (2005) e Massarani (2007), caracterizam-se
por possuir uma perspectiva dúplice a respeito da DCC: de um lado enquanto cientista, sujeito
que tece saberes e, de outro, como jornalista científico, profissional que se encarga da divulgação
dos conhecimentos produzidos no campo científico ao público composto por não-especialistas.
Tal fato permite considerar que a aproximação ao objeto de estudo, por parte das referidas
autoras, ocorra de uma maneira multiangular, a qual leva em conta tanto aspectos intrínsecos ao
conhecimento teórico quanto às peculiaridades da prática de se divulgar saberes científicos.
1.1.2.1 Práticas de leitura de textos de DCC: a voz de um especialista em Educação
Gouvêa (2005), em um texto escrito a partir de sua tese de doutoramento em Educação
4
,
intitulado A revista Ciência Hoje das Crianças e práticas de leituras do público infantil, elegeu
como objeto de análise a prática de leitura de crianças assinantes da revista Ciência Hoje das
4
Observe-se que existem dois trabalhos relacionados à esfera educacional, o primeiro, de Lima et al (1996), não
vinculado à academia, o qual ocupa-se de relatar uma experiência, e esse de Gouvêa (2005), realizado como requisito
para o título de doutor em educação, com lugar teórico e metodológico muito bem definidos.
19
Crianças, a fim de “apresentar como a leitura desses textos aproxima a criança da linguagem e
dos conceitos científicos, bem como da própria ciência” (GOUVÊA, 2005, p.47).
O estudo da prática da leitura destas crianças, visando também caracterizar a comunidade
de crianças leitoras, concretizou-se a partir de entrevistas realizadas com 21 leitores assinantes.
Como hipótese de trabalho, a pesquisadora admitia que tais entrevistas evidenciariam
dados acerca da leitura do sujeito-criança, leitura a qual, enquanto prática social, exigiria uma
análise que levasse em conta duas questões fundamentais. Primeira, o acesso das referidas
crianças a objetos de leitura. Segunda, as condições sociais nas quais se dão os gestos de leitura.
Isto posto, apresenta a seguinte informação:
[...] para essas crianças, as condições de produção de leitura estão garantidas, e
as condições para aprendizado da leitura pressupõem: a presença do objeto
social -o livro; a valorização desse objeto no meio social; o adulto leitor que faz
uso desse objeto e a interação entre a criança, o adulto leitor e o livro
(GOUVÊA, 2005, p. 50).
Em seguida, ao refletir acerca das especificidades do sujeito-criança no que diz respeito a
variados aspectos, dentre os quais a sua afetividade e forma de expressar-se, a autora postula que
é imprescindível explorar diversas formas de linguagem para que ocorra o desenvolvimento
pleno da criança, embora não comente o esforço de Ciência Hoje das Crianças em utilizar-se da
linguagem não-verbal na construção de saberes científicos.
À luz de tal consideração, faz a seguinte assertiva no que tange às práticas sociais das
crianças:
Suas práticas sociais (brincar, jogar, ler etc) estão vinculadas à sua estratificação
social e ao seu entorno, não necessariamente o entorno fisicamente próximo,
mas o entorno cultural construído pelas suas vivências em casa, na escola, na
igreja, na rua e com os meios de comunicação (GOUVÊA, 2005, p.48).
Desse modo, com vistas a expressar-se valorativamente a favor da exposição das crianças
aos saberes científicos, Gouvêa postula que as práticas sociais do sujeito-criança não estão
estritamente relacionadas ao seu entorno próximo, de modo tal que é possível introduzir os
pequenos ao que lhes é diferente, e até mesmo, oposto. “Assim, pode-se falar de ciências para
crianças” (GOUVÊA, 2005, p.49).
20
Passando a estabelecer a relação entre as crianças e o discurso científico, considera que
desde muito cedo as crianças tomam contato com os fenômenos naturais e com as aplicações
tecnológicas e que, portanto, elaboram explicações do mundo que as cerca mesmo antes da
escolarização.
Dessa maneira, o contato com os conhecimentos científicos lhes seria fundamental para a
geração de novos significados, bem como, para a assimilação de novas informações. Além disso,
A apresentação de conhecimentos científicos, nessa faixa etária, possibilita o
contato das crianças com a linguagem e o texto científicos, que têm estruturas
próprias, tornando conhecidos vocábulos, processos, estruturas de pensamento,
isto é, inserindo-as na cultura científica (GOUVÊA, 2005, p.49).
Nesse ponto, não é impertinente assinalar que a autora idealiza e determina a linguagem
e o texto científicos”, desconsiderando o caráter imanentemente dialógico dos gêneros de
divulgação científica, cujo funcionamento e construção de sentidos são ativados justamente na
negociação de sentidos entre enunciados produzidos em diferentes gêneros e em diferentes
esferas. Assim, não se negligencia, de fato, que se, por um lado, a exposição dos pequenos a
saberes científicos promove o conhecimento do vocábulo e de processos científicos, de outro,
dificilmente, estabelece o contato das crianças com textos científicos, os quais, inseridos na
esfera da ciência, não se pretendem à divulgação, senão à disseminação científica
5
, cujos textos
produzidos têm como público-alvo a própria comunidade científica, ou seja, o destinatário
especialista e não o público geral.
Por fim, à guisa de conclusão, no que se refere ao conjunto composto pelas crianças
leitoras da Ciência Hoje das Crianças, a autora termina a sua pesquisa informando que o mesmo
é caracterizado por ter acesso e valorizar bens culturais, assim como, por encontrar prazer na
leitura. Anote-se aqui que o fato de tais sujeitos terem acesso a bens culturais foi delineado
desde o princípio da pesquisa, posto que a investigação realizara-se com crianças assinantes da
revista e não com qualquer criança, de antemão, circunscrevendo a proposição de que Ciência
Hoje das Crianças se endereça não, obviamente, à criança comum, mas sim à criança detentora
5
Em sua tese de doutoramento, Bueno (1984) propõe uma tipologia, na qual classifica a difusão científica, conceito
mais geral e amplo, que compreenderia diversas atividades voltadas à informação científica, dentre as quais, a
disseminação científica, a divulgação científica e o jornalismo centífico.
21
de certos atributos, tais como, pais ou responsáveis que tenham algum poder de consumo e que
valorizem bens culturais, assim como, às crianças que tenham um mínimo interesse pela ciência,
o que, a priori, restringe bastante esse público a uma parcela não muito grande da população
brasileira.
E, no que tange às práticas de leitura de tal público, constata que os efeitos de sentido do
texto são produzidos a partir de diferentes níveis de compreensão, que são particulares em cada
criança. Assim, os níveis de entendimento mais elevados conduziriam a leituras polissêmicas, nas
quais a criança daria prosseguimento ao discurso do autor, ao passo que níveis de leitura menos
elevados poderiam levar a leituras parafrásicas, as quais coincidiriam com aquelas almejadas pelo
autor, de modo tal que haveria a junção das figuras representadas pelo leitor virtual e pelo leitor
real.
1.1.2.2 Como divulgar ciências para as crianças
Luisa Massarani, jornalista especializada em ciência, é uma das pesquisadoras brasileiras
que mais vem se voltando à questão da divulgação científica para as crianças, tendo publicado
artigos, proferido palestras e organizado livros acerca do assunto. Abordaremos, aqui, as
reflexões realizadas pela autora a partir de sua experiência como editora na revista Ciência Hoje
das Crianças e publicadas em um artigo intitulado Reflexiones sobre la divulgación científica
para niños (2007).
Assim, desde exemplos práticos e narrando a sua experiência como autora de textos
veiculados na mencionada revista infantil, busca discutir as limitações e os benefícios em se
divulgar saberes científicos às crianças, partindo da premissa de que estas assimilariam ideias e
conceitos científicos com mais facilidade do que os adultos e os jovens.
Segundo nos informa, os livros didáticos de ciências, no contexto brasileiro, são o
principal meio de estabelecer a relação das crianças com os conceitos e o funcionamento da
ciência. No entanto, do ponto de vista da autora, tal veículo seria inadequado a este fim por dois
motivos. O primeiro está relacionado às informações transmitidas nos conteúdos, as quais
possuiriam graves erros conceituais. O segundo diz respeito ao fato de que tais livros não
22
inseririam a ciência no cotidiano das crianças, de forma a impedir o estabelecimento de relações
significativas entre o conhecimento dos saberes desse campo e o ambiente que as entorna,
impossibilitando-as de ter uma visão clara da atividade científica.
Sem aprofundar-se na questão, anote-se aqui que Massarani não problematiza o contexto
coercitivo da escola, esfera institucional construída socio-historicamente, propaladora de
ideologias e doutrinas, por vezes autoritárias e disciplinantes, na qual circulam um repertório de
gêneros relativamente estáveis, que nem sempre seriam norteados por objetivos que visam a
inserção da ciência no universo do leitor, mas talvez, revestidos pelo fim de corroborar relações
de poderes verticais e dóceis, estabelecidas por meio de concepções de que o discurso reduz-se a
um constructo linguístico no qual determinado emissor comunica sua perspectiva sobre
determinado objeto a um destinatário passivo e não-responsivo.
Retornando às ideias do artigo de Massarani, assinale-se que na perspectiva da autora, a
televisão e as histórias em quadrinhos, que igualmente configuram fontes de informação
científica orientadas ao público infantil, veiculariam imagens desapropriadas do cientista e de sua
prática e, consequentemente, da ciência como um todo.
Realizadas semelhantes considerações, as quais problematizam as produções de DCC
no contexto brasileiro, a jornalista propõe-se a relacionar uma série de procedimentos que
seriam úteis à atividade de divulgação científica ao destinatário-criança. Todavia, ressalta que
não constitui o seu objetivo relacionar regras com caráter normativo, mas sim orientativo.
Não se trata de privilegiar fórmulas gidas e inalteráveis, porque a divulgação científica
resulta de um processo de criação, que deve ter respostas distintas para cada caso
(MASSARANI, 2007, p. 2, tradução nossa).
6
À luz de tais esclarecimentos, a autora adverte que a Ciência Hoje das Crianças
estipula que 80% dos textos publicados na revista sejam produzidos pelos próprios cientistas.
No entanto, segundo nos informa, esses textos chegam à editora com uma linguagem
inapropriada para as crianças, de maneira tal que é necessário submetê-los a um processo de
reescrita, o qual leve em conta as especificidades do leitor a quem a publicação é
endereçada. Em outras palavras, a nosso ver, semelhante processo de reescrita, bem pode
6
O texto em espanhol é: “No se trata de acogerse a fórmulas rígidas ni fijas, porque la divulgación científica es
resultado de un proceso creativo, que debe tener respuestas distintas para cada caso” (MASSARANI, 2007, p. 2).
23
traduzir o esforço dos autores da revista em dar corpo, ganhar a simpatia e aproximar-se do
seu destinatário por meio do discurso.
Assim, em meio a exemplos práticos de sua experiência no acompanhamento da
adaptação de textos ao público infantil, ressalta que é importante relacionar a aprendizagem
da ciência pelas crianças a uma atividade que as satisfaça e que lhes seja divertida. Ademais,
postula que é imprescindível aproximar o texto ao universo da criança e utilizar-se de
analogias. Seria importante, também, promover estímulos para que os pequenos realizassem
as suas próprias observações a respeito da ciência, relacionando-a a aspectos nos quais
estivessem presentes objetos que lhes captassem o interesse.
Por fim, recorrendo a considerações de Sánchez acerca da prática de divulgar saberes
científicos, Massarani enumera, além daqueles que já abordara, os seguintes recursos:
[…] vínculo com a vida cotidiana, referência à cultura popular, respaldo na
história e na tradição; vínculo entre a arte e a ciência, utilização de analogias e
metáforas; desmistificação da ciência; utilização de ironia e humor;
reconhecimento dos erros humanos. Semelhantes aspectos sistematizados por
Sánchez, muitos dos quais foram tratados neste artigo, são recursos importantes
e que devem ser considerados na escrita de um texto de divulgação científica.
Para Sánchez, os textos devem atrair o leitor (MASSARANI, 2007, p.2, tradução
nossa).
7
Dessa maneira, conclui as suas reflexões asseverando que tais procedimentos seriam
relevantes na produção de qualquer texto de divulgação científica que visasse informar e atrair o
leitor, fosse ele adulto ou criança. Observe-se que a autora, ao centrar-se em procedimentos
linguisticos úteis à elaboração do discurso de divulgação científica, relega ao destinatário e ao
endereçamento do enunciado um segundo plano. De nossa perspectiva, quiçá, à luz da
comunicação dialógica à qual se pretendem diversos materiais de divulgação científica, dever-se-
ia subverter a ordem vigente, posto que seria de maior eficácia promover o deslocamento do
7
O texto em espanhol é: […] vínculo con la vida cotidiana; referencia a la cultura popular; apoyo en la historia y en
la tradición; vínculo entre arte y ciencia; utilización de analogías y metáforas; desacralización de la ciencia;
utilización de ironía y humor; y reconocimiento de los errores humanos. Esos aspectos sistematizados por Sánchez,
muchos de los cuales se han tratado en este artículo, son recursos relevantes que hay que tener en cuenta en el
momento de escribir un texto de divulgación científica. Para Sánchez, los textos deben atraer al lector
(MASSARANI, 2007, p.2).
24
destinatário do enunciado à uma posição nuclear, para somente a partir de então, selecionar-se
procedimentos linguísticos, lexicais e visuais que constituiriam o todo do enunciado.
1.1.2.3 A ciência e o cientista em desenhos de animação
No texto Superpoderosos, submissos: os cientistas na animação televisiva, publicado no
livro O pequeno cientista amador: a divulgação científica e o público infantil, Siqueira (2005),
pesquisadora especialista em Ciências da Comunicação, busca refletir acerca da imagem do
cientista, tal como veiculada na mídia televisiva, e mais especificamente, nos programas de
animação infantil. Para tanto, a autora analisa três desenhos animados cujo traço comum é o de,
apesar de lançarem mão da aparência do científico, não se comprometerem com a imagem que é
transmitida do cientista e de sua prática.
Ao contrário disto, as referidas animações mostrariam “imagens distorcidas de cientistas,
sendo alvo de chacota e tendo comportamentos pouco convencionais, considerados socialmente
desajustados” (SIQUEIRA, 2005, p. 28).
Para desenvolver a sua pesquisa, a pesquisadora parte do princípio de que os meios de
comunicação, ademais de proporcionarem diversão e entretenimento, transmitem conceitos,
ideologias e hábitos, através da veiculação de informações com características diversas:
publicitárias, jornalísticas, científicas, tecnológicas, etc. Neste sentido, os meios de comunicação
de massa exerceriam sobre a sociedade um importante papel persuasivo e formador.
À luz de tal constatação, em razão de estarem ao alcance das massas, os meios de
comunicação poderiam ser muitos úteis à sociedade no sentido de transmitir-lhe saberes e
conhecimentos científicos. No entanto, conforme Siqueira, na grande maioria das vezes não o
são, posto que “preocupam-se mais intensamente com a manutenção comercial de canais e
produtoras do que com a qualidade das informações prestadas ou com a inovação artística e
estética”(SIQUEIRA, 2005, p. 23).
Assim, no que tange à programação televisiva infantil e no que diz respeito à figura do
cientista, haveria a predominância de desenhos animados, os quais, se de um lado são
constantemente inovados por conta da tecnologia gráfica, de outro, apresentam pouca inovação e
25
preocupação no que se refere aos temas e às personagens, de modo tal que a figura do cientista
seria projetada através da imagem estereotipada de um cientista maluco e fanfarrão que,
comumente, não possui credibilidade com alguma outra personagem. De acordo com a própria
autora:
Exercendo uma tarefa formadora -independente do sentido que essa função
possa adotar , a televisão reforça, através dos desenhos, representações e
imagens que já circulam na sociedade. Opera recorrendo a estereótipos. Isso fica
claro na figura do cientista apresentada em grande parte das animações
veiculadas na programação das emissoras no Brasil: continua estereotipada
apesar do surgimento de novas produções e do emprego de novas tecnologias
para sua confecção (SIQUEIRA, 2005, p. 30).
Desse modo, partindo da premissa de que a televisão é um agente protagonista na
construção do imaginário
8
e que a educação do sujeito ultrapassa os anos escolares, Siqueira
sustenta que a exposição do indivíduo à variadas fontes de informação, dentre outros fatores,
poderia amenizar a forte influência exercida pela televisão na construção de ideias, imagens e
estereótipos.
Não é impertinente assinalar que a autora, ao mesmo tempo em que reflete sobre a
importância dos meios de comunicação à informação e formação do público pueril,
provavelmente por não constar de seus objetivos, o menciona a faceta humorística das
personagens que incorporam os cientistas fanfarrões e malucos, os quais subvertendo as relações
de poder entre ciência e sociedade, recriam um espaço “às avessas”, no qual cientista e ciência
“são destronados”, dessarte que uma maneira burlesca do afazer científico é instaurado,
contrapondo-se à uma realidade séria e, por vezes, excludente, que é a da ciência nos sistemas
ideológicos constituídos. O próprio Bakhtin (1999 [1940]), em sua tese de doutoramento, ao
explanar sobre a função do riso na Idade Média e no Renascimento põe em relevo que, por vezes,
nas manifestações populares da época em questão, o riso era consequência de uma visão de
mundo específica, marcada pela subversão dos valores oficiais, pelo caráter renovador e
contestador da ordem vigente.
8
Conforme informado pela autora, a sua concepção de imaginário é sustentada em Durand, que postula que tal
noção diz respeito ao repertório de imagens que são construídas cotidiana e incessantemente nos diversos âmbitos da
vida social.
26
1.1.2.3 A DCC sob o viés da Linguística
Em seguida, colocaremos em relevo as pesquisas de duas estudiosas, Zamboni (2001) e
Silva (2007) que se voltaram a divulgação científica para as crianças como objeto de estudo, a
partir de metodologias e perspectivas teóricas distintas, tal como será descrito abaixo.
No capítulo sexto de seu livro, intitulado Cientistas, jornalistas e a divulgação científica:
subjetividade e heterogeneidade no discurso de divulgação científica (2001), e concebido à luz
da análise de discurso francesa, Zamboni se volta à questão da divulgação científica para as
crianças com vistas a caracterizá-lo, considerando particularidades textuais e discursivas, no que
tange, sobretudo, à dimensão do locutor. No entanto, admite que “o pólo do destinatário foi
incorporado à reflexão por força de sua natureza constitutiva em todo discurso, do qual participa
na qualidade de co-enunciador” (ZAMBONI, 2001, p. XIX).
Isto posto, a autora parte do princípio de que o texto de divulgação científica direcionado
ao público infantil apresentaria recursos metalinguísticos com os quais o discurso seria
construído, de modo tal que se evidenciaria a representação que o enunciador assume do
destinatário-criança.
Neste sentido, a fim de comprovar semelhante asserção, a autora empreende uma análise
comparativa entre dois textos de autoria do cientista Cléber J. R. Alho, os quais, dirigidos a
auditórios distintos - um formado por adultos e outro por crianças -, versavam sobre o mesmo
tema, a saber, uma espécie de tartaruga da Amazônia.
Zamboni (2001) destaca que, embora ambos os textos discorram acerca do mesmo
assunto, o tratamento do tema apresenta variações quanto à relação atuacional e pragmática que
os protagonistas (enunciador e destinatário) impõem ao discurso da divulgação científica para
adultos e da DCC(ZAMBONI, 2001, p.124).
Destarte, à luz da metodologia de Myers, a autora se norteia por três níveis de análise,
com vistas a caracterizar os textos em questão: 1) a organização textual; 2) a sintaxe; 3) o
vocabulário.
No que concerne ao nível da organização textual, no texto endereçado aos adultos, a
autora informa que o enunciador confere ênfase às sequências argumentativas, enquanto no texto
ao destinatário-criança a predominância de sequências narrativas. Ademais, destaca que, nesse
27
nível, notam-se as diferenças entre as imagens que o enunciador projeta de seu interlocutor adulto
e criança; imagens essas depreendidas dos conhecimentos prévios supostamente atribuídos aos
leitores, haja vista que no texto direcionado às crianças haveria a preocupação de esclarecer
questões básicas, tais quais o modo de vida e de alimentação das tartarugas da Amazônia.
Em relação ao segundo nível, ou seja, o da sintaxe, a analista do discurso assevera que,
enquanto no texto endereçado aos adultos predominam frases complexas e um maior índice de
subordinação, no texto para as crianças um maior número de frases simples e coordenadas.
Além disso, postula que o texto dirigido aos adultos apresenta riqueza e diversidade de elementos
coesivos, ao passo que no texto para as crianças existe escassez e invariabilidade dos referidos
elementos, os quais cedem lugar ao encadeamento de ideias e à progressão temporal da narrativa.
Por fim, quanto ao terceiro nível, o do vocabulário, verificar-se-ia, no texto para os
adultos, vocabulário originário do discurso de divulgação especializado, já no texto para as
crianças seriam predominantes os termos provindos do cotidiano, de modo tal que a seleção
lexical conferiria um caráter mais didático ao texto endereçado aos pequenos.
Quanto ao artigo de Silva (2007), Estudo enunciativo da pessoalização do discurso de
divulgação científica infantojuvenil: o emprego do pronome você, verifica-se a proposição de se
estudar a “pessoalização” do discurso de divulgação científica infantojuvenil, a qual seria
depreendida através do emprego do pronome pessoal você. O objetivo maior da pesquisadora
seria o de comprovar que o discurso de divulgação ao destinatário-criança, diferentemente de
artigos científicos endereçados aos adultos, utiliza os pronomes pessoais a favor da divulgação de
saberes científicos e não como indício de subjetividade.
Tal estudo, conforme palavras da autora, se desenvolveu à luz de três hipóteses:
a) o gênero discurso de divulgação científica pertence à esfera do gênero artigo
científico, devendo, portanto, ser descrito juntamente com ele;
b) a pessoalização do discurso de divulgão infantojuvenil tem como correlata
a impessoalização do discurso científico;
c) a pessoalização do discurso de divulgação científica ocorre através de
pronomes de primeira e segunda pessoa, por sua vez, a impessolização ocorre
através de pronomes de terceira pessoa; (SILVA,2007, p.1826).
Destarte, ao observar a alta incidência do pronome você em textos de DCC, presentes em
um corpus formado por textos da revista Ciência Hoje das Crianças e disponíveis em dia
28
eletrônica, a autora elegeu tal pronome como categoria de análise, a ser verificada em seu
contexto frasal e textual.
Silva (2007) postula que o pronome você possui uma especificidade discursiva que não se
estenderia a outros pronomes. Semelhante especificidade, depreendida à luz da Teoria da
Enunciação de Émile Benveniste, é denominada pela autora por pessoalização. Assim, conclui
que a notável incidência do pronome você no texto de divulgação científica para o público
infantojuvenil, a qual o é verificável no artigo científico, colocaria em relevo a especificidade
deste “gênero” em face àquele. Aliás, a presença maciça do referido pronome leva a estudiosa a
asseverar que “essa palavra é uma marca específica desse gênero textual” (SILVA, 2007,
p.1826).
Tendo em vista tal asserção, constata-se que a autora concebe que a DCC constitui um
“gênero textual específico. No entanto, ainda que se remeta a Bakhtin ao tratar da noção de
gêneros, Silva (2007) esclarece que se propõe a estudar os gêneros científicos desde uma
perspectiva a qual denomina enunciativa, e cujo conceito é formulado à luz das pesquisas de
Benveniste. Assim, segundo palavras da autora:
Gênero pode ser entendido como um plano ou sistema de enunciação,
comportando formas linguísticas e funções específicas. Cada plano enunciativo
ou cada gênero relaciona-se com outro plano que lhe é complementar e
distintivo, com o qual opõe formas linguísticas e funções opostas e
complementares (SILVA, 2007, p.1828).
Dessa forma, ao compreender os gêneros a partir de suas formas linguísticas e suas
funções comunicativas específicas, a autora categoriza os textos científicos a partir da
distribuição de uso das formas dos pronomes pessoais com a qual foi estruturado.
Nesses termos, distingue o texto científico em dois gêneros, a saber, 1) o artigo científico,
cujos interlocutores seriam cientistas e 2) o artigo de divulgação científica infantojuvenil, cujos
interlocutores são o cientista e/ou o jornalista e a criança. Ademais, atribui a origem do gênero
artigo de divulgação científica infantojuvenil a dois outros gêneros, o gênero artigo científico, de
um lado, e o diálogo cotidiano, de outro. Em conformidade com a autora, tal afirmação se
sustenta no fato de que os textos de divulgação científica são, de um lado, de autoria de cientistas,
os quais estão familiarizados ao artigo científico e, de outro, de jornalistas, que entrevistam
cientistas e lêem seus artigos científicos.
29
Por fim, a pesquisadora conclui o seu artigo afirmando que a pessoalização iria ao
encontro de uma necessidade que a criança teria em compreender o saber científico como um
fenômeno tangível, que se inserisse em seu universo.
Fazendo um adendo, no que toca ao conceito de gêneros, parece-nos que a definição dos
gêneros científicos à luz de seu aspecto enunciativo, no que diz respeito à utilização dos
pronomes pessoais, é muito reducionista e, certamente, não daria conta de explicar
particularidades fundamentais dos gêneros que circulam na esfera científica.
Além disso, embora estejamos de acordo com a autora de que nos textos de divulgação
científica para as crianças haja elementos tanto da esfera científica quanto da ideologia do
cotidiano, não convergimos no que se refere à origem dos gêneros de divulgação científica para
as crianças, que segundo a autora seriam oriundos dos gêneros artigo científico e diálogo
cotidiano. Nessa via, a perspectiva aqui adotada é a de Grillo (2009), que, à luz da perspectiva
bakhtiniana, postula que os gêneros de DC em revistas especializadas, tal como é o caso da
Ciência Hoje das Crianças, “são tipos relativamente estáveis de enunciados que refletem e
refratam as determinações da comunicação discursiva. Elas caracterizam-se pelo dialogismo de
saberes da esfera científica com os de outras esferas” (GRILLO, 2009, p. 9). Assim, se a DC
apresenta características tanto dos gêneros artigo científico quanto diálogo cotidiano é porque
nela verificam-se relações dialógicas entre as esferas científicas e a ideologia do cotidiano.
Passemos à abordagem das reflexões de divulgadores de ciências para as crianças.
1.2 A divulgação científica para crianças na perspectiva do divulgador
Em seguida, debruçar-nos-emos sobre textos de autores, os quais, do lugar de cientistas,
experimentaram a condição de divulgadores de saberes científicos para as crianças. Embora não
se pronunciem da mesma esfera, ambos autores refletiram sobre a questão da DCC motivados
pelo fato de serem autores de textos de divulgação científica endereçados ao público mirim.
Maria Julieta Ormastroni, autora de textos e livros de DCC, pesquisadora renomada e
conceituada na área de jornalismo científico, apesar de sua emérita contribuição às questões
30
relacionadas a ciência e às atividades de DC, ao tomar como objeto de reflexão a divulgação de
saberes aos pequenos, o faz a partir de sua prática, sem se preocupar em aprofundar a questão.
No artigo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, intitulado
A Divulgação Científica no Meio Infanto Juvenil, relata a sua experiência em divulgar saberes
científicos para o público mirim em um suplemento infantil do jornal Folha de S. Paulo. Os
conteúdos veiculados no referido suplemento resultavam da observação de um experimento
realizado por um grupo de crianças sobre um tema científico.
A autora inicia o artigo ponderando a recente mudança ocorrida nos meios de
comunicação de massa, a qual propicia a circulação de informações, através de diferentes meios,
entre pessoas de distintas idades e classe socioeconômica. Enfatiza, todavia, que “a divulgação
científica na forma escrita não tem, porém, este mesmo alcance, muitas vezes não é nem mesmo
notado nos meios infantis” (ORMASTRONI, 1989, p.23).
Nesse sentido, Ormastroni, ainda que não explicite o motivo da escassez de
empreendimentos de DCC, destaca que o mesmo não é decorrente do desinteresse do público
infantil, haja vista que, segundo palavras da própria estudiosa “ele é ávido de notícias e tem sua
atenção bastante aguçada para tudo o que diz respeito às ciências” (ORMASTRONI, 1989, p.23).
Assim, baseada em Reis, que considera os benefícios que a DCC proporcionaria aos
pequenos - a saber, a familiarização com a ciência e seus efeitos, a qual suprimiria falhas na
formação educacional e, ao mesmo tempo, atualizaria conhecimentos - a autora lança mão da
seguinte questão, também formulada pelo referido jornalista: “Como levar a divulgação científica
ao mundo infantil? (ORMASTRONI, 1989, p.23). A fim de responder a tal pergunta,
Ormastroni passa a relatar seus desafios e reflexões à luz de sua experiência na colaboração de
artigos de divulgação científica destinados às crianças.
Destacando o fato de serem poucos os pontos de referência que discorrem acerca de como
divulgar saberes científicos a este público, a autora procura aproximar-se do universo infantil e
observar quais os questionamentos das crianças a respeito de fenômenos científicos do cotidiano.
No entanto, informa que se questiona se seria esta a melhor maneira de levar o conhecimento
científico ao público infantil.
Além disso, assevera que uma das preocupações dos divulgadores de ciência nos meios
infantis é a de estabelecer relações entre os conhecimentos prévios e as novas informações
31
apresentadas, sendo a seguinte uma de suas maiores dúvidas: a linguagem e as informações
veiculadas atingem o destinatário-criança?
A resposta a tal pergunta, seria dada, de acordo com a autora, nas cartas recebidas por
crianças de diferentes regiões do país, as quais manifestavam entusiasmo com os experimentos
propostos e que, além disso, sugeriam temas a serem tratados pelo jornal.
Assim como Ormastroni, Roquette-Pinto (1884-1954), na condição de cientista - atuante
na área de antropologia e educação - e divulgador de conhecimentos científicos, arriscou-se a
refletir sobre o que era a DCC em A história natural dos pequeninos, publicado, pela primeira
vez, no ano de 1927, no livro Seixos Rolados.
O referido texto, embora seja classificado como artigo
9
, não possui um acabamento
textual e formal que consinta que o classifiquemos neste gênero, assemelhando-se mais a esboços
de reflexões que carecem de conclusão. De acordo com palavras do próprio autor, o texto
apresenta um caráter abstrato - “Essas considerações abstratas, como o são de fato (...)”
(ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927], p.61).
Nesses termos, Roquette-Pinto, demonstrando sensibilidade ao fato da singularidade de
cada criança no processo de aprendizagem, coloca em relevo os problemas oriundos e inerentes à
educação científica ocorrida na esfera escolar. Assim, o autor inicia as suas considerações
criticando o anacronismo e a inadequação, característicos dos materiais de ensino que se propõem
a divulgar saberes das ciências naturais às crianças da contemporaneidade.
[...] os métodos de ensino são anacrônicos, atrasados, rudimentares e
incompletos, incapazes de formar cidadãos dignos da época, eficientes e fortes,
em condições de lutar vantajosamente com as dificuldades da vida moderna, em
que, pelo formidável impulso do progresso, o conhecimento da natureza é
questão fundamental (ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927], p. 59).
Isto posto, destaca a necessidade de se adequar os modos de apresentação e exposição dos
saberes científicos às habilidades sensoriais mais desenvolvidas de cada criança. Contudo, o
divulgador se posiciona favoravelmente à divulgação científica através de recursos visuais ao
afirmar que “(...) o ouvido facilmente engana a alma...o olhar quase sempre esclarece. Por isso
9
Tal classificação é feita por Luisa Massarani (2005), organizadora do livro O pequeno cientista amador: a
divulgação científica e o público infantil, no qual o texto de Roquette-Pinto foi republicado.
32
mesmo, ao invés de falar ou de escrever, é sempre melhor mostrar ou desenhar” (ROQUETTE-
PINTO, 2005 [1927], p.60).
Realizadas tais considerações, o divulgador faz uma tentativa de prescrever quais os
gestos que devem ser adotados ou evitados na prática de divulgar ciências ao público infantil.
Neste sentido, propõe que as crianças se familiarizem com o meio ambiente no qual vivem para
que somente depois lhes sejam introduzidos elementos próprios de ambientes que lhes são
desconhecidos.
O primeiro passo valioso deve ser dado familiarizando a criança com o meio.
Que contra-senso falar aos pequenos de um elefante antes de lhes mostrar as
diferenças e semelhanças existentes entre um cão e um gato (ROQUETTE-
PINTO, 2005 [1927], p.60, grifo do autor).
Além disso, postula que os fatos científicos apresentados para os pequenos devem ser
aqueles que fazem parte de seu entorno, oferecendo experiências práticas que se utilizem da
comparação indutiva.
Note-se que, atualmente, transcorridos mais de oitenta anos da publicação do texto de
Roquette-Pinto, existe um esforço das autoridades responsáveis pela educação formal no país,
matearializado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs
10
), em enlear o ensino de ciências
ao entorno próximo, à curiosidade e às necessidades mais imediatas das crianças. Além disso, não
é demasiado lembrar que, novamente, a esfera escolar aparece, explicitamente, como espaço, por
excelência, da circulação de saberes científicos. Nesse ponto, embora não aprofundemos a
questão, é despropositado não observar que tanto Massarani (2007) quanto Roquette-Pinto (2005
[1927]), ao admitirem o papel da escola na veiculação de saberes científicos, não esclarecem que
em semelhante instituição o foco centra-se no ensino-aprendizagem de ciências, processo e
atividade de incontestável divergência da divulgação científica - utilização de recursos, técnicas
e processos para a veiculação de informações científicas ao público em geral(BUENO, 1984,
p.18, grifos nossos) - haja vista que a escola, ademais de vincular-se a um público bem
10
De responsabilidade do MEC (Ministério da Educação), os PCNs são as diretrizes elaboradas pelo Governo
Federal para orientar a educação no Brasil e são organizados por áreas de saber. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o ensino de Ciências Naturais, Meio Ambiente e Saúde estão disponíveis no site
http://portal.mec.gov.br, acessado em setembro de 2010.
33
específico, norteia-se por objetivos que estão, ou deveriam estar, muito além da pura e simples
veiculação de saberes.
No que se refere à questão da linguagem, interessante comentar que Roquette-Pinto
entende que os recursos linguísticos presentes na divulgação científica para as crianças não
necessitem provir da esfera científica, mas sim da linguagem cotidiana. Nesta perspectiva, o autor
predica o seguinte: “Conheçam os pequenos as plantas pelos nomes usuais, na boa linguagem do
povo” (ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927], p.62).
Mais do que refletir sobre a questão da educação científica das crianças, o autor
demonstra preocupar-se também com os conhecimentos científicos dos adultos que, em sua
perspectiva, são tão limitados a ponto de que diferentes espécies de animais são denominadas de
“bicho” (ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927], p.63). À luz de tal consideração, sugere que os
conhecimentos científicos da população, no se refere à botânica, poderiam ser ampliados se as
autoridades municipais se ocupassem em colocar uma placa em cada árvore, nomeando-as.
Por fim, o autor conclui o seu ensaio enfatizando que a iniciação das crianças aos
conhecimentos das ciências naturais se não formarem “bons patriotas”, formarão futuros
cientistas (ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927], p.60).
1.3 Breve discussão
Após haver percorrido o postulado dos principais autores que se debruçaram sobre a
divulgação científica para o público infantil, teceremos algumas considerações e apreciações
acerca de determinadas ideias e conceitos que foram trazidos à luz nos textos mencionados.
Assinale-se que a adoção das esferas enquanto princípio de organização do capítulo ora
apresentado, não somente corroborou a impressão primeira acerca da escassez de trabalhos e
pesquisas científicas dedicados à questão da divulgação científica para as crianças, como também
iluminou o fato de que semelhante assunto suscita interesse de variadas esferas da comunicação
discursiva, tais quais a educacional, a ciêntifico-acadêmica e a jornalística.
A questão da linguagem na DCC atravessou todos os trabalhos, com ressalva ao de
Siqueira (2005), ora configurando categoria de análise fundamental aos seus autores, ora
34
apresentada como elemento de dificuldade ou atenção. Porém, a respeito das asserções sobre esta
questão, chamou-nos atenção, sobremaneira, os trabalhos de Lima et al (1996), que considera que
a ciência utiliza uma “língua” própria, e de Silva (2007), que postula que existem apenas dois
tipos de gêneros discursivos que possuem como tema objetos de saberes científicos: os artigos
científicos e os genêros de DC.
Outra questão reincidente é prescrição de que na divulgação científica para os pequenos
deve haver um diálogo constante entre, de um lado, elementos próprios da esfera científica e, de
outro, característicos da ideologia do cotidiano (GOUVÊA, 2005; MASSARANI, 2007;
ORMASTRONI, 1989 ; ROQUETTE-PINTO, 2005 [1927]).
Assinale-se ainda que todos os autores aqui resenhados isentaram-se de abordar o caráter
didático e escolar que revestem os materiais de divulgação científica para o público mirim, os
quais encontram como o seu espaço de circulação, por excelência, a escola
11
. Além disso, é
necessário mencionar que embora se atrele a divulgação científica à escola, não houve tentativas
de caracterizar e delinear o lugar de cada uma dessas atividades (divulgação científica e ensino-
aprendizagem das ciências) no contexto escolar.
Não se pode deixar de tecer a observação de que os trabalhos de Ormastroni (1989) e
Roquette-Pinto (2005 [1927]), autores com experiência na divulgação de divulgação científica, ao
se voltarem à questão da divulgação científica pueril não o fazem de maneira acadêmico-
científica, mas sim especulativa, de maneira tal que o texto reveste-se de um caráter mais
narrativo do que analítico ou reflexivo, levantando problemas e questões aos quais não serão
apresentadas respostas.
Ademais, embora se desvele que Roquette-Pinto (2005 [1927]) assinale a importância dos
elementos visuais na divulgação científica ao público mirim, nenhum dos trabalhos aqui referidos
problematizou ou se propôs a refletir a respeito da relevância e lugar de formas composicionais
visuais nos diversificados materiais de DCC, os quais, de nosso ponto de vista, são
imprescindíveis à divulgação de saberes científicos a este público, em específico.
11
A revista Ciência Hoje das Crianças, por exemplo, é adotada pelo Ministério da Educação (MEC) e distribuída a
milhares de escolas públicas como material paradidático. Soma-se a isso o fato de que, ademais da referida revista,
circulam nas escolas outros materiais, aprovados pelo PNDL, que tem por objetivo a divulgação de conhecimentos
científicos.
35
Nesse sentido, parece-nos pertinente que nos voltemos às relações de sentido, isto é, ao
dialogismo depreendido da articulação entre elementos verbais e visuais da Ciência Hoje das
Crianças, objeto de análise da dissertação ora apresentada, enquanto aspecto a ser observado e
considerado de suma importância na divulgação científica pueril. Para tanto, no capítulo seguinte,
faz-se necessário que, sempre levando em conta o postulado teórico adotado, isto é, norteados por
um olhar bakhtiniano, situemos e discorramos acerca de noções que são fundamentais às análises
às quais nos propomos. Evidentemente, dada a complexidade de certas noções, o objetivo aqui
não será esgotar o assunto, mas simplesmente levantar, iluminar e fomentar a questão.
36
2. PARA UMA ANÁLISE DO ENUNCIADO VERBOVISUAL DA REVISTA
CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS
Neste capítulo, temos como objetivo mobilizar e discutir noções básicas propostas por
Bakhtin e por seu Círculo, que se nos apresentam fundamentais à análise dos enunciados
verbovisuais da Ciência Hoje das Crianças, tais como dialogismo, gêneros discursivos, autoria,
esferas e acabamento. Além disso, discutiremos e refletiremos a acerca das dimensões verbal e
visual que constituem os enunciados escritos da revista em questão.
2.1 Relações dialógicas na Ciência Hoje das Crianças
Ancorada na noção de dialogismo, a análise do corpus é empreendida por meio da
categoria de enunciado ou, em outros termos, de gênero discursivo, unidade real e concreta da
comunicação discursiva da qual se vale um sujeito, que situado em uma esfera da atividade
social e imbuído de um querer-dizer, dirige-se a um ou mais destinatários para falar sobre
determinado objeto de sentido” (COSTA, 2010, p. 47).
A noção de dialogismo, ou relações dialógicas, perpassa diversas obras do Círculo de
Bakhtin e, tal como proposta no capítulo 5 da obra Problemas da Poética de Dostoiévski (1997
[1963]), seriam relações semânticas estabelecidas entre enunciados concretos de diferentes
sujeitos do discurso ou, inclusive, no interior do mesmo enunciado, da autoria de um único
sujeito que tenha fixado sua posição social.
Ademais, Bakhtin assinala que:
As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais
(relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante
do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada
como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um
outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a
voz do outro. Por isso, as relações dialógicas podem entrar no âmago do
enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam
dialogicamente duas vozes [...].
Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre os estilos de
língua, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como posições
37
semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, em uma
abordagem não mais linguística.
Por último, as relações dialógicas são possíveis também com a sua própria
enunciação como um todo, com partes isoladas desse todo e com uma palavra
isolada nele, se de algum modo nós nos separamos dessas relações, falamos com
ressalva interna, mantemos distância face a elas, como que limitamos ou
desdobramos a nossa autoridade (BAKHTIN,1997 [1963] p. 184).
Tais relações, longe de serem apenas relações lógicas e sintáticas, previstas pelo sistema
da língua, são, antes, relações extralinguísticas, às quais são de fundamental relevância o contexto
externo, social e histórico, a situação de comunicação, os enunciadores envolvidos, etc.
O filósofo russo dedica o quinto capítulo da obra sobre Dostoiévski para examinar um
tipo bastante especial de relações dialógicas, o qual denomina discurso bivocal, cujo princípio
basilar reside na dupla orientação do enunciado: “voltado para o objeto do discurso enquanto
palavra comum e para um outro discurso para o discurso de um outro (BAKHTIN, 1997 [1963],
p. 185). Tal tipo de enunciado, que não deve ser estreitamente compreendido como paródia,
polêmica e debate, requer uma abordagem essencialmente dialógica, que leve em conta essa
dupla orientação discursiva, jamais permindo-se ser entendido em um contexto monológico,
definido exclusivamente em relação a seu objeto ou palavras do mesmo discurso.
Metodologicamente falando, é importante assinalar que, na proposição do autor, o
discurso bivocal é objeto de exame da metalinguística, campo de saber que estudaria as relações
dialógicas, as quais, por não serem linguísticas no sentido categórico do termo e abordarem
aspectos do discurso que ultrapassam as fronteiras das relações linguísticas lógico-semânticas,
não poderiam ser explicadas a partir das teorias propostas pela Linguística. Ressalta-se que, as
pesquisas metalinguísticas em relação à linguistica, enquanto disciplina, de maneira alguma,
deveriam ignorar as contribuições dessa enquanto possibilidade de análise do objeto, mas sim
completarem-se mutuamente, sem que, entretanto, haja uma fusão (BAKHTIN, 1997[1963], p.
181).
Pautado no fenômeno da interação social entre enunciados proferidos por diferentes
sujeitos, o dialogismo encontra a máxima de sua existência na relação estabelecida entre o eu e o
outro, haja vista que o sujeito somente constituir-se-á enquanto tal na alteridade, em consciências
que não coincidem com a sua.
38
Assim, a interação entre sujeitos, ou seja, a presença ativa da alteridade e
intersubjetividade no discurso é um dos preceitos estruturadores do dialogismo, posto que todos
os enunciados são projetados em razão e para um interlocutor, que pode ser real ou factível. Em
matizes diversos, o outro sempre é levado em conta no discurso do sujeito autor do enunciado;
outro a quem se dirigirá e por quem norteará todo o seu ato discursivo.
Articulando esse conceito à análise da revista Ciência Hoje das Crianças e considerando-
se que o discurso de divulgação científica elaborado pela publicação é objetivamente direcionado
para o outro, o destinatário virtual criança, pode-se presumir um dialogismo imanente, norteado
por dois princípios balizadores: primeiro, o objeto do dizer (conhecimentos e saberes científicos)
e, segundo, o destinatário do enunciado, do qual são levados em conta os conhecimentos prévios,
as afinidades, simpatias e as possíveis atitudes responsivas.
Isto posto, é permitido que consideremos, no sentido bakhtiniano do termo, que o discurso
de divulgação científica da Ciência Hoje das Crianças é um discurso bivocal, ou seja, possui
dupla orientação, a saber, ao objeto de sentido e ao discurso de outrem, polemizando com ele,
antecipando-o, levando-o em conta.
É pertinente informar que o dialogismo é concebido por Bakhtin enquanto um princípio
constitutivo da linguagem, ou seja, um fenômeno geral que se estende a todas as situações em
que discurso.“Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego, (a linguagem
cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas”
(BAKHTIN, 1997[1963], p. 183).
2.2 Os elementos verbovisuais e os gêneros discursivos
À luz da análise dos discursos presentes na Ciência Hoje das Crianças e considerando
que o enunciado é composto por formas composicionais verbais e visuais, uma questão imediata
se nos impõe: qual o lugar dos elementos visuais dentro da importante noção bakhtiniana de
gêneros discursivos?
A noção de gêneros discursivos foi formulada pelo pensador russo no texto “Os gêneros
do discurso” (BAKHTIN, 2003 [1952-1953]), presente na obra Estética da Criação Verbal, obra
39
essa que reúne textos escritos por Bakhtin em diferentes momentos de sua vida. No texto em
questão, o autor assinala que o traço em comum entre os diversos campos da atividade humana
diz respeito ao uso da linguagem, materializada na forma de enunciados, sejam eles orais ou
escritos, os quais “refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo”
(BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 301). Estes campos, por sua vez, elaboram tipos relativamente
estáveis de enunciados, os quais o filósofo denomina “gêneros do discurso”, cuja definição é
formulada a partir de três elementos, de natureza semântica, linguística e textual, que não devem
ser considerados isoladamente, mas sim em seu conjunto. Desse modo, os gêneros do discurso
são caracterizados por um feixe de traços, a saber, o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional, que se articulam entre si (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 261).
Assim sendo, ancorando-se na concepção de gêneros do discurso, tal como supracitada,
faz-se necessário determinar a qual traço dos gêneros - o conteúdo temático, o estilo ou a
construção composicional - enlear-se-iam os elementos visuais dos gêneros de divulgação
científica da Ciência Hoje das Crianças.
Grillo (2009), pensando justamente em enunciados de divulgação científica, da revista
Fapesp, argumenta que os elementos visuais congregam, de um lado, um momento da construção
composicional do gênero, e de outro, a concretização material do projeto de discurso do falante.
De acordo com a autora:
A partir da distinção entre forma arquitetônica
12
e forma composicional ou
entre projeto de discurso do falante e construção composicional do gênero,
entendemos que a dimensão verbovisual do enunciado de divulgação científica
é, por um lado, um momento da organização do material verbovisual na
construção composicional e, por outro, a materialização do projeto discursivo do
autor (GRILLO, 2009, p. 217, grifos nossos).
Semelhante proposição vai ao encontro do que se observa nos gêneros discursivos de
divulgação científica da Ciência Hoje das Crianças, posto que o conhecimento científico,
enquanto forma de acontecimento ético auto-suficiente, em conformidade com o projeto
discursivo do autor do enunciado, materializar-se nos gêneros de divulgação científica,
12
Bakhtin define “forma arquitetônica” da seguinte maneira: “As formas arquitetônicas são as formas dos valores
morais e físicos do homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do acontecimento no
seu aspecto de vida particular, social, histórica, etc.; todas elas são aquisições, realizações, não servem a nada, mas se
auto-satisfazem tranquilamente; são as formas da existência estética na sua singularidade.
40
lançando mão de formas composicionais verbais (palavras) e visuais (fotografias, ilustrações,
gráficos, etc).
Segundo Bakhtin (2003 [1952-53]), são justamente esses dois elementos, ou seja, o
projeto discursivo do falante e as formas composicionais, em articulação à exauribilidade do
objeto e do sentido do enunciado, que asseguram a compreensão responsiva de outrem,
conferindo ao enunciado o seu lugar de elo na cadeia discursiva. Mais ainda,
A conclusibilidade do enunciado é uma espécie de aspecto interno da alternância
dos sujeitos do discurso; essa alternância pode ocorrer precisamente porque o
falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas
condições. Essa conclusibilidade é específica e determinada por categorias
específicas. O primeiro e mais importante critério de conclusibilidade do
enunciado é a possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e
amplos, de ocupar em relação a ele uma posição responsiva (por exemplo,
cumprir uma ordem) (BAKHTIN, 2003 [1952-53], p. 280, grifos do autor).
Assim sendo, entendemos que os elementos visuais dos enunciados da Ciência Hoje das
Crianças afiguram-se como formas composicionais do gênero discursivo, a serviço da vontade e
do projeto discursivo do autor, o qual, em primeira instância, aguarda uma ativa compreensão
responsiva de seu ouvinte/leitor. Importante assinalar nesse ponto que os enunciados de
divulgação científica da revista em análise são compostos por duas dimensões: uma verbal e
outra visual, as quais estabelecem relações dialógicas entre si e são de autoria de sujeitos
diferentes.
[...] todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado
escutamos como o seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o
autor real, como ele existe fora do enunciado. As formas dessa autoria real
podem ser muito diversas. Uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho
de equipe, pode ser interpretado como trabalho hereditário de várias gerações,
etc., e apesar de tudo, sentimos nela uma vontade criativa única, uma posição
determinada diante da qual se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica
personifica toda enunciação à qual ela reage (BAKHTIN, 1997 [1963], p. 184).
À luz de tal proposição, frente aos enunciados de divulgação científica da Ciência Hoje
das Crianças, observa-se uma forma de autoria imanentemente dialógica, que conta com diversos
sujeitos do discurso que se debruçam sobre o mesmo objeto do dizer. Em síntese, os gêneros
discursivos que compõem a CHC, embora se nos apresentem como uma única voz, a da
41
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), são produtos de um trabalho
dialógico de um corpo coletivo, que reúne, ao menos, três sujeitos diferentes: o cientista que
elabora o discurso escrito, o editor que o adapta a uma linguagem própria para o destinatário
criança e o ilustrador/artista plástico que confere um acabamento visual ao enunciado escrito que,
em sua versão final, é de alçada da SBPC, por meio da publicação Ciência Hoje das Crianças.
2.3 A dimensão verbovisual do enunciado no Círculo de Bakhtin
É mister assinalar que, no que diz respeito ao aspecto visual do enunciado
13
, muito
embora Bakhtin não lhe tenha voltado a atenção objetivamente, verifica-se que tal elemento não
está ausente na obra do pensador russo. Em primeiro lugar porque, em suas reflexões, o autor
levava em conta os produtos ideológicos dos diferentes domínios culturais, dentre os quais a
pintura e os diversificados objetos das artes plásticas. E, em segundo lugar, na obra A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Françoise Rabelais (1999 [1940]), o
filósofo discorre, explicitamente, acerca da dimensão visual do enunciado ao informar que, na
Idade Média, as ilustrações que acompanhavam o enunciado verbal, se por um lado não
estabeleciam relação imediata com o texto, por outro, iluminavam aspectos da relação volitivo-
axiológica do homem medieval com o mundo no qual este estava inserido.
Na mesma página, encontram-se lado a lado iluminuras piedosas e austeras,
ilustrando o texto, e toda uma série de elementos quiméricos (mistura fantástica
de formas humanas, animais e vegetais) de inspiração livre, isto é, sem relação
com o texto, diabretes cômicos, jograis executando acrobacias, figuras
mascaradas, sainetes paródicos, etc., isto é, imagens puramente grotescas
(BAKHTIN, 1999 [1940], p. 83).
Porém, ainda que a obra sobre Rabelais coloque em relevo este importante dado acerca de
formas composicionais verbais em relação a formas visuais na Idade Média, ao percorrer as obras
13
Conforme Grillo, o Círculo de Bakhtin não centrava suas discussões na dimensão verbovisual do enunciado. De
acordo com a pesquisadora: “Embora este [o enunciado verbovisual] não tenha sido o objeto de estudo privilegiado
do Círculo de Bakhtin, entrevemos, em alguns momentos de sua obra, a noção de enunciado ou texto como unidade
constituída de signos diversos” (GRILLO, 2009, p. 216).
42
de Bakhtin e de seu Círculo com o intuito de apreender a dimensão verbovisual do enunciado,
chamou-nos a atenção, sobremaneira, os textos iniciais, escritos na juventude do filósofo russo, a
saber, O autor e a personagem na atividade estética (1924 [2003]), O problema do conteúdo, do
material e da forma na criação literária (1924 [1993]) e Para uma filosofia do ato ético (1924
[1997]). Ao passo que o primeiro nos servirá de carro-chefe, em que a personagem será entendida
como uma metáfora que permite que desloquemos semelhante ensaio do âmbito literário e o
insiramos no espaço do discurso, os outros textos do autor nos servirão de apoio e serão
iluminados quando julgarmos pertinente. Assinala-se que os referidos textos compunham um
grande projeto no qual Bakhtin almejava expor os preceitos de uma espécie de prima philosophia
em forma de filosofia moral, cuja temática central, abordada reiteradamente nas três obras é o da
exotopia, a respeito da qual ainda falaremos no transcorrer deste capítulo.
Um traço distintivo da carreira de Bakhtin como pensador é que ele jamais
cessou de perseguir diferentes respostas para o mesmo conjunto de questões [...].
Mas as questões em si permanecem constantes, dando à vida de Bakhtin, a
estrutura de uma vida ou de um projeto. Nos anos compreendidos entre 1918 e
1924 esta agenda de tópicos tomou forma numa série de textos, nenhum dos
quais parece ser completo. Eles não constituem fragmentos de diferentes
trabalhos. Representam, antes, diferentes tentativas de escrever o mesmo livro, a
qual Bakhtin nunca atribuiu umtulo [...] (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 89).
Nessa via, vale a pena mencionar e ratificar que, ao abordarmos tais textos, de nossa
perspectiva, sobressaíram-se as semelhanças entre eles no que se refere, sobretudo, à exotopia,
todavia, Morson e Emerson destacam a ruptura e descontinuidade existentes entre as referidas
obras. Nos termos dos autores: “Na nossa leitura, esses textos sugerem não uma suave
continuidade, mas algo que está mais próximo de uma ruptura decisiva -um divisor de águas -
entre eles e as obras pelas quais Bakhtin costuma ser mais conhecido (MORSON; EMERSON,
2008, p.25).
Voltar-se ao texto O autor e a personagem com vistas a compreender a complexa relação
do autor-criador e do herói na criação verbal artística não representaria novidade aos trabalhos de
teoria e às análises literárias, entretanto, lançar mão de tal obra com o objetivo de buscar
elementos ou categorias que auxiliem na apreensão, análise e estudo da dimensão verbovisual do
enunciado, se nos afigura como uma empreitada desafiadora e um terreno ainda pouco explorado.
Todavia, embora inusitado em um primeiro momento, posto que o referido texto de Bakhtin se
43
direcione ao objeto estético e, mais especificamente, à criação verbal artística, isto é, à obra de
arte literária, compreendemos que o postulado teórico relegado pelo filósofo pode ser estendido a
objetos verbais não artísticos.
O autor e a personagem na atividade estética é uma obra inacabada dos anos 20, época na
qual Bakhtin ainda era jovem e estava bastante envolvido com questões de cunho filosófico, haja
vista que a leitura do referido texto permite-nos constatar o objetivo do autor em estabelecer
fundamentos de uma estética que desse conta dos diversificados objetos da atividade artística,
tangendo a música, a pintura, a literatura, etc., sem, no entanto, cair no reducionismo, afirmando
que a diferença entre as artes se restringe meramente às técnicas artísticas utilizadas (BAKHTIN,
2003 [1979], p. 85).
Antes de esboçarmos um panorama geral sobre o ensaio, é importante ressaltar que, em
língua portuguesa, não há tradução de um fragmento de O autor e a personagem, pois as
traduções realizadas para a língua portuguesa, tanto aquela feita originalmente da língua russa
quanto a do francês, são baseadas na versão russa de 1979, a qual omitia um excerto que somente
seria publicado em 1986 por S.G. Bocharov, segundo quem o referido fragmento pode ser
entendido como uma introdução ao ensaio O autor e a personagem.
Em semelhante introdução, Bakhtin expõe os postulados gerais sobre a função
arquitetônica, ou seja, a conclusão, o acabamento estético do centro valorativo do homem nos
âmbitos do objeto artístico para, em seguida, propor a análise de um poema lírico de Puchkin. Em
tal análise, o autor discorre acerca dos centros valorativos, da totalidade arquitetônica e dos
contextos axiológicos espaciotemporais do herói. Ademais, através da seleção de palavras e
imagens predominantes no contexto valorativo da personagem, examina os seguintes momentos
do objeto verbal artístico: a forma espacial, o ritmo, intrínseco e extrínseco, a estrutura
entonacional, e, por fim, o tema.
Assim, de uma maneira geral, podemos dizer que, em O autor e a personagem na
atividade estética, Bakhtin tem como foco a discussão de uma questão que, nos âmbitos de uma
certa tradição formalista, exerce um papel crucial e problemático, a saber, a relação
arquitetonicamente estável entre o autor e o herói, em seus aspectos gerais e particulares.
De acordo com Morson e Emerson (2008):
44
Nos primeiros escritos, em contraposição aos formalistas, Bakhtin reafirma a
posição integral do autor. Mas essa posição não outorga ao criador um controle
absoluto, nem o autoriza a seguir os seus caprichos. As coações são
imediatamente operativas. Bakhtin insiste que o projeto estético começa sempre
com a criação de um ser humano total, uma segunda consciência adicionada à
do autor (MORSON & EMERSON, 2008, p.90, grifos dos autores).
Nesse sentido, o filósofo focar-se-á na categoria do acontecimento humano da consciência
do autor, a qual desdobra-se em autor-pessoa e autor-criador. Aquele é o sujeito que age no
acontecimento ético e social da vida, ao passo que este é entendido enquanto instância artística da
arquitetônica da obra de arte, portanto, acontecimento estético, consciência da consciência,
reação à reação, na qual o herói é inserido, objetificado e acabado (BAKHTIN, 2003 [1979], p.92).
Tal posição do autor em relação à personagem é atravessada por um excedente de visão que lhe
permite dar acabamento não somente ao herói, cujo centro axiológico é de orientação ética-
cognitiva, mas também ao mundo deste. Esse excedente de visão, denominado exotopia, somente
é possível porque o autor-criador está posicionado fora das formas espaciais, temporais e
semânticas de seu herói.
Ademais, a exotopia não é lugar exclusivo do autor-criador, mas compartilhado com o
leitor, o autor-contemplador e o autor-espectador - instâncias às quais Bakhtin faz referência ao
longo do ensaio - concebendo-os, igualmente, como elementos estéticos extrapostos à obra de
arte, ou seja, elementos cuja posição é externa, exotópica, em relação ao objeto estético, e que,
por este motivo, legitima o sujeito a concluí-lo e dar-lhe acabamento estético. “Esta exterioridade
(mas não indiferentismo) permite que a atividade artística una, formule e conclua o
acontecimento a partir do lado de fora” (BAKHTIN, 1993 [1924], p. 36, grifos do autor).
Considerando-se o papel protagonista que o outro desempenha no ativismo e no
acabamento do enunciado, verifica-se que a estética, tal como concebida por Bakhtin, tem como
princípio basilar a alteridade, posto que o outro é condição sine qua non para que haja atividade
estética, em outras palavras, o valor propriamente estético não é atribuído por uma consciência
individual, mas na fronteira entre duas consciências, sendo exclusivamente da alçada de outrem.
Para Bakhtin:
45
Não posso viver do meu próprio acabamento e do acabamento do
acontecimento, nem agir; para viver preciso ser inacabado, aberto para mim -ao
menos em todos os momentos essenciais , preciso ainda me antepor
axiologicamente a mim mesmo, não coincidir com minha existência presente
(BAKHTIN, 2003 [1979], p.11).
Feita esta explanação, trataremos, sucintamente, acerca da forma espacial, a qual nos da
subsídios para abordar a dimensão verbovisual dos gêneros de divulgação científica da Ciência
Hoje das Crianças.
2.4 A representação visual do objeto verbal: a forma espacial interna
Ao discorrer sobre o objeto estético da criação verbal, Bakhtin assevera que este não lança
mão de uma forma material externa, posto que a substância que o constitui é,
predominantemente, a palavra, de maneira tal que o objeto da visão estética condensará uma
forma espacial interna, significativa do ponto de vista artístico e representada por palavras. Na
visão do filósofo, a literatura - mais do que a escultura, a música ou pintura, por exemplo - tem o
poder de representar um objeto estético em seu maior grau de concretude e diversidade facial,
posto que visa evocar, através do poder das palavras, a forma espacial interna do objeto estético.
À luz desta perspectiva, o autor levanta a seguinte questão quanto à realização da forma espacial
interna no material verbal:
[...] deve ela reproduzir-se numa representação puramente visual, nítida e
completa, ou se realiza o seu equivalente volitivo-emocional, o tom sensorial
que lhe corresponde, o colorido emocional, sendo que a representação visual
pode ser descontínua, fugidia ou até estar ausente, substituída pela palavra?
(BAKHTIN, 2003 [1979], p.85-86, grifos nossos).
Assim, respondendo brevemente a esta pergunta, visto que respondê-la extensivamente
está além de seus propósitos em O autor e a personagem na atividade estética, Bakhtin conclui
que a forma espacial interna carece de realização da forma plena, tanto visual como volitivo-
emocionalmente. E, no que se refere à representação visual, tal deficiência ocorreria, inclusive,
no campo das artes plásticas, cuja aparente plenitude visual e perfeição, intrínsecos às formas
46
materiais externas, seriam ilusoriamente transferidas para a forma espacial interna (BAKHTIN,
2003 [1979]).
No entanto, ainda que o autor mencione que um estudo minucioso a respeito da referida
questão não esteja no âmbito da estética da criação verbalizada (2003 [1979], p.86),
ultrapassando assim os objetivos de seu ensaio, as ideias que postula acerca da representação
visual da palavra se nos afiguram imprescindíveis à análise da dimensão verbovisual dos
enunciados presentes na Ciência Hoje das Crianças.
Ao discorrer acerca da representação visual da palavra, o autor está se referindo à imagem
poética, isto é, ao acabamento imagético conferido pelo autor-espectador a partir do material
palavra. Em conformidade com certas correntes formalistas da poética russa, semelhante imagem
seria construída de maneira fragmentária e subjetiva. Tal ideia é criticada por Bakhtin em O
problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1993 [1924]), por estar
submergida em preceitos, infundados da estética material e arraigados de tendências psicológicas,
os quais reivindicavam a uma representação una e concreta do objeto estético. Segundo o autor:
Nega ela [a poética russa contemporânea] o significado da imagem alegando que
na representação artística da obra poética não surgem para nós representações
visuais precisas dos objetos evocados, mas somente fragmentos fortuitos,
variáveis e subjetivos das representações visuais, com as quais, naturalmente, é
totalmente impossível construir o objeto estético. Consequentemente não surgem
imagens nítidas, nem poderiam surgir: como, por exemplo, imaginar a “cidade”
do poema de Puchkin a que aludimos? Como uma cidade estrangeira ou como
russa? Grande ou pequena? Moscou ou Petersburgo? Isto remete ao arbitrário
subjetivo de cada um, a obra não nos oferece nenhuma das indicações
necessárias para construir uma representação visual, concreta e una da cidade.
Mas se é assim, é porque o artista nunca lida com objetos, e sim com palavras,
no caso em questão com a palavra “cidade”, nada mais (BAKHTIN, 1993
[1924], p. 51- 52).
À luz de semelhante proposição, Bakhtin nega o caráter fragmentário e fortuito da
imagem poética, pressupondo-a como um valor ético-estético, carregado de significado e de valor
concreto, os quais penetram o objeto estético não pelas vias da forma linguística, mas sim por sua
significação axiológica, o qual, extraposta à forma estética figurar-se-ia um acontecimento
inacabado do mundo ético. Nesse sentido, ao contestar a construção de uma imagem poética
empírica, que remeta a um acontecimento do mundo ético, o filósofo ilumina a univocidade do
conteúdo da obra de arte literária, de seu valor axiologicamente significante.
47
Portanto, o componente estético, que por ora chamaremos de imagem, não é
nem um conceito nem uma palavra, nem uma representação visual, mas uma
formação estética singular realizada na poesia com a ajuda da palavra, nas artes
figurativas com a ajuda de um material visualmente perceptível, mas que não
coincide, em nenhum lugar nem com o material nem com uma combinação
material qualquer (BAKHTIN, 1993 [1924], p. 53).
Todavia, é mister assinalar que, ao discorrer acerca da imagem poética, Bakhtin levava
em consideração, exclusivamente, a obra de arte literária. Nesse sentido, é importante destacar
que ao transpormos as fronteiras da esfera literária e adentrarmos os campos da divulgação
científica, deparar-nos-emos com uma situação totalmente adversa, em que a remissão imagética
empírica e concreta a um acontecimento ético constitui uma das características dos gêneros de
divulgação científica. Isto é, quando o autor-criador-cientista se remete a uma cidade, esta, de
fato, encontrará um referente objetivo, “um equivalente puramente empírico, localizado até
mesmo no tempo e no espaço, como uma coisa” (BAKHTIN, 1993 [1924], p. 53).
Tanto é assim que a divulgação científica, ao primar pela objetividade empírica, muitas
vezes, lançará mão da ilustração científica ou da fotografia, elementos visuais que, embora de
ordens distintas, propõem-se a representar o real da forma mais fiel e objetiva possível.
Neste sentido, entendemos que a representação de um objeto verbal -seja ele um objeto
estético literário ou extra-estético, isto é, do mundo ético-cognoscente, como é o caso dos
enunciados de divulgação científica e daqueles que não circulam na esfera literária -pode ser
realizada, ao menos, de duas maneiras: primeira, através da representação dialógica verbal e,
segunda, por meio da representação dialógica verbovisual. No entanto, de acordo com o próprio
Bakhtin: “É claro que o grau de realização da forma interna da representação visual é diferente
em modalidades diversas de criação verbalizada e em diversas obras particulares” (BAKHTIN,
2003 [1979], p.86).
Quando nos referimos à representação dialógica verbal, estamos fazendo menção às
imagens que são construídas e concluídas a partir de enunciados exclusivamente verbais, tais
como aquelas presentes no poema lírico de Puchkin analisado por Bakhtin. Assim, o material
verbal à disposição para que o sujeito exerça o seu ativismo concludente é constituído por um
material verbal formado por figuras de linguagem, seleção de palavras, inserção de sequências
textuais descritivas e narrativas, etc. Aqui, o acabamento e a conclusibilidade da produção do
enunciado é realizada individualmente, por um único autor, sem que, no contexto de produção,
48
haja o ativismo de outrem, como o em enunciados verbovisuais, nos quais observa-se que a
conclusibilidade e acabamento do enunciado são dados por, ao menos, dois sujeitos diferentes: o
autor do enunciado verbal e o autor do enunciado visual. Segundo Bakhtin:
[...] a palavra representa um dado espacial como que pronto, uma vaga criação
amorosa e ativa da forma espacial através de linhas e cores, o movimento-gesto
que cria e gera de fora a forma como movimento da mão e do corpo inteiro, que
vence e imita (BAKHTIN, 2003 [1979], p.88).
Em contrapartida, na representação visual, a qual denominamos dialógica verbovisual,
verifica-se que o acabamento do enunciado verbal é dado concretamente por, pelo menos, duas
consciências que não coincidem, dois sujeitos distintos, sendo que um deles expressa o seu
ativismo concludente através de formas composicionais verbais e o outro através de formas
composicionais visuais.
Assim, no que tange ao acabamento da ciência, o próprio Bakhtin assinala que os
momentos estéticos de um tratado científico, apreendidos em aspectos composicionais, figuram a
atividade estética do autor-sujeito, atividade estética exercida na criação e seleção de elementos
visuais, isto é, de materiais não-verbais. Nesta esteira, à luz da afirmação reiterada do filósofo de
que o gênero discursivo é uma forma composicional -“[...] às formas composicionais mais
importantes, às de gênero por exemplo [...]”(BAKHTIN, 1993 [1924], p. 24) -consideramos que
o autor-sujeito, nos âmbitos da esfera científica, exerce seu ativismo concludente na
exauribilidade temática que confere inteireza e acabamento ao enunciado e na disposição, criação
e seleção dos elementos visuais, não obstante seu caráter provisório, relativo e questionável
mediante o acontecimento ético e cognoscível.
Nos campos da criação (particularmente no científico, evidentemente), ao
contrário, é possível uma única exauribilidade semântico-objetal muito
relativa; aqui só se pode falar de um mínimo de acabamento, que permite ocupar
uma posição responsiva. O objeto é objetivamente inexaurível, mas ao se tornar
tema do enunciado (por exemplo, de um trabalho científico) ele ganha uma
relativa conclusibilidade em determinadas condições, em certa situação do
problema, em um dado material, em determinados objetivos colocados pelo
autor, isto é, no âmbito de uma ideia definida do autor (BAKHTIN, 2003
[1924], p. 281, grifos do autor).
49
Para entendermos melhor e em termos gerais este processo de acabamento dialógico
verbovisual, utilizaremos como exemplo concreto os enunciados verbovisuais da Ciência Hoje
das Crianças, cujo texto verbal é de autoria de cientistas e o texto visual de artistas plásticos,
fotógrafos, diagramadores, etc. Assim, o autor-criador-cientista, a fim de divulgar conhecimentos
científicos, seleciona um objeto de saber do mundo ético-cognitivo e constrói o enunciado verbal.
Em outras palavras, o autor-criador-cientista exerce seu ativismo concludente em um objeto
extra-estético, pertencente ao mundo ético-cognitivo, conferindo-lhe acabamento e plenitude.
Aqui reiteramos a ideia de que, o próprio Bakhtin, embora considerando a ciência enquanto
atividade do conhecimento, portanto, aberta e inacabada, admite que esta ganha um acabamento
provisório do autor-sujeito por meio da exauribilidade temática e nos limites de uma forma
composicional, ou seja, de um gênero discursivo (BAKHTIN, 1993[1924], p. 63-64).
Conferido o acabamento pelo autor-cientista/jornalista ao texto verbal, em um segundo
momento, o artista plástico representa artística, concreta e dialogicamente, uma imagem da forma
interna da criação verbalizada, por processos subjetivos. “Até nas artes plásticas, a imagem visual
da forma interna é consideravelmente subjetiva” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 86).
Ao passo que o enunciado verbal do autor-criador-cientista elabora o objeto extra-estético
com o material palavra, o artista plástico recepciona o objeto verbalizado do autor-criador
cientista/jornalista, momento no qual assume o papel de autor-contemplador, recriando-o,
reelaborando-o e redefindo-o esteticamente em uma forma material externa, com linhas, cores,
etc. De acordo com Bakhtin:
A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente
do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte
celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato -a
natureza e a humanidade social -enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela cria
a unidade concreta e intuitiva desses dois mundos, coloca o homem na natureza,
compreendida como o seu ambiente estético, humaniza a natureza e naturaliza o
homem (BAKHTIN, 1993 [1924], p. 33, grifos do autor).
Por fim, em um terceiro momento
14
, o acabamento “final” é dado pelo autor-
contemplador (consciência polifônica), instância representada virtualmente pela criança leitora,
14
No primeiro momento o autor cientista acabamento estético ao objeto; no segundo, o autor, contemplador e
criador (ilustrador/desenhista/artista gráfico/editor), isto é, o sujeito responsável pela finalização gráfica do
50
que exercerá o ativismo concludente pleno ao dar conclusibilidade ao enunciado verbovisual, isto
é, ao texto verbal em sua articulação com o texto visual, no seio das relações dialógicas ou, em
outras palavras, do dialogismo entre o material verbal e o visual.
Destarte, considerando-se o enunciado verbovisual em sua versão final, tem-se um objeto
que recebeu um acabamento de, ao menos, três sujeitos, três consciências que não coincidem.
Dessa maneira, tal como se nos apresenta, o enunciado verbovisual não é de autoria de um único
sujeito, mas sim construído na alteridade, por uma equipe composta por consciências que não
coincidem. Ou seja, o enunciado verbovisual não
[...] é como a pintura ou a oratória, a arte de uma só pessoa. A coisa completada,
a obra acabada, é [...] a obra de uma equipe. A catedral e sua grande bíblia, a
casa e o livro nas estantes, o hospital e o catálogo dos objetos cirúrgicos, o
prédio comercial e os papéis timbrados e prospectos - todos são produto da
habilidade e da intenção criadora (DON BOSCO, 1970-1974, apud ARAÚJO,
p. 417).
A esse respeito, Grillo (2009), ao examinar os enunciados verbovisuais da revista
Pesquisa Fapesp e do boletim Notícias Fapesp e estabelecendo diálogo com as semióticas russa e
da Escola de Paris, chega a uma conclusão bastante interessante do ponto de vista teórico-
metodológico:
Os enunciados de divulgação científica que compõem o corpus desta pesquisa
são designados na semiótica da Escola de Paris de textos sincréticos e na
semiótica russa da Escola de Tártu-Moscou de textos heterogêneos constituídos
por signos discretos (verbais) e contínuos (visuais). O princípio semiótico de que
a expressão é particular a cada linguagem (verbal, visual, musical, etc), mas o
plano do conteúdo é comum a diferentes linguagens orienta as análises de
enunciados sincréticos, ou seja, duas expressões distintas podem revelar um
mesmo plano do conteúdo. Esse princípio teórico-metodológico busca
depreender o invariável, o homogêneo subjacente à heterogeneidade expressiva.
enunciado, com seu excedente de visão, uma conclusibilidade estética visual ao texto verbal. No terceiro, o autor-
espectador (leitor) acabamento estético ao todo verbovisual do enunciado, ou seja, o acabamento do
acabamento do acabamento, a conclusibilidade da conclusibilidade da conclusibilidade. A seguinte afirmação de
Bakhtin pode corroborar esta ideia: “O todo estético não se co-vivencia mas é criado de maneira ativa (tanto pelo
autor como pelo contemplador; neste sentido admite-se dizer que o espectador co-vivencia com a atividade criadora
do autor) (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 61-62).
51
Diferentemente, a teoria de Bakhtin e seu Círculo parte da busca do
dialógico, da multiplicidade de vozes, do heterogêneo, e, portanto, planos de
expressão distintos, muitas vezes elaborados por diferentes autores, podem
revelar sentidos em conflito dialógico. Essa talvez seja a principal
orientação da teoria dialógica do Círculo de Bakhtin para a análise de
enunciados semioticamente heterogêneos, como os enunciados verbovisual
das reportagens de divulgação científica (GRILLO, pp. 239-240, 2009, grifos
nossos).
Desse modo, com vistas a analisarmos as relações dialógicas estabelecidas entre o objeto
da forma interna verbal e o objeto da forma externa material, buscaremos identificar os
momentos do enunciado verbal que constituem “pontos dialógicos” para que o artista plástico
exerça o seu ativismo estético concludente, de modo tal que, ao concluirmos a análise, será
possível que verifiquemos as divergências e convergências dialógicas nas formas composicionais
verbais articuladas às formas composicionais visuais da Ciência Hoje das Crianças, sendo
possível inferir a relevância das segundas na divulgação dos saberes científicos para os pequenos,
tendo como fio condutor a teoria proposta por Bakhtin e por seu Círculo.
52
3. METODOLOGIA
Neste capítulo, além de apresentar o material que constitui o corpus da presente
dissertação, delinearemos o percurso metodológico percorrido, definindo o critério que norteou a
seleção dos materiais, bem como a definição das categorias de análise mais relevantes aos
objetivos aqui propostos.
3.1 A revista Ciência Hoje das Crianças: perfil editorial
A Ciência Hoje das Crianças, revista de caráter multidisciplinar, que publica temas
relacionados às ciências humanas, exatas e biológicas, é editada pelo Instituto Ciência Hoje
(ICH), organização social sem fins lucrativos, atrelada à Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC), sociedade essa fundada em 1948 e de responsabilidade de uma comunidade
científica, cujo principal objetivo é preservar os interesses da ciência e dos cientistas no Brasil.
De acordo com Gouvêa (2000), a revista norteia-se pelo fim de promover a aproximação
entre cientistas, pesquisadores e público infantil, em geral, de maneira a apresentar às crianças
atividades e saberes científicos, estimulando-se, assim, a sua curiosidade para fatos e métodos das
ciências.
Vale a pena destacar, conforme informações obtidas no site da Ciência Hoje das
Crianças, que uma parte considerável dos textos presentes na revista são assinados por
pesquisadores e professores da comunidade científica brasileira e versam sobre objetos e métodos
de pesquisas aos quais os cientistas se debruçam na atualidade. Dessarte, verifica-se assim, a
importância que a SBPC confere à autoria de seus enunciados, os quais, necessariamente, devem
contar com a voz de autoridade do cientista no processo de elaboração do discurso.
Outro aspecto que figura entre as preocupações da revista é a ênfase que deve ser
conferida às imagens, que, segundo o próprio site da publicação, além de facilitar a compreensão
do texto, torna-o mais atraente. Ademais, segundo Massarani (2007), um dos propósitos da
Ciência Hoje das Crianças é provocar sensibilização artística nos jovens leitores, sendo as
53
ilustrações e as fotografias de extrema importância na composição da revista. Mais do que isso, a
análise aqui empreendida demonstrará que os elementos visuais dispostos na revista são
essenciais, tanto à divulgação da ciência, quanto às necessidades psíquicas do público infantil.
Conforme Gouvêa (2000), a Ciência Hoje das Crianças, assim como outras publicações
destinadas ao público infantil, pauta-se em estudos que reivindicam a pertinência de se apresentar
conhecimentos científicos aos pequenos, sobremaneira aos que têm mais de oito anos, posto que
já possuem noções acerca do objeto e dos métodos científicos. Ademais, além de viabilizar que as
crianças reconheçam a importância social do fazer científico, revistas como a Ciência Hoje das
Crianças contribuiriam com a educação formal do público pueril.
Com pauta bastante diversificada, a revista tem como destinatário um público com
diferentes competências de leitura e de compreensão dos conteúdos veiculados, de modo que
observa-se que há uma preocupação do conselho editorial em apresentar edições diferenciadas no
que diz respeito ao acabamento artístico e discursivo, segundo os temas abordados, bem como à
diversidade de gêneros discursivos presentes na publicação: poemas, contos, experimentos,
histórias em quadrinho, etc.
No que diz respeito a sua história, a primeira publicação da revista data de dezembro de
1986, como parte integrante do material direcionado ao público adulto, a saber, a Ciência Hoje,
publicação essa igualmente porta-voz da SBPC que, na segunda metade da década de oitenta,
trava diálogo com outros discursos que circulam no fluxo interdiscursivo da sociedade, dentre os
quais, aqueles correlatos à ideia de nação e projeto nacional. Nessa via, a ntese analítica de
Costa (2010), que tem como objeto o título de um editorial publicado pela Ciência Hoje, no
início de 1987, corrobora o eixo discursivo das questões em voga, em meados da cada de
oitenta.
[...] o título (“A constituição do novo país”) participa de maneira relevante, ao
realizar uma síntese que amarra três ingredientes centrais da proposta euforizada
no discurso de Ciência Hoje: a constituição, bivalentemente apontando tanto
para o sentido da construção quanto para o sentido da instituição, o país, aqui
comutável por nação, e o novo, que definindo-se por oposição a velho, garante,
pela adesão a um valor em alta conta na avaliação do superdestinatário, o acento
progressivo ao discurso que se enuncia (COSTA, 2010, p. 135, grifos do autor)
54
À luz de tais considerações, abordando-se os gestos enunciativos da Ciência Hoje das
Crianças a partir do interior da vida, isto é, considerando-se o surgimento da revista no contexto
do grande diálogo entabulado na segunda metade da década de oitenta, conclui-se que a criação
dessa revista é um ato responsivo e, portanto, dialógico, apresentando-se, em alguma medida,
como resposta a múltiplas vozes e imposições do contexto histórico-social no qual ressonava um
discurso que preconizava que o acesso aos saberes científicos aos pequenos é fator fundamental
para a democratização e, portanto, para o exercício da cidadania e para a reconstrução do país.
Vale a pena destacar que, nesse mesmo ano da criação da Ciência Hoje das Crianças, um
dos editoriais da Ciência Hoje continha o seguinte discurso:
Ciência Hoje tem compromisso com a democratização da cultura e, em
particular, da ciência. Só com a divulgação do conhecimento, na forma de dados
e informações confiáveis, colocados à disposição do público através de todos os
meios de comunicação, será possível aumentar o poder de análise crítica
independente e tornar efetivo o seu potencial de influência no processo que
determina os caminhos para a sociedade como um todo (GOLDSMITH, 1986, p.
6).
Comente-se ainda que embora a reportagem de capa da Ciência Hoje de dezembro de
1986 prognosticasse o lançamento de uma revista endereçada ao público mirim, Ciência Hoje
das Crianças, a SBPC absteve-se de aludir semelhante acontecimento no editorial da revista.
Curiosamente, a discussão em pauta nesse espaço era a integração entre as comunidades
científicas do Brasil e da Argentina, antevendo o ato responsivo de janeiro de 1989, data na qual
a sociedade científica brasileira publica, na Argentina, a revista Ciencia Hoy e firma sua posição
diante das questões entabuladas no grande diálogo entre o Brasil e seus vizinhos hispanofalantes.
Assim, considerando-se o contexto sócio-histórico da fundação da Ciência Hoje das
Crianças, colocamo-nos frente a uma resposta da SBPC a determinados discursos circundantes
na ocasião. Em outros termos, verifica-se aqui uma relação orgânica e indissolúvel entre o
enunciado e o contexto concreto de sua ocorrência, assim como entre o significado do enunciado
e um posicionamento axiológico tomado pela sociedade científica em questão. No texto de 1924,
O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal, Bakhtin (1993 [1924]), ao
discorrer acerca da criação estética enquanto posicionamentos axiológicos tomados em diferentes
planos, assevera que não e que não pode haver enunciados neutros, posto que todo e qualquer
enunciado encontra a sua origem em um contexto ideológico e cultural repleto de valorações e
55
significados, constituindo sempre um ato responsivo, uma tomada de posição que refletirá um elo
na grande cadeia discursiva do diálogo infindo, do simpósio universal.
Assim que surgiu, a circulação e a distribuição da revista estavam vinculadas à Ciência
Hoje, fato esse que perdurou até meados de 1990, ano no qual a publicação infantil conquista a
sua autonomia, o que implicou, dentre outros, que deixasse de ser um encarte da publicação para
adultos e passasse a ser comercializada por meio do suporte textual “revista”.
No entanto, desde que foi criada, a Ciência Hoje das Crianças sempre contou com a
colaboração da Ciência Hoje, tanto no que diz respeito à infraestrutura, quanto no que concerne
ao corpo editorial. A partir de 1990, ano em que deixa de ser encartada pela publicação para
adultos e adquire certa autonomia, conquistou independência na produção editorial, dispondo de
um conselho próprio até 1997. Na atualidade, o corpo editorial da revista infantil trabalha em
conjunto com os editores científicos e conselho diretor da Ciência Hoje (GOUVÊA, 2000).
3.2 A constituição do corpus e as categorias de análise
O corpus da presente dissertação é constituído por gêneros que constituem a reportagem de
capa publicada em sete edições da Ciência Hoje das Crianças, distribuídas diacronicamente em
dois períodos, a saber 1986/1987 e 2007.
De acordo com a concepção de Maingueneau (1997, apud GRILLO 2003), a noção de
corpus é composta por diferentes níveis:
a) O corpus máximo depende da variável que permite agrupar os enunciados: por
exemplo, todos os enunciados que pertencem a um gênero do discurso determinando o que são
produzidos a partir de tal posição ideológica. A maior parte do tempo esse corpus máximo não é
delimitável.
b) O corpus delimitado: sobre o corpus máximo, o analista circunscreve um conjunto de
enunciados, em função do objetivo de sua pesquisa.
c) O corpus elaborado: a partir das hipóteses de trabalho que ele constrói, o pesquisador
define um programa de análise e deve extrair do corpus delimitado um ou vários corpora
56
elaborados (certos episódios narrativos, enunciados de tal estrutura sintática, um conjunto de
passagens organizadas em torno de um conector argumentativo etc).
Nesse sentido, para a construção de nosso corpus máximo, dentre outros materiais que se
propõe a divulgar saberes científicos para o público infantil, selecionamos as revistas impressas
Ciência Hoje das Crianças.
A seleção de semelhante publicação enquanto corpus desse trabalho justifica-se por dois
motivos: em primeiro lugar, por ser a Ciência Hoje das Crianças a única revista disponível no
mercado cujo fim é, exclusivamente, a divulgação de saberes científicos aos pequenos; em
segundo lugar, pela representatividade que a publicação, de responsabilidade da conceituada
comunidade científica Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, possui no país,
afigurando-se como
[...] instrumento fundamental em sala de aula como fonte de pesquisa aos
professores e de grande importância para os alunos na elaboração de deveres e
projetos escolares. A publicação é adotada pelo MEC e distribuída para 107 mil
escolas, como material de apoio paradidático (Ciência Hoje das Crianças,
2009).
Quanto ao corpus delimitado, o mesmo foi constituído com base em dois critérios: 1°) os
gêneros selecionados para análise são os que configuram a reportagem de capa da Ciência Hoje
das Crianças; 2°) a seleção das revistas foi feita diacronicamente.
A escolha de tais gêneros encontra a sua justificativa em dois motivos principais: em
primeiro lugar, em razão de seu lugar privilegiado na revista, o qual figura um espaço importante
para a verificação das relações dialógicas, posto que, ao apresentar-se como a “porta de
entrada
15
da revista, sendo o primeiro contato do leitor com o material, receberá atenção e
cuidados diferenciados.
No que tange ao segundo critério utilizado, considerando que a primeira edição da revista
para as crianças é de 1986, estabelecemos os dois primeiros anos de existência da Ciência Hoje
das Crianças como o primeiro período de análise. O referido período representa a fase
15
Aqui, vale a pena mencionar um estudo realizado por Gouvêa (2000) sobre as práticas de leitura de crianças
assinantes da Ciência Hoje das Crianças. Ao convidar 21 crianças para que comentassem acerca de qualquer texto
da revista, a pesquisadora constata que somente três delas discorreram sobre temas que não haviam sido apresentados
na capa, fato que corrobora a ideia de que os temas que ocupam a capa da revista despertam maior interesse do leitor.
57
embrionária da revista, a qual, desprovida de autonomia, constituía suplemento integrante da
Ciência Hoje, revista que na época havia se consagrado junto a seu público leitor. Em seguida,
o ano de 2007 representa o momento de consolidação da publicação infantil, momento no qual o
material deixara de ser encarte da Ciência Hoje e assumira o lugar de revista autônoma.
Descrito o percurso para a construção do corpus, segue quadro sinóptico do material, cuja análise
empreenderemos.
Data de
publicação
Título da reportagem de capa
Título da reportagem nas
páginas internas da
revista
Dez/1986
A criação do sol, o dengo da
dengue, jacaré ou crocodilo
Jacaré ou crocodilo
Jul/1987
Tralhas e casas de índios
Tralhas domésticas
indígenas
Set/1987
As bruxas brasileiras e a Inquisição
As bruxas brasileiras e a
Inquisição
Jan-Fev/2007
O caderno: a história de um grande
companheiro
A história do caderno
Abr/2007
Artrópodos : os bichos mais
numerosos do planeta
A turma do A: a de
artrópodos
Jul/2007
Gelatina: tem ciência na culinária
Gelatina: doce curiosidade
Ago/2007
Múmias: o lado assombroso da
ciência
Das tumbas para a história
Importante assinalar que a disparidade observada entre o número de exemplares do
primeiro e do segundo período deve-se ao fato de que, nos anos de 1986 e 1987 a revista era
publicada bimestralmente, ao passo que, no ano de 2007, a frequência de publicações foi mensal,
com exceção dos meses de janeiro e fevereiro, período no qual houve apenas uma publicação.
A eleição desses dois períodos é importante para lançarmos luz às mudanças na relação
estabelecida entre o autor e leitores presumidos, colocando-se em relevo as transformações,
depreendidas por meio da materialidade do enunciado, ocorridas na concepção do público ao qual
a revista se destina.
58
Assinala-se que a metodologia de análise do material é inspirada nos trabalhos do Círculo
de Bakhtin, ou, em outras palavras, os enunciados da Ciência Hoje das Crianças, entendidos
como atos singulares e irrepetíveis, concretamente situados na esfera jornalística e científica e
produzidos por uma sociedade científica brasileira (SBPC), em momentos históricos precisos (o
final dos anos oitenta e o ano de 2007), que se dirigindo a um destinatário específico (o sujeito
criança), tangem, discursivamente, determinados objetos do dizer que são próprios da esfera
científica.
Conforme mencionado, os enunciados aqui examinados são constituídos de uma
dimensão verbal e uma visual, que dispostas em um mesmo plano de expressão estabelecem
relações dialógicas. Uma vez que cada uma dessas dimensões é elaborada por autores distintos,
ou seja, por diferentes sujeitos dialógicos, a noção de autor, tal como concebida pelo Círculo e
apresentada no capítulo precedente, é imprescindível aos propósitos do trabalho ora apresentado.
Isto posto, o dialogismo depreendido do corpus será analisado com base nas seguintes
categorias, por nós construídas mediante o exame das revistas: 1) relações dialógicas entre as
formas composicionais verbais e visuais do enunciado e, 2) movimentos dialógicos de
aproximação ao universo do leitor.
A definição dessas categorias pautou-se, sobremaneira, no conceito bakhtiniano de
dialogismo, fenômeno discursivo observado entre as formas composicionais, verbais e visuais do
gênero discursivo, cuja essência residirá na interação de, ao menos, dois sujeitos discursivos que
construirão significados, elos na cadeia discursiva, aos quais espera-se uma compreensão ativa e
responsiva. Retome-se aqui a perspectiva social do sujeito discursivo, que somente adquire
sentido na relação com o outro, outro esse que não necessariamente é real, ou seja, está presente
no diálogo face-a-face, bastando que seja virtual, presumido pelo sujeito, para que este possa
orientar o seu discurso (BAKHTIN, 2003 [1952-1953]).
A primeira categoria de análise selecionada - relações dialógicas entre as dimensões
verbais e visuais no interior do enunciado - possibilitará que identifiquemos as diversificadas
relações de sentidos entre as instâncias autorais do autor-cientista e a do artista plástico, ao passo
que a segunda categoria de análise - movimentos dialógicos de aproximação ao universo do
leitor, fornecer-nos-á subsídios para que compreendamos os procedimentos discursivos, verbais e
visuais, por meio dos quais a SBPC interpela, dialoga com e se direciona ao leitor mirim.
59
4. ANÁLISE DO PRIMEIRO PERÍODO: RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE
FORMAS COMPOSICIONAIS VERBAIS E VISUAIS NA DCC
Nos próximos capítulos, apresentaremos os resultados da análise das relações dialógicas
verificadas entre as formas composicionais verbal e visual dos gêneros de divulgação científica
da Ciência Hoje das Crianças. No transcorrer da análise, busca-se observar o dialogismo
estabelecido entre as formas elementos verbais e visuais, a fim de se elencar qual(is) o(s)
caráter(es) dialógico(s) depreendido(s) dessa complexa relação. Dessa maneira, ratificamos que
as relações dialógicas presentes nos textos analisados, necessariamente, foram observadas no
encontro entre as formas composicionais verbal e visual, posto que o enunciado é percebido
como um todo pelo leitor, como uma unidade verbovisual produtora de sentidos.
Com o intuito de facilitar a apresentação dos resultados obtidos, as reportagens analisadas
serão identificadas de acordo com o código disposto no quadro localizado no capítulo precedente,
Metodologia.
Segundo informado anteriormente, o corpus selecionado para o primeiro período de
análise é composto por três edições da Ciência Hoje das Crianças, sendo a primeira publicada no
ano de 1986 e, as outras duas, em 1987. As relações dialógicas inter-sígnicas, depreendidas entre
as dimensões verbal e visual do enunciado das edições do período em questão, foram bastante
diversificadas, havendo predominância, porém, daquelas que aqui denominamos: movimentos
dialógicos de aproximação ao universo do leitor; relações dialógicas de ratificação; relações
dialógicas de conflito e relações dialógicas de extrapolação.
4.1 Movimentos dialógicos de aproximação ao universo do leitor
Dentre as três edições que compõem o primeiro período de análise, chamaram-nos a atenção
determinadas tentativas do enunciador em aproximar-se ao universo comum, de afinidades e
simpatias do pequeno leitor. Tais tentativas de aproximação foram verificadas, sobremaneira, na
R1/1986 e na R2/1987.
Passemos à análise da primeira edição.
60
Figura 1 - Capa da revista CHC, edição de
dezembro de 1986
Na capa da edição R1/1986, visualiza-se a referência, por meio de signos visuais, de dois
temas que serão tratados no interior da revista, a saber, “A criação do sol” e “jacaré ou
crocodilo”. Em razão de havermos encontrado, após buscas em diferentes bibliotecas da cidade
de São Paulo e no acervo da SBPC, somente o texto intitulado “jacaré ou crocodilo”, é sobre ele
que voltaremos a nossa análise. Tal como sugerido no título, o objetivo do texto é assinalar as
diferenças comportamentais e fisiológicas entre os répteis jacaré e crocodilo.
Assim, na referida capa, um sol personificado divide o espaço com dois répteis, os quais, do
ponto de vista do contemplador não-especialista em zoologia, poderia tanto ser um jacaré quanto
um crocodilo, ou ainda, posto que existem dois animais ilustrados na capa, um jacaré e um
crocodilo, segundo podemos verificar a seguir.
Essa semelhança entre os animais é colocada em relevo no primeiro parágrafo do texto:
“Existe uma confusão entre jacaré e crocodilo, que não são o mesmo bicho. Membros da mesma
família, são muito parecidos, mas não iguais” (BARBOSA, 1986, s/p).
61
É importante destacar que, diferentemente do sol, o qual é representado de forma fantasiosa,
os répteis são representados de maneira realista, sendo possível aproximar tais ilustrações
daquelas que, comumente, são encontradas em livros didáticos de ciências biológicas, ou seja, de
ilustrações científicas, as quais possuem grande preocupação em se assemelhar ao real.
Destarte, se na capa ganham relevo ilustrações de cunho realista, na página de abertura da
reportagem, encabeçando a matéria, verifica-se a imagem estilizada de um jacaré, que carrega
uma expressão sorridente, a qual tanto pode ser de aprovação à atitude da ave que higieniza os
seus dentes, ao passo que embala uma canção, quanto pode direcionar-se ao leitor, fazendo as
vezes de um anfitrião que o convida à leitura da reportagem, constatando-se aqui um primeiro
movimento de aproximação ao universo do leitor, por meio da mobilização de elementos visuais.
Além disso, em razão de seu direcionamento dúplice, isto é, ao objeto do dizer - jacaré e
crocodilo - e ao destinatário-criança, é patente a bivocalidade intrínseca ao enunciado ora em
exame.
Anote-se que, em termos de inteireza e acabamento do enunciado, na dimensão visual,
confere-se exauribilidade ao objeto de sentido por meio da convocação de formas composicionais
que atuam em duas direções, a saber, a da esfera científica, ao lançar mão de ilustrações
científicas, e a do universo de referência pueril, ao utilizar-se de um “jacaré” que expressa
emoções. Satifazem-se, assim, necessidades afetivas dos pequenos por meio da inserção de um
personagem sorridente, ao mesmo tempo em que não se negligencia o caráter didático-científico
do texto ao ilustrar répteis de maneira realista. Isto é, ao finalizar o seu turno discursivo, o autor
Figura 2 - Excerto de página interna da revista CHC, edição de dezembro de 1986
62
oferece ao destinatário-criança formas composicionais de acabamento que asseguram àquele
plurais possibilidades de resposta ou de compreensão responsiva.
De maneira lata, observa-se que o réptil “jacaré” é privilegiado em relação ao crocodilo
tanto em elementos verbais - dado que dos dez parágrafos que integram a forma composicional
da revista, seis discorrem acerca do referido animal - quanto em visuais. Tal primazia desse réptil
em relação àquele poderia ter sido motivada pelo fato de não existirem crocodilos em território
nacional, de maneira tal que ambos os autores, isto é, das formas composicionais verbais e
visuais, ao darem um acabamento ao enunciado, optaram por lançar luz ao animal encontrado no
país no qual as crianças leitoras residem e que, certamente, poderia ser visto em parques
zoológicos, movimentando-se, dessa vez, ao norte do espaço físico ao qual a criança integra. “No
Brasil não existem crocodilos. Só jacarés” (BARBOSA, 1986, s/p). Convém-nos ressaltar que, ao
mesmo tempo em que os autores convocam o universo conhecido do leitor, iluminam, em termos
verbovisuais, o que é genuinamente nacional, de maneira tal que o tipo de acabamento conferido
ao enunciado está de acordo com os objetivos e as experiências de mundo dos parceiros
envolvidos na comunicação discursiva - de um lado a SBPC, com seu corpo editorial iluminando
o que é nacional, e de outro, o pequeno leitor, que encontra nas entrelinhas do enunciado o seu
universo familiar, de referência.
Em relação à R2/1987, mais especificamente no título, Tralhas domésticas indígenas, nota-
se uma oração nominal, caracterizada pela ausência de verbos e de sujeitos. Assim sendo, o título
da reportagem não fornece informações relativas à maneira ou ao sujeito responsável pela
confecção dos objetos de uso indígena. Aqui, é pertinente realizar uma ponderação acerca do
substantivo tralha - cujas quinta e sétima acepções da versão eletrônica do dicionário Houaiss
16
,
sob a rubrica uso informal, são, respectivamente, grande quantidade de objetos, porção de
coisase série de assuntos que não se nomeiam por desconhecimento ou esquecimento-o qual
pode produzir efeitos de sentido ambíguos.
O primeiro, que nesse excerto interessa-nos, estaria a favor de uma tentativa de aproximação
do universo do leitor, ao lançar mão de um substantivo que se restringe a um nível de uso
informal e que, portanto, infere-se, dificilmente utilizado nos sistemas ideológicos constituídos,
mas, possivelmente, recorrente na ideologia do cotidiano, para utilizarmo-nos de uma
16
Cf. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 3.0, edição 2009.
63
terminologia bakhtiniana. Nesse sentido, o enunciador aproximar-se-ia do leitor ao lançar mão de
uma palavra pouco comum a enunciados de ordem científica, embora, possivelmente, verificável
nas esferas da vida cotidiana. Isso significa dizer, que o sujeito autor-cientista, ao construir o seu
enunciado, não o faz aleatoriamente, a partir da seleção de um objeto lexical qualquer, mas age,
movido e condicionado, primeiramente, pela esfera a qual deve reportar-se e, depois, por sua
vontade e fins discursivos para com o seu destinatário.
4.2 Relações dialógicas de ratificação
Denominamos relações dialógicas de ratificação as relações semânticas entre elementos
verbais e visuais que se norteiam pelo objetivo de corroborar e confirmar sentidos depreendidos
em linguagens gnicas diferentes. Para ilustrar esse tipo de relação dialógica, apresentaremos a
análise da R1/1987 e da R2/1987.
Na R1/1987 (Jacaré ou crocodilo), visualiza-se, em fonte destacada, contornando o corpo do
animal, o enunciado Bobeou, jacaré te come”, cuja imagem do réptil está sobreposta justamente
sobre o sujeito gramatical jacaré, ao passo que “te come” está sobreposto à imagem de um
animal com a boca escancarada, como se estivesse preparado para executar a ação do verbo
“comer”, anunciada no predicado que lhe está supra-escrito.
64
Assim sendo, tornam-se evidentes as relações dialógicas de ratificação estabelecidas entre
a forma composicional verbal e a visual do enunciado, haja vista que há na imagem uma
confirmação do que é dito na forma verbal. Desnecessário dizer que, no enunciado ora em exame,
as instâncias autorais do autor-cientista, do ilustrador e do diagramador coadunam-se motivadas
pelo fim de, por um lado, apresentar um texto verbalmente didático e visualmente atrativo ao
destinatário-criança, e de outro, explorar a ludicidade estabelecida entre 1) jacaré visual versus
jacaré verbal e 2) “te come”, enquanto matéria palavra, versus jacaré com a boca aberta,
aludindo visualmente o referido material, segundo observável a seguir.
Figura 3 - Excerto de página interna da CHC, edição de
dezembro de 1986
65
Figura 4 - Excerto de página
interna da CHC, edição de
dezembro de 1986
Figura 5 - Excerto de página interna da CHC, edição
de dezembro de 1986
66
Quanto à R2/1987
17
, Casas e tralhas de índios - cujo objetivo do texto é descrever o local
de moradia e os objetos confeccionados e utilizados por indígenas - verifica-se que, dentre as sete
edições que compõem o corpus desse trabalho, esta é a única cujos elementos visuais estão
desprovidos de seres animados, haja vista que nas outras seis edições a presença de personagens é
recorrente, elemento que configura uma das caracteríticas da Ciência Hoje das Crianças.
À luz de tal constatação, observa-se que a ausência de personagens na materialidade
visual é ratificada na materialidade verbal tanto por meio do título quanto da sequência verbal
17
A capa da R2/1987 traz em destaque duas matérias principais: 1) Casas e tralhas de índios e 2) Não se caça ouriço
a mão. Desse modo, a escolha da primeira enquanto objeto de análise constituinte do presente trabalho justifica-se
por sua maior importância no interior da revista, posto que a mesma está distribuída em um maior número de páginas
do que a reportagem sobre ouriços e, além disso, conforme se verifica abaixo, ocupa um lugar privilegiado na capa
da revista. Semelhante reportagem está disposta, verbovisualmente, em duas das páginas que congregam a revista.
Tanto na primeira quanto na segunda página, o material visual integra a parte superior da composição gráfica, ao
passo que o material verbal situa-se na parte inferior, sendo que a segunda página repete exatamente a mesma
ilustração contida na capa
Figura 6 - Capa da revista CHC, edição de julho
1987
67
que constitui a reportagem, propriamente dita. Assim, averigua-se, ao longo do texto, a utilização
reiterada da voz passiva em detrimento da voz ativa, bem como, o emprego de verbos na terceira
pessoa do plural, de modo tal que há um ocultamento, duplamente observado, do indígena
enquanto autor da tessitura dos objetos convocados no texto. Vejamos, a seguir, dois exemplos:
1) “Com palha de várias espécies de palmeiras são traçados cestos de diferentes feitios e
tamanhos, cestos para guardar e transportar alimentos e outras tralhas”; 2) “Da argila são feitas
as panelas, as tigelas e os potes para cozinhar, servir e guardar comida, fogareiros e tachos para
guardar farinha e beiju” (RIBEIRO, 1987, s/p., grifos nossos). Dessa maneira, sobressai-se um
tipo de relação dialógica em que os elementos verbais corroboram os visuais e vice-versa.
Importante destacar que, no que diz respeito a esse tipo de relação dialógica, a qual é
bastante recorrente entre as formas verbais e as visuais de publicações centradas em divulgação
científica, constata-se, nessa reportagem em específico, em razão, sobremaneira, da inexistência
de legendas, que tais relações dialógicas são bastante incipientes, posto que não se nota uma
preocupação didática em ilustrar-se, de forma objetiva, cada um, ou parte dos objetos
mencionados no texto verbal, de maneira tal que o pequeno leitor, mesmo após a leitura integral
da reportagem, dificilmente terá uma ideia concreta dos objetos mencionados tanto na
materialidade verbal quanto na visual. Vale a pena informar que a falta de preocupação didática é
depreendida, ademais, pela utilização de substantivos - tal como tipiti
18
- certamente
desconhecidos pelas crianças às quais a revista é direcionada e que carecem de maiores
explicações no decurso da reportagem. “Também de palha são as peneiras, os abanos de fogo, o
tipiti”. (RIBEIRO, 1987, s/p -grifos nossos.)
Nesse sentido, é evidente que, entre as dimensões verbal e visual da R2/1987 (Casas e
tralhas de índios), estabelece-se, negativamente, uma relação dialógica de ratificação, haja vista
que tanto elementos verbais quanto visuais centram-se no mesmo conteúdo, ou seja, em objetos
confeccionados e utilizados pelos indígenas. Entrementes, faz-se necessário mencionar que se
observa tal ratificação, ademais, nas lacunas de informação constatadas em ambas dimensões: na
verbal substantivos cujo significado não é esclarecido no decurso da reportagem; na visual, a
18
Verificam-se três acepções para a palavra tipiti no dicionário Houaiss: 1) cesto cilíndrico de palha em que se põe a
massa de mandioca para ser espremida; tapiti; 2) situação difícil, da qual não se pode sair com vantagem; aperto,
apuro, entalação; 3) jogo roubado, trapaça (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 3.0, edição
de 2009). Assim, no contexto da reportagem em análise, o vocábulo tipiti remete à primeira acepção.
68
falta de legenda não precisa os objetos ilustrados, de modo tal que a criança pode não encontrar
correspondência entre a “tralha” mencionada no texto verbal e aquela ilustrada no texto visual. À
luz de tal consideração, é permitido afirmar, que, do ponto de vista semântico, diferentemente do
que se esperaria de enunciados de divulgação científica, a relação dialógica que prevalece não
está a favor da divulgação de saberes científicos, visto que a materialidade visual não esclarece e
nem amplia os sentidos presentes na materialidade verbal, e vice-versa.
4.3 Relações dialógicas de conflito
Relações dialógicas de conflito foram verificadas em situações em que a dimensão verbal e a
visual do enunciado apresentavam alguma oposição ou contradição na negociação de sentidos.
Tais relações dialógicas estão presentes, sobretudo, na R1/1986 (Jacaré ou crocodilo) e na
R3/1987 (As bruxas brasileiras e a Inquisição).
Na R1/1986, verifica-se que a ilustração do jacaré é acompanhada pela legenda “crocodilo”.
Tal erro - observado posteriormente pela própria revista, conforme observações contidas no
material que integra parte do acervo da SBPC, ao qual tivemos acesso -produz, de forma não-
intencional, uma relação dialógica de conflito entre os elementos verbais e os visuais.
Figura 7 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de
1986
69
Nessa via, constata-se que esse tipo de relação dialógica entre as formas verbal e visual do
enunciado, enquanto momentos de construção composicional, nem sempre está de acordo com a
vontade e o projeto discursivo dos autores, havendo casos, como o que apresentamos, em que os
sentidos produzidos estão além do querer-dizer do enunciador. Ao contrário, entram em conflito
com esses objetivos, os quais, nesse caso, estariam relacionados à transmissão correta de saberes,
outorgados pela esfera da ciência.
Na R3/1987, cuja reportagem de capa intitula-se As bruxas brasileiras e a Inquisição e o
principal propósito é discutir a existência de bruxas no Brasil, observa-se uma primeira mudança
realizada no projeto gráfico da revista, o qual, posteriormente, será recorrente nas edições futuras
da Ciência Hoje das Crianças. Tal mudança refere-se à definição de apenas uma matéria de capa,
visto que nas edições anteriores, constatava-se que havia uma tentativa de se invocar, no referido
espaço, todos os assuntos que seriam apresentados no interior da revista. Assim sendo, a quarta
edição da CHC é fundadora de uma nova maneira de se construir a capa da publicação, maneira
essa que está totalmente em consonância com o que podemos observar nas variadas publicações
que se concretizam por meio do suporte “revista”.
Figura 8 - Capa da CHC, edição de dezembro de 1987
70
Quanto à ilustração contida na capa, no plano inferior, verifica-se uma criança encostada
em um muro e sentada ao lado de um gato, absorta na leitura de um livro/revista, conforme pode
ser observado acima. Atrás do muro estão localizados um ser - que tanto pode ser um adulto,
quanto, pelos traços com os quais é representado, uma personagem de contos fantásticos - e um
cachorro, cujo olhar direciona-se ao gato posicionado ao lado da criança. Assim, nota-se, na
forma visual, a disposição espacial, em direção vertical, de elementos opostos : criança-adulto,
gato-cachorro, ao passo que diagonalmente, observa-se o arranjo de elementos que, no âmbito do
pré-construído, possuem afinidades entre si: criança-cachorro; gato-bruxa.
No que tange aos elementos díspares, semelhante oposição adquire mais sentido ainda ao
observar-se que a ilustração de capa coloca em relevo a relação dicotômica: mundo real versus
mundo da fantasia, cujo real seria simbolizado pela criança e pelo gato, enquanto os demais
elementos visuais, com exceção do livro/revista e do muro, bem poderiam representar o mundo
da fantasia. O muro, metaforicamente, constituir-se-ia uma barreira que segrega os dois mundos,
ao passo que o livro/revista seria o objeto capaz de estabelecer um diálogo entre eles, bem como,
transportar a criança do mundo real ao mundo da imaginação.
Se, no plano visual, o muro figura o elemento segregador entre o real e a fantasia, no
plano verbal, é a personagem da mãe quem desempenha esse papel.
-Deixe de bobagens -falou Marina. Não existem bruxas no Brasil.
-Não existem, mas já existiram -era a mãe que entrava no quarto (LIMA, 1987,
s/p.).
Quanto ao objeto que sofre a ação da leitura do sujeito criança, ao possuir uma capa em
branco, o mesmo preserva uma ambiguidade que nos permite concebê-lo: 1) como uma revista, e,
mais propriamente, a Ciência Hoje das Crianças, visto que, como pode ser verificado na figura
acima, existe um cartaz, superposto à revista, o qual apresenta os demais assuntos que serão
abordados na edição; 2) como um livro, nesse caso, de contos de fada, interpretação essa que
pode ser corroborada na dimensão verbal, posto que as personagens apresentadas no texto
ouviam justamente um conto de fada, a saber, João e Maria.
À noite, encolhidos na cama, Marina e Alexandre ouviam a irmã que lia em voz
alta: “Mas a velha tão velha, que parecia tão boazinha, era na verdade uma bruxa
que comia as crianças depois que as engordava. Escolheu João para ser comido
primeiro... (LIMA, 1987, s/p.).
71
Em relação ao título, a reportagem contém dois sintagmas nominais que configuram
elementos-chave na produção de sentidos depreendidos na articulação entre as dimensões verbal
e visual, a saber, “bruxas brasileiras” e “inquisição”, sobre o qual discorreremos posteriormente.
No que diz respeito ao sintagma “bruxas brasileiras”, observa-se que, do ponto de vista
visual, as duas bruxas objetivamente representadas não possuem nenhum indício que as
caracterize como brasileiras, haja vista que a bruxa brasileira mais reconhecida nacionalmente, de
acordo com relatos folclóricos, é a Cuca, personagem essa que encontra sua origem no velho
continente, mais especificamente em Portugal, na bruxa Coca. Ressalta-se que, em alguns lugares
do Brasil, a Cuca assume a forma de um jacaré, uma coruja ou um velho (CASCUDO, 2001, p.
167-169). Longe disso, a ilustração contida na capa da revista (figura 9) retrataria uma bruxa
“universal”, “globalizada”, que povoa as ideias do senso-comum, com seu nariz proeminente,
vassoura e cabelos desgrenhados.
No que diz respeito à bruxa contida nas páginas interiores da revista (figura 10), somente
é possível identificá-la como tal, em razão da vassoura e do chapéu que acompanham a
personagem que, desnuda e trigueira, bem pode lembrar o estereótipo da mulher brasileira, de
seios fartos e quadris largos. A brasilidade dessa “bruxa” é verificável, ademais, na combinação
das cores verde, amarelo e azul, manifestas, respectivamente, no cabelo, nos olhos e no chapéu.
Figura 9 - Excerto de página
interna da CHC, edição de
dezembro de 1987
72
Figura 10 - Excerto de página interna da CHC, edição de dezembro de 1987
Dessa perspectiva, observa-se que, entre a forma composicional verbal e a visual do
enunciado, reitera-se a relação dialógica de conflito presente na capa da revista, posto que as
ilustrações presentes no texto negam o elemento “bruxas brasileiras”, anteriormente confirmado
no título da reportagem. Importante ressaltar que, se em um primeiro momento, podemos postular
uma relação de incongruência entre o material verbal “bruxas brasileiras” e as ilustrações de
bruxas cosmopolitanas, em um segundo momento, constata-se, no decurso da sequência verbal
que, de fato, não existem bruxas brasileiras, tal como concebidas na ideologia do cotidiano. -
Então, aqui no Brasil existiam bruxas de caldeirão, vassoura? -Existir não existiam. Aqui, como
em Portugal, as bruxas perseguidas pela Inquisição eram na verdade mulheres pobres das
aldeias(LIMA, 1987, s/p, grifos nossos). Necessário iluminar, neste ponto, a posição autoral
assumida pelo artista plástico do texto visual, caracterizada pelo desabono do sintagma mulheres
pobres de aldeia, o qual situa, sócio-historicamente, a identidade das bruxas no Brasil e em
Portugal: mulheres desprovidas de poder político e econômico. Coloca-se em relevo, dessarte, os
distintos acentos apreciativos concedidos pelas instâncias autorais do autor-cientista e do
ilustrador. Se o primeiro relaciona a verdadeira identidade das bruxas: mulheres pobres da aldeia,
o segundo a omite, ratificando as imagens que povoam o imaginário, talvez no intento de parecer
mais atraente ao leitor mirim. Em outras palavras, os autores ora mencionados, ao manifestarem
as suas vontades discursivas, reagem e tomam diferentes posicionamentos axiológicos e
valorativos frente ao mesmo objeto do dizer, as “bruxas brasileiras”.
Por fim, destaca-se que, na dimensão verbal, ainda que, trazidos pela figura materna, haja
predominância de fatos históricos e reais, ou seja, do mundo da realidade, concreto e palpável,
73
constata-se a opção das personagens em refugiar-se no mundo da fantasia, posto que, no último
parágrafo do texto, consta a afirmação, nas palavras de Alexandre, de que a fantasia é mais
interessante do que a realidade. -Eu acho as bruxas de mentira bem mais interessantes que as de
verdade. Vamos, Fernanda, continua...O que aconteceu com João e Maria? (LIMA, 1987, s/p).
Todavia, na dimensão visual, o fato de a última imagem contida no texto remeter a uma
cena histórica, real e violenta, a de judeus sendo queimados, conforme será abordado abaixo,
constitui um golpe de realidade, reiterando, desse modo, as várias relações dialógicas de conflito
entre as formas verbal e visual.
4.4 Relações dialógicas de extrapolação
Designamos relações dialógicas de extrapolação
19
relações semânticas entre elementos
verbais e visuais em que, necessariamente, a imagem ultrapassa os sentidos presentes no
enunciado verbal, fornecendo uma gama de dados que não são depreendidos no material verbal,
como é o caso, por exemplo, da R1/1986 (Jacaré ou crocodilo), da R2/1987 (Casas e tralhas de
índios) e da R3/1987 (As bruxas brasileiras e a Inquisição).
Em uma das imagens da reportagem Jacaré ou crocodilo, visualiza-se que a boca do
crocodilo/jacaré está sendo “higienizada” por uma ave, provavelmente um pássaro-palito.
19
O termo extrapolação foi utilizado por Grillo (2009) para caracterizar relações estabelecidas entre materialidade
verbal e visual em que a segunda sugere sentidos não sugeridos na primeira.
74
Tal imagem extrapola as informações contidas no texto verbal, posto que, verbalmente, em
nenhum momento, abordou-se a relação comensal estabelecida entre jacaré e pássaro-palito. Ou
seja, aqui, verifica-se que a extrapolação semântica depreendida na articulação forma verbal
versus forma visual está a serviço da divulgação de conhecimentos científicos ao ilustrar
visualmente um dado ecológico não aludido verbalmente, verificando-se, desse modo, uma
relação dialógica de extrapolação de sentidos.
No que concerne à R2/1987 (Casas e tralhas de índios), conforme mencionado
anteriormente, o vocábulo tralha, ao mesmo tempo em que, em razão de seu acento popular,
desencadeia um movimento de acercamento ao leitor mirim, pode produzir um segundo efeito de
sentido, talvez de forma não-intencional, que se correlaciona ao não-lugar ou ao espaço impreciso
dos indígenas na história ocidental. Ratifica essa leitura o valor axiológico que a palavra sugeriria
ao remeter a 1) objetos indefinidos e inomináveis, bem como, por derivação metafórica, a 2)
“série de assuntos que não se nomeiam por desconhecimento ou esquecimento
20
, o qual,
ademais, é corroborado visualmente pelo lugar, ou melhor, pelo não-lugar, na vacuidade onde os
objetos estão dispostos.
20
Cf. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 3.0, edição 2009.
Figura 11 - Excerto de página interna da CHC, edição de
dezembro de 1986
75
É evidente que, até nos dias atuais, o signo índio não aponta somente para um referente
inequívoco, enleado a indíviduos, membros ou descendentes da população autóctone que se
estabelecera anteriormente ao processo de colonização, mas relaciona-se a matrizes discursivas
que se associam com ideias-força de que os indígenas seriam “preguiçosos, incultos e valentões,
instaurando-se, dessarte, um espaço de disputa acirrada, no qual se chocam posições ideológico-
discursivas em confronto na sociedade, elucidando a ideia de Valochinov/Bakhtin de que em
todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditório
(VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002 [1929], p. 46, grifos dos autores). Além disso, considere-se
que o sujeito do discurso, ao elaborar o seu enunciado, não o faz a partir de um lugar neutro e
aleatório, mas se circunscreve no âmbito do grande diálogo, assumindo uma atitude responsiva
perante algo, bem ilustrando a condição de todo e qualquer enunciado: inerentemente dialógica,
responsiva e formadora de elos na cadeia discursiva.
Passando à análise da R3/1987 (As bruxas brasileiras e a Inquisição), em relação ao
vocábulo “Inquisição”, presente no título da reportagem, averigua-se que, visualmente, o mesmo
encontra uma ilustração que se propõe a representar hereges condenados a morrer na fogueira.
Figura 12 - Páginas internas da CHC, edição de julho de 1987
76
Esses hereges, contrariando a expectativas, não são bruxas, mas, aparentemente, em razão de suas
formas, seres humanos do sexo masculino.
Assim, primeiramente, em uma leitura pouco acuidada, o que poderia configurar-se como
uma relação dialógica de conflito entre material verbal e visual (homens condenados, ao invés de
bruxas), é, na verdade, o elemento que desestabiliza a sequência de imagens fantásticas que o
antecede, visto que animais imaginários e bruxas voando em suas vassouras são preteridos em
prol de uma cena corriqueira e real na ocasião do Santo Ofício. Mais ainda, considerando-se que
nessa época era comum a condenação de cristãos-novos, isto é, judeus convertidos ao
cristianismo, pode-se inferir que os indivíduos que estão sendo queimados na ilustração seriam de
origem semita. Visualmente, o fato de tais sujeitos serem representados com narizes sobrestantes
Figura 13- Excerto de página interna da CHC,
edição de setembro de 1987
77
está a favor dessa interpretação, posto que, durante o Holocausto, circulavam caricaturas nos
periódicos que traziam judeus com narizes em evidência
21
.
Assim sendo, nota-se, visualmente, a retomada de uma memória discursiva, de um fato
histórico, de maneira que os sentidos verificados na materialidade visual ultrapassam os sentidos
observados no texto verbal, estabelecendo-se, assim, uma relação dialógica de extrapolação dos
sentidos veiculados na forma composicional verbal. Assinala-se que essa extrapolação de
sentidos somente é possível devido à exotopia, isto é, o distanciamento e estranhamento do
autor-ilustrador em relação ao objeto, a fim de (re)construí-lo. Trata-se de um momento de
distanciamento e empatia, seguidos por um momento de objetivação. Em outras palavras, esse
distanciamento, espacial e temporal, do ilustrador em relação ao objeto de dizer e ao discurso do
autor-cientista, concede àquele um excedente de visão que age, objetifica e reage a um
acontecimento histórico e a discursos prévios, aos quais apresenta uma reação autoral e confere
um acabamento estético, por meio da ilustração de fatos e personagens. Desnecessário dizer que
o autor-cientista, igualmente, está exotopicamente posicionado ao fato histórico -inquisição e
bruxas brasileiras - condição que lhe permite objetificá-lo e acabá-lo.
4.5 Para divulgar a ciência
O levantamento e estudo das relações dialógicas ocorridas entre as formas composicionais
verbal e visual dos enunciados que compõem o primeiro período de análise do corpus permitiram
constatar que o dialogismo verificado, em muitos casos, está orientado à divulgação de
conhecimentos científicos ao público infantil.
Nesse sentido, os movimentos dialógicos em direção ao universo do leitor são
ocasionados com vistas a promover o interesse genuíno da criança por questões de ordem
científica, reiterando a ideia de que a ciência não é uma entidade abstrata, mas que, pelo
contrário, pode integrar parte da ideologia do cotidiano tanto no que se refere aos temas tratados
21
Carneiro (2001) assinala que tais atos preconceituosos ocorreram, inclusive, no Brasil, sobretudo no governo de
Getúlio Vargas, haja vista que os principais jornais, cariocas e paulistas, veiculavam caricaturas e piadas sobre
judeus, de cunho debochado, representando-os de maneira sinistra, com nariz adunco e semblante maquiavélico.
78
quanto à linguagem empregada. Assim, a partir do momento em que se compartilha com a tese de
que a ciência integra o cotidiano e faz parte da vida dos leitores, prepara-se um terreno mais fértil
para a construção conjunta e compreensão de saberes científicos.
as relações dialógicas de ratificação, bastante recorrentes em materiais de DC, são
imprescindíveis na disseminação de conhecimentos científicos ao procurarem veicular um
mesmo sentido em planos de expressão diferentes, comunicando um mesmo conteúdo por meio
de materiais distintos, o que é de suma importância quando se tem em conta o público infantil,
cuja identificação com a linguagem plástica é considerável. Ademais, à luz da faixa etária na qual
se encontram os leitores, deve-se levar em conta a possibilidade da existência de crianças não
alfabetizadas, às quais a transmissão de informações dar-se-ia, primordialmente, por meio dos
elementos visuais.
Nas relações dialógicas de conflito, delinearam-se duas situações distintas: na primeira
delas, o conflito estabelecido entre imagem e verbo foi ocasionado despropositalmente, posto
que, o objetivo da revista era promover uma relação dialógica de ratificação, na qual as formas
composicionais verbal e visual deveriam corresponder-se. Na segunda, a oposição de elementos
díspares, assim como ocorre nos movimentos dialógicos de aproximação ao universo do leitor, o
objetivo maior é seduzir as crianças para leitura do texto, por meio da seleção de temas que lhes
interessariam: animais (gato e cão) e contos de fada (bruxas).
Por fim, quanto às relações dialógicas de extrapolação, de nosso ponto de vista, essas são
as que exigiram um maior esforço de compreensão e reflexão por parte dos pequenos, haja vista
que não são transparentes e tão pouco diretas, apresentando-se ao leitor como um convite a que
exerça, de forma incontestável, sua atitude responsiva diante do enunciado.
79
5. ANÁLISE DO SEGUNDO PERÍODO: O FOCO NO DESTINATÁRIO
PRESUMIDO DO ENUNCIADO
A investigação das quatro edições que constituem o segundo período de análise,
acompanhada pelo cotejo com outros números da Ciência Hoje das Crianças, a fim de se
verificar a regularidade e relevância dos aspectos aqui observados, pôs em relevo que o
endereçamento ao destinatário presumido, assim como a referenciação ao seu universo, tornar-se-
ão características da revista no segundo período de análise.
Nos âmbitos da teoria bakhtiniana, o outro, destinatário de todo e qualquer enunciado, que
ganha corpo nas instâncias de ouvinte, leitor ou espectador, desempenha um papel fundamental e
orgânico no discurso do eu, haja vista que em toda e qualquer enunciação existe o esforço do
locutor em projetar a linguagem frente a outrem. Isto é, o locutor enuncia em função da
existência (real ou virtual) de um interlocutor, visando uma atitude responsiva deste, antecipando
o que o outro pode dizer, ou seja, experimentando ou projetando-se no lugar do seu
ouvinte/leitor/espectador.
Nos termos de Bakhtin (2003 [1952-1953]):
Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu
discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de
conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em
conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de
vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso irá determinar a ativa
compreensão responsiva do meu enunciado por ele (BAKHTIN, 2003 [1952-
1953], p. 302).
À luz de semelhante asserção, intentaremos aqui observar como a orientação do discurso a
um interlocutor “virtual” é verificável na materialidade verbal e visual do enunciado de
divulgação científica para crianças. Dito de outro modo, buscar-se apurar como os leitores
presumidos tomam forma a partir de indícios discursivos e textuais (verbais e visuais).
80
5.1 O dia-a-dia das crianças em verbo e imagens
Na R1/2007, cujo objetivo é traçar, de uma perspectiva histórica, a utilização do caderno
no transcorrer do tempo e o título da reportagem no interior da revista é “A história do Caderno
constata-se que a orientação ao destinatário é observada, tanto em elementos verbais quanto em
visuais, por meio da remissão ao cotidiano escolar da criança. Anote-se que os vocábulos história
e caderno, presentes no título da reportagem, são retomados tanto na dimensão verbal quanto na
visual do enunciado, porém, ao passo que caderno está presentificado concretamente em ambas
as dimensões, por meio da presença do referido substantivo e da imagem correlata, o valor de
história é construído de maneira indireta. Na dimensão verbal, o interlocutor é convidado a
“voltar na história” -“convidamos você a voltar no tempo” -ao passo que, visualmente, o
vocábulo história adquire sentido ao remeter-se à gênese do caderno, ao mesmo tempo em que há
uma confrontação com a utilização atual do objeto. Nessa esteira, semelhantes planos de sentido,
o antigo e o atual, são contrapostos através da ilustração de objetos contemporâneos (caderno
com estampas, estojo, lápis de cor, mochila, folha pautada) e antigos (caneta bico de pena,
tinteiro). Importante comentar, ainda que de forma superficial, que tal oposição se dá, ademais,
na seleção das cores utilizadas na ilustração: nos objetos antigos verificam-se cores frias e sóbrias
e, nos atuais, cores alegres e vibrantes.
No que concerne à convocação do cotidiano escolar dos pequenos, averigua-se, na capa
da reportagem, que ao redor da imagem de um caderno, ilustração que se afigura como central,
são dispostos objetos relacionados às atividades estudantis dos pequenos, tais como lápis,
mochila e estojo.
81
Da mesma maneira, ao voltarmo-nos ao texto verbal, nota-se que o enunciador,
igualmente, coloca em relevo o dia-a-dia escolar de seu leitor virtual. Mais do que isso, além de
demonstrar conhecimento sobre as atividades do destinatário, em uma tentativa de intimidade e
aproximação máxima, o autor lança mão, reiteradamente, do pronome “nosso”, de modo tal a
inserir-se no cotidiano físicoespacial e discursivo, a priori, reservado à criança. Quem fala não é a
minha voz, o meu discurso (autor-cientista/SBPC), senão a nossa voz, o nosso discurso (autor-
cientista/SBPC e criança).
Sempre ao nosso lado nas horas de estudo, ele pode guardar os nossos mais
belos desenhos e também nossos mais secretos pensamentos... Afinal, muitos
cadernos acabam virando diários, não é? Então, para descobrir como surgiu esse
amigo de todos os momentos, convidamos você a voltar no tempo. Um, dois,
três e... (IRIGOYEN, 2007, p. 3, grifos nossos).
Iluminam-se, nesse excerto, o princípio dialógico da inter-relação da subjetividade com a
alteridade, o enleamento de múltiplas vozes no qual a experiência individual do sujeito se
constrói em constante e contínua tensão com os enunciados individuais de outrem, trata-se do
discurso do tu no discurso do eu, pronunciado a partir de uma posição exotópica, ou seja, do
Figura 14 - Capa da CHC, edição de jan/fev de
2007
82
distanciamento do autor-cientista de seu objeto de dizer, “a história do caderno”, ao mesmo
tempo em que se realiza um movimento de atravessia da ponte e acercamento ao destinatário-
criança, com “pensamentos secretos”, bem ilustrando a ideia bakhtiniana de que "A palavra é
uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa
extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do
locutor e do interlocutor " (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 113).
Da mesma maneira, na R2/2007, cuja reportagem intitula-se “A turma do a: a de
artrópodos” e o objetivo é apresentar as principais características zoológicas do filo dos
artrópodos, verifica-se a remissão a um contexto escolar que é, todavia, temporalmente anterior
ao destinatário, haja vista a existência de metodologias
22
de alfabetização, utilizadas até meados
dos anos 80, que associavam determinado fonema a certo objeto do mundo. Nessa perspectiva, ao
convocar uma memória que é anterior ao destinatário presumido, verifica-se a história tocando e
(re)significando o sujeito, de maneira a produzir sentidos.
22
Semelhante método de alfabetização, denominado sintético ou silábico, tinha como objetivo principal ensinar a
leitura por meio da associação de letras aos seus nomes, somado a alguma imagem que representava a letra a ser
estudada. “O método sintético „partia das partes para o todo‟, isto é, da síntese para análise. Tal método implicava em
memorização e repetição do exercício” (ARAÚJO, 2009, p. 10).
Figura 15 - Páginas interiores da CHC, edição de abril de 2007
83
No que diz respeito, especificamente, à referência ao cotidiano histórico-escolar, tal
leitura pode ser corroborada por meio do da expressão “A turma do A”, que remete à divisão dos
anos de estudo em séries. Ademais, a dimensão do cotidiano é assinalada em outros momentos da
reportagem, de modo tal que se observa o esforço dos autores em convocar o que,
presumidamente, é familiar a seu destinatário. “Esses animais estão muito presentes no nosso
dia-a-dia: são baratas, mosquitos, formigas, mariposas, piolhos, pulgas, marimbondos, abelhas,
entre outros” (GANDARA, 2007, p. 3, grifos nossos).
É pertinente observar que, diferentemente das demais imagens até aqui analisadas, as
quais são constituídas por ilustrações, a forma composicional acima lança mão de uma fotografia
que tem por objetivo evocar um dos representantes do filo dos artrópodos, relacionado na
materialidade verbal. Nesse sentido, é possível afirmar que a equipe de diagramação da revista,
enquanto instância autorial, ao dar um acabamento final (mas não, último), ao material verbal da
reportagem, circunscreve sua vontade única e seu projeto discursivo, concretizados por meio da
escolha da fotografia em detrimento da ilustração, de colocar em evidência o real
23
, de forma a
estabelecer uma supremacia do científico e jornalístico em relação ao artístico, cujo objetivo seria
proporcionar prazer estético e deleite à criança. Não obstante, tal como se apresenta, a fotografia
em questão não deixa de promover uma experiência estética ao destinatário do enunciado.
Mais uma vez, na R3/2007, cuja reportagem de capa intitula-se Gelatina: tem ciência na
culinária e o objetivo do texto é relacionar o processo e os compostos biológicos envolvidos na
produção da gelatina, é evidente a orientação do enunciado para outrem por meio da invocação
de atividades cotidianas do leitor virtual, bem como, do universo de fantasia da criança.
O título da reportagem, de imediato, insere a ciência no cotidiano, dessacralizando-a,
tanto no plano verbal, ao afirmar que a atividade culinária tem um viés científico, quanto no
visual, posto que as personagens ilustradas encontram-se em uma cozinha, cômodo
provavelmente presente na casa de qualquer leitor e que, nesse contexto, faz as vezes de um
laboratório.
23
Assinale-se que, ainda que incida no senso comum que a fotografia constituiria fragmento e prova incontestável do
real, Barthes (1984) postula que se deve levar em conta a manipulação nos sistemas de produção da imagem
fotográfica. Além disso, não se deve negligenciar que a fotografia, ainda que apreenda fragmentos do real, jamais
deixa de refletir o ponto de vista de seu autor.
84
Saliente-se que, a escolha de uma reportagem de capa concentrada em um objeto do dizer
aparentemente banal e com um quê de inusitado, a gelatina, que longe de ser aleatória, representa
a materialização do querer-dizer de um sujeito-autor, histórica e socialmente situado, cujo projeto
discursivo orienta-se pela vontade de inculcar no destinatário-criança a ideia de que a ciência
constitui parte da vida comum. Trata-se, assim, não apenas de uma reportagem de Ciência Hoje
das Crianças, mas da proposta da revista enquanto tal, sumulando o seu projeto e anunciando os
procedimentos discursivos e de acabamento de enunciado que assume em seus textos de
divulgação científica para as crianças.
5.2 Afinidades e simpatias do leitor na materialidade verbal e verbovisual
Outro modo de endereçamento ao destinatário-criança concretiza-se por meio da alusão,
manifesta em acabamentos verbal e visual, a aspectos e questões que são de interesse, afinidade e
Figura 16 - Páginas interiores da CHC, edição de julho de 2007
85
simpatia dos destinatários presumidos, como pode ser conferido na capa da R2/2007
(Artrópodos: os bichos mais numerosos do planeta).
Em semelhante reportagem de capa, infere-se que as imagens dos animais, tal como
representadas, fazem alusão a jogos eletrônicos, objetos que são de interesse dos pequenos e,
muitas vezes, comuns nas práticas lúdicas de certas crianças, ao mesmo tempo em que, em
consonância com o semioticista tcheco Ivan Bystrina, cujas proposições estendem-se a outros
jogos, constituem um item de suma importância na formação cultural e ao pensamento lógico do
indivíduo (BYSTRINA, 1995).
Ainda no que se refere ao aspecto lúdico, na fotografia de abertura da reportagem, estão
dispostas duas abelhas pousadas sobre uma flor, entendendo-se, assim, que tal inseto foi
selecionado como o representante dos diversos seres invertebrados que constituem o filo dos
artrópodos, seres esses elencados ao longo do texto verbal (formigas, baratas, mosquitos, etc). À
luz de tal constatação, podemos assinalar que a escolha das abelhas, enquanto representação
metonímica da gama de animais artrópodes, coloca em relevo o ludismo existente no enunciado
verbal A turma do A: a de artrópodos, e também, a de abelha.
Figura 17 - Capa da CHC, edição de abril
de 2007.
Figura 18 Capa da CHC, edição de abril
de 2007
86
Nesse sentido, podemos afirmar que, nas formas composicionais do enunciado de abertura
da reportagem, existe uma complementaridade entre as dimensões verbal e visual, cujo principal
fim é o de trazer à luz elementos que são da simpatia do pequeno leitor ao construir um jogo com
palavras, muito comum nas brincadeiras pueris, e com a imagem. Assim sendo, o endereçamento
do enunciado ao destinatário presumido é depreendido por meio da alusão a um jogo, construído
verbovisualmente, que é de interesse e simpatia do público mirim.
Na R3/2007 (Gelatina: tem ciência na culinária), o enunciador serve-se da identificação
que as crianças encontram com a fantasia, e constrói, na dimensão visual, uma cena maravilhosa,
na qual se concede vida a objetos que são, por excelência, inanimados, tais quais a gelatina e o
fogão, personagens que são revestidas de traços animados e expressam emoções, segundo
podemos constatar a seguir.
Figura 19 - Páginas interiores da CHC, edição de abril de 2007
87
Ademais, as personagens ilustradas no interior da revista, na abertura da reportagem, da
mesma maneira que o destinatário presumido, encontram-se na fase da infância, seguram um
objeto, o qual, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como uma colher, se assemelha a
uma varinha de condão (Figura 21), de modo tal que a ciência é representada como algo mágico,
magia essa presente na fantasia dos pequenos.
Figura 20 - Capa da CHC, edição de julho de
2007
88
Entretanto, é pertinente dizer que, em um primeiro momento, da perspectiva do olhar
adulto, a vinculação da ciência à magia entra em conflito com a ideologia que a publicação
pretende transmitir ao seu leitor virtual de que a ciência faz parte do dia-a-dia, do cotidiano das
pessoas. Todavia, o direcionamento do enunciado ao leitor mirim, a quem o maravilhoso é parte
integrante dos jogos e brincadeiras infantis, teve uma maior relevância no momento de decisão
dos objetos visuais que constituiriam a reportagem. Ressalta-se porém que, se de um lado, a
imagem não entra em conflito com os propósitos da revista em aproximar-se ao destinatário e de
considerar suas necessidades psíquicas e afetivas, de outro, confrontar-se-á com os dizeres do
material verbal, que denunciam a lógica e racionalidade cartesianas que põem em funcionamento
os acontecimentos explicados à luz da ciência: “Mas faz todo o sentido se a gente souber que a
gelatina nada mais é do que um tipo de proteína, chamado colágeno, que existe em grande
quantidade nessas partes do corpo dos animais -e do nosso próprio organismo também! (SILVA,
2007, p. 3).
Não obstante, é necessário assinalar que, no plano verbal, o maravilhoso não está de todo
ausente, posto que se pode inferir que a instauração do universo de fantasia se por meio da
palavra mistério, a qual potencializa e reitera, simbioticamente, os efeitos de sentido presentes na
Figura 21 - Página interior da CHC, edição
de julho de 2007
89
formavisual. “A gelatina é uma sobremesa rápida, fácil de fazer e está disponível nos mais
variados sabores -e cores! Mas, para muita gente ela é um mistério!” (SILVA, 2007, p. 3, grifos
nossos).
Na R4/2007, cujo título é Múmias: o lado assombroso da ciência e o objetivo da
reportagem é explicar as maneiras de mumificação, verifica-se a presentificação do universo de
afinidades e simpatias do leitor por meio do tratamento de um tema interessante aos pequenos: as
múmias, corriqueiramente presente em filmes e desenhos animados humorísticos ou de suspense
e terror.
É pertinente assinalar que o adjetivo assombroso
24
, encontrado no título da reportagem de
capa, de um lado, bem pode caracterizar o viés da ciência relacionado ao estado de
deslumbramento que suas descobertas, objetos e funcionamento podem causar nos indivíduos,
e de outro, vincular-se ao pré-construído de que as múmias estão relacionadas às histórias de
terror e de suspense. Semelhante elemento, estabelecido na matéria verbal, é corroborado na
ilustração da capa ao retratar uma personagem e um rato com expressões de assombro em razão
da presença de uma múmia.
Nesses moldes, observa-se aqui, na imbricação dos elementos verbais e visuais, que o
texto verbal extrapola os sentidos depreendidos por meio da observação da imagem, a qual
ratifica apenas o aspecto assustador do vocábulo assombroso.
Além disso, no plano visual, a atmosfera sombria é corroborada pela presença de outros
dois elementos picos do universo do terror e do suspense, a saber, o caixão e o morcego, os
quais remetem à figura emblemática do Conde Drácula. Isto posto, assinala-se que a remissão
visual a tal personagem norteia-se pelo fim exclusivo de reforçar o clima sombrio, anunciado
por outros elementos do enunciado verbovisual, haja vista que não menção a vampiros em
nenhum outro momento enunciativo.
24
Em consonância com a versão eletrônica do dicionário Houaiss, assombroso possui as seguintes acepções: que
causa assombro; espantoso, impressionante
90
Todavia, é pertinente observar que a atmosfera de terror e de suspense que se estabelece
entra em conflito com a maneira anacrônica por meio da qual a múmia, objeto arqueológico
associado ao Egito Antigo, é representada visualmente, visto que tal personagem ouve um
aparelho tecnológico reprodutor de músicas e carrega uma expressão facial bastante arrojada,
que, longe de causar assombro, introduz o humor ao enunciado. Observe-se que a inserção do
humor no discurso de divulgação científica ora em exame é resultado da fixação e objetivação
artística de um autor outro, de uma consciência que não coincide com a do autor da palavra, cujo
trabalho discursivo faz imergir, na superficie textual, dois sujeitos distinguíveis, bem como,
duplica os seus respectivos lugares. E, para não haver dúvida quanto a essa autoria dúplice e, ao
mesmo tempo ímpar, o autor-ilustrador se inscreve no enunciado e registra a sua marca ao assinar
o seu texto - Zigg. “Nesse acontecimento, o autor ocupa um lugar singular e único que o
constrange a se responsabilizar, face ao outro, pelo seu pensamento. Ao assinar seu pensamento
ou sua obra, o autor a torna não-indiferente: dota-lhe de valor no contexto (AMORIM, 2006,
p.101, grifos da autora).
Figura 22 - Capa da CHC, edição de agosto de
2007
91
À luz de tais observações, podemos dizer que a destinação das formas composicionais
verbais e visuais da capa da R4/2007 (Múmias: o lado assombroso da ciência) é depreendida
por meio da introdução do humor, que se constrói com o auxílio de recursos visuais, os quais
atenuam um tema que, apesar de interessante, talvez, pudesse causar medo aos pequenos leitores.
Além disso, verifica-se um apelo verbal explícito ao destinatário do enunciado, tanto na
dimensão verbal quanto na visual. Em relação à dimensão verbal, observa-se a utilização
reiterada do pronome dêitico você, o qual conta com nada menos que cinco aparições ao longo
das três páginas escritas.
1) Você sabe o que são múmias?
2) Você acredita em assombração?
3) Se você está chegando à conclusão de que múmias por todos os lados,
acertou.
4) Você sabia que um congresso para apresentar as novas descobertas
científicas feitas com múmias em todo o mundo?
5) Você nem imaginava que os corpos mumificados podiam ser tão importantes
para a Ciência e o quanto podemos aprender com eles, não é? (SOUZA, 2007,
p.6)
Semelhante pronome estabelece um diálogo explícito como o leitor, que é convocado a
todo momento para a leitura e interação com o texto. Além do mais, a utilização reiterada de tal
pronome confere uma dramaticidade interior ao enunciado, posto que, muitas vezes, o enunciador
Figura 23 - Excerto de capa da
CHC, edição de agosto de
2007.
92
se posiciona como se “ouvisse” a resposta de seu interlocutor, de maneira a antecipar-lhe
possíveis réplicas. “Você ouviu falar em múmias de faraós egípcios? Pois, então, [...]”
(SOUZA, 2007, p.6).
As seguintes afirmações de Bakhtin corroboram o acima postulado:
Imaginemos um diálogo entre duas pessoas no qual foram suprimidas a réplicas
do segundo interlocutor, mas de tal forma que o sentido geral o tenha sofrido
qualquer perturbação. O segundo interlocutor é invisível, suas palavras estão
ausentes, mas deixam profundos vestígios que determinam as palavras presentes
do primeiro interlocutor. Percebemos que esse diálogo, embora um fale, é um
diálogo sumamente tenso, pois cada uma das palavras presentes responde e
reage com todas as suas fibras ao interlocutor invisível, sugerindo fora de si,
além dos seus limites, a palavra não pronunciada do outro. (BAKHTIN, 1997
[1963], p.226)
A consideração do destinatário e a antecipação de sua atitude responsiva são
frequentemente amplas, e inserem uma original dramaticidade interior no
enunciado (em algumas modalidades de diálogo cotidiano, em cartas, em
gêneros autobiográficos e confessionais) (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p.302).
Nessa perspectiva, a convocação à interação, bem como o direcionamento explícito do
enunciado ao leitor-criança verificáveis no texto verbal, igualmente, se no plano visual, visto
que se observa a ilustração de três múmias cujos posicionamentos e olhares, direcionados à
frente, encontrar-se-iam com o olhar da criança, além do que, as mãos dessa personagem
representam um gesto de interlocução, o qual seria reproduzido na enunciação da seguinte
constatação: “Nós éramos mais bonitos antigamente...”
93
A referida constatação, assim como ocorre nos enunciados presentes na capa, causam um
efeito humorístico. Aqui, o humor reside no fato de, a própria personagem, admitir a sua falta de
beleza, que teria se perdido com o passar do tempo, ideia que vai ao encontro do imaginário que
as múmias estão intrinsecamente relacionadas ao que é antigo.
5.3 Um balanço entre o primeiro e o segundo período de análise
O estudo das edições da Ciência Hoje das Crianças que constitue o segundo período de
análise da presente pesquisa permitiu que se constatasse que o destinatário ganha um destaque
que não possuía nos anos iniciais de publicação da revista. Esse realce na instância do
destinatário, traduz-se em variados aspectos, mas principalmente pelo fato de, nesse segundo
período, o sujeito-autor, dialogando e respondendo a discursos sobre a infância, a criança e o
Figura 24 - Página interior da CHC, edição de
agosto de 2007.
94
brincar, redefine os seus objetos de dizer e as relações de poder nos processos de construção do
discurso científico.
Tal destaque dar-se-á, entre outros, através da iluminação do cotidiano do destinatário-
criança, aludido com constância em diversos momentos de diferentes enunciados, conforme será
exposto a seguir.
A comparação entre os aspectos observados no primeiro e segundo períodos de análise
colocou em relevo importantes mudanças ocorridas na CHC ao longo dos vinte anos que
segregam o momento de formação da revista à fase atual, em que a publicação havia se
consolidado enquanto material de DC, direcionado a um público específico e bastante peculiar.
Assim, o estudo das dimensões verbal e visual das edições que integram a fase
embrionária da revista, ou seja, as revistas publicadas entre 1986 e 1987, se comparadas àquelas
veiculadas no ano de 2007, são caracterizadas, sobretudo, na materialidade verbal, pela ausência
de relações dialógicas interativas, as quais, no segundo período de análise, marcam, de maneira
incontestável, o direcionamento do enunciado a outrem. Da perspectiva visual, assinala-se,
igualmente, que não havia uma preocupação tão evidente em trazer à luz o universo de referência
do pequeno leitor, no que diz respeito a seus gostos e atividades.
Debruçando-se sobre semelhante constatação, à luz dos acontecimentos históricos e
sociais, correlaciona-se a relegação do destinatário do enunciado a um plano secundário ao fato
de que, nos primeiros anos de sua fundação, a política editorial da Ciência Hoje das Crianças
25
,
muito bem definida e normatizadora, era pautada nos parâmetros da esfera científica e da Ciência
Hoje (publicação endereçada aos adultos) e não pelas peculiaridades e características do pequeno
leitor, no que tange aos seus interesses e gostos.
Destaca-se que, nessa época, aos jornalistas, não era concedida autonomia para publicar e
assinar os artigos, sendo os únicos discursos possíveis, de autoria e de autoridade, aqueles
proferidos por cientistas, que atendendo a coerções discursivas da esfera científica, não tinham
como foco central o destinatário do enunciado.
Nessa via, no primeiro período de análise, se de um lado observa-se uma escassez de
relações dialógicas interativas, de outro, são diversificados e numerosos o caráter dialógico
25
Maiores informações acerca da política editorial da Ciência Hoje e da Ciência Hoje das Crianças podem ser
obtidas na tese de doutoramento de Gouvêa (2000), intitulada A divulgação científica para crianças: o caso da
Ciência Hoje das Crianças.
95
manifesto entre planos de expressão verbal e visual, observando-se, até mesmo, relações
dialógicas, as quais certamente, eram não-intencionais e despropositais (veja-se o caso da
inversão da legenda na reportagem “jacaré ou crocodilo).
Já no segundo período de análise, que representa a fase de maturidade da revista e na qual
a chancela editorial leva em conta, preponderantemente, o destinatário do discurso e que
jornalistas desempenham papel fundamental na elaboração do discurso, as relações dialógicas
interativas são abundantes, tanto na dimensão verbal quanto na dimensão visual do enunciado, as
quais, a todo o momento trazem o leitor mirim para a superficialidade material, convocando-o à
leitura e à interação com o texto de uma forma explícita.
Nesse sentido, a análise empreendida do período em questão, iluminou o fato de que o
endereçamento ao destinatário virtual ganha corpo, verbovisualmente, por meio da invocação de
elementos que estejam relacionados às afinidades físicas, sociais e psíquicas da criança, de
maneira tal que a orientação do discurso ao outro-criança se no âmbito da referência a seus
gostos, modo de vida e simpatias.
No que diz respeito a distribuição dos enunciados verbais e visuais no espaço das páginas
acima, é interessante assinalar que diferentemente dos textos que compunham o primeiro período
de análise, nos quais não havia uma distribuição nítida entre texto e imagem, de modo que, em
algumas vezes um sobrepunha-se ao outro, constata-se que, diferentemente, no material analisado
no segundo período, há uma divisão clara entre tais formas composicionais.
Evidentemente, a referida mudança foi promovida a fim de produzir-se um efeito visual
esteticamente mais agradável e levou em consideração as expectativas e preferências do
destinatário do enunciado, a saber, o leitor mirim. Convém assinalar que, segundo Arnold (1965,
p. 122), a distribuição de textos verbais e visuais deve ser planejada com vistas a proporcionar ao
leitor uma leitura atraente, rápida e confortável.
Observa-se, ademais, que assim como o autor do texto verbal realiza uma seleção
temática dentro do universo de possíveis saberes científicos que poderiam de interesse às
crianças, concretizando-o em um gênero discursivo, o autor do enunciado visual, igualmente,
efetuará uma seleção de objetos a serem ilustrados que levam em conta as expectativas de seu
destinatário.
Por fim, é necessário dizer que as relações dialógicas estabelecidas entre formas
composicionais verbais e visuais, convergem na tentativa de aproximação do outro, seja por meio
96
da referência a aspectos próprios da ideologia do cotidiano, seja através do apelo às afinidades,
simpatias e interesses do destinatário-criança, deixando-se claro que os enunciados presentes na
CHC constituem textos que não desprezam dizeres característicos do cotidiano e, tampouco,
supervaloriza os sistemas ideológicos constituídos, para nos servirmos de um termo de Bakhtin.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de conclusão desse trabalho, busquemos fazer um balanço entre os objetivos
propostos e os resultados alcançados. Destaque-se que ao nos inserirmos no grande diálogo e
tocarmos elos da cadeia discursiva que estão vinculados à divulgação científica para as crianças,
observamos que questões relacionadas à linguagem atravessam e alinhavam discursos que se
voltaram a tal objeto de dizer (LIMA et al (1996); MASSARANI (2007); ZAMBONI (2001),
SILVA (2007), ROQUETTE-PINTO(2005 [1927]). De ideias que variam de que a divulgação
científica para crianças possui uma “língua própria”, passando por normas orientativas quanto à
linguagem utilizada na divulgação científica para crianças e culminando com a máxima de que
esta seria um nero próprio, está mais do que comprovado de que a linguagem ocupa um lugar
central na divugação de saberes científicos para os pequenos.
No tocante à primeira pergunta de pesquisa formulada - Quais as influências dos leitores
presumidos na construção verbal e verbovisual dos enunciados de divulgação científica para
crianças? - espera-se haver demonstrado, sobremaneira na análise da reportagens de capa do ano
de 2007, que o destinatário-criança toma corpo no discurso de Ciência Hoje das Crianças,
principalmente, por meio da utilização de procedimentos verbovisuais que aludam à afinidade,
aos gostos e às simpatias do pequeno leitor, assim como, ao seu universo de referências e à sua
vida cotidiana.
Com relação à segunda questão - De que maneira se manifesta o dialogismo entre formas
composicionais verbais e visuais inscrito no discurso da revista e, em particular, nas
reportagens de capa? -, observou-se que as relações dialógicas firmadas entre formas
composiconais verbais e visuais articulavam-se com duas finalidades bastante claras. Primeira,
divulgar informações científicas em diferentes códigos. Segunda, envolver, seduzir e
proporcionar deleite ao pequeno leitor. Além disso, destacaram-se as relações dialógicas
estabelecidas entre o autor do texto verbal e o autor do texto visual, os quais, se em determinados
momentos coadunavam-se a fim de corroborar sentidos veiculados entre formas composicionais
verbais e visuais (relações dialógicas de ratificação) e, em outros, debatiam-se e entravam em
confronto ao responderem, a partir de diferentes valorações axiológicas, a questões intrínsecas ao
grande diálogo universal.
98
No que toca às hipóteses aqui exploradas, confirma-se o axioma bakhtiniano de que a
palavra é o principal chão comum entre locutor e destinatário (BAKHTIN, 2002 [1929]). Mais
ainda, fique claro que, no caso da divulgação científica para crianças, empreendida por Ciência
Hoje das Crianças, os elementos visuais têm valor equiparado ao da palavra no endereçamento,
na sedução e na interpelação ao interlocutor. Dessarte, é possível afirmar que as formas
composicionais visuais são recorrentes e, inclusive, constitutivas dos gêneros de divulgação
científica para as crianças da revista cuja análise empreendemos. Acrescente-se que se nota certa
equiparidade na distribuição de formas verbais e visuais, de maneira tal que a imagem adquire a
mesma importância que a palavra na divulgação científica realizada por Ciência Hoje das
Crianças.
No que diz respeito à segunda hipótese, além de confirmá-la é necessário que se assinale
que a convocação de objetos da ideologia do cotidiano manifesta-se não somente em recursos
verbais, conjectura primeira, mas também por meio de formas composicionais e acabamentos
visuais, que objetivam inserir o universo de referência dos pequenos no discurso científico da
revista, bem como, revestem-se de fins orientativos, informativos e didáticos.
Anote-se que, ao realizar-se uma comparação entre o primeiro e o segundo período de
análise, no que tange à dimensão do interlocutor, iluminou-se o fato de que o direcionamento ao
destinatário-criança ocorre de maneira mais evidente nos exemplares atuais da revista, nos quais
ocupa um lugar de destaque e de incontestabilidade, empregando-se elementos verbais e
verbovisuais que, a todo momento, trazem o leitor presumido à superfície do enunciado. Nesse
sentido, pode-se inferir que, se em um primeiro momento, em sua fase de construção, a Ciência
Hoje das Crianças focava a sua atenção na divulgação de saberes científicos de maneira clara e
compreensível ao público mirim, em um segundo momento, no qual a revista havia alcançado
certa maturidade, verificou-se a necessidade de aproximar-se de forma mais eficaz do público
leitor, procurando construir com ele uma relação amistosa que poderia facilitar e aprazer a
construção de saberes científicos. Identifique-se aqui que, passado o momento de construção e
consolidando a maturidade da revista, a SBPC toma um distanciamento de seu leitor, isto é,
posiciona-se exotopicamente com relação a seu destinatário (assim como, a seu objeto de dizer)
para, em seguida, deslocar-se em direção ao território do outro para poder realizar um trabalho
de escuta da alteridade, para poder traduzi-la e transmiti-la” (SAMPAIO, 2005, p. 6).
99
Referente à revista Ciência Hoje das Crianças, propriamente dita, nota-se, de modo lato,
o delineamento de um percurso argumentativo cujo principal fim é angariar a adesão do
destinatário-criança à tese de que, de um lado, a ciência constitui essência do cotidiano de
qualquer sujeito, que por conseguinte, tem o dever de compreendê-la, e de outro, que o trabalho
de divulgação científica de Ciência Hoje das Crianças está a serviço tanto da comunidade
científica, na medida em que oferece um espaço no qual os cientistas podem exercer um papel
social, quanto do público infantil, provendo-o de conhecimentos, diversão e informações.
Destaque-se que, não objetivamente querendo funcionar como material didático atrelado ao
ensino de ciência, a revista marca o seu lugar como material auxiliar à divulgação de saberes
científicos no meio infantil, entretanto, caracteriza-se por desestruturar as relações de poder do
discurso de divulgação científica presentes em livros escolares, nos quais, de um lado, estão
ciência e cientistas, enquanto entidades abstratas detentoras de um saber, e de outro, destinatário-
criança-aluno, enquanto mero canal receptor de informações.
Cabe destacarmos que, em primeiro lugar, ao centrarmo-nos em discursos de divulgação
científica para as crianças, esperamos ter contribuído na compreensão da construção verbal e
verbovisual de enunciados cujo endereçamento se a um público bem específico, o público
mirim.
Em segundo lugar, à luz da perspectiva bakhtiniana, espera ter colocado em relevo,
ademais, que as relações dialógicas depreendidas nas dimensões verbal e verbovisual do material
selecionado para análise desempenharam duas funções principais. A primeira, observada,
sobretudo, no primeiro período de análise, a partir das relações dialógicas entre as instâncias
autoriais do cientista-escritor e do ilustrador, está a favor da construção dos saberes científicos,
de modo a contribuir para que o leitor compreenda com mais facilidades os conteúdos veiculados
no texto. A segunda, destacada no segundo período de análise, está relacionada à interação com o
destinatário presumido do enunciado, considerando seus gostos, simpatias e afinidades.
Por fim, espera-se ter contribuído com a reflexão sobre a construção de conhecimentos
científicos para um público tão singular, bem como, com o projeto de pesquisa O funcionamento
de formas do português em gêneros de transmissão de saberes,coordenado pela professora Sheila
Grillo, da área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
auxiliando na compreensão da divulgação científica e de seus gêneros discursivos.
100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. IN: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São
Paulo, Editora Contexto, 2006.
ARAUJO, E. A construção do livro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Brasília, Instituto Nacional
do Livro, 1986.
ARAUJO, G.C.; SANTOS, S.M. A cartilha Caminho Suave: história, memória e iconografia.
Fênix : Revista de História e Estudos Culturais. Disponível em: www.revistafenix.pro.br
20/10/ 2009.
ARNOLD, E. C. Tipografia y Diagramado para Periódicos. Nova Yorque. Mergenthaler
Linotype Company, 1965
BARBOSA, C. R. Jacaré ou crocodilo. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 1, 0,
s/p, dez. 1986.
BAJTÍN, M. M. Hacia una filosofía del acto ético: de los borradores y otros escritos.
Tradução de T. Bubnova. Barcelona: Anthropos; San Juan: Universidade de Puerto Rico,
1997[1924].
______. Para una reelaboración del libro sobre Dostoievski. In:______ Hacia Estética de la
creación verbal. Tradução de T. Bubnova. México: Siglo veintuno, 1979 [1961], pp. 324 -325.
BAKHTIN, M. M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In:
______. Questões de literatura e estética. A teoria do romance. Tradução de A. F. Bernadini et
al. 3. ed. São Paulo: Ed. da Unesp, 1993[1924]. p.13-70.
_____. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______. Estética da criação verbal.
Tradão de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins fontes, 2003 [1920 -1924], p. 3-186.
______/VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud
e Yara Frateschi Vieira. 9ª. ed. São Paulo: HUCITEC, 2002[1929].
101
______. O discurso no romance. In: ______. Questões de literatura e estética: a teoria do
romance. Tradução de A. F. Bernadini et al. 3. ed. São Paulo: Ed. Da Unesp, 1993[1934-1935].
p.71-210.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Françoise
Rabelais. Tradução de Y. Frateschi. 4. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: EDUNB, 1999[1940].
______. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997[1963].
______. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo
Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1952-1953]. p.261-30
BARTHES, R. A câmara clara. Trad. Júlio Castañón Guimarães. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. IN: BRAIT, Beth. Bakhtin outros conceitoschaves.
São Paulo, Editora Contexto, 2006.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF,1997.
BUENO, W. C. Jornalismo científico no Brasil: uma prática dependente. Tese de Doutorado,
ECA/USP, São Paulo, 1984.
BYSTRINA, I. Tópicos de Semiótica da Cultura. São Paulo: PUC/ SP, 1995.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Anti-semitismo na Era Vargas. 3ed. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001
CLARK, K; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução de Jaime Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
102
COSTA, L. R. Da ciência à política: dialogismo e responsividade no discurso da SBPC dos
anos 80. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2010.
GANDARA, A. C. P. A turma do a: a de artrópodos. Ciência Hoje das Crianças, Rio de
Janeiro, ano 20, nº 178, p. 2-6, abr. 2007.
GOUVÊA G. A Divulgação Científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças.
Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação, Gestão e Difusão em
Biociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
______________. A revista Ciência Hoje das Crianças e prática de leitura do público infantil. In:
MASSARANI, L. (Org.). O pequeno cientista amador: a divulgação científica e o público
infantil. Rio de Janeiro: Vieira & Lent: UFRJ, Casa da Ciência: Fiocruz, 2005. p. 47-57.
GRILLO, S. V. de C. Gênero, arquivos e corpus. In: A produção do real em gêneros do jornal
impresso. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.
_______. A noção de campo nas obras de Bordieu e do Círculo de Bakhtin: suas implicações para
a teorização dos gêneros do discurso. In: Revista da Anpoll. São Paulo, v. 19, p. 151-184, 2005.
_______. Esfera e campo. In: BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2006, p. 133-160.
_______. Enunciados verbovisual na divulgação científica. Revista da Anpoll, n. 27, Belo
Horizonte, 2009, p. 215-243.
IRIGOYEN, G. A história do caderno. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 20,
176, p. 2-6, jan/fev. 2007.
LIMA, L. L. G. As bruxas brasileiras e a Inquisição. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro,
ano 1, nº 4, s/p, set. 1987.
LIMA, M.C.B et al. Apresentamos a Física. Caderno Catarinense de Ensino de Física,
Florianópolis, nº 2, v. 13, p. 89-107, ago.1996.
103
MASSARANI, L. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a
década de 1920. Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do
Instituto Brasileiro de Informação em C&T da ECO/UFRJ, Rio de Janeiro: 1998.
______. Reflexiones sobre la divulgación científica para niños. Disponível via URL em:
http://www.prbb.org/quark/17/017040.htm. Acesso em: 02/10/2007
MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução de
Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
ORMASTRONI, M. J. S. A Divulgação Científica no Meio Infanto Juvenil. Revista da
Sociedade Brasileira de História da Ciência, nº. 4, p. 23-25, 1989.
POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: M. Fontes, 1988.
RIBEIRO, B. G. Tralhas domésticas indígenas. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano
1, nº 3, s/p, jul. 1987.
ROQUETTE-PINTO, E. A história natural dos pequeninos. In: MASSARANI, L. (Org.). O
pequeno cientista amador: a divulgação científica e o blico infantil. Rio de Janeiro: Vieira
& Lent: UFRJ, Casa da Ciência: Fiocruz, 2005. p. 59-63.
SAMPAIO, M. C. H. Concepção dialógica de linguagem e a questão do método para a pesquisa
linguística em ciências humanas. Investigações, v. 17, 21, p. 151 a 160. Universidade Federal
de Pernambuco, PPGL, Recife, 2005.
SILVA, S. Estudo enunciativo da pessoalização do discurso de divulgação científica infanto
juvenil: o emprego do pronome você. Disponível via URL em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/cd/Port/122.pdf. Acesso em: 02/10/2007
SILVA, J. T. Gelatina: doce curiosidade! Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 20,
181, p. 2-5, jul. 2007.
SIQUEIRA, D.C.O. Superpoderosos, submissos: os cientistas na animação televisiva. In:
MASSARANI, L. (Org.). O pequeno cientista amador: a divulgação científica e o público
infantil. Rio de Janeiro: Vieira & Lent: UFRJ, Casa da Ciência: Fiocruz, 2005. p. 23-31.
104
SOUZA, S. M. Das tumbas para a História. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 20,
nº 182, p. 2-5, ago. 2007.
ZAMBONI, L.M.S. Cientistas, Jornalistas e a Divulgação Científica: subjetividade e
heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Fapesp/Editora Autores
Associados, 2001. São Paulo: Autores Associados, 2001.
105
ANEXOS
106
107
108
109
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
120
121
122
123
124
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo