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na definição de sabedoria,
entendida originalmente por Sêneca como vontade una e reta.
Ao traduzir o qualificativo “rectum” por
just
e
56
, Montaigne faz com que a sabedoria
dependa de uma medida humana e não de algo que está além da experiência
57
.
Ele se
vale do arsenal estóico para pôr em relevo a situação do homem comum. O
jugement
se
volta para o falho e o transitório. Aquilo que Sêneca descreve para estabelecer o
contraste com a atitude que se deve assumir, Montaigne o apresenta como a condição a
qual estão submetidos todos os homens e dentro da qual eles devem encontrar o seu
próprio caminho enquanto homens
58
. Daí que o hábito de virtude readquira importância,
56
Cf. Sêneca, 1925a, pg. 135: “Quid est sapientia? Semper idem velle atque
idem
nolle.
Licet illam
exceptiunculam non adicias, ut rectum sit quod velis; non potest enim cuiquam idem semper placere nisi
rectum
” (Que é a sabedoria? Sempre querer a mesma coisa e não querer a mesma coisa. Não é necessário
acrescentar esta restrição, que a vontade seja reta; pois nada pode agradar sempre se não for reto).
Montaigne, retomando este trecho através de um procedimento semelhante ao que estamos analisando,
refere
-se a ele nos seguintes termos: “Porque, para compreendê-la inteiramente em uma palavra, diz um
antigo, e para abarcar em uma só todas as regras de nossa vida, é querer e não querer ser, sempre, mesma
coisa; eu não desdenharia, diz ele, adicionar: conquanto que a vontade seja justa; porque, se ela não for
justa, é impossível que ela seja una
”.
57
Se esta afirmação pode, a princípio, soar exagerada, pois que a justiça também poderia ser concebida de
modo transcendente, lembremos que esta seguramente não é a concepção de Montaigne: “Apenas Deus
pode conhecer e interpretar suas obras
.
E o faz em nossa língua, inapropriadamente, para descer até nós,
que
jaze
mos sobre a terra
.
A prudência, como Lhe poderia convir, a qual é a eleição entre o bem e o mal,
visto que nenhum mal
O
toca
? E q
uanto à razão e à inteligência, das quais nos servimos para, pelas co
isas
obscuras, chegar às aparentes, visto que não há nada de obscuro para Deus? A justiça, a qual distribui a
cada um o que lhe pertence, engendrada para sociedade e a comunidade dos homens, como está ela em
Deus?
E
como
a temperança? a qual é a moderação das voluptuosidades corporais, que não têm lugar
algum na divindade. A força para suportar a dor, o trabalho, os perigos, tampouco Lhe pertencem, estas
três coisas não têm nenhum acesso a Ele. Pelo que, Aristóteles O tem igualmente isento de virtude e
víci
o” (II, 12,
pg
s
.
499
-
500
,
grifo meu).
58
Note
-se que, embora ocorra aqui em termos próprios a Montaigne, este diálogo com o estoicismo e esta
crítica de seus aspectos dogmáticos são característicos do Renascimento, sendo
compartilhad
os
por vários
humanistas
, filósofos e reformadores do período. Leontine Zanta, em seu estudo sobre o ressurgimento do
estoicismo no século XVI, mostra esta tendência de se aproveitar alguns elementos do estoicismo e
expurgar os seus princípios metafísicos. Deixemos de lado os comentários sobre os filósofos e
reformadores e nos concentremos nos comentários que Zanta faz sobre os humanistas: “A priori, esta
dissociação parece impossível. Como operar uma escolha em uma filosofia tão maravilhosamente una e
simples quanto o estoicismo,
sem arruinar fundamentalmente e por completo uma doutrina que com efeito
só parece se sustentar pela firmeza de seus princípios metafísicos: o Deus Razão se confundindo com o
mundo, de onde vêm e para onde retornam os seres e as coisas; o indivíduo, considerado como uma
parcela do grande Todo, submetido à ordem inflexível do Destino que rege o Universo? Compreender
esta vida no conjunto a fim de se adaptar, não é a primeira palavra da moral? E conseqüentemente, é
possível conceber esta ciência de outra maneira que ligada indissoluvelmente à metafísica e às
concepções que são sua base: monismo, panteísmo, determinismo e mesmo materialismo estóico? Como
ainda admitir na prática regras tão eficazes, tão admiráveis quanto aquelas do estoicismo, precisando os
de
veres que nós temos com relação a nós mesmos e com relação aos deuses, e esquecer que elas são a
expressão de nossa razão, parte da Razão universal, ou seja, parte do próprio Deus? Esta dissociação entre
metafísica e moral nos parece, assim, incompreensível. Ela se fez entretanto; e assim como se produz
atualmente obras, mais e mais numerosas, de moral independente, ou seja, de moral dissociada de toda
metafísica, houve então abundância de opúsculos de moral nitidamente estóica, sem nenhuma