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ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU:
UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA
FLORA MOANA MASCELANI VAN DE BEUQUE
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Sociologia e Antropologia.
Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU: UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA
Flora Moana Mascelani Van de Beuque
Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia e Antropologia.
Aprovada por:
Presidente, Prof. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti IFCS/ UFRJ
Prof. Dr. Daniel Bitter UFF
Profa. Dra. Els Maria Lagrou IFCS/ UFRJ
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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Van de Beuque, Flora Moana Mascelani
Entre a roda de boi e o museu: um estudo da careta de cazumba/ Flora Moana
Mascelani Van de Beuque. - Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2010
xii, 137f.: il.
Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Dissertação (mestrado) UFRJ/IFCS/PPGSA, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 150-155
Dissertação: Mestre em Sociologia e Antropologia
1. Bumba-meu-boi. 2. Cazumba. 3. Máscara. 4. Ritual. 5. Museus. 6.
Objetos. 7. Antropologia.
I. Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. II. UFRJ/IFCS/PPGSA. III.
Título.
4
RESUMO
ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU: UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA
Orientador: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
Esta dissertação apresenta uma etnografia da produção, do uso e da circulação de uma
máscara, a careta do cazumba. Seu ponto de partida é a visão de que os objetos participam
intensamente da vida social e cultural ao agirem sobre a realidade por meio da ativação de
diversos mecanismos de simbolização. Esta máscara, originalmente utilizada pelo personagem
cazumba em uma das modalidades maranhenses da brincadeira do boi o bumba-meu-boi
encontrado na região da Baixada transita por contextos sociais exteriores à festa, sendo
utilizada em “performances” teatrais, figurando em paredes de residências, compondo acervos
de museus etc. Dada a relevância do uso ritual e festivo da careta no ponto inicial da trajetória
de sua circulação, este estudo privilegia a análise da inserção da careta no bumba-meu-boi
maranhense. Da perspectiva da festa, faz-se a reflexão sobre as relações sociais das quais ela
participa, os artesãos que a fabricam, os agentes sociais que a manipulam, a sua agência social
e os significados a ela atribuídos. Reflete-se também sobre a inserção da máscara em outros
meios, as relações e os atores que viabilizam seu deslocamento, e discute-se a respeito da
atuação e dos sentidos da máscara nos espaços museais. Ao seguirmos a circulação da
máscara da festa até o museu, iluminou-se a trajetória do artesão Abel Teixeira,
profundamente imbricada com a trajetória da própria careta de cazumba.
Palavras-chave: bumba-meu-boi, cazumba, máscara, ritual, museus, objetos, antropologia.
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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ABSTRACT
BETWEEN THE RODA DE BOI AND THE MUSEUM: A STUDY ON CARETA DE
CAZUMBA
Orientador: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
This thesis presents an ethnography concerning the production, use, and circulation of a mask
a careta do cazumba (cazumba´s mask). The starting point is the perspective that the objects
intensively participate in the social and cultural life when they act upon the reality through the
activation of diverse symbolizing mechanisms. This mask, originally worn by the character
cazumba in one of the different boi rituals celebrated in Maranhão - the bumba-meu-boi,
from a region called Baixada - pervades social contexts external to the celebration, through
its use in theatre performances, hanging from the wall in homes, participating in museum
collections, etc. Given the relevance of the use of the careta in rituals and celebrations, at the
very starting point of its circulation, this study privileges the analysis of the insertion of
careta in the bumba-meu-boi of Maranhão. From the point of view of the celebration, we
reflect upon the social relations that the mask partakes: the artisans that craft it, the social
agents that manipulate it, the social agency it represents and the different significances
attributed to it. Reflection also concerns the insertion of the mask in other environments, and
the relations and actors that enable its circulation, discussing the acting and the meanings of
the mask in museum environments. As we followed the trajectory of the mask, from the
celebration to the museum, light was shed on the artisan Abel Teixeira, whose trajectory is
deeply blended to the very trajectory of the careta de cazumba.
Keywords: bumba-meu-boi, cazumba, mask, ritual, museums, objetcs, anthropology.
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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AGRADECIMENTOS
A meu pai, Guy, fabuloso interlocutor que, com sua paixão pelo saber, fez brotar em
mim a curiosidade pelo pensamento. Se ele estivesse aqui, estaria muito feliz por me ver
concluindo esta etapa. À minha mãe, Angela, agradeço por tudo. Por estar ao meu lado em
todos os momentos, por me dar sempre muito apoio, e, principalmente, por ter me
sensibilizado para as questões antropológicas. A meu irmão, Lucas, que foi fundamental para
a realização deste trabalho, fazendo-me acreditar que eu podia ir adiante e ajudando-me a ver
o valor do afeto. Agradeço à sua mulher, Keyna, que é um exemplo para mim. À linda e
pequena Eloah, que me permitiu ver a alegria da vida. A meu avô, Jacques, que algumas
décadas atrás se interessava pela produção plástica das camadas populares e por todo o
universo da cultura popular. Agradeço à minha família como um todo: avós (in memorian),
tios, primos, muito importantes para mim.
Também agradeço à família não-sanguínea, mas de coração. À minha madrinha,
Claudia, com sua escuta maravilhosa e sempre pronta para me ajudar, o meu muitíssimo
obrigado. Ao Paulo por seu estímulo; a Martinha, Suyá e Yama por toda a história; a Juju e
Pedrinho, padrinhos, pelo imenso afeto; à Alicia, pela pronta disponibilidade para ajudar. A
Beth, Agostinho e Juliana sou muito grata por tudo. Beth e Agostinho, pelo acolhimento no
Maranhão. Agradeço especialmente à Juliana e Beth que durante muitos anos me falaram
sobre o bumba-meu-boi e sobre Abel Teixeira, instigando-me a conhecê-los. Juliana esteve
também sempre a postos para me ajudar com informações, reflexões, contatos, bibliografia,
apoio emocional, generosidade e muito mais. A vivacidade de Beth e seu interesse pela
cultura popular também foram inspiradores, assim como sua ajuda fundamental em momentos
difíceis.
Meus amigos mostraram-se pessoas incríveis nesse período. Não tenho palavras para
agradecer-lhes. Todos me apoiaram muito, fazendo-me acreditar que eu iria conseguir
concluir esta etapa. Escutaram-me, aconselharam-me, aguentaram-me, estimularam-me, mas
permitiram, principalmente, maravilhosos momentos de alegria ao longo desse processo. Amo
vocês! André da Paz, pelo carinho; Barbara, por ser uma amiga única; Bia, pelas trocas
acadêmicas; Clara, pela alegria tão afetiva; Julinha, por estar sempre ao meu lado; Grabois,
pelo afeto; Laura, pelo estímulo; Luísa, pela alegria; Mari Fausto, pela amizade; Robert, por
seu existencialismo; Teresa, por sua garra inspiradora. Um agradecimento especial ao Tiago
7
que me acompanhou em todas as etapas desse processo. Seu afeto, amor, alegria,
companheirismo e sua crença na minha capacidade foram fundamentais para mim.
Algumas pessoas foram muito importantes nesta jornada e merecem todo o
reconhecimento por isso: Felipe, Barbara, Beth, Gleice e Rosemere, além de Lilian e Letícia.
Agradeço à Maria Lucia Resende pela revisão. Agradeço ainda à Andrea Falcão e à Joana
Correa pelas trocas e ajudas. Agradeço especialmente aos colegas do Museu Casa do Pontal.
Agradeço aos colegas (alunos e ex-alunos) do PPGSA-UFRJ pelas trocas, ajudas e muito
mais. Sou especialmente grata a Ana Carolina, André Demarchi, Aninha, Arbel, Bruno,
Carlinha, Carol Grillo, Clarisse Kubrusly, Isabel Cardozo, Lulu, Nina, Maria Raquel, Mario e
Rita Gama, que me ajudaram nesta jornada. Agradeço também a todos da minha turma e
ainda aos maravilhosos companheiros de orientação: Valéria Aquino, Eduardo Lacerda,
Luciana Aguiar, Bárbara Fontes e Ricardo Barbieri.
O grupo de estudos do qual participei em 2009, formado por Nilton Santos, Daniel
Bitter, Luzimar Pereira e Céline Spinelli contribuiu para demonstrar o valor da troca
intelectual para o percurso acadêmico. Sou grata aos preciosos comentários ao meu trabalho
que recebi durante o grupo de estudos. Sou especialmente grata a Daniel Bitter, cuja tese de
doutorado sobre objetos na folia foi uma inspiração para este trabalho e que pôde me dar dicas
importantes sobre os cazumbas.
Agradeço a dois professores que foram fundamentais para a minha formação na
graduação no IFCS: Olívia Cunha e Emerson Giumbelli. Sou grata também a todos os
professores do PPGSA-UFRJ com os quais fiz cursos e, especialmente, a Els Lagrou e
Reginaldo Gonçalves, que muito me enriqueceram através de seus textos e de suas aulas.
Também foram valiosas suas contribuições para o meu trabalho na qualificação. Agradeço
ainda à Claudinha e à Denise, sempre prestativas. Sou grata ao PPGSA-UFRJ pelos recursos
disponibilizados para realização do trabalho de campo e à CAPES que me concedeu uma
bolsa de estudos durante o mestrado.
A orientação que tive de Maria Laura Cavalcanti não poderia ser melhor. Ela esteve
sempre próxima e me ajudou muito em cada etapa. Ajudou-me a ter confiança em mim
mesma e me incentivou a achar o meu próprio caminho de pensamento. Os encontros de
orientação eram sempre estimulantes e recebia aulas de antropologia.
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Esta dissertação foi feita no âmbito de um convênio de cooperação acadêmica firmado
entre a UFRJ e a UFMA. Agradeço imensamente a oportunidade de participar deste projeto e
os recursos aos quais tive acesso para realizar as viagens de campo. Sou grata à atenção
recebida por José Ricardo Ramalho (UFRJ) e Sergio Ferretti (UFMA), coordenadores do
convênio. Sergio Ferretti recebeu-me muito bem no Maranhão e contribuiu com informações
importantes para esta pesquisa. Seus estudos sobre o cazumba também foram de grande valia.
Elisene Mattos (UFMA), que participou como estudante do convênio, estudou como eu os
cazumbas e foi uma incrível anfitriã no Maranhão. Deu-me grande suporte por lá,
acompanhando-me tanto nas pesquisas de campo, como nos momentos de lazer.
Agradeço a todos que entrevistei para realizar esta etnografia. No Rio de Janeiro,
Maria Mazzillo foi muito generosa e pudemos ter uma ótima conversa sobre os cazumbas. No
Maranhão, pude conhecer diversas pessoas que contribuíram muitíssimo para este trabalho.
Agradeço à Zelinda Lima, por ter me recebido em sua casa para uma longa conversa. A
Jandir, que é um grande conhecedor da cultura popular maranhense, pelo acolhimento,
informações e preciosas dicas. Agradeço imensamente a todos do Boi da Floresta, que me
abriram todas as portas, auxiliaram-me muitíssimo com a pesquisa, e fizeram com que o meu
trabalho de campo fosse um espaço de muito aprendizado. Sou grata especialmente à Nadir,
que fez com que eu me sentisse “em casa”, me deu muita atenção, foi extremamente
prestativa e bastante generosa; e a Apolônio, que com sua sabedoria, suas falas precisas e
esclarecedoras sobre o bumba-meu-boi e seu enorme afeto, ajudou-me enormemente.
Agradeço aos cazumbas do Boi da Floresta por sua disponibilidade para me ajudar e que, com
sua graça e traquinagem, ensinaram-me sobre esse mundo. Na Baixada fui muito bem
recebida por todos os brincantes que conheci. Um agradecimento especial a Neco e a todos os
brincantes da festa realizada em Santa Rosa, uma noite inesquecível. Também agradeço a
Nico, um artesão e cazumba genial.
Agradeço, por último, a Abel Teixeira. Sem sua generosidade, seu conhecimento, sua
arte, seu humor, suas reflexões sofisticadas, este trabalho não teria acontecido. Tornei-me, ao
longo do trabalho, mais uma deste artesão e brincante que me acompanhou de forma
valiosa por todo o caminho da pesquisa. Obrigada!
9
SUMÁRIO
Lista de Figuras.......................................................................................................................................10
1.INTRODUÇÃO...................................................................................................................................13
1.1. Entrando no campo com Abel Teixeira......................................................................................25
2. CAPÍTULO 1 - O BOI DA FLORESTA E SEUS CAZUMBAS........................................................36
2.1. Festa em dois tempos: São João e Morte do Boi ......................................................................42
2.1.1. São João: o período junino...................................................................................................43
2.1.2. A Morte do Boi.................................................................................................................... 49
2.2. Sobre cazumbas e caretas no Boi da Floresta............................................................................ 55
2.2.1. Cazumbas no Boi da Floresta............................................................................................... 55
2.2.2. A composição visual do personagem................................................................................... 62
3. CAPÍTULO 2 - DIVERSIDADE E UNIDADE NO CONTEXTO FESTIVO.................................. 74
3.1. Cazumbas da Baixada Maranhense............................................................................................ 74
3.1.1. 1ª Viagem: promessas de um boi de promessa..................................................................... 75
3.1.2. 2ª Viagem: cazumbas em ação ritual.................................................................................... 79
3.1.3. Sobre cazumbas e caretas na Baixada.................................................................................. 91
3.2. Reflexões sobre a inserção da máscara no contexto festivo ....................................................103
4. CAPÍTULO 3 - A CIRCULAÇÃO DE ABEL E DA CARETA FORA DA FESTA...................115
4.1. Significação da careta em espaços museais.........................................................................128
4.2. Abel entre mundos............................................................................................................138
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................142
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................................150
10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Foto de cazumba criança do grupo Boi da Floresta usando máscara do tipo das
menores, em apresentação no período junino de 2009, em São Luís. Página 16.
Figura 2: Foto de cazumba usando uma torre em festa em Matinha, na Baixada maranhense,
durante o período junino de 2009. Página 17.
Figura 3: Foto de Abel Teixeira, na sede do Boi da Floresta, antes de apresentação de tambor
de crioula, em novembro de 2008. Página 27.
Figura 4: Foto de Abel Teixeira em sua casa confeccionando uma careta, em julho de 2009.
Página 27.
Figura 5: Mapa do município de São Luís, capital do estado do Maranhão. Página 37.
Figura 6: Foto de Apolônio Melônio em sua sala, no período junino de 2009, recebendo
convidados (Jandir Gonçalves e Beto Matuck). Página 41.
Figura 7: Foto do barracão da sede do Boi da Floresta, em novembro de 2008. Boi do grupo
em frente ao altar. Página 41.
Figura 8: Foto de apresentação do grupo Boi da Floresta no bairro Saviana, em São Luís, no
período junino de 2009. Página 46.
Figura 9: Foto de cazumbas do Boi da Floresta em apresentação no arraial Ceprama, em São
Luís, no período junino de 2009. Página 46.
Figura 10: Foto do mourão fincado em frente à sede do Boi da Floresta na festa da Morte do
Boi, em setembro de 2009. Página 51.
Figura 11: Foto de Abel Teixeira vestindo o cofo antes de apresentação durante a festa da
Morte do boi do Boi da Floresta, em setembro de 2009. Página 64.
Figura 12: Foto de cazumba criança do Boi da Floresta com chicote na mão durante festa da
Morte do Boi, em setembro de 2009. Página 64.
Figura 13: Foto de Abel Teixeira e sua máscara em apresentação do Boi da Floresta em frente
à casa de uma amiga do grupo, durante o período junino de 2009. Página 66.
11
Figura 14: Foto de Nilson e sua torre em apresentação do Boi da Floresta em frente à casa de
uma amiga do grupo, durante o período junino de 2009. Página 66.
Figura 15: Foto do cazumba Bruno com sua máscara, em apresentação durante a festa de
Morte do boi do Boi da Floresta. Página 66.
Figura 16: Mapa mostra microrregião da Baixada Maranhense. Página 76.
Figura 17: Mapa mostra município de Viana. Página 76.
Figura 18: Pai Francisco agachado e Catirina com pano na cabeça em matança realizada em
festa no povoado de Santa Rosa, no período junino de 2009. Página 84.
Figura 19: Pai Francisco com sua “espingarda” na mão em matança realizada em festa no
povoado de Santa Rosa, no período junino de 2009. Página 84.
Figura 20: Matança realizada em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino, no dia
24 de junho de 2009. Vaqueiro dançando com o boi. Foto de minha autoria. Página 84.
Figura 21: Cazumba com máscara de plático em festa no povoado de Santa Rosa, no período
junino de 2009. Página 87.
Figura 22: Cazumba com torre em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino de
2009. Página 87.
Figura 23: Cazumba Mauro dançando sem máscara em festa no povoado de Santa Rosa,
no período junino de 2009. Página 87.
Figura 24: Cazumbas brincando de dançar forró em festa no povoado de Santa Rosa, no
período junino de 2009. Página 89.
Figura 25: Cazumba em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino de 2009. Página
89.
Figura 26: Cazumbas brincando de sequestrar um homem, em festa no povoado de Santa
Rosa, no período junino de 2009. Página 89.
Figura 27: Cazumba com máscara em Matinha, no período junino de 2009. Página 92.
Figura 28: Cazumba com máscara que representa um homem, feita em isopor, em arraial em
Matinha, no período junino de 2009. Página 92.
Figura 29: Torre em arraial em Matinha, no período junino de 2009. Página 92.
12
Figura 30: Cazumba com máscara feita por Abel Teixeira em arraial em Matinha, no período
junino de 2009. Página 92.
Figura 31: Careta de cazumba em vitrine dedicada ao sotaque da Baixada em exposição da
Casa do Maranhão, fevereiro de 2009. Página 131.
Figura 32: Vitrine dedicada ao sotaque da Baixada com caretas de cazumba em exposição na
antiga da Casa do Maranhão. Página 131.
Figura 33: Cazumba em exposição na antiga da Casa do Maranhão. Página 131.
Figura 34: Imagem da página 142 do catálogo da exposição permanente do Museu do
Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT & SOARES, 2005). Página 133.
Figura 35: Imagem da página 143 do catálogo da exposição permanente do Museu do
Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT & SOARES, 2005). Página 133.
Figura 36: Imagem da página 144 do catálogo da exposição permanente do Museu do
Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT & SOARES, 2005). Página 133.
Figura 37: Imagem da página 145 do catálogo da exposição permanente do Museu do
Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT & SOARES, 2005). Página 133.
Figura 38: Máscaras do cazumba em exposição no Museu Casa do Pontal em setor intitulado
“Festas Populares”, 2010. Página 135.
Figura 39: Máscara do cazumba de autoria desconhecida em exposição no Museu Casa do
Pontal, 2009. Página 135.
Figura 40: Máscara do cazumba de autoria desconhecida em exposição no Museu Casa do
Pontal, 2009. Página 135.
Figura 41: Máscara do cazumba de autoria de Abel Teixeira em exposição no Museu Casa do
Pontal, 2009. Página 135.
13
1. INTRODUÇÃO
Ao partir do princípio de que os objetos têm um lugar importante na vida social e
cultural, participando das relações sociais, ativando mecanismos de simbolização e agindo
sobre a realidade, esta pesquisa tem como objetivo realizar uma etnografia acerca da
produção, do uso e da circulação da careta de cazumba.
1
Esta máscara, originalmente
produzida para ser utilizada no bumba-meu-boi maranhense, transita por contextos sociais
exteriores ao festivo, é utilizada em “performances” teatrais, figura em paredes de residências,
compõe acervos de museus etc. Sendo assim, neste estudo, pretende-se analisar, por um lado,
a inserção da careta na festa do bumba-meu-boi, refletindo sobre as relações sociais das quais
ela participa, os agentes sociais que a manipulam, sua agência social e os significados a ela
atribuídos. Busca-se, por outro lado, pensar sobre relações sociais que possibilitam sua
inserção em outros meios, como os museus, sobre aqueles que participam deste deslocamento,
a atuação da máscara nos novos espaços e os sentidos atribuídos a ela em tais contextos. Por
sua imbricação com a história de circulação da máscara em situações exteriores à festa, a
trajetória do artesão Abel Teixeira também se tornou tema deste estudo.
Para entender o trânsito da máscara nas festividades, tornou-se decisivo compreender
o folguedo do boi. Este folguedo existe Brasil afora, assumindo diversas feições e envolvendo
brincadeiras variadas em torno da figura de um boi. Segundo Maria Laura Cavalcanti (2000),
a primeira referência escrita sobre a brincadeira do boi é uma crítica, publicada pelo frei
Miguel do Sacramento Lopes Gama, em 1840, no Recife (LOPES GAMA, 1996). No texto,
ele critica a festa e repudia a presença de um personagem que representa um padre. Pouco
tempo depois, em 1855, um médico-viajante chamado Avé-Lallémant (1961), em outro artigo
publicado em Manaus, elogia a brincadeira e admira-se com as cores e a beleza do evento.
Entre as décadas de 1930 e 1940, Mário de Andrade propõe classificar esse gênero de
festa como “danças dramáticas”, dando um nome comum a diversas manifestações similares
que ocorriam em várias partes do Brasil.
Mário de Andrade situou o Boi-Bumbá no contexto das "danças dramáticas",
expressão cunhada por ele para demonstrar a unidade cultural subjacente a
fatos até então chamados por diferentes nomes (CAVALCANTI, 2000,
pg.1024)
Na década de 1950, segundo a mesma autora, surge uma nova classificação:
1
Categorias nativas virão em itálico.
14
Estudiosos do folclore incluíam-no [o Boi-Bumbá] na categoria folguedo,
assinalando o caráter festivo característico da encenação, além da
combinação de música, dança e drama (op. cit.).
Dependendo da região em que é realizada, a brincadeira do boi pode variar em muitos
aspectos: em relação às características da ação ritual, da época do ano em que se desenrola, ou
do nome que recebe. No Amazonas e no Pará, recebe o nome de boi-bumbá; no Rio Grande
do Norte, boi calemba; chama-se cavalo marinho na Paraíba; boi pintadinho, no Rio de
Janeiro; boi de mamão, em Santa Catarina; bumba de reis ou reis de bumba, no Espírito
Santo; além de bumba-meu-boi, no Maranhão. Apesar das variações, podemos classificar
todos da mesma forma, como folguedos do boi, pois têm características em comum
fundamentais. Sempre encontramos um boi-artefato, feito em madeira ou outro material, que é
animado por um brincante, e em torno do qual está uma série de personagens, que cantam,
dançam, atuam, tocam etc. (CAVALCANTI, 2000).
Existe uma densa bibliografia que abordou esse folguedo: Andrade, 1982; Azevedo
Neto, 1997; Borba Filho, 1966; Pereira de Queiroz, 1967; Cavalcanti, 2006b, 2006c, 2000.
Entre os que estudaram mais especificamente o bumba-meu-boi do Maranhão, destacam-se:
Albernaz, 2004; Araújo, 1983; Bueno, 2001; Carvalho, 2005; Carvalho, 1995; Lima, 1982;
Prado, 2007.
2
Não entre os estados brasileiros existem diferenças na forma de brincar, que
alguns folguedos do boi da mesma região e que recebem a mesma denominação se expressam
de maneira heterogênea entre si. É o caso do bumba-meu-boi que se realiza no Maranhão, o
qual se apresenta sob diversas formas. Uma classificação bastante disseminada neste estado
divide os grupos de boi em diferentes sotaques, que designariam estilos e/ou demarcariam
regiões de origem. Existiriam cinco sotaques predominantes: zabumba, costa-de-mão,
matraca, orquestra e baixada (CARVALHO, 1995). O cazumba é um personagem
encontrado principalmente nos grupos considerados como pertencentes ao sotaque intitulado
baixada. Este sotaque compreende principalmente aqueles grupos que estão sediados na
região da Baixada maranhense
3
ou se localizam em São Luís e foram formados por pessoas
que migraram desta região.
2
As discussões trazidas por alguns destes autores foram contempladas nesta dissertação, sendo possível
encontrar informações e conteúdos procedentes de seus estudos.
3
“A Baixada maranhense é assim denominada por ser uma região de campos baixos, possuindo numerosos rios,
lagos e campos alagados. Economicamente essa região sobrevive da agricultura e da pesca. Dividida em 21
municípios, temos como os mais conhecidos: Pindaré, Penalva, Pinheiro, Viana, São João Batista, São Vicente
de Ferrer, Arari, Anajatuba, Cajari, Monção, Matinha, Pinheiro, Santa Helena e Cajapió” (MATOS, 2010, p.13).
15
A partir das observações possibilitadas pelo trabalho de campo feito no Maranhão,
pode-se dizer que o cazumba, um dos personagens que brincam em torno do boi, é um
personagem ambíguo: ao mesmo tempo em que é cômico, também é assustador, e comete
pequenas transgressões. Falarei sobre isto adiante.
A máscara que utiliza é muito importante para o pleno exercício de suas funções
rituais. A noção de ritual é aqui compreendida como um domínio privilegiado de expressão
simbólica (GIUMBELLI; CAVALCANTI, 2009). A partir da discussão empreendida por
DaMatta (1979), o ritual é também entendido como um momento especial, que se contrapõe
ao tempo ordinário. Na perspectiva deste autor, os rituais permitem que as estruturas se
atualizem, já que no seu decorrer, as regras do cotidiano são suspensas, sendo possível pensar
em outros modos de realidade. Os rituais seriam, no entanto, totalmente relacionados ao
tempo ordinário. Um de seus mecanismos mais comuns seria focalizar aspectos do cotidiano e
os transformar. Num ritual, um ato corriqueiro pode adquirir alto grau de significação. Um
aperto de mão pode, por exemplo, se tornar símbolo de fraternidade universal.
Voltando às máscaras do cazumba, existem muitos tipos delas no bumba-meu-boi
maranhense, que podem ser feitas com materiais diversos e com diferentes técnicas. De forma
geral, podemos dividi-las em dois estilos principais: as menores e as de grandes formatos. As
menores, que cobrem apenas o rosto, costumam representar um ser antropozoomórfico. Elas
podem ser feitas utilizando-se madeira, pano, plástico ou papel machê, podendo incluir
simultaneamente diferentes misturas de materiais (figura 1, p.16). As do segundo tipo são as
maiores, que recebem os nomes de torre ou igreja, e costumam ser compostas de uma
máscara menor que cobre o rosto e de uma estrutura que sobe acima da cabeça. Essa estrutura
também pode ser feita de materiais diversos, como ferro ou isopor, costuma ser muito alta e é
amplamente decorada (figura 2, p.17).
Além da máscara, o cazumba utiliza uma veste que cobre o corpo todo e tem também
grandes nádegas que contribuem para sua comicidade. Ele leva ainda um sino, que é seu
instrumento percussivo, podendo ter outros acessórios, como chicotes e bonecas.
16
Figura 1: cazumba criança do grupo Boi da Floresta usando máscara do tipo menor em
apresentação no período junino em São Luís, no dia 28 de junho de 2009. Foto de minha
autoria
17
Figura 2: cazumba usando uma torre em festa em Matinha, na Baixada maranhense,
durante o período junino, no dia 26 de junho de 2009. Foto de minha autoria
18
O objeto no centro das etnografias
Diversos autores analisaram a atuação ritual do cazumba e abordaram a importância da
máscara para sua ação no contexto festivo (BITTENCOURT, 2009; LODY, 1995, 1999;
FERRETTI, 1986; FERRETTI & MATOS, 2009; MANHÃES, 2009; MATOS, 2010;
MAZZILLO, BITTER & PACHECO, 2005
4
). O presente trabalho se diferencia dos demais
por analisar de forma aprofundada o lugar da máscara no contexto ritual, assim como por
investigar de maneira inédita a circulação deste objeto em situações exteriores à festa.
Para dar andamento a esta pesquisa, considerando a perspectiva adotada, foi
necessário ativar uma bibliografia específica dos estudos dos objetos. Quando Bronislaw
Malinowski (1976) escreveu sua etnografia sobre algumas tribos da Melanésia e mais
especificamente sobre o “kula um tipo de troca que era realizada nesta região ele
inaugurou uma maneira reveladora de pensar a relação entre os objetos e a sociedade.
Percebeu que a maneira como aquele grupo de pessoas se relacionava com os objetos, assim
como a forma que os faziam circular, poderia informar sobre a sociologia nativa de maneira
mais ampla. Marcel Mauss, no conhecido Ensaio sobre a Dádiva (2003), também pensou o
tema e mostrou que nas trocas, mais do que trocar objetos, trocavam-se relações sociais.
Apontou ainda que alguns objetos não participavam de forma inerte das trocas, que no
direito maori, por exemplo, era o objeto recebido como dádiva que obrigava o agraciado a
retribuí-la.
Mais recentemente, nas últimas décadas, tem se observado um grande crescimento da
produção bibliográfica em torno do estudo da produção, do uso e da circulação dos objetos.
As “coisas” têm sido colocadas no centro das etnografias para a compreensão das dimensões
culturais e sociais da vida coletiva. Isto é possível, pois os sentidos atribuídos aos objetos num
determinado grupo social informam não apenas como é pensada ali a cultura material, mas
também a cosmologia geral do grupo, as práticas culturais, a visão econômica, o “ethos” e as
relações sociais ali travadas.
Na verdade, em estudos que envolvem a contemporaneidade, é difícil pensar em
objetos que circulem apenas dentro de um grupo social limitado, cujos integrantes
compartilhem visões de mundo semelhantes. Aliás, é sabido que o trânsito de objetos entre
grupos não é um fenômeno restrito à contemporaneidade, sendo possível encontrá-lo nos mais
4
Sobre alguns destes autores é possível encontrar informações e conteúdos sobre suas discussões ao longo deste
trabalho.
19
remotos períodos históricos do Ocidente e de outros grupos culturais. Porém, é inegável que
as trocas entre os mais diferentes grupamentos humanos ao redor do mundo se intensificaram
depois da Revolução Industrial. Uma consequência disto é a facilidade de encontrarmos
objetos que circulam por diversas mãos, por distintos contextos sociais, sendo classificados de
variadas maneiras.
Uma carteira de pano que foi produzida na China e chega às lojas populares do Rio de
Janeiro, o tênis “Nike”, com patente americana, que inspira a produção do sapato “Mike” no
México, assim como a careta de cazumba que compõe o personagem na festa maranhense e
pode ser vista em museus são exemplos de objetos em trânsito que, se estudados, atentando-se
às diferentes etapas de sua trajetória, ajudam a pensar alguns fenômenos sociais e culturais
interessantes.
O antropólogo Igor Kopytoff (2008) diz que as coisas podem ser estudadas como se
fossem pessoas, sendo rentável refletir sobre a “vida social das coisas”. Ele propõe o exame
das “biografias culturais das coisas” e argumenta que assim como podemos estudar as
biografias de diferentes pessoas de um grupo social e chegar a informações relevantes sobre o
modo de vida daquele grupamento, possibilitando que se pense num tipo de “biografia ideal”
compartilhada por esses indivíduos, também podemos fazer perguntas sobre as biografias das
coisas, as quais auxiliam a desvendar dados culturais importantes daquele grupo. O autor diz
concordar com a noção durkheimiana de que uma sociedade organiza o mundo das coisas a
partir dos mesmos princípios com os quais ordena o mundo das pessoas.
Ainda segundo Kopytoff, um estudo comparativo das biografias das pessoas e das
coisas em sociedades de pequena e grande escalas revelaria que no primeiro tipo de sociedade
a maioria das pessoas e coisas teria um percurso social predeterminado à sua vinda ao mundo;
já nos grupamentos humanos de grande escala, as identidades, em geral, seriam menos
estáveis, daí a possibilidade das múltiplas classificações e reclassificações, extensivas aos
objetos. Ele diz: “Tal como ocorre com as pessoas, o drama aqui reside nas incertezas da
valoração e de identidade” (p.121).
Inspirada em Kopytoff, pretendo estudar a biografia cultural das máscaras do cazumba
pensando sua “vida” no contexto festivo, assim como o percurso que faz até os museus e as
reclassificações a que são submetidas nesses espaços. Arjun Appadurai (2008) também
demonstra a rentabilidade de seguir os objetos em suas trajetórias. Segundo ele, se do ponto
de vista teórico é correto pensar que são as pessoas que dão significações às coisas, do ponto
20
de vista metodológico é mais interessante seguir as coisas em suas trajetórias, pois assim
podemos ver como são feitas as transações e é possível analisar os outros usos que dão “vida”
a elas.
Caminhos da pesquisa
Para estudar a trajetória de circulação da careta, fui ao encontro de Abel Teixeira,
cazumba do Boi da Floresta, em São Luís, e artesão das máscaras. Ele é um senhor negro, de
70 anos, e seu trabalho como artesão das caretas é reconhecido no universo da festa e fora
dele também. É muito procurado por pesquisadores e admiradores de sua produção que
querem ter mais informações sobre sua atuação como cazumba. Já foram feitas algumas
exposições temporárias, nas quais figuravam suas caretas em instituições como o Museu do
Folclore Edison Carneiro (RJ), o Centro Cultural da Caixa Econômica (RJ) e o Centro de
Cultura Odílio Costa Filho (MA). Suas caretas compõem o acervo de museus no Brasil (Casa
do Maranhão, MA; Museu do Folclore Edison Carneiro, RJ; Museu Casa do Pontal, RJ;
Museu Afro-brasileiro, SP, e outros) e no mundo (Museu da Máscara em Bragança, em
Portugal). Foi destaque em um livro sobre a careta de cazumba (MAZZILLO, BITTER &
PACHECO, op. cit.) e teve seu depoimento registrado na série “Memória de Velhos” (LIMA,
2008) organizada pela Comissão Maranhense de Folclore. Também ministrou diversas
oficinas de produção de caretas e de tambor de crioula em alguns estados brasileiros, como
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Maranhão. Recebeu ainda em 2010 o título de cidadão
ludovicense, pela Câmara Municipal de São Luís (MA).
Abel nasceu no povoado de Santo Inácio, no município de Viana, na Baixada
maranhense. Em 1978, migrou para a capital do estado, São Luís. Em Viana era agricultor. Na
capital do estado trabalhou principalmente como vigilante no serviço público além de
vender as caretas que produzia. Esteve sempre ligado à prática do bumba-meu-boi, antes e
depois da ida para a capital. Entre 2008 e 2010, durante a realização da pesquisa, encontrava-
se aposentado do serviço público e era casado com Meire, sua segunda esposa, com quem
residia num bairro pobre de São Luís, chamado Coroadinho. Meire também participava dos
festejos do bumba-meu-boi, tocando um instrumento musical, o tambor-onça.
Fui à casa de Abel em novembro de 2008 para uma conversa. Acreditava que ele
poderia trazer informações relevantes sobre o tema de minha pesquisa, pois é um dos poucos
artesãos da careta que, além de produzir para a festa, também está inserido num outro circuito
21
de circulação da máscara. Contudo, esse encontro em São Luís não foi o primeiro que
tivemos. Conheci-o dois anos antes, quando veio ao Rio de Janeiro proferir uma palestra no
“III Seminário Temático de Arte e Cultura Popular: a arte popular e seus universos culturais”,
realizado pelo Museu Casa do Pontal,
5
instituição na qual atuo em alguns projetos de
pesquisa. O tema de sua fala era a própria produção artística e ele foi convidado porque havia
algumas máscaras suas no acervo daquele museu.
O meu interesse por estudar a máscara do cazumba surgiu a partir de uma entrevista
com Abel, a qual tive o prazer de organizar. Toda vez que um artista que tem suas obras no
Museu Casa do Pontal vai à instituição, aproveita-se para aprofundar os conhecimentos acerca
de sua trajetória e produção. Assim, foi nesta entrevista com ele, da qual participaram mais
duas pessoas ligadas ao museu,
6
que fiquei especialmente curiosa em investigar os sentidos e
os usos da máscara no contexto festivo, assim como entender como se o processo de
deslocamento da careta para outros contextos.
Na verdade, minha relação com o Museu Casa do Pontal é, ao mesmo tempo,
profissional e pessoal, que este espaço foi criado por meu avô, o designer francês Jacques
Van de Beuque.
7
Ele construiu o museu para abrigar sua coleção de esculturas e outros
objetos entendidos como arte e feitos por participantes das camadas populares. Ele, que
faleceu em 2000, formou uma coleção de cerca de 8 mil peças durante mais de 40 anos.
Percebe-se, assim, que meu primeiro contato com a máscara se deu no espaço museal
e meu modo de olhá-la foi formado ali. Por esta razão, inicialmente eu a percebi como um
objeto que tem certa autonomia em relação à festa em que é utilizada e ao personagem que
5
O Museu Casa do Pontal está localizado no bairro do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Exibe uma
coleção de arte popular brasileira” formada de mais de 8 mil esculturas, produzidas por cerca de 200 artistas de
20 estados brasileiros. O museu possui obras de autores relevantes no cenário desta produção, como Mestre
Vitalino, Manuel Galdino, Manuel Eudócio, Luiz Antonio, Noemisa Batista, Isabel Mandes da Cunha, Nino,
G.T.O, Adalton Gomes Lopes, e outros. Em sua atuação estão incluídas, entre outras atividades, projeto
educacional para alunos da rede pública e particular, oferta de seminários, pesquisa sobre temas ligados ao
campo da arte e da cultura popular, editoração de livros relacionados aos seus campos de atuação, realização de
exposições de arte popular ou temas afins na galeria de mostras temporárias, promoção de exposições do acervo
em outros espaços no Brasil e no exterior. Recebeu diversos prêmios.
6
Essas pessoas são Angela Mascelani, diretora do Museu Casa do Pontal e minha mãe, e Juliana Manhães, que
então atuava no Programa Educacional da instituição, a qual será apresentada de forma mais extensa no decorrer
da pesquisa.
7
Jacques Van de Beuque (1927-2000) nasceu em Bavey, no norte da França, e veio para o Brasil com o término
da Segunda Guerra Mundial, logo obtendo residência no Rio de Janeiro. Formado em Belas Artes, em Lyon,
desde o início interessou-se por objetos feitos pelas pessoas simples, do povo. Atraíam-no sobretudo a
vivacidade, as cores e as formas das pequenas obras que encontrava durante suas viagens pelo país (Mascelani,
2006, p.82).
22
ajuda a compor, o que talvez explique a escolha de seguir isoladamente este objeto em sua
circulação. Essa relação com o Museu do Pontal também me traz o desafio de estranhar o
familiar (VELHO, 1997),
8
que este e outros espaços museais serão objetos de minha
investigação.
No início da pesquisa, não tinha consciência da importância que Abel teria no
desenvolver do trabalho, tornando-se meu principal interlocutor e personagem central em
minha discussão. Nos momentos iniciais do trabalho de campo, ele parecia ser alguém que
poderia me auxiliar a adentrar no universo da festa e a ter contato com outros cazumbas. No
desenrolar da pesquisa foi se solidificando a importância de Abel para o trabalho. Entendi que
existiam pessoas ligadas a ele, em São Luís e em outros estados brasileiros, que contribuíam
para a sua circulação e a da careta. Entre estes estavam pesquisadores de cultura popular,
funcionários públicos atuantes nas áreas de patrimônio, educação e cultura, colecionadores,
turistas, e outros. Também notei que Abel criou uma original forma de escoamento de suas
caretas, propondo aos pesquisadores e aos interessados que o visitavam que o ajudassem a
vender suas máscaras. Eu, inclusive, depois de ter ido à sua casa, engajei-me nesta ação,
trazendo algumas caretas para serem vendidas no Rio de Janeiro.
9
Observei que, além de a careta ser ressignificada nesse processo de deslocamento,
Abel igualmente tinha sua identidade ressignificada à medida que participava desse circuito.
A posição de Artista popular” que alcançou em alguns meios colocava-o numa posição
diferenciada diante de seus colegas cazumbas que, em sua maioria, produzem máscaras quase
que exclusivamente para uso no período festivo. Porém, ao mesmo tempo, ele não se
distanciou da festa. Ao contrário, continua envolvido com as questões próprias desse
contexto, produzindo caretas para outros brincantes.
10
Definida a circulação da máscara como foco de minha pesquisa, conscientizei-me de
que o trabalho de campo não teria um perfil clássico, de imersão num grupo, num território
delimitado. A circulação me levava a uma etnografia multicontextual. Acompanhar a careta
pelos seus diversos contextos de significação e conhecer aqueles que permitem sua circulação
fizeram com que eu investigasse pessoas, grupos e instituições localizados em lugares
8
“O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e
mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações” (p.131).
9
Desde o início da pesquisa, pelo fato de ter uma relação com o Museu do Pontal, me percebia como um ator
social que atuava no universo que me propunha a estudar. No decorrer da pesquisa, a partir das relações
desenvolvidas no trabalho de campo, esta questão se aprofundou. Em algumas situações do texto problematizo
esta questão, tentando entender meu lugar social no sistema que analiso.
10
Modo como são chamados os participantes da festa.
23
diversos e com histórias bastante diferentes. No decorrer do trabalho de campo foi sendo
delimitado o universo multicontextual da pesquisa.
Em pouco tempo, Abel definiu-se como o fio condutor da investigação. Por esta razão,
ganharam destaque sua trajetória e sua atuação social na vida maranhense. Além de se
debruçar sobre ele sua vida e história pessoal o trabalho de campo também se organizou
em torno de dois polos de inserção da careta (o universo da festa e o universo de circulação
da máscara fora da festa), nos quais é possível identificar contextos significativos de pesquisa.
No universo da festa do bumba-meu-boi, concentrei minha atenção no Boi da Floresta grupo
do qual Abel participa em São Luís e nos acontecimentos vivenciados e nas pessoas que
encontrei durante as viagens feitas à região da Baixada maranhense. No que identifico como
universo de circulação da máscara fora da festa, concentrei a pesquisa em alguns museus (são
eles: Casa do Maranhão, MA; Museu de Folclore Edison Carneiro, RJ; e Museu Casa do
Pontal, RJ) e em alguns personagens que contribuem para o deslocamento da careta e de
Abel.
Fui quatro vezes ao Maranhão entre 2008 e 2009. Em novembro de 2008, estive lá por
uma semana. Em 2009, estive 15 dias em fevereiro, 20 dias entre os meses de junho e julho, e
10 dias em setembro. Nestas visitas pude fazer campo na região da Baixada por duas vezes,
nos meses de fevereiro e junho (principal momento de ocorrência dos festejos do bumba-meu-
boi), sempre acompanhada de Abel. Na Baixada pude conversar e/ou entrevistar alguns
cazumbas, assim como observar esses personagens em ação ritual. A pesquisa junto ao Boi da
Floresta, em São Luís, foi realizada nas quatro idas ao estado, sendo também possível
entrevistar cazumbas, assim como outros brincantes do grupo. Acompanhei as festas do grupo
que acontecem no período junino e também o ritual da Morte do Boi, que ocorreu em
setembro. No Maranhão, fiz trabalho de campo na Casa do Maranhão, instituição que
expunha objetos relacionados ao universo do bumba-meu-boi, para pensar a inserção da
careta naquele espaço. Neste estado, também entrevistei diversas pessoas que contribuem
para a circulação da máscara e de Abel fora da festa. No Rio de Janeiro, além do Museu Casa
do Pontal, também fiz visitas ao Museu do Folclore Edison Carneiro e entrevistei pessoas que
ajudaram na circulação da máscara e do artesão.
No item “Entrando no campo com Abel Teixeira”, a seguir, elaboro um debate em
torno da figura de Abel Teixeira que nos conduzirá por todo o caminho desta dissertação.
Justifico teoricamente o estudo de sua biografia a partir de autores como Gilberto Velho
(1986, 1994, 1997, 2001) e Alfred Schutz (1970, 1979), trazendo dados de sua trajetória e
24
problematizando nossa interlocução. Meu objetivo é revelar a importância deste ator para a
realidade social pesquisada e introduzi-lo aos leitores para melhor compreensão dos capítulos
que se seguem.
No capítulo 1, intitulado “O Boi da Floresta e seus cazumbas”, ingresso no estudo
sobre os cazumbas e as caretas no contexto festivo. Realizo uma etnografia acerca do grupo
Boi da Floresta sediado em São Luís. Penso a organização social deste grupo de boi, assim
como as ações rituais empreendidas por ele. Analiso seu ciclo festivo, partindo do batizado,
quando o boi é simbolicamente habilitado a brincar, passando pelas apresentações públicas
realizadas no período junino, até a festa da Morte do Boi, em setembro, que marca a morte
simbólica do boi do grupo. A seguir, analiso a inserção dos cazumbas neste grupo: o modo
como os brincantes ingressam nesta atividade, o perfil das pessoas que o executam, os
sentidos atribuídos pelos participantes da festa ao personagem e a relação existente entre as
características do cazumba e as pessoas que o colocam em ação. Por fim, analiso a
composição visual do personagem, quando me atenho à inserção da máscara neste contexto
festivo, e abordo os modos de produção da máscara, como ela circula entre os brincantes, a
existência de diferentes tipos de artesãos no grupo, a rivalidade acionada por sua utilização,
seu uso ritual, entre outras questões. Ao longo do capítulo, mostro como se a relação de
Abel com o grupo.
No capítulo 2, intitulado “Diversidade e unidade no contexto festivo”, procuro mostrar
que existem, ao mesmo tempo, semelhanças e diferenças nos modos de expressão ritual.
Para tal, no primeiro item Cazumbas da Baixada maranhense” discuto meu trânsito pelo
interior do Maranhão em companhia de Abel. Apresento alguns cazumbas e artesãos da
máscara que conheci, as atividades festivas que observei no período junino e a postura de
Abel durante a viagem. Reflito sobre a atuação do cazumba nas apresentações, o lugar da
transgressão na atuação deste personagem, os sentidos atribuídos a ele ali, a importância da
máscara para sua ação ritual, o lugar social ocupado pelos especialistas na produção das
caretas, entre outras questões. No segundo item deste capítulo “Reflexões sobre a inserção
da máscara no contexto festivo” busco pensar este aspecto como um todo, estabelecendo
comparações entre as festas que pude observar em São Luís e na Baixada maranhense.
Discuto o lugar da máscara como mediadora entre a figura mítica e a ação ritual do
personagem e também a importância deste objeto na realização das “funções performativas” e
das “funções estéticas” deste personagem. Enfoco, além disso, a relação mais específica entre
a forma da máscara, a eficácia ritual do personagem e a construção dos sentidos do cazumba,
25
e reflito, de forma geral, sobre os modos de produção e as trocas envolvendo este objeto nas
festividades.
No capítulo 3, busco conceber as relações sociais que possibilitam a inserção da
máscara em outros meios (como os museus), tento identificar aqueles que participaram deste
deslocamento, compreender a atuação da máscara ali e os sentidos atribuídos a ela nestes
novos contextos. A análise da trajetória de Abel e de sua atuação social é essencial para a
construção deste capítulo, pois contribuem para elucidar aspectos relativos ao deslocamento
da careta. Também analiso os impactos da circulação de Abel e da máscara para a sua história
pessoal, enfocando o processo de sua constituição como “Artista” em alguns meios; o
processo de individualização do artesão em face do Boi da Floresta; sua relação com o interior
maranhense; e a possibilidade de utilizar a categoria “mediador” para pensar seu trânsito pelos
diferentes contextos.
Nas considerações finais, retomo as principais questões desenvolvidas ao longo do
trabalho. Também procuro estabelecer uma comparação entre a inserção da máscara no ritual
e nos circuitos exteriores à festa, e discutir os diálogos existentes entre esses contextos.
1.1 Entrando no campo com Abel Teixeira
Indivíduos e trajetórias nas sociedades complexas
A discussão empreendida por Velho (1986, 1994, 1997, 2001) sobre a questão do
indivíduo nas “sociedades complexas contemporâneas” pode nos ajudar a entender a
relevância de se estudar a trajetória de Abel Teixeira (figuras 3 e 4, p.27). Discutindo a
respeito da noção de “sociedades complexas”, Velho (2001) afirma que, mesmo que esta seja
uma categoria polêmica, ela nos ajuda a entender aquelas sociedades que passam por
mudanças históricas notáveis, sendo crescentes os processos de “heterogeneidade
sociocultural, especialização da divisão do trabalho, diversificação e fragmentação de papéis
sociais” (VELHO, 2001, p.15).
Velho (1994) demonstra ainda que, ao se perceber que nas “sociedades complexas”
existe a convivência de grupos sociais e culturais contrastantes, a questão do trânsito dos
indivíduos entre os grupos e as áreas culturais torna-se um problema básico para estes
26
contextos. Os indivíduos na contemporaneidade nascem em tradições particulares, mas têm
uma grande possibilidade de se moverem material e simbolicamente ao longo da vida.
Apoiado nos estudos de diversos autores e especialmente naqueles desenvolvidos por
Alfred Schutz (1970, 1979), Velho (1994) desenvolveu uma discussão em torno das noções
de “projeto” e “campo de possibilidades”. Ele afirma que estas noções “podem ajudar na
análise de trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem
esvaziá-la arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades” (p.34). Velho mostra que
Schutz define “projeto” como “conduta organizada para atingir determinadas atitudes”. Diante
do excesso de racionalismo desta definição, ele traz à cena a noção de “campo de
possibilidades”. Esta noção possibilita que pensemos os projetos individuais realizando-se em
um contexto sociocultural específico. Ele mostra que nos ambientes cuja ideologia
individualista não é tão forte é mais provável que os “projetos” individuais sejam mais
prescritos cultural e socialmente. Nas sociedades complexas contemporâneas, as escolhas
individuais seriam mais enfatizadas, mas ele afirma que um “projeto” sempre é elaborado em
relação a outros “projetos”, formula-se dentro de um “campo de possibilidades”. Ele diz: “os
projetos são elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um
código, de vivências e interações interpretadas” (op. cit., p.26).
27
Figura 3: Abel Teixeira, na sede do Boi da Floresta, antes de apresentação de tambor de crioula,
em novembro de 2008. Foto de minha autoria
Figura 4: Abel em sua casa, no dia 02 de julho de 2009, confeccionando uma careta. Foto de
minha autoria
28
As questões trazidas por Velho ajudam a justificar a relevância de se estudar a
trajetória de Abel. Este autor nos possibilita pensar que a partir da vida de Abel podemos
problematizar o quadro social mais amplo em que ele está inserido, quadro este marcado pelo
diálogo entre meios diversos, pela presença de grupos sociais com difícil delimitação de
fronteiras e no qual é possível a circulação de indivíduos por contextos sociais diferentes.
A perspectiva de Velho permite ainda refletir sobre as consequências para Abel da
possibilidade de realizar esse tnsito sociocultural. Se nas sociedades de menor escala a
trajetória de um indivíduo tem um campo de possibilidades (VELHO, 1994) mais restrito,
naquelas mais complexas, os indivíduos podem caminhar por percursos mais diversificados.
Desta forma, a possibilidade de um indivíduo provir de um determinado contexto de origem e
transitar por outros meios socioculturais seria maior. Abel, integrado a uma sociedade
complexa como a brasileira, circula por contextos sociais heterogêneos que a conformam. Ele
nasceu em 1939, num ambiente rural composto basicamente por pequenas propriedades, onde
trabalhavam majoritariamente agricultores pobres. Ali ele participava do bumba-meu-boi e
fabricava suas caretas para ele mesmo ou seus pares. Abel mudou-se para a capital do
Maranhão em 1978, onde se inseriu, entre outros, num circuito social composto por atores
sociais procedentes das camadas médias intelectualizadas, interessadas no consumo de suas
máscaras, que as fez chegar a diversos museus, e que lhe permitiu viajar para países como
Portugal e França. Nesse processo, Abel deixou de ser apenas um brincante e artesão com
produção restrita à festa, tornando-se também “Artista popular” em outros circuitos.
Engana-se, no entanto, quem pensa que seu passado no interior do Maranhão foi
abandonado. Ele foi, ao contrário, constantemente ativado e ressignificado. Nas diversas
conversas que tivemos ao longo da pesquisa, Abel sempre fazia referência às suas
experiências no interior e fez questão de ir à Baixada em minha companhia. É preciso
ressaltar que a leitura de Velho sobre a possibilidade de mudanças nas trajetórias individuais
não é simplista, e ajuda a pensar esta questão por outros ângulos. Ele propõe também
(VELHO, 1994, p.29) o conceito de potencial metamorfose como uma possibilidade de
mudança individual que permite que alguém construa sua trajetória saindo de um contexto
social e ingressando em outro bastante diferente sem abandonar totalmente suas referências
anteriores, já que sua história sociocultural é sempre atualizada em seu presente.
29
Vozes no campo
Durante a pesquisa, Abel mostrou-se um interlocutor muito inteligente, engraçado e
afetivo. Sua inteligência vibrante chama a atenção e isto talvez explique porque tanta gente o
procura. Além de o procurarem por sua careta, certamente sua autoridade como cazumba e o
modo como fala sobre suas experiências contam muitos pontos para seu prestígio. Quando
discorre sobre a festa, tem fala incisiva e determinada. Suas opiniões são também muito
claras. É marcante ainda sua posição saudosista em relação ao passado.
Em seu discurso, Abel critica as mudanças na festa da capital maranhense, valoriza as
festas do interior do estado, expressando o desejo de que seus interlocutores conheçam a
região da Baixada. Mas é curioso, porque quando chega ao interior, mudanças por
também e se decepciona um pouco. Parece que seu ideal de festa encontra-se nos folguedos
do interior, aqueles realizados em seu passado e que vivem em sua memória.
O modelo de festa procurada por ele não existe perfeitamente materializado hoje em
dia (talvez nunca tenha existido), e ele parece ter consciência disto. Um dia, depois da volta
da viagem ao interior, numa apresentação do Boi da Floresta em São Luís, Abel falou de
algumas insatisfações suas com os acontecimentos da noite, e concluiu: “Aqui reclamo, no
interior reclamo também...”.
Abel é crítico, mas tem um encantamento enorme pelo universo da festa. Muitas
pessoas que chegam até ele talvez sejam atraídas por esse encantamento e também por seu
espírito reflexivo. Ele pensa a respeito de tudo o que ocorre à sua volta, mas não é um tipo de
narrador que fala ininterruptamente sobre os assuntos. Diferente de Muchona, interlocutor de
Vitor Turner (2005) no seu trabalho de campo entre os Ndembu na África, que gostava de
falar sobre os saberes ndembu por horas a fio, Abel fala pouco. Suas falas são pontuais, mas
muito interessantes. Ele não gosta de ficar respondendo a perguntas, prefere uma conversa,
durante a qual sua opinião. Não gosta de responder à pergunta: “por quê?”. Em entrevista
feita em agosto de 2009, ele disse: “Vocês me procuram para dizer uma coisa, eu vou
dizendo, quando tem uma coisa que vocês gostam, em gravação, aí pede[m] para repetir, aí eu
não gosto disso. Eu não gosto de dizer „porque‟, porque senão perde a noção do tempo e das
coisas que estou fazendo”.
Ele denuncia, assim, certa artificialidade das entrevistas que atrapalha seu pensamento.
Também prefere que vejamos com nossos próprios olhos os acontecimentos da festa do que
30
fiquemos pedindo que ele explique tudo: aposta na força da experiência para a compreensão
dos fenômenos. Na primeira entrevista que fiz com ele em 2008, quando pedi que falasse
sobre uma questão da festa, disse-me: “Sem fazer não adianta contar, porque vocês ficam
perguntando sempre „mas como é isso?‟, fazendo”. Ele prefere que vejamos as ações
rituais e faz comentários preciosos para os interlocutores quando está junto.
A discussão sobre a presença de diferentes pontos de vista a respeito das realidades
sociais apareceu no meu trabalho de campo de forma intensa. Abel tem opinião sobre tudo:
sobre a fala dos intelectuais acerca do universo dos cazumbas, o deslocamento das caretas
para os museus, a sua projeção como “Artista” etc. É interessante porque sua voz tem
autoridade entre os pesquisadores que o procuram, principalmente no que se refere à sua
opinião sobre a festa. Ao mesmo tempo, a perspectiva de Abel também é questionada por
pesquisadores e brincantes, ou seja, encontrei no trabalho de campo um ambiente rico em
discussão em torno das diferentes perspectivas sobre a realidade social pesquisada. Tenho
como objetivo mostrar aqui esse ambiente que tem muitas vozes em ação, mesmo sabendo
que o pesquisador um direcionamento ao olhar do leitor para a compreensão do contexto
social pesquisado. Assim, apesar de eu buscar uma escrita que revele as múltiplas vozes do
campo, sei que meu lugar de autora não pode ser esquecido na feitura do texto. Convencida de
que o antropólogo inevitavelmente se coloca naquilo que escreve, espero que minha escrita
revele da forma mais complexa possível aquilo que estudei, incluindo uma reflexão sobre
minha própria atuação em campo.
Trajetória de Abel em dois tempos: no interior e a chegada em São Luís
a) No interior
Sintetizo agora algumas informações sobre a trajetória de Abel que obtive em
entrevistas com ele (fevereiro, junho, julho, agosto, setembro de 2009). Como foi dito, ele
nasceu em 1939, no povoado de Santo Inácio, município de Viana, na região da Baixada
maranhense. Sua infância foi difícil, já que perdeu a mãe muito cedo e não havia sido
reconhecido pelo pai. Morou com uma tia e trabalhou desde muito novo na lavoura.
Frequentou as festas do bumba-meu-boi desde a infância e sua entrada no folguedo se deu
como percussionista. Mais velho, decidiu brincar como cazumba e para tal lançou-se na
missão de obter uma careta. Foi um primo de Abel, que já era cazumba, que fez sua primeira
31
máscara. No entanto, Abel não gostou do resultado, pois “ela tinha um olho mais baixo que o
outro” (fevereiro de 2009).
Foi esse incômodo e o desafio de conseguir produzir uma careta algo que não sabia
fazer que o levou a lançar-se na produção de uma para si. A primeira foi feita em pano, o
que era comum na época. Depois de um tempo, o estilo predominante passou a ser a careta de
madeira e Abel seguiu essa linha, aprendendo a entalhar máscaras. Certo dia, a partir de seu
reconhecimento como artesão por seus companheiros da festa, recebeu uma encomenda de
feitura de caretas para o grupo Boi da Floresta, em São Luís. O convite veio por intermédio
de um brincante que conhecia as habilidades de Abel e teve esta ideia por causa da falta de
bons artesãos na capital do estado. Abel e outros artesãos prepararam a encomenda, mas não
receberam o pagamento no prazo combinado. Por isso, Abel resolveu ir para a capital em
busca de seu dinheiro. Chegando a São Luís, acabou decidindo morar na cidade.
Antes de descrevermos a ida de Abel para São Luís, gostaria de pensar sobre esse
primeiro momento de sua trajetória, refletindo a partir das proposições mencionadas de
Velho (1994, 1997) em diálogo com Schutz (1970, 1979) sobre a relação entre a trajetória
individual e o “campo de possibilidades” existente. Velho esquiva-se de análises que colocam
ênfase excessiva na ação individual, assim como daquelas que apostam num determinismo
sociocultural exacerbado. Depois da pesquisa de campo, realizada entre brincantes de São
Luís e do interior do Maranhão, pude perceber que a história de inserção de Abel na festa
como cazumba e na produção de caretas trazia elementos comuns à experiência de outros
participantes do folguedo, principalmente outros cazumbas. Ao mesmo tempo, vemos a
individualidade de Abel expressar-se em suas ações.
Percebemos Abel começando sua inserção na atividade de cazumba a partir de desejo
próprio. Isto é muito recorrente neste universo, que valoriza sobremaneira a vontade do
indivíduo em se engajar nas atividades festivas. É por meio deste impulso, que passa pelo
querer, que os brincantes decidem começar a atuar na festa. Os personagens que serão
exercidos são sempre escolhidos pela pessoa que brinca e isto é enfatizado em suas falas. A
maneira como Abel se lança na atividade de artesão também encontra eco em outras
experiências do contexto festivo, como veremos nos capítulos 1 e 2, em que realizo
etnografias sobre o Boi da Floresta e a Baixada, respectivamente. O desafio e a concorrência
são muito estimulantes para os brincantes e diversos artesãos de máscara buscam essa
atividade a partir de tal incitação. Não é apenas por quererem brincar e não terem careta que
32
começam a produzir, mas o desafio que vem junto com esta tarefa também é muito
importante. Se conseguirem fazê-la, seo vistos positivamente por tal feito. Migrar para a
capital também fazia parte do repertório de possibilidades culturais de Abel, que muitas
pessoas que moram nas cidades do interior maranhense fazem esse deslocamento.
Para refletir sobre o que é mais próprio a Abel, talvez possamos considerar como
ponto a ser explorado seu incômodo com a máscara de olhos desalinhados feita por seu primo.
Como naquele contexto a feitura de máscaras não era privilégio apenas dos especialistas,
diversas pessoas faziam sua máscara, mesmo quem não fosse muito ligado à sua dimensão
estética. O primo de Abel não parecia voltado aos aspectos plásticos da careta, talvez seu
interesse estivesse mais focado, por exemplo, nas travessuras que o cazumba costuma
cometer. Quando Abel decide fazer uma máscara sem os olhos desalinhados, está preocupado
com a sua funcionalidade, que deste modo a brincadeira é facilitada. Porém, esta atitude
também demonstra sua ligação com o universo da estética ele sublinhou em seu relato
(fevereiro de 2009) que naquele momento se incomodou com o aspecto visual da careta
imperfeita. Não que a qualidade estética das máscaras o fosse valorizada pelos demais
brincantes, mas Abel se mostra especialmente interessado nela. Acredito que a atuação de
Abel como artesão se dá, na sua juventude, a partir de vários motivos: a valorização cultural
dos artefatos festivos em seu contexto social, seu gosto pela dimensão estética dos objetos,
sua habilidade em produzi-los, sua vontade de brincar etc.
Velho (1994), em diálogo com Schutz (1970), reflete sobre a relação entre indivíduo e
sociedade, e afirma:
Por mais que seja possível explicar sociologicamente as variáveis que se
articulam e atuam sobre biografias específicas, sempre algo irredutível,
não devido necessariamente a uma essência individual, mas sim a uma
combinação única de fatores psicológicos, sociais, históricos, impossível de
ser repetida ipsis litteris (p.28).
Abel parece influenciado pelo contexto em que está inserido, e pode agir dentro do
campo de possibilidades que se abre ali, mas existe algo de irredutível em sua experiência
individual.
33
b) A chegada em São Luís
Como foi dito, a chegada de Abel a São Luís ocorreu em 1978, no período junino. Por
intermédio de Zelinda Lima,
11
intelectual atuante no “campo das culturas populares” no
Maranhão e próxima de Apolônio Melônio que comandava o Boi da Floresta, Abel conseguiu
um emprego no governo do estado, o que lhe permitiu ficar na cidade. Zelinda, que se cativou
pelo seu trabalho, acabou sendo uma das maiores responsáveis pela inserção de Abel no
circuito de vendas das caretas para integrantes de um contexto diferente do festivo. Além de
Zelinda, outras pessoas foram importantes, contribuindo para sua projeção social em meios
fora da festa. Ele, porém, não foi passivo nesse processo, agindo para agregar em torno de si
pessoas que acabaram por incentivá-lo em diversos momentos, tanto profissional como
pessoalmente. No capítulo 3 será explorado com mais profundidade esse ingresso de Abel e
seu trânsito em novos contextos sociais.
Abel e a careta do cazumba
Durante minhas idas a campo, fui às apresentações de Abel no grupo Boi da Floresta.
Ele brincou um pouco e, como outros cazumbas de sua idade, disse que não tem mais muita
disposição para a brincadeira. Em relação às mudanças contemponeas nos modos de
atuação do cazumba, ele comentou que hoje se privilegia mais a visualidade do que a ação
ritual do personagem, que antes teria mais atuações cômicas. Exemplificou dizendo que um
fator que impede as brincadeiras mais engraçadas é a utilizão das máscaras altas (torres)
que muitos cazumbas usam hoje em dia, de grande impacto visual, porém mais pesadas.
A partir do estimulo de Zelinda Lima para Abel voltar para as máscaras em tecido, ele
começou a fazer simultaneamente as máscaras de pano e as de madeira. Como as de pano são
mais fáceis e mais baratas de produzir, são privilegiadas. Suas máscaras têm um estilo
inconfundível, sendo possível identificá-las com alguma facilidade. Abel faz questão de
assinar suas peças, prática pouco comum entre os artesãos da festa. algum tempo ele
produz também miniaturas das caretas, modelo inventado por ele para atender a um público
de turistas e a outros interessados em seu trabalho, que podem ter acesso às suas máscaras por
um preço mais acessível e num formato mais reduzido.
11
Ao longo da dissertação, serão aprofundados conteúdos sobre a biografia de Zelinda Lima, principalmente no
capítulo 3, intitulado “A circulação de Abel e da careta fora da festa”.
34
Suas vendas são feitas para um público amplo que inclui turistas, pesquisadores,
colecionadores e participantes do folguedo. Ele vende para outros grupos de bumba-meu-boi
da capital e do interior do Maranhão, para grupos que estão localizados em outros estados
brasileiros, formados por migrantes maranhenses, para brincantes individuais etc., ou seja,
sua careta é desejada dentro da festa. Talvez o prestígio da careta fora da festa contribua para
seu sucesso entre os brincantes, mas certamente não é apenas isto que interessa aos
participantes do folguedo.
Este fato pode ser comprovado por acontecimento ocorrido em uma de nossas viagens
ao interior do Maranhão, feita no período junino. Na cidade de Matinha, na Baixada
maranhense, encontramos numa apresentação um cazumba com uma máscara feita por Abel.
Perguntei a Abel como aquele cazumba, um senhor, tinha conseguido a máscara. Abel disse
que estava com ela no ano interior na mesma cidade e esse senhor, um desconhecido,
comprou dele. Isto mostra que sua criação tem um apelo como máscara de cazumba entre os
brincantes.
Abel tem uma trajetória bastante singular entre os artesãos de careta na festa. A
maioria deles, que são muitos, produz para si. Existem aqueles que também vendem para
terceiros no universo da brincadeira e alguns têm até peças em museus. Mas Abel
exemplifica um caso único, pois apesar de outros artesãos poderem ser reconhecidos por seu
trabalho fora do contexto festivo, ele é praticamente o único que tem sua autoria
sistematicamente reconhecida nos museus.
Sobre a continuidade de sua produção, Abel disse (setembro de 2009) que tentou
ensinar sua filha o seu trabalho, porém ela não teria tido grande interesse em realizá-lo. Sua
esposa, Meire, auxilia-o na produção, sendo responsável por enfeitar as máscaras, mas ela não
as produz inteiramente.
Ele diz que é difícil definir o significado de suas máscaras, assim como explicar o que
é o cazumba. Durante uma ida com Abel à Casa do Maranhão,
12
em janeiro de 2009, ele
discorreu sobre o personagem: “O cazumba é uma coisa incrível, que não se sabe dizer o que
é, se um ser humano ou se é..., não tem palavra para dizer”. Sua careta também não recebe
definições fáceis. Segundo ele, o observador é muito importante para o estabelecimento do
sentido da careta do cazumba.
12
A Casa do Maranhão é um museu dedicado a expor obras relacionadas ao universo do bumba-meu-boi
maranhense.
35
Ele afirmou ainda (2007):
As pessoas procuram para eu dar o nome nas caretas. Eu sempre digo:
“quem dá nome nas caretas é quem olha”. Você pode dizer assim: “isso aqui
parece com uma onça”. Outra não: “isso aqui parece com uma raposa”. As
caretas que estavam lá (no museu), um disse que era feia, outro disse que era
horrorosa, um disse que era bonita, um disse que era um macaco. Quem bota
nome nas minhas caretas só pode ser a pessoa que olha. Eu tenho um amigo
que diz: “tu fazendo careta pros outros”. Eu digo: “só eles é que
sabem quem é a careta, eu não sei. Que eu coloco em mim, mas não estou
vendo”.
Da perspectiva de Abel, o cazumba e sua careta parecem não ter contornos óbvios.
Assemelhar-se-iam a um algum animal, mas não se sabe qual é. Poderiam ser um homem
também. Abel parece apontar para o fato de que o cazumba e sua máscara não têm um sentido
que possa ser explicado a partir de nossos referenciais mais básicos, talvez sejam algo que não
faz parte do mundo comum.
36
2. CAPÍTULO 1 - O BOI DA FLORESTA E SEUS CAZUMBAS
Em São Luís do Maranhão (figura 5, p.37) existem em torno de 200 grupos de boi
segundo cadastros realizados pelas fundações municipal e estadual de cultura (CARVALHO,
2005). Nessa diversidade de grupos, o que nos interessa é o Boi da Floresta. Este grupo tem
como líder Apolônio Melônio, que fez 91 anos de idade em julho de 2009. Apesar de idoso e
com problemas de saúde, ele ainda é bastante atuante no Boi da Floresta. Migrou da cidade de
São João Batista, na Baixada maranhense, para São Luís em 1939, e trabalhou durante muitos
anos como estivador. brincou em outras turmas, mas teve dificuldades com outros
parceiros, decidindo criar, na década de 1970, o Boi Turma de São João, conhecido como Boi
da Floresta, que mantém até hoje. O grupo faz ainda apresentações de tambor de crioula,
manifestação bastante popular no Maranhão, que costuma dividir mulheres e homens entre as
funções de dança e manipulação de instrumentos musicais percussivos, respectivamente.
13
O nome Boi da Floresta alude à localização da sede do grupo na região da Floresta,
uma área dentro do bairro da Liberdade, em São Luís. Muitos moradores dali, vieram de
regiões do interior maranhense, trazendo consigo as festas e as devoções que vivenciavam por
lá. É um bairro pobre, considerado violento pelos habitantes da cidade. Alguns integrantes do
grupo reclamam que a violência os tem atrapalhado, pois as festas que acontecem na rua, em
frente à casa de Apolônio, estariam sendo feitas com certa dose de insegurança.
Muitos dos fundadores do grupo vieram da Baixada maranhense. Não apenas os
fundadores, mas também várias pessoas que migraram daquela região posteriormente à
fundação do Boi da Floresta se juntaram ao grupo por se sentirem identificados com as
pessoas e os modos de brincar dali. Mas este boi o é formado apenas por pessoas que
vieram da Baixada; existem integrantes de outras partes do Maranhão, originários de São Luís
e até de outros estados brasileiros.
13
Para saber mais sobre tambor de crioula, ver o trabalho Tambor de Crioula: Ritual e Espetáculo, organizado
por Sérgio Ferretti. Normalmente, nesta brincadeira, veem-se mulheres com saias longas dançando em roda ao
som de tambores tocados por homens.
37
Figura 5: Mapa mostra no alto, em vermelho, o município de São Luís, capital do estado do Maranhão.
Fonte: Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/, 2010
38
O Boi da Floresta tem forte ligação com integrantes da elite política e intelectual local,
tendo relações históricas com José Sarney e sua família, que têm grande influência no
contexto mais geral de realização da festa do bumba-meu-boi no Maranhão. Entre algumas
pessoas das camadas médias intelectualizadas, principalmente entre aqueles que se opõem à
família Sarney, é comum ouvir dizer que esta família ajuda os grupos de boi, mas falam que
fazem isto de forma interessada, almejando obter adesão popular daqueles que gostam da
festa e fidelidade política daqueles que a realizam. Também é dito que os políticos elegem
alguns grupos do bumba-meu-boi como seus preferidos. Por outro lado, é comum afirmar-se,
entre pessoas de grupo socioeconômico semelhante, mas de posição política mais favorável
aos Sarney, que esta família tem um afeto genuíno pelo bumba-meu-boi e seus participantes, e
por isso apoia a festa e as pessoas que a realizam. É muito difícil saber em que medida cada
afirmação é verdadeira ou falsa, mas ambos os pontos de vista evidenciam a existência de
uma relação bastante forte entre esses políticos e o bumba-meu-boi maranhense.
14
O grupo tem também ligação estreita com pessoas das camadas médias e da elite local,
atuantes no campo da cultura popular de São Luís. Um exemplo é Zelinda Lima, já citada, que
tem papel fundamental no grupo e também na história mais ampla da cultura popular
maranhense. Trabalhando no governo do estado com José Sarney desde a década de 1960, foi
uma das responsáveis pela inserção dos grupos de bumba-meu-boi nos circuitos de
apresentação turística. Desde o início, Zelinda apoiou Apolônio, estimulando-o. Apolônio
relatou que foi Zelinda quem mais recentemente o estimulou a convidar pessoas mais novas
para ingressarem no grupo:
A partir de conversas com Dona Zelinda Lima, percebemos a necessidade de
envolver jovens da comunidade do nosso bairro; então, começamos a
convidar as crianças e os adolescentes para participarem do grupo.
Atualmente estamos trabalhando com cerca de 50 jovens e o resultado vem
sendo compensador (LIMA, 2008, p.85).
Durante o trabalho de campo, percebi que o grupo vivia um momento delicado.
Apolônio estava doente e idoso e conversava-se sobre quem iria substituí-lo, caso viesse a
falecer. Nadir, sua esposa, bem mais nova que ele, realizava algumas funções que eram
anteriormente atribuições do esposo. Apolônio disse em entrevista (fevereiro de 2009) que as
duas herdeiras da turma
15
eram Nadir e Maria, sua cunhada, que ele e seu irmão que é
14
Seria preciso realizar um trabalho mais aprofundado sobre a questão para entendê-la melhor, mas como esta
pesquisa se concentra mais no cazumba e sua careta, fica aqui o registro do assunto para ser pesquisado em outra
ocasião.
15
Modo de se chamar um grupo de bumba-meu-boi.
39
falecido eram os maiores responsáveis pela criação do grupo. Maria atuava no grupo
confeccionando indumentárias para os brincantes e também participava da organização mais
geral da festa, estando sempre na sede do Boi da Floresta. No entanto, Apolônio colocou na
mesma entrevista que gostaria que outros participantes antigos da turma se envolvessem na
sua liderança, como Mundoca (cantador) e Candido (cazumba). Apolônio se disse inseguro
com os rumos do grupo na sua ausência, pois alguns quesitos da preparação e da execução da
festa só eram dominados por ele.
Nadir é um personagem muito importante para o Boi da Floresta. Em entrevista
(janeiro de 2009), ela contou que o boi sobrevive das apresentações contratadas, ou pelo
governo ou por turistas. Atualmente, com a ajuda de Juliana Manhães,
16
atriz e pesquisadora
de cultura popular, começou a escrever projetos culturais com vistas a captar recursos junto a
financiadores. Até aquele momento esta era uma prática pouco comum entre outros grupos.
Nadir também está envolvida com atividades políticas ligadas à cultura no bairro. Ela é
formada em turismo pela faculdade privada São Luís, o que não é recorrente entre outros
dirigentes de grupos de boi. Sua formação talvez contribua para que ela atue de maneira
diferenciada.
O grupo tem em torno de 130 integrantes, a maioria deles provindos das camadas
populares, que se dividem entre os diferentes personagens. O Boi da Floresta cobre os custos
da indumentária de todos os participantes da brincadeira. Sua sede funciona na casa de
Apolônio e Nadir. A sede pode ser descrita tendo basicamente três espaços: a casa, o
barracão e o pátio. O terreno está num declive. Na parte alta, de frente para a rua, está
localizada a casa, onde moram Apolônio, Nadir e as duas filhas, que foram frutos deste
casamento. É uma residência simples, com dois quartos. Voltada para a rua está a sala, onde
Apolônio passa a maior parte do dia e recebe seus convidados (figura 6, p.41). Há um
corredor do lado de fora da casa que leva a uma escada, pela qual se chega ao barracão. Ali
acontecem diversas atividades: são guardadas as indumentárias da festa, realizados os ensaios
do grupo, feitas as rezas das apresentações que acontecem na comunidade e ministradas
oficinas culturais.
16
Juliana foi muito importante para a minha pesquisa. O Boi da Floresta e Abel me foram apresentados por
intermédio dela e de sua mãe, a psicanalista Elisabeth Bittencourt, que também é muito ligada ao grupo.
Elisabeth é amiga de longa data de minha família e sempre nos falava do grupo e de Abel e, assim, fez crescer
dentro de mim o interesse em conhecê-los mais. Aprofundarei a respeito de sua trajetória no capítulo 3,
intitulado “A circulação de Abel e da careta fora da festa”.
40
As rezas são feitas em frente a um altar que tem alguns santos, entre eles, São João,
padroeiro da festa. De frente para o altar estão localizados os bois artefatos do grupo (figura 7,
p.41). Os bois ficam ali durante o ano esperando o momento para brincar. Saindo do
barracão, usa-se a mesma escada com a qual se chegou até ali e segue-se até a parte mais
baixa do terreno. Chega-se então a um pátio. Neste local, nos dias de festa, a comida é
preparada para os brincantes. Durante os festejos este espaço abriga ainda um pequeno bar
que vende bebidas, os banheiros e a caixa de som que anima os presentes nos momentos em
que não se está brincando boi.
No Boi da Floresta existe um número flutuante de cazumbas. Segundo Candido,
considerado o chefe dos cazumbas,
17
neste grupo atualmente em torno de 20 cazumbas
atuantes. O fato de o mero de pessoas que brincam na representação deste personagem ser
variável explica-se por uma característica intrínseca a ele, que é mais livre que alguns dos
demais. As pessoas que desempenham o papel de cazumba podem brincar numa apresentação
e na outra não, num ano sim, e no outro não. A tribo de índio, por exemplo, que tem atuação
coreografada, ensaios regulares antes da apresentação, parece necessitar de mais compromisso
dos brincantes com a festa. Para que a ação ritual dos índios seja eficaz, é preciso que haja um
grupo estável de brincantes com ação coletiva padronizada nas apresentações.
17
Modo como é chamado o líder do grupo de cazumbas, responsável por cuidar para que a apresentação ocorra
de maneira satisfatória.
41
Figura 6: Apolônio Melônio em sua sala, recebendo convidados (Jandir Gonçalves e Beto Matuck)
em dia de festa, no dia 23 de junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 7: Barracão da sede do Boi da Floresta. Boi do grupo em frente ao altar. Foto de minha autoria,
produzida em novembro de 2008
42
Abel é um cazumba com grande importância dentro do grupo, reconhecido
principalmente por sua produção de caretas. Ele vendeu muitas máscaras ao grupo e
lecionou numa oficina de produção destes objetos para crianças e jovens da comunidade onde
o grupo Boi da Floresta tem sede. Também é responsável por trazer para o grupo pessoas das
camadas médias para a realização de pesquisas ou para brincar, contribuindo para que o Boi
da Floresta se torne mais heterogêneo do ponto de vista sociocultural. A vinda de pessoas de
outros âmbitos sociais traz certo prestígio ao grupo e, portanto, Abel é valorizado por isto. No
entanto, Abel tem se afastado do Boi da Floresta. Sente-se desprestigiado, e uma de suas
reclamações é a de que não o deixam cantar. Segundo ele, falam ali que cazumba não canta,
mas ele diz que na região da Baixada, de onde migrou, esta proibição não existia.
2.1. Festa em dois tempos: São Jo e Morte do Boi
O ciclo festivo do Boi da Floresta desenrola-se entre os meses de março/abril e
setembro. Suas atividades se iniciam com os ensaios do grupo realizados a partir do que é o
último dia da Semana Santa no calendário religioso católico. Pelo fato de o Sábado de Aleluia
ser uma data móvel, não é possível dizer com precisão em que dia do ano ele acontece. O
último ensaio, antes do período junino propriamente dito, é chamado de ensaio redondo e
ocorre no dia 13 de junho, dia dedicado a Santo Antônio.
No dia 23 de junho acontece o batizado, evento no qual o boi, artefato em torno do
qual se faz a brincadeira, é habilitado simbolicamente para brincar. No ritual ocorre uma reza
e o boi é batizado na sede do grupo por sua madrinha e seu padrinho.
18
Segundo Carvalho
(1995), “esse ato religioso decorre da necessidade de abençoar o começo da vida pública
anual do bumba” (p.112). O dia do batizado é véspera do dia de São João, que é padroeiro da
festa. A partir deste dia, o boi se apresenta normalmente até o final de julho.
Durante os meses de junho e julho o grupo é contratado para brincar em espaços
públicos por toda a cidade de São Luís e recebe pagamento do governo para tal. Por noite, vão
a mais de um local e se apresentam para grande público, que inclui moradores da cidade,
pessoas provindas de outras partes do estado, assim como turistas brasileiros e estrangeiros.
18
A madrinha e o padrinho são normalmente pessoas da comunidade ou influentes econômica ou
simbolicamente na cidade, no estado etc.
43
Também é possível se apresentarem durante o São João na porta da casa de alguém que os
tenha convidado para ir lá ou no bairro de alguma pessoa importante para o grupo (figura 8, p.46).
Em setembro, o Boi da Floresta costuma encerrar seu ciclo festivo com a Morte do
Boi, uma festa feita no bairro da Liberdade, sede do grupo.
19
Nesta festa, de cunho mais
comunitário, é encenada a morte do boi pelo grupo. especificidades nesta brincadeira que
a diferenciam daquelas feitas durante o São João.
Como visto, o calendário organiza eventos que estão relacionados simultaneamente a
um tempo religioso, a etapas mais ritualizadas da festa, com cunho mais comunitário, e a
outro mais comercial, que tem ligação com a contratação de apresentações para um público
mais amplo. Não pude participar dos ensaios preparatórios do grupo realizados entre a
Semana Santa e 13 de junho, mas estive presente nos dois principais momentos festivos do
ciclo anual do grupo: o São João e a Morte do Boi, que descrevo a seguir.
2.1.1. o João: o peodo junino
Segundo alguns brincantes do Boi da Floresta que foram entrevistados, o período
junino vai do dia 23 de junho, quando o boi é batizado, até o dia 29 de junho (dia devotado a
São Pedro). O período de apresentação mais intenso seria este, mas antes do batizado o grupo
se apresenta em arraiais pela cidade e também ocorrem apresentações durante todo o mês
de julho no Vale Festejar. Essas apresentações em julho são para os moradores de São Luís e
também para turistas, pessoas de outras partes do Brasil que saem de férias no mês de julho,
época de recesso escolar.
Segundo Albernaz (2004), a partir da década de 1970, os grupos de boi de São Luís
foram incluídos em circuitos de apresentações turísticas. A criação dos diversos arraiais pela
cidade e a instituição do pagamento de cachês por conta das apresentações seriam obra de
organizações governamentais relacionadas ao campo do turismo.
20
19
Quase não existem apresentações depois da Morte do Boi, mas se alguém contratar uma exibição do grupo,
eles a realizam.
20
Sobre a inserção do bumba-meu-boi maranhense em circuitos de apresentações turísticas, ver também
Carvalho (1995).
44
Pude ouvir de algumas pessoas durante o trabalho de campo, principalmente de
integrantes das camadas médias, que a inserção dos grupos de boi em circuitos de
apresentação turística era negativa. Alegava-se que desta forma seriam modificados aspectos
“tradicionais” da festa. No entanto, é possível ver essas transformações a partir de outra
perspectiva. Cavalcanti (2000) diz que estas indicariam a imensa capacidade de reinvenção
das festas populares. Neste mesmo texto, ao analisar o “Boi-bumbá” de Parintins, a autora
elabora reflexões que podem ser estendidas ao bumba-meu-boi. Ao invés de condenar as
mudanças ocorridas neste folguedo, ela as vê como “um exemplo extraordinário da
capacidade de transformação e da atualidade da cultura popular no Brasil” (p.2). Cavalcanti
argumenta que o Bumbá” de Parintins seria um processo ritual amplo, articulando aspectos
culturais e acompanhando o movimento da sociedade na qual está inserido.
Cheguei no Maranhão no dia 21 de junho de 2009, período anterior, portanto, ao
batizado. Fui à casa de Apolônio algumas vezes e me inteirei das preparações para aquele São
João. Entre outras atividades, o grupo estava ocupado em preparar as indumentárias dos
personagens e empenhado em fazer os últimos acertos para que tudo ficasse pronto antes das
apresentações.
Pude assistir a algumas apresentações em arraiais antes do batizado. Eles vão de
ônibus para as apresentações. Dentro do ônibus os brincantes tocam instrumentos e cantam;
também vão junto com o grupo, além das pessoas que se apresentam, outras da comunidade
que querem participar do evento. Normalmente são dois ônibus. No primeiro, seguem Nadir e
outras pessoas importantes do grupo. Neste ônibus também vai o boi do grupo, que é
colocado na parte da frente do veículo, o que pode demonstrar o lugar de destaque do boi para
a festa. Os demais integrantes seguem no outro.
Normalmente, nas apresentações nos arraiais, os cazumbas são os primeiros
personagens a entrar na roda. Logo atrás vem a tribo de índios, composta de jovens que
dançam de maneira vigorosa uma coreografia. Os cazumbas e a tribo de índios dançam em
círculo e, no meio da roda formada, brincam: o boi e seu vaqueiro, Pai Francisco, Catirina, a
onça, a burrinha e outros personagens. Atrás da roda, em semicírculo, estão os baiantes, os
músicos e cantadores, entre eles, o amo. A apresentação se desenrola pautada pelas diferentes
toadas, que são as músicas próprias do bumba-meu-boi. O público reage positivamente à
apresentação como um todo, batendo palmas. Ao final, os espectadores são convidados a
entrar na brincadeira para dançar uma música. Este é um momento em que o público faz
45
muitas fotos, mesmo que durante quase toda a apresentação fotografias e filmagens
aconteçam.
Nas apresentações nos arraiais, os cazumbas dançam com seu jeito característico que
faz rir mexendo suas grandes nádegas, que são formadas por cestas de palha colocadas na
parte traseira dos brincantes. Existe um padrão no jeito de dançar, mas cada um tem uma
especificidade na maneira de fazê-lo. Os cazumbas levam um sino na mão e com suas caretas
assustam algumas crianças, mas chamam a atenção pela estranheza e beleza. Percebi a
existência de uma grande heterogeneidade de estilos de careta no Boi da Floresta (figura 9, p.46).
O batizado, no dia 23 de junho, é um momento importante para o grupo. Neste dia o
boi do grupo passará por um ritual que o habilitará simbolicamente a brincar naquele ano.
Será inaugurado então o couro do boi, que é um tecido bordado, colocado no dorso do boi,
representando seu couro. No ritual é feita uma brincadeira dentro do barracão; depois,
uma reza defronte do altar; o boi é batizado por sua madrinha e seu padrinho; finalmente, sai
para brincar na rua, em frente à casa de Apolônio.
46
Figura 8: Apresentação do grupo Boi da Floresta em arraial no bairro Saviana, em São Luís,
no dia 03 de julho de 2009. Apresentação feita no bairro de um integrante com prestígio
dentro do grupo, um cantor apelidado Saviana. Foto de minha autoria
Figura 9: cazumbas do Boi da Floresta em apresentação no arraial Ceprama, em São Luís, no
dia 21 de junho de 2009. Foto de minha autoria
47
No dia 28, véspera do dia dedicado a São Pedro, os grupos de boi vão até a capela de
São Pedro para serem abençoados pelo santo. Em 2009, Apolônio foi junto com o grupo. Ele,
que estava bem fragilizado, quase não ia às apresentações, fora situações especiais. Neste dia
tinha ido porque a visita seria à capela de São Pedro, evento que ele valoriza muito, por toda a
sua ligação com o universo religioso/festivo maranhense.
No ano de 2009, antes de ir à capela, o Boi da Floresta apresentou-se em frente à casa
de uma amiga do grupo. No passado, a maioria das apresentações era feita na porta das casas
das pessoas, mas depois da implementação dos arraiais cada vez menos apresentações deste
tipo foram feitas. O grupo costuma apresentar-se diante da casa de pessoas que têm alguma
importância para ele, cujo pedido não deve ser recusado. Neste dia fizeram uma apresentação
em Cohaserma, em frente à casa de Santinha, que já organiza esta festa há 10 anos. Ela é dona
do armarinho no qual Nadir compra miçangas e canutilhos. Percebo que, dependendo do
contexto em que é feita a apresentação, ela se modifica. A festa que acontece diante da casa
de Santinha um espaço mais livre, na rua é diferente daquela que ocorre no arraial, que
tem mais características de espaço cênico, que separa de forma nítída o público e os
integrantes do grupo. Nestas apresentações em frente à casa das pessoas, os personagens
cômicos, como o Pai Francisco, a Catirina, a burrinha e o cazumba, interagem mais com o
público.
No dia 30 de junho, noite na qual não estavam previstas apresentações para o Boi da
Floresta, fui assistir ao Boi de Santa Fé, cujos fundadores também tinham ligações com a
Baixada maranhense. Este grupo apresentava-se num arraial como uma das atrações da noite.
encontrei alguns integrantes jovens do Boi da Floresta. O grupo tem um cronograma
intenso durante o São João, atuando quase todas as noites, porém, quando não tem uma
apresentação, é comum ir assistir a outros bois nos arraiais. Entre os que ali estavam,
encontrei Taliane, filha de Apolônio. Conversamos muito e ela me disse que as máscaras
desse grupo são as torres. Segundo ela, o diferencial do Boi de Santa é que eles trazem
brincantes do interior para o grupo e estes produzem as tais torres, e que o Boi da Floresta
não usaria muito as torres porque não possuem bastante artesãos que saibam fazê-las.
Atualmente, apenas o modo como o cazumba Nilson faz as caretas, em isopor, permite
manufaturar as torres. Ela disse ainda que os cazumbas Benedito e Charles estariam
preparando uma torre, que teriam aprendido a fazê-la com Nilson, para sair no Vale festejar.
Taliane falou ainda que o Boi da Floresta e o Santa Fé eram os melhores grupos da Baixada.
48
Esse encontro com Taliane e outros membros do Boi da Floresta na apresentação do
Boi de Santa permite que indiquemos algumas questões para reflexão. A primeira é a
rivalidade entre estes dois grupos, que são considerados como do sotaque da Baixada. O
segundo ponto que eu gostaria de mencionar é o lugar de destaque da máscara na produção
desta rivalidade. O Boi da Floresta sente-se em desvantagem por não ter as torres e tenta se
habilitar para produzi-las. Uma última questão se refere ao fato de o interior ser um polo de
influência sobre a capital do estado, definindo aquilo que é mais ou menos valorizado. Na
relação centro e periferia, é mais comum vermos o primeiro agir com mais influência sobre o
segundo e, na situação apresentada, a subversão desta tendência. A relação intensa com o
interior por parte dos integrantes do Boi da Floresta talvez esteja relacionada ao fato de este
boi construir sua noção de grupo fazendo forte referência ao lugar de origem de muitos de
seus integrantes, justamente no interior.
Em julho começam as apresentações do Vale Festejar. Este é o arraial que é
produzido com mais recursos financeiros, que é financiado pela mineradora Vale do Rio
Doce. Algumas características do evento o diferenciam dos realizados nos demais arraiais: é
um dos poucos espaços em que os brincantes se apresentam num palco e que uma plateia
com cadeiras; existe um sistema de iluminação para as apresentações; todo um aparato de
profissionais atua ali; e os brincantes entram por uma porta diferente daquela que o público
entra e são vistos pela plateia quando estão no palco. Ou seja, ali é o espaço que mais se
assemelha a um teatro em relação aos lugares em que o grupo atua. Ali também é um espaço
que tem grande prestígio social entre as mais diversas camadas socioculturais de São Luís.
A apresentação se modifica dependendo do contexto em que ela é feita. No Vale
Festejar o grupo atua com grande entusiasmo, pois se sente bastante valorizado ali. Seu
Apolônio subiu ao palco na primeira apresentação que aconteceu lá, o que ele quase nunca faz
devido à idade avançada. Muitos cazumbas usaram ali a máscara pela primeira vez. Benedito,
por exemplo, saiu pela primeira vez como cazumba no Vale Festejar e pôde exibir sua torre.
Charles, também, que quase nunca sai como cazumba, apresentou-se então com sua torre.
Durante as apresentações em outros locais, os cazumbas tiraram muito a careta. No Vale
Festejar, os cazumbas pouco tiraram a careta. Parece que ali o compromisso com a atuação é
mais intenso.
49
2.1.2. A Morte do Boi
Ao voltar para um período de pesquisa em setembro de 2009, pude acompanhar os
preparativos para a festa da Morte do Boi e o seu desenrolar, assim como realizar diversas
entrevistas com brincantes. Nestas entrevistas ouvi muitas comparações entre a festa realizada
no São João e na Morte do Boi. Deilson (setembro de 2009), que atua na tribo de índios do
Boi da Floresta, comparou as duas:
[A festa da Morte] é um período bom; revê os amigos, revê o povo do boi.
Época boa de se divertir, arrumando o barracão na maior expectativa. O
período que a gente mais se sente alegre é a morte. Eu estou mostrando para
o meu povo, o povo da minha rua, do meu bairro, como é o boi, para que
viemos, porque estamos aqui. Mais alegre, momento de não muita seriedade.
Como tenho cargo de comando, quase não brinco no São João, é muita
técnica, muito passo, tem que prestar atenção. Eu brinco, me alegro, me
divirto, mas é mais atenção do que brincadeira. Na Morte, Magno solta a
tribo, é cada um por si. Fazemos a coreografia certa, sem muita técnica, sem
muita seriedade, mais para o lado da brincadeira.
Esta fala de Deilson é representativa daquilo que ouvi de outros brincantes da festa. É
comum enfatizar-se o caráter mais comunitário e livre da festa da Morte em contraposição ao
São João, no qual os integrantes do grupo, participando ativamente do circuito local, se
exibem para pessoas que não conhecem a exibição e devem se submeter às regras técnicas da
apresentação. Não senti, no entanto, que preferem um momento ao outro; o São João é
também visto muito positivamente porque é um momento no qual se tem um reconhecimento
social mais amplo por aquilo que é executado.
Dá muito trabalho preparar toda a festa. Nadir e Apolônio financiam toda a festividade
e aqueles que ajudam a prepará-la costumam receber ajudas em dinheiro. Como a maior fonte
de recursos do grupo provém do pagamento de apresentações que fazem no São João,
21
Nadir
e Apolônio costumam guardar parte do dinheiro recebido no período junino para realizar a
Morte do Boi. Assim, é o São João que financia a festa da Morte. Entre os gastos está o
fornecimento de toda a alimentação daqueles que participarão das festividades, e naquilo que
é comprado está um boi (animal), que é morto na sede do grupo para alimentar os
brincantes.
22
21
Os cachês costumam ser recebidos do governo do estado e do município.
22
Sobre a morte de um boi para a alimentação dos brincantes durante a festa, esta é realizada em uma
madrugada dos dias que antecedem a festa por alguns integrantes do Boi da Floresta.
50
Maria Michol Carvalho (1995) realizou na década de 1980 pesquisa sobre o bumba-
meu-boi em São Luís, aprofundando dois casos: o Boi da Floresta (objeto deste estudo
também) e o Boi de Maracanã. Problematizou a questão da tradição e da modernidade na
brincadeira e realizou uma comparação entre dois momentos distintos do ciclo de vida dos
grupos de boi em São Luís do Maranhão: o primeiro ela chamou de “boi espetáculo”, teria
natureza mais comercial e espetacular e estaria relacionado ao São João, e o segundo chamou
de “boi doméstico”, teria natureza mais comunitária e religiosa e estaria relacionado à Morte
do Boi. Sua conclusão ajuda a pensar a relação de interdependência entre os dois períodos
festivos, que ela mostra que as apresentações do São João do “boi espetáculo” ajudam a
provir economicamente o “boi doméstico” na Morte do Boi.
A festa da Morte do Boi no Boi da Floresta dura uma semana, de um sábado ao outro
domingo, e ocorre normalmente no final de setembro. Neste ano começou no sábado, dia 26
de setembro. Na primeira noite, o boi sai para brincar pelas ruas do bairro, parando em frente
à casa de pessoas amigas. Brinca até de manhã, quando é servido um cozidão na sede do
grupo.
51
Figura 10: Mourão fincado em frente à sede do Boi da Floresta, no dia 27 de setembro de 2009,
durante a festa da Morte do Boi. Foto de minha autoria
52
No próximo dia, no domingo, ocorrerá o primeiro ritual da Morte do Boi, chamado
Morte de domingo. Neste dia, as pessoas chegam à sede por volta das 4h da tarde e vão buscar
o mourão. Ele é um tronco de árvore que é cortado e limpo, não sendo retirada a maioria dos
galhos, e é todo enfeitado com fitas coloridas. Durante a festa ele será fincado no chão e
representará a árvore na qual o boi é amarrado para ser morto (figura 10, p.51). A preparação
do mourão nos leva a pensar nos processos de simbolização, que tudo que é utilizado na
festa tem seu sentido comum alterado. Como se trata de um uso ritual, aquilo não é apenas
uma árvore comum onde se amarra o boi, mas sim uma árvore ritual que é investida de um
grande trabalho de elaboração simbólica. Maria, cunhada de Apolônio, é quem prepara o
mourão com a ajuda de outros integrantes do grupo em sua casa. Então, no domingo, o grupo
vai brincando boi até buscar o mourão, num bairro próximo. Voltam também brincando e
começa assim o ritual da Morte do Boi. Depois, todo mundo entra no barracão para rezar, e é
servido o jantar, seguido de seresta.
No dia seguinte, segunda-feira, o outro ritual de Morte do Boi, que é chamado de
Morte dos Cazumbas. O ritual começa no final da tarde, quando saem da sede para buscar o
mourão dos cazumbas na casa de Candido, chefe dos cazumbas. Ao final, depois que o boi é
morto, vão para o barracão rezar. Após a reza ocorre outro jantar. A programação do dia se
encerra com uma apresentação musical, que pode ter os estilos mais variados (seresta, pagode,
dança portuguesa etc.). Os grupos que se apresentam costumam ser do bairro no qual o Boi da
Floresta tem sede.
Na terça-feira o mourão é derrubado e são distribuídos cinco bolos aos brincantes.
Durante a semana, toda noite são realizadas diferentes atrações culturais. No outro sábado, de
noite, é feito um tambor de crioula. Durante o sábado as cozinheiras preparam bolo de tapioca
para distribuir aos participantes. O tambor vai até de manhã. Por volta das 2h da tarde do dia
seguinte é servido um almoço, e depois é feita a festa das cozinheiras para comemorar o final
da festa da Morte do Boi.
A festa da Morte do Boi marca, assim, o encerramento de um ciclo de atividades do
grupo. Em estudo realizado na década de 1970 sobre o bumba-meu-boi na Baixada Ocidental
maranhense, Prado afirmou (2007):
O conjunto de brincantes e simpatizantes daquele boi se reúne, pela última
vez, para celebrar um sacrifício da separação de uma união tecida através de
53
vários meses. E o objeto primeiro do ritual é justamente a consagração desta
aliança por meio do holocausto e manducação da vítima que os manteve
congregados: o novilho reprodutor (p.221).
Mesmo que Prado tenha pesquisado a festa em outro momento histórico e social, no
qual a Morte do Boi marcava de forma mais intensa o encerramento de um ciclo, sua fala
ajuda a entender a experiência do Boi da Floresta. Embora este grupo esteja inserido num
circuito de apresentações turísticas, no qual existe a possibilidade de ocorrerem algumas
apresentações depois da Morte, também ali esta festa marca simbolicamente o fim do ciclo
festivo. Ao sacrificar o boi, este grupo festeja sua união e, ao mesmo tempo, despede-se até o
próximo ano.
Como foi dito, o ritual da Morte do Boi realiza-se em dois dias consecutivos. A festa
da Morte do Boi acontece durante vários dias consecutivos, mas o ritual da Morte ocorre
apenas em dois dias. Os brincantes me contaram que, antigamente, o ritual era realizado só no
domingo, mas que as torcedoras integrantes do grupo que ajudam na preparação da festa
resolveram fazer outra Morte do Boi na segunda-feira. O dia começou sendo delas, mas
paulatinamente os cazumbas foram se apropriando dele e o ritual passou a ser chamado de
Morte dos Cazumbas.
Os brincantes costumam comparar os dois dias em que acontece o ritual da Morte do
Boi. Deilson (setembro de 2009) compara esses dois dias, pensando a questão de maneira
interessante:
É diferente porque um é o Mourão dos cazumbas e o outro, do boi. A gente
agita mais na segunda porque não estamos amanhecidos. É mais alegre;
domingo estamos todos mortos, a morte do boi não é muito animada. Mas dá
para levar, conseguimos matar o boi, dorme, e amanhã, que é segunda-
feira, iremos matar outro boi e pegar Mourão dos cazumbas. Pessoal es
com energia para retornar a gastar.
O fato de segunda-feira ser a Morte dos Cazumbas também tem consequências para o
desenrolar da festa. Raimundo Nonato (setembro de 2009), que é o Pai Francisco do grupo,
fala sobre isso:
Tem uns que acham o boi de domingo mais sério e o de segunda mais
bagunçado, cheio de molecagem, porque o boi é dos cazumbas, e cazumba é
feiticeiro, cheio de arte, às vezes laça o boi e ele solta. É quase a mesma
coisa, mas tem um pouco de diferença. Ele é mais desorganizado. Chega um
esperto e solta o boi; se deixar na mão do cazumba, esse boi não morre. Fica
todo tempo nesta brincadeira. Vem a madrinha, todo mundo respeita, ela
leva para o mourão e encerra a brincadeira.
54
Descrevo a seguir a Morte dos Cazumbas, que pode nos ajudar a entender os sentidos
deste personagem no Boi da Floresta. Na segunda-feira, depois que chegam os integrantes
indispensáveis à realização da festa, o grupo sai para buscar o boi que está sendo preparado na
casa de Candido, chefe dos cazumbas. Vão brincando até lá, pegam o boi e voltam para frente
da casa de Apolônio. Ali começará o ritual da Morte do Boi. O ritual consiste numa
brincadeira como as outras, em que se cantam toadas, tocam-se os instrumentos e dança-se; a
diferença é que será encenada a morte do boi.
O boi começa brincando solto. Depois de um tempo, é enlaçado pelo vaqueiro que
deseja levá-lo para o mourão, para ali “matá-lo”. A participação do cazumba começa aí,
que este personagem é um dos responsáveis por soltar a corda que prende o boi. Quando o boi
é solto, ele corre enfurecido”, fugindo de ser “morto”. Ele chega mesmo a bater em outros
personagens, como o cazumba, a burrinha e a onça, que são aqueles que fazem mais
travessuras no ritual de Morte do Boi. O boi é enlaçado novamente e mais uma vez alguém o
solta. Ele é preso e solto diversas vezes, até que a madrinha do boi o pega pela corda que está
presa ao seu pescoço e ele vem “manso até o mourão, onde é enfim “sacrificado”. Abel
(setembro de 2010) contou que, em outras épocas, o boi-artefato era todo desfeito neste
momento.
23
Atualmente, encenam com uma faca que estão matando o boi e, em seguida, é
servido um vinho que simboliza seu sangue.
Sobre o sentido deste ritual, Herbert (setembro de 2009), de 14 anos, que saiu como
onça na Morte, deu sua explicação: “acontece que todo boi tem que morrer, vai para o
mourão, aí fica na saudade”. O jovem parece revelar o aspecto contingencial da Morte do Boi;
talvez seja possível pensar que, encenando a Morte do Boi, o grupo possa refletir sobre a
própria inexorabilidade da finitude humana. Ao mesmo tempo, proferindo em seguida a
expressão “aí fica na saudade”, ele parece dizer que esta é uma experiência que gera nostalgia,
mas também permite que os indivíduos do grupo recuperem dentro de si um grande desejo de
“brincar boi” no próximo ano.
No ritual da Morte existem alguns personagens que atuam no sentido de matá-lo e
outros não. O cazumba tem atuação ambígua: às vezes retira a corda que prende o boi no
mourão e, outras vezes, ajuda o vaqueiro a enlaçar o boi. Herbert atuou como onça na Morte
23
Sobre o ritual no qual se desfaz o boi-artefato, ver Elisene Matos (2010). A autora realizou em sua dissertação
de mestrado na área de ciências sociais uma etnografia acerca da atuação do personagem cazumba, no município
de Penalva, na região da Baixada maranhense, trazendo informações relevantes sobre o ritual da Morte de
esbandalhar.
55
do Boi, mas até aquele momento sempre saíra como cazumba; por isso indaguei-o se este
personagem deseja ou não que o boi morra. Ele disse: “Sim e não. Cazumba às vezes é
traiçoeiro”.
Sobre a atuação dos cazumbas na Morte, pude perceber que as crianças que
interpretam este personagem se destacaram no evento. Junto com as burrinhas e a onça
fizeram uma série de travessuras durante a festa. A brincadeira mais comum era correr atrás
dos meninos do bairro, constantemente se separando do grupo. Os cazumbas mais velhos
tendem a não reclamar deste tipo de atitude, pois ela está dentro do repertório de
possibilidades do personagem. Porém, em algumas situações, aqueles que têm mais
experiência repreendem os mais jovens, pois apesar deste personagem ser livre e travesso,
existem regras para o seu exercício.
É comum a utilização de diferentes máscaras do cazumba por parte dos brincantes do
grupo, dependendo do contexto em que se brinca. As caretas menores são as preferidas para a
Morte, já que é um momento no qual o cazumba se expressa corporalmente com mais
intensidade, e uma máscara grande atrapalharia a atuação ritual. A maioria das pessoas usa as
caretas pequenas, mas existem aqueles cazumbas que aproveitam a Morte do Boi para exibir
suas máscaras grandes, as torres, muito atraentes visualmente. Mas esta exibição tem curta
duração, já que não é muito fácil acompanhar a brincadeira com ela.
2.2. Sobre cazumbas e caretas no Boi da Floresta
Para refletir acerca dos sentidos da careta, é necessário debater sobre o cazumba na
festa, que os sentidos da máscara no contexto festivo se realizam de forma mais plena
quando esta está em ato, ou seja, quando compõe o personagem em sua atuação nos diferentes
contextos festivos.
2.2.1. Cazumbas no Boi da Floresta
Sobre o ingresso na atividade de cazumba dentro do grupo, a maioria dos brincantes
me contou que teve o desejo de atuar como o personagem e se dirigiu a Nadir e/ou Apolônio
para perguntar se podia fazê-lo. Pelo que ouvi, Nadir e Apolônio costumam ser receptivos à
entrada de novos integrantes, pedem que os brincantes se comprometam a não sair
56
rapidamente da função, que o grupo tem gastos com a confecção da indumentária que
compõe o personagem. Nestes relatos me chamou a atenção a ênfase colocada pelos
brincantes em ser determinante a vontade de atuar como cazumba para o ingresso na
atividade. Quando perguntei aos brincantes por que escolheram o cazumba como
personagem, muitos deles fizeram alusão ao fato de ele ser “engraçado”, de ter “gostado de
seu jeito de dançar”, de ele ser “uma alegria do boi”. Seu apelo visual também é mencionado
como fator que leva os brincantes a desejarem atuar como o personagem. Alguns cazumbas
assim o fizeram por conta de uma promessa, caso de Fabriciano. Normalmente são os
cazumbas mais velhos que passaram por esta experiência.
Pessoas de perfis diversos atuam como cazumba no Boi da Floresta. Muitos deles são
crianças ou adolescentes, como Mateus, Guilherme, Robert, Gladson, Cleison, Bruno,
Abacate, Janielson, Leilson, Dudu e Herbert. Alguns desses meninos são moradores do bairro
e entraram na brincadeira por ver o grupo brincar desde muito pequenos e/ou porque
participaram das oficinas de produção de caretas oferecidas pelo Boi da Floresta. Também há
aqueles que ingressaram na atividade através de parentes que fazem parte do grupo.
Existem dois cazumbas um pouco mais velhos. São os jovens adultos Charles e
Benedito. Eles são amigos, moram próximo à sede do grupo e compartilham o gosto pelas
torres. Durante os eventos dos quais eu participei, não foram todas as vezes que eles
“brincaram” como cazumba. Eles parecem mais entusiasmados com a confecção destas
máscaras grandes e em exibi-las por um curto período de tempo em momentos especiais,
como a apresentação no Vale Festejar durante o São João.
Creio que a falta de jovens com vontade de brincar como cazumbas talvez se deva ao
fato de a brincadeira de cazumba ter uma característica grupal forte. Grande parte das
brincadeiras feitas pelo personagem é realizada em grupo, como na Morte, quando as
crianças cazumbas vão atrás de outras do bairro. Charles e Benedito não têm um grupo de
jovens adultos com os quais eles se identifiquem e que possam brincar juntos de cazumba, e
acabam perdendo o interesse em brincar o tempo todo. Na verdade, imagino que nem seria
possível brincar de cazumba com outros jovens adultos no bairro, que a comunidade é
muito violenta e a brincadeira do personagem, normalmente transgressora, poderia gerar
conflitos sérios.
Outra característica do personagem é a exploração por parte dos brincantes da
elaboração de sua indumentária. As torres, por exemplo, são muito valorizadas, que dentro
57
do grupo quase ninguém sabe produzi-las. Esse lugar de prestígio direcionado às torres,
somado ao possível gosto de Charles e Benedito pela artesania, talvez ajude a entender por
que a sua atividade fica mais restrita à produção e à exibição das máscaras grandes.
24
Voltando ao perfil dos cazumbas, podemos assinalar a presença de outro subgrupo que
agregaria alguns adultos provenientes das camadas populares. Antonio Sergio, conhecido
como Bigu, era um deles.
25
Tinha 43 anos em 2009 e entrou na brincadeira ainda muito novo,
sendo Abel um daqueles que o introduziram na atividade. Bigu era considerado muito
engraçado pelos integrantes do grupo, um cazumba nato”. O modo como lidava com a
bebida, excedendo-se algumas vezes no seu uso, era menos elogiado. Bigu brincava no Boi da
Floresta quando estava em São Luís, mas como passava alguns períodos na região da
Baixada, brincava por lá às vezes também.
Nilson tem a mesma faixa de idade de Bigu e origem socioeconômica semelhante, mas
uma história bem diferente. Ele ingressou no grupo apenas alguns anos, sendo trazido por
seu cunhado, Hugo, que era cazumba ali. Hugo, por sua vez, fora trazido por Abel para
brincar na turma. Nilson contou (julho de 2009) que seu primeiro interesse pelo personagem
se deu através das caretas: “Hugo fez uma careta de papel machê. que amoleceu. E eu
disse que fazia e não amolecia. Aí eu consegui fazer, não amoleceu e fui dançar com ela”.
Também está neste subgrupo Zilmar, que ingressou no boi durante o período em que
eu realizava minha pesquisa de campo. Ele veio de outro grupo de bumba-meu-boi, que é do
sotaque intitulado baixada, o Boi de Pindaré. Ele contou (julho de 2009) que se tornou
cazumba depois que viu o Boi de Pindaré brincar na capela de São Pedro. Ele o é um
migrante da região da Baixada, tendo nascido em São Luís. Trocou de grupo porque mora
mais perto da sede do Boi da Floresta do que daquela do Boi de Pindaré.
Outro subgrupo de cazumbas com perfil semelhante é composto por senhores que
migraram da região da Baixada e que fazem parte do Boi da Floresta muitos anos. São
eles: Candido, Abel e Fabriciano. Candido está no grupo desde sua fundação e é considerado
o chefe dos cazumbas. Ele é conhecido por produzir as fardas, que são as vestes do cazumba.
Por sua idade avançada, atualmente se encontra um pouco cansado, seja para brincar, seja
24
Pergunto-me ainda se atuar como cazumba é uma atividade de valor para um jovem adulto. Vejo, por
exemplo, que um espaço valorizado dentro da brincadeira para esse grupo geracional é entre os músicos, onde
por sinal, Charles atua também.
25
Bigu faleceu em março de 2010, enquanto esta pesquisa era realizada.
58
para produzir as batas, ou mesmo para exercer sua função de liderança entre os cazumbas. No
entanto, é muito valorizado no grupo por tudo o que já fez.
Como dissemos, Abel chegou ao Boi da Floresta por via da produção das máscaras e é
conhecido no grupo como “Mestre das Caretas”, ou seja, sua artesania é muito valorizada
neste contexto. Sua projeção social fora do universo dos brincantes do bumba-meu-boi
também é bastante reconhecida no Boi da Floresta.
Fabriciano, conhecido no grupo pelo apelido de “Cai na piscina”, veio do município
de Viana para São Luís em 1976, para se tratar de um problema de saúde. No interior,
começou tocando o instrumento tambor-onça na festa do boi. Ele me contou (julho de 2009)
que, na juventude, passou por uma dificuldade e decidiu fazer uma promessa para São João.
Segundo ele, prometeu ao santo que, caso se livrasse da situação difícil, brincaria como
cazumba por um ano. Tendo recebido a graça, cumpriu o combinado. Depois disso,
Fabriciano continuou atuando como o personagem. Sobre sua permanência no exercício do
cazumba, ele diz: “eu me agradei e até hoje estou brincando”. Ele enfatiza o caráter não-
obrigatório do exercício atual da brincadeira, afirmando que, ao contrário, o faz em virtude de
sua afeição pelo personagem. Ele fala: “não é promessa, é gosto”. Fabriciano não tem
residência fixa em São Luís. Divide seu tempo entre o interior, onde também tem casa, e a
capital. Também não brinca no Boi da Floresta em todas as situações, que gosta muito de
brincar na Baixada. Fabriciano sabe produzir caretas e diz tê-las fornecido para o Boi da
Floresta.
alguns brincantes que compartilham o fato de serem jovens adultos, participarem
de contexto sociocultural distinto da maioria dos brincantes do Boi da Floresta e terem sido
trazidos ao grupo por Abel Teixeira. Eles são: Juliana Manhães, Flávia Moura e Hugo. Juliana
Manhães, como foi dito, é uma jovem atriz e pesquisadora que também atua como o
personagem. Foi uma das primeiras pessoas das camadas médias a brincar no grupo e uma
das primeiras mulheres a atuar como cazumba. Hugo conheceu Abel quando participou de
uma oficina de confecção de caretas com o artesão. Naquela ocasião, apaixonou-se pelo
personagem. Hugo tem uma loja no centro da cidade, onde vende as miniaturas de caretas
feitas por Abel. Flávia Moura é uma jovem paulista das camadas médias que migrou para São
Luís e, chegando lá, apaixonou-se pelo universo da “cultura popular” e pelo personagem
cazumba. Esses brincantes das camadas médias que atuam junto ao grupo são muito
valorizados ali, já que trazem, entre outras coisas, prestígio para o Boi da Floresta.
59
As pessoas chegam das formas as mais variadas no grupo para brincar de cazumba,
provindas de grupos sociais, econômicos e culturais distintos. Isto talvez seja reflexo da
inserção social do grupo no contexto de uma cidade grande, o que faz com que aumentem as
possibilidades de acesso a ele. As portas de entrada são muitas: Abel tem acesso a um
conjunto de pessoas diversificado; a força do grupo no bairro onde está a sede é um grande
chamariz; ainda existem as oficinas; também aqueles que migram do interior e desejam
brincar na capital, assim como aqueles que veem as apresentações nos arraiais e desejam
ingressar na atividade. O Boi da Floresta é receptivo aos novos brincantes, pois isto deixa o
grupo “mais forte” e com mais prestígio.
Menciono ainda uma questão de gênero entre os cazumbas do grupo, que não inclui
nenhuma mulher local. Isto pode estar relacionado a uma compreensão mais geral dos
brincantes do Boi da Floresta sobre os papéis atribuídos ao homem e à mulher. As atividades
expansivas e marginais do cazumba seriam ali mais condizentes com as qualidades
masculinas do que com as femininas. As mulheres cazumbas do grupo são, em sua quase
totalidade, aquelas que provêm de contextos socioculturais distintos da maioria dos
brincantes, como é o caso de Juliana Manhães e Flávia Moura.
Sobre os cazumbas mais antigos no grupo, pude perceber durante a pesquisa que eles
têm uma relação forte com o passado: gostam de fazer relatos sobre suas experiências de
juventude e se lembram dessa época com muita afeição. Quanto ao presente, costumam se
cansar rapidamente com a brincadeira e têm menos entusiasmo em praticá-la. Eles também
revelam certo desânimo com o modo como as crianças exercem a função de cazumba. As
crianças (que são muitas no grupo) não seguem algumas das padronagens previstas para o
personagem. Mesmo que o cazumba seja caracterizado pela liberdade, que inclui poder sair da
roda ou fazer brincadeiras que desafiam as normas, é interessante observar que esta atuação
se faz dentro de limites que não são totalmente respeitados por elas. Pareceu-me, durante a
pesquisa, que eles não dominam de maneira completa as técnicas do personagem, que, por
exemplo, tiram a máscara a toda hora. Em relação às suas brincadeiras, estas assemelham-se
mais com as brincadeiras comuns realizadas por crianças do que com aquelas que compõem a
atuação ritual do cazumba.
Na verdade, é muito difícil dizer o que é em sua essência a ação ritual do cazumba.
Percebo com a pesquisa que a atuação do personagem se modifica de acordo com o contexto
em que é realizada, porém me pareceu que as crianças ainda não foram totalmente
60
socializadas na prática. Podemos pensar que estas sejam questões geracionais. Os mais idosos
despedindo-se na prática da brincadeira e entregando-se à memória; os mais novos ainda
sendo introduzidos na atividade, sem domínio completo dos códigos, mas ao mesmo tempo
trazendo novos arranjos à brincadeira. Esse “conflito geracional” traz alguns problemas para
os cazumbas do grupo. Quando olhamos os cazumbas em ação, vemos certa desordem, que
parece ir além daquilo que está previsto para o personagem. Temos, de um lado, um chefe
com idade mais avançada que tem capacidade de controle mais restrita e, de outro, muitas
crianças cazumbas ainda em estágio de aprendizagem. Em entrevista realizada com Candido,
em setembro de 2009, ele me contou que via certa desordem entre as crianças, mas afirmou
que elas estavam num caminho de aprendizado e que cumpriam bem diversas funções do
cazumba. Ele disse: “Estão perdidos, mas estão entrando, se você tem oportunidade de
observar esses meninos, eles têm uma dança legal, um ritmo legal”.
Sentidos do cazumba
Tentando entender os sentidos do personagem no grupo, podemos pensar que o fato de
os que atuam ali como personagem provirem de contextos diversos influencia a noção que
têm sobre o cazumba e também o modo como o executam nas apresentações. Mas, de
qualquer forma, um entendimento comum do que seja o personagem. Fala-se sobre sua
alegria, o lado cômico, as pequenas transgressões, a capacidade de assustar e seu mistério.
Fabriciano, que migrou da Baixada maranhense, disse em julho de 2009:
O negócio ali é uma fantástica que tem na boiada. Voaqui, fechado de
gente aqui, vem um cazumba por lá, vai se afastando, deixa ele se afastar
daqui. É um negócio de encaretado, ninguém olha a feição dele, ninguém
sabe quem é, só olha aquela careta espantada; você olha, mas não sabe quem
é. É um tipo de negócio de satanás. Dizem que o satanás é que faz aquelas
caretas para brincar. O cazumba é um tipo satanás. Ele está brincando
cazumba, ele vai no interior, cai, vira, trepa no pau, escorrega, cai acolá, não
sente nada. Se você não estivesse de cazumba, ia sentir, mas como está, não
sente. Ele faz tudo e não sente nadinha. É uma fantástica aquilo ali.
Daniel Bitter (2005) aponta a presença de diversos mascarados nas festas populares
brasileiras, como o clóvis, do carnaval; o palhaço das folias; os mascarados da cavalhada, e
outros. Ele afirma que estes personagens teriam uma relação de parentesco entre si, que
apresentariam características próximas: seu aspecto cômico, astuto, travesso etc. A discussão
empreendida por Bitter (2008) em sua tese de doutorado em diálogo com o meu material de
61
campo sobre o cazumba ajuda a enfatizar a existência deste parentesco. Em etnografia sobre
os palhaços em uma folia de reis no Rio de Janeiro, o autor revelou um aspecto deste
personagem que o aproxima do cazumba. Bitter chamou a atenção para o fato de os palhaços
serem relacionados a figurações míticas consideradas perigosas, como o diabo e o exu. A
partir das proposições de Victor Turner (1982), Bitter mostra que o diabo e o exu podem ser
vistos como seres ambíguos, posicionados além da estrutura social. Segundo ele, o palhaço
ser associado a essas figuras mostra que ele ocupa posição parecida. Fabriciano, ao relacionar
o cazumba à figura do satanás (outro modo de chamar o diabo), e outros brincantes também
terem feito esta associação, nos leva a refletir que exus, diabos, satanás, palhaços e cazumbas
ocupam posição simbólica análoga.
Pessoa e personagem
Num estudo sobre os palhaceiros, personagens cômicos do bumba-meu-boi, Luciana
Carvalho (2005) mostrou que aqueles que atuam como este personagem são pessoas
consideradas naturalmente engraçadas, que fazem piadas também fora do contexto festivo, em
diversas situações da vida social. Carvalho parece revelar que as fronteiras existentes entre a
pessoa e o personagem são tênues. Podemos estabelecer um paralelo entre os palhaceiros e os
cazumbas, que no processo de realização da pesquisa no Boi da Floresta me saltou aos
olhos a existência de semelhanças entre as características da figura mítica (o personagem
cazumba) e as da pessoa que o executa (o brincante). É muito comum os brincantes falarem
que existem semelhanças entre a figura mítica do cazumba e alguns brincantes que atuam
como tal.
Bigu, por exemplo, era constantemente lembrado por suas semelhanças com o
personagem. Assim como a figura mítica, Bigu era muito engraçado, mas não é isto que o
aproxima do cazumba. A comicidade do cazumba, muitas vezes, subverte os padrões sociais
vigentes no grupo em que ele atua, como o personagem dançar de maneira esdrúxula. Em
certa medida, a dança do cazumba é cômica, porque é incomum, é exagerada, grotesca. Bigu,
em sua vida pessoal, também não seguia à risca aquilo que era considerado por seu grupo
social como estritamente padrão. Ele não tinha emprego estável nem moradia fixa e às vezes
exagerava no álcool. Mas, de qualquer forma, o que era mais enfatizado pelos brincantes era
seu lado cômico, sua graça natural, o fato de sempre realizar uma brincadeira, fazer uma
piada.
62
2.2.2. A composição visual do personagem
O personagem do cazumba requer um figurino característico, composto
fundamentalmente pela veste (bata e um cofo), alguns acessórios e a máscara.
a) A veste e os acessórios
A veste utilizada pelo cazumba é normalmente feita de pano e cobre o corpo todo
daquele que a coloca. Ela é chamada pelos brincantes de farda ou bata e costuma ser feita
com panos coloridos, sendo ainda pintada ou bordada. Os brincantes, em geral, colocam na
parte traseira algum desenho. Muitas vezes põem motivos religiosos, como santos, mas são
colocadas outras figuras também.
O cazumba Charles (julho de 2009) falou sobre o ato de se escolher o que pôr atrás da
bata:
A pessoa bota o que gosta mais, assim, pode botar um santo: São Pedro, São
João, São Benedito... Mas pode ser do jeito que quiser. Inclusive tem uma...
esqueci o nome dela... tem uma bata cheia de cazumbinhas desenhada atrás,
tipo o boi brincando; fica a critério da pessoa o que ela vai desenhar.
Como já foi possível perceber, o personagem cazumba tem um lado um pouco obscuro
que pode ser percebido em função de sua máscara que, muitas vezes, assusta aqueles que se
deparam com o personagem, pelo fato de ser conhecido por cometer pequenas transgressões e
de ocasionalmente ser mencionado como “traiçoeiro”. Isto é explicado pelo cazumba Herbert
quanto à ambiguidade do personagem que, na Morte do Boi, deseja e não deseja que o “boi
morra”. Porém, este lado obscuro é apenas um dos lados do cazumba. O personagem é
bastante complexo, o que fica em evidência quando nos deparamos com o fato de, com
freqüência, ele levar na parte traseira de sua veste a figura de um santo. Um santo nos remete
à ideia de pureza e religiosidade, que parece contraditória em relação a esse lado obscuro do
personagem. Mas talvez seja a contradição uma das suas características marcantes.
Por baixo da farda ou bata, o cazumba traz na sua parte traseira, na altura das nádegas,
uma cesta de palha, chamada de cofo. Ela faz com que o personagem pareça ter grandes
nádegas e aumenta a comicidade de sua dança (figura 11, p.64).
Nas mãos, os cazumbas levam um sino que tocam enquanto dançam. Alguns
cazumbas trazem outros acessórios que ajudam a compor o personagem. Vi esses acessórios
63
serem mais usados pelas crianças que atuaram na festa da Morte do Boi. Entre eles estavam
chicotes feitos com cintos, metralhadoras de papelão etc. O uso deste tipo de objeto torna
visíveis as características transgressoras que dele fazem parte (figura 12, p.64).
b) a careta
Existem muitos modos de se obter uma careta para brincar no Boi da Floresta. É
possível que: 1. Nadir compre uma máscara de algum artesão e passe para o brincante, que
o grupo tenta garantir o fornecimento das indumentárias aos participantes da festa; 2. a pessoa
compre diretamente do artesão, quando deseja algo especial ou ter uma nova careta; 3.
alguém não queira mais utilizar uma careta e a doe ou venda para outro que queira este objeto
(neste caso, quem a recebe costuma reformá-la, enfeitando-a a seu gosto); 4. seja produzida
uma a partir de tentativas solitárias; 5. seja pedido a alguém que saiba fazê-la que lhe
ensine ou o ajude no processo de confecção; e 6. a pessoa tenha participado das oficinas
oferecidas pelo grupo para ensinar a fazer as máscaras. Podem existir outros modos de se
conseguir uma máscara, mas é possível dizer que estes são os mais recorrentes.
64
Figura 11: Abel vestindo o cofo antes de apresentação durante a festa da Morte do Boi o Boi da
Floresta, no dia 28 de setembro de 2009. Foto de minha autoria
Figura 12: Cazumba criança do Boi da Floresta com chicote na mão durante festa da Morte
do boi no dia 27 de setembro de 2009. Foto de minha autoria
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Esses meios de obter a careta indicam que ela circula dentro do Boi da Floresta,
através de trocas. Existem várias formas de se trocar a careta no grupo que podem envolver
dinheiro ou não. É possível que a troca seja realizada com intuito religioso, o que foi
abordado pelo cazumba Nilson (julho de 2009): Eu sempre faço uma careta e, quando acaba
a temporada, eu dou ela pra São João, que fica na sede, e Nadir passa pra outro brincante
que acaba modificando ela um pouco e brincando com ela no próximo ano”. A fala deste
cazumba é bem interessante; que Nilson parece oferecer a máscara ao grupo numa relação
de troca com o santo. Podemos pensar que Nilson também entenda, assim como os esquimós
apresentados por Marcel Mauss (2003), que a troca de presentes com os deuses produz a
reciprocidade de dádivas.
A produção das máscaras é, ao mesmo tempo, uma atividade realizada por
especialistas e por não-especialistas. Existem os artesãos que são reconhecidos por fazer as
máscaras muito bem e que são convidados a confeccioná-las para terceiros, mas elas também
podem ser feitas por alguém que não é considerado especialista pelo grupo.
Os dois artesãos tidos como especialistas pelos integrantes do Boi da Floresta (Abel e
Nilson) criaram um estilo inconfundível de caretas e costumam vendê-las para o grupo ou,
individualmente, para brincantes. Foram eles também que lecionaram nas oficinas de
produção destes objetos e ensinaram os alunos a fazer máscaras a partir da padronagem de
suas caretas (figuras 13 e 14, p.66).
Quando alguém compra uma máscara de Abel e Nilson ou produz uma com estilo
semelhante ao deles, é comum querer enfeitá-la. O enfeite das caretas é um ato muito
recorrente no Boi da Floresta. Através dele é possível transformar uma máscara que pode ter
sido de outra pessoa ou que obedeça a uma determinada padronagem que tem as
características daquele que a utiliza. A máscara torna-se singular. O enfeite parece ser um
modo que o brincante tem de investir de subjetividade a máscara que ele utilizará. O cazumba
Bigu me contou (julho de 2009) que quem fez sua careta foi Nilson. Ele me relatou que a
comprou “cruazinha”, sem enfeites, e colocou nela os adereços que desejava. Bigu defendeu
esta prática dizendo: “Para cada um sair de um jeito, para não dizer... ah, a de fulano está
igual a minha! Não... cada um tem um jeito, um brilho”.
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Figura 13: Abel e sua máscara em apresentação do Boi da Floresta em frente à casa de uma
amiga do grupo, durante o período junino, no dia 28 de setembro de 2009. Foto de minha
autoria
Figura 14 (esquerda): Nilson e sua torre em apresentação do Boi da Floresta em frente
à casa de uma amiga do grupo, durante o período junino, no dia 28 de setembro de
2009. Nas oficinas, Nilson apenas ensinou a produção da parte de baixo desta
máscara, aquela que cobre o rosto do brincante. Foto de minha autoria
Figura 15 (direita): cazumba Bruno com máscara produzida em oficina de Nilson e
enfeitada com a colaboração de outros brincantes, em apresentação durante a festa de
Morte do Boi, no Boi da Floresta, no dia 27 de setembro de 2009. Foto de minha
autoria
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Além de se desejar uma careta personalizada, também é recorrente ter interesse em
estrear uma máscara nova a cada momento importante do calendário festivo, como o São João
e a Morte do Boi. Na mesma entrevista, Bigu falou sobre o assunto: “Todo ano a gente quer
renovar, senão fica chato. Brincar dois, três anos com a mesma peça é esquisito. Já tirei foto
com esta, não quero”. O momento de inauguração traz prestígio. Porém, é interessante notar
que muitas vezes alguém fala que vai fazer uma nova máscara e, quando chega na festa, usa a
mesma. Nas entrevistas que realizei, diversos cazumbas disseram que estreariam uma careta
no próximo momento festivo, mas não o fizeram.
Há, no entanto, uma alternativa para aqueles que não têm dinheiro ou não têm
disponibilidade de tempo para fazer uma inteiramente nova; existe, como colocamos, a
possibilidade do enfeite, que é possível reformar a careta com a qual se brincou em outro
evento.
Voltando à fala de Bigu, podemos perceber que, quando ele anunciava o desejo de ter
uma nova máscara, fazia referência ao fato de não querer ser repetidamente fotografado com a
mesma careta. Pude constatar grande preocupação entre os brincantes em controlar o modo
como sua imagem de cazumba em que a careta tem grande importância será apreendida
pelas muitas fotografias e filmagens realizadas pelos espectadores da festa.
São utilizados materiais variados na produção da careta e privilegiados os que são
coloridos, assim como aqueles que dão “brilho” ao objeto. Constatei no campo que, de forma
geral, a categoria “brilho” é muito utilizada pelos cazumbas. A madeira “paparaúba” foi
muito usada, mas hoje em dia não é tanto. Isto ocorre, entre outras questões, porque é difícil
consegui-la na cidade. Para se alcançar os interesses almejados, utilizam-se materiais mais
fáceis de serem obtidos no ambiente urbano, como isopor, papel, pano etc.
As máscaras apresentadas no grupo são muito diversas entre si. Mesmo que haja
predominância das padronagens de Abel e Nilson, os enfeites fazem com que elas fiquem
bastante diferentes. O cazumba Bruno, que é um adolescente, é um exemplo, que ele fez
um enfeite que deixou sua careta com características bem particulares. A careta tem o
formato daquela de Nilson, pois foi produzida em sua oficina, mas é enfeitada de modo
singular. Entre os cazumbas, é muito comum colocar uma espécie de cabelo nas máscaras
(usualmente chamado de pelego). Bruno também fez isto, no entanto, ele colocou mechas
muito longas, o que não é tão comum; a cor escolhida foi o azul, fato raro também, e o tecido
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utilizado não lembra a textura dos cabelos de animais e pelos, o que é mais habitual. O
resultado foi exatamente o almejado: impactante (figura 15, p.66).
No período da Morte do Boi, perguntei como Bruno a tinha feito e ele me disse que
teve a ajuda de um cacique da tribo de índios, que se chama Lindonjonson e atua
profissionalmente como cabeleireiro. Lindonjonson, segundo Bruno, ajudou-o e outros a
enfeitar a careta. Pude perceber durante a pesquisa que é muito comum os brincantes se
unirem para produzir e/ou enfeitar as caretas. Isto nos mostra o caráter colaborativo da
produção das máscaras. No caso de Bruno, Abel criou um estilo, repassou na oficina a este
adolescente, que enfeitou a máscara com a ajuda de Lindonjonson.
Abel, Nilson e as oficinas
As oficinas foram criadas com o objetivo de promover a entrada de novos integrantes
no grupo para atuarem como cazumba (já que se esperava que se alguns alunos fizessem sua
máscara, eles teriam interesse em brincar ali); de permitir que mais pessoas fossem
habilitadas para a produção das caretas, pois até o momento poucos sabiam fazê-la no grupo;
de haver diversificação nos aspectos visuais das máscaras, porque Abel e Nilson ensinariam
seus modos de produzir a careta, mas estimulariam que os alunos a fizessem a seu modo.
Sobre a necessidade de diversificação dos aspectos visuais das caretas, Nilson (julho
de 2009) comentou:
É porque cada pessoa tem seu estilo. Eu tenho a minha, aí a partir da minha,
a pessoa vai criando outra ideia em cima. Outro tipo de enfeite, outro tipo de
forma. Pra cada um ter o seu estilo, pra ter uma diferença. Porque careta de
cazumba, como o nome diz, é careta. Quer dizer, não é uma forma,
cada um tem uma forma de fazer uma careta. Então, a ideia de Nadir era
essa. Que o nome diz, careta. Cada um, o pessoal faz uma careta. Qualquer
hora, na hora que quiser, no dia que quiser. Então, a ideia de Nadir era essa,
é fazer que cada um [possa] fazer o seu estilo.
Nilson revela assim a importância da singularizarão de cada máscara. Esta
preocupação com a careta acarreta a individualização da visualidade de cada cazumba.
Diferente dele, entre outros grupos de personagens do bumba-meu-boi, vemos que existe a
tendência de composição de uma indumentária padronizada: todos os baiantes se vestem
praticamente da mesma forma, assim como todos os índios e todas as índias. Esta
diversificação dos formatos das máscaras estaria relacionada aos sentidos do cazumba. Os
cazumbas são mais singularizados um em relação ao outro, desta maneira, suas caretas
também precisam ser. Os cazumbas são diferentes de personagens totalmente singularizados,
69
como o boi ou o amo e também fazem contraste com personagens mais homogêneos entre si,
como os índios os cazumbas são diferentes entre si, particularizados, mas também atuam em
grupo, tendo um propósito de coletividade. Há uma forte relação entre o processo de produção
das caretas e os sentidos do personagem.
As oficinas nos permitem pensar ainda sobre os diferentes métodos de ensino-
aprendizagem que existem no Boi da Floresta, pois introduzem um modo de ensino mais
formal, o qual convive, entretanto, com outro de transmissão de conhecimento baseado numa
relação mais pessoal, quando alguém pede a outrem que o ajude a produzir caretas ou mesmo
a enfeitá-las.
Os professores da oficina, Abel e Nilson, fazem caretas com estilos diferentes. Abel já
produziu máscaras com as mais distintas formas. Com o tempo, ao invés de ficar
constantemente criando outras tantas, ele acabou definindo dois formatos: um em madeira e
outro em pano. Como Abel optou por investir nestes dois modelos, não é preciso muita
familiaridade com seu trabalho para reconhecer uma produção como sua. Conforme
dissemos, Abel não produz as torres. Nilson, produz as menores caretas e também as
torres. As menores de Nilson têm um formato constante. Ele diz que elas têm semelhança
com um touro; são feitas em papel machê, material que não é normalmente usado na produção
de caretas. Ele declarou (julho de 2009):
A de touro eu já venho brincando há quatro anos. Que eu achei de fazer uma
forma bem diferente do Boi da Floresta. Que o Boi da Floresta na época que
entrei não tinha careta com touro. Então, eu resolvi fazer minha diferença e
comecei a usar careta de touro.
Quando Nilson fala em “fazer minha diferença”, ele revela que certa disputa entre
os artesãos do grupo. O estilo de Abel tem bastante prestígio dentro do grupo. Até a chegada
de Nilson, as máscaras produzidas por Abel tinham o estilo mais forte e ele era o principal
produtor de caretas, vendendo sua produção para os integrantes do Boi da Floresta. Assim,
muitas máscaras usadas pelos cazumbas eram de sua autoria. Outros brincantes produziam
suas próprias máscaras ou compravam de outros produtores, mas Abel se configurava como o
principal artesão do grupo. Quando Nilson chega ao Boi da Floresta, ele é acolhido como uma
nova opção de estilo de máscara.
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Torres no Boi da Floresta
Além de criar um novo estilo de produção das “pequenas”, Nilson também trouxe ao
Boi da Floresta a produção das torres. Estas fazem grande sucesso no interior maranhense e
também entre os demais grupos de sotaque da Baixada. A produção começou a ser feita no
interior e migrou para a capital. É curioso ver que o interior é um espaço com valor que
influencia a capital, o que não é tão comum em outras áreas da vida social, como no campo
econômico, por exemplo. Percebi durante a pesquisa que o interior é um lugar valorizado em
relação à prática do cazumba, de forma geral.
O grupo Santa Fé, sediado em São Luís, que também é considerado como de sotaque
da Baixada, utilizava torres um tempo, quando o Boi da Floresta ainda não as possuía.
Havia grande desejo dentro do grupo de que conseguissem fazê-las, mesmo que houvesse
alguma resistência entre os mais velhos em função deste novo formato. Como visto, Abel é
um dos que criticam as torres. Os jovens são os mais animados com elas, entre outros
motivos, porque dão prestígio ao grupo e permitem que rivalizem em de igualdade com
outros, como o Santa Fé. Como mostrou Malinowski (1976), não os objetos do “kula”
recebiam um significado, mas também eles desempenhavam um papel importante valorizando
os indivíduos que os possuíam, que os colares e os braceletes conferiam prestígio a quem
os possuísse. Tomando esse estudo como referência, compreendo que as torres desempenham
papel semelhante, que quanto mais altas são as máscaras, mais valorizados são os
brincantes.
As torres de Nilson têm como base sua máscara pequena, e acima dela vem uma
estrutura de isopor sobre a qual ele acrescenta outra estrutura (figura 14, p.66). Sobre o
processo de confecção das torres, ele disse em entrevista em julho de 2009:
Esse ano é uma de touro que eu fiz toda lilás, fazendo uma homenagem ao
Divino do Espírito Santo. Eu coloquei duas coroas e coloquei a pombinha no
meio. Porque, quando eu faço uma careta, ela tem um objetivo, ela tem uma
forma. Eu não faço uma careta avulsa. Sempre é fazendo homenagem pra
alguém. Algum santo, alguma pessoa. Esse ano foi pro Divino Espírito
Santo.
Sua fala nos permite refletir sobre o caráter complexo dos sentidos da careta. Nilson
diz que sua máscara pequena revela a imagem de um touro, mas podemos pensar que este é
um sentido aproximado. Ao olharmos para ela, vemos características de um touro, mas
também de outros animais, assim como algumas características humanas, e outras que não
71
remetem a nada de conhecido na natureza. A máscara pequena parece representar um ser
fantástico que produz estranhamento, assusta, mas também atrai. O sentido da máscara se
complexifica mais ainda quando é posta sobre a careta pequena uma estrutura de isopor com
imagens relacionadas ao universo religioso cristão.
Maria Laura Cavalcanti (2006a), refletindo sobre as alegorias no universo das escolas
de samba do Rio de Janeiro, afirmou: “o conjunto de seus elementos visuais remete
simultaneamente a tantos sentidos possíveis, que -las [as escolas] em desfile é extasiar-se,
encher os olhos e acolher a perplexidade diante da impossibilidade de decifrá-las totalmente”
(p.178). Podemos pensar as torres como “alegorias”, que suas formas também remetem a
múltiplos sentidos, e parte da atração que exercem sobre as pessoas provém da dificuldade
que se tem em decifrá-las.
É interessante ver que Nilson fala da importância de ter um objetivo na produção de
suas caretas e parece que a parte religiosa o ajuda a construir este objetivo. Outros cazumbas
do grupo também estão produzindo as torres. Um deles é Charles, que trabalha com Nilson
em sua loja de estofamento. Foi com a ajuda de Nilson que Charles produziu a sua torre.
Nilson trabalhava numa atividade que demanda habilidade manual antes de se tornar um
reconhecido artesão do grupo. Podemos imaginar que ele tenha um gosto pessoal por este tipo
de trabalho, mas também que sua prática como estofador o tenha tornado mais sensível a
atividades de artesania.
O jovem cazumba Charles segue a mesma trilha, trabalha com estofamento e se tornou
conhecido no grupo como um bom artesão. Charles, por sua vez, ajuda o cazumba Benedito a
produzir as torres. Os dois têm características muito parecidas, são pessoas tímidas. Como foi
dito, não gostam de sair como cazumba em todas as apresentações, escolhendo alguns
momentos especiais, como o Vale Festejar, para se apresentarem. Parece que se sentem muito
atraídos por este momento de exibição de algo especial, difícil de realizar, e que causa grande
impacto visual. Os brincantes, de forma geral, também ficam bastante ansiosos por estas
aparições com as torres.
O tipo de careta utilizado está relacionado ao efeito que se deseja alcançar e ao
contexto de apresentação. No momento em que é encenada a Morte do Boi, quando os
cazumbas correm de um lado para o outro e há muito algazarra, só é possível usar as menores.
Nessas ocasiões, em que se espera que os cazumbas realizem muitas ações, as menores são
mais recomendadas. Nas situações nas quais se privilegia o impacto visual muito recorrente
72
nas apresentações públicas, que são fotografadas e onde se estabelece uma separação mais
clara entre aquele que se apresenta e quem assiste as torres são muito bem-vindas. Gostaria
de ressaltar, no entanto, que mesmo que as torres causem forte impacto visual, as menores são
muito admiradas por sua plasticidade.
Tríade brincante/careta/cazumba
Disse acima que Charles e Benedito têm em comum, além do uso das torres em
momentos especiais, o fato de serem tímidos. Na verdade, é muito comum existirem
cazumbas tímidos. Nilson (julho de 2009) falou sobre isto:
Tem seis anos que [comecei] a ser cazumba, porque sempre tive vontade de
dançar em alguma brincadeira cultural do Maranhão. Como eu sou tímido, aí
foi quando então eu atinei de dançar mascarado, que então a pessoa não me
vê. Se eu tirar a máscara, eu não danço, a timidez não deixa. Foi assim que
comecei a dançar o cazumba.
Seu relato parece revelar que a timidez não está vinculada à falta de desejo de se
expressar. Ele não sabia como participar de alguma festa. Ser um mascarado permitiu-lhe
colocar isto em prática; ele poderia se expor, ao mesmo tempo se preservando. Sobre os
palhaços da folia, Bitter (2008) afirma que a máscara, “em associação a outros elementos, é
responsável por produzir uma transformação radical da pessoa” (p.179). Segundo ele, isto
possibilita aos palhaços atuarem de forma mais livre em sua ação ritual, já que não podem ser
reconhecidos. Podemos avaliar que, ao se mascararem, os cazumbas do bumba-meu-boi
também passam por uma “transformação radical de si” que lhes permite realizar aquilo que
não teriam coragem de fazer sem o disfarce. A máscara sobre o rosto parece possibilitar que o
brincante se torne outro e, assim, ele não mais precisa se expor.
Outra questão que ajuda a pensar a tríade brincante/careta/cazumba é a relação
estabelecida pelas crianças do grupo com a máscara. As crianças retiram muito a careta do
rosto durante as apresentações, o que não é bem-visto pelos mais velhos, sendo elas
repreendidas a toda hora. Parece que com este ato elas transgridem um objetivo importante da
ação ritual deste personagem, que é a de tentar apagar ao máximo a presença da pessoa que
atua como cazumba.
73
Valores em torno da forma
Trago, por fim, uma discussão a respeito dos valores acionados em torno da forma da
máscara no Boi da Floresta. O cazumba Fabriciano revela que a careta é, ao mesmo tempo,
feia e bonita. Fabriciano (julho de 2009) disse: “A careta às vezes espanta, a pessoa não está
sabendo daquele negócio e espanta (risos)... porque a careta é feia, quer dizer, todo mundo diz
„que careta bonita!‟, mas a feição é como o diabo, não tem careta bonita, é tudo espantada”.
Segundo ele, a feiúra da máscara remeteria à figura do “Diabo” e causaria espanto. Ao mesmo
tempo, a máscara seria considerada bonita. Lucia Van Velthen (2003) mostrou que entre os
Wayana o valor de um artefato está na relação estabelecida entre ele e os seres sobrenaturais
predatórios. Um objeto é valorizado ao evocar esses seres. Ela afirma que:
Tanto as pinturas da “Anaconda” como as recriações das onças e dos
inimigos compõem o quadro da alteridade, o local por excelência da
predação, mas igualmente da irrupção estética. Por conseguinte, o axioma da
arte wayana se expressa indubitavelmente através da frase: “o belo é a fera”
(p.389).
Podemos pensar que a careta do cazumba encontra parte de sua beleza na capacidade que
tem de “espantar”, no fato de ativar um universo mítico relacionado a um poder predatório,
como o do diabo.
74
3. CAPÍTULO 2 - DIVERSIDADE E UNIDADE NO CONTEXTO FESTIVO
Depois de ter analisado diferentes aspectos socioculturais do grupo Boi da Floresta de São
Luís e da inserção nele do cazumba e da careta, busco mostrar a diversidade do contexto
festivo maranhense. Para tal empreitada, a seguir, realizo reflexões sobre a festa do bumba-
meu-boi na Baixada maranhense e, no final deste capítulo, discuto a inserção da máscara no
meio festivo como um todo, estabelecendo aproximações e distanciamentos entre o contexto
do Boi da Floresta e o da Baixada maranhense.
3.1. Cazumbas da Baixada Maranhense
Em todas as conversas que tivemos desde que nos conhecemos, Abel falou com
bastante entusiasmo das suas atividades como cazumba quando morava no interior
maranhense. Entre elas, deu destaque à sua participação no ritual da matança do boi. Este
ritual é composto de diálogos no qual se encena a morte do boi, e costuma ser realizado
durante um boi de promessa, festa organizada como pagamento a uma promessa a São João.
Ele também falou diversas vezes sobre as práticas cômicas deste personagem, que seriam
mais desenvolvidas por lá na sua juventude.
Certamente ele aprecia as histórias que viveu na Baixada, mas podemos pensar que a
ênfase que a essa época de sua vida também pode estar relacionada à constante demanda
de estudiosos para que o artesão relate suas experiências de juventude. um grande
interesse por parte de alguns pesquisadores em saber sobre as atuações do cazumba em outro
momento histórico e em diferente contexto social. Ao mesmo tempo, podemos chegar à
conclusão de que o próprio entusiasmo de Abel com esse período de sua vida tenha animado
os pesquisadores. É difícil saber quem influenciou quem, talvez estejamos diante de um
encontro de pessoas com o mesmo encantamento.
75
Mesmo que Abel tenha tido essas experiências muitos anos atrás e saiba que as
festas no interior passaram por mudanças, ele sempre insistiu para que eu fosse à Baixada
maranhense (figura 16, p.76). Como foi dito, Abel é muito crítico em relação às mudanças
ocorridas no interior e o seu principal alvo são as torres, bastante usadas pelos cazumbas da
região. Porém, igualmente, ele afirma que, além destas práticas que ele não valoriza, também
é possível ver na Baixada cazumbas em ações rituais especialmente interessantes.
Carvalho (2005), num estudo sobre as tradições cômicas do bumba-meu-boi, também
mostrou que Betinho, seu principal interlocutor, insistia para irem juntos para o interior
maranhense. Betinho dizia que lá, sim, eles veriam as matanças que a pesquisadora tanto
buscava e que ele poderia “mostrar-lhe a „verdadeira tradição‟ e a „origem‟ do bumba-boi, que
„quase ninguém na cidade conhece‟” (p.77). Tanto Abel como Betinho localizam no interior
as brincadeiras mais interessantes, aquelas que não poderiam ser encontradas na capital, e
querem que seus interlocutores tenham conhecimento dessa referência que tanto valorizam.
Mesmo que eu não aposte na existência de brincadeiras mais ou menos autênticas, ir à
Baixada foi de fato uma possibilidade de entender melhor, entre outras questões, a relação de
Abel com o interior.
Fui duas vezes para esta região. A primeira viagem teve como destino a cidade de
Viana e foi feita em fevereiro de 2009 (figura 17, p. 76). A segunda ida se deu em junho de
2009, no período junino. Ambas me permitiram conhecer outros modos de brincar cazumba e
de se relacionar com a careta.
3.1.1. 1ª Viagem: promessas de um “Boi de Promessa”
Nesta ida à Baixada em fevereiro de 2009, pude conhecer Neco, irmão de Abel. Ele é
patrão de um grupo de bumba-meu-boi, ou seja, ele organiza um boi. Assim como Abel, ele
também é nostálgico em relação ao passado e repudia muitas práticas do presente. Segundo
ele, várias apresentações realizadas na cidade de Viana são feitas no arraial organizado pela
prefeitura e cada grupo se exibe durante uma hora, o que ele considera pouco. As
brincadeiras mais valorizadas em seu discurso são aquelas realizadas nos povoados da
Baixada maranhense, onde as festas tendem a durar mais, mesmo que hoje em dia os
brincantes sejam, em sua opinião, mais desanimados do que no passado.
76
Figura 16: Mapa mostra, no alto, em vermelho,
microrregião da Baixada Maranhense. Fonte:
Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/, 2010
Figura 17: Mapa mostra, no alto, em vermelho,
município de Viana. Fonte: Wikipédia,
http://pt.wikipedia.org/, 2010
77
Durante a conversa com Neco e Abel, eles disseram que seria interessante se eu
presenciasse uma festa realizada num povoado. Neco disse que, se eu voltasse em junho, ele
faria um boi de promessa para que eu pudesse ver. Encontrei-me, então, diante da mesma
situação de quando me disseram em São Luís que eu deveria viajar para a Baixada. Ali, fui
novamente incitada a ir um pouco mais adiante. Diante disto, ponderei que ver um boi de
promessa não seria má ideia, pois assim poderia entender mais sobre as diversidades de
modos de brincar e refletir sobre as escalas de valores estabelecidas pelos meus
interlocutores. Disse a eles que a proposta havia me agradado e que poderíamos conversar
mais adiante para ver se seria possível materializar a ideia.
É interessante observar que em São Luís eu ouvia comparações entre a capital e um
interior genérico. Ao chegar à cidade de Viana, na Baixada, e imaginando estar no “interior”,
percebi que existia o interior do interior e, segundo Neco me dizia, seria ali que encontraria
uma experiência mais interessante. O lugar de valor parece sempre estar mais longe. Se
perguntarmos ainda a Neco se a festa do povoado é mais valiosa, ele certamente dirá que não,
que o melhor está no passado, um “antigamente” genérico.
Pude conhecer também Onório Serra, cazumba amigo de Abel. Quando o
encontramos, ele foi logo contando que era considerado o melhor cazumba de Viana. Onório
Serra, que faz as torres, gabava-se de ter ganhado o concurso da região de melhor cazumba.
Esse concurso, como entendi depois, não havia existido de modo institucionalizado, mas era o
jeito com que todos se referiam ao consenso geral estabelecido entre os brincantes de que ele
era o melhor. Senti que Abel estava desconfortável por não fazer as máscaras grandes, por ter
que ouvir calado que o outro era o melhor fazedor de careta de Viana. Ele justificou sua
opção dizendo: “eu faço as pequenas porque elas me levaram mais longe”. A maneira como
Abel se colocou mostra sua personalidade arguta. Sua inserção em outros contextos serve
como moeda de troca e conta pontos a favor na interação com o outro cazumba.
Cavalcanti (2006a), ao estudar os desfiles das escolas de samba, explorou seu cater
competitivo, mostrando que a disputa é um modo de relacionar-se que instaura um vínculo
entre os participantes. Acredito ser possível fazer um paralelo entre essa dimensão do
universo das escolas de samba e a brincadeira dos cazumbas. Na conversa entre Onório e
Abel, assim como em outras situações, pude perceber que, na Baixada, aqueles que dão vida a
esse personagem mascarado disputam muito entre si. A competição parece ser bastante
78
importante na sociabilidade entre os cazumbas, apresentando-se como um modo de se
relacionar, mas também como um propulsor das relações.
Nesta viagem também pude encontrar os cazumbas do Urubu. Um destes cazumbas é
Nico, que é artesão e tem certo destaque por sua produção de caretas nos contextos de
circulação deste objeto fora da festa. Sua projeção em situações exteriores ao festivo é, no
entanto, pequena. Nico é reconhecido dentro de um grupo restrito de pesquisadores, diferente
de Abel, que se tornou uma espécie de representante desta produção num circuito mais amplo
de apresentação da máscara.
Os cazumbas do Urubu moram em casas próximas e costumam brincar juntos na festa.
Sobre o início do grupo Nico afirmou:
O Urubu foi fundado por três companheiros: eu, Didi e Pedrinho. Eu já tava
fazendo careta, um colega meu, que brinca cazumba, disse que viu um
urubuzinho uma vez numa morte de boi. [...] eu disse: “Rapaz, tu sabe
que eu tive uma ideia, eu vou fazer um Urubu!”. Um urubu pra gente
brincar, um urubu pros cazumbas se divertirem. [...] eu peguei um
pedaço de pau, cortei no feitio do urubu e pintei todinho de preto. Quando
foi de manhã, eu disse: “Rapaz, boiada começa hoje. Como nós vamos fazer
com o urubu? Vamos botar o urubu na rua!” [...] Quando foi de noite, a
gente se arrumou e lascamos urubu no rumo da avenida! Eram os
cazumbas, o urubu, os tambores e os músicos (MAZZILLO, BITTER &
PACHECO, 2005, p.110).
Do grupo, além de Nico, pude entrevistar Genilson e Bichinho. Eles foram mais
numerosos, mas hoje em dia são menos de dez. A maioria gosta de utilizar as torres e busca
fazer máscaras cada vez mais altas e vistosas. Contudo, eles não usam as torres sempre; estas
costumam ser utilizadas nas apresentações de uma hora nos arraiais, tanto nas cidades da
Baixada maranhense, como em São Luís, quando vão para lá. Nas apresentações em frente à
casa de pessoas ou em fazendas, capazes de durar a noite inteira, é comum o uso das caretas
menores. Como foi visto, o mesmo cazumba pode usar diferentes caretas, dependendo do
objetivo que quer atingir. Se o desejo é o de se exibir nas apresentações mais curtas, ele utiliza
as torres, se o intuito é brincar durante mais tempo para realizar as atuações cômicas ou
transgressoras do personagem as menores são as mais usadas.
Nico não aderiu ao uso das torres, prefere as máscaras pequenas feitas por ele. Sua
escolha talvez esteja relacionada ao fato de ser um cazumba bastante ligado às brincadeiras
que compõem a ação ritual do personagem. Seu trabalho como artesão é reconhecido entre os
cazumbas e ele vende suas máscaras para outros brincantes. Porém, com a difusão das torres,
79
passou a vender menos caretas inteiras; é muito comum que comprem dele os queixos, como
são chamadas algumas bases sobre as quais se sustentam as estruturas que possibilitam as
torres serem tão grandes. Um brincante compra um queixo produzido por Nico, faz sozinho a
parte superior da máscara ou paga a outro para fazer para ele. O queixo costuma ter um
formato animalesco. Nico também ensinou a alguns cazumbas do Urubu, como Genilson, a
produzirem os queixos. Integrantes do Urubu venderam máscaras e fardas para grupos de
São Luís, o que mostra que intensa circulação de objetos entre o interior e a capital, o que
nos leva a pensar que faltam especialistas na capital, já que poucos grupos de lá têm cazumba.
3.1.2. 2ª Viagem: cazumbas em ação ritual
Em junho de 2009, assim que cheguei ao Maranhão para passar o período junino, Abel
me perguntou se iríamos mesmo para a região da Baixada maranhense e que a família de seu
irmão, Neco, de fato faria a festa que prometera.
Santa Rosa: um boi de promessa
Fomos novamente para Viana no dia 24 de junho; nosso destino era um povoado
deste município onde ocorreria a festa organizada pela família de Neco. No grupo que veio de
São Luís estavam Abel, Simone Ferro (uma pesquisadora brasileira da área de dança, que
mora nos Estados Unidos) e seu marido Meredith Watts (professor universitário americano,
aposentado), Claudio Costa (artista plástico maranhense) e eu. Para chegar lá, percorremos de
caminhonete um longo percurso de estrada de terra a partir de Viana. O espaço de realização
do evento era uma fazenda.
Seria um boi de promessa, uma brincadeira feita como pagamento de uma promessa a
São João. Também fazia parte do compromisso com o santo a realização de um ritual da
matança, que encena a morte e a ressurreição do boi. A promessa fora feita em nome da neta
de Neco, mas quem estava pagando a promessa era a mãe da jovem, que sua filha mora no
Rio de Janeiro. Quando menina, a neta de Neco machucou-se e a sua mãe prometeu a São
João que, caso ela se recuperasse, faria uma festa em sua homenagem. A festa foi patrocinada
pela família de Neco, que ofereceu toda a alimentação e a bebida para os brincantes.
80
Quando estávamos organizando a viagem ao interior, Abel disse que queria que
chegássemos ao povoado no qual nasceu, o que infelizmente não foi possível. Mesmo que não
tenhamos ido ao seu povoado de origem, durante a festa em Santa Rosa, Abel encontrou
muitas pessoas que fizeram parte de sua vida antes da migração para São Luís. Pude perceber
que ele se sentia feliz de estar ali acompanhado de pessoas provindas de um contexto social,
cultural e econômico muito diferente do seu e da maioria dos participantes da festa. Ele
parecia contente em poder mostrar a seus conterrâneos que, ao sair de sua região de origem,
teve sucesso em sua trajetória. Seus acompanhantes ajudavam a confirmar esse êxito.
Carvalho (2005) também atesta que Betinho queria chegar ao povoado no qual nasceu e,
quando isto aconteceu, foi muito bem recebido pelos seus conterrâneos. Podemos pensar que
para Abel e Betinho esse retorno à terra natal se configura como um modo de elaborar e
apresentar aos pesquisadores suas histórias pessoais.
Desde a conversa que tivera com Neco, em fevereiro, havia percebido que a festa
que ele realizaria teria como um dos motivadores a minha presença. Provavelmente ele
tinha o interesse em concretizá-la e talvez a fizesse mesmo que eu não fosse, mas é certo que
a minha presença (como pesquisadora) assim como as de Simone, Meredith e Claudio
deixou Neco e muitos dos brincantes bastante entusiasmados. Durante o evento, algumas
pessoas vieram até nós para agradecer a nossa presença ali. É possível pensar em alguns
fatores que possivelmente levaram a esse contentamento: darmos prestígio ao evento;
interesse por parte dos brincantes em mostrar sua festa a um grupo de pessoas interessadas no
que fazem; alguma expectativa de que pudéssemos levá-los a ingressar em outros circuitos de
apresentação. Abel, nesta noite, falou sobre sua atuação social, ligando brincantes a pessoas
de outros contextos sociais: “eu podia ficar sozinho, mas levo os outros”. Em seguida,
explicou sua trajetória dizendo: “deve ser São João que me mandou correr mundo”.
Se havia um contentamento por parte dos brincantes com a nossa presença, nós, por
outro lado, também nos sentíamos privilegiados por estar ali. Muitos pesquisadores do
universo do bumba-meu-boi valorizam a sua participação em um boi de promessa. Diversos
motivos fazem esse ritual ser admirado por pesquisadores.
26
De forma geral, não é tão fácil
para um pesquisador participar de um ritual como este, já que ele é organizado por brincantes
26
É muito difícil fazer generalizações sobre a categoria “pesquisadores”, que existem pessoas com perfis os
mais diversos que podem ser assim enquadradas. No entanto, mesmo tentando evitar reducionismos e
tipificações, só posso falar a respeito deste grupo social de maneira ampla, pois não é possível realizar no âmbito
deste trabalho uma análise minuciosa das várias formas do agir e do pensar existentes.
81
que participam de redes sociais com pouco contato com as suas. Por isso, é tão importante a
figura de alguém como Abel, que faz a ponte entre contextos sociais distintos.
O ritual também é valorizado por alguns pesquisadores, pois é um evento que não
costuma fazer parte de calendários divulgados por entidades governamentais. Existe o desejo
de participar de algo que não figura em esquemas turísticos, que foi feito espontaneamente
por brincantes, sem o intuito de exibição. Vigora também uma vontade de vivenciar algo sem
interferências exteriores ao universo dos brincantes, mas o curioso é a quase impossibilidade
de viver algo sem tais interferências. No nosso caso, por exemplo, nossa presença ali fazia
diferença no evento, foi até mesmo importante para que ele ocorresse.
Alguns pesquisadores apreciam neste tipo de festa o seu caráter religioso e o fato de
ser realizada uma matança no seu desenrolar. Entre outros motivos, a matança é muito
valorizada porque está atrelada à ideia de auto, que tem importância histórica nos estudos dos
folguedos do boi. Existe um pensamento difundido de que a festa do bumba-meu-boi
corresponde à encenação de um auto. Além de se associar a festa ao auto, também se costuma
dizer que existe um enredo clássico. Ele contaria a história de Pai Francisco que mata o boi
mais estimado do dono da fazenda onde trabalha, já que sua esposa Catirina, que está grávida,
tem o desejo de comê-lo. Pai Francisco é descoberto e punido. Tentam ressuscitar o boi, o
que depois de muitas tentativas é alcançado.
Carvalho (2005), no intuito de etnografar o auto do boi no Maranhão, deparou com o
que chamou de “ilusão do auto”. Nas diversas apresentações a que assistiu em São Luís, não
encontrou uma encenação da história acima descrita. Até que conheceu Betinho, brincante do
grupo de boi Fé em Deus, que lhe disse que em sua cidade de origem, Guimarães, eram feitas
encenações durante a festa. Chegando com Betinho, percebeu que as dramatizações tinham
muitas diferenças em relação à “versão oficial” do auto. As comédias ou matanças como
chamam por as encenações contavam histórias que tinham como tema central “a morte e
a ressurreição do boi precioso”, mas não obedeciam ao roteiro da história relatada na
bibliografia de referência sobre o tema.
Dialogando com o trabalho de Carvalho, Cavalcanti propõe que pensemos o
“problema do auto” como um “conjunto de narrativas de origem que emerge da bibliografia
dos estudos folclóricos em meados do século XX” (2006b, p.104). Ela mostra que Mário de
Andrade (1982), nas primeiras décadas do século XX, localizou como núcleo de sentido da
brincadeira seu enredo dramático e a, partir disto, cristalizou-se a ideia de que, na origem
82
histórica da brincadeira, haveria a encenação de um auto. Assim, nos estudos dos folguedos
do boi, foi estabelecida uma relação equivocada entre o bumba-meu-boi e o auto. Os estudos
posteriores passaram a se referir ao auto e à narrativa canônica de Pai Francisco e Catirina
como chaves de compreensão da festa. Cavalcanti afirma que o tema da “morte e da
ressurreição do boi precioso” faz parte do aparato mítico desta festa, mas isto não significa
que tenha de haver uma encenação do mito, menos ainda que a dramatização precise
corresponder a um roteiro preciso. As discussões empreendidas por Cavalcanti (2006b) e
Carvalho (2005), assim como a experiência de campo que tive, levaram-me à conclusão de
que a festa não pode ser definida a partir do auto. Na maioria das apresentações que
presenciei, não havia autos ou matanças. Apenas na festa em Santa Rosa pude presenciar uma
matança.
A festa em Santa Rosa
Foram chamados dois grupos de bumba-meu-boi para brincar naquela noite de 24 de
junho de 2009: o de Ipiranga e o do Cajueiro. Não é tão comum ter dois bois numa noite só,
podemos pensar que isto seja uma forma de dar ao dono da festa prestígio. A festa se
desenrolou da seguinte maneira: no começo da tarde os integrantes de cada grupo foram
chegando aos poucos e se organizaram em duas rodas no pátio, onde se desenrolou a
brincadeira. Ainda sem as roupas rituais, começaram a tocar os instrumentos. Ao anoitecer,
foram comer o jantar oferecido pela dona da festa. Foi interessante porque, ao saírem do pátio
e entrarem na casa para a refeição, os brincantes continuaram tocando em fila, mostrando que,
naquela noite, a maioria das ações seria ritualizada, até a alimentação. Mais tarde, colocaram
os trajes da festa e formaram novamente duas rodas. Fizeram uma brincadeira e, nesta hora,
apareceram os cazumbas. Mas a festa ainda não estava oficialmente iniciada, o que
aconteceu quando foram feitas a reza (momento em que são feitas orações) e o guarni
(quando são cantadas toadas que preparam o boi para começar a dançar). Ao terminar o
guarnicê, o boi foi brincar no terreiro.
Por volta das 2 horas da manhã, começou o ritual da matança. É uma etapa muito
importante da festa, pois sua execução faz parte do pagamento da promessa. Nele é encenada
a morte do boi e depois sua ressurreição. A história é toda narrada em versos que, em alguns
momentos, são proferidos como falas e, em outros, em forma de música através das toadas.
Como os brincantes proferem de forma rápida algumas falas e pelo fato de eu não ter
83
compreendido todas as letras cantadas, não consegui acompanhar toda a história encenada.
Porém, Neco, em fevereiro de 2009, me auxiliou a reconstruir as etapas da matança. A seguir,
falo sobre este ritual utilizando o que Neco me disse e o que pude ver.
No início, todos cantam uma toada que diz em seu refrão: “Orrei, orrei, meu boi vai
morrer”. Depois, uma música apresenta Catirina e Pai Francisco. Catirina é representada por
um cazumba com um pano na cabeça. Pai Francisco é representado por um cazumba que
utiliza um boné na cabeça e uma “espingarda” feita de papelão. É anunciado que Pai
Francisco vai matar o boi. Depois de um tempo, ele assim o faz. silêncio. Então, cantam
uma toada triste e levam o boi do alto até o chão.
84
Figura 18 (esquerda): matança realizada em festa no povoado de Santa Rosa, no período
junino, no dia 24 de junho de 2009. Pai Francisco agachado e Catirina com pano na cabeça.
Foto de minha autoria
Figura 19 (direita): matança realizada em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino,
no dia 24 de junho de 2009. Pai Francisco com sua “espingarda” na mão. Foto de minha
autoria
Figura 20: matança realizada em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino,
no dia 24 de junho de 2009. Vaqueiro dançando com o boi. Foto de minha autoria
85
Em seguida, o amo (dono da fazenda) tenta descobrir quem matou o boi. Ele pergunta
a diversas pessoas se elas o mataram e elas negam. Ele chama Pai Francisco para conversar e
ele também nega. Pai Francisco diz que foi o cazumba o culpado e eles têm uma briga. Em
determinado momento, Pai Francisco assume o seu feito, explicando que agiu a partir do
desejo de Catirina pelo fígado do boi. O amo pede então que Pai Francisco retire a língua do
boi
27
e dê para a dona da festa. Esta é uma ação ritual importante, feita com toda a seriedade.
Se durante a maior parte da matança tudo é levado em tom de brincadeira, neste momento não
lugar para graças, que o recebimento da língua do boi pelo dono da festa é um ato que
confirma o pagamento da promessa. Depois que é feita a entrega para a dona da casa, o doutor
é chamado para ensinar um remédio para o boi levantar. Cantam-se toadas e o boi ressuscita.
Sobre este momento Neco disse: “Na hora que o boi levanta, que tirou a língua, é bonito. O
povo está tudo com vontade, apitou, escolhe toada boa, é bonita a hora que boi levanta, 5
horas da manhã” (figuras 18, 19 e 20, p.84).
Muitos dos brincantes da festa não participam da matança e ficam em outras partes do
pátio conversando, bebendo e até tocando instrumentos. A maioria daqueles que participam
do ritual é mais velho, com mais de 40 anos. A matança não é uma atividade apreciada por
todos aqueles que vão à festa, mas é uma etapa necessária de ser feita, fundamental para o
cumprimento da promessa. Percebi também que era importante realizar o ritual de maneira
correta. Às vezes, sente-se que o ritual está sendo feito de um modo burocrático, que os
versos são em sua maioria decorados e os brincantes, muitas vezes, não saboreiam as falas,
sendo difícil entender o que dizem. Em poucas ocasiões são feitos improvisos cômicos, que
levam os participantes ao riso. Podemos pensar que este modo menos entusiasmado de
proferir as falas demonstraque o mais importante na matança não é o contentamento do
público. Parece que o fundamental é que o ritual seja realizado com exatidão, que o seu
“roteiro” seja cumprido, garantindo assim que a promessa seja paga, e que não é o modo de
fazer que define a qualidade do ritual, mas sim a realização de todas as etapas prescritas.
27
Existe um artefato que representa a língua do boi.
86
Cazumbas em Santa Rosa
Durante a noite, os cazumbas agiram das mais diferentes formas: dançando, atuando
comicamente, realizando pequenas transgressões, encenando a matança etc. Muitos deles
eram jovens. A indumentária utilizada era mais simples do que aquela que encontrei em São
Luís. Muitas fardas, a veste usada pelo cazumba, eram feitas, por exemplo, com lençol.
Havia algumas máscaras de produção industrial e outras artesanais. Porém, a maioria
dos cazumbas usava máscaras de plástico, compradas em lojas.
28
É interessante, pois os
brincantes não pareciam menos cazumbas sem a máscara artesanal; em suas atuações rituais
tinham vez por outra o lado cômico mais desenvolvido que os cazumbas do Boi da Floresta,
que usam as máscaras artesanais. Abel é radical em relação à necessidade das máscaras
artesanais para a composição do personagem; para ele, só elas se chamam caretas e, segundo
comentou comigo nesta noite, “Cazumba sem careta não é Cazumba” (figuras 21 e 22, p.87)
A máscara é um elemento central na composição do personagem, pois delimita seus
contornos. Mas sua existência não é imprescindível para todos (mesmo que para Abel o seja).
O cazumba Mauro, que estava com problemas nos olhos e não podia cobrir o rosto,
brincou sem careta e não foi considerado menos cazumba por isto (figura, 23, p.87). Os
cazumbas que utilizam as torres muitas vezes se cansam de suportá-las sobre a cabeça, já que
são pesadas, e dançam com um pano amarrado no rosto.
No entanto, é curioso ver que um tabu maior em relação a tirar a máscara na
Baixada do que no Boi da Floresta. Se em São Luís vemos o rosto dos brincantes mais vezes,
na Baixada isto só aconteceu em casos como o de Zé Mauro, que tinha um problema de saúde.
Os demais cazumbas que precisavam tirar a máscara colocavam, pelo menos, um pano
cobrindo o rosto.
Voltando à discussão em torno das máscaras de plástico, é interessante ver que mesmo
que elas sejam produzidas industrialmente, o que gera uma padronização dos formatos, os
cazumbas as enfeitam, construindo assim uma máscara única. Essas máscaras de plástico têm,
em sua maioria, o formato de monstro, sendo bastante assustadoras. O pátio onde foi realizada
a apresentação era bem escuro e, assim, os mascarados ficavam ainda mais estranhos.
28
Alguns brincantes com quem conversei na Baixada explicaram que muitos cazumbas recorrem a ela porque
não sabem produzi-las e é muito caro encomendar uma careta artesanal.
87
Figura 21 (esquerda): cazumba com máscara de plático em festa no povoado de Santa Rosa,
no período junino, no dia 24 de junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 22 (direita): cazumba com torre em festa no povoado de Santa Rosa, no período
junino, no dia 24 de junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 23: cazumba Zé Mauro dançando sem máscara em festa no povoado de Santa
Rosa, no período junino, no dia 24 de junho de 2009. Foto de minha autoria
88
Pude presenciar diversas ações rituais dos cazumbas nesta noite. Enquanto os grupos
tocavam, eles dançavam no meio da roda de forma intensa, tocando os sinos. Nos intervalos,
quando os músicos descansavam, eles faziam as palhaçadas, as macaquices.
Eles fizeram uma brincadeira em que contaram para mim a história de cada cazumba,
usando como referência o formato das máscaras de cada um. Um cazumba me disse que um
segundo era filho da Caipora.
29
Outro me disse que queimou a cara. Falaram que um dos
cazumbas teria tentado dar “psiu” a uma mulher, então, botaram uma estaca na sua boca e, por
isso, havia ficado com a cara deformada. O lado estranho deste personagem é explorado por
eles. Vi uma cena na qual alguns cazumbas dançavam forró juntos. Era cômico ver aqueles
seres com grandes nádegas dançando próximos (figura 24, p.89)
Os cazumbas parecem encarnar fortemente o personagem. Fiz, por exemplo,
perguntas a eles e não responderam como indivíduos, mas como cazumbas. A partir desta
situação, percebi que para fazer o trabalho de campo eu teria que entrar na brincadeira. Dois
cazumbas me deixaram levemente constrangida nesta noite. Numa ocasião, olhei para um
cazumba e ele se “alisou”, num ato que fazia referência a atitudes sexuais. Outro cazumba
tinha uma boneca na mão coberta por um pano. Quando me mostrei interessada em ver o que
havia por baixo do pano, ele me mostrou um pênis de madeira (figura 25, p.89)
O cazumba pode realizar atividades que não são permitidas no plano ordinário. No
caso do cazumba que se “alisou”, talvez outros homens na festa tivessem o desejo de me
“cantar”, que represento uma novidade naquele contexto, mas um cazumba pôde
expressar esta vontade, pois sua brincadeira lhe permite. Percebemos que o cazumba tem um
lado transgressor, porém gostaria de ressaltar que sua transgressão tem sempre um aspecto
cômico. Outra situação que presenciei também teve contornos ao mesmo tempo cômicos e
transgressores: vi uma cena em que um grupo de cazumbas brincava de sequestrar um rapaz
(figura 26, p.89)
29
Caipora é um personagem mítico local.
89
Figura 24 (esquerda): cazumbas brincando de dançar forró em festa no povoado de
Santa Rosa, no período junino, no dia 24 de junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 25 (direita): cazumba em festa no povoado de Santa Rosa, no período junino, no
dia 24 de junho de 2009. Por baixo do pano que segura na mão existe um pênis de
madeira. Foto de minha autoria
Figura 26: cazumbas brincando de sequestrar um homem, em festa no povoado de
Santa Rosa, no período junino, no dia 24 de junho de 2009. Foto de minha autoria
90
A relação entre o personagem e aquele que vida a ele abre caminho para
brincadeiras. Vi um jogo interessante entre os cazumbas jovens e as meninas. Elas queriam
saber quem eram os rapazes por trás da máscara. Elas pediam para saber a primeira letra do
nome deles, eles insinuavam que iam tirar a scara, e assim por diante. O curioso é que,
enquanto os cazumbas paqueravam as meninas que estavam na festa, tinham uma relação com
os meninos ali estavam presentes de provocação mútua. Os meninos instigavam os cazumbas
e estes corriam atrás deles, assustando-os.
Abel levou sua indumentária de cazumba para a festa, mas acabou não brincando.
Quando indaguei por que não iria atuar como personagem, ele disse que ficaria observando
para depois comentar a festa comigo. Naquele contexto, Abel parecia posicionar-se mais no
lugar de observador (como o meu) do que no de brincante. Em seus comentários sobre o
evento, ele se mostrava bem contente, mas reclamou de algumas mudanças vistas, delas
falando no dia seguinte: “tiraram pandeiro, está tudo mudado, não tem tambor onça, tem
caixa”.
Outras paradas
Nesta ida a campo, pude presenciar ainda um boi de promessa na cidade de Viana,
mas neste evento não houve a matança, o que mostra a existência de uma grande variedade de
formas de realizar a brincadeira. Lá conheci um grupo de cazumbas que brincava junto, o que
ajudou a confirmar minha hipótese de que este é um personagem que gosta de atuar
coletivamente, mesmo que cada um tenha liberdade de ação.
Também fui uma noite a um arraial organizado pela prefeitura na cidade de Matinha
(vizinha de Viana), onde pude ver em ação diversos grupos e conhecer vários cazumbas.
Presenciei então uma dinâmica de apresentação na qual os cazumbas estavam mais
preocupados em exibir suas máscaras do que em realizar brincadeiras. Algumas máscaras que
encontrei por eram totalmente diferentes daquelas que conhecia até então. Se até ali tinha
visto as máscaras menores que cobrem apenas o rosto, ou as torres que têm uma parte que
cobre o rosto e uma estrutura que acima da cabeça, conheci em Matinha máscaras diferentes
desses modelos mais recorrentes, como uma feita em isopor, que era uma peça inteira que ia
dos pés do brincante até bem acima de sua cabeça e representava um homem. Nela existia
apenas um pequeno buraco na altura dos olhos do brincante para que ele pudesse enxergar.
91
Isto revela que a heterogeneidade é uma forte marca das máscaras e que é impossível
determinar todos os tipos existentes na festa, que sempre é possível que se invente uma
nova forma de fazê-las.
Foi ali que conheci o cazumba que utilizava uma careta feita por Abel. Nesta viagem,
também pude entrevistar um cazumba adolescente, o Cleiton, que me ajudou a compreender o
que é ser um jovem cazumba na Baixada (figuras 27, 28, 29, 30, p.92).
3.1.3. Sobre cazumbas e caretas na Baixada
Cazumbas na Baixada
Nas viagens realizadas à Baixada, ficou claro que não havia uma única maneira de ser
cazumba. Contudo, observei que existiam regularidades. Assim, a seguir, exponho algumas
generalizações sobre o contexto festivo desta região, mas também abordo a heterogeneidade
que ali existe. Durante a pesquisa, constatei que a questão “diversidade x unidade” do
cazumba é comum a todo o contexto festivo que etnografei. Muito daquilo que falarei neste
item sobre a Baixada é comum ao Boi da Floresta, mas também diferenças sensíveis entre
um e outro.
O bumba-meu-boi é uma das festas mais importantes da Baixada maranhense e, como
vimos, existem vários tipos de apresentações na região. Cada uma delas pode durar a noite
inteira ou uma hora, ter motivo religioso ou não, ser paga em dinheiro ou acontecer em troca
de alimentação e bebida para o grupo etc.
92
Figura 27 (esquerda): cazumba com máscara em madeira em arraial em Matinha, no
período junino, no dia 26 de junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 28 (direita): cazumba com máscara que representa um homem, feita em isopor,
em arraial em Matinha, no período junino, no dia 26 de junho de 2009. Foto de minha
autoria
Figura 29 (esquerda): torre em arraial em Matinha, no período junino, no dia 26 de
junho de 2009. Foto de minha autoria
Figura 30 (direita): cazumba com máscara feita por Abel Teixeira em arraial em
Matinha, no período junino, no dia 26 de junho de 2009. Foto de minha autoria
93
“Função estética” e “função performativa"
Assim como no Boi da Floresta, na fala de alguns brincantes da Baixada também
encontramos um tom de crítica em relação à atuação contemporânea dos cazumbas. Nico
(fevereiro de 2009) mostra sua posição:
Antes saía, roubava coisa, ninguém falava nada, hoje não pode, já chamam a
polícia, chegava em casa às 4 horas da tarde. Hoje não tem mais graça, o
cazumba hoje em dia é luxo, é para mostrar farda bonita, uma careta,
aquela coroazona grandona. Isso que acontece. Antes tinha mais graça.
Nico parece opor um passado mais livre a um presente no qual este personagem não
pode exercer suas travessuras com liberdade e está mais preocupado com a exibição de sua
farda e de suas máscaras grandes. Um passado em que as transgressões na vida diária o
tinham se banalizado (furtos, roubos, desacatos) e, por serem extraordinárias, quando
ocorriam no contexto da festa. eram não apenas permitidas, mas tornavam-se engraçadas.
É curioso ver que a careta ocupa lugar importante nesta comparação feita por ele. Sua
crítica ao modo de brincar no presente está relacionada, entre outras questões, ao uso das
torres, chamadas por ele de coroazonas. Ele faz uma associação entre a máscara utilizada e a
qualidade da ação ritual do personagem.
Podemos pensar que ele também aponta para o fato de que, dependendo da máscara
utilizada, os sentidos da ação ritual do cazumba se modificam: as torres parecem estar
atreladas a um modo de ação ritual que enfatiza a exibição; o uso das máscaras pequenas
estaria relacionado a um modo de atuação mais ligado ao lado cômico do personagem.
Nesta disputa não pretendo me posicionar afirmando qual é a maneira mais
interessante de se brincar, porém pude constatar, durante o trabalho de campo, que conviviam
contextos diversos de apresentação do cazumba. Por exemplo, nas apresentações de uma hora
realizadas nos arraiais, parecia que o mais importante era exibir as torres. É possível avaliar
que, nestas situações, sua “função estética” estivesse mais ativada. Já nas festas que duravam
a noite inteira, o foco parecia estar colocado nas atividades lúdicas do personagem. Neste
caso, é possível afirmar que sua “função performativa” é mais ressaltada.
Apesar de Nico fazer um discurso de oposição entre as duas práticas, muitos dos
cazumbas vivem esta questão de outra maneira. Como foi dito, é comum a mesma pessoa ter
duas máscaras, uma pequena e uma grande, que podem ser usadas dependendo da situação.
Também percebi que o exercício de atividades lúdicas não se realiza em total oposição à
94
exibição das máscaras. Mesmo que alguns contextos exaltem mais um lado do que o outro,
independente da situação, o cazumba revela em algum nível o seu caráter lúdico e de exibição
de sua indumentária. Esta é uma discussão também presente no Boi da Floresta, o que nos
leva a refletir ser este um debate relevante para todo o contexto festivo pesquisado. Talvez
seja possível afirmar que a “função estética” e a “função performativa” sejam duas
polaridades da ação ritual do cazumba. Elas estariam sempre presentes (sendo
complementares) mas, dependendo da situação, uma função seria mais ativada do que a outra.
Ações rituais dos cazumbas
Em alguns quesitos, a atuação dos cazumbas da Baixada era parecida com aquela
realizada pelos integrantes do Boi da Floresta, mas em outros não era. Um ponto que
diferencia a brincadeira nos dois lugares é o fato de os cazumbas da Baixada, quando em
ação ritual, realizarem uma separação maior entre suas atitudes como pessoas e aquelas como
personagem; quando estavam brincando, pareciam “entrar mais no personagem”.
Gregory Bateson (1972) descreve as características da moldura comunicativa da
brincadeira. Segundo ele, a moldura comunicativa da brincadeira é aquela que está
subentendida quando dois ou mais organismos estão realizando ações que parecem ser um
determinado tipo de ação, mas que não é. Este é o caso de duas meninas “brincando de
casinha”: elas “cozinham”, limpam a “casa”, cuidam dos “bebês” como se estivessem fazendo
isto realmente, mas na verdade não estão, e ambas sabem disso. A moldura comunicativa da
brincadeira estabelece a mensagem metacomunicativa “isto é brincadeira”, a qual permite que
as pessoas ajam adequadamente de acordo com a premissa compartilhada.
Parece que no contexto da festa na Baixada os brincantes levam mais a sério a
mensagem metacomunicativa “nós somos cazumbas”. Assim como as crianças que “cuidam
de bebês”, sabendo que não têm bebês de fato, mas levando a sério esse ato, os brincantes não
acham que são cazumbas, mas levam muito a sério a brincadeira de ser este personagem. Isto
se revelou, por exemplo, quando os cazumbas de Santa Rosa responderem às minhas
perguntas quando eu as formulava para o personagem. Percebi então que, para me relacionar
com eles naquele contexto, teria que me submeter à moldura metacomunicativa instaurada
pela festa. No Boi da Floresta também tive experiências parecidas, porém na Baixada a
moldura era mais respeitada.
95
A teorização de Bateson nos ajuda a pensar outras questões interessantes a respeito da
atividade do cazumba. Na sequência do texto, Bateson escreve sobre o caráter instável da
moldura metacomunicativa da brincadeira. Um exemplo ajuda a entender tal questão. Quando
dois irmãos, um menino e uma menina, estão brincando de brigar, o divertimento é
perpetuado enquanto está muito claro para ambos que o que fazem é uma brincadeira. Porém,
se o menino der um tapa um pouco mais forte na menina, ela pode entender que aquilo foi um
tapa sério e, assim, é possível que uma briga de fato comece. Desta forma, a moldura da
brincadeira se mostra frágil. Para que ela se mantenha, é preciso que aqueles que estão sob
sua égide atuem adequadamente, mas isto não só basta, já que os mal-entendidos podem fazer
com que o enquadramento se quebre. Bateson deu um exemplo que também pode ser útil na
compreensão deste ponto. Ele mostra que, nas Ilhas Andaman, quando há uma guerra, a paz
é restabelecida quando cada um dos lados um golpe final no outro. Bateson revela a
fragilidade da moldura dizendo que, se os golpes cerimonialísticos forem confundidos com
golpes reais, o ritual pode se transformar num combate de fato.
Vários cazumbas me relataram que só podiam realizar brincadeiras transgressoras com
quem estivesse habilitado a entender que aquilo era uma brincadeira. O cazumba Cleiton
(junho de 2010) disse: “A gente brinca com quem a gente sabe que gosta da brincadeira. Tem
gente que a gente não puxa brincadeira. Tem gente que já quer brigar”. Cleiton parece revelar
que suas atividades como cazumba podem ser exercidas plenamente se aquele com quem
ele se relaciona compartilhar a premissa de que aquilo é uma brincadeira, caso contrário, a
situação pode se tornar numa briga séria.
Carvalho (2009) nos ajuda a entender as transgressões cometidas pelos cazumbas. Ela
fala sobre a descrição feita por Anthony Seeger (1980) dos Suyá, em que os mais idosos da
tribo podiam realizar o que os jovens não tinham permissão para fazer. Carvalho nos revela
que palhaços do bumba-meu-boi (de Guimarães, outra região maranhense) também podiam
fazer o que os homens comuns em situações ordinárias não tinham permissão para fazer. Ela
explica que os palhaços podiam avançar sobre a liberdade alheia e que isto não era visto como
desrespeito, pelo contrário, era considerado normal. Ela argumenta que existe esta
possibilidade porque a permissão para que sejam rompidas as regras morais, e este
rompimento é controlado socialmente. Podemos comparar os palhaços de Guimarães aos
cazumbas, que também parecem ter permissão para realizar o que os homens comuns não
podem fazer no tempo ordinário.
96
Sobre os sentidos do personagem
Quando perguntei a alguns brincantes da Baixada quem era esse personagem, ouvi
diferentes respostas: Genilson (fevereiro de 2009) disse: “Na tradição ele era o cachorro, que
trazia o boi para matar”. Genilson mostra que o cazumba funciona como uma espécie de
carrasco no mito associado à festa do bumba-meu-boi.
Sobre o cazumba, Nico (fevereiro de 2009) falou: “O cazumba é um velho gagá que
tinha na fazenda, o Pai Francisco. Diziam que até virava bicho”. Em sua fala ele faz referência
ao mesmo tempo às características animalescas (bicho), humanas/grotescas (velho gagá) e
sobrenaturais (virava bicho) do personagem. Nico também faz uma associação entre o Pai
Francisco e o cazumba. As outras repostas foram bem similares.
O discurso mítico atrelado à figura do cazumba não dava conta, entretanto, de
entender plenamente os seus sentidos na Baixada. Sua atuação ritual, porém, me ajudaria a
compreendê-lo melhor. Turner (2005) sugere que, na análise antropológica dos símbolos
rituais, deve se levar em conta, além da interpretação nativa, a observação dos símbolos em
ação ritual. Seguindo este autor, tomo o cazumba como um símbolo ritual e, para além do
discurso mítico atrelado à sua figura, trago minhas observações da ação ritual deste
personagem. A festa de Santa Rosa, por exemplo, nos permitiu ver o cazumba em uma série
de ações rituais: dançando de maneira intensa com seu sino na mão, “sequestrando” um rapaz,
brincando de me cantar, como ser grotesco dançando forró, assustando os meninos,
paquerando as meninas etc.
A fala dos brincantes sobre a ação ritual dos cazumbas também pode ser reveladora. O
olhar do brincante José Santos, com que conversei em Matinha (junho de 2009) sobre a ação
ritual do cazumba, revela um pouco o lugar do personagem na festa: “É a maior graça um
cazumba”. Podemos dizer que o cazumba desperta sentimentos múltiplos em quem o assiste:
é um personagem que faz rir, mas pessoas que dizem não gostar que o cazumba se
aproxime delas em uma apresentação, já que ele assusta e tem seu lado malvado.
97
Sobre a sua atuação como cazumba na festa, Onório Serra (fevereiro de 2009) disse:
Eu enfeito muito a boiada, chama a atenção a boiada. A boiada que estou
brincando é muito aplaudida. Onde eu estiver brincando é aplaudida a
boiada, até os bailantes se animam na cantiga. Se a brincadeira meio
devagar, eu animo. Eu chamo a atenção. Tem um monte que se apronta e não
sabe dançar. Eles não sabem fazer a careta e não sabem dançar.
Parece que Onório a realizão correta da dança como um exercício fundamental
para ser um cazumba bem-sucedido, que, durante as apresentações, na maior parte do
tempo o personagem está dançando. A dança costuma agradar, entre outros motivos, pelas
grandes nádegas do personagem, que dão força ao seu lado grotesco e, quando balançam,
fazem todos rir. Onório também aponta para o fato de que o cazumba anima a brincadeira.
Se refletirmos conjuntamente sobre a atuação do cazumba no ritual da matança e
sobre os relatos sobre o lugar deste personagem no mito de “morte e ressurreição do boi”,
podemos ter pistas sobre os sentidos do cazumba. Na matança, quando o Pai Francisco é
acusado de matar o boi, ele diz que quem fez tal ato foi o cazumba; eles então encenam que
estão brigando. Neco (fevereiro de 2009) disse sobre esse momento: “eles fazem que estão
batendo no outro, na mão, vão no chão, é a maior danação, isso é que é a palhaçada”. Vemos,
assim, que o Pai Francisco e o cazumba se apresentam como espécies de palhaço.
A partir das reflexões empreendidas por Cavalcanti (2006b, 2006c) sobre as narrativas
da origem do folguedo do boi, podemos apreender que Pai Francisco tem importante papel no
mito de “morte e ressurreição do boi”, que é ele o responsável pela morte do boi, aquele
que instaura um momento de crise na Fazenda”. Sobre este aspecto do mito Cavalcanti (2006c)
atesta:
É impressionante como a situação de bonança e lealdade, que caracteriza o
ponto de partida do universo imaginado da fazenda, precipita-se rapidamente
em uma crise aguda instaurada pela traição da confiança depositada pelo
fazendeiro no vaqueiro: o boi querido e recém-chegado morreu (p.73).
Cavalcanti (2006b) propõe que analisemos o mito de “morte e ressurreição do boi”
como um “rito de passagem” (VAN GENNEP, 1978) e tomemos a morte do boi como fase
liminar”, ou seja, uma situação interestrutural, em que a ordem social está suspensa. Segundo
ela, Pai Francisco, por sua vez, ao trair a confiança do patrão, sai da posição de submissão
que lhe cabe no contexto hierarquizado da fazenda e se torna, neste momento, um ser liminar
(TURNER, 2005), que transgrediu a ordem social, provocou uma crise, passando assim a
ocupar uma posição marginal.
98
Alguns fatos poderiam apontar para uma espécie de identidade entre o cazumba e o
Pai Francisco: Nico ter associado o cazumba à figura do Pai Francisco; na matança o Pai
Francisco acusar o cazumba de ter matado boi; o Pai Francisco ser encenado na matança por
um cazumba, como no caso do boi de Santa Rosa, que coloca sobre a sua veste alguns
acessórios (como espingarda e boné) que ajudam a identificá-lo como aquele que matou o boi;
os dois personagens ocuparem o mesmo lugar de palhaços; o Pai Francisco e o cazumba
estarem ligados à morte do boi, que o primeiro é o que mata o animal e o segundo
(conforme disse Genilson) pode ser visto como um “cachorro” que traz o boi para ser morto.
A entrada mítica do cazumba, trazendo o boi para ser morto ou sendo acusado da
morte do boi por Pai Francisco, aproxima-o da posição de liminaridade experimentada por
este último. No entanto, ao contrário de Pai Francisco que se torna liminar ao matar o boi,
mas reagrega-se à estrutura social quando o animal é ressuscitado, o cazumba tem na posição
liminar seu estado permanente. Os sentidos deste personagem apontam para um ser que está
entre o animal e o homem, entre o sobrenatural e o natural, entre a ordem e a desordem, entre
a vida e a morte. Segundo Turner (2005), “essa coincidência de processos e noções opostas
em uma única representação caracteriza a peculiar unidade do liminar; o que não é nem isso,
nem aquilo, e, no entanto, é ambos” (p.144).
Como visto, os sentidos do cazumba são diversos. É possível rir do modo como o ele
dança, mas também se assustar com sua imagem. É possível rir das traquinagens que ele faz
com os outros e não gostar de ser alvo de suas brincadeiras. Ao mesmo tempo, o cazumba é
um personagem que anima a brincadeira e que trás vestes e máscaras exuberantes. No mito
relacionado à festa, ele é aliado do Pai Francisco e não se sabe se é um humano, um animal
ou um ser sobrenatural. Assim, o cazumba se apresenta como um personagem complexo, que
atrai, descontrai, mas assusta. Ele se mostra como um ser liminar que pode ser tomado como
símbolomultivocal, uma mocula sentica com muitos componentes” (TURNER, 2005, p.149).
Os sentidos do cazumba na Baixada assemelham-se àqueles associados ao personagem
no Boi da Floresta e, assim, podemos pensar que o cazumba é, de modo geral, um ser liminar.
Porém existem diferenças entre os contextos: na Baixada, o cazumba parece ter um leque
mais amplo de atividades rituais. Isto se mostra, por exemplo, nas diversas atuações lúdicas
que pude presenciar em Santa Rosa, não tão comuns no Boi da Floresta. Este fato não muda
significativamente os sentidos do personagem, mas desta forma, na Baixada, talvez seja
possível perceber o conjunto de características do personagem de maneira mais explícita.
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Percebi também que o cazumba tem ali suas atividades mais ligadas a questões relacionadas
ao universo rural. É possível refletir que os sentidos do cazumba se modificam de acordo com
o contexto festivo em que ele está inserido, mesmo que tenha algo que seja comum a todos os
meios nos quais ele se apresenta.
Caretas dos cazumbas na Baixada
A importância da máscara na atuação ritual do cazumba
Na rego da Baixada percebi a existência de uma diversidade de tipos de caretas com
formatos múltiplos, feitas com uma grande variedade de materiais: panos, pelos, lãs,
lantejoulas, isopor, madeira, pós brilhantes, feltro, alumínio, papéis coloridos etc. Vi máscaras
bem diferentes entre si nos diversos contextos nos quais pude observar os cazumbas em ão.
No boi de promessa, em Santa Rosa, havia muitas máscaras de plástico, mas também
artesanais; em Viana, havia algumas de plásticos, mas a maioria usava torres. Em Matinha, vi
também cazumbas com máscaras pequenas, feitas artesanalmente; muitas torres, com
tamanhos bem grandes e também algumas que se diferenciavam de tudo o que eu tinha
visto antes.
É interessante observar que o ambiente da Baixada é muito inventivo e há espaço para
um grande exercício da criatividade. Na verdade, a criatividade é estimulada pelo grupo
social, já que aqueles que conseguem fazer máscaras que se destacam, seja por sua altura, seja
pelos novos formatos, ou pela estranheza que provocam, são valorizados pelos demais.
As torres são bastante usadas na região da Baixada e aqueles que as produzem
participam de um intenso jogo competitivo. Todos querem exibir suas máscaras e ser
elogiados por elas. Os cazumbas e os espectadores comentam sobre quais são as torres que
mais se destacam.
É interessante ver que, mesmo que o cazumba use uma máscara pequena ou uma torre,
este objeto tem papel importante em sua atuação. Quando se usam as pequenas, elas são
importantes, porque sem elas o personagem não se define completamente e a ação ritual do
brincante fica prejudicada. No uso das torres, a máscara é tão significativa que a atuação do
cazumba é medida em grande parte pela sua qualidade, ou seja, o personagem se destaca se a
torre que o brincante usa é bem recebida.
100
Como foi dito, não utilizar uma máscara no rosto é muito malvisto no contexto festivo
da Baixada, já que assim o brincante que dá vida ao personagem mais se revela, diminuindo a
força ficcional do cazumba. Porém, presenciei situações nas quais os cazumbas usavam um
pano no rosto ou até mesmo nada na face. Parece que a máscara é importante para a
composição do personagem, mas não é imprescindível. Podemos pensar então que a
composição do cazumba depende de diversos fatores (como a dança, a veste, os acessórios, as
atitudes cênicas), e não somente da presença da máscara. Mesmo que percebamos que a
máscara tem papel significativo para a eficácia do personagem, torna-se necessário relativizar
seu valor.
Modos de se obter uma máscara
Existem muitas maneiras de se obter uma máscara para brincar na região da Baixada,
muitas delas são parecidas com as que existem no Boi da Floresta. Na Baixada, é possível
aprender com alguém a fazê-la, tentar construí-la a partir de iniciativas individuais, comprar
de algum artesão que a fabrique regularmente, ou comprar aquelas feitas de plástico. É
interessante, pois mesmo que se compre uma de um artesão ou uma industrial, o cazumba
dificilmente deixará de fazer algum acréscimo a ela por conta própria.
No caso das torres, normalmente se compra de algum artesão um queixo (parte que
cobre o rosto, normalmente feita em madeira) e constrói-se uma estrutura (muitas vezes de
isopor), que é encaixada nele e ultrapassa a altura da cabeça. A madeira para fazer o queixo
costuma ser a paparaúba ou tapiririca, muitas vezes vindas das partes mais rurais da Baixada.
O trabalho mais valorizado na feitura das torres é esta estrutura que vai além da cabeça.
Tenta-se fazer trabalhos com formatos inovadores, usam-se até luzes para enfeitá-la, e quanto
mais alta melhor.
O início do processo de produção da máscara ou parte dela (no caso daqueles que
fazem a parte de cima das torres) pode se dar de várias formas. O mais comum é que se veja
alguém produzindo e se tente fazer uma a partir desta observação, ou seja, um modo de
aprendizado diferente do escolar, mais informal. No entanto, em Matinha, na Baixada, um
grupo de cazumbas disse que aprendeu a produzir a máscara numa “Oficina de Cultura”, no
colégio. Este meio de aprendizado, no entanto, é bastante incomum na Baixada, mas mostra
como acontecem experiências múltiplas nesta região.
101
Fazedor artista
Uma fala de Onório Serra (fevereiro de 2009), que conheci na primeira viagem a
Viana, contribui para compreender melhor os artesãos das máscaras: “Lá em Matinha não tem
fazedor artista. No Maranhão todo mundo vai lhe citar Onório Serra”. Ao empregar a
categoria fazedor artista, ele parece realizar uma classificação dentro do universo de artesãos
da Baixada, apostando na existência de um grupo de artesãos que se diferencia em relação aos
demais.
Durante o campo, vi que é muito difícil estabelecer uma diferenciação entre os
diversos artesãos das máscaras na Baixada. Existem valores comuns a muitos destes atores
sociais, como a vaidade, forte em Onório. Porém, por mais que os produtores compartilhem
características entre si, percebi que alguns artesãos tinham mais projeção social no contexto
festivo do que outros. Apropriando-me da categoria utilizada por Onório, pergunto-me como
podemos definir os fazedores artistas. Tentarei realizar esta reflexão a partir do que pude
observar, das conversas que tive e das entrevistas feitas com Onório Serra e Nico, que podem
ser considerados fazedores artistas. Não vou citar Abel, pois este artesão não reside na
Baixada há muitos anos.
Talvez possamos dizer que os fazedores artistas seriam aqueles produtores das
máscaras que são reconhecidos pela excelência do seu trabalho no contexto da festa. Por mais
que Onório se autointitule fazedor artista, ele de fato é visto por seu grupo social como um
artesão que se destaca. Entre esses que têm uma projeção maior, alguns deles produzem
máscaras para terceiros e outros não. Eles podem simplesmente produzir para si mesmos,
destacando-se como um cazumba exuberante.
Normalmente destacam-se neste grupo aqueles cujas máscaras circulam por outros
contextos socioculturais. É interessante perceber que, normalmente, os que serão incorporados
a circuitos mais amplos de exibição das máscaras tendo sua obra exposta em museus,
participando de exposições e figurando em livros têm seu trabalho primeiramente
reconhecido dentro da festa. A partir da interlocução com os brincantes, muitos pesquisadores
chegam a esses produtores de máscara. Isto mostra que o processo de construção de
legitimidade dos artesãos que circulam fora da festa se muitas vezes em diálogo com
aqueles que fazem parte do contexto festivo.
102
Os que produzem para venda costumam ter outro trabalho durante o ano (como
agricultores, carpinteiros, comerciantes etc.), dedicando-se à feitura das máscaras no período
que antecede a festa. É interessante ver que Abel, que está inserido num outro circuito,
mesmo que seu trabalho se intensifique perto do São João, produz máscaras o ano todo, já que
muitos de seus consumidores não são brincantes.
Os artesãos com trabalho reconhecido pelos demais brincantes na Baixada costumam
enfatizar seu talento pessoal para a atividade. Existe a forte construção da ideia de que são
indivíduos que se destacam dos demais na produção das máscaras. É comum se dizer que
grande parte do que sabem se deve ao seu próprio esforço. Onório Serra (fevereiro de 2009)
atesta: “eu aprendi comigo mesmo, eu vi um tio meu que fazia, tentei fazer da minha cabeça,
depois voltei para olhar, e foi assim, depois fiz melhor que ele”.
Eles também costumam se ver como possuidores de grande capacidade criativa. Nico,
que figura entre aqueles que têm um trabalho que se destaca, relatou (fevereiro de 2009) o
início de seu processo de produção. Ele pediu para seu tio fazer uma careta para ele brincar
quando tinha 14 anos, mas seu tio teria dito: “não faço, você olha eu fazendo e faz”. A
primeira que Nico fez foi criticada, todos zombaram dela. Então, ele decidiu que no próximo
ano faria uma que todos iriam apreciar, uma diferente das demais. Ele fez uma máscara que
podia mexer a boca enquanto o brincante falava. Nico conta que seu tio não acreditou que ele
a tivesse feito sozinho. Ele me contou o que respondeu:
[...] Eu mesmo é que fiz, eu sou criativo, eu sei, eu não copio coisa dos
outros, eu sou criativo, eu invento as coisas, se alguém quiser copiar as
minhas coisas é problema deles lá, eu botei até cabelo. Quando ele viu a
minha, falou: por que você não faz uma para mim? Eu disse: se tu me
pagar. Daqui para frente quem quiser ganhar de mim que se vire.
Há controvérsias em relação ao fato de Nico ter sido o criador das máscaras que abrem
e fecham a boca. Abel me disse em entrevista que não tinha certeza se havia sido Nico.
Porém, independente disto, percebemos que a noção de criatividade é uma categoria que
orienta seu trabalho. Outros artesãos pensam de forma semelhante. Inclusive, se dizer inventor
de determinada técnica também é muito recorrente entre os artesãos. Onório, por exemplo, se
disse inventor das torres. Independente da veracidade destas informações, parece que uma
valorização das noções de pioneirismo, inventividade e originalidade entre os artesãos que
têm certa projeção dentro da festa. Também percebo que o jogo competitivo impulsiona a
atividade. Tanto Onório como Nico aprenderam com seus tios e se orgulham de ter suplantado
103
o trabalho de seus mestres. Assim, vemos uma série de características em torno dos fazedores
artistas. Parece haver um forte processo de investimento em suas subjetividades e, a partir
disto, consideram-se especialmente criativos, talentosos, inovadores e pioneiros, destacando-
se dos demais. Esta perspectiva que têm de si mesmos é compartilhada, de certo modo, pelo
grupo social no qual estão inseridos.
Tentei realizar generalizações sobre o que Onório chamou de fazedores artistas. É
preciso dizer, no entanto, que estou ciente do fato de que existe uma grande diversidade de
artesãos na Baixada e, portanto, aqueles que têm seu trabalho reconhecido dentro da festa,
mas com perfil diferente do que descrevi acima.
Também gostaria de pontuar que por mais que esses fazedores artistas vivam tais
questões com especial intensidade, no contexto festivo, a maioria dos produtores compartilha
muitas destas características. A feitura da máscara como um processo de construção de algo
singular, relacionada à individualidade de seu produtor, não é privilégio destes fazedores
artistas, é algo disseminado. Isto se revela nos processos de enfeite das máscaras, que podem
acontecer quando se compra uma máscara de alguém em madeira crua; quando se compra
uma máscara de plástico ou uma máscara que foi utilizada. No caso das torres, isto se
também quando um brincante compra o queixo de um artesão e constrói a estrutura que
ultrapassa a cabeça, por exemplo.
3.2. Reflexões sobre a inserção da scara no contexto festivo
Faço algumas considerações gerais sobre a festa em São Luís e os circuitos de
apresentação pelos quais pude transitar na Baixada. Enquanto na capital a maioria das
apresentações está inserida num grande circuito de exibição organizado principalmente pelo
governo do estado e do município em que se despendem consideráveis somas em dinheiro, na
Baixada as apresentações costumam ser organizadas basicamente pela sociedade civil e por
algumas prefeituras, em eventos de menor porte do que aqueles da capital.
Durante as festas, algumas pessoas da capital vão brincar no interior porque
consideram que as atividades são mais animadas. O contrário igualmente acontece:
brincantes do interior gostam de ir para a capital para se apresentarem nos arraiais que dão
prestígio. Também circulam objetos festivos entre a Baixada e São Luís. É mais comum
104
brincantes do interior venderem objetos para grupos da capital, como é o caso do cazumba
Genilson, de Viana, que contou (janeiro de 2009) ter vendido algumas máscaras para um
grupo de São Luís.
No campo, identifiquei a existência de um discurso sobre o interior como um espaço
no qual seria possível encontrar brincadeiras que remeteriam ao modo de brincar relacionado
a um passado que não se modificou. É interessante ver que, ao mesmo tempo em que existe
este discurso, durante a pesquisa na Baixada pude ver que a festa poré uma força ativa que
está sempre se transformando e que, inclusive, influencia a que acontece na capital, no sentido
de se modificar.
Pude perceber que o cazumba tem características gerais desenhadas (comuns a ambos
os contextos), mas que há também aquele que desempenha sua ação ritual de acordo com suas
características pessoais, seu grupo etário, ou o lugar em que está inserido. No Boi da Floresta,
os cazumbas tinham algumas nuances próprias em relação a esse contexto. Um exemplo é o
fato de em São Luís, onde se expressa com mais força o problema da violência urbana, os
cazumbas utilizarem metralhadoras de brinquedo, o que não foi encontrado na Baixada. É
interessante ver que a atitude transgressora faz parte do repertório de qualidades do cazumba,
mas ela é explorada de uma forma particular na capital.
Como dissemos, o cazumba é um personagem que existe basicamente nas festas da
Baixada e em alguns grupos da capital cujos fundadores vieram desta região. Assim, o
cazumba é pouco encontrado no cenário da capital. na Baixada, em quase todos os grupos
encontramos os cazumbas. Isto gera algumas consequências, como o fato de existir uma rede
muito maior de produtores de máscara na Baixada do que na capital. Como vimos, as torres
são bastante valorizadas na Baixada em função dos processos de rivalidade, e os brincantes de
São Luís também tentam incorporá-las em sua atuação ritual. Tanto na Baixada como no Boi
da Floresta as máscaras pequenas têm lugar. Notamos que na Baixada a moldura da
brincadeira parece ser incorporada com mais força e, quando os cazumbas entram em cena,
eles se veem mais como o personagem do que como eles mesmos.
Apesar das diferenças, é possível dizer que existem pontos em comum entre os dois
contextos em relação à produção, ao uso e à circulação das máscaras dos cazumbas, e este é o
aspecto que gostaria de aprofundar agora.
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Reflexões sobre as máscaras são abundantes na literatura etnográfica. Autores como
Mauss (2003, 2006), Marcel Griaule (1938), Claude Lévi-Strauss (1981) e Turner (1974,
2005) abordaram os usos rituais destes objetos em diferentes contextos etnográficos. Nos
estudos sobre manifestações da cultura popular brasileira destaca-se o trabalho de Bitter
(2008). Estes autores mostram as máscaras operando de muitos modos: ativando um ser
espiritual, localizando aquele que a usa na estrutura social de seu grupo, trazendo à cena um
personagem festivo etc. Apesar de revelarem utilizações distintas deste objeto cerimonial,
podemos pensar que existe algo de universal em seu uso, o que é apontado por alguns deles.
Mauss (2006) a descreve como um imenso adorno, cujo uso costuma acompanhar um
disfarce completo e, por fim, afirma: “o indivíduo mascarado é diferente de si mesmo”
(p.136). Mauss revela assim a capacidade da máscara de agenciar uma transformação no
sujeito que a coloca, fazendo com que ele experimente ser outro. Sua fala, no entanto,
apresenta uma situação paradoxal para o mascarado, que podemos resumir sua frase acima
da seguinte maneira: a é diferente de a. Este paradoxo provém do fato de a máscara impor
uma transformação que nunca é total: o indivíduo mascarado sempre é, ao mesmo tempo, ele
e o outro presentificado pela máscara.
Como visto acima, no caso da máscara do cazumba tal paradoxo sempre se evidencia.
Pude perceber que ele é explorado em algumas brincadeiras, como no jogo realizado na festa
em Santa Rosa, na Baixada, entre as meninas e os cazumbas que as provocavam, visando
saber quem eram os brincantes que estavam por ts da máscara. No Boi da Floresta, quando
fui conversar com Fabriciano e Bigu cazumbas do grupo que estavam sem o disfarce ritual
antes de uma apresentação perguntei a eles se atuavam no grupo como o personagem (o que
eu sabia ser verdade), e eles fizeram uma brincadeira comigo: um perguntava ao outro se
ele era cazumba e este afirmava que não.
Mesmo que o paradoxo seja explorado, na maioria das ações rituais busca-se esconder
ao máximo a presença do brincante por trás da máscara e de toda a indumentária do cazumba.
A atuação do personagem torna-se mais eficaz se o brincante aparecer acentuadamente como
cazumba e não como o sujeito que é no cotidiano. Porém, essa transformação nunca é total e o
tempo ordinário aparece no tempo festivo. É interessante ver que alguns aspectos do tempo
festivo também surgem no ordinário. Como já indicamos, alguns brincantes na vida cotidiana
têm características vistas como próprias do cazumba, e aspectos seus no tempo ordinário
confundem-se com os do personagem.
106
Bitter (2008) aponta que outra característica fundamental das máscaras é seu caráter
mediador. Segundo ele, “o uso ritual revela sua vocação mediadora, fazendo comunicar
domínios antes considerados separados, como vivos e mortos, homens e divindades, céu e
terra, visível e „invisível‟, natureza e cultura e assim por diante” (p. 178). É possível afirmar
que a careta intermedeia a figura mítica do cazumba e a ação ritual do personagem.
Vimos que o cazumba ocupa um lugar liminar no aparato mítico em torno de “morte e
ressurreição do boi”. A versão de Neco e de outros, tanto na Baixada como no Boi da
Floresta, ajudam a enfatizar esta compreensão. Vários relatos indicam o cazumba no limiar
entre a vida e a morte, que está associado à trama da morte do “boi” e, como disse o
cazumba Herbert, este personagem quer e ao mesmo tempo não quer que o boi morra. Esta
dubiedade do cazumba em relação à morte do animal nos leva a pensar que ele se interpõe
entre o Pai Francisco (que deseja a sua execução) e o boi (que não quer morrer). O cazumba
estaria assim entre o animal (boi) e o humano (Pai Francisco), mas também entre a ordem e a
desordem, pois ele se identifica com o personagem que transgride as regras impostas e, da
mesma forma, com o protegido do patrão, estando ligado ao polo da ordem social. Ele pode
ser visto ainda na fronteira entre o natural e o sobrenatural. Chamam-no de bicho do mato,
mas também se diz que ele tem poderes místicos.
É interessante observar que as narrativas míticas sobre o cazumba são diversas e nem
sempre coincidem. Isto ajuda a reforçar a ideia de que ele é um ser liminar. Segundo Turner
(1974), “os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente
ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de
classificações que normalmente determinam a localização de estado e posições num espaço
cultural” (p.117).
A máscara pode ser tomada como um objeto liminar, como aqueles descritos por
Turner (2005), que refletiu sobre os sacras objetos cerimoniais que são exibidos aos
neófitos nos ritos de iniciação. O autor diz que entre esses objetos estariam as máscaras e que,
ao analisar as ndembu, ficou admirado com a “maneira de representar certos traços naturais
ou culturais de modo desproporcionalmente grande ou pequeno” (p.148). Por exemplo, uma
cabeça ou um nariz ficam enormes ou minúsculos. Ele coloca que às vezes as coisas são
apresentadas em seus tamanhos normais, mas as cores utilizadas são incomuns. As máscaras
também podem combinar características masculinas e femininas, animais e humanas, de seres
animados e da paisagem natural.
107
Ao tentar entender o sentido de se apresentarem aos neófitos essas máscaras
monstruosas, Turner afirma que elas podem levar à reflexão sobre a realidade cultural, o que
ocorreria, pois os fatores da realidade cultural seriam isolados, reconstruídos de maneira
pouco comum e recombinados de forma diferente daquela do mundo ordinário. Assim, ao
olharem para as máscaras, os neófitos poderiam refletir sobre os fatores que compõem sua
sociedade e sobre o modo como são organizados em sua cultura. Ele escreve:
A liminaridade pode ser em parte descrita como um estágio de reflexão.
Nele, aquelas ideias, aqueles sentimentos e fatos que até aqui tinham
aparecido ao neófito enfeixados em configurações e que foram aceitos sem
pensar são, por assim dizer, decompostos em seus elementos. Esses
elementos são isolados e transformados em objetos de reflexão para os
neófitos por meio de processos, tais como o exagero dos componentes e a
dissociação por variações concomitantes (p.151).
A máscara do cazumba, assim como aquelas do ritual de iniciação ndembu, combina
elementos diversos em sua composição: algumas partes remetem ao mundo animal, outras ao
humano e aquelas que trazem o universo religioso à cena (sobretudo na decoração das
torres). Os tamanhos e as cores também não são realistas. Podemos pensar que a máscara do
cazumba opera no mesmo sentido dos sacras, levando à reflexão aqueles que entram em
contato com ela. No contexto festivo, a máscara ajudaria a dar visibilidade à liminaridade do
personagem. Posta em ação em conjunto com toda a indumentária que a acompanha
conduziria os que entram em contato com o personagem cazumba à reflexão sobre a realidade
conhecida.
A questão da eficácia ritual foi desenvolvida por vários autores, como Lévi-Strauss
(1975) e Malinowski (1976). Malinowski discute a eficácia das fórmulas gicas para o
sucesso das navegações do “kula”. Lévi-Strauss apresenta o caso de um xamã que através de
um canto ritual consegue levar uma parturiente a realizar um difícil parto. Ele afirma: “O
xamã fornece à sua doente uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados
não formulados, de outro modo informuláveis. E é a passagem a esta expressão verbal [...]
que provoca o desbloqueio do processo fisiológico (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 228). A
questão da eficácia é central para o estudo dos rituais, que eles podem funcionar (ou não
funcionar) em seus objetivos.
A máscara tem papel importante na eficácia ritual do cazumba. Se analisarmos o efeito
que o personagem provoca naqueles que assistem às suas apresentações, esta ideia será
reforçada. Sua simples presença, com sua indumentária e sua máscara monstruosa, mesmo
108
quando se encontra imóvel, provoca naquele que o assiste um sentimento de temor, mas
também de atração e curiosidade pelo personagem misterioso. O fato de o cazumba assustar e
atrair mesmo sem realizar muitas ações, mostra ainda mais a importância da máscara para a
eficácia do personagem. É possível afirmar que a máscara tem agência, no sentido colocado
por Alfred Gell (1998), que ela tem uma atuação social e é produzida para causar efeitos
nas pessoas. No entanto, na ação ritual, a agência da máscara depende de outros elementos
para ser efetiva. Ela precisa de toda a indumentária do cazumba e da pessoa que ativa o
personagem.
Ao mesmo tempo em que este personagem assusta e atrai, trazendo para si uma aura
de medo e suspense, ele tem uma veia cômica. O riso torna-o um personagem poderoso e
temível, uma entidade da qual se ri. Pierre Clastres (1978) reflete a respeito de dois mitos
indígenas do grupo Chulupi, que vive no Paraguai. O primeiro mito conta a história de um
xamã e o segundo a de um jaguar. Nas duas histórias os personagens se atrapalham nas suas
ações. Clastres diz que sempre que os mitos eram narrados os índios riam muito, e o autor
tenta entender do que estão rindo. Ele percebe que esses personagens, que faziam parte da
vida real do grupo indígena, eram temidos pelas pessoas, e que os mitos nos quais eles
apareciam em situações humilhantes permitiam que o seu poder fosse relativizado. Era um
momento no qual os índios podiam rir daquilo que temiam. Seguindo o pensamento de
Clastres, podemos pensar que no momento em que o cazumba realiza sua atuação ritual o
grupo está elaborando seus medos. É posto em cena um personagem que gera medo nas
pessoas, mas que, ao mesmo tempo, não deve ser levado totalmente a sério, que é um
personagem também cômico.
A máscara também participa da construção deste sentido complexo do cazumba. Na
ação ritual do cazumba, a máscara com suas formas monstruosas vem acompanhada das
grandes nádegas do personagem, e que fazem rir. O cazumba parado é engraçado,
acrescente-se a isto a sua dança, que pressupõe um jeito específico de balançar o cofo; então,
a cena fica ainda mais cômica o contraste estabelecido entre a máscara e as nádegas
potencializa o riso. Retomando Clastres, a visualidade do personagem elabora a ideia de “rir
do que se teme”, que a monstruosidade da máscara é desestabilizada por suas cômicas
nádegas.
109
A noção de realismo grotesco explorada por Mikhail Bahktin (1993) também permite
fazer uma leitura sobre esta questão. A partir da obra de François Rabelais, Bahktin faz uma
discussão em torno da cultura popular na Idade Média. Segundo ele, naquele momento,
o mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura
oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade,
essas formas e manifestações as festas blicas carnavalescas, os ritos e os
cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros,
palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e
multiforme etc. possuem uma unidade de estilo e constituem partes e
parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca,
una e indivisível (p.3).
O carnaval como manifestação exemplar do que ele chamou de realismo grotesco, ao
contrário da festa oficial, trazia a possibilidade de as pessoas se libertarem temporariamente
da ordem social estabelecida, que durante a festa as hierarquias, os tabus e as regras eram
ignorados. O carnaval trazia uma perspectiva diferente sobre a vida ordinária: a lógica das
coisas “ao avesso”. Ele seria uma espécie de segunda vida.
Segundo ele, as imagens grotescas se distanciam das imagens do mundo ordinário.
Seriam imagens que se oporiam àquelas clássicas do corpo humano perfeito. Um exemplo é
uma figura que traz “velhas grávidas”. O realismo grotesco estaria relacionado ao “baixo
corporal”, vinculado à parte inferior do corpo (ao ventre, aos órgãos genitais etc.). Rebaixar
seria aproximar-se da terra, entrar em comunhão com a terra, ao mesmo tempo renascendo.
Como nas “velhas grávidas”, enquanto “algo” está morrendo, um novo “algo” estará
nascendo, ou mesmo renascendo. Há sempre um começo constante. O corpo grotesco não está
acabado e supera seus próprios limites. Coloca-se ênfase, por exemplo, em partes do corpo em
que ele se abre para o mundo exterior (orifícios, protuberâncias, ramificações e
excrescências). O riso grotesco seguiria o mesmo princípio do corpo grotesco. Se no corpo,
algo está morrendo e algo está nascendo, o riso seria negador e afirmador.
O cazumba pode ser considerado um personagem grotesco. As nádegas grandes seriam
uma elaboração do “baixo” corporal que leva as pessoas ao riso. Sua figura ambivalente
apontaria para a vida e para a morte, para o sombrio e para o alegre. Com sua máscara
monstruosa, a figura assusta, mas em combinação com as grandes nádegas, torna-se uma
figura cômica. Assim como na experiência do carnaval, o cazumba também traz a ideia do
mundo “às avessas”, que ele faz aquilo que não se pode fazer no tempo ordinário. O
cazumba também traria a ideia de uma segunda vida. A sua atuação ritual mostra-se, assim,
110
efetivamente potencializada pela elaboração visual do personagem elaboração esta não da
máscara, mas também de toda a sua indumentária, como o cofo.
Considerando que a máscara é importante para a presentificação do personagem e para
o aumento da sua eficácia ritual, podemos pensar que o processo da sua feitura tem papel
relevante no contexto festivo. Ao produzir as máscaras, os artesãos estão ajudando a construir
o personagem. No campo, pude perceber que as scaras são muito heterogêneas entre si e
que isto não acontece de maneira aleatória. Quando alguém produz uma máscara, o seu
objetivo é que ela se diferencie das demais. Mesmo quando uma pessoa recebe uma máscara
feita por outrem, muitas vezes tenta torná-la única.
A máscara, assim como diversos objetos produzidos para serem utilizados no bumba-
meu-boi, circula dentro da festa. Muitos brincantes que não sabem produzir a careta
encomendam uma nova a um especialista. Máscaras utilizadas também circulam.
Dificilmente uma careta é posta de lado depois que um brincante não a quer mais; o mais
comum é ele passá-la adiante, doando-a ou vendendo-a. A mesma máscara ou um queixo
podem circular entre muitos cazumbas, trocadas sucessivas vezes. Assim como os colares e os
braceletes que circulavam num sistema de dom e contradom no ”kula” (MALINOWSKI,
1976), sobre os quais os nativos tinham conhecimento de toda a sua biografia, muitas vezes
também um controle da história da máscara ou do queixo, como podemos ver no relato do
artesão Nonato: “Os queixos andam muito, uns vendem, outros compram. Esse que tá com ele
agora brincou uma boiada, ele vendeu e comprou outro novo, eles vendem uns aos
outros. Tem época que ele em Viana, agora ele na Vila Zizi” (MAZZILLO, BITTER &
PACHECO, 2005, p.72). As trocas diversas podem envolver dinheiro ou não, sendo possível
fazerem parte inclusive de uma relação de troca com São João, como é o caso da careta que
Nilson ofereceu ao Boi da Floresta como dádiva ao santo para que um brincante do grupo a
utilizasse. Independente de como a troca foi feita, ao receber uma máscara de outro brincante,
é comum a pessoa enfeitá-la, tentando alcançar, entre outros objetivos, a sua singularizarão.
Os cazumbas parecem, assim, ter a necessidade de brincar com máscaras diferentes de
seus colegas, que este personagem é bastante individualizado dentro da brincadeira. Os
cazumbas gostam de brincar juntos, formam uma espécie de “bando”, mas também têm a
liberdade de atuar separados uns dos outros. Eles são conhecidos não pela especificidade
de sua máscara, mas também de sua “farda”,
30
da sua dança e das brincadeiras que fazem
30
Como já foi dito, farda é a veste que cobre todo o corpo do brincante que faz o cazumba.
111
com os que os assistem. Os outros coletivos de personagens, como os baiantes e os índios e as
índias, atuam sempre juntos, têm indumentária praticamente igual e coreografia idêntica. Esta
regularidade contrasta com a espontaneidade do cazumba e a ressalta.
Vemos assim que a singularizarão das máscaras faz parte da elaboração das
características do personagem, que parece ser mais individualizado dentro da festa. Esta
individualização do cazumba talvez esteja relacionada com a posição liminar do personagem
no sistema simbólico da fazenda, no qual ele não tem um lugar social bem definido e atua nas
margens. Os cazumbas parecem elaborar visualmente essa indefinição social e seu lugar
marginal. Poderíamos dizer que ele se identifica com o coletivo de cazumbas, porém nem essa
identificação é total, a indefinição do personagem é extrema e eles não se identificam
totalmente entre si.
Essa individualização reside no fato de os cazumbas serem os únicos personagens que
participam de uma competição entre eles. No contexto agonístico (MAUSS, 2003) mais
amplo do bumba-meu-boi, em que os grupos disputam entre si, apenas os cazumbas m
disputas internas. Como vimos, principalmente nas cidades da Baixada, existe um jogo
competitivo em torno das torres, que têm que ser cada vez mais altas e mais bem enfeitadas.
Os cazumbas do Boi da Floresta também participam desta rivalidade em torno das torres em
São Luís. Durante algum tempo, enquanto diversos cazumbas do grupo Santa (principal
rival do Boi da Floresta) a utilizavam, no grupo em que fiz pesquisa, elas não eram usadas
porque ninguém ali sabia produzi-las. Como a maioria dos grupos do chamado sotaque da
Baixada as utilizava, não tê-las fazia com que se ficasse em desvantagem neste jogo
competitivo, principalmente em relação ao seu principal concorrente, o boi de Santa Fé. É
interessante ver que a máscara é o elemento em torno do qual gira a competição dos
cazumbas, mostrando, mais uma vez, sua importância para que a atuação do cazumba seja
eficaz.
Na feitura das torres é comum colocar em cima de uma máscara pequena, que cobre
apenas o rosto e que costuma representar um ser zooantropomorfo, uma estrutura de metal ou
de isopor bastante alta que compõe uma imagem complexa, com materiais brilhosos, símbolos
religiosos, sistemas de luzes, fotos de familiares etc. A imagem formada remete a ideias
diferentes e mesmo contraditórias, que podemos ver um ser zooantropomorfo, mesmo
quando uma imagem religiosa sobre a cabeça, e ainda a foto de um familiar do brincante.
A máscara pode ser vista como uma “quimera”, a partir das proposições de Carlo Severi
(2006). As imagens quiméricas, segundo este autor, combinariam traços heterogêneos e
112
contraditórios e seriam salientes, pois o observador, ao entrar em contato com elas, seria
convidado a completá-las e a dar o seu sentido a elas.
A “quimera” aprofunda uma questão mais geral. Els Lagrou (2002) nos ajuda a refletir
sobre isto chamando a atenção para um aspecto importante da comunicação não-verbal: o fato
de ela não apresentar um sentido fechado. Segundo Lagrou, “nenhum trabalho ou expressão
carrega em si a totalidade dos seus sentidos. Não nenhum sentido inerente, secreto ou
absoluto a ser descoberto, a não ser no encontro entre o observado e o observador(p.54).
A torre também pode ser entendida como uma elaboração do “alto” corporal
(BAHKTIN, 1993), que ela remete para cima, trazendo símbolos da religião católica em
sua estrutura. O cazumba realiza, ao mesmo tempo, os sentidos ligados ao “baixo” e ao “alto”
corporal, o que revelaria, mais uma vez, a complexidade do personagem. É interessante
observar que nos limites da própria torre são elaborados o “baixo” e o “alto” corporal. A
máscara que cobre o rosto do brincante teria um formato grotesco, representando o plano
“baixo”, e a estrutura que está acima dela trazendo elementos religiosos, remetendo, por
exemplo, ao “alto” (ver figura 14, p.57)
Refletindo sobre o artesão da torre, podemos tomá-lo como um “bricoleur” (LÉVI-
STRAUSS, 1997), pois vai construindo-a a partir dos materiais que tem à mão e chega a
resultados que não são totalmente previsíveis no início do trabalho. Assim, a torre seria uma
obra sem um sentido único, que se modifica dependendo do artesão que a faz. Se pensarmos
que a torre ajuda a presentificar o cazumba, ou mesmo a construir seus sentidos, podemos
chegar à conclusão de que o próprio cazumba não tem sentido fechado. Assim, no contexto
festivo, os artesãos das máscaras têm um lugar importante, eles precisam ser inventivos,
originais e principalmente ter a capacidade de fazer máscaras que causem impacto sobre as
pessoas.
Apesar de haver muitas vezes entre brincantes a preocupação de singularizar a
máscara com a qual ativarão o cazumba, o processo total de sua produção não precisa ser
remetido a uma pessoa. Todos querem ser inventivos e originais na maneira de compor
suas máscaras, mas o processo da sua feitura pode contar com a ajuda de outras pessoas.
Existe o desejo de ser reconhecido como um artesão criativo, mas não percebi, de forma geral,
que entre a maioria dos brincantes exista uma preocupação de que o trabalho de artesania seja
totalmente autoral. Pareceu-me ser mais valorizado que o resultado seja diferenciado para que
a brincadeira possa ser mais eficaz. Esta preocupação com a autoria acontece mais no caso
113
dos especialistas, a quem Onório Serra, da Baixada, chamou de fazedores artistas. Eles
costumam elaborar sozinhos as suas peças (alguns não sabem fazer os queixos para as
torres), e são reconhecidos pela qualidade do seu trabalho. Quanto a este aspecto, os
especialistas se assemelhariam mais à ideia moderna de “artista”.
Paul Bohannan (2007) nos ajuda a pensar essa comparação entre as noções modernas
de “arte” e “artista” e as concepções sobre produtores e suas obras existentes em outros
contextos. Entre os Tiv da Nigéria, por exemplo, ele notou que a produção de objetos, tanto
artísticos quanto utilitários, tem um aspecto fortemente “comunal”, ao qual dificilmente se
escapa. Ele pôde constatar isto quando se aventurou na produção de bancos e cadeiras, tentou
fazê-los sozinho, e não conseguiu.
Não me deixaram fazê-los sozinho. No exato momento em que eu
descansava, algum espectador pegava a enxó e adiantava o trabalho um
pouco mais. Seguindo a tradição ocidental, eu experimentava a sensação de
completa frustração porque minha habilidade e criatividade estavam sendo
postas à prova. Durante alguns dias tentei insistir na afirmação de que queria
fazer o trabalho todo sozinho, mas logo desisti, pois todos achavam isso uma
tolice e nem sequer se lembravam dessa minha excentricidade. Afinal,
muitas de nossas cadeiras e bancos “a que não ficaram tão ruins”. Eu
participava da fabricação de todos eles, mas nenhum deles era trabalho meu
toda a vizinhança e metade da aldeia também trabalharam nele (p.151).
Segundo Bohannan, entre os Tiv existiriam os especialistas que fazem sozinhos todo o
trabalho e são conhecidos na comunidade pela qualidade de suas obras. Comparando os Tiv
com os artesãos/cazumbas, podemos dizer que em ambos os contextos, entre os não-
especialistas vigora uma lógica de produção que pode contar com a participação de várias
pessoas, embora entre os cazumbas seja também valorizada a criação individual.
Por fim, que a atuação do cazumba tem duas funções principais: uma “função
performativae uma “função estética”. A primeira delas estaria relacionada à realização de
brincadeiras durante a festa e a segunda estaria vinculada ao lugar do cazumba como um
personagem que exibe sua indumentária e que tem valor no folguedo por se destacar
visualmente. Dependendo do contexto, uma “função” ou a outra pode ser mais valorizada.
Pudemos ver que, nas apresentações feitas nos arraiais, muitas vezes a “função estética” do
personagem é mais valorizada; e em apresentações menores, de cunho mais comunitário, em
que se estabelece menos a separação entre aqueles que se apresentam e aqueles que assistem,
a “função performativa é mais enfatizada. Também foi possível ver que, dependendo do
contexto de apresentação e da “função” em que se queira colocar foco, usam-se máscaras
diferentes. Em apresentações cujo desejo maior é se exibir, alguns cazumbas utilizam as
114
máscaras maiores, as torres, e em apresentações cujo interesse está em realizar ações rituais
mais vigorosas, é comum o uso das pequenas. É preciso ressaltar que, independente do
contexto de apresentação e da máscara utilizada, as duas “funções” do cazumba são ativadas
em sua ação ritual. São funções opostas, mas complementares, que o cazumba sempre tem
uma atuação performativa e a dimensão estética deste personagem também é constantemente
valorizada. A questão é que alguns contextos enfatizam mais uma “função” e outros
enfatizam mais a outra.
Assim, é possível concluir que a máscara tem papel fundamental para que o cazumba
tenha eficácia ritual, tanto em sua função performativa” como em sua função estética”. A
máscara tem importância na “função performativa” do cazumba quando possibilita que a
figura mítica se estabeleça em suas formas, sendo possível o brincante realizar suas ações
rituais. Em relação à “função estética”, a máscara é essencial, que permite que se elabore
parte da visualidade do cazumba, que é muito valorizada na festa. Vimos que a máscara, ao
auxiliar o cazumba a exercer a “função estética”, está muitas vezes envolvida em processos de
rivalidade social.
Também percebemos que, apesar de a máscara se destacar na ação ritual do cazumba,
ela não é vista pelos brincantes como a única responsável pela ativação do personagem. Para
este ser instaurado, a máscara depende de toda a indumentária do cazumba, da pessoa que o
assume, assim como do contexto festivo no qual ele executa sua ação ritual. Só assim a
máscara é ativada e cumpre sua função ritual. Podemos dizer, para concluir, que o cazumba
que pode ser lido como uma figura liminar, grotesca, dissonante, quimérica etc. por meio
das narrativas míticas que o cercam, de sua atuação ritual, de sua indumentária e das formas
de sua máscara, permite que os brincantes entrem em contato durante o período festivo com
modos de viver diferentes daqueles experimentados no tempo ordinário, o que possibilita que
no retorno para o cotidiano se olhe para a vida social de forma diversa da habitual.
115
4. CAPÍTULO 3 - A CIRCULÃO DE ABEL E DA CARETA FORA DA
FESTA
A careta de cazumba, além de ser utilizada na festa do bumba-meu-boi, transita por
outros contextos sociais. Podemos encontrá-la em museus, na parede da casa de algumas
pessoas, participando de performances artísticas etc. Procuro neste capítulo refletir sobre as
relações sociais que possibilitam a inserção da máscara em outros meios; identificar e
problematizar o papel social daqueles que participam deste deslocamento; e analisar os
sentidos atribuídos a ela nesses novos contextos.
Como mostrado acima, Abel Teixeira tem papel importante no processo de
deslocamento da máscara para situações não-rituais. A inserção das caretas em outros
âmbitos que não o da festa se confunde com a sua trajetória. Isto fica claro pelo fato de a
maioria das máscaras que encontramos em museus e em outros espaços fora da festa ser de
sua autoria; ele é praticamente o único a vender para outros circuitos. É possível também que
as máscaras de Abel tenham sido as primeiras a ingressar nesses novos meios. De um
universo de inúmeros produtores de careta, Abel se destaca e se transforma num
representante desta produção em alguns circuitos.
Assim considerando, percebemos que, para analisar o processo de deslocamento social
deste objeto para contextos sociais diferentes do festivo, é pertinente refletir sobre a sua
história. Desta forma, neste capítulo, proponho-me a pensar também sobre Abel e sua atuação
na circulação da máscara; o processo no qual se constitui como “artista popular” em alguns
meios; o processo de individualização que sofreu diante do grupo Boi da Floresta; e a
possibilidade de utilizar o conceito de “mediação cultural” em seu trânsito entre os diferentes
contextos.
Nas conversas com Abel, o universo de circulação da careta por contextos exteriores à
festa foi se delineando. Desde nossas primeiras entrevistas, ele assinalou a importância de
Zelinda Lima para a sua inserção neste circuito. Como dito acima, ele contou que veio a São
Luís para cobrar o pagamento de umas caretas. Chegou na semana da festa, brincou e, ao
término dos festejos, resolveu tentar se estabelecer na cidade. Apolônio Melônio, o brincante
que lhe encomendara as caretas, conseguiu que ele fosse contratado para trabalhar em uma
Secretaria do governo estadual. Ele pediu o emprego à Zelinda Lima, integrante da elite local
e influente na área das políticas públicas para o campo da cultura popular no Maranhão,
pessoa próxima e que trabalhava no governo do estado. Este ato de Zelinda se constitui em
116
uma prática usual em contextos pessoalizados e hierárquicos, no sentido em que DaMatta
(1979) desenvolveu tais noções para compreender um plano de valores atuante na sociedade
brasileira. Nos contextos hierárquicos e este parece ser nitidamente o caso do Maranhão é
comum o estabelecimento de trocas entre a elite política e pessoas das camadas populares,
com valores como honra e gratidão sendo essenciais nessas transações (KUSCHNIR, 2007).
O caso do emprego de Abel também permite pensar o Boi da Floresta como “uma
agência mediadora” (GOLDWASSER, 1975), pois esta organização civil popular goza de
certo prestígio entre as elites locais e tem facilidade de contato com elas, o que possibilita que
seus integrantes ingressem em circuitos que dificilmente acessariam por sua própria conta.
Vemos Abel, por exemplo, obter um emprego e alcançar um lugar de valor social por
intermédio de seu grupo de boi.
Continuando a trajetória de Abel: quando Zelinda o conheceu, ele produzia máscaras
em madeira e ela o estimulou a criar uma máscara de pano, como anteriormente fazia em
Viana. Ele buscou atendê-la. A primeira careta foi vendida ao filho de Zelinda e, depois
disso, Abel nunca cessou de confeccioná-las para a comercialização fora da festa. Não foi
uma ação eventual de Zelinda, uma vez que ela prosseguiu estimulando o artesão. Com isto,
Zelinda tornou-se um personagem estratégico na ampliação do circuito de vendas de Abel.
Na década de 1980, ela conseguiu que ele fosse transferido para o Centro de Cultura
Domingos Vieira Filho, instituição do estado dedicada à divulgação e ao estímulo das
manifestações da cultura popular. Em janeiro de 2009, Abel me contou que, no Centro, estaria
encarregado de atuar como vigilante e também de restaurar peças do acervo da instituição. Em
relação ao segundo trabalho, ele não teria gostado de realizá-lo, pois não via muito sentido na
restauração de pas relacionadas às festas e às devoções populares, que para fazê-lo não
poderia interferir muito nas obras. Este detalhe é facilmente compreendido se lembramos a
dinâmica de reaproveitamentos de caretas praticada entre os brincantes do boi. Restaurar
seria, de certa maneira, imobilizar.
A concepção museal de fazer intervenções de conservação sem modificar muito a obra
não agradava a Abel. Mesmo depois de estar inserido na circulação fora da festa, ele
continuava não vendo muito sentido neste modo de guardar os objetos. Para ele, as obras
estariam mais ligadas ao uso, o que, pelo menos na festa do bumba-meu-boi, não demanda
que elas não se modifiquem de forma acentuada ou que não se faça uma totalmente nova
117
quando outra está deteriorada. Além disso, ele dizia não ter paciência para essas
restaurações.
Clarisse Kubrusly (2007), em estudo sobre uma boneca chamada “Calunga” que é
utilizada ritualmente no “Maracatu” pernambucano, mostra que seu deslocamento para os
museus representou para alguns brincantes uma espécie de morte do objeto. Segundo ela, “o
tipo de eternização e de preservação que o museu propõe inviabiliza a qualidade de „agência
espiritual‟ que o objeto até então exercia” (p.20). O caso exposto por Kubrusly e a perspectiva
de Abel sobre a restauração das máscaras revelam a existência de diferenças entre as visões
dos brincantes e aquelas dos profissionais de museus sobre alguns objetos rituais. Para Abel,
assim como para os brincantes de Maracatu, na ida para o museu, a máscara ou a Calunga
perde em parte seu real sentido.
No entanto, é interessante observar que a concepção de Abel sobre a musealização da
máscara é ambígua. Ao mesmo tempo em que estranha o enfoque dos museus, também gosta
de ver suas obras neles expostas. A posição de Abel, transitando entre o contexto festivo e
outros circuitos sociais, parece favorecer esta dupla perspectiva.
As pessoas entrevistadas relataram que, depois de um tempo de serviço, Abel começou
a usar o expediente no Centro de Cultura para fazer suas caretas. Podemos pensar que este
tempo disponível para fazê-las tenha impulsionado sua produção. Constatamos, assim, a
inteligência social de Abel, que percebe que naquela instituição não seria repreendido por
produzir as caretas durante o horário de trabalho.
Segundo seu depoimento ao livro Memória de Velhos (CARVALHO &
MONTENEGRO, 2006), Zelinda disse que tinha interesse nas manifestações culturais
populares desde a infância, que seu pai era comerciante e apoiava muitos brincantes,
ajudando-os a fazer festas. Em idade adulta, trabalhou na Secretaria de Turismo, no primeiro
governo de José Sarney no Maranhão, na década de 1960. Zelinda construiu sua trajetória
profissional atuando em agências governamentais neste estado, tendo ocupado diversos cargos
nas áreas de turismo e cultura do governo.
Segundo Braga (2000) e Cavalcanti (2009), Zelinda teve papel importante na
modernização do campo das políticas públicas para a cultura popular no Maranhão.
Cavalcanti, em diálogo com Braga, afirma que “a gestão de Zelinda Lima no Departamento
de Turismo Municipal marcou a decidida entrada das manifestações folclóricas maranhenses
118
no circuito turístico oficial que começou a ser montado na cidade” (op. cit., p.213). Ambas
indicam que naquele momento a entrada do folguedo do boi maranhense num circuito de
apresentações turísticas não teria sido vista de forma positiva por pessoas importantes do
campo das culturas populares
31
maranhenses, como Domingos Vieira Filho,
32
intelectual e
folclorista, que temia que essa inserção modernizante viesse a acarretar modificações
deletérias à festa.
Em entrevista, Zelinda (julho de 2009) contou que foi responsável por fazer chegar
muitas obras, entre elas caretas, aos acervos dos museus dedicados a expor objetos
relacionados às manifestações populares do Maranhão. Sobre seu acesso a essas caretas,
Zelinda conta que recebia doações dos grupos de boi ou as comprava. Ela teria feito chegar
muitas caretas de Abel a esses museus. Zelinda afirmou que acredita que Abel se destaque
dos demais artesãos pela qualidade de seu trabalho e o qualifica como “artista” e à sua careta,
como um objeto de “arte popular”. Em visita à sua casa por ocasião desta entrevista, pude
perceber que é uma colecionadora de outros objetos de “arte popular”, entre eles, várias
caretas. Zelinda Lima pode ser compreendida como uma forte “mediadora” na relação entre
Abel e seus novos circuitos de inserção social.
A noção de mediação em estudos urbanos foi desenvolvida em diversos trabalhos para
dar conta de agentes sociais que, no contexto das sociedades complexas, fazem “pontes” entre
meios sociais heterogêneos, permitindo que informações sejam trocadas entre contextos
diversos e que pessoas de perfis sociológicos e com práticas culturais distintas entrem em
contato (CAVALCANTI, 2006a; VELHO, 2001; VELHO & KUSCHNIR, 2001;
MASCELANI, 2001; SANTOS, 2009).
No caso da circulação da careta, fui identificando, ao longo da pesquisa, outras
pessoas que atuam como “mediadores” nesse processo. Um deles é o antropólogo Sergio
Figueiredo Ferretti, professor da UFMA, citado anteriormente, que se dedica ao estudo das
religiões afro-brasileiras (1995, 1996). Ferretti, segundo seus relatos (CARVALHO &
MONTENEGRO, 2006), além de trabalhar como professor universitário, também atuou
31
Podemos pensar o campo da cultura popular como um espaço de interação, construído socialmente, e
composto por pessoas de perfis socioculturais diversos (por produtores das manifestações festivas populares,
artesãos populares, pesquisadores, funcionários das agências governamentais de cultura, colecionadores etc.).
Este é um campo onde ocorrem trânsitos e circulam pessoas, objetos, instituições e outros.
32
Domingos Vieira Filho (1924-1981), relacionado ao “Movimento Folclórico Brasileiro”, teve papel
importante na formação de um campo de estudos folclóricos no Maranhão, assim como na institucionalização do
folclore dentro das políticas públicas neste estado.
119
profissionalmente em algumas ocasiões junto a agências governamentais ligadas ao campo da
cultura popular no Maranhão.
33
Ele integra ainda a “Comissão Maranhense de Folclore”.
Ferretti realizou diversas ações que impulsionaram a circulação de Abel e a máscara
por contextos exteriores à festa: doou algumas caretas para instituições museais; escreveu
alguns artigos sobre a careta de cazumba (FERRETTI, 1986; FERRETTI & MATOS,
2009);
34
acompanhou o artesão em viagem a Portugal; foi responsável por coordenar a
composição de um dossiê que foi enviado ao Ministério da Cultura e que resultou na titulão
de Abel como “Mestre da Cultura Popular”, em 2008. Em suas falas, demonstra considerar a
máscara como um objeto relacionado ao contexto afro-brasileiro, o que pode estar ligado ao
fato de ter como tema principal de seus estudos as religiões afro-brasileiras.
Maria Michol Carvalho também incentivou o trabalho de Abel. Ela trabalhou durante
muitos anos na Secretaria de Cultura do Maranhão, teve papel relevante nas políticas públicas
para o campo da cultura popular naquele estado e escreveu importante livro sobre o bumba-
meu-boi (CARVALHO, 1995). Ela comprou sistematicamente miniaturas das caretas de
cazumba, que Abel produzia, para dar de presente a pessoas que recebia na Secretaria de
Cultura. Essas miniaturas também eram vendidas nesta instituição governamental. Em
entrevista (julho de 2009), ressaltou as qualidades deste objeto por sua relação com o contexto
festivo.
Além das pessoas citadas acima, outras são importantes para a articulação do processo
que descrevo e compõem uma “rede” de pesquisadores, colecionadores, profissionais liberais,
servidores públicos etc. Maria Mazzillo é uma delas. Esta jovem fotógrafa conhece Abel
mais de 10 anos e desenvolveu forte amizade por ele. Na realização do livro Careta de
cazumba, com fotografias e depoimentos de cazumbas (MAZZILLO, BITTER & PACHECO,
2005), Maria viajou com Abel para Viana, tendo sido esta a primeira de outras viagens que
Abel fez para a Baixada com pesquisadores. Mazzillo também organizou uma exposição
sobre as caretas, financiada pela Caixa Econômica Federal (2008). Para a inauguração da
exposição, ela trouxe Seu Abel para o Rio de Janeiro. Atualmente, Mazzillo realiza um
documentário sobre a festa do bumba-meu-boi. Gustavo Pacheco, que organizou o livro junto
33
Entre outras funções, trabalhou com Domingos Vieira Filho na década de 1970, em órgão governamental
relacionado ao campo das culturas populares maranhenses, chamado Fundação Cultural.
34
Ferretti (1986) dedica a maior parte do texto à apresentação de Abel Teixeira. Enfatiza também a semelhança
das máscaras encontradas no Maranhão com as máscaras africanas. Mais tarde, Ferretti e Matos (2009) discutem,
entre outras questões, as origens históricas do cazumba e de sua máscara e afirmam que ambos têm origens
diversificadas e são frutos de diferentes diálogos culturais.
120
com Maria, também auxiliou Abel em sua trajetória. A pedido de Abel, ele e Maria
escreveram um texto a respeito da máscara do cazumba e do artesão, com a finalidade de
acompanhar as peças vendidas.
Outra jovem, Juliana Manhães, nasceu no Maranhão, mas vive no Rio de Janeiro
desde os 15 anos de idade. Ela é atriz, dançarina, arte-educadora e pesquisadora. Ela escreveu
uma dissertação de mestrado sobre o cazumba, tendo Abel como principal interlocutor do
trabalho (MANHÃES, 2009).
35
Juliana o conhece muitos anos, que sua mãe, a
psicanalista Elisabeth Bittencourt, tem relação estreita com Abel e Apolônio desde a cada
de 1980. Além de estudar a respeito dos cazumbas, ela também brinca de cazumba no Boi da
Floresta. Juliana faz performances teatrais vestidas como o personagem, tendo atuado com
regularidade como arte-educadora no Museu Casa do Pontal.
Elisabeth Bittencourt, que tem residência no Maranhão, teve papel importante na
trajetória de Abel. Admira muito o trabalho do artesão e ajuda a torná-lo conhecido, fazendo
chegar máscaras a diversas pessoas e escrevendo sobre ele (BITTENCOURT, 2009).
36
Ela
organizou um “desfile de cazumbas” com a participação de Abel Teixeira e de Bigu
(brincante do Boi da Floresta) em 1999. Ele foi realizado no Centro de Cultura Popular
Domingos Vieira Filho por ocasião do lançamento de um livro sobre a questão da moda, a
partir da perspectiva psicanalítica, escrito por Mauro Mendes Dias (1997). Ela contou (agosto
de 2010) que foram a esse evento pessoas ligadas ao campo da cultura popular maranhense,
como Ferretti e Michol. Segundo ela, Abel teria ficado feliz com a experiência e teria lhe dito
que esta situação teria propiciado que ele se destacasse individualmente em relação ao Boi da
Floresta. No grupo, sua atuação integrava as apresentações coletivas, e os cazumbas só faziam
sentido junto com os outros personagens; no desfile, apenas ele e mais um brincante
atuavam.
Existem outras pessoas nesse circuito. Não sendo possível elencar todas, tentei
destacar as mais atuantes. Podemos perceber, então, que uma “rede” de pesquisadores e outras
pessoas, que atuam e constroem o campo das culturas populares, ajuda seu Abel e a careta a
circularem. A noção de “rede social” foi desenvolvida por autores como Clyde Mitchell
(1969), A. Epstein (1969) e Elizabeth Bott (1976) para dar conta de um conjunto específico de
relações entre pessoas determinadas, possibilitando deduzir das características gerais dessas
35
Em sua dissertação de mestrado na área de Teatro, a autora abordou a atuação do cazumba. A pesquisadora
estudou a fundo o modo de brincar do personagem, refletindo, entre outras questões, sobre o “corpo brincante”.
36
Entre outras ideias trazidas pela autora sobre o cazumba e a careta, está a importância do “espanto” na
atuação do personagem e da estranheza sentida por aqueles que se deparam com a máscara.
121
relações o comportamento social das pessoas envolvidas. Pensar a partir das “redes” é
bastante útil para o estudo de fenômenos sociais, os quais acontecem, como a circulação da
careta, em sociedades complexas, em que as pessoas se ligam entre si e promovem ações
sociais para além de limites institucionais. Através deste instrumental analítico e
interpretativo, é possível identificar uma rede de pessoas que promovem ações num sentido
comum e analisar sua atuação social.
É interessante observar que esta “rede” continua sendo alimentada. Parece que quanto
mais Seu Abel aumenta sua “rede” e é reconhecido por seu trabalho, mais pessoas se
aproximam dele. Vemos que as pessoas apresentadas acima foram fundamentais para fazer
Abel e sua máscara circularem, entre outros motivos, porque faziam chegar as máscaras do
artesão a pessoas ligadas ao campo da cultura popular e a espaços museais. Ferretti, em
entrevista (julho de 2009), explica porque encaminhou a máscara ao Museu de Folclore de
São Paulo na década de 1980. Ele diz: “Eu vi que não tinha quase nada do Maranhão, então,
eu resolvi dar uma máscara de cazumba pro museu; eu comprei uma máscara do Abel, e aí
escrevi um texto. Esse texto que escrevi foi aquele texto original que depois virou aquele
artigo”.
37
O ato de Ferretti não se tratava de um ato isolado. Como vimos, Maria Michol
presenteava pessoas do Brasil e de fora, que recebia por conta da Secretaria de Cultura do
Maranhão, com máscaras de Abel. Presentear com caretas era uma maneira de estimular o
trabalho do artesão e também um modo de fazer circular a “cultura popular” maranhense,
materializada e simbolizada através da máscara. Neste caso, os objetos levavam
metonimicamente “o” Maranhão da cultura popular a outras partes.
Esse movimento tem mão dupla e vemos que Abel passa a se apropriar de códigos
próprios a esses novos universos de circulação de suas máscaras. Sua postura quanto à sua
produção vai se modificando em relação àquela adotada pela maioria dos artesãos da festa.
Não mais a máscara como um objeto restrito ao uso ritual. Em entrevista (fevereiro de
2009), Abel disse que considerava sua máscara uma “obra de arte”. A partir de determinado
momento, passa a assiná-las, o que não ocorre no universo da festa. Ao compreender que o
objeto que produz ingressa num circuito que opera com outros códigos e que significa a
máscara de outra maneira, vai tendo ideias que o ajudam a permanecer e a aumentar sua
circulação nesses novos meios.
37
Este artigo ao qual ele se refere foi publicado no jornal O Estado do Maranhão, em espaço intitulado
“Caderno Alternativo”, em São Luís, 1986.
122
Abel, tentando alcançar um público mais amplo, começa a produzir miniaturas. Sobre
estas, na década de 1990, percebendo que em São Luís alguns artesãos produziam miniaturas
do boi, ele tem a ideia de fazer suas máscaras em miniatura. Ele entende que com as
miniaturas seria possível atingir um público mais amplo de compradores, que as máscaras
grandes eram mais caras e seu transporte não era tão fácil. Se antes vendia para um público
especializado de colecionadores e pessoas com atuação mais intensa no campo da cultura
popular, com as miniaturas passa a alcançar também outras pessoas, como turistas, que podem
ver a máscara como um souvenir do Maranhão.
As exposições feitas com as máscaras de Abel foram importantes na sua trajetória. Um
exemplo é uma exposição realizada na “Sala do Artista Popular”, no Museu do Folclore, em
1999, intitulada “Cazumbá: máscara e drama no boi do Maranhão”, organizada pelo
antropólogo Raul Lody. Naquela ocasião, Abel, que já era bastante conhecido entre os
pesquisadores e os demais integrantes do circuito de cultura popular no Maranhão, teve a
oportunidade de ingressar em outro circuito, no Rio de Janeiro. Ali conheceu pessoas como
Maria Mazzillo. Assim, Raul Lody, que publicou textos sobre o cazumba em um livro O povo
do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos (1995) e no
catálogo da exposição citada acima (1999),
38
apresenta-se como alguém importante na
história de Abel. A produção de Abel também teve destaque na exposição intitulada “Mostra
do Redescobrimento Brasil 500 anos”, realizada no Convento das Mercês, em São Luís, em
2000. A viagem que fez em 2007 a Portugal com Ferretti para integrar um evento do Museu
de Máscaras em Bragança foi igualmente significativa em sua trajetória. Em oficinas de
feitura de máscaras, em que lecionou tanto em São Luís como no Rio de Janeiro e Belo
Horizonte, conheceu muitas pessoas que se tornaram suas admiradoras.
A partir destas múltiplas inserções e frentes de trabalho, foi se tornando uma espécie
de representante “oficial” fora da festa da produção de máscaras e da arte do cazumba. É
interessante observar que o interesse por Abel advindo desses pesquisadores, colecionadores
e/ou admiradores das manifestações da cultura popular não é apenas relativo à sua produção
das máscaras. Sua atuação como cazumba também é bastante valorizada.
Apesar de terem sido citadas pessoas físicas que contribuíram para a circulação de
Abel e da máscara, é preciso lembrar que existiram ações institucionais que possibilitaram
que isto ocorresse. Algumas instituições que participaram tinham integrantes desta “rede” que
38
Nestes textos, Raul Lody explora a dimensão ritual do cazumba, enfatiza sua dimensão espiritual e sua ligação
com o universo afro-brasileiro.
123
descrevemos, mas outras não. O Centro de Cultura Domingos Vieira Filho, em São Luís,
aparece como importante ator nesse processo, e a ele estiveram vinculados Zelinda,
Ferrettti e Michol. Outras instituições também atuaram: o Ministério da Cultura, que
concedeu o título de “Mestre da Cultura Popular” a Abel; a Comissão Maranhense de
Folclore, que publicou um depoimento de Abel no livro Memória de Velhos (2008); O Museu
de Folclore Edison Carneiro; o Museu Casa do Pontal etc.
Howard Becker (1977, 1988), através da noção demundos de arte”, explorou a
dimensão coletiva da atividade artística. Esta dimensão seria percebida tanto na produção da
obra quanto na construção de seu valor. Becker (1977) diz que: “é possível entender as obras
de arte como o resultado da ação coordenada de todas as pessoas cuja cooperação é necessária
para que o trabalho seja realizado da forma que é” (p.8). Mesmo que a produção de Abel não
seja vista por todos como artística, a noção utilizada por Becker é interessante para pensar sua
atividade, que esta tem caráter fortemente coletivo, tanto na sua produção (envolvendo
fabricantes das matérias-primas, comerciantes das mesmas, a esposa de Abel que ajuda a
enfeitar as máscaras etc.), como na sua comercializão (já que pessoas intermedeiam a venda
das peças e algumas instituições a vendem, por exemplo), e também na construção de seu
valor (dado pela “rede” que apresentamos, por algumas instituições e outros).
Percebemos então que a ressignificação de Abel e da careta é resultado de um
processo social mais amplo, no qual foi fundamental um grupo de pessoas e instituições que
identificaram a máscara como um objeto de valor capaz de ser classificado como “obra de
arte”, um “objeto representativo de uma cultura”, ou outro enquadramento que justifique sua
utilização fora da festa, ingressando no que James Clifford (1997) identificou como a
dinâmica dos modernos sistemas de arte e cultura.
Clifford discutiu o processo de deslocamento de objetos rituais ou cotidianos de
contextos nativos para outras inserções sociais, demonstrando que, na virada do século XIX
para o XX, formou-se um sistema a partir do qual os objetos etnográficos começaram a ser
classificados como artefatos culturais (categoria científica) ou obras de arte (categoria
estética). Outros objetos produzidos em massa, menos valorizados, seriam classificados como
“arte turística”. Dentro desta rede” de pessoas que contribuíram para a circulação de Abel,
são dados enquadramentos diferentes à máscara (“artefato cultural”, “arte popular”, “arte afro-
brasileira”). Mesmo que esses atores sociais não concordem com as classificações destinadas
à obra, compartilham determinadas concepções que os levam a agir no sentido de possibilitar
124
a ressignificação do produtor e de sua obra. Todos entendem Abel como alguém que tem um
valor especial (como artesão das caretas e/ou como cazumba) e sua peça também.
Mesmo que apontemos para a importância de algumas instituições e desta “redede
pessoas para a projeção do artesão fora da festa, é preciso ressaltar, no entanto, que Abel não
foi figura passiva nesse processo, pelo contrário, teve papel ativo todo o tempo. Sempre
atento, é articulado e sagaz. Ele dá continuidade às relações estabelecidas com os espaços que
vendem sua produção e constrói um vínculo pessoalizado com os compradores. Em função da
distância dos grandes centros consumidores (Rio de Janeiro e São Paulo), ele envolve os
pesquisadores nas vendas. Ele também cuida para que as obras cheguem aos pontos de
comercialização (lojinhas de museus, bancas de eventos ligados ao Maranhão e à cultura
popular etc.). Vai atrás daquilo que será importante para ele; produz as caretas, tenta
conseguir novos compradores.
Abel mantém vivos os antigos relacionamentos, mas também investe na relação com
novas pessoas que vêm até ele em busca de conhecimentos sobre a brincadeira do cazumba.
No ano de 2009, no período junino, além de mim, havia mais três pesquisadores que estavam
em contato com Abel. Percebo que ele vai incorporando novos personagens à sua “rede”, o
que possibilita que reafirme sua posição de prestígio. Ele também investe em sua
autoimagem, por exemplo, fazendo uma divulgação de sua efeméride pessoal, ao dizer a todos
que no ano de 2008 estava comemorando 50 anos como brincante de cazumba.
Mais um fator pode ser considerado importante para a projeção de Abel: o fato de seu
trabalho ser reconhecido dentro da festa. Quando Abel ingressa em um novo circuito,
percebemos que pelos códigos do contexto festivo sua produção já era entendida como boa, já
que ele é convidado a produzir máscaras para o Boi da Floresta, em São Luís, desde a época
em que morava em Viana. Esse entendimento nos permite apreender que o ato de
deslocamento não se faz distante de um diálogo com os processos valorativos existentes na
festa. Depois de Apolônio escolher Abel como um bom artesão, foi que Zelinda assim o
qualificou. Desta forma, parece que sua valorização dentro da festa contribuiu para a sua
projeção fora dela.
Talvez algo do lugar ritual do cazumba e de sua máscara no contexto festivo
possibilite o seu deslocamento para outros circuitos. Como vimos, esse personagem é mais
individualizado na brincadeira e atua com certa liberdade em relação aos demais. A máscara,
por sua vez, mostrou-se na etnografia da festa como um objeto que, apesar de precisar de toda
125
a indumentária do personagem e da ação do brincante para ter eficácia ritual, se destaca
especialmente entre os artefatos da festa. Assim, seria possível dizer que a individualização do
cazumba na festa e a importância ritual da máscara contribuem para que ambos sejam, de
alguma forma, isolados do conjunto do bumba-meu-boi e circulem de modo autônomo por
outros contextos.
Também pode ter contribuído para a circulação da máscara o fato de o trabalho
produzido por Abel ter “ressonância” (GREENBLATT apud GONÇALVES, 2007;
GONÇALVES, 2007) entre aqueles que a fazem circular. Gonçalves (ibidem) mostra que, nas
análises dos modernos discursos de patrimônio cultural, a ênfase tem sido posta no seu caráter
construído ou inventado. Segundo ele, um fato, no entanto, parece ficar na sombra desta
perspectiva analítica. São aqueles casos em que os bens culturais classificados como
patrimônio pelas agências de Estado não encontram reconhecimento junto a setores da
população. Isto mostraria que um patrimônio não depende apenas da vontade e da decisão do
Estado, mas também precisa ter “ressonância” junto ao público. Greenblatt (op. cit.) explica:
Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir
um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de
evocar no espectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele
emergiu e das quais ele é, para o espectador, o representante (1991, p.42-56).
Também poderíamos ver a projeção de Abel e sua careta fora da festa como um
processo social puramente inventado, mas a perspectiva trazida por Gonçalves e Greenblatt
nos ajuda a perceber que se assim fosse talvez a projeção não ocorresse de maneira tão eficaz.
Podemos pensar que esse objeto tem “ressonância” entre aqueles que o fazem circular. Em
entrevista, Ferretti (julho de 2009) tenta dar uma explicação para o interesse existente em
torno da máscara, e sua fala nos deixa entrever que ele está sublinhando, entre outras coisas, a
“ressonância” da máscara. Ele diz:
A careta acaba sendo alguma coisa que desperta interesse. É porque é uma
coisa bem diferente. Não há muitas máscaras no Boi, e é essa máscara que se
destaca no Boi, chama a atenção, assim como o resto: a roupa, o movimento,
é bonito, então; acho que a máscara se destaca pela beleza. Pelo objetivo da
máscara, pelo mistério que ela traz, as pessoas se perguntam o que significa
aquilo, aquela figura que espanta, que dá um pouco de medo nas crianças. O
que representa aquilo? Todo mundo tem uma certa curiosidade pelo que é
aquilo.
126
Por que Abel é o único?
Pelo que vimos, parece que existe um conjunto de fatores que propicia que a
circulação de Abel e da máscara ocorra. Mas por que Abel é praticamente o único a se
projetar fora da festa? Ferretti (julho de 2009) tenta dar uma explicação para isso:
Eu acho que ele foi sendo projetado, talvez, pelos artigos que a gente
escreveu, pelas exposições, e porque é uma pessoa muito simpática,
acessível; veio do interior e ficou aqui. Como era uma pessoa que trabalhava
na repartição pública, tinha mais contato, então, era mais fácil ir procurá-lo.
[...] Eu acho que foi por essa proximidade de dona Zelinda, de outros
técnicos do Centro de Cultura, que fez ele ficar como a pessoa que
representava o cazumba, o representante principal, o mais conhecido, porque
se tinha mais contato. Aí, quer dizer, por algumas circunstâncias, uma pessoa
fica representando os outros, falando pelos outros, todo mundo ia procurar
ele. E pensa que só é ele, e depois há muitos outros.
Ferretti considera que várias condições contribuíram para que Abel fosse o único a se
projetar. Entre elas, estariam a simpatia de Abel e o fato de ele ter trabalho durante muitos
anos numa instituição pública, na qual havia uma intensa circulação de estudiosos e
especialistas, o que lhe permitiu permanecer em contato com pessoas que podiam fazê-lo se
projetar. Em relação à segunda condição, podemos dizer que, quando Zelinda consegue
transferi-lo, tem consciência de que o novo ambiente lhe propiciará um reconhecimento de
outra qualidade. Pode ainda ter contribuído para Abel que se projetasse isoladamente o fato de
Zelinda e outras pessoas da “rede” verem sua produção como especial e merecedora de
destaque. Abel também parece ter um papel importante na criação de um lugar social bem
particular para si mesmo.
Ao se tornar um representante da produção das máscaras e do cazumba, Abel se
tornou uma voz de autoridade sobre este personagem. Gonçalves (2007) elabora um debate
em torno da noção de “autenticidade aurática” em diálogo com Lionel Trilling (1972) e
Walter Benjamin (1969) e afirma que esse conceito conta de entender alguns objetos e
pessoas que são valorizados socialmente por serem considerados originais, únicos ou com
genuína relação com o passado. A autoridade de Abel e o valor de sua obra provêm, entre
outros motivos, do fato de o artesão e sua máscara estarem relacionados de forma original
com o universo da festa, trazendo com ele uma “autenticidade aurática”.
Como Abel é uma autoridade sobre o cazumba e a careta, muitos pesquisadores
chegam até ele para saber mais sobre o assunto. Logo percebem que Abel tem posições firmes
sobre a festa. Ele também não é alheio à produção bibliográfica que existe sobre o tema e,
127
mais do que isso, desenvolveu uma apreciação crítica. Em conversa (setembro de 2009),
colocou-se claramente contrário à perspectiva de alguns intelectuais que viam o cazumba
como entidade espiritual:
Querem dizer que cazumba tem um espírito. Cazumba não tem um espírito.
Tirou a máscara, tá jogado... pendurado. Vestiu tudo, é cazumba,
pendurou é careta. Eu sento aqui, eu não sou cazumba, eu sou Abel. Agora,
se eu me vestir, pôr a careta na cara, começar a brincar, eu sou careta pra
fazer o que o cazumba precisa fazer: dançar, fazer graça. Mas a hora que eu
tirar e largar aí, não existe cazumba. Então, não é espírito, porque senão
levantava daqui e ia brincando. Mas esse pessoal quer que seja.
Abel enfatiza que as características ficcionais do personagem são acionadas com
toda a indumentária do cazumba e com a ação intencional do brincante. É interessante ver que
esse lugar de representante da produção de máscaras e dos cazumbas coloca Abel numa
posição privilegiada, a qual lhe permite debater com intelectuais suas posições sobre o
universo festivo. Abel é ouvido e influencia aqueles que estudam o tema. Ele se coloca de
maneira ativa em face do conhecimento sobre o personagem.
Atualmente, existe um esforço por parte de algumas pessoas, como Jandir Gonçalves
funcionário da Secretaria de Cultura, que atua atualmente como diretor da Casa de
Nhozinho
39
para incluir outros artesãos no circuito da careta em contextos exteriores à festa.
Para execução do livro sobre a careta de cazumba (MAZZILLO, BITTER & PACHECO,
2005), Maria Mazzillo se reuniu com ele em uma reunião preparatória para sua viagem à
Baixada. Naquele momento, Jandir fez questão de indicar-lhe os diversos produtores de
caretas que conhecia na região. Nesta pesquisa, foram entrevistados cazumbas da Baixada e
de São Luís, mostrando a diversidade das formas plásticas das caretas e dos sentidos
atribuídos a elas pelos brincantes.
Neste livro existem depoimentos em que os artesãos revelam seus processos criativos,
e fotografias que documentam a diversidade de estilos existentes. A publicação divulga,
assim, a variedade da produção dos artesãos de caretas do Maranhão. Como foi dito, Maria
Mazzillo organizou uma exposição na Caixa Cultural no Rio de Janeiro, intitulada “Cazumba:
arte do Maranhão”, na qual as caretas (2008) de Abel tiveram destaque, mas outras
confeccionadas por diferentes artesãos também foram mostradas. Desta forma, parece que
Abel, que pouco tempo era o único a ter suas obras circulando por espaços mais amplos,
39
A Casa de Nhozinho foi inaugurada em 2002; nela são exibidos objetos relacionados ao cotidiano da
população maranhense. , e construção civil.
128
começa a dividi-los com outros. No entanto, não perdeu seu posto nem seu papel de
representante do cazumba fora da festa.
Esse lugar de representante é vivido, no entanto, com contradições. No São João de
2009 estavam espalhados pela cidade de São Luís diversos outdoors com fotos do bumba-
meu-boi. Entre as fotos, havia uma de um cazumba vestido com uma careta do estilo de Abel.
Muitas pessoas vieram dizer a Abel que era ele quem figurava nas fotos e ele mesmo achava
que existiam grandes possibilidades de isto ser verdade, porém não havia nenhuma indicação
no outdoor de que a máscara era sua ou de que era ele ali. Assim, apesar de Abel ser uma
espécie de representante do personagem e da manufatura das máscaras, podemos pensar que
existe um olhar sobre sua atividade (como artesão e cazumba) que a entende como arte
coletiva, o que implicaria a existência de pouca diferenciação entre seus autores, redundando
na falta de necessidade de dar crédito a Abel. O artesão também não teve nenhum ganho
econômico com a possível exposição de sua imagem.
4.1. Significação da careta em espaços museais
Diversos autores, como James Clifford (1997), Krzysztof Pomian (1997), Nélia Dias
(1994), Ludmilla Jordanova (1989), Barbara Kirshenblatt-Gimblett (1998) e Gonçalves
(2007), entendem os modelos expositivos como resultados de processos sociais de construção
de sentidos. Assim, ao organizar uma exibição, os museus estariam produzindo determinadas
representações sobre os objetos expostos. A partir desta perspectiva, Gonçalves (2007) afirma
que:
A inserção [dos objetos] em coleções, museus e “patrimônios culturais” [...]
permite perceber os processos sociais e simbólicos por meio dos quais esses
objetos vêm a ser transformados ou transfigurados em ícones legitimadores
de ideias, valores e identidades (p.24).
Pomian (1997), propõe olharmos os objetos nos circuitos de exibição como
semióforos, fazendo uma ponte entre o “visível” e o “invisível”. Ele revela, assim, a dimensão
mediadora das coleções, permitindo que entendamos que as exposições constroem
imaginários específicos sobre os objetos. A perspectiva destes autores permite refletir sobre a
maneira como algumas instituições museais constroem enquadramentos em torno da careta de
129
cazumba. No caso das instituições pesquisadas, percebemos que noções de arte e cultura
popular são construídas nos seus modelos expositivos.
No início da pesquisa sabia de três instituições brasileiras que tinham caretas em seu
acervo: o Museu do Folclore Edison Cordeiro, o Museu Casa do Pontal, a Casa do Maranhão.
No decorrer do trabalho fui descobrindo que existiam outros espaços que expunham a
máscara. No Brasil: o Museu Afro-Brasileiro (SP), o Memorial da América Latina (SP) e o
Museu do Folclore (SP). Em Portugal: o Museu da Máscara, em Bragança.
40
o sendo
possível fazer pesquisa de campo em todas as instituições que a possuem, tomei como campo
as três primeiras instituições a que tive acesso para tentar compreender de que forma a
máscara se insere nesses contextos e em quais categorias é classificada. Com este intuito,
foram realizadas análises de catálogos das exposições permanentes e dos sítios virtuais das
instituições, etnografias das exposições que incluem a careta, assim como entrevistas com os
responsáveis por adquirir e formar o modelo expositivo para exibi-las. Não foi possível fazer
uma análise usando todos estes recursos em relação às instituições pesquisadas, porém foi
possível refletir sobre os enquadramentos dados pelos museus à careta utilizando o material
que se conseguiu reunir de cada um deles.
41
A Casa do Maranhão
A Casa do Maranhão é uma instituição que surgiu a partir de uma subdivisão do
acervo total do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho.
42
O Centro abrigava todo o
acervo de objetos relacionados ao campo da cultura popular, reunido pelas Secretarias de
Cultura e Turismo do estado. No começo dos anos 2000 o acervo foi distribuído entre três
instituições, criadas pelo estado: a Casa da Festa, a Casa do Maranhão e a Casa de Nhozinho.
A Casa da Festa dedica-se a expor objetos relacionados ao universo das festas maranhense, a
40
Mesmo que não tenham sido esgotadas as instituições que a possuem, espera-se que se tenha chegado à quase
totalidade delas.
41
Meu objetivo inicial era fazer uma investigação mais extensa nos museus. Porém, no desenrolar do trabalho
de campo, a inserção da máscara na festa foi se mostrando uma questão bastante complexa e passou a demandar
grande investimento de pesquisa. Assim, existe certa desigualdade de aprofundamento quanto à questão da
máscara no universo festivo e nos contextos museais. Em pesquisas futuras, pretendo me dedicar a desenvolver
mais esta questão.
42
A história da instituição tem início na década de 1970, quando se cria a Fundação Cultural do Maranhão e são
feitos a Biblioteca do Folclore e o Museu do Folclore e Arte Popular. Estes dois núcleos viriam a ser mais tarde
o Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. O CCPDVF tem como objetivo estimular e divulgar a
produção material e não-material da cultura popular maranhense (Superintendência de Cultura Popular do
Maranhão, sítio eletrônico, http://www.culturapopular.ma.gov.br , 2010).
130
Casa de Nhozinho apresenta objetos ligados ao cotidiano maranhense e a Casa do Maranhão
exibe elementos que fazem parte da festa do bumba-meu-boi.
A Casa do Maranhão, em 2009, estava fechada para reformas. Quem comandava a
reforma era Zelinda Lima. Ela havia sido indicada por Roseana Sarney, que a convidou para o
cargo quando assumiu a governança do estado do Maranhão neste mesmo ano, após Jackson
Lago ter sido afastado do poder. Jackson, no governo, havia fechado a Casa do Maranhão. O
intuito era reformular totalmente a exposição anterior. Algumas pessoas com quem conversei
acreditam que o desejo de Jackson Lago de reformular a Casa do Maranhão se deve ao fato de
Roseana Sarney ser conhecida por sua ligação com o bumba-meu-boi e de a Casa do
Maranhão ser um projeto realizado em seu governo; dizem que Jackson desejava abalar o
prestígio da antecessora.
131
Figura 31: careta de cazumba em vitrine dedicada ao sotaque da Baixada em exposição
antiga da Casa do Maranhão. Foto de minha autoria, realizada em fevereiro de 2009
Figura 32 (esquerda): Vitrine dedicada ao sotaque da Baixada com caretas de cazumba em exposição na antiga da
Casa do Maranhão. Fonte: Sítio na internet da Casa do Maranhão, http://www.culturapopular.ma.gov.br, 2010
Figura 33 (direita): cazumba em exposição na antiga da Casa do Maranhão. Fonte: Sítio na internet da Casa do
Maranhão, http://www.culturapopular.ma.gov.br, 2010
132
Com a saída de Jackson e Sonia, Zelinda assumiu e, em entrevista (junho de 2009), me
disse que pretendia contratar um grupo de museógrafos de outros estados para fazer a nova
exposição. De qualquer forma, acho que é válido apresentar a antiga exposição do museu, que
tive a oportunidade de conhecer na primeira ida a campo em novembro de 2008. A exposição
reconstruía cenograficamente o ambiente da festa, valendo-se dos objetos nela utilizados.
Eram apresentados alguns momentos da brincadeira (ensaios, batizado, apresentações e
Morte) e os diferentes sotaques do bumba-meu-boi. Numa ala eram exibidos vários deles.
Assim, parece que os objetos expostos na Casa do Maranhão estão ali principalmente como
objetos representativos de um universo cultural.
Entrevistei Michol (op. cit.), que foi diretora da Casa do Maranhão durante muitos
anos. Seu trabalho como pesquisadora influenciou a concepção da primeira exposição, da qual
participou na curadoria. Na entrevista, ela disse que os objetos da exposição tinham o objetivo
de aproximar a festa dos visitantes. As obras estariam expostas menos pela sua dimensão
estética e mais como um objeto representativo deste contexto cultural. As caretas seriam
vistas da mesma maneira. Havia algumas caretas na vitrine dedicada ao sotaque da Baixada.
Outras estavam em manequins vestidos de cazumba, ou seja, relacionadas ao contexto de seu
personagem na festa (figuras 31, 32, 33, p.131).
O Museu do Folclore Edison Carneiro
O Museu de Folclore Edison Carneiro que expõe diversos objetos relacionados às
manifestações das culturas populares, é um museu federal que integra a Coordenação
Nacional de Folclore e Cultura Popular do Ministério da Cultura. Ele foi criado em 1968.
Rita Gama Silva (2008) aponta que o desejo de criação da instituição apareceu no seio do
“Movimento Folclórico Brasileiro”, com o intuito de guardar e expor objetos relacionados a
manifestações folclóricas brasileiras. Este projeto tinha uma orientação preservacionista, a
partir de uma perspectiva que considerava que as manifestações da cultura popular tendiam ao
fim (VILHENA, 1997; SILVA, 2008). Silva (2008) mostra que no decorrer dos anos a missão
do museu foi se transformando.
133
Figura 34 (esquerda) e 35 (direita): Imagens, respectivamente, das páginas 142 e 143 do
catálogo da exposição permanente do Museu do Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT
& SOARES, 2005). Páginas do catálogo que trazem objetos relacionados ao setor do
bumba-meu-boi do museu
Figura 36 (esquerda) e 37 (direita): Imagens, respectivamente, das ginas 142 e 143 do
catálogo da exposição permanente do Museu do Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT &
SOARES, 2005). Páginas do catálogo que trazem objetos relacionados ao setor do bumba-
meu-boi do museu, em que são apresentadas diversas máscaras do cazumba
134
A partir de visita à exposição permanente do museu, é possível dizer que a relação da
careta com seu uso na festa também é sua dimensão mais valorizada. A careta encontra-se
numa sala dedicada ao bumba-meu-boi, junto com outros objetos da festa. Silva (2008)
comparou as exposições permanentes deste museu inauguradas em 1980 e 1984 e
desenvolveu uma reflexão sobre exposições como produtoras e legitimadoras de discursos
sobre o patrimônio e o folclore. Segundo ela, a exposição permanente, que está desde 1994
em cartaz na instituição (onde encontramos as caretas), segue o mesmo paradigma
museográfico daquela feita em 1984. Essas exposições, segundo Silva, estariam mais
marcadas por uma ótica antropológica.
43
Nesta proposta, existe uma tentativa de
contextualizar os objetos expostos em relação ao contexto de produção (figuras 34, 35, 36, 37,
p.133
44
).
O Museu Casa do Pontal
O Museu Casa do Pontal foi criado por Jacques Van de Beuque a partir de sua coleção
particular formada durante mais de 40 anos, desde 1950. Aberta à visitação sob reserva desde
1976, a instituição, em 1992, abriu amplamente para a visitação pública e constitui uma
organização privada de interesse público. Suas coleções são referenciadas como das mais
importantes no país. Os objetos que ali estão são classificados como “Arte popular”. As obras,
em sua maioria, são esculturas feitas com diversos materiais, como barro, madeira e metal.
São mais de 8 mil esculturas, de cerca de 200 artistas de todo o Brasil. Na instituição o
realizados atendimentos a escolas, exposições temporárias, seminários, capacitação de
professores, pesquisas e outras atividades. O acervo já viajou para participar de exposições em
mais de 30 países do mundo, como França, Bélgica, Alemanha e Índia.
43
Sua análise discute, assim, os diálogos existentes entre os museus e a antropologia, questão que já foi
abordada por outros autores (GONÇALVES, 2007; DIAS, 1994).
44
Trago imagens do catálogo da exposição permanente do Museu do Folclore Edison Carneiro (BISILLIAT &
SOARES, 2005). Não foi possível fazer imagens da galeria, pois no momento em que pretendia realizá-las (julho
de 2010), o museu encontrava-se fechado para reformas.
135
Figura 38: Máscaras do cazumba em exposição no Museu Casa do Pontal em
setor intitulado “Festas Populares”. Foto de autoria de Lucas Van de Beuque,
feita em 2010
Figura 39 e 40 (esquerda e centro): Máscaras do cazumba em exposição no Museu Casa
do Pontal, em setor intitulado “Festas Populares”. Autoria das máscaras desconhecida.
Foto de autoria de Vanessa Sant´Anna, feita em 2009
Figura 41 (direita): Máscara de autoria de Abel Teixeira em exposição no Museu Casa
do Pontal, em setor intitulado “Festas Populares”. Foto de autoria de Vanessa
Sant´Anna, feita em 2009
136
A antropóloga Angela Mascelani, que dirige a instituição, discute em sua tese de
doutorado (2001) o conceito de “Arte popular”, revelando sua ambiguidade, que é
produzida num circuito (popular) e legitimada por outro (camadas médias intelectualizadas
urbanas), sendo o seu conceito formulado num diálogo entre diferentes contextos. Segundo
Mascelani (1999), a noção de “Arte Popularseria de difícil contorno, mas é possível dizer
que:
Sob o olhar de um grupo pequeno e específico, que se interessa
preferencialmente pelos aspectos estéticos e formais da produção plástica
popular, e onde se inclui o colecionador Jacques Van de Beuque, verifica-se
a tendência para designar como arte popular brasileira esculturas, máscaras,
xilogravuras, placas em cerâmica e demais objetos tridimensionais feitos a
partir de materiais como a madeira, o barro, o ferro, as areias e outros,
mesmo quando apresentam temáticas, formas, estilos, cores e técnicas
altamente diversificados (p.133).
Considerando-se que o Museu Casa do Pontal se dedicaria à exibição de “Arte
popular” e que as dimensões estéticas e formais seriam as mais valorizadas nos objetos que
são entendidos assim, podemos dizer que estes seriam os aspectos da máscara mais
valorizados ali. A exposição também reflete tal visão sobre a máscara, que ela aparece
destacada, sem a indumentária do cazumba. São três máscaras expostas em uma parede de
fundo colorido. Porém, como ela está localizada num setor do museu dedicado às “Festas
populares” e neste setor textos explicativos sobre as festas podemos pensar que não é
apenas o seu caráter artístico que é realçado, mas que se estaria levando em consideração
também o contexto social em que ela é usada (figuras 38, 39, 40, 41, p.135).
É interessante observar que no Museu Casa do Pontal a máscara já teve inserções para
além de sua exibição em exposições. Um exemplo disto é quando Juliana Manhães, nas
visitas educativas que realiza no Museu Casa do Pontal, se veste como cazumba. Ela faz isto
no momento em que são apresentados objetos relacionados ao bumba-meu-boi, como o couro
do boi e as peças do artista Nhozim
45
que retratam as cenas da festa. Em 2007, ela também
realizou uma performance na instituição no dia em que Abel proferiu uma palestra e no dia da
inauguração de uma exposição sobre o Vale do Jequitinhonha, em 2008.
46
Diferentemente da
exibição da máscara isoladamente ou mesmo de toda a indumentária do cazumba nos museus,
45
Segundo Mascelani (2006), Antônio Bruno Pinto Nogueira, conhecido como Nhozim, nasceu em 1904, em
Bacuripanã, vila de Cururupu, no estado do Maranhão. Aos 12 anos de idade, foi vitimado por sífilis, o que
acabou por deformar progressivamente seus membros. No entanto, a doença não impediu que ele se tornasse um
habilidoso artesão. Apresentou, entre outras obras, a festa do bumba-meu-boi em miniatura, com grande riqueza
de detalhes. Ele faleceu em 1974.
46
Juliana Manhães também já realizou performances como cazumba fora do Museu Casa do Pontal.
137
nesta performance realizada fora do contexto festivo, o personagem era, de alguma forma,
ativado. Isto mostra que a máscara foi utilizada para compor o personagem cazumba fora
do contexto festivo, não só figurando em exposições.
Parece que, nas suas exposições, os museus acima abordados fazem um esforço de
remeter a máscara ao seu contexto de produção e uso ritual, no caso da Casa do Maranhão e
do Museu do Folclore, de forma mais explícita, e no do Museu Casa do Pontal, de forma mais
indireta, que privilegia a dimensão estética do objeto. Assim como o objeto é, de alguma
forma, remetido ao contexto de uso ritual no Museu do Pontal, também percebemos que a
dimensão estética da scara não é ignorada no Museu do Folclore e na Casa do Maranhão.
No catálogo da atual exposição do Museu do Folclore, Cláudia Márcia Ferreira, diretora do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular que abriga o museu em questão, afirma que:
O Museu aspirou por uma nova publicação que expressasse a maneira como
o universo do folclore/cultura popular estava sendo expressado. Um mundo
de objetos cuja dimensão estética é de valor indiscutível. Mas também um
mundo que comporta outros significados. Testemunho de modos de vida, os
objetos colecionados pelo Museu do Folclore possuem um valor documental
único. São porta-vozes dos diferentes mundos sociais que lhes dão origem
(2005).
Maria Michol disse em entrevista (julho de 2009) que a dimensão estética das obras
também era valorizada na exposição da Casa do Maranhão. Vemos assim que, apesar de as
instituições colocarem ênfases diferentes na dimensão estética e no valor cultural da máscara,
é possível afirmar que os dois aspectos são de alguma forma enfatizados na exposição deste
objeto nos museus acima citados.
De qualquer forma, percebemos que, no processo de circulação da máscara, ela recebe
diferentes enquadramentos, não havendo um consenso em relação às categorias nas quais ela
é classificada. O mesmo ocorre com Abel, não sendo unânimes as formas de tratá-lo, pois
recebe as qualificações de “Artista”, “Artesão” e outras. Cada instituição museal teria um
olhar direcionado à máscara relacionado ao modo mais amplo como vê os objetos que
compõem o seu acervo. As instituições identificariam qualidades na máscara que permitiriam
que fosse vista a partir dos enquadramentos mais gerais que utilizam.
Parece que o Museu Casa do Pontal incorpora a careta, pois percebe nela
características estéticas relevantes; o Museu do Folclore e a Casa do Maranhão entendem
esse objeto como um importante artefato do universo da cultura popular; o Museu Afro-
brasileiro, que não analisamos mais profundamente, a tomaria por sua ligação com o universo
138
afro. Assim, políticas institucionais mais amplas acabariam por orientar as ressignificações da
máscara nos contextos museais. Também pudemos ver que os diversos “mediadores” citados,
que podem ou não ter relações com essas instituições, têm visões múltiplas sobre a máscara e
sobre Abel. A ótica desses “mediadores” poderia decorrer de diferentes processos de
formação intelectual e profissional. As instituições pelas quais passaram podem, igualmente,
ter influenciado seus olhares.
4.2. Abel entre mundos
Ao mesmo tempo em que Abel tem se projetado no espaço de circulação da máscara,
ele vem se afastando do Boi da Floreta. Em 2009, passou parte do período junino no interior,
não tendo participado de muitas apresentações do grupo. Luciana Carvalho (2005) analisou a
trajetória de Herberth Mafra Reis, conhecido como Betinho, que atuava como Pai Francisco
no grupo de bumba-meu-boi intitulado em Deus. Ela mostra como ele se individualizava
diante do grupo, tentando se diferenciar num ambiente que valoriza a coletividade. Abel,
assim como ele, também parecia ter presença própria no Boi da Floresta.
Durante a pesquisa, Abel não parecia ter o intuito de se desligar do contexto da festa,
mas se mantinha conectado a ele, com um papel importante no Boi da Floresta e sendo um
dos mais importantes cazumbas do grupo, além do principal artesão de caretas dali. É
interessante observar que, mesmo que Abel fosse um dos poucos artesãos a produzir máscaras
de pano no contexto festivo, suas máscaras continuavam sendo bem-vistas pelos brincantes.
Ele criou um estilo de máscara, que mantém alguns anos, que desperta interesse fora da
festa, porém vende sistematicamente sua obra para brincantes do bumba-meu-boi, ou seja,
atua interna e externamente.
A viagem feita por Abel comigo ao interior do estado do Maranhão foi um dos
motivos para ele não ter participado durante o período junino de algumas apresentações do
Boi da Floresta. Isto revela, mais uma vez, que seu afastamento do grupo não se traduz num
distanciamento como um todo do contexto festivo. Suas idas à Baixada mostram seu interesse
em vivenciar outros modos de realizar a festa, e ele dizia gostar muito da pujança com que se
realiza o bumba-meu-boi por lá. A festa no interior também remeteria às suas experiências
rituais do passado; lá, ele parecia querer reencontrar os modos de brincar e as pessoas de sua
juventude. É interessante observar que parte do gosto de Abel por voltar ao interior se deu em
função de ele poder chegar e circular por sua terra natal acompanhado de pessoas de outros
139
núcleos sociais, que admiravam seu trabalho e o tinham como alguém de grande valor. Assim,
parece que Abel vivenciava sua estada no interior a partir de um lugar muito particular, como
alguém que apresentava aquele universo social a pessoas que não o conheciam, um anfitrião,
em suma.
Abel parece estar entre mundos” entre o mundo da festa e aquele de circulação da
máscara por contextos exteriores à festa constituindo-se ele também um “mediador”, que
ajuda pessoas de fora da festa a conhecerem mais esse universo e coloca os brincantes em
contato com outras de diferentes círculos sociais. Velho (2001) diz que nas sociedades
complexas, nas grandes cidades, os indivíduos estão mais propícios a transitar entre universos
sociológicos, estilos de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmo
contrastantes. Certos indivíduos não apenas fazem esse trânsito, mas desempenham o papel de
“mediadores” entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências.
47
Alguns posicionamentos de Abel também revelam esse lugar “entre mundos” no qual
parece estar localizado. Abel algumas vezes tem posições que parecem contraditórias. Em
relação à festa do bumba-meu-boi, ele se dizia contrário às mudanças que ocorreram. Como
visto anteriormente, as festas de seu passado eram mais valorizadas em seu discurso do que
aquelas que acontecem atualmente. O curioso é que, ao mesmo tempo em que tinha uma visão
conservadora sobre as transformações no folguedo, ele desejava pôr em ação o personagem
cazumba fora do contexto festivo. Ele gostaria de realizar um “show” de cazumbas, no qual
levaria com ele as mulheres das camadas médias que brincam como os personagens no Boi da
Floresta. Se no contexto festivo o cazumba tem sentido acompanhado de todo o ritual do
bumba-meu-boi, no qual existem diversos personagens que dão sentido à brincadeira, neste
“show”, Abel pretende colocar em cena apenas um grupo de cazumbas. Na verdade, como
foi dito, esse tipo de apresentação do cazumba fora do contexto festivo já foi realizado, já que
Elisabeth Bittencourt organizou um desfile de cazumbas com a presença de Abel, e Juliana
Manhães fez performances como o personagem.
Abel também se mostra contraditório quando pensa o modo como os museus guardam
as obras. Em algumas conversas que tivemos, ele demonstrou certo estranhamento quanto ao
modo com que os espaços museais lidavam com suas peças, pois nestas instituições o objetivo
é preservá-las da ação do tempo, realizando o mínimo de intervenções possíveis para que o
47
É interessante observar que os estudos desenvolvidos por Velho (op. cit.) foram realizados predominantemente
entre pessoas das camadas médias e Abel provém das camadas populares.
140
objeto não seja modificado. Segundo ele, seria mais fácil reformá-las por completo, usando
materiais diferentes ou mesmo fazer máscaras novas. O interessante é que, ao mesmo tempo,
Abel mantém em sua casa uma espécie de museu pessoal, no qual reúne máscaras suas antigas
e uma de um amigo de quem gostava muito. Assim, podemos pensar que esta posição muito
particular do artesão/artista que transita entre contextos sociais diferentes lhe permite operar
com códigos diversos, adotando posturas diferentes, dependendo da situação em que se
encontre.
Abel tem diabetes e esteve com a saúde debilitada no início do ano de 2010. Com a
visão prejudicada, passou um período sem produzir. No São João de 2010, ele estava em
melhores condições e, inclusive, fez viagens ao interior acompanhando um grupo de
estudantes universitários. Durante o período mais crítico, a rede social” descrita brevemente
acima, composta por pessoas que ajudaram Abel a circular fora do contexto da festa, mostrou-
se importante para que ele conseguisse enfrentar esse momento difícil. Pessoas que participam
desta “rede” se organizaram, no Rio de Janeiro e no Maranhão, para auxiliá-lo. Foi feita, por
exemplo, uma rifa por Juliana Manhães e Maria Mazzillo para arrecadar dinheiro para dar a
ele.
Esta situação nos leva a pensar sobre a precariedade do lugar social ocupado por Abel.
Ele se projeta, torna-se um artesão conhecido, um “Artista popular”, mas isto não garante uma
boa vida financeira. Abel precisa se esforçar o tempo todo para continuar a vender, a circular
e a ser lembrado e, nesse momento difícil, esforça-se para que o ajudem. Abel circula entre
pessoas das camadas médias que têm boa condição financeira, mas não é uma delas. Sua
condição não faz jus à noção idealizada que se tem no senso comum sobre a vida de um
artista. Assim, como o seu personagem cazumba, Abel também é um ator social liminar.
Como foi dito anteriormente, Turner (2005) desenvolveu a noção de liminaridade para
dar conta de situações e pessoas interestruturais. Ele utiliza este conceito para refletir, por
exemplo, sobre os ritos de iniciação. Nesses ritos, os meninos passam de uma posição social
mais infantil a outra mais madura. O antes e o depois são dois momentos mais estruturais e a
passagem entre eles é feita por ritos que colocam os indivíduos num território no qual as
classificações não são muito possíveis, um lugar “entre”, que permite a transição de uma
posição a outra.
Talvez seja possível dizer que Abel ocupa um lugar social liminar. Abel tem se
afastado cada vez mais do Boi da Floresta, não é um cazumba como os outros na festa; nem é
141
igual àqueles que participam da “rede” que o faz circular. Ele não está em transição, parece
que habita o liminar fica entre a festa, que desde esta perspectiva pode ser lida como um
contexto estrutural, e um conjunto de pessoas das camadas médias que são ligadas ao campo
da cultura popular, outro contexto que pode ser tomado como estrutural. Seu lugar parece não
estar nem aqui, nem lá. Segundo DaMatta (2000), em diálogo com os trabalhos de Turner
(1974, 2005), Mary Douglas (1976) e Edmund Leach (1964), em contextos sociais mais
individualizados, a liminaridade se apresentaria como espaço de diluições das
individualidades; porém, em contextos mais coletivistas, como aquele de onde provém Abel, a
liminaridade apresentar-se-ia como um espaço de maior individuação. Esta proposição ajuda a
pensar a trajetória de Abel que, ao ocupar um espaço liminar, se individualiza num meio
social como o maranhense, que mantém características fortemente hierárquicas.
Este lugar liminar de Abel, apesar de ser difícil de ser vivido por ele em alguns
momentos, também permite que o artesão experimente situações bastante recompensadoras.
Sua posição fora da festa lhe traz prestígio dentro dela, e sua atuação como cazumba e artesão
da máscara que o personagem usa no contexto ritual contribui para seu reconhecimento em
meios exteriores ao festivo. É interessante observar que Abel não é um caso isolado. Outros
“Artistas populares” e/ou “Mestres” compartilham com ele lugar social parecido. A análise da
trajetória de Abel pode ajudar a compreender as histórias de outras pessoas que participam de
manifestações populares brasileiras e que alcançaram reconhecimento social fora do seu
contexto de origem. Este parece ser um fenômeno social recorrente no campo das culturas
populares, que é composto tanto pelos brincantes como por pesquisadores, colecionadores,
agências governamentais, entre outros agentes sociais.
142
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo do princípio de que os objetos participam ativamente da vida social e cultural,
e que o estudo de suas trajetórias de circulação permite a compreensão de aspectos
significantes da realidade em que estas se dão (MALINOWSKI, 1976; MAUSS, 2003;
APPADURAI, 2008; KOPYTOFF, 2008; GONÇALVES, 2007), este trabalho teve como
objetivo compreender de que maneira a careta do cazumba transita por diferentes meios e que
tipos de interações sociais sua circulação possibilita.
Para isso segui os passos da careta, que primeiramente me levou a um de seus autores,
Abel Teixeira. No percurso desta pesquisa, às vezes junto com ele, às vezes sozinha, pude
entender a complexidade envolvida no trânsito dos objetos rituais (da festa) para as coleções e
museus. Uma das questões centrais da pesquisa diz respeito à multiplicidade de sentidos
dados à careta. Com este trabalho pude observar que os sentidos atribuídos às máscaras de
cazumba não se alteram apenas na passagem do contexto festivo para o museal; tanto nos
museus como no folguedo os sentidos não estariam fixados, sendo possível a operação de
significados diversos nestes espaços.
Ingressando no universo festivo, nos capítulos 1 e 2, foi possível perceber que a
máscara é importante para que o personagem cazumba tenha eficácia, o que contribui também
para que os objetivos rituais do bumba-meu-boi se exerçam. Tomando o ritual como um
momento extraordinário na vida de um grupo social ou comunidade que se aproveitaria dos
elementos da vida ordinária em sua composição, reorganizando-os e permitindo um novo
olhar sobre a realidade (DAMATTA, 1979), penso que a festa maranhense do bumba-meu-boi
traz à cena através do canto, da dança, dos atos cômicos, das indumentárias altamente
elaboradas, do som, de instrumentos musicais uma “fazenda mítica que permite pôr o
cotidiano em perspectiva e elaborar coletivamente novos sentidos para a vida de seus
participantes.
Através da análise da atuação ritual do cazumba e do aparato mítico em torno de sua
figura, foi possível perceber que este poderia ser interpretado como um personagem liminar,
segundo a definição proposta por Turner (2005). O cazumba estaria situado entre o animal e o
humano, o natural e o sobrenatural, a ordem e a desordem, o assustador e o cômico. Deste
lugar, teria uma atuação desconcertante e grotesca que permitiria um olhar “às avessas” sobre
a vida social (BAHKTIN, 1993). Segundo os relatos e o material de minhas visitas ao campo
143
pude ver que o cazumba dialoga com o universo de valores vigentes na sociedade (que postula
a hierarquia e a coletividade) e se contrapõe a eles. O cazumba transgride, individualiza,
inventa, é um contraponto à ordem social.
Sobre o cazumba, observei nas entrevistas e conversas com os brincantes do boi que
havia uma classificação nativa que identificava uma “função estética” e uma “função
performativa” em sua atuação em ambas, a máscara teria papel importante. Pudemos ver
que alguns brincantes percebem estas duas funções como opostas. No entanto, a pesquisa me
fez compreender estas duas dimensões como complementares nas atuações do personagem.
Em relação à primeira função, a careta seria peça fundamental para que o brincante pudesse
se destacar visualmente, sendo as torres um dos elementos utilizados para este fim. Assim, a
máscara provocaria uma espécie de “maravilhamento” visual que contribuiria para a eficácia
desta função. Porém, como visto no capítulo 1, no contexto nativo, o “feio” (o estranho, o
não-harmônico) pode ser visto como o bonito, contrariando a noção de belo da estética
clássica. Vimos que esta função estética” estaria ainda relacionada a um jogo de rivalidade
entre os cazumbas. A “função performativa” estaria relacionada às atividades rituais do
cazumba. A máscara também teria papel importante na realização desta função, já que a partir
de suas formas ela ajudaria a dar visibilidade à figura mítica do personagem, possibilitando
que as ações do cazumba tivessem eficácia.
As formas das máscaras estariam bastante relacionadas à construção de sentido do
personagem. Elas elaborariam, por exemplo, a complexidade do personagem, que seriam
compostas por signos diversos, às vezes dissonantes, como nas torres, em que formas
monstruosas podem estar unidas com símbolos religiosos. As caretas e suas formas
enigmáticas parecem operar no mesmo sentido das máscaras ndembu (TURNER, 2005). Estas
eram feitas a partir de elementos da vida social comum, mas arrumados de uma forma
diferente (estes objetos traziam membros humanos com tamanhos distorcidos, colocava lado a
lado partes de animais e de homens, alterava as cores da natureza etc.) e tinham como função
simbólica permitir que os neófitos refletissem sobre a realidade social.
A liminaridade do cazumba que pode ser lida nas suas ações individualizadas e livres
dentro da brincadeira, também se expressaria nos aspectos formais das máscaras, que: as
caretas costumam ser heterogêneas entre si, cada cazumba seria estimulado a singularizar sua
máscara e os artesãos seriam incentivados a ter ações inventivas e não-tradicionais na
produção das caretas. Assim, pudemos ver que, no universo festivo, a noção de artesão se
144
constrói a partir da lógica simbólica do personagem, sendo a inventividade um pré-requisito
para quem deseja ser produtor da máscara. Por esta situação e por outras que descrevemos ao
longo dos capítulos 1 e 2, entendo que a produção da máscara e seu uso ritual possam ser
interpretadas como um fato social total (MAUSS, 2003), pois não existiria separação entre as
dimensões estéticas, técnicas, rituais, morais, econômicas e religiosas.
Pude observar que a máscara media diversas trocas no contexto festivo. Vimos que
pode ser estabelecida uma relação dadivosa (MAUSS, 2003) com São João, sendo possível
dá-la a outrem em oferecimento ao santo. Também existem os especialistas que vendem
máscaras sistematicamente para aqueles que não sabem produzi-las e ainda brincantes que
não desejam mais utilizar sua careta e costumam doá-la ou vendê-la. É preciso lembrar que
no contexto ritual a máscara se insere numa produção mais ampla de objetos festivos, que
também circulam intensamente.
Vale ressaltar que a scara é ativada em conjunto com toda a indumentária do
cazumba, e com o brincante que vida ao personagem. Um exemplo da interdependência
entre a máscara e o resto da indumentária está na relação estabelecida entre a careta
monstruosa que causa espanto, e o cofo, que é colocado na cintura do brincante, fazendo com
que ele tenha grandes degas e provocando o riso nos participantes da festa. As nádegas e a
máscara produziriam um monstro poderoso e risível, permitindo que se ria do que se teme
(CLASTRES, 1978). O humor seria muito importante na caracterização do cazumba.
Através do trabalho de campo, pude perceber que as expressões rituais do bumba-meu-
boi se diferenciavam dependendo do lugar em que ocorriam. Nas festas da Baixada que
assisti, os cazumbas pareciam respeitar mais a “moldura” (BATESON, 1972) do personagem
e ter um leque de ações rituais mais amplas. Por outro lado, temas relacionados à violência
urbana apareceram com mais ênfase na capital. De qualquer forma, os sentidos atribuídos ao
personagem apontavam na mesma direção, embora se atualizassem de maneira diversa,
dependendo do contexto de inserção.
No capítulo 3, pude analisar tanto a circulação de Abel fora da festa como a da careta.
Abel Teixeira foi uma pessoa importante em toda a pesquisa. Foi meu principal interlocutor,
informando-me acerca dos sentidos rituais da máscara, acompanhando-me nas viagens pelo
interior maranhense e permitindo através das suas histórias que eu compreendesse o processo
de deslocamento da máscara para outros contextos sociais. Ao longo da pesquisa de campo,
pude perceber que não só a máscara era ressignificada ao ingressar em circuitos mais amplos,
145
como também a própria vida de Abel. Em diálogo com Velho (1994, 1997), podemos dizer
que Abel, integrante de uma sociedade complexa como a brasileira, na qual existe a
convivência de grupos sociais e culturais contrastantes, pôde sair de seu contexto social de
origem e transitar por circuitos mais amplos, ingressando em meios com práticas e valores
diferentes daqueles que conhecia, acabando, assim, por trazer novos sentidos e significados à
sua trajetória. Numa via de mão dupla, neste processo, novos sentidos e significados também
teriam sido trazidos àqueles que interagiram com Abel.
Vimos que Abel é uma figura central no processo de circulação da máscara do
cazumba por diferentes âmbitos sociais. Mesmo que alguns artesãos tenham suas máscaras
em certos museus, Abel é o que mais tem obras expostas em instituições museais. Ele é ainda
o único que vende regularmente suas caretas fora da festa; que saiu diversas vezes do
Maranhão para expor seu trabalho e/ou falar sobre ele; e assina suas máscaras, vistas como
“obras”. Pude perceber também que a circulação mais ampla da careta e a inserção de Abel
em outros circuitos é resultado de um processo social mais amplo, do qual fazem parte
pessoas, grupos e instituições que através de suas práticas e atividades identificaram a
máscara como um objeto de valor e a fizeram circular. Assim, essa pesquisa me permitiu
compreender a dimensão coletiva (BECKER, 1988, 1977) da produção da obra de Abel e de
seu reconhecimento.
Apontei diversos fatores que podem ter permitido que Abel circulasse e se tornasse
uma espécie de representante da produção da máscara fora do contexto da festa: 1. a
valorização de sua careta na festa; 2. o fato de o cazumba ser um personagem mais
individualizado dentro do folguedo do que outros e da máscara se destacar na ação festiva,
que faria com que alguns artesãos tivessem sua singularidade exaltada e daria margem para
que o personagem, o objeto e seu produtor se sobressaíssem em relação à festa; 3. a formação
de uma “rede social” (MITCHELL, 1969; EPSTEIN, 1969; BOTT, 1976) composta por
pessoas ligadas ao campo da cultura popular que compartilhariam algumas noções e
apresentavam uma disposição para ver a máscara e Abel como possuidores de especial valor;
4. o posicionamento destas pessoas como “mediadores” (CAVALCANTI, 2006; VELHO,
2001; VELHO & KUSCHNIR, 2001; MASCELANI, 2001; SANTOS, 2009), as quais fariam
pontes entre meios sociais e culturais distintos; 5. a ação de algumas instituições nesse
processo; 6. o fato de Abel e sua obra terem “ressonância” (GREENBLATT apud
GONÇALVES, 2007; GONÇALVES, 2007) junto a um grupo de pessoas que também o
veriam como possuidor de uma autenticidade aurática” (GONÇALVES, 2007; LIONEL
146
TRILLING, 1972; WALTER BENJAMIN, 1969); 7. o papel ativo do artesão, no sentido de
ser reconhecido por seu trabalho; 8. o fato de Abel ter trabalhado no Centro de Cultura
Popular Domingos Vieira Filho, em São Luís, próximo a muitos daqueles que trabalham neste
campo no Maranhão etc.
Como dito, realizei trabalho de campo em algumas instituições que exibem a careta
Casa do Maranhão (MA), Museu do Folclore Edison Carneiro (RJ), Museu Casa do Pontal
(RJ) para pensar o modo como se constroem enquadramentos em torno deste objeto em tais
lugares. Para tal utilizei como referência alguns trabalhos (CLIFFORD, 1997; POMIAN,
1997; DIAS, 1994; JORDANOVA, 1989; KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 1998;
GONÇALVES, 2007) que pensam os modelos expositivos como fruto de processos sociais de
construção de sentidos e entendem que os museus, ao organizarem uma exibição, produzem
determinadas representações sobre os objetos expostos.
Através do trabalho de campo nas instituições museais, pude perceber que em todas as
exposições pesquisadas a careta está relacionada ao contexto de produção e ao uso ritual. Na
Casa do Maranhão e no Museu do Folclore Edison Carneiro, isto é feito de forma mais
explícita, que o objeto aparece relacionado ao folguedo do bumba-meu-boi, sendo exposto
com outros objetos desta festa. No Museu Casa do Pontal esta relação é mais indireta, a
máscara aparece no setor dedicado às “Festas populares”, mas é dada ênfase à dimensão
estética do objeto, que é exposto de forma destacada. Se no Museu Casa do Pontal a máscara
também é remetida ao contexto de uso ritual, percebemos, no entanto, que a dimensão estética
deste objeto não é ignorada na proposta expositiva do Museu do Folclore Edison Carneiro e
na da Casa do Maranhão, como se destacou na fala de pessoas que estiveram ligadas
profissionalmente a estas instituições.
Assim como Abel é visto de diferentes maneiras pelos diversos atores sociais que se
relacionam com ele fora da festa (“artista”, “artesão” etc.), notamos que a máscara recebe
variados sentidos nos espaços museais. Os museus parecem ter olhado para a máscara de uma
perspectiva mais geral, similar à maneira como classificam o conjunto de objetos de seu
acervo. Vemos, assim, que a máscara e Abel, ao circularem fora da festa, são entendidos de
diversas maneiras.
Comparando a inserção da máscara na festa do bumba-meu-boi e nos museus,
podemos dizer que, se nos museus a contemplação revelaria o seu valor, durante a festa, este
é revelado quando alguém coloca a máscara com toda a indumentária do cazumba e
147
executa as ações rituais do personagem dentro da “moldura” (BATESON, op. cit.) da festa.
Desta forma, dentro da festa a máscara se destaca ou tem como principal “função” contribuir
para que o cazumba seja eficaz no ritual (assustando, atraindo, participando de rivalidades,
chamando a atenção para a sua visualidade), e não para ser contemplada por si ou por seu
valor estético e/ou cultural. Outra diferença é que na festa uma mesma máscara pode passar
por diversas alterações, sendo constantemente metamorfoseada, enquanto no museu, o intuito
é preservar o máximo possível a máscara do jeito como ela chegou à instituição.
Se compararmos Abel com os demais produtores da máscara que existem na festa,
poderemos ver que, enquanto a produção do primeiro se ao longo do ano inteiro,
constituindo-se na sua profissão, entre os artesãos da festa, mesmo entre os especialistas que
vendem este objeto para outros brincantes, o período produtivo da careta é apenas aquele que
antecede o folguedo. O lugar social ocupado pelo artesão também é diferente. Enquanto nos
espaços museais pesquisados destaca-se principalmente a figura de Abel, no contexto das
festas existe um grande número de artesãos, sendo alguns deles considerados especialistas.
Sobre o lugar do artesão na festa, vimos que no contexto festivo existe a valorização
dos artesãos que concebem máscaras originais e inventivas, havendo uma exaltação de suas
particularidades. Isto nos permite problematizar a noção corrente no senso comum de que a
produção plástica popular não diferenciaria individualidades, como fazem os setores do
campo da arte erudita. Também vimos que na festa a ideia de uma produção singular está
atrelada ao papel desempenhado pelo cazumba, que é mais individualizado do que os demais
personagens.
Metodologicamente foi possível pensar o contexto festivo e o de circulação mais
ampla da festa em separado. No entanto, não podemos ignorar o fato de que esses universos
estão amplamente interligados, dialogando e se influenciando mutuamente. Pessoas, objetos,
informações e sentidos circulam entre eles, sendo possível entendê-los como parte de um
mesmo fenômeno social que ocorre no campo das culturas populares no contexto de uma
sociedade complexa.
Podemos refletir sobre o campo das culturas populares como um espaço de interação,
construído socialmente, composto por pessoas de perfis socioculturais diversos (por
produtores das manifestações festivas populares, artesãos populares, pesquisadores,
funcionários das agências governamentais de cultura, agentes de turismo, colecionadores
148
etc.), envolvidos com a elaboração, reflexão e circulação das manifestações culturais
populares.
É possível desestabilizar essa separação entre o contexto festivo e o de circulação mais
ampla da máscara ao retomarmos a idéia de que: o lugar ritual do cazumba e da máscara,
assim como o modo como é tratado o artesão das caretas na festa, podem ter influenciado a
circulação da careta e de Abel fora da festa. Também podemos pensar sobre este diálogo, se
pensarmos que a máscara no museu é capaz de provocar no visitante alguns sentimentos
parecidos com aqueles experimentados na festa pelos brincantes. Nos museus, é possível que
o público se assuste e/ou se sinta atraído pela careta. Isto revelaria que, de alguma forma, esse
objeto “comunica” seus sentidos de maneira transcultural. Certamente o visitante produzirá
leituras sobre o que a máscara é, que olhará para ela a partir de suas referências, das
informações que tem sobre o assunto, de suas noções estéticas, de seus valores. O modelo
expositivo que a enquadra e pelos textos que a acompanham a exposição também orientarão
suas impressões. Mas não podemos supor que a máscara não participe deste diálogo, que seria
possível ler o que se quer na careta, que a máscara tem algo próprio, marcante. A máscara
traria informações que se comunicariam com o espectador e seu universo de referência,
estabelecendo diálogos de muitos níveis.
A trajetória de Abel também permite ver que o contexto festivo e o de circulação mais
ampla da máscara estão conectados. A análise de sua história pessoal permitiu pensar os
diálogos entre esses meios, suas conexões e os efeitos de tal contato sobre as partes. Por um
lado, pudemos ver que o prestígio de Abel fora da festa é valorizado dentro dela e, pelos
relatos e entrevistas, que seu “lugar” no contexto festivo se altera à medida que ingressa em
outros circuitos. Por outro lado, sua atuação como cazumba e artesão de máscara para
brincantes contribui para que ele seja valorizado fora da festa, dando uma espécie de
“autenticidade” à sua produção. Também vimos que o fato de este artesão ter sua produção
legitimada junto aos seus pares colaborou para que suas máscaras tivessem impacto junto à
“rede” de colecionadores, pesquisadores e outros.
A conexão entre os dois contextos também se evidencia no fato de Abel vender suas
obras tanto para brincantes como para pessoas fora da festa. Ele entende que sua máscara
pode ser usada ritualmente e também figurar em exposições. No entanto, Abel, ao lidar com
diversos significados, acaba tendo posturas contraditórias. Vimos, por exemplo, sua crítica à
musealização das obras, mas também fomentando seu “museu” pessoal.
149
No processo de circulação da máscara, Abel acaba se tornando um “mediador”. Assim
como o cazumba, ele também parece habitar a liminaridade e pode ser pensado como alguém
que está “entre mundos”. No entanto, esse lugar liminar faria com que Abel experimentasse
uma situação delicada, que é valorizado por seu trabalho fora da festa por pessoas das
camadas médias, sem que isto se converta em uma condição econômica satisfatória. A
trajetória de Abel talvez pudesse ser comparada a de muitos brincantes ou artesãos vinculados
a manifestações da cultura popular que transitaram por contextos diversos. Isso poderia nos
levar a pensar que o caso da circulação da careta de cazumba tem características singulares,
mas também semelhanças com outros processos sociais ocorridos no complexo campo das
culturas populares no Brasil. Espera-se que este estudo tenha contribuído para pensá-lo. Um
estudo comparativo sobre alguns destes brincantes ou artesãos que atuam no campo das
culturas populares seria um possível desdobramento deste trabalho.
150
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