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UM UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
Programa de Pós-Graduação em
Linguagem e Ensino
ENTRE OS APITOS DA CASA-DE-FORÇA, A BARRAGEM:
DA ANÁLISE TEXTUAL À SALA DE AULA
Isaías de Oliveira Ehrich
Prof. Dr. José Edilson de Amorim (Orientador)
CAMPINA GRANDE PB
2009
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ISAÍAS DE OLIVEIRA EHRICH
ENTRE OS APITOS DA CASA-DE-FORÇA, A BARRAGEM:
DA ANÁLISE TEXTUAL À SALA DE AULA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da
Universidade Federal de Campina Grande,
em cumprimento às exigências para o Grau
de Mestre.
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E ENSINO
Prof. Dr. JOSÉ EDILSON DE AMORIM
Orientador
Campina Grande PB
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFCG
E33e Ehrich, Isaías de Oliveira
Entre os apitos da casa-de-força, a barragem: da análise textual à sala
de aula / Isaías de Oliveira Ehrich. Campina Grande, 2009.
284 f. : il. color.
Dissertação (Mestrado em Literatura e Ensino)- Universidade Federal
de Campina Grande, Centro de Humanidades.
Referências.
Orientador: Prof. Dr. José Edilson de Amorim.
1. Literatura 2. Representação Social 3. Didatização do Saber I.
Título.
CDU 869.0(81)(043)
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5
À escritora Maria Ignez da Silva Mariz
(Ignez Mariz)
6
“A claridade está é na alma da gente! E só
quando assim acontece nos apercebemos
de que por fóra ella também se despeja.”
Ignez Mariz
7
AGRADECIMENTOS
Concluir um curso de Mestrado não é uma etapa fácil. Diversos óbices o
interpostos em nosso trajeto para que, durante a realização de uma fase tão
importante em nossa vida profissional, saibamos valorizar cada instante vivido,
cada noite de sono sacrificado, cada xícara de café bebido para que nosso intento
fosse desempenhado.
Após dois anos de intenso esforço dedicado a leituras, pesquisas,
aprimoramentos metodológicos, enriquecimento teórico, chega o momento de
dever cumprido, de tarefa realizada. Além disso, é tempo de reconhecer quem, de
algum modo, viveu, compartilhou, colaborou com o nosso trabalho. Por isso,
quero aproveitar esse espaço para agradecer a esses verdadeiros colaboradores
do meu caminho. Várias pessoas que, de algum modo, deixaram as suas marcas,
as suas impressões em minha vida e que contribuíram para a minha formação
pessoal e profissional.
Inicialmente, faço um agradecimento ao Grande Mestre, à Inteligência
Única e Suprema do Universo: Deus. A Ele, sou eternamente grato pela vida, pela
saúde, pelo labor e força diária nesse árduo percurso, que é o nosso existir. E,
além disso, proporcionou-me nascer, conhecer e me apaixonar por o Gonçalo,
minha terra amada!
Aos meus genitores: Maria de Oliveira Ehrich (Mercês) e Isaías Pereira
Ehrich e ao meu irmão, Ivo, por terem me ensinado a educação primária e
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fundamental, calcada nos princípios morais e éticos, a fim de que eu pudesse me
tornar um sujeito íntegro e um cidadão.
A todos os meus familiares do ramo Ehrich, sobretudo a minha grande
mestre, Zefinha, minha avó estimada, que me ensinou pelo exemplo próprio a
enfrentar com força e coragem a vida.
A minha tia materna, Júlia Oliveira Tôrres, grande responsável pela minha
vida escolar, um exemplo de educadora, mãe e amiga.
Um agradecimento especialíssimo a uma pessoa que foi muito importante
para a realização dessa etapa em minha vida: Andréa Maria Lacerda de Araújo,
pela força, incentivo e exemplo de mulher e amiga.
Outra mulher, exemplo de cidadã são gonçalense, grande responsável pela
mediação entre mim e Ignez Mariz (apresentou-me o livro) e que, devido a
algumas peculiaridades, é vista como uma louca por algumas pessoas de São
Gonçalo, mas que é, sim, uma sertaneja sábia, íntegra e acolhedora, possuidora
de uma sapiência impressionante e que, aqui, representando a comunidade de
São Gonçalo, agradeço: Aracy Marques Dias.
Não posso esquecer-me de pessoas que foram imprescindíveis em minha
formação educacional: a família Estevam Marinho, berço escolar primeiro, local
onde pude dar os meus primeiros passos enquanto aluno, anos depois, o
aprendizado docente e, principalmente, o valor de educandário. Aos meus
educadores e, depois, colegas de trabalho: Gisolda Pordeus, Azuíla Fernandes,
Maira Auxiliadora, “Silinha(in memorian), Lourdinha Matos, Esmerinda Pedrosa,
9
Elizete Moreira, Ângela Reis, Socorro Taveira, Toinha de Cigano, Bernadete
Bernardino, Mary Ehrich, Marluce Almeida, Lourdes Silva, Francisca Alexandre
(Nonga), Maria Alcindo, Domingos Gualberto de Oliveira, cia Florêncio, Goreth
Maciel, Veridiana Batista, Zilma Coura, Socorro Rodrigues, D. Terezinha
Capitulino e demais funcionários.
Aos meus alunos e amigos da EJA e Ensino Médio do Estevam Marinho,
que muito contribuíram para a minha formação profissional e pessoal, além de
minhas três grandes amigas/colegas de trabalho, em especial: Margarida
Fernandes, Lourdes Dantas e Vitória Batista. Aos demais amigos e colegas de
labuta do referido educandário: Luís Antônio, Assis Oliveira, Diltinho, Felipe
Batista de Sá.
Aos mediadores do saber e formação profissional da Escola Agrotécnica
Federal de Sousa: Francinez Barbosa Martins (ensinou-me, juntamente com
Drummond e o “professor Carlos es” a desmistificar o mistério do português),
Rosângela Vieira Freire (exemplo de força, determinação e valor à vida),
Francisco Nairson de Oliveira (um modelo de amigo e Pai), Dourivan Elias (minha
madrinha EAFS), Chiquinho Cicupira, Júlio Cesar, Risonelha Lins, Lúcia
Queiroga, Eliane Queiroga, Miguel Wanderley, Jácome, Cândida, Paulo,
Bosquinho (grande contador de histórias), Luiz Pereira (e suas histórias hilárias
de Belo Jardim), Antônio Alves, Francisca Moreira, Hermano Rolim, Raniery, Kátia
Gurjão, Lúcia Cesar, Everaldo Mariano, Evanio Siebra, e demais professores. Aos
funcionários aqui representados pelas figuras marcantes de Francisco Jairo Lopes
(grande amigo), Leni e Fátima Figueiredo e a mãe de todos os alunos da EAFS,
10
D. Sessé.
Aos meus amigos da EAFS, os quais muitos deles transpassaram as
fronteiras daquele tempo e se tornaram Amigos eternos, mesmo que nossas vidas
tenham tido a necessidade de trilhar caminhos diversos. Em especial: Herberte
Hugo, Juliano Dantas, Francicleide Pereira, Izaías Luiz Herculano, Dionísio
Queiroga Jr, Glérison Queiroga. Muito obrigado a vocês todos que tornaram os
nossos anos de “fobó“, “capa-gato“, e “T.A.”, inesquecíveis.
Às professoras da escola Dione Diniz (Núcleo II), em especial: Edna
Campos, Laucênia Batista, Gorete Bernardino, Zélia Carvalho e demais
companheiros(as) de luta, que me fizeram ver que a educação tem seu lado de
sacrifício e recompensa. Lembranças das caminhadas para cumprimento do
dever.
Aos professores da Universidade Federal de Campina Grande (CFP - Cz),
em especial àqueles que estiveram mais presentes nessa etapa: Fátima Elias e
Aderson Graciano (exemplos pessoais de mestre: à primeira, pela organização e
disciplina educacional; ao segundo, por me ensinar a procurar aprender além das
palavras do professor), Erlane Aguiar, Onireves Monteiro de Castro, Wandreley
Alves de Souza, Marta Nóbrega, Angélica Oliveira, Elri Bandeira, Isamarc Lobo,
Sérgio Murilo, Douglas Fregolente. Além das amigas desde a época da
graduação: Josenita Queiroga, Tássia Regina de Oliveira e Fátima André.
Aos demais docentes, funcionários e alunos do CFP/UFCG, agradeço pela
vivência e convivência diária, ensinando-me experiências de vida.
11
Aos alunos colaboradores dos Leituras em Flashes: Paulo Félix da Silva
(primeira fase) - primeiro aluno leitor de A Barragem e grande incentivador para
que eu pudesse desenvolver um trabalho de revitalização dessa obra - agradeço
pelo incentivo, cooperação e auxílio; Ivo de Oliveira Ehrich e Evanildo Gonçalves
(segunda fase). Jayle Kerller Batista, Diego Martins e Jeferson Aquino, leitores-
colaboradores das leituras de A Barragem, mostrando-me possibilidades de
interpretações do romance.
Aos que fazem o Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino:
Edilson Amorim, que aceitou o desafio de trabalhar com um romance anônimo da
Academia e que me ensinou a independência da pesquisa, dando-me a liberdade
de realizar o trabalho, sem impor condições que não fossem as exigidas pelo
programa do POSLE, prestando sua colaboração com sua orientação e
experiência profissional, possibilitando-me o desenvolvimento do veio de
pesquisador/docente. A Helder Pinheiro, Marta Nóbrega, Augusta Reinaldo,
Williany Miranda (por me ensinar que a grande metáfora da pesquisa e do ensino
é a socialização do saber).
A Andrey Pereira de Oliveira, pelo apoio, pela amizade iniciada no
ambiente de trabalho (CFP- Cz) e solidificada pelas conversas, troca de
experiências e pela vivência nas idas e vindas semanais (Cajazeiras - Campina
Grande/ Campina Grande - Cajazeiras) para as aulas do mestrado. Grande
colaborador e debatedor dessa dissertação, mostrou-me olhares diversos sobre
os romances regionalistas, sobre Teoria Literária e formação literária.
Aos amigos conquistados no Mestrado: Andrea Santana, Elizabete,
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Zuleide, Rebeca, Evaldo, Cristiane Vieira, Clarissa, MArina, Rosa Maria, Sr.
Odilon (restaurante), aquele forte abraço, sobretudo ao FFIKA (Fabyana Muniz,
Fernanda Moura,Keith Glauk e Andréia Lima) e a Linduarte Rodrigues, grandes
amigos que, juntamente comigo, tornávamos as aulas mais alegres (apesar dos
cochilos). A vocês, tenho a agradecer pelos bons momentos de discussão e
diversão sempre regados a café.
À família Bandeira, pela acolhida e pela amizade estabelecida, em especial
a Sr. Olívio Bandeira, grande exemplo de leitor (apesar da dificuldade visual,
sempre o encontramos lendo ou discutindo algum texto), Maria Bandeira (Meré),
Neta, Wedson (Disson), Winston (Tentém), Miriam e demais familiares; a
Wollaston, Irani e Talita, muitíssimo obrigado amizade, convivência e pela
“adoção”!
Aqui, dedico atenção especial a algumas pessoas que, devido à minha
rotina diária, acabei me afastando um pouco, mas que têm um valor incalculável
em minha vida: Amigos mais que especiais: Wenndell Oliviera, Rosimere
Rodrigues, Maria José (Véa), Sr. Chico Antunes (grande mestre e cultura viva),
Gilmar Fernandes de Araújo e Liberacy Menezes (Cheirosa); Juliano Dantas,
Herberte Hugo e Gina Almeida; Allan Marques (meu amigo, eterno menino, pela
alegria contagiante); Ricardo Pereira; Marcus Vinícius; Marlon, Garene, Laertte,
Luanna, Marlete e Luís; tio Joel (in memorian) e família; Iggor, Kenard, Juliana e
Bianca; Sr. Murilo e D. Lúcia Siebra e demais integrantes do Grupo Espírita “Os
Cireneos do Caminho”; Paulino; Adriel Lins; Leandro Rodrigues; David Ramon;
Laurita e Leidjania (resquícios da Elite); Bruno Albuquerque; Rosângela Marinho;
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Dr. João Adolpho Meyer; Daniel Kremer, Silvio Gomes de Sá; Ricardo Sósthenes,
Jônatas, Laesso, Carlos Rafael e Bruno Menezes, unidade e fraternidade,
sempre.
Aos camaradas de movimento comunitário rural e de luta por um sonho de
construção de uma sociedade justa e igualitária (eternos amigos psolinos), em
especial: Ailton Lima, D. Mariquinha, Gersino, D. Raimunda (Movimento
Comunitário Rural de Sousa); Thomas Magno, Davi Lobão, Renan Palmeira,
Nunes, Elízio Souza, Socorro e Rogério (PSOL_Brasília), Eduardo Senna,
Renato Roseno, Betânia Cavalcanti e Heloísa Helena. Obrigado por
compartilharem comigo esse sonho e entenderem a minha ausência no grupo
para poder concretizar uma fase de minha vida acadêmica. Vocês o mais que
camaradas, aprendi com vocês a lutar pelos sonhos mesmo que o caminho seja
traiçoeiro e longo.
Aos amigos, colegas de labuta e alunos da Escola Municipal de Ensino
Fundamental e Médio Maria Estrela de Oliveira, pois compreenderam a
necessidade de, em alguns momentos, ter que me ausentar; que cooperaram
significativamente para a realização desse trabalho. A vocês, mais que agradecer,
desejo-lhes saúde e sucesso!
A Paulo Pereira, que acabou sendo um intermediador entre mim e uma
outra pessoa que desenvolveu um trabalho riquíssimo sobre a memória e a
história paraibana: Ana Maria Coutinho, grande referência de pesquisadora e de
mulher que valoriza a cultura local. Muito obrigado pela contribuição a esse
trabalho e que, mais que educadora, é uma amiga!
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A um casal que muito me ensinou sobre religião e experiência de vida:
Fátima Moreira e João Paulino. Agradecimentos especiais a ambos pela amizade,
acolhida e carinho. Além da minha outra família postiça: João Nascimento, Liliam
e Lidiany. Sem esquecer também de uma outra família especial: Dona Mundinha
e Sr. Gerson, Marcilio e Osimar e demais colegas de Patos (Martonha, Quitéria,
Nathiely, Amaury, Pelado).
Finalmente, a uma pessoa que eu pude compartilhar cansaço, desânimo,
insegurança, ansiedade, impaciência, fraquezas, angústias, alegrias, risadas,
sonhos, dúvidas, medos e sofrimentos e esperanças. A você, meu grande
AMIGO, Juliano Moreira do Nascimento, muitíssimo obrigado por tudo!
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RESUMO
Entendendo a Literatura como representação social, este trabalho faz uma análise do
romance regionalista A Barragem, da escritora sousense Ignez Mariz, o qual retrata a
história de uma família de retirantes nordestinos que, devido às adversidades causadas
pela seca de 1932, vai procurar as obras de açudagem em São Gonçalo. Com uma
linguagem fácil e construindo personagens marcantes, representativos de alguns sujeitos
sociais da época (década de 1930), a autora marca, em seu texto, mediante a ação dos
personagens, detalhes minuciosos da construção de mais um açude na década de 1930,
no sertão paraibano, além disso, ela valoriza o trabalho sertanejo, a educação e o papel
da mulher. Na pesquisa, tempo e espaço foram escolhidos como categorias de análise
contextualizadoras da representação social (calcada nas idéias de Moscovici e Jodelet)
exposta no enredo. Assim, Entre os Apitos da Casa-de-Força, A Barragem: da análise
textual à sala de aula, volta-se para a seguinte indagação: qual a contribuição de A
Barragem para a comunidade de São Gonçalo no que tange à representação de
aspectos sócio-histórico-culturais do referido lugar? No intento de responder esta
questão, este trabalho tem um pequeno viés etnográfico, sendo analítico-interpretativo,
com uma vertente bibliográfica e histórico-documental e baseia-se nos seguintes
objetivos gerais: 1) analisar, interpretar e compreender tempo e espaço, enquanto
categorias contextualizadoras de análise, no romance A Barragem; 2) buscar
compreender a representação de aspectos sócio-histórico-culturais de São Gonçalo no
enredo do romance A Barragem; 3) contribuir para a inserção de novas as práticas
pedagógicas no cotidiano escolar. E possuirá os seguintes objetivos específicos: 1) reler
analiticamente A Barragem; 2) identificar e analisar a representação de aspectos sócio-
histórico-culturais de São Gonçalo no romance de Ignez Mariz em questão; 3) planejar e
exercitar o estudo do romance em sala de aula. Para melhor contemplar os objetivos
propostos, o trabalho está dividido em duas partes: na primeira, é feita a revisão de
literatura e a análise da representação social de São Gonçalo em A Barragem. Na
segunda parte, são abordadas questões inerentes ao ensino (leitura literária, escrita,
formação docente, letramento entre outros temas) e a descrição e análise de uma
experiência didática com o referido romance em sala de aula. Por fim, retomamos a
questão norteadora e evidencia que São Gonçalo tem, sim, um texto literário, que A
Barragem, e que merece (por que não?) ser trabalhado em sala de aula, sobretudo no
sertão paraibano.
Palavras chave: Literatura. Representação Social. Didatização do saber
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ABSTRACT
Understanding the Literature as social representation, this work is an analysis of the dam
regionalist novel, the writer of Sousa Ignez Mariz, which portrays the story of a family of
northeastern strollers that due to the adversity caused by the drought of 1932, will look for
work of weirs in São Paulo. With an easy language characters marked building,
representative of some social subjects of the time (the 1930s), the author marks in her
text, by the action of characters, full details of the construction of another dam in the
1930s, in the hinterland of Paraíba Moreover, she appreciates the trotes work, education
and the role of women. In the research, time and space are categories of analysis context
of social representation (based on the ideas of Moscovici and Jodelet) exposed the plot.
Therefore, Amongst the whistles of the House-of-Force, The Dam: textual analysis of the
classroom, back up to the following question: what‟s the contribution of the dam to the
community of São Gonçalo in regard to the representation of social, historical and cultural
points of that place? In attempt to answer this question, this work has a small ethnic bias,
and analytical-interpretative, with a part-documentary and historical literature and it‟s
based on the following general objectives: 1) analyze, interpret and understand time and
space as categories context of analysis, in the novel The Dam, 2) seek to understand the
representation of social,historical and cultural of São Gonçalo in the plot of the novel The
dam, 3) contribute to the integration of new teaching practices in daily school. And it has
the following specific objectives: 1) The analytically read of The Dam, 2) identify and
analyze the representation of social, cultural and historical romance of São Gonçalo in the
Ignez Mariz concerned, 3) plan and practice the study of the novel in the classroom of
class. seeking better understanding of the objectives, the work is divided in two parts: first,
there is a literature review and analysis of the social representation of o Gonçalo in the
dam. In the second part, issues are addressed to education (reading literature, writing,
teacher training, literacy among the topics) and the description and analysis of an
experience with teaching the novel in the classroom. Finally, take up the guiding question
and highlights that São Gonçalo is, rather, a literary text, that the dam, and it deserves
(why not) be working in the classroom, especially in the hinterland of Paraiba.
Keywords: Literature. Social Representation. Knowledge education.
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SUMÁRIO
PRIMEIROS APITOS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
CAPÍTULO I
1 - NO BALANÇO DO TEMPO E NOS CAMINHOS DO ESPAÇO: PAUSA PARA
CONHECER E CONSTRUIR O TRABALHO ...................................................... 22
1.1 - Leituras em Flashes: a luz primeira a ser revelada ..................................... 22
1.2 Ignez Mariz: o olhar literário sobre São Gonçalo ........................................ 27
1.3 A Barragem: o sertão paraibano no romance de Ignez Mariz: exposições
iniciais................................................................................................................... 29
1.4 - Por entre pedras e páginas: a metodologia da pesquisa ............................. 40
1.4.1- Procedimentos metodológicos .............................................................. 44
1.4.2 - Ancoragem Teórica ............................................................................. 47
I PARTE
CAPÍTULO II
2 - DISCUTINDO ROMANCE: COVERSAS COM A TEORIA ............................ 50
2.1 Do fantástico ao romance: aspectos gerais ................................................ 50
2.2 Os Eleitos: a política do Cânone ................................................................. 60
2.3 “Ler, eleger e seguir adiante”: o cânone literário brasileiro ......................... 72
2.3 A Segunda Fase do Modernismo Brasileiro e a Literatura Regionalista ..... 77
18
CAPÍTULO III
3- A REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM A BARRAGEM: OS PRETÉRITOS DE UM
LUGAR NAS PÁGINAS DO PENSAMENTO DE UMA MULHER .......................90
3.1 Representação social: informações conceituais preliminares .................... 93
3.2 São Gonçalo entremeio espacial do romance ....................................... 103
3.2.1 O espaço no âmbito literário ............................................................. 107
3.3 Tempos de açudagem entre a ficção e a História .................................. 116
3.3.1 A correnteza do tempo no fluxo das águas ....................................... 125
3.4 A representação religiosa no romance ..................................................... 131
3.4.1 Um bailado pela vida de São Gonçalo ..............................................133
3.3.2 A dança de São Gonçalo ...................................................................134
3.4.3 Festa a São Gonçalo: tradição religiosa aflorada por saudades
rememoradas.......................................................................................................141
3.4.4 Representação religiosa nos nomes das personagens .................... 148
3.5 Representação dos sujeitos sociais .......................................................... 151
3.6 Política e economia: um costume antigo representativo da região ............164
3.7 Rabiscos das águas: a representação da educação rural .........................167
II PARTE
CAPÍTULO IV
4- DAS PÁGINAS DO ROMANCE À SALA DE AULA: DIDATIZAÇÃO DO
SABER LITERÁRIO .......................................................................................... 180
4.1 - Contextualização do ensino de Literatura .................................................. 180
4.2 Ensino de Literatura duas visões e um alvo: o leitor .............................. 184
19
4.3 Interpretação: uma visão de vários olhares .............................................. 192
4.2 Considerações sobre a leitura e a escrita no contexto escolar ................. 197
4.2.1 Perspectiva internacional da leitura/escrita ....................................... 201
4.2.2 A formação do leitor competente ...................................................... 203
4.5 Letramento ................................................................................................ 208
4.5.1 Letramento literário: o olhar crítico .....................................................210
4.6 - O docente e a identidade profissional: alicerce da educação .....................215
4.6.1 - Formação profissional e estratégias formais de leitura ..................... 218
4.7 O ensino da leitura literária e as barreiras interpostas à correnteza do
saber....................................................................................................................221
CAPÍTULO V
5 - DAS PÁGINAS AO PALCO: EXPERIÊNCIAS EM SALA DE AULA COM A
BARRAGEM ..................................................................................................... 227
5.1 Adaptação didática de A Barragem ...........................................................231
5.2 Análise sobre a adaptação do episódio transposto .................................. 247
6 - ÚLTIMOS APITOS - UM ESPAÇO DE TEMPO: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O TRABALHO ................................................................................................... 25
REFERÊNCIAS
20
PRIMEIROS APITOS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Um lugar existe pelo que ele produz”. Essa frase, desde o momento em
que a escutei, através da personagem Zaqueu, do filme Narradores de Javé,
causou-me indagação: como o semi-árido paraibano foi trabalhado na Literatura
Regionalista no início do século XX? E mais especificamente, o que São Gonçalo
produziu de Literatura? Foi a partir desse momento que comecei a pesquisar
possíveis produções que tratassem do lugar São Gonçalo, minha terra natal.
Muito pouco achei a respeito. A literatura encontrada era mais voltada a artigos,
relatórios, manuais e outros escritos cnicos. Porém, alguns folhetos escritos em
cordel foram desenterrados do esquecimento. Além de alguns livretos e de um
romance: A Barragem.
A Barragem é um romance regionalista que retrata o semi-árido paraibano
na década de 1930, sob a ótica da vivência de uma família de retirantes que,
expulsos de suas terras pela seca de 1932, procuram obras de açudagem em
São Gonçalo, região de Sousa, na Paraíba, para garantir a sobrevivência.
Ao me deparar com o conteúdo do romance A Barragem, da escritora
sousense Ignez Mariz, percebi que ele continha não o aspecto historiográfico
da localidade, mas, principalmente, que o enredo da obra não ficava atrás de
livros consagrados do regionalismo brasileiro.
Continuei a investigar as gavetas e as prateleiras do olvido presentes em
várias casas de moradores de São Gonçalo. Nelas, algumas fotografias foram
21
encontradas e despertaram-me para fazer um trabalho com as mesmas, que
buscasse preservar e valorizar a identidade cultural o gonçalense. Foi assim
que começou a ser gerado o projeto Leituras em Flashes, do qual, Entre os Apitos
da Casa-de-Força, A Barragem: da análise textual à sala de aula, é uma parte
embrionária, um pequeno rebento.
A escolha do título ocorreu devido à importância que o apito da Casa-de-
Força possui tanto para a obra quanto para a própria sociedade são gonçalense
1
,
pois ele é, segundo Ignez Mariz o grande coraçãode São Gonçalo. Os apitos
estão intimamente relacionados à rotina diária das pessoas que compõem a
referida sociedade, principalmente naquela época da década de 30 do século XX.
Ilustração I: O prédio principal, mais alto, é a Casa-de-Força. De eram propagados os apitos
que norteavam os trabalhadores da Comunidade de São Gonçalo. A estrutura é a mesma da do
tempo em que acontece o desenrolar de A Barragem.
Foto de Isaías Ehrich (arquivo pessoal): 12.03.2007
1
Até o ano de 1996, no Perímetro Irrigado de São Gonçalo, o tempo de trabalho seguia os
horários dos apitos da Casa-de-Força. A cada apitar, uma informação: às 6h30min, o primeiro
apito, que alertava os trabalhadores para mais um dia de serviço, servia também para acordar
algum operário dorminhoco; às 6h45min, o segundo apito, avisava que era momento de seguirem
para os seus postos de trabalho para, às 7h00min todos estarem à postos em seus respectivos
pontos de labuta. Quatro horas depois, um apito mais duradouro: 11h00min, momento de pausa
para o almoço e descanso. Às 12h30, outro apito breve seguindo a mesma rotina: 12h45min e
13h00min. Às 17h00min novo apito, indicando fim de expediente, momento em que os
trabalhadores iam para as suas respectivas casas. Às 22h00min, novo apito, alertando o horário
dos moradores ainda acordados e em rodas-de-conversas nas calçadas das residências.
22
Devido estarmos ligados ao Programa de Pós-Graduação em Linguagem e
Ensino, na área “Literatura e Ensino”, tivermos que interrelacionar nossa
pesquisa ao espaço educacional, por isso o subtítulo: da análise textual (estudo e
verificação da representação social do romance à comunidade de São Gonçalo) à
sala de aula (experiência de utilização do livro na prática docente). Desse
intercambiar de ações estão os sons produzidos e propagados pela Casa-de-
Força e que, a partir do olhar atento da autora, começa a ser construída a trama
regionalista A Barragem e, hoje, os apitos, de algum modo ressurgem para
impulsionar nosso texto.
Para melhor situar o leitor no contexto de nossa pesquisa, elaboramos um
capítulo inicial trazendo, nesse primeiro momento, uma exposição do que foi o
projeto Leituras em Flashes e a sua relevância para a elaboração desse trabalho.
Em seguida, apresentaremos a autora do romance estudado e, depois, traremos
um resumo dos capítulos de A Barragem para que o leitor que não tiver a
oportunidade de ler o romance na íntegra possa conhecer ao menos os aspectos
principais da história. Após isso, dicorreremos sobre os procedimentos
metodológicos adotados na pesquisa e exporemos o referencial teórico principal
que embasará a nossa análise. Por fim, mostraremos como serão estruturados os
demais capítulos da dissertação.
23
CAPÍTULO I
1. NO BALANÇO DO TEMPO E NOS CAMINHOS DO ESPAÇO: PAUSA PARA
CONHECER E CONSTRUIR O TRABLAHO
Antes de iniciarmos a revisão bibliográfica e analisarmos o romance A
Barragem, faz-se necessário um momento de descanso para conhecer um pouco
as origens dessa pesquisa. Conhecer e valorizar o trabalho realizado
anteriormente sobre São Gonçalo, a sociedade representada na narrativa de
Ignez Mariz, para situarmo-nos no contexto da pesquisa.
1.1 -- Leituras em Flashes
2
: a luz primeira a ser revelada
A fotografia é sempre uma imagem de algo. Ela está atrelada ao referente
que atesta a sua existência e todo o processo histórico que o gerou. Ler uma
fotografia implica reconstituir no tempo seu assunto, derivá-lo no passado e
conjugá-lo a um futuro virtual.
Todavia, a utilização de fotografias é concebida, em nossa sociedade,
2
Projeto de Iniciação Artístico-Cultural, vinculado ao PIBIAC/ Pró - Reitoria de Extensão/UFCG,
orientado pelo prof. Isaías de Oliveira Ehrich (UFCG), no período de 2005 a 2007, tendo como
participantes: Paulo Felix da Silva (bolsista fase: 2005/2006); Ivo de Oliveira Ehrich (bolsista
2ª fase: 2006/2007); Evanildo Gonçalves da Silva (voluntário - 2ª fase).
24
grosso modo, como forma de se materializar recordações, antes fincadas
exclusivamente na memória das pessoas, não se conhecendo o seu aspecto
didático, artístico, histórico e visualmente lingüístico. Porém, na área educacional,
por exemplo, esse recurso é bastante negligenciado. Por isso, no intento de trazer
para o âmbito educacional uma nova alternativa de se produzir textos, sejam eles
verbais ou visuais e, sobretudo, de valorizar a comunidade de São Gonçalo e de
manter viva a memória do lugar, surgiu, em 2005, o projeto Leitura em Flashes,
vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Artístico-Cultural
PIBIAC/UFCG, o qual teve duas vigências de um ano, cada (setembro/2005 a
maio/2006 e agosto/2006 a abril/2007).
Leituras em Flashes
3
buscou provocar, na mente das pessoas, “leituras” do
lugar a partir do ponto de vista exposto nas fotografias, além de utilizar a
linguagem fotográfica como alternativa do desenvolvimento cultural e mobilização
social e como uma nova opção de recurso didático. Ele surgiu da necessidade de
conhecer mais profundamente o contexto social da comunidade de São Gonçalo -
PB, com o propósito de dar valor ao lugar, às pessoas e à história.
No decorrer de suas atividades, os participantes envolvidos no projeto,
desenvolveram estudos, atividades e ações no âmbito da educação, analisando a
linguagem fotográfica no sentido do texto/discurso, além de proporcionar aos
educandos o conhecimento da fotografia enquanto manifestação iconográfica e
como alternativa de vivenciar e reviver a história local, valorizando-o enquanto
espaço físico e histórico, uma vez que procurou resgatar traços peculiares de São
3
Cf. EHRICH, 2006.
25
Gonçalo, despertando uma nova visão a respeito da referida comunidade e do
material trabalhado (fotografias). Trazendo, desse modo, para o âmbito
educacional, uma nova alternativa de se produzir textos, sejam eles em
linguagem verbal ou visual; vindo assim, à baila as lembranças, os discursos e
interdiscursos presentes na memória dos alunos da EJA do Segmento, da
Escola Estadual de Educação Infantil e Ensino Fundamental e Médio Estevam
Marinho e, a partir desse reavivamento das lembranças, eles pudessem dar uma
(re) significação às imagens fotográficas e produzirem textos.
Em sua segunda fase (2006/2007), o referido projeto deu continuidade às
ações do primeiro ano de vigência e culminou num trabalho reflexivo e aplicado
ao ensino, elaborado a partir dos resultados obtidos após a conclusão da primeira
etapa do referido projeto, levando para o âmbito educacional, uma nova
alternativa de se produzir textos, sejam eles em linguagem verbal ou visual.
A efetivação do Leituras em Flashes (2ª fase) se deu mediante ao
levantamento de novas fotografias para se fazer um comparativo com o acervo
fotográfico existente. Além disso, o mesmo desenvolveu-se, basicamente, na
Escola Estadual de Educação Infantil e Ensino Fundamental e Médio Estevam
Marinho, São Gonçalo PB, no período letivo de setembro de 2006 a junho de
2007, com alunos do segundo segmento (5ª a séries) da EJA (Educação de
Jovens e Adultos), na forma de mini-cursos de extensão e de oficinas educativas.
Houve também a participação do projeto em eventos locais, regionais e/ou
nacionais para a divulgação e exposição dos resultados obtidos com mesmo.
Nesse sentido, o trabalho com as fotografias recentes e antigas da
26
comunidade de São Gonçalo intentou desenvolver um trabalho mais de cunho
pedagógico, a fim de que as fotografias não ficassem apenas como material de
apoio didático, mas como um elemento plural, de modo que fossem utilizadas não
no sentido de instigar a curiosidade, apenas. Mas no intuito de fazer com que
sejam despertadas outras formas de se trabalhar com leitura/ interpretação e
produção de textos, desenvolvendo no alunado maneiras de expressar-se e de
expressar a sua relação com o mundo mediante a imagem fotográfica.
Infelizmente, por falta de tempo e também por falta de outros recursos,
principalmente financeiros, a confecção de um material didático-pedagógico não
foi concretizada. De qualquer forma, a semente foi espalhada. O contato com o
material didático: as fotografias, a descoberta e a leitura de livros e outros textos
que abordam a história de São Gonçalo, sobretudo no que se refere à relação
direta com as fotografias do lugar, como está sendo feito, os conduzirá à
produção de textos com mais afinco, de acordo com as suas próprias intenções e
necessidades.
Ademais, o projeto provocou o despertar nos professores onde o projeto
foi implantado, contribuindo para uma nova maneira de se trabalhar a Língua
Portuguesa, principalmente no tocante ao exercício da leitura e da escritura.
O tempo para a completa execução do projeto, mais uma vez, foi pouco,
visto às novas possibilidades de execução e aos novos materiais coletados.
Contudo, percebendo o aspecto Literário (além do Lingüístico: de leitura e
produção de textos) o “Leituras em Flashes”, serviu como incentivo à elaboração
desse projeto de pesquisa de mestrado, o qual, utilizando-se de um recorte
27
daquele projeto, entra num outro aspecto do estudo: o resgate da identidade
cultural do cidadão são gonçalense, dessa vez, mais pelo viés da Literatura,
procurando estudar a representação social na obra A Barragem
4
.
Por hora, as leituras continuam; no entanto, fotografando por outros
ângulos e com outros flashes: a representação social são gonçalense, em A
Barragem. O objeto de estudo e análise será um romance da década de 1930 e
as lentes da pesquisa procurarão enxergar outros objetivos para revelar aos
cidadãos de São Gonçalo novas informações e novas imagens do lugar a partir
das letras.
Antes, porém, será traçado um rápido perfil biográfico da autora e, logo
depois, será feito um resumo do conteúdo do romance e traçaremos para que o
entendimento a respeito do trabalho seja mais bem compreendido.
4
Romance da escritora sousense Ignez Mariz (que é meu objeto de estudo do Mestrado em
Literatura UFCG), que conta a história de uma família de retirantes que migram do Rancho Doce
(propriedade que eles possuíam) para São Gonçalo em busca de sobreviverem por meio do
trabalho árduo nas obras de açudagem.
28
2 - Ignez Mariz: o olhar literário sobre São Gonçalo
A escritora sousense Ignez Mariz, nasceu no dia 26 de dezembro de 1905
5
.
Dotada de uma personalidade marcante, a escritora sousense defendia a
valorização dos oprimidos sociais, sobretudo das mulheres. Possuía o curso de
Pedagogia, pelo Colégio das Neves, de João Pessoa. Foi professora, poetisa,
romancista, jornalista e mãe.
Maria Ignez da Silva Mariz era filha de Emília
6
e de Dr. Antônio Marques da
Silva Mariz (segundo casamento deste e tio materno de Emília). Foi casada com
seu primo Carlos Pordeus Meira (fundador do jornal “A Gazeta de Sousa”), com o
qual teve um único filho, Paulo Antônio (também falecido). Possuía quatro
irmãos: José (pai do ex-governador da Paraíba Antônio Mariz), Maria Emília,
Maria Augusta e Maria de Lourdes
7
.
Em 1952, aos 47 anos de idade, faleceu vítima de uma negligência médica,
como afirma Evandro Nóbrega:
Em 1952, Ignez cuja escritura sempre vergastou desigualdades
decidiu fazer extraordinária experiência. Querendo escrever
sobre os que infelizmente buscam nossos hospitais e também
infelizmente não os encontram, fez-se de indigente e internou-se
5
No prólogo da edição de A Barragem, escrito por Evandro Nóbrega, o nascimento da autora
teria ocorrido por volta de 1909. Em textos da escritora sousense Julieta Pordeus Gadelha, sobre
sua conterrânea, também mantém o ano de 1909 como o provável do nascimento da autora de A
Barragem. Todavia, no livro de Wilson Seixas, que pesquisou a genealogia de sua família, e na
tese da professora Ana Maria Coutinho Sales (UFPE/2005) aparece como sendo 1905 o ano do
nascimento da autora. Pela vertente científica dos referidos textos e por trazerem a data precisa,
utilizei esta última data como referência.
6
Descendente da família Pordeus (Cf. “Os Pordeus no Rio do Peixe”, de Wilson Seixas)
7
Cf. SEIXAS, 1972, p. 157 159
29
em nosocômio público carioca, para... para operar-se das
amígdalas, que de nada sofria. Vocês acertaram: ela morreu
asfixiada na mesa de cirurgia [por negligência médica] (grifo
nosso) faltou oxigênio e não houve jeito de arrumar novo tubo.
(NÓBREGA, prefácio do romance A Barragem, MARIZ: 1994)
Autora do romance A Barragem, Ignez Mariz foi também assídua
colaboradora da revista Eu sei tudo, A Noite, A noite Ilustrada, Alterosa, Letras do
Sertão. Dentre os artigos publicados está Revelando o Brasil aos brasileiros. Além
disso, escreveu uma monografia sobre psicologia infantil, intitulada O que leva a
curiosidade infantil insatisfeita, trabalho que, segundo Julieta Pordeus Gadelha
mereceu prêmio do Círculo Brasileiro de Educação Sexual(GADELHA: 1986, p.
78). Deixou inacabados os livros Tresloucado gesto e Ruma (este último, de
contos). Em vida, desenvolvera alguns eventos sociais e culturais a exemplo da
“Campanha Pró-Bibliotecas Municipais”.
Polêmica, além de seu tempo, preocupada com o progresso de seu espaço
local, Ignez Mariz era a voz dos flagelados nas plagas sertanejas; contrária às
injustiças sociais e entregue à defesa dos menosprezados. Condensando em
poucas palavras quem fora essa mártir da Literatura paraibana, Ana Maria
Coutinho Sales, em sua tese, afirma:
era uma mulher apaixonada pela vida, sob todas as formas, que
amava, que buscava e aprofundava o contato com os seres
humanos, com a arte, com a ciência. Estava comprometida em
transformar mentalidades, combater a ignorância e defender os
direitos das classes populares, especialmente, das mulheres.
(SALES: 2005, p. 97)
30
1.3 - A Barragem - o sertão paraibano no romance de Ignez Mariz:
exposições iniciais
O romance A Barragem, de Ignez Mariz, traz a história de um pequeno
povoado (São Gonçalo) que, aos poucos foi crescendo por conta da construção
de uma barragem, erguida para amenizar os estragos da seca, que provocava
ainda mais estado de miséria para aquele povo do interior nordestino.
Como forma de trazer ao conhecimento público a história dessa narrativa
regionalista, que se insere nos preceitos do movimento literário brasileiro
“Regionalismo”, faremos um resumo da obra, explicitando os pontos mais
relevantes em cada capítulo
8
.
O primeiro capítulo do livro situa temporal e espacialmente os personagens
do romance; faz uma descrição física da localidade; mostra o cotidiano dos
trabalhadores e, principalmente, o dia-a-dia de Mariano e de sua família. Além
disso, mostra-nos como funcionava o sistema de fornecimento de alimentos "O
Barracão", que beneficiava apenas os coronéis. Outro ponto interessante
mostrado nesse primeiro capítulo é a referência ao livro A Bagaceira, de José
Américo de Almeida (o Ministro), daí tomemos esse livro como um embasador
literário para a autora.
O segundo capítulo inicia-se com o recorte histórico sobre a construção do
8
A leitura desse resumo não descarta a leitura integral da obra.
31
Perímetro de São Gonçalo: decreto feito por Epitácio Pessoa e paralisação das
obras, por Arthur Bernardes. Além disso, descreve o movimento dos moradores
de Sousa para impedirem que enviados do governo levassem embora o
maquinário de São Gonçalo.
Outro ponto importante é a ascensão de Mariano, de “cava-terra” a
apontador; mostrando também a sua mudança de residência, devido à ascensão
de classe social, ao ser promovido no emprego. Relata também as peripécias de
Remédios, filha de Mariano, na escola da vila, juntamente com suas amigas:
Lenice e cia, as quais importunam a labuta de dona Eudócia (professora das
meninas).
O terceiro capítulo aborda a questão da demora da PAGA (pagamento do
trabalho dos cassacos) e o fato do perigo na gravidez de Mariquinha, pois, com
essa, são treze filhos do casal, dos quais seis estão vivos, além do que estar no
ventre de Mariquinha.
O quarto capítulo relata mais peripécias de Remédios. Inicia mostrando o
comportamento da garota na escola, que, em companhia de Lúcia e Lenice,
aprontam as mais variadas traquinagens durante as aulas de D. Eudócia
(apelidada pelas alunas de "professora garapa-de-açúcar" ou professora D'água
Doce", por ser natural do lugar). Remédios é uma garota geniosa, que não se
dobra às vontades dos outros, que o tem medo das ordens ou dos castigos.
Atrevida e à frente do seu tempo, ela, aos 14 anos, é namoradeira e líder das
travessuras que faz juntamente com Lenice. Outro fato, nesse capítulo, diz
respeito ao relato que dona Eudócia faz a Mariquinha sobre as traquinagens de
32
Remédios, culminando numa surra dada por Mariano e na retirada da menina
da escola.
Os capítulos V e VI abordam, sobretudo a questão da "paga". No quinto
capítulo, além da "paga", mostra um pouco do cotidiano noturno dos
trabalhadores da comunidade: todas as noites, entre as 19h e às 22h, grupos de
cassacos se juntavam nos terreiros de uma determinada casa (escolhida na noite
anterior) para conversarem. O assunto era o mais variado. Outra história contida
nesse capítulo é a do padre Anselmo: um missionário enrolão que vai celebrar
umas missas em São Gonçalo, mas, todas as noites, fica a tocar "modinhas" para
as moças do lugar. O capítulo termina relatando a viagem de Remédios para
Recife com seu tio.
O capítulo VII apresenta ao leitor uma nova personagem: Lina, uma
vendedora de cafés na feira que gosta de ser a amante. Nesse capítulo, Lina é o
foco, pois ela começa a ter um caso com Mariano. O capítulo termina com
uma carta de Remédios relatando sua nova vida em Recife.
No capítulo VIII temos um relato da vida de Remédios em Recife. Mostra
as primeiras impressões dela, de Campina Grande até a chegada da mesma em
Recife e os seus primeiros dias dela na capital pernambucana. Nota-se o
encantamento e o estranhamento dela diante das novidades. Outro aspecto é o
preconceito demonstrado por parte da família de João Trigueiro (Jojoca): Julita
(esposa) e Carminha e Amélia (filhas). Além disso, temos a explicação sobre o
nome dela: homenagem à padroeira de Sousa.
33
O capítulo IX inicia-se com a referência à natureza: o Rio Piranhas, em
1933, está cheio, atrapalhando o serviço na fundação. Depois de descrever o
trabalho dos malheiros, é exposto o preparativo de uma panelada dominical na
casa de Mariano. Em seguida, ao final do almoço, recebe um bilhete de
Lina e vai à casa da amante ficando por lá até o início da noite.
O capítulo X pode ser (e é) dividido em duas partes: a primeira mostra
Remédios ainda em Recife, passeando com a prima Amélia, depois indo a uma
sapataria e, em seguida, ao cinema. Mais tarde, ao chegar à casa do tio, este
mostra uma carta de Mariano perguntando pela volta da filha. João Trigueiro e
Remédios vão jantar fora. O segundo momento é marcado pela chegada de
novos trabalhadores de outros estados em São Gonçalo e, com eles, muita
rivalidade também, pois cada qual que defenda com mais veemência o seu lugar
de origem. Em seguida, temos a volta de Remédios ao acampamento. Além
disso, mostra as mudanças (crescimento) que são Gonçalo vem passando e o
modo como a jovem vê a sua casa e o seu lugar, marcando no romance, o quanto
a jovem foi influenciada pela "boa vida" na capital pernambucana. (p.111)
O capítulo XI traz um episódio em que o filho de Mariano, Joca, rouba o
barracão do coronel Mascarenhas e, Sr. Neco e Sr. Zacarias pegam o menino e o
surram com chicote de boi e Sr. Zacarias arranca um pedaço da orelha de Joca
com um alicate. A surra é tão grande que o menino fica deitado na palha da
bananeira com febre alta. Além disso, mostra o "poderio" dos coronéis do lugar,
quando Dr. Oto Muniz “toma as dores” de Mariano e uma surra em Sr.
Neco.
34
A chegada de uma caravana política ao acampamento de São Gonçalo é o
episódio do capítulo XII. Os de caravaneiros ficam hospedados em casa de
Osório Marques e D. Sinhá (padrinhos de Remédios), pais de Mundinha e
Carolina, as quais trabalham incansavelmente na cozinha, juntamente com
Remédios, Mariquinha e outras mulheres da comunidade, por três dias (sexta,
sábado e domingo: dia do discurso).
A primeira parte do capítulo XIII começa com Remédios recebendo uma
carta de seu namorado, Airtes Falcão, pedindo-a em noivado. Ao mostrar a carta
a Mariquinha, a mocinha tem uma conversa com a mãe sobre o fato de D.
Eugenia e todos da fundação falarem do caso que Mariano está tendo com
Lina. Além disso, mostra Mariano sentindo remorso pelo que faz com a
esposa, chama-a para a rede para dar-lhe carinho. A segunda parte mostra
Remédios e Airtes (seu namorado) em momentos de carinho e despedida. Traz
também o falar das fofoqueiras locais sobre os casais que vêm da direção da
fundação para a rua principal (Rua 16).
No capítulo XIV temos a descrição da festa do padroeiro São Gonçalo,
idealizada e realizada por D. Vivi Murtinho a fim de angariar fundos para a
construção da capela.
9
O capítulo XV denuncia a roubalheira realizada por Sr. Daniel Sindú,
apontador geral dos canais de irrigação, que usava o nome de trabalhadores que
não mais desempenhavam suas funções em São Gonçalo, em beneficio
próprio. Ao ser transferido para o setor dos canais, Mariano, mostrando a sua
9
Ver seção sobre a representação religiosa no romance A Barragem.
35
integridade e honestidade, denuncia o caso, inicialmente a Dr. Barros, o qual
suspende todos os envolvidos nos trabalhos dos setores canaleiros, inclusive o
próprio denunciante. após a volta de Dr. Murtinho é que o caso começa a ser
solucionado.
O capítulo XVI gira em torno de Mariano e Lina. Inicialmente, Lina sabe
da suspensão de Mariano e, juntamente com a sua mãe, Quitéria, resolve pôr
fim ao romance que ela tem com o administrador. O pai de Remédios tem a sua
suspensão encerrada e o seu cargo de volta. Num passeio pela feira, o esposo de
Mariquinha se encontra com Lina e esta acaba destratando Mariquinha. Por fim,
Lina espalha por toda a comunidade que está grávida de Zé Mariano. Essa
história chega aos ouvidos de Mariquinha, a qual está, novamente, grávida. Após
ouvir poucas e boas de Remédios, o amante de Lina vai à casa dela e a mesma
acaba insultando Mariquinha e Remédios. O administrador bate em Lina e termina
o caso com ela.
O capítulo XVII poderia até ser intitulado “As aulas de Remédios”, pois
relata as aulas particulares que ela teve com Sr. Adolpho Soares (que não era
professor). Sr. Soares, um homem casado, pai de duas filhas, resolve utilizar-se
da boa fama que tem e da ingenuidade de Mariquinha, para “dar” aulas a
Remédios com o intuito de se aproximar da moça e ir além dos limites permitidos,
ou seja, namorá-la. Remédios sofre chantagens por parte deste, e a jovem, para
se vingar dele, resolve namorar Seu Ferreirinha. No entanto, o professor continua
investindo em Remédios na esperança de ficar de chamegos com ela. A jovem
conta a história aos pais e Mariano vai se “valer” de Dr. Murtinho, o qual
36
chama Sr. Soares “aos freios”.
O capítulo XVIII começa com uma referência temporal ao ano de 1934, ano
de bom inverno. Trazendo, além de outras coisas, toda uma explicação simbólica
do inverno para o sertanejo. Outra parte do capítulo é o fato de que Lina fora
desmascarada com seu “bucho” postiço e que D. Juvência e D. Eugênia, vizinhas
de Mariquinha, entram em “vias de fato”. Um terceiro momento é a descrição de
como está o trabalho na Fundação. A relação homem/agricultura é bem discutida
neste capítulo.
O capítulo XIX destaque às eleições para deputado. Relata, em
pormenores, como é o dia do eleitorado sertanejo, sobretudo em Sousa, onde se
rivalizavam duas agremiações: os “Bacuraus” e os “Urucubacas”. Dr. Oto Muniz é
do lado dos “Bacuraus”. Após as eleições, Dr. Oto reúne o seu pessoal na
Câmara para lhes falar sobre projetos futuros, os quais não são entendidos pelos
cassacos e, por isso, não lhes interessa.
O capítulo XX começa relatando o dilema de Remédios quanto à escolha
do seu noivo: ou escolhe Ferdinando Barros, rapaz de muito entusiasmo e pouco
dinheiro, ou então aceita de vez os rapapés de Ferreirinha, sempre doido por ela.”
(p. 241). No caso, Remédios escolhe Ferreirinha como noivo, apesar da diferença
de idade entre eles. A jovem deixa claro que aceita o noivado para não ficar
desamparada após a conclusão das obras da barragem.
Revelando outro hábito da região, o capítulo relata o passeio das jovens de
São Gonçalo à Lagoa Redonda, fazenda do Sr. Sousa, onde elas vão passar o
37
dia e apreciar uma corrida de cavalos. na localidade, a autora detalha os
horários costumeiros de se fazerem as refeições, a partir do almoço, às 10 horas,
um lanche, às 13 horas, o jantar, às 16 horas e, às 19 horas, a ceia. Após a ceia
(outro lanche), os visitantes regressam à vila.
Para falar sobre um acidente ocorrido nas obras da Fundação, a autora
inicia o capítulo XXI fazendo uma alusão à história sousense: a chegada do
primeiro automóvel em Sousa, em 1918, o qual pertencia a Emydio Sarmento.
Após essa referência, a cena retoma o foco de São Gonçalo, quando, em hora de
almoço, Mariano vai relatar à família o acidente que houve na Fundação,
fazendo uma alusão à sexta-feira (data em que um ano, outro acidente
ocorrera na localidade sob as mesmas circunstâncias). Nesse caso, o acidente é
com o cassaco Luiz, que falece pela madrugada. O mesmo era oriundo de
Iguatu CE.
O capítulo XXII começa fazendo uma referência ao primeiro jornal de São
Gonçalo, o “Esportivo”, publicado em 08 de abril de 1934. O jornal também possui
textos de Remédios e de Sr. Ferreirinha.
10
Depois, o capítulo mostra um passeio
de Remédio e Sr. Ferreirinha a novena na casa de Seu Vicente Barata. Esse
capítulo tem uma narração temporal de uma noite.
A primeira parte do capítulo XXIII traz a tristeza dos trabalhadores da
Fundação à espera (mais uma vez) da Paga. Na segunda parte, traz-nos ainda a
tristeza pela falta da Paga e a descrição dos trabalhos na Fundação. Em seguida,
temos a notícia da inauguração do Posto Agrícola de São Gonçalo, ocorrido no
10
Na verdade, mais uma vez, a autora deixa transparecer-se através de Remédios.
38
dia 05 de novembro de 1934. Essa notícia Mariano em “A União”. Além da
inauguração, temos a descrição das atividades propostas para serem
desenvolvidas no Perímetro Irrigado. Logo após, numa prosa comprida com Seu
Silveira, Mariano discute acerca da vinda de empresas do sul do país para
explorarem a cana-de-açúcar e o algodão do sertão nordestino. Além disso, há a
notícia de que eles venham administrar São Gonçalo. Esse capítulo é mais um
recorte da história local do que uma parte da trama do romance.
O capítulo XXIV trata dos preparativos da família de Mariano para o
casamento de Remédio com Sr. Ferreirinha. Fala desde a confecção do vestido
que Mariquinha arruma até a volta do noivo de Recife, com notícias e presentes
do tio de Remédios, João Liberato. E termina com Mariquinha relatando ao Sr.
Ferreirinha a história da família dela.
O capítulo XXV aborda acerca da Exposição Agro-Pastoril de São Gonçalo:
as palestras, o povo de fora, as expectativas dos cassacos, as técnicas de plantio
etc. Faz também referência a Lina que, de longe, Mariano e ele, ao -la,
não lhe dá, seque atenção.
O último capítulo do livro, XXVI, traz-nos a conclusão da barragem,
faltando apenas o sangradouro para concluir. Além disso, tem-se a narração do
casamento de Remédios com Ferreiriha, os quais, na manhã seguinte após o
casamento, viajam para Curemas, onde Sr. Ferreira trabalhará.
Ressaltando o regionalismo, presente na fala dos personagens, nos
costumes e crenças. A escrita arcaica caracteriza o período em que o livro foi
39
escrito (1934), dando-nos uma dimensão da evolução da escrita brasileira.
Praticamente todo o enredo gira em torno da construção da Barragem de
São Gonçalo (daí o nome da obra), localizada a dezoito quilômetros da cidade de
Sousa, no alto-sertão paraibano. No decorrer dos fatos o apontadas diversas
questões, dentre elas, o sofrimento diário do homem sertanejo e sua peleja para o
sustento da família, num período em que a estiagem, a fome e a miséria tomam
conta de suas vidas; a migração de pessoas que saíam de suas localidades à
procura de trabalho e, com isso, melhorarem de vida e, principalmente, a
construção de reservatórios de água que visavam ao abastecimento para a
população e, depois para o uso agropecuário, transformavam aquele momento,
no espaço nordestino, em um tempo de esperança.
De acordo com Sales (2005) A Barragem problematiza as condições de
sobrevivência no alto sertão da Paraíba, puxando o fio da reflexão política da
função social do trabalho como referência da dignidade humana”. (p. 99)
A narrativa se abre para uma análise sociológica do homem, articulando
categorias distintas em um contexto analítico das relações sociais, dando ênfase
ao determinismo geográfico, que também se mostra presente na obra, pois as
condições naturais exercem forte influência na vida dos personagens, tanto
economicamente, quanto socialmente.
Diante disso, a nossa sede pelo conhecimento se debruça sob a
perspectiva de uma história fictícia que, em vários momentos, traz não um
aspecto verossímil, mas uma obra que, através das ações de seus personagens,
40
sobretudo Remédios, quebra tabus preestabelecidos pela sociedade patriarcal e
coronelista do lugar (típica da época) e serve como uma ferramenta de
desmascaramento de fatos maquiados pela História e também como veículo de
denúncia social. Desse modo, Entre os Apitos da Casa-de-Força, A Barragem: da
análise textual à sala de aula, se voltará para a seguinte indagação: qual a
contribuição de A Barragem para a comunidade de São Gonçalo no que tange à
representação de aspectos sócio-histórico-culturais do referido lugar?
Para tentar responder essa questão, nossa pesquisa, que terá um pequeno
viés etnográfico, será analítico-interpretativa, com uma vertente bibliográfica e
histórico-documental, basear-se-á nos seguintes objetivos gerais: 1) analisar,
interpretar e compreender tempo e espaço, enquanto categorias
contextualizadoras de análise, no romance A Barragem; 2) buscar compreender a
representação de aspectos sócio-histórico-culturais de São Gonçalo no enredo do
romance A Barragem; 3) contribuir para a inserção de novas as práticas
pedagógicas no cotidiano escolar.
E, quanto aos objetivos específicos: 1) reler analiticamente A Barragem; 2)
identificar e analisar a representação de aspectos sócio-histórico-culturais de São
Gonçalo no romance de Ignez Mariz em questão; 3) planejar e exercitar o estudo
do romance em sala de aula.
A seguir, explicaremos como pretendemos atingir os objetivos propostos.
Faremos uma revisão teórica sobre o método e a metodologia que utilizaremos na
pesquisa.
41
1.4 -- Por entre pedras e páginas: a metodologia da pesquisa
A questão não é para onde você olha,
mas o que você consegue ver”
H .D. Thoreau
11
A afirmação acima, remete-nos ao próprio processo de se fazer ciência, em
que o olhar do pesquisador deverá estar focado em um objeto de pesquisa para
se evitar a divagação do que se busca cientificizar.
A pesquisa científica é algo bastante complexo, principalmente se não
houver uma sintonia, um diálogo entre o que se pretende atingir ao final da
pesquisa e o caminho para se chegar a essa(s) finalidade(s). Desse modo, como
exemplifica Castro (2006, p. 92):
A pesquisa tem algumas semelhanças com os contos policiais. A
natureza é misteriosa, se esconde, se metamorfoseia. O
investigador usa de toda a sua argúcia para desvendar seus
segredos. De acordo com as negaças da natureza, escolhe uma
nova estratégia, muda de disfarce. Seus planos de ação precisam
se ajustar aos avanços e recuos de sua própria presa.
Assim como a “presa” do exemplo acima, para que os objetivos da
pesquisa sejam alcançados e para que a metodologia adotada esteja bem
articulada na dinamicidade da investigação, é necessário que a intenção da
pesquisa mantenha estreita relação de dialogicidade entre o método escolhido e o
objeto de estudo. Ademais, vale lembrar que é imprescindível manter a
11
In: MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para o professor
pesquisador. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
42
neutralidade científica, ou seja, o pesquisador deve procurar afastar de si, o
máximo que puder, a subjetividade, uma vez que ele [o pesquisador] deve
manter-se distante de suas emoções durante a construção do conhecimento e
precisa evitar o „achismo‟ para não interferir nos resultados da pesquisa”
(OLIVEIRA: 2007, p. 03).
Geralmente esse “achismo” aparece na pesquisa pela supervalorização do
empirismo e pela subposição dos paradigmas de pesquisa dentro do próprio
caminhar da mesma. Por isso, é necessário fazer um esclarecimento da noção de
paradigma e também a conhecer melhor os dois tipos paradigmáticos de pesquisa
mais comuns no campo científico: o positivista e o interpretativo.
Na visão de Thomas Kuhn (Cf. MOREIRA & CALEFFE: 2006), o paradigma
é “um compromisso difundido, não expresso verbalmente e implícito de uma
comunidade de pesquisadores a respeito de um modelo conceitual”. Esse modelo
conceitual acaba sendo um paradigma da pesquisa (no nosso caso, da pesquisa
educacional).
Porém, antes de analisar os dois tipos de paradigma mencionados acima,
tem-se que ver a inter-relação entre três questões primordiais ao entendimento do
termo em estudo, uma vez que diferentes paradigmas proporcionam conjuntos
de lentes para ver o mundo e dar-lhe sentido(MOREIRA & CALEFFE: 2006, p.
42) e influenciar o nosso pensamento; tais questões são de natureza: 1)
ontológica - que diz respeito ao conhecimento do próprio pesquisador acerca do
fenômeno social a ser averiguado; 2) epistemológica - refere-se à concepção
teórica baseada na experiência pessoal e leva em conta a natureza e a forma do
43
objeto a ser investigado; 3) metodológica - que diz respeito aos métodos e
procedimentos adotados para que a pesquisa se desenvolva.
Quanto aos dois tipos de natureza de pesquisa, o principio positivista será
calculado numa visão racional, em que a realidade é descoberta por meio de
observações e é expressa por afirmações factuais. Conforme este paradigma, os
métodos e os procedimentos adotados podem ser diretamente aplicados à
investigação do mundo social, o qual é externo à cognição do indivíduo (ontologia
externo-realista) e os fatos são medidos e conhecidos pelo que realmente são
(metodologia nomotética).
Por sua vez, o paradigma interpretativo preocupa-se em descrever e
interpretar o fenômeno do objeto pesquisado (contexto social), buscando-se a
qualificação e a influência dos dados no contexto averiguado.
Não basta, porém, conhecer apenas os tipos de paradigmas, mas cabe ao
pesquisador inserir a sua pesquisa numa determinada classificação, a qual pode
ser contemplada levando-se em consideração os objetivos [visão de Gil (1994)],
ou a finalidade prática, a metodologia e a questão formulada [visão de Charles
(1995)].
Para Gil (Cf. MOREIRA & CALLEF: 2006), a pesquisa divide-se em: 1)
exploratória: visando a investigação procedimental e sistematizada; 2) descritiva:
estabelece relações entre as variáveis da pesquisa); 3) explicativa: preocupa-se
identificar os fatores que determinam a ocorrência dos fenômenos.
Charles (Cf. MOREIRA & CALLEF: 2006), por sua vez, diz que para cada
44
categoria de pesquisa uma subdivisão da pesquisa. Assim, quanto à finalidade
prática, a pesquisa pode ser básica ou aplicada; quanto à metodologia, pode ser
experimental e não-experimental; quanto aos tipos de perguntas, pode ser
bibliográfica, documental, histórica. No tocante ao tipo de levantamento, ocorrem
as pesquisas de avaliação, correlaciona, causal-comparativa, etnográfica e
pesquisa-ação. Cada um desses tipos há especificações próprias.
No entanto, se paradigma são os vários modos, as várias possibilidades de
se ver o mundo, no caso, o objeto a ser averiguado, e de lhe dar sentido, o qual
acaba por determinar e direcionar o pensamento e as ações de pesquisa do
profissional, ficam as indagações: Qual paradigma adotar e qual o melhor método
de se fazer pesquisa? É claro que isso dependerá de cada tipo de pesquisa, de
qual objetivo ter-se-á de ser analisado e a que resultados o pesquisador pretende
chegar.
Apesar de Kuhn dividir os paradigmas em dois tipos principais, o tem
como desvincular totalmente da pesquisa o paradigma positivista e o
interpretativo. Em um dado momento da pesquisa, características de ambos os
paradigmas irão aparecer, mesmo que sutilmente. O que resta ao pesquisador é
saber qual paradigma se sobreporá e qual o tipo de pesquisa melhor se adequará
para o seu foco de estudo.
Quando pensamos nisso, podemos, por exemplo, correlacionar paradigmas
e tipos de pesquisa. Por exemplo, numa pesquisa interpretativa, os objetivos
principais são a descrição e a interpretação do fenômeno investigado num intento
de compartilhar significados com os outros sujeitos do mundo social. Ao fazermos
45
uma pesquisa histórico-documental, estamos com a coleta de dados (muitas
vezes utilizando a ontologia externo-realista, de cunho positivista); porém, ao
organizar os dados para a elaboração da análise interpretativa, estamos diante de
uma abordagem interpretativa, uma vez que para tal caso, é necessária a
ontologia interno-idealista e não deixa de haver aspectos subjetivos, que há
uma interação entre o pesquisador e o objeto pesquisado. Nesse aspecto, temos
duas típicas características do paradigma interpretativo.
Ao definirmos o objeto de pesquisa e traçarmos a linha de pesquisa, temos
o paradigma apropriado para direcioná-la e auxiliar a análise interpretativa.
1.4.1 - Procedimentos metodológicos
No que se refere a Entre os apitos da Casa-de-Força, A Barragem: da
análise textual à sala de aula”, o paradigma utilizado é o interpretativo e a
abordagem, a qualitativa, entendendo esse viés
como sendo um processo de reflexão e análise da realidade
através da utilização de métodos e técnicas para a compreensão
detalhada do objeto de estudo em seu contexto histórico e/ou
segundo sua estrutura. Esse processo implica em estudos
segundo a literatura pertinente ao tema, observações, aplicação
de questionários, entrevistas e análise de dados, que deve ser
apresentada de forma descritiva. (OLIVEIRA: 2007, p. 37)
46
Como percebemos, não basta apenas ter os dados, as informações em
os, é imprescindível saber o que fazer com eles. No caso da nossa pesquisa,
que se volta mais para a abordagem qualitativa, é indispensável fazer a análise e
a reflexão do conteúdo do livro, sobretudo no que concerne ao contexto são
gonçalense. Desse modo, faz-se mister que haja um intrínseco relacionamento do
pesquisador com o objeto e com o contexto da pesquisa, pois como coloca Castro
(2006, p. 111):
O pesquisador qualitativo vive em outro mundo. Sua presença no
campo de estudo é muito mais promíscua. A contaminação física
com o objeto de estudo anátema para o quantitativista é
considerada uma das riquezas de sua pesquisa. Ao mergulhar no
problema, ele enxerga com os olhos de seu objeto de estudo,
sente seus sentimentos, vive seu mundo. (...)
A compreensão vem do interior, e não da observação dos
aspectos externos. O pesquisador qualitativo quer descobrir (...).
Seu ponto de partida está nas narrativas, não nas teorias ou nos
números. Seu objeto de estudo é o que as pessoas dizem. Em
algum momento o que é dito precisa virar texto escrito para que
possa ser analisado com cuidado e desvelo.
Em nosso caso, o objeto de estudo é o próprio romance A Barragem. A
partir da leitura e das releituras do mesmo, partimos para a compreensão e
interpretação do seu conteúdo. Assim, nossa pesquisa apresenta o método
indutivo de investigação, uma vez que a investigação proveio de uma parte
(romance A Barragem) para perceber a representatividade coletiva (o todo: o
contexto social abordado no livro: São Gonçalo, na década de 1930).
Muito do que está relatado no enredo do referido romance é percebido
47
ainda nos dias atuais, seja através de fotografias, seja através de relatos de
memórias dos moradores mais antigos, todavia, esse recorte não faz parte de
nossa pesquisa, no momento. Nosso enfoque se debruça sobre as informações
explícitas e implícitas das páginas de A Barragem, uma vez que se nota aflorar
por entre as linhas do enredo muito do dito que foi transformado em texto escrito
pela autora.
Após essa percepção inicial acerca do conteúdo da narrativa/objeto de
estudo há, para a melhor compreensão e, por conseguinte, para a melhor reflexão
sobre o que subjaz das ginas do livro, um cambiar, uma interatividade entre
dados qualitativos e quantitativos apenas para enriquecer as constatações
obtidas (...); ver a possibilidade de reafirmar a validade e a confiabilidade das
descobertas pelo emprego de técnicas diferenciadas” (OLIVEIRA: 2007, p. 40).
Como o nosso objeto de estudo é o romance A Barragem, de Ignez Mariz,
nossa pesquisa foi baseada em duas linhas de ação: a primeira, analítico-
interpretativa; e, a segunda, voltada a uma vertente bibliográfica e histórico-
documental, com um viés etnográfico (uma vez que utilizará as interpretações das
leituras coletadas com a experiência realizada (alunos do 1° ano do Ensino Médio
da Escola Maria Estrela de Oliveira
12
, em sala de aula com A Barragem).
12
A Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Maria Estrela de Oliveira está localizada
no distrito sousense Lagoa dos Estrelas, ao sudoeste da cidade de Sousa, distante 10 km da sede
municipal. Os alunos são todos oriundos da zona rural e a grande maioria não conhece
pessoalmente o Perímetro Irrigado de São Gonçalo (distante da localidade cerca de 30 km).
48
1.4.2 Ancoragem teórica
No intento de melhor organizar as reflexões teóricas, a constituição
metodologia da pesquisa, as análises e todas as discussões dessa dissertação,
dividiremos a mesma em cinco capítulos agrupados em duas partes, além do
capítulo introdutório e das considerações finais. Assim, teremos:
A I Parte da dissertação volta-se para a análise e interpretação do
romance A Barragem, para tanto, essa parte está segmentada em três capítulos
teórico/analítico:
Capítulo II Discutindo romance: conversas com a teoria - voltado mais à
questão da revisão bibliográfica, faz uma discussão sobre concepção e história
de(o) romance; a política do cânone e sobre a segunda fase do Modernismo
brasileiro período dos romances regionalistas.
Capítulo III A representação social em A Barragem:os pretéritos de um
lugar nas páginas do pensamento de uma mulher analisa como alguns
aspectos sócio-histórico-culturais de São Gonçalo estão representados no
romance de Ignez Mariz em pauta.
a II Parte da dissertação está voltada para o educação em sala de aula
e discorre sobre o ensino, práticas e formação docentes e a didatização do saber
literário.
Estruturada nos Capítulo IV: Das páginas do romance à sala de aula:
49
didatização do saber literário e Capítulo V: Das páginas ao palco: experiências
em sala de aula com A Barragem, a segunda parte da dissertação faz,
inicialmente, uma contextualização do ensino de Literatura, depois cambia por
entre teorias educacionais, sobretudo no que tange aspectos sobre leitura e
escrita, formação profissional e identidade docente e, além disso, traz
experiências de leituras do romance.
Por fim teremos Últimos apitos: um espaço de tempo: considerações sobre
o trabalho, onde estão inseridas as nossas considerações finais sobre este
trabalho.
Para dar respaldo teórico à nossa pesquisa, utilizamos textos de André
(2003); Bauer & Gaskell (2003); Castro (2006); Gonsalves (2003); Moreira &
Caleffe (2006); Mussalin & Bentes (2004); Oliveira (2007); Rodrigues (2006) no
que tange à parte metodológica do trabalho. Ao nos debruçarmos sobre a análise
do livro objeto de estudo, A Barragem (Capítulos I e II), nossa atenção se voltará,
especialmente, para Mariz (1994) e também para Abdala Junior (1995); Almeida
(1999); Amorim (2003); Bakhtin (1988); Bosi (1994) e (2002); Brait (2002);
Candido et. alii. (1968); Candido (2003) e (1981); Jauss (1994); Moisés (1981);
Reuter (1995); Schüler (1989); Souza (1991).
Quando formos analisar a representação social em a Barragem (Capítulo
III) nossas leituras se voltarão para documentos do DNOCS (Departamento
Nacional de Obras contra as Secas) e para os teóricos: Moscovici (1961); Jodelet
92002); Carpeaux (1999); Certeau (2000); Goldmann (1976); além do próprio
romance A Barragem.
50
Na segunda parte do nosso trabalho dedicamos atenção à discussão de
temas relacionados ao ensino (no nosso caso, ao ensino de Literatura) e à
questão da formação docente e transposição didática do saber. Para tanto,
nossos estudos tiveram a ancoragem teórica em autores como: Cosson (2006);
Garcia (2000); Geraldi (1996); Evangelista (2003); Koch (2007); Leahy-Dios
(2000); Libâneo (2003); Lima (2004); Setton (2002); Tardiff (2002), entre outros.
51
CAPÍTULO II
2. DISCUTINDO ROMANCE: CONVERSAS COM A TEORIA
“A arte do romance é uma arte da
comunicação e não uma arte do
conhecimento”.
Paul-André Lesort
2.1 Do fantástico ao romance: aspectos gerais
O ser humano, desde os seus primórdios de sujeito racional, sente a
necessidade de expressar o seu pensamento aos demais. Inicialmente, a
comunicação se dava de forma precária e a transmissão de idéias ocorria por
meio de gestos e também de forma oral restrita.
Com o passar dos tempos, o homem foi aprimorando a fala e começou a
utilizar, além desta, outros meios para se comunicar e também para registrar os
acontecimentos, seja por meio de gravuras e de outros símbolos, nascendo,
assim, por volta de 3500 a.C, de forma rudimentar, na Mesopotâmia, os primeiros
sinais de escrita.
O ato de narrar fatos e acontecimentos remonta desde o início das
civilizações humanas, pois mesmo quando não se tinha a escrita como
ferramenta de divulgação comunicacional, o homem utilizava outros métodos
(linguagem não-verbal e verbal, em sua articulação primeira, a fala, para esse fim
52
e tinha na oralidade uma maneira eficiente para difundir os ensinamentos e a
cultura de tais civilizações de geração a geração. Nesse sentido, o narrar está
atrelado ao entendimento do conto maravilhoso (fantástico); do mito e da intriga
supra-literária (anedota, romance policial etc).
O fantástico era uma forma de o homem perceber a realidade e dela
aparecer aos olhos do ser humano de forma fantasiosa (irreal), contrapondo-se ao
entendimento, ao conhecimento do indivíduo ao que é verdadeiro (real). No Novo
manual de teoria literária, Rogel Samuel (2007) complementa essa noção,
afirmando que ao fantástico denomina-se:
... à convivência do real com o irreal, que se faz a partir da noção
de realidade, tomada como hipótese falsa, a que se uma aura
de incerteza e de que não se tem nenhuma explicação
satisfatória. O fantástico assume o caráter de aventura, às vezes
simbólica, subordinada à função puramente ideológica de
provocar e experimentar a verdade. (2007, p. 31- 32).
Experimentando a verdade, numa encenação da realidade, o homem
começa a mitificar de forma que, ao nomear as coisas, ele estava criando-as e,
por conseguinte, personificando-as e, assim, instituindo mitos, que era “uma
forma pela qual o homem organizava os seus símbolos” (AMORM: 1989, p. 13) e
transmitia o seu pensar aos outros para tentar explicar a realidade, que o mito
faz metáfora da realidade”, como coloca Samuel (2007). E acrescenta:
O mito põe em cena personificações de coisas ou
acontecimentos, uma narrativa do que poderia ter acontecido no
53
passado, se a realidade presente pudesse ser explicada pelo
modelo de realidade que o mito propõe (como por exemplo o mito
de Adão e Eva). O mito expressa, de forma sucessiva e narrativa,
o atemporal e o permanente, o que jamais deixa de ocorrer e que,
como paradigma, vale para todos os tempos. (IDEM, ibdem, p.
22).
Como passar dos anos, os indivíduos começam a ter a necessidade de
reinventar a vida e o mundo” (AMORM: 1989, p. 18) e, com isso, desenvolvem a
experiência de contar e recontar histórias (intriga supra-literária), as quais podem
ser reais (relatos) ou fictícias (narrativas). O relato era a descrição de fatos
verídicos, com o intuito apenas de informar as pessoas sobre os acontecimentos.
A narrativa, por sua vez, é um processo de contar histórias que apresenta
personagens (seres imaginados), as quais desenvolvem alguma ação (enredo)
articulada duplamente no tempo e no espaço (termo esse que também pode ser
chamado de ambiente)
13
.
Essas narrativas evoluíram e, na antigüidade grega, receberam o nome de
epopéia que eram histórias representativas da realidade que, nas suas tramas,
possuíam sempre a intervenção dos deuses. Sobre epopéia, Samuel (2007), nos
diz que:
... no centro de cada uma se ergue sempre o herói cheio de glória
diante do fundo escuro da morte certa que vai levá-lo ao nada,
completando pela posição do fato de que o homem é colocado
frente aos deuses. Esta luta, se para os deuses não passa de
uma brincadeira, para os homens é fatal, nela arriscam-se tudo o
quer têm e o que perderão na morte amarga. (IDEM, ibdem, p. 26)
13
Na sessão que analisaremos o espaço no romance A Barragem, explicaremos a diferença entre
espaço e ambiente.
54
Além da epopéia, as narrativas tiveram um amadurecimento e evoluíram
tanto quanto à forma, quanto ao conteúdo e quanto à caracterização dos
personagens, porém todas mantiveram a representação dos fatos. Na Idade
Média, a narrativa passou pela épica medieval-cristã, com as canções de gesta e
com as novelas de cavalaria, o romance sentimental (localizado no mundo
burguês) e pastoril (localizado no cenário pastoril). No século XVII surgiu o
romance barroco
14
, que trazia uma contextura temática complexa e de
imaginação excessiva, distanciando-se do aspecto da verossímil. Nos culos
XVI e XVII, surgiu também o romance picaresco, mais voltado à
verossimilhança
15
, uma vez que trazia, como coloca SILVA (apud AMORIM, 1989,
pág. 10), uma descrição realista da sociedade e dos costumes contemporâneos”.
Somente no século XVIII o romance começou a ser respeitado enquanto
modalidade literária e passou a ser uma forma de se narrar as tramas sociais.
Romance
16
, segundo o dicionário Aurélio (1993, p. 485), significa: 1.
Descrição mais ou menos longa das ações e sentimentos de personagens
fictícios, numa transposição da vida para um plano artístico; 2. Descrição ou
enredo exagerado ou fantasioso”. Por essa descrição, nota-se mais uma vez que
14
O romance barroco é considerado o ponto de partida, o “grau zero”, para o romance moderno.
15
Verossimilhança é o termo que aproxima as histórias contadas da realidade, numa possibilidade
daquelas representarem esta.
16
A acepção moderna da palavra esligada à arte de contar histórias, embora esse mesmo
termo tenha sido utilizado durante muito tempo como uma língua popular, uma língua comum
(donde saíram as “línguas românicas”, tais como o francês, o italiano, o espanhol, o português e o
romeno) em oposição ao latim (fonte primária do romance), que era uma língua erudita.
Inicialmente, Romanz, a língua popular, deu origem ao verbo romancear (que queria dizer: traduzir
do latim para o francês - século XII; ou contar em francês século XV); tal termo, depois, passou a
significar qualquer obra (escrita) em língua vulgar e, nos fins da Idade Média, abarcavam até
mesmo as canções de gesta.
55
o romance é uma maneira que o homem encontrou para transpor para as páginas
as inquietações (sejam elas pessoais ou sociais) da realidade de forma
mimética
17
, ou seja, de modo que o texto mostre ao público, a partir de uma
“desrealização” a sua essência e não a sua aparência.
Todavia, ainda se faz necessário diferenciar a narrativa do romance, pois,
apesar de parecerem semelhantes, ambos têm diferenças semânticas e
estruturais. Segundo Seixo (1986):
A narrativa tem a ver com o relato puro, com a seriação
seqüencialmente lógica ou temporal dos acontecimentos, com a
horizontalidade da atitude de contar. (...) o romance se baseia na
narrativa. Com efeito, desde a sua fundamentação épica inicial
que o romance se encarrega de contar uma história articulada em
intriga, e todo o seu caminho até o século XIX não foi mais do que
o percurso da simplificação e do amadurecimento das molas
capazes de acionarem os elementos que justamente podem
figurar como os mecanismos impulsionadores dessa história.
(p. 15)
Noutras palavras, a narrativa tem mais a ver com o aspecto oral da história,
não necessita de uma complexidade no enredo e as ações e os conflitos das
personagens são previsíveis. Além disso, a narrativa forma, de acordo com a
visão de Bourneuf & Ouellet (1976): uma imensa memória da humanidade,
recolhe tradições e crenças, assegura a recordação de fatos marcantes
(modificando-os profundamente) e o culto dos heróis ou dos deuses, fixa coisas
verídicas e fabrica outras maravilhosas”. Assim, a narrativa acaba funcionando
17
Ver melhor o conceito de Mimeses em A Poética”, de Aristóteles, onde ele nos diz que a
mimese da arte (mimese tés praxeos) era a forma de a arte representar, revelar a vida, porque,
como as ações fazem parte da vida, ela sentido e valor às ações. Em outras palavras, a arte é
uma imitação da vida real.
56
mais como uma expressão, como uma representação primeira das “consciências”
de uma coletividade em busca de uma explicação para o mundo e também como
uma possibilidade de perpetuação (geralmente inconsciente) das suas histórias.
Por outro lado, o romance seria uma idéia materializada e articulada de
quatro elementos básicos: a personagem, a intriga (ou enredo), o espaço e o
tempo, num grau de complexidade e textualidade mais bem elaboradas e que
possibilitam a permuta de vários gêneros em perfeita harmonia estrutural. Ele
utiliza uma história, numa seqüência de acontecimentos encadeados num
quadrante espaço-temporal de forma que prenda a atenção do leitor, gerando
expectativas e, de certo modo, refletindo angústias e sonhos que se escamoteiam
no íntimo da personalidade humana.
No século XIX, com uma maior participação das pessoas à instrução
educacional e cultural, o público do romance cresceu um pouco (uma vez que
antes a leitura era restrita a alguns membros da Igreja e do Império), sobretudo
após a invenção das máquinas de impressão, utilizadas na imprensa, que
propiciavam aos leitores um maior número de tiragens e uma redução nos custos
dos livros, culminando numa maior acessibilidade das pessoas ao material escrito
e, consequentemente, à leitura e à escrita. Além disso, houve a difusão das
histórias (ficcionais) através dos jornais, o que propiciou a aproximação da classe
burguesa aos folhetins (período que originou o romance de folhetim).
No século XX, o romance continua a ter uma boa aceitação pelos leitores
(apesar de alguns teóricos alarmarem o fim dessa modalidade de contar
histórias). Entretanto, ele resiste a esse fim e passa a sofrer o processo de
57
massificação, fato que, para muitos críticos literários, fez com que tal gênero
perdesse em qualidade, embora, aumentado em vendagem.
Num estudo mais aprofundado sobre o romance e a sua representação
social, o professor José Edilson de Amorim, em sua dissertação de mestrado,
intitulada A ficção da corte: romance e representação social em Joaquim Manuel
de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar”, faz uma análise
minuciosa do termo, no capítulo primeiro, denominado O romantismo e a
consolidação do romance”, onde nos traz um confronto entre as visões de Georg
Lukács e de Mikhail Bakhtin acerca de epopéia e romance. Para o primeiro, a
narrativa inicia-se com a epopéia, passa pelo romance moderno e tem seu ápice
no século XIX, embora, nos fins desse mesmo século, com as “descrições e
divagações psicológicas”, ocorra o declínio desse gênero. para Bakhtin, a
epopéia é, sim, esse gênero acabado, esse gênero que cumpriu o seu ciclo,
enquanto manifestação literária, no entanto, o romance, não. Ele é uma
expressão inacabada da arte de narrar e que pode ser (e é) recriada a partir da
interpretação que o leitor atribui à trama romanesca.
Para melhor explicar esse fim do romance, propagado por Lukács e outros
autores que comungam com essa idéia, Amorim (1989, p. 21) no diz que:
Esses três estudiosos (Lukács, Benjamin e Octavio Paz) se
afastam de Bakhtin quanto às possibilidades do romance. Nos
três o fim da forma romanesca é uma constante. A sua dissolução
imposta pela sociedade alienante, em Lukács; a sua crise diante
da informação crescente, em Benjamim; e o seu fim com o fim da
sociedade moderna, em Octavio Paz; e a transformação da
narrativa em canto (poesia).
58
Respeitando a opinião de Lukács e demais estudiosos que compartilham
com ele a idéia de fim do romance, percebemos que essa modalidade narrativa,
ao passar dos anos, adquire mais ainda a sua forma de inacababilidade, ou seja,
ela é, como dizia Bakhtin, a arte do devir”, que, em cada nova interpretação,
ocorrerá uma (re)produção do texto romanesco. Tal modalidade textual sofre, sim,
alterações, pois uma vez que ele é uma representação social, ele terá que se
adequar às novas maneiras de reflexo da sociedade à arte e de se conceber o
romance.
O que percebemos, quanto a essas mudanças é que, por exemplo, no
século XIX, o romance era aguardado com expectativa através dos capítulos
publicados em jornais e impressos em suplementos (folhetins); no século XX,
ocorreu essa mesma expectativa, pois os capítulos eram aguardados pelo público
para serem exibidos por meio do rádio (as rádio-novelas de meados do século
XX) e da televisão, através das novelas (em fins do século passado), que é outra
forma de se contar histórias e que não deixa de possuir os mesmos elementos do
romance. Hoje, início do século XXI, quase rmino de sua primeira década, o
romance ainda permanece entre os principais gêneros literários, embora, devido
às mudanças socais e à evolução tecnológica, ele tenha adquirido outras formas
e utilizado outros meios de veiculação, a exemplo da televisão e dos meios
virtuais (internet), todavia, não deixe de ser apreciado e lido pelos leitores.
Embora saibamos de todas essas alterações pelas quais o romance
passou, nossa discussão se volta, aqui, para o romance enquanto gênero literário
59
sob a forma escrita
18
e difundido por meio de livros. O romance, enquanto
modalidade literária de representação da sociedade,
deve contar uma história e conter acção, apresentar situações
variadas, pintar caracteres, criar heróis e tipos, ser <a odisséia do
destino>. (...) os romancistas devem compreender o seu tempo e
exprimi-lo escrupulosamente; vai-se mesmo até esperar deles que
<tratem a fundo uma questão>, quer seja o funcionamento de
uma empresa ou o trabalho de um médico. (BOURNEUF &
OUELLET, 1976, p. 20)
Assim, o romance serve não apenas para entreter, mas também como
meio de engajamento histórico da realidade, artifício lúdico-ideológico de
denúncia social. Nas palavras de Moisés (1998: 98) “o romance, por estar em
declínio à classe que lhe deu origem, a burguesia, facilmente se transforma numa
arena de combate para ideologias agonizantes e nascentes”. Tal gênero textual-
literário tem não apenas a função estética, o a intenção de entreter (contar
uma história), mas também a função de engajamento social (Literatura Engajada),
tendo, nos textos, um espaço voltado a uma determinada causa, doutrina, sistema
de ordem política, filosófica e religiosa, características típicas de romances de
cunho social.
O que num romance se deve ter cuidado é para que não fique preso
totalmente a um dos dois extremos das funções romanescas. Ele não pode ser
apenas de entretenimento, nem tampouco, apenas de denúncia (ou descrição)
social. No primeiro caso, corre-se o risco desse gênero não transmitir mensagem
alguma ao leitor e, no segundo, pode acabar sendo concebido apenas como um
18
No que se refere à parte de leitura e escrita discutiremos na segunda parte do nosso trabalho.
60
material teórico, geralmente histórico.
O romance, no nosso caso, o social, deverá mostrar aspectos, ideologias,
visões de mundo coletivas de uma sociedade, ou seja, deverá refletir, nas duas
semânticas da palavra, a sociedade e a época da história contada, uma vez que
A obra literária não é o simples reflexo de uma consciência
coletiva real e dada, mas a concretização, num nível de coerência
mito elevado, das tendências próprias de tal ou tal grupo,
consciência que se deve conceber como uma realidade dinâmica,
orientada para certo estado de equilíbrio. (GOLDMANN, 1976,
p.18)
Nesses moldes, A Barragem caracteriza-se como um romance, pois
apresenta os elementos estruturais dessa modalidade narrativa (personagens,
história, tempo, espaço e narrador). Ademais, o seu enredo contém situações
diversas, conflitos vários e, através dele, podemos perceber as marcas de uma
época e de um lugar: alto-sertão paraibano, na década de 1930. O que
discutiremos adiante é se a autora cumpriu, então, o seu papel de retratar com
minúcia várias questões pertinentes à trama e traduziu para as páginas de seu
livro a realidade sertaneja daquela época.
Posteriormente, abordaremos o fato de algumas obras, principalmente os
romances, serem escolhidos como “os melhores” e, por conseguinte, uma gama
de outros são estereotipados como os piores ou não entram nem nas discussões
nascem excluídos. Para isso, faremos uma retrospectiva histórica do tema
para, depois, discutirmos o gênero romance em sua fase mais politizada no Brasil.
61
2.2 Os eleitos: a política do Cânone
Qualquer que seja o „método de
análise‟, cada vez que uma obra é
eleita por alguém como objeto de
discurso, essa escolha é expressão
de um julgamento.
Leyla Perrone-Moisés
Na política, o que determina as regras do jogo, na maioria das vezes é o
interesse. Seja um interesse voltado ao bem coletivo (raramente encontrado
naqueles que detêm o poder), ou um interesse calcado nos anseios pessoais de
quem está dominando o jogo. A Literatura, de certa forma, também está nesse
campo: o campo dos interesses, uma vez que a sua própria noção é ideológica e
está arraigada à questão do poder.
Como bem sabemos, os últimos anos foram marcados pelo surgimento de
proposições nas instâncias sociais, políticas, econômicas e culturais que se
especializaram em decretar o fim dos pressupostos da sociedade tradicional, a
saber, o arruinamento das hierarquias de classe, o questionamento dos
idealismos positivistas da construção da história, enfim, o conjunto exaltado por
uma nova postura política dos indivíduos no final do século XX. Essa
transformação social e cultural, denominada por alguns de Pós-modernidade,
remonta aos anos de 1960, período que propiciou redefinições para a então
sociedade moderna.
Discutiremos aqui o jogo dos interesses de alguns críticos que, incutidos na
esteriotipização de uma tradição literária e abarcados por um mandato divino”,
62
elegem determinados autores (mortos) e obras como os melhores do mundo e, ao
mesmo tempo e com a mesma intensidade, excluem outros, especialmente se
estes não estão calcados em um tripé ideológico que, por muitos anos (e ainda
hoje possui grande força) determinou a escolha/exclusão de tais autores e obras.
Esse tripé ideológico: patriarcalismo, arianismo e moral cristã formam o que
Ricardo Reis (1992, p. 72) denomina de um corpus canônico”, o qual tem nos
seus eleitos uma predominância européia, ariana, do sexo masculino e oriundos
das elites.
Mas, além desses critérios, que outros são utilizados para essa escolha?
Que interesses existem nessas preferências? E, no caso dos não-eleitos nessa
política de seleção e elaboração dessa listagem de escritores, denominada
cânone, o que fazer com eles e com suas respectivas obras?
Inicialmente, vale lembrar que a palavra cânone (do grego kanón e do latim
canon) significava regra e também nominava um tipo de vara que servia para
medições. Depois, sob uma ótica católica, o termo passou a designar um conjunto
de textos bíblicos legítimos, segundo as autoridades religiosas da época (Idade
Média), foi ainda entendida como uma relação de santos reconhecidos pelo Papa,
o que se denomina canonização: transformação de alguns homens (e também
mulheres) religiosos(as) em santos, segundo regras do Vaticano. Tempos depois,
tal palavra passou a ser concebida também como uma série de textos-modelo ou
um conjunto de autores literários reconhecidos como “mestres da tradição”, em
outras palavras, modelos de referência literária. Hoje em dia, o termo cânone é
compreendido como uma relação de autores que integram uma parcela dos
63
considerados exemplos de bons escritores.
A origem do cânon, enquanto semântica atribuída pelas línguas românicas
ao termo de “norma” ou “lei” de preferências e exclusões possui divergências.
Segundo Compagnon (2001), ao atribuir-lhe o sentido de conjunto de obras
perenes a servirem de exemplário à humanidade, a Literatura importou e
apropriou-se do modelo teológico canônico a partir do século XIX, época da
ascensão dos nacionalismos, quando os grandes escritores se tornaram os heróis
dos espíritos das nações” (2001, p. 227). E aqui no Brasil, como veremos adiante,
não foi diferente. Desse modo, o cânone literário sustenta o seu significado no
nacionalismo, elegendo as obras que melhor descrevessem o sentimento pela
nação (visão essa típica do Romantismo). Provavelmente, essa premissa
intentasse instalar uma memória coletiva, um patrimônio que assegurasse seu
domínio sobre as culturas, o que mais uma vez faz com que retomemos à ideia de
interesse, discutida no início dessa sessão.
Perrone-Moisés, (1998), por sua vez, baseada em Curtius e divergindo da
visão de Compagnon, assegura que foram os filólogos alexandrinos e não os
teólogos os primeiros canonizadores, ou seja, os primeiros a criarem uma seleção
de autores literários para serem lidos em escolas de gramática e que, o conceito
de escritor-modelo estava, na Antiguidade Clássica, relacionado ao nível de
erudição da linguagem. Em Roma, no século II, a elaboração de listas de
“preferências” também fora adotada, para classificar pessoas conforme acúmulo
de bens materiais.
Na Idade Média, a Literatura surgir o none clássico com Dante e os
64
autores selecionados para a bella scuola”. O cânone moderno tem seu início, por
sua vez, no Renascimento italiano estendendo-se para a França. A pretensão à
universalidade do cânone só começa a perder suas forças no século XVIII quando
o juízo estético deixou de ser considerado universal, e os “clássicos” perderam a
condição de modelos absolutos e eternos, quase “obras divinas”.
Ainda para Perrone-Moisés, o cânone moderno pode ser explicado a partir
da teoria kantiana, em que a sabedoria e o julgamento estético partem do
princípio do consentimento, isto é, durante certo período, um escritor e sua obra
que tiveram maior aceitação, independentes das transformações ocorridas nas
sociedades, tornam-se obras-modelo, constituindo-se os famosos “clássicos” (da
Literatura), termo esse ligado à noção de nobreza e soberania e que a sociedade,
assujeitada
19
por um discurso dominante, acata as decisões dos “superiores”,
solidificando a noção do cânone literário. Mas para que o none tenha
relevância, ele necessita estar respaldado por uma autoridade (ou um conjunto de
autoridades) da área.
De acordo com Roberto Reis (1992, p. 70):
... o conceito de cânon implica um princípio de seleção (e
exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do poder:
obviamente os que selecionam (e excluem) estão investidos de
autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus
interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc).
19
Uma sociedade assujeitada é aquela em que os seus cidadãos, em sua grande maioria, segue,
alienadamente, as regras e o bem-querer de alguns bem poucos sujeito. Assim, tal sociedade fica
à mercê de outros. Noutros termos, é uma sociedade dependente de ações externas, onde os
seus próprios cidadãos abdicam dos seus papéis sociais.
65
No caso, os interesses nem sempre são realmente os da cultura, ou da
expressão popular, mas, conforme a citação acima, a de um restrito grupo que,
acobertados por uma determinada instituição (seja ela a Igreja, a Universidade ou
ainda, nos tempos mais recentes, na chamada Pós-modernidade, a imprensa). Na
Literatura, essa autoridade é composta, sobretudo, pelos críticos literários, os
quais se pautam, como coloca Perrone-Moisés (1998, p. 11), por princípios e
valores apontados previamente pelas Academias ou por qualquer autoridade ou
consenso”, que, na maioria das vezes, menosprezam as minorias, a exemplo das
mulheres, negros, latinos e homossexuais. Todavia, hoje, nas Universidades já há
trabalhos e estudos voltados às obras dessas minorias desprestigiadas pela elite
dita pensante e regedora das normas do “bem escrever”.
A credibilidade atribuída, em geral, ao trabalho realizado por mulheres nas
sociedades ocidentais é um fato recente e ainda constitui uma problemática que
requer a preocupação das organizações e grupos feministas que se empenham
em desconstruir o discurso machista e as relações de poder na sociedade.
Embora essa luta pelo reconhecimento do espaço e função social da
mulher retome à Idade Média, o que se percebe, atualmente, é o descaso e
desqualificação do sexo feminino enquanto sujeito de suas ações e produtora de
conhecimento significativo. Isso fica bastante evidente quando se volta o olhar
para a Academia, para a política partidária ou para a liderança de grupos
comunitários organizados. Enfim, inúmeros setores administrativos que exercem
qualquer espécie de influência sobre a organização da sociedade.
No âmbito da Literatura, isso não ocorre muito diferentemente, uma vez
66
que a produção escrita feminina, especialmente a literária, conhece de perto esse
fato. A indiferença ainda existe no universo literário quando se compara uma
literatura de autoria feminina com a masculina. Razão disso, a formação de uma
lista de escritores consagrados (o cânone literário) constituída essencialmente por
homens brancos. Enquanto que as mulheres sempre acabaram ficando em
segundo plano, vistas como objeto de inspiração masculina e não como
indivíduos pensantes, capazes de se inserirem no mundo da Literatura e, muito
menos, da ciência.
Além desse resgate da identidade da mulher na literatura, o
desenvolvimento de uma arqueologia literária tem sido realizado através da
restauração de obras de autoria feminina que foram excluídas da História da
Literatura (como, em nosso estudo, Ignez Mariz, por exemplo) e,
consequentemente, do cânone literário.
Porém, essa discussão não é de agora, pois o fato de o cânone, desde
suas origens, ser formado com base na escolha realizada por um sujeito crítico e
constituir-se como a base de determinado conhecimento, seja literário, teleológico
ou gramatical, não lhe torna menos subjetivo que qualquer julgamento de valor.
Conforme Perrone-Moisés (1998):
O cânone didático da Antiguidade baseava-se em princípios de
correção gramatical. O cânone medieval, marcadamente cristão,
esteava-se em valores morais. Ambos tinham em mira o
ensinamento que se podia extrair das obras. Os currículos
escolares ampliaram-se e modificaram-se ligeiramente do século
VIII ao século XIII. (...) O cânone moderno (séculos XVI a XVIII)
firmou-se com ligeiras diferenças em cada país (p. 78).
67
Desse modo, é possível entender que o cânone corresponde a uma das
extensões do discurso dominante, a saber, as relações de poder fundamentadas
em práticas burguesas. Isso, além de sustentar uma espécie de domínio sobre o
público leitor comprova que o cânone literário é uma seleção fundamentada em
fatores extra-literários, ou seja, não se restringem apenas às questões estéticas
do texto literário, mas também a fatores sociais e morais do universo do escritor.
Por isso, as “listas” não agregam mulheres, negros, ex-colonizados, enfim,
personalidades que não preenchem os critérios ideológicos estabelecidos pela
crítica tradicional, geralmente homens, de cor branca, com opiniões nacionalistas
e elitistas. A essa idéia, Perrone-Moisés (1998) acrescenta:
A concepção que cada um deles [crítico-escritor] tem do que é um
autor “clássico”, “imortal” ou “paidêumico” repousa sobre um
conjunto de valores, que ora são comuns (os da tradição ou os de
seu tempo), ora pessoais, ligados aos projetos de suas próprias
obras de criação. (1998, p. 144)
Harold Bloom (2001) considera que o público leitor não deve “perder”
tempo lendo obras que o façam parte de um cânone. Ele acredita que
precisamos ensinar mais seletivamente, buscando os poucos que têm
capacidade de tornarem-se leitores e escritores altamente individuais(2001, p.
25). Assim sendo, o valor estético seria o único elemento a ser apreendido no
momento da leitura e isso não poderia se perder entre os leitores “desavisados”,
68
“incapazes” de compreender a estética de uma obra.
Ao contrário do que afirma Bloom (2001) sobre a formação de o cânone
acontecer entre os próprios artistas que sustentam precursores e sucessores, não
deixando escapar a possibilidade de uma voz marginalizada adentrar o “grupo
elitizado”, o none é de responsabilidade social, sendo uma extensão da
sociedade organizada a partir de discursos masculinos.
Tais discursos dominantes (a crítica tradicional) que imperam na sociedade
manipulam o público a partir de uma pseudo-dialética
20
, de um discurso
populista que faz com que o indivíduo acredite que ele é peça fundamental no
processo. No entanto, o público, por esse olhar, constitui apenas um legitimador
das deliberações impostas. Por outro lado, existe a memória coletiva, uma
espécie de cultura internalizada nesse indivíduo-expectador da literatura, que
determina a passividade do público na espera pelo julgamento dos críticos
literários e profissionais da área.
Perrone-Moisés (1998), em seu livro Altas literaturas, elencou critérios de
valores percebidos como os utilizados pelos escritores-críticos, estudados por ela,
os quais, nas palavras dela, mostram o consenso de uma comunidade
transnacional [autoridade] de criadores literários, formadores de gosto e de
opinião em sua área, através de várias décadas do século XX”, a saber:
20
A dialética - termo que, na Grécia Antiga era entendido como “a arte do diálogo” entendida
aqui como a busca para conseguir entender e interpretar as constantes mudanças das relações
sociais, as quais vivem num constante movimento de transformação e transmutação, incitando-
nos a rever o passado com vistas no presente, ou seja, o presente é um reflexo, é uma
representação do passado. Assim, para compreendermos o pretérito é fundamental
questionarmos e compreendermos o presente. Poderíamos até dizer que hoje, a dialética seja arte
da discussão (e provocadora dela) interpretativa da sociedade. Para melhor entendimento a
respeito, ver O que é dialética, de Leandro Konder.
69
Maestria técnica: o texto, nesse caso, não depende de inspiração,
mas de técnicas de escrita que o aprimoram e o aprendizado e
desenvolvimento de tais técnicas tornam o texto literário ou não;
Concisão: um bom texto (literário) é aquele texto objetivo, de fácil
compreensão ao leitor;
Exatidão: esse critério está ligado à forma como o escritor recria, a
partir do texto, o mundo;
Visualidade e sonoridade: pode ser diretamente aplicado a
poemas, mas, no caso de narrativas, esse critério está ligado ao
modo como o autor diz o que pretende criando, no pensamento do
leitor, imagens para que esse possa melhor associá-las ao
conteúdo e melhor compreender o sentido do texto;
Intensidade: este aspecto está relacionado ao modo como a obra é
recebida pelo leitor e como ela o envolve;
Completude e fragmentação: é o modo como o texto dialoga com
a realidade para se completar, ou ainda, é a coerência textual
interna, ou seja, a maneira pela qual as partes do texto
(fragmentação) se interligam para possuir sentido (completude).
Sentido esse, muitas vezes, atrelado ao contexto da obra e à
recepção do leitor
21
;
21
Esse aspecto será discutido melhor na segunda parte do nosso trabalho, no item sobre “Estética
da recepção” e “Letramento”.
70
Intransitividade: entende que a obra de arte (no nosso caso o
romance) é “autônoma” e ao mesmo tempo, vinculada ao seu
contexto de produção;
Utilidade: relaciona-se, para os modernos, a um valor de
conhecimento do mundo e de autoconhecimento, além de um valor
de crítica, vinculados, de certa forma, ao contexto social. Todavia,
tal critério, liga-se à ideologia política da autoridade vigente;
Impessoalidade: é uma “despersonalização” do sujeito para que o
mesmo acabe por personalizar sujeitos de uma sociedade, ou seja,
uma forma de distanciamento do individual para a aproximação do
coletivo;
Universalidade: é a forma pela qual a Literatura aproxima-se do
maior número de pessoas sem perder as suas qualidades
intrínsecas, ou seja, atingir a massa (povo) sem perder a
qualidade;
Novidade: é uma forma de estranhamento. É uma maneira de
rescindir com os velhos modos de expressão e de maravilhar o
leitor.
Além de nem sempre levar em conta os critério valorativos, como os
citados acima e, nem tampouco, provocar um distanciamento necessário para
avaliar uma obra e historicizá-la, muitos críticos literários, muitas vezes, preferem
encarar a Literatura como algo estagnado e fadado ao conformismo crítico.
71
Retomando às produções da Antiguidade Clássica, por exemplo, percebe-
se que os grandes heróis das obras literárias, aqueles que surpreendem o público
com seus ensinamentos, são homens fortes, brancos e belos. A figura da mulher
nessa literatura sempre aparece como secundária, a esposa benevolente ou a
filha escravizada, preparada para o casamento. Em tragédias clássicas, as
personagens femininas que desobedecem às ordens “naturais” são punidas com
a morte. Um exemplo plausível é a tragédia Antígona, continuidade da obra Édipo
- Rei, em que a personagem de Antígona, filha de Édipo, viola as leis da coroa e
recebe a morte como condenação pelos seus atos. Embora essa personagem
possua traços emancipadores para o período em que foi construída, auxiliando,
assim, interpretações que lhe atribuam valores masculinos, Sófocles propõe
desestabilizar a cultura dos patriarcas, colocando em choque os procedimentos
morais impostos ao sexo feminino.
No Brasil, na terceira década do século XX, em A Barragem, Ignez Mariz
traz-nos uma personagem que também quebra as ordens vigentes do sertão
nordestino da cada de 1930, onde o patriarcalismo imperava. No romance, a
personagem Remédios é uma menina atrevida e impetuosa, que, rompendo com
as convenções, namora muito desde cedo, frequenta os bancos escolares (ação
realizada, sobretudo pelos filhos brancos dos fiscais e operários de boa instrução,
no acampamento onde se passa a história) e não obedece às ordens dos pais,
além disso, ela é uma personagem muito além do seu tempo, como a própria
autora a caracteriza, que suas idéias e suas atitudes eram atípicas das moças
camponesas daquela época. No entanto, a personagem sofre uma espécie de
“punição”, que acaba por sancionar uma visão secundária da mulher: o
72
casamento.
Tal romance regionalista apresenta, em seu conteúdo, alguns dos valores
elencados por Perrone-Moisés (1998), ao citar os onze escolhidos como os
usados pelos escritores-críticos como elementos avaliativos para o cânone:
concisão, exatidão, intensidade, completude e fragmentação, intransitividade,
utilidade e impessoalidade.
O que percebemos é que não Ignez Mariz, mas vários outros autores
não compõem a lista dos melhores escritores do país. Isso não se relaciona
apenas aos escritores nordestinos. Alguns fazem parte dessa relação, mas a
grande maioria fica de fora, principalmente as mulheres. Um exemplo claro dessa
exclusão de autoras do cânone nacional é o fato de que a primeira mulher a
ingressar no império das Letras no país, a Academia Brasileira de Letras
(instituição reconhecidamente avessa, até então, aos talentos femininos), foi a
escritora cearense Rachel de Queiroz, apenas em 1977.
Mas, de fato, como, ocorrem as discussões sobre o cânone no Brasil? Para
procurar entender e responder essa indagação, abordaremos tal questão a seguir.
2.3 “Ler, eleger e seguir adiante”: o cânone literário brasileiro
O cânone literário brasileiro nasce a partir das discussões dos primeiros
historiadores e críticos brasileiros que, após a independência política do país, em
73
1822, ocuparam-se com a construção de uma história do Brasil e com a criação
de uma literatura que representasse a identidade da nação recém-lançada,
seguindo assim as diretrizes do projeto oficial do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, fundado em 1838, com o apoio oficial do Imperador Dom Pedro II.
Estes críticos e historiadores guiados pelas idéias românticas européias
instituíram um cânone para a literatura brasileira constituído por autores e obras
do que mais representassem o que apreendiam por brasilidade: uma idéia geral
do país baseada na necessidade de expressar características nacionais,
diferenciando-se assim das origens das demais literaturas européias, cujos
cânones eram abalizados segundo preceitos clássicos de modelos culturais,
conforme vimos anteriormente.
Aqui no Brasil, a década de 50 do século XX foi marcada por releituras da
história da literatura brasileira que culminaram em textos como, por exemplo: A
literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho (1956), Formação da literatura brasileira,
de Antonio Candido (1959), Prosa de ficção: de 1870 a 1920, de Lúcia Miguel-
Pereira (1950), dentre outros, que não debatem questões relativas ao conceito
de literatura brasileira e da periodização de sua história, mas geram algumas
alterações no cânone, ao desviarem o olhar dos leitores para textos até então
despercebidos ou mesmo desconhecidos, haja vista a inclusão do romance Dona
Guidinha do Poço, de Manoel de Oliveira Paiva, pronto para ser editado desde
1892, e somente publicado em 1952, graças ao resgate feito por Lúcia Miguel-
Pereira, na obra citada.
O olhar mais radical sobre o cânone da história da literatura brasileira vai
74
ocorrer, quando Haroldo de Campos expressa sua insatisfação em três pequenos
ensaios intitulados "Poética sincrônica", "O samurai e o kakemono" e "Apostila:
diacronia e sincronia", publicados em 1969, sob o título "Por uma poética
sincrônica", na última parte do livro A arte no horizonte do provável.
Numa releitura marcada, principalmente, pelas idéias poundianas extraídas
de ABC of. Reading (1934), sob um critério de cunho meramente estético,
Haroldo de Campos propõe a elaboração de uma Antologia da Poesia Brasileira
da Invenção, em cujo cânone conceberia apenas os poemas de Gregório de
Matos, os árcades Tomás Antonio Gonzaga (Cartas Chilenas), Cláudio Manoel da
Costa, Alvarenga Peixoto, um trecho do poema "Carta a João de Deus Pires
Ferreira", conhecido como "Diálogo com o Tri tão", de autoria do Padre Sousa
Caldas, as traduções de Odorico Mendes, os românticos Sousândrade,
Gonçalves Dias (o poema "O leito de folhas verdes"), Álvares de Azevedo,
Bernardo Guimarães (o poema "A orgia dos duendes"), os simbolistas Cruz e
Sousa, Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry e a obra de Quorpo Santo.
Posteriormente, em outro pequeno ensaio intitulado "Texto e história",
publicado em A operação do texto, Haroldo de Campos (1976) investe contra o
nosso cânone de maneira mais incisiva ao falar que:
O estatuto do historiador literário brasileiro é, por assim dizer, um
estatuto dilacerado e dilacerante. Confrontado com um panorama
diacrônico onde são raros os momentos de altitude, este
historiador oscila entre a melancolia do profissional que não
encontra um objeto satisfatório para o exercício de seu métier e a
indulgência do fideicomissário que procura valorizar os bens sob
sua custódia (p. 13).
75
Neste mesmo texto, lança a idéia de uma possível História Textual, que
toma o "texto" caracterizado por seu "conteúdo informativo" (suas componentes
inventivas), como ponto fulcral e privilegia uma visada sincrônica (IDEM, ibidem,
p. 18). Desse modo, ele organiza um none bastante enxuto para a história do
romance brasileiro, onde apareceriam apenas: Memórias de um sargento de
milícias (1854-1855), de Manoel Antonio de Almeida, Iracema (1865), de José de
Alencar, O Ateneu (1888), de Raul Pompéia e Memórias póstumas de Brás Cubas
(1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e
Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis.
Com a chegada dos primeiros sinais do multiculturalismo, nos primórdios
dos anos 80, o crítico Roberto Schwarz (1983), em seu livro Os pobres na
literatura brasileira, organizou uma curiosa antologia composta de ensaios de
críticos de tendências diversas unidos por uma questão comum: como se define
e representa a pobreza nas letras brasileiras?” (p. 07). O livro provoca
indiretamente uma revisão nos critérios de seleção de autores e obras constantes
no cânone nacional, ao passo em que levou os críticos que compartilharam do
projeto a deslocar o foco de suas ponderações para outro aspecto que não o
marcado pelo banho formalista, que dominou o espaço acadêmico do país na
década de 1970. Mostrando-se, então, através dos textos escritos, que as crises
da literatura contemporânea e das sociedades de classes são irmãs e, por conta
disso, a situação da literatura diante da pobreza é uma questão estética radical”
(IDEM, ibidem, p. 8).
Atualmente, percebemos que são cada vez mais firmes as insatisfações
76
com o cânone literário, resultantes de desconstruções de conceitos como o de
literariedade
22
, num passado recente, verdadeiro divisor das águas entre os
discursos literários e não-literários, de valores como o estético que passa a ser
visto como apenas um dentre outros.
Desse modo, compreendemos que no processo histórico da literatura
brasileira, durante muito tempo, ocorreu a permanência de um cânone literário
marcado por um critério de cunho meramente quantitativo, cujo objetivo parece ter
sido apenas afirmar a existência de uma herança literária nacional cumulativa. As
restrições atribuídas à participação da mulher no desenvolvimento da arte é
conseqüência da discriminação que elas sofriam em seu meio social.
Até o culo XIX e boa parte do século XX, por exemplo, as práticas
masculinas de governar buscavam estratégias para que a mulher o
conseguisse o direito ao voto, pois teria maior participação nas resoluções dos
códigos políticos da nação e no processo de abertura política. Embora ocorra
esse descaso, por parte de uma crítica literária conservadora, a literatura de
autoria feminina passa, atualmente, por um processo de conscientização.
Por alguns anos, a contar das primeiras décadas do culo XX, a mulher
escrevia com ressentimento, procurava destruir a simbologia masculina que a
reprimia. Após reflexões acerca dessa prática, a mulher conscientizou-se e tenta
22
Utilizaremos a definição de Compagnon (2006), o qual afirma que a literariedade de um texto
(...) se caracteriza por um deslocamento, uma perturbação dos automatismos da percepção”, os
quais “resultam não somente do sistema próprio do texto em questão, mas também do sistema
literário em seu conjunto”. (p. 208). Assim, a literariedade textual se calcaria no estranhamento no
olhar, na novidade presente no texto em questão, o qual não se desligaria totalmente do sistema
literário e nem repetiria os hábitos de escrita vigentes à risca. Para ter literariedade, o texto tem
que apresentar novidades, mas inserir-se, de algum modo, numa tradição.
77
agora recuperar o passado anulado pela tradição e mostrar que a literatura de
autoria feminina possui seu valor.
No Brasil, tal prática veremos a partir dos Modernistas, como é o caso
das escritoras que tem Rachel de Queiroz, Ignez Mariz, Clarice Lispector e outras,
como exemplos de romancistas da literatura brasileira. Todavia, tais autoras ainda
não compõem o cânone da literatura brasileira, nem por isso suas obras são
inferiores às dos escritores consagrados pelo cânone brasileiro, a exemplo de
Machado de Assis e Mário de Andrade, e mereçam não serem estudadas. Pelo
contrário, a compreensão do cânone como “culto de admiração” é a suspensão da
pergunta ao mundo que as obras literárias inquietamente se propõem. Tal postura
piedosa torna o cânone prejudicial à literatura, porquanto lhe abriga numa
redoma, protege-lhe das angústias das quais, na origem, a obra surgiu. Vale
ressaltar ainda que o cânone literário não possui um valor intrínseco, acima das
atribulações históricas, mas se revela com um produto humano, dependente da
recepção do leitor e dos críticos para permanecer significativo.
Para compreendermos melhor a importância de obras literárias para o
panorama nacional, mesmo que seus autores não componham a lista canônica
literária do Brasil, abordaremos, a seguir, uma fase de nossa Literatura que,
devido a sua importância enquanto manifestação e representação social para a
nossa cultura, integra um conjunto de idéias marcantes para o nosso
entendimento atual de Literatura: O Regionalismo Nordestino.
78
2.4 A Segunda Fase do Modernismo Brasileiro e a Literatura
Regionalista
a bandeira se levanta
azul contra o céu anil
traz a marca e a esperança
do Nordeste do Brasil
Caetano Menezes Moreira
Esses versos do poeta popular Caetano Menezes Moreira
23
meio que
resumem a história do Nordeste brasileiro na década de 1930, principalmente no
que se refere à Literatura. Tal bandeira que se ergue, no poema, é a do
DNOCS
24
, mas pode perfeitamente ser compreendida como a da luta em defesa
de uma identidade nacional, que alguns intelectuais do país defenderam, a fim de
manter viva a tradição regional do nordeste do país, uma vez que tal período da
nossa história apresenta ao Brasil uma nova modalidade de Literatura, uma
maneira nova de fazer romance.
No ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, de 1950, Antônio Cândido
defende que a evolução da vida espiritual brasileira é conduzida pela dialética do
localismo e do cosmopolitismo ora tendendo para a afirmação nacional, ora
resignada à imitação de padrões europeus. Cândido (1967) refere-se, ainda, a um
"sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e largamente mestiçado,
desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com
23
O folheto de cordel onde se encontram tais versos não possui nenhuma referência de ano de
publicação e de editora.
24
DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. A bandeira da referida instituição
possui um desenho em forma de planta (vegetal) na cor azul-anil, sob um fundo branco.
79
uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes" (p. 132).
No que diz respeito ao campo literário, ele divide a literatura brasileira do
século XX em três etapas: a primeira inicia-se em 1900 e vai até 1922 e encena o
que ele denomina de período pós-romântico, caracterizado por uma literatura de
permanência - aquela que conserva e elabora elementos do Romantismo sem a
criação de novos incrementos - que compreende o período de 1880 a 1922. A
segunda etapa começa em 1922 e vai até 1945 e a terceira vai de 1945 até o
momento em que ele escreve, 1950. Cândido, ao se expressar sobre o
regionalismo em sua primeira etapa, sobretudo, ressalta que:
O regionalismo, desde o início do nosso romance constituiu uma
das principais vias de autodefinição da consciência local, com
José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay,
transforma-se agora no "conto sertanejo", que alcança voga
surpreendente. Gênero artificial e pretensioso, criando um
sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao
próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição
dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio
de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas.
Forneceu-lho o "conto sertanejo", que tratou o homem rural do
ângulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu
respeito idéias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social
quanto, sobretudo, estético. (CÂNDIDO, 136)
Para a segunda etapa do regionalismo brasileiro do século XX, Cândido diz
que surgir uma geração de explicadores do Brasil, que tende para o ensaio
uma vez que se tratava de "redefinir nossa cultura à luz de uma avaliação nova de
seus fatores" (CANDIDO, 147). Dentre os explicadores estariam Sérgio Buarque
de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado e, um pouco mais tarde, Caio Prado Jr.
80
Nesse período, a prosa de ficção, ainda na disposição de Cândido, se
reparte em duas vertentes: uma é a da projeção estética e ideológica e a outra a
da reação do espiritualismo. No que diz respeito à produção literária daquele
período (1930 a 1945), em relação à prosa, Cândido (1967) afirma:
A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no
conto, que vivem uma de suas quadras mais ricas. Romance
fortemente marcado de neo-naturalismo e de inspiração popular,
visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país:
decadência da aristocracia rural e formação do proletariado (José
Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge Amado e
Amando Fontes); cangaço, êxodo rural (José Américo de Almeida,
Rachael de Queiroz, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades
em rápida transformação (Érico Veríssimo). Nesse tipo de
romance, o mais característico do período e freqüentemente de
tendência radical, é marcante a preponderância do problema da
personagem ... (CÂNDIDO, 147)
Na citação acima, vemos que, para Candido, o regionalismo, presente
desde o início da nossa literatura, se dispõe em três momentos. No início mesmo
do nosso romance, há a configuração de um regionalismo romântico com José de
Alencar, Taunay e outros. De 1880 a 1922, numa fase de permanência chamada
também de Pós-romântica, surge o conto sertanejo como um gênero artificial e
pretensioso. Inúmeros estudos propõem o resgate de importantes obras desse
período, especialmente as de Valdomiro Silveira, Simão Lopes Neto e Herberto
Salles.
Ainda sobre esse assunto, Bosi (1994, p. 384) nos diz que:
81
As décadas de 30 e 40 vieram ensinar muitas coisas úteis aos
nossos intelectuais. Por exemplo, (...) que o peso da tradição não
se remove nem se abala com fórmulas mais ou menos anárquicas
nem com regressões literárias ao Inconsciente, mas pela vivência
sofrida e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais
e morais do grupo em que se vive. Essa compreensão viril dos
velhos e novos problemas estaria reservada aos escritores que
amadureceram depois de 30.
Fazendo uma crítica ao modo como os Modernistas de São Paulo viam “a
nova forma de se fazer arte”, uma arte bagunçada e fora dos padrões da época,
Alfredo Bosi, no trecho acima, mostra-nos que a modernidade literária é algo que
não ocorre repentinamente, como propunham os intelectuais do Sudeste do país,
mas algo que necessita de um amadurecimento de idéias, de um aprimoramento
crítico quanto às concepções; que precisa de uma maior vivência tanto com os
problemas sociais quanto com os textos escritos (antigos ou novos), sem,
contudo, deixar de lado a tradição. Essa vivência é mais experimentada e
praticada pelos escritores da década de 1930, sobretudo aqueles que integram o
grupo de escritores do Romance do Nordeste; os quais, nas palavras de Cândido
(2003) “é o romance por excelência”, pois representa a realidade viva através da
literatura, de modo que
se constrói como um complexo e plurivalente painel de
representação literária da região e da discussão que sobre ela é
travada, inaugurando, na ficção, uma vertente crítica que tem sido
referência obrigatória, daí em diante, para várias manifestações
artísticas sobre o Nordeste. (AMORIM, 1998, p. 7).
Mas, de fato, o que foi o movimento regionalista que compôs a segunda
82
fase do Modernismo brasileiro? Na verdade, ele foi mais uma maneira pela qual
os escritores do país buscaram criar uma identidade nacional que, de modo mais
consciente, refletia os anseios e as angústias sociais daquela época. Todavia,
essa busca por uma identidade nacional tem seu início bem anterior a esse
período.
A preocupação nacionalista no Brasil remonta à tradição regionalista
difundida no Romantismo, aflorada principalmente com os movimentos de
Independência do país. De para cá, tal tradição tem-se fortalecido e tem no
Indianismo a sua primeira referência, passando pelo Sertanismo, de José de
Alencar, o qual pode ser considerado, apesar de várias restrições, como o
princípio do regionalismo ficcional da pátria verde-amarela. Depois, tivemos no
Realismo
25
, mais um período de tendências de cunho nacionalistas com uma
estética predominante voltada à preocupação objetivista e documental no fazer
literário.
Em seguida, surgem, em 1922, as manifestações que desencadearam o
Modernismo no Brasil e, em 1928, com a publicação de A bagaceira, de José
Américo de Almeida, o Regionalismo Nordestino. Tais manifestações ocorreram,
principalmente, em Recife, onde Gilberto Freyre e outros entusiastas do
regionalismo nordestino fundaram, em 1924, o Centro Regionalista do Nordeste,
em Recife, fruto de acalorada campanha intelectual para a revitalização e
revalorização da cultura e das tradições regionais, que sofriam sérias ameaças de
sumirem devido às fortes mudanças (principalmente nos meios de movimentação
25
José Maurício Gomes de Almeida, em seu livro de crítica literária A tradição regionalista no
romance brasileiro: 1857-1945, chama de Realismo o período que vai de 1880 a 1920, incluindo
nesse intervalo as tendências parnasianas, simbolistas e impressionistas.
83
da economia local) que passava o nordeste do país.
Com o ideário de unificação da economia e da cultura da região (inserem-
se aí a organização do ensino, a tradição nordestina, o desenho arquitetônico das
vilas e cidades, as festas, jogos e brincadeiras locais) o Centro Regionalista do
Nordeste realiza um dos mais importantes eventos da época: o Congresso
Regionalista do Nordeste, o qual, divergindo do ideário modernista dos paulistas
(nova ordem estética na arte e, principalmente na Literatura), visava discutir
sobretudo os aspectos socioeconômicos e antropológicos e foi liderado pelo
sociólogo Gilberto Freyre, o qual, em 1923, quando voltava ao Brasil depois de
seis anos de estudo na Europa, logo criou e cativou a amizade de JoLins do
Rêgo, na época, um jornalista de oposição quase panfletário, mas dono de uma
prosa brilhante
Em 1925, Gilberto Freyre levanta uma publicação de comemoração ao
primeiro centenário do Diário de Pernambuco na qual pede a colaboração de
artistas de diversas áreas. Surge o Livro do nordeste abordando os mais distintos
aspectos da vida nordestina daqueles últimos cem anos (1925-1925). A seca, a
medicina, a vida musical, teatral, literária e plástica bem como a vida política e
econômica. A vida do estudante, das cozinheiras, das festas, das janelas do
Recife e de Olinda, o jornalismo, entre vários outros assuntos, os quais encontram
ali seu espaço. Gilberto Freyre publica três artigos: um sobre a pintura, outro
sobre a cultura da cana e outro sobre a vida social no Nordeste. Manuel Bandeira
publica pela primeira vez, a pedido de Freyre, “Evocação de Recife”.
José Lins do Rego, por sua vez, foi um dos criadores do semanário Dom
84
Casmurro, no qual veiculou voz contrária às idéias paulistas. Na mesma linha,
Gilberto Freyre publica no Diário de Pernambuco a partir de 22 de abril de 1923,
artigos numerados que chagariam a cem nos quais denuncia o impulso futurista
de que paira sobre os paulistas.
Esse empenho de caracterização da região a partir da vivência expõe o
lado de admiração pela figura humana que movia o pensamento de Freyre
naquela época e que o perseguiu em trabalhos subsequentes.
O Modernismo em desenvolvimento em São Paulo disputa com o que seria
denominado de Regionalismo Nordestino: a hegemonia no campo literário na
década de 1930. Nessa querela, o programa paulista apresenta grande força e
facilmente ganha o poder de penetração nacional, que outras regiões literárias
se definiram mais em conformidade com as propostas paulistas do que com as
dos nordestinos.
José Aderaldo Castello faz uma leitura de Gilberto Freyre e de José Lins do
Rêgo e vê, para além dessa disputa superficial, o sentido do modernismo
profundo, que ambas as tendências desfrutam, uma vez que montam um
processo de revisão temática e renovação estilística, a partir de sugestões
tomadas a escritores da era colonial, desde cronistas do século XVI, até a
observação direta da linguagem oral contemporânea”. (CASTELLO: 1961, p.16).
Nesse estudo, Castello apresenta-nos uma outra leitura do Regionalismo.
Leitura que o aproxima do Modernismo principalmente no caráter que ambos os
movimentos tiveram de renovação estilística como proposta reativa ao
85
academicismo imperante na Literatura brasileira do início do século XX. Para ele,
o modernismo dos paulistas (ou do Sul) e o movimento regionalista nordestino,
grosso modo, discrepam num momento inicial, principalmente, devido ao intenso
veeiro futurista de aniquilamento do passado fanfarreado pelos paulistas e
largamente refutado pelos nordestinos. O que seria uma discussão pontual cresce
para uma disputa calorosa que revolvia a superfície de um discurso que semeava
a revisão temática e a renovação estilística.
A crítica paulista define a questão dessa disputa a partir de uma explicação
de base política e econômica resumida na seguinte oposição de forças: a
decadência do açúcar versus a expansão cafeeira. Mais que uma disputa literária,
o que estava por trás de tal divergência era a tentativa de redefinir o poderio
econômico do país, uma vez que, no Nordeste, estava acontecendo o declínio
econômico da cana de açúcar, ocorrida, principalmente depois da difusão da
beterraba como fonte alternativa de produção de açúcar e posterior implantação
da cultura pelos países consumidores de açúcar do Brasil. Em contrapartida, no
Sudeste
26
do país, sobretudo no Vale do Paraíba, acontece a ascensão da
produção e exportação do café, tornando aquela região o centro econômico do
país.
As argumentações de Maria Arminda do Nascimento Arruda e de Neroaldo
Pontes de Azevedo, voltam-se para a ideia de que o regionalismo nordestino
defende a tradição porque é nela que está localizada sua hegemonia, naquele
momento perdida para os paulistas. Então, como numa tentativa de resgate desse
26
Vale ressaltar que antes da seca de 1877, o Brasil era politicamente dividido entre Norte e Sul.
A denominação Nordeste ocorre para especificar, sobretudo, a região do norte do país que sofria
as intempéries da natureza (a escassez de alimentos provocada pela ausência das chuvas).
86
passado de glórias e por uma necessidade de conservação, o grupo nordestino
apela para o passado ao passo que o grupo modernista, num primeiro momento
futurista, apresenta um caráter destruidor desse passado. Azevedo cita uma frase
de Prudente de Moraes Neto que define bem as idéias paulistas nesse momento:
Basta não ser tradicional para ser ótimo”.
José Lins do Rêgo e Gilberto Freyre lutam nos jornais contra a propaganda
modernista feita por Joaquim Inojosa, divulgador das idéias paulistas em
Pernambuco. Nessas disputas, muito bem contadas por Neroaldo Pontes de
Azevêdo, o grupo nordestino se apega ao conceito de nacionalidade, pois, vê nos
modernistas do sul um apego a idéias e valores importados. Aprofunda-se, então,
a disputa entre passadistas (tradicionalistas) e futuristas (modernistas).
Ainda sob esse cenário de richas ideológicas, Almeida (1999), sobre os
defensores do regionalismo nordestino afirma:
um nítido cunho ufanista, ainda quando se constata o estado
precário da conjuntura socioeconômica local. A tendência ao
pitoresco, ao folclórico, apresenta-se indisfarçável. O drama da
cultura regional ameaçada parece sensibilizar mais os intelectuais
e artistas do que o drama social do homem.
porém que se considerar esse entranhado tradicionalismo à
luz do contexto socioeconômico em que surgiu a decadência da
lavoura canavieira e da sociedade agrário-patriarcal que se
constituíra à sua sombra. (ALMEIDA, 1999, p. 201)
O que se é que havia também, além da disputa entre sulistas e
nortistas, uma disputa interna, uma vez que o próprio Nordeste se via dividido em
87
dois grupos polítco-econômico-ideológicos: um, o açucareiro, do litoral, pairava
sobre o espaço mais progressista, principalmente com a implantação das usinas
na zona canavieira, outro, inserido mais no sertão nordestino, atrelava-se mais ao
tradicionalismo patriarcal e era voltado à criação de gado e produção algodoeira.
Esses ambientes de vivência eram refletidos nas obras dos regionalistas. A esse
respeito, em um estudo acerca da representação espaço regional e da cultura
ideológica do nordeste, Sônia cia Ramalho de Farias, inspirada nos estudos de
Rosa Maria Godoy Silveira e outros autores, acerca do regionalismo, afirma que o
projeto literário que, alicerçado por etapas conjunturais históricas e estéticas
distintas, guardam, no entanto, uma característica comum: o resgate da tradição
cultural do Nordeste, erigido em símbolo identitário dos valores nacionais”
(FARIAS: 2006, p. 47).
Em sua tese, defendida em 1998, o professor José Edilson de Amorim,
orientado pelos estudos de Sônia Lúcia Ramalho de Farias e de vários outros
pesquisadores sobre a temática, desenvolve uma pesquisa que procura
compreender a tradição regionalista na literatura brasileira, sobretudo no que se
refere à tradição regional nordestina, focada sob uma perspectiva de (re)
elaboração da tradição e da experiência histórica nordestina, afirma que os anos
30 significam um esforço enorme em busca da centralização do poder político
nacional, intenção republicana sempre entravada por seu compromisso com as
oligarquias locais” (AMORIM, 1998, p. 9)
Desse modo, o regionalismo conceito de romance de temática
geralmente rural, que acabou por generalizar todas as narrativas produzidas entre
88
os anos de 1930 e 1970, por escritores oriundos de famílias oligárquicas e/ou
decadentes, com uma visão de mundo crítica (que muitas vezes escamoteia o
intuito de manter os laços com a tradição patriarcal e com a hegemonia sócio-
política) - vem marcar um novo modo de escrever romances. Modalidade essa
que visa à denúncia das desigualdades sociais. Para tanto, tal escrita traz sempre
a verossimilhança nas obras, retratando a realidade e os seus elementos
históricos, sociais e culturais. Assim:
A tendência à literatura social, combinada com a descentralização
cultural, vai dar lugar ao aparecimento de formas artísticas
regionalistas, com especial destaque, como dissemos, ao
Nordeste, aonde o fenômeno vinha sendo preparado teoricamente
desde a década anterior (quando se manifesta bastante nítido
na poesia).
(...)
Se partirmos da noção anteriormente exposta de que „para ser
regional uma obra de arte não somente tem que ser localizada
numa região; senão também deve retirar sua substância real
desse local‟, vemos que a aplicação de regionalista aplicada a
toda produção ficcional dos anos 30 não procede. (ALMEIDA,
1999, p. 205)
Um ponto interessante colocado nessa citação de Almeida é quanto às
tendências da produção literária do regionalismo. Não basta a obra ser escrita no
Nordeste para ela ser considerada uma produção regionalista. Para que um
romance possa se inserir em tal modalidade literária ele tem que possuir uma
convergência sociológica em seu conteúdo, apresentando tais textos, além de
temática social, peculiaridades como: linguagem despojada e mais voltada aos
aspectos orais, caráter de denúncia e exposição social e a descrição das
89
personagens possuem geralmente associação ao telúrico e à ambiência, uma vez
que, para os escritores da época o homem é um reflexo da sociedade na qual ele
está inserido.
Além disso, a linearidade narrativa, a tipificação social e a criação de um
mundo ficcional (ou não) que traga a idéia de abrangência e totalidade, além da
impregnação de coloquialismos, estilo direto e concisão verbal, criando um efeito
de simplicidade para seduzir o leitor, caracterizam sobremaneira o “Romance do
Nordeste”, aquele que retrata, pela literatura, a realidade viva do espaço
nordestino num tempo de adversidades.
Assim, os escritores daquela geração da prosa modernista, de vertente
regionalista, preocuparam-se mais com o questionamento direto da realidade do
que com a renovação da linguagem, embora o uso de termos da oralidade, a
utilização de frases curtas e o uso de expressões coloquiais sejam bem
presentes. Nesse casso, o romance social torna-se a forma dominante das
narrativas daquela época, compondo, desse modo, o perfil estético do período.
Ademais, com o romance regionalista de 30, mesmo com todas as
discordâncias inicialmente travadas entre nordestinos e paulistas, o Nordeste
assume um primeiro plano no cenário literário e ganha a aceitação do público e
da crítica, graças a sua fecundidade e qualidade de conceber o texto literário
como uma maneira de se buscar compreender o contexto sociocultural no qual tal
texto está fincado.
É nesse período dos Romances do Nordeste que desponta no panorama
90
literário a escritora sousense Ignez Mariz, com o seu romance A Barragem, o qual
conta a saga da construção do açude de São Gonçalo, cinco anos antes da
publicação. Obra que, segundo Evandro Nóbrega, muitos colocam ao lado de „O
Boqueirão‟ (1935), de José Américo, em que Fábio Lucas viu „pendor reacionário‟,
expressão que não aplicaria ao livro de Ignez Mariz se o tivesse conhecido”.
Diante disso, nosso intuito nesse estudo é mostrar a representação social
do romance A Barragem; para isso, utilizaremos apenas alguns temas presentes
na obra, mas que são capazes de expressar essa representação. Dentre eles
destacamos: espaço; tempo; sujeitos sociais; política/economia; a religiosidade e
a educação. Utilizaremos também algumas fotografias para ilustrar a nossa
discussão e melhor fixar a interpretação a respeito de nosso intento.
91
CAPÍTULO III
3. A REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM A BARRAGEM: OS PRETÉRITOS DE UM
LUGAR NAS PÁGINAS DO PENSAMENTO DE UMA MULHER
É comum ouvirmos a expressão de que o indivíduo é um produto do meio.
No entanto, ele não é produto, mas principalmente produtor desse mesmo
meio. Assim, percebemos que, além de receber influências do ambiente no qual
está inserido, o sujeito também influencia esse mesmo espaço, seja ele físico ou
social. Dessa forma, faz com que situemos esse sujeito num determinado
quadrante espacial (meio geofísico, psico-sócio-cultural) e o encaixe numa dada
margem temporal. Esses dois aspectos, espaço e tempo, são referências no
âmbito das Ciências Humanas.
Na Literatura, por sua vez, espaço e tempo são fundamentais para que
uma narrativa (principalmente um romance) possa ter o desenrolar de sua ação,
especialmente porque eles refletem, de certo modo, a identidade dos
personagens e a cultura na qual os mesmos estejam inseridos.
Esses dois elementos m bom destaque no romance A Barragem, de
Ignez Mariz, pois marcam as ações dos personagens e as relações dos mesmos
com o espaço, mostrando aspectos relevantes da identidade sertaneja, sobretudo
quanto à representatividade social do lugar.
92
Euclides da Cunha dizia que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
Ignez Mariz, mulher sertaneja, vem, em seu romance A Barragem, reafirmar essa
declaração de Euclides da Cunha, quando ela descreve a força de vontade, a luta
diária dos cassacos
27
na batalha pela sobrevivência.
Para mostrar como era aquela realidade, a autora marca, em seu texto,
mediante a ação dos personagens, detalhes minuciosos da construção de mais
um açude na década de 1930, no sertão paraibano. Desse modo, ao lermos o
romance de Ignez Mariz, estaremos diante de uma narrativa onisciente que
concede, controlando, fala aos personagens, que muitas falas, mesmo estando
em terceira pessoa, são dos personagens, numa perspectiva, porém, do narrador.
O romance da escritora sousense se passa na década de 1930 e foi
publicado, de fato, naquela mesma década, mais precisamente em 1937. Período
em que a Literatura do século XX procura ser um aprimoramento, uma construção
amadurecida das atitudes e dos ideais de renovação literária e de nacionalismo
bradados no século XIX como uma Literatura insigne brasileira. Constitui, como
afirmara Ivan Bichara, no prefácio do romance em questão, o grito de guerra, da
renovação, implantando a fase „contra‟, iconoclasta, destruidora de valores
estabelecidos por idéias que já tinham dado seus últimos frutos”.
Poderíamos até dizer que, na composição inicial da narrativa, pensa-se
27
Cassaco denominação dada aos trabalhadores braçais na época da construção dos açudes,
no Nordeste. A mais ínfima das categorias de trabalhadores do Governo. Como os serviços de
Estradas e de Barragens se efetuavam, quase sempre, distante das moradias habituais, os
trabalhadores venciam a léguas e léguas a fim de alcançá-los. Nas macas que fim de alcançá-
los. Nas macas que levavam a tiracolo eles conduzem, não só o alimento (ou o “de comer”), como
também os filhos pequenos. Por isso a metáfora relacionada ao animal semelhante a um gambá
característico de nossas matas.
93
num lugar (espaço), o qual interfere nas ações dos personagens, os quais, num
espaço de tempo (cronológico ou psicológico) acabam provocando modificações
(reais ou imaginárias) nesse mesmo espaço inicial, o qual ao final da história
não semais o mesmo por completo. Isso ocorre devido ao fato de que o agir
dos personagens, às vezes vinculado a questões temporais e às vezes, espaciais,
acabam sofrendo determinadas influências e também influenciando a sociedade
em que vivem.
Quando falamos em sociedade, uma gama de conceituações paira sobre
nossas ideias. Quando buscamos entender o conceito de representação,
percebemos que tal termo possui uma infinidade de possibilidades de acepções e
ainda que a representação social cambia por entre várias áreas da ciência,
principalmente das ciências sociais. Mas, de fato, o que vem a ser uma
representação social? Essa resposta procuraremos trazer no decorrer desse
capítulo. Nosso olhar, aqui, voltar-se-á para uma sociedade específica: São
Gonçalo, no interior da Paraíba. Além disso, esse mesmo olhar será reflexo de
um outro, o da escritora sousense Ignez Mariz através do romance A Barragem.
Como aporte teórico, nossa discussão terá os estudos de Arruda (2002); Bourdieu
(1983); Jodelet (2002) e Moscovici (1961 e 1979), Ortiz (1994); Setton (2002).
94
3. 1 - Representação social: informações conceituais preliminares
A noção de representação social aparece como sendo um reflexo da
relação dialética sociedade-indivíduo-sociedade, ou seja, a sociedade acaba
refletindo sobre o (e sendo reflexo do) modo como os sujeitos sociais (grupos ou
indivíduos) constroem seus conhecimentos e moldam suas ações mediante seus
registros sociais, culturais, entre outros; e também como essa mesma sociedade
se abre à captação das impressões dos sujeitos e como ela se constrói e se
adapta a partir da interação com os indivíduos. Desse modo, a representação
social é o resultado de como os sujeitos e a sociedade interagem para
construírem a realidade.
Partindo do ponto de que várias formas de se conhecer e de se
comunicar conduzidas por objetivos diferentes, as quais duas delas são
aprofundadas na nossa sociedade: a consensual (baseada no senso comum e
constituída na nossa vida cotidiana e na conversação informal) e a reificada ou
científica (cristalizada no entremeio científico e na sua hierarquia interna)
28
chegamos à Teoria das Representações Sociais (TRS), que processa um
conceito prático para trabalhar o pensamento social em sua dinâmica e em sua
diversidade, que a representação social é uma das formas de conhecimento e
28
Angela Arruda, no seu texto “Teoria das representações sociais e teorias de gênero”, apresenta-
nos um quadro explicativo da diferença entre essas duas formas de conhecimento e comunicação
e mostra que nos universos consensuais, a sociedade é formada por “amadores”, curiosos e a
aquisição do conhecimento se através da conversação, cumplicidade, impressão de igualdade
dos pares, de opção e afiliação aos grupos. Enquanto que nos universos reificados a sociedade é
formada por especialistas, onde a aquisição do conhecimento varia conforme a especialidade, a
qual ocorre por áreas de competência dos participantes, implicando, assim, o grau de participação
dos indivíduos nos grupos, de acordo com suas normas específicas moldadas pelo discurso e
comportamento dos sujeitos sociais.
95
comunicação móveis baseada no domínio consensual, embora necessite do
científico para ganhar mais respaldo.
No campo científico, a representação social foi teorizada por Serge
Moscovici (1961) em sua obra germinal A Psicanálise, a sua imagem, o seu
público (Título original: La Psychanalyse, son image, son public); e depois
aprofundada por Denise Jodelet. Para elaborar tal teoria, Moscovici (1961)
recorre, inicialmente, ao conceito das representações coletivas de Durkheim, que
as via como uma extensão das representações individuais, consistindo
basicamente, num “grande guarda-chuva” que abrigava crenças, mitos, imagens,
o idioma, o direito, a religião, as tradições.
Percebendo tal conceito durkheimiano como incompleto, Moscovici busca
aprimorá-lo e suprir as lacunas existentes, numa tentativa de atualizá-lo para a
aplicação (operacionalização) nas sociedades contemporâneas. A essa
atualização operacional do conceito, ele denominou de saber prático. Para tanto,
o mesmo apóia-se em estudos a respeito da construção do saber e do valor do
saber prático de outros teóricos, a saber: Piaget, Lévy-Bruhl e Freud.
Moscovici (1961) procura entender como se estrutura e se configura o
saber, o qual, para Piaget (através de seus estudos sobre o desenvolvimento do
pensamento infantil), o mesmo se por imagens e corte/colagem, ou seja, a
criança junta fragmentos do que conhece e elabora uma configuração do que
ela desconhece. Lévy-Bruhl (pesquisando o pensamento místico em povos
distantes) traz o princípio de participação como uma das formas de se pensar o
mundo. Freud, por sua vez, baseado nas teorias sexuais das crianças, as quais
96
elaboram e internalizam seus próprios conceitos e carregam marcas sociais de
sua origem.
Diante dos fundamentos sobre o saber prático desses três estudiosos, o
autor de La Psychanalyse, son image, son public sistematiza-os empregando dois
processos: a objetivação e a ancoragem.
O processo de objetivação consiste em selecionar e descontextualizar o
objeto do que será representado, enxugando o excesso de informações para
melhor averiguação. Depois, efetuam-se cortes do conjunto de informações,
baseados no conhecimento prévio, nas experiências e nos valores do sujeito
pesquisador acerca do objeto pesquisado. Em seguida, procede-se à
reconstrução dos fragmentos e cria-se um tipo de cleo figurativo da
representação, ou um aspecto imagético, como coloca Jodelet (2002),
constituindo assim, o cerne da representação.
O processo de ancoragem é o que vai dar sentido ao objeto que se
apresenta à nossa compreensão. Quando o objeto é a própria sociedade, esse
processo ocorre por meio de como o conhecimento se finca no social e a ele
próprio se volta. Assim, o sujeito (ou a coletividade) age recorrendo ao que lhe é
familiar para fazer certo tipo de, digamos, convertimento da novidade.
Diante disso, Moscovici entende que:
O processo social no conjunto é um processo de familiarização
pelo qual os objetos e os indivíduos vêm a ser compreendidos e
distinguidos na base de modelos ou encontros anteriores. A
97
predominância do passado sobre o presente, da resposta sobre o
estímulo, da imagem sobre a realidade” tem como única razão
fazer com que ninguém ache nada de novo sob o sol. A
familiaridade constitui ao mesmo tempo um estado das relações
no grupo e uma norma de julgamento de tudo o que acontece.
(1961, p. 26)
Além disso, ele acrescenta que “... a representação social é um corpus
organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os
homens tornam a realidade física e social inteligível, se inserem num grupo ou
numa relação cotidiana de trocas, liberam o poder da imaginação”. (MOSCOVICI,
1961, p. 27-28).
Ao abordar a aquisição do conhecimento prático, Pierre Bourdieu (Cf.
ORTIZ: 1994) elenca três modos, os quais o indispensáveis ao entendimento
da representação social, principalmente no que concerne à questão da relação
sócio-histórico-cultural, a saber:
1) o conhecimento fenomenológico - que é descrição da essência ou
gênese das “coisas”, é a experiência primeira do mundo social, isto é, a
relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do mundo
social como mundo natural. Esse modo de aquisição do saber prático
pode ser compreendido da mesma forma que se entende o saber
consensual (explicados acima), baseado no senso comum das coisas;
2) o conhecimento objetivista no qual ocorre a construção de relações
objetivas que estruturam as práticas e as representações sociais. Além
disso, há, nesse tipo, uma ruptura com conhecimento primeiro que
98
confere ao mundo social seu caráter de evidência e de natural.
Ortiz explica que a análise objetivista se opõe à análise fenomenológica da
experiência primeira do mundo social e da compreensão imediata das palavras e
dos atos do outro: ela somente define seus limites de validade que a análise
fenomenológica ignora, estabelecendo as condições particulares nas quais ela é
possível”
29
. Mas o conhecimento completo das condições da ciência, isto é, das
operações pelas quais a ciência se o domínio simbólico de uma língua, de um
mito ou de um rito, implica o conhecimento da compreensão primeira enquanto
execução das mesmas operações, mas de modo inteiramente outro: na
inconsciência absoluta das condições gerais e particulares que lhe conferem sua
particularidade
30
.
3) o conhecimento praxiológico é o conhecimento prático em si. Ele não
anula as aquisições do conhecimento objetivista, mas as conserva e as
ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve que excluir para
obtê-las.
Assim, se nos pusermos a estudar indivíduos humanos num meio
determinado, poderemos observar suas condutas, inclusive, naturalmente, suas
palavras e os produtos materiais de suas ações passadas. É essa observação
direta que nos revela que esses seres humanos estão ligados por uma rede
complexa de relações sociais
31
dotadas de uma existência efetiva.
Desse modo, as estruturas sociais formadas de um tipo particular de meio,
29
Cf,. ORTIZ: 1994: p. 51.
30
IDEM: ibdem.
31
Ortiz (1994) chama essa rede complexa de relações sociais de „estrutura social'.
99
apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio
socialmente estruturado, produzem habitus - entendido aqui como um sistema de
disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências
passadas, funciona, a cada momento, como uma matriz de percepções, de
apreciações e de ações - e torna possível a realização de tarefas infinitamente
diferenciadas: as práticas, que são o produto da relação dialética entre uma
situação e um habitus.
Num estudo mais recente sobre as representações sociais, Setton (2002)
indaga sobre como apreender a especificidade do modelo de socialização na
atualidade e como compreender a particularidade do processo de construção das
identidades a partir das mudanças estruturais e institucionais das agências
tradicionais da socialização. Para responder a essas indagações, a autora recorre
à teoria do habitus, de Bourdieu
32
, o qual é um instrumento conceptual que auxilia
pensar a relação e a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores e a
subjetividade dos sujeitos. Em outras palavras, a noção de habitus auxilia a
pensar as características de uma identidade social, de uma experiência
biográfica, um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente.
Setton (2002) nos mostra, ainda, que há uma nova configuração cultural,
em que o processo de construção dos habitus individuais passa a ser mediado
32
Bourdieu entende por habitus uma gama muito variada de categorias do pensamento, fluida e
imperceptível, mas capaz de dar coerência às ações dos indivíduos, aplicada em situações
particulares com uma certa dose de invenção e criatividade, ou seja, sua plasticidade frente a
novos condicionamentos. O habitus enfatiza as experiências passadas dos indivíduos funcionando
como matriz de percepções, produto de trajetórias anteriores. Surge então como um conceito
capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais, capaz
de expressar o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo
das individualidades.
100
pela coexistência de distintas instâncias produtoras de valores culturais e
referências identitárias. Essas instâncias socializadoras, que coexistem numa
intensa relação de interdependência são: a família, a escola e a mídia, as quais
configuram, hoje, uma forma permanente e dinâmica de relação, onde o processo
de socialização das formações modernas pode ser considerado um espaço plural
de múltiplas relações sociais.
Então, no cerne das representações sociais, a relação de interdependência
entre o conceito de habitus e de campo
33
(um espaço de relações entre grupos
com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder) é
condição para seu pleno entendimento. Destarte, a teoria praxiológica, ao fugir
dos determinismos das práticas, pressupõe uma relação dialética entre sujeito e
sociedade, uma relação de mão dupla entre habitus individual e a estrutura de um
campo, socialmente determinado.
Segundo esse ponto de vista, as ações, comportamentos, escolhas ou
aspirações individuais não derivam de cálculos ou planejamentos, são antes
produtos da relação entre um habitus e as pressões e estímulos de uma
conjuntura.
Outras duas concepções muito importantes para o melhor entendimento da
teoria do habitus, atrelado à representação social, são a de illusio e estratégia. A
primeira, também conhecida como interesse, é aqui entendida como uma
motivação inerente a todo indivíduo dotado de um habitus e em determinado
campo e que, através dos investimentos indissoluvelmente econômicos e
33
Segundo Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de
relativa autonomia, mas regidos por regras próprias.
101
psicológicos que eles suscitam entre os agentes dotados de um determinado
habitus. O campo é aquilo que está em jogo nele, produzem investimentos de
tempo, de dinheiro, de trabalho etc. Portanto, todo campo, enquanto produto
histórico, gera o interesse, que é condição de seu funcionamento.
a segunda noção, a de estratégia, que também pode ser entendida
como conjuntura, ou seja, um encontro entre um habitus e um campo. Nesse
caso, as estratégias surgem como ações práticas inspiradas pelos estímulos de
uma determinada situação histórica. São inconscientes, pois tendem a se ajustar
como um sentido prático às necessidades impostas por uma configuração social
específica.
Conforme nos coloca Setton (2002), inspirada em Bourdieu, habitus não
pode ser interpretado apenas como sinônimo de uma memória sedimentada e
imutável; é também um sistema de disposição construído continuamente, aberto e
constantemente sujeito a novas experiências. Pode ser visto como um estoque de
disposições incorporadas, mas postas em prática a partir de estímulos
conjunturais de um campo.
Assim, percebemos que a representação social acaba realizando, na
verdade, uma alteração do sujeito e do objeto na medida em que ambos são
transformados no processo de modificar o objeto. E, conforme o colocado nas
citações acima, a representação acaba sendo um processo de reflexo social,
que a mesma o é cópia da realidade, nem uma instância intermediária que
transporta o objeto para perto/dentro do nosso espaço cognitivo”, como coloca
Arruda (2002, p.137). Além disso, ela é um processo que torna conceito e
102
percepção equivalentes, que entre eles ocorre um engendramento conceptivo
mútuo.
Seguindo esse mesmo raciocínio, Jodelet (2002, p. 22) coloca que As
representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e
compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma
realidade comum a um conjunto social”. Acrescenta ainda que, para estudá-las,
necessita que se articulem elementos afetivos, mentais e sociais, unificando, ao
lado das representações sociais que afetam as representações e a realidade
material, social e das idéias (ideal) e, a essas, integrem a cognição, a linguagem e
a comunicação para qual elas vão intervir.
Diante do que foi explicado, entendemos que a representação social acaba
sendo uma forma de conhecimento sociocêntrico, que segue as necessidades e
os interesses do grupo, estruturado-se num imo de significações, saberes e
informações. Desse modo, como toda representação é a representação de algo
(no nosso caso, de uma sociedade) ou de alguém (um sujeito social), imergidos
em condições peculiares de seu tempo e espaço, deve-se considerar a cultura (no
seu aspecto restrito e amplo), a comunicação e linguagem (dentro, fora, entre
grupos, ou de massa), e a inserção socioeconômica, institucional, ideológica e
educacional para se compreender a representação social.
Ademais, não podemos esquecer que o habitus busca recuperar a noção
ativa dos sujeitos como produtos (e mantedores) da história de todo campo social
e de experiências acumuladas no curso de uma trajetória individual. Igualmente
falando, o habitus é também adaptação; ele realiza sem cessar um ajustamento
103
ao mundo que excepcionalmente assume a forma de uma conversão radical,
ou seja, intenta romper com as interpretações unidimensionais.
Por isso, o habitus do indivíduo moderno é tecido pela interação de
distintos ambientes, em uma configuração longe de oferecer padrões de conduta
fechados. Assim, abre-se a possibilidade de pensar o surgimento de um outro
sujeito social, abre-se espaço para se pensar a constituição da identidade social
do indivíduo moderno a partir de um habitus híbrido, construído não apenas como
expressão de um sentido prático incorporado e posto em prática de maneira
“automática”, mas uma memória em ação e construção.
Por fim, percebemos que a representação social não desassocia o sujeito
34
do seu contexto e do seu habitus; havendo, ainda, um retorno dessa associação,
num processo intercambiável, entre as partes em questão, do saber consensual e
reificado.
Após essa exposição teórica sobre representação social e habitus,
analisaremos, a seguir, como estão presentes em A Barragem tais
representações e como a autora as expõe. Como objeto de estudo e análise,
faremos um recorte de cinco itens: espaço, tempo, religiosidade, sujeitos sociais,
política/economia local e educação. Vale ressaltar que, intercambiando esses
itens, teremos formas de representação social de São Gonçalo, da década de
1930 que são refletidas nos elementos estruturais do romance regionalista em
estudo.
34
Sujeito, aqui sempre entendido como “sujeito social”, que influencia e sofre influências do espaço
e do contexto onde está inserido.
104
3.2 São Gonçalo: entremeio espacial do romance
Em A Barragem, o espaço adquire um aspecto muito importante. Podemos
demarcar vários espaços dentro o romance. Inicialmente, teremos a própria
localização geográfica onde se passa a história, ou seja, o alto-sertão paraibano,
a dezoito quilômetros a cidade de Sousa. Um local de planície, que possui como
um dos limites (ao Sul), a Serra de Santa Catarina e é cortado pelo Rio Piranhas,
um dos mais importantes rios paraibanos, como bem coloca Seixas (1972):
Na vertente ocidental do Estado, em pleno território do sertão,
temos a grande bacia do Piranhas, que constitui o segundo
sistema hidrográfico da Paraíba.
O Piranhas nasce na serra do Bongá, no município de S. José de
Piranhas, cuja serra divide a Paraíba e o Ceará.
(...)
Ao passo que o Paraíba corre de sul a leste, o Piranhas corre de
oeste a norte até as proximidades da Serra de Santa Catarina, em
Souza. Depois corre para o noroeste e entra no Rio Grande do
Norte, onde deságua na cidade de Macáu, no Oceano Atlântico.
É um dos rios importantes de Estado pela sua situação
topográfica e fertilidade das margens. É grandemente picoroso, e
também se presta muito às chamadas vazentes, quando passa a
época invernosa
35
.
É nesse espaço que ocorrerem as obras de construção do açude de São
Gonçalo. E será esse mesmo espaço que servirá de cenário para o romance de
Ignez Mariz.
35
Cf. SEXIAS: 1972, p. 39-41
105
O Perímetro Irrigado de São Gonçalo, pseudo-administrado pelo DNOCS,
atualmente, é um complexo com ultrapassada infra-estrutura de irrigação e
assentamento de colonos, num total de 500 trabalhadores chefes de famílias,
instalados em 518 lotes em operação.
Sua estrutura física é composta pela sede do Acampamento, onde está
localizada a administração do DNOCS e uma área urbana com 2000 habitantes.
Além disso, possui três agrovilas, que mesclam núcleo urbano e área de plantio,
assim distribuídas: Núcleo Habitacional I, com uma população média de 1500
habitantes; Núcleo Habitacional II, 2500 habitantes e Núcleo Habitacional III, com
uma população de 2100 habitantes. Perfazendo um total de 8100 moradores
36
.
Ilustração 2: Vista parcial do açude de São Gonçalo. Ao centro, vemos riscos brancos na vertical,
que são canaletas de escoamento de água, feitas na barragem.
Foto de Juliano Moreira (arquivo pessoal de Isaias Ehrich): 25.03.2007
36
Dados fornecidos pelo DNOCS e JUSG (Junta de Usuários de água de São Gonçalo).
106
Na época de construção e inauguração do PISG (Perímetro Irrigado de São
Gonçalo), mais precisamente na década de 1930, o modelo de produção agrícola,
baseada na irrigação por gravidade, via canais era o que se tinha de mais
moderno no país. Seu território, composto de 5.290 hectares (ha), tem uma área
de 3212 ha de superfície utilizada (área irrigada: 2412 ha; área de sequeiro: 800
ha
37
). A maioria das edificações foram erguidas ainda no período de construção
da barragem.
O açude de São Gonçalo, que possui capacidade total de 44, 66 milhões
de m3 de água, abastece todo o Perímetro Irrigado (sede e núcleos
habitacionais). Além disso, supre o abastecimento de água das cidades de Sousa,
Marizópolis e vários sítios que compõem o perímetro rural de Sousa.
Ilustração 3: Foto de satélite mostrando todo o açude de São Gonçalo (parte escura à esquerda e
o Perímetro Irrigado de São Gonçalo sede (parte mais esverdeada).
Fonte: Google earth, outubro de 2007.
37
Na literatura agrícola, área irrigada é aquela utilizada para o plantio de culturas em qualquer
época do ano, uma vez que a aguação das plantes se dará através de um determinado sistema de
irrigação (inundação, localizada por aspersão, micro-aspersão, gotejamento ou outros); área de
sequeiro é aquela em que a agricultura é desenvolvida apenas em épocas de chuvas, pois não há
sistemas de irrigação. Esse tipo de área era muito utilizado no nordeste principalmente no período
áureo da cunicultura, mas também servia de território para a agricultura familiar de subsistência.
107
Ilustração 4: Foto de satélite mostrando um pouco do espaço do acampamento: acima, à
esquerda, temos parte do rio Piranhas que corta a localidade; Na primeira avenida, da esquerda
para a direita (parte inferior da foto) temos a Rua 16.
Fonte: Google earth, outubro de 2007.
Agora que conhecemos um pouco do espaço físico de São Gonçalo,
vamos percorrer o território das páginas de A Barragem, onde os espaços físicos,
psicológicos e sociais transitam por entre as veredas da mente da autora, entre os
caminhos abertos pelas letras e cenas do romance e entre as interpretações dos
leitores.
108
3.2.1 O Espaço no âmbito literário
Na Literatura, o espaço é o lugar onde os acontecimentos ocorrem
(sobretudo no romance, que se caracteriza pela pluralidade geográfica) para
costurar a trama e as ações das personagens. O romancista tem a capacidade de
se apossar da geografia em que se desenvolve a história que conta de maneira
tal, que pode fazer com que as personagens se desloquem livremente dentro da
narrativa ou fiquem estagnadas num mesmo local por toda a história.
É o espaço o elemento responsável para situar o leitor ao ambiente da
história narrada. Ele está intimamente ligado às demais partes da narrativa sendo,
um articulador de sentidos e de ação das personagens, uma vez que
o romancista fornece sempre um número mínimo de indicações
geográficas, sejam elas simples pontos de referência para lançar
a imaginação do leitor ou exploração metódicas dos locais [...] o
espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste de
sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra.
(REUNTER, 1995:130, 131).
Antes de prosseguirmos, porém, é bom que se esclareça a própria acepção
de espaço no âmbito literário, o qual pode ser entendido de três formas diferentes:
1) o espaço físico: mais relacionado ao ambiente natural, físico, ou seja, as
paisagens, as ruas, as casas, os parques são exemplos de espaço físico; 2) o
espaço social: que pode ser entendido num aspecto mais abstrato, ou seja, é o
ambiente social, local onde permeiam as personagens; 3) espaço psicológico: que
109
são os limites interiores dos personagens, quer dizer, é o local onde se
desenvolvem os conflitos internos dos mesmos.
Para este estudo, será dada atenção maior aos dois primeiros tipos de
espaço. Abdala Junior (1998) entende que o espaço psicológico é muito
influenciado pelo espaço social, justificando até mesmo a questão de que o
homem é produto do meio (sendo o meio social o mais preponderante), quando
diz que
O espaço social, enquanto sistema de valores, projeta-se na
psicologia das personagens formando em seus cérebros,
simbolicamente, um espaço. Esse espaço seu sistema de
valores determina o que ela pode ou não fazer. Se essa
personagem tiver, em sua construção, a predominância de
atributos sociais, seu comportamento no espaço social será
altamente previsível e interiormente ela não terá conflitos maiores.
No limite, com personagens portadores apenas de atributos
sociais, seu comportamento seria o de um robô, com
pensamentos e ações preestabelecidos. Se esses atributos
sociais que se projetam na sua interioridade estiverem em conflito
com valores psicológicos, próprios, essa personagem entrará em
tensão interior, e seus pensamentos e ações serão imprevisíveis.
(p. 49).
Um exemplo dessa influência do espaço sobre as personagens é em A
Barragem, com a personagem Remédios que, após sair de São Gonçalo e passar
uns dias em Recife, ela retorna com atitudes diferentes da que possuía antes de ir
a capital pernambucana:
Essa história de namorar com bebe-lama não é mais para mim o
110
que! Moça da praça...
38
Remédio não sabia do “augmento” do pae. Fica radiante. Visto
que isto poderá sustentar a pose de Recife. Vestidos finos,
sabonetes.
Olha com desdém o seu arranjo para toalete. Banquinha de pinho,
um pedaço de parede coberto de papel de cor, e no meio o
espelho ordinário com um rachão... Vidros de óleo, brilhantina
barata. Quanta cousa tresandando a pobreza! Esta é, aliás, a
impressão de Remédio.
_ Ou catinga de pobre mãe!
Mariquinha acha graça no repente da filha.
_ Pois isso aqui não é novidade, Essa catinga sentisse desde que
nascesse... (p. 111)
No fragmento acima, temos uma descrição minuciosa de um dos modos
da casa da personagem (espaço físico), dando ao leitor a impressão de que está
vendo o local com os objetos descritos, percebemos o quanto o espaço social
urbano interfere no sistema de valores e nas atitudes de Remédios, moça de
origem rural, que tem a sua maneira de pensar alterada por influência da
ambiência de Recife, ou seja, nesse caso, o espaço social interferiu sim no
espaço psicológico da personagem.
O espaço, no romance, delimita, muitas vezes, o campo de ação das
personagens. Ele pode ter relações com o espaço real e pode apenas refletir essa
realidade mediante a descrição imaginária no texto, uma vez que, segundo
Certeau (1994):
... as estruturas narrativas têm valor de sintaxes espaciais. Com
toda uma panóplia de códigos, de comportamentos ordenados e
controles, elas regulam as mudanças de espaço (ou circulações)
38
Moça da praça (ou moça praciana) era um termo muito comum usado pelas pessoas da
comunidade de São Gonçalo na época em que a história se passa, ou seja, década de trinta,
época da construção da barragem do açude. Significa: matuta; moça de ambiente rural; aquela
que tem o seu olhar limitado sobre as coisas mundo.
111
efetuadas pelos relatos sob a forma de lugares postos em séries
lineares ou entrelaçadas [...] representados em descrições ou
figurados por atores [...] esses lugares estão ligados entre si de
maneira mais ou menos firme ou fácil por “modalidades” que
precisam o tipo de passagem que conduz de um lugar a outro. [...]
essas observações apenas esboçam com que sutil complexidade
os relatos cotidianos ou literários são nossos transportes coletivos,
nossas metaphorai
39
.
[...] Essas aventuras narradas que, ao mesmo tempo produzem
geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma
ordem, não constituem somente um “suplementoaos enunciados
pedestres e as retóricas caminhatórias. Não se contentam em
deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato,
organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto
os pés a executam. (p. 199, 200)
No romance, o cenário (espaço textual) tem a funcionalidade de pano de
fundo da narrativa; suas funções são múltiplas. Devemos, pois, verificar se o
espaço descrito tende a caracterizar espaços diversos e numerosos ou reduzidos;
se eles são exóticos, separados, contínuos, urbanos, rurais, passados, presentes,
pois a função da Natureza ou ambiente varia de romance para romance, numa
verossimilhança, no tocante à geografia descrita, conforme a visão do autor ou
conforme a época. Além disso, “o espaço, quer seja real ou imaginário, surge,
portanto associado, ou até integrado às personagens, como o está à ação ou ao
escoar do tempo” (REUTER, 1995, p.141).
A relevância do espaço na ficção variará conforme o modelo literário
(romance, conto, novela) ou conforme a tendência adotada pelo escritor. Na
afirmação acima, Reunter diz que o espaço acaba fazendo parte do próprio
39
Segundo Michel de Certau, Metaphorai eram os transportes coletivos da Atenas
contemporânea. Para ir ao trabalho ou voltar para casa, tomam-se uma “metáfora” – um ônibus ou
um trem. Os relatos poderiam ter igualmente esse nome: todo dia, eles atravessam e organizam
lugares; eles os selecionam e os reúne num conjunto; deles fazem frases e itinerários. o
percursos de espaço.
112
personagem, confundindo-se, muitas vezes, com o próprio ser (isso fica mais
acentuado em narrativas introspectivas). Nesse caso, a relação personagem x
espaço ganha tamanha intensidade que a geografia espacial torna-se apenas um
prolongamento das ações e do pensamento das personagens.
O espaço, às vezes impregna-se nas ações e no pensar da personagem.
Por outro lado, ele também representa etapas da vida, degradação ou ascensão
social, como no caso de Mariano, em A Barragem, que sai com sua família do
Rancho Dôce e vai para São Gonçalo. À medida que a posição social da
personagem muda, o espaço, no caso a sua própria moradia, também modifica-
se, vejamos:
Elle, que nunca tinha sido rico é verdade, mas que possuira um
pedaço de terra pras bandas do Chabocão, o Rancho-Dôce, uma
casinha...
[...]
Mariano e família sahiram da villa-operária, bairro
essencialmente cassaco*, de barracas de taipa apertadas como
um ovo.
A muito custo conseguiram arranjar uma das casas geminadas da
Avenida A, ou seja, a “rua das 16”, como é popularmente
chamada por ter esse número de chalés pertencentes à
Inspectoria.
Zé Mariano não é mais o tuberculoso, de costelas de fora. (p. 22)
Em A Barragem, o espaço físico é representado pelo próprio
acampamento, pelas casas, pelas obras. Os elementos da natureza, presentes na
história ajudam-nos a visualizar esse espaço. Logo no início do romance, temos a
demarcação espacial do lugar :“o grande coração recomeça a palpitar, a diffundir
113
energia por todos os recantos do acampamento de São Gonçalo”
40
. Nesse caso,
o espaço natural já tem o seu tom de mudança, de interferência da ação humana.
O grande coração, nessa passagem, é a Casa-de-Força que impulsiona, que
vida às obras de açudagem. há, aí, uma demarcação espacial, mas com uma
visão da narradora. A referência espacial, nesse caso, serve apenas para situar o
leitor quanto ao espaço da trama.
Noutros momentos, a referência ao espaço físico aparece ora mais tênue,
ora mais forte. Na citação abaixo, vemos uma relação entre o espaço físico e o
espaço social das personagens:
Sujos e cansados, camisas velhas, vestidas ás pressas, vão os
cassacos em busca de seus casebres de taipa, de palha, ou
simplesmente de folhas sêccas e varas de marmeleiro.
Na “Rua das 16”
41
, plana, de casas pertencentes à Inspectoria
Federal de Obras Contra as Sêccas, moram os feitores,
apontadores, apontadores, fiscaes e demais empregados de
categoria.
Em collinas ao redor se trepam as moradias risonhas do
Engenheiro-residente e pessoa de Escriptorio. Esse bangalôs são
a única nota de conforto civilizado no meio agreste de São
Gonçalo.
E distantes, como se tivessem medo de se aproximar, as casas de
cassacos. Baixinhas e disseminadas negligentemente, assim de
longe mais parecem caixas de phosphoro, espalhadas sem
nenhuma intenção artística, para brinquedo de menino pobre.
42
Como mostra a passagem acima, o local das casas e a descrição das
40
IDEM, ibdem, p. 03
41
Rua das 16 hoje apenas Rua 16, tem esse nome por ser formada por dezesseis casas, oito
de cada lado. A arquitetura dessas casas fora feita conforme desenho norte americano: casa alta,
sem muitas divisões entre os cômodos e com um jardim à frente, sem muros separando as
residências.
42
IDEM: ibdem, p. 07
114
mesmas delimitam, além de um espaço físico, o território social das personagens.
Quanto mais baixo o cargo, pior a estrutura das casas, que eram de taipa (pau-a-
pique), vara ou um cercado de madeiras de marmeleiro, geralmente cobertas com
lona, papelão ou folhas de coqueiro. Ao passo que o cargo subia, mudava-se o
tipo de casa, até o nível mais alto, que era a do Engenheiro-residente (ou Chefe).
O próprio Mariano, ao ser promovido ao cargo de apontador, muda de
residência, sai da casa de taipa e vai morar na Rua das 16.
Outra demarcação de espaço, relacionada à residência é com relação à
casa de Lina: A casa de Lina fica dentro do mato, distante do povoado
43
.A
própria personagem já é preconceitualizada, sofre rejeição social por ser, além de
vendedora ambulante, prostituta. Ela representa, juntamente com os cassacos, a
classe marginalizada, que é espacialmente colocada longe dos demais moradores
do acampamento. Todavia, Lina sofre uma rejeição maior. Até mesmo a sua
alcunha é animalizada e, o seu espaço social, sempre às margens da sociedade,
fica mais demarcado quando é-nos mostrado o seu lar: dentro dos matos,
excluindo-a ainda mais daquela sociedade sertaneja das década de 1930.
Além dessa descrição de como era a estrutura física das casas, percebe-se
que a localização das mesmas ocorria conforme o status social. Na Rua das 16,
as casas estavam numa área plana, demarcando um espaço de igualdade, pois a
féria dos funcionários residentes naquele território sócio-espacial (feitores,
apontadores, fiscais e outros cargos semelhantes) era quase a mesma. Eles
estavam igualmente posicionados, tanto financeiramente, quanto a termos de
43
IDEM: ibdem, p. 100
115
residência. As casas dos mais altos cargos estavam situadas em colinas, ou seja,
elas se posicionavam acima das demais, para demarcar o território social de
superioridade em relação às demais, a exemplo dos casebres dos trabalhadores
braçais (cassacos), que, na citação, adquire uma personificação das atitudes das
personagens de tal classe, que tinham medo de se aproximar das outros
segmentos sociais, dentro de um mesmo espaço físico.
No trecho em análise, podemos detectar os três tipos de espaço que nos
referimos anteriormente. O espaço físico é demarcado pela localização das casas
(no meio agreste de São Gonçalo, em colinas, a Rua das 16, plana, os casebres
interpostos sem nenhuma atenção à estrutura, é tanto que a autora coloca que
são “disseminados negligentemente”, sem nenhuma ordem) e inseridas distantes
das demais; o espaço social, que separa as casas conforme o cargo do morador
e, consequentemente, quanto ao que ganha; e o espaço psicológico, demarcado
pela personificação das casas ao terem medo de se aproximarem das demais,
evidenciando, com isso, o sentimento de inferioridade que tais pessoas sentiam
em relação a quem residia nos bangalôs ou nas casas da Rua 16.
No que se refere ainda à personificação espacial, temos outros elementos
que ganham essa projeção, a exemplo da seca, que é vista como algo maléfico
às pessoas e o próprio rio Piranhas, adquirirá ações humanas: “O Piranhas velho
vem todo sujo, rosnando, irado com aquele empeço que lhe querem opor
44
.
Nessa passagem o rio tem um sentimento de fúria em relação à ação humana. A
natureza indo de encontro à vontade humana de modificar o curso natural das
44
IDEM: ibdem, p. 91
116
coisas, ou seja, o rio se opõe, nesse caso, à barragem que é erguida para barrar
o seu fluxo natural, represando a água que, antes escoaria normalmente. Nesse
aspecto, percebemos que o homem modifica o espaço natural e, com isso, aquele
espaço ganhará o aspecto de paisagem, conforme o ponto de vista humano
45
.
Além da ação do espaço físico natural modificado (espaço humano x
espaço natural), percebemos que o espaço também atuará na formação moral
das personagens, como por exemplo, Remédios que “... fruto do meio
cosmopolita, vae se formando completamente ôca de preconceitos”
46
·. Além
dessa passagem temos outros momentos em que notaremos a influência do meio
sócio-espacial (entendido aqui como contexto social) agindo sobre Remédios. A
mesma retorna de uma temporada de dois meses em Recife, e percebe o
crescimento de São Gonçalo, que, rapidamente vai adquirindo características de
uma urbe moderna, filha da Industria e do Trabalho”.
47
São Gonçalo vai crescendo. A sua paisagem natural, pouco a pouco vai
sendo modificada pela ação humana e a localidade começa a ganhar ares de
cidade grande e moderna que, como a própria autora coloca, possui água
encanada, luz elétrica e fábrica de gelo. As ruas são pavimentadas, ao passo que
Sousa ainda usa lampiões e ruas de terra batida.
Os espaços físico, social e psicológico agem sobre as personagens e o
45
Cf. CASSETI, V. A natureza e o espaço geográfico. In: MENDONÇA, F. e KOZEL, S. (orgs.)
Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002, p. 145-
163; CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Trad. de Ephraim Ferreira
Alves e apresentado por Luce Giard. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2000; REUTER, Yves. Introdução à
análise do romance. Trad. Ângela Bergamini [et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (Coleção
leitura crítica);
46
IDEM ibdem, p:. 25
47
IDEM ibdem, p:.111
117
tempo, enquanto período social e histórico também ajudará a ação das
personagens na história de A Barragem.
Agora conhecemos um pouco do espaço físico de São Gonçalo e do
território das páginas de A Barragem, onde os espaços físicos, psicológicos e
sociais transitam por entre as veredas da mente da autora, entre os caminhos
abertos pelas letras e cenas do romance e entre as interpretações dos leitores,
iremos, a seguir, discutiremos como o tempo está representado no romance de
Ignez Mariz.
3.3 Tempos de açudagem entre a ficção e a História
SÃO GONÇALO... quanto de sacrifícios este nome encerra para o
povo de Souza!
Primeiro foi Epitácio Pessôa que o decretou, em 1922.
Com a noticia, um alvoroço feliz se espalhou pela cidade toda.
_Você já sabe que SÃO GONÇALO vem ahi?
_ Pra quando é isto?
_Pra já.
_Não seja eu que cahir na esparrela de acreditar mais nessas
fabulas officiaes...
O pessimismo empolga sempre o sertanejo. É como uma couraça
que o torna invulneravel .
_Vocês também...
_Pois é isto, meu caro. Palavras, palavras, leva-as o vento.
Mas, não foram palavras. Fôram cousas reaes, que a gente via
com os olhos, apalpava com as mãos, ouvia com os ouvidos.
assim este povo, que tem muito de S. Thomé das Escripturas,
poude acreditar: depois de haver tocado com o dêdo na realidade.
A experiência, porém, sussurava:
_Isto não vae ao fim. A bôa vontade de Epitacio ruirá por terra,
118
quando elle deixar a presidência da Republica.
SÃO GONÇALO ia indo. Nasceu, começou a andar, desceu pela
collina em procura do Valle. Cresceu.
Americanos do Norte chegaram, depois das machinas possantes,
que iam montando na casa-de-força, casa-de-gêlo, etc.
(...)
SÃO GONÇALO durou pouco, como tudo que é bom neste
mundo.
Logo no inicio do governo Bernardes cessou todo o movimento,
como si um gênio máu de contos de fadas tivesse derramado por
cima disso tudo um silencio de “Vae-não-torna”.
Quem passasse por aqui depois teria a impressão de que elle
dormia um somno profundo de narcotizado.
Os guindastes, quietos e agora inúteis se estirava para cima,
como braços vermelhos que implorassem nos céus.
A imagem da alma sertaneja, aquelles guindastes...
O material, exposto ao sol inclemente e á chuva caprichosa, se
deteriorava a olhos vistos. Os tectos das casas iam abaixo, de
abandono.
Mas aquillo eram restos mortaes de um anseio secular! Si nos
desapparecessem dos olhos, ia-se com eles a ultima esperança.
(...)
Arthur Bernardes deu a primeira ordem de retirada do
machinismo. Partiu de Souza o grito inicial de protesto.
(...) De uma feita quando menos se esperava, chegou a Souza um
pessoal da Inspectoria encarregado de levar por gosto ou contra a
vontade o que houvesse de mais aproveitavel em “São Gonçalo”.
(...)
Dissolvendo-se as inimizades políticas no amor á terra commum,
Souza levantou-se como um bloco. Bacuráus e Urucubacas
48
se
dirigem á estação da estrada de ferro a fim de esperar os
enviados da Inspectoria. Estes vêm de SÃO GONÇALO,
aproveitando a escuridão da noite, para o embarque clandestino
do material.
(...)
Dez annos haveriam de luctar antes que outra mão bemfazeja nos
lançasse nova bençam redemptora.
(...)
Assim, o espírito sertanejo, resequido pelo mais amargo
pessimismo, se vestiu de esperança quando um filho da Parahyba
48
Dois partidos políticos rivais da cidade de Sousa.
119
galgou as culminâncias do Ministerio da Viação.
E José Americo não mentiu também á confiança do seu povo.
Deu-nos Pilões, Riacho dos Cavalos, Condado, Boqueirão, SÃO
GONÇALO... (p. 17-22)
O tempo, no início dessa citação, é representação do discurso e ideário de
progresso: a implantação de um perímetro irrigado; a construção de um açude no
sertão possuidor de um fenômeno climático devastador, a seca; a idealização de
uma vida próspera financeiramente e abundante de alimentos para os
trabalhadores. No decorrer desse trecho, tal discurso é de desilusão, de
abandono: paralisação das obras e sonho coletivo frustrado. Por fim, tempo de
esperança ou reesperança, se assim pudermos nomeá-lo: época em que o
conterrâneo, José Américo de Almeida, é nomeado Ministro da Viação e, com
isso, a promessa e posterior reinício das obras de açudagem nos sertões
nordestinos.
120
Ilustração 5: Foto da construção da sede do DNOCS, em São Gonçalo (18/11/1937). Hoje esse
prédio, denominado IAJAT (Instituto Agronômico José Augusto Trindade), é ainda a sede do
DNOCS.
Foto do arquivo pessoal de Isaias Ehrich
Ilustração 6: Foto da sede do DNOCS IAJT (1969)
Foto do arquivo pessoal de Isaias Ehrich
Na passagem anteriormente transcrita, começo do II capítulo de A
Barragem, a autora faz um recorte histórico para melhor entendermos a
121
importância das obras de açudagem para os sertanejos, representados pelos
personagens do enredo, sobretudo por Mariano e sua família. Assim como a
autora, façamos uma rápida explanação histórica sobre o lugar em representação
para melhor compreendermos nosso estudo, neste capítulo.
Segundo documentos oficiais, relatos orais e histórias extra-oficiais, São
Gonçalo é mais antiga que a própria cidade de Sousa, enquanto gleba de terras.
Território pertencente aos Icós-pequenos, tribo indígena pertencente à grande
nação Cariri, também conhecida como Tapuias, que habitavam, no período p-
colonial, a região do alto Rio Piranhas.
No século XVIII, o coronel Seixas conseguiu, juntamente à Casa-da-
Tôrre
49
, na Bahia, a posse de uma gleba de terra onde hoje situa-se parte do
Perímetro Irrigado de São Gonçalo, conforme a citação abaixo, extraída do livro
Os Pordeus no Rio do Peixe, de Wilson Seixas
50
:
Lira Tavares, nos seus APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA
TERRITORIAL DA PARAÍBA, informa que, no ano de 1757,
Bazílio Rodrigues Seixas, requereu e obteve a sesmaria do sítio
S. GONÇALO, que tomou o número 459. Datado de 5 de
novembro daquele mesmo ano. Alegava o peticionário que, havia
mais de 20 anos, vivia no sítio S. Gonçalo, anteriormente
arrendado Casa-da-Tôrre. (SEIXAS: 1972, p.17)
Em seu livro, Wilson Seixas (de quem Ignez Mariz ainda é descendente)
faz uma pesquisa genealógica de sua família e descobre que o coronel Seixas,
mesmo afirmando que morava mais de vinte anos no sítio requerido à Casa-
49
Espécie de cartório do período pré-colonial.
50
SEIXAS, Wilson. Os Pordeus no rio do peixe. João Pessoa: Universal, 1972.
122
da-Tôrre, o que nos remete, conforme a citação acima, ao ano de 1737. Todavia,
existiam informações extra-oficiais que ele residia no local desde fins do século
XVII, mais precisamente 1691, como atesta a escritora sousense Julieta Pordeus
Gadelha, no livro Antes que ninguém conte (1986), informando que, além do
sargento-mor Antonio José Cunha ter pleiteado terras no sertão paraibano, na
planície do Rio do Peixe,
Outros sertanistas vieram e no mesmo ano de 1691 aqui se
fixaram: Francisco de Oliveira Ledo, em Bom Sucesso; Teodósio
Alves de Figueiredo, na Serra de Santa Quitéria (hoje
Comissário); Custódio de Oliveira, no Chabocão; Manoel Araújo
de Carvalho, no Brejo e Olho D‟água; João Gomes de Sá, no
Riacho do e Capitão Basílio Rodrigues Seixas, em São
Gonçalo. (p. 10)
Assim, a localidade seria mais antiga que a própria cidade de Sousa. Além
disso, o filho do coronel Seixas, por nome de Bazílio Rodrigues Seixas Filho,
obteve uma sesmaria, denominada Cajazeiras e que se localiza em território onde
hoje se situa a cidade de Cajazeiras
51
. Por isso, afirmamos que São Gonçalo é
mais antiga que Sousa e, poder-se-ia chamá-la de mãe de Cajazeiras. No
entanto, não cabe ao nosso estudo investigar e discutir as origens de São
Gonçalo. Daremos um salto temporal até o início do século XX e relataremos um
pouco da história de São Gonçalo neste período, que é o abordado em A
Barragem.
Como é relatado na citação inicial desta seção, o Perímetro Irrigado de São
51
Apesar de o livro Os Pordeus do Rio do Peixe informar da sesmaria pertencente a Bazílo
Rodrigues Seixas Filho(e comprovar tal fato), o reconhecimento de fundadores daquela cidade é
atribuído a família do Padre Rolim.
123
Gonçalo foi decretado em 1921, no governo de Epitácio Pessoa. Após o início das
obras, realizadas pela firma Dwigt P. Robisn & Cia, houve, dois anos depois, já no
governo de Arthur Bernardes, a paralisação das mesmas.
Após a paralisação as obras, o governo Bernardes, obteve do Congresso
autorização para vender no país ou no estrangeiro, o equipamento mecânico, as
instalações e outros materiais que foram adquiridos para a construção dos açudes
no Nordeste. Ao saber da notícia de que o material da construção seria levado de
São Gonçalo, o povo de Sousa se rebelou e soltou o seu grito de protesto, unindo
todos os moradores da cidade, inclusive Bacuraus e Urucubacas, em prol do
bem-comum, São Gonçalo. Tomaram à unha o material vindo de São Gonçalo
dos enviados da IFOCS.
A construção passou uns anos hibernando, os equipamentos, entregues às
intempéries do abandono, enferrujando-se e se desgastando; sendo retomados
os trabalhos em 1932, dez anos depois do decreto que o institui, após José
Américo de Almeida se tornar Ministro da Viação, no Governo Vargas
52
.
Decorria o governo provisório de Getúlio Vargas e o então ministro José
Américo de Almeida conseguira reativar a Inspectoria Federal de Obras Contra as
Secas (IFOCS), após uma letargia de uma década, a que lhe forçara o Governo
de Artur Bernardes. A esse respeito, a autora Ignez Mariz insere no romance A
52
A descrição desse fato histórico é mostrada no Capítulo II de A Barragem. E o fato do ministro
José Américo ter lutado para a reativação das obras paralisadas tenha refletido nos discursos dos
personagens, os quais se referem ao ministro conterrâneo em tom de quase veneração (o que
pode ser percebido no decorrer do enredo).
124
Barragem esse capítulo da história de São Gonçalo e Sousa
53
.
O Nordeste padecia de uma de suas piores crises climáticas, a de 1932,
eclodida após os anos mal chovidos de 1930 e 1931. Em cada estado nordestino,
os milhares de flagelados da seca se aglomeravam trabalhando na construção de
grandes barragens. O ministro sentiu que as barragens eram incompletas e que
não atendiam aos anseios da região. Tinha que cuidar paralelamente do seu
aproveitamento para desenvolver a agricultura e melhorar as condições de vida
dos sertões.
Em 12 de novembro de 1932 o Ministro da Viação, José Américo de
Almeida, assinou uma portaria ministerial cirando a Comissão Técnica de
Reflorestamento e Postos Agrícolas do Nordeste e outra criando a Comissão
Técnica de Piscicultura.
O chefe da CTRPAN (Comissão Técnica de Reflorestamento e Postos
Agrícolas do Nordeste) foi contratado aos 22 de novembro de 1932, José Augusto
Trindade, o mesmo era o mineiro, de Oliveiras, formado na Escola de Agronomia
de Pinheiros e já havia trabalhado no nordeste.
O Posto Agrícola de São Gonçalo, sem dúvida, o mais aparelhado da
comissão, inaugurado a 05 de novembro de 1934, quando se verificou a primeira
exposição agropecuária da região
54
. A representação histórica desse
acontecimento é abordada em A Barragem. Vejamos:
53
Para melhor compreensão, rever o trecho mostrado no início dessa seção ou o capítulo II de A
Barragem.
54
No romance, esse fato é inserido no enredo no capítulo XXIII.
125
Mariano põe os óculos que comprou ultimamente por um
dinheirão. Não precisa mais pedir por favor os de seu Chico.
Titulos e sub-titulos em letras garrafaes.
Lá está a grande nova:
O CERTAMEN DO AÇUDE SÃO GONÇALO
Exposição agro-pastoril regional promovida pela Commissão de
Serviços Complementares da Inspectoria de Sêccas em
cooperação com o Governo do Estado da Parahyba do Norte.
Inauguração do Posto Agricola de São Gonçalo.
Confórme noticiamos, realizar-se-á em 5 de novembro próximo
a inauguração do Posto Agricola da Commissão de Serviços
Complementares da Inspectoria de Sêccas, localizados na bacia
de irrigação do grande systema “Piranhas São Gonçalo”, no
município de Souza, neste Estado.
(...)
A exposição é a primeira que se realiza nos altos sertões da
Parahyba.
É uma inédita manifestação do novo ambiente social que a
Inspectoria de Sêccas creou nos sertões do Nordéste. (MARIZ:
1994, p. 288-291)
Em 1935 havia atividades técnicas, como produção de mudas cítricas
enxertadas e distribuição de plantas florestais e frutíferas, produção de hortaliças,
estudo pedológico (estudo dos solos) da área. José Augusto Trindade sentiu que
a agricultura das áreas secas apresentava condições muito especiais e um
número incontável de questões que através da pesquisa organizada poderiam
ser resolvidas.
Trindade, na imaginação do Posto Agrícola de São Gonçalo, teve a idéia
de se construir o Instituto Experimental da Região Seca. Chegou mesmo a pensar
nos departamentos que comporiam o Instituto. Entre eles estavam o de Irrigação,
Ecologia e o de Botânica, o que prova a grande visão de Trindade, pois na época,
a Ecologia era tema pouco conhecido que não preocupava a humanidade como
126
hoje.
No dia de outubro de 1940, o Inspetor de Secas comunica que o
presidente da República, Getúlio Vargas, visitaria brevemente São Gonçalo. A
visita teve lugar a 16 de outubro daquele ano. O presidente, acompanhado de Rui
Carneiro, Luiz Vieira, Benjamim Vargas, Rafael Fernandes entre outros, visitou os
laboratórios, percorreu os campos agrícolas e saboreou os frutos colhidos “no pé”.
O objetivo da visita foi a implantação do Instituto Experimental da Região Seca, o
qual, em 1941, passara a ser denominado de Instituto José Augusto Trindade, em
homenagem ao agrônomo falecido no mesmo ano da renomeação.
O IAJAT (Instituto Agronômico José Augusto Trindade) passou então a
funcionar com as seguintes seções: seção de agronomia; de horte-pomi-silvícola;
de zootecnia; de solos; de fitossanidade; de cooperação (ou serviço de
cooperação externa); de mecanização, além de trabalhos de pesquisa com
plantas xerófilas, regionais e introduzidas; serviço médico-social; biblioteca,
secretaria de estatística e contabilidade.
3. 3.1- A correnteza do tempo no fluxo das águas
O romance em análise é uma obra na qual podemos identificar muito
fortemente a presença do componente tempo. O próprio texto inicia-se com uma
marca temporal:
127
Incisivo como uma ordem o apito da casa de força rasga o silencio
da manhãzinha.
Após dez annos de quietude imperdoável o grande coração
recomeça a palpitar, a diffundir energia por todos os recantos do
acampamento de São Gonçalo.
Ninguém tem mais o direito de cochilar.
Ninguém quer dormir não.
[...]
O apito soa pela segunda vez.
A postos! Engenheiros, feitores, apontadores fiscaes, simples
trabalhadores cava-terra, todo mundo vae empregar o melhor de
suas forças physicas ou mentaes na obra de humanidade que é a
construção de um açude grande ou pequeno em plagas
nordestinas.
[...]
Num apito curto e grave a casa-de-força apella de novo para a
energia daquelles milhares de homens, ou melhor, semi-homens,
a quem a sêcca de 32 roubou quase totalmente a força do corpo,
deixando-lhes apenas restos de energia moral. (1994: p. 03-05)
Nessa cena, a autora, através do som do apito da sirene da casa de força,
anuncia a sua narrativa e situa temporalmente a história do seu romance. A
autora utiliza de um fato verídico para mais ou menos situar temporalmente o
leitor no cotidiano dos trabalhadores braçais, ou seja, ela utiliza-se do referencial
sonoro: o apito da Casa-de-Força
55
, o qual até a alguns anos norteava a referida
comunidade temporalmente, demarcando o horário de trabalho
56
, fato esse que a
escritora representa muito bem. Como percebemos no trecho acima. O primeiro
apito seria o sinal de acordar aqueles trabalhadores para o trabalho; o segundo
55
Atualmente, a Casa-de-Força é conhecida como “Usina”.
128
apito seria a hora da chamada, da frequência diária dos trabalhadores, onde eles
se reuniam todas as manhãs, às 06h:30min, nas imediações da Casa-de-Força
para, de lá, conforme distribuição dos cargos e das equipes de trabalho seguirem,
após o terceiro apito, para as obras de construção do açude.
Além desse referencial primeiro acerca do tempo, Ignez Mariz personifica
tanto a Casa-de-Força (“... a casa-de-força apella de novo para a energia
daquelles milhares de homens”), quanto o fenômeno climático “seca” (“...a quem a
sêcca de 32 roubou quase totalmente a força do corpo”). A atribuição de atitudes
humanas (personalização) como apelar e roubar ao local referido e à
intempérie climática em questão ocorre para enfatizar a importância deles no
enredo.
O tempo, no campo da Literatura, pode ser estudado a partir de três tipos
fundamentais: o cronológico ou histórico; o psicológico; o metafísico ou mítico. O
primeiro é marcado pela noção temporal linear, ou seja, pelo ritmo do relógio,
conforme as mudanças regulares operadas no âmbito da Natureza, ou, como diz
MOISÉS: “Tempo social por excelência, na medida em que as múltiplas relações
em sociedade [...] se marcam por calendário, faz crer numa regularidade fixa dos
segmentos temporais...” (p. 107). O segundo tipo de tempo, o psicológico, está
relacionado com a experiência pessoal, por isso ele varia de indivíduo para
indivíduo. O tempo metafísico é, conforme MOISÉS, “o tempo ontológico por
excelência, anterior à História e à Consciência, identificado como o Cosmos ou a
Natureza.” (p. 109). Para este trabalho, nos voltaremos, sobretudo, ao tempo
cronológico ou histórico, o qual é o mais comum nas narrativas e, conforme
129
Thomas Mann appud Meyerhoff (1976, p. 03) o tempo é o veículo da narração,
como é veículo da vida”, ou seja, é esse elemento o condutor e costurador da
trama, das ações dos personagens, da história.
Na obra em estudo, o tempo é predominantemente cronológico, havendo
apenas alguns momentos em que ocorre o tempo psicológico, como podemos
observar no fragmento abaixo transcrito:
Todo entregue a si mesmo, Zé Marianno mal troca palavra com os
outros.Vez em quando inda desponta no seu eu revolta surda, por
se ver mergulhado nessa miséria, reduzido á expressão mais
simples, a cavador-de-terra! Elle,que nunca tinha sido rico é
verdade, mas que possuira um pedaço de terra pras bandas do
Chabocão, o Rancho-Dôce, uma casinha... uma vacca que dava
leite para as crianças... Aqui seu pensamento faz um parenthesis:
pobres meninos!
Cinco homens e uma mulher, Maria dos Remédios, “a menina dos
seus olhos”. Afóra outro que vae nascer em dezembro, o filho da
seca, como já o apellidaram.
E si tivesse sido feliz estaria com doze fedelhos. Seis, porém,
nascera antes do tempo. Marianno tem um suspiro de alivio.
Meia dúzia mais na corcunda em semelhantes circunstâncias...
Ao peso de suas preocupações, elle vae quasi deitado por cima
da carroça de mão...
[...]
Que teria a mulher engendrado para o almoço? Quando muito pão
de milho com banha de porco, e café preto, igualzinho ao de de-
manhã. (p. 06)
No fragmento, notamos que a personagem está num ritmo de trabalho
cronologicamente apressado para poder cumprir a sua tarefa. Todavia, como a
escritora coloca, ele abre um parêntesis a esse curso temporal normal e faz uma
reflexão de sua condição atual de trabalhador braçal. Nesse momento, ele transita
pelas veredas do tempo: o seu pensamento retorna ao passado, quando ele se
130
lembra da época em que morava no Rancho-Doce; depois, perpassa pelo
presente, quando imagina como seria a sua vida com todos os filhos (que seriam
doze ao todo) e, ao final, o seu pensar voa para um futuro próximo, ao começar a
supor que alimento teria no almoço.
Nesse trecho, a autora ainda traz uma representação da composição das
famílias sertanejas daquela época: família numerosa. Outro aspecto interessante
é o fato de não ser deixado de lado a abordagem da mortalidade infantil, também
muito comum naqueles tempos. Os filhos que não “vingavam” eram sementes mal
germinadas que, geralmente não completavam o sétimo mês de gestação,
devido, sobretudo, à falta de nutrientes que a mãe possuía, causada pela fome ou
péssima alimentação. Sem falar que não havia nenhuma preocupação com o
período gestativo.
Outra referência temporal no romance é ao tempo das chuvas ou tempo da
secas. Dois extremos que influenciam sobremaneira a vida dos sertanejos. Esses
dois pólos que fará com que se fixe, no imaginário popular a personificação da
seca (período de estiagem) como um vilão nordestino.
O tempo de seca é um momento de sofrimento para o trabalhador
nordestino, tempo em que as esperanças por uma boa produção agrícola é
tolhida, culminando numa alimentação escassa, uma vez que a agricultura é de
subsistência. A referência a esse fator climático é sempre envolta de um ideário
de punição e de castigo divino (como, muitas vezes a Igreja Católica impregnou
na mente dos sertanejos), como na expressão contida no romance:
131
Ah 32! maldito anno de sêcca! E eu que ia me aprumando...
Mas o diabo sempre mette o rabo aonde não é chamado.
_Cala a bocca, homem. Você atenta a Deus com essas besteira,
Zé. Não sabe que foi Elle que mandou a provação?” (p. 08-09)
Nessa citação, percebemos que, apesar da revolta, da tristeza, desse tom
de lástima em relação a essa temática, o conformismo acontece por meio de uma
desculpa religiosa. No diálogo, Mariano se lastima por ter tido que se desfazer
de seus bens materiais (sítio, gado, e terra de plantio) para procurar um meio de
sobrevivência em outras paragens.
Aparece, nesse período de estiagem, a figura do aproveitador
(representado no romance na figura do coronel Feitosa), que, no caso, é o coronel
que se apossava do gado alheio dos produtores familiares com a desculpa de que
esses pequenos agricultores pudessem deixar suas criações nas fazendas “para
irem escapando” e, com isso, passava-se o tempo e os fazendeiros tomavam
para si o gado dos pequenos produtores.
Naquela época, tempo dos coronéis, a seca, nesse caso, é justificada por
uma vontade divina. Assim, a seca também aparece como uma forma de
representação messiânica do castigo divino aos sertanejos pecadores que, após
pagarem seus débitos com o Deus punidor são recompensados com um ano bom
e chuvas, um ano de inverno.
Quando o tempo é de chuvas, a paisagem se modifica, o espaço em seus
vários níveis, ganha novos contornos e as pessoas têm a esperança de dias
melhores renovadas. Tal fator é causa de festejos e de alegrias diversas. O
inverno é um tempo de purificação, para o sertanejo, ele representa a gratidão
132
divina aos homens por boas ações realizadas no ano anterior.
Mas, voltando à questão do tempo cronológico em A Barragem,
percebemos que a narrativa se inicia em 1932, com os filhos de Zé Mariano ainda
pequenos e termina dois anos depois, em 03 de dezembro de 1934, com a sua
filha mais velha, Remédios, casada.
Tal elemento é um fator aliado do trabalhador, pois ao se prolongar os dias
de trabalho na Barragem, prolongam-se também os dias em que os trabalhadores
terão alimento, todavia, é um fator inimigo desse mesmo braçal quando a paga
(pagamento realizado quinzenalmente) atrasa e ocorre meses depois do dia
previsto; tempo de esperança para o momento da chegada da paga. O tempo
marca o início e o fim da construção da barragem, sendo um mecanismo de
auxílio ao desenrolar da história da vida de Mariano, Mariquinha e seus filhos
(personagens centrais do romance).
3.4 A representação religiosa no romance
A riqueza de um lugar não está apenas no que ela produz de renda
econômica, mas, principalmente, no que o torna mais ímpar dentre outros lugares.
A isso, poderíamos chamar cultura: um conjunto de costumes, artes, valores e
conhecimentos que caracterizam uma tradição, num dado contexto social.
Dentre a gama de representações culturais de um povo, as festividades
religiosas o as que melhor exprimem a cultura de uma sociedade. Nas cidades
133
nordestinas, a exaltação e a devoção a santos católicos é algo muito forte. O
aspecto religioso está presente desde os primórdios de nossa história até os
tempos atuais, embora, agora, de forma mais branda.
O Perímetro Irrigado de São Gonçalo, localizado no alto sertão paraibano,
distante dezoito quilômetros da cidade de Sousa, também possui uma veia
religiosa marcante. Embora não encontremos muitos textos sobre o assunto, a
tradição religiosa de São Gonçalo apresenta-se, no aspecto católico, dividida em
duas grandes festividades tradicionais: a festa do padroeiro, São Gonçalo, que
ocorre durante a primeira semana do primeiro mês de cada ano, culminando no
dia 10 de janeiro; e a festa de Nossa Senhora (ou Coroação de Nossa Senhora),
celebrada e festejada durante o mês de maio, tendo seu clímax em 31 de maio de
cada ano.
Esta seção descreverá apenas de uma dessas duas festividades religiosas
do Perímetro Irrigado de São Gonçalo (a festa do padroeiro São Gonçalo). Para
tanto, far-se-á uso das informações coletadas a partir de conversas informais com
idosos residentes na referida comunidade, além do capítulo XIV, de A Barragem,
da escritora sousense Ignez Mariz. Sua finalidade é a de fazer com que a
comemoração desses festejos, parte integrante da tradição cultural popular são
gonçalense, não se dissipe com o tempo e não se perca por entre os labirintos do
esquecimento coletivo. Descrever para levar ao conhecimento público. Conhecer
para se manter a cultura. Preservar e reavivar a tradição para se manter atual a
história de um povo.
134
3.4.1- Um bailado pela vida de São Gonçalo
Segundo relatos históricos e estudos sobre São Gonçalo (do Amarante),
sabe-se que ele foi um sacerdote português nascido em 1187, em Tagilde e
faleceu em 10 de janeiro de 1259. Freqüentou a escola arquiepiscopal, em Braga.
Após sua ordenação como sacerdote, foi ordenado pároco de São Paio de Vizel,
onde, enquanto vigário, realizou vários casamentos de mulheres que perderam a
virgindade. Pregou e operou supostos milagres por todo o norte de Portugal.
São Gonçalo encontrou na experiência popular a maneira de converter
pecadores. Conta-se que ele, para reabilitar prostitutas, vestia-se de mulher e
dançava e cantava com elas a noite toda. Para o santo de Amarante, se as
mulheres (prostitutas) participassem dessas danças aos sábados, não cairiam em
tentação no domingo (dia sagrado, segundo a religião católica). Acreditava, ele,
ainda, que, com o tempo, elas se converteriam e se casariam.
Após sua morte, no dia 10 de janeiro de 1259, em Amarante, no Douro, à
margem direita do Rio Tâmega, em Portugal, São Gonçalo passou a ser protetor
dos violeiros, protetor contra as enchentes e casamenteiro (sobretudo das
mulheres consideradas fora da faixa etária para se casar e aquelas que não eram
mais virgens).
Em Portugal, o culto desse santo foi permitido pelo Papa Júlio III (24 de
abril de 1551) e confirmado por Pio IV (1561); Clemente X estendeu o ofício e a
missa a toda ordem dominicana, em 1671.
135
São Gonçalo
(traje popular português) (traje religioso)
_____________________________________
Ilustração 7: fotos de São Gonçalo ( o santo)
3.4.2- A dança de São Gonçalo
A origem da dança (ou festa) de São Gonçalo remonta ao século XIII, em
Portugal. Ela teve sua origem nas peregrinações que o sacerdote fazia pelas
zonas menos nobres e mais promíscuas do norte de Portugal. Nessas
peregrinações, ele levava consigo uma viola de cordas e invocava o povo através
de suas melodias tocadas nas rodas de danças (um tipo de ciranda) formadas ao
ar livre por moças e rapazes. As mensagens transmitidas através de suas
melodias eram de e carinho, dedicando a Deus e aos casais verdadeiramente
apaixonados.
A Festa de São Gonçalo era, a princípio, realizada no dia 10 de janeiro
(data da sua morte), no interior das igrejas de o Gonçalo. Em Amarante, sua
festa era comemorada no dia 07 de junho e seus devotos lhe dedicavam uma
semana de festejos com procissões, bandas de música, folguedos populares etc.
136
Em Porto, Portugal, o ato de se dançar nas ocasiões de comemoração ao
santo dos violeiros era chamado de Festa das Regateiras, ocasião em que
participavam as mulheres que queriam casar.
Segundo a tradição, a mulher que tocar alguma parte de seu corpo no
túmulo do santo, em Portugal, casar-se-á dentro de, no ximo, um ano. Outra
lenda a respeito do santo é no que diz respeito a sua procissão: tanto no Brasil,
quanto em Portugal, as procissões a São Gonçalo o acompanhadas por
rapazes e moças que desejam casar, carregando velas acesas durante todo o
percurso. Se a vela não apagar até o final da procissão, é certeza de se casar no
mesmo ano.
No Brasil, atualmente não há dia determinado; aliás, quase não fazem mais
festas e romarias ao santo. Somente oferecem-lhe dança e reza, cerimônia que
ocorre sempre que alguém tenha feito promessa e alcançado a graça. Todavia, os
seus devotos ainda respeitam o dia 10 de janeiro como data para se agradecer e
se comemorar louvores ao santo do Amarante.
Em nossa pátria, a dança de São Gonçalo (ou a São Gonçalo) pode ser
encontrada em quase todo o país, com variações coreográficas bastantes
diversificadas, tomando diferentes formas de execução.
O primeiro registro de uma festa de São Gonçalo na Bahia foi feito em
1718, na cidade de Salvador, pelo viajante francês Gentil de La Barbinais. A festa
aconteceu na antiga igreja de São Gonçalo, no atual bairro da Federação, e
reuniu o então Vice-Rei Marquês de Angeja, padres, fidalgos, mulheres e
137
escravos que dançavam com tamanha intensidade que "faziam vibrar a nave da
igreja". Aos gritos de "Viva o Gonçalo do Amarante", os bailarinos pegaram a
imagem do santo e "começaram a jogá-la para o alto, de um para o outro...",
escreveu o escandalizado viajante.
A dança hoje é organizada em pagamento de promessa devida a São
Gonçalo. O promesseiro é quem organiza a função, administrando todo o
processo necessário à realização deste ritual. É realizada dentro de casa ou em
local coberto, onde se arma um altar com a imagem deste santo e outros de
devoção do promesseiro. Em frente a este altar é que se desenvolve toda a
dança.
Os dançarinos se organizam em duas fileiras, uma de homens e outra de
mulheres, voltadas para o altar. Cada fileira é encabeçada por dois violeiros,
mestre e contramestre, que dirigem todo o rito.
A dança é dividida em partes chamadas “volta”, cujo número varia entre 5,
7, 9 e 21. Entre cada “volta” interrupção e todos aproveitam para se servir das
iguarias oferecidas pelo promesseiro.
As “voltas” são desenvolvidas com os violeiros cantando, a duas vozes,
loas a São Gonçalo, enquanto dançarinos, sapateando na fileira em ritmo
sincopado, dirigem-se em dupla até o altar, beijam o santo, fazem genuflexão e
saem sem dar as costas para o altar, ocupando os últimos lugares de suas
fileiras. Cada volta pode durar de 40 minutos a 2 ou 3 horas, dependendo do
número de dançadores. Na última “volta” (em São Paulo chamada “Cajuru”)
138
forma-se uma roda onde o promesseiro a dança carregando imagem do santo,
retirada do altar. Se houver mais de um pagador de promessa e mais de uma
imagem, todos os promesseiros carregam simultaneamente as imagens. No caso
de haver apenas uma imagem para vários promesseiros, o santo vai passando de
mão em mão, enquanto os demais dançarinos agitam lenços brancos.
No Paraná, as “voltas” recebem nomes especiais, como “despontam”,
“marca-passo”, “parafuso”, “confissão” e “casamento”.
Em Minas Gerais é considerada dança de votos de solteironas que
desejam se casar. A dança é desenvolvida por dez ou doze pares de moças,
todas vestidas de branco, cada uma delas levando um grande arco de arame
recoberto de papel de seda branco franjado. O movimento das rodas é ordenado
pelo “marcante”, única figura masculina presente. Acompanhada pela música
executa em viola, sanfona e caixa, a coreografia consta de evoluções com os
arcos.
Em Alagoas a dança incorpora elementos litúrgicos e as moças
novamente, vestem-se inteiramente de branco. Formam duas colunas com seis
pares que dançam acompanhadas pelos tocadores. Já em Pernambuco as moças
vestem-se com saias azuis e blusas brancas. Na Bahia a indumentária é livre.
Em Sergipe a tradição tem a referência do padre português que introduziu
a dança como pretexto para atrair os infiéis à igreja, catequizando-os e incutindo-
lhes a prática do casamento. O grupo é conduzido por um "mestre" tocador de
viola, um "contramestre" que toca a "meia-cuia" e dois guias. A única mulher
139
presente não tem papel ativo (carrega o santo), é conhecida como “Mariposa”.
A dança é executada em nove rodas, divididas em treze partes
apresentando coreografias diferenciadas. A indumentária é livre. Os dançadores
homens se vestem com saias, turbante na cabeça, fitas coloridas e colares, pois
estão representando as prostitutas que São Gonçalo recuperou através da dança.
As indumentárias do grupo também possuem significados culturais negros.
Os colares coloridos não seriam simples adornos, mas sim contas africanas de
culto aos orixás, introduzidas pelos escravos. Essa hipótese é reforçada pelo fato
de que em ocasiões de simples ensaios, os figuras (ou figurantes) dançam sem
as vestes, mas sempre com as contas no pescoço. Outras peças, como o
turbante seriam heranças dos africanos colonizados na África primeiramente por
mouros, e posteriormente trazidos para o Brasil.
Os instrumentos musicais utilizados são: uma caixa, dois violões, dois
cavaquinhos, dois reco-recos, chamados “pulés”, tocados pelos “Guias”. Nesta
dança, patrão e dançarinos usam trajes especiais. O primeiro veste-se de
marinheiro, por influência do mito e afirma:
-São Gonçalo hoje é santo, ele já foi marinheiro”.
São os cantos que determinam as partes ou jornadas, em número de sete:
“Nas horas de Deus amém”, “Vosso rei pediu a dança”, “Adeus parente”, “Jiruaê”,
“Mamãe Zambi”, “Suzanê” e novamente “Nas horas de Deus amém”. A
coreografia consta de uma série fixa de evoluções que se repete a cada jornada.
Organizados em duas fileiras voltadas para o altar, os dançarinos fazem
140
movimentos por dentro e por fora das filas, trocam passos cadenciados com o
patrão, fazem uma volta em torno dele, retornam às fileiras e trocam os lugares,
terminando com uma vênia diante do altar do santo.
Em cada jornada há apresentação da Chula, que possui coreografia
própria: com os braços levantados, um guia volteia em torno do patrão e ambos
executam movimentos de requebros, terminando com impulso do ventre à
semelhança da umbigada. Este movimento é reproduzido por todos os
dançarinos, dois a dois.
O fecho é dado pela Chula-de-encerramento: com passinhos miúdos,
semelhantes ao sapateado, as duas fileiras, ora se aproximando, ora se
afastando, chegam até o altar. Aí, em conjunto, todos se ajoelham, fazem vênia e
dão por encerrada a dança. Por se tratar de dança votiva, o calendário fica à
mercê dos devotos.
Em apresentações profanas as jornadas podem chegar a ser em número
de nove. A letra das cinco jornadas intermediárias de uma apresentação, que não
seja o pagamento de alguma promessa, provém de letras inspiradas em
temáticas africanas. Tais músicas também podem ser ouvidas quando das
apresentações de outros grupos folclóricos que têm em si raízes negras. No
pagamento das promessas as músicas em louvor ao santo português o em
maior quantidade. Uma possível interpretação desses fatos é que os negros, após
o período de cativeiro no Engenho Ilha, situado na Mussuca (AL), tenham
entrando em contato com os negros do município de Laranjeiras e ainda outros de
fora da região e tenham espontaneamente inserido suas canções nos ritos de
141
culto a São Gonçalo.
São Gonçalo de Amarante
Santo bem casamenteiro.
Antes de casar as outras,
A mim casai-me primeiro.
Uma ocasião especial para a realização da dança de São Gonçalo em
Mussuca (AL) é durante Festa do Senhor da Cruz, realizada todo domingo de
Páscoa. Nesse dia, os componentes do grupo realizam um ritual simples e em
conjunto. Pela manhã, após os batizados na igreja do Senhor da Cruz, acontece o
ensaio do São Gonçalo. À tarde acontece a missa, e a procissão do Senhor da
Cruz, em que o grupo acompanha a caminhada já com a indumentária, mas
atentos aos hinos entoados na procissão. No fim da procissão, o padre a
bênção final na porta da igreja, e ali mesmo o grupo inicia sua evolução.
As danças ou rodas de São Gonçalo podem ser encontradas ainda hoje
nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do
Norte, Ceará, Maranhão, Piauí, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul, Paraná e São Paulo.
3.4.3 - Festa a São Gonçalo: tradição religiosa aflorada por saudades
rememoradas
No romance A Barragem, Ignez Mariz não deixa de fora a história da festa
142
de São Gonçalo. Para isso, a autora recorre, sobretudo, às personagens D. Vivi
Murtinho e D. Euphrosina para relatar esse aspecto da cultura religiosa são
gonçalense.
Segundo as palavras da autora sousense, D. Vivi Murtinho era uma dama
da elite de São Gonçalo, dedicada ao serviço social da referida comunidade. Ela
fazia roupinhas aos filhos dos trabalhadores braçais da comunidade e se
dedicava à arrecadação de fundos para a erguição da capela local.
Por tradição local, as esposas dos chefes do DNOCS, ou “engenheiros-
residentes”, tinham por hábito trabalhar para o bem-comum do lugar em sinal de
fraternidade coletiva. No nosso caso, essa figura aparece no romance através de
D. Vivi Murtinho que, segundo a descrição que a autora faz da personagem:
Como uma fidalga de romance, que desce das alturas de seu
castello para ser util a Deus e à Humanidade, assim também Ella
vive a confeccionar roupinhas para os filhos de cassacos ou deixa
as comodidades do seu bangalô na collina para vir fazer festas
em beneficio da capella da Villa. (MARIZ, p. 151)
No intento de arrecadar dinheiro para o término da construção da capela do
Perímetro Irrigado de São Gonçalo, D. Vivi vai à cidade de Sousa procurar se
inteirar de alguma tradição da terra” (p. 151), para que ela possa fazer uma
adaptação voltada aos anseios locais e, principalmente, que chame a atenção,
atraia pessoas e gere recursos para a conclusão das obras da igrejinha do lugar.
É nessa averiguação à cultura popular da localidade que a esposa do Dr.
143
Murtinho conhece D. Euphrosina, uma senhora de oitenta e seis anos de vida. A
anciã relata a D. Vivi alguns festejos religiosos realizados em outros tempos, na
cidade de Sousa, a exemplo de Rei, Rainha”; “Nossa Senhora dos Remédios, a
velha”; “São João Pedro e Paulo”. E, ao saber do motivo do interesse daquela
dama são gonçalense pelas festividades religiosas de Sousa, a senhora sugere:
“_ Pois minha rica senhora, porque não faz nos tempos de hoje a „Festa do
Santo‟? Faz setenta annos que eu fui a noiva de São Gonçalo” (MARIZ, p. 152).
Nesse relembrar, D. Euphrosina, além de explicar a origem da festa em
São Gonçalo, também explica a própria denominação da localidade. Além disso, a
sábia senhora atenta para a questão de não se festejar mais a “Dança de São
Gonçalo”:
O que é certo, minha rica senhora, é que faz quarenta annos que
o povo não faz a „Festa do Santo‟. Gente ingrata! Um santo tão
milagroso! Mas os padres são os primeiros a não querer, devido
aos abusos: sambas, foguetes, cachaça...
D. Euphrosina entra a descrever, tim-tim por tim-tim, a festa mais
animada dos bons tempos de mocidade. (MARIZ, p. 153)
Após coletar as informações necessárias, D. Vivi Murtinho retorna à vila e
começa a organizar a “Festa do Santo”. Nesse organizar, percebemos uma
atualização da própria dança e da própria festa, ou seja, a idealizadora do evento
adapta-o ao lugar.
Nisso, notamos o que fora descrito na própria história acerca das
festividades ao Santo português, de que não uma data específica nem,
tampouco, uma religiosidade quanto às marchas da dança do santo e a própria
144
estrutura é da mesma e, nesse ponto, lembramos uma frase contido em A
Barragem: Como é velho tudo que imaginamos novo! (MARIZ, pág. 158). Ou
seja, por mais que a personagem tentasse inovar, haveria sempre algo de
tradicional, algo que a própria história tratou de perpetuar, no caso, a estrutura da
festa.
Como veremos a seguir, a festa é organizada como se fosse uma
quermesse, cheia de bebidas, comidas e com um leilão. Além disso, há uma
encenação, na qual se dramatiza a escolha da noiva do santo padroeiro. A peça
(que caracteriza a festa a São Gonçalo) é composta por doze moças, que serão
pretendentes a noiva de São Gonçalo, por um noivo (no caso, um ator
representando o santo português) e por um tocador, conforme retrata a autora:
No fim do mês reinava pela „Festa do Santo‟, o maior enthusiasmo
de que há melhoria no annaes do „San Gonçalo‟ moderno.
Vão se misturar na função cousas do outro tempo e cousas
modernas: carros de boi, telegrapho, recepção do santo, bar,
concurso de belleza, bailados, o diabo!
Maria dos Remédios da Silva, Lenice de Oliveira, Dóra Fialho,
Lourdes Costa, Irene dos Santos, Rosemira Freire, e mais seis
moças que ainda não foram escolhidas, vão ser as „dansadeiras‟.
É pena que se tenha de metter homem na recepção do Santo.
Mas Zé Bernardo tem que vir fazer os acompanhamentos. É bicho
madeira no realejo-de-mão.
D. Vivi quer seguir a tradição o mais fielmente possível. No que
faz correr o dinheiro que ela resignou a aceitar o modernismo.
Há, porém, uma difficuldade.
Quem vae ser São Gonçalo?
Os rapazes não querem. Encabularam com a história. (p. 154)
145
O que há de comum, tanto no que fora descrito no romance, quanto no que
relata a história e no que rememoram os velhos de hoje do Perímetro Irrigado de
São Gonçalo é a dança, a missa/procissão e os bailados dançantes. uma
encenação com doze moças (as dançadeiras), conforme vimos também ainda
hoje em algumas localidades.
Ademais, é marcante a presença do tocador (ou violeiro), também fazendo
uma referência ao próprio santo do Amarante, que tinha uma viola para tocar às
prostitutas das zonas boêmias de Portugal. Além disso, a figura do santo e,
principalmente, a preocupação em retratar a época. Isso percebemos tanto na
descrição do tópico anterior, nas cidades que mantém as festividades, quanto,
também, em A Barragem, a partir do que nos mostra a autora:
Moças com trajes de 1870, saias arrastando, tranças em volta das
cabeças, enlaçam as mãos. São as „dansadeiras‟. Bernardo,
atraz, o tom. E elas começam bem alto a cantar as estrofes,
músicas e letra ensinadas por d. Euphrosina
57
.
57
Abaixo, veremos a transcrição da letra da música cantada na “Festa do Santo”, conforme consta
em A Barragem. No livro, a música aparece entrecortada por falas das personagens e descrição
da cena; aqui, faremos a transcrição das estrofes de forma a completa:
Lá vem o carro cantando
Cheio de cravos e rosas,
São Gonçalo vem no meio
Namorando as mais formosas.
São Gonçalo de Amarante,
Casamenteiro das velhas
Por que não casais as moças
Que mal vos fizeram ellas?
Ellas mal não me fizeram,
Eu é que sou ciumento:
Si não me caso com todas,
Também não lhes dou casamento.
146
(...)
São Gonçalo vae entrando na Villa. O povo acclama
delirantemente o patrono de carne e osso.
_ Viva São Gonçalo!
(...)
As dansadeiras fazem cerco, bailando e cantando.
(...)
As moças abem o círculo e o fecham, cantando.
(...)
O santo desce por uma escada improvisada e desaparece no
mato. Era assim no outro tempo. Virá novamente na hora do
noivado... (MARIZ, pág. 155, 157)
Há, mais uma vez, a preocupação em se manter a tradição, apesar de a
personagem D. Vivi Murtinho procurar fazer adaptações às condições locais.
Após a primeira parte da festa, que é a apresentação das noivas e do santo
aos presentes à festa, temos os tocadores animando a comemoração enquanto
ocorre a votação para a noiva de São Gonçalo (ponto culminante da festa) e,
também para que as pessoas gastem mais dinheiro na festa, uma vez que o
objetivo maior do resgate da “festa do Santo” é a arrecadação de dinheiro para a
conclusão da capela, conforme veremos abaixo:
São Gonçalo é meu pae,
São Francisco é meu irmão
Os anjos são meus parentes,
Ou que rica relação!
Eu só levo a bem-amada,
A mais bonita entre vocês
Ninguém pense que lá no céo
Não há bom gosto e altivez!
São Gonçalo do Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Venha no ano vindouro
Buscar uma donzela.
147
A jazebande vinda de Souza ataca um samba a mais não poder.
É a segunda parte da festa. Pena é que o povo não possa virar
doido e cahir na dansa. É disso que todo mundo está com
vontade. Mas não faz parte do programma. Cada qual trate de
votar na moça mais bonita para noiva do Santo. Como é velho
tudo que imaginamos novo! Antigamente era voto oral. Numa
festa em benefício, porém elle vale nada menos que duzentos
réis.
(...)
Vae proceder agora á apuração final de votos para a „noiva do
Santo‟.
Freme a multidão. Esquecido de que se trata apenas de uma
brincadeira, o povo, que já nasceu com política na massa do
sangue, se divide em partidos: „Bloco Remédio‟, „Lenicistas‟,
„Liberaes de Dóra‟...
A‟s duas da madrugada, o „escrivão do Jury‟, com uma folha de
papel almasso na mão, sobe as escadas do coreto, lentamente,
brincando com a ansiedade do povo.
Trepado na cadeira, elle lê, alto e bom som, como quem está com
intenção de se ouvido no Rio de Janeiro. E de facto faz pena, em
occasiões dessas, não termos uma rádio transmissora...
Ahi vae a peça:
„Aos 16 de setembro deste anno da graça de 1933, no
acampamento da construção do „Açude Publico São Gonçalo e
Canaes de Irrigação das Varzeas de Souza‟, perante mim
escrivão e demais membros componentes do insubornavel Jury,
foi feita pelo senhor Juiz de Concursos de Belleza a apuração final
de votos para a noiva de seu ferreira, digo, de São Gonçalo.
Declaro em virtude da lei, tomando o céo e quem mais o queira
por testemunha, que foi o seguinte o resultado da apuração:
Maria dos remédios Silva... .. 900 vts.
Lourdes Costa .. .. .. .. .. .. 750 ”
Lenice de Oliveira .... .... .. 700 ”
Dóra Fialho .. .. .. ... ... .. 600 ”
E muitas outras dahi pra baixo.
E para que o documento passe à posteridade, resolveu-se que
seja guardado no logar denominado Porão do Açude São
Gonçalo.
Eu, Herminio da Costa Silva, escrivão, escrevi a presente que
assigno.
Dou fé.
148
Herminio da Costa e Silva‟
São Gonçalo surgiu, como por encanto, dentro do carro.
Os bois, imagem da Paciencia, esperam horas, olhando de banda
as lâmpadas electricas.
D. Euphrosina, a um canto, levanta as mãos em signal de
bençam. E chora de saudade. (MARIZ, p. 157-164)
Conforme vimos, a festa de o Gonçalo, realizada por D. Vivi Murtinho
procurou ser o mais fiel possível à festa descrita a partir dos relatos de D.
Euphrosina. Havia todo um ritual e uma encenação na festa para se assemelhar
ao que, talvez, ocorresse na época em que o santo era vivo e que fazia a sua
dança em locais meretrícios de Portugal.
Todavia, o que se percebe, a partir do que coloca a romancista, é que a
parte mais sagrada da comemoração, ou seja, a procissão e a missa não
aparecem na descrição contida em A Barragem. A comemoração é puramente
festiva. O que mais interessa é a arrecadação de recursos financeiros para a
conclusão da capela da comunidade.
Esse fato não é muito diferente do que ocorre, atualmente, na comunidade
que foi o cenário para o romance de Ignez Mariz, conforme podemos constatar no
relato de um ancião da referida comunidade: “O que não pode faltar na festa de
São Gonçalo, meu filho, é a dança e música. houve anos em que não se fazia
missa no dia do santo, mas duvido que faltasse cachaça e festa!” (M.D. morador
de São Gonçalo há 60 anos).
Hoje em dia, a festa de São Gonçalo é realizada, no Perímetro Irrigado de
São Gonçalo, na primeira semana de janeiro de cada ano. procissões, leilões
149
e quermesses. A parte da festa em que, outrora, se fazia a escolha da noiva, hoje,
faz-se a escolha da “boneca” (desfile de crianças representando ruas da
comunidade, escolhendo-se a menina que representa a rua que mais arrecadou
“saldo monetário” para o Santo < Igreja >).
Mais uma vez, ocorre uma reiteração da tradição, porém , assim como no
tempo em que se passa a história em A Barragem (1933), quanto hoje, é preciso
fazer uma adaptação da própria festa para que atraia público e,
conseqüentemente, para que arrecada fundos para as “obras da igreja”. Além
disso, outra semelhança com o que é descrito no texto da autora sousense e a
realidade atual é que a intenção maior não é celebrar a memória do santo ou
festejar ao santo português, fazendo uma alusão a sua ida à pátria espiritual, mas
a busca pelo lucro em torno de um festejo que está arraigado no seio cultural
do Perímetro Irrigado de São Gonçalo.
Apesar de várias tentativas de inovação às tradições e de modificar alguns
aspectos da cultura de um povo, vale, mais uma vez, lembrar, o que Ignez Mariz
trouxe em A Barragem: Como é velho tudo que imaginamos novo!”.
3.4.4 Representação religiosa nos nomes das personagens
É comum, no livro aparecerem trechos que denotam a religiosidade dos
personagens (principalmente os femininos) do romance, a exemplo: a apelação,
150
em alguns momentos de Mariquinha a Nossa Senhora do Bom Parto; as
referências à novenas, a festa do padroeiro São Gonçalo, entre outros momentos.
Se observarmos por esse lado, podemos constatar também que a autora,
ao denominar as personagens principais de A Barragem, utilizou-se dessa
religiosidade para nominá-los. Vejamos:
Mariano: Um santo de grande devoção para os sertanejos e também
festejado na cidade de Sousa é São José Operário santo que, segundo a
crendice popular, representa a última esperança para um bom ano de inverno (dia
19 de março), data que, se não chover, o ano não será bom de chuva, isto é, não
haverá período invernoso na região. O segundo nome da personagem, “Mariano”,
faz referência à Maria, “Nossa Senhora”, nome muito festejado pelos católicos,
uma vez que ela representa o símbolo de interseção entre Jesus e a humanidade.
Para os Nordestinos, a devoção a Nossa Senhora é algo tão intenso quanto à
devoção ao próprio Filho de Deus.
Mariquinha: diminutivo carinhoso de Maria. Além do que foi dito acima, era
comum as pessoas utilizarem o nome Maria nos filhos para que, segundo a
tradição católica popular da época, as filhas fossem boas mães. Algo que se
fortalece ao saber que Mariquinha tivera, ao todo, treze filhos, entre os vivos e os
“que não vingaram”. Ou seja, a personagem, assim como a maioria das mulheres
daquele tempo, viviam apenas para casar, ter filhos e cuidarem da casa.
Remédios: como a própria personagem explica a sua tia:“foi promessa a
151
Nossa Senhora dos Remédios, padroeira de Sousa”. No caso da jovem, além
dela ter recebido o nome da santa, a mesma ainda era afilhada dela. Outro fato
corriqueiro, uma vez que muitas vezes, os pais, juntamente com o consentimento
dos vigários, concediam determinados santos como padrinhos ou madrinhas das
crianças, em sinal de devoção e/ou promessa.
João Liberato (ou João Trigueiro) - irmão de Mariquinha: recebe o nome
do santo mais festejado pela população nordestina. O santo que representa a
prosperidade da colheita, é símbolo de fartura e, por isso, merece vasta
comemoração. A personagem representa também um símbolo de prosperidade,
uma vez que, retirante, vai tentar sobreviver e se erguer economicamente fora
dos limites do sertão. Em Recife, João Liberato consegue prosperar e possuir
uma boa renda familiar.
João (Jóca): um dos filhos de Mariano outro costume era manter o
nome dos parentes nos filhos, principalmente se o nome fosse de um santo e se o
parente tivesse obtido algum tipo de prosperidade.
José: outro filho do casal mariano e Mariquinha. Na verdade uma
única referência nominal a esse terceiro filho do casal. O nome segue as mesmas
observações feitas em Zé Mariano e em Jóca.
152
3.5 Representação dos sujeitos sociais
Em A Barragem ocorre, através da constituição dos personagens, a
representação dos sujeitos sociais. Personagens que representam tipos
específicos de uma sociedade patriarcal nordestina/sertaneja da década de 1930,
inseridos num ambiente de luta pela sobrevivência e pelo
reconhecimento/destaque social.
A criação dos personagens é o resultado de um trabalho de vivência e
observação da autora com o seu meio. Assim, nascem em seu texto tipos
marcantes como Remédios (a jovem transgressora da moral estipulada
socialmente e dos bons costumes), Mariquinha (a matriarca sofredora),
Mariano (o sonhador e trabalhador homem sertanejo), Cabra-Lina ( a prostituta),
Quitéria (espécie de cafetina e ex-prostituta), D. Eudócia (a professora), D.
Euphrosina (a sábia), Sá Zefinha (a parteira), Padre Anselmo (pseudopadre),
Ministro (o político), Dr. Oto Muniz ( o coronel), entre vários outros.
Inicialmente, vamos discutir a personagem Mariano, o pai de família, o
trabalhador rural que, desmotivado pelos sucessivos anos de estiagem e,
sobretudo pela seca de 1932, vende o seu pequeno sítio, denominado Rancho
Doce, localizado nas imediações do Chabocão, vai retirado às obras de
açudagem, em São Gonçalo: “Elle que nunca tinha sido rico, é verdade, mas que
possuíra um pedaço de terra pras bandas do Chabocão, o Rancho-Dôce, uma
casinha... Uma vaca que dava leite para as crianças...”(p.06).
153
É um sujeito sonhador que ambiciona prosperar financeiramente.
Orgulhoso, não perdoou, ainda, o seu cunhado, José Trigueiro, irmão de sua
esposa Mariquinha, o qual representa o sertanejo que vai embora de sua terra
natal para centros urbanos e que consegue prosperar honestamente, pelo
trabalho.
Mariano era pai de sete filhos: “cinco homens e uma mulher [...] afora
outro que vai nascer em dezembro, o filho da sêcca. E se tivesse sido feliz
estaria com doze fedelhos”. (p. 06). Inicia seu labor na construção da barragem
como cavador-de-terra, passando pelo posto de feitor e chegando ao cargo de
administrador. Lutador, venceu barreiras e obteve uma vida para si e para a sua
família, dantes muito pobre. Houve um momento em que ele teve um caso com
uma mulher dissoluta, Cabra-Lina, mas o carinho por sua esposa o fez optar por
ficar com esta em vez daquela.
Homem íntegro e sempre amante da honestidade, Marano, em muitas
partes da história, revelando a probidade em seu ofício, descobre e denuncia um
esquema de desvio de verba pública que tinha a conivência e participação de
seus superiores, a exemplo de Daniel Sindú, apontador geral dos canais de
irrigação. Mesmo assim, o fiscal denuncia o caso ao chefe geral, o Dr. Barros, no
entanto, por não ter provas, o esposo de Mariquinha é também suspenso de suas
funções até que se apure o fato, o que só ocorre após a volta do Dr. Otto Muniz.
Mariquinha é a representação fiel da típica mulher sertaneja daquele
tempo: mãe honrosa e zelosa, esposa amorosa, prestativa e subserviente, é
totalmente agregada ao seu esposo. Até mesmo a sua voz é intermediada, muitas
154
vezes no romance, por Mariano. Compartilha os sonhos do marido e, com ele,
aspira a dias melhores. Ela acaba sendo, como a própria autora a descreve uma
cópia decalcada do marido”.
Mariquinha tem um caráter conservador em alguns aspectos, mas aberta a
novidades. Ela projeta na filha, Maria dos Remédios, a sua vontade de falar, de
possuir opinião própria e de ser livre. É uma mulher que se doa totalmente à
família, como veremos nessas passagens do romance:
1) Do pouco que lhe tocou, Mariquinha ainda repartiu, bolão na
boca de um e de outro. (p. 10)
2) A mulher costurou para fora enquanto foi possível, a fim de
arranjar fazendas para a roupinha do menino e outras coisas que
o Barracão não fornece.
Appareceu, porém, uma dor na perna e o jeito foi arrear. (p. 30)
3) Nem o estafar resignado de Mariquinha, debruçada dia e
noitte sobre aquella machina, visto pôr a economia acima de tudo,
até de sua própria saúde.
Dizem que a fêmea do lacrau, quando possúe filhos pequeninos,
deixa-os em cima de seu corpo a chupal-a, até que morra, e elles,
crescidinhos, passam a viver por si mesmos.
Melhor que isto faz a mãe sertaneja. Com os filhos criados, Ella
ainda se compraz em lhes dar o melhor de suas energias. E
mesmo sabendo que vae morrer, Ella tem filhos, porque jamais se
conpenetrará de que a sua vida possa valer mais que a dos seres
pequeninos que Deus lhe confiou.
Mariquinha se dá aos poucos, em holocausto, à sua família.
Mariano não se apercebe disso. E ella muito menos. Podiam
talvez pagar uma costureira. Mariquinha será a primeira a se
oppôr. Quer ter o prazer de que todas as peças do enxoval de sua
filha lhe passem pelas mãos grosseiras. Pobres mãos dedicadas
que viveram toda a vida a trabalhar para aquelles que moraram
sempre alli pertinho, dentro do seu coração... (p. 298)
155
Nessas citações, percebemos que Mariquinha é aquela mulher forte e
acolhedora, que divide o pouco que tem com seus filhos, mesmo que assim, fique
com fome (1). Vemos também que ela é quem sustenta a casa com suas costuras
até não aguentar mais, para que não faltasse alimento aos filhos, que
Mariano durante muito tempo não recebera pelo trabalho realizado nas obras da
fundação (2). Mariquinha, como diria Luiz Gonzaga era “mulher macho, sim
senhor!”. Macho no sentido de brava, de forte e resistente à labuta árdua diária.
Na citação (3), Mariquinha se doa de tal forma à família que é comparada a um
animal (o lacrau
58
) que morre para suprir a fome dos filhos. Desse mesmo jeito
age Mariquinha para com os seus: se doando em holocaustoaos seus filhos e
ao seu esposo. É uma mulher que se mata, pouco a pouco para vê-los felizes.
Ela dedica todo seu tempo ao espaço da cozinha de sua casa. Nas poucas
passagens em que a personagem aparece fora da casa, é sempre para realizar
alguma ação voltada para aquele espaço: seja quando ela precisa ir ao Barracão
comprar mantimentos para o seu lar, seja quando ela vai à feira com o seu
esposo, também para realizar alguma compra para o seu domicílio. Em outros
momentos, ela sai de dentro de sua residência, mas fica sempre nos limites da
mesma, como a calçada, ou o jardim. Assim, a casa, e principalmente a cozinha,
acabam sendo uma extensão da própria personagem.
O mundo de Mariquinha é limitado ao que Mariano lhe conta. Todas as
novidades que a personagem tem do que acontece no acampamento é através do
seu esposo. Salvo as exceções de Remédios e das vizinhas, D. Juvênca e D.
58
Lacrau ou lacraia é o mesmo que escorpião.
156
Eugênia. Todavia, as histórias que, para a matriarca da família Silva, nesse
romance, têm mais veracidade são as contadas pelo marido. Com isso, a autora
evidencia a credibilidade que os homens possuíam na sociedade daquele tempo
59
e o repasse de informações que o “dono da casa” quisesse repassar, apesar de
Ignez Mariz deixar a voz feminina ganhar força em A Barragem através da
personagem Remédios.
Mariquinha acaba sendo um bom exemplo da representação feminina
daquela época, pois ela representa a transição entre duas gerações: uma
totalmente patriarcalista e outra que começa a dar voz às mulheres. Pelo pouco
contato com o exterior de sua casa, Mariquinha consegue está aberta ao novo e
procura ao máximo fazer com que sua filha, Maria dos Remédios da Silva, seja a
representação dessa nova geração na trama.
Maria dos Remédios é uma personagem esperta no que diz respeito a se
sobressair diante de situações, que adquire voz durante o desenrolar do enredo,
representando a atitude feminina, a transgressão dos valores morais
estereotipados no ideário sertanejo. A filha de Zé Mariano e Mariquinha “a menina
dos seus olhos”,como coloca a autora, é uma adolescente impetuosa, não
possuía um bom comportamento na escola o que leva a sua retirada do
educandário que frequentava. Era uma mocinha trefega como se ainda fosse
criança”. Mostra-se, no entanto, moça honesta, o se permitindo levar pelos
homens. Pelo contrário, ela sabia lidar com o sujeito homem de tal forma que
sempre os mantinha em suas mãos, principalmente no que tange às questões de
59
Tempo do coronelismo, em que a voz feminina era sempre posta em segundo plano, tendo
credibilidade apenas se contada por um homem.
157
namoro.
Dentro do ambiente familiar, a jovem ganha destaque diante dos irmãos.
Assim como vai ganhando forças físicas, como mostra a passagem: “não que
esteja gorda, mas está outra, cheinha. É bonita, com seu tipo estranho de morena
de olhos verdes e cabelos castanhos com tons de ouro [...], Maria dos Remédios,
a mais velha [dos filhos do casal protagonista], quando viera retirada, davam-lhe
12 anos, mas contava 14. (p.14) ela é a única que possui diálogo representativo
na trama. Ela representa o elemento de ligação entre dois mundos: o mundo
antigo, patriarcal, servil mundo sertanejo dos retirantes e o mundo das novidades,
do ambiente cosmopolita, da implantação de novas idéias e da transgressão
moral.
Depois de uma temporada em Recife, em casa de seu tio materno, ela
conhece um mundo diferente do que vive em São Gonçalo e leva consigo de volta
ao acampamento a vontade de não mais laborar na terra, procurando obter um
casamento que possa realizar os seus sonhos de consumo. E afirma a sua mãe:
“Essa história de namorar com bebe-lama não é mais pra mim...” (p. 111).
Em muitas cenas do romance, podemos notar que Maria dos Remédios é
uma espécie de representação da própria autora: uma mulher além de seu tempo,
uma figura feminina que não ficava calada diante das injustiças ou de comentários
maldosos, principalmente a seu respeito.
Todavia, Remédios tem um final que acaba mantendo o estereótipo
culturalmente elaborado da mulher sertaneja: a mulher presa ao casamento e aos
158
afezeres domésticos. Porém, com um diferencial, é a jovem quem escolhe o seu
pretendente e, vale salientar, ela não casara por amor ao Sr. Ferreirinha, mas por
puro interesse financeiro, como é bem explicitado no texto:
_ Ferdinando também não é ruim, mamãe, mas ganha oito mil
réis por dia.
U‟a migalha...
_ Esse ainda não provou nada. Faz trez mezes que ta aqui e
seu Ferreirinha faz dois annos.
_ E tem trinta mil réis de diária, que é melhor. Ferdinando tem
oito. Um diferenção! (p. 242)
Modelo transgressor dos costumes sertanejos patriarcais, a jovem
Remédios “refaz o modelo estereotipada de menina obediente e ultrapassa os
limites estabelecidos para o comportamento de moça bem educada,
transgredindo todos os costumes da época, identificando-se nesse aspecto com a
própria Ignez Mariz” (SALES: 2005, p. 119)
A personagem Cabra-Lina aparece na trama como um outro elemento
transgressor, desvirtuador dos bons costumes morais da sociedade “familiar”. É-
nos apresentada como uma personagem de atitudes, que toma as iniciativas: “Zé
Marianno entrega a chicara emborcada. Sente alguma cousa por detraz, se
esfregando nelle. Que negocio é esse... Olha de banda. E‟ uma perna. E de
mulher, e por signal, que grossa.” (p. 74)
É o elemento representativo da prostituição. O seu próprio nome já carrega
um sentido de desprestígio humano, de animalização: a cabra, animal típico dos
159
sertões nordestinos, que foi, durante muito tempo, marginalizado pelos sertanejos
devido a sua capacidade peculiar de burlar todas as barreiras que lhe forem
impostas para manter a sua sobrevivência, alimenta-se de pedregulhos, mas
mantém uma vivacidade não encontrada em outras espécies de animais de nosso
lugar.
Outro exemplo de animalização do ser humano, na obra, principalmente no
que se refere às mulheres prestadoras de serviços sexuais é o da amiga de Lina:
“Ribaçã... O nome de guerra de Luiza da Conceição, pareceira de Lina. (p. 187).
Vale salientar que a ribaçã é uma ave sertaneja migratória que sempre encontra
pouso próximo a locais que possuem água. No contexto desse romance, a ribaçã
é concebida num aspecto pejorativo, pois a prostituta é vista como aquela mulher
que pousa em vários pontos de água (nesse caso, vários homens).
Mas voltando à Lina e sua alcunha animalesca, vemos que a cabra (ou a
cabrita), principalmente aqui no sertão nordestino, também é sinônimo de
elemento transgressor: incapaz de manter-se preso a cercados, esse animal é
conhecido por saltar cercas, por mais bem feitas que forem, é um animal rústico e
de beleza ímpar. Quando alguém é chamado de “cabra”, pode, no caso
masculino, ser um elogio, sinônimo de homem forte, corajoso; mas no aspecto
feminino, um insulto. É, nesse último caso, representação animalesca de
prostituta: uma mulher “cabra” é aquela que pula cercas sociais para sobreviver,
que dribla a moral imposta pela sociedade e encontra meios, os mais diversos,
para sobreviver. Assim era Cabra-Lina, a cabrita social, a prostituta do romance A
Barragem: “uma cabrocha sapeca [...] baixota e recheada, Lina tem os peitos
160
empinados às custas dos sacos de madapolão e um dente de ouro na frente, de
papel de chocolate”. (p. 74).
Observemos que em nenhum momento dessas duas descrições da
personagem uma menção direta a suas características psicológicas. Na
história, sabemos que Lina, filha de Quitéria (que representa uma espécie de
cafetina, por oferecer os serviços sexuais da filha aos empregados da Fundação,
por já não fazer mais tais atividades, e, além disso, ela impõe esse “meio de vida”
à filha), é uma vendedora de café e pequenos lanches na feira. Por suas ações,
percebemos que ela é dissimulada e despida de vergonhas ao interagir com os
trabalhadores das obras do açude.
Pobre, sem estudos, moradora da Rua do Gogó (uma das ruas onde
residiam os moradores mais pobres do acampamento) e sem perspectivas de
prosperidade financeira por sua própria labuta, Lina inicia um caso amoroso com
Mariano e, com isso, consegue uma certa estabilidade no que diz respeito aos
mantimentos alimentícios. Quando o seu amante é suspenso dos serviços de
fiscalização dos canais, a jovem Lina, por imposição de sua mãe, Quitéria, rompe
o chamego amoroso com ele. Ao perceber que Mariano é reconduzido ao seu
posto, ela resolve voltar a ter, com ele, um caso. Burla uma gravidez e, depois é
desmascarada. Apesar das artimanhas que fizera para manter o seu bem-estar
com o romance com o esposo de Mariquinha, Lina desenvolvera uma afeição
muito forte por Zé Mariano.
Diante disso, percebemos que Lina, apesar de ter se envolvido também
emocionalmente pelo fiscal, mantinha uma relação de interesses. Algo que não
161
deve ser visto apenas nessa personagem. A ganância e a ambição pela
prosperidade financeira e social é percebida nas atitudes de Mariano que,
desde o início da história, almeja chegar aos cargos mais altos; nas ações de
Remédios, que casa-se com Ferreirinha por interesse financeiro; e vários outros
personagens que exaltam o dinheiro.
Além dessas quatro personagens centrais, outros também permeiam o
romance dando a sua contribuição social ao enredo. Uma dessas personagens é
D. Eudócia, representação da professora, a “mestre-escola da aldeia” como a
define Ana Maria Coutinho Sales, pesquisadora que desenvolvera um importante
trabalho de resgate da memória das professoras/escritoras paraibanas do início
do século XX. D. Eudócia, como veremos mais detalhadamente na seção sobre a
representação da educação, neste capítulo,era uma professora de meia idade
(pelo que interpretamos do enredo, tinha em torno de quarenta anos de idade e
era ainda solteira. Possuía uma disciplina rígida, tradicional, que espelha muito
bem o tipo de educadora daquela época.
Outra personagem ligada à educação é Adolpho Soares, que se faz de
professor particular a Mariquinha para tentar manter certas intimidades com
Remédios. Era “um sujeito de fora, desses casados „se´vergonhos‟. Magro, bôcca
funda, cara esburacada de cicatrizes de espinhas”. (p. 193), que acabara
representando os professores domiciliares, que educavam os filhos dos coronéis
do sertão nordestino, principalmente as moças. Vale lembrar que os educadores
domiciliares não eram esses indivíduos pervertidos. O senhor Soares reproduz
uma pequena parcela, podre, dessa classe trabalhadora, que tanto contribuiu
162
para a educação sertaneja.
Uma outra personagem marcante é D. Euphrosina, uma velhinha de
oitenta e seis annos” (p.152), que representa a memória viva do lugar. É através
dela que conhecemos um pouco mais sobre a própria história de São Gonçalo,
dos festejos e do costumes. A memória de D. Euphrosina é ativada pelo interesse
de uma outra personagem em fazer florescer uma tradição cultural dormente (os
festejos dos santos), D. Vivi Murtinho, esposa do engenheiro residente, o Dr.
Murtinho, a qual reconhece que, aquela terra tinha adormecidos costumes,
tradições e memórias que deveriam ser lembradas e revividas. Desse modo,
essas duas personagens acabam sendo uma espécie de representação da
memória e da tentativa de se manter viva a cultura local: D. Euphrosina, o arquivo
vivo daquele lugar e D. Vivi, o olhar de fora (pois ela não era sertaneja, era uma
forasteira) que percebe, reconhece e valoriza a cultura local.
que estamos abordando o aspecto religioso, temos - além de toda a
religiosidade de Mariquinha, com os seus hábitos religiosos femininos: reza
matinal, oração do terço, às seis horas e a exigência do pedido de benção dos
filhos aos pais - duas personagens que merecem destaque, junto a esse aspecto:
o beato Vicente Barata e o padre Anselmo.
O Sr. Vicente Barata, é um velho religioso da comunidade, que representa
os devotos fervorosos do sertão nordestino. Promove novenas e leilões
beneficentes em prol dos santos:
163
_ Velho divertido! Commenta o povo. Arrastando setenta annos, parece
um menino. Espevitado!
_Nem todo rapaz é tão fogoso assim.
Sempre os festejos funccionaram em Souza. Agora seu Vicente Barata é
vigia aqui. Com elle mudou-se o seu alto espírito de religiosidade...
A casa do velho fica na praça do mercado. O pateo está apinhado de zé-
povinho.
Seu Vicente preside a funcção.
(...)
Seu Vicente canta o Gloria Patris com voz fanhosa de taboca rachada. O
Padre Nosso, o hymno da Senhora Santanna.
(...)
Tira as rezas virado para o público. (p. 274 - 275)
Como vemos, o senhor Vicente Barata era o religioso que acabava
realizando atividades típica de um padre (celebra missas, casamentos, batizados
etc.). E, falando nessa figura social, a sua representação aparece em A Barragem
na persona de Padre Anselmo, natural de o José de Piranhas, esse religioso
aparece no romance da seguinte maneira:
O maior successo desta semana aqui é o padre Anselmo.
Elle é celebre na chronica sertaneja da Parahyba.
Nunca tomou a sério, parece, a dignidade da batina, sem querer
dizer com isto que seja desonesto.
E‟, porém, tão galhofeiro, tão irreverente para com os outros e
consigo proprio...
E aqui está em SÃO GONÇALO, para confessar as matutas e
dizer u‟a missa.
Não fugiu aos seus hábitos por estar no acampamento, onde a
língua do povo é maior que a própria Barragem (p. 55 - 56).
Segundo relatos de pessoas mais antigas do lugar, o padre Anselmo
realmente existiu. Era um homem engraçado e que tinha o respeito apenas por
164
ser clérigo, todavia, respaldo às missas rezadas por ele não havia.
Talvez a autora tenha resolvido inserir tal personagem no romance para
representar padres galhofeiros (zombadores) da região. A exemplo de um outro,
padre Verdeixas, que ficara folcloricamente conhecido por ter escrito, em certa
vez, diante de uma parturiente com dificuldades em dar à luz, num papel umas
palavras, dobrara-o, colocara-o num saco de pano e que, durante muito tempo
essas palavras eram tidas como uma oração milagrosa. Porém, tempos depois,
uma senhora resolveu mudar o saquinho, pois estava muito surrado. Ao ler o
que estava escrito no papel constatou a seguinte frase: “Eu e meu cavalo
passando bem, quem quiser parir que para”. Esse acontecimento acabou se
tornando folclórico em nossa região e a frase (“oração milagrosa”), tornara-se
jargão nas rodas de conversas da cidade. Segundo Pinto (1988): “Em torno do
padre Verdeixas, apenas existe a tradição de que fora um mile autêntico do
padre Anselmo, nosso contemporâneo - esquisito, rebelde e galhofeiro” (p. 98).
Como vemos, Ignez Mariz foi muito feliz em inserir no enredo uma
personagem como o religioso gracejoso, que era o padre Anselmo. Fazendo com
que a representação do religioso pudesse ser associada ao próprio padroeiro da
comunidade, São Gonçalo, uma vez que o santo era dado a cantorias e a viver
rodeado por moças. Essa associação do padre ao santo pode ser constatada a
partir da descrição seguinte: “Na rêde armada bem no meio da sala da frente,
violão ao peito, canta modas até altas horas da noite.” (p. 56).
165
3.6 - Política e economia: um costume antigo representativo da região
no romance a representação da economia local. Uma dessas
representações é quanto à paga e o sistema de Barracão. No que se refere à
paga, tínhamos um retrato da humilhação que o sertanejo passava por não
receber em dia pelo que trabalhara, tendo que ficar nas mãos dos donos dos
barracões, que eram, geralmente os coronéis da região, os quais mantinham
certos acordos com os governantes para poderem, nesse sistema de repasse de
mercadoria, ficar com quase todo o dinheiro dos trabalhadores, pois cobravam
juros exorbitantes e, além disso, burlavam as contas, devido a maioria das
pessoas que ali compravam, não sabiam nem ler, nem contar. O barracão
acabava funcionando como uma prisão para os cassacos, pois estes viviam
eternamente endividados com os donos desse tipo de comércio.
Infelizmente, em algumas cidades do interior nordestino, principalmente
aqui, no sertão paraibano, o sistema de barracão ainda ocorre, principalmente nas
cidades em que a economia gira em torno dos empregos das pequenas
prefeituras, que geralmente não pagam aos seus funcionários em dia e eles tem
que adquirir mantimentos nos mercadinhos (ou bodegas), a prazo e geralmente
com juros acima do comercial.
No romance, ainda é retratado um outro tipo de sistema de economia, que
são as “Cadernetas Rurais”, espécie de poupança onde os trabalhadores
depositavam alguma economia excedente (raramente). O domínio dessas
cadernetas também eram dos chefes políticos.
166
Quanto à política, a representação ocorre através das referências aos
coronéis (política do coronelismo, ainda vigente); a dois partidos políticos de
grande representação na região, sendo mais conhecidos como “Urucubacas” e
“Bacuraus”: um representando a situação e o outro, a oposição, como podemos
notar no trecho abaixo:
A cassacada não se incommoda. O povo de fora demonstra interesse
relativo. Mas o povo da terra, transpirando política por todos os poros, se
afunda em discussões, se divide em partidos: Governo, Dissidencia,
Opposição.
Seu Osório Marques não tem patente, mas vae “bancar o coronel”...
(IDEM: ibdem, p. 124)
A política é algo intimamente presente na vida do sertanejo quanto a sua
convivência com o fantasma da seca. No fragmento acima, temos um modelo de
política “democrática”
60
, em que haverá comícios, disseminações de idéias e que,
para a grande massa de trabalhadores de São Gonçalo não terá tanta
importância, por isso, não manifestam expectativa alguma diante da chegada da
caravana política ao acampamento, pois eles não votam e, os integrantes dessa
caravana política, alojada na casa do Sr. Osório Marques, desistem de
prosseguirem com os comícios, uma vez que num contacto direto com o
operariado os caravaneiros desistem do „alto postulado de disseminar idéias‟ [...]
pelo menos em São Gonçalo. Tudo isso porque 98% dos cassacos são
analphabetos. Portanto, não poderão votar...” (IDEM: ibdem, p. 133) .
Assim, percebemos também, o interesse futuro de fazerem com que os
cassacos aprendam a escrever pelo menos o nome. Para se tornarem eleitores e
60
O termo vem encoberto pelo ideário coronelista comum à época.
167
beneficiarem político-financeiramente os coronéis da região com a manutenção
do voto de cabresto.
no romance, várias outra passagens e referências á política. Todavia,
nada é tão marcante quanto a representação da importância que os sertanejos
atribuem ao Ministro da Viação, José Américo de Almeida. O qual pode até ser
considerado uma personagem do romance, não por participar diretamente da
história, mas por se fazer constantemente presente nas evocações do povo local
a ele, que é visto como um grande representante dos paraibanos, sobretudo os
sertanejos, os flagelados pelas secas.
José Américo, em A Barragem, é citado desde o início da história, quando
Mariano ouve trechos de A Bagaceira
61
na Goiabeira (um sítio próximo a sua
antiga casa, no Rancho-Dôce). Depois, em várias outras falas dos personagens,
sempre sendo lembrado como aquele político que, depois de Epitácio Pessoa,
fora quem procurou trabalhar em benefício dos nordestinos. Principalmente,
porque foi devido a ele, que lutou para a retomada das obras de açudagem no
interior do Nordeste brasileiro, que a construção de vários açudes no sertão
nordestino se concretizou. Gratos e sabedores dessa versão histórica, o discurso
da maioria dos sertanejos, naquela época, internalizando um discurso elitista,
também inserido na fala dos personagens da obra em estudo é que: João
Pessôa matou o cangaceirismo na Parahyba. José Américo de Almeida
desprestigiou a Sêcca. Os dois males maiores que minavam a nossa economia,
desappareceram.” (MARIZ: 1994, p. 321).
61
Obra inaugural do Romance Regionalista de 1930.
168
3.7 Rabiscos das águas: a representação da educação rural
A Literatura é uma forma de representação social construída a partir da
percepção e reflexão de escritores sobre a realidade local e não apenas sua mera
descrição. Os romances, sobretudo, têm uma maior importância nesse aspecto de
representação, pois nos trazem uma visão, muitas vezes já consolidada, da
realidade, uma vez que constitui um reflexo do pensamento social e literário da
época, por parte dos escritores. E como maneira de abordar esse representar e
esse refletir sobre a realidade, Ignez Mariz, num processo e intertextualidade e
também numa forma de homenagear um autor conterrâneo e inspirador dela,
através da voz de Zé Mariano relata:
Diz o povo, Marica, que elle [o Ministro da Viação José Américo
de Almeida] escreveu um livro todinho contando a sêcca.
- Elle já foi “retirado”, Zé?
- Voê é besta, Mariquinha. Elle é um doutor formado. Diz o povo
que inventou as historia de cabeça, como a gente faz conta... Mas
eu ouvi ler um pedaço do livro na Goiabeira de Compadre Luiz
Silva e foi tal-qual o que nós passemo... (MARIZ: 19994, p.13)
A educação está também representada em A Barragem, seja através da
educação oral, como no trecho acima, em que há o contato dos agricultores com
a Literatura, através da oralidade, a partir do momento em que um leitor de A
Bagaceira faz a leitura oral de uma parte do romance, socializando, assim, a
história e, como fica claro pela fala de Mariano, acaba marcando o ouvinte;
169
seja através da educação moral, em que os valores morais e religiosos são
repassados geração para geração; seja pela educação escolar (no caso da obra,
a educação rural
62
), representada principalmente pela escola da professora D.
Eudócia e pela escola noturna.
Desse modo, percebemos uma preocupação da autora em trazer para as
páginas a abordagem educativa, estabelecendo cenas e personagens marcantes,
realizando uma representação social da educação rural daquele tempo, no sertão
nordestino. Uma educação que tinha a preocupação apenas com o ler (no sentido
apenas de decodificar), o escrever e o contar.
Uma das primeiras preocupações acerca da educação, no romance, é o
fato de os donos dos Barracões, aproveitando-se do analfabetismo dos
trabalhadores braçais, ludibriavam-lhes e, assim, conseguiam enriquecer-se às
custas do suor e da cegueira dos pobres braçais diante das contas, os quais,
mesmo sabendo que estavam sendo enganados, nada podiam comprovar e
preferiam acreditar na palavra do coronel dono do Barracão, o qual “é mais
versado em truques do que cigano de feira
63
”. Assim,
Se o operario vem, por exemplo, comprar uma lata de doce por
2$800 para a mulher que está “de desejo”, o caixeiro do Barracão,
industriado, faz o lançamento:
I Kilo de xarque ..................................................................... 3$200
62
Educação rural entendida como a educação oferecida no interior do Brasil, sobretudo no sertão
nordestino do país, a colonos, brancos ou negros, pequenos proprietários de terras e seus filhos e
até mesmo para os filhos de latifundiários. Tal conceito é oriundo da República Velha, hoje
substituído por “educação para o campo”. Abrangia a educação ministrada na primeira fase da
vida escolar.
63
IDEM: ibdem, p. 11
170
O cassaco não sabe ler. Como protestar?
Quando o engenheiro-residente examina as Cadernetas de
“Fornecimento” encontra tudo mais ou menos em ordem
64
.
No que se refere à educação oral, podemos citar, além da primeira citação
do romance nessa seção, os causos narrados nas rodas noturnas de conversa, à
noite, as histórias de contos de fadas que D. Eudócia contava às alunas, além de
expor a elas peculiaridades de outra cultura, da qual as alunas não tinham
conhecimento, mas que a professora achava necessário repassá-las, pois D.
Eudócia foi duas vezes á capital e gosta de falar em cousas que as alumnas
nunca viram
65
. Além desse exemplo de transmissão oral da cultura, temos o
exemplo de D. Euphrosina que reconta a D. Vivi Murtinho a história das
festividades religiosas de Sousa e região
66
.
Quanto à educação moral, vemos durante o livro a preocupação em
manterem-se os padrões morais e culturais de antes, apesar de A Barragem
trazer uma visão de mundo da sociedade patriarcal daquela época. Isso fica
evidente quando, ao falar sobre a educação dos filhos e, principalmente da de
Remédios, Mariquinha [explica que] pretende educal-a nos velhos principios de
sua própria criação
67
”. Nisso, notamos também, um conflito entre as visões do pai
e da mãe da jovem, quanto ao educar da mesma:
64
IDEM: ibdem, p. 11
65
IDEM: ibdem, p. 42
66
Cf. “Festa a São Gonçalo: tradição religiosa aflorada por saudades rememoradas” (neste
capítulo).
67
IDEM: ibdem, p.25.
171
Marianno tem sempre um sorriso para os exaggeros da
mulher. Embora não queira a filha como ovelha solta no pasto,
também não a quer tanto rabo-de-saia.
- Minha filha há de ter juízo de sobra, que eu estou fazendo Ella a
meu jeito... gosta Mariquinha de dizer.
Ella é capaz de passar uma hora a tecer commentarios em torno
de um ponto de moral. Ao passo que a filha, fructo do meio
cosmopolita, vae se formando completamente oca de
preconceitos. Faz ouvidos de mercador aos “sermões”; os
conceitos de Mariquinha, entrando num ouvido e sahindo pelo
outro
68
.
Além dos valores morais e éticos, a educação moral e também cultural
sofre modificações e influências de outros meios. Quando Remédios volta do
Recife, traz uma outra visão acerca dos princípios adotados em São Gonçalo.
Sua mente, como percebemos no fragmento acima, fica mais limpa ainda dos
preconceitos e, mesmo sendo representação da transgressão moral daquela
época, no acampamento, por namorar demais, ela não leva tais comentários em
consideração e, mais uma vez “faz ouvidos de mercador”.
Vejamos um trecho do romance em que Mariquinha demonstra, através de
seus atos e de suas palavras, a sua educação rígida e também como ela
interpreta as novidades da sociedade em que vivia, repassando-nos um outro
exemplo de como era a educação daquela época, sobretudo no que tange ao
aspecto moral:
Mariquinha tece considerações.
_ Quem muito abarca pouco aperta, minha filha. Trate de se
decidir. Você gaz a Ferdinando e corda a seu Ferreira. Isto
68
IDEM: ibdem, p. 25
172
não é decente... e eu não sei onde ta com a cabeça que não
lhe amarra no pé da mesa.
Remédio dá uma gargalhada escandalosa. Ri até às lágrimas com
a “esperança” de Mariquinha.
_ No pé da mesa, mamãe? Em que século se fazia isso?
_ Minha mãe me amarrou uma vez, quando... Eu merecia mais
confiança do que você.
_ Mas não me disse quando foi. Mas eu sei. Porque papai me
disse.
(...)
_ ... papae saltou a janella, desamarrou você, damnou-lhe o beijo
pra cima...
_ Você apanha na bunda se continuar...
(...)
Remédio abre os braços e fecha-os com ella dentro. A chinella
cáe. E Mariquinha esconde o rosto no ombro da filha.
(...)
_ Beijei, Remédio, não négo. Ma foi só a elle na vida toda!
(...)
_ Pois, e não é tão bonito isso? Eu, a sua filha, com dezesseis
annos, nem sei mais de quantos já me beijaram... Que graça póde
ter um casamento assim, mamãe?
_ pode ter graça, sim. Até as que escorregaram podem ainda ser
felizes. Tudo depende do homem que tomar conta dellas...
Quanto mais você que é pura, minha filha. Fale com o coração
aberto: só deu a sua bôcca, não foi?
69
Temos nesse diálogo entre mãe e filha o reflexo de uma educação severa,
tempo em que as mulheres que desobedecessem as ordens dos pais eram
amarradas ao da mesa, como Mariquinha relata à filha. Percebe-se também
que, quando o assunto estava ligado à questão relacionada à educação sexual, a
conversa não ocorria.
No trecho acima, vemos que, ao falar em beijo, Mariquinha tem muita
69
IDEM, ibdem, p. 244 - 246
173
vergonha em conversar com Remédios, tanto é que, ao ouvir a filha tocar no
assunto ela não tem coragem de olhar para a garota e esconde o rosto no ombro
de Remédio, expondo que havia uma repressão muito forte sobre a temática
naquele tempo e que ainda perdura atualmente, mesmo que de forma branda,
em nossa sociedade sertaneja; contudo, a autora abre espaço no romance para
discutir sutilmente esse assunto.
Na citação, Mariquinha, mesmo envergonhada diante da filha, pelo fato de
Remédios saber como havia sido o primeiro beijo dela com Mariano, a mãe
zelosa mostra-se aberta ao fato de aceitar que a filha tenha experimentado
beijar vários rapazes, porém, teme pela reputação da filha, ao indagá-la se ela
havia dado a boca aos seus namorados, o que, se tivesse ocorrido algo a mais, a
mocinha estaria moralmente, perante a sociedade, maculada.
A educação representa a possibilidade mais eficaz de ascensão social. Ela,
na sua modalidade escolar (no sentido de educação rural) ganha maior
representação no romance. O personagem Mariano, inicialmente analfabeto,
sente a necessidade de aprender a ler e a escrever para “subir na vida”, sendo
através dos avanços na “escola para cassacos”
70
, no Posto Agrícola, que
70
Segundo um senhor de 88 anos (R.A.S.), que trabalhara, ainda menino de aproximadamente 13
ou 14 anos de idade, nas obras de udagem de São Gonçalo, em conversa sobre a construção
do açude de o Gonçalo, relatou que alguns meses depois da retomada das obras, no
acampamento, em 1932, alguns funcionários da empresa Dwigt P. Robisn & Cia- construtora
responsável pelas obras de açudagem montaram uma pequena escola para que eles pudessem
aprender um pouco mais a Língua Portuguesa. Percebendo a curiosidade dos “cassacos” para
aprender a ler e a escrever (os quais ficavam às janelas da escolinha espiando as aulas dos
americanos), estes funcionários resolveram abrir uma sala de aula para ensinar aos funcionários
mais empenhados nos trabalhos da barragem. Assim, nasce a primeira sala de aula noturna,
localizada em um dos galpões do posto agrícola. O horário de funcionamento e era das 19h às
21h. O objetivo principal era o ensino das primeiras letras para que eles pudessem assinar os
próprios nomes na lista de recebimento da paga e também para que eles pudessem aprender a
calcular a fim de que eles pudessem realizar cálculos sicos para que pudessem ser utilizadas
174
Mariano começa a “desarnar” e, com isso, é promovido de cava-terra para a
categoria de apontador
71
:
Trabalhava o dia inteiro sem pestanejar... não puxava conversa
cm ninguém... assim fui dando, fui dando, até que um feitor
arreparou de mim. E me disse: Marianno você sabe ler? Tomei
até um susto, elle sabia meu nome! Dei agora o primeiro livro, seu
moço, sei conta pouca, mas sempre sei. Isso era num particular
todo especial. Então elle me disse: você cale a bôcca, porque eu
vou subir você... eu quero ver se consigo fazer de você gente.
[...]
Quase não sabe ler, entretanto. Num rasgo de força de vontade
estuda com afinco, noite adentro, depois das 9
½
horas de
trabalho.
72
Nesse trecho, percebe-se, além da ascensão social pela educação, o fato
do “querer aprender”. Zé Mariano, mesmo analfabeto, sem saber ler, ao ser
indagado se sabia ler, ele responde: “sei conta pouca, mas sempre sei”, ou seja,
ele estava sempre disposto a lidar com o novo, a aprender.
a outra personagem central do romance, a jovem Remédios, filha de
Mariano, não se preocupa com os estudos. Todavia, a autora contorna a situação
mostrando que, de algum modo, a garota terá que aprender ler e escrever. Os
pais da menina, Mariano e Mariquinha, estão sempre preocupados com a
nas obras, tais como: cálculos para argamassa, metragem etc. O professor era um americano que,
morara durante anos no sudeste, antes de vir para o espaço sertanejo nordestino, o qual,
inicialmente, tivera resistência dos alunos-cassacos devido ao seu jeito “desomizado” de se portar.
No ano seguinte, criaram uma escolinha para os filhos dos funcionários (representada no romance
pela escola de D. Eudócia). E em 1943, o Dr. Guimarães Duque derruba o prediozinho e constrói o
Grupo (hoje Escola Estadual de Educação Infantil e Ensinos Fundamental e Médio “Estevam
Marinho”).
71
Apontador era o cargo responsável pela coletagem da frequencia, por turnos, dos trabalhadores
braçais das obras da Fundação.
72
IDEM: ibdem, p. 23- 265
175
educação dos filhos, que A meninada toda freqüenta a escola particular da
villa
73
. Apesar dessa preocupação toda, Mariano retira Remédios, após
muitas travessuras da menina, do educandário, com o consentimento da
professora D. Eudócia:
A‟ tarde Remédio treme quando d. Eudócia vem chegando toda
empoada, sorridente.
_Que alma se salvou hoje, diz Mariquinha abraçando a amiga.
um milagre!
[...]
_ Não são coisas agradáveis, d. Maria, começa logo, incapaz de
contornar uma questão.
Arrisca um rabo de olho pra Remédio que olha em frente sem
pestanejar, se fazendo de abysmada com qualquer cousa.
_ Mas.. eu queria um particular, diz a professora, mais baixo.
[...]
Espirra tudo: a historia da peteca, as chinelladas nos pés do
defuncto, um escorrego que ella deu na Fundação e o namorado
ajudou a levantar... e pra cumulo, a beijoca que a vizinha de
defronte apreciou por uma brecha escondida atraz da porta.
[...]
_ Hoje mesmo vai saber de tudo isso. Quem havia de dizer, D.
Eudócia! Minha filha, criada no rabo da saia...
[...]
Em algumas cousas Mariquinha é bôa entendedora.
Comprehende a meia palavra de d. Eudócia. Tira a menina da
escola.
74
Notamos também que a professora Eudócia, que não agradava às alunas,
por seu rígido modo se ser e de se portar em sala, é uma representação social
das educadoras daquela época: Modelo de professora eficiente daquela época,
73
IDEM: ibdem, p. 24
74
IDEM: ibdem, p. 45 - 47
176
um tipo de professora policial que Paulo Freire tanto critica...” (SALES: 2000, p.
119). Uma professora calcada nos princípios do mero repasse das informações,
na organização da sala e no zelo dos objetos dos alunos, no silenciamento
discente e no poder autoritário docente, enfatizados pelo uso da palmatória, de
beliscões e gritos.
Tempos depois, na ânsia de que Remédios se alfabetizasse, Mariquinha
permite que o Sr. Adolpho Soares, um homem de boa lábia que, interessado em
“namorar” Remédios, dê aulas domiciliares à garota:
Offereceu-se a Mariquinha para ensinar a Remédio, de graça.
[...]
Remédio é já moça feita, não vae se misturar com fedelhas de
aula primaria. E mesmo... andou em recife. Um professor
particular é mais decente.
[...]
Remédio nota, em breve, que o sujeito do oco do mundo póde ser
tudo, menos professor
75
.
Além dessa outra modalidade contida na educação rural, o modelo de
ensino domiciliar, a autora traz uma personagem que, é capaz de fazer uma
leitura da situação muito bem: Remédios, a qual faz uma leitura de mundo de
maneira muito pertinente com relação ao caso do Sr. Adolpho Soares, como
propagou Paulo Freire.
Além desses três tipos de educação, que a autora retrata no romance, a
75
IDEM: ibdem, 193
177
preocupação com a instrução é algo marcante. Ela valoriza o aprendizado da
leitura e da escrita em outros momentos. Por exemplo, na cena em que
Mariquinha, ao receber uma carta do seu irmão, aguarda ansiosamente a
chegada do esposo (que sabia ler) para tomar conhecimento do conteúdo textual.
Porém, após o esposo negar-lhe responder à carta ao cunhado, Mariquinha, com
orgulho da filha por ela saber ler e escrever pede à filha que ao Barracão e
compre todo o material necessário para respostar a carta a seu irmão:
Quando Mariano termina a leitura e atira a carta para uma
banda, Mariquinha está chorando de felicidade, os olhos pra cima,
as mãos grosseiras uma por cima da outra descansando no peito.
[...]
_Tem nada não. Remedio responde.
Mariquinha chama pela filha, eternamente na casa da vizinha.
_ alli no barracãoseiro e traga uma folha de papel de carta
bom, um enveloppe, um tinteiro e uma pena, tudo novo.
[...]
... Mariquinha, sem nenhuma pressa, vae dictando uma carta bem
longa, historiando todo o infortúnio de Sêcca, a melhoria de agora,
as esperanças do marido no “augmento”.
E termina: “é a minha filha Remédio quem escreve a tu, irmão do
meu coração...
76
A importância dada à escrita é muito marcante. Remédios representa uma
pequena parcela de moças que, naquele tempo, tinham a oportunidade de serem
alfabetizadas. A maioria das meninas sertanejas era criada e educada para o
casamento e só aprendiam os afazeres domésticos.
76
IDEM: ibdem, p. 64
178
A personagem em questão, mais uma vez, transgride àqueles padrões
patriarcais e lida com a escrita. Mariquinha, nessa ação da filha uma
possibilidade de liberdade da adolescente, uma vez que não necessitará da
eterna percepção de outra pessoa (alfabetizada) para lhe explicar algo, como no
caso da relação Mariquinha/Zé Mariano, em que a matriarca é a cópia decalcada
do marido. [...] Até quando lhe perguntam a edade dos filhos fica dependurada
dos lábios de Zé...”
77
. Ou seja, a liberdade a que se refere Mariquinha é a própria
capacidade de falar, de se expressar, independentemente de outrem, já que havia
o silenciamento das mulheres daquele, devido à cultura vigente.
Um outro ponto interessante, quanto à valorização da escrita e da leitura é
o fato da autora inserir no romance a criação de um jornal local. Havendo, com
isso, uma representação pessoal da autora, através da personagem Remédio, a
qual, assim como a menina trefegatambém era jornalista e escrevia com seu
esposo na mesma repartição.
Dentro da primeira edição de O Esportivotem a presença da filha de
Mariano em uma narrativa simples, escrita por ela e assinada apenas M.R.S
78
., ou
seja, Maria dos Remédios da Silva, que os jovens que participassem de jornais
eram vistos como anarquistas da ordem pública e deturpadores de consciências.
Mesmo assim, o jornal O Esportivo”, retratado no romance,representa a
voz, “o espírito moço da Mocidade de São Gonçalo, sob a inspiração de uma idéa
nova
79
; ademais, o periódico nascente, escrito por jovens, exige que “Dentro
77
IDEM: ibdem, p. 24.
78
Cf. MARIZ: 1994, p. 269-273
79
IDEM: ibdem, p. 269
179
[daquela] officina de trabalho, faz-se questão de que todos executem a sua tarefa
com esforço e sem queixume, commentem sem provocar discidia ou escandalo,
critiquem sem ferir ou diminuir a moral de quem quer que seja, numa palavra,
digam a verdade sem medo de errar”
80
.
O que mais chama a atenção, quanto à educação, no capítulo XXII, onde
está inserida a edição de “O ESPORTIVO” é o fato de como Remédios fica diante
das páginas do tablóide. Ela se interessa pelo jornal não pelo fato dela ter
escrito umas linhazinhas, mas pelo material de leitura que o informativo local o é,
mostrando-nos a importância da leitura e o interesse da menina pelo ato de ler e
de se informar:
Remedio vira e revira o jornal. E o povo que dizia tanto, ser
impossível um mensario aqui! Ella engolle até os reclames, letra
por letra. [...] O ESPORTIVO dá noticia de tudo. Os artigos, porém
são assignados com pseudonymos. Os papás temem a
responsabilidade dos filhotes perante o publico.
81
Realmente, Ignez Mariz, preocupada como era pelo tema, fez uma boa
representação social do aspecto educativo da época. As interpretações que a
jovem Remédios fazia das situações eram sempre peculiares e pontuais;
admiração e a perplexidade de Mariano diante do envelope da a carta do
irmão de Mariquinha, que tinha o nome dele escrito à máquina; o entusiasmo dos
jovens sertanejos ao escreverem “O Esportivo”, além de várias outras passagens
demonstram o valor de tal tema não para o romance, mas, como a própria
80
IDEM: ibdem, p. 269-270
81
IDEM: ibdem, p. 270
180
autora coloca, “para o progresso do Brasil”.
A seguir, na segunda parte do nosso trabalho dissertativo, trataremos da
discussão a respeito do ensino. Mais precisamente, do ensino de Literatura.
Discutiremos alguns pontos teóricos para respaldar a nossa análise e, por fim,
traremos um relato de experiência de como ocorreu a aplicabilidade, ou melhor, a
didatização do saber literário aplicado ao romance em estudo e também como
ocorreu o processo de recepção dos alunos envolvidos na atividade prática em
sala de aula.
181
CAPÍTULO IV
4 - DAS PÁGINAS DO ROMANCE À SALA DE AULA: DIDATIZAÇÃO DO
SABER LITERÁRIO
4.1 Contextualização do ensino de Literatura
Não é de hoje que o ensino brasileiro vem sendo questionado pelos
especialistas. Cada qual, em sua área específica de estudo, analisa e identifica
problemas relacionados ao repasse de conteúdos e à aquisição do conhecimento
pelos alunos. No tocante ao ensino de Literatura, também não é diferente.
Fala-se muito em como se pode(ria) melhorar o ensino, em como se
deve(ria) ou não deve(ria) repassar aos educandos o conteúdo programático das
disciplinas escolares. Porém, muito pouco se discute acerca do valor dos
conteúdos transmitidos aos alunos, ou ainda, como os alunos compreendem os
assuntos dados em aula.
Todo esse repertório de mesmices teóricas quase nada resolve na prática
cotidiana de sala de aula: passam-se os anos, os alunos passam (ou migram) de
série e o grande objetivo do ensino formar leitores/produtores de textos efetivos
fica à margem do processo educacional. Por que, então, isso acontece? Essa e
outras indagações ficam atravessadas na garganta (ou melhor, na mente) de
182
muitos educadores. Mas como responder a essa questão?
O ensino de Literatura, por sua vez, poderia ser a solução para tal
dificuldade, no entanto, o modo como esse componente curricular é repassado
aos alunos, os afasta cada vez mais do gosto pela e do hábito da leitura
(principalmente da leitura literária), ampliando, tal óbice, no que tange à escrita.
Embora pareça simples, formar leitores e produtores de textos é uma tarefa
árdua e quase sem perspectivas de êxito, porque, enquanto a vida cotidiana se
moderniza, o ensino continua arraigado ao tradicionalismo. Isso me faz lembrar a
historiazinha “A Volta do Velho Professor”:
82
Certa vez, numa viagem ao tempo, um professor de Literatura do século
XIX consegue permissão para fazer uma visita a sua cidade natal. O mesmo se
arruma todo para a viagem tão especial. Veste-se com o melhor terno, aperta o
da gravata, confere se seu relógio está na algibeira, coloca o chapéu, pega
sua bengala e segue numa charrete em direção ao futuro.
No decorrer do percurso, o seu transporte vai se modificando até se
transformar em um imenso ônibus aéreo. Seu itinerário é completado e o mesmo
desembarca em um dos aeroportos do Brasil. No saguão principal ele se depara
com um tumulto de passageiros querendo embarcar para suas cidades-natais.
Intrigado com a situação, o ilustre professor questiona a um cidadão o porquê da
revolta e descobre que é devido à greve dos controladores de vôos brasileiros.
Sem entender direito ainda a causa de todo aquele burburinho, o professor pega
um táxi e vai passear pela cidade.
82
História adaptada por Isaías de Oliveira Ehrich.
183
A cidade está totalmente diferente da que tinha em suas lembranças e o
mesmo fica impressionado com tudo aquilo: casas construídas na vertical, asfalto
por quase todas as avenidas principais, ônibus lotados, muitos deles agarrados a
cabos reos, congestionamento de automóveis, pessoas resmungando o tempo
todo umas com as outras, um barulho infernal de buzinas.
A cada instante, uma nova surpresa: a linguagem das pessoas é muito
diferente da falada em seu tempo, o uso das roupas, as comidas, os sentidos
éticos, morais.
As pessoas andam sempre muito apressadas, quase correndo, os vizinhos
não se conhecem e, quando se conhecem, não se confiam. As reuniões familiares
nas horas de refeição não mais existem. Todos se agrupam e se calam diante de
um aparelho que emite imagens e sons.
Abismado com todas aquelas novidades, o velho professor vai a um hotel
para pernoitar. Ao fazer a sua ficha de inscrição, o mesmo recebe um cartão para
abrir a porta.
Mais surpreso ele fica quando adentra ao recinto: uma máquina de
escrever diferente que muito se assemelha ao aparelho que emite imagens e
sons que vira. Ele então vai perguntar à recepcionista como se coloca as folhas
naquele aparelhozinho para escrever, porém, encontra um garoto que lhe ensina
como lidar com tal aparelho e diz que o mesmo é um computador portátil
conectado à internet.
No quarto do hotel ainda encontra um freegobar com várias guloseimas e,
184
sobre a cama, controles remotos para a tv a cabo, DVD, CD player e outro para
controlar a temperatura do condicionador de ar. O velho professor, transtornado,
sai do recinto para ver se encontra alguém para prosear. No caminho, apenas
carros, motos. Ninguém mais costuma se encontrar nas pracinhas para conversar
à noite. Ao retornar ao hotel, o sábio tedra é assaltado por meninos que usam
armas de fogo e portam também uns cachimbos esquisitos.
Procurando encontrar respostas para tudo aquilo, resolve, no dia seguinte,
ir à igreja. Percebe que várias opções e que o modo de repassar a palavra do
Mestre Maior está bem mais acessível ao entendimento das pessoas. O mesmo
procura também uma biblioteca pública, mas é convidado a conhecer algumas
bibliotecas virtuais e a fazer pesquisas via internet. As formas de transmissão de
informações e de conhecimento são as mais diversas possíveis. O velho
professor se sente perdido.
Impressionado com tudo aquilo que vê, o velho professor procura uma
escola. Ao entrar em uma das mais renomadas da cidade, a que outrora fora o
seu ambiente de trabalho, percebe que tudo está como ele havia deixado:
cadeiras postas uma após outra, aulas desestimulantes em que o professor fala,
fala e o aluno sequer escuta.
Indagando a diretora da escola sobre a maneira como as aulas o
ministradas, mesmo após tanta mudança de pensamento e de comportamento, o
velho professor de Literatura fica mais chocado ainda ao ouvir a resposta da
diretora:
185
_ É, meu caro colega, a “modernidade” pode ter ocorrido, mas se ela
adentrar na sala de aula, tem que ser moldada ao nosso costumeiro
tradicionalismo para facilitar o nosso trabalho.

Infelizmente, a realidade em nossas escolas não é tão diferente da
historiazinha do Velho Professor, não. As aulas, no nosso caso, as de Literatura
ainda estão presas à tradição historiográfica sem, muitas vezes, ter uma relação
contextual; havendo apenas o repasse dos períodos literários, de modo
meramente descritivo, sem que haja uma instigação à leitura literária. Aliás, o
despertar para a leitura, nas aulas de Literatura tem ficado aquém das
expectativas. Porém, não basta dizer, acusando, que o problema da deficiência
de leitura e de produção textual esteja no professor, no aluno ou no próprio
sistema educacional. Antes de fazermos qualquer comentário a esse respeito,
faz-se necessário termos pelo menos uma noção do que seja leitura e do que seja
escrita no âmbito escolar.
4.2 Ensino de Literatura duas visões e um alvo: o leitor
No Ensino Médio, a Literatura é sistematicamente dividida em escolas
literárias. No primeiro ano do Ensino Médio (a partir desse momento será usada a
sigla EM para denominá-lo), estuda-se a definição de literatura, as figuras de
186
linguagem e de sentido, os gêneros literários e, finalmente, começa-se a estudar
Literatura ao iniciarem os estudos acerca do Quinhentismo, Barroco, Arcadismo.
No segundo ano, o Romantismo (e suas três fases), depois vem o
Realismo/Naturalismo e o Simbolismo. O terceiro ano fica com a tarefa de ensinar
sobre o que foi a Semana de Arte Moderna, o Modernismo (e suas gerações) e,
se o tempo for camarada, a Literatura Contemporânea. Vale ressaltar que a
Literatura Contemporânea ensinada é aquela que não ultrapassa o início dos
anos 80 (mesmo que vivamos no oitavo ano do Século XXI).
Diante disso, percebemos que o ensino de Literatura é tomado apenas
num enfoque historiográfico. Como bem coloca a professora Graça Paulino, em
palestra proferida no V Seminário sobre Ensino de Língua Materna e Estrangeira
e de Literatura (SELIMEL): “estudar a Literatura no EM era (e ainda é) fazer
estudo de época. As leituras são feitas para marcar estilos de época nos textos.
Não se podia (e em alguns casos, não se pode) fugir o estilo de época ao texto.”
Ou seja, não a preocupação em ensinar o aluno a ler e a compreender o que
leu, além de contextualizar a sua leitura; ou então despertar o aluno para
descobrir como o autor vai montando o enredo de sua narrativa, a fazer com que
ele sinta a essência de um poema. A grande preocupação é fazer com que o
aprendiz decore quais são as principais características, os principais autores de
cada Escola Literária e quais os nomes de suas obras mais célebres.
Na verdade, os textos literários, quando aparecem, servem ainda apenas
como objeto de reverência, material erudito do estilo, do modo do bem escrever e
até mesmo da exacerbação eloqüente de alguns escritores, ou, mais comumente
187
servem como suporte para as aulas de Gramática, no que concernem às tão
“adoradas” análises morfológicas e sintáticas. Dessa forma, o ensino de Literatura
não atrai ninguém.
Quem, por acaso, não teve que se martirizar para conseguir analisar
morfossintaticamente um trecho de um texto de Machado de Assis, tendo ainda
que articular no período as orações subordinadas. Assim, nossa mente ficava
desordenada e o aprendizado de literatura ficava subordinado à decoreba de
características de época e de estilo e o estudo dos textos literário colados aos
fragmentos trazidos para a discussão em sala de aula.
Mas será que isso, na prática, mudará?
Calcando-se em dados do IBGE de 1994, sobre a educação brasileira,
Leahy-Dios em um capítulo do seu livro “Educação literária como metáfora social”
comprova que o nosso sistema educacional enfatiza a quantitatividade e que o
ensino de Literatura está muito (ou apenas) atrelado à historiografia.
Quanto à seleção dos programas de literatura para os vestibulares, ela nos
mostra que tal escolha se baseia em três palavras: exclusão, subordinação,
carência”, ou seja, a exclusão de obras que apresentam relevância social, mas
que não são escolhidas por subordinação ao cânone por carência intelectual ou
política de quem participa de tal seleção.
Com isso, percebemos que a superficialidade e a memorização dos
conteúdos do ensino de literatura e a não transformação do saber teórico em
saber prático-docente (transposição didática), capaz de instigar o alunado ao
188
aprendizado dos conteúdos, como justificativa para essa não-transposição
didática, aponta o vácuo teórico que no ensino de literatura provocado pela
separação acadêmica de isolar o ensino em departamentos, períodos, gêneros e
categorias.
Ainda seguindo as idéias da autora supracitada, quando ela, ao
desenvolver O olhar novo sobre o sistema”, rever a situação das escolas
brasileiras após um distanciamento dos problemas político-pedagógicos do Brasil,
sob uma perspectiva mais distanciada da realidade em que trabalhara durante
toda a sua vida (período em que ela faz sua pesquisa na Inglaterra). Para isso, no
início de 1995, ela escolha duas escolas do Rio de Janeiro para desenvolver a
sua pesquisa. A primeira, uma escola pública da rede estadual de clientela
socioeconomicamente mista e de visão pedagógica mais academicista (voltada
para preparar os alunos para os vestibulares); a segunda, uma escola também da
rede blica de classe social, também mista, no entanto, a visão pedagógica era
vocacional (magistério).
Após um período de observação e levantamento do perfil dos professores e
alunos de ambas as escolas, a pesquisadora constata que, em termos de
educação literária, a primeira se mantinha mais rígida ao programa imposto e a
segunda, um pouco mais flexível ao programa curricular, permitia incursões à
música popular e à literatura infantil. Ambas usavam o silenciamento do alunado
como parte integrante da didática (a única voz permitida era a do professor).
Procurando analisar uma escola que se encaixasse nos padrões,
socialmente considerados ideais, Leahy-Dios escolhe uma escola C, que fazia
189
parte da rede privada de ensino, para coletar informações. Tal instituição possuía
uma clientela socioeconomicamente mais homogênea, porém, o seu objetivo
pedagógico era todo voltado aos programas de exames de vestibulares.
Ao comparar as três escolas (três professores de Literatura de cada escola
observada), a autora constata que a diferença existente entre a escola A e a
escola C é quase nula. O conteúdo de Literatura repassado é o mesmo e a
perspectiva didática também. Na escola B, o conteúdo literário é repassado de
forma acrítica e repetitiva. Em todas é comum o silenciamento dos alunos por
parte dos professores, como forma de assegurar o não-raciocínio dos alunos e a
mera transmissão das informações, uma vez que:
As práticas literárias menos consistentes foram observadas na
Escola B, onde as disciplinas didáticas são mais valorizadas pelas
alunas do que as de conteúdo específicos. Em geral, o elemento
comum às práticas de educação literária observadas foi a
distribuição aos professores de um programa básico da matéria; a
definição e a classificação das estratégias adotadas é uma tarefa
mais complicada. Na Escola A, estilos docentes iam do
comportamento autocrático ao amor pseudomaternal, ao afeto e
emoção no lugar de uma formação profissional consistente. Todas
(grifo meu) as professoras observadas trabalhavam de maneira
solitária e isolada, se interação teórico-conceitual, pedagógica ou
literária. (LEAHY-DIOS: 2000, p. 106)
Já segundo os PCNEM 2006:
O ensino de Literatura (e das outras artes) visa, sobretudo, ao
cumprimento do Inciso III dos objetivos estabelecidos para o
ensino médio pela referida lei. (...) Para cumprir com esses
objetivos, entretanto, não se deve sobrecarregar com informações
190
sobre épocas, estilos, características de escolas literárias (...).
Trata-se, prioritariamente, de formar o leitor literário, melhor ainda,
de „letrar‟ literariamente o aluno, fazendo-o apropriar-se daquilo
que tem direito. (p. 53, 54)
Se o ensino de Literatura, na prática, funcionasse como a proposta dos
PCNEM, certamente estaríamos formando leitores, não apenas literários. Isso
porque, no ensino não-historiográfico, abre-se espaço à leitura dos
contemporâneos e a Literatura adquire um caráter interdisciplinar, uma vez que
passará a dialogar com outras ciências, a exemplo da Sociologia, da Filosofia, da
Antropologia, entre outras. Dessa forma, estaríamos letrando o aluno,
contribuindo, assim, para a sua formação ética, para o desenvolvimento de sua
autonomia intelectual e para o desabrochar da criticidade de seu pensamento.
A professora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés, mais uma vez calcada
em Curtius, ao falar sobre a política do cânone
83
elege, de acordo com critérios
estabelecidos por ela mesma, os seus escritores-críticos da modernidade para
desenvolver a sua pesquisa. Assim, ela também está fazendo escolhas e,
conseqüentemente, julgamentos. Dentre o universo de oito escritores (objetos de
análise da autora em questão) elencados por ela, um deles sobressai-se: Ezra
Pound. O qual atribuiu a sua lista de “escolhidos” uma função pedagógica, a qual
denominou paideuma, que é aquilo que deve ser ensinado, não meramente para
se conhecer o passado, mas para uso do presente e do futuro(Perone-Moisés,
1998, p. 65). Isto é, baseia-se no gosto pessoal e experiência do crítico enquanto
leitor/escritor e tem por finalidade, sobretudo, manter a hierarquia na arte e
83
Esse assunto foi discutido na primeira parte do nosso trabalho. Ver: Os eleitos: a política do
cânone”.
191
suprimir da literatura qualquer elemento que contamine a erudição da linguagem e
a perfeição da forma.
Desse modo, vemos que a paideuma está presente em nossa vida,
enquanto docentes, e na vida dos alunos, que, ao elaborarmos uma lista de
autores para serem estudados nas aulas de Literatura (ou seguirmos
determinadas listas) estamos fazendo escolhas, atribuindo valores, julgamentos e
críticas a determinados autores, privilegiando uns e esquecendo (ou fazendo cair
no esquecimento) outros.
Mas isso não vem de hoje, uma vez que, enquanto se limitava a extratos
mais privilegiados da população, nos quais a relação com o tipo de letramento
literário (PAULINO, 2005) oferecido pela escola era comum, de geração a
geração, a lista de autores e obras tornada canônica pela nossa História Literária
era transmitida por um sentimento de identidade, por meio do reconhecimento da
língua do seu cotidiano naquela linguagem literária. Um exemplo disso ocorre no
romance A Barragem, quando a professora da vila, onde se passa o romance,
utiliza um método tradicional de ensino, calcado na decoreba de itens e o repasse
dos textos literários era baseado nas preferências dela, D. Eudócia, a professora
da escola vila operária.
Ora, com as novas medidas de modernização vividas pelo Brasil a partir
dos anos cinqüenta, mas principalmente a partir dos anos setenta, e a
conseqüente necessidade de amplificar o contingente de pessoas assistidas pelo
ensino público, essa identidade se viu ameaçada, que a experiência de mundo
e de língua na qual esse novo público se representava eram diferentes daquela
192
dos antigos educandos.
Além disso, o processo formativo dos novos professores necessários para
atender a demanda crescente não foi feito com a qualificação desejada. Também
estes, vindos dos extratos menos repartidos econômica e socialmente, não
tiveram uma formação melhor planejada em função de suas demandas. Esse
encontro entre novos contingentes de educandos e um professorado de Letras
mal preparado foi avaliado negativamente por Zilberman: todo esse processo
formativo ocorreu com rapidez, não necessariamente com eficiência” (1988, p.
127).
No que concerne, em especial, ao lugar da literatura nessa realidade
educacional, cujo objetivo fundamental se tornou a formação adequada às novas
exigências do trabalho no mundo globalizado, houve ainda um decréscimo da sua
presença na grade curricular do ensino médio e fundamental, acarretando um
domínio menor de repertório e de crítica por parte daqueles que ingressavam no
curso de Letras. Como resultado disso, temos uma precarização do letramento
literário vivido tanto por estudantes como por professores.
Nesse quadro de precarização, em que o cânone e os novos leitores
incorporados ao sistema de ensino brasileiro, sejam eles professores ou alunos,
se viram em trincheiras incomunicáveis, não são poucas as vozes que
começaram a afirmar a necessidade de usar outros textos, que não os literários,
no ambiente escolar. Essa nova tipologia textual permitiria maior motivação na
recepção e identidade com as questões contemporâneas.
193
Todavia, o nosso aluno continua sendo sobrecarregado com as
informações estilísticas e com o conhecimento acerca das escolas e das épocas
literárias e, atualmente, com a presença dos gêneros do discurso, os quais vêm
causando uma certa confusão mental quanto à dimensão social e textual da
leitura não tendo consciência literária (contato efetivo com o texto), nem tampouco
consciência crítico-social.
Então, o que podemos constatar é que as práticas pedagógicas dos
programas de Literatura não sofrem grandes diferenças nas três realidades
observadas pela professora Cyana Leahy-Dios; os modos de ensinar dos
docentes ainda estão arraigados ao Tradicionalismo, isto é, ao mero repasse dos
conteúdos de maneira que os modos de aprender dos alunos se resumam à mera
memorização de períodos literários, de principais autores e obras literárias. Am
disso, o habitus docente dos professores observados tende a ser acrítico e não-
reflexivo, fazendo com que os mesmos não despertem para a importância do
papel político de se ensinar Literatura numa sociedade multicultural como é a
nossa.
4.3 Interpretação: uma visão de vários olhares
Apesar de discutirmos sobre os desafios ou sobre a deficiência do ensino
de Literatura nas escolas, muito pouco se falou acerca de um dos elementos
fundamentais nesse processo: o leitor.
194
Não como se ter leitura, como se elaborar teses se não houver alguém
para captar tais informações. O leitor deve ter tomado como o eixo desse
processo, afinal, é ele que dará vida ao texto. Se o leitor for apenas um mero
decodificador de signos lingüísticos, a produção textual permanecerá estática.
Como bem coloca Zilberman (1989, p. 06):
Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo, nesse caso,
um problema da escola, quanto metafórico, envolvendo a
sociedade (ou, ao menos, seus setores mais esclarecidos) que
busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações da
cultura. Sob este duplo enfoque, uma teoria que reflete sobre o
leitor, a experiência estética, as possibilidades de interpretação e,
paralelamente, suas repercussões no ensino e no meio talvez
tenha o que transmitir ao estudioso, alargando o alcance de suas
investigações.
Essa teoria mencionada por Zilberman, a Estética da Recepção, teve
através de Hans Robert Jauss, na década de 60, o seu surgimento e mesmo hoje,
quase quarenta anos após o lançamento dessa corrente teórica, ainda não
aplicação e, quiçá, o devido conhecimento da mesma no âmbito escolar.
Concebendo a leitura como um processo interacional, em que haja uma
ação gerada a partir da troca de experiência estética entre literatura (enquanto
meio de comunicação) e leitor (enquanto entidade coletiva a qual o texto é
direcionado), alguns campos literários merecem atenção, uma vez que se voltam
a questões relativas à recepção, compreensão e interpretação do texto lido:
Sociologia da leitura - busca estudar o leitor enquanto sujeito ativo no
195
processo literário, que as alterações de “gosto e de preferência”,
influenciam direta ou indiretamente na circulação, na notoriedade e na
produção dos textos. Esse ramo averigua os meios de distribuição e de
circulação do livro, além de considerar a situação social do escritor,
identifica os diferentes caminhos percorridos pelo texto até o motivo que o
classifica como erudito ou popular;
Estruturalismo theco trabalha com o valor da obra literária. Nesse caso,
“é o recebedor que transforma a obra, até então mero artefato, em objeto
estético, ao decodificar os significados transmitidos por ela”, ou seja, é a
consciência do sujeito estético, que dará ou não valor à obra literária;
Reader-Response Cristicism analisa como o texto pode ser
compreendido e absorvido pelo leitor. Nesse caso, o leitor seria um produto
do próprio texto, uma vez que não é autônomo;
É então com os estudos de Stanley Fish e de Louise Rosenblatt que a idéia
de leitor é resgatada, o qual deixa de ser, segundo a visão do Reader-Response
Cristicism, uma construção ou um produto textual. Na visão de Fish e Rosenblatt,
o texto (a sua natureza e o seu sentido) é que é produto do leitor.
A grande discussão que se faz é acerca dos métodos da historiografia
literária aplicados ao ensino. Tais procedimentos se bifurcam em duas
tendências: a primeira, ordena tendências gerais, gêneros e outros aspectos para
depois abordar as obras individuais dos autores numa perspectiva de sucessão
cronológica; a outra, ordena o seu material conforme o modelo canônico,
196
valorizando-o sua vida e sua obra. Nos dois casos, sob o comodismo de se
estudar as obras-primas de cada autor, deixa-se de lado a perspectiva estética
das mesmas, deixando uma imensa lacuna ao ensino de Literatura, sobretudo
porque usurpa a participação do leitor em qualquer aspecto.
Arraigado ainda ao conceito platônico de imitatio-nature, o marxismo, com
seu modelo positivista, muito utilizado no ensino, a Literatura como uma forma
de reproduzir a arte, a qual acaba sendo submetida ao modelo econômico da
época. Por outro lado, os formalistas separam mais ainda a literatura (arte) da
história. Jauss, no entanto, não concorda com o pensamento de Tinianov, o qual
se baseia na separação da Literatura e da vida prática.
Segundo Jauss (1994):
compreender a arte na sua história , isto é, dentro da História da
Literatura definida como sucessão de sistemas, ainda não
equivale a ver a obra de arte na história, isto é, no horizonte
histórico de sua origem, de sua função social e ação no tempo.
(...) depende do reconhecimento e incorporação da dimensão de
recepção e efeito da literatura.
Assim sendo, a estética da recepção acaba retomando a historicidade da
literatura e restaurando a relação entre pretérito e presente, rompida pelo
historicismo. Aspectos esses indispensáveis para o restabelecimento entre os
aspectos históricos e estéticos de um texto. Para tanto, ele elabora seu projeto
em sete pilares fundamentais:
- “a literatura se manifesta durante o processo de recepção e efeito de
197
uma obra, ou seja, entre a relação dialógica entre leitor e texto”;
- baseia-se na “experiência literária do leitor”, a qual decorre da
compreensão prévia do gênero, da forma e da temática de obras
anteriormente conhecidas por ele. Nesse caso, abre-se espaço ao universo
de expectativas do leitor diante do texto a ser lido;
- reconstituição do horizonte de expectativas do leitor, uma vez que a
concretização de tal exercício ao leitor, o poder de determinar o caráter
artístico de uma obra. Nesse pilar, retoma-se a noção de valor estético (do
Estruturalismo theco), o qual se deriva da percepção estética que a obra é
capaz despertar no leitor;
- mais comprometida com a hermenêutica, visa examinar com mais
afinco as relações do texto com a época de seu surgimento, descobrindo
os meandros dialógicos que fazem com que o sujeito leitor o perceba, o
compreenda e retome o processo comunicativo inicial;
Investigando a literatura sob a tríade: diacronia, sincronia e
relacionamento entre literatura e vida prática, Jauss elabora um roteiro
metodológico para implantar suas idéias. Tal processo comporá os outros pilares
do seu projeto:
- embasado num aspecto diacrônico, averigua como ocorre a recepção
das obras literárias ao longo do tempo;
- estudando a literatura sob a ótica da produção, investiga as relações
intrinsecamente literárias que ocorrem num dado momento histórico e
198
como se processa a articulação entre as diversas fases
(produção/recepção);
- instiga o leitor a observar e a analisar o seu universo, uma vez que
examina as relações existentes entre literatura e sociedade.
O que é mais notório na Estética da Recepção é o fato de que ela não
abandona a historiografia literária e, ademais, ressalta a importância das relações
existentes entre a Literatura e a sociedade. Outro aspecto importante é que a
teoria de Jauss um papel ativo ao leitor, mesmo que opte por um leitor virtual,
porém, virtual ou real, o leitor pode encontrar na Estética da Recepção voz para
expor o que compreende acerca do texto além de aproximá-lo da obra literária.
4.4 Considerações sobre a leitura e a escrita no contexto escolar
Ler implica em construir sentidos, e assim, estabelecer relações dialógicas
com o mundo por meio da palavra. Paulo Freire parece ter pontuado esses
elementos em sua vasta obra sobre a leitura.
Sabemos que a discussão sobre problemas com leitura não é recente.
Igualmente que a idéia de fracasso, quando se refere diretamente ao espaço
escolar, tem sido alvo de estudo por muitos pedagogos e profissionais da área de
educação, especialmente no sentido de uma associação do tema com o ensino e
aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, não podemos esquecer também do
199
sujeito em formação, como essencialmente integrante do sistema educacional,
que se volta para um ponto do enfoque da formação dita compensatória,
especialmente, relacionada ao ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Tal
concepção, como a entendemos, deve ser considerada importante fonte de
investigação, ao menos teórica, para trazer à luz uma temática nova em torno dos
dois pontos usuais: a formação compensatória e a busca condicionada da leitura
como prática de letramento.
Por essa razão, segundo ALDRIGUE et alii (2000, p. 33):
os profissionais formadores de professores do ensino fundamental
têm se preocupado com questões teóricas e com questões
práticas, na tentativa de apresentarem a questão teórica como
fundamento necessário para uma prática bem informada.
É singular observar se a cultura letrada, especificada no meio social como
um referente includente para quem a usa de modo adequado e extremamente
excludente como também para aqueles que apresentam problemas em função de
seu uso como prática de letramento, especialmente relacionado à leitura e
escrita.
Uma das possíveis reflexões sobre a inserção da cultura escrita na história
da humanidade vem apontando na direção do entendimento da cultura escrita
enquanto uma complexidade na qual os sujeitos se inserem e na qual estão
presentes um emaranhado de componentes/processos cognitivos, históricos,
culturais, tecnológicos, subjetivos. Ainda, segundo esses autores, a escrita se
200
relacionaria, de maneira igualmente complexa, com outros conceitos a ela
interdependentes, tais como a oralidade, a leitura e a interpretação, ao longo da
história (Cf. AXT, 2000).
De fato, não estaremos propondo aqui uma investigação que seja muito
ampla na elucidação de uma série de pertinências sócio-culturais interferentes
nos sistemas educativos e, de certo modo, na identificação de problemas
relacionados com leitura e escrita, mas sim, fazendo crer ser possível destacar
pontos de vista ímpares sobre as questões postas como relativas a determinadas
condições de veiculação de textos necessários à superação de deficiências e
socialmente requisitados. O que pretendemos é apenas discutir, a partir das
noções de leitura e escrita, de habitus, de recepção e das discussões sobre
formação profissional docente, as práticas de letramento, sobretudo o letramento
literário, como singulares nos processos de educação em níveis distintos de
formação e, ancorados à luz da história literária em sua dimensão social, trabalhar
o romance A Barragem em sala de aula.
Assim, conforme o que ficou compreendido acerca da leitura de Machado
(2003), ao dizer que é de fundamental importância que as descobertas surjam
efetivadas a partir da manipulação de objetos mediante a observação, a
identificação, a interpretação, a análise e a síntese, passamos à realização de
estudos mais bibliográficos como formação pessoal e, posteriormente, como
vinculação do exercício de escrita sem pesquisa de campo.
No entanto, optamos seguir por um caminho eminentemente bibliográfico,
apesar de em certos momentos da pesquisa, a mesma enveredar para o aspecto
201
etnográfico, para tecermos os comentários essenciais ao tema que, sem
pretensão de esgotá-lo, servirá de estímulo para outros pesquisadores se
debruçarem sobre o mesmo apresentando, inclusive, novas peculiaridades. Nesta
perspectiva, estaremos fazendo uso de referencial teórico (bibliográfico) bastante
variado, dada a abrangência do tema por muitas vertentes teóricas.
Propomo-nos em proceder a utilização restritiva do referencial teórico sobre
letramento (leitura e escrita) como abordado pela vertente teórica de conotação
interacionista, sobretudo no que se refere a autores que entendem as questões
relativas ao letramento como práticas de leitura e escrita.
Desse ponto de vista é que Kleiman (1995, p. 19), propondo uma certa
definição do termo letramento, determina uma possibilidade pela qual, a idéia
esteja requisitada como prática social. Assim, afirma que podemos definir hoje o
letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto
sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos”. Além disso, a mesma autora, em novo texto de 1998, a entender
que o termo letramento deve ser compreendido em consonância com as práticas
e eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita”. (idem, 1998,
p. 181).
Entendemos que as questões de letramento, como concebidas atualmente,
serão postas como relativas aos tipos de formação como superação de
deficiências de leitura/escrita em miragem de perspectivas de inclusão.
De certo, salientamos que não temos a pretensão em esgotar a discussão
202
sobre letramento e, desse modo, também o podemos conceber esse texto
como constituinte único das idéias relevantes sobre o tema. Salientamos que, em
si, é um texto aberto e plenamente superável, caso novas pesquisas venham a
lançar uma luz mais clara ao tema.
4.4.1 - Perspectiva internacional da leitura/escrita
Muitos trabalhos da Lingüística Aplicada têm demonstrado uma série de
pesquisas que se revelam voltadas para a formação de professores, sobretudo no
que se refere ao processamento da leitura. De fato, a leitura é um importante
mecanismo de inclusão e desenvolvimento social de sociedades ditas letradas.
Inegavelmente, os índices de desenvolvimento humanos, como apontados pelos
órgãos preocupados com a educação mundial, parecem determinar a
necessidade de certo grau de letramento como fundamentais para a circulação
integradora dos saberes e melhorias das condições de vida.
Preocupados com o tratamento dispensado pelos educadores, aos
educandos, nas atividades de compreensão e produção textuais, podemos
considerar o ato de ler como um processo cognitivo de estabelecimento de
ligações entre o leitor e o seu interlocutor imediato e singular: o texto (no nosso
caso específico, o texto literário).
O ato de ler, enquanto processo cognitivo e sociointeracional, tem sido
estudado por áreas diferentes do conhecimento, o que implicou a geração e
203
difusão de idéias e trabalhos que enfatizam variantes no conceito de leitura
conforme o campo teórico, resultante também dos diferentes pontos de
abordagem. Tais fatos implicam a modificação de antigos conceitos sobre o
processo de ler.
Essa concepção de leitura (interação autor-texto-leitor), sobretudo a
adotada por Koch (2007), implica uma vinculação com dados da Psicologia
Cognitiva e, certamente, com a Lingüística Textual, reclamando para o processo
interativo um componente textual e outro contextual, como unidades de sentido.
Como componente textual, o texto se estabelece em unidade de sentido,
fazendo aflorar uma série de elementos coesivos (coesão), os quais figuram como
que orientando o leitor em uma série de “regras” que o fazem inferir sentindo. Isso
se por meio dos processos de parcimônia, enquanto princípio de economia no
qual o leitor tende a reduzir no mínimo do quadro mental que vai construindo e,
por seu turno, o processo de canonicidade, isto é, princípio segundo o qual
agrupamos nossas expectativas em relação à ordem do mundo.
É singular perceber que a interação autor-texto-leitor, por intermédio da
leitura, é o que permite ao leitor proceder a certas análises de como a linguagem
funciona no texto e também como ela (a linguagem) está organizada a serviço
das intenções do autor. Tais relações que se implicam e se estabelecem a partir
do processo interativo leitor/texto nem sempre é pertinente do ponto de vista do
leitor: problemas de letramento podem interferir na construção do sentido e,
assim, comprometer a compreensão.
204
Com base nessa referência, Marcuschi (1988) chama a atenção para o fato
de que a compreensão de um texto requer uma série de conhecimentos pessoais
que, como tais, mesclam-se e se afetam com os conhecimentos do contexto
(contextuais) e mais, das atividades inferências (cognitivas) do leitor para
reconhecer e entender o novo.
4.4.2 A formação do leitor competente
Depois da invenção da escrita como resultado das transformações sócio-
culturais, a tarefa de ensinar a ler e a escrever, como necessárias ao
desenvolvimento de habilidades parecem estar relacionadas a uma série de
atributos da escola.
Até a década de setenta as práticas de ensino da leitura consistiam no uso
de textos curtos construídos com as famílias silábicas. Eles eram vazios de
significação, ou seja, não existiam fora do ambiente escolar. Com isso, transmitia-
se aos alunos a mensagem de que a leitura tinha função dentro da escola,
escondendo a utilidade desse ato. O trabalho com leitura centrava-se unicamente
na decodificação de textos. Por isso a escola formava leitores que se mostravam
inaptos para realmente compreender textos. Mas, com o desenvolvimento das
teorias sobre leitura e da divulgação de pesquisas necessárias, entendeu-se que
a decodificação é apenas um dos procedimentos utilizados na leitura.
De certo, com base em pesquisas de ordem sócio-interativas, é sabido que
205
o humano é possuidor, internamente, de mecanismos considerados prévios
indicadores de leitura”, aqui chamados de leitura de mundo. Esse tipo de leitura
não está ligado, diretamente, ao processo formal de escolarização do indivíduo.
Por sua vez, pode-se dizer que se constitui em um dos vários desafios que a
escola vem enfrentando nos últimos dias. Em tal caso, as contribuições de
diferentes paradigmas teóricos, com as referências de mundo e considerações
em torno da leitura e da escrita bem diferentes, estão contribuindo de modo
produtivo para a escola.
Ao que parece, quando nos propomos a ensinar a ler e escrever
precisamos compreender como a aprendizagem, no plano individual, se processa,
isto é, precisamos conhecer determinadas dimensões da aprendizagem, retomar
os principais eixos teóricos que norteiam as praticas pedagógicas e planejar (isso
sim) a nossa forma de ensinar, que os modelos estão intricados em uma rede
de interlocução com diferentes leituras da realidade. Isto nos mostra a existência
de pontos de deriva distintos para uma mesma concepção e abordagem dos
fatos.
As idéias pedagógicas revelam orientações teóricas e práticas
educacionais inscritas na diversidade. Assim, a construção de perspectiva mais
amplas, dialógicas e conectadas com o tempo, com o novo, está implicando uma
visão mais heterogênea dos educadores no sentido de tornar mais evidente o que
se convencionalizou chamar de mecanismos de ensinar a ler e escrever.
Como se sabe, Paulo Freire parece mesmo ter sido um inovador no sentido
de ter em prática um método, para a sua época, inovador de uma prática de
206
compreensão de mundo e, uma prática de leitura, por assim dizer, utópica como
paradigma do homem oprimido. Freire (1994), no texto A importância do ato de ler
em três artigos que se completa, nos brinda com uma concepção de leitura que
implica um leitor integrado com o seu mundo, isto é, alguém que pelo
conhecimento, pode ser agente de transformação.
Ao que parece, Freire (op. cit. 1994) não se dispõe em separar leitura de
política. A seu modo, defende uma dialogicidade com uma série de tendências
teóricas e filosóficas para explicar e inserir a racionalidade do conhecimento.
Por sua vez, uma série de estudos atribuídos a Jean Piaget (1896-1980)
surge como que visando a integração epistemológica do sujeito com o mundo. De
fato, a idéia central dos pressupostos piagetianos diz respeito à compreensão do
processo de aprendizagem da criança, pois o principal objetivo era explicar como
o organismo conhece o mundo.
Em Piaget, a noção de aprendizagem é compreendida como pertinente à
assimilação de novos conhecimentos por parte do sujeito e de seu acréscimo a
conhecimentos que, de certo modo, o indivíduo seja possuidor. A dinamicidade
do processo de aprendizagem como pensado nos moldes de Piaget é uma
espécie de interação do sujeito com o conhecimento. Essa interação vem,
paulatinamente, possibilitando a construção de estruturas mentais e assim, as
idéias e experimentos dele, têm fundamentado praticas decisivas ao ensino.
Com o chamado construtivismo s-piagetiano, Emília Ferreiro (1999)
parece acrescentar uma novidade nos limites da literatura sobre a aquisição a
207
leitura. O ponto de vista do sujeito que aprende e, portanto conhece, revela o jogo
de influências dos fatores metodológicos e sociais inerentes ao processo
interativo. Nesse sentido, no processo de ensino e aprendizagem a adoção de um
método seguro para ensinar a ler e a escrever é descartada. Seja do ponto de
vista do método sintético ou analítico, parece que cada método pode apresentar
inúmeras possibilidades positivas e negativas, consideradas com implicações
para o processe de ensino e a aprendizagem.
Atualmente, pode-se dizer que o ato de ler é visto como um processo
complexo por meio do qual o leitor constrói não apenas um significado, mas uma
rede de relações de significados. Esse debate tem influenciado, ao decorrer de
décadas, a elaboração de políticas educacionais mais precisas e coerentes e, de
certa forma, voltadas para a construção de práticas educativas que concebem
uma pedagogia da leitura.
Como marco referencial nessa área, o Governo brasileiro, a partir dos anos
90 do século passado, tem se lançado em defender uma ordem de excelência na
educação nacional. Com a publicação dos Parâmetros em Ação para a Educação
Nacional, os chamados PCN adotam concepções bem distintas e inovadores
sobre os processos de leitura e escrita, trazendo à tona, a discussão sobre o
letramento e outras perspectivas de abordagens sobre competências formais para
ensinar e aprender.
Nos PCN de Língua Portuguesas (1997, p.53), podemos observar que a
leitura é considerada como:
208
Um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
construção do significado do texto, a partir de seus objetivos, do
seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, e tudo o que
se sabe sobre a língua; características dos gêneros, do portador,
do sistema da escrita, etc.
O objetivo do trabalho com leitura na escola deve ser o de focalizar a
formação do leitor competente. Isto equivale afirmar que é papel da escola dar a
conhecer as práticas sociais de leitura e escrita.
Com a idéia do desenvolvimento das habilidades ou competências, a partir
do que se tem discutido em termos de ensino e aprendizagem (Cf. CAGLIARI,
1995; PCN. Língua Portuguesa, 1997), atualmente, entende-se por leitor
competente aquele que, a partir da diversidade textual, sabe relacionar aquilo que
atende as suas necessidades e expectativas frente ao conhecimento e que, de
certa forma, pode demonstrar que consegue ler, não apenas o que está explicito
na ortografia, mas, aquilo que esta implicitamente. Além disso, o leitor competente
estabelece certas relações de intertextualidade: do texto com outros textos e
contextos.
À medida que incorporamos experiências de leitura, como afirma Cagliari
(op.cit., p. 169), ser necessário que a escola “um lugar e maior prestigio à
leitura desde o início do processo de alfabetização”. O seu pensamento comunga
com Martins (1997, p. 31), que defende a leitura como “processo de compreensão
abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais,
intelectuais, fisiológicos e neurológicos, tanto quanto culturais e econômicos e
políticos (perspectivas cognitivo-sociológicos)”.
209
A mesma autora (op. cit., 1997) estabelece ainda que o conceito de leitura
não está restrito à decifração da escrita e, por tradição, sua aprendizagem estaria
vinculada ao processo de formação do indivíduo. A citada autora atenta que, para
se bem compreender os processamentos da leitura é preciso atentar para três
grandes níveis: 1) o sensorial, que nos acompanha por toda vida; 2) o emocional,
ligado aos sentimentos e, 3) a leitura racional acima dos sentimentos e da
vontade estabelece uma ponte entre o leitor e o conhecimento, possibilitando a
atribuir significado ao texto.
A comunicação lingüística é parte dos diferentes meios de se interagir com
o mundo e uma das ferramentas disponíveis aos sujeitos para a interação mútua.
Procedendo desse modo o sujeito estará se beneficiando das práticas sociais e,
assim, exercendo a cidadania em função do letramento, na pluralidade da
dinâmica social.
4.5 - Letramento
Como nhamos discutindo, muitas concepções de língua e, por
conseguinte, de leitura e escrita. Cada uma implica uma relação com os padrões
ensinados nas escolas ou mesmo cobrados socialmente.
Como se supõe, a escola tem se guiado por ditames gramaticais para
ensinar, se é que se ensina, a ler e escrever. Desse ponto de partida,
tradicionalmente, se pode vislumbrar a idéia segundo a qual para se falar, ler e
210
escrever corretamente é preciso saber gramática e, por seu turno, como nos diz
Bagno (2002, p. 48), “conhecer a gramática para falar e escrever bem”.
No sentido de considerarmos uma certa postura inadequada quanto ao
ensino da gramática e também da Literatura, além de percebermos a disciplina
Língua Portuguesa (Gramática, Literatura e redação, como é segmentada nas
escolas) como um instrumento ineficaz ao ensino pleno da língua, é importante
perceber que a língua deve estar a serviço do homem, libertando-o e, desse
modo é que se tem pensado o conceito de letramento.
Soares (1988, p.03), postula que o letramento deve ser entendido como
estado ou condição de quem não só saber ler e escrever, mas exerce as práticas
sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive,
conjugando-as com as práticas sociais de interação oral”.
De certo, Soares relaciona o papel da escola como o da representação de
um espaço libertador para o usuário da língua, não como parece ser na
atualidade. Do mesmo modo, atinando para as potencialidades individuais dos
usuários das habilidades da língua, percebe-se que nem todos os privilégios de
serem, em função do letramento, usuários cidadãos.
O mecanismo de uso da língua nos mais variados planos pode ser ainda
algo que a função social da escola, no tocante ao ensino das habilidades de
leitura e escrita, não tem propiciado aos seus usuários. Assim, não basta ensinar
a ler e escrever. É preciso mais: dar a conhecer os mecanismos de uso,
socialmente, compatíveis com o desenvolvimento humano, das praticas
211
cotidianas de inserção social do sujeito e cidadão. Letramento é isso e requer
envolvimento da escola, dos usuários da língua em múltiplas práticas sociais, algo
que a Literatura há muito vem tentando mostrar.
4.5.1 Letramento literário: o olhar crítico
Hoje em dia, o leitor e a leitura tornam-se objetos de investigação e de
reflexão mesmo dentro do texto literário. A leitura aparece como um eixo, flexível
e variável, indispensável no processo de compreensão e de criação artística. O
leitor, por sua vez, vem, a cada dia, averiguado e rotulado por várias teorias da
crítica literária, principalmente pela Estética da Recepção, no seio da qual, autor,
leitor e obra literária compõem, juntos, elemento de estudo da crítica, da teoria e
da história da Literatura. A leitura, no nosso caso, a literária, passa a ser, então, a
concretização potencial dos vários sentidos atribuídos ao texto em diversos
espaços e em diferentes tempos.
Entendendo, pois o ensino de Literatura não apenas como mecanismo de
leitura e de escrita, mas também como um instrumento útil para formar
culturalmente o indivíduo, o letramento literário se faz necessário, atualmente,
mais do que em qualquer outra época, porque permite que o leitor compreenda os
significados da escrita e da leitura literária para os seus usuários, ou seja, faz com
que os leitores literários não permaneçam apenas na leitura superficial do texto,
mas adentrem no texto, buscando-lhe a essência.
212
Entendendo, pois, a Literatura como uma prática social, como algo que
deva ser repassado ao aluno, não se esquecendo do seu papel transformador e,
ao mesmo tempo, estético, como promover o letramento literário nas escolas?
Como coloca Cosson (2006, p. 23):
O que se pode trazer ao aluno é uma experiência de leitura a ser
compartilhada. No entanto, para aqueles que acreditam que basta
a leitura de qualquer texto convém perceber que essa experiência
poderá e deverá ser ampliada com informações específicas do
campo literário e fora dele.
Depois, falta a uns e a outros uma maneira de ensinar que (...)
permita que a literatura seja exercida sem o abandono do prazer,
mas com o compromisso de conhecimento que todo saber exige.
Nesse caso, é fundamental que se coloque como centro das
práticas na escola a leitura efetiva dos textos, e não as
informações das disciplinas que ajudam a construir essas leituras,
tais como a crítica, a teoria ou a história da literatura.
A partir dessa citação, Cosson nos mostra o grande papel da escola diante
não de seus alunos, mas também, perante a sociedade: formar leitores
críticos, leitores que não se restrinjam apenas à decodificação dos signos e o
consigam compreender o que foi lido. Para tanto, é necessário que o ato de ler
seja encarado tanto como um fenômeno cognitivo, quanto social. Nesse caso, a
leitura ganha vitalidade e cumpre o seu papel se se mantiver coesa entre esses
três grupos
84
: o texto, o leitor e a interação social.
No primeiro, que se centra no próprio texto, o leitor deve extrair dele o
84
Koch (2007) utiliza uma subdivisão semelhante, onde o processo de leitura exige que o leitor
também se centre em três focos: 1) no autor; 2) no texto; 3) interação autor-texto-leitor. (Cf. Koch,
2007)
213
sentido, o significado, para isso, deverá contemplar o nível da superfície e o nível
do conteúdo textual. Com isso, a condição básica para a efetivação da leitura é o
domínio do código, que só é conseguido mediante aos processos de extração.
O segundo grupo tem o leitor como centro da leitura, de modo que se
acentua a tese de que o êxito no processo de leitura depende mais da atribuição
de sentidos ao texto pelo leitor do que mesmo as palavras, ou seja, a leitura
depende mais do que o leitor está interessado em buscar do que mesmo das
palavras escritas no texto.
O terceiro grupo diz que a leitura se efetiva quando ocorre a interação
entre leitor e texto. Essa interação, por sua vez, é estabelecida quando ocorre o
diálogo entre leitor e autor mediados pelo texto.
Após isso, a leitura adquire o seu aspecto cognitivo/social e para que haja
o letramento literário, faz-se necessário o cumprimento de três aspectos
essenciais no processo de leitura de um texto. São eles: a antecipação
(operações que o leitor realiza antes de adentrar no texto); decifração
(conhecimento do código); interpretação (negociação do sentido do texto entre
leitor, autor e sociedade). Conforme Cosson (2006, p. 41): “interpretar é dialogar
com o texto tendo como limite o contexto”.
O letramento literário aliado à Estética da Recepção permite ao leitor essa
visão além do texto. Possibilita a este perceber, interpretar e atribuir sentido(s) ao
que leu. Para Perrone-Moisés, o encaminhamento dessas questões passa pela
observação do trabalho de um tipo particular de leitor: o escritor e crítico literário.
214
Atividades interligadas em literatos modernos, sintoma da necessidade de o
próprio escritor se posicionar acerca do valor literário, é na obra de Elliot, Pound,
Paz, Borges, Calvino, Sollers e Haroldo de Campos que Perrone-Moisés vai
buscar a compreensão do que a leitura literária envolve: a refundação constante
do cânone. É o leitor que atribui um valor atual ao passado, do qual são
selecionadas obras que possam figurar como dignas de atuarem no futuro. Há,
portanto, uma atividade formativa no trabalho do crítico, envolvendo julgamento e
ação:
As obras são objetos programados para se presentificarem
indefinidamente na leitura. A história literária está portanto fadada,
mais do qualquer outra, a assumir-se como releitura do passado e
requalificação do passado à luz dos valores do presente. (...) A
escolha efetuada por um escritor entre os nomes-obras do
passado é fortemente interessada: trata-se, para o escritor, de
julgar e selecionar com vistas a um fazer. (1998, p. 25 26)
Ler é, nesta perspectiva, selecionar uma história literária que irá se mostrar
como sentido e valor, formação de si e de outros por meio da escrita:
humanização, paideuma. Daí que questionar o cânone se tornou hoje menos
importante que julgar o valor que ele pode significar para s. Nesse entender,
Perrone-Moisés entende que devemos hoje lutar pelo none. Nunca, é claro,
numa perspectiva devota, mas localizando nele um emblema de resistência a
tempos em que a cultura padece de guias, de critérios, valores.
Na escola, a leitura literária tem por objetivo, auxiliar o aluno a ler melhor, a
descobrir o prazer da leitura, possibilita a criação do hábito da leitura e se perceba
215
o valor da mesma e a sua valorização. Talvez, o que falte aos alunos para que se
tornem leitores é a aplicação e a efetivação do processo de letramento literário. Ir
além da leitura simples, superficial é fundamental para que o processo educativo
forme leitores.
No que tange ao valor da leitura e a valorização da experiência estética,
vale lembra as palavras de Zilberman (1989):
A valorização da experiência estética, que confere ao leitor um
papel produtivo e resulta da identificação desse com o texto lido,
enfatiza a idéia de que uma obra pode ser julgada do ponto de
vista do seu destinatário. Os valores não estão prefixados, o leitor
não tem de reconhecer uma essência acabada que preexiste e
prescinde de seu julgamento. Pela leitura ele é mobilizado a emitir
um jzo, fruto de sua vivência do mundo ficcional e do
conhecimento transmitido (p. 110).
Dessa forma, não basta estudarmos apenas a história das escolas
literárias. É preciso que o aluno-leitor se debruce e se reconheça no texto. É
necessário que ele crie suas expectativas, amplie-as, interprete a obra e
compartilhe o seu saber.
Após essa discussão sobre o processo de leitura e sobre a formação do
leitor, abordaremos, a seguir, outro elemento indispensável ao sistema
educacional: o docente.
216
4.6 - O docente e a identidade profissional: alicerce da educação
Muito se questiona acerca do trabalho docente. , no seio da sociedade,
o ideário de que o professor é um ser “divino” dotado de dons especiais capazes
de repassar às outras pessoas ensinamentos. No entanto, o que essa mesma
sociedade esquece (ou quer que os próprios professores esqueçam) é que a
docência não é um dom divino, mas uma profissão árdua e merecedora de
reconhecimento como todas as demais existentes.
Uma pesquisa feita pela UNESCO (2004) acerca do perfil dos professores
brasileiros, revela que a maioria deles é formada pelo sexo feminino, que ganha
em torno de dois a dez salários mínimos e que autodiscrimina e autodesvaloriza
a própria profissão.
O dado preocupante nessa pesquisa é que a autodiscriminação e a
autodesvalorização da própria profissão provoca, diante do cenário social, uma
deterioração dos próprios docentes. É preciso que nós, enquanto professores
formadores de opinião convençamo-nos de que o magistério não é algo doado,
mas uma profissão.
Uma das justificativas para tal visão dos próprios docentes, segundo essa
mesma pesquisa, é de que, os professores pressionados por baixos salários, por
uma formação precária - geralmente aquém das condições concretas de vida de
muitos de seus alunos e do meio em que atuam (provocando, muitas vezes, a
frustração) e pelo pouco ou inexistente acesso a bens culturais, além de outras
217
disparidades sociais, culturais e econômicas que configuram a sala de aula e que
deixam os docentes isolados enquanto classe e gera neles um processo de perda
de identidade profissional que vem se agravando gradativamente dia após dia.
Segundo Libâneo (2003), a dignidade e a identidade profissionais precisam ser
resgatadas urgentemente para que o professor se sinta motivado e passe
motivação para seus alunos; pois, uma vez desmotivado e subjugado a um
sistema e sem uma identidade profissional ele se menosprezará e poderá
desestimular os próprios discentes.
Muitos dos educadores, no entanto, preferem o comodismo a buscar
alternativas de ensino, porque não basta apenas o docente tomar conhecimento
dos seus problemas. É indispensável que ele tome consciência e possa mobilizar
também os seus saberes docentes para melhorar a sua própria condição
profissional. que professor é, conforme Tardiff (2002), “alguém que sabe
alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber aos outros”.
Esse saber docente, ainda segundo Tardiff (2002), é um saber plural, pois
é formado por um conjunto de outros saberes, tais como: os saberes
profissionais, oriundos da formação profissional (transmitidos pelas instituições de
formação de professores - saberes científicos e pedagógicos); saberes
disciplinares; curriculares e; experienciais. Essa mesma pluralidade de saberes
faz com que o professor ocupe uma posição estratégica nos meandros das
complexas relações que ligam as sociedades contemporâneas aos saberes que
elas produzem. No entanto, o saber docente e a própria docência ainda são
desvalorizados. Isso ocorre, sobretudo, porque o professor ainda não procurou se
218
impor diante da sociedade a qual faz parte, enquanto profissional que é.
O que se percebe é que a questão do conhecimento dos educadores ainda
está muito presa à questão da profissionalização do ensino e aos esforços que os
especialistas na área têm em definir a natureza, a origem dos conhecimentos
profissionais que servem de diretrizes para o magistério.
Faz-se necessário que o profissional da educação, sobretudo o professor,
encare a si próprio como um sujeito competente, capaz de produzir os saberes
específicos à sua labuta diária. Para isso, é preciso que ele reveja seu próprio
papel de educador, além de repensar as concepções tradicionais relativas às
relações teoria x prática docente. Assim, possa ser que ele repense sobre a sua
função social, sobre o ensino e sobre a sua própria organização do seu trabalho
no ambiente escolar.
Nesse repensar, o docente deve rever o seu agir, a sua atuação, a fim de
que ele deixe de aplicar apenas o conhecimento teorizado por outros (geralmente
pesquisadores universitários) e passe a produzir o seu próprio conhecimento
teórico, ou seja, ele poderá elaborar o seu próprio material didático e utilizar os
recursos dos quais dispõe para adaptá-los ao seu trabalho. Por exemplo, se o
professor for dar uma aula sobre literatura de cordel, ele poderá fazer, juntamente
com os alunos, os próprios cordéis; além disso, ele também poderá elaborar
adaptações literárias, entre outros exemplos. O importante é ele não se prender
aos livros didáticos para ministrar sua aula. Agindo assim, o professor encarará o
ensino sob uma nova perspectiva e, quiçá, encare a docência como uma
profissão tão importante à sociedade quantos as demais e não como uma dádiva.
219
4.6.1 - Formação profissional e estratégias formais de leitura
Começamos por tomar de empréstimo as palavras de Emília Ferreiro,
quando trata de questões relevantes sobre as concepções de leitura e escrita
implicadas diretamente com a questão do sentido. Essa idéia geradora do
significado que, de algum modo implica a noção de fonema, perpassa os ditames
da lingüística e se imbrica com outros elementos da pedagogia, da sociologia, da
filosofia e, sobretudo, da antropologia para explicar o homem fazendo sentindo e
dando sentido ao que faz.
É um fato, porém que, tradicionalmente, a escola nem sempre se preparou
para o ingresso no mundo moderno do significado. A profissionalização e a busca
de estratégia perpassam em muito as questões postas na escola sobre
concepções e estratégias de leitura.
de se notar, como bem atenta Ferreiro (1999, p. 272), que a concepção
tradicional, da qual falamos anteriormente, sobre o significado surge como que
relativa aos processos de oralidade e, nesse caso é “graças a emissão sonora
que o significado surge transformando assim a série de fonemas em
significados.”
É importante observar, na interação pela leitura, que o necessário não é
analisar apenas como a linguagem funciona no texto, mas como ela está a
serviço das intenções do autor. De igual sorte, nem sempre o significado está
expresso na oralidade, mas nas palavras que guardam, por assim dizer,
220
elementos figurativos de representação sonora e de sentido disponíveis ao leitor.
Observando as considerações tecidas sobre o ato de ler, Marcuschi (1988)
chama a atenção para o fato de que a compreensão de um texto implica uma
atividade dependente dos conhecimentos pessoais (lingüísticos, sociais,
comportamentais, históricos, etc.); contextuais (social, ideológico, político,
religioso, etc.), assim como das atividades inferências (atividades cognitivas
realizadas no momento em que se obtêm informações para se chegar a
informações novas). E sabemos o quanto tem sido complicado e mesmo
imprópria uma formação profissional que se paute por esses elementos
norteadores.
Cremos que diferentes formas de manipulação social e política na
sociedade não encontram barreira, como referência contrária ou idéia contrária,
por exemplo, pelo fato de, na formação inicial, as pessoas não estarem
preocupadas com o uso que se poderia fazer dos “significados” e inferências das
leituras e dos processos de manifestações escritas. Melhor dizendo,
consideramos que problemas de letramento (de leitura e escrita) implicam
formação profissional deficitária e, conseqüentemente, cidadãos menos ativos e
críticos.
A idéia aqui colocada não é originalmente nova. fora levantada em
textos anteriores de Soares (2003); Peixoto (2004); Kleiman; Axt (2000); Aldrigue
(2000) e Castro (1998). Todos se pautam pela idéia geradora, segundo a qual, a
formação profissional em quaisquer níveis passa pela referência escolar ou de
formação integral do indivíduo leitor e produtor de texto. Tal fato nos impele a
221
considerar o letramento como que intimamente ligado ao leitor/produtor de
significados e ativo socialmente.
Parafraseando Castro (1998), podemos perceber que a formação de bons
leitores e construtores de textos socialmente existentes deve ser, dentre outras,
meta essencial da escola na preparação do educando para a vida.
Assim, percebemos que é considerado um passo significativo para a
escola, como espaço de formação e, os que nela interagem (e dela dependem),
conseguir despertar nos educandos o gosto pela leitura e a capacidade de
compreender e produzir textos.
Para fecharmos o tópico aqui posto, recorremos às considerações de
Cagliari (1989, p. 148), que nos brinda com um pensamento original e para quem
a leitura deve ser considerada a extensão da escola na vida das pessoas. A
maioria do que se deve aprender na vida terá de ser conseguido através da leitura
fora da escola. A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma”.
Essa deveria ser a marca das sociedades letradas, do homem liberto, do
cidadão que faz uso do seu idioma para interagir, produtivamente e politicamente,
nos entremeios do letramento.
222
4.7 O ensino da leitura literária e as barreiras interpostas à correnteza do
saber
Percebemos, pela singularidade das propostas, que a leitura que se
planeja, quando se planeja, é feita unicamente a partir do texto veiculado pelo
livro didático. Ao que se parece, e não podemos afirmar categoricamente sem
termos feito uma pesquisa mais detalhada, que o livro didático se distancia da
realidade ou do interesse do aluno.
O professor (ao que observamos pela vivência cotidiana e nas muitas idas
e vindas como educandos e educadores) ainda espera que alguém o direcione na
preparação formal de atividades de leitura, e quando sente que não está fazendo
como deve, passa a sua responsabilidade para outros. Isso nos faz indagar: seria
o profissional professor atual um não leitor ou, em melhores termos, um leitor que
tem problemas de letramento?
Cabe aos novos pesquisadores dar respostas ao que, para nós, é uma
inquietação. A escola também se omite, mesmo sabendo que a leitura é a chave
para a superação do fracasso escolar, não deixa abertura nos planejamentos para
se trabalhar a leitura de forma diversificada e significativa. Pois, de acordo com
Ferreiro (op. cit., 199): a leitura e a escrita se ensinam como algo estranho à
criança e de forma mecânica”.
Uma outra questão diz respeito às práticas de leitura. Sempre nos
inquietou a noção vaga de leitura que muitas crianças trazem da escola. Nossa
223
idéia de leitura também, como profissionais que somos e da formação superior
que recebemos. A questão gira em torno de que tipo de leitura a escola propõe
aos alunos e aos seus profissionais. É um fato que geralmente os alunos não
gostam de ler em grupos e em voz alta e preferem a leitura silenciosa, porque, de
fato, na escola, há pouco espaço para a oralidade.
A leitura significativa está como que em falta nas prateleiras de muitas
escolas. É importante e preciso que os textos sejam propostos de modo a se
integrarem com as aptidões de seus leitores e que, de alguma forma, se
identifiquem com o amadurecimento e evolução enquanto usuários da língua que
se mesclem e se favoreçam mutuamente (leitor e escola) na aprendizagem das
convenções e os conceitos relativos ao material significativo e, assim, atuem, de
algum modo, sobre as motivações para aprender a ler e a escrever.
Mas, afinal, que fatores poderiam ser considerados como dificultadores do
processo de ensino de leitura ou de processos de letramento? Mais uma vez,
retomamos às considerações de Soares (1987), quando trata a questão da
diversidade textual na formação profissional de educadores, sobretudo, a partir
dos Referenciais para Formação do Educador. Os PCN de Língua Portuguesa, ao
que parece, é considerado por Soares como texto modelo e, de certo, nas
estruturado para o seu interlocutor direto: o professor que está atuando na rede
oficial. Há, de certo, um fator intrigante nessa consideração, uma vez que a
compreender o processo dificultador que o material em si representa como fonte
de formação.
De fato, o problema, ao que parece, não está no material... Mas no material
224
humano. A formação do profissional que lidara com questões de língua materna é
o cerne da questão. De fato, aqui começam os entraves que dificultam os
processos de ensino e aprendizagem, sobretudo na relação do educador com os
processos de letramento (leitura e escrita). Marinho (1998) trata da questão da
relação do professor com a leitura no seu espaço de atuação profissional: a
escola.
Um segundo entrave a considerar diz respeito às condições de ensino-
aprendizagem de leitura e escrita nas escolas, a partir da relação e representação
da escrita do professor, refletidas em suas leituras, mesmo as de fundamentação
teóricas. Uma vez mal formado e mal remunerado, resta a esses profissionais, no
isolamento cultural dentro das escolas onde atuam, reproduzirem em suas
práticas a metodologia e o conteúdo cientificamente superados, aprendidos
durante sua formação inicial. É por essa razão que ressaltamos ser esse
profissional mais um refém da orientação do livro didático, de qualidade científica
muitas vezes também questionável.
Isso nos faz ingressar em um terceiro fator a considerar: as reflexões
socioantropológicas sobre esse profissional, considerando as suas maneiras de
ler ou mesmo de se relacionar com o universo da escrita. Essas o questões
norteadoras que ainda não temos respostas prontas e acabadas, mas que outros
pesquisadores poderão dar segmento ao fio condutor que aqui lançamos e fazer a
investigação para o campo da ciência.
225
Além desses fatores elencados acima, temos ainda as políticas públicas
85
voltadas à educação que, na maioria das vezes, estipulam diretrizes para que o
educador siga sem lhe dar condições para isso. Ademais, vale salientar que tais
políticas, ora camufladas por belas propagandas, deixam os professores
desnorteados devido ao excesso de atividades e regras a se cumprir sem o tempo
necessário de preparação/qualificação; ora focadas em determinados contextos
socioculturais que não refletem e/ou representam de fato a realidade do aluno.
Ao nosso entender, cursos de magistério de nível médio e muitos de
graduação ainda não investiram de forma efetiva na incorporação à formação
inicial do professor. De um modo mais presente em nossa realidade, uma
proliferação de cursos duvidosos e instituições igualmente duvidosas, propondo
formação profissional. É um problema que pode afetar os processos de leitura e
escrita (e de letramento), quando se supõe a inexistência em tais contextos de
formação de um quadro teórico, oriundo as disciplinas contemporâneas da
linguagem, capaz de explicitar e dar soluções aos problemas de desempenho
textual relacionados com os alunos e, mais especialmente, com o profissional
professor.
Em muitos casos, os entraves são bem conhecidos, em decorrência das
lacunas na formação inicial, assim como os efeitos de intervenções pontuadas e
rápidas, de formação deficitária. Esses elementos são bastante diversos do que
se entende por formação continuada, ao menos nos moldes como propostos
pelos PCN.
85
Não expandiremos aqui a discussão a respeito de políticas públicas, nem mesmo as voltadas
para a educação.
226
As reflexões que formulamos e que se inspira em fatos abstraídos de
nossa prática constitutiva como professores, fazem-nos ver também que algumas
questões relacionadas a sociedades e aos processos de letramento podem, como
o é para nós, um problema. De fato, o problema foi entender que escola é um
reflexo da sociedade e, se uma vai mal, inevitavelmente, a outra pode não ir bem.
O nosso grupo é o reflexo de nossa cultura e, assim, somos também “lidos” e
copiados em termos de comportamento como forma de linguagem. Daí vale a
máxima: avaliar os processos de leitura dos outros não será tão produtivo quando
avaliar o nosso próprio processo de aprendizagem de leitura e escrita. assim
poderemos propor algo pelo qual acreditamos.
É notório que a cada ano que se passa, a preocupação acerca da
qualidade do ensino e da aprendizagem vem aumentando, seja por parte dos pais
de alunos, pelo corpo docente das escolas, por estudiosos da área pedagógica,
pelos próprios estudantes, pelas instituições escolares e até mesmo por parte do
Estado. quem diga que essa preocupação se devido à grande imposição
do mercado de trabalho por profissionais mais qualificados.
Por isso, é de extrema importância que o professor, no nosso caso, o
professor de Literatura, tenha conhecimento dos conceitos que estruturam sua
disciplina e a relação que ela tem com as outras disciplinas de sua área, para
que, juntas, possam conduzir o ensino de maneira que os alunos desenvolvam
melhor o aprendizado. Cabe aos professores conduzirem o aprendizado de cada
disciplina e, ao mesmo tempo, ampliá-lo para outras. Para isso, é importante que
o professor conheça e domine práticas de letramento (literário) para que o aluno
227
venha a compreender não apenas o uso social da leitura e da escrita, mas
também possa ter assegurado o seu efetivo domínio nas práticas sociais
cotidianas.
Além disso, faz-se necessária a valorização da docência, seja por parte da
sociedade, ou por parte do governo. Porém, é fundamental para o próprio ensino
que os docentes, enquanto detentores de saberes específicos ao seu trabalho,
assumam-se enquanto profissionais que são e assumam a sua prática mediante
os significados que eles mesmos produzam para que deixem de ser vistos como
aplicadores dos conhecimentos produzidos por outros ou como agentes sociais,
que agem por força de mecanismos sociais, ou ainda como sacerdotes do ensino.
228
CAPÍTULO V
5. DAS PÁGINAS AO PALCO: EXPERIÊNCIAS EM SALA DE AULA COM A
BARRAGEM
Neste capítulo, explicaremos como foi desenvolvida uma experiência em
sala de aula com o romance A Barragem. Iniciaremos com o relato de como a
atividade foi desenvolvida e como a mesma ocorreu, depois traremos o texto e as
fotos da adaptação textual feita do romance e, por fim, uma análise acerca dessa
experiência em sala de aula.
Ao final do terceiro bimestre do ano letivo 2007, por volta de meados do
mês de setembro, alguns alunos do ano do Ensino Médio da Escola Municipal
de Ensino Fundamental e Médio Maria Estrela de Oliveira, localizada no Distrito
de Lagoa dos Estrelas, zona rural da cidade de Sousa, PB escola em que atuo,
atualmente, como docente ao verem o livro A Barragem em minha pasta
escolar, pediram-me para olhar e, em seguida, dois desses alunos perguntaram-
me se eu não poderia lhes emprestar.
Após uma semana com o livro, eles vieram me indagar se eu não permitiria
que eles fizessem uma peça encenando algumas partes da história do referido
livro. Os demais colegas de sala, ao escutarem a proposta, se interessaram pela
proposta e pediram-me para participar também.
229
Naquele momento, disse que eles poderiam participar, porém depois fiquei
indagando a mim mesmo como executaria a encenação, uma vez que eu o
possuía experiência com dramatizações escolares. Pedi auxílio à professora de
Artes, mas não obtive êxito. Comentei o fato, em reunião de planejamento
pedagógico, com a equipe pedagógica do educandário e com demais docentes da
instituição; tive “apoio moral”, mas não o apoio técnico, do qual necessitava. Na
aula seguinte expus o fato à turma e disse que, com o auxílio deles, realizaríamos
a peça.
Para que todos tivessem acesso ao conteúdo do romance foram feitas
cópias xerografadas de A Barragem para cada dois alunos, devido às precárias
condições financeiras dos mesmos.
Durante todo o mês de outubro de 2007, realizávamos encontros semanais
(nas duas aulas dedicadas à Literatura e Leitura e Redação) para a leitura e para
a discussão do que eles haviam lido em casa. As duas primeiras sextas-feiras do
mês de outubro do ano passado, foram dedicadas à leitura dos dez primeiros
capítulos do romance em sala de aula (cinco capítulos por sexta) e, ao passo que
liam e que alguma dúvida surgia, principalmente quanto à grafia e significação
das palavras, inicialmente eles eram incentivados a pesquisarem nos dicionários
e, quando mesmo assim, não sanavam as dúvidas, eu fazia os esclarecimentos
devidos. E as duas últimas sextas-feiras foram voltadas para a escrita da
adaptação do gênero narrativo para o gênero dramático de partes lidas do
romance.
Por pressão pedagógica para o cumprimento do programa escolar (repasse
230
dos conteúdos de Literatura e Leitura e redação) fomos pressionados a seguir
com o conteúdo didático, uma vez que, segundo a Secretaria Municipal de
Educação e Cultura, o docente das disciplinas, no caso, eu, não estaria
ensinando Literatura, nem nada relacionado à Leitura e redação aos alunos.
Mesmo expondo aos objetivos propostos das atividades trabalhadas, não houve o
convencimento, sendo “aconselhado” a registrar as aulas com os conteúdos do
programa. No entanto, fica até o presente momento a indagação: será que os
alunos não estariam aprendendo Literatura e não estariam exercitando práticas
de leitura e escritura de forma interativa e prazerosa?
Para evitar mais pressões, um acordo fora firmado com a turma:
utilizaríamos a última aula das segundas-feiras (que era da disciplina Educação
Física, ministrada em horário oposto) para as nossas atividades de compreensão
do texto romanesco em questão. E assim procedemos. A leitura total do romance
não fora concluída por falta de tempo necessário para a leitura e adaptação mais
bem elaborada. Porém, em conjunto, fizemos a adaptação textual e a
apresentação da peça ao final do ano letivo.
Como sabemos, o gênero dramático é uma modalidade de texto literário
caracterizado pelo uso de diálogos e pela ausência de narrador. Além disso, a
modalidade textual em questão utiliza o discurso direto e uma demarcação
espaço-temporal própria para ser encenada.
Divididos em duas categorias principais tragédia e comédia os textos
dramáticos abordam situações cotidianas e temas que fazem o espectador refletir
aspectos morais e sociais do cotidiano humano.
231
Voltando para a adaptação textual de uma cena do romance A Barragem,
salientamos que duas modalidades textuais literárias foram envolvidas nessa
atividade: uma foi a modalidade narrativa e, a outra, a dramática. Para isso,
necessitamos elaborar um pré-texto para, em seguida, montarmos o texto teatral,
com as respectivas falas das personagens e demais características do texto
dramático (explicação do espaço, detalhamento do tempo e das emoções das
personagens). Ao final desse trabalho, fizemos uma retextualização do texto
matriz (romance), emergindo daí as categorias de leitura e produção de texto, a
saber: decodificação, esclarecimento vocabular, compreensão, compreensão,
interpretação e produção textual.
Assim, procedemos, então, da seguinte maneira, antes da encenação:
primeiro, dividimos os grupos de alunos com os seus respectivos afazeres (uma
equipe para cuidar do figurino, outra para cuidar do cenário e, uma terceira, para
a dramatização). Depois, realizamos leituras para melhor entendimento do texto
adaptado. Inicialmente, leitura silenciosa para que os alunos pudessem esclarecer
alguma dúvida e melhor compreender o seu personagem; após, uma leitura oral
individual e oral compartilhada para que o estudante pudesse trabalhar a
pontuação, a entonação e a expressão vocal de sua fala. Posteriormente,
demarcamos o espaço dos “atores” (alunos) no “palco” (sala de aula) e o tempo
da fala de cada um. Por fim, realizamos cinco ensaios gerais antes da
apresentação.
Durante a elaboração da adaptação textual, várias sugestões acerca de
como proceder também ocorreram por parte dos alunos. Nos ensaios, a
232
memorização das falas foi o fator de maior entrave. Outros obstáculos também
surgiram, a exemplo de desistência de alunos para a dramatização, dificuldade
para definir o tom adequado da fala das personagens, a falta de tempo para mais
ensaios entre vários outros atravanques, sem falar do nervosismo, ansiedade de
todos.
A cena adaptada foi “A Traição de Mariano”, um dos protagonistas do
romance, que mantém rápido caso extraconjugal com Cabra-Lina. Os alunos
ficaram tiveram liberdade para propor o final das personagens na adaptação,
conforme a recepção e a interpretação que eles tiveram do texto.
5.1 Adaptação didática de A Barragem
A TRAIÇÃO DE ZÉ MARIANO
Personagens:
Remédios (filha)
Mariquinha (Mãe de Remédos e esposa de Zé Mariano)
Zé Mariano (pai de Remédios e esposo de Mariquinha)
“Cabra” – Lina (amante de Zé Mariano)
Quitéria (mãe de Lina)
D. Eugênia (fofoqueira da vila)
233
Ilustração 8: Elenco Representação das personagens (da esquerda para a direita): Cabra-Lina,
Remédios, Mariquinha, Zé Mariano, D. Eugênia e D. Quitéria.
CENA I
(Em pé, diante de um espelho desgastado, Remédios se olha e arruma os
cabelos, conversando com Mariquinha, sua mãe, que está sentada na sala, num
cepo, perto da porta da frente da casa).
Ilustração 9: Representação da 1ª cena: Remédios e Mariquinha
234
Remédios: Ô cheiro de pobre, nessa casa, mãe! Vôte!
Mariquinha: Ô minha filha, já se esqueceu do nosso cheiro, foi?
Remédios: Ave, mãe, nosso não, porque eu não tenho mais essa inhaca. Vôte!
Mariquinha: (Com olhar e voz tristes) Não diga isso mais não, minha filhinha!
Depois que você voltou do Recife, você voltou tão diferente...
Remédios: Eu, mãe?! Eu não. A senhora é que está atrasada no tempo...
Mariquinha: Você, sim, Maria dos Remédios! Ou você esqueceu que seis
meses você me chamava de mainha. O seu pai, você o respeitava... Além disso,
você não era tão reclamona, não. Foi você se juntar com as metidas de suas
primas para voltar assim... toda melindrosa.
Remédios: (Com jeito de indignação) Oxe, mãe!
(Cala-se, olha-se mais um pouco no espelho e vira-se para Mariquinha)
Remédios: É... eu posso ter mudado, mas a senhora também mudou. Cadê
aquela destemida Mariquinha? Por que a senhora está aí, toda morfina, nesse
canto da sala?
(Remédios aproxima-se de Mariquinha e abraça-a. Nesse instante,
Mariano entra em casa apressado, perfuma-se, muda a camisa e sai).
Zé Mariano: Volto já.
Mariquinha: Tá vendo, filha! Toda noite é assim: ele chega do trabalho, se
235
arruma e sai. Mal fala comigo... Ah, minha bruguelinha, como eu queria voltar
àquele tempo de antes! Àquele tempo em que nós morávamos no Rancho Doce,
ou então quando nós chegamos aqui nesse São Gonçalo. Tempo em que seu pai
estava gorejando um posto de trabalho como cassaco e eu vivia colhendo
tamarindo ou juá para dar de comer a você e a seus irmãos. Ah, minha filha...
Remédios: (Abraçando mais firme a mãe) E o que está havendo agora?
Mariquinha: (Chorando no ombro da filha) Prefiro nem saber, minha filha.
CENA II
(Cabra-Lina, deitada no colo de sua mãe que ajeita o mafuá
86
da filha).
(Zé Mariano chega à casa da velha Quitéria, mãe de Lina, popularmente
conhecida na vila como Cabra-Lina).
Zé Mariano: (Batendo palmas para avisar sua chegada) Boas noites, minha Lina!
Quitéria: (Falando baixinho ao ouvido da filha) Vai filha, ele chegou. Se apronta
que eu vou fazer sala.
Cabra-Lina: Tá certo, mainha!
Quitéria: Boas noites, seu Zé Mariano! Vamos entrando...
86
Cabelo crespo, despenteado e extremamente volumoso.
236
Zé Mariano: Cabra-Lina, cadê?
Quitéria: Tá dentro se arrumando pra você, agora que ela pode namorar
você...
Zé Mariano: E a senhora queria que ela saísse por aí, namorando todo mundo da
barragem, é?!
Quitéria: Eu não quero que minha cabritinha saia namorando cassaco. fiscal,
engenheiro, apontador...
Zé Mariano: (Pendurando o chapéu num armador de redes, na sala) Arre! Eu não
to gostando nenhum pouco dessa história, não! A senhora ta pensando o quê?!
Pensa que eu não sei da sua fama pela Rabicha, não? Eu era moleque e
escutava os mais velhos comentarem no Chabocão
87
sobre a fama de Cabra
Tetuda que a senhora tinha.
Quitéria: Ah, mas naquele tempo!... Hoje a rabicha é chão pisado e logo, logo vai
ser terreiro de água. Até o nome mudou: de Rabicha para São Gonçalo.
Hoje, eu mudei também. Hoje já não sou mais nenhuma Cabra Tetuda, senhor Zé
Mariano! Hoje só faço cocada e broa de milho para vender no Barracão. Hoje, sou
a D. Quitéria e só.
(Cabra-Lina entra na sala e interrompe a conversa).
87
Localidade onde ficava situado o sítio de Mariano, o Rancho Doce. Na época, o Chabocão
era um latifúndio, depois passou a ser distrito de Sousa e hoje é a cidade de São Francisco,
conhecida na região da grande Sousa como São Francisco do Chabocão.
237
Cabra-Lina: Um cafezinho, meu fiscal.
Mariano: Ô minha Lina! Claro que sim. (Mariano segura a xícara com uma
mão e, com a outra, puxa o braço de Cabra-Lina, cheirando o cangote dela)
Cabra-Lina: Veio fiscalizar sua propriedade, foi?
Zé Mariano: Hum, delícia de café! E de Lina!
Cabra-Lina: Pena que hoje tem café. A gente com falta de material para
fazer broa.
Mariano: Tá faltando o que mais?
Cabra-Lina: Arroz, água-de-cheiro, carmim, feijão, tocinho de porco, doce,
açúcar, rapadura nova...
Quitéria: Tecido para saia de baixo, biscoito...
Zé Mariano: Tá bem, amanhã mando o moleque da firma passar lá no Barracão e
trazer.
(A velha Quitéria sai. Mariano e Cabra Lina ficam namorando um
pouquinho e, depois, Zé Mariano vai embora).
238
Ilustração 10 : Quitéria, Mariano e Cabra-Lina. (Enquanto a filha namora, a velha Quitéria
“fiscaliza” o “namoro” deles)
Ilustração 11: Zé Mariano e Cabra-Lina em um namoro de pé-de-orelha.
239
(Ninguém percebeu que Remédios estava olhando aquela cena abaixada por trás
de uma moita de mufumbo, de frente a casa das duas).
CENA III
(Cedinho, D. Eugênia e Mariquinha varrem os terreiros de frente as suas
casas).
Ilustração 12: Sequência das cenas da conversa entre D. Eugênia e Mariquinha, ao varrerem os
terreiros de suas casas.
D. Eugênia: Bom dia, Mariquinha!
Marquinha: Bom dia, D. Pacata!
D. Eugênia:: Gente luxosa é outra coisa! Depois que Seu Mariano virou fiscal
está andando nos “trinques”. E a senhora, ein...? Água-de-cheiro, carmim,
tecido para saia de baixo... Sei não...
240
Mariquinha: Eu não sei é do que a senhora ta falando, D. Pacata!
D. Eugênia:: Oxe! Da feira que a senhora mandou fazer no Barracão. Só coisa
boa! Eu vi na hora em que o moleque da Fundação mandou por tudo anotado na
conta de Seu Zé Mariano fiscal.
Mariquinha: Não me diga uma coisa dessas, D. Pacata!
D. Eugênia:: Digo sim. E tem mais, não foi a primeira vez. Luxosa, ein!
Mariquinha: Não?! Ah, minha Nossa Senhora do Bom Parto! Será que tem
outra?
D. Eugênia: (Aproximando-se de Mariquinha com a vassoura na mão e cochicha
a Mariquinha) Olha, D. Mariquinha, eu não sou mulher de fuxicos, não. Longe de
mim! Nem sou mulher de ficar reparando na vida dos outros, não, mas nessa vila,
todo mundo está dizendo que seu marido ta esquentando brasa na lamparina da
filha de D. Quitéria, aquela que era chamada de Cabra tetuda, lá na Rabicha...
E não é isso, não. Tão dizendo que Remédios ta muito da
namoradeira...
Mariquinha: Ave! Esse povo repara demais. Remédios não é disso, não. Esse
povo tem a língua maior que a Barragem e quem é da rua das 16, tem dezesseis
léguas a mais. E quer saber do mais, D. Pacata: vá cuidar de sua casa e deixe de
fingir que varre terreiro, só para fazer fuxico!
D. Eugênia:: Eu, ein!
241
(Mariquinha entra em casa, furiosa).
D. Eugênia:: (Voltando a arrastar a vassoura pelo terreiro fica resmungando,
sozinha) E o que foi que eu disse, meu santo? comentei o que todo mundo
fala. E nem disse que Remédios ta mais falada que Cabra Lina e que toda noite
a filha dela inventa de ir fiscalizar pras bandas do almoxarifado, da fábrica de
gelo, da Fundação... Sempre em companhia diferente... Eu, ein! Deixa eu
continuar lambendo meu terreiro.
CENA IV
(Mariquinha, chorando num canto da sala. Remédios chega).
Ilustração 13: Remédios e sua mãe conversando sobre Zé Mariano
Remédios: O que foi, mainha?
Mariquinha: Minha filha, estão dizendo que seu pai está de caso com aquela
242
cabrita da Lina, filha de D. Quitéria.
Remédios: Mãe, é verdade, eu vi. Eles estão juntos sim, mas não contei nada a
senhora porque queria, eu mesma, resolver. Pensei em mandar dar uma surra,
mandar amarrar aquelazinha e a mãe dela num formigueiro, mas acho que isso
seria ser bondosa demais com elas.
Mariquinha: Ô minha filha, faça isso, não!
Remédios: Eu tenho é um plano, mãe!
Mariquinha: Ai, meu Deus! O que será dessa vez?
Remédios: A gente finge que não sabe de nada. Aí, e u digo que vai haver uma
missa campal em São Gonçalo. Mando todo mundo ficar esperando o padre na
praça. Digo que foi uma promessa para painho conseguir ser fiscal e faço questão
de chamar as duas e colocar elas, painho e a senhora próximos.
Mariquinha: Isso não vai prestar...
CENA V
(Na hora da missa, todos do acampamento estão na praça esperando o
padre. Mas... o padre é Remédios disfarçada com vestido preto e um chapéu
243
preto. A menina, toda cheia de si, começa a ação planejada [no caso, a missa].)
Remédios: Meus irmãos em Cristo! Quero dizer a vocês que todos nessa
Barragem correm perigo...
(Todos têm uma surpresa e pensam que fosse alguma presepada de
Remédios para atrapalhar a missa, mas, mesmo assim, ficam a escu-la).
Remédios: ... Todos correm perigo não por causa de doença ou de
assombração. Mas por causa da sem-vergonhice de duas sujeitas que vêm
destruindo lares e famílias. Estou falando dessa rameira aqui presente: Cabra-
Lina. Ela e a alcoviteira da e dela levam os casamentos à ruína. Todos sabem
da fama dessas duas. E agora ela, Cabra Lina, está de caso com meu pai e
está fazendo minha mãe definhar de vergonha e sofrimento! Quero chamar todas
as filhas e esposas de bem desta vila e expulsar essas rameiras daqui.
244
Ilustração 14: Cenas da “missa” realizada por Remédios. Nas imagens temos: na fotografia da
esquerda (da esquerda para a direita) Mariquinha, Mariano, Cabra-Lina, Quitéria e Remédios
(canto direito); na fotografia esquerda temos os mesmos personagens da fotografia anterior, além
de D. Eugênia (canto esquerdo da segunda imagem).
(O fuzuê começa. Cabra Lina e D. Quitéria saem da praça correndo e
Mariquinha, não suportando aquela vergonha que passara, discute com
245
Mariano):
Mariquinha: Seu cabra sem-vergonha! Então era verdade mesmo que você
estava de caso com aquelazinha (Mariquinha começa a chorar).
Mariquinha: Ô meu o Gonçalo, por que me concedeste tamanha aflição? Ô
que desgosto, meu Deus!
(Mariquinha sai dali chorando e Remédios acompanha sua mãe).
Remédios: Eh, minha mãe... Não fique assim.
Mariquinha: Minha filha, eu passei tanta aflição, tanto sofrimento com seu pai, dei
a ele sete filhos... fora os outros seis que Deus levou e fora. Olha o pagamento
que recebo!
(Mariquinha se abraça com remédios e continua chorando. Mariano
chega em casa).
Ilustração 15: Remédios consolando Mariquinha
246
Ilustração 16: Mariano interrompe a conversa de sua esposa com a filha para se explicar
Ilustração 17: Zé Mariano procurando explicar-se à Mariquinha
Zé Mariano: Mariquinha... Me perdoe?
Mariquinha: De jeito nenhum, seu safado!
Zé mariano: Vamos deixar essa querela para lá e voltar a viver em paz?
247
Ilustração 17: Zé Mariano pede desculpas à esposa. Remédios observa tudo
(Mariquinha, ainda chorando, olha bem para Mariano e resolve perdoá-
lo. Apontando o dedo indicador para ele...)
Mariquinha: Olha aqui... Eu vou lhe dar outra chance, seu cabra! Agora se
acontecer isso de novo, eu vou-me embora desse acampamento e irei morar com
meu irmão no Recife.
Zé Mariano: Chegue cá, minha velha!
(Zé Mariano, limpando as lágrimas de Mariquinha, dá-lhe um forte abraço.)
(Remédios. Vendo a cena de longe, mostra a sua felicidade através de um
tímido sorriso de canto de boca).
FIM
248
5.2 - Análise sobre a adaptação do episódio transposto
Após a leitura da adaptação textual de um dos episódios contidos no
enredo de A Barragem. Que foi o do caso amoroso que Mariano teve com
Cabra-Lina (como era conhecida a moça), uma vendedora ambulante de cafés,
algumas considerações merecem ser feitas.
Ao concluirmos a encenação de A Barragem, reunimo-nos para
conversarmos sobre as impressões dos mesmos acerca da apresentação. Eles
informaram que, com a leitura do romance, muitos “despertaram para a leitura e
perderam o medo de escrever histórias”. Além disso, entre uma conversa e outra,
fiz uma recapitulação oral do conteúdo ministrado de Língua Portuguesa
(Gramática, Literatura e Leitura e redação) e percebi que a compreensão dos
conteúdos se efetivou com mais eficácia do que com a outra turma que não quis
participar do grupo de leitura.
Inicialmente, destacaremos o processo de retextualização
88
que os alunos
fizeram do texto original. De início, tínhamos um romance, com uma linguagem
típica do interior nordestino brasileiro da década de 1930. Essa ocorrência
dificultou um pouco o processo de compreensão do texto, todavia, de algum
modo, a história provocou o despertar de sentidos aos leitores (alunos) e isso os
instigou a sanar as dúvidas com pesquisas em dicionários ou indagando as
88
Reescrever um texto, adaptando-o conforme a interpretação do leitor, todavia, mesmo que haja
alterações, a essência textual deverá ser mantida.
249
pessoas mais idosas da comunidade
89
acerca da significação de alguns termos,
hoje em desuso. Depois, o texto foi sendo adaptado para um formato textual
dramático, o que denotou a compreensão e a expressão interpretativa do que fora
exposto nas aulas de Literatura do bimestre, no ano do Ensino Médio, no
ano letivo 2007, que trabalhamos o gênero dramático (no âmbito teórico) em
sala de aula, ao estudarmos os gêneros literários e sua aplicabilidade social. Em
seguida, a adaptação textual foi sendo elaborada a partir da interpretação que os
alunos iam construindo diante do que compreendiam do texto lido. Desse modo, o
contexto
90
dos alunos foi fator indispensável para a adaptação do episódio do
romance em análise.
Depois desse primeiro olhar, debruçaremo-nos sobre os temas presentes
no enredo de A Barragem e que emergiram também na retextualização
elaborada pelos alunos, mostrando a relevância de tais temas para o texto
(original e adaptado) e para a sociedade. Essa permanência temática deixa
aflorar certa representatividade social temática presente na memória coletiva de
comunidades do interior paraibano.
Um primeiro tema que notamos é a negação ao ambiente de origem.
Remédios, após passar alguns meses na casa do tio, em Recife, retorna a São
Gonçalo impregnada pelos hábitos das primas pernambucanas e influenciada
pelo modo de vida daquela cidade. Nesse fato, nota-se a influência do meio sobre
89
A comunidade a que me refiro agora é o Distrito Lagoa dos Estrelas, onde se localiza a Escola
Municipal de Ensino Fundamental e Médio Maria Estrela de Oliveira (instituição na qual ocorrera a
adaptação textual do romance em estudo)
90
O termo contexto será utilizado aqui nessa sessão segundo a acepção de Koch (2007) como
“um conjunto de suposições baseadas nos saberes dos interlocutores, mobilizadas para a
interpretação de um texto”. (p. 64)
250
o sujeito
91
, reafirmando a expressão de que o homem é produto e produtor do
meio no qual está inserido. No caso de Remédios, ela quer adaptar o que
vivenciou na casa dos tios , em Recife, a sua vivência em o Gonçalo, no
entanto, ela marca um discurso de negação às origens. Percebemos esse fato no
romance e também notamos na adaptação logo nas primeiras falas da jovem,
conforme transcrição abaixo:
Remédios: Ô cheiro de pobre, nessa casa, mãe! Vôte!
Mariquinha: Ô minha filha, já se esqueceu do nosso cheiro, foi?
Remédios: Ave, mãe, nosso não, porque eu não tenho mais essa
inhaca. Vôte!
Mariquinha: (Com olhar e voz tristes) Não diga isso mais não,
minha filhinha! Depois que você voltou do Recife, você voltou tão
diferente...
Remédios: Eu, mãe?! Eu não. A senhora é que está atrasada no
tempo...
Mariquinha: Você, sim, Maria dos Remédios! Ou você esqueceu
que seis meses você me chamava de mainha. O seu pai, você
o respeitava... Além disso, você não era tão reclamona, não. Foi
você se juntar com as metidas de suas primas para voltar
assim... toda melindrosa.
Quando Remédios fala à mãe: “... eu não tenho mais essa inhaca
92
, ela
renega suas origens. O cheiro, que é um outro fator de identificação do sujeito,
enquanto ser individual, deixando marcas sutis de sua personalidade, aparece no
romance e na peça de maneira marcante. Na fala da jovem, o cheiro aparece
como metáfora de identidade.
91
O meio, seja ele social, cultural, econômico, físico, influencia o sujeito de forma mais acentuada
quando esse mesmo sujeito se deixa influenciar para renegar o seu lugar original, muitas vezes,
numa tentativa de adaptação ao novo lugar. No entanto, corre o risco desse sujeito perder a sua
identidade.
92
No sertão nordestino, inhaca é sinônimo de mau cheiro.
251
Outro aspecto da influência do espaço cosmopolita sobre a filha de Zé
Mariano diz respeito ao falar da personagem. A maneira como ela se expressa
tem certas alterações do que falava antes de ir para Recife
93
. Ao retornar a São
Gonçalo, Remédios usa bem menos, por exemplo, os pronomes de tratamento (o
senhor, a senhora) ao se dirigir aos pais, motivo esse que, na visão deles, é falta
de respeito. Todavia, esse processo de renegação, se tornou marcante na moça
porque ela, de algum modo, negava tudo isso: suas origens, sua fala e o
respeito aos pais.
Ademais, Remédios surge como uma personagem transgressora: muito
namoradeira o que, para os moradores de São Gonçalo, era algo repudiável e,
para as suas primas, era algo normal e se tornou mais natural ainda para a filha
de Mariquinha, depois de sua estada em Recife.
Ainda no que se refere ao espaço, percebemos na fala de Mariquinha
(penúltima fala da Cena I) o tema da volta
94
: Ah, minha bruguelinha
95
, como eu
queria voltar àquele tempo de antes! Àquele tempo em que s morávamos no
Rancho-Doce...”. O Rancho-Doce era o sítio onde Zé Mariano e Mariquinha
moravam juntamente com os filhos antes de terem de vendê-lo para tentarem
encontrar um local que lhes propiciassem alimento, devido à seca de 1932. O sítio
aparece como o espaço da felicidade, reavivando a idéia de “paraíso perdido”. No
romance, essa incessante vontade de retornar ao velho sítio é marcante nos
93
Hoje em dia essas alterações no falar das pessoas, principalmente as nordestinas que vão para
o Sul/Sudeste do país, ocorre.
94
Em sua tese, o professor José Edilson de Amorim trata bem esse tema, ao analisar os
romances Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, e Essa Terra (1976), de Antônio
Torres.
95
Diminutivo feminino de “bruguelo”, sinônimo, no Nordeste, de criança.
252
desejos de Mariano. Na adaptação, uma interpretação de Mariquinha ao
sonho do esposo, uma vez que ela toma para si o discurso do marido, que
Mariquinha é a cópia decalcada do marido”. Na peça, essa apropriação dos
sonhos e do discurso de Mariano é mostrada com a fala de Mariquinha, fala
essa que serve para reafirmar as opiniões do esposo impregnadas no
pensamento da pobre senhora; afinal, como ocorre no romance e ocorria na
sociedade daquele tempo, o silenciamento do discurso feminino é uma constante
(salvo algumas raras exceções), sendo este uma extensão do discurso dos
homens.
Além do silenciamento da mulher, esta desempenha um papel secundário
numa sociedade machista como era a sociedade patriarcal do sertão nordestino
da década de 1930. Ela serve como escrava do marido, aquela que deve procriar
e fazer os trabalhos domésticos. E, em A Barragem, Mariquinha é uma
representação desse tipo de mulher. A personagem (como é mostrada na
adaptação também) tivera treze filhos, dos quais apenas sete estavam vivos.
Isso retrata o alto índice de mortalidade infantil, comum naquela época, sendo tal
fato, algo considerado natural, devido às adversidades (seca, doenças, fome
entre outras) fortemente presentes.
Outro tema apontado no romance (e que ganhou maior destaque na
retextualização) é o da infidelidade masculina e a conseqüente aceitação da
esposa à traição. No romance de Ignez Mariz, Mariano começa a ter um
relacionamento sexual com Cabra-Lina, o qual ocorre após algumas tentativas de
aproximação da moça. Mariquinha, por sua vez, dissimula não saber das
253
“escapadas” do marido, fingindo que nada de grave está acontecendo; porém,
Mariano começa a se afeiçoar cada vez mais pela vendedora de cafés, tornando-
a sua amante.
Lina é uma moça simples, que mora na parte mais afastada e mais pobre da
vila (Rua do Gogó
96
). Ela era vendedora de cafés na feira (que ocorria geralmente
aos sábados) do acampamento
97
e, além disso, auxiliava nas despesas da casa
prestando serviços sexuais aos funcionários das obras da barragem.
O que percebemos é que, naquela época em que havia o silenciamento da
mulher “de respeito”, Lina era uma jovem que tomava as iniciativas. Foi ela quem
seduziu Mariano, certa tarde, quando ele vinha de Sousa, por uma estrada
deserta. Era ela quem se insinuava ao fiscal das obras da fundação. Lina aparece
como uma representação da “tentação demoníaca”, símbolo do pecado da
luxúria.
Uma outra peculiaridade de Lina era o interesse financeiro, que também era
percebido nas atitudes de sua mãe, Quitéria, grande incentivadora da prestação
de serviços da filha. Para a velha Quitéria, era sempre um ótimo negócio manter
relações com os empregados da fundação; todavia, não era vantagem ter algum
tipo de envolvimento com funcionários de baixa-categoria (cava-terra, pedreiros,
serventes, auxiliares das obras). Essa atitude das duas é intensificada na
96
A Rua do Gogó relatada no romance era uma ruazinha formada por casas de taipa, papelão,
lona ou folhas de zinco. As residências eram bem afastadas umas das outras. Essa rua depois
passou a ser denominada Socó” (espécie de ave ribeirinha que tem pescoço comprido corpo e
desengonçado). Hoje é onde está localizada a escola-fazenda da EAFS (Escola Agrotécnica
Federal de Sousa), em São Gonçalo.
97
Acampamento era como ficou sendo chamado o vilarejo na época, devido às barracas dos
trabalhadores e as barracas usadas para guardar o material destinado às obras de construção da
barragem. Após a conclusão da barragem, o Perímetro Irrigado de São Gonçalo, ganhou a
designação de Acampamento Federal (área urbana do perímetro - sede).
254
interpretação dos alunos
98
ao elaborarem a adaptação textual.
O que mais chamou a atenção foi o fato de, ao elaborarem o novo final das
personagens, os alunos puniram, em todas as pré-elaborações adaptativas do
texto dramático, a personagem “Cabra-Lina". Entendemos que ela representa o
lado desvirtuoso da mulher da década de 1930, todavia, o modo como a
personagem fora punida por eles (via adaptação textual) tornava-se algo curioso.
Ao indagar os alunos o motivo da personagem, caracterizada como a antagonista,
deveria sofrer tal punição, relataram-me acontecimentos pessoais (fatos que
aconteceram com eles e que, de maneira mais marcante ou mais moderada, tinha
haver com a “Traição de Mariano”) que acabavam sendo refletidos na história.
Então, mais uma vez constatamos que a Literatura é, sim, representação social e
que A Barragem possui o apenas representações sociais do espaço onde o
enredo ocorre, mas também temáticas universais, como o interesse financeiro,
percebido em vários personagens, e a traição, por exemplo.
98
Vale ressaltar que 80% dos alunos era do sexo feminino.
255
6 ÚLTIMOS APITOS: UM ESPAÇO DE TEMPO CONSIDERAÇÕES SOBRE
O TRABALHO
Embora a gente se renove como todo o mundo, tudo no mundo
não se repete jamais - pode parecer que é o mesmo mas são tudo
outros, as folhas das plantas, os passarinhos, os peixes, as
moscas. A gente encara a natureza como uma prova parcial da
eternidade - sempre os peixes, os passarinhos, as moscas, as
folhas, as pessoas morrem e vão embora e não voltam nunca
mais. Porém está o engano, nada volta mais, nem sequer as
ondas do mar voltam; a água é outra em cada onda, a água da
maré alta se embebe na areia onde se filtra, e a outra onda que
vem é água nova, caída das nuvens da chuva. E as folhas do ano
passado amarelaram, se esfarinharam, viraram terra, e estas
folhas de hoje também são novas, feitas de uma seiva nova,
chupada do chão molhado por chuvas novas. E os passarinhos
são outros também, filhos e netos daqueles que faziam ninho e
cantavam no ano passado, e assim também os peixes, e os ratos
da despensa, e os pintos... Tudo. Sem falar nas moscas, grilos e
mosquitos. Tudo.
Gente também vem outra para o lugar de quem parte, mas a
mania das pessoas é achar que a gente nova não tem direito ao
lugar da gente velha, como se cada vivente humano tivesse o seu
lugar separado e não fosse para se botar mais ninguém no nicho
dele. (...) O círculo se fechou, a cobra mordeu o rabo...
99
.
Esse trecho que aparece logo no início do romance Dôra, Doralina, de
Rachel de Queiroz, força-nos a refletir sobre a dialética da vida, sobre o sempre
início-fim-reinício das coisas, das pessoas. Essa passagem nos remete a um
olhar interior para percebermos, em nós mesmos, o que, realmente, estamos
fazendo para que nossa passagem pela roda da vida não seja vã. Para que tudo,
por mais que se tome como repetido, se torne novo. Até o momento em que a
cobra morde o rabo”, ou seja, até o instante em que o que se parecia novo se
99
QUEIROZ, Rachel de. Dôra, doralina. 9. ed. São Paulo: Siciliano, 2001. p. 10.
256
torne velho e o que é concebido ultrapassado, se renove. Assim é o fluxo do
tempo a percorrer os espaços da vida, a cambiar por entre os sujeitos para inseri-
los dentro de um nicho social a fim de que o agir de cada ser, refletido pelo
habitus pessoal e coletivo, o transforme numa identidade; e a soma destas possa
vir a ser representação da sociedade na qual aquele sujeito estava atrelado.
No transcursar dos estudos literários, a relação Literatura e sociedade foi
considerada sob vários aspectos e dimensões. Grosso modo, podemos elencar
pelo menos duas perspectivas influentes: uma em que o status artístico da obra é
reconhecido tendo em vista o que ela configura da realidade, ou seja, a realidade
é algo exterior à obra e esta a espelha; e outra perspectiva em que a obra faz
parte do social, ou seja, constitui e é constituída por este.
No primeiro aspecto, encontramos uma visão de vertente marxista clássica
de ideologia, na qual esta se constitui como distorção do pensamento que nasce
das contradições sociais e as oculta. Dessa forma, a relação Literatura e
sociedade adquire forma a partir da teoria do reflexo, fundamentada na relação de
causalidade da estrutura social.
Sob esse prisma, Lukács e Adorno, mediante observações das mudanças
da estrutura do romance a partir dos séculos XIX e XX, elegem, ambos, o
romance como um gênero cuja importância maior é por à tona o processo de
alienação social desencadeado pela fragmentação do trabalho na sociedade
hodierna e o processo de reificação, ou seja, de transformação das relações
humanas em relações regidas por leis do universo das coisas produzidas pelo ser
257
humano, equiparando-se a um processo de coisificação
100
dos mesmos. Assim,
as relações sociais se tornaram cada vez mais conflitantes, centradas em
questões que não põem à prova os fundamentos da sociedade e acaba tornando
a obra literária, de certo modo, um espelho da ideologia vigente na sociedade.
Vale lembrar, ainda, que o termo “romance” tem, na Literatura, a sua
acepção voltada à descrição exagerada, fantasiosa; a criação de uma história
verídica ou ficcional. Essa palavra também pode designar, atualmente, a história
de amor entre duas pessoas. Porém, serviu para denominar uma variante
lingüística latina, uma vertente do Latim usada pela plebe em oposição ao latim
loqui, o latim mais erudito. Com o passar dos anos, essa palavra passou a
designar um gênero literário em prosa, surgido em meados do século XIX, o qual
se tornou porta-voz das ambições e desejos da burguesia, além de entreter as
moças daquela época, nos momentos de ociosidade, servindo de fuga da
realidade. No século XIX, o romance teve o seu maior fortalecimento mediante a
divulgação via folhetins de jornais. Apesar dessa aceitação e dessa estabilização
como gênero literário, pois
é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. As forças
criadoras desse gênero romanesco realizam-se sob a plena luz da
História. A ossatura do romance enquanto gênero ainda está
longe de ser consolidada, e não podemos prever todas as suas
possibilidades plásticas (BAKHTIN, 1988, 397)
Sabemos, ainda, que nas narrativas, de um modo geral, mas, sobretudo
100
Coisificação entendida aqui como sinônimo de alienação (Cf. BOTTOMORE, 1983, p. 314
316)
258
nos romances, o tempo atrela-se tão intimamente ao espaço para o desenrolar da
história que esses dois elementos, às vezes, parecem camuflarem-se no enredo
como um personagem à parte.
Podemos, então, encontrar nessas teorizações algo recorrente nos estudos
literários, que é a tendência de buscar o social na obra e não o inverso, o de
procurar de que maneira o literário constrói o social a partir do reflexo que este faz
da sociedade que representa de modo que o texto e o contexto acabem
convergindo para uma “interpretação dialética íntegra”. Nesse caso, haveria maior
interesse, por parte do romancista, em articular a sua narrativa e os
condicionamentos sociais de forma que o externo no caso, o social importa,
não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha
um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto interno”, como
bem coloca Candido (1985, p. 04).
No outro aspecto, o de que a obra é considerada parte do social, Bakhtin
(1998), contemporâneo de Lukács e Adorno, atribui à linguagem o papel de
apreender o concreto da realidade e da ideologia vigente, de modo que a dialética
cultural e social é determinada pelos fatores sociais na formação da consciência
de ideologia e de língua, uma vez que há, na sociedade, uma intrínseca relação
linguagem-mundo-pensamento, onde o plurilinguismo social, no romance,
organizado através dos vários discursos das falas do narrador, do autor e dos
personagens revelam e representam a diversidade social e o contexto, que as
palavras são povoadas de intençõese evidenciam o contexto social concreto
dos sujeitos. (BAKHTIN: 1998, p. 100)
259
Dessa forma, comparar tendências de abordagens do texto literário na sua
relação com os aspectos sócio-histórico-culturais é, em certa medida, comparar
tendências de abordar o mundo em que nossa visão acerca da humanidade é que
nos situa em algum parâmetro, de forma que assumiremos sempre uma posição
de consentimento, questionamento ou recusa ao “como” os elementos simbólicos
éticos, ideológicos e morais estão sendo utilizados como estratégias para excluir,
marginalizar pessoas ou comunidades.
Nessa aura de consentimento, questionamento e revolta social, surge, na
década de 30 do século XX, um tipo novo de romance: o romance de denúncia ou
de representação social. Em que, conforme a intenção de como o escritor
concebia tal narrativa, ela adquiria, três perspectivas distintas de enxergar a
realidade e, assim, poderia ser acomodada num dos três sentidos: um primeiro
seria o de ufanismo, onde o romance era uma maneira de retomar o espaço e o
tempo perdido, de algum modo. O passado adquire um tom de saudosismo
constante. A idéia de espaço mítico, místico e idealizado se sobrepõe a uma
realidade concreta e presente e a posição assumida pelo autor é mais de recusa
ao novo, de rejeição e revolta ao desenrolar dos acontecimentos. Assim, voltando
à epígrafe dessa seção, vem o desprezo, a não-aceitação de que a novidade
ocorre porque faz parte do ciclo natural das coisas.
Outro sentido é o de crítica, no qual o romance passa a ser visto apenas
como veículo de denúncia social, como uma forma de o escritor denunciar,
revoltar-se com os fatos ocorridos para que assim, as gerações futuras adquiram
um tom a vingativo de algo perdido. Nesse caso, o posicionamento dele,
260
enquanto produtor textual é o de questionamento, o de se perguntar o porquê dos
fatos. Vemos, nesse olhar, a indagação permanente de que por trás dos
acontecimentos sociais existe sempre uma intenção maior, motivada, geralmente,
por interesses capitalistas e/ou de sobrevivência.
Um terceiro sentido que o escritor atribui a sua percepção da realidade é o
de otimismo, ou seja, nesse caso há uma consciência da realidade, existe um
certo questionamento acerca dos acontecimentos sociais e uma certa revolta
contra as injustiças recorrentes, infelizmente, na sociedade, sobretudo aquela
erguida sob moldes puramente capitalistas. Ocorre também, nesse olhar do
escritor sobre o social, certa retomada ao passado, mas não de modo querer
transpor as ações presentes para o passado. O que acontece, nesse caso, é um
posicionamento de conformismo do escritor perante a realidade, não um
conformismo puramente acomodado, passivo, mas um que aceita, que reconhece
o fluxo normal do tempo agindo sobre a sociedade e, de forma reflexiva,
possibilita que se conheça o porquê que determinados fatos ocorram e permite e
se permite que o novo cumpra o seu papel de modernidade e, principalmente, de
valorização do que, por hora, se conceba ultrapassado.
Nesse último sentido, o romance passa a ser uma forma de representação
da realidade vivida pela sociedade, espelhando e denunciando o que há de bom e
de ruim, considerando aspectos reais e também míticos (mas não de forma
caricata, grosseira ou exagerada). É nesse eixo que se enquadra A Barragem: um
romance que traz uma narrativa simples, numa linguagem tangente ao oral, que
mescla aspectos históricos com os ficcionais, propiciando-nos uma leitura direta
261
da do contexto sócio-histórico e cultural da realidade a que representa, no caso,
São Gonçalo, na década de 1930.
Assim, o livro é uma história que possui todos os elementos estruturais de
qualquer narrativa, do gênero romance (tempo, espaço, personagens, discurso,
narrador e enredo), bem articulados de modo que transmite ao leitor uma visão
natural da realidade, daí o seu caráter de moderno, de novo. Não constituindo um
trabalho regionalista que nos remeta a um Nordeste ufanista, que venha a ser (ou
fora) o paraíso perdido; nem, tampouco, a um Nordeste de denúncia das
injustiças sociais, apenas. Mas é um texto que nos remete a um Nordeste que
sofre, sim, com as adversidades impostas ao povo pela natureza ou pela vontade
de alguns poucos sujeitos que, aproveitando-se dos fenômenos naturais,
aproveitam-se da fragilidade sertaneja para a exploração e humilhação. Mas, ao
mesmo tempo, é um lugar que possui possibilidades de convivência e que
apresenta uma riqueza sócio-histórico-cultural muito rica.
A Barragem é um romance regionalista, sim, pois cumpre o seu papel,
enquanto gênero literário, de entreter, informar e representar o social, num
aspecto mimético; insere-se nas características literárias dos romances sociais da
década de 30, do século passado, propostas e utilizadas pelos modernistas de
Recife. A grande novidade nessa narrativa de Ignez Mariz é que o olhar de relatar
a história ocorre a partir da visão de uma família de trabalhadores pertencentes a
mais ínfima categoria dos operários das construções das obras de açudagem,
mas que, diferentemente, de outras narrativas contemporâneas a essa, não é
fadada ao insucesso, às piores agruras sociais, como ocorre em Vidas Secas. E
262
também não é narrada sob uma perspectiva da classe elitista decadente, como
acontece em O Quinze, por exemplo.
O romance em questão abre o diálogo otimista para mostrar que, apesar
das inúmeras dificuldades, possibilidade de se conquistar o espaço social, a
partir, principalmente, da educação. O tom de vinculação ao passado ocorre,
sendo destacado, nesse aspecto os valores morais, religiosos, políticos e
educacionais. Todavia, passagem para que o novo apareça. O próprio início
do livro nos chama atenção para esse aspecto, o da retorno do passado para
que o moderno aja, como notamos ao lermos os primeiros capítulos que relata
que, após dez anos de silêncio, as obras são retomadas. Assim, o enredo parte
de um recomeço para permitir a chegada do novo. As ações iniciadas no
passado, nesse romance, precisam ser concluídas para que o moderno possa
agir e, nesse processo, a representação social de um lugar fincado no alto
sertão paraibano, na década de 30, do século anterior ao atual.
Aqui, retomaremos uma idéia de Bosi (1994) quando ele fala que o
romance regionalista, sob esses três aspectos supra abordados, principalmente
este último, ensinou-nos que a implantação do moderno, a filiação, como coloca
Bourdieu, de escritores ao Modernismo de 30 não necessitaria que fosse abolido
das obras literárias produzidas naquele tempo, algo tão intrínseco a nossa região,
que é a tradição. Esta não poderia ser removida ou abalada com regressões ao
inconsciente, despertando o saudosismo ufanista, ou então que fosse abalada por
regras de como escrever para que houvesse a representação da realidade.
A grande fórmula para essa representatividade, segundo Bosi, residia no
263
fato de que os escritores daquela geração deveriam se permitir à vivência sofrida
e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e morais do grupo em
que se vive”. (Cf. BOSI: 1994, p. 384). E, vale salientar, que a escritora sousense
Ignez Mariz foi uma das poucas vozes daquele tempo a se doar a entender a
realidade e a sociedade que representara em A Barragem.
No que tange à representação social, voltemo-nos ao entendimento de
Moscovici sobre o assunto, quando ele afirma que tal processo é um corpus
organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os
homens tornam a realidade física e social inteligível” (1961, p. 27-28).
Desse modo, para que o ser humano possa transpor para a realidade o
que ele conhece e o que ele faz (mesmo inconscientemente), é necessário que o
mesmo conheça e reflita sobre o contexto no qual está inserido e possa a ele se
familiarizar e, com isso, possa realizar simultaneamente determinadas ações
comuns ao grupo social pertencente e certo julgamento de tudo que ocorre e o
cerca.
Nesse sentido, esse sujeito precisa se filiar a esse campo (ou grupo) social
para que ele, absorvendo as características intrínsecas dessa sociedade possa
agir e, com isso, refletindo à realidade essas mesmas características absorvidas,
culminando, assim, no processo constante de sociedade-indivíduo-sociedade,
caracterizado metaforicamente na epígrafe dessa seção como o círculo se
fechou, e a cobra mordeu o rabo”, ou seja, o sujeito social capta do seu meio
social os valores éticos, morais, culturais, religiosos e, num processo de
interiorização desses elementos, os processa internamente e, em seguida,
264
reelabora os mesmos e exterioriza-os, compondo, desse modo, um habitus.
Em A Barragem, é notório esse processo. Os sujeitos sociais
representados pelas personagens, que trazem muitas experiências pessoais,
acabam, no processo de interação, absorvendo muito do que a sociedade
representada (no caso, o Acampamento de São Gonçalo, na época de construção
do açude, década de 1930) naquele espaço e naquele tempo oferece e, assim
eles depois devolvem essas mesmas características, com uma ressiginifcação,
mas muitas vezes cristalizando os aspectos mais tradicionais da sociedade.
Quanto à representação social, escolhemos, inicialmente, tempo e espaço,
como categoria contextual de análise, ou seja, essas duas modalidades não
foram trabalhadas aqui enquanto estruturas literárias, mas como elementos
contextualizadores da representação social do romance. Tornaram-se
fundamentais, pois elas guiaram o entendimento de como a autora conseguiu
reproduzir a sociedade de São Gonçalo, na década de 1930, do século passado,
enquanto território de ações dos personagens da obra e enquanto tempo histórico
representado na época.
Ao escolhermos os personagens como os sujeitos sociais, percebemos que
eles representam os indivíduos e também certos segmentos, aos quais se
inseriam, filiavam-se, na época. Assim, Mariano é o trabalhador rural que,
retirado de sua terra de moradia, vai a procura de trabalho em São Gonçalo
local promissor para a melhoria de vida devido às obras de açudagem. Ele é o
sujeito representativo do nordestino que, com esforço, certa ambição e
aproveitamento das oportunidades, consegue, com o esforço da leitura e da
265
escrita, ser promovido nos serviços das obras, chegando da classe mais ínfima (a
de cavador de terras) a mais elevada naquela categoria, a de fiscal das obras.
Um dado muito importante no livro é a presença feminina. Ela aparece
meio sutil, anunciada pelo personagem masculino (Zé Mariano) e, pouco a pouco
vai tomando espaço na história e ganha a cena. A valorização desse elemento,
desses sujeitos sociais são muito importantes para se entender a proposta da
autora: transgredir com os valores morais vigentes da época, sem chocar. Por
isso, ela cria a personagem Remédios, filha de Mariano e Mariquinha, é uma
menina, que assim como a presença feminina no romance, começa raquítica, sem
fala, quase e, depois, torna-se “a menina dos olhos” de toda a barragem.
Remédios é o elemento que representa o diálogo do novo com o antigo.
Ela, através da astúcia de sua mãe, que apesar de resignada e representativa da
mulher sertaneja submissa à família, ao lar e ao marido, faz com que sua filha
fosse independente. Por isso, a menina é educada, freqüenta a escola. Depois de
ser expulsa pelas travessuras, tem aulas particulares em casa. Conhece o mundo
(no caso, representado pelas cidades grandes de Campina e recife, onde passa
dois meses em casa do tio). Nesse novo ambiente de tempo, Remédios, atenta a
tudo, percebe a diferença do estilo de vida entre os dois espaços, o rural
(representado pelo Racho-Dôce e por São Gonçalo) e o urbano (através da
capital pernambucana). A representação dessa influência que aquele espaço
urbano provocara, ou melhor, despertar, na jovem acontece a partir de suas
atitudes, inicialmente preconceituosas, após retornar ao acampamento.
Sobre esse intercâmbio de visões de culturas diferentes, na história a
266
valorização da história e da cultura local através de um olhar de fora, no romance,
quando D, Vivi Murtinho (forasteira) vai pesquisar a cultura local e os festejos
religiosos e consegue as informações com D. Euphrosina, uma idosa da cidade
de Sousa que possui em sua mente as lembranças da cultura e, assim, possibilita
à esposa do Engenheiro-residente (chefe geral do acampamento) refazer a
história e reanimar
101
culturalmente o lugar. Esse reavivamento da cultura local
por parte de uma estranha leva-nos a refletir sobre a história e a memória de um
lugar e, com isso, a valorização da pessoa idosa (como, muitas vezes, tivemos
que utilizar desse método o nosso trabalho), possibilitando a recriação e
mostrando-nos, como já citara Rachel de Queiroz, a perceber que tudo nessa vida
se renova, basta estarmos atentos e possibilitarmos esse acontecimento.
Ainda a respeito desse intercambiar cultural, temos ainda em A Barragem,
outra passagem interessante que é quando vários trabalhadores de diversas
regiões do país e também do exterior vêm para São Gonçalo e, muitas vezes,
eles querem impor a sua cultura com a fundamentação de que aquela é melhor
que esta. Nisso, a autora faz uma representação da diversidade cultural para nos
abrir os olhos a enxergarmos que a melhor cultura é aquela que conhecemos e
aprendemos a valorizá-la. Apesar de todas as discussões entre os personagens
sobre essa temática, percebemos que todos eles promovem um intercâmbio
cultural. Nenhum deles volta do mesmo jeito que chegou. Cada um deixou um
pouco de sua cultura, para daqui absorver um pouco da nossa e, depois de, de
algum modo, interiorizá-la, reelaborá-la. Então retornamos a Moscovici e a sua
teoria da representação social que afirma que esta nada mais é do que um
101
Reanimar, entendido aqui também, como dar nova vida.
267
constante processo de interiorização, familiaridade e exteriorização entre
sociedade indivíduo - sociedade.
Além do tempo, do espaço, do trabalhador, dos demais sujeitos sociais, da
religiosidade e da valorização da memória, da cultura e da mulher, a
representação social da educação daquela época, em São Gonçalo, é bem
trabalhada. Seja a educação escolar, institucional, seja a educação particular
(lembrando os primórdios de nossa educação), seja a educação familiar, em que
os valores morais, éticos, políticos, econômicos e culturais eram repassados
através dos ensinamentos dos mais velhos para os mais novos.
a representação da escola elitizada, destinada aos filhos dos
funcionários de melhor categoria trabalhista, há aquela sala de aula noturna,
escondida destinada aos trabalhadores para que eles pudessem assinar o nome,
fazer cálculos e, principalmente, votar. a referência da leitura oral, do contar
histórias (principalmente os mais velhos), do “ser gente” através da educação.
Além disso, a referência à leitura de mundo (principalmente quando as leitoras
são Remédios e Mariquinha, as quais conseguiam interpretar a realidade e a
supor como seria o futuro a partir do entender do presente). A educação
representa, no livro, muito mais do que o ato de ler e contar, representa o
processo de a família, a sociedade, a religião e também a escola, a formar
caracter. Depois da leitura e análise de alguns aspectos centrais do referido
romance, poderemos propor como atividades a serem desenvolvidas em sala de
aula, tais como:
1- encenação de alguns capítulos do romance, a exemplo: “A festa de São
268
Gonçalo” (padroeiro da localidade); “A visita da comitiva política”; “O
discurso do bêbado filósofo”, entre outros;
2- relacionar os aspectos espaciais da comunidade a fotografias da
mesma, procurando identificar os locais citados na obra;
3- tentar para a linguagem contida no romance: grafia, termos orais (gírias,
expressões populares e regionais).
No nosso caso, a atividade realizada em sala de aula foi uma dramatização
sobre uma temática: a infidelidade masculina. Para isso, fizemos uma
retextualização do gênero (de romance para texto dramático) e, em seguida, a
encenação do texto adaptado
102
.
Para a análise do romance, poderá ser elaborado um roteiro de leitura da
obra A Barragem, buscando captar os indícios de compreensão e as impressões
que os alunos/leitores, constituídos de contextos de leitura diversificados, teriam a
partir do que Zilbermann (1989, p. 06), à luz de Jauss, denomina de Estética da
Recepção: uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência estética, as
possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas repercussões no ensino e
no meio...”.
No roteiro de leitura, poderá ser dada atenção para os elementos da
narrativa; os temas a serem discutidos e; possíveis tarefas inspiradas na leitura
do romance (encenações, ilustrações, adaptações etc).
102
Cf. capítulo V dessa dissertação.
269
Ainda no que tange a educação, vamos agora percorrer o tempo e chagar
à atualidade e constatarmos que é inegável que a cada ano, a inquietação acerca
da qualidade do ensino e da aprendizagem vem aumentando, seja por parte dos
pais de alunos, pelo corpo docente das escolas, por estudiosos da área
pedagógica, pelos próprios estudantes, pelas instituições escolares e até mesmo
por parte do Estado. Há quem diga que essa preocupação se devido à grande
imposição do mercado de trabalho por profissionais mais qualificados, mais uma
vez, retomamos à educação voltada ao mercado profissional, apenas, sem a
intenção maior de formar cidadãos.
Por isso, é de extrema importância que o professor, no nosso caso, o
professor de Literatura, tenha conhecimento dos conceitos que estruturam sua
disciplina e a relação que ela tem com as outras disciplinas de sua área, para
que, juntas, possam conduzir o ensino de maneira que os alunos desenvolvam
melhor o aprendizado.
Ao refletirmos sobre as práticas docentes e, no caso específico de
aplicabilidade de nossa pesquisa, desenvolvida numa turma de ano do Ensino
Médio (2007), da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Maria Estrela
de Oliveira (Distrito de Lagoa dos Estrelas (zona rural de Sousa-PB),
constatamos que, mesmo os alunos não tendo o conhecimento sobre teoria
literária ou uma visão mais teórica sobre o que seja a interdisciplinaridade entre
Literatura e História, ou ainda sobre Teoria educacional e sociologia, eles
perceberam, através da atividade de leitura e dramatização de cenas do romance
270
A Barragem, na representação de uma personagem (Lina), aspectos sociais que,
mesmo não estando eles inseridos no tempo em que ocorre a história de A
Barragem, que mesmo eles não fazendo parte do ambiente em que o enredo da
narrativa de Ignez Mariz criara, eles fizeram um releitura da representação
mostrada pela autora, mesmo que, uma leitura que desencadeara uma
interpretação carregada de moralismo, para com a personagem Lina, a prostituta.
E, com essa releitura, de certo modo, puderam ampliar o seus olhares sobre o
mundo, sobre a sociedade.
Cabe, então, a nós professores conduzirmos o aprendizado da disciplina e,
ao mesmo tempo, ampliá-lo para outras. Para isso, é importante conhecer e
dominar práticas de letramento (literário) e que o mesmo seja portador de um
habitus docente voltado à leitura e à produção de textos. Noutros termos, é
imprescindível que o professor não apenas repasse o que ele compreendeu
acerca de certa teoria, mas que o mesmo possa transpor os conhecimentos
apreendidos em sua vivência de aprendizagem acadêmica para a sua prática
educativa diária para que o aluno venha a compreender não apenas o uso social
da leitura e da escrita, mas também possa ter assegurado o seu efetivo domínio
nas práticas sociais cotidianas.
Além disso, faz-se necessária a valorização da docência, seja por parte da
sociedade, ou por parte do governo. Porém, é fundamental para o próprio ensino
que os docentes, enquanto “detentores” de saberes específicos ao seu trabalho,
saibam fazer uma transposição didática do conhecimento teórico para um
conhecimento voltado à prática docente. Ademais, é imprescindível que eles
271
assumam-se enquanto profissionais que são e adotem a sua prática mediante aos
significados que eles mesmos produzam para que deixem de ser vistos como
aplicadores dos conhecimentos produzidos por outros ou como agentes sociais,
que agem por força de mecanismos sociais, ou ainda como sacerdotes do ensino.
Voltando à pergunta inicial do nosso trabalho, podemos afirmar que São
Gonçalo tem sim, uma obra literária de valor, um texto atual e não apenas
contemporâneo ao de outros romances regionalistas de trinta. Podemos afirmar
que A Barragem, é um romance regionalista, pois, além de se inserir na proposta
de inovação literária, inova, mais ainda quando traz a narração a partir de uma
classe de operários, inova quando, numa sociedade partiarcalista, valoriza a
mulher, o seu papel na sociedade e a educação feminina. É um romance
moderno pois os temas nele presentes não se restringem apenas àquele tempo e
ao lugar retratado. São temas que, como vimos, perpassam os limites territoriais,
pois são universais e atemporais, sempre atuais. O diálogo com a Sociologia, a
Filosofia, a Economia, A Pedagogia, a Geografia e a História não o fazem um
texto qualquer. O tornam o texto rico, vivo e literário, principalmente quando
tomamos a concepção de Literatura como representação da realidade.
Cumprimos os nossos objetivos propostos, não analisamos a fundo todos
os modos de representação social presentes na obra, é verdade, mas
procuramos, à medida do possível, fazer o que o Cânone, por questões várias,
discutidas no Capítulo 2, de nosso trabalho, acaba dificultando a abertura à leitura
de novas obras literárias, além das que estão listadas nos manuais. Cabe a nós
professores, principalmente os de Literatura, a criar meios de conhecer novos
272
autores e de revitalizar obras de autores esquecidos, perdidos nos caminhos do
tempo. Cabe a nós a função de socializar tais textos, esquecidos ou renegados,
para um público contemporâneo para que ele possa prduzir novos sentidos a
esses textos, sejam romances ou outro gênero, como aconteceu com os nossos
leitores em nossa experiência em sala de aula: a releitura e a retextualização de
um romance desconhecido para muitos, mas que acabou ganhando uma
ressignificação.
É responsabilidade nossa, enquanto educadores, nos possibilitar a
conhecer e lutar por nossa identidade cultural e profissional. É nossa
responsabilidade, enquanto cidadãos, enquanto sujeitos sociais, conhecer, cuidar
e valorizar o que nos representa, o que nos faz identidade social, afinal, como
afirmara a personagem D. Euphrosina: “Como é velho tudo que imaginamos
novo!” e, imbuídos no pensamento de Rachel de Queiroz sobre a dialética da
vida, no início dessas nossas considerações, percebamos também como é novo
tudo o que imaginamos velho.
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