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UNIOESTE
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
MESTRADO EM LETRAS
HEGRISSON CARREIRA ALVES
ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E SOCIOCULTURAIS DA LINGUAGEM
DO JEITINHO BRASILEIRO
CASCAVEL – PARANÁ
2006
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HEGRISSON CARREIRA ALVES
ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E SOCIOCULTURAIS DA LINGUAGEM
DO JEITINHO BRASILEIRO
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre, pelo Curso de Pós-
Graduação em Letras - área de concentração em
Linguagem e Sociedade, do Centro de Educação,
Comunicação e Artes da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE.
Orientador: Prof. Dr. Ciro Damke
CASCAVEL – PARANÁ
2006
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TERMO DE APROVAÇÃO
HEGRISSON CARREIRA ALVES
ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E SOCIOCULTURAIS DA LINGUAGEM
DO JEITINHO BRASILEIRO
Dissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-
Graduação em Letras - Área de Concentração em Linguagem e Sociedade, do Centro de Educação,
Comunicação e Artes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, pela seguinte banca
examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Ciro Damke
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera
Universidade Estadual de Londrina – UEL
Profa. Dra. Clarice Nadir Von Borstel
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Profa. Dra. Maria Ceres Pereira (suplente)
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Profa. Dra. Elza Taeko Doi (suplente)
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
Cascavel, 14 de novembro de 2006
DEDICATÓRIA
À Adriana, dupla evolutiva eternamente presente.
Aos meus pais e irmãos, por me proporcionarem esse momento evolutivo.
Ao meu sogro, por me acolher como um filho.
AGRADECIMENTOS
Escrever uma dissertação de mestrado é um desses momentos em que nos dedicamos ao
estudo de um tema que acrescenta não a vida profissional, mas principalmente à pessoal. Este
trabalho é resultado dessa dedicação e das inúmeras interações sociais das quais tivemos a
oportunidade de participar. Tanto nos estudos quanto nas interações, o fator humano esteve sempre
presente. Seria, portanto, praticamente impossível listar aqui todos aqueles que, em sua singular
individualidade, disponibilizaram seu tempo e suas experiências para que o autor chegasse às
conclusões apresentadas. A decisão tomada foi então a de mencionar alguns dos nomes que
pudessem representar tantos outros que mereceriam estar nesta lista.
Primeiramente, agradeço ao prof. Dr. Ciro Damke, orientador que soube dar liberdade e
apoio para que eu pudesse ousar em uma área de estudo ainda pouco explorada. À profa. Dra.
Clarice Von Borstel, pelo incentivo inicial quanto ao tema e pelo desprendimento com que sempre
me ajudou. À profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera, por aceitar o convite para compor a banca
examinadora e pelas preciosas contribuições. À profa. Dra. Maria Ceres Pereira, pelas observações
pontuais que muito contribuíram para o trabalho. Aos professores do mestrado com os quais tive a
oportunidade de conviver e aprender.
Agradeço também o apoio recebido pela(o)s colega(o)s de mestrado, em especial Andréia,
Janice, Marta e Rosemeiri que me proporcionaram momentos de muita reflexão.
Gostaria de agradecer ao prof. Dr. Amarildo Redies, coordenador do curso de Letras, de
cujo corpo docente faço parte, pelo apoio pessoal e profissional que nunca faltou.
Faço um agradecimento especial à cidade de Foz do Iguaçu, pela acolhida e pela
oportunidade oferecida para que esse estudo pudesse ser realizado. Desejo que Foz consiga vencer
todos os desafios que lhe são impostos no dia-a-dia e que continue a ser a cidade vitoriosa que
sempre foi.
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES................................................................................................ viii
LISTA DE TABELAS ......................................................................................................... viii
RESUMO ................................................................................................................................ ix
ABSTRACT ............................................................................................................................. x
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1
1 TEMA, CONTEXTO E METODOLOGIA DA PESQUISA.......................................... 11
1.1 DELIMITAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA ................................................ 13
1.2 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA DO JEITINHO .............................................................. 15
1.3 ESPAÇO, TEMPO E INFORMANTES DA PESQUISA ................................................ 16
1.3.1 O Município de Foz do Iguaçu ....................................................................................... 17
1.3.1.1 Breve História da Terra das Cataratas ....................................................................... 18
1.3.1.2 Mosaico Sociocultural e Lingüístico no Processo da Identidade em Foz ................... 27
1.3.1.3 O Cotidiano de uma Cidade Fronteiriça ...................................................................... 30
1.3.2 Corpus da Pesquisa e Perfil dos Informantes ................................................................. 31
1.4 ABORDAGEM METODOLÓGICA NA PESQUISA DE CAMPO ................................ 35
1.4.1 Trabalho do Tipo Etnográfico no Estudo do Jeitinho .................................................... 37
1.4.2 Escolha das Técnicas Etnográficas ................................................................................ 39
1.5 DANDO UM “JEITO” NO PARADOXO DO OBSERVADOR ..................................... 42
1.6 APLICAÇÃO DAS TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO ETNOGRÁFICA ..................... 45
1.6.1 Entrevista Narrativa em Grupo ...................................................................................... 45
1.6.2 Roteiro de Entrevista (Questionário) ............................................................................. 51
1.6.3 Observação Participante ................................................................................................. 53
1.6.4 Análise Documental ....................................................................................................... 57
1.7 A NARRATIVA NA ENTREVISTA SOCIOLINGÜÍSTICA ......................................... 59
1.8 BREVE REFLEXÃO SOBRE O TRABALHO DE CAMPO REALIZADO .................. 61
2 JEITINHO BRASILEIRO: ELEMENTO NA E DA IDENTIDADE NACIONAL ..... 63
2.1 A COMPLEXIDADE CULTURAL NA QUESTÃO DA IDENTIDADE ....................... 64
2.2 A INTERAÇÃO ENTRE A LINGUAGEM E A SOCIEDADE ...................................... 67
2.3 A REPRESENTAÇÃO COTIDIANA DA IDENTIDADE E DA DIFERENÇA ............. 70
2.4 AS RELAÇÕES DE PODER NA IDENTIDADE DO JEITINHO ................................. 74
2.5 A TEORIA DA IGUALDADE PARA TODOS ............................................................... 76
2.6 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA LINGUAGEM DO JEITINHO ................. 78
2.7 OS PAPÉIS SOCIAIS NA IDENTIDADE ....................................................................... 79
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA..................................................................................... 82
3.1 ESTUDO BIBLIOGRÁFICO DO JEITINHO BRASILEIRO .......................................... 84
3.2 A LÍNGUA(GEM) DO JEITINHO COMO UM FATO SOCIAL .................................... 88
3.3 UMA LEITURA SOCIOLINÍSTICA DA LINGUAGEM DO JEITINHO ................. 93
3.3.1 A Presença do Jeitinho nas Comunidades de Fala ..................................................... 94
3.3.2 Línguas em Contato na Linguagem do Jeitinho ............................................................. 96
3.3.3 O Papel da Atitude Lingüística .................................................................................... 101
3.3.4 Reforçando o Jeitinho com o Uso da Competência Comunicativa ............................ 103
3.3.5 A Importância das Pistas Contextuais ......................................................................... 107
3.4 ENUNCIADOS E SIGNIFICAÇÕES SOCIAIS DA LINGUAGEM DO JEITINHO ... 110
3.4.1 O Porquê da Interpretação dos Enunciados .................................................................. 110
3.4.2 A Pragmática do Jeitinho Brasileiro ............................................................................ 111
3.4.3 Aspectos da Enunciação, da Polifonia e do Dialogismo no Jeitinho ........................... 118
3.4.4 Entendendo a Semântica do Jeitinho ........................................................................... 125
3.5 A BUSCA PELO PODER NA ARGUMENTAÇÃO E NA RETÓRICA DO JEITINHO .. 128
3.5.1 A Questão da Língua(gem) na Argumentação do Jeitinho .......................................... 128
3.5.2 O Duplo Gatilho Argumentativo ...................................................................................129
3.5.3 O Enquadramento na Linguagem Argumentativa do Jeitinho ..................................... 130
3.5.4 Criando o Vínculo após o Enquadramento .................................................................. 135
3.6 UMA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA DO JEITINHO ............................................... 137
3.6.1 O Jeitinho como Moeda de Troca Lingüística ............................................................. 137
3.6.2 A Estigmatização de Quem Não Aceita Dar um Jeitinho ........................................... 140
4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .......................................................... 144
4.1 O PORQUÊ DO RECORTE SINCRÔNICO .................................................................. 145
4.2 FUNÇÕES SOCIAIS DA LINGUAGEM DO JEITINHO ............................................. 146
4.2.1 Negociando com o Conflito na Linguagem do Jeitinho ............................................... 148
4.2.2 A Influência dos Fatores Sócio-pragmáticos ................................................................ 150
4.3 SUGESTÃO DE TAXONOMIA DA LINGUAGEM DO JEITINHO ........................... 151
.
4.4 O“PODER” DO LÉXICO NA LINGUAGEM DO JEITINHO ..................................... 155
4.5 O USO DA RETÓRICA E DO SUFIXO DIMINUTIVO –INHO ................................. 166
4.6 MARCAS LINGÜÍSTICAS DA ENUNCIAÇÃO .......................................................... 171
4.7 PISTAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO .......................................................................... 174
4.8 ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO E LÍNGUAS EM CONTATO EM UM ENUNCIADO DO
JEITINHO ............................................................................................................................. 177
4.9 INFLUÊNCIA DE ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E FRONTEIRIÇOS .................. 180
4.10 AUTOCONSTRANGIMENTO SOCIOCULTURAL .................................................. 189
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 199
APÊNDICES ........................................................................................................................ 211
ANEXO................................................................................................................................. 226
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 – Mapa da Tríplice Fronteira e dos Rios Iguaçu e Paraná .................................... 19
FIGURA 2 – Foto das Cataratas do Iguaçu ............................................................................. 20
FIGURA 3 – Foto dos Primórdios da Colônia Militar ............................................................ 21
FIGURA 4 – Foto da Usina Hidrelétrica de Itaipu .................................................................. 23
FIGURA 5 – Foto de Compristas no Paraguai a Caminho do Brasil ...................................... 25
FIGURA 6 – Foto da Ponte Tancredo Neves (Brasil – Argentina) ......................................... 26
FIGURA 7 – Contínuo de Monitoração Estilística ............................................................... 105
FIGURA 8 – Foto de Propaganda no Tablóide A Gazeta do Iguaçu .................................... 184
FIGURA 9 – Foto de Manchete no Tablóide A Gazeta do Iguaçu ....................................... 187
LISTA DE TABELA
TABELA 1 – Dados dos Entrevistados: Fonte Primária ......................................................... 34
RESUMO
O presente trabalho trata-se de resultado de pesquisa qualitativa interpretativa de cunho etnográfico
sociolingüístico, que compartilha e dialoga com princípios e conceitos de outras áreas do
conhecimento humano tais como a Pragmática, a Semântica, a Análise do Discurso, a
Argumentação e a Sociologia. Nosso estudo analisa a linguagem usada na manifestação da cultura
do jeitinho brasileiro, um fato lingüístico e sociocultural, na comunidade lingüística da cidade
fronteiriça de Foz do Iguaçu, conforme registros realizados no período de 2005 e 2006. Para isso,
fundamentamos nossa pesquisa nos conceitos de linguagem, sociedade, cultura, identidade, entre
outros que contivessem aspectos que evidenciassem o uso dessa instituição social, que é o jeitinho.
O corpus da pesquisa foi dividido em duas partes: uma fonte primária, com gravações das
entrevistas feitas entre 2005 e 2006, e uma fonte secundária, com palavras, frases, locuções e
enunciados coletados diretamente em nosso convívio diário com o jeitinho através de observações
espontâneas de conversas, interações, diálogos, leitura de tablóides locais, folhetos, cartazes e
outros meios de comunicação social. Para contextualizar o espaço da pesquisa fizemos um estudo
do contexto sócio-histórico-geográfico-político da cidade assim como uma análise de Foz do Iguaçu
como um mosaico multicultural e plurilingüístico, campo fértil para pesquisas ligadas a aspectos
lingüísticos e socioculturais. Com base nos aportes teórico-metodológicos escolhidos, fizemos uma
leitura interpretativa da forma sociolingüística dos enunciados coletados e das diferentes
significações sociais que esses enunciados apresentavam em suas estruturas lingüísticas. Por meio
dessa leitura, verificamos que a argumentação que se esconde no léxico, nas expressões e nos
enunciados da linguagem do jeitinho mostra-se muito mais sutil e ampla do que pensávamos
inicialmente, e que o jeitinho faz parte da cultura e da própria identidade tanto dos cidadãos
iguaçuenses quanto do povo brasileiro.
Palavras-chave:linguagem, jeitinho brasileiro, cultura, identidade, sociedade.
ABSTRACT
The present work constitutes an interpretative qualitative research result of sociolinguistic
ethnographic nature which shares and interacts with principles and concepts taken from other areas
of human knowledge such as Pragmatics, Semantics, Discourse Analysis, Argumentation and
Sociology. Our study analyses the language used along the expression of the Brazilian jeitinho
culture, a linguistic and socio-cultural fact, in the linguistic community of the frontier city of Foz do
Iguaçu based on records made during the years of 2005 and 2006. In order to do that, we had to
substantiate our research on the concepts of language, society, culture, identity, and others which
held aspects showing the use of this social institution, which is the jeitinho. The corpus of our
research was divided into two parts: a primary source, with interview recordings made between
2005 and 2006, and a secondary source, with words, sentences, phrases and utterances directly
collected in our daily interaction with the jeitinho through spontaneous observations of
conversations, interactions, dialogues, the reading of local tabloids, pamphlets, hoardings and other
means of social communication. To set the scenario of our research, we carried out a study of the
social, historical, geographical and political context of the city as well as analysed Foz do Iguaçu as
a multicultural and multilingual mosaic, a fertile field for researches related to linguistic and socio-
cultural aspects. Based on the theoretical-methodological rationale selected, we made an interpretive
reading of the sociolinguistic form of the utterances gathered and of the different social meanings
underlying these structures. Through this reading, we realised that the argumentation behind lexis,
expressions and utterances of the jeitinho language is much more subtle and ample than what we
thought at the very beginning, and the jeitinho is part of Iguaçuense dwellers’ and Brazilian people’s
culture and identity.
Key-words:language, Brazilian jeitinho, culture, identity, society.
INTRODUÇÃO
Descrever a linguagem como um recurso utilizado unicamente para comunicar idéias ou
passar informações significa subestimar a imensa capacidade de realização que esse meio de
comunicação apresenta. A linguagem é muito mais do que isso. Entre os diversos recursos que ela
nos oferece, um deles merece atenção especial em nosso estudo: a habilidade que possuímos em
empregá-la para estabelecer e manter relacionamentos sociais.
A linguagem é a forma que encontramos para interagir, ou seja, agir ou provocar uma
reação no outro e permitir que o outro aja ou provoque uma reação em nosso comportamento social.
É desse jeito que a interação acontece, um falante influenciando e sendo influenciado pela fala do
outro.
Isso ocorre justamente porque o homem é um ser por natureza gregário que necessita viver
na companhia de outras pessoas, em um meio social. Por meio da linguagem, o homem soma
experiências, constrói rumos, dissemina práticas, armazena saberes, busca mudanças, cria e
transmite hábitos assim como aprende a cultura existente na sociedade em que nasce, cresce e se
desenvolve.
É por meio da linguagem que também passamos de geração a geração a cultura do jeitinho
elemento de nossa identidade social e nacional na sociedade brasileira. Linguagem, identidade,
cultura, jeitinho e sociedade são conceitos importantes que serão discutidos e analisados ao longo de
nosso trabalho.
A ocorrência diuturna do jeito ou jeitinho na cultura
1
brasileira tem sido objeto de nossa
curiosidade e atenção faz algum tempo, principalmente pelo uso de diferentes recursos lingüísticos
em sua realização. Até então o fato havia sido estudado apenas como um fenômeno ou drama
1
Neste contexto, a palavra cultura, “tomada em seu sentido etnográfico mais amplo, [refere-se a] um conjunto
complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e outras capacidades ou
hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade” (TYLOR, 1871, p. 1 apud LARAIA, 2006, p.
25; CUCHE, 2002, p. 35).
social
2
, expressão que, segundo Barbosa (1992, p. 73-81), retrata as diversas facetas ou
representações sociais do jeitinho em nossa sociedade, algumas delas até certo ponto contraditórias,
como é o caso de brasileiros que reclamam da atuação ilegal de alguns políticos, mas não hesitam
em contribuir para essa ilegalidade sempre que as oportunidades surgem. Exemplos dessa realidade
nacional não faltam tais como fraudar a declaração do imposto de renda; “furar fila”; solicitar ao
guarda de trânsito que “libere” a multa aplicada por avanço de sinal em troca de uma “cervejinha”;
dentre outras.
No entanto, à medida que avançávamos na pesquisa, começamos a perceber que o jeitinho
brasileiro apresentava-se mais sutil e com maior amplitude do que inicialmente imaginávamos,
tratando-se, certamente, de um fenômeno ou fato lingüístico e sociocultural
3
complexo, o que nos
deixou ainda mais instigados, pois sua compreensão se estende a diferentes áreas do conhecimento
humano.
O jeitinho é visto como um fenômeno nacional, utilizado de norte a sul e de leste a oeste
do país. Tal realidade foi confirmada pelas pesquisas de Leers (1982), Barbosa (1992), Rosenn
(1998) e Rega (2000), além de ter sido ratificada em pesquisa recente do IBOPE OPINIÃO
intitulada "Corrupção na Política: Eleitor - Vítima ou Cúmplice?" realizada com 2 mil pessoas em
todo o país em janeiro de 2006, concluindo que 98% dos brasileiros praticam atos ilícitos de
diversas categorias (p. ex. dar um jeitinho) no cotidiano de suas vidas.
A comprovação de sua complexidade e imanência como uma realidade nacional pôde ser
melhor percebida devido à nossa recente convivência diária com a comunidade lingüística de Foz
do Iguaçu
4
, o que nos ofereceu uma visão de outsiders, forasteiros ou “estrangeiros” (ELIAS;
SCOTSON, 2000) em relação à vida social e cultural dos habitantes da cidade, permitindo assim
2
O conceito de “drama social” foi primeiro utilizado pelo antropólogo Roberto DaMatta (1997, p. 207) inspirado na
obra de Victor Turner para representar as diversas situações no cotidiano da vida social vista pelos seus membros
como um “drama”, uma “cena”, um momento acima além ou aquém – das rotinas que governam o mundo diário.
DaMatta foi professor e orientador de Lívia Barbosa, cuja tese de doutorado foi sobre o jeitinho.
3
Ao qual se encontram agregados aspectos políticos, históricos, geográficos, etc. inerentes ao fenômeno em si.
4
O mestrando e sua companheira mudaram-se do Rio de Janeiro para Foz do Iguaçu em janeiro de 2004.
que pudéssemos constatar a naturalidade com que tal prática se realiza entre as pessoas que pouco –
ou quase nada – percebem em sua ocorrência.
Verificamos, por exemplo, que o jeitinho muitas vezes funciona como uma “moeda de
troca” nesse “mercado lingüístico” (BOURDIEU, 1996) e sociocultural representado por um espaço
geográfico fronteiriço em que Foz do Iguaçu (no Brasil), Ciudad del Leste (no Paraguai) e Puerto
Iguazu (na Argentina) convivem com situações corriqueiras e diuturnas de informalidade,
ilegalidade, contrabando e descaminho
5
protagonizadas, principalmente, por uma minoria, mas
com rastro, influência e repercussão em toda a comunidade lingüística de Foz do Iguaçu.
Justificativa
É importante enfatizar que não se trata de um fenômeno ou um fato isolado e tampouco
“privilégio” da cidade de Foz do Iguaçu. Segundo DaMata (BARBOSA, 1992, prefácio, p. ix), “o
jeitinho se constitui num modo obrigatório de resolver aquelas situações nas quais [um brasileiro] se
depara com um “não pode” de uma lei ou autoridade, e passando por baixo da negativa sem
contestar, agredir ou recusar a lei – obtém aquilo que desejava.”
Para DaMata (1984, p. 12), a sociedade brasileira segue certos valores e julga as ações
humanas dentro de um padrão seu. Entre esses valores, estaria a teimosia “jeitosa” dos brasileiros
em não se curvar diante da burocracia, do formalismo ou das próprias regras sociais. Essa
irreverência, no entanto, não é beligerante e sim comportamental. Não se manifesta por meio de
armas ou da força física e sim das ações, das palavras, da linguagem, da forma como nos
expressamos nossa competência lingüística adequada à realidade que se apresenta nossa
competência comunicativa. Manifesta-se também mediante o valor da “cordialidade”, característica
atribuída ao povo brasileiro e sobre a qual Holanda (2005, p. 146-151) faz uma breve análise no
capítulo V de seu livro “Raízes do Brasil”.
5
Contrabando: (termo jurídico) o ato de importar ou exportar mercadorias proibidas. Descaminho: (termo jurídico)
sonegação de impostos ou de direitos alfandegários. (HOUAISS, versão online)
A virtude da cordialidade, como afirma o autor, não significa “boas maneiras” ou
civilidade, mas sim expressão legítima de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante e
um conjunto de iniciativas que permitem ao brasileiro sobreviver e “manter sua supremacia ante o
social”. Iniciativas essas que talvez nos ajudem a definir a cultura do jeitinho brasileiro
6
.
“Cultura” aqui no sentido de “todo o comportamento aprendido” (TYLOR, 1871 apud LARAIA,
2006, p. 28) e transmitido de geração a geração na sociedade em que vivemos.
Em concordância com o exposto acima, Leers (1982, p. 28) argumenta que a “acumulação
e socialização das experiências vividas num grupo, numa sociedade, formam verdadeiras estruturas
de comportamento e padrões culturais de conduta, com suas leis, normas e expectativas sociais”
(grifo nosso). Padrões esses que são compartilhados entre as gerações pela linguagem: em nosso
caso, a linguagem na cultura do jeitinho brasileiro.
Na visão de Holanda (2005, p. 147), “nossa forma ordinária de convívio social é, no
fundo, justamente o contrário da polidez.” Essa forma pode iludir na aparência. Esse é o
comportamento típico do jeitinho, ou seja, ilude, coloca a máscara da cordialidade, “faz uma
presença”, finge cordialidade para conseguir aquilo que deseja.
Uma prova desse fingimento vem da atitude lingüística de alguns falantes quando não
obtendo o que desejam por intermédio do jeitinho acabam reagindo com enunciados do tipo Pô,
não custa(va) nada.”, O cara não tem a menor boa vontade.”,Não tem a menor consideração.”,
É o maior ignorante!”, Espero que te ajudem quando você precisar, viu? (obviamente com
intenção contrária)”
7
.
Assim como a culinária, a música, o esporte, as artes, as religiões, os mitos, entre outros,
o jeitinho também constitui um elemento de nossa identidade social (BARBOSA, 1992, p. 16)
passado de geração a geração criando, recriando, retro-alimentando uma cultura própria mediante
6
Digitamos a expressão cultura do jeitinho brasileiro no buscador Google, na Internet, em 15 ago. 2006 e
encontramos 48 referências em diferentes artigos e reportagens. Esse número talvez demonstre o uso ainda recente
da expressão, mas certamente já com certa representatividade nacional.
7
As falas e os exemplos entre aspas e italicizados usados ao longo da dissertação foram retirados do corpus de nossa
pesquisa.
enunciados do tipo em casa todo mundo um jeitinho. Por que eu não ia dar também?
Sempre foi assim. Ou seja, “uma prática social conhecida e legitimada por todos os segmentos
sociais” (DAMATTA In: BARBOSA, 1992, prefácio, p. ix). Por isso, dizemos cultura do jeitinho
brasileiro”.
Rega (2000, p. 17) afirma que o jeitinho faz parte do cotidiano do povo brasileiro, já tendo
sido consagrado como uma maneira de trafegar nas diversas esferas de nossa sociedade. Para o
autor, trata-se de “um fenômeno cultural que controla nosso comportamento, nossas decisões e
nossas escolhas diárias” (p. 18). Segundo Torres (1973), o jeitinho é visto como um “fenômeno
cultural positivo [embora outros autores considerem-no como negativo] e característico da
vivacidade e flexibilidade do brasileiro.” Podemos considerar que a principal fonte de informação,
sobre o jeitinho ter uma cultura própria ou não, é a própria participação ativa de todos nós em nosso
cotidiano brasileiro. Basta prestarmos atenção ao nosso discurso e ao discurso daqueles que nos
cercam ou com quem interagimos diuturnamente para verificarmos a existência desse fenômeno.
Analisando a importância de estudar o jeitinho no Brasil em relação a outros países, Castor
(2004, p. 61-63) declara - como uma das justificativas que “interessa à própria burocracia
[domínio, por excelência, do jeitinho, segundo Barbosa (p. 36)
8
] manter a cultura do jeitinho, na
medida em que [...] é ideal para a afirmação do poder e do prestígio político, quando não o é para
obter vantagens e recompensas [...]” (grifo nosso).
Essa práxis do jeitinho na cultura brasileira gera um código típico de comunicação entre os
interlocutores brasileiros que compartilham desse fato lingüístico e sociocultural
9
, pois, como
afirmam Berger e Luckmann (2005, p. 59), “a linguagem tipifica as experiências, permitindo-nos
agrupá-las em amplas categorias, em termos das quais tem sentido não somente para” um mas
também para todos os falantes que compartilham do mesmo código lingüístico.
8
Embora a própria autora (p. 37) admita que “não há domínios em que não seja possível se dar um jeitinho.”
9
Segundo Gumperz (1994, p. 3), “uma teoria geral das estratégias do discurso deve começar especificando o
conhecimento lingüístico e sociocultural que precisa ser compartilhado para que uma conversa possa ser mantida”
(grifo nosso). Conhecimento lingüístico e sociocultural compartilhado em uma dada cultura (o jeitinho é visto neste
trabalho como um fato lingüístico e sociocultural) é a idéia que perseguiremos neste trabalho.
Assim sendo, passaremos a nos referir a esse típico código de comunicação como a
linguagem do jeitinho brasileiro
10
, nosso principal objeto de pesquisa.
Ora, se uma linguagem do jeitinho brasileiro”, isso suscita questões pertinentes tais
como: haveria um código lingüístico ou uma maneira de falar peculiar a esse tipo de fenômeno?
Caso haja, quais seriam as palavras, expressões, clichês, etc. mais comuns? Qual seria a importância
desses enunciados na comunidade lingüística de Foz? Quais as influências sociais na escolha desses
enunciados? Sociolingüisticamente falando, haveria diferenças diatópicas (geográficas), diastráticas
(sociais) e diafásicas (estilísticas)
11
? Haveria alguma interferência lingüística da comunidade
multiétnica de Foz do Iguaçu, com cerca de 72 etnias (WEBBER, 2003, p. 13, 125) na linguagem
do jeitinho?
Na visão de Barbosa (1992, p. 29, 49), o jeitinho “possui um ‘idioma’ e uma ´técnica’
particular” em sua realização. A autora sugere que um estudo sobre esse tipo de ‘idioma’ deveria ser
feito, e afirma que “a investigação do significado desse ‘mecanismo social’ implicaria um
levantamento etnográfico em três níveis diferentes” (grifo nosso).
No primeiro nível, Barbosa defende um mapeamento da existência desse fato em nosso
universo social, para que possamos conhecer assim aspectos de sua ‘gramática’ tais como as
situações, os personagens e os domínios adequados ou não ao seu uso, o que nos remete à questão
da competência comunicativa apresentada por Hymes e Gumperz em 1964 (JOSEPH, 2000, p. 72).
De acordo com nossas pesquisas, esse estudo ainda não foi realizado.
No segundo, propõe fazermos uma análise dos discursos e dos sistemas de representação
de que o jeitinho é objeto, o que pode ser implementado por meio da aplicação de princípios
10
Em setembro de 2006, encontramos na Internet uma tese de doutorado em Letras (Ciência da Literatura) defendida
por Marcus Vinícius Quiroga Pereira, em 1994, na UFRJ, orientada pela profª Drª Nizia Maria Souza Villaca, intitulada:
Como era gostoso o meu javanês: estudo da linguagem do jeitinho na obra de Lima Barreto. Outro pesquisador
havia pensado na denominação que ora propomos, ou seja, linguagem do jeitinho brasileiro. Disponível em:
<http://buscatextual.cnpq.br>. Acesso em: 24 set. 2006. (Currículo da orientadora)
11
Os vocábulos diatópico e diastrático foram propostos pela primeira vez pelo lingüista norueguês L. Flydal, em
1951. Coseriu cunhou o termo diafásico, tomando a palavra grega phásis com o sentido de 'expressão', em
complemento a diastrático e diatópico. (COSERIU, Eugenio. Lições de lingüística geral. Tradução de Evanildo
Bechara. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.)
teóricos da Sociolingüística, da Pragmática, da Semântica, da Argumentação, da Análise do
Discurso e dos estudos sociológicos de Berger e Berger (1977), Goffman (1988, 2002), Pais (2003)
e Berger e Luckmann (2005). Com exceção de estudos sociológicos, antropológicos e teológicos,
sobre os quais comentaremos no Capítulo 3, seção 3.1, parece-nos que até o momento nenhuma
análise desse discurso, ou seja, da linguagem utilizada, foi realizada.
No terceiro, comenta sobre a importância de fazermos uma comparação com um outro
drama social do cotidiano brasileiro, oVocê sabe com quem está falando?’, no qual Manda quem
pode, obedece quem tem juízo”, e, através do qual, a autoridade e o poder são propositada e
abusivamente empregados. Aliás, “autoridade” e “poder” são dois conceitos subjacentemente
presentes na linguagem do jeitinho. Barbosa (1992) e DaMatta (1984, 1997, 2004) parecem ter
explorado com propriedade esse aspecto do jeitinho.
Por um lado, os parágrafos acima mostram a necessidade e, talvez, o ineditismo - de
empreendermos um estudo sobre as diversas facetas lingüísticas, sociais, culturais, históricas e
ideológicas desse tipo de fenômeno. Por outro, revelam a complexidade do fenômeno em si que, ao
permitir várias leituras, exige que busquemos diversificar e ampliar a fundamentação teórica para
que possamos a partir daí melhor compreender aspectos ainda não estudados nessa temática.
Objetivos
Dessa maneira, nossa pesquisa tem como objetivo geral coletar e analisar exemplos de
enunciados orais que expressem esse tipo de fato lingüístico e sociocultural na comunidade
fronteiriça de Foz do Iguaçu, nosso espaço de pesquisa etnográfica.
Por ser um procedimento lingüístico e sociocultural de aprendizado implícito transmitido
ao longo de anos, décadas e, talvez, séculos desde o descobrimento do Brasil, por exemplo, como
sugere Rosenn (1998, p. 17-49) –, tempo em que a Língua Portuguesa Brasileira se consolidou,
optamos por não fazer um estudo histórico ou mesmo diacrônico da linguagem do jeitinho devido à
escassez ou inexistência de registros escritos sistematizados sobre o assunto no Brasil até a década
de 1940
12
.
Segundo pesquisas de Barbosa (1982, p. 145), os relatos e registros orais sobre a expressão
jeitinho brasileiro” parecem ficar mais claros e precisos na memória de pessoas da terceira idade a
partir das décadas de 1930 e 1940. A expressão jeitinho brasileiro” é, portanto, recente, embora
jeitinho” e “dar um jeitinho” já fossem anteriormente usadas.
Os objetivos específicos da pesquisa contribuem para verificarmos (i) se realmente existe
uma linguagem para esse tipo de fato social; (ii) caso exista, qual a sua configuração
sociolingüística, ou seja, como esse fato sociocultural se apresenta sociolingüisticamente; e (iii)
quais seriam as suas diferentes representações e significações sociais - o que dizemos e o que
realmente queremos dizer - nos enunciados típicos desse fenômeno.
Propomos, pois, fazer um recorte sincrônico e analisar a linguagem oral do jeitinho
brasileiro como realizada em Foz do Iguaçu no período de agosto de 2005 a agosto de 2006.
Estrutura da Dissertação
Para a apresentação desse estudo, dividimos a dissertação em quatro capítulos. No
primeiro capítulo conceituamos, delimitamos e problematizamos nosso objeto de pesquisa. Em
seguida, situamos o cenário sociolingüístico e definimos o perfil dos informantes da pesquisa. A
partir daí, descrevemos a abordagem de pesquisa qualitativa do tipo etnográfico que empregamos, o
processo de elaboração e aplicação dos instrumentos de coleta de dados e o corpus obtido durante as
entrevistas narrativas, os roteiros de entrevista e a observação participante que realizamos.
Apresentamos o aporte teórico que embasa nossa discussão com base em duas
perspectivas: uma sobre a identidade e outra sobre a linguagem. Assim, no segundo capítulo
12
Barbosa (1982, p. 140-144) tentou levantar o histórico do jeitinho, mas concluiu ser a tarefa quase impossível, pois
não existem documentos escritos sobre o tema. A autora alega ter pesquisado em jornais, revistas, livros diversos e
dicionários a partir de 1930. Segundo ela, a referência escrita mais antiga encontrada sobre o jeitinho ou dar um
jeitinho é de 1943 e encontra-se na obra de Lysias Rodrigues, intitulada Roteiro do Tocantis. Em jornais, as
referências mais antigas aparecem no diário de Goiânia O Popular, em 1969. A expressão dar um jeito aparece
dicionarizada pela 1ª vez em 1966 no Tesouro da Fraseologia Brasileira de Antenor Nascentes.
examinamos a questão do jeitinho como um elemento social na construção da identidade nacional
do brasileiro e, conseqüentemente, do cidadão iguaçuense. Conceitos como identidade e diferença,
cultura, sociedade, relações de poder, entre outros são analisados através da leitura de autores como
Sarup (1996), Barbosa (1992), Cavalcanti (2001), DaMatta (1984, 1987, 1997, 2004), Woodward
(2005), Silva (2005), entre outros.
No terceiro capítulo, buscamos sustentação teórica em pesquisadores como Labov (1991,
2005), Hymes (1964, 1977), Elia (1987), Gumperz (1994), Preti (1994), Tarallo (2002), Bortoni-
Ricardo (2004), e outros que nos permitiram compreender a questão da linguagem empregada na
cultura do jeitinho brasileiro. Conceitos relevantes à discussão tais como comunidade de fala,
línguas em contato, atitude lingüística, competência comunicativa e pistas contextuais foram
trabalhados com o intuito de melhor explorarmos a realização lingüística do jeitinho. Além da
Sociolingüística, buscamos fundamentar aspectos da linguagem do jeitinho em conceitos da
Pragmática, da Teoria da Enunciação, da Teoria das Trocas Lingüísticas de Bourdieu (1996), da
Argumentação, entre outras por entendermos que tais contribuições acrescentariam ao nosso
entendimento da questão.
No quarto capítulo, fazemos uma análise de exemplos da linguagem do jeitinho, coletados
durante a pesquisa de campo, com base nos pressupostos teóricos levantados nos capítulos
anteriores. Dentre os objetivos traçados para esse capítulo estão o de verificar o que as pessoas
dizem e o que elas querem dizer quando dizem o que dizem.
Finalizamos o trabalho com algumas considerações gerais e reflexões sobre as questões
lingüísticas e socioculturais envolvidas nesse tipo de fenômeno, procurando compreender até que
ponto os enunciados utilizados afetam, influenciam ou transformam o comportamento e a
linguagem de uma comunidade.
1 TEMA, CONTEXTO E METODOLOGIA DA PESQUISA
Segundo o dicionário Houaiss (2001, p. 1679), o verbete “jeito” tem sua origem na palavra
latina jactus, que significa “lançamento, arremesso, tiro, jato”, com datação na Língua Portuguesa
no século XIV grafada como jeyto, passando depois para geito em 1572 e assumindo na década de
1950 a grafia jeito que se mantém até os dias de hoje. O Houaiss registra as formas jeito, jeitinho,
jeitão, embora as duas primeiras sejam as mais usadas atualmente. A forma diminutiva jeitinho
(jeito + o sufixo inho) parece ser a preferida quando o locutor precisa convencer (leia-se
manipular, seduzir, envolver, sensibilizar) seu interlocutor a conseguir-lhe algo. No Capítulo 4,
discutiremos o uso dessa forma e alguns de seus significados.
Embora o jeitinho esteja consolidado na cultura brasileira, sua dicionarização é bem
recente. Segundo Barbosa (1992, p. 141), os registros mais antigos sobre a expressão jeitinho
brasileiro datam de 1974 e 1976, mas antes disso as palavras jeito e jeitinho eram usadas. A
expressão dar um jeitinho, no diminutivo, é ainda mais recente, registrada pela primeira vez em
1982, no Novo Dicionário de Termos e Expressões Populares de Tomé Cabral, publicado em
Fortaleza, Ceará.
Do ponto de vista da autora (BARBOSA, 1992, p. 146),
não dúvida que na década de 1940 o jeitinho e o dar um jeitinho eram
expressões em uso na sociedade brasileira, que possuíam o mesmo significado de
atualmente e que sua inclusão oficial na Língua Portuguesa ocorreu na década de
1960 (1966). Fica claro também, a partir dos dados escritos e orais [levantados pela
autora] que o termo jeitinho brasileiro é de utilização mais recente e que sua
dicionarização ocorreu apenas na década de 1980.
O fato de considerarmos o dicionário uma construção lingüística elaborado a partir de
vocábulos ligados a determinadas conjunturas sócio-históricas do país, ou seja, à sua realidade de
tempo e espaço na construção do léxico (afinal, o dicionário é um objeto histórico), em conjunto
com a falta de material bibliográfico específico demonstram que as pesquisas sobre a linguagem e a
cultura do jeitinho brasileiro, com base em disciplinas como a Lingüística, a Sociologia, a
Antropologia, a Dialetologia, a Pragmática, entre outras, encontram-se ainda em estágio inicial. O
material que temos, no entanto, permite que comecemos um estudo e uma análise sobre sua
realidade e realização no imaginário lingüístico e sociocultural do povo brasileiro.
A complexidade de nosso objeto de pesquisa demandou uma abordagem teórico-
metodológica que pudesse explorar de forma dinâmica
13
os diversos aspectos lingüísticos e
socioculturais envolvidos em sua ocorrência diuturna. Embora tivéssemos a preocupação em
esboçar um planejamento das técnicas e atividades de pesquisa de campo a serem utilizadas, a
definição, elaboração e implementação final desses procedimentos foram determinadas pelo próprio
andamento do trabalho, pois, conforme esclarecem André e Lüdke (1986, p. 12), “a preocupação
com o processo deve ser muito maior do que com o produto”, principalmente, devido ao tipo de
metodologia escolhida para a pesquisa desse objeto.
Além disso, segundo Aguilera (2005, p. 141), quando se inicia uma pesquisa lingüística
“nem sempre se consegue definir com absoluta precisão todos os objetivos e as formas pelas quais
eles serão alcançados, pois, à medida que o trabalho evolui, os dados vão apontando caminhos
muitas vezes não previstos” (grifos nossos).
Assim, à medida que o levantamento dos dados trazia novos questionamentos ou
sinalizava pontos inconsistentes, novos procedimentos eram adotados para complementar ou
ratificar o que já tínhamos coletado. Para que isso pudesse ser feito, foi importante que adotássemos
o “uso de um plano de trabalho aberto e flexível” (ANDRÉ, 2004, p. 30), o que permitiu mudanças
de rumo sem grandes transtornos.
13
“Dinâmica no sentido de algo que se modifica continuamente; que evolui; que considera as coisas em seu
movimento; que se revela muito diligente, ágil, criativo (HOUAISS, versão online)
Um exemplo de mudança de procedimento foi a flexibilização das regras da dinâmica
aplicada à entrevista narrativa em grupo, cujos procedimentos metodológicos específicos serão
apresentados na subseção 1.6.1. Inicialmente, nossa proposta era que cada informante no grupo
desse seu depoimento sobre uma única situação cotidiana apresentada a ele. Na primeira entrevista
em grupo, no entanto, verificamos que todos tinham uma história a contar sobre o tópico abordado
por outros informantes. Todos tinham ou conheciam alguém que tivesse - vivenciado algo
semelhante. Seguir a regra inicialmente proposta faria com que perdêssemos a oportunidade de
ouvir relatos espontâneos sobre o tema que estávamos pesquisando. A partir daí, decidimos
flexibilizar a regra e permitir que todos no grupo pudessem compartilhar suas experiências sobe o
tópico sendo abordado no momento: desde que fosse um de cada vez e não todos ao mesmo tempo.
Neste capítulo, delimitaremos e problematizaremos nosso objeto de estudo; descreveremos
o cenário ou contexto da pesquisa assim como o corpus e o perfil dos entrevistados; e
finalizaremos com a apresentação do tipo de abordagem utilizado na coleta de dados.
1.1 Delimitação e Problematização do Tema
Como dissemos na Introdução, a questão do jeitinho na cultura brasileira muito tem
despertado a nossa curiosidade e causado certa inquietação lingüística quanto à sua realização.
Observamos, por exemplo, que um dos traços mais marcantes desse fenômeno é a sua práxis diária
sem que muitos de nós estejamos conscientes de sua antieticidade em nossa vida social. Enunciados
do tipo Você pode dar um jeitinho? são disparados a todo instante, em todo o território nacional
sem o menor constrangimento por parte de seus enunciadores.
Barbosa (1992, p. 31-32) afirma que “um dos aspectos interessantes em relação ao jeitinho
é seu caráter universal”
14
na cultura brasileira. Além do mais, a autora, cuja tese de doutorado a
respeito do assunto transformou-se em livro, acrescenta que, durante as 200 entrevistas que realizou,
as pessoas passavam do susto (“Mas eu nunca pensei a respeito!”) ao encantamento (“Puxa! Eu
não imaginava que pudesse falar tanto tempo sobre isso!”), o que demonstra ser o conceito pouco
visível para os usuários, mas bastante praticado.
Tudo indica que aprendemos a dar um jeitinho assim como aprendemos a Língua
Portuguesa (seria isso um tipo de competência que adquirimos?). Se assim for, podemos então dizer
que o dar um jeitinho”, como a própria linguagem e essencialmente por meio dela –, é um fato
social conforme definição apresentada por Durkheim
15
.
A questão do caráter impositivo, coercitivo, vivenciado como se fosse algo exterior ao
indivíduo, e com um histórico que nos antecede, permite que caracterizemos o jeitinho brasileiro
como uma instituição social, seguindo a definição acima proposta por Berger e Berger (1977, p.
193-199).
Essa compreensão permitiu que pudéssemos então começar a delimitar nosso objeto de
pesquisa, pois se a “linguagem é a instituição fundamental da sociedade, além de ser a primeira
instituição inserida na biografia do indivíduo”, conforme sugerem Berger e Berger (ibid., p. 193), e
o jeitinho é expresso através de uma linguagem seja ela verbal ou não-verbal –, isso sugere uma
pergunta: existiria uma linguagem típica da e na cultura do jeitinho brasileiro?
Isso nos ajudou a problematizar a especificidade do tema de pesquisa escolhido, ou seja,
partimos da categoria social jeitinho brasileiro para a categoria lingüística da linguagem do jeitinho
em uma área de fronteira como Foz de Iguaçu.
Assim, pesquisar e analisar a linguagem do jeitinho se justificava pelo fato de termos nesse
tipo de instituição social, conforme argumentação acima, os dois lados (de uma mesma moeda)
14
Segundo a autora, “todas as pessoas entrevistadas [na pesquisa de campo realizada para a sua tese] conhecem,
praticam ou fazem uso das expressões jeitinho brasileiro ou dar um jeitinho (BARBOSA, 1992, p. 32, grifo da
autora).
15
O fato social apresenta como “características distintivas (i) a sua exterioridade em relação às consciências
individuais e (ii) a ação coercitiva que exerce sobre essas mesmas consciências” (DURKHEM, 2004, p. 31).
importantes em um estudo sociolingüístico, ou seja, a linguagem e o social.
Essa ligação e essa interdependência são ratificadas por Bauer, Gaskell e Allum (2005, p.
20) quando afirmam que uma pesquisa social “apóia-se em dados sociais dados sobre o mundo
social que são o resultado, e (esses dados) são construídos nos processos de comunicação.”
Portanto, não interação social sem linguagem. Não jeitinho, sem interação social. Logo, o
jeitinho e a interação social praticamente inexistem sem a linguagem, nosso principal objeto de
pesquisa.
1.2 Pesquisa Bibliográfica do Jeitinho
A delimitação e a problematização de nosso tema de pesquisa, entretanto, não poderiam ter
sido realizadas sem que tivéssemos feito um levantamento e um estudo bibliográfico preliminar
sobre o assunto principal e as teorias que serviriam para fundamentar a análise dos dados a serem
coletados, fase que André (1997) classifica como “fundamental para a formulação do problema e
para a construção do olhar teórico que orientará o trabalho de campo.”
Visitas a diversas livrarias, sebos e bibliotecas universitárias, além de buscas virtuais pela
Internet, mostraram que a literatura específica sobre o jeitinho brasileiro” ainda é limitada.
Encontramos apenas quatro livros que abordam o tema de forma técnica e acadêmica: um na área
jurídica (ROSENN, 1998), um na área de antropologia social (BARBOSA, 1992) e dois na área
ético-moral-teológica (LEERS, 1982; REGA, 2000).
Alguns livros mencionam a questão do jeitinho, embora não façam um estudo detalhado
do fenômeno em si. Outros, simplesmente, citam a existência dessa instituição social, mas não
desenvolvem o tema.
Não encontramos livros que discutam o jeitinho sob um viés lingüístico ou
sociolingüístico. O livro Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade
nacional”, organizado por Orlandi (2001), contém um artigo de Maria C. L. Ferreira intituladoA
antiética da vantagem e do jeitinho na terra em que deus é brasileiro: o funcionamento discursivo
do clichê no processo de constituição da brasilidade”. A autora faz um breve estudo lingüístico dos
clichês Todo brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”, O jeitinho brasileiro e Deus é
brasileiro”.
A pesquisa bibliográfica prosseguiu com a aquisição de títulos relacionados à pesquisa e
que serviram para embasar a nossa fundamentação teórica. Assim, conseguimos artigos e livros nas
áreas de Sociolingüística, Lingüística Geral, Pragmática, Semântica, Análise do Discurso,
Argumentação e Retórica, Sociologia, Metodologia Científica, entre outros.Adquirimos também
livros diversos que narrassem ou nos dessem pistas e indicações sobre a possível origem da cultura
do jeitinho no Brasil e em Foz do Iguaçu.
1.3 Espaço, Tempo e Informantes da Pesquisa
O levantamento de enunciados típicos de como se um jeitinho começou a ser
realizado simultaneamente em duas frentes lingüísticas: no país como um todo e em Foz do Iguaçu,
nossa principal fonte de pesquisa.
Na primeira, a idéia inicial era colher exemplos que pudessem nos ajudar a compor um
quadro nacional de enunciados do jeitinho, o que talvez nos servisse como referência para a
verificação de diferenças e semelhanças em relação àqueles produzidos na comunidade lingüística
de Foz de Iguaçu.
Essa pesquisa nos mostrou, por exemplo, que a expressão Você pode dar um jeitinho?”
aparece como uma unanimidade lingüística no país
16
. Para a coleta de dados no Brasil, utilizamo-
nos da técnica de pesquisa e análise documental. Consultamos livros, revistas, jornais, sítios na
16
Essa observação é corroborada por Barbosa (1992, p. 31) que realizou pesquisa de campo sobre o jeitinho brasileiro
utilizando-se de roteiros de entrevista e questionários com cerca de 200 pessoas de diferentes segmentos e faixas
etárias em diferentes cidades do Brasil – p. ex. Recife, Rio de Janeiro, João Pessoa, Porto Alegre – de 1984 a 1986.
Internet e outras fontes durante o período de agosto de 2005 a agosto de 2006.
No entanto, concluímos que esse seria um objetivo muito ambicioso para o presente
trabalho, pois exigiria uma pesquisa geográfica e lingüisticamente extensa, o que demandaria muito
de nosso tempo. Assim, embora já estivéssemos realizando coleta de material no contexto nacional,
decidimos concentrar nossos estudos nos enunciados produzidos apenas na comunidade de Foz do
Iguaçu, com o objetivo de elaborar um corpus que nos permitisse fazer uma análise das expressões e
significações sociais dessa linguagem.
1.3.1 O Município
17
de Foz do Iguaçu
No município de Foz do Iguaçu convivem diferentes grupos étnicos. A cidade apresenta
uma grande afluência de turistas nacionais e estrangeiros. Quem visitar Foz do Iguaçu, na Tríplice
Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, se surpreenderá com as diferentes culturas das cerca de
72 etnias (WEBBER, 2003, p.13, 125) que compõem a população local.
A região é um exemplo para o mundo de convivência pacífica entre povos de costumes e
nacionalidades diversas. Segundo Jorge Samek, diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, "Aqui
[em Foz], o árabe vive bem com o judeu, o polonês pode viver bem com o alemão, o brasileiro
com o paraguaio e o argentino e vice-versa" (H2FOZ, 2005).
Os traços dessa variedade cultural se refletem nos hábitos peculiares - religião, vestuários,
alimentação e línguas - encontrados nessa cidade fronteiriça. Um passeio pela cidade mostra que é
possível, pela manhã, cumprimentar pessoas com o tradicional "bom dia" em pelo menos três
idiomas diferentes. O contato entre diferentes culturas e línguas é uma realidade constante e
inegável em Foz do Iguaçu.
Basta um passeio pela Avenida Brasil, principal via comercial da cidade, para percebermos
a variedade de culturas e línguas que transitam livremente pela cidade.
17
Objetivamente, podemos dizer que cidade refere-se ao núcleo urbano, enquanto município abrange tudo, o
núcleo urbano e o rural.
1.3.1.1 Breve História da Terra das Cataratas
No nome da cidade “Foz do Iguaçu”, a palavra “Iguaçu”, de origem tupi-guarani
(ygwa’su), significa “rio grande” enquanto “Foz” quer dizer “ponto de desaguamento de um rio”
(HOUAISS, 2001, p. 1383, 1569). Portanto, “Foz do Iguaçu” representa “a boca ou o delta do rio
grande”.
FIGURA 1 – Mapa da Tríplice Fronteira e dos Rios Iguaçu e Paraná
FONTE: <http://www.iguassufallstour.com>.
Não poderia ser diferente, pois a cidade encontra-se localizada na confluência dos rios
Paraná e Iguaçu: onde água em abundância. Do primeiro, nascem as Cataratas do Iguaçu e do
segundo a Usina Hidrelétrica de Itaipu. A região oferece um complexo de 275 quedas que se
estendem por quase 5 km do Rio Iguaçu. Eis porque é conhecida como a Terra das Cataratas.
FIGURA 2 – Foto das Cataratas do Iguaçu
FONTE: <http://www.paranacidade.org.br>.
Foz do Iguaçu situa-se a uma altitude de 173 metros em relação ao nível do mar, na região
sul do Brasil, a oeste do Estado do Paraná. Inicialmente sua área territorial era de cerca de 8.132.000
km² (LIMA, 2001, p. 17), mas atualmente, com a emancipação de diversos municípios, mede cerca
de 550 km², segundo Luiz Eduardo Pena Catta (2003, p. 25), professor de História da UNIOESTE -
Campus Foz do Iguaçu.
Esse território foi “descoberto” pela primeira vez pelo “homem branco” em 1542, com a
expedição colonizadora de Alvar Nunes Cabeza de Vaca, capitão espanhol, guiado por índios
guaranis “que habitavam esta região desde os primórdios dos tempos, [embora] aqui também
vivessem os índios caigangues [ou kaigangs], imigrados do Paraguai e inimigos dos guaranis.”
(LIMA, 2001, p.18)
A região, entretanto, ficou relegada ao esquecimento por muitos anos, até que em 1876, D.
Pedro II envia à Foz uma expedição comandada pelo Capitão Nestor Borba com o intuito de
“redescobrir” essa parte do Brasil. Ao chegar lá, o Capitão Borba “reincorpora Foz do Iguaçu ao
mapa do país como se fosse uma província perdida. (LIMA, 2001, p. 19)
Contudo, o povoamento regular e definitivo da região por habitantes nacionais somente
começou com a instalação da Colônia Militar no dia 23 de novembro de 1889 (BRITO, 2005, p.
78), tendo como objetivo principal tomar posse da região e conter o domínio dos países vizinhos.
FIGURA 3 - Foto dos Primórdios da Colônia Militar
FONTE: <http://www.front.inf.br/hist_007.php>.
Embora isso não tenha sido um fator de progresso duradouro, a presença militar na área
teve seus méritos. Até a construção da usina de Itaipu, o quartel do Exército sempre foi a realidade
mais poderosa de Foz do Iguaçu. Essa condição se diluiu com o tempo, mas ainda assim, o Batalhão
do Exército hoje com o nome de 34º Batalhão de Infantaria Motorizado (34º BIMtz) continua
atuante, com uma tropa de aproximadamente 700 homens e privilegiada área no coração da cidade
de aproximadamente 118 hectares (H2FOZ, 2005).
Em 1910, a Colônia Militar passou à condição de distrito do Município de Guarapuava.
Em 10 de junho de 1914, “o Município de Vila do Iguassú foi oficialmente criado, mas o nome de
Foz do Iguaçu só foi adotado definitivamente em 1918.” (LIMA, 2001, p. 31)
A partir de 1930 começaram a chegar os primeiros agricultores gaúchos e catarinenses,
iniciando um novo ciclo de ocupação por meio da agricultura na região. No final da década de 1950
e início da década de 1960, vieram os imigrantes europeus que trabalharam na exploração e
produção da erva-mate, do corte de madeira, na agricultura e pecuária. Em 1950, estabeleceu-se a
colônia árabe em Foz, hoje, a segunda maior do Brasil.
Foz continuou sua expansão com diversos empreendimentos tais como a criação do Parque
Nacional do Iguaçu (1939), que potencializou a economia local com o turismo; a inauguração da
Ponte Internacional da Amizade (1965), que intensificou o comércio de Foz do Iguaçu com a cidade
paraguaia de Puerto Stroessner , hoje denominada Ciudad del Este; a conclusão da rodovia BR-277
(1969), que ajudou a diminuir a distância entre Foz e municípios vizinhos; a construção do
Aeroporto Internacional (1970), que ligou Foz às grandes capitais brasileiras; e outros eventos que
marcaram a cidade. Era o progresso chegando à cidade de Foz do Iguaçu.
A partir de 1974, com a implantação do projeto da Usina Hidrelétrica de Itaipu, a cidade
sofreu um forte impacto em toda sua estrutura social, política, econômica e lingüística, pois, no
ápice de sua construção, chegou a empregar um contingente de cerca de 40.000
18
trabalhadores. A
população de Foz do Iguaçu passou de 33.966 em 1970 para 136.321 em 1980. Um aumento que
acarretou transformações drásticas e transtornos para os quais a cidade não estava preparada, pois
não havia se estruturado para isso. Catta afirma que
Foz do Iguaçu experimentou mudanças significativas num espaço de tempo muito
breve [mais precisamente entre 1973, quando se inicia o processo de construção da
Usina Hidrelétrica de Itaipu, e 1991, quando da abertura da última comporta], de tal
modo, que afetaram diretamente sua configuração espacial e o âmago daqueles que
ali moravam, pois, de maneira brusca passaram a conviver com um grande número
de novos habitantes, alienígenas nacionais e estrangeiros, que foram para lá atraídos
por um progresso que se esboçava na fronteira. (2003, p. 17, 35)
FIGURA 4 - Foto da Usina Hidrelétrica de Itaipu
18
Lima (2001, p. 103) registra “[...] Itaipu empregou em seu auge, cerca de 40.000 trabalhadores”. Catta (2003, p. 92)
escreve “No auge da obra, apenas do lado brasileiro, pouco mais de 20 mil barrageiros compuseram a massa humana
daquele projeto.”
FONTE: <http://www.itaipu.gov.br>.
Lima (2001, p. 96) confirma as mudanças significativas que ocorreram e introduz uma
questão ética – e pertinente ao nosso estudo – quando esclarece que durante a construção de Itaipu
muita gente ficou rica da noite para o dia com a supervalorização de suas terras. [...]
Grandes avenidas e obras de infra-estrutura modificavam o perfil da cidadezinha do
interior para receber a gigantesca Itaipu Binacional. Começaram, então, a surgir os
grandes loteamentos que eram aprovados a toque de caixa na calada da noite,
burlando as leis, a propina corria solta, funcionários públicos municipais
enriqueceram da noite para o dia (grifos nossos).
Essa situação na qual “manda quem pode, obedece quem tem juízo” era um contexto
fértil para (i) o jeitinho brasileiro que rolava solto na cidade
19
tendo, de um lado, (ii) o
19
Conforme depoimento de um informante cujo pai trabalhou nas obras da Hidrelétrica de Itaipu.
favoritismo
20
e, do outro, (iii) a corrupção: três categorias afins no universo social do cotidiano
brasileiro que alimentam maracutaias, falcatruas, negociatas, manobras ilícitas, fraudes, entre outros
negócios escusos quando encontram pessoas dispostas a compartilhar de “investimentos fáceis” e
colaborar para a sua manutenção, no sentido mais ambíguo possível, ou seja, a manutenção da
pessoa e do próprio“negócio”.
Cabe observar que, na década de 1980, houve um crescimento na importância das
transações entre Brasil e Paraguai, principalmente para Foz do Iguaçu e Ciudad del Este. Naquele
período, ampliaram-se o “turismo de compras” e o comércio atacadista exportador para a região
fronteiriça. Isso fez com que os comerciantes instalados no Paraguai e Brasil principalmente
árabes, coreanos e chineses, que mantinham atividades econômicas negociando em dólar, no black
(mercado paralelo) investissem na abertura de novos negócios, em sua maioria ligados à área de
eletroeletrônicos.
21
FIGURA 5 - Foto de Compristas no Paraguai a Caminho do Brasil
20
Quem tivesse um conhecido importante dentro [de Itaipu] podia conseguir até uma casa na Vila A.
Conhecimento era tudo. Quem tinha, não passava fome.” (depoimento de um informante)
21
Até hoje, esse “turismo de compras” influencia a economia local, chegando mesmo a criar certa dependência
econômica da cidade, pois, além de alimentar o comércio informal e sustentar as pessoas que dele dependem,
movimenta hotéis, restaurantes, lanchonetes, agências de turismo e outras prestadoras de serviços.
FONTE: <http://www.gazeta.inf.br>.
No entanto, um novo quadro começava a se configurar: à medida que as obras da Usina de
Itaipu iam sendo concluídas, milhares de trabalhadores empregados na construção desse mega-
empreendimento eram demitidos. Por falta de qualificação profissional que pudesse ajudá-los a
entrar no já restrito mercado de trabalho da cidade, o restou a muitos desses desempregados outra
opção senão a busca de atividades no mercado informal que crescia cada vez mais nessa área
fronteiriça. (CATTA, 2003, p. 10)
O agravamento da situação social do município, com o crescente desemprego e o
desenvolvimento de uma economia informal, acarretou, entre outros problemas, um aumento do
favelamento urbano, além de outras dificuldades nos setores sociais, especialmente nas áreas de
educação, saúde e segurança pública.
Em 29 de outubro de 1985, foi inaugurada sobre o rio Iguaçu a Ponte Internacional
Tancredo Neves, ligando o Brasil à Argentina e facilitando o acesso à cidade de Puerto Iguazu: mais
um símbolo que reafirmava a forte ligação de fronteira entre os três países.
FIGURA 6 – Foto da Ponte Tancredo Neves (Brasil – Argentina)
FONTE: <http://www.iguassufallstour.com>.
Em 2003, Foz do Iguaçu apresentava uma população estimada em 279.620 habitantes.
Desse número, 55,6% percebiam até 3 salários mínimos, sendo que desses 10% não recebiam renda
alguma. A educação continuava a ser um problema, pois somente 76% da população tinham ensino
fundamental, e dentre esses o índice de analfabetismo funcional mostrava-se altíssimo. As
estatísticas apontavam ainda que somente 19% tinham o ensino médio e apenas 5% haviam
freqüentado um curso superior. (WEBBER, 2003, p. 23-27)
No mês de setembro de 2006, o IBGE divulgou em sua página na Internet a Estimativa
das Populações Residentes, em 01.07.2006, segundo os Municípios”, na qual verificamos um
crescimento de cerca de 10,5% (em relação ao ano de 2003) no Município de Foz do Iguaçu, agora
com 309.113 habitantes.
1.3.1.2 Mosaico Sociocultural e Lingüístico no Processo da Identidade em Foz
De acordo com a pesquisadora e professora Vanderci Aguilera (2005, p. 139), o estado do
Paraná é um “mosaico vivo de dezenas de povos e culturas diversificadas, e até historicamente
antagônicas, convivendo lado a lado, assimilando mutuamente, em maior ou menor escala, seus
costumes e hábitos, inclusive, e sobretudo, os lingüísticos.”
Em Foz, o podia ser diferente. No texto de apresentação do livro Descoberta de Foz do
Iguaçu (2005), de José Maria de Brito, Fábio Campana, escritor e jornalista, escreve sobre a
riqueza multicultural e lingüística que marcava a infância do jornalista e da cidade. Campana (p.
16-17) faz os seguintes comentários:
Minha avó [...] e sua mãe [...] falavam entre elas puro guarani. [...] Meu pai [...] não
falava e não admitia que se dirigissem a ele em outro idioma que não fosse o
português. Militar, nacionalista, firmou na caserna da fronteira convicção sobre a
necessidade de preservar a identidade pátria. Em casa, espanhol. Na escola e com o
pai, o português. Nas ruas, o jopará
22
, mistura de espanhol, guarani e um tanto de
português. Hoje, a língua das ruas, do comércio, do contrabando, é ainda mais rica.
Vivem em Foz do Iguaçu mais de setenta etnias. Essa gente fala uma nova língua,
um papiamento incrível que amplia as línguas originais do jopará com expressões
do italiano, do árabe, do francês, do coreano, do chinês, do grego, do japonês e
outras tantas e se modifica todos os dias na Babel que abriga todas as gentes e seus
mistérios. (grifos nossos)
Como podemos observar, o plurilingüismo e a identidade eram temas presentes nas
discussões que envolviam a cidade. Brito (2005, p. 56-57) confirma essa realidade quando relata
que “por ocasião da descoberta da foz do Iguaçu [do delta do rio], o território brasileiro era
habitado [...] por 324 almas, assim descritas: brasileiros, 9; franceses, 5; espanhóis, 2; argentinos,
95; paraguaios, 212; inglês, 1,” além dos índios caigangues e guaranis que habitavam a região.
Portanto, Foz do Iguaçu sempre se comportou como uma comunidade sociocultural e
lingüisticamente heterogênea, onde a convivência pacífica tem sido praticada mediante o exercício
da tolerância multiétnica e plurilingüística entre seus habitantes. Visão compartilhada por Catta
22
“O guarani autóctone, desde o descobrimento, vem sendo submetido a uma contínua e crescente influência do
português e do espanhol (nas áreas fronteiriças). Embora os falantes do guarani tivessem que apropriar-se de um
grande número de neologismos indispensáveis para a comunicação com a sociedade nacional, esses empréstimos não
destruíram a estrutura original da língua. Dessa mescla de línguas surgiu o Jopara: material léxico português /
espanhol adaptado à morfossintaxe do guarani [...] Bartolomeu Meliá, estudioso do guarani, caracteriza o jopara
como: ‘Uma fala o circunstancial, tão sujeita à competência ou incompetência de cada indivíduo, que
desconcerta aqueles que querem traçar-lhe um perfil” (ASSIS, 2000, Introdução, grifos da autora).
(2003, p. 30) quando afirma que
o trânsito de estrangeiros sempre foi livre e constante entre as cidades vizinhas da
fronteira, Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e Puerto Iguazu, onde as inter-relações
culturais, econômicas, sociais e políticas não poderiam ser senão de uma tal
freqüência e intensidade que costumes, experiências, gostos, moeda e língua se
intercambiavam e se misturavam, num hibridismo digno de uma mini-Babel do
século XXI. (grifos nossos)
Uma outra evidência da existência do hibridismo lingüístico na cidade é mostrada por
Lima (2001, p. 52-53), quando nos diz que em 1930 “tornou-se obrigatório o uso da Língua
Portuguesa nos serviços públicos do município por imposição legal do general Mario Tourinho,
interventor do Paraná, pois, naquela época, a língua falada aqui era uma mistura de português,
espanhol e guarani.” Tentava-se assim “conter” a heterogeneidade lingüística que existia no
cotidiano de Foz do Iguaçu por intermédio de um decreto. Hoje, a língua oficial continua a ser o
português, mas o conseguiram “impedir” a convivência lingüística e sociocultural que persiste na
cidade através das diferentes línguas que são usadas no dia-a-dia pelos diferentes grupos étnicos.
No auge de sua construção, Itaipu empregou pessoas dos mais diversos lugares, que
traziam consigo culturas regionais, as quais, na maioria das vezes, tinham sido mescladas com
outras culturas em outros lugares, fruto do itinerante modo de vida dos barrageiros. Desse modo,
como não imaginar os efeitos dessa heterogênea massa de trabalhadores e de culturas no cotidiano
até então pacato e interiorano de Foz do Iguaçu? (CATTA, 2003, p. 92)
Durante o processo de instalação da Usina de Itaipu, a cidade
teve de ir se adaptando em seu modo de vida, em sua ação e reação frente ao “novo”
que alucinadamente se implantava no âmago de todas as coisas. A cidade não tinha
outra opção se não se remodelar para atender às novas exigências que se faziam
então presentes. E remodelou-se com tal rapidez, influenciada pela empresa de
Itaipu que a tudo assistia e em tudo se metia, que em curto espaço de tempo perdeu
sua identidade (grifo nosso). não era mais a Foz do Iguaçu das Cataratas. Agora
era a Foz do Iguaçu da Itaipu e das Cataratas. Ou melhor: Foz do Iguaçu da Itaipu,
do “Paraguai” e das Cataratas. Assim, a cidade mudou em seus diversos aspectos:
físico, estético, espacial, social, cultural, lingüístico, político, dentre outros.
(CATTA, 2003, p. 98-99, grifos do autor)
De acordo com dados de uma pesquisa realizada pela Associação Comercial e Industrial
de Foz do Iguaçu (ACIFI), o número de estrangeiros havia pulado de 3.788 em 1990 para 10.200 em
2004. Conforme artigo publicado na Gazeta do Iguaçu, essa ‘invasão’ estrangeira em Foz “se deve
principalmente pelos atrativos econômicos disponíveis na região por meio das oportunidades
geradas pelo comércio de importados de Ciudad del Este, entre 1976 e 1995” (WURMEISTER,
2005, p. 3). O artigo informa ainda que “os traços [da] variedade cultural [em Foz] se refletem em
hábitos peculiares como religião, vestuário, gastronomia e língua.” (grifo nosso) Basta um passeio
pela cidade para que esses “hábitos” sejam rapidamente identificados.
Na verdade, esse desenvolvimento acelerado em Foz do Iguaçu não pode ser atribuído a
um único fator transformador. Uma conjugação de fatores tais como o turismo às Cataratas, o
incremento do comércio de fronteira, a expansão agrícola que se apresentava por todo o oeste do
Paraná, somados à construção da Usina de Itaipu entre os anos de 1970 e 1990, proporcionaram
uma dinamização da economia e da infra-estrutura da cidade. É consenso entre os diferentes autores
que Itaipu foi um catalisador do progresso que hoje a cidade apresenta, embora moradores antigos
afirmem que Foz teria se desenvolvido de qualquer maneira, talvez de forma mais harmônica e
menos abrupta como foi, o que teria trazido menos distorções sociais (CATTA, 2003, p. 121-124).
Diante dessa miscigenação de línguas e culturas que encontramos em Foz do Iguaçu, como
poderíamos definir a identidade de seus habitantes? Ao falar sobre a cultura brasileira e a identidade
nacional, o sociólogo e professor Renato Ortiz (2005, p. 8) afirma que “não existe uma identidade
autêntica [única], mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em
diferentes momentos históricos.” Talvez essa seja a resposta que melhor se encaixe no caso de Foz.
Além disso, se a “identidade tem uma história”, como afirma Sarup (1996, p. 14), e “é um
processo em construção, resultando da interação entre as pessoas, instituições e práticas” sociais
(ibid., p. 11), podemos ratificar a posição expressa no parágrafo anterior e afirmar que a identidade
dos habitantes de Foz do Iguaçu não é representada por uma única identidade, mas por várias e
diferentes identidades que coexistem em um mesmo espaço geográfico. Talvez possamos defini-la
como uma identidade multifacetada marcada por uma gama e vasta reunião de identidades
fragmentadas em um constante quadro de “hibridização lingüística, étnica e cultural” (BORSTEL,
2006).
1.3.1.3 O Cotidiano de uma Cidade Fronteiriça
Podemos descrever o cotidiano de Foz do Iguaçu como um conjunto de ações rodeadas e
influenciadas por diferentes fronteiras do eu, do outro, das culturas, das línguas, das cidades, etc.
–, por meio das quais o indivíduo constrói a sua própria identidade.
As fronteiras desse cotidiano alimentam a formação de contextos híbridos oriundos de
uma gama variada de significações lingüísticas e socioculturais com as quais os atores desse
contexto interagem, pois é por meio das negociações diárias nessas interações que eles dão sentido
ao mundo em que vivem e que os torna o que são. É nesse espaço que recebem, interferem ao
colocarem em prática e transmitem sua cultura; nesse campo, se identificam por intermédio da
linguagem que fazem uso; nessa prática, desvendam o mistério do quem são e de como agem para
ser o que são.
É nesse contexto geográfico, histórico, político, sociocultural e lingüístico que se insere o
presente trabalho com o intuito de fazer uma primeira leitura de enunciados utilizados na cultura do
jeitinho brasileiro visto que não encontramos pesquisa semelhante –, conforme sua realização no
cotidiano da cidade fronteiriça de Foz do Iguaçu.
1.3.2 Corpus da Pesquisa e Perfil dos Informantes
23
A partir do contexto exposto acima, fizemos o levantamento dos dados que formam nosso
corpus. Na definição de Barthes (2003, p. 104), “o corpus é uma coleção finita de materiais,
determinada de antemão pelo analista, conforme certa arbitrariedade (inevitável) em torno da qual
ele vai trabalhar.”
Essa “coleção finita” nos permite proceder a uma análise centralizada (no sentido de
23
Por tratar-se de pesquisa na área da Sociolingüística, optamos pelo uso da palavra “informante” no sentido de uma
pessoa que fala sobre suas experiências próprias ou de terceiros, deixando isso claro ou não conforme sua vontade.
“Entrevistado” e “sujeito” serão utilizados, no entanto, quando fizerem parte de uma citação.
buscar uma compreensão das formas e significados usados) por meio dos diferentes enunciados
levantados na pesquisa de campo, pois, conforme afirmam André e Lüdke:
analisar os dados qualitativos significa ‘trabalhar’ todo o material obtido durante
a pesquisa, ou seja, os relatos de observação, as transcrições de entrevista, as
análises de documentos e as demais informações disponíveis. A tarefa de análise
implica, num primeiro momento, a organização de todo o material, dividindo-o
em partes, relacionando essas partes e procurando identificar nele tendências e
padrões relevantes. Num segundo momento essas tendências e padrões são
reavaliados, buscando-se relações num nível de abstração mais elevado (1986, p.
45).
Para chegarmos “à organização de todo o material”, por questões de praticidade, dividimos
as fontes em dois tipos: (i) primária, composta pelas falas gravadas dos informantes que
participaram das entrevistas narrativas e dos roteiros de entrevistas, e (ii) secundária, coletada
mediante observações diretas e espontâneas no cotidiano da cidade durante nossa pesquisa de
campo. Nesta, incluímos exemplos de enunciados retirados de jornais, cartazes, folhetos e outros
meios sociais de comunicação de massa em Foz por entendermos que eventualmente o texto
impresso deixa transparecer reflexos da linguagem do jeitinho empregada na cidade, além de servir
como um registro formal de sua ocorrência.
Vale ressaltar que o fato de ser “primária ou secundária” não torna uma fonte menos ou
mais importante que a outra. Ao fazer essa divisão, tivemos o objetivo didático de facilitar a
compreensão do leitor quanto à origem dos enunciados.
Para compor o perfil dos informantes, optamos inicialmente pelas seguintes variáveis
sociais: sexo, faixa etária, grau de escolaridade, profissão e local de trabalho. Essa escolha baseou-
se na suposição de que tanto homens quanto mulheres adultas (20 a 50 anos), independentemente do
grau de instrução ou da profissão, recebem, retro-alimentam e transmitem a herança cultural do
jeitinho brasileiro na cidade de Foz do Iguaçu. Evitamos crianças, adolescentes e pessoas da terceira
idade simplesmente por uma questão de foco, afinal seria impossível trabalhar com todos os grupos
no curto espaço de tempo que tínhamos para a elaboração e apresentação desse estudo.
Com relação à fonte primária, decidimos entrevistar pessoas que apresentassem nível
universitário por entendermos, assim como no Projeto NURC-RJ, que esse grupo nos ofereceria
exemplos na linguagem do jeitinho na fala culta média empregada habitualmente na vida cotidiana
desses falantes. Para a coleta na fonte secundária, o critério adotado foi o de registrar enunciados
que mostrassem o jeitinho em falas espontâneas, independentemente do grau de instrução dos
informantes. Dessa forma, teríamos um panorama lingüístico e sociocultural diversificado desse
fenômeno.
Quanto ao sexo, não é nossa intenção comparar o tipo de léxico ou sintaxe usada pelos
dois gêneros, embora observações pontuais possam ser feitas. Aqui, interessa-nos mais a fala e a
atitude sociolingüística que cada um deles adota quando se trata do fenômeno dar um jeitinho”.
Por fim, consideramos “profissão” e “local de trabalho” como variáveis importantes por fornecerem
aos informantes exemplos práticos do tipo de linguagem que ora pesquisávamos. Esse contato
direto com o público em geral em Foz do Iguaçu é relevante para nossa pesquisa, pois a
probabilidade desses informantes interagirem com pessoas de diferentes etnias e estados brasileiros
é altíssima, o que pode nos proporcionar exemplos de línguas em contato.
Após algumas leituras e observações espontâneas, sentimos a necessidade de acrescentar
uma outra variável: que todos os informantes fossem autóctones ou que residissem em Foz pelo
menos dez anos. Ponderávamos se isso não poderia nos garantir certa fidedignidade em relação ao
falar regional
24
de nossos informantes.
Contudo, novas leituras, discussões e reflexões fizeram com que flexibilizássemos essa
variável. Afinal, se a cidade é diretamente influenciada por moradores que vieram de diversas partes
do Brasil e do mundo, então seu falar regional será diretamente proporcional ao alto índice de
hibridismo lingüístico e cultural que apresenta. Desse jeito, a variável foi mantida, mas o tempo de
permanência na cidade, caso fosse um morador novo, foi reduzido para pelo menos cinco anos. O
critério usado para estabelecer esse tempo foi de certa forma semi-intuitivo, com base no tempo de
experiência que temos no ensino de línguas (28 anos). Nosso argumento é que durante um período
24
Segundo Manuel Alvar (1961 apud BRANDÃO, S., 2005a, p. 12-13), “os falares regionais caracterizam-se por
serem as peculiaridades expressivas próprias de uma região determinada ... São, portanto, peculiaridades regionais
da língua comum.”
de cinco anos, o novo morador talvez tenha tido a oportunidade de “acomodar” ou “adequar”
sociolingüisticamente seu falar à nova comunidade lingüística. Isso não significa dizer que o novo
habitante passe a falar como alguém que nasceu e foi criado em Foz do Iguaçu, mas que sua fala
influi e é influenciada pelo hibridismo lingüístico que impera na cidade.
Assim, entrevistamos 12 pessoas, cujos depoimentos foram concedidos por livre e
espontânea vontade e cujas gravações foram autorizadas para fins de pesquisa e análise em nosso
trabalho de mestrado.
Cabe ressaltar que as fontes utilizadas ao longo de nossa pesquisa de campo, sejam elas
pessoas físicas ou jurídicas, não foram identificadas a fim de preservar-lhes o direito à privacidade e
evitar uma exposição desnecessária. Contudo, embora nosso foco de pesquisa tenha sido os
enunciados e suas enunciações, a realidade lingüística e as variáveis socioculturais dos informantes
foram consideradas na análise e interpretação dos dados.
Na TABELA 1 a seguir, apresentamos o perfil dos entrevistados (fonte primária) com os
dados considerados relevantes para a nossa pesquisa. Cada um deles será identificado pela letra I”,
de Informante, seguido pelo número na seqüência em que foi entrevistado. Desse modo, “I1” refere-
se ao primeiro informante a dar o seu depoimento em nossas entrevistas narrativas em grupo,
conforme detalharemos na subseção 1.6.1. No APÊNDICE E, apresentamos resumo e informações
adicionais sobre as entrevistas e os informantes.
TABELA 1 – Dados dos Entrevistados: Fonte Primária
Nome Sexo Idade Escolaridade Profissão Local de
Trabalho
Naturalidade Data da
Entrevista
1 I1 M 23 3º Incomp. Estagiário ACIFI – SPC
Foz do Iguaçu
29.11.05
2 I2 F 20 3º Incomp. Professora Curso de
Línguas
Foz do Iguaçu
29.11.05
3 I3 F 26 3º Incomp. Estudante Faculdade
Em Foz 11
anos (Cascavel-
PR)
29.11.05
4 I4 F 45 3º Incomp. Aeroviária Aeroporto
Em Foz 39
anos (Goiânia-
GO)
29.11.05
5 I5 F 42 3º Incomp. Estudante Faculdade
Em Foz 20
anos (Macaé-RJ)
29.11.05
6 I6 F 35 3º Incomp. Estudante Faculdade
Em Foz 5 anos
(RJ)
29.11.05
7 I7 F 37 3º Incomp. Escriturária Cartório
Foz do Iguaçu
30.11.05
8 I8 M 20 3º Incomp. Atendente Papelaria
Foz do Iguaçu
30.11.05
9 I9 F 36 Pós-graduação Assistente
Administrativo
Sênior
Departamento
Administrativo
Em Foz 25
anos (Soledade-
RS)
26.01.06
10 I10 F 25 3º Completo Servidora
Pública
Setor
Administrativo
Foz do Iguaçu
26.01.06
11 I11 F 39 3º Completo Funcionário
Público
Municipal
Secretaria de
Administração
Em Foz 14
anos (Borrazópolis
– PR)
26.01.06
12 I12 F 34 3º Completo Servidora
Pública
Municipal
Prefeitura
Municipal
Em Foz 17
anos (Campo
Largo-PR)
26.01.06
Os depoimentos e os respectivos enunciados que evidenciam a linguagem do jeitinho serão
apresentados (transcritos) ao longo de todo o texto da dissertação, naturalmente onde for relevante,
com suas respectivas observações, explicações e análises. O uso da identificação I1, I2, I3, etc.
refere-se ao material colhida na fonte Primária. Do contrário, estaremos utilizando exemplos da
fonte Secundária.
Uma vez que nem sempre seria possível identificar com precisão os dados pessoais dos
informantes da fonte Secundária, optamos por não elaborar uma tabela semelhante à Tabela 1. Por
serem observações diretas e espontâneas, nossa atenção voltava-se para o registro dos exemplos
produzidos espontaneamente ao nosso redor ou impressos em algum meio de comunicação.
Tivemos naturalmente a preocupação em registrar em nosso diário de campo, sempre que possível,
informações que cercassem os enunciados tais como a situação e contexto, os atores e atrizes do
evento de fala, entre outros.
Definido e delimitado o tema e o contexto da pesquisa, assim como feita a descrição das
variáveis sociais escolhidas para a entrevista dos informantes, passamos a descrever a abordagem
teórico-metodológica usada na coleta de dados.
1.4 Abordagem Metodológica na Pesquisa de Campo
Por ser o jeitinho um fato lingüístico e sociocultural, portanto, sociolingüisticamente
complexo em sua natureza de realização e pesquisa, e por intentarmos verificar a existência (ou não)
e analisar (caso existissem) as diferentes formas, expressões, enunciados e significações sociais de
uma possível linguagem típica conforme ocorrência nas interações sociais dos falantes de uma
comunidade, optamos por utilizar uma abordagem qualitativa ou interpretativa para que
pudéssemos fazer, conforme afirma André (2004, p. 17), um “estudo do fenômeno em seu acontecer
natural”. Afinal, “é por meio das interações sociais do indivíduo no seu ambiente de trabalho, de
lazer, na família, que vão sendo construídas as interpretações, os significados, ou a sua visão de
realidade” (ibid., p. 18).
25
A escolha por esse tipo de abordagem justifica-se pelo fato de pretendermos, em nossa
coleta de dados, “levar em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e
influências recíprocas” (ANDRÉ, 2004, p. 17) sejam elas lingüísticas ou socioculturais –,
contrapondo-se “ao esquema quantitativista de pesquisa que divide a realidade em unidades
passíveis de mensuração, estudando-as isoladamente”. Dessa forma, priorizamos a compreensão
integral ou holística do fenômeno jeitinho brasileiro.
Os passos seguidos em nossa pesquisa inserem-se nas cinco características básicas,
propostas por Bogdan e Biklen (1982), que descrevem esse tipo de abordagem, conforme resumo
abaixo:
1. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador como seu principal instrumento.
2. Os dados coletados são predominantemente descritivos.
3. A preocupação com o processo é muito maior do que com o produto.
4. O “significado” que as pessoas dão às coisas e à sua vida são focos de atenção
especial pelo pesquisador. Procura-se entender como os informantes encaram as
questões que estão sendo focalizadas.
5. A análise dos dados tende a seguir um processo indutivo.
(BOGDAN; BIKLEN, 1982 apud ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p. 11-13)
Para Bogdan e Biklen (1982 apud ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p. 13), a pesquisa qualitativa
“envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação
estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos
participantes”.
Nesse caso, o contato face-a-face do pesquisador com os informantes, o conhecimento do
contexto social e da situação em que as entrevistas são realizadas favorecem a transcrição e a
25
Pressuposto teórico do interacionismo simbólico, ramo da sociologia que influenciou a abordagem qualitativa de
pesquisa.
interpretação dos enunciados que expressam o uso cotidiano da linguagem do jeitinho.
1.4.1 Trabalho do Tipo Etnográfico no Estudo do Jeitinho
Dentro da perspectiva qualitativa, decidimos realizar um trabalho do tipo etnográfico por
entender que os princípios e as técnicas que embasam essa metodologia atenderiam às necessidades
e aos interesses da pesquisa que planejávamos realizar. Segundo Vidich e Lyman (2006, p. 49), “a
pesquisa social etnográfica qualitativa requer uma atitude de desligamento em relação à sociedade
que permite ao [pesquisador] observar a conduta do eu e dos outros, entender os mecanismos dos
processos sociais e compreender e explicar por que os atores e os processos são como são” (grifo
nosso). Objetivos que perseguimos igualmente por nos oferecer sustentação teórico-medotológica
para lidar com a questão do paradoxo do observador apresentada por Labov (1991), a ser analisado
na seção 1.5. Por outro lado, pensamos em estender o conceito de que “a etnografia é a tentativa de
descrição da cultura” (ANDRÉ, 2004, p. 19) para uma possível descrição da cultura do jeitinho
brasileiro pelo estudo de sua linguagem.
Para a realização desses objetivos, decidimos pelo modelo de pesquisa etnográfica
proposto por André (1997), no qual a autora sugere um método em três fases:
1ª - estudo da literatura relacionada ao tema e sobre o contexto a ser estudado;
- trabalho de campo propriamente dito, envolvendo a observação direta e
intensiva e as estratégias que visam captar as opiniões e representações dos atores
sociais;
3ª - sistematização dos dados e sua apresentação em forma de relatório.
De acordo com a autora, esse processo de pesquisa leva o pesquisador a dialogar
constantemente “com a teoria e com os dados, num movimento de vaivém que envolve rearranjos,
recomposições, abstrações e que culmina em nova estruturação do real”, afirmação que atende ao
perfil de pesquisa que nos propusemos realizar.
Concordamos com André (2004, p. 45), quando a autora observa que a pesquisa
etnográfica “não pode se limitar à descrição de situações, ambientes, pessoas, ou à reprodução de
suas falas e de seus depoimentos.” Na realidade, nossa pretensão era ir além e “tentar reconstruir as
ações e interações dos atores sociais segundo seus pontos de vista, suas categorias de pensamento,
sua lógica.” Ou seja, descrever o que é dito e procurar compreender o porquê de utilizarmos esse
tipo de linguagem em nossa comunidade segundo uma análise lingüística e sociocultural das
enunciações observadas.
Considerando que nosso foco de interesse etnográfico é a descrição da cultura do jeitinho
brasileiro por meio de suas práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens e significados de um
grupo social específico, buscamos adaptar os conceitos e princípios da etnografia, em seu sentido
estrito, aos estudos do tipo etnográfico que ora realizamos.
Caberia então aqui uma pergunta pertinente: até que ponto nosso trabalho pode ser
caracterizado como do tipo etnográfico? Seguindo a trilha de André (2004), que formula essa
pergunta em relação à educação, podemos perseguir caminho semelhante e argumentar que nosso
trabalho passa a ser do tipo etnográfico quando:
1. empregamos técnicas, tais como a observação participante, a entrevista intensiva
e a análise de documentos;
2. o pesquisador é o instrumento principal na coleta e na análise dos dados;
3. a ênfase é no processo e não no produto da pesquisa;
4. uma preocupação com a maneira como as pessoas vêem a si mesmas, as suas
experiências e o mundo que as cerca;
5. o pesquisador realiza um trabalho de campo;
6. o pesquisador ocupa-se em descrever os dados colhidos;
7. o método valorizado é o da indução e não o da dedução;
8. o pesquisador busca formular hipóteses, conceitos, teorias ao longo de seu
trabalho e não a testagem dessas categorias;
9. o pesquisador usa um plano de trabalho aberto e flexível, em que todos os
procedimentos de sua pesquisa são constantemente revistos e reavaliados.
(ANDRÉ, 2004, p. 28-30. Adaptação do texto da autora)
1.4.2 Escolha das Técnicas Etnográficas
Dessa forma, para que pudéssemos fazer uma descrição e uma interpretação a mais
próxima possível da realidade dos falantes, foi necessário usar mais de uma ferramenta ou técnica
de pesquisa. Agindo assim, estaríamos utilizando uma ferramenta para complementar e/ou ratificar
os dados obtidos por intermédio de outra técnica aplicada.
Segundo Erickson (2001, p. 13-14), na etnografia dois meios primários de coleta de dados
são priorizados: observar e perguntar. A utilização desses dois recursos pode produzir diferentes
fontes e tipos de dados tais como: “notas de campo escritas pelo observador, comentários das
entrevistas, gravações que se tornam a base para as transcrições de comportamentos verbais e não
verbais e documentos locais.”
Erickson (p. 14) esclarece ainda que o uso de mais de um método de pesquisa permite o
cruzamento e facilita a confirmação dos dados obtidos, o que nos oferece “uma evidência mais forte
do que se ela viesse apenas de uma única fonte de informação”. Segundo o autor, esse processo
recebe o nome de “triangulação”.
Dentro dessa linha de abordagem qualitativa do tipo etnográfica, decidimos aplicar os
seguintes instrumentos de pesquisa em nossa coleta de dados:
(i) entrevista narrativa, com base nos textos de Labov, (2001, 2002); Tarallo (2002);
Jovchelovitch e Bauer (2005);
(ii) roteiro de entrevista (questionário), usando como referência os trabalhos de André e
Lüdke (1986); André (1997, 2004);
(iii) observação participante, seguindo a definição apresentada por André e Lüdke (1986);
André (1997, 2004);
(iv) pesquisa ou análise documental, com base nos textos de André e Lüdke (1986); And
(1997, 2004).
Analisemos agora cada uma dessas técnicas, buscando uma compreensão melhor de sua
metodologia para que possam ser implementadas com sucesso.
A entrevista narrativa evoca situações naturais de comunicação lingüística que tornam a
interação mais autêntica, pois os informantes são convidados a falar sobre fatos reais do cotidiano
vivenciados diretamente por eles ou por alguém que eles conhecem. Além disso, por ser uma
atividade de interação participativa, todos acabam falando de suas experiências pessoais sobre o que
está sendo dito, muitas vezes, trazendo à tona experiências engraçadas, delicadas, embaraçosas,
frustrantes, marcantes. Isso acaba evocando lembranças emotivas o que permite que as pessoas se
expressem com mais autenticidade. Segundo Jovchelovitch e Bauer (2005, p. 93), “a entrevista
narrativa tem em vista uma situação que encoraje e estimule um informante a contar a história sobre
algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social.”
Jovchelovitch e Bauer (2005, p. 95) esclarecem que “a entrevista narrativa é classificada
como um método de pesquisa qualitativa.” Essa é uma forma de entrevista não estruturada, uma vez
que foge do esquema pergunta-resposta da maioria das entrevistas. Enquanto nesta, o pesquisador
impõe estruturas em um sentido tríplice, ou seja, escolhe tema e tópicos, ordena as perguntas e as
faz usando sua linguagem, naquela o informante fica à vontade para relatar sua visão da situação
e/ou suas experiências pessoais.
O roteiro de entrevista (questionário) busca complementar e confirmar os dados
levantados na primeira fase da coleta. Conforme André e Lüdke (1986, p. 34), “a grande vantagem
do roteiro de entrevista é que ele permite a captação imediata e corrente da informação desejada,
praticamente com qualquer tipo de informante”, o que foi importante para que pudéssemos verificar
quais seriam as palavras, expressões, clichês e enunciados mais usados e se haveria alguma
padronização quanto a esse uso.
Ademais, esse tipo de ferramenta metodológica, conforme esclarece André (2004, p. 28),
“tem a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas observados”, o que nos ajuda
a ampliar a visão de nosso objeto de estudo ou, caso necessário, redefinir algum aspecto da pesquisa
em si.
O modelo que melhor atendia a nossos objetivos foi o tipo de entrevista padronizada ou
estruturada, que “usamos quando visamos obter resultados uniformes entre os entrevistados,
permitindo assim uma comparação imediata dos dados.” Para esse fim, utilizamos um roteiro
previamente elaborado que guiasse “a entrevista através dos tópicos principais a serem cobertos”
(ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p. 34, 36).
A observação participante é assim chamada, segundo André (2004, p. 28), “porque parte
do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada,
afetando-a e sendo por ela afetado.”
Ora, o fato de estarmos inseridos 24 horas por dia em nosso contexto de pesquisa,
participando ativamente como membro do grupo – evitando desse modo um processo de clivagem
entre objeto e pesquisador
26
– que estamos estudando, nos deixa em uma posição privilegiada para
obter informações sobre esse grupo (APPOLINÁRIO, 2004, p. 144) e suas diferentes realizações
sociolingüísticas, as quais talvez não pudessem ser facilmente obtidas caso fôssemos totalmente
estranhos à comunidade. Segundo Velho e Viveiros de Castro (1978, p. 9 apud BELTRAME;
CAMACHO, 1997), “o fato de ser membro de uma determinada sociedade e participante de uma
cultura específica pode permitir um tipo de percepção e sensibilidade, a partir de uma vivência,
difíceis de serem atingidos por um observador de fora.”
Nossa vida na comunidade, no entanto, transcorreu naturalmente. Evitamos criar situações
através das quais o jeitinho pudesse ser dado, mas fazíamos o seu registro sempre que se
apresentasse diante de nós. Procuramos transformar o estudo em algo prazeroso, evitando que a
pesquisa fosse vista como um fator (a mais) de estresse em nosso dia-a-dia na comunidade.
Contudo, temos de admitir que ficávamos “antenados” e preparados para registrá-lo caso ocorresse.
Por fim, utilizamos a análise documental que pode se constituir, nas palavras de André e
Lüdke (1986, p. 38), “numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja completando
as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de nosso tema e/ou
problema.”
26
Processo de clivagem entre objeto e pesquisador: oposição ou separação do pesquisador (sujeito), com
toda sua bagagem lingüística e sociocultural de conhecimento e experiência, do seu objeto de
estudo, o que teoricamente é impossível, pois o pesquisador acaba interferindo, através de seu
juízo de valor ou avaliação, por exemplo, na interpretação daquilo que pesquisa. (observação dos
autores deste trabalho)
Em nossa pesquisa, “documentos” referem-se a “quaisquer materiais escritos que possam
ser usados como fonte de informação sobre o comportamento humano” (PHILIPS, 1974, p. 187
apud ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p. 38).
A aplicação desses instrumentos de pesquisa permitiu assim que perseguíssemos e
colocássemos em prática dois princípios essenciais e básicos da etnografia: a centralidade do
conceito de cultura e a necessidade da descrição densa, ou seja, um exame mais acurado dos fatos
(BELTRAME; CAMACHO, 1997), a serem detalhadas ao longo de nosso trabalho.
1.5 Dando um “Jeito” no Paradoxo do Observador
As técnicas de observação participante, do roteiro de entrevistas e da análise documental,
tradicionalmente associadas ao tipo etnográfico de abordagem qualitativa (ANDRÉ, 2004, p. 28),
em conjunto com a entrevista narrativa, foram selecionadas para nossa pesquisa de campo
27
, com
o objetivo de coletar o maior número possível de exemplos convergentes de enunciados
espontâneos e naturais, ou mesmo monitorados, que evidenciassem (ou não) lingüisticamente a
manifestação sociocultural do jeitinho.
Excetuando-se a pesquisa ou análise documental na qual trabalhamos com textos ou
discursos impressos – e que se revelaram como uma fonte inesgotável de enunciados típicos da
linguagem do jeitinho – a utilização das outras técnicas acabavam esbarrando em uma incoerência
metodológica: como obter uma quantidade suficiente de dados que somente podem ser coletados
através da participação direta do pesquisador na interação com os falantes, sem perturbar a
naturalidade do evento? (TARALLO, 2002, p. 21). Ou seja, como “estudar a língua falada em
situações naturais de comunicação [...] sem que a presença do pesquisador interfira na naturalidade
27
Segundo Peirano (1992, p. 4), “a pesquisa de campo é o procedimento básico da antropologia [disciplina que
promoveu a etnografia] um século. A forma como é vista hoje, isto é, como uma imersão no universo social e
cosmológico do ‘outro’, é relativamente recente e data da década de 20.”
da situação de comunicação?” (ibid., p. 20, grifo do autor).
Labov chama essa contradição aparente de Paradoxo do Observador e define esse
paradoxo da seguinte maneira:
o objetivo de uma pesquisa lingüística em uma comunidade deve ser o de averiguar
como as pessoas falam quando elas não estão sendo sistematicamente observadas:
mesmo que os dados só possam ser obtidos através de uma observação sistemática
(LABOV, 1991, p. 209, tradução nossa).
Para o autor, no entanto, essa não é uma questão insolúvel. Labov sugere, por exemplo,
que quebremos os constrangimentos ou as formalidades e limitações das entrevistas usando
estratégias que desviem, ou distraiam, a atenção dos informantes sobre o que está sendo dito de
maneira que a fala não monitorada, ou seja, o vernáculo
28
, possa ser utilizado (LABOV, 1991, p.
209).
Uma outra opção para a superação desse paradoxo, segundo o autor, seria envolver o tema
da pesquisa em tópicos e perguntas que recriassem ou evocassem emoções fortes nos informantes.
Um exemplo para esse tipo de abordagem, conforme Labov (p. 209), seria a elaboração de uma
pergunta que envolvesse a questão tanatofóbica que a maioria dos seres humanos têm em relação à
“morte”, ou seja, o “medo de morrer”, p. ex.Você já foi ameaçado(a) de morte?” ou “Você já
esteve em uma situação em que pensou que fosse morrer?”. De acordo com o autor, as pessoas
geralmente passam de um estilo monitorado para uma forma de falar mais espontânea e natural, não
monitorada - o seu vernáculo -, ao responderem a esse tipo de pergunta (p. 210).
Assim, quanto mais envolvidos emocionalmente estiverem os informantes em suas
narrativas, menos cuidados eles terão em relação à forma de falar e mais atenção eles prestarão ao
conteúdo do discurso narrativo.
Labov esclarece ainda que “quando abordamos (o mesmo tema) de duas maneiras
28
De acordo com Labov (1991, p. 208), o vernáculo é o “estilo no qual o mínimo de atenção é dada ao monitoramento
da fala.”
diferentes (usando técnicas diferentes), e obtemos o mesmo resultado, podemos estar confiantes que
conseguimos superar o paradigma do Paradoxo do Observador que existe independentemente do
pesquisador” (LABOV, 1991, p. 61-62, tradução nossa).
A utilização de diferentes instrumentos de coleta de dados serviria para averiguarmos até
que ponto os resultados obtidos precisariam ser complementados ou se seriam ratificados ou
refutados em nossas análises e conclusões.
1.6Aplicação das Técnicas de Investigação Etnográfica
Uma vez estabelecidas as técnicas e as fontes da pesquisa, além de seus objetivos,
iniciamos o trabalho de campo propriamente dito.
Por caracterizar-se como “qualquer pesquisa realizada em ambiente natural (campo), ou
seja, não controlado (laboratório) e envolver a observação direta do fenômeno estudado, em seu
próprio ambiente” (APOLINÁRIO, 2004, p. 152, grifo do autor), a pesquisa de campo parecia ser
um processo inacabado, pois observamos que os exemplos sobre a linguagem do jeitinho
continuavam “pipocando” diante de nossos olhos, mesmo após o prazo final
29
que estabelecemos
para a coleta. A vontade que tínhamos era continuar pesquisando e coletando material sobre esse
fenômeno.
Contudo, a pesquisa para a elaboração do corpus precisava de uma limitação, mesmo que
29
A coleta de dados foi feita durante o período de agosto de 2005 a agosto de 2006, embora tenhamos utilizado dados
posteriores a essa data.
relativa, para que os dados obtidos começassem a ser analisados, ainda que a pesquisa e a análise
necessitassem ser retomadas (ou quiséssemos retomá-las) no final ou durante o estudo do tema.
Segue abaixo descrição da aplicação das técnicas etnográficas utilizadas no trabalho de
campo que nos permitiram obter uma “coleção finita de materiais”.
1.6.1 Entrevista Narrativa em Grupo
A entrevista narrativa (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2005, p. 90-113), ou narrativa de
experiência pessoal (TARALLO, 2002, p. 23), foi realizada no formato de entrevista em grupo
(GASKELL, 2005, 73-78), também chamada de “sessões em grupo” por Labov (1991, p. 209).
Segundo Jovchelovitch e Bauer (2005, p. 91), “não experiência humana que não possa
ser expressa na forma de uma narrativa.” Na realidade, a narrativa, ou o fato de contar histórias, é
uma atividade essencial e elementar da comunicação humana. “Contar histórias implica estados
intencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que
confrontam a vida cotidiana normal” (p. 91). Para os autores, o objetivo da entrevista narrativa é
apresentar “uma situação que encoraje e estimule um informante a contar a história sobre algum
acontecimento importante de sua vida e do contexto social.” Ou seja, fazer com que ele sinta
vontade, deseje, queira falar sobre suas vivências e experiências pessoais no meio social em que
vive. Nesse sentido, concordamos com Tarallo (2002, p. 23) quando o autor afirma que “a narrativa
de experiência pessoal é a mina de ouro que o pesquisador-sociolingüista procura.”
Na entrevista em grupo, “o entrevistador, muitas vezes chamado de moderador, é o
catalisador da interação social entre os participantes” (GASKELL, 2005, 75). Um de seus objetivos
dentro desse modelo de entrevista é “estimular os participantes a falar e a reagir àquilo que outras
pessoas no grupo dizem” (p. 75). Dependendo do nível de entrosamento alcançado pelo grupo, esse
tipo de interação social acaba mostrando-se mais autêntico do que uma entrevista um a um, ou uma
interação díade. De acordo com Gaskell (p. 76), “a interação do grupo pode gerar emoção, humor,
espontaneidade e intuições criativas”, elementos essenciais para uma exposição enunciativa mais
autêntica.
Ante o exposto, a idéia de juntar as duas técnicas em uma única atividade visava
principalmente maximizar o processo de interação social que teríamos com os informantes para
obter deles informações as mais próximas da realidade lingüística e sociocultural possível.
Desse modo, o tipo de atividade proposta buscou evocar lembranças de “situações
naturais de comunicação lingüística” (TARALLO, 2002, p. 21), pois trabalhou com fatos sociais
que vivenciamos em nosso cotidiano ou que são vivenciados por alguém que conhecemos.
Por ser uma atividade de interação participativa, em que todos eram convidados a
compartilhar suas experiências pessoais, toda vez que uma situação fosse apresentada, a questão da
emotividade “deixada no passado” (LABOV, 1991, p. 209) acabava aflorando, o que ajudou a
conferir certo grau de autenticidade ao relato.
“A idéia básica (da entrevista narrativa) é reconstruir acontecimentos sociais a partir da
perspectiva dos informantes, tão diretamente quanto possível” conforme sugestão de Schütze que
propunha uma sistematização dessa técnica (1977 apud JOVCHELOVITCH; BAUER, 2005, p. 93).
Assim, na reconstrução de suas experiências pessoais durante a atividade proposta, “o
informante [estaria] tão envolvido emocionalmente com o que relata [o conteúdo social] que
[prestaria] o mínimo de atenção ao como [a forma ou expressão lingüística]” ele realiza esse relato
(TARALLO, 2002, p. 22, grifos do autor): um de nossos objetivos principais.
A atividade aconteceu da seguinte maneira: os informantes, em grupos de três a cinco,
sentavam em círculo. O pesquisador posicionava-se entre eles para fazer o registro das falas. No
meio do círculo, o pesquisador colocava uma mesinha e em cima dela seu gravador e uma pilha de
dezesseis cartões com a parte impressa para baixo como se fosse um baralho de cartas. Cada
cartão continha a descrição de uma situação que poderia levar ou não à utilização da linguagem do
jeitinho, dependendo de como o informante reagisse a cada uma delas (APÊNDICE B). As
situações apresentadas eram todas verídicas e foram intencionalmente escolhidas pelo pesquisador
por retratarem o cotidiano social de Foz do Iguaçu.
A utilização de situações como essas encontra respaldo teórico nas palavras de Labov,
quando o autor afirma que uma das maneiras de superar o problema do Paradoxo do Observador
seria “envolver o entrevistado em perguntas e tópicos que recriassem emoções fortes que (os
entrevistados talvez tenham vivenciado em situações semelhantes e) ficaram no passado” (1991, p.
209). A temática do Medo da Morte”, comentada, é mencionada pelo autor. Pensamos,
entretanto, que as situações apresentadas nos cartões seriam suficientes para provocar o impacto
emocional desejado, pois alguns informantes certamente passaram por uma experiência
semelhante ou ouviram falar de alguém que as tivesse vivenciado.
Além disso, esse tipo de atividade cria certo nível de coesão, familiaridade, e cumplicidade
entre os informantes, o que favorece a interação e, conseqüentemente, a espontaneidade em relação
ao que é dito. Em um estudo que fez com adolescentes, Labov (1991, p. 210) observou que os
jovens se comportavam natural e espontaneamente nas sessões em grupos que realizava, pois eles
tinham a oportunidade de interagir entre si tanto verbal quanto fisicamente –, o que ajudava a
reduzir o efeito (estressante) da observação sistemática.
Os procedimentos aplicados à dinâmica da entrevista narrativa foram os seguintes: um dos
informantes pegava o primeiro cartão do topo da pilha, desvirava-o para si e lia em voz alta a
situação apresentada. A pergunta-chave para todas as situações era Como você reagiria às
seguintes situações?”. O objetivo principal era fazer com que o informante que pegou e leu o cartão
dissesse como reagiria diante de uma situação aparentemente “embaraçosa”. Por exemplo, Você
está com muita pressa, pois tem um compromisso importante. Está dirigindo. O sinal de trânsito
fica vermelho, mas você decide ultrapassar assim mesmo. Um guarda de trânsito pára você para
aplicar uma multa.” O informante deveria então dizer qual seria sua reação diante daquela situação:
o que diria, o que faria, como se comportaria. Os outros informantes podiam, e deviam,
complementar, relatar suas próprias experiências quanto ao tópico, ou dizer o que quisessem desde
que relacionado ao assunto em pauta.
Em seguida, outra pessoa do grupo pegava o cartão seguinte no topo da pilha e a dinâmica
se repetia até que todos tivessem pegado um cartão. Dependendo de quanto os informantes
produzissem em seus discursos, podíamos realizar uma ou mais rodadas da dinâmica. Os
procedimentos e as instruções detalhadas sobre essa atividade encontram-se no APÊNDICE A.
Cada cartão apresentava uma situação e um contexto que serviam para desencadear nos
informantes lembranças de situações vividas por eles ou relatadas a eles por terceiros. Pedíamos ao
informante da vez que ficasse à vontade para dizer o que quisesse sobre o assunto. O restante do
grupo era convidado a comentar, caso desejasse, sobre experiências semelhantes, mas que tivessem
alguma relevância com a situação sendo apresentada.
Esse tipo de entrevista em grupos acabava transformando-se em um verdadeiro “bate-
papo”, em uma conversa informal, na qual todos os participantes se mostravam ansiosos em
compartilhar “suas versões” dos fatos lingüísticos e socioculturais ligados ao jeitinho.
Embora alguns informantes acabassem identificando a presença do jeitinho nos relatos que
eram feitos (em uma das sessões um informante declarou Mas isso até parecendo coisa do
jeitinho brasileiro”), o objetivo de nossa pesquisa não era revelado. Dizíamos apenas estar
investigando “a vida cotidiana em Foz”, sem entrar em detalhes.
A idéia de criar um clima de descontração nas entrevistas narrativas em grupos visava
diminuir a pressão e a formalidade que geralmente se encontram presentes quando uma pessoa
participa de uma entrevista formal. Pensamos que quanto mais descontraídos estivessem os
informantes, mais espontâneas e naturais seriam suas falas.
O relato de casos sobre terceiros, além de consentido, foi até certo ponto estimulado, pois
permitia que os informantes pudessem, caso sentissem necessidade, assumir o papel social desses
“terceiros” e contar histórias vividas por eles mesmos (os informantes) como se fossem de outras
pessoas o que ficava evidente nesses tipos de relatos. Na verdade, esse era um comportamento
esperado, pois nosso tema de pesquisa entra, de certa forma, no campo da ilegalidade, o que talvez
pudesse ser constrangedor para algumas pessoas.
Quanto à questão de falar sobre terceiros, Silvia Cervellini, diretora de Planejamento e
Atendimento do IBOPE Opinião, explica que "existe um fenômeno de pesquisa de opinião que é do
entrevistado sempre ser mais verdadeiro ao falar sobre os outros do que sobre si mesmo.”
Cervellini toma como base para esse comentário pesquisa inédita do IBOPE Opinião feita
com duas mil pessoas em todo o país em janeiro de 2006 com o título "Corrupção na Política:
Eleitor - Vítima ou Cúmplice?" Na análise dos dados, o que mais chamou a atenção da diretora
foram os altos patamares de atos ilícitos cometidos no dia-a-dia pelos brasileiros. Segundo a
pesquisa, 7 em cada 10 entrevistados confessaram cometer atos ilícitos em seu cotidiano. Quando
projetadas (as respostas) para pessoas conhecidas, isso passava a ser quase consensual: “98% acham
que seus conhecidos cometem alguns desses atos.” Ou seja, praticamente todos nós brasileiros
praticamos atos ilícitos em nosso cotidiano.
A diretora afirma que para o IBOPE, do ponto de vista de indicador de prática de
ilegalidade, a medida referente a “pessoas conhecidas” é mais verdadeira, mais próxima do retrato
da população brasileira.
Portanto, relatarfatos sobre terceiros durante uma entrevista pode servir como um artifício
para que alguns informantes tenham a oportunidade de dizer aquilo que gostariam de dizer, mas que
somente o fazem como se fossem outras pessoas. Ou seja, esse tipo de atividade permite que
informantes coloquem em prática a “teoria do papel”, analisada por Goffman (2003) e Berger e
Luckmann (2005), “que se baseia no uso dos conceitos de ‘self’ e de ‘assumir o papel do outro”
(HAGUETTE, 2003, p. 53). Assim, alguns informantes acabam assumindo papéis sociais de
terceiros para falar aquilo que eles próprios desejariam dizer sobre si próprios, mas não conseguem.
No final da entrevista narrativa, pedíamos aos participantes que preenchessem
individualmente uma ficha chamada Perfil dos Informantes” (APÊNDICE C) e devolvessem-na ao
pesquisador. A idéia dessa ficha era fazermos um levantamento sobre os diferentes fatores
extralingüísticos (sexo, faixa etária, escolaridade, profissão, setor ou departamento no trabalho e
naturalidade) que pudessem nos ajudar a melhor compreender o fenômeno do jeitinho em Foz do
Iguaçu.
1.6.2 Roteiro de Entrevista (Questionário)
Além da entrevista narrativa, utilizamos um roteiro de entrevista também denominada
de entrevista estruturada (APPOLINÁRIO, 2004, p. 71; LAKATOS; MARCONI, 2005, p. 199),
diálogo assimétrico (GAVAZZI, 1998, p. 18) ou entrevista intensiva (ANDRÉ, 2004, p. 28) - com
perguntas fechadas e abertas (APÊNDICE D), cuja principal finalidade era “aprofundar questões
levantadas e esclarecer problemas observados” até então. (ANDRÉ, 2004, p. 23)
Haguette (2003, p. 86) define a entrevista como “um processo de interação social entre
duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por
parte do outro, o entrevistado.” A autora afirma ainda que essas informações “são obtidas através de
um roteiro de entrevista constando de uma lista de pontos ou tópicos previamente estabelecidos de
acordo com uma problemática central e que deve ser seguida.”
Segundo André e Lüdke (1986, p. 33), o roteiro de entrevista é uma das técnicas mais
utilizadas nas pesquisas em ciências sociais. Esse tipo de ferramenta traz diversas vantagens, por
exemplo: permite a captação imediata e corrente da informação desejada, o aprofundamento de
pontos levantados por outras técnicas, o tratamento de assuntos complexos e pode ser usado com
pessoas que tenham pouca ou nenhuma escolaridade (p. 34).
Essa técnica nos permitiu verificar a existência (ou não) de uma uniformidade quanto ao
tipo de palavras, expressões, enunciados e argumentos utilizados pelos moradores de Foz. Por
utilizarmos as mesmas perguntas com diferentes informantes, a “obtenção de resultados uniformes
entre os entrevistados permitia que fizéssemos uma comparação imediata” desses dados e
fizéssemos nossas interpretações.
No entanto, mesmo tendo um roteiro previamente preparado e padronizado para todos os
informantes, isso não impediu que flexibilizássemos o conteúdo da interação díade que estávamos
tendo. As perguntas foram feitas e suas respectivas respostas obtidas, mas, dependendo da
disponibilidade, disposição, motivação, interesse e conteúdo sociolingüístico sendo apresentado
pelo informante, podíamos detalhar ou aprofundar algum tema que sentíssemos necessário durante a
entrevista, o que passaria a caracterizar essa atividade como uma “entrevista semi-estruturada”
30
,
na qual o entrevistador tem uma participação ativa, mas, apesar de seguir um roteiro, pode fazer
perguntas adicionais.
Dentro dessa perspectiva, entrevistamos alguns dos participantes da entrevista narrativa
imediatamente após a realização da atividade. Interessante observar que, naquele momento, alguns
deles suspeitavam sobre o que estávamos conversando. A percepção que tivemos foi a de que
esses informantes, por terem participado de uma dinâmica em que abordaram situações nas quais
um jeitinho podia ser dado, pareciam saber exatamente os tipos de enunciados que outras pessoas e
eles próprios utilizam. não pareciam tão surpresos quanto ao tema em relação aos que eram
somente entrevistados, sem passar pela entrevista narrativa.
Na realidade, o jeitinho não era algo novo para as pessoas entrevistadas. Sua definição,
exposição e práxis social em nosso cotidiano é que chocava as pessoas. Entretanto, a intimidade
com que os informantes falavam sobre o assunto forneceu pistas importantes para o nosso registro
das formas usadas e das significações sociais que por trás delas se escondiam.
Para Haguette (2003, p. 88), o comportamento, as expressões não-verbais e “as afirmações
de natureza subjetiva estão sempre imersas em reações que devem ser levadas em conta” nas
entrevistas e que certamente muito nos dizem sobre o informante e o conteúdo sobre o qual ele está
falando. Esse procedimento de observação do outro, durante as entrevistas, nos ajudou a
compreender os diferentes significados nos enunciados.
Um dos motivos que nos levou a usar o roteiro de entrevista foi “obter, dos entrevistados,
respostas às mesmas perguntas, permitindo ‘que todas elas fossem comparadas com o mesmo
conjunto de perguntas, e que as diferenças refletissem diferenças entre os respondentes e não
diferenças nas perguntas’” (LODI, 1974, p. 16 apud LAKATOS; MARCONI, 2005, p. 199). Assim,
podíamos observar, analisar, confirmar ou refutar os dados conseguidos por meio de outras técnicas
etnográficas de pesquisa.
30
Queiroz (1988 apud DUARTE, 2002, p. 147) afirma que a entrevista semi-estruturada “é uma técnica de coleta de
dados que supõe uma conversação continuada entre informante e pesquisador e que deve ser dirigida por este de
acordo com seus objetivos.”
As entrevistas foram gravadas e arquivadas para facilitar o nosso trabalho de transcrição e
análise uma vez que podemos ouvir o conteúdo de cada entrevista quantas vezes forem necessárias.
1.6.3 Observação Participante
Paralelamente à aplicação dos instrumentos de investigação mencionados acima,
realizamos diuturnamente a observação participante, com anotações dos enunciados que
presenciávamos e seus contextos situacionais. Esta talvez tenha sido a técnica que mais informações
nos trouxe sobre o jeitinho e sua manifestação lingüística e sociocultural na comunidade que ora
pesquisamos.
A definição para a observação participante apresentada por Schwartz e Schwartz (1955)
serve bem aos propósitos de nossa dinâmica de trabalho:
Definimos a observação participante como um processo no qual a presença do
observador numa situação social é mantida para fins de investigação científica. O
observador está em relação face a face com os observados, e, em participando com
eles em seu ambiente natural de vida, coleta dados. Logo, o observador é parte do
contexto sendo observado no qual ele ao mesmo tempo modifica e é modificado por
este contexto. O papel do observador participante pode ser tanto formal como
informal, encoberto ou revelado, o observador pode dispensar muito ou pouco
tempo na situação da pesquisa; o papel do observador participante pode ser uma
parte integrante da estrutura social, ou ser simplesmente periférica com relação a ela
(1955, p. 19 apud HAGUETTE, 2003, p. 71).
Nesta definição, vários pressupostos são considerados para a implementação da
observação participante tais como a presença constante do observador no contexto observado, a
interação face-a-face, a coleta de dados, o papel do observador, o tempo necessário para a realização
da observação e a questão da interferência inevitável do observador (HAGUETTE, 2003, p. 73).
André (2004, p. 28), de certa forma, resume essa definição quando afirma que “a
observação é chamada participante porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um
grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado.”
Dentro desses pressupostos, podemos dizer que nossa observação participante aconteceu
de duas formas diferentes, porém complementares: espontânea e intencional.
Na primeira, os enunciados eram ouvidos involuntariamente no cotidiano de Foz e
imediatamente registrados em um diário de campo. Às vezes, tínhamos a impressão de que
atraíamos esse tipo de fenômeno, pois ele se apresentava em quase todos os lugares que fôssemos.
Verificamos, entretanto, que, por ser uma instituição social, o jeitinho é parte integrante da vida
cotidiana da cidade (e do país) e onde quer que nós estivéssemos certamente ouviríamos exemplos
dessa linguagem.
Na segunda, aproveitamos nossa presença ou posicionamo-nos em diferentes locais
públicos com o intuito de conseguir exemplos espontâneos. Fizemos coleta de dados em repartições
públicas e instituições de ensino superior (IES). Em todos os casos, obtivemos autorização dos
responsáveis para a realização das observações e respectivas gravações.
Nas diferentes fases da pesquisa, a preocupação com a preservação do anonimato e da
privacidade dos informantes esteve sempre presente, pois sabemos que “os códigos de ética insistem
nas salvaguardas para proteger as identidades das pessoas e dos locais de pesquisa [e que] todos os
dados pessoais devem ser protegidos,[...] sendo expostos publicamente somente sob a proteção do
anonimato” (CHRISTIANS, 2006, p. 147).
Desta maneira, as gravações eram feitas sempre com a presença de outras pessoas, ora
com a permissão prévia do grupo – por exemplo, nas entrevistas narrativas nas quais a conversa era
ouvida e compartilhada por todos no local; ora com a autorização do responsável pelo local ou do
próprio informante, solicitada pelo pesquisador mesmo que fosse uma conversa face-a-face.
Nos dois ambientes mencionados, que podem ser considerados verdadeiros mercados
lingüísticos, segundo a teoria da Economia das Trocas Lingüísticas de Bourdieu (1996), a
linguagem do jeitinho transforma-se em uma moeda de troca altamente “rentável”. Nas IES, por
exemplo, optamos pelos dias que antecediam ou seguiam as provas, período em que o jeitinho tende
a “ficar em alta” ou “bem cotado” entre os acadêmicos, como pudemos constatar. Em outros
ambientes, observamos que o “escambo lingüístico e sociocultural” do jeitinho pode ser também
intermediado pela troca de favores, pelos “presentinhos”, pelas negociatas e armações, através de
descaminhos, entre outros mecanismos semelhantes. Aliás, a palavra “descaminho” é vocábulo
freqüente em artigos do tablóide Gazeta do Iguaçu, evidenciando assim a presença constante do
jeitinho nessa comunidade.
As anotações e as gravações complementavam nosso trabalho e serviam para
compararmos os dados nelas coletados com os dados que vínhamos levantando “formalmente”
em relação à linguagem usada no dia-a-dia da cidade em ambientes onde, teoricamente, esse fato é
possível de acontecer com certa freqüência e propriedade”, como disse um dos informantes.
O uso da observação direta se justifica, pois, como apontam André e Lüdke (1986, p. 26),
esse tipo de técnica possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o objeto
pesquisado e permite que o pesquisador tente “ver” esse fenômeno pela perspectiva dos seus
falantes, um aspecto de interpretação (qualitativa) de extrema importância no estudo de nosso
objeto.
Como esclarece André (2004, p. 45), a pesquisa etnográfica não deve limitar-se à
“descrição de situações, ambientes, pessoas, ou à reprodução de suas falas e de seus depoimentos.
Deve ir muito além e tentar reconstruir as ações e interações dos atores sociais segundo seus pontos
de vista, suas categorias de pensamento, sua lógica.
Esse é um dos objetivos que devem nortear a metodologia de observação participante, ou
seja, procurar “descrever os sistemas de significados culturais dos sujeitos estudados com base em
sua ótica e em seu universo referencial” (p. 45), respeitando assim o princípio etnográfico da
relativização, o qual Dauster (1989, p. 11 apud ANDRÉ, 2004, p. 45) descreve como sendo o
“descentramento da sociedade do observador, colocando o eixo de referência no universo
investigado” e não no universo do investigador.
Tal procedimento exige do observador um olhar crítico, aberto, amplo, ético, respeitoso e
sem preconceitos para que ele possa realizar uma descrição e uma interpretação as mais fidedignas
possíveis dos reais significados culturais dos enunciados, ações e comportamentos dos informantes
de sua pesquisa.
Para que o princípio da relativização pudesse ser colocado em prática com sucesso foi
importante que prestássemos atenção à questão da objetividade-participação em nossas
observações de campo. Uma vez que parte dos dados foi colhida mediante a observação participante
na própria comunidade em que vivemos, nosso desafio foi “trabalhar o envolvimento e a
subjetividade, mantendo o necessário distanciamento que requer um trabalho científico” (ANDRÉ,
2004, p. 48, grifo nosso). Vale ressaltar que distanciamento não é sinônimo de neutralidade, até
porque inexiste neutralidade em trabalhos de observação, descrição e interpretação, pois o
pesquisador utiliza-se de seus conhecimentos, valores, crenças, etc. para realizar tais tarefas.
Utilizamo-nos então da técnica de estranhamento”, por meio da qual procuramos analisar uma
situação familiar como se fosse uma situação desconhecida ou estranha para nós.
A triangulação foi um outro procedimento metodológico utilizado e que nos ajudou a
melhor lidar com a questão do estranhamento. Assim, em nossa pesquisa buscamos trabalhar com
uma diversidade de informantes, uma variedade de fontes de informações e diferentes perspectivas
de interpretação dos dados (Sociolingüística, Pragmática, Sociológica, etc.), ou seja, usamos uma
triangulação de informantes, de fontes e de teorias.
1.6.4 Análise Documental
Segundo André (2004, p. 28), “os documentos são usados no sentido de contextualizar o
fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através
de outras fontes.” Portanto, encaixa-se perfeitamente nas necessidades e interesses de nossa
pesquisa, pois serve como fonte para uma maior exposição e compreensão da linguagem do jeitinho
na comunidade de Foz do Iguaçu.
Para Phillips
31
(1974, p. 187 apud ANDRÉ; DKE, 1986, p. 38), “documentos” são os
mais diversos “materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação sobre o
comportamento humano.”
De acordo com André e Lüdke (1986, p. 38-39), os documentos constituem uma fonte
31
PHILLIPS, B. S. Pesquisa social. Rio de Janeiro: AGIR, 1974.
Observação: As referências bibliográficas lançadas nas notas de rodapé têm como objetivo trazer ao leitor informação
sobre obras mencionadas por outros autores, as quais citamos, e não tivemos acesso direto.
riquíssima das quais podemos extrair evidências que fundamentem afirmações ou teorizações feitas
pelo pesquisador.
Assim, utilizamos revistas, jornais, sítios na Internet, jornais e revistas eletrônicas,
cartazes, outdoors, letreiros, folhetos e qualquer outro meio impresso de comunicação presencial
ou virtual – a que tivemos acesso.
A questão da linguagem impressa é importante e nos ajuda a entender o jeitinho em Foz,
pois é uma forma de expressão e representação das pessoas que moram nessa comunidade. Para Elia
(1987, p. 94-95), uma “comunidade lingüística” é constituída por três fatores essenciais: um
conjunto de falantes, um código verbal comum e um sentimento de pertencimento a esse código.
Esse código representa a identidade dos falantes de uma comunidade. O jeitinho faz parte dessa
identidade sociocultural. Portanto, o código representa o jeitinho, uma das facetas da identidade.
A coleta do material escrito foi realizada pelo período de um ano a partir de agosto de
2005. Recortamos e arquivamos ou fotografamos e salvamos no computador textos com enunciados
que representassem maneiras de burlar regras legais ou sociais, portanto uma forma de jeitinho.
Em Foz do Iguaçu, inicialmente fizemos a leitura diária dos tablóides “Jornal do Iguaçu” e
Gazeta do Iguaçu”. Depois de seis meses, decidimos ler apenas o segundo, pois, em nossa opinião,
era o que melhor retratava a realidade discursiva da comunidade lingüística de Foz do Iguaçu.
Em relação ao Brasil, realizamos pesquisas nas seguintes fontes:
(i) revistas: VEJA (leitura semanal), Época (leitura esporádica) e IstoÉ (leitura esporádica);
(ii) jornais: Folha de São Paulo (leitura diária) e Gazeta do Povo (leitura diária);
(iii) impressos: folhetos, cartazes, avisos, circulares, bilhetes, etc.
(iv) online: esporadicamente consultávamos jornais e revistas eletrônicas, páginas de bate-
papo, entre outras.
O material recolhido foi arquivado por assunto ou tema em pastas de polietileno, por
exemplo: “Exemplos do jeitinho em Foz”, “Exemplos do jeitinho no Brasil”, “Histórico em Foz”,
“Histórico no Brasil”, “Artigos da Internet”, “Pesquisa de Campo”, etc.
1.7 A Narrativa na Entrevista Sociolingüística
A entrevista narrativa revelou ser um excelente instrumento de interação social e coleta de
dados. Por isso, decidimos estudá-la um pouco mais nesta seção, segundo princípios da
Sociolingüística.
Segundo Labov (2002, p. 1), as narrativas de experiências pessoais têm um papel
importante na maioria dos estudos sociolingüísticos de uma comunidade de fala. O autor afirma que
em uma entrevista sociolingüística, as narrativas são um dos principais meios de reduzir os efeitos
causados nos informantes pela observação, ou participação direta do pesquisador, e gravação sendo
realizadas, pois quando analisamos as mudanças estilísticas de turno nas falas da entrevista, essas
geralmente mostram uma convergência coerente com o vernáculo do falante, ou seja, uma tendência
ao uso do estilo de fala adquirido e usado pelo falante nativo na comunicação de seu dia-a-dia com
amigos e familiares. Ou, conforme Labov (1991, p. 208), um estilo de fala em que o falante
monitora o mínimo possível aquilo que diz.
A preocupação quanto ao desempenho lingüístico dos informantes também é demonstrada
por Tarallo (2002, p. 52) quando o autor contrasta o vernáculo, ou estilo espontâneo da fala natural
de comunicação, com o não-vernáculo, ou estilo de entrevista, na qual em geral a fala é monitorada
e acaba aparecendo no corpus da pesquisa, caso o informante se concentre mais no como falar do
que em o que falar.
Tarallo (2002, p. 52) afirma que se a escolha entre o que dizer tiver uma natureza
estigmatizada ou de prestígio, o estilo entrevista bloqueará a forma supostamente estigmatizada, ou
seja, o informante adequará seu discurso ao contexto da entrevista. Isso talvez explique o cuidado
que muitos informantes possam ter na escolha das palavras e da estrutura sintática que compõem os
diferentes exemplos típicos da linguagem do jeitinho caso não se sintam à vontade com o
pesquisador ou não estiverem confortáveis com a situação da entrevista em si.
Portanto, para que se consiga uma amostragem mais próxima do uso real de nosso objeto
de pesquisa, é preciso desenvolver procedimentos que transformem as entrevistas em eventos
menos estressantes para os informantes, ou para ambos os lados. Para Labov (2002, p. 1), Ron
Macaulay
32
(1991), professor escocês de Lingüística, foi um dos pesquisadores que mais destacou a
importância das dimensões emocionais e sociais da narrativa pessoal.
Nesse sentido, para obtermos exemplos que mais se aproximem do vernáculo dos falantes,
seria proveitoso usar exemplos de eventos da vida cotidiana da comunidade sendo pesquisada,
envolvendo temas centrais da experiência humana dos informantes durante uma entrevista
sociolingüística para que os discursos reflitam o máximo possível o real e não o imaginado.
Esse foi um dos principais procedimentos que procuramos adotar ao longo de nossa
pesquisa de campo para coletar exemplos da linguagem do jeitinho utilizados ou relatados pelos
informantes.
1.8 Breve Reflexão sobre o Trabalho de Campo Realizado
A aplicação da metodologia descrita neste capítulo mostrou-nos o quão dinâmicas essas
ferramentas de trabalho são, além de revelar a complexidade de nosso objeto de pesquisa. De modo
geral, percebemos que durante a realização da pesquisa algumas questões puderam ser colocadas de
forma imediata e definitiva, enquanto outras iam surgindo e configurando-se no decorrer do
trabalho de campo.
Isso certamente muito nos ensinou acerca do binômio objetividade-flexibilidade que um
pesquisador de cunho qualitativo deve ter. Objetividade ao procurar dar uma representação fiel de
seu objeto e seguir o planejamento inicialmente feito. Flexibilidade ao se permitir analisar o que
planejou, o que obteve, como a pesquisa está acontecendo, interpretar esses fatores e adaptar ou
mudar o que precisar ser alterado.
Também estávamos cientes das “muitas armadilhas embutidas no processo de
32
MACAULAY, Ronald. Locating dialect in discourse. England: OUP, 1991.
identificação subjetiva que se estabelecem nesse [caso], especialmente quando entrevistador e
entrevistado compartilham um mesmo universo cultural” (DURHAN, 1986 apud DUARTE, 2002,
p. 147), no caso o município de Foz do Iguaçu, pois sendo moradores de Foz corríamos o risco de
tentar explicar a realidade que vemos por nossas próprias categorias de interlocutor.
No entanto, o fato de termos mudado para Foz do Iguaçu recentemente nos conferia certo
ar de outsiders
33
, o que nos permitiu estabelecer o distanciamento necessário para que o discurso
dos informantes não se confundisse com o discurso de interlocutor. (DUARTE, 2002)
Mesmo tendo aplicado diferentes técnicas e coletado material para análise, fica a
impressão de que a pesquisa não está finalizada. Duarte (2002, p. 144) explica que “eventualmente é
necessário um retorno ao campo para esclarecer dúvidas, recolher documentos ou coletar novas
informações sobre acontecimentos e circunstâncias relevantes que foram pouco exploradas nas
entrevistas.” Portanto, os instrumentos etnográficos utilizados podem ser retomados a qualquer
momento caso sintamos tenhamos necessidade de clarear ou aprofundar algum aspecto da pesquisa.
33
Na Apresentação à Edição Brasileira do livro Os Estabelecidos e os Outsiders”, Federico Neiburg define os dois
termos da seguinte maneira: “o estabelecido é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma ‘boa
sociedade’ enquanto que os outsiders são os não membros da ‘boa sociedade’, os que estão fora.” (p. 7)
2 JEITINHO BRASILEIRO: ELEMENTO NA E DA IDENTIDADE NACIONAL
34
No livro O crisântemo e a espada de Ruth Benedict (1972 apud LARAIA, 2006, p. 67), a
autora escreve que “a cultura é como uma lente através da qual o homem o mundo.” Podemos
argumentar que é na, pela e através da cultura brasileira que o brasileiro justifica a concessão e o
pedido do jeitinho. É por intermédio da lente da cultura do jeitinho brasileiro que o brasileiro usa a
sua linguagem para burlar as regras sociais, por exemplo. A cultura parece assim condicionar a
visão de mundo que adquirimos ao longo de nossas vidas.
Laraia (2002, p. 72) esclarece que “o fato de o homem ver o mundo através de sua cultura
tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o
mais natural.” Fenômeno universal conhecido como etnocentrismo
35
. Talvez o alto nível de
aceitabilidade e aplicabilidade do jeitinho em nosso território brasileiro seja resultado dessa
propensão.
Uma vez que “todo sistema cultural tem a sua própria lógica, não passa de um ato primário
de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para outro.” (ibid., p. 87) Assim, a
coerência de um hábito sociocultural somente pode ser compreendida a partir do sistema a que
pertence. Por isso, um estrangeiro não entende essa mania que o brasileiro tem de “dar jeitinho” em
34
Segundo Barbosa (1992, p. 128), a “identidade nacional é a construção de um tipo mais generalizante das
identidades das sociedades nacionais [...], pois abarca e integra toda uma série de identidades menores.”
35
“Etnocentrismo” (termo da Antropologia) é a “visão de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico,
nação ou nacionalidade socialmente mais importante do que os demais” (HOUAISS, versão online).
tudo e se escandaliza quando houve um enunciado do tipo No Brasil, a gente tem jeitinho pra
tudo.” Essa é a nossa cultura.
Aliás, hoje em dia, com exceção de alguns pequenos grupos no mundo, cultura tem sido o
resultado de encontros de vários grupos sociais e, portanto, de várias culturas. Cavalcanti (2001, p.
51) argumenta que “todo grupo social é multicultural, ou seja, está ligado à diversidade cultural.” A
cultura brasileira segue esse padrão, pois é uma grande mistura de várias culturas, diferentes grupos
sociais, diferentes raças e etnias com suas idiossincrasias e características próprias.
Cultura, entretanto, é um termo polissêmico e impreciso, como sugere Cavalcanti (2001,
p. 50). DaMatta (1987, p. 48) afirma que para que haja cultura é preciso que exista “uma tradição
viva, conscientemente elaborada que passe de geração para geração e que permita individualizar ou
tornar singular e única uma dada comunidade.” Portanto, a cultura não é estática, e sim dinâmica.
Aliás, Sarup (1996, p. 183) esclarece que “é a cultura que nos forma: sem cultura não haveria
identidade.” Assim, para este trabalho, privilegiamos, o conceito de culturas em construção, como
propõe Cavalcanti (2001, p. 50).
Essa enorme diversidade permite a construção de um número igualmente grande de
diferentes identidades individuais, culturais, étnicas e grupais, que unidas formam uma complexa
identidade nacional, a qual tem sido objeto constante de estudos e pesquisas que procuram, talvez
equivocadamente, homogeneizar e uniformizar esse processo identitário e dele extrair
convergências lingüísticas e socioculturais que possam assim descrever um povo e sua não.
2.1 A Complexidade Cultural na Questão da Identidade
A complexidade dessa realidade no Brasil permite que cultivemos não a identidade
nacional por exemplo, a identificação nacional com o que é “ser brasileiro” nos dias de jogos do
Brasil na Copa do Mundo, quando o país praticamente pára e os olhos se voltam para as telas de
televisão –, mas também que cultivemos a identidade estadual e a municipal. Temos a identidade
gaúcha com sua tradição na comida, nas danças, no folclore, no falar gauchesco; a identidade
carioca com seus trejeitos e malandragem da Lapa; a paulista com sua paixão pelo automóvel; a
mineira com seu falar manso e ligado (“Oncôtô?(Onde estou?), “Proncôvô?” (“Para onde vou?”))
e sua culinária caseira; a baiana com seu sincretismo religioso; a do oeste paranaense com suas
festas e tradições decorrentes de sua colonização européia; entre outras.
Dentro desse cenário de identidades, podemos ainda falar em uma identidade regional ou
bairrista. No Rio de Janeiro, por exemplo, temos o “tijucano”, aquele que nasce na Tijuca, bairro
localizado na zona norte, entre o subúrbio e a zona sul, considerado um dos bairros mais
tradicionais do Rio; os moradores da Barra da Tijuca, conhecida como o bairro dos emergentes; da
zona sul, com suas praias; do subúrbio, com sua maneira interiorana de se comportar: todos
formando grupos com perfis, muitas vezes, diferentes de outros grupos que ajudam a compor a
identidade carioca, a qual todos eles pertencem.
A própria Língua Portuguesa falada por diferentes grupos regionais no Brasil apresenta
diferenças lingüísticas marcantes, importantes na composição de nossa identidade nacional.
Língua(gem) e identidade demonstram ser instituições sociais inseparáveis. Rajagopalan
(2006) sugere que a língua é uma bandeira política que representa sua nação, seu país e,
conseqüentemente, ajuda a construir a identidade nacional de seu povo. Assim como a língua, que
não é homogênea como propôs Chomsky (1965 apud DAMKE, 1992, p. 19-20), mas sim
heterogênea e diversificada como propõe Labov (1972 apud TARALLO, 2002, p. 6-7), a identidade
também não apresenta homogeneidade. E não poderia ser diferente, pois sabemos que em sua
formação histórica a diversidade cultural e social que encontramos Brasil afora foi e continua sendo
bastante evidente.
Interessante observar, no entanto, que dentro dessa heterogeneidade lingüística e
diversidade social, um fenômeno se destaca pela sua natureza imanente e contraditória: o jeitinho
brasileiro, ou a arte de legitimar o que é ilegal.
Esse insistente e típico traço sociolingüístico - se assim pudermos colocar ou fato
lingüístico e sociocultural, é conhecido e praticado de norte a sul e de leste a oeste no Brasil,
independentemente de classe social, educação, sexo, idade e outros fatores extralingüísticos. Tudo
indica que a presença do jeitinho é uma unanimidade nacional (BARBOSA, 1992).
O jeitinho é percebido como um paradigma em determinados contextos para nos definir
como país, como povo e como indivíduo e pode ser encarado como uma forma brasileiríssima de
sobreviver aos percalços, “injustiças” e desigualdades sociais em nosso cotidiano. Barbosa afirma
(p. 26) que o jeitinho “é reconhecido, admitido, louvado e condenado.” A autora levanta a hipótese
de que a categoria jeitinho passou recentemente de drama social do cotidiano brasileiro a elemento
de nossa identidade social, ou seja, um dado, entre tantos outros, recortado de nossa realidade e
investido de significação paradigmática na definição do que é o Brasil como país (p. ex. que não é
sério, é incompetente, subdesenvolvido) e do que somos como brasileiros (p. ex. um povo cordial,
simpático, malandro e que prefere o papo à briga, a conciliação à disputa). (ibid., p. 75, 85, 125)
Nesse cenário nacional, a linguagem do jeitinho acabou se tornando um tipo de moeda
corrente que usamos para negociar aquilo que almejamos conseguir, e cuja obtenção as leis, as
normas, as regras, a formalidade e a burocracia “dificultam”. DaMatta (2004, p. 48) argumenta que
se nossa relação com a lei é complicada, nada mais “normal” – e aqui já estaríamos vendo o jeitinho
em ação do que adotar um estilo de orientação e navegação social que nos permita passear nesse
contexto e ter acesso às entrelinhas desse poder “autoritário”.
A linguagem vista aqui como um instrumento de interação do homem com os demais
indivíduos do grupo social com os quais convive (DAMKE, 1992, p. 19) do jeitinho, uma das
facetas da Língua Portuguesa falada no Brasil, permite que a engrenagem da socialização seja
paradoxalmente mais fluída, mais interativa nas diversas interações sociais.
Segundo Rega (2000, p. 217), o jeitinho é “um confronto com as normas
36
, um desvio dos
ideais, uma declaração de independência do “eu” que não quer enfrentar” a imposição de uma
norma, uma disputa entre “a norma proposta e a práxis realizada” (LEERS, 1982, p. 23).
Com base nos textos de Barbosa (1992) e Rega (2000), podemos inferir que essa distorção
36
“Norma” aqui utilizada em um sentido genérico, ou seja, “aquilo que regula procedimentos ou atos [em uma dada
sociedade]; regra, princípio, padrão” (HOUAISS, versão online). E conforme afirmação de Leers (1982, p. 54) sobre
o assunto: “Seguir a norma, como a sociedade o espera [é] observar muitas leis que regulamentam o comportamento
dos cidadãos.”
das normas legais ocorre, até certo ponto, em todos os países. Talvez seja algo inerente ao ser
humano. A peculiaridade no Brasil, entretanto, é que essa prática desviante das normas legais para
alcançar um fim desejado, elevou seu patamar sociointerativo de tal modo que acabou resultando na
criação de uma instituição paralegal
37
altamente cotada. Tornou-se parte integrante da cultura
brasileira. A partir daí, desenvolveu sua própria cultura: a cultura do jeitinho brasileiro. Em muitas
áreas, como no Direito, por exemplo, o jeito é a regra; a norma jurídica formal, a exceção
(ROSENN, 1998, p. 12-13).
Nossa pesquisa concentrar-se-á no estudo da linguagem verbal com o objetivo de
compreender a influência lingüística e sociocultural - ou sociolingüística que esse tipo de
linguagem tem na construção da identidade social iguaçuense e brasileira. O que não impede, no
entanto, de mencionarmos a linguagem escrita e a combinação das duas quando for necessário para
uma melhor compreensão do fenômeno.
2.2A Interação entre a Linguagem e a Sociedade
A comunicação é um processo lingüístico e sociocultural. Laraia (2006, p. 52) afirma que
“a linguagem humana é um produto da cultura [existente nas diferentes sociedades], mas a cultura
não existiria se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de
comunicação oral.” A linguagem é, ao mesmo tempo, um elemento da cultura e a condição
essencial para que exista cultura. Nesse sentido, cultura é todo fazer humano que se transmite de
geração a geração por meio da linguagem (FARACO; MOURA, 2003, p. 17).
A língua, por ser viva e dinâmica, se realiza em sociedade. É por meio da linguagem que
essa realização se torna possível. Assim, o processo de construção da linguagem se reflete no
processo de construção da sociedade e vice-versa. Linguagem e sociedade: dois conceitos essenciais
na cultura do jeitinho brasileiro.
37
“Segundo Roberto Campos, o jeitinho não é uma instituição legal nem ilegal, é simplesmente paralegal.”
(BARBOSA, 1992, p. 14)
Alkmim (2004, p. 21) observa que linguagem e sociedade estão inquestionavelmente
ligadas entre si. Sendo assim, o que acontece com uma inevitavelmente afeta a constituição e a
realização da outra. Poetzscher (1994, p. 1), professora e psicóloga brasileira, concorda com
Alkmim quando afirma que "a linguagem é de tal modo onipresente que a aceitamos e sabemos que
sem ela a sociedade, tal como a conhecemos, seria impossível.” É, portanto, na e através da
linguagem que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente.
Marcuschi (1975, p. 12) esclarece que “a linguagem é, ao mesmo tempo, condição
necessária e meio mais importante de qualquer interação.” O autor diz ainda que “sem ela não
haveria formação de grupos e nenhuma atividade humana organizada, e sim, apenas orientação
instintiva.” Segundo o autor “a linguagem não é somente condição, mas também produto da
integração social.” A linguagem é um sistema de sinais convencionais que precisa ser desenvolvido,
ensinado e apreendido socialmente. É somente mediante esses símbolos que os indivíduos de um
grupo conseguem interagir e trocar suas experiências uns com os outros, concordando com a
definição de linguagem proposta por Damke (1992, p. 19) apresentada anteriormente.
Esse fenômeno, entretanto, se torna possível porque tais sinais apresentam significados
(conteúdos) que na prática social do cotidiano se definem pelo campo semântico em que são
aplicados. Em relação à linguagem do jeitinho, poderíamos dizer que somente as pessoas que
compartilham do mesmo código sociolingüístico social, cultural, político, lingüístico, etc.
compreendem toda a significação sociocultural e a carga semântica subjacente a uma frase do tipo
Quebra meu galho, vai?
“Quebra meu galho, vai?”, ”Você pode dar um jeitinho?”; Não tem como um
jeito?”, “Alivia aí, prof. Não pra alterar minha nota?”, “Você pode comprar o ingresso para
mim? A fila tá muito grande.”, “Seu guarda, me libera aí, vai?” são exemplos de enunciados desse
tipo de linguagem em nossa sociedade, cujos significados transcendem a frase em si. No final, todos
apresentam o mesmo objetivo: evitar algum tipo de penalidade ou “contornar” uma lei ou uma regra
social, as quais deveriam ser naturalmente obedecidas.
O jeitinho é aqui realizado através de atos verbais. Mas poderia ser também representado
por um ato não-verbal. Acenar com o polegar direito, por exemplo, e fazer cara de “desesperado”
pedindo a um guarda de trânsito permissão para seguir em frente após ter cometido uma infração.
Tal gesto pode significar Foi mal, seu guarda! Não era minha intenção avançar o sinal vermelho,
mas acabei cometendo essa “pequena” infração. Tava distraído, sabe como é, não? Posso seguir
em frente? Você me libera?”. Às vezes, o guarda “gentilmente” faz sinal para que ele siga,
liberando-o assim da multa, ou seja, dando um jeitinho. Nesse caso, temos um exemplo de jeitinho
sem que uma única palavra tenha sido dita, embora a comunicação e a negociação tenham
acontecido com sucesso.
Segundo DaMatta (BARBOSA, 1992), o Brasil, enquanto sociedade, opera por meio de
“estilos” de falar e fazer. Dentre esses “estilos”, encontramos a forma diminutiva do jeitinho que
apela para a simpatia pessoal e generosidade humana do interlocutor, com o objetivo único de fazer
com que esse interlocutor se identifique com as “dificuldades” e “necessidades” do locutor.
Portanto, o uso da palavra jeitinho, ao invés de jeito, em muitos contextos e situações sociais
demonstra o caráter social apelativo e sedutor - características da linguagem do jeitinho e de nossa
identidade nacional - como atitudes sociolingüísticas na cultura do jeitinho brasileiro. No fundo, o
diminutivo não deixa de ser um jeitinho encontrado pelo brasileiro de contornar e burlar as regras da
situação embaraçosa na qual ele se encontra.
Pelas leituras e pesquisas de campo realizadas, observamos que o jeitinho é uma constante
em todas as variedades lingüísticas, sejam elas diatópicas (geográficas), diastráticas (sociais) e
diafásicas (situacionais) (PRETI, 1994, p. 41; DAMKE, 1998, 2003), pois, de acordo Barbosa
(1992), essa é uma prática social (re)conhecida e legitimada por todos no cotidiano de nossa
sociedade. O fenômeno é nacional. As primeiras análises e entrevistas, no entanto, demonstram
haver diferenças lexicais no uso desse tipo de linguagem nas três variedades lingüísticas
mencionadas acima. “Aí, mermão. Alivia a parada aí, vai?”, “Você pode quebrar meu galho?e “O
senhor poderia dar um jeito? são variedades lingüísticas de diferentes segmentos sociais ouvidas
na cidade do Rio de Janeiro.
Esse tipo de linguagem, em suas diferentes versões, sinaliza uma forma de representação.
Representamos de acordo com a situação, o contexto, o lugar onde estamos e as pessoas envolvidas
na esperança de fazer com que nossa interação social obtenha sucesso.
2.3A Representação Cotidiana da Identidade e da Diferença
Para Silva (2005, p. 91), “a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário,
indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”. O autor diz ainda que quem tem o poder
de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. Silva conclui observando que a
identidade e a diferença estão estreitamente associadas a sistemas de representação, estabelecendo
assim um círculo “vicioso” entre linguagem, identidade e diferença.
Woodward (2005, p. 8) observa que nossas identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. A autora explica que a
representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações. O uso da linguagem
do jeitinho é uma das representações da personalidade do povo brasileiro. Para a autora (2005, p.
42), “aquilo que falamos pode nos dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual
vivemos.” A linguagem representa assim o povo que a fala.
Para a autora (2005, p. 9) a identidade é um fenômeno relacional, ou seja, “ser brasileiro” é
ser um “não-brasileiro”, fazendo assim com que a identidade seja marcada pela diferença. Essa
diferença, por sua vez, é sustentada pela exclusão: se você é brasileiro, você não pode ser argentino.
A exclusão tem um forte apelo social, pois ninguém gosta de ser excluído em seu país ou em sua
comunidade lingüística.
A linguagem do jeitinho funciona então como um fator de inclusão social, pois permite
que a pessoa, ao obter aquilo que deseja via jeitinho, compartilhe com outros brasileiros
pensamentos do tipo “se fulano conseguiu, eu também quero”, “todo mundo faz assim”, ah...., mas
todo mundo consegue - justificativas presentes na cultura do jeitinho brasileiro. Desse modo, a
linguagem do jeitinho proporciona certa inclusão social. Permite que transitemos com sucesso na e
pela sociedade em que vivemos.
Na construção de uma identidade social, DaMatta (2004, p. 9) comenta que somos
brasileiros e não americanos porque gostamos de comer feijoada e não hambúrguer e porque diante
de um pesado “não pode” burocrático, podemos dar um jeitinho.
Talvez a diferença venha em primeiro lugar, pois é ela que serve de parâmetro para nos
identificarmos: Eu sou isso, porque não sou aquilo.” A referência, ou o ponto de partida, para
sabermos o que somos começa em sabermos o que não somos. No entanto, tendemos “a tomar
aquilo que somos como sendo a norma [o padrão] através da qual descrevemos ou avaliamos aquilo
que não somos” (SILVA, 2005, p. 76). Um exemplo típico desse comportamento social seria dizer
que “Eu sou culto, educado, letrado, porque não falo “Nóis vai” e sim “Nós vamos.” Ou seja, o que
me distingue de “quem fala errado” não é o fato de eu falar “correto”, mas sim o fato de eu “não”
falar daquele “outro” jeito ou eu não falar “incorreto”: como se o meu jeito por não ser o dele
fosse a norma
38
.
Na concepção de Sarup (1996, p.11, 14, 30), nós não nascemos com uma identidade:
precisamos nos identificar para adquiri-la, ou seja, pressupõe uma identificação, que na psicanálise
é usada no sentido de identificação de si mesmo com o outro. É por meio de uma série de
identificações que a identidade é construída. Na visão de Freud, segundo Sarup, a identificação não
se trata de uma simples imitação, mas de um processo de assimilação, quando procuramos nos
tornar semelhantes ou iguais a outra pessoa através da aquisição de seus traços e suas
características. A identidade é, portanto, uma entidade em construção, a conseqüência de um
processo de identificação e interação entre pessoas, instituições e práticas cotidianas. Isso compõe a
história da identidade, cujo principal foco de estudo deveria ser o processo – e não o produto final –
por meio do qual a identidade é construída.
Sarup (1996, p. 47) sustenta também que a identidade é construída na e através da
linguagem, pois é sempre dentro das representações da linguagem que nos reconhecemos como
38
“Norma” aqui, e em contextos similares, significando “norma prescritiva ou norma-padrão: conceito tradicional,
idealizado pelos gramáticos pedagogos [...] sendo qualificado de erro o que não segue esse modelo” (MATTOS e
SILVA, 1995, p. 14 apud BAGNO, 2001, p. 146).
sendo o que somos. Essas representações estão diretamente relacionadas com aquilo que somos e,
principalmente, com aquilo que não somos, ou seja, o outro. Como foi colocado anteriormente,
esse “outro” é a nossa principal referência identitária. Eis porque, para o autor, a identidade só pode
ser concebida na e pela diferença. Ou seja, a identificação não cria uma unidade com o “outro”,
mas também traz em sua natureza uma ameaça.
Segundo o autor, para manter uma identidade “diferente” temos que nos definir em relação
ao “outro”: sei que “sou brasileiro” e “não argentino” porque não compartilhamos a mesma língua,
cultura, tradição, culinária, visão política, e, particularmente como diriam alguns brasileiros a
mesma torcida em partidas de futebol na Copa do Mundo, onde o máximo de rivalidade e diferença
sobressaem mais ainda, pois um ameaça a soberania futebolística do outro.
Para Silva (2005, p. 76) identidade e diferença apresentam uma característica comum:
ambas são o resultado de atos de criação lingüística, ou seja, precisam ser ativamente produzidas
pelo mundo cultural e social em que vivemos. Somos nós que as fabricamos no contexto de nossas
relações e interações através de atos de linguagem, das nossas enunciações. É por meio de atos de
fala que nomeamos a identidade e a diferença. Assim, a definição que fazemos da identidade
brasileira é conseqüência da criação de variados e complexos atos lingüísticos que a definem como
sendo diferente de outras identidades nacionais. A linguagem do jeitinho como um dos elementos
constitutivos de nossa identidade – faz parte desses atos de criação lingüística.
Pela análise de Silva (2005, p. 81), a identidade, tal como a diferença, é uma relação
social. Assim, sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a relações de poder. Elas não são
simplesmente definidas: elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em
um campo sem hierarquias: elas são disputadas. E se são disputadas, elas estão estreitamente ligadas
ao poder. Ser incluído ou excluído, passar ou ser reprovado, ser multado ou ser “liberado”, ter um
processo “adiantado” ou “esquecido”, entre outras situações marcadas pela presença do poder, pode
ser “negociado” pela linguagem do jeitinho.
2.4 As Relações de Poder na Identidade do Jeitinho
Fatores sociais, culturais, históricos, econômicos e lingüísticos, por exemplo, podem ser
usados para explicar a linguagem do jeitinho e é provável que todos tenham sua lógica mas a
questão das relações de poder parece permear praticamente todos eles. Usar a linguagem do
jeitinho para conseguir vantagens pode ser, na visão do brasileiro, uma demonstração de esperteza,
malandragem, astúcia. Mas pode indicar também que o falante pertence a uma vasta rede de amigos
ou “conhecidos” que podem ter certa “influência” em alguma (ou várias) área(s) de relacionamento
social, o que demonstra, perante a sociedade brasileira, que esse falante não é um João-Ninguém.
Pelo contrário, é alguém que detém, por extensão, poder, autoridade, influência, pois é “conhecido”
do outro.
Segundo DaMatta (1984) e Barbosa (1992), um traço marcante na cultura brasileira é o de
valorizarmos mais as pessoas do que as instituições. A explicação para isso talvez esteja no fato de
que as pessoas são conceitos concretos, podemos vê-las e contar com elas, elas podem nos ver e
ajudar, dar um jeitinho quando precisamos, principalmente, se forem conhecidas (mas se não forem,
tudo bem: passam a ser!), enquanto as instituições são conceitos abstratos, em geral, inalcançáveis
ou “intocáveis”, com as quais nem sempre podemos contar, não conseguimos dialogar, conversar,
“bater um papo” ou mesmo oferecer um “presentinho” para fazer amizade, caso precisemos de
um “favor” seu no futuro, pois não é uma pessoa “física”.
Visto por esse prisma, as relações pessoais e a sensação de pertencimento a um grupo de
pessoas podem ajudar quando precisamos de algo. Pertencer a um grupo nos “autoriza” a obter tudo
aquilo a que todos no grupo “têm direito”. A pessoa simplesmente se auto-inclui socialmente e não
nenhum problema em usar essa auto-inclusão através da linguagem do jeitinho quando chegar a
sua vez de “abocanhar uma fatia do bolo”. Essa é uma das características presentes em uma relação
de poder na identidade do jeitinho, ou seja, utilizar-se dos recursos humanos (leia-se “conhecidos”)
que a pessoa tem à sua disposição para conseguir o que deseja sem que isso gere um conflito direto
com o seu interlocutor. Eu sou amigo de fulano.”, Beltrano pediu para você resolver isso pra
mim.”, Cicrano pediu para eu falar com você.” são enunciados típicos do jeitinho em uma relação
de poder e que evocam a autoridade reconhecida de uma terceira pessoa importante para e no
contexto em que o locutor se encontra a fim de resolver pacificamente o “problema” que se
apresenta. Neste caso, “o jeitinho nada mais é do que uma variante cordial do ‘Você sabe com quem
está falando?’ e outras formas autoritárias” (VIEIRA et al., 1982, p. 11) de conseguir algo.
Essa realidade social é ratificada por Rega (2000, p. 34) quando diz que a ação
interpessoal é o elo da corrente cultural brasileira. Nesse contexto sociocultural, as relações pessoais
de poder passam a ter mais peso do que as leis, regras ou normas. Muitos de nós presenciamos
cenas em que entre a lei impessoal regulando ou determinando que algo é proibido e a figura
folclórica e jeitosa do “compadre”, “amigo” ou “afilhado” que precisa do “favor”, o cidadão
brasileiro mediador entre a lei e o amigo, o público e o privado, o indivíduo e a pessoa, o
impessoal e o pessoal, a instituição e a “família”, muitas vezes, fica com o amigo e “contorna” a lei,
dando um clássico jeitinho para que o “pedido” de seu “afilhado” seja concretizado. Tudo isso sem
qualquer constrangimento, sem a menor culpa, ou sensação de “estar burlando a lei”: afinal, o
enunciado estou quebrando um galho para um grande amigo meu apresenta-se como uma
justificativa “plausível” e aceitável para muitos brasileiros.
Em uma relação de poder que envolva o jeitinho, o locutor nem sempre é um “vitorioso
pleno”, ou seja, consegue exatamente aquilo que deseja. Mas nem por isso ele se considera um
perdedor. E como acredita em sua “autoridade” nessa interação, precisa deixar claro que ele sabe
que o jeitinho não é possível de ser dado dessa vez. Um enunciado do tipo “Se não puder quebrar o
galho agora, fica pra próxima. O negócio é levar tudo na flauta. Não vale a pena esquentar a
cabeça.exemplifica uma estratégia usada pelo locutor para evitar um confronto direto na situação
em que se encontra.
Mas, o que nos leva a usar esse tipo de argumentação em nossas relações sociais?
Sensação de poder, de igualdade? O que faz com que busquemos saídas criativas em nossa
linguagem para superar ou não nos deixarmos abater pelas mais diversas situações embaraçosas
com as quais precisamos lidar? A cultura do ‘levar vantagem em tudo’? Estas e outras são perguntas
que procuraremos responder em nossa análise.
2.5 A Teoria da Igualdade para Todos
Em seu livro, Barbosa (1992) argumenta que “o jeitinho brasileiro [representa] a arte de
ser mais igual do que os outros”, título de seu livro. Sua argumentação sustenta-se em três
princípios: (i) o jeitinho transforma indivíduos em pessoas, de uma categoria social pública para
uma privada; (ii) a igualdade é o atributo do individualismo mais enfatizado pela sociedade
brasileira; e (iii) a concepção brasileira de igualdade refere-se à igualdade substantiva, aquilo que é
alcançável, concreto, passível de se obter.
Em 1978, a mídia brasileira apresentou um exemplo dessa ideologia da igualdade. Uma
campanha publicitária verbalizara aquilo que todos sabiam no Brasil, mas talvez ainda não
tivessem assumido. A propaganda, que retroalimentava o papel social que deveríamos manter na
sociedade, levou ao ar o ex-jogador da Seleção Brasileira, Gerson, fumante e com fama de
econômico.
No anúncio, a linguagem usada dizia que Todo brasileiro gosta de levar vantagem em
tudo e que, portanto, a marca de cigarro Vila Rica objeto do anúncio - era uma boa opção para
todos. Gerson acabou simbolizando a antiética da esperteza. E assim estava instituída a Lei de
Gerson, com a qual muitos brasileiros se identificaram de imediato, e com a qual muitos outros
continuam a se identificar até hoje (FERREIRA, p. 75). Para Barbosa (1992), a igualdade de fato,
substantiva e não de direito” (p. 117) “reside [...] no fato de que todos podem lançar mão do
jeitinho (p. 77), ou seja, é o “lugar” onde todos nós somos realmente iguais, sem distinção de
credo, raça, classe ou outras categorias sociais.
Woodward (2005, p. 18) argumenta que anúncios são eficazes em seu objetivo de nos
vender seus fetiches se tiverem apelo para os consumidores e fornecerem imagens com as quais
esses consumidores possam se identificar, reforçando assim sua identidade ou algum traço que faça
parte dessa identidade: o que foi conseguido com sucesso total pela propaganda do cigarro Vila
Rica.
A realização enunciativa da linguagem do jeitinho muitas vezes segue um padrão
manipulativo semelhante. A pessoa apela para o lado “humano” do interlocutor, fazendo assim com
que este se identifique com as “necessidades sociais” daquele.
A estratégia empregada passa a ser a utilização de um discurso que envolva
emocionalmente o interlocutor no problema do locutor por intermédio de uma argumentação do tipo
chorar as suas misérias”. O jeitinho lança mão do sentimentalismo, do apelo aos bons
sentimentos, da piedade, da pena, do coitadinho, ou seja, de categorias emocionais.
Essa dramatização social é a coisa mais natural do mundo para um brasileiro quando se
trata de dar um jeitinho, afinal é assim que todos agem típica argumentação falaciosa usada
nessa cultura. Alguns alegam jamais agir assim, mas se surpreendem quando são pegos em flagrante
dramatizando e aplicando o jeitinho nos diferentes papéis que desempenham no dia-a-dia.
2.6 A Competência Comunicativa na Linguagem do Jeitinho
De acordo com Woodward (2005, p. 30), em nossas interações diárias, é fácil observar que
somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em diferentes lugares de acordo
com os diferentes papéis sociais que exercemos. Cada situação exige uma abordagem diferente, uma
linguagem diferente. Diferentes contextos sociais representam diferentes significados sociais. É
como se assumíssemos diferentes “identidades” sociais de acordo com diferentes situações,
exigindo abordagens sociolingüísticas diferentes. Precisamos adequar nossa fala e nosso
comportamento.
“Adequação”, essa é uma palavra-chave dentro desse contexto sociocultural e define o que
Hymes (1966 apud BORTONI-RICARDO, 2004, p. 73) chamou de competência comunicativa.
Para o sociolingüista, esse conceito inclui não o domínio das regras que estruturam a formação
das sentenças, mas também o domínio das normas sociais e culturais que definem a adequação da
fala ao contexto. A competência comunicativa de um falante permite que ele saiba o que falar e
como falar com quaisquer interlocutores em quaisquer circunstâncias.
Para que o jeitinho seja conseguido, a linguagem utilizada precisa ser adaptada ao contexto
e à situação em que se encontra a pessoa. O jeitinho pode ser pedido secreta ou publicamente; direta
ou indiretamente; humilde ou arrogantemente; emotiva ou racionalmente; de forma simples ou
elaborada; dentro da norma ou fora dela; entre outras maneiras de expressão. Caso contrário, a
tensão existente entre a solicitação, as expectativas geradas e as normas sociais envolvidas podem
gerar conflitos para ambos os lados.
O que se fala e como essa fala é realizada (o enunciado e a enunciação) são fatores
essenciais para a concessão do jeito. A pessoa que solicita o jeitinho precisa fazê-lo sendo
simpática, educada, gentil, humilde e mostrar que a necessidade é real, sem jamais ser arrogante,
mal-educado, antipático, pois um discurso indelicado ou autoritário, por exemplo, pode facilmente
pôr tudo a perder. Nesse caso, frases do tipo Se ele tivesse pedido com educação até que eu teria
quebrado o galho dele” e “Agora é que eu não faço mesmo. E se bobear, ainda atrapalho” mostram
a inadequação de como o “papo” foi conduzido e, ao mesmo tempo, servem como uma justificativa
para se negar o jeitinho a alguém.
Essa visão parece se confirmar quando Barbosa (1992, p. 36) afirma que “a freqüência,
com que as pessoas entrevistadas [pela autora] faziam uso do jeito, estava condicionada, segundo
elas, à ‘ocasião’.” Ou seja, desde que essa se apresentasse, o mecanismo era acionado. ‘Ocasião’
que, segundo o dicionário Houaiss, versão online, significa “circunstância oportuna para a
realização de algo”, e que, portanto pode ser aqui entendida como a “enunciação”, ou a situação
enunciativa que gerará o tipo adequado de enunciado por meio do uso da competência comunicativa
do falante.
2.7 Os Papéis Sociais na Identidade
Segundo Bortoni-Ricardo (2004, p. 23), todos nós começamos a desenvolver esse processo
de socialização em contato com três espaços físicos - sociologicamente chamados domínios sociais
- onde geralmente interagimos assumindo diferentes papéis sociais: a família, a escola e os amigos.
Os papéis sociais, de acordo com a autora, são um conjunto de obrigações e de direitos definidos
por normas socioculturais, construídos no próprio processo da interação humana.
São nesses domínios sociais que construímos nossa identidade, adquirimos nossa língua,
moldamos nossa maneira de falar e sociabilizar assim como construímos os diferentes papéis sociais
que teremos que assumir em nossas relações sociais no cotidiano. A linguagem do jeitinho é, pois
assimilada de forma semelhante.
Jeitinho, identidade e competência se encontram nesse contexto. A categoria jeitinho
brasileiro é um elemento de nossa identidade social. Dentro de nossa competência
sociolingüística usamos o que temos, o que desenvolvemos, o que aprendemos e adquirimos ao
longo de nossa vida e que faz parte de nossa identidade social: o jeitinho é um desses
elementos. Então, o processo de construção de nossa identidade é construído, produzido em
conjunto com a aquisição de nossa competência sociolingüística. Portanto, teoricamente, todo
brasileiro sabe como solicitar ou dar um jeitinho em seu cotidiano. Sabe adequar o que diz ou
usar a linguagem adequada (p. ex. “Você pode dar um jeitinho?”) para conseguir o jeitinho.
Uma inadequação da linguagem, atitude ou postura pode ser suficiente, embora não seja o
único fator, para resultar em uma negação na concessão do jeitinho. Essa “falha” no uso da
competência comunicativa, obviamente, não deveria causar maiores transtornos, mas talvez afete a
identidade daqueles que não conseguem.
Se de um lado temos os que conseguem dar um jeitinho nós, aqueles que têm
conhecimento, poder –, do outro temos os que não conseguem dar um jeitinho eles, os
fracassados, os “sem-jeito”. Segundo Silva (2005, p. 82), essa dicotomia é representada pelas
oposições binárias, ou seja, duas classes polarizadas. No caso, os vitoriosos e os fracassados.
Contudo, de acordo com o autor (ibid., p. 83), o filósofo francês Jacques Derrida argumenta que as
oposições binárias não expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas. Para
ele, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo assim um valor positivo, enquanto o outro
recebe a fama de negativo.
Na vida geralmente as pessoas não gostam do papel de fracassado, perdido ou excluído.
Elas não querem ser a parte negativa dessa oposição binária: desejam ser a positiva e para isso
recorrem a todo tipo disponível de argumentação que conhecem, incluindo a linguagem do jeitinho,
que possa lhes conferir poder, autoridade, igualdade, entre outras categorias sociais.
Para Silva (ibid., p. 83), entre “nós” e “eles”, uma típica oposição binária, fica evidente
qual termo é o privilegiado. Aqui, observamos a importância da língua como fator determinante do
social e cultural. “Nós” e “eles” deixam de ser simples categorias gramaticais para se tornarem
evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por relações de poder.
Quando se deseja algo que é, teoricamente, ilegal, a linguagem do jeitinho com seus
trejeitos, suas atitudes, sua sintaxe, sua eficácia semântica, seu peso sociolingüístico, acaba se
tornando determinante nas relações sociais e precisa ser fortemente pontuada para que o sucesso
seja alcançado.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Uma vez que identificamos em nosso objeto de pesquisa características de complexa
amplitude lingüística e sociocultural, optamos em fazer uma fundamentação teórica composta por
um referencial inter e multidisciplinar que contemplasse a curiosa relação existente entre a
linguagem e a sociedade na cultura do jeitinho brasileiro.
Assim, este capítulo oferece ao leitor uma visão das principais teorias e autores nas suas
linhas de pesquisa, cujas idéias serviram para formar e respaldar o aporte teórico, balizar as questões
de investigação e elucidar a análise que faremos dos dados levantados.
Primeiramente, fizemos uma rápida leitura sobre como o jeitinho é visto pelos principais
autores que já estudaram e escreveram a respeito desse tema.
Em seguida, comentamos sobre a importância de a língua(gem) ser compreendida como
um fato social
39
usando conceitos apresentados por Saussure (2003) e Durkheim (2004) e
discutidos por Coseriu (1979), Elia (1987), Lucchesi (2001, 2004, 2006) e Berger e Luckmann
(2005).
Depois, realizamos uma análise de questões trazidas pela sociolingüística e que são
relevantes para nosso estudo com o objetivo de nos ajudar a levantar as diferentes formas,
expressões e variedades utilizadas ao pedir um jeitinho. Para isso, recorremos a pesquisadores como
Hymes (1964, 1977), Elia (1987), Goffman (1988, 2002), Labov (1991, 2005), Gumperz (1994),
Preti (1994), Tarallo (2002), Bortoni-Ricardo (2004), entre outros.
Na seqüência, utilizamo-nos de teorias da Pragmática, da Semântica (Argumentativa e do
39
O objetivo aqui é fazermos uma analogia entre a linguagem do jeitinho, como instituição social (cf. Capítulo 1,
seção 1.1) e a língua, como sistema abstrato, que usamos.
Acontecimento), da Enunciação, da Polifonia, do Dialogismo e da Argumentação para interpretar as
diferentes significações sociais que subjazem à estrutura da linguagem do jeitinho brasileiro. Ducrot
(1987), Maingueneau (2000), Orlandi (2001, 2003), Guimarães (2002, 2005), Bakhtin (2003, 2004),
Breton (2003), Koch (2004, 2006a, 2006b) e Marcondes (2005) são alguns dos autores que usamos
para fundamentar essa interpretação.
Finalmente, fazemos algumas reflexões sobre questões sociais e ideológicas subjacentes à
linguagem usada para se dar um jeitinho, procurando compreender até que ponto essa linguagem
influencia o comportamento das pessoas em uma comunidade e vice-versa, ou seja, até que ponto o
comportamento social influencia a cultura e a linguagem do jeitinho. Para esse estudo usamos como
referência Goffman (1988, 2002), Bourdieu (1996), Berger e Luckmann (2005), entre outros.
Embora seja nossa intenção estruturar esta fundamentação teórica de forma segmentada,
como exposto acima, e conseqüentemente empregar tal formatação na análise dos dados, a
complexidade do fenômeno em estudo e a própria natureza do caminho inter e multidisciplinar
escolhidos fazem com que muitas vezes precisemos cruzar as fronteiras que delimitam ou definem
as diferentes teorias. Esse procedimento se justifica, entretanto, com o objetivo único de somar
conhecimentos e complementar as nossas interpretações. Segundo André (2001, p. 53), “há quase
um consenso sobre os limites que uma única perspectiva ou área do conhecimento apresenta para a
devida exploração e conhecimento satisfatório” de problemas ligados às ciências humanas e sociais.
Assim, conclui a autora, “é preciso lançar mão de enfoques multi, inter ou transdisciplinares” (grifo
nosso) para podermos compreender e interpretar adequadamente grande parte desses problemas.
A abordagem teórico-multidisciplinar que escolhemos para o estudo de nosso tema
assemelha-se, em parte, aos estudos sócio-pragmáticos do discurso, que, nas palavras de
Schiffrin
40
(1994 apud MARTINS, 2002, p. 88), compreende: a Análise da Conversa
Etnometodológica, a Pragmática, a Teoria dos Atos de Fala, a Sociolingüística Variacionista, a
Etnografia da Comunicação e a Sociolingüística Interacional, pois nas duas abordagens uma
40
SCHIFFRIN, D. Approaches to discourse. Massachusetts: Blackwell Publishers, 1994.
preocupação quanto à “forma como os membros de uma comunidade identificam os eventos de fala,
como o input social varia no curso da interação e como o conhecimento social produz a
interpretação das mensagens (MARTINS, 2002, p. 89-90), principalmente em relação à primeira e
à terceira característica.
3.1 Estudo Bibliográfico do Jeitinho Brasileiro
Conforme mencionamos no Capítulo 1, existem poucos livros publicados e disponíveis
sobre a temática do jeitinho brasileiro. Em nossas andanças, pesquisas e buscas encontramos apenas
quatro livros que apresentassem, de forma academicamente organizada, estudos detalhados sobre o
tema. As obras, leituras imprescindíveis para uma compreensão formal do jeitinho, são as seguintes:
(i) Jeito Brasileiro e Norma Absoluta (1982), de Bernardino Leers, monge franciscano que
escreve um ensaio tentando interligar o ethos
41
popular à ética cristã. A inteão do autor é fazer
uma análise teológico-moral do jeitinho brasileiro. O livro foi escrito em 1980 e publicado em 1982
pela Editora Vozes, Rio de Janeiro.
Para o autor, o jeitinho poderia ser visto como uma atitude de auto-afirmação do brasileiro
que não cede ao sistema aceitando passivamente sua sorte. Ao invés disso, ele resolve reagir
tomando sua vida nas próprias mãos sem se incomodar com o que o sistema social espera dele. Por
mais contraditório que possa parecer, esse é o ethos popular em relação ao jeitinho brasileiro
descrito pelo autor.
(ii) O Jeitinho Brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros (1992), de Lívia
Barbosa, antropóloga social, que faz um estudo antropológico e sociológico do jeitinho brasileiro,
visto pela autora como um “mecanismo de navegação social”. O livro é resultado de sua tese de
41
Éthos: conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da
cultura (valores, idéias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região. (HOUAISS,
versão online)
doutorado defendida em 1986 no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro.
A autora observa que o jeitinho brasileiro
surge como um vetor através do qual a sociedade estabelece uma igualdade e uma
justiça social que se expressam por uma hierarquia de necessidades que desconhece
desigualdades sociais e igualdades legais e se volta, exclusivamente, para as
desigualdades situacionais num claro indício de que o indivíduo não é o cidadão
brasileiro definido pelo nosso sistema legal, mas o cidadão definido por um sistema
moral, e parte de uma totalidade mais ampla que a sociedade: a humanidade (p.
134).
(iii) O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira (1998), de Keith S. Rosenn, professor norte-
americano de direito da Universidade de Miami, EUA. O livro faz um estudo histórico e jurídico do
jeitinho, na realidade, uma atualização de dois artigos originalmente publicados em inglês pelo
autor: The jeito: Brazil’s institutional bypass of the formal legal system and its developmental
implications” (1971) e “Legal culture: the jeito revisited” (1984).
O autor interessou-se pelo assunto em suas visitas ao Brasil. Essa visão de outsider em
nossa cultura (jurídica, social, ética, etc.) certamente permitiu que Rosenn pudesse observar o uso
do jeitinho de maneira mais isenta. Embora muitos brasileiros não percebam o efeito danoso desse
mecanismo em nossa sociedade, o autor pôde perceber isso a ponto de declarar que “são óbvios os
vários problemas criados pelo componente de corrupção que existe no jeito (p. 97). Aqui, muitos
dão um show de habilidade lingüística em sua operacionalização diária. Talvez Rosenn tenha sido
um dos primeiros a realizar uma pesquisa do tipo etnográfica sobre esse tema e a perceber o efeito
dessa cultura na linguagem do jeitinho.
(iv) Dando um Jeito no Jeitinho: como ser ético sem deixar de ser brasileiro (2000),
Lourenço Stelio Rega, professor de Teologia. O livro é fruto da dissertação de mestrado em
Teologia, com especialização em ética, apresentada pelo autor em 1992, na Faculdade Teológica
Batista de São Paulo.
Rega afirma que o brasileiro é tentado (ou testado?) a usar o jeitinho quando se encontra
diante de um “dilema ético”
42
. Para o autor, “a situação se torna [mais] complicada se for levado
em conta que o jeito se institucionalizou na cultura brasileira e que extra-oficialmente é aceito
oficiosamente” (p.97). Ou seja, o jeitinho geralmente é uma saída que se encontra à nossa
disposição: é usar. E, como disse um dos informantes, isso (dar um jeitinho) no nosso
sangue”.
O livro de Lívia Barbosa foi reeditado pela mesma editora em 2006. Os outros três se
encontram esgotados sem previsão de relançamento.
Recentemente, tivemos acesso a um artigo, mencionado por Barbosa nas páginas 26 e 27
de seu livro, intitulado “O jeitinho brasileiro como recurso de poder” (1982), com o qual
concordamos em parte, pois verificamos que enunciados do jeitinho escondem não argumentos
de poder, mas outros fenômenos sociais também. Voltaremos ao assunto quando abordarmos a
teoria da Argumentação à frente.
Até o momento, não encontramos livros que abordem a linguagem do jeitinho na cultura
brasileira utilizando teorias lingüísticas. Obtivemos, no entanto, o livro Discurso fundador: a
formação do país e a construção da identidade nacional” organizado por Eni P. Orlandi (2001)
que contém um artigo de Maria C. L. Ferreira intitulado A antiética da vantagem e do jeitinho na
terra em que Deus é brasileiro: o funcionamento discursivo do clichê no processo de constituição
da brasilidade”, em que a autora faz um breve estudo lingüístico dos clichês (i) Todo brasileiro
gosta de levar vantagem em tudo (a Lei de Gerson), (ii) O jeitinho brasileiro e (iii) Deus é
brasileiro presentes na linguagem do povo brasileiro e considerados representativos na formação
de nossa identidade nacional.
Ferreira (2001, p. 79) analisa a materialidade xico-sintática dos enunciados (i) e (ii) e
“constata que o termo jeitinho tem uma carga semântica mais forte que vantagem.” A autora afirma
ainda que “o próprio diminutivo interfere no comportamento discursivo, determinando, em
confronto com os outros enunciados, um efeito maior de familiaridade”.
42
“Dilema ético: situação de natureza ética embaraçosa com saídas difíceis ou prejudiciais” (p. 93).
Juntando os três clichês em um único enunciado, a autora (p. 78) argumenta haver certo
“determinismo nas relações de sentido existentes entre os três estereótipos” quando diz que Deus
sendo brasileiro um jeitinho para que se leve vantagem em tudo”, ou seja, é como se Deus,
considerado (e consagrado pela como) autoridade xima, “abençoasse” e garantisse o sucesso
nas situações, ou negociações, em que precisássemos recorrer ao jeitinho.
A leitura dos textos acima e uma avaliação preliminar do corpus levantado até então
mostram que a linguagem do jeitinho oferece a seus pesquisadores a oportunidade de estudos a
partir de diferentes áreas do conhecimento humano e, dentro dessas áreas, por diferentes linhas de
pesquisa, o que certamente contribuiria para uma melhor compreensão do comportamento social no
cotidiano de nosso país e da comunidade lingüística de Foz do Iguaçu.
Por isso, a fundamentação e a análise da linguagem do jeitinho serão realizadas com base
em pressupostos de diferentes estudos lingüísticos e sociológicos apresentadas neste capítulo.
3.2 A Língua(gem) do Jeitinho como um Fato Social
Ferdinand de Saussure (1857-1913), considerado o pai da Lingüística Moderna, descreveu
a língua como “um produto do espírito coletivo dos grupos lingüísticos” sendo ela “ao mesmo
tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias,
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”. Portanto, na
visão do mestre genebrino “a linguagem é um fato social (SAUSSURE, 2003, p. 12, 14, 17, grifo
nosso).
Na concepção do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), o fato social apresenta
características distintivas tais como a sua “exterioridade em relação às consciências individuais” e a
“ação coercitiva que exerce ou é suscetível de exercer sobre essas mesmas consciências”
(DURKHEIM, 2004, p. 31). Assim, o fato social é visto como algo que possui vida própria, exterior
aos membros de uma comunidade e capaz de exercer sobre esses indivíduos uma autoridade que os
leva a pensar, sentir e agir de determinadas maneiras (QUINTANEIRO et al., 2002, p. 69).
A questão da coerção, com suas características “ditatoriais” que acabam moldando nossa
forma de pensar e falar, pode, segundo Durkheim (2004, p. 33), “assustar os zelosos partidários de
um individualismo absoluto” em que nós somos senhores incontestes do que penamos e dizemos
–, mas acaba explicitando o fato de que “a maior parte das nossas idéias e tendências não são
elaboradas por nós, mas antes nos vêm do exterior, e só podem penetrar em nós impondo-se”. Desse
modo, a língua(gem) que utilizamos em nosso cotidiano, por exemplo, é determinada pelo meio
social em que nascemos, crescemos e vivemos.
Essa realidade é compartilhada por Berger e Luckmann (2005, p. 58) quando afirmam que
a linguagem “tem origem e encontra sua referência primária na vida cotidiana”. Ademais, conforme
afirmam os autores, a linguagem apresenta uma facticidade externa a todos nós, pois somos afetados
por seus efeitos coercitivos. Para eles, a linguagem “força-nos a entrar em seus padrões.” Não
somos nós, portanto, que ditamos as regras da linguagem, mas o contrário: é a linguagem que nos
dita as suas regras.
Durkheim talvez tenha sido, depois de Whitney
43
(SAUSSURE, 2003, p. 17; ELIA,
1987, p. 64), um dos primeiros a reconhecer, em 1895, a caracterização da linguagem como um fato
social.
Parece-nos então que Saussure, referindo-se à idéia de Whitney (ELIA, 1987, p. 64;
LUCCHESI, 2004, p. 46) retoma esse conceito quando insiste na questão de que a língua é une
institution sociale, “exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la”
(SAUSSURE, 2003, p. 22).
43
William Dwight Whitney (-1894) - Estudioso do Sânscrito (antiga língua indiana) e lexicógrafo. Depois de estudar
na Alemanha, tornou-se professor de sânscrito e de lingüística comparativa. Era visto como um fenômeno entre os
orientalistas e Lingüistas americanos. Escreveu Linguagem” e O estudo da linguagemem 1867 e Uma
gramática sânscrita” em 1879. Lançou o Dicionário do século”. Disponível : <http://kplus.cosmo.com.br>.
Acesso em: mar. 2006.
Essa convergência de pensamentos entre os dois autores parece ampliar-se quando
Coseriu (, 33-34) e Elia (1987, p. 17-18) escrevem que, para W. Doroszewski
44
, Saussure teria sido
influenciado pelas idéias e pela sociologia de Durkheim. Tal afirmação é respaldada por Elia
quando o autor transcreve a seguinte passagem do livro de Doroszewski:
Vê-se em suma que a langue de Saussure não somente corresponde exatamente ao
fait social de Durkheim, mas ainda que essa língua [...] exterior ao indivíduo e
existente na consciência coletiva do grupo social, era de certa forma modelada pelas
représentations collectives de Durkheim (1933, p. 90 apud ELIA, 1987, 17-18).
Coseriu afirma que “Saussure apesar de o nome de Durkheim não aparecer sequer uma
vez no CLG [Curso de Lingüística Geral] aceitou e seguiu até nos detalhes e na fraseologia a
doutrina durkheimiana do fato social (1979, p. 37, grifo nosso). Ainda segundo Coseriu, Antoine
Meillet observa que o conceito saussuriano de ‘língua’ “corresponde exatamente à definição do fato
social dada por Durkheim
45
” (p. 38, grifo nosso).
Embora o lingüista romeno Eugenio Coseriu faça críticas quanto ao conceito de “fato
social” apresentado por Durkheim (p. 34-42), a questão que ora queremos colocar é que o autor
confirma em seu texto ter sido Saussure influenciado pelas idéias de Durkheim.
No capítulo 1 de seu livro, intitulado A concepção de língua como sistema em Saussure”,
subtítulo A dicotomia língua e fala: língua como fato social exterior ao indivíduo”, p. 45-49,
Lucchesi (2004) retoma a discussão apresentada acima citando Elia, Coseriu e Doroszewski.
A língua é, portanto, uma convenção social e a linguagem a sua expressão individual. Ou
seja, quando crianças, adquirimos a estrutura da língua por meio de sua fonética, morfologia,
sintaxe, semântica e começamos a “brincar” com esses recursos na (o posto), pela (o pressuposto) e
através (o subentendido)
46
da linguagem em seus diferentes usos contextuais, situacionais e
estilísticos.
44
DOROSZEWSKI, W. Durkheim et F. de Saussure. In: DELACROIX, et al. Psychologie du langage.Paris, Félix
Alcan, 1933.
45
MEILLET, Antoine. Linguistique historique et linguistique générale II. Paris, 1938, p. 72-73.
46
Os conceitos de posto, pressuposto e subentendido serão abordados adiante.
O mesmo parece acontecer com a linguagem do jeitinho. No início, internalizamos a
gramática da Língua Portuguesa através de nossa competência lingüística
47
. Paralelamente,
começamos a desenvolver nossa competência comunicativa
48
para que saibamos quando podemos
dizer o que queremos dizer sem que isso nos cause embaraços sociais.
É nesse campo fértil que a linguagem do jeitinho vai sutilmente incorporando-se à
construção de nossa identidade social, se impondo sem que consigamos perceber ou recusar, pois
nos é transmitida como parte de nossa herança sociolingüística, cultural, histórica, política e
ideológica
49
.
Nesse momento evolutivo de nossa aprendizagem lingüística, percebemos queNo Brasil,
pra tudo tem um jeitinho” e quenão tem solução pra morte: pro resto, a genteum jeitoou,
ainda, que “O importante é ser criativo”.
Ninguém nos ensina oficialmente esse tipo de linguagem. Não nos ensinam, por exemplo,
que usar o diminutivo ajuda a minimizar o impacto dos enunciados que usamos para dar um
jeitinho. É algo que simplesmente fazemos. Intuitivamente sabemos que a aplicação do sufixo
diminutivo a diversas palavras pode gerar efeitos que nos favoreçam, por exemplo: É um
instantinho. de volta num minutinho. (Dirigindo-se a um guarda de trânsito para estacionar o
carro em lugar proibido) e “É só um pontinho. Não dá pra dar um jeitinho?” (acadêmica pedindo a
seu professor para aumentar 1,0 ponto em sua nota para não ir para exame) entre outros que serão
analisados no Capítulo 4 – Análise e Interpretação dos Dados.
Como esclarece Moita Lopes (2003, p. 14), “a aprendizagem é um processo de co-
participação em uma comunidade de aprendizagem e não é o produto da mente do indivíduo
47
Conceito apresentado pelo lingüista Noam Chomsky em 1965 para designar o “conhecimento que o falante tem de
um conjunto de regras que lhe permite produzir e compreender um número infinito de sentenças, reconhecendo
aquelas que são bem formadas, de acordo com o sistema de regras da língua” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 71).
48
Conceito apresentado pelo sociolingüista Dell Hymes em 1966 que inclui “não as regras que presidem à
formação das sentenças, mas também as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala” (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 73).
49
Ideologia é aqui entendida como “todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que
tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas” (VOLOSHINOV,
1998, p. 107 apud BRAIT, 2005, p. 169).
isolado.” Dessa forma, a linguagem do jeitinho vai se desenvolvendo em nosso repertório
pragmático e sociolingüístico sem que tenhamos consciência desse fato. A ação exterior e coercitiva
da cultura do jeitinho brasileiro simplesmente se impõe em nossa maneira de falar
independentemente da variedade sociolingüística que usamos. O fenômeno, como a própria
linguagem, é praticamente imperceptível, natural e retro-alimentado pelo nosso comportamento
lingüístico e sociocultural até o momento que despertamos para esse fato ou que alguém nos chame
a atenção sobre sua ocorrência conforme observamos nos depoimentos de alguns informantes: “Mas
eu nunca tinha pensado sobre isso” e “Eu descobri que dava jeitinho e não sabia”.
Enunciados do tipo “Mas todo mundo faz assim” e Eu sei o que é jeitinho. Mas isso que
eu faço (declarar valor menor do que aquele pago na escritura de compra de um terreno para pagar
menos ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis), por exemplo) não é jeitinho. É praxe!
Todo mundo faz isso!, entre outros demonstram o caráter natural, espontâneo e imperceptível do
jeitinho e sua inevitável aquisição, imposição e exterioridade.
A linguagem típica do jeitinho, portanto, nos é transmitida pela cultura do jeitinho
brasileiro e internalizada por intermédio de nossas competências lingüística e comunicativa (social
ou sociolingüística). Por mais que recorramos a recursos “predominantemente individuais, como o
charme, a simpatia, a maneira de falar, etc” (BARBOSA, 1992, p. 77) embora, importante frisar,
tais recursos sejam um diferencial na concessão do jeitinho –, a maioria dos brasileiros faz isso
naturalmente. É um fenômeno universal no Brasil, como comentamos. “Jeito para pedir”,
teoricamente, todos nós temos, pois é uma herança lingüística e sociocultural, não é algo da
personalidade. Se fosse assim nem todos pediriam, pois nem todos teriam esse “charme” específico.
O recurso do jeitinho não é um recurso geneticamente herdado, unicamente meu ou seu: é
um recurso sociolingüisticamente adquirido, o que demonstra uma forte influência do social e do
cultural na linguagem do jeitinho. O que pode acontecer é a pessoa desenvolver um grau de
habilidade sociolingüística, pragmática, argumentativa ou enunciativa maior ou menor para a
utilização desse recurso lingüístico e sociocultural, que é o jeitinho. (Poderíamos dizer que quando
adquirimos
50
nossa língua materna, internalizamos também diferentes “tipos de linguagens”, por
exemplo as gírias, os socioletos
51
, a linguagem do jeitinho, entre outras?)
3.3 Uma Leitura Sociolingüística da Linguagem do Jeitinho
Assim, a língua não pode ser vista apenas como um sistema autônomo e abstrato, sem
levarmos em consideração os fatores sociais que estão implicados no uso desse sistema (CALVET, ,
p. 12, 168).
Calvet (p. 12) esclarece que“as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a
história de uma língua é a história de seus falantes”: histórias essas que se compõem de eventos
sociais, os quais se encadeiam em narrativas sem fim através das diferentes variedades lingüísticas
que se realizam. Dois conceitos são centrais nessa discussão: linguagem e sociedade, elementos-
chave para a Sociolingüística.
Hudson (1980, p. 1) define a Sociolingüística como o “estudo da linguagem em relação à
sociedade.” Para Trudgill (2000, p. 21), é a parte da Lingüística que se preocupa com a linguagem
como um fenômeno social e cultural.” Spolsky (1998, p. 3) descreve a Sociolingüística como sendo
“a área que estuda a relação entre linguagem e sociedade, entre os usos da linguagem e as estruturas
sociais nas quais os usuários dessa linguagem vivem.” O autor diz ainda que esse campo de estudo
“admite ser a sociedade humana formada por padrões e comportamentos relacionados, alguns dos
quais lingüísticos.”
Na definição de Filipack (2002, p. 13), a Sociolingüística é a “disciplina que estuda os
falares de grupos etnolingüísticos heterogêneos de variadas etnias, raças, povos de origens diversas
50
Adquirir (aprender a língua materna natural ou informalmente) aqui se contrapõe a aprender (estudar uma língua
estrangeira formalmente): teoria da Lingüística Aplicada apresentada por Stephen Krashen, lingüista americano, na
década de 1980.
51
Socioleto: “cada uma das variedades de uma língua usada pelos grupos de indivíduos que, tendo características
sociais em comum (p.ex., a profissão, os passatempos, a geração etc.), usam termos técnicos, ou gírias, ou fraseados
que os distinguem dos demais falantes na sua comunidade; dialeto social, variante diastrática” (HOUAISS, versão
online).
que coabitam dentro do âmbito de uma determinada língua nacional (...)” Embora essa não seja a
definição mais tradicional de todas, encontrarmos nela elementos e conceitos que sustentam os
estudos que ora realizamos e que, de alguma forma, representam a cidade de Foz do Iguaçu, a
comunidade de fala de nossa pesquisa.
Na Sociolingüística trabalhamos com a história, a cultura, o social, a língua, suas
variedades lingüísticas e demais aspectos que possam contribuir para a compreensão da língua(gem)
e do comportamento social que adotamos perante o mundo em uma determinada comunidade de
fala.
3.3.1 A Presença do Jeitinho nas Comunidades de Fala
Segundo Labov (1991, p. 248), uma comunidade de fala é composta por um grupo de
falantes que compartilham um grupo de atitudes sociais em relação à língua(gem) que usam. Assim,
o comportamento social influencia a língua que falamos, que por sua vez influencia a maneira como
nos comportamos na sociedade: uma instituição simplesmente inexiste sem a outra. Importante
ressaltar, entretanto, que “o social pode interferir no lingüístico, mas não determiná-lo”, conforme
esclarece Elia (1987, p. 146).
Dentro dessas comunidades lingüísticas
52
, as pessoas não se expressam exatamente da
mesma maneira; elas se comunicam usando variedades lingüísticas diferentes motivadas por fatores
diatópicos (geográficos), diastráticos (socioculturais) e diafásicos (estilísticos, situacionais)
53
54
no
geral e particularmente influenciadas por variáveis extralingüísticas ou socioculturais, tais como a
52
Comunidade lingüística: “conjunto de seres humanos que compartilham o mesmo espaço geográfico-social e o uso
de uma mesma língua ou variedade lingüística” (CALVET, 2002, p. 167). Gumperz (1994, p. 24) define comunidade
de fala como “um sistema de diversidade organizada unida por normas e aspirações comuns”, o que se assemelha ao
tipo de comunidade que temos em Foz do Iguaçu.
53
Segundo Elia (1987, p. 43), “a pluralidade de normas dentro da mesma comunidade lingüística são as variedades de
uma língua, classificadas pelo prof. Coseriu como diatópicas (diferenças espaciais), diastráticas (diferenciações
sociais) e diafásicas (particularidades estilísticas). Com exceção da última, que pertence ao prof. Coseriu, essas
distinções partiram de L. Flydal”.
54
Para Silvia Brandão (2005b, p. 7) “uma língua histórica, de cultura como a língua portuguesa -, é um diassistema
(conjunto de sistemas e subsistemas) que apresenta enorme complexidade.”
idade, o sexo, a etnia, a profissão, o grau de escolaridade, entre outros (PRETI, 1994, p. 26-29).
Esses fatores em conjunto ajudam a tornar a linguagem ainda mais complexa e interessante de ser
estudada, pois exige que façamos uma leitura genérica e particularizada, interligando suas diversas
facetas lingüísticas e socioculturais.
Para Elia (1987, p. 93-95), uma comunidade lingüística se caracteriza por apresentar dois
aspectos principais: um objetivo - um código verbal comum e um conjunto de falantes; e um
subjetivo - a atitude solidária entre os falantes em relação ao código lingüístico do qual se utilizam.
A solidariedade lingüística e social entre os falantes da Língua Portuguesa tem sua
representatividade garantida nos atos, gestos e expressões presentes na cultura do jeitinho brasileiro.
Barbosa (1992, p. 43) afirma que a ênfase da nossa “sociedade é colocada nas relações que se
estabelecem entre as pessoas, mais do que em qualquer outra.” Esse tipo de comportamento,
continua a autora, “torna o Brasil um país em que todos querem ser pessoas e não indivíduos
55
.” A
linguagem do jeitinho reconhece no outro essa “necessidade” de “ajudar para ser ajudado”. Assim, o
enunciado Vou quebrar seu galho hoje, porque amanhã eu posso precisar é um exemplo de
solidariedade, ainda que seja uma solidariedade interesseira e egocêntrica.
À solidariedade acaba se somando a figura do homem cordial, apresentada por Holanda
(2005, p. 146-151). O próprio autor, entretanto, sugere que “seria engano supor que essa virtude
possa significar ‘boas maneiras’, civilidade. É antes de tudo uma expressão legítima de fundo
emotivo” e ritualística. Talvez possamos deduzir que essa cordialidade não passa de uma encenação
para conseguirmos atingir nossos objetivos, sejam eles honestos ou não.
Nessa área, a linguagem do jeitinho é um recurso lingüístico e sociocultural
imprescindível, pois permite que passemos de indivíduo (a categoria do que é impessoal) à pessoa
(a categoria do que é pessoal), caso seja necessário, em nossas interações sociais.
3.3.2 Línguas em Contato na Linguagem do Jeitinho
55
De acordo com DaMatta (2004, p. 17), em casa, a pessoa tem ‘rosto’ e alma, é alguém conhecido, enquanto que na
rua, o indivíduo possui apenas ‘cara’ e corpo, é mais um na multidão.
Entre os variados fenômenos sociolingüísticos existentes na comunidade lingüística de
Foz do Iguaçu, encontramos exemplos diários de alternância ou mudança de código (code
switching). Calvet (2002, p. 167) define alternância de código como uma “mudança de língua ou de
variedade lingüística por parte do falante segundo o contexto de interação social em que ele estiver
envolvido.” A situação a seguir é um exemplo desse fenômeno e faz parte de nosso banco de dados:
Contexto sociolingüístico: em uma agência de viagens em Foz do Iguaçu, um cliente paraguaio
conversa com uma atendente brasileira. Depois de pedir insistentemente à atendente para
conseguir-lhe uma vaga em vôo já lotado, o cliente produz o enunciado abaixo.
¿No puede dar um jeito, señorita?”
Até aquele momento, o cliente, que falava apenas em espanhol, resolve recorrer à
expressãodar um jeitoem português. A partir daí, o cliente começa a alternar seu espanhol com
palavras, frases e expressões em português.
Esse seria um típico exemplo de alternância de código e línguas em contato, em que o
locutor, cuja língua materna é o espanhol, apela para uma expressão (dar um jeito) de uma outra
língua, no caso, a Língua Portuguesa.
De acordo com Dittmar (1976, p. 117-119), “a interferência mútua de duas línguas em
contato é determinada por fatores (1) lingüísticos e (2) não-lingüísticos.” O primeiro refere-se a
diferenças e similaridades dos sistemas fonológicos, gramaticais e lexicais das duas línguas. No
segundo, os fatores mais importantes que determinam o tipo e o grau de alternância são:
1. o papel do cenário sociocultural;
2. as funções da linguagem em grupos bilíngües;
3. a congruência das divisões lingüísticas e socioculturais;
4. a língua padrão como um símbolo de lealdade à língua nacional;
5. a duração do contato entre as línguas;
6. a cristalização de novas línguas;
7. a mudança de língua.
(DITTMAR, 1976, p. 118-119)
Segundo o autor (p. 118), o papel do cenário sociocultural engloba fatores tais como
importância da língua, função na mobilidade social, valores culturais que tornam uma das línguas
do falante bilíngüe a língua dominante. O tipo de ambiente - social, econômico ou cultural – em que
o falante se encontra também é uma questão relevante, pois pode determinar a predominância de
uma ou de outra língua de acordo com as situações específicas de fala.
No exemplo acima, o interlocutor paraguaio talvez tenha pensado que, por estar naquele
ambiente e contexto sociocultural específicos, pedir para dar um jeito”, expressão típica da Língua
Portuguesa - e dominante naquele exato momento da interação - com toda sua carga ideológica,
poderia “abrir as portas” do “mercado lingüístico” e ajudá-lo a conseguir seu objetivo.
O uso da expressão acima, como um primeiro recurso para iniciar o processo de
alternância de código, encontra respaldo em Calvet (2002, p. 36) quando o autor “distingue três
tipos de interferência: as fônicas, as sintáticas e as lexicais.” Para Calvet, “a interferência lexical é
mais freqüente quando as duas línguas não organizam do mesmo modo a experiência vivida,” o que
parece ser o caso em relação à expressão dar um jeito”, que não existe em espanhol e é a
representante-mor da cultura do jeitinho brasileiro do lado de cá da fronteira com o Paraguai.
As palavras de Trudgill nos ajudam a corroborar essa argumentação quando diz que
os falantes não são autômatos sociolingüisticamente falando. Eles simplesmente não
respondem automaticamente às situações. Eles também podem usar a mudança de
código em benefício próprio: por exemplo, para manipular ou influenciar ou definir
a situação à sua maneira e para expressar nuanças de significado e intenção pessoal
(TRUDGILL, 2000, p. 105).
Tal concepção pode ser ainda reforçada pelo que diz Borstel (2002, p.221) quando afirma
que “a relação com alternância de código na fala do adulto pode ser observada quando as interações
comunicativas se dão na intenção de compartilhar acontecimentos culturais e sociais.”
Um outro fenômeno sociolingüístico encontrado na comunidade de Foz em relação ao uso
da linguagem do jeitinho brasileiro é o de mistura de língua ou código (code mixing). De vez em
quando é possível ouvir um interlocutor estrangeiro e morador de Foz falar a sua língua materna e
utilizar, no meio de seu discurso, palavras ou expressões em português para pedir um jeitinho.
Borstel (2002, p.222) esclarece que “a mistura de língua pode envolver a inserção de um
simples elemento, ou de um item parcial, ou frase inteira de uma língua para o modo de falar de
outra.” A autora afirma ainda que esse fenômeno pode ocorrer por várias razões, dentre as quais
citamos três delas:
1. quando o termo foi adquirido em uma língua, e transfere-se automaticamente para
a outra;
2. quando não se encontra um termo temporário disponível, praticamente
recorremos a uma forma equivalente em outra língua;
3. se um termo é mais complexo ou menos saliente em uma língua, faz-se uso
correspondente de uma ou outra língua.
(BORSTEL, 2002, p.222)
Assim, o enunciado Aí, brother, quebru galhu, vai?” seria um exemplo de mistura de
língua. Neste caso, o interlocutor faz uso de uma palavra em inglês para pedir um jeitinho.
Seria esse exemplo de mistura de língua um simples resultado da globalização na qual
estamos mergulhados e nem percebemos (PAIS, 2003, p. 172-173) ou uma referência consciente ao
léxico de uma língua considerada dominante no mundo moderno?
Nas múltiplas relações sociais de nosso cotidiano surgem ainda, segundo Blom e
Gumperz (2002, p. 45), Fishman (1974, p. 31), Gumperz (1994, p. 60) e Schiffrin (2002, p. 312),
sutis alternâncias de código - do falar padrão para o falar não-padrão e vice versa e que são
carregadas de significado social. Os autores estabelecem uma distinção importante entre (i)
alternância situacional, em que a troca de códigos redefine a situação social em curso, e (ii)
alternância metafórica, na qual a troca de códigos enriquece a situação em curso, permitindo assim
alusões a mais de uma relação social dentro da mesma situação.
No diálogo abaixo entre uma acadêmica e seu professor, podemos observar um exemplo
de alternância situacional:
Contexto sociolingüístico: acadêmica pede discretamente a seu professor, em tom suave e
“meloso”, meio ponto para não ir para exame final.
Acadêmica: Prof, alivia aí, vai? (pedindo ao professor que aumente sua nota)
Professor: Como assim “alivia aí, prof”?O que você quer dizer com isso?
Acadêmica: Quero dizer, o senhor não pode aumentar minha nota pra eu não ter que ir pra
exame?
A acadêmica percebe, ou é “convidada” a perceber pelo professor, que o tipo de linguagem
usada no início de sua fala não foi apropriado para o contexto-situacional e o interlocutor (um
professor universitário) com o qual interagia e imediatamente procura adequar sua maneira de falar
utilizando-se de uma variedade mais formal e apropriada à situação vivenciada naquele momento.
Um exemplo de alternância metafórica pode ser visto na seguinte interação:
Contexto sociolingüístico: após avaliação de bimestre, acadêmica pede a seu professor que lhe
dê uma outra prova, pois havia tirado uma nota muito baixa.
Acadêmica: Professor, o senhor viu a minha nota?Foi muito baixa (0,5 meio ponto). Eu não
estava bem no dia. Tinha me aborrecido em sala de aula antes da sua prova. Vamos fazer assim:
o senhor anula a minha prova e me dá outra.
Professor: Mas eu não posso fazer isso. Se fizer, teria que dar a mesma chance para todos
aqueles que também tiraram nota baixa.
Acadêmica: Mas eu não tenho nada a ver com os outros. Não são eles que pagam a minha
faculdade.
Professor: Sinto muito, mas EU devo satisfação aos outros acadêmicos. Além disso, se você não
estava bem no dia, não deveria ter feito a prova. Poderia ter deixado para fazer chamada.
Agora, não tem como anular.
Acadêmica: Ah, tio ... qualé? Quebru o galhu, vai? Afinal, nós somu tudo (sic) sanguibão. E se eu
fosse carioca, o senhor ajudaria?
Professor: Sinto muito, mas não posso fazer nada.
Acadêmica: Puxa vida, prof! Não custa nada. Ninguém precisa saber disso....
No meio da interação, a acadêmica tenta “enriquecer” seu pedido apelando para o que ela
entende ser uma maneira típica de falar do carioca nas suas versões diatópica pois o professor é
carioca, embora ela não seja –, e diastrática o uso de um discurso coloquial, o que talvez lhe
permitisse ter uma relação social mais descontraída e amigável na situação e no contexto em que se
encontrava, conseguindo assim, em sua visão, convencer o professor a dar-lhe uma outra prova.
Suposição confirmada posteriormente pelo professor que perguntou à acadêmica porque havia
falado daquele jeito.
Neste exemplo, a representação do jeitinho não deve ser vista por um único enunciado,
mas sim pela enunciação como um todo, pois a acadêmica utilizou-se do início ao fim da conversa
de diferentes estratégias para tentar invalidar a prova que tinha feito e realizar uma outra, na qual
teria a chance de melhorar sua nota.
3.3.3 O Papel da Atitude Lingüística
No exemplo do informante paraguaio e no da acadêmica, a questão da mudança de atitude
lingüística dos falantes em relação a seus interlocutores tem um papel importante na interação
social.
De acordo com Lambert (1967 apud DITTMAR, 1976, p. 181), “as atitudes são formadas
por três componentes: o cognitivo (conhecimento), o afetivo (avaliação) e o conativo (ação).”
Rokeach (1968 apud DITTMAR, 1976, p. 181), entretanto, “sustenta que as atitudes são compostas
basicamente de crenças, das quais os tipos de atitudes cognitiva, afetiva e comportamental podem
ser então formadas.” Por outro lado, a definição de Osgood (1957 apud DITTMAR, 1976, p. 181)
apresenta apenas um componente: o afetivo.
Se compararmos as definições acima, verificamos que o componente “afetivo” se encontra
presente em todas elas. Portanto, ao que tudo indica, a variedade lingüística com toda sua carga
fonológica, sintática, semântica e pragmática - que usamos nos momentos em que nos encontramos
emocionalmente envolvidos, ou “afetados”, parece tender para o vernáculo que usamos em nosso
dia-a-dia em momentos de descontração pessoal e familiar, por exemplo, quando expressamos
aquilo que realmente somos e o que fazemos de nossa vida.
Algumas pessoas, entretanto, buscam apoio na cognição para sustentar suas atitudes e,
como no exemplo da acadêmica, vão da mais íntima informalidade à mais pura formalidade em
questão de segundos quando percebem que a inadequação de suas falas podem ter um efeito
contrário ao que desejam, o que seria ter o seu pedido de jeitinho rejeitado. Outras fazem o caminho
inverso: começam com um formalismo exagerado e percebendo o quão deslocado ou inapropriado
são seus enunciados para o contexto, mudam rapidamente o registro ou a forma de falar.
Nesse caso, podemos argumentar que os três componentes atitudinais citados por Lambert
– o cognitivo, o afetivo e o conativo – atuam conjuntamente na mudança de atitude do falante.
Conforme Barbosa (1992, p. 38-39), entre os diversos fatores que influenciam a cultura do
jeitinho brasileiro
a maneira de pedir o jeito’ é considerada o elemento fundamental para a sua
concessão. Tem que ser simpática, cordial, mostrar necessidade ou até mesmo
humildade, mas jamais arrogância ou autoritarismo. Tudo pode ser posto a perder se
a maneira de falar se mostra impositiva ou grosseira. Eu até faria se ele tivesse
pedido de outra maneira é uma forma comum de justificativa para se negar um
jeitinho a alguém (grifo da autora).
No enunciado Ah, prof aceita a minha resposta desse jeito, vai...vai... ah, vai prof!”,
temos uma situação em que uma acadêmica “sugere” a seu professor que considere respostas
parcialmente erradas como totalmente certas para aumentar sua nota. Esse seria um exemplo de
argumentação usando a sedução que, segundo Breton (2003, p. 9), é um tipo de atitude
freqüentemente usada para levar o interlocutor a partilhar determinado ponto de vista.
Dentro da taxonomia da linguagem do jeitinho que propomos no Capítulo 4, seção 4.3, o
jeitinho muitas vezes se confunde e soa tão natural quanto à própria língua que o falante nativo fala
e pouco ou nada percebe sobre a realidade desse fenômeno.
Uma de nossas entrevistadas ficou surpresa ao “conhecer” ou ser “apresentada
oficialmente” ao fenômeno e “reconhecer” posteriormente que agia assim em seu dia-a-dia de forma
totalmente inconsciente e involuntária. Não pra evitar. Quando você percebe.... deu um
jeitinho”, dizia ela.
3.3.4 Reforçando o Jeitinho com o uso da Competência Comunicativa
Atitudes lingüísticas podem ser tomadas consciente ou inconscientemente de acordo com
o contexto porque, em conjunto com um sistema de gramática da língua, a criança adquire também
um ‘sistema de uso’, no qual reside sua habilidade para participar na sociedade não apenas como
um falante, mas também como um membro comunicante (HYMES, 1977, p. 75).
Essa habilidade, ou talvez flexibilidade sociolingüística, que possuímos em adequar nossa
fala às situações e significações sociais com as quais lidamos em determinados momentos é o que
Dell Hymes chamou de “competência comunicativa” em 1964 (JOSEPH, 2000, p. 72). O autor
esclarece que,
em vez de considerar a linguagem como expressão de uma comunidade, insiste na
linguagem como ação situada no fluxo dos fatos da palavra. Assim, (para ele) a
sociolingüística se constitui como: a) o estudo dos fatos comunicativos e das
relações que eles mantêm entre si; e b) o estudo do próprio processo de socialização
como aquisição e uso de uma competência comunicativa numa dada situação
(Joseph, 2000, p. 72).
Hymes
56
explica que “a criança adquire um conhecimento das frases não apenas como
gramaticais, mas também como sendo ou não apropriadas.” Nesse ponto, observamos que a teoria
de Chomsky
57
não se aplicaria aos exemplos apresentados, pois se assim acontecesse, usaríamos
sempre o mesmo tipo de enunciado (“Você pode dar um jeito?”) em todos os contextos dos quais
participamos para a concessão do jeitinho, independente do lugar, contexto, situação e
interlocutores.
A competência comunicativa, portanto, põe de lado a estrutura da linguagem vista como
uma simples replicação da uniformidade e passa a descrevê-la (ou entendê-la) como a organização
da diversidade que existe nessa linguagem. Desse modo, a Sociolingüística Qualitativa ou
56
Hymes, Dell. Vers la compétence de communication. Hatier, 1984, p. 74.
57
Para Chomsky, “o objeto primordial da teoria lingüística é um locutor-ouvinte ideal, pertencente a uma comunidade
lingüística completamente homogênea, que conhece perfeitamente sua ngua e que, quando aplica a uma
performance efetiva o seu conhecimento da língua, não se deixa afetar por condições gramaticalmente não-
pertinentes, tais como as limitações da memória, distrações, mudanças de interesse ou de atenção, erros”
(CHOMSKY, Noam Aspects of the theory of syntax. 1971).
Interacional pode estudar essa diversidade dos atos de palavra, das diferentes maneiras de dizer e
dos variados modos de enunciação segundo as significações sociais resultante das intenções de seus
interlocutores, tais como respeito, ironia, insolência, humor, etc. (JOSEPH, 2000, p. 73-74).
Assim, poderíamos especular que a competência comunicativa capacitaria os falantes
brasileiros a darem um jeito de adequar diferentes palavras e enunciados ao pedido de um jeitinho,
indo desse modo muito além das palavras-chave do jeitinho
58
, se assim pudermos nos referir a
elas.
Essa capacidade de adequação do que dizemos ao contexto do qual participamos, no
entanto, parece ser socialmente determinada. No exemplo em que a acadêmica pede a seu professor
para aumentar-lhe a nota, a escolha inicial por um estilo lingüístico (ou variedade diafásica)
informal (“Prof, alivia aí, vai?”) acabou mostrando-se inadequada. O que vimos é que a utilização
de um estilo mais formal foi praticamente imposto à acadêmica pelo contexto social.
Ou seja, para que uma interação seja fluída e socialmente adequada, o falante não tem
opção a não ser usar determinada forma ou determinado estilo imposto pelo meio social. Não é o
falante quem escolhe que forma ou estilo usar e sim o meio que lhe impõe a forma e o estilo que
serão usados. É como se o contexto social “não aceitasse” uma forma diferente daquela que deve ser
usada.
Dessa maneira, nós não decidimos que forma ou estilo de linguagem do jeitinho usar.
Quem toma essa decisão é o meio social onde nos encontramos no momento de nossa enunciação. É
o meio social que impõe as regras lingüísticas e sociais que precisam ser aplicadas.
Conforme afirmam Mollica e Braga (2003, p. 15) “o falante sabe que variável, estilo,
variação estilística usar (no momento da interação social) por causa de sua competência
comunicativa”, mas quem determinada essa escolha é o contexto social e a situação na qual ele se
encontra.
58
Usamos a expressão palavras-chave do jeitinho para nos referirmos ao uso de palavras e expressões que indiquem
explicitamente esse tipo de fenômeno. Por exemplo, “Você pode dar um jeito?”, “Não tem como dar um jeitinho?”,
“Ah, dá um jeitinho aí, vai?”, entre outras, ao invés de palavras e expressões cuja significação e intenção de jeitinho
só possam ser inferidos pelo contexto.
A argumentação que apresentamos parece ser confirmada pelo conceito de contínuo de
monitoração estilística proposto por Bortoni-Ricardo (2004, p. 62-63). Segundo a autora, nesse
contínuo situamos “desde as interações totalmente espontâneas (estilos não-monitorados) até
aquelas que são previamente planejadas e que exigem muita atenção (estilos monitorados) do
falante” conforme representação a seguir, sugerida pela autora:
FIGURA 7 – Contínuo de Monitoração Estilística
- monitoração + monitoração
FONTE: BORTONI-RICARDO (2004, p. 62-63)
De acordo com a autora
nós nos engajamos em estilos monitorados quando a situação assim exige, seja
porque nosso interlocutor é poderoso ou tem ascendência sobre nós, seja porque
precisamos causar uma boa impressão ou ainda porque o assunto requer um
tratamento muito cerimonioso. De modo geral, os fatores que nos levam a monitorar
o estilo são: o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa (ibid, p. 62-63).
Bortoni-Ricardo (ibid., p. 62-63) observa ainda que essa variação de estilo “tem a função
importante de situar a interação dentro de uma moldura ou enquadre
59
.” Acrescenta que “as
molduras servem para orientar os interagentes sobre a natureza da interação: se é uma ‘brincadeira’,
‘queixa’, ‘crítica’, ‘pedido de ajuda’” (grifo nosso) ou a concessão de um jeitinho. Para Martins
(2002, p. 95), esses contextos são expressos nos enquadres tanto pela “situação” em que se
encontram os interlocutores quanto pelo “conhecimento de mundo” que eles trazem.
Segundo Ribeiro e Garcez (2002, p. 107), o conceito de enquadre, introduzido por
Gregory Bateson e desenvolvido por Erving Goffman, é “fundamental para a compreensão do
discurso oral e análise da interação.” Os autores explicam que o enquadre “situa a metamensagem
contida em todo enunciado, sinalizando o que dizemos ou fazemos, ou como interpretamos o que é
59
Enquadre relaciona-se ao que dizemos, a como intencionamos dizê-lo, a como construímos atos lingüísticos ou não
lingüísticos em conjunto com os interlocutores (GOFFMAN, 2002, p. 107)
dito e feito.” Esclarecem ainda que, para Goffman, “em qualquer encontro face a face, os
participantes estão permanentemente propondo ou mantendo enquadres, que organizam o discurso e
os orientam com relação à situação interacional.”
Se os enquadres servem para orientar-nos sobre qual estilo é adequado em um
determinado momento, podemos argumentar que quem define o estilo a ser usado é a natureza da
interação em si; nós simplesmente seguimos sua orientação. Mas isso ocorre se tivermos
competência comunicativa na língua materna para “ler” e “interpretar” os quadros que surgem a
cada momento na interação. Um estrangeiro, por exemplo, que não tenha essa competência na
língua em questão, teria dificuldades em adequar o estilo de sua fala - ou simplesmente não
conseguiria fazê-lo preferindo então usar um estilo neutro a cometer erros lingüísticos ou gafes
sociais.
Durante a pesquisa de campo, observamos que o uso inadequado de estrutura e estilo na
linguagem do jeitinho pode servir como um fator impeditivo para o falante conseguir que o jeitinho
seja dado. Essa inadequação pode inclusive ser vista como arrogante por parte do interlocutor que
não entende, por exemplo, porque uma pessoa “culta” (no caso, letrada, instruída) precisa “falar
difícil” (usar uma variedade diastrática e diafásica rebuscada e inapropriada) e humilhá-la para
conseguir que o jeitinho seja concedido (p. ex. um advogado interagindo com um funcionário
público com escolaridade de nível fundamental).
Observamos que a situação contrária também pode ocorrer, ou seja, um falante com pouca
escolaridade ou analfabeto acaba sofrendo preconceito quando tenta pedir um jeitinho em uma
interação com um interlocutor que apresenta nível universitário, e se considera, por isso, “superior”
lingüisticamente em relação a seu locutor pelo fato daquele não conseguir adequar seu estilo de fala
ao nível desejado (exigido?) pelo interlocutor.
Verificamos que além da adequação, podemos também recorrer, segundo Bortoni-Ricardo
(2004, p. 74), à questão de viabilidade, que Dell Hymes incluiu no conceito de competência
comunicativa. O autor associa viabilidade a fenômenos sensoriais e cognitivos, enquanto Bortoni-
Ricardo prefere associá-lo à noção de recursos comunicativos, tais como gramaticais, lexicais,
argumentativos, etc., com o qual concordamos plenamente. Nas situações citadas acima (advogada e
universitária), por exemplo, havia uma lacuna enorme entre os recursos comunicativos dos
interlocutores, o que, de certa forma, dificultava a adequação das falas por ter sido “usado”
impropriamente por uma das partes.
3.3.5 A Importância das Pistas Contextuais
A discussão levantada anteriormente suscita uma questão importante: “Como as pessoas
avaliam em que contexto se encontram? A quais características do contexto prestam atenção?”
(ERICKSON; SHULTZ, 2002, p. 217).
Ora, um contexto, conforme definem Erickson e Shultz (2002, p. 217), não se caracteriza
apenas pelo ambiente físico ou pela combinação de pessoas presentes. A idéia de contexto vai além
disso e “se constitui pelo que as pessoas estão fazendo a cada instante e por onde e quando elas
fazem o que fazem” (ibid., grifo dos autores). Esses “instantes” acumulam-se ao longo dos anos
construindo assim a história de vida das pessoas. Nesse sentido, Schiffrin (1994, p. 378 apud
MARTINS, 2002, p. 91) afirma ser o contexto uma combinação de “situação” com “conhecimento
de mundo”, da acumulação desses “instantes” em nosso processo cognitivo-interacional.
Erickson e Shultz (2002, p. 217) esclarecem que “a cada mudança de contexto, a relação
entre os papéis dos participantes é redistribuída, produzindo diversas configurações da ação
conjunta”, que podem ser chamadas de estruturas de participação. Tais estruturas envolvem modos
e estilos de falar, ouvir, de obter e manter o turno na conversação, de permanecer ou mudar de
estilo, de conduzir e ser conduzido (p. 218).
Essas mudanças são acompanhadas de sinais específicos, convencionados culturalmente,
denominados de pistas contextuais ou metamensagem. Segundo Martins (2002, p. 96), as pistas
contextuais “constituem qualquer marca lingüística, paralingüística e não-verbal que contribua para
a sinalização de pressuposições contextuais.” Para Gumperz (1994, p. 131) a suposição básica é que
a canalização da interpretação é efetivada através de implicaturas conversacionais
com base em expectativas de co-ocorrência entre o conteúdo e o estilo aparente. Ou
seja, grupos de sinais aparentes na maneira como a mensagem é transmitida são
meios através dos quais os falantes sinalizam e os ouvintes interpretam que tipo de
evento [de fala] está acontecendo, como o seu conteúdo semântico deve ser
entendido e como cada frase se relaciona com frases anteriores ou posteriores.
Referimo-nos a esses sinais como pistas contextuais. [...] Em resumo, uma pista
contextual é qualquer traço de forma lingüística que contribui para sinalizar as
pressuposições contextuais. Tais pistas [...] podem ser representadas por processos
de alternância de estilos, fenômenos prosódicos, a escolha do léxico ou da sintaxe,
frases prontas, aberturas ou fechamentos conversacionais, entre outros que
apresentem funções similares de contextualização.
Bortoni-Ricardo (2004, p. 63) argumenta que durante uma conversa “quando vamos
mudar de estilo, passamos metamensagem ou pistas, que podem ser verbais ou não-verbais e que
transmitem informações do tipo: ‘isso é uma brincadeira’, ‘estou falando sério’”, ou, em relação ao
nosso tema de pesquisa, ‘estou pedindo pra você dar um jeitinho’, etc. E como a mudança de estilo
é prática comum em nosso cotidiano, uma conversa não deve ser vista como um evento coeso, e sim
como uma sucessão de atividades contextualizadas – ou “enquadradas”. (MATINS, 2002, p. 96)
Para que os interlocutores possam avançar na negociação lingüística da qual participam
na concessão de um jeitinho, por exemplo - é importante que ambos saibam identificar e reconhecer
as pistas contextuais (de natureza sociolingüística) que permitem aos dois lados interpretar
corretamente o valor social das diferentes estruturas de participação que se apresentam a cada
instante. Nesse sentido, Gumperz (1994, p. 133) esclarece que os “lingüistas concluíram que uma
grande parcela da linguagem natural é pronta, automática e ensaiada, ao invés de ser proposital,
criativa ou gerada livremente.” O autor coloca ainda que “frases prontas refletem estratégias
conversacionais indiretas que favorecem condições para o estabelecimento de contato pessoal e
negociação de interpretações compartilhadas.”
Para Gumperz (apud MARTINS, 2002, p. 101-102), “o significado social é negociado a
partir do relevo dado, pelos participantes, a aspectos presentes no evento.” Assim, “as pistas de
contextualização não determinam o significado, e sim limitam a interpretação, destacando alguns
aspectos do conhecimento de mundo e minimizando outros.”
Esse fato demonstra a necessidade dos interlocutores terem suas competências sociais bem
trabalhadas e desenvolvidas para que o ato sociolingüístico do qual participam possa fluir e
acontecer de forma harmoniosa.
Observamos exemplos nos quais os locutores enviavam pistas lingüísticas verbais e não-
verbais a seus interlocutores em uma tentativa clara de avaliar a possibilidade de pedirem ou não um
jeitinho. Era como se estivessem sondando o campo lingüístico e social da interação, “jogando
verde para colher maduro”, na esperança de pedir e conseguir que o jeitinho fosse dado.
3.4 Enunciados e Significações Sociais da Linguagem do Jeitinho
Uma compreensão dos conceitos de pistas contextuais, competência comunicativa, atitude
lingüística e línguas em contato serve como embasamento teórico para que possamos ampliar nossa
visão e discorrer sobre a presença da linguagem do jeitinho na comunidade lingüística de Foz do
Iguaçu.
Até aqui, abordamos alguns aspectos dos estudos sociolingüísticos que nos ajudam a
perceber e compreender as diferentes formas de manifestação da linguagem do jeitinho. A partir
deste ponto, apresentaremos um estudo interdisciplinar usando teorias lingüísticas e sociológicas
com o objetivo de fundamentar o estudo dos diferentes significados sociais envolvidos nas
enunciações coletadas.
3.4.1 O Porquê da Interpretação dos Enunciados
Em seu livro Sociolinguistic Patterns”, Labov (1991, p. 207), referindo-se à questão da
metodologia, nos ensina que “a pergunta sociolingüística fundamental (de quem trabalha com
pesquisa em uma comunidade de fala) é formulada pela necessidade de entendermos porque alguém
diz alguma coisa (grifo nosso). O autor diz que “uma análise mais atenta das suposições e dos
resultados da metodologia aplicada muito nos dirá sobre a natureza do discurso e as funções da
linguagem (p. 207, tradução nossa).
O esclarecimento apresentado por Labov sustenta a necessidade de complementarmos o
estudo da competência lingüística e comunicativa feito no item anterior, buscando compreender
agora o que os falantes querem realmente dizer quando dizem o que dizem. O que há por trás de um
enunciado do tipo Aqui não tem problema. Todos fazem assim”, tão comum na linguagem do
jeitinho em Foz do Iguaçu? Mesmo sem conter as palavras jeito e jeitinho, tal enunciado ainda
assim se configura como um jeitinho e é usado nesse sentido.
A questão parece ser realmente complexa, pois o próprio Labov afirma que:
as regras de interação contêm um construto social de “conhecimento
compartilhado”, o qual normalmente não faz parte de uma regra lingüística (a
estrutura da língua). Esta é apenas uma das muitas regras (shared knowledge) de
interpretação que relacionam “o que é dito” – as perguntas, as frases, os imperativos
ao “que é feito” as solicitações, as recusas, as asserções, as negações, os
insultos, os desafios. Não relações do tipo um a um simples entre as ações e os
enunciados; as regras de interpretação são extremamente complexas (LABOV,
1991, p. 254).
Uma vez que as regras de interpretação são complexas em sua natureza de interação,
apresentaremos abaixo um esboço de discussão sobre alguns princípios teóricos que nos ajudarão na
tarefa de compreensão, e posteriormente análise, das diferentes significações sociais que se
“escondem” por trás de enunciados da linguagem do jeitinho extraídos do corpus coletado para a
pesquisa.
3.4.2 A Pragmática do Jeitinho Brasileiro
De acordo com Marcondes
60
(2005, p. 10), a Pragmática “diz respeito à linguagem em
uso em diferentes contextos, tal como utilizada por seus usuários para a comunicação.” Assim,
acrescenta o autor, essa ciência é “o domínio da variação e da heterogeneidade devido à diversidade
60
Nesta subseção, utilizamos o livro de Marcondes (2005) como nossa principal fonte. Portanto, o que dissermos
sobre Wittgenstein, Austin, Searle e Grice está fundamentado na leitura desse texto.
do uso e à multiplicidade de contextos” (grifo nosso).
Uma vez que a Pragmática consiste em uma experiência direta e concreta da linguagem
nos diversos fenômenos lingüísticos com os quais efetivamente lidamos em nosso cotidiano, essa
abordagem nos remete também aos conceitos da Sociolingüística quando estudamos as diferentes
variedades lingüísticas (diatópicas, diastráticas e diafásicas) e seu caráter heterogêneo em uma
comunidade como Foz do Iguaçu, onde a heterogeneidade lingüística se encontra presente em todo a
sua extensão.
Marcondes (2005, p. 11) afirma que existem duas linhas de desenvolvimento da
pragmática na filosofia da linguagem. Uma delas se considera uma extensão da Semântica, tratando
especificamente da dêixis ou das expressões indiciais. Para que tenham significado, tais expressões
dependem diretamente do contexto, sem o qual não tem sua referência explicitada. Por exemplo,
Alivia aí, prof!
61
não faz o menor sentido sem que todas as palavras no enunciado estejam
devidamente contextualizadas e as pessoas envolvidas saibam do que se está falando.
A outra linha consiste em considerar o significado como determinado pelo uso. Nessa
abordagem, a linguagem é vista como uma forma de ação e não de descrição do real, sendo
representada por Wittgenstein e sua concepção de significado como “uso”, e por Austin mediante
sua Teoria dos Atos de Fala. (MARCONDES, 2005, p. 12)
Ludwig Wittgenstein (1889–1951), filósofo austríaco, “considera o significado de uma
palavra como o seu uso em um determinado contexto.” (ibid., p. 12) Ou seja, o significado de uma
determinada palavra pode ser compreendido, ou inferido, quando analisamos o contexto em que
esta se encontra. Nessa perspectiva, as palavras não são utilizadas essencialmente para descrever a
realidade que se apresenta. Ela serve, no entanto, para realizar algum objetivo específico como pedir
uma informação, cumprimentar, dar uma ordem, fazer um pedido, etc. Isso indica que a mesma
palavra pode se apresentar em diferentes contextos com significados, muitas vezes, totalmente
díspares. Por exemplo, o enunciado Quebra o galho, vai?”, dependendo do contexto em que se
61
Este enunciado foi mencionado anteriormente e refere-se a uma acadêmica que solicita a seu professor que aumente
sua nota para não ficar para exame no final do semestre.
encontre pode significar algo do tipo: “Tem um galho na trilha onde estou, no meio do mato, que
me impede de ir adiante e eu estou impossibilitado de tocá-lo, pois estou com as mãos ocupadas.
Portanto, quebra (logo) esse galho, vai?”. Ou ainda Eu estava distraído e não percebi que o sinal
tinha fechado. Sei que avancei o sinal vermelho, mas quebra o galho (aí), vai seu guarda? Me
libera da multa? Eu prometo que não faço isso de novo.” Comportamento e linguagem típicos da
cultura do jeitinho brasileiro.
Wittgenstein caracteriza “esses diferentes contextos de uso com seus objetivos específicos
como ‘jogos de linguagem’” (MARCONDES, 2005, p. 13), que, na realidade, são os processos de
comunicação e interação no qual estão envolvidos os interlocutores com o objetivo de
compreenderem a mensagem veiculada. Esses jogos apresentam regras que podem ser mais ou
menos explícitas, mais ou menos formais, definindo o que é ou não válido e que tornam, assim,
possíveis os atos lingüísticos realizáveis por parte daqueles que desse jogo participam.
Analisada por esse viés lingüístico, a linguagem do jeitinho se encaixa nos conceitos de
significado e jogos de linguagem propostos por Wittgenstein, pois nela o que importa são as
funções que as palavras podem exercer nos jogos de linguagem dos quais os interlocutores
participam com o objetivo de fazer um pedido, conseguir algo, engambelar, enganar, persuadir,
controlar, dar uma ordem, confundir, desviar a atenção, trocar “favores”, etc.
Para John Langshaw Austin (1911 1960), filósofo inglês, o ato de fala é “considerado
como a unidade básica de significação, constituída por três dimensões integradas ou articuladas”
(MARCONDES, 2005, p. 18): o ato locucionário (o ato de dizer alguma coisa), o ato ilocucionário
(o que realmente objetivamos dizer com nossa fala; nossas reais intenções por trás de nossa fala;
aquilo que estamos tentando fazer com nossa fala) e o ato perlocucionário (o efeito em nossos
interlocutores daquilo que dizemos). Segundo Trask (2004, p. 42), o termo ato de fala, atualmente,
“é usado para denotar especificamente um ato ilocucionário e o efeito de um ato de fala é sua força
ilocucionária.”
Austin descreve as condições pressupostas para a realização dos atos de fala como sendo
uma combinação de intenções do falante e convenções sociais com diferentes graus de formalidade.
Essas condições podem ser encontradas em interações típicas do jeitinho. Por exemplo, Pode
deixar que eu resolvo isso pra você. O atendente é um conhecido meu.” Nesse enunciado, a intenção
é resolver o problema e para isso pede-se “ajuda” a uma pessoa com a qual temos certa intimidade
ou conhecimento formal.
Em sua Teoria dos Atos de Fala Indiretos, John Rogers Searle (1932- ), filósofo norte-
americano, afirma que os atos de fala são em grande parte indiretos ou implícitos. Marcondes (p.
28) explica que “esses atos funcionam através de elementos contextuais e de pressupostos
compartilhados por falante e ouvinte enquanto participantes do mesmo jogo de linguagem e, desse
modo, familiarizados com as crenças, hábitos e práticas um do outro.” A linguagem do jeitinho
baseia-se nesses elementos e pressupostos para que o jeitinho seja concedido com sucesso, pois o
povo brasileiro, grosso modo, compartilha das crenças, hábitos e práticas típicas da cultura existente
em relação ao jeitinho. Um exemplo de enunciado em que esses três aspectos socioculturais
aparecem de uma só vez no jeitinho seria: “Mas aqui todo mundo faz assim”.
Henry Paul Grice (1913-1988), filósofo inglês, apresentou a proposta de uma semântica
fazendo a distinção entre o significado do falante (o que ele quer dizer com sua fala naquele
contexto) e significado literal (que não varia de acordo com o contexto). Para Grice, o ouvinte
precisa sempre interpretar as intenções do falante nas trocas lingüísticas para decidir-se sobre como
entender o significado das expressões utilizadas.
Na linguagem do jeitinho, temos exemplos dos dois tipos de significado:Você pode dar
um jeito?”, representando um significado literal - parece ser nacionalmente reconhecido como uma
solicitação para que uma norma, regra ou lei seja burlada. “Jeito” parece ser a palavra-chave nessas
situações, mas mesmo assim podemos argumentar que ela precisa ser usada no contexto correto e
com as pessoas que, teoricamente, estariam dispostas a dar um jeito. Do contrário, a palavra perde
sua carga sociocultural e ideológica e adquire significados diferentes daquele que estamos
analisando. Vejamos o exemplo a seguir,
Contexto sociolingüístico: Um cliente dirige-se ao caixa de uma loja para fazer o pagamento de
uma mensalidade de um crediário.
Caixa (A): O seu carnê tá atrasadu. Já passô dois dia. O sinhô vai te di pagá multa.
Cliente (B): é ... eu misqueci. Quantué?
A: Dois real de multa.
B: é ... fazê uquê. Num tem jeitu mesmu, né?
A: É. Num tem não.
No diálogo acima, o cliente, transbordando humildade e vergonha por ser o alvo daquela
conversa na frente de outras pessoas desconhecidas, talvez não tivesse a intenção de pedir à caixa a
liberação da multa para ele, de tão embaraçosa que era a situação. Neste caso, a palavra jeito
parecia indicar algo do gênero: “não tem saída”, “não tem opção ou alternativa a não ser pagar”.
Naturalmente, podemos argumentar se a intenção do cliente não era “jogar verde para
colher maduro” (expressão que tem tudo a ver com o jeitinho), ou seja, será que o interlocutor não
usou a palavra “jeito”, inconscientemente, com o intuito de fazer com que a caixa se sensibilizasse e
o liberasse da multa?
Podemos ainda acrescentar a noção de implicatura conversacional apresentada por Grice.
Para ele (MARCONDES, 2005, p. 30-31), as implicaturas conversacionais “dependem
fundamentalmente da consideração do contexto em que uma sentença está sendo proferida (suas
”circunstâncias de enunciação”) por um falante com a intenção de comunicar algo a seu
interlocutor”, que pode vir mediante insinuações, ironias, dissimulações, etc. Ou seja, seu
significado só pode ser inferido a partir de um contexto específico.
Todavia, a questão principal colocada por Grice é “como reconhecer essa intenção
implícita, não-formulada, do falante?” (p. 31). Como fazemos para decifrar as intenções de nosso
locutor? Grice sugere que é preciso partir do princípio de que a linguagem é fundamentalmente
dialógica e a troca lingüística - a interação que se desenvolve entre os interlocutores - regida por um
princípio de cooperação. Afinal, nosso objetivo ao dizer algo é fazer com que sejamos entendidos
(e atendidos); do contrário não haveria necessidade de nos envolvermos em uma conversação.
A definição apresentada por Grice para o princípio da cooperação é a seguinte: ”Faça sua
contribuição conversacional tal como é requisitada, no momento em que for solicitada, com um
propósito comum ou com uma direção mutuamente aceita pela troca lingüística em que você está
inserido” (YULE, 2003, p. 37; GRICE, 1982, p. 86; LEVINSON, 2005, p. 101, tradução nossa).
Esse princípio geral é desdobrado em quatro máximas, apresentadas como suposições não-
declaradas em nossas conversas. Assim, quando interagimos esperamos que nossos interlocutores
nos forneçam a quantidade (1) necessária de informação que precisamos para entender o que está
sendo dito; esperamos que eles estejam dizendo a verdade qualidade (2); que o que estejam
falando seja relevante relação (3); e que estejam sendo tão claros e objetivos quanto possam,
evitando obscuridades e ambigüidades modo (4) (YULE, 2003, p. 37; GRICE, 1982, p. 86-88;
LEVINSON, 2005, p. 101-102).
A relevância e aplicabilidade do princípio da cooperação e suas máximas podem ser
observadas no exemplo que Yule (2003) nos oferece:
Considere a seguinte cena: uma mulher sentada em um banco de um parque e um
cachorro enorme deitado no chão em frente ao banco. Um homem se aproxima e
senta no banco.
Homem: Seu cachorro morde?
Mulher: Não.
(O homem estende a mão para acariciar o cachorro, que acaba mordendo a sua
mão.)
Homem: Ai! Você disse que seu cão não morde.
Mulher: E não morde mesmo. Mas esse não é meu cão. (YULE, 2003, p. 36)
Na cena, temos um problema sério de comunicação, ou seja, a suposição do homem de que
sua pergunta e a resposta da mulher referiam-se ambas ao cachorro em frente a eles. Para o homem,
a quantidade de informação oferecida não foi suficiente. Por sua vez, a mulher poderia ter
continuado sua resposta “Nãocom sua última fala Mas esse não é meu cão”, o que teria evitado a
mordida do cachorro. A resposta “incompleta” fez com que a comunicação fosse inadequada e
ambígua, tornando a comunicação entre os dois ineficaz.
O mesmo pode acontecer com enunciados na linguagem do jeitinho quando a mensagem
que desejamos passar é incompleta (quantidade); o interlocutor desmarcara uma mentira que, por
acaso, esteja sendo contada (qualidade); nosso pedido de jeitinho é irrelevante para o contexto e a
situação (relação); e não somos claros (modo). Teremos oportunidade de analisar alguns exemplos
no Capítulo 4 – Análise e Interpretação dos Dados.
A teoria das “implicaturas conversacionais” é utilizada por Labov (2001, p. 17, 21) no
artigo Uncovering the event structure of narrative”, quando o autor faz um estudo sobre uma
entrevista narrativa que havia sido analisada anteriormente por três pesquisadores por meio da
técnica de análise narrativa elaborada por ele e Waletzky em 1967. Labov utiliza-se da teoria de
Grice para verificar até que ponto a técnica da “análise narrativa” pode ajudar a revelar o
relacionamento entre o que é dito em uma narrativa e o que é provável que tenha acontecido.
A questão dialógica mencionada anteriormente por Grice é retomada por Marcondes
quando o autor sugere que uma “análise de casos (dos tipos acima) deve levar em conta o caráter
dialógico da troca lingüística” (2005, p. 28, grifo nosso).
3.4.3 Aspectos da Enunciação, da Polifonia e do Dialogismo no Jeitinho
O dialogismo é uma das categorias básicas do pensamento de Bakhtin na sua concepção de
linguagem
62
. Para ele, o fato lingüístico não pode ser entendido apenas como uma realidade física.
É preciso inseri-lo na esfera social para que se torne um fato de linguagem. Para que isso ocorra, a
unicidade do meio social e a do contexto social são aspectos importantes e relevantes nesse
processo (FREITAS, 2003, p. 132).
Dessa forma, “a comunicação verbal não pode ser compreendida fora de sua ligação com
uma situação concreta” (ibid, p. 134). Nas palavras de Freitas,
essa realidade multifacetada não pode ser objeto (somente da) lingüística e ser
compreendida através de métodos exclusivamente lingüísticos. Ao aspecto
lingüístico necessário, mas não suficiente para a dialogicidade ele acrescenta o
contextual. Assim, Bakhtin cria uma disciplina, a metalingüística ou
translingüística, para estudar o enunciado. O enunciado pertence a um universo de
relações dialógicas inteiramente diferentes das relações meramente lingüísticas.
62
Segundo Guimarães (2005, p. 59), “a linguagem é para Bakhtin interação social, ou seja, é fundamentalmente
dialógica”.
Enquanto a palavra e a sentença são uma unidade da linguagem, o enunciado é uma
unidade da comunicação discursiva (ibid., p. 134-135).
Jobim e Souza apresenta argumentos semelhantes quando afirma que para Bakhtin
toda enunciação é um diálogo; faz parte de um processo de comunicação
ininterrupto. Não enunciado isolado. Todo enunciado pressupõe aqueles que o
antecederam e todos os que o sucederão: um enunciado é apenas um elo de uma
cadeia, podendo ser compreendido no interior dessa cadeia (JOBIM E SOUZA,
2001, p. 99-100).
Para Faraco, o dialogismo em Bakhtin pode ser visto da seguinte maneira: “Ele aborda o
dito dentro do universo do já-dito; dentro do fluxo histórico da comunicação; como réplica do já-
dito e, ao mesmo tempo, determinada pela réplica ainda não dita, todavia solicitada e já prevista”
63
(FARACO, 1988, p. 24 apud JOBIM E SOUZA, 2001, p. 100).
Na linguagem do jeitinho, o simples uso da expressãodar um jeito remete a situações e
contextos compartilhados por todos os brasileiros (afinal, quem nunca deu um jeitinho ou nunca
ouviu falar desse mecanismo no Brasil?) que, muitas vezes, acabam assumindo o não-dito pelo já-
dito da situação em que se encontram e para a concessão do jeitinho.
Nesse caso, temos o que é dito o enunciado e a situação contextual em que o dito ou
não dito, mas previsto, se realiza a enunciação. De acordo com Brait e Melo (2005, p. 62), “os
conceitos de enunciado e enunciação estão longe de promover um consenso, apresentando, ao
contrário, uma grande polissemia de definições e empregos.”
Para certas teorias, o enunciado equivale à frase ou a seqüências frasais. Enquanto que em
uma perspectiva pragmática, o enunciado é visto como unidade de comunicação, de significação
64
,
necessariamente contextualizado. É possível dizer então que uma mesma frase pode ser utilizada em
uma infinidade de enunciados, pois esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o
que significa que a “frase” ganha sentido diferente nessas diferentes realizações “enunciativas”
63
FARACO, C.A. et al. Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hucitec, 1988.
64
Guimarães (2005, p. 11) esclarece que significação ou sentido da linguagem “deve ser considerado a partir do
funcionamento da linguagem no acontecimento da enunciação.” Ou seja, significação é a aquilo que dizemos no
momento em que dizemos alguma coisa.
(BRAIT, 2005, p. 63).
Para Ducrot (1987, p. 164), “frase” é um objeto teórico, algo que não pertence ao domínio
do observável, mas constitui uma invenção da gramática. o “enunciado” pode ser observado e
considerado como a manifestação particular de uma frase. Quanto à “enunciação”, Ducrot (p. 168) a
define como o fato que é constituído pela produção de um enunciado.
Dubois et al. (2001, p. 218) definem enunciação como o ato individual de utilização da
língua, enquanto enunciado é o resultado desse ato, é o ato de criação do falante. Assim, a
enunciação é constituída pelo conjunto dos fatores e dos atos que provocam a produção de um
enunciado.
O enunciado carrega certa semelhança com o conceito de fala, de Saussure, e
performance, de Chomsky. Paulo Bezerra, tradutor da obra Estética da criação verbal (2003), de
Mikhail Bakhtin, do russo para o português, afirma em nota de rodapé na página 261 que “o próprio
autor situa enunciado no campo da parole saussuriana”, não havendo talvez distinção aparente entre
fala, performance e enunciado.
Brait (2005, p. 64) esclarece que em muitos casos “o enunciado é tido como o produto de
um processo, ou seja, a enunciação é o processo que o produz e nele deixa marcas da subjetividade,
da intersubjetividade, da alteridade que caracterizam a linguagem em uso” (grifos da autora).
Para a autora (2005, p. 65) as noções de enunciado e enunciação são importantes na
concepção de linguagem que orienta o pensamento bakhtiniano, pois neles a linguagem é concebida
de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui a comunicação efetiva e os sujeitos e
discursos nela envolvidos.
Parece haver uma concordância entre esse conceito apresentado por Brait sobre o
pensamento bakhtiniano e a realização diária da linguagem do jeitinho. As palavras, expressões e
enunciados usados para se pedir um jeitinho sempre embutem uma enorme carga histórica (“Todo
mundo faz assim.”), cultural (“Mas isso é praxe!”) e social (“Quebra meu galho hoje que amanhã,
quando você precisar, eu quebro o teu.”).
A realidade lingüística e sociocultural desses enunciados são inegáveis, pois podem ser
presenciados diuturnamente por qualquer pessoa na comunidade. Não precisa nem sair de casa, pois
o jeitinho não tem limites de atuação. Além disso, conforme explica Bakhtin (2003, p. 272) “cada
enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”. A interação
dialógica acontece em todos os lugares em que existem mentes pensantes e interagentes.
Para o autor (2004, p. 95), “os membros de uma comunidade lingüística, normalmente,
não percebem o caráter coercitivo das normas lingüísticas” e sociais que são impostas aos falantes
do idioma. A própria palavra jeitinho, como dissemos, impõe ao falante toda uma significação
sócio-histórica e política que ajudam a compor a identidade nacional e social do povo brasileiro.
A palavra, para Bakhtin (2004, p. 95), está “sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial” muito grande. Vale lembrar que “ideologia” é aqui entendido como
“todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no
cérebro do homem e se expressa por meio de palavras (...) ou outras formas sígnicas”
(VOLOSHINOV, 1998, p. 107 apud BRAIT, 2005, p. 169).
Assim, uma vez que a enunciação é de natureza social (BAKHTIN, 2004, p. 109), a
palavra, e conseqüentemente os enunciados em que ela aparece, não pertence a um único sujeito
falante, não é um ato individual e sim uma reação grupal, o resultado de um “efeito manada”
65
. Isso
naturalmente ocorre por não estarmos conscientes quanto ao que dizemos ou, caso estejamos
conscientes, se desejarmos continuar nos comportando do jeito como estamos nos comportando,
isto é, dando jeitinhos aqui e acolá em nosso cotidiano. Cabe observar, no entanto, que nessas
situações enunciativas corremos o risco de não pensar, mas de sermos “pensados” pela linguagem
que usamos e que nos é imposta pela ação coercitiva do meio social em que vivemos.
Essa “reação grupal” é formada pela história lingüística e sociocultural que os falantes de
uma comunidade herdam.
Talvez tal “reação” seja possível devido à ressonância da multiplicidade de vozes e
discursos polifônicos que desde criança nos chegam de todos os lados nos mais diversos contextos
65
“Efeito manada” é uma analogia ao boi ou a vaca que vai onde a manada for, ou seja, se deixa levar pelo grupo.
sociais dos quais participamos.
De acordo com Guimarães (1986 apud Brandão, H., 2004, p. 75), quando Ducrot retoma o
conceito de polifonia, ele exclui a noção de história que, para Bakhtin, é fundamental. Para Ducrot,
a noção de historicidade na enunciação resume-se unicamente ao momento presente.
No caso da linguagem do jeitinho, entretanto, essa noção de historicidade é fundamental,
pois parece que o jeitinho brasileiro é algo que existia antes de uma fala enunciativa, no momento
presente da negociação e continuará existindo em seu discurso e no discurso de outras pessoas no
futuro. Além disso, essa enunciação está totalmente imersa em enunciações semelhantes
realizadas que, de certa forma, servem de base e de “desculpa” para que ela seja realizada.
Na comunidade lingüística de Foz do Iguaçu, por exemplo, é comum encontrarmos
enunciados do tipo:
Aqui em Foz não é assim”, do jeito que você, um forasteiro, um outsider, alguém que acaba
de chegar à cidade, quer fazer, nós fazemos do nosso jeito.
Todo mundo faz assim”, do jeito que estou dizendo e não do seu jeito.
Aqui é assim que funciona”, dentro da ilegalidade mesmo, damos sempre um jeitinho.
“Aqui funciona assim”, dentro da ilegalidade e do descaminho.
“Não precisa se preocupar ou fazer isso ou assim. Assim (do jeito que está) tudo certinho”,
em situações em que o locutor deseja fazer algo que, aparentemente ilegal, precisa ser feito
legalmente, mas que demandaria “muito tempo e trabalho”, pois sempre foi feito daquela
forma ilegal e para legalizar seria muito caro, muito complicado, e no fim não compensaria.
Muitas vezes, pelo excesso de formalismo e burocracia, a impressão que é que não
compensa mesmo. Ou seja, se “todos” (já) fazem “assim” é porque “assim” é o jeito que todos
dizem que fazem e talvez façam mesmo.
Esses enunciados são polifônicos no sentido de que o discurso de um interlocutor
representa e é parte do discurso de outros que sucederam-no e daqueles que irão sucedê-lo.
A impressão que fica é que quando aplicamos os conceitos de enunciado, enunciação,
polifonia e dialogismo à linguagem do jeitinho, os enunciadores parecem nunca estar sozinhos: toda
vez que eles pedem para alguém dar um jeitinho tem sempre outros que deram, estão dando ou
darão um jeitinho com eles!
Neste sentido, a explicação de Koch sobre polifonia se encaixa perfeitamente no que
acabamos de colocar, ou seja, a noção de que a polifonia “pode ser definida como a incorporação
que o locutor faz ao seu discurso de asserções atribuídas a outros personagens discursivos
(interlocutor(es), terceiros ou opinião pública)” (2004, p. 140).
Assim, o enunciado Aqui, todo mundo faz assim não surge simplesmente do nada.
Aparece, ou ressurge (surge de novo, o que indica que existia antes), da relação que o falante
constrói com outros enunciados parecidos em que todos eles agem de forma semelhante – o aspecto
social – e dizem coisas semelhantes – o aspecto lingüístico.
Segundo Voese (2004: 47), esse processo representa a primeira dimensão da dialogicidade
de qualquer discurso. A segunda dimensão, para o autor, que completaria e fecharia o processo
dialógico, baseia-se na escolha do modo de enunciação feita pelo enunciante tendo em mente seu
interlocutor como referência para que possa elaborar os discursos ainda não-produzidos.
Ou seja, a dialogia é inerente a todo discurso, pois leva em consideração os enunciados
anteriores e os que sucederão a partir deste ponto. O enunciado Aqui todos fazem assim exibe
traços nítidos da produção histórica de atividades realizadas pelas pessoas daquela comunidade
lingüística ao longo dos anos e permite que “novos” enunciados sejam construídos a partir de e com
base no que já foi dito e concordado por todos.
O que percebemos é que uma vez dado o jeitinho, parece não haver mais volta, pois
acabamos sempre nos remetendo dialogicamente aos enunciados feitos anteriormente por outras
pessoas e criando precedentes para que outras se utilizem do mesmo argumento. No exemplo Ah,
vai lá. um jeitinho, vai? Pedro disse que você deu um jeito pra ele.”, esse enunciado revela um
discurso polifônico, pois no argumento apelativo do falante percebemos que ele evoca a presença de
uma outra pessoa que teria sido privilegiada pelo interlocutor anteriormente. Nesse exemplo
polifônico da linguagem típica do jeitinho observamos a presença de duas vozes: a voz de Pedro que
disse algo à pessoa que produziu o enunciado e a voz do enunciante ou locutor. É como se
tivéssemos em um segundo plano Pedro dizendo “Olha, vai lá que fulano deu um jeito pra mim. De
repente ele faz o mesmo pra você”, ou algo do gênero, que é depois reproduzido ou evocado pelo
enunciante.
Dessa forma, a linguagem do jeitinho revela não a voz de uma pessoa, mas também as
diversas vozes de um grupo, de uma comunidade lingüística ou de um país (VOESE, 2004, p. 48).
No exemplo É assim que todos fazem aqui”, que neste caso evocaria a presença “maciça” (!) de
outras vozes no enunciado, serve mesmo como um argumento de poder e apelação para que o
falante consiga aquilo que almeja.
“Todos” é uma generalização um tanto exagerada, mas comum no discurso popular
quando as pessoas querem dizer que desde crianças elas ouvem esses comentários de amigos,
parentes, colegas de trabalho, no rádio, na televisão, lêem nos jornais, nas revistas, etc. É como se as
pessoas estivessem dizendo o tempo todo Fulano, Beltrano e Cicrano agem dessa maneira. Por
que eu não agiria?
3.4.4 Entendendo a Semântica do Jeitinho
Na concepção de Ducrot (1987, p. 13-30) todo enunciado apresenta um posto, um
pressuposto e um subentendido. Tomemos como exemplo a enunciação adiante retirada do corpus
de nossa pesquisa que se refere a uma conversa entre a mãe de um aluno de informática, em uma
escola de informática em Foz do Iguaçu, e o coordenador da instituição. A mãe reclamava que, em
casa, seu filho não tinha em seu computador particular os programas (software) utilizados nas aulas
da escola para praticar o que aprendia nas aulas. O coordenador argumentava que ele não podia
fazer nada e que ela teria que comprar os programas originais para instalá-los no computador de seu
filho. A senhora, não convencida, faz então a seguinte colocação:Ah, deixa disso. É fazer uma
cópia dos programas que vocês têm aqui e entregar pra ele. Não há nenhum mal nisso”.
Neste caso, o posto (o enunciado dito pela mãe) traz consigo o pressuposto (o não dito,
mas presente) de que a escola tem os programas e fica subentendido (aquilo que é acrescentado sem
dizer, ao mesmo tempo em que é dito) que esta atividade ilegal, ou seja, fazer cópias de programas
de computador (que é pirataria) é feito rotineiramente por várias pessoas e que o coordenador seria
apenas mais um entre vários que agem dentro dessa ilegalidade. Portanto, que todos fazem
assim (argumento pico da linguagem do jeitinho), a pessoa que tem os programas originais
poderia fazê-lo também. Afinal, não nenhum mal nisso (outro argumento falacioso do
jeitinho). Como vemos, um ato lingüístico não é composto apenas pelo que é expresso, mas também
por todo um conjunto de procedimentos e ocorrências que envolvem e consubstanciam o que é dito.
Orlandi (2003) nos lembra da importância desses procedimentos e ocorrências quando
afirma que
o subentendido depende do contexto. Não pode ser asseverado como
necessariamente ligado ao dito. Essa teoria a da Semântica Argumentativa
desenvolveu-se aprofundando certas noções, modificando outras, mas mantém o
fato de que o não-dito é subsidiário ao dito (ORLANDI, 2003, p. 82).
Para Guimarães (2002, p. 7),”as expressões lingüísticas significam no enunciado pela
relação que têm com o acontecimento em que funcionam.” Para o autor, “a análise do sentido da
linguagem deve localizar-se no estudo da enunciação, do acontecimento do dizer.”
Com base nesse acontecimento do dizer, o autor apresenta a Semântica do Acontecimento
que considera duas realidades lingüísticas: o fato de que a linguagem fala de algo e que esse algo é
inevitavelmente construído na linguagem. Desse modo, podemos dizer que a linguagem do jeitinho
fala sobre um fenômeno sociocultural que é construído e demonstrado a partir da linguagem que
usamos para expressar a existência desse fenômeno ou dessa “necessidade” social.
O autor afirma ainda que o tratamento de uma enunciação deve se dar em um espaço em
que seja possível considerar a constituição histórica do sentido, ou seja, espaço e tempo são fatores
essenciais para a compreensão de uma enunciação (2002, p. 8).
Podemos então dizer que um enunciado do tipo Você pode dar um jeitinho? nos remete
a todo um mundo de significados lingüísticos, sociais, culturais, históricos e políticos de um país
como o Brasil e de uma comunidade lingüística como Foz de Iguaçu, nosso principal foco de
pesquisa, que apresentam diversidade étnica e heterogeneidade lingüística singulares.
Um falante, cuja língua materna seja a Língua Portuguesa Brasileira – com pleno domínio
das competências lingüística, comunicativa, social nesse idioma entende que o enunciado acima
traz consigo um sentimento de pertencimento a uma identidade nacional, a qual inegavelmente
sugere uma inversão de valores mediante a legitimação ou concessão de algo que é, por natureza,
ilegal.
Assim sendo, Você pode dar um jeitinho? faz sentido quando é realizado enquanto
enunciado de um texto maior, um contexto específico, de uma realidade sociocultural e política
brasileira em que a cultura do jeitinho impere. Há por trás desse tipo de linguagem uma história que
“autoriza” o brasileiro, em nosso estudo, os moradores de Foz do Iguaçu, a solicitar e conceder o
jeitinho.
Benveniste (1966 apud Guimarães, 2002, p. 7) esclarece que o sentido de um elemento
lingüístico em nosso estudo o jeitinho tem a ver com o modo como tal elemento integra uma
unidade maior ou mais ampla – aqui representada pela cultura do jeitinho brasileiro, pela cultura ao
Gersismo
66
, pela idéia de se levar vantagem em tudo, entre outras representações da mesma
categoria.
A naturalidade com que as diversas facetas e variações da linguagem do jeitinho ocorrem
em Foz corrobora o que dizem os autores mencionados. Nossa pesquisa de campo mostra que a
práxis no comportamento cotidiano desse fenômeno é algo tão natural, comum e espontâneo que a
linguagem usada para pedir um jeitinho é geralmente aceita sem manifestações aparentes de
indignação ou questionamentos incisivos, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo”,
66
Segundo Vieira (2003, p. 518), o neologismo “gersismo” significa “o processo de levar vantagem em tudo.”
conforme palavras de um dos informantes. Uma exceção aqui talvez seja a recente e aparente
indignação dos brasileiros pelo “uso exagerado” (?) do jeitinho que faz fronteira com o
favoritismo de um lado e com a corrupção de outro –, o presente nos discursos e nas CPIs de
políticos nesses últimos anos, talvez agora mais conhecidos por serem mais divulgados.
3.5 A Busca pelo Poder na Argumentação e na Retórica do Jeitinho
Contudo, tal naturalidade não significa que não possa haver uma elaboração
argumentativa, seja ela intencional ou inconsciente, por trás dos diferentes enunciados usados para
pedir um jeitinho.
Argumentar, na concepção de Abreu (2001, p. 25), simboliza a arte de convencer e
persuadir, em que convencer volta-se para a habilidade de gerenciar informações, falar à razão do
outro e persuadir concentra-se na prática de gerenciar a relação, falar à emoção do outro.” Assim,
enquanto a arte de convencer trabalha no campo das idéias, a arte de persuadir se volta para o
terreno das emoções. Para o autor, convencer alguém significa fazer com que essa pessoa passe a
pensar como nós, ao passo que persuadir alguém faz com que essa pessoa realize algo que
desejamos que ela realize.
Neste caso, a linguagem do jeitinho brasileiro se afiniza com a definição apresentada
acima, pois na cultura do jeitinho brasileiro não importa se apelamos para a racionalidade ou para a
emotividade de nossos interlocutores: o que realmente importa é obter o jeitinho. Até porque o
jeitinho se configura como tal se for conseguido, caso contrário, é apenas um pedido ou uma
solicitação.
3.5.1 A Questão da Língua(gem) na Argumentação do Jeitinho
Para que o pedido seja estruturado corretamente é imperativo que o locutor conheça como
funciona o sistema de sua língua um estrangeiro talvez tenha dificuldade em produzir enunciados
que expressem a solicitação do jeitinho. Se o pedido não for concedido, ter um conhecimento
superficial da estrutura da língua não o ajudará muito. É preciso que o locutor tenha boa
competência lingüística para que possa argumentar na língua.
“Argumentar é também escolher em uma opinião aspectos que a tornarão aceitável para
um dado público” (BRETON, 2003, p. 32). Essa adequação do que dizer em relação a diferentes
públicos caracteriza a competência comunicativa que o locutor deve ser possuidor.
Aspectos das competências lingüística e comunicativa são identificados em Machado e
Cunha (2005, p. 13) quando os autores afirmam que “expressar-se adequadamente, argumentar de
modo correto, cuidar da forma da argumentação para parecer convincente e persuadir os outros à
ação” são elementos fundamentais na formação de todo cidadão. Para os autores, a “ação” define o
“fazer juntamente com a palavra, o resultado da confiança na força da palavra, da consciência que a
palavra propicia, algo que não seja coação, mas que resulte da conversação e traduza uma
comunicação”.
Na linguagem do jeitinho, os locutores se utilizam dessa “confiança na força da palavra”,
no poder de convencer, de mobilizar seus interlocutores para agirem em nome de uma causa
considerada defensável a partir de pressupostos aceitáveis por todos os envolvidos.
3.5.2 O Duplo Gatilho Argumentativo
Para que esses pressupostos sejam “reconhecidos” é preciso primeiro preparar ou adequar
o contexto de recepção
67
para que possamos então solicitar e conseguir aquilo que desejamos. De
acordo com Breton (2003, p. 67), essa alteração do contexto de recepção é realizada por meio de
duas etapas, indissociáveis, sucessivas e de difícil separação técnica: (i) o enquadramento e (ii) a
67
Contexto de recepção: conjunto de opiniões, valores e julgamentos que são compartilhados por um auditório
(interlocutores) e que existem previamente ao ato da argumentação e vão desempenhar um papel na recepção do
argumento, na sua aceitação, recusa ou adesão (BRETON, 2003, p. 29).
criação de um vínculo, processo que o autor chama de “duplo gatilho argumentativo”.
O objetivo desse “duplo gatilho” seria o de primeiro criar uma realidade comum e
partilhável entre o locutor e seus interlocutores
68
(o enquadramento) para, em seguida, construir
um vínculo entre este acordo, ou realidade, e a opinião proposta pelo locutor (BRETON, 2003, p.
67).
3.5.3 O Enquadramento na Linguagem Argumentativa do Jeitinho
No enquadramento encontramos diferentes formas argumentativas que buscam localizar
elementos preexistentes entre os interlocutores. A linguagem do jeitinho segue caminhos
semelhantes, pois também se baseia no já adquirido, no previamente existente e na tradição, ou seja,
na pré-existência da cultura do jeitinho brasileiro e na tradição do homem cordial descrita por
Holanda (2005). No enunciado ¿No puede dar um jeito, señorita?”, mencionado anteriormente,
um interlocutor paraguaio utiliza-se da expressão retórica dar um jeito como um argumento de
autoridade a fim de conseguir uma vaga em um vôo lotado.
Argumentos de autoridade podem ser utilizados quando: (i) o locutor evoca sua própria
autoridade (p. ex. “Você sabe com quem está falando?”); (ii) o locutor convoca uma autoridade
exterior (p. ex. “Eu sou amigo de fulano. Ele pediu pra eu vir aqui e você resolvê isso pra mim”); e
(iii) o locutor se apóia em aspectos, aparentemente, pouco conhecidos dos próprios interlocutores,
mas internalizados por todos (p. ex. “No Brasil, todo mundo dá jeitinho.”).
A expressão “duplo gatilho argumentativo” designa ainda, segundo o autor, aquilo que
parece ser a essência da dinâmica da comunicação argumentativa, ou seja, “dirigimo-nos aos outros,
primeiramente para que eles mudem sua visão das coisas, em seguida, para lhes mostrar que a nova
opinião proposta está de acordo com esta nova visão das coisas.”
Um exemplo desse pressuposto aceitável na cultura do jeitinho brasileiro seriam os
68
Na teoria da argumentação o locutor e os interlocutores são chamados de “orador” e “auditório”, respectivamente.
argumentos de vínculo do tipo Se todos fazem assim, porque eu não faria?”, Aqui é assim”:
enunciados que se apóiam na partilha a priori de valores e crenças teoricamente compartilhados por
todos.
Desse modo, quando confrontados com a realidade do jeitinho brasileiro - um fato
lingüístico e sociocultural recorrente na sociedade brasileira, praticado por todos independentemente
de fatores extralingüísticos como etnia, raça, religião, sexo, escolaridade, classe social, etc.
(argumento de enquadramento), colocados diante de uma “necessidade coerente” e de concordância
nacional (argumento de vínculo) - as pessoas se sentem praticamente imobilizadas diante de tal
argumentação e acabam cedendo aos apelos do jeitinho.
Neste caso, podemos dizer que os enunciados realizados na, pela e através da linguagem
do jeitinho estão direcionadas mais para a busca do êxito do que do entendimento, conforme
definição da teoria da ação comunicativa de Habermas (apud MACHADO; CUNHA, 2005, p. 13-
14). Aqui, a argumentação para obter um jeitinho é um instrumento essencial que visa ao sucesso a
todo custo, mesmo se o argumento utilizado estiver baseado em uma premissa falsa, p. ex. No
Brasil, todos dão jeitinho”, pois, obviamente, não são, literalmente, todos os brasileiros que agem
assim, embora um grande número o faça. Poderíamos ainda interpretar o enunciado “Se todos dão
um jeitinho, então eu também possocomo um exemplo de falácia lógica, em que um argumento
ilegítimo é utilizado de forma aparentemente “legítima” para obter algo.
Importante observar, no entanto, que as habilidades, artifícios e competências que
possuímos para tentar convencer outros são características naturais do ser humano. Portanto, não
pretendemos dizer que somente aqueles que dominam a teoria e as técnicas da argumentação são
capazes de conseguir o jeitinho. Pelo contrário, pensamos que a linguagem e os diferentes
argumentos usados para conseguir um jeitinho servem como instrumentos argutos para o estudo da
argumentação. Sendo assim, a argumentação, ou seja, “o estudo das técnicas discursivas que
permitem provocar ou aumentar a adesão das pessoas às teses que são apresentadas para seu
assentimento” (PERELMAN, 1970, p. 5 apud BRETON, 2003, p. 19) pode também ser analisada
por meio de diferentes enunciados utilizados na cultura do jeitinho brasileiro.
Se partirmos do pressuposto de que o jeitinho é uma crença ou um valor
69
cultural
brasileiro, ou seja, a crença de que todos no Brasil dão um jeitinho, vamos tentar convencer outras
pessoas a partilharem também dessas crenças e valores conosco. O vínculo social existe apenas
quando reativamos nossos valores culturais implícitos. Breton (2003, p. 88) apresenta a expressão
“comunidade argumentativa” como um grupo que compartilha “certo número de valores julgados
suficientemente fundamentais”. Assim, qualquer comunidade lingüística no Brasil pode ser
caracterizada como uma “comunidade argumentativa” e apresentar sua própria linguagem do
jeitinho. Mas a instituição jeitinho continua existindo.
Saber argumentar, nesse caso, não é um luxo, mas uma necessidade lingüística e
sociocultural em nossas comunidades, pois o jeitinho acaba se tornando uma moeda de troca, um
objeto de barganha e o falante que não consegue utilizá-la corre o risco de ser estigmatizado na
sociedade em que vive, pois encontra dificuldades para obter o que outros conseguem por
intermédio do jeitinho.
A argumentação na linguagem do jeitinho faz parte de nossas competências lingüística e
comunicativa. Adquirimos esse “jeito” lingüístico e sociocultural de negociar as nossas
“necessidades” à medida que crescemos em nosso meio social. Aprendemos a argumentar para
conseguir o que queremos e precisamos quando nos deparamos com um “não” ou um impedimento
qualquer. Observamos que argumentos não faltam quando a solução é o jeitinho. E qual seria a
natureza desses argumentos?
Segundo Breton (2003, p. 61), o termo argumento apresenta dois níveis de definição: (i) o
de conteúdo do argumento, das opiniões em si mesmas, e (ii) o de molde ou forma argumentativa,
que uma forma lingüística à tese proposta. Por exemplo, no enunciado Ah, me libera aí, vai
prof. O senhor liberou fulana
70
o interlocutor usa uma terceira pessoa como referência e exemplo
69
“Os valores fazem parte de um ser em comum que constitui as bases da cultura e que determina as maneiras segundo
as quais os membros de um dado grupo vivem em um mesmo mundo”. (REWSWEBER, 1992, p. 17 apud
BRETON, 2003, p. 86)
70
Acadêmica solicitando a seu professor que a liberasse de assistir a um evento que era compulsório, pois soube que
uma colega de sala havia sido liberada. No entanto, o que a acadêmica sabia e não dissera é que a outra acadêmica
havia sido liberada porque estava sentindo-se realmente muito mal, com cólicas.
para defender o conteúdo de sua tese e conseguir que o jeitinho seja dado, um típico argumento pelo
exemplo. Além de esconder uma forma de ameaça velada, pois no caso o interlocutor possui uma
informação que poderia ser usada contra o professor.
no enunciado Eu falei com o coordenador e ele disse que tudo bem, que o senhor
pode me liberar”
71
Ao dizer que o coordenador, hierarquicamente superior a um professor na
instituição de ensino superior, autoriza a sua liberação do evento, a acadêmica utiliza-se de um
argumento de autoridade, ou seja, recorre ao discurso ou opinião de pessoas institucionalmente
autorizadas a emitir juízo ou parecer sobre determinado assunto.
Se a linguagem é uma ação, podemos argumentar que a linguagem do jeitinho em sua
natureza é uma forma de argumentação que, utilizando-se de todos os moldes possíveis e
imagináveis, objetiva convencer uma outra pessoa a realizar algo que, teoricamente, não deseja
realizar sobre a aparente ou real “necessidade” do locutor. Mas podemos levantar uma questão aqui:
por que aderimos a tais argumentos?
Do ponto de vista de Breton (2003, p. 71-74), três ordens de motivos que nos levam a
aderir às premissas da argumentação: a ressonância, a curiosidade e o interesse.
Para o autor, uma argumentação apoiada em valores que internalizamos e dos quais não
queremos abrir mão seria um bom exemplo dos efeitos da ressonância. Por exemplo, o enunciado
Hoje é ele, mas amanhã pode ser eu demonstra a necessidade de criação de uma reciprocidade,
sustentada por uma cordialidade egocêntrica, na qual o pensamento ideológico subjacente seria o de
que “se eu quebrar o galho dele hoje, amanhã ele vai quebrar o meu”.
A resistência que apresentamos a mudanças também é típica dessa ordem, pois, em geral,
somos conservadores e preferimos nos apoiar sobre o que já é conhecido ou familiar a ter que alterar
nossa rotina. Desse modo, muitas argumentações são usadas para manter o que temos, pois a
mudança em si não se justifica ou nos interessa. O ditado popular Não se mexe em time que está
71
Observação: Em primeiro lugar, o coordenador, teoricamente, não tem autoridade sobre atividades pedagógicas
realizadas nas aulas do professor em questão. Em segundo, o professor soube mais tarde que a acadêmica não havia
conversado especificamente sobre esse assunto com o coordenador. O que se configura numa “mentira” e num
argumento para se ausentar de um evento obrigatório sem ser penalizada.
ganhando” é um argumento utilizado para esse tipo de comportamento.
Argumentos de autoridade, em que delegamos a outrem a responsabilidade de nossos atos
de fala, é um exemplo do nível da curiosidade. O ameaçador enunciado “Você sabe com quem está
falando? Eu sou fulano, autoridade tal aglutina o cidadão com sua patente profissional ou social
para tentar intimidar e inibir qualquer comportamento que possa constrangê-lo em público, embora
o constrangimento que ele possa causar a outras seja visto como egocentricamente irrelevante.
Quanto ao interesse, Breton esclarece que esse motivo “pode ser um formidável vetor de
aceitação de uma visão de mundo que poderemos rapidamente avaliar como algo que nos seria
conveniente.” Neste caso, para os interlocutores, o que realmente interessa são os seus ganhos
pessoais, o que eles tiram de proveito da situação. Esse comportamento pode ser demonstrado
mediante exemplos de enunciados como “A intenção é manter o bloqueio (da ponte) até que a
Receita Federal “afrouxe” o cerco ao contrabando”
72
, O sr. me uma cervejinha e fica tudo
bem”, representados pela máxima popular no ditado “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Na categoria de argumentos de autoridade, encontramos ainda outros modelos de
argumentação que são usados na linguagem do jeitinho brasileiro.
Argumento de competência – supõe um conhecimento prévio sobre o tema, p. ex. “Se você
quiser eu sei copiar esses softwares. É só rolar uma grana.”
Argumento da experiência – supõe vivência direta sobre o tema, p. ex.
Esse professor é legal. Uma vez quebrou meu galho. Conversa com ele que ele te dá 1,0 ponto.”
Argumento de testemunho supõe ter estado presente a um acontecimento que
fundamenta o argumento usado, p. ex.
Eu vi o que você fez e queria que fizesse o mesmo pra mim.
3.5.4 Criando o Vínculo após o Enquadramento
72
Notícia veiculada no tablóide Gazeta do Iguaçu, Foz, Paraná, quando do fechamento da ponte da Amizade entre o
Paraguai e o Brasil durante o período de 9 a 13 dez. 2005.
Todos os argumentos vistos até agora pertencem ao enquadramento. Entretanto, como
afirma Breton (2003, p. 113), os argumentos de enquadramento por si são insuficientes para
convencer nossos interlocutores. Tais argumentos configuram-se apenas como a primeira etapa de
um processo que acontece em dois momentos. Assim, após o estabelecimento desse “acordo prévio”
é preciso associar esse enquadramento à opinião proposta, ou seja, este é o momento de utilizarmos
os argumentos de ligação ou de vínculo para que a argumentação tenha então o sucesso esperado. O
autor classifica esses argumentos em duas ordens: de analogia e de dedução.
No primeiro, procuramos estabelecer uma correspondência entre duas realidades até então
separadas. Por exemplo, no enunciado Resolve isso pra mim, vai? Eu sei que você deu um jeitinho
pra fulanoo locutor faz uso de analogia por meio de um argumento pelo exemplo em que evoca
um exemplo de jeitinho dado anteriormente para outra pessoa com o intuito de pressionar o
interlocutor a fazer algo que beneficie o locutor.
No segundo, buscamos deduzir que a opinião defendida faz parte da realidade
anteriormente enquadrada. Para Perelman (BRETON, 2003, p. 117), “a energia dos argumentos
dedutivos consiste em passar do que é aceito ao que queremos que seja aceito.” Essa construção de
uma cadeia contínua e “quase lógica”
73
pode ser encontrada, por exemplo, em um argumento de
transitividade
74
do tipo Os amigos de meus amigos são meus amigos”, em que os elementos
constitutivos do enunciado apresentam uma relação de forte apelo “familiar” e social. Assim, dentro
da linguagem do jeitinho brasileiro, é comum ouvirmos enunciados do tipo:
Contexto sociolingüístico: conversa registrada em uma repartição pública entre um cidadão
iguaçuense e um funcionário público.
A: “E aí, tudo bem? Eu sou amigo de “fulano”. Ele pediu pra falar com você que você ia resolver
o problema pra mim.”
73
Um argumento “quase lógico” é um raciocínio próximo ao raciocínio científico, mas comporta inúmeras exceções
(BRETON, 2003, p. 121).
74
Transitividade pode ser 1. a qualidade ou estado de transitivo ('transitório'); ou 2. a propriedade de uma relação
binária tal que, para três elementos quaisquer, a relação do primeiro com o segundo e do segundo com o terceiro
acarreta a relação do primeiro com o terceiro (HOUAISS, versão online).
B: “Ah, você é amigo de “fulano”. Deixa comigo. Pode pegar o documento amanhã mesmo. Tudo
bem?”
Os argumentos de reciprocidade apresentam um forte vínculo dedutivo. Perelman
(BRETON, 2003, p. 123) diz “tratar-se de uma regra de justiça, de natureza puramente formal,
segundo a qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma maneira.”
A justificativa para esse tipo de argumento estaria na necessidade de um tratamento igual para
todos, ou no que Barbosa (1992) chama de “a arte de ser mais igual que os outros”, subtítulo de seu
livro e hipótese defendida pela autora para explicar a realidade do jeitinho brasileiro e que pode ser
vista no enunciadoNão pra você dar um jeitinho nisso pra mim? Quebra o meu galho, vai?
Aí, quando você precisar de alguma coisa onde eu trabalho é me procurar que eu quebro o
seu galho. Sabe como é, né: uma mão lava a outra. Hoje sou eu, amanhã pode ser você.
Como vimos, o que caracteriza a argumentação do jeitinho na identidade sociocultural do
brasileiro é o discurso aqui visto como um conjunto de enunciados, sua expressão, sua
intencionalidade e seus significados sociais - que usamos para convencer nossos interlocutores a
conceder aquilo que “precisamos” obter.
Podemos argumentar que na concessão do jeitinho o interlocutor aceita compartilhar da
opinião e, junto com ela, dos valores, das crenças, da realidade lingüística e sociocultural, dos
pontos de vista, da autoridade e até mesmo das inovações que fundamentam os argumentos usados
pelo locutor. Ou seja, os dois lados concordam em compartilhar dos mesmos princípios que regem a
convivialidade social da comunidade em que vivem.
3.6 Uma Perspectiva Sociológica do Jeitinho
Nesta seção, objetivamos ampliar nossa compreensão do jeitinho e de sua cultura
buscando analisar esse fenômeno com base em fundamentos da Sociologia de autores como
Bourdieu (1996), que nos traz a sua contribuição com a Teoria das Trocas Lingüísticas e Goffman
(1988, 2002), que nos apresenta a questão da estigmatização sofrida por pessoas que não se
enquadram nos padrões estabelecidos pelos seus grupos sociais.
3.6.1 O Jeitinho como Moeda de Troca Lingüística
Dentro do campo argumentativo, a linguagem do jeitinho acaba se tornando uma moeda
de troca” dentro do que Bourdieu (1996, 23-24) chama de “mercado das trocas lingüísticas” e do
que Rega (2000, p. 11) afirma ser uma “moeda corrente para se conseguir transitar no cotidiano da
vida de quase todo brasileiro”. Nessas trocas, as interações ou relações de comunicação por
excelência, segundo Bourdieu são também relações de poder simbólico através das quais as
relações de força entre os interlocutores se atualizam.
Assim, não utilizamos apenas palavras e estruturas sintáticas, ou seja, a língua, quando
solicitamos ou pedimos a alguém para dar um jeitinho ou mesmo quando o concedemos. Na
verdade, usamos o ato de fala com toda competência lingüística, comunicativa e social que temos
para negociar sociolingüisticamente moedas cotidianas, tais como abonos, acordos, anuências,
aprovações, autorizações, beneplácitos, concessões, concordâncias, consentimentos, deferimentos,
favores, liberações, outorgas, permissões, privilégios, validações, por exemplo, a fim de que
possamos “oficialmente” burlar as regras, as leis, as normas, agindo assim de forma ilegal, e muitas
vezes, imoral, e tendo nossas “necessidades” pessoais e egocêntricas atendidas.
Dessa forma, o que “circula no mercado lingüístico não é a ‘língua’, mas discursos
estilisticamente caracterizados” (BOURDIEU, 1996, p. 25), que, dependendo como são negociados,
produzem lucros sociais para o locutor.
Nem todos conseguem ser convincente a ponto de sempre obterem sucesso em suas
argumentações e trocas lingüísticas via linguagem do jeitinho. Muitas vezes, um enunciado
intencionalmente voltado para o jeitinho pode não ser suficiente sem a intermediação de um
interlocutor-negociante, um “padrinho”, um “conhecido”, um “amigo”, uma pessoa que tenha
“costas quentes” e que possa “facilitar” a concessão do “favor” ou mesmo servir de “atalho” no
meio da burocracia e do formalismo que impera em repartições, empresas públicas e privadas e na
vida em geral no Brasil.
Observemos o seguinte enunciado Olá, fulano. Meu “tio” pediu pra você resolver essa
parada. Tudo bem?”. Contextualizando a enunciação que presenciamos temos: a palavra tio se
refere a um amigo “influente” do chefe do escriturário administrativo que está atendendo o locutor
em uma repartição pública; a expressão resolver essa parada significa “acelerar o
encaminhamento e a resolução do processo que acaba de ser entregue; Tudo bem? talvez queira
dizer Você algum problema para resolver isso o mais rápido possível? Porque se houver, eu
falo com o meu “tio” que ele fala direto com o seu chefe (se não falou), e então ele fala
diretamente com você para acelerar o processo.”
Como nos lembra Soares (2002, p. 55), “não se pode dissociar a linguagem da estrutura
social em que é usada.” No exemplo que acabamos de ver, a comunicação lingüística que se
estabelece é centrada em uma relação de poder ou força simbólica determinada pela própria
estrutura da instituição social (uma repartição pública) e pela relação que existe entre os
interlocutores do tipo “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Soares nos lembra que, para Bourdieu, no universo social,
além de bens materiais força de trabalho, mercadorias, serviços circulam
também bens simbólicos informações, conhecimentos, livros, obras de arte,
música, teatro; a linguagem é um desses bens simbólicos. A estrutura social
organiza-se através da troca de bens, materiais ou simbólicos, entre grupos e entre
indivíduos. Numa sociedade capitalista, essa troca cria relações de força materiais,
em que se opõem ‘possuidores’ e ‘possuídos’, ‘dominantes’ e ‘dominados’, e
relações de força simbólicas, em que a posse e a dominação não se dão através de
meios materiais, mas de meios simbólicos (SOARES, 2002, p. 55-56, grifo da
autora).
Assim, o jeitinho se consagra nas relações de força simbólicas em que o valor dessa
moeda de troca lingüística é um dos recursos ou uma das principais táticas de que dispomos para
navegarmos ou trafegarmos com sucesso, mesmo que inconscientemente, nas diversas esferas do
cotidiano da sociedade brasileira, pois toda situação lingüística portanto, todo tipo de interação
que estabelecemos funciona como um mercado em que os bens que se trocam são palavras,
expressões e enunciados.
Nesse mercado lingüístico, todas as falas são negociáveis. O jeitinho brasileiro transforma
os diversos enunciados em produtos rentáveis que fazem parte de um contrato ou acordo social
acordo esse que se mantém em nossa comunidade lingüística e está codificado na língua que
usamos. Tal acordo, no entanto, é implícito e não abertamente declarado, mas seus termos são
rigorosamente observados por todos.
3.6.2 A Estigmatização de Quem Não Aceita Dar um Jeitinho
Todavia, se uma pessoa não tem a quem recorrer, um “tio” ou “padrinho”, por exemplo,
existe a possibilidade de que ela seja deixada de lado, pois não é possuidora de nenhum prestígio
social que possa “usar” em troca da “aceleração” ou da simples resolução de seu caso. A pessoa
torna-se simplesmente mais um na multidão, sem privilégios, sem atenção especial.
Existe um outro tipo que seria o daquela pessoa que simplesmente não gosta de dar um
jeitinho, não concorda com esse tipo de comportamento, esperando conseguir o que tem direito sem
precisar recorrer a essa instituição social.
Goffman (1988, p. 11) argumenta que “a sociedade estabelece os meios de categorizar as
pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma
dessas categorias”. Quem não se enquadra, é visto de forma diferente pela sociedade em que vive.
Em nossa pesquisa de campo, por exemplo, identificamos que as pessoas que se negavam a praticar
o jeitinho eram geralmente taxadas como antipáticas, arrogantes, fora de contexto, “quadradas”,
“caretas”, rígidas ou excessivamente formais ou simplesmente metidas a serem diferentes dos
outros mortais”.
Peguemos o caso de um professor, por exemplo. Ele será mal-visto pelos alunos se: (i)
deseja aproveitar até o último minuto da última aula da noite para ensinar o conteúdo programático
ao invés de liberar todos, que pagam seus próprios cursos, mais cedo; (ii) exige o cumprimento dos
prazos de entrega de trabalhos e relatórios; (iii) não concede adiamentos; (iv) não “trabalhos”
para comple(men)tar notas baixas dos alunos; (v) não abona faltas sem atestado médico; (vi) não faz
“vista grossa” quanto aos atrasos dos alunos; etc.
As pessoas sem “prestígio” ou que evitam o jeitinho acabam sofrendo algum tipo de
preconceito ou são estigmatizadas por não se encaixarem na categoria das pessoas que possuem o
hábito de tentar burlar as regras legais e as normas de convivência social em suas vidas cotidianas.
Segundo Goffman (1988, p. 12), “as rotinas de relação social em ambientes estabelecidos
nos permitem um relacionamento com ’outras pessoas’ previstas sem atenção ou reflexão
particular.”
Contudo, o autor esclarece que quando somos apresentados a alguém, imediata e
inconscientemente, estabelecemos os aspectos que nos ajudam a prever sua categoria e os atributos
que formam sua identidade social. Na realidade, pré-estabelecemos, ou pré-encaixamos a pessoa em
um papel social de acordo com nossos parâmetros pessoais e sociais.
Assim, nossas preconcepções são transformadas em expectativas normativas e passamos a
rotular as pessoas de acordo com nossas normas.
Em nossas observações, verificamos que algumas pessoas sofrem certa estigmatização
social por não serem tão “habilidosas” no uso da linguagem do jeitinho. A pessoa que tem
dificuldade em adequar a variedade lingüística que usa para pedir um jeitinho, ou simplesmente se
comunicar, pode se ver estigmatizada em determinados ambientes.
Ou seja, uma incompetência, ou inabilidade, comunicativa
75
pode dificultar o processo
comunicativo nas relações sociais que precisamos estabelecer em nosso cotidiano para conseguir
objetivos variados. Dessa forma, a pessoa acaba sofrendo um tipo de preconceito lingüístico e/ou
social por essa inadequação em sua variedade lingüística.
No outro caso, se a pessoa não dispõe de um “conhecido” para resolver um problema,
provavelmente será deixada de lado. Talvez até ouça algo do gênero: Esse é um pobre coitado.
Vai penar até conseguir o(a) ......”.
75
De acordo com Hudson (1980, p. 219-224), o termo “incompetência comunicativa” é usado em contraste com o
termo “competência comunicativa” estabelecida por Dell Hymes. Se esta demonstra uma habilidade do falante em
usar as formas lingüísticas apropriadamente de acordo com quem está falando, quando, onde, sobre o quê, etc.,
aquela demonstra justamente o contrário, ou seja, uma inabilidade do falante no uso de formas lingüísticas
apropriadas.
O preço pago pela pessoa que evita usar o jeitinho ou não tem “conhecido” nos mais
diferentes lugares pode ser uma espécie de exclusão social. Embora não achemos que essas pessoas
façam parte de um percentual muito alto em nosso meio social, o preconceito e a exclusão
acontecem.
A relação entre estigmatização lingüística e prestígio social demonstram, de certa forma, a
importância de analisarmos a questão da cotação de mercado da linguagem do jeitinho no meio
social em que vivemos. Uma vez que as manifestações lingüísticas recebem um valor social, é certo
que a renda, o sexo, a faixa etária e nível escolar do locutor, entre outros fatores sociais, exercem
certa influência.
Em nosso caso, “estigmatizada” é a pessoa que tem o estigma, a marca, o rótulo de ser
sempre “certinha”, “correta”, “super-ética” entre outras qualidades. Todos passam a vê-la como se
fosse um ET.
“Preconceito” é o que apresentamos em relação à pessoa que não consegue se expressar
correta ou adequadamente. Pede o jeitinho usando uma variedade lingüística não-institucionalizada
(não-padrão) em um ambiente em que todos tendem a usar a norma padrão. Utiliza-se de uma
variedade diatópica de outra região em ambiente em que todos acham graça (p. ex. o uso do “r”
exageradamente retroflexo do interior paulista ou paranaense em uma loja para jovens na cidade do
Rio de Janeiro). Ou ainda, expressa-se inadequadamente com uma variedade diastrática bem
humilde em ambiente em que todos são da classe média alta.
Infelizmente, como bem coloca Bagno (2001, p. 48), “o preconceito parece ser algo
inerente ao ser humano que vive em sociedade.”
O preconceito que em muitos casos não é contra o jeitinho, mas contra à forma e à
inadequação contextual de seu uso é “apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da
manipulação ideológica” (Bagno, 2003a, p. 13), geralmente alimentado pelos diversos “mitos” que
se estabeleceram em nosso meio social.
Bagno (2003b, p. 16) conclui que “o preconceito lingüístico não existe. O que existe, de
fato, é um profundo e entranhado preconceito social”, com o qual concordamos, pois nos dois casos
citados acima o preconceito e a estigmatização continuam sendo uma realidade imposta pela nossa
herança sociocultural e o uso “correto” da língua.
4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
Realizada a pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo, apresentamos neste capítulo
uma análise e interpretação de alguns enunciados empregados na cultura do jeitinho brasileiro
tomando como base para a nossa discussão o referencial teórico-metodológico exposto no capítulo
anterior. Os exemplos utilizados fazem parte do corpus de nossa pesquisa. As conversas e os
trechos são descritos em blocos únicos, semelhantes ao formato de conversação usado por Gumperz
no livro Discourse strategies(1994). As normas utilizadas na transcrição das falas encontram-se no
ANEXO A.
A análise proposta tem como objetivo principal fazer uma leitura sobre um recorte
sincrônico do tipo de linguagem empregada no dia-a-dia da cultura do jeitinho brasileiro conforme
realizada durante o período de agosto de 2005 a agosto de 2006 na comunidade fronteiriça - e,
portanto, sociolingüisticamente complexa – de Foz do Iguaçu.
Devido à essa complexidade, pensamos em fazer uma leitura que nos permitisse ver esse
tipo de linguagem a partir de realidades lingüísticas diferentes. Elia (1987, p. 89), por exemplo,
afirma que a “língua não é estrutura; é também instituição. Isto é, não se reduz a formas, mas
possui também conteúdo cultural.” (grifo nosso) Como a linguagem do jeitinho também pode ser
vista como um recurso argumentativo, referimo-nos a Breton (2003, p. 12-13) que afirma ser a
Argumentação uma ‘interdisciplina’, inserida no campo das ‘ciências da comunicação’, que deve
tratar “de tudo o que está relacionado com a formatação [...] das mensagens, bem como a
significação social de tais processos”. (grifo nosso)
Assim, propomos realizar a análise e a interpretação dos dados a partir de duas
perspectivas: (i) quanto à forma de expressão (a escolha das palavras, a sintaxe do enunciado, a
variedade lingüística empregada, etc.); e (ii) quanto ao conteúdo da expressão (a mensagem que o
locutor deseja passar, a significação social do que é dito, a intenção do falante, etc.). Visto que
forma e conteúdo são duas realidades imbricadas, tentamos redigir esse capítulo de maneira que
essa distinção ficasse clara sem que precisássemos ficar identificando cada uma delas o tempo todo.
O que não impede que ambas possam ser analisados dentro de uma mesma seção ou subseção, ou
até mesmo ocorrer uma sobreposição inevitável e didaticamente necessária das duas realidades
na discussão do tema.
4.1 O Porquê do Recorte Sincrônico
Embora Rosenn
76
argumente que o jeitinho brasileiro esteja presente na sociedade
brasileira desde sua colonização, não como levantarmos, no momento presente, o tipo de
linguagem que se usava na época e as prováveis mudanças que certamente ocorreram. Ou mesmo
provar que o jeitinho começou no Brasil durante a colonização portuguesa, ou que existia em
Portugal e foi trazido para o Brasil ainda que a argumentação apresentada pelo autor tenha lógica
e seja convincente.
Leers (1982), Barbosa (1992) e Rega (2000), três autores brasileiros que escreveram livros
sobre o jeitinho, não fizeram um levantamento histórico do fenômeno, embora teçam comentários
sobre suas raízes. Uma das explicações é a falta de registros escritos e orais disponíveis para esse
tipo de pesquisa. Em suas pesquisas, Barbosa (1992, p. 140) concluiu que “fazer uma história do
jeitinho mostrou-se tarefa quase impossível. Por ser uma forma de procedimento social, de
aprendizado implícito, não existem registros sistemáticos a seu respeito.” Os três autores enfocam
suas pesquisas e análises no fenômeno como ele se apresenta hoje.
Leers (1982, p. 65), por exemplo, sugere que o jeitinho é produto da pressão social que
sofre o falante e nasce mediante uma situação crítica em que este se encontra. O autor apresenta
inclusive uma hipótese: quanto maior for a pressão, maior será a criatividade no uso do jeitinho. A
linguagem e a atitude lingüística serão mais “trabalhadas”.
Barbosa (1992) defende a tese de que usamos o jeitinho porque buscamos uma situação de
igualdade com as outras pessoas, ou seja, Se ele conseguiu, eu também quero. Nem que tenha que
dar um jeitinho para conseguir.
Em uma linha semelhante à Teoria das Trocas Lingüísticas de Bourdieu (1996), Rega
(2000, p. 45) também interpreta o jeitinho como uma moeda de troca lingüística. Segundo Rega, “a
moeda corrente que mais se usa nesta nação parece ser o jeitinho. É com ele que muitas portas se
abrem.”
Sabemos também que o excesso de burocracia e formalismo ajuda a alimentar a
76
O capítulo II As raízes do jeito” (1998, p. 17-49) apresenta uma história jurídico-socio-econômica sobre a
colonização do Brasil pelos portugueses e sua influência na construção do jeitinho brasileiro como fato
sociocultural.
“impaciência” que um brasileiro geralmente apresenta diante dessa realidade. Quem nunca ouviu,
em repartições públicas, por exemplo, enunciados do tipo Libera isso aqui [um documento] pra
amanhã que eu te dou uma cerveja gorda.” Expressão que neste contexto significa algo como “uma
gorjeta alta”, “um bom dinheiro por fora”.
Rastrear as raízes do jeitinho brasileiro e de sua linguagem não é objeto de nossas
pesquisas no momento. Por isso, a leitura do recorte sincrônico proposta acima.
4.2 Funções Sociais da Linguagem do Jeitinho
Pensamos que a existência do jeitinho brasileiro e de sua linguagem típica não seja
influenciada por um único fator, mas pela convergência de vários fatores lingüísticos,
socioculturais, históricos, políticos, dentre outros que coabitam pacificamente o universo cotidiano
das diversas interações do povo brasileiro. No entanto, parece que é na e pela linguagem do hábito
enraizado da atitude lingüística do falante brasileiro que insiste em transgredir normas sociais,
jurídicas, entre outras que encontramos a sua fonte mais expressiva. Fonte essa que gera, transmite,
retro-alimenta e causa repercussões diversas nas inter-ações que realizamos em nosso cotidiano.
É, pois, com base nesses fatores, que os falantes nativos realizam diversas funções sociais
na linguagem do jeitinho tais como fazer um pedido; solicitar uma intermediação; enganar;
persuadir; controlar; mandar; seduzir; corromper; favorecer alguém; etc.
Um desses fatores, por exemplo, encontra respaldo na afirmação de Labov (1991, p. 183)
quando o autor afirma que “a linguagem é uma forma de comportamento social [...] usada pelos
seres humanos em um contexto social para comunicar suas necessidades, idéias e emoções.” (grifos
nossos)
Muitas vezes, é no atendimento a necessidades cujo beneficiário é geralmente a própria
pessoa que necessita do “favor” um típico comportamento social egocêntrico que a linguagem
do jeitinho encontra uma de suas principais fontes inspiradoras. Essas “necessidades” podem se
apresentar como sendo:
(i) aquelas de última hora, emergenciais, p. ex.
(informante (I) conversando com despachante (D))
I: Esse documento é pra ontem. um jeito de resolver isso logo. Nem que você tenha que
pagar. Solta lá uma grana que eles resolvem.”,
D: “Pode deixar comigo, doutor.”
(ii) egocêntricas, p. ex.
(informante (I) conversando baixinho com funcionário público (FP))
I: Eu sei que tem gente na minha frente. Mas é que eu preciso desse documento pra hoje. Que é
que nós podemos fazer? (por “Nós” podemos entender “eu”, o locutor desesperadamente
necessitado, e que deixou para última hora aquilo que poderia ter feito antes, e que acaba dando
um dinheiro por fora para resolver seu problema, e “você”, o interlocutor “disponível”, que aceita
o dinheiro e dá prioridade à resolução do problema fora da ordem de chegada).
FP: Eu vou ver o que posso fazer. Faz assim. O senhor passa mais tarde aqui e fala diretamente
comigo. OK?”
Nesses exemplos, vemos que o jeitinho pode ser obtido com sucesso se houver um
movimento, uma ação de concordância entre as duas partes, ou uma inter-ação como sugere Koch
(2006) ao explicar que a linguagem é um evento de “inter-ação”, ou seja, uma ação inter-individual
e, portanto, social. A autora menciona a questão da “necessidade” quando cita P. Bange (1983 apud
KOCH, 2006, p. 75) e sua argumentação de que “um ato de linguagem não é apenas um ato de dizer
e de querer dizer, mas, sobretudo, essencialmente um ato social pelo qual os membros de uma
comunidade ‘inter-agem’” (grifos da autora).
Nos exemplos citados acima, os dois lados realizam um ato de dizer e de querer dizer o
que disseram por meio do ato social de pedir a um interlocutor que faça tudo que estiver ao seu
alcance para que o locutor obtenha o que deseja. É mediante esses atos lingüísticos e socioculturais
que os falantes têm a oportunidade de negociar suas “necessidades” e de ter seus objetivos e desejos
sociais atendidos.
4.2.1 Negociando com o Conflito na Linguagem do Jeitinho
Nagamine Brandão (2004, p. 108) compartilha visão semelhante quando afirma que:
na perspectiva discursiva, a linguagem não é vista apenas como instrumento de
comunicação, de transmissão de informação ou como suporte do pensamento;
linguagem é interação, um modo de ação social. Nesse sentido, é lugar de conflito,
de confronto ideológico em que a significação se apresenta em toda a sua
complexidade.
Parece haver consenso entre os teóricos que mencionamos quanto ao fato de ser a
linguagem um modo de ação social. Não obstante, a linguagem do jeitinho, embora também possa
representar um lugar de conflito (p. ex. quando tentamos obrigar nosso interlocutor a dar um
jeitinho), parece buscar justamente o seu oposto. Nossas pesquisas de campo e estudo da
bibliografia mostraram que os interlocutores que usam esse tipo de linguagem geralmente buscam:
acordo, adequação, aliança, conciliação, concordância, consonância, convergência, entendimento,
identidade, ligação, pacto, paz, união.
Evitando enunciados que sugiram: atrito, confronto, controvérsia, desacordo, desavença,
diferença, discórdia, discussão, divergência, hostilidade, inimizade, mal-entendido, resistência,
rixa.
77
. O objetivo principal desse tipo de linguagem não é conflitar –que resultaria em uma não-
concessão do jeitinho –, e sim fazer com que o jeitinho seja concedido – que só é possível se houver
acordo entre os dois lados.
Podemos argumentar que no enunciado Prof. me meio ponto, vai? Se não, eu não
passo”, a linguagem usada por uma acadêmica poderia parecer inicialmente uma tentativa de criar
um conflito, talvez mais especificamente um dilema, para o professor. Por ser uma relação
hierarquizada portanto, contendo uma relação de poder - a acadêmica usa uma argumentação
apelativa e de transferência de responsabilidade. O uso da forma prof ao invés de professor, ou
professor “fulano”, ou simplesmente o uso do nome do professor, tenta iniciar a solicitação do
jeitinho de maneira intimista, trazendo o professor para uma esfera de amizade como se ambos
77
Os sinônimos e antônimos foram pesquisados nos dicionários Houaiss (2001, 2003 e versão online).
fossem “colegas” de trabalho ou de turma.
A transferência de responsabilidade, típica na linguagem do jeitinho, é aqui representada
pelo enunciado “Se não, eu não passo” como se passar ou não dependesse unicamente do professor.
É como se a acadêmica dissesse Se você não me der meio ponto, eu não passarei. Se você me der
meio ponto, então eu passo. Ou seja, o que acontecerá com a acadêmica é responsabilidade
única do professor, como se ela “lavasse as mãos” e não tivesse absolutamente nada a ver com isso.
É como se a necessidade da acadêmica tivesse que ser atendida pelo professor, quando na verdade
ela é a pessoa que deve buscar o preenchimento dessa necessidade.
4.2.2 A Influência dos Fatores Sócio-pragmáticos
Desse modo, sabemos que quando duas pessoas interagem muito mais do que
simplesmente a expressão de uma mensagem. Além do conteúdo e das necessidades presentes na
comunicação, a linguagem usada é também influenciada por um número de fatores sociais que
definem o relacionamento entre os interlocutores. Consideremos, por exemplo, um professor que
solicite a um acadêmico para fechar a janela da sala de aula devido ao barulho externo. Tal pedido
pode ser feito de forma: (i) educada (“Você pode fechar a janela, por favor?”); (ii) indireta (Nossa!
Está muito barulho fora, não?”); (iii) irritada (Pô! pra alguém fechar essa porcaria de
janela!); entre outras.
A mais adequada seria a primeira, enquanto a terceira seria certamente inadequada para
um ambiente educacional. A inadequação é uma decisão social de nossa competência comunicativa
ligada a fatores sociais que modelam o relacionando entre o professor e seus alunos. Portanto, para
que a comunicação possa ser lingüística, social e pragmaticamente eficaz quando decidimos por um
determinado enunciado, existem fatores que devem ser considerados, por exemplo: (i) o perfil dos
interlocutores; (ii) o tipo de ambiente social (p. ex. formal ou informal); (iii) o papel de cada
participante na interação (p. ex. professor acadêmico); (iv) os objetivos envolvidos; (v) o tópico
sendo desenvolvido; entre outros.
Esses fatores também influenciam os falantes na escolha da variedade lingüística que usam
para pedir um jeitinho. Sabemos que uma diferença no tipo de linguagem empregada quando
falamos com pessoas conhecidas e estranhas, quando interagimos com colegas de trabalho ou de
estudo, nossos familiares, etc. Assim, nossa competência comunicativa nos mostra qual a linguagem
mais adequada a ser utilizada para se pedir um jeitinho com os diferentes interlocutores.
Um dos informantes, funcionário público, nos disse que a ‘desculpa’ [o jeitinho] usada
depende da escolaridade e da posição social da pessoa. Quanto maior o nível, mais arrogante e
sofisticada é a maneira de falar. Quanto menor o nível, o que a pessoa diz é mais humilde e
simples.” Essa postura encontra respaldo em Preti (2003, p. 47-48) quando o autor esclarece que:
no estudo das variações lingüísticas, parece consenso geral que a linguagem culta é
aquela de maior prestígio social, isto é, a que se impõe como uma marca
característica dos falantes com maior grau de escolaridade. [...] Sob um ponto de
vista sociolingüístico, poderíamos dizer, com Bourdieu, que o prestígio de uma
língua decorre diretamente do prestígio dos que a falam.
Dessa forma, ‘o prestígio lingüístico é um conceito que traduz uma espécie de juízo de
valor coletivo sobre o desempenho lingüístico (performance) de cada falante, hierarquizando-o
valorativamente na sociedade’ (SANTOS, 2002, p. 38).
4.3 Sugestão de Taxonomia da Linguagem do Jeitinho
Nossas observações mostraram que as negociações que ocorrem dentro da cultura do
jeitinho por meio da linguagem podem ser realizadas por meio de diferentes formas de
comunicação e diferentes recursos podem ser aplicados. Com base nessas observações, uma
proposta de classificação da linguagem do jeitinho poderia ser a seguinte: (i) verbal; (ii) não-
verbal ou paralingüística; (iii) supra-segmental; (iv) direta; (v) indireta; (vi) intencional ou
consciente; (vii) involuntária ou espontânea; (viii) racional ou intelectual; e (ix) emotiva ou
sentimental.
Na linguagem verbal, utilizamos a palavra, que pode ser expressa de forma oral, p. ex.
Quem tem uma cópia tem que ficar na fila? (APÊNDICE F, exemplo nº 5)
78
ou escrita, p. ex.
“...sacoleiros que tentaram burlar fiscalização”.
79
Na linguagem não-verbalou paralingüística, comunicamo-nos por meio de gestos, um
olhar, um riso, uma expressão facial, uma ação sem palavras, um comportamento, uma atitude, p.
ex. o motorista que “aponta e faz um sinal de “OK” para um guarda de trânsito que está a certa
distância “perguntando”, ou sinalizando, se pode estacionar “rapidinho” ou fazer um retorno em
lugar proibido. Um outro exemplo vem da colunista Samyra Nassar (2005, p. 6): “...o que mais tem
é gente reduzindo onde estavam localizados os ‘pardais’ porque se acredita que eles ainda estejam
funcionando” comentando sobre o ‘hábito’ (leia-se jeitinho) que os motoristas de Foz do Iguaçu têm
de reduzir a velocidade do carro quando passam por um ‘pardal’ (equipamento eletrônico usado
para detectar e fotografar infrações de trânsito). A crítica de Nassar evidencia a cultura do jeitinho,
pois mostra que, mesmo depois de terem sido desligados um dos primeiros atos do novo prefeito
da cidade –, os motoristas continuam a agir do mesmo jeito.
Na linguagem supra-segmental, verificamos o emprego de recursos supra-segmentais
80
,
ou seja, mecanismos de natureza lingüística, porém de caráter não-verbal. Entre esses recursos,
Marcuschi (2003, p. 63-66), por exemplo, menciona a pausa, o tom de voz, a entonação, a cadência
e a velocidade que, segundo o autor, “caracterizam e marcam relações pessoais e de conteúdo”.
Gumperz (1994, p. 100-129) faz uma investigação detalhada – por exemplo no capítulo V “Prosody
in conversation acerca da função comunicativa desses sinais. Em nosso corpus, encontramos
uma enunciação em que um acadêmico fura a fila em uma copiadora, deixa um livro com a
atendente e diz o seguinte: Tudo bem?”(com entonação ascendente) (exemplo 8). A entonação
ascendente usada pelo acadêmico pode ser interpretada como um pedido de jeitinho. Como se
78
No APÊNDICE F, encontram-se os exemplos de número 1 ao 22.
79
Tablóide Gazeta do Iguaçu, Foz do Iguaçu, 17 nov. 2005, manchete na 1ª página.
80
Esta classificação foi sugerida com base no texto “Classes de marcadores” desenvolvida por Marcuschi (2003, 62-
66). Na definição de Crystal (2000, p. 249), supra-segmental é um termo usado na fonética e na fonologia para
indicar um efeito vocal que se estende por mais de um segmento de som no enunciado, como pitch (melodia), acento
e juntura.
tivesse dito: Estou deixando o livro aqui, pois estou com pressa e a fila está muito grande. Você
pode tirar cópia pra mim que depois eu pego?
Na linguagem direta, observamos que o falante pede a concessão do jeitinho sem rodeios,
não fica dando voltas, vai direto ao assunto, p. ex.: “Alivia aí, prof.” (exemplo nº 1)
Na linguagem indireta, diferentemente da anterior, percebemos que o locutor evita falar
diretamente sobre o assunto, fica rodeando, enviando sinais lingüísticos ou “tateando”, conforme
disse um dos informantes para pedir ou saber se deve pedir o jeitinho, p. ex.Professor, tem que
ficar depois de apresentar?” (exemplo nº 14)
Na linguagem intencional ou consciente, notamos que o falante está consciente ou faz uma
reflexão sobre o ato lingüístico e sociocultural que deseja realizar ou está realizando. Leers (1982, p.
47) considera o jeitinho uma atividade intencional, um “jeito” que o ser humano encontra para,
usando a cabeça, escapar de um aperto ou ajudar o outro, passando por cima da lei socializada, p.
ex. “Posso deixar esses documentos aqui e pegar depois?” (exemplo, nº 7)
Na linguagem involuntária ou espontânea, constatamos que o falante pede o jeitinho de
forma automática, sem reflexão. Por ser uma cultura internalizada na competência lingüística e
comunicativa do falante nativo, muitas vezes ele não se conta de que está realizando um ato
ilegal, às vezes, mesmo quando lhe chamam a atenção para isso. Alguns informantes alegaram nas
entrevistas que conheciam pessoas que davam jeitinho, mas que eles próprios não tinham essa
prática. No entanto, quando nos encontravam posteriormente, diziam-se surpresos por verificarem
que eles próprios faziam uso desse tipo de linguagem em seu dia-a-dia e nem haviam se apercebido
disso. “Eu sei que é proibido estacionar neste local, mas todo mundo estaciona. Aí, eu acabo
estacionando também, né?” (exemplo, nº 18)
Na linguagem racional ou intelectual, observamos que o ato lingüístico do jeitinho
apresenta toda uma “trama” complexa e intelectualmente trabalhada, por meios de argumentos, por
exemplo, que o locutor usa com o intuito de convencer seu interlocutor sobre a importância daquele
conseguir o que almeja. O exemplo nº 15 de nosso corpus exemplifica bem esse tipo de linguagem.
Com o enunciado O senhor viu que no maió sufoco” o acadêmico cria um quadro crítico de
sua situação. E em seguida, compartilhando, ou transferindo, o problema para o professor, diz o
que podemos fazer?”, pedindo ao professor que dê um jeitinho de encontrar uma solução para o seu
(do acadêmico) problema.
Na linguagem emotiva ou sentimental, verificamos que o locutor apela para o “drama
social, a emoção, a sentimentalidade, o coração “mole” do interlocutor, com o objetivo de criar uma
atmosfera de piedade, de compaixão, de sensibilidade, de comoção, muitas vezes, impondo ao
interlocutor o ônus da culpa caso o pedido não seja concedido, p. ex. Mas professor, é a
minha....é que eu não vou poder vir amanhã. Além disso, não vou conseguir dormir hoje à noite.”
(exemplo nº 4)
Naturalmente devem existir outras classificações para um fenômeno lingüístico e
sociocultural tão complexo quanto a linguagem do jeitinho brasileiro, mas acreditamos que os
modelos apresentados acima sirvam como principais para as diferentes enunciações que observamos
em nossa pesquisa.
4.4O“Poder” do Léxico na Linguagem do Jeitinho
As palavras não são somente unidades lingüísticas, mas também elementos da cultura que
preservamos ao longo dos tempos. O apego de nosso atual presidente, Luis Inácio Lula da Silva, às
metáforas futebolísticas, por exemplo, revela-se como pura expressão de sua brasilidade, o que o
ajuda a reforçar sua imagem e identidade nacional perante seus eleitores, pois uma das
características do léxico é justamente expressar o conjunto de valores, o espírito de um povo, de
seus usuários (RIBEIRO, 2006).
São inegáveis as influências socioculturais da carga semântica, pragmática,
sociolingüística nos significados das palavras que usamos. O antropólogo Franz Boas difundiu o
que talvez seja o exemplo mais comentado sobre as diferenças vocabulares entre os diferentes
códigos lingüísticos. Ao analisar a língua dos esquimós, ele observou que as palavras “neve” e
“branco” possuem um número muito maior de vocábulos relacionados à sua natureza semântica do
que nas línguas ocidentais. Para Boas, esse fato justificava-se pela maior importância sociocultural
dessas distinções para o mundo dos esquimós do que para o nosso (REVISTA DISCUTINDO
LÍNGUA PORTUGUESA, 2006).
Segundo Leers (1982, p. 44), jeito, jeitinho e jeitão são variáveis presentes no vocabulário
popular. Para o autor, essas variáveis representam uma “técnica de viver do povo” que, com seus
diferentes significados polissêmicos, correspondem a “táticas” diferentes de persuasão na vida
cotidiana.
As palavras jeito e jeitinho são como a marca “Bombril”, ou seja, podem ter “mil e uma
utilidades”, como dizia o ator Carlos Moreno, garoto propaganda da empresa de 1978 a 2004. Aliás,
“flexibilidade” e “versatilidade” são características marcantes na linguagem do jeitinho brasileiro.
Na versão online do dicionário Houaiss da Língua Portuguesa , por exemplo, o verbete “jeito”
aparece com dez acepções e em mais de cento e vinte locuções.
Sem mencionar as diferentes interpretações que a palavra permite fazer na cultura do
jeitinho brasileiro em seus mais variados contextos pragmático-sociolingüísticos, p. ex.
O senhor não pode dar um jeito na minha nota?(jeito = aumentar a nota da prova)
Você não pode dar um jeitinho pra mim no Detran?(jeitinho = conseguir a liberação de
minha carteira de motorista o mais rápido possível)
Essa multa não tem jeito?” (jeito = preço, “pagamento por fora”, propina) etc.
Ou seja, jeit(inh)o para quase tudo no universo lingüístico e sociocultural do povo
brasileiro. É como se o jeitinho fosse uma panacéia universal, um “remédio” ou uma solução para
todos os problemas e dificuldades que os brasileiros enfrentam em seu dia-a-dia. Isso se porque,
“por meio da língua, o homem recria a realidade, interpretando-a e repassando [essas interpretações]
aos demais” (BRANDÃO, S., 2005b, p. 364).
No campo da sinonímia, encontramos um cardápio lingüístico e sociocultural de causar
inveja a qualquer estudioso do léxico nacional. Na área de vocábulos, podemos citar:
“Não tem um modo de fazer isso diferente não?”
“Não dá pra fazer um arranjo, uma arrumação aí, entendeu?”
“Fica melhor e mais barato você participar.”(exemplo nº 24)
“Não tem nenhum artifício que a gente pode usar pra trocar isso?”
“Você tem alguma influência nessa repartição pública?” (pessoa conhecida que possa
“influenciar” quem poderia resolver esse problema para mim?)
“... com a manobra, [o ex-deputado federal] poderá concorrer às eleições do ano que
vem”(Jornal do Iguaçu, 19 out. 2006, p. 4). O assunto é nacional, mas o discurso foi escrito
pelo colunista Dudu, morador de Foz do Iguaçu.
“Aí, mermão. Não dá pra facilitar, não?”
“Fulano só passou porque foi favorecido.”
“Faz esse favor aí pra mim, vai?.”
“Esse documento é pra ontem. Se você se empenhar, tenho certeza que vai conseguir.”
“Tô precisando de um pistolão pra resolver isso pra mim.”
“Esse cara é o maior vaselina. Jeitoso como ele só....”
A: “O pára-lama do carro solto.” B: “Num tem problema. A gente faz uma gambiarra
[amarra ele com um arame, o que é proibido por lei] e tá resolvido.”
“Falar do Brasil oficial ou oficioso?” Neste caso, “oficioso” é jeitinho.
81
“....joga aquela conversinha...(conversa com o interlocutor para ver se ele libera o
pagamento de algo)
“Tô precisando de uma boca na Prefeitura (oportunidade de ganhar dinheiro cil, ou de
tirar proveito material de algo sem fazer esforço)
“... é possível observar as diversas artimanhas utilizadas pelo tráfico no transporte de
drogas” (A Gazeta do Iguaçu, 14 jul. 2006, p. 32).
81
Lívia Barbosa morou um tempo fora do Brasil. “Quando era solicitada a descrever o Brasil e os brasileiros, o que
dizer?” Este é o contexto em que a frase acima surge. (1992, p. 4).
“Não há acordo quando se fala em fiscalização”(A Gazeta do Iguaçu, 3 nov. 2005, p. 7).
“O Fernando Carracho fez uma reportagem super legal sobre as mordidas dos guardas de
trânsito, que usam moleques para cobrar propina dos motoristas que não querem ficar horas
nas congestionadas ruas de acesso a ponte de Ciudad del Este. Eu mesmo vi a operação
como funciona e até paguei cincão uma vez para furar uma fila. Legal, colega!”(Jornal do
Iguaçu, 22 out. 2005, p. 8).
82
“Os mototaxistas brasileiros que atuam na região da Ponte Internacional da Amizade se
reuniram ontem ... com o diretor do Foztrans ... para cobrar uma fiscalização constante e
mais rigorosa dos ‘piranheiros’ (ilegais). A categoria alega que a falta de controle tem
atraído um número cada vez maior de irregulares tanto brasileiros como paraguaios (A
Gazeta do Iguaçu, 22 nov. 2005, p. 9). Interessante observar que o Dicionário
sociolingüístico paranaense (FILIPAK, 2002, p. 288) registra apenas o vocábulo “piranha”.
Dentre as acepções apresentadas nesse verbete, encontramos “taxista da periferia da cidade
que rouba passageiros no centro de Curitiba”, em um sentido figurado e típico de Curitiba. Em
Foz, parece que a palavra foi adaptada para ‘piranheiro’ fazendo referência a mototaxistas e
não motoristas.
Eu dei um agrado para o fiscal que deixou a coisa pra .” (não cobrou o imposto que
deveria cobrar)
Mas, isso é praxe! Todo mundo faz assim.”
O aspecto jurídico-legal que invalida a linguagem do jeitinho e que muitos se recusam a
ver é baseado na lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990 que define crimes contra a ordem
tributária e econômica e contra as relações de consumo.
O artigo 2º, inciso I, estabelece o seguinte crime:
“Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:
I fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou
empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de
tributo;” (HARADA, 2005)
82
O autor desse parágrafo, apresentado na coluna Opinião com o título TV Cataratas, Chico Alencar, é morador de
Foz e colunista do tablóide Jornal do Iguaçu. Seu discurso demonstra claramente o estudo que fazemos da
linguagem na cultura do jeitinho brasileiro.
O vocábulo assim chama a atenção na cultura do jeitinho em Foz do Iguaçu. Primeiro, por
aparecer com freqüência nos enunciados produzidos pelos informantes. Segundo, por ser usado
principalmente em enunciações que envolvam aspectos políticos, administrativos, burocráticos,
formais, etc.. E terceiro, por servir como justificativa-mor para a utilização e manutenção do
jeitinho, afinal “Todo mundo faz assim.” (por que eu não faria?)
Esse recurso polifônico tem sua lógica, pois, conforme definição do dicionário Houaiss,
versão online, o advérbio assim significa:
(i) deste, desse ou daquele modo, p. ex.
Olhe o modo como ele serra: assim não vai conseguir.”;
(ii) com características semelhantes; de natureza igual, p. ex.
Não me lembro de ter visto outra tempestade assim.”;
(iii) em (ou com) grande quantidade, p. ex.
A praça está assim de gente.
Na linguagem do jeitinho brasileiro em Foz do Iguaçu, encontramos exemplos nas três
acepções:
(i) Aqui em Foz é assim.”,Aqui a gente faz assim.”, “Em Foz é assim mesmo.
Nesses enunciados, assim significa “Não tem problema. Pode fazer também, pois é desse
modo que as pessoas fazem em Foz”. Qual o morador de Foz que não compra produtos
ilegais no Paraguai e entra com eles sem declarar no Brasil? O Paraguai é logo ali, e é
muito mais barato. Por que pagar o dobro? Essa é uma prática comum no cotidiano da
cidade. Esses são os pressupostos e os subentendidos em assim.
(ii) Lá em casa todo mundo dá um jeitinho. Por que eu não ia dá também? Sempre foi assim.
Neste caso, o vocábulo assim evoca uma ação de natureza ou características semelhantes
àquela que o locutor quer executar. Serve também como argumento de autoridade, por
buscar respaldo em uma autoridade exterior: “todo mundo lá de casa”, a família, tida como
“a célula mater da sociedade”, ou seja, aquela que dita as regras de convivência social. Ou
ainda como argumento de vínculo por se apoiar na partilha a priori de valores e crenças
teoricamente compartilhados por todos do seu grupo.
(iii) Não precisa regularizar a documentação do carro. Aqui [em Foz] ninguém regulariza. As
pessoas sempre fizeram assim.”
Pelo discurso apresentado, a impressão que temos é que essa não-ação ou seja, a não
transferência (obrigatória) de proprietário do veículo vendido ou comprado é realizada
em larga escala ou em grande quantidade, isto é, muitos agem dessa maneira. Portanto,
parece que o número de pessoas que dão um jeitinho é quase igual ao número de cidadãos
iguaçuenses que existem.
Teria essa percepção generalizada sobre a “legalidade” do jeitinho algo a ver com os
resultados da pesquisa IBOPE OPINIÃO que mencionamos no Capítulo 1? Na pesquisa citada, o
aspecto que mais chamou a atenção foram os altos índices de atos ilícitos praticados no dia-a-dia
pelos brasileiros, pessoas comuns como nós: você e eu.
Mas esse comportamento lingüístico não se aplica somente a atos ilícitos. Segundo Leers
(1982, p. 89), esse tipo de recurso lingüístico é encontrado até em enunciados aparentemente
religiosos, nos quais os interlocutores encontram um jeitinho de barganhar com Deus, p. ex.
Que Deus me perdoe se é pecado, mas não tem jeito. Vou ter que fazer assim.
Sei que Deus vai me entender se eu fizer isso.”
Deus quis assim.”
A própria expressão Deus é brasileiro.”, considerado por Ferreira (2001, p. 69) como um
enunciado representativo do modo de ser do brasileiro, pode ser incluída nesta relação.
Na realidade, os enunciadores dessas frases delegam a responsabilidade por suas ações a
um ser externo a eles, uma “autoridade maior”, livrando-se assim do ônus da culpa, caso alguma
coisa dê errado. Ouvimos de um informante a seguinte frase:
- “Na primeira vez que fiz vestibular, não passei porque Deus não quis.”
Uma outra ocorrência lexical observada foi o uso da palavra não. Dentro da cultura e da
linguagem do jeitinho brasileiro, o uso do advérbio de negação “não, como resposta a uma
solicitação, chama a atenção pelo histórico que apresenta. Conforme nos ensina o dicionário
Houaiss, versão online, o vocábulo “não” expressa negação e é usado “como recusa absoluta a uma
pergunta ou resposta”.
Por termos tido a chance de estudar e morar no exterior, sentimo-nos à vontade para
realizar um exercício de estranhamento e analisar a cultura do jeitinho brasileiro como se fôssemos
estrangeiros. Tivemos a oportunidade de morar na Europa
83
e sabemos que quando uma pessoa
infringe uma lei, a punição é certa. Quando um cidadão avança um sinal, por exemplo, e é multado
por um guarda de trânsito, não adianta conversar com o guarda: o caso está encerrado. lhe resta
pagar a multa. Caso o infrator insista em conversar com o guarda, certamente ouvirá um “não” ao
seu pedido de anulação da multa. Nos países da Europa, portanto, um “não” significa exatamente o
que denota a palavra, ou seja, é uma negação, e tem caráter definitivo, categórico e irrecorrível: os
próprios cidadãos nem o questionam.
no Brasil, a terra do jeitinho, um não de um guarda de trânsito pode significar um
bem ...”, talvez...”, quem sabe? e, com alguma “conversa” e uma “boa cervejinha”, um tudo
bem”, legal, mas dessa vez”, ou seja, um absoluto sim”, justamente o contrário de seu
significado original. Algumas pessoas podem até argumentar dizendo que os europeus são muito
rígidos, não têm “jogo de cintura”, enquanto os brasileiros são “mais flexíveis”, “gente boa”,
“sabem dançar conforme a música”, entre outras falácias lógicas.
Um raciocínio lógico seria então assumir que, uma vez que a palavra “não” não representa
necessariamente uma negativa, as leis, as normas, a constituição brasileira e as regras sociais
também não implicam barreiras definitivas e irrevogáveis para o comportamento e o desejo
daqueles que possuem as competências lingüística e comunicativa adequadas na terra do jeitinho.
Seria isso, ou estaríamos sendo muito rígidos como os europeus?
Além de palavras simples, encontramos também locuções, frases feitas
84
e expressões
idiomáticas que igualmente representam a instituição social do jeitinho, por exemplo:
83
O orientador na Alemanha e o orientando na Inglaterra.
84
Frases feitas são dizeres e expressões comuns aos falantes de uma língua. Quando ouvimos uma dessas frases
isoladamente, fora de contexto, somos capazes de recriar a situação em que se insere, p. ex. “A noite é uma
criança.”, “Até aí, morreu Neves.” (VELLASCO, 2005)
Quebra o galhoaí, vai?”
Não dá pra arranjar um jeito diferente?”
A gente podia aproveitar a ocasião!”
“... acusado de receber propina para “fazer vistas grossas” ao jogo do bicho(A Gazeta do
Iguaçu, 14 nov. 2005, p. 9).
Fazer cópia [de um software, ou seja, piratear] é uma saída
Vamos aproveitar que ele não tá olhando e tirar vantagem da situação.”
Todo mundo sabe que é crime [entrar com mercadoria acima da cota no Brasil sem
declarar e pagar o imposto devido]....mas tenta dar aquela escapadinha básica, passar
pela tangente...” (exemplo 21) (expressões usadas por uma informante que nasceu, foi
criada e nunca saiu de Foz)
É dar um por fora” ou “molhar a mão(REGA, 2000, p. 8) (para manter um comprador
fiel ou para escapar de uma multa de trânsito, por exemplo)
Com nota ou sem nota (fiscal) (Se emitir nota o vendedor paga imposto. Se não emitir, ele
sonega o imposto. Equivalente à expressão com ou sem recibo”, que apresenta o mesmo
dilema ético, muito utilizada por médicos, dentistas e prestadores de serviços na área da
saúde) (REGA, 2000, p. 8)
Negação da realidade, panos quentes, acobertamentos e ... não convencem nem uma
criança (A Gazeta do Iguaçu, 3 dez. 2005, p. 2).
Será preciso mexer os pauzinhos.” (adágio popular) (REGA, 2000, p. 23)
Me uma colher de chá, vai?” (Não seja tão rigoroso, formal, rígido quanto aos
procedimentos legais. Facilita aí pra mim, vai?)
pra descontar mais este cheque?” (Um cliente chegou na boca do caixa bancário que
tinha fechado e colocado o aviso “Fechado”.)
Ao ser interceptado o motorista apresentou a nota fiscal fria (Jornal do Iguaçu, 16 out.
2006, p. 16)
Os provérbios também apareceram em nossa pesquisa bibliográfica e de campo. Segundo
Vellasco (2005), um provérbio é uma designação genérica dos ditos cristalizados que exprimem, em
geral metaforicamente, uma verdade ou resumem uma experiência. É uma sentença independente e
de sentido completo, que direta ou indiretamente expressa um pensamento, uma experiência, uma
regra, uma norma, uma advertência, um conselho. Os provérbios podem ser meras estratégias pelas
quais alguém tenta persuadir outrem em direção a um argumento. A argumentação, conforme
fundamentada anteriormente, é uma das ferramentas de “trabalho” do jeitinho brasileiro. Dentre os
exemplos coletados, podemos citar:
Jogar verde para colher maduro.” (dá-se um jeitinho de obter uma informação que
aparentemente não está sendo revelada)
Tapar o sol com a peneira.” (dá-se um jeitinho de encobrir a verdade)
O que os olhos não vêem, o coração não sente.” (dá-se um jeitinho de não entrar em contato
com uma situação que nos aflige ou angustia)
Cachorro velho não aprende novos truques.” (dá-se um jeitinho de dizer que eu sei tudo e
não preciso que me ensinem mais nada, como se o conhecimento fosse finito)
O maior cego é aquele que não quer ver.” (dá-se um jeitinho de se enganar a si mesmo; o
auto-engano é um jeitinho que encontramos para não admitir as nossas falhas pessoais)
A linguagem popular, no entanto, parece ter consolidado dar um jeito ou dar um
jeitinho como a expressão-chave ou o termo guarda-chuva para esse mecanismo lingüístico e
sociocultural. Basta que elas sejam simplesmente citadas para que portas sejam abertas, uma vez
que o fenômeno é presença obrigatória em todo o território nacional. Na análise de Barbosa (1992,
p. 11), o enunciadoO sr. pode dar um jeitinho? talvez seja “uma das expressões mais populares
no âmbito da sociedade urbana brasileira.”
Contudo, embora exista unanimidade no uso da palavra jeitinho e da expressão dar um
jeitinho, essa unidade também apresenta suas diversidades lingüísticas e socioculturais. No campo
da variedade diatópica (geográfica), um baiano pediria um jeitinho da seguinte maneira: Ô, meu
nêgo, vem que eu resolvo procê?” ou “Meu rei, num faça isso cumigu não... bora um
jeitinho...”
Em relação à variedade diastrática (social), registramos no falar carioca dois exemplos em
uma repartição pública, onde duas pessoas, aparentemente de meios sociais diferentes, pedem para
que um processo seja “agilizado”. O primeiro apresenta uma linguagem não-padrão, coloquial,
quase vulgar e intimista ou intimidadora: Aí, mermão, quebru galhu, pô! Resolvessa parada
pramanhã, valeu? (última palavra com entonação ascendente), e o segundo, um estilo de
linguagem padrão, educada, respeitosa, formal: O senhor acha que existe a possibilidade de
acelerar a entrega desse processo?”
Na cidade do Rio de Janeiro, é possível ouvir um típico malandro carioca pedindo a
alguém para dar um jeitinho por meio de uma linguagem bem coloquial, na realidade, beirando a
gíria: p. ex. “Aí, mermão / sanguibão / genti boa / genti fina / cumpadi / brother, quebru galhu,
vai?”
Um exemplo de variedade diafásica aparece na enunciação, citada anteriormente, em
que uma acadêmica pede sutilmente a seu professor para aumentar-lhe a nota, evitando assim ir para
exame final. A conversa é a seguinte:
Acadêmica: Prof, alivia aí, vai?
Professor: Como assim “alivia ai, prof”?O que você quer dizer com isso?
Acadêmica: Quero dizer, o senhor não pode aumentar minha nota pra eu não ter que ir pra
exame?
A acadêmica percebe, ou é “convidada” a perceber pelo professor, que o tipo de linguagem
usada no início de sua fala não foi apropriado para o contexto-situacional e o interlocutor (um
professor universitário) com o qual interagia e imediatamente procura adequar sua maneira de falar
utilizando-se de uma variedade mais formal e apropriada à situação vivenciada naquele momento.
Parece que o céu não tem limites para aqueles que têm um bom desenvolvimento na
competência lingüística e comunicativa da linguagem do jeitinho. Tudo indica que qualquer
coisa pode ser conseguida quando o solicitante sabe o que dizer e como fazê-lo. O jeitinho é a
palavra-chave, o “abre-te Sésamo” para as situações difíceis e inesperadas nas quais o
formalismo, a burocracia, as regras, as leis e as normas “insistem” em se posicionar entre as
necessidades sociais e o cidadão.
O jeitinho é parte da práxis cotidiana do povo brasileiro. Para Leers (1982, p. 45), sua
fonte e sua razão de ser são uma pessoa concreta (os interlocutores) diante de uma situação concreta
(o contexto) que apela à ação (o ato em si). Em uma leitura sociolingüística, temos então o
enunciado, a situação, o tempo e o espaço concretos para pôr em prática o mecanismo do jeitinho.
Desse modo, os enunciados empregados fazem parte da narrativa histórica pessoal de cada falante
nativo.
Dentro do conceito de lacuna cultural um misto de lacuna referencial (referente sem
correspondente em outro código lingüístico) e lacuna lexical (termo sem correspondente)
(CARVALHO, 2004, p. 111-112; 2005), a palavra jeitinho, com toda uma conotação lingüística e
sociocultural brasileira, não encontra paralelo em outras línguas. Na língua inglesa, os falantes usam
a palavra em português, p. ex. “Exploring the Interpersonal Transaction of the Brazilian Jeitinho in
Bureaucratic Contexts
85
, embora alguns tradutores insistam no uso de expressões como to find a
way out que se assemelharia, mas não significaria a mesma coisa. A palavra “favela” seria um
outro exemplo em inglês, empregada pelos jornais e revistas americanas e inglesas por conter toda
uma carga cultural própria na Língua Portuguesa
86
, embora existam em inglês vocábulos
semelhantes.
4.5 O Uso da Retórica e do Sufixo Diminutivo -INHO
No campo da retórica
87
, a utilização de recursos lingüísticos diversos auxilia na
elaboração de argumentos que têm como objetivo direcionar, conduzir, manipular ou persuadir o
interlocutor. O uso de sufixos é um desses recursos.
85
Disponível em: <http://org.sagepub.com>. Acesso em: 20 set. 2006.
86
No texto a seguir, em inglês, a palavra ‘favela’ é usada como opção lexical: “Computers in the favelas: One
successful example is the "Recycling Goal" project, which extends computer technology into the shanty-towns or
"favelas" on the outskirts of Sao Paulo.” Disponível em: <http://news.bbc.co.uk>. Acesso em: 29 set. 2006.
87
“Retórica” aqui vista como oratória, a arte do bem dizer, a arte da palavra. (HOUAISS, 2001, p. 2447)
Fiorin, em artigo intitulado Discurso de um sufixo” (FIORIN, 2006, p. 36-37), afirma que
o sufixo -ismo de palavras como “denuncismo” ultimamente em voga com as denúncias do
mensalão, do valerioduto e do financiamento ilegal de campanhas eleitorais adquire a função
argumentativa de “ridicularizar” e desqualificar o discurso do oponente, ou, neste caso, da oposição
ao governo Lula.
O autor esclarece que, “enquanto denúncia é o “ato de dar a conhecer crime ou falta
alheia”, o denuncismo é o “ato de fazer denúncias sistemáticas, sem base na realidade, apenas para
auferir vantagens políticas, etc.”. No cenário da política brasileira onde a oposição faz denúncias de
corrupção e incompetência, os aliados do governo constroem um simulacro do discurso
oposicionista tratando-o não como um discurso de denúncia, mas como um discurso que não merece
credibilidade.
Assim, acrescenta Fiorin, não é o radical que apresenta esse sentido desqualificador, mas
sim o sufixo -ismo.
Nesse artigo, Fiorin comenta ainda sobre o uso do sufixo -inho que, no exemplo
utilizado
88
, não sinaliza atenuação ou diminuição, mas indica ou desmascara uma intenção maldosa
do locutor.
Como explica Giacomozzi et al. (2004, p. 144-145), o sufixo de diminutivo pode (i)
significar afeto, carinho, desprezo, ironia (ex.: Minha esposa é uma gatinha” = mulher bonita;
Isso não é jornal. É um jornaleco.” = jornal de pouca qualidade); (ii) expressar, no adjetivo,
intensidade (ex.: Mulher bonitinha = meio, pouco bonita) e (iii) indicar, no advérbio, a
intensidade, muitas vezes com valor afetivo (ex.: “Chegou cedinho” = bem cedo)
O sufixo -inho, quando acrescentado à palavra jeito, formando assim o vocábulo jeitinho,
curiosamente, indica o oposto ao que Fiorin coloca acima. No enunciado Ah, um jeitinho,
vai?”, dito por uma acadêmica com entonação melodiosa e, ao mesmo tempo, “melosa” (no sentido
88
Exemplo: “...Há coisinhas, palavrinhas, sorrisinhos que ferem, que irritam, que fazem mal...” (VERÍSSIMO, Érico. Clarisse. 50ª ed.
São Paulo: Globo, 1995, p. 55)
de sedutora), o sufixo usado procura atenuar ou diminuir a pressão do contexto situacional
89
,
apelando para o lado emocional e “humano” do professor para que se deixe levar e ceda ao pedido
de jeitinho (anti-educacional) de aumentar a nota da acadêmica. Nesse sentido, o uso do sufixo
-inho pode esconder uma intenção de manipulação do locutor.
Para Holanda (2005, p. 148), a terminação ‘inho’ serve para nos familiarizar mais com as
pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de [...] aproximá-los do
coração.”
A verdade é que nosso convívio social é ditado por uma “ética de fundo emotivo [...] que
raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.” Jeito de ser tão característico do povo
brasileiro. (ibid., p. 148)
Em português a formação do grau diminutivo se faz sinteticamente, pelo emprego de
sufixos ou de prefixos como micro-, mini- (microempresa, minidefinição), ou analiticamente, pelo
acréscimo do adjetivo pequeno ou de um de seus correlatos. A primeira idéia que muitos têm
quanto ao diminutivo é que ele indica apenas algo pequeno, minúsculo, diminuto. A própria
definição do termo no dicionário Houaiss, versão online, nos mostra essa aparente realidade:
“expressa idéia de diminuição, redução” (acepção n. 4).
No entanto, segundo Costa (2003), os diminutivos nem sempre indicam diminuição de
tamanho. Sua significação depende do contexto em que a palavra é usada, e essa significação
existe em relação a esse contexto. De acordo com Lapa
90
(apud COSTA, 2003), são nos sufixos
diminutivos que a descarga das emoções e das intenções se com maior energia. O sufixo
diminutivo é um meio estilístico que torna a linguagem mais flexível e mais expressiva, refletindo
os nossos sentimentos e intenções pelas coisas e pessoas que admiramos ou não. Dentre os
principais sufixos diminutivos na Língua Portuguesa , encontramos o nosso -inho(a), da palavra
89
Neste exemplo, a acadêmica está tentando convencer seu professor a aumentar sua nota da prova de 6,0 para 7,0 para que ela
não vá para exame final.
90
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
jeitinho.
O sufixo -inho(a) representa, conforme o contexto, os mais diversos significados quando
anexado a diferentes palavras em nosso cotidiano. Vejamos alguns exemplos:
(i) Há casos em que os diminutivos têm significação de aumentativo. Por exemplo,
Dois amigos se encontram e um deles (A) convida o outro (B) para conhecer sua
“casinha”. Ao chegar em frente à casa de A, B diz maravilhado: Que “casinha”,
hein!”. B usa um diminutivo afetuoso, que mostra surpresa e admiração, pois a casa
não era pequena como ele provavelmente pensara, mas grande e bonita, um casarão.
Um motorista, cuja carteira está vencida, dirige acima da velocidade permitida em uma
rodovia federal. É parado por um carro da polícia federal. Para evitar ter seu carro
apreendido, oferece aos policiais uma quantia alta, em dinheiro, os quais aceitam a
propina e um deles exclama feliz: Rapaz, isso é que é cervejinha! O resto é gorjeta.”
Embora a expressão A cervejinha do guarda geralmente signifique algo como “é
mais barato que pagar multa”, um valor pequeno, neste caso, “cervejinha” significa
justamente o contrário, pois o transtorno causado ao motorista pela situação em que se
encontrava seria “muito maior”, segundo depoimento de S.
(ii) Em outros casos preferimos usar o diminutivo como um eufemismo para minimizar ou
suavizar uma situação. Por exemplo,
A criança está correndo na festa. De repente, cai e machuca o joelho. Não é nada sério,
mas a criança não para de chorar. A mãe pega a criança no colo e diz: “Deixa a mamãe
ver. Ah...não é nada de mais. A mamãe vai passar uma pomadinha e colocar um
gelinho e num instante o nenê vai ficar bom.”
Um comprista brasileiro acaba de adquirir um notebook em uma loja de informática de
Ciudad del Este, Paraguai. Como a fiscalização na Ponte da Amizade está rigorosa
esses dias, ele talvez tenha de declarar o produto e pagar o imposto devido. Assim, o
comprista faz a seguinte solicitação ao gerente da loja: “Nãopra fazer um precinho
camarada na nota. Assim o imposto a pagar é menor.” Isso é crime de sonegação
fiscal.
(iii) Muitas vezes usamos o diminutivo para mostrar certo desprezo, antipatia ou ironia em
relação a alguém. Por exemplo,
Uma pessoa chega ao hospital sentindo-se muito mal. O médico nem a examina direito
e logo prescreve um remédio. Trinta minutos depois, o estado da paciente não melhora
e ela faz o seguinte comentário: “Esse doutorzinho não tá com nada.”
Uma acadêmica fica para exame final por meio ponto. Ela pede ao professor que
“complete” sua nota, o que é prontamente recusado. Feito o exame, ela é reprovada e
ao ver o professor faz o seguinte comentário com uma colega de turma: Eu fiquei
reprovada por causa desse professorzinho ai. Pedi meio ponto para não ir pra final.
Ele não deu e acabei ficando reprovada. Culpa dele.
(iv) Na linguagem coloquial, em que as manifestações de ternura caracterizam-se por
grande intensidade e natural exagero, é comum o advérbio e o adjetivo, por afinidade com
os substantivos, assumirem uma forma diminutiva, utilizando os sufixos -inho(a) com um
valor de superlativo. Por exemplo,
Nossa, ele é igualzinho ao pai.” (são totalmente iguais, igualíssimos)
Meu filho acordou cedinho para estudar.” (muito cedo, cedíssimo)
Conforme dissemos acima, os diminutivos devem ser analisados dentro de um contexto,
pois assim teremos a idéia exata de seu significado. Uma mesma palavra pode apresentar
significados variados conforme a idéia que se deseja expressar. Peguemos como exemplo o
vocábulo-tema principal de nosso estudo: o jeitinho.
Com jeitinho, ele resolveu o impasse.” (habilidade)
“Jeans com jeitinho parisiense.” (modo de ser, feitio)
Prédio com jeitinho de chácara.” (igual a, com as mesmas características de)
Ele sempre acha um jeitinho de se safar.” (maneira de burlar a lei)
Dentro dessa linha de análise, podemos tentar entender porque jeitinho brasileiro
91
, no
diminutivo, é mais utilizado do que “jeito brasileiro”. O que significa isso dentro da definição
proposta para esse fato lingüístico e sociocultural? O uso da palavra jeitinho representaria no
imaginário do povo brasileiro a idéia de um “mal menor”, empregado com o objetivo de minimizar
o enunciado, a enunciação e seus efeitos? Afinal, “o que estamos pedindo com o jeitinho não é algo
tão complicado assim.” Ou seria?
Não seria a forma jeitinho algo o pequeno, gentil e acolhedor (!) uma maneira de
conquistar ou seduzir nosso interlocutor por meio de um pedido, um apelo, uma súplica (nessa
escala crescente de solicitação) ao lado humano de nossos compatriotas, os mesmos que um dia
precisarão de nossa ajuda, afinal “uma mão, lava a outra” e todos sempre dão um jeitinho?
4.6 Marcas Lingüísticas da Enunciação
Além da forma jeitinho e de todas as outras analisadas até agora, que outros recursos
lingüísticos são empregados para solicitar ou induzir alguém a dar um jeitinho? Nossas observações
mostraram que os falantes em geral usam dois tipos de linguagem para conseguir o que desejam:
explícita (p. ex. Pode dar um jeitinho?”, Não pra você quebrar o meu galho?”) ou implícita,
isto é, não revelam abertamente suas intenções fazendo uso de formas não declaradas na linguagem.
Um exemplo desse comportamento lingüístico seria o emprego da conjunção adversativa
“mas”, o “operador argumentativo por excelência”, segundo Ducrot (apud KOCH, 2006, p. 36). De
acordo com Koch (ibid., p. 30), o termo operador argumentativo foi cunhado por Oswald Ducrot,
criador da Semântica Argumentativa (ou Semântica da Enunciação) “para designar certos elementos
da gramática de uma língua que têm por função indicar (“mostrar”) a força argumentativa dos
enunciados.” O conectivo “mas” é um operador “que contrapõe argumentos orientados para
conclusões contrárias” (ibid., p. 35).
91
Na data de 24 set. 2006, digitamos no buscador Google (perfil: somente páginas em português), as duas expressões:
“jeito brasileiro” e “jeitinho brasileiro”. Para a primeira, encontramos 18.300 ocorrências, enquanto que para a
segunda foram encontradas 180.000. O que demonstra ser a segunda mais usada do que a primeira.
Em seu livro mais recente, Koch e Elias
92
referem-se à conjunção “mas” como um
elemento de encadeamento por conexão de cunho discursivo-argumentativo que expressa uma
relação de contrajunção (2006, p. 169-173). As autoras esclarecem que:
por meio das relações discursivo-argumentativas, encadeiam-se não conteúdos
(estados de coisas de que falam os enunciados anteriormente apresentados), mas
atos de fala, em que se enunciam argumentos a favor de determinadas conclusões.
Ou seja: ocorre um primeiro ato de fala, que poderia ser realizado de forma
independente, e acrescenta-se outro ato, que visa a justificar, explicar, atenuar,
contraditar, etc. o primeiro (KOCH; ELIAS, 2006, p. 170, grifos das autoras).
A contrajunção estabelece-se não apenas entre segmentos sucessivos, mas também
entre seqüências mais distantes uma da outra, entre parágrafos ou porções maiores
do texto e mesmo entre conteúdos explícitos e implícitos. (ibid., p. 172)
Na linguagem do jeitinho, o conectivo “mas” é usado, por exemplo, como um recurso para
tentar compensar uma desigualdade física, social, econômica ou uma injustiça social acionando
sistemas de valores diferentes que funcionem de forma inversamente proporcional. Ou seja, se nos
encontramos em uma posição menos prestigiada em um sistema, procuramos fazer com que a
palavra “mas” nos coloque em uma posição superior no sistema oposto. Por exemplo, “Aquele piá é
de família rica, mas é um pestinha.”, Eu sou pobre, mas sou honesto.”, Ela é gorda que dói, mas
é uma simpatia em pessoa.”, Joãozinho é pobre, mas é inteligente. Ou seja, o próprio sistema
compensatório é o jeitinho que damos na linguagem para justificar um ponto de vista socialmente
contraditório, ou não aceito, embora muitos compartilhem dessa opinião, sem que fiquemos em uma
situação constrangedora. Na realidade, é um jeito que encontramos para enganar a nós mesmos (e
aos outros). Seria esse o espírito de cordialidade mencionado por Buarque de Holanda – no sentido
de não querer ferir a sensibilidade de nossos interlocutores, mas ferindo-a sutilmente mesmo que
não seja percebida?
Situação semelhante acontece com o advérbio então, com o significado de “em tal caso,
nessa situação” (HOUAISS, versão online). Neste caso, a palavra é usada para indicar que o locutor
pode introduzir um jeitinho na próxima oração. Por exemplo,
Temos um jovem com muitos problemas e despreparado para o mercado, então ele acaba
92
O livro mencionado no parágrafo anterior (KOCH, 2006) foi originalmente escrito em 1993.
transgredindo.” (A Gazeta do Iguaçu, 7 out. 2005, p. 3) (O fato de ser jovem e despreparado
não justifica que ele se torne um transgressor.)
Segundo ele [o deputado Chico Noroeste], o ingresso em instituições públicas é muito
concorrido. Então, percebemos que algo teria de ser feito para que esses alunos possam
freqüentar um curso superior.” (Ou seja, ao invés de lutar politicamente para melhorar o nível
básico da educação de maneira que os alunos cheguem mais preparados ao Grau, a
preocupação assistencialista do deputado é que o aluno ingresse na faculdade independente do
nível de escolaridade que apresente no momento) (ibid., p. 33)
Desse modo, o advérbio então acaba estabelecendo uma perfeita relação de conclusão
entre as orações e com a mesma distribuição sintática de logo nas estruturas sentenciais dos
enunciados.
Um outro caso começa com uma indagação: interferência das formas de tratamento na
linguagem do jeitinho? Por exemplo, quando um acadêmico fala Prof. não pra dar um
trabalhinho, não?” Se o aluno percebe que o professor não gostou da forma como o acadêmico se
dirigiu a ele, muda a forma de tratamento para Professor, é um trabalho para aumentar minha
nota, por favor?
Dentro dessa área, temos também o caso de uma outra acadêmica, conhecedora da língua
inglesa, que se refere, em português, ao seu professor universitário de Língua Inglesa como
professor”, vocábulo da língua inglesa, cuja pronúncia é /prəˈfesə/ e que nessa língua significa
“professor universitário”, toda vez que vai solicitar ao seu professor algum “favor”, como por
exemplo não colocar falta para ela na aula seguinte, pois não poderá comparecer.
Na verdade, o que observamos aqui é uma sinalização para o jeitinho por intermédio de
uma forma de tratamento que evoca uma relação de cultura e poder. No caso, podemos fazer a
seguinte análise: (i) enquanto todos os acadêmicos tratam o professor por prof”, professor (em
português) ou “teacher” (que em inglês é usado para professores do ensino fundamental e médio), a
acadêmica em questão usa, estrategicamente, a palavra adequada; (ii) a forma de tratamento
utilizada procura mostrar respeito ao professor e conhecimento da língua inglesa, mas na realidade
configura-se como um recurso de manipulação para a obtenção do que será solicitado em seguida;
(iii) uma vez “conquistado” o professor, a acadêmica se acha no direito de obter dele o mesmo
respeito e admiração concedendo-lhe o “favor” ou jeitinho solicitado.
Esses exemplos de marcadores lingüísticos mostram que “quando interagimos através da
linguagem, temos sempre objetivos, fins a serem atingidos; relações que desejamos estabelecer,
efeitos que pretendemos causar...” (KOCH, 2006, p. 29), e muitas vezes não nos damos conta do
tipo de argumento que usamos para dizer aquilo que no fundo de nosso ser realmente pensamos.
4.7 Pistas de Contextualização
Além das marcas lingüísticas, a enunciação também é preenchida por sinais ou pistas de
contextualização que permitem aos interlocutores exercitarem sua competência social em situações
de interação no cotidiano. Erickson e Shultz (2002, p. 217) acreditam que a “capacidade de
monitorar contextos deva ser um traço essencial da competência social”, e afirmam que essa
capacidade nos ajuda a avaliar quando um contexto se forma e a identificar sua natureza específica,
pois “a cada mudança de contexto, a relação entre os papéis dos participantes é redistribuída” (ibid.,
p. 218) e, portanto, precisamos saber o que dizer e qual a maneira mais adequada de nos
comportarmos, visto que cada mudança necessita de estruturas diferentes que “englobam maneiras
de falar, de ouvir, de obter o turno na fala e mantê-la, de conduzir e ser conduzido” (ibid., p. 218)
para que nossa interação seja um sucesso, ou, em nosso caso, para que o jeitinho seja concedido.
No exemplo nº 14, em um seminário de orientação de estágio, uma acadêmica aproxima-se
do professor responsável pelo evento, pede para ser a primeira a falar e ser liberada em seguida. A
participação da turma nesse tipo de evento faz parte da carga horária da disciplina sendo, portanto,
obrigatória a presença de todos do início ao fim. O relato dos acadêmicos segue uma seqüência
determinada. Durante a conversa, a informante utilizou-se de diferentes mecanismos (verbais e não-
verbais) sociolingüísticos interacionais (ERICKSON; SHULTZ, 2002, p. 219-220) para tentar fazer
com que o professor atendesse ao seu pedido de jeitinho. O diálogo é o seguinte (Acadêmica - A e
Professor - P)
A: Tudo bem, professor?
P: Tudo bem. E você?
A: Mais ou menos. Hoje foi um dia terrível. Tô muito cansada. Não tô me sentindo bem.
P: Chato isso, né? Mas, depois passa.
A: Professor, tem que ficar depois de apresentar?
P: Sim.
A: É que eu estou com a maior dor de cabeça.
P: Por que você não toma um remédio?
A: É que eu estou naqueles dias, sabe? (menstruada). Tô com muita cólica.
P: Então você pode ir, mas terá que apresentar outro dia. Não tem jeito. Você terá que falar
sobre a experiência que teve no estágio de qualquer maneira. É parte do Estágio.
A: É ... então vou dar um tempo pra ver se melhora... (a dor de cabeça?)
Dentre os mecanismos sociolingüísticos interacionais utilizados, podemos citar:
Alteração proxêmica, mudança na distância interpessoal entre os interlocutores. (Antes
de o seminário começar, a acadêmica levantou e aproximou-se do professor. Podia ter
falado de onde estava, como a maioria dos acadêmicos, mas preferiu uma posição mais
próxima e intimista.)
Uso de frase empática(Tudo bem, professor?)
Postura corporal(Após o cumprimento inicial, curvou-se na direção do professor.)
Modulação da voz(Falou com voz dócil e baixa.)
Expressão facial(Enquanto dizia É que eu estou naqueles dias, sabe?Tô com muita
cólica.” , o rosto apresentava uma expressão de sofrimento.)
Uso de expressões enfáticas, exageradas e apelativas (“Mais ou menos”, “dia
terrível”, “muito cansada” e “a maior dor de cabeça”).
A informante inicia a conversa com um tipo de moldura ou enquadre (que serve para
orientar os interagentes sobre a natureza da interação), em que tenta estabelecer um rapport
(empatia) com o professor.
Em seguida, muda de enquadre falando sobre suas dificuldades naquele dia: uma
preparação de cunho emotivo para o próximo passo. Finalmente, chega ao enquadre da solicitação
do jeitinho”.
Conforme podemos observar, a informante utiliza-se de pistas lingüísticas e
extralingüísticas com o objetivo principal de convencer seu interlocutor. Segundo Gumperz (1994,
p. 49-50), o uso desses mecanismos sócio-pragmáticos são freqüentes em apelos, argumentações e
discussões calorosas, através dos quais os locutores geralmente tentam persuadir seus interlocutores
ou impor seus pontos de vista sobre eles
4.8 Alternância de Código e Línguas em Contato em um Enunciado do Jeitinho
No Capítulo 3, subseção 3.3.2, mencionamos o enunciado ¿No puede dar um jeito,
señorita?”, em que ocorre um exemplo de alternância de código e línguas em contato, no qual o
interlocutor, cuja língua materna é o espanhol, encontrava-se em solo brasileiro e talvez tenha
recorrido à expressão em português por considerar que naquele ambiente e contexto sociocultural o
uso da língua dominante (DITTMAR, 1976, p. 117-119) pudesse ajudá-lo a conseguir seu objetivo.
Mas a pergunta que nos fazemos agora é: porque o falante hispânico começou a alternar com a
Língua Portuguesa usando justamente a expressão dar um jeito”, quando poderia ter dito qualquer
outra coisa em português?
Conforme sugerido na introdução deste capítulo, iniciemos nossa análise do enunciado
pela estrutura (forma) usada pelo falante para depois prosseguirmos com o levantamento de
hipóteses quanto à intenção (conteúdo) que ele tinha (ou pensamos ter tido) ao lançar mão da
alternância de códigos na negociação lingüística da qual participava.
A primeira coisa que observamos foi a interferência fonética da língua espanhola na
pronúncia da palavra portuguesa “jeito”. Enquanto os brasileiros pronunciam
93
/ˈʒeɪtʊ/ ou /ˈʒeɪto/,
I15 proncunciou /ˈheɪto/, ou seja, realizou o som da letra “j” em português /ʒ/ (fricativa
alveopalatal vozeada)
94
como se fosse em espanhol /h/ (fricativa glotal desvozeada).
A partir daí, começamos a avaliar outros aspectos. Quanto à questão lexical, nossas
pesquisas mostraram que a palavra "jeito" não existe em espanhol. Nesse caso, um argentino ou um
paraguaio falaria algo como "manera" ou "modo" ou talvez "gauchada", na gíria (jerga) de Buenos
Aires.
Outro aspecto a ser observado, desta vez em relação à questão morfológica, no uso da
expressão foi a opção lingüística de I15 em não usar o sufixo -inho, portanto, não empregando o
diminutivo jeitinho, comum na Língua Portuguesa, e preferindo o uso de jeito
95
. Teria essa escolha
a ver com o nível de competência ou incompetência lingüística e/ou comunicativa do falante?
Ou simplesmente foi um ato involuntário?
Conforme estudado anteriormente, é comum o uso do sufixo -inho(a) para formar o
diminutivo na Língua Portuguesa, ao passo que em espanhol o sufixo usado é ito(a), p. ex. “perrito”
(cachorrinho) formado por “perro” + ito. Ouvimos o seguinte relato de uma argentina que reside em
Foz muitos anos: “Meu pai falou para um policial federal na ponte [da Amizade] que estava
comprando "regalos para sua nietinha (presentes para sua netinha”. A interferência da língua
93
Nosso intuito não é fazer uma análise fonética contrastiva da discriminação auditiva e da articulação vocal das
palavras como realizadas nas duas línguas (espanhol e português) e sim apresentar a pronúncia da palavra em
português como dita pelo autor deste trabalho, brasileiro, carioca, e a pronúncia ouvida da mesma palavra como
articulada por outros falantes, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Para isso, usamos a transcrição fonêmica entre
barras / ... / e os símbolos do IPA (International Phonetic Alphabet), atualizado e revisado em 2005. Disponível em
<http://www.arts.gla.ac.uk/IPA/ipachart.html>. Acesso em: 18 set. 2006.
94
A classificação dos segmentos apresentada é a mesma utilizada por Thaïs Cristófaro Silva (2002).
95
No dia 23 set. 2006, digitamos a palavra “jeitinho” no buscador Google procurando-a somente nas páginas em
português. Encontramos 619.000 referências. Fizemos o mesmo com “jeito” e obtivemos 12.400.000 referências.
Realizamos o mesmo procedimento com as expressões “jeitinho brasileiro” (105.000 referências) e “jeito brasileiro”
(18.200 referências). Parece que “jeito” é mais popular que “jeitinho”, enquanto a expressão “jeitinho brasileiro”,
tema de nossa pesquisa, é mais utilizada do que “jeito brasileiro”.
materna e a alternância de códigos são evidentes nesse exemplo: ao invés de dizer “presentes”, o
senhor argentino usa “regalos”; e para formar o diminutivo carinhoso de neta, que em
português seria “netinha” e em espanhol “nietita”, ele faz uma mistura dos dois vocábulos:
nieta + inha.
Na expressão sendo analisada, I15 não faz essa “mistura” e decide manter a
integridade do vocábulo, ou por não lembrar do diminutivo em português (jeitinho), ou por
não se aventurar a formar uma outra palavra “jeitito” (“jeito” (português) + “ito” (espanhol),
ou ainda por achar que o uso do diminutivo não teria o mesmo “impacto lingüístico” que a
palavra em sua forma “original”, ou seja, sem “acessórios”.
Quanto ao conteúdo, ou significação social contida no enunciado, um dos motivos que
pode ter levado I15 a usar especificamente a expressão “dar um jeito” em português, teria sido sua
necessidade em utilizar-se de um recurso que indicasse naquele contexto uma modificação da
relação interpessoal: recurso esse representado pela mudança de código. Talvez para I15 a expressão
“dar um jeito” funcionaria como uma senha ou expressão estilística que lhe oferecesse acesso à
identidade brasileira, permitindo-lhe passar de um código lingüístico estrangeiro ou estranho à
língua oficial do país onde se encontrava, estreitando a conversa entre os interlocutores e facilitando
assim a concessão do jeitinho.
Talvez essa tenha sido a maneira encontrada por I15 para tentar ajustar a aparente
desigualdade lingüística e sociocultural que parecia existir entre os atores sociais no drama que se
apresentava e no qual ambos se mostravam desigualmente competentes.
Aparentemente, os falantes não percebem quando alguém lhes pede para dar um jeitinho,
tampouco quando eles mesmos pedem o jeitinho. Ao ser questionado sobre o fenômeno, um
informante disse o seguinte: O jeitinho no sangue, corre em nossas veias. Fazer o quê?”.
Segundo ele, isso mostra que somente aqueles que compartilham da nossa língua e cultura podem
compreender que pedir e dar um jeitinho faz (sic) parte de nossa natureza”.
Essa aceitabilidade natural, no entanto, não é compartilhada por estrangeiros que acham
tudo isso muito estranho quando vêm ao Brasil, como foi o caso de Keith S. Rosenn, professor
norte-americano de direito da Universidade de Miami, EUA, que, depois de muito “apanhar” do
jeitinho, acabou publicando um livro sobre o assunto.
Em Foz, assim como em outras regiões, tais enunciados parecem não ter limites, tamanha
a naturalidade de suas ocorrências. Segundo alguns moradores, existem muitas pessoas que vêm
para Foz com a intenção de explorar o potencial do município por ser uma cidade que faz fronteira
com o Paraguai e a Argentina, enriquecer rapidamente (e ilegalmente!) e depois ir embora como
se fosse uma constante repetição do que aconteceu na colonização de Foz (e do Brasil), onde os
primeiros colonizadores tinham como objetivo principal o enriquecimento com a exploração das
riquezas naturais existentes na região (e no país), conforme relatamos na subseção BHistória da
Terra das Cataratas.
Fatores como a grande e freqüente mobilidade social de seus habitantes, a cultura
fronteiriça do descaminho, do contrabando, da compra “mais em conta” em Ciudad del Leste, no
Paraguai, de certa forma colaboram para a existência e a manutenção da cultura e da linguagem do
jeitinho em Foz. Um outro fator que tem forte influência nessa instituição social é a permanente
sensação de impunidade que ronda a nação com os infindáveis escândalos políticos, pois o que
acontece no país reflete direta ou indiretamente nas diversas comunidades Brasil afora.
4.9. Influência de Aspectos Socioculturais e Fronteiriços
Em agosto de 2005, com o objetivo de obter um panorama social da população de Foz do
Iguaçu, a Prefeitura Municipal iniciou a realização de um cadastro social de seus habitantes. Até
julho de 2006, a Prefeitura já havia entrevistado 140 mil pessoas, segundo fomos informados.
Os resultados parciais constataram o que muitos já sabiam na cidade e que foi título de um
artigo no jornal curitibano Gazeta do Povo (09 jul. 2006, p. 9): Contrabando é o ‘primeiro
emprego’ dos jovens de Foz do Iguaçu”. Segundo a pesquisa e o artigo, os jovens abandonam a
escola para se aventurarem na ilegalidade como “laranjas” na Ponte da Amizade.
No artigo, o sociólogo Eric Cardin, professor de uma faculdade de Foz que defendeu
recentemente dissertação de mestrado sobre a atividade informal no Paraguai, constata que o
“sacoleiro” ou “laranja” não considera o trabalho de atravessar a ponte com mercadorias acima da
cota ilegal porque “há políticos que são surpreendidos com dinheiro na cueca e nada acontece”. Na
análise de Cardin, essas pessoas “têm como referência de moral a conjuntura nacional”.
Na realidade, a própria justificativa apresentada pelas pessoas que praticam esse tipo de
descaminho é um jeito de tentar legitimar o que é ilegal e imoral: típica falácia lógica do jeitinho
que tenta justificar algo incorreto com base em algo tamm incorreto.
Na discussão “A sociedade influencia a linguagem ou acontece o contrário?”, seria
pertinente reconhecermos a inegável influência dos acontecimentos sociais na linguagem que
usamos em nosso cotidiano, embora seja bom lembrarmos a citação de Elia, em que o autor
esclarece que “o social pode interferir no lingüístico, mas não determiná-lo” (1987, p. 146).
Essa influência vem através do que lemos nos jornais, vemos na televisão e ouvimos nas
rodas de conversa, ou seja, por meio das diversas formas de interação que realizamos diuturnamente
sobre a impunidade que protege políticos e autoridades quando cometem atos ilegais. E o que é pior,
não se arrependendo, conduzindo suas vidas sociais como se nada estivesse acontecendo e
continuando a ganhar com o que fizeram e continuam fazendo.
A escolha do “gerúndio” nos verbos usados no parágrafo anterior foi proposital e tem
como objetivo indicar uma “ação em curso, que pode ser anterior, posterior, simultânea à do verbo
da oração principal” (GIACOMOZZI et al, 2004, p. 141), e que, no caso da linguagem do jeitinho,
parece mesmo ser anterior (já existia), simultânea (continua existindo) e posterior (continuará a
existir), em uma versão bem polifônica do discurso. Ou seja, essa impunidade está sempre em
andamento e esse continuísmo jeitoso acaba se refletindo na linguagem que usamos no cotidiano de
nossas vidas. E é exatamente isso que diz uma reportagem no jornal Gazeta do Povo, de 09 jul.
2006, cujo título é Mensaleiros levam vida normal: maioria dos envolvidos no escândalo, sob
investigação do MP, vive como se nada tivesse acontecido”. É como se o retrato da impunidade
servisse de pano de fundo e incentivo à ilegalidade, como se a sociedade, representada pela sua
cultura social, política e ideológica, estivesse sempre fornecendo subsídios socioculturais e
lingüísticos à linguagem do jeitinho.
Basta verificarmos o número de palavras decorrentes dos infindáveis episódios de
corrupção e jeitinho que assolam o país e que rapidamente “caem na boca do povo”, p. ex. caixa
dois, mensalão, mensalinho, valerioduto, homem-mala, esquema dos sanguessugas, propinoduto,
etc.
Sem comentar os “novos” significados que palavras e expressões adquirem na cultura do
vamos-dar-um-jeitinho-brasileiro-nisso-também que a linguagem, com toda sua flexibilidade e
nossa competência lingüística, permite fazer. Por exemplo,
Apurar todas as denúncias(Envolver no rolo o governo anterior para que não se
apure denúncia nenhuma.)
Blindar(Preservar figuras importantes não envolvidas diretamente em denúncias
de corrupção; comprar favores ou simpatias.)
Mala(Objeto usado no transporte de dinheiro. Seu portador é o conhecido
"homem da mala".)
Mensalão(O mais célebre neologismo da atual crise, todos sabem o que
significa: suborno pago regularmente a deputados corruptos. Variações
regionais: cesta básica, conta do jantar, mensalinho. Quando pago
esporadicamente, é o pinga-pinga. De uma vez, para operações específicas, é
o pingadão.)
Mentira(Verdade comprometedora capturada em gravação que precisa ser
publicamente repudiada para evitar problemas político-legais maiores ainda.)
Pacotinho (Uma das formas físicas de retirada do mensalão, conforme Roberto
Jefferson.)
Prestar assessoria(Propina que precisa ser subitamente explicada. Ex.: Maurício
Marinho, ex-funcionário dos Correios, declara que os 3 000 reais por ele
embolsados, conforme se em fita divulgada por VEJA, procediam de uma
assessoria que prestou.)
Vossa excelência, vossa senhoria(Tratamento formal usado por legisladores em
momentos de tensão, em lugar dos termos deveras informais que lhes perpassam
a mente ("O nobre deputado é um grandessíssimo Vossa Excelência").)
(GRYZINSK, 2005, p. 84-84. grifos dos autores)
Segundo Domenico (2005, p. 8) “a corrupção é uma variação remunerada do famoso
jeitinho brasileiro” (grifo nosso), o que nos remete mais uma vez a teoria da Economia das Trocas
Lingüísticas de Bourdieu (1996), em que os enunciados da linguagem do jeitinho transformam-se
em moedas de troca altamente rentáveis, conforme escrevemos na subseção 1.6.3, neste cenário
político brasileiro.
Foz do Iguaçu pode ser considerada como um modelo da terra do jeitinho, ou
jeitinholândia, uma comunidade onde a moeda enunciativa do jeitinho se mantém em circulação 24
horas por dia em um mercado de constantes trocas lingüísticas. Mas não é a única, voltamos a
repetir, pois o fenômeno é nacional.
O problema cultural dessa ilegalidade em Foz do Iguaçu é tão grande, sutil e complexo ao
mesmo tempo que Rogério Bonato (2006), um articulista do tablóide local Gazeta do Iguaçu, em
um único parágrafo usa e abusa da sinonímia para referir-se às pessoas que atravessam a ponte com
mercadorias não-declaradas: laranjas, muambeiros, formigas, bate-voltas, cigarreiros, compristas,
atravessadores, sacoleiros, informais e subterrâneos. O articulista lembra que tais pessoas não são
bandidos, mas cidadãos que buscam seu sustento através de uma prática ilegal permitida
décadas pelas autoridades - municipais, estaduais e federais. Com essas palavras, o autor apenas
ratifica a idéia da “necessidade da ilegalidade”, um típico argumento falacioso do jeitinho.
Um exemplo de linguagem manipuladora do jeitinho pode ser visto em outdoors pela
cidade e no tablóide Gazeta do Iguaçu com propagandas de um cassino e de suas máquinas de caça-
níquel - jogos de azar proibidas em Foz do Iguaçu desde novembro de 2001. Aliás, o próprio
tablóide se contradiz ao trazer um artigo sobre turismo na cidade em que aparece a seguinte frase
“...o jogo, que no Brasil é proibido, não é um problema para Foz, basta cruzar a fronteira.”
(PIMENTEL, 2005, p. 9), ou seja, o tablóide um jeito de mostrar que, embora ilegal, é possível.
Como vemos, a proximidade das cidades e a facilidade para cruzar a fronteira aliadas à cultura da
ilegalidade em Foz ajudam a seduzir o leitor. A seguir, apresentamos uma dessas propagandas em
página inteira com fundo preto, enunciados coloridos e a foto de um caça-níquel à direita que diz o
seguinte:
FIGURA 8 – Foto de Propaganda no Tablóide A Gazeta do Iguaçu
FONTE: A Gazeta do Iguaçu. Foz do Iguaçu, 11 mar. 2006, p. 5.
A semiótica da linguagem apresentada na propaganda é realmente apelativa. Esse pode ser
considerado como um “enunciado verbo-visual”, em que “imagens (cores, figuras, lugar que ocupa
no espaço enunciativo, etc.) e seqüências verbais estão inteiramente articulados, interatuantes, a
partir de um projeto gráfico, de um projeto discursivo” (BRAIT, 2005, p. 72). Começa com Puro
entretenimento!” na cor verde, como se fosse um convite e um sinal de liberação, consentimento e
autorização para a utilização daquilo que é proibido no Brasil, mas que é divertido e vale a pena,
com exceção do dinheiro que se perde. Para que o divertimento do cliente seja completo, prazeroso
e que ele não tenha que esperar muito, ou nada, a casa põe à sua disposição “200 máquinas de
última geração”. As bebidas (drinks), também na cor verde, tem acesso liberado e ajudam o cliente a
relaxar, se divertir e gastar mais ainda. Embora os jogos de azar sejam proibidos no Brasil, a
propaganda que divulga essa ilegalidade parece não ser.
A cultura da ilegalidade está tão presente na cidade que, em seu cotidiano, situações e
enunciados aparecem contraditoriamente em uma declarada linha tênue entre o que é ético e legal e
o que é antiético e ilegal. Bonato (2006b) escreve o seguinte: “É sabido que proibiram uma série de
coisas em tempos eleitorais [...] como estamos no Brasil, é óbvio que arranjariam um jeitinho de
driblar a lei.” Esse enunciado, aparentemente tão ingênuo, comprova o quão enraizado é a cultura e
a linguagem do jeitinho.
Muitas vezes, como no caso acima, os falantes não percebem o caráter ilegal contido em
seus discursos e fazem uso de argumentos diversos na tentativa de justificarem o que falam e fazem,
p. ex.
Contexto e situação: No dia de abril de 2005, Brasil e Paraguai assinam um acordo
Operação Fronteira Blindada com o objetivo de combater o contrabando e o
descaminho na fronteira: exemplos de ações ilegais ou tentativas de se dar um jeitinho de
burlar a lei. A Receita Federal então aperta o cerco no lado brasileiro e apreende vários
ônibus com mercadorias ilegais. Para “contornar o problema”, em um exemplo típico de
estratégia “criativa” do jeitinho brasileiro, algumas pessoas resolvem transportar as
mercadorias aos poucos em carros de passeio ou táxis até localidades próximas, quando
então são transferidas para os ônibus piratas. Os táxis, no entanto, acabam sendo
interceptados e apreendidos pela Receita Federal. Revoltados com esse procedimento,
manifestantes resolvem fechar a ponte da Amizade, que une os dois países e por onde
passam as mercadorias, em março de 2006. As reportagens de um jornal local descrevem o
desenrolar dessa situação mesclando textos jornalísticos com discursos indiretos e diretos
produzidos por autoridades, representantes de segurança e do consulado dos dois países,
sindicalistas, manifestantes e pessoas envolvidas na busca de uma solução para o
problema. Abaixo, alguns exemplos de comentários e justificativas diversas para essa
semântica do acontecimento, com foco na linguagem do jeitinho, que se apresenta.
Enunciados: Exemplos de posto em diferentes enunciados:
(i) Segurar o meu carro é como tirar a panela de fazer comida. Não sei o que vou fazer. Não
posso ficar sem o carro.” O motorista contoufazer o acesso entre Ciudad Del Este e Foz 20
anos e nunca ter sido alertado sobre o risco de carregar mercadorias não-declaradas.” Um outro
completa, “Faço isso há 20 anos e nunca vi nada assim.” (Gazeta do Iguaçu, 08 mar. 2006, p. 5)
(ii) Esse problema [...] atinge os brasileiros ilegais que 20 anos estão no Paraguai e são
tratados como irmãos, sem contar com os brasileiros ilegais nas lojas. (Gazeta do Iguaçu, 10
mar. 2006, p. 5)
(iii) Alguns dos envolvidos “...apelavam para a irmandade e bons sentimentos entre as duas
cidades.” (Gazeta do Iguaçu, 10 mar. 2006, p. 4)
(iv) Me estranha o senhor querer cumprir uma lei que tem mais de 40 anos (prefeito de Ciudad
del Este comentando sobre o cumprimento da lei que obriga o Brasil a combater o contrabando)
(Gazeta do Iguaçu, 10 mar. 2006, p. 4)
(iv) Não podemos tolerar tudo se o Brasil não tolera absolutamente nada.” (prefeito de Ciudad
del Este protestando contra a apreensão de táxis e vans paraguaias que estavam transportando
mercadorias contrabandeadas) (Gazeta do Iguaçu, 13 mar. 2006, p. 6). Ou seja, se vocês não
derem um jeitinho, nós também não daremos (ou continuaremos dando) aqui.
Uma análise do pressuposto e do subentendido do enunciado (i) podia ser o seguinte:
20 anos que o Paraguai “faz vista grossa” (jeitinho) para esse problema, ou seja, permite que a
ilegalidade exista e persista. A frase soa como um argumento, um convite (ao jeitinho) ou uma
apelação para que o Brasil faça o mesmo: se nós permitimos que os brasileiros continuem sendo
ilegais no Paraguai, porque vocês não podem permitir que os contrabandos continuem passando no
Brasil? Enunciados parafrásicos, que dizem a mesma coisa de forma diferente, dessa frase poderiam
ser:Nós damos um jeitinho aqui e vocês dão outro ”,Uma mão lava a outra”, Eu quebro seu
galho aqui, então quebra o meu aí também.”
Podemos citar ainda um outro exemplo da naturalidade com que esse fenômeno acontece
em Foz. Na manchete abaixo lemos: Bloqueio deverá permanecer até que o Brasil recue no
cumprimento da lei de combate ao contrabando”, ou seja, “só irão desfazer o bloqueio se o Brasil
der um jeitinho e liberar o contrabando na ponte da Amizade”, o que é uma afronta direta às leis que
tentam ser aplicadas em Foz do Iguaçu.
FIGURA 9 - Foto de Manchete no Tablóide A Gazeta do Iguaçu
FONTE: A Gazeta do Iguaçu, terça-feira, 21 mar. 2006, 1ª página.
Por serem práticas cotidianas tão comuns na cultura local, algumas vezes os discursos não
se combinam, ou seja, as pessoas falam uma coisa e seus interlocutores entendem outra, ocorrendo
um ruído ou uma ruptura na interação social. No dia 11 mar. 2006, tivemos a oportunidade de
presenciar uma conversa entre um cliente e uma vendedora em uma farmácia da cidade. A
conversação foi a seguinte:
Cliente (C): Vocês têm o remédio X?
Atendente (A): (olha no computador) Temos sim.
C: Ah, é de 100 mg?
A: Sim.
C: Ah, vocês vendem pasta de dente Sensodyne?
A: (olha no computador) Sim. (respondendo natural e descontraidamente)
C: Eu quero a “original”. (No caso, o cliente se refere ao creme dental Sensodyne tipo “original” –
como está escrito na caixa do produto -, que não seja tipo “Proteção Total” ou “Branqueador
Anti-Tártaro” da mesma marca)
A: (a atendente mostra-se surpresa, assustada e indignada) Mas aqui nós trabalhamos com
produtos originais, senhor! Nossos produtos não são falsificados!
C: (falando em tom de surpresa e descontração) Que bom! Fico feliz em ouvir isso! Mas eu quero
saber se vocês têm Sensodyne sabor “original” ou se só tem os outros sabores ou tipos?
A: (percebendo a confusão que tinha feito e mostrando um sorriso sem graça) Ah, sim ...
desculpe ... lógico ... Sensodyne “original” .... está escrito na caixa...é lógico. Deixa eu ver....Sim,
temos.
O diálogo acima, com toda sua espontaneidade, simetria e descontração, demonstra o
nível de internalização da cultura da ilegalidade e como as pessoas que trabalham dentro da
legalidade reagem quando confrontadas com enunciados que possam dar a entender o contrário,
pois isso certamente desqualificaria o local onde a atendente trabalha.
A surpresa e indignação da atendente basearam-se no seu conhecimento de mundo em
relação à cultura da cidade onde mora, embora tenha sido “um alarme falso”, digamos assim.
Podemos dizer que essa reação desencadeou-se a partir do discurso polifônico em que a palavra
“original” se inseria. A locutora deve ter associado o histórico desse vocábulo aos discursos ouvidos
anteriormente, pois, pelo que ouvimos em nossas pesquisas de campo, a antonímia de “original”
(pirata, contrabando, falso) é mais comum do que a palavra em si.
Infelizmente, como vimos, a cultura da ilegalidade, que alimenta a linguagem do jeitinho,
acaba criando um estigma negativo na população de Foz do Iguaçu como se todos fossem
desonestos e agissem sempre assim, quando na realidade sabemos que nem todos concordam com
esse procedimento e se esforçam para que essa imagem e essa cultura não sejam perpetuadas,
conforme apontaram alguns entrevistados.
4.10 Autoconstrangimento Sociocultural
Na verdade, a existência do jeitinho brasileiro em si, não do nome, não mostrou ser uma
novidade para as pessoas entrevistadas. A maioria sabia da existência e da prática dessa instituição
social. Naturalmente não de forma tão organizada e acadêmica como estamos fazendo neste
trabalho. Todavia, o que chamava a atenção de todos e certamente os incomodava era o fato de
terem que reconhecer ou descobrir que eles também colocavam em prática esse mecanismo social
por meio da linguagem. Ou seja, não era só o “outro” que dava um jeitinho, mas o “eu” social deles
também era um apreciador dessa prática no cotidiano de suas vidas.
Esse reconhecimento ou essa descoberta era como se fosse umautochoque sociocultural
e existencial ou autoconstrangimento sociocultural”, como preferimos chamar. O informante
ficava chocado e constrangido com seu próprio comportamento anti-social e antiético quando
começava a perceber, por intermédio de seu próprio depoimento, de sua própria fala, que ele
também agia dessa maneira em seu dia-a-dia e que não tinha consciência - nem tampouco
discernimento - do quão envolvido estava nesse tipo de cultura. Alguns chegaram a fazer
comentários do tipo: a sua pesquisa complicou a minha vida, pois agora sempre que dou um
jeitinho ou peço a alguém para dar um jeitinho pra mim, lembro desse estudo e fico um tanto
constrangido.”
Uma outra informante quando nos encontrou no dia seguinte ao que fora entrevistada nos
disse o seguinte: “Estou muito zangada com o senhor, pois agora não paro de pensar no assunto....
e o pior é que verifiquei que, embora achando que não dava jeitinho, eu faço isso e vejo que as
pessoas ao meu redor também fazem isso o tempo todo”.
Ao longo de sua narração, Pais (2003, p. 172-173) nos mostra o quanto estamos
“mergulhados” na globalização e não nos damos conta disso. Essa é a mesma realidade que
encontramos em relação à linguagem do jeitinho. A maioria dos entrevistados mostrou-nos o quão
natural e imperceptível ou, aparentemente, indetectável era o uso desse tipo de linguagem, pois eles
se deram conta de que usavam enunciados desse tipo quando foram apresentados “formalmente”
ao fenômeno em si.
Segundo o depoimento de um dos entrevistados, a coisa do jeitinho está tão culturalmente
internalizada que você não consegue evitar: quando vê, está você querendo ou tentando dar um
jeitinho: e o que denuncia isso é a intencionalidade que existe por trás da linguagem usada. É como
se a estratégia social do jeitinho brasileiro fizesse parte de nossa competência comunicativa como
falantes da Língua Portuguesa , vem no pacote quando a gente aprende o português”, como disse
um informante,e aí, como evitar?”, típico exemplo de argumento que esconde uma falácia lógica,
ou seja, que esse fenômeno é determinado pela natureza, como é que podemos fugir a essa
realidade: um argumento ilegítimo é usado para legitimar uma realidade que sabemos ser
equivocada.
Como vimos neste capítulo, a linguagem, em uma perspectiva sociointeracional, é vista
como um sistema de usos cujas regras e normas são uma parte integrante da sociedade e da cultura.
Sua natureza é essencialmente social, ou seja, a linguagem é vista como um sistema de símbolos
construído social e culturalmente, e que é usado de forma que reflete o sentido em nível macro, mas
também cria o sentido em nível micro. Assim, o uso da linguagem do jeitinho é determinado pela
sua natureza dialógica, no sentido de quem a usa deve considerar aquele a quem se dirige.
É nesse sentido que todo significado é de natureza interacional, isto é, é construído
conjuntamente pelos participantes do discurso.
É nesse sentido que o dar um jeitinho faz sentido para aqueles que também dão um
jeitinho. Os códigos lingüístico, social e comunicativo precisam estar em sintonia. Do contrário, não
há interação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gostaríamos de começar nossas considerações finais retomando uma frase que usamos na
Justificativa da INTRODUÇÃO deste trabalho: o jeitinho brasileiro não é um fato isolado e
tampouco um ‘privilégio’ de Foz do Iguaçu: trata-se de um fenômeno nacional. Pensamos ser
importante frisar que a cidade foi escolhida como cenário de nossa pesquisa por questões de ordem:
prática, ou seja, sermos moradores recém-chegados à cidade;
objetiva, isto é, ofereceu-nos a oportunidade de estudar um aspecto que muito nos
chama a atenção desde que mudamos;
lingüística, pela presença freqüente de línguas, dialetos e idioletos em contato;
sociocultural, pela influência das diferentes etnias no comportamento local.
Naturalmente que Foz não deve ser caracterizada apenas como a cidade do jeitinho, nem
tampouco tivemos essa intenção. A cidade oferece a seus moradores e visitantes a maravilha das
Cataratas do Iguaçu com seus variados passeios, a bela vista do Marco das Três Fronteiras, a
grandiosidade da Hidrelétrica de Itaipu, a convivência com culturas diferentes, as praias do Lago de
Itaipu, o Parque Nacional do Iguaçu, entre outras atrações turísticas. Não é à toa que na cidade
vivem cerca de 72 etnias e brasileiros vindos das mais diferentes regiões do país. Se Foz não fosse
um lugar acolhedor e bonito não teria atraído tanta gente e não continuaria crescendo como vêm
acontecendo nos últimos anos. A oferta de cursos universitários mostra esse progresso: atualmente a
cidade conta com cinco faculdades particulares e uma estadual.
Portanto, a escolha da cidade para a pesquisa não teve nenhum caráter político,
econômico, religioso, ou de outra qualquer natureza. Podemos eleger dois motivos reais ou
concretos que orientaram nossa escolha: o fato de morarmos na cidade (uma questão circunstancial)
e o fator sociolingüístico (a questão do multiculturalismo e do plurilingüismo).
Ao iniciarmos este estudo, tínhamos três objetivos específicos em mente: verificar a
existência de um tipo de linguagem que expressasse a realização lingüística do jeitinho brasileiro;
caso houvesse, levantar exemplos de sua representação sociolingüística; e interpretar as
significações sociais por trás dos enunciados levantados.
A pesquisa de campo, a leitura das referências bibliográficas e as inúmeras conversas na
realidade, “trocas de idéias” que tivemos sobre o tema com várias pessoas mostraram-nos o quão
imanente e abrangente o jeitinho brasileiro é no dia-a-dia de nossa sociedade.
Comprovamos, embora a própria bibliografia sobre o assunto o tivesse feito, que a
instituição social do jeitinho brasileiro se apresenta diariamente em nossas vidas, quer a aceitemos
ou não, como uma realidade concreta, um fato lingüístico e sociocultural. Sua existência no cenário
brasileiro torna-se inquestionável, o que não significa que precisamos ser ou sejamos todos
coniventes com esse mecanismo social.
Foi por meio dessa confirmação que constatamos os diferentes meios de comunicação e
expressão usados dentro da cultura do jeitinho. Conforme taxonomia proposta no Capítulo 4, seção
4.4, o pedido de jeitinho ou o próprio jeitinho dado por alguém pode ser realizado de forma verbal
ou não-verbal, direta ou indireta, intencional ou espontânea, racional ou sentimental ou mesmo
através de recursos supra-segmentais tais como a entonação e o tom de voz. Verbalmente, o jeitinho
pode ser ainda solicitado ou concedido de pela fala ou escrita.
Como vimos, o jeitinho brasileiro não tem uma linguagem própria como pode ter essa
linguagem desdobrada em várias formas de expressão.
Pela natureza e abrangência do tema pesquisado, decidimos fazer um recorte sincrônico da
linguagem oral do jeitinho brasileiro, conforme apresentada na cidade de Foz do Iguaçu, durante o
período de agosto de 2005 a agosto de 2006, pois assim conseguiríamos delimitar melhor nosso
campo de estudo. A partir daí, começamos a fazer o levantamento dos enunciados que
evidenciassem um pedido, uma concessão ou uma realização direta do jeitinho na comunidade
lingüística de Foz.
Uma vez que a coleta de dados podia ser diversificada, dividimos as fontes em dois tipos:
primária e secundária, pois permitiu que pudéssemos aproveitar o uso de falas espontâneas com
exemplos de jeitinho que aconteciam ao nosso redor ao mesmo tempo em que realizávamos as
entrevistas narrativas, os roteiros de entrevista enquanto realizávamos outros procedimentos de
nossa investigação etnográfica. Essa parte de nosso estudo ajudou-nos a atingir nosso segundo
objetivo, ou seja, fazer um levantamento das formas de representação sociolingüística da linguagem
do jeitinho.
A análise e a interpretação dos dados coletados revelou a complexidade e a riqueza dos
enunciados típicos do jeitinho brasileiro na comunidade fronteiriça de Foz do Iguaçu, o que
demandou a utilização convergente de conceitos teóricos e metodológicos das diferentes áreas do
conhecimento humano apresentadas na Fundamentação Teórica deste trabalho.
Uma das primeiras conclusões a que chegamos foi a de que o estudo da linguagem do
jeitinho não deve levar em consideração apenas o sistema interno da língua, mas toda uma gama de
conhecimentos e competências que o falante adquire ao longo de sua vida.
A linguagem do jeitinho permite que um falante do português brasileiro, que more no
Brasil, tenha sucesso em suas trocas sociolingüísticas na cultura do jeitinho brasileiro se ele souber:
estruturar“corretamente” seu pedido enunciativo do jeitinho (competência lingüística).
Por exemplo, Não tem como dar um jeitinho? ao invés de Jeitinho dar tem como
não?” ou algo do gênero;
adequaro que diz ao contexto e às pessoas envolvidas na situação em que se encontra
(competência comunicativa e social). Por exemplo, Você poderia dar um jeito?”,
enunciado neutro em oposição à Quebru galhu, vai mermão?”, informal ou bem
coloquial;
conhecer e aplicartoda a cultura ideológica, tanto no sentido bakhtiniano quanto no
sentido marxista, que existe por trás do jeitinho brasileiro (competência
socioideológica (BAKHTIN, 2004, p. 16,35)).
Mesmo assim, esse falante somente consegue realizar com sucesso um ato lingüístico em
que pede ou concede o jeitinho se ele “confia no conhecimento de gramática, das normas de
adequação e nas diferenças de background lingüístico do seu interlocutor para atingir seus
objetivos” (GUMPERZ, 1994, p. 36) ou seja, o que permite a ele poder dar um jeitinho é saber que
seu interlocutor compartilha dos mesmos códigos lingüísticos e socioculturais.
Esse contexto leva um estrangeiro a encontrar dificuldades para compreender e se situar
perante uma cultura tão internalizada quanto essa do jeitinho na vida social do brasileiro. Se a
palavra jeitinho não encontra correspondência em outras línguas, elaborar ou compreender uma
frase em que ela apareça envolve mais do que o significado da palavra em si. De acordo com
Bakthin (2004, p. 41) “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem
de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” e sem um conhecimento sociocultural
desses “fios ideológicos” do vocábulo jeitinho, por exemplo, as palavras são apenas significantes:
vazios de significado social.
Concluímos também que parece não ser possível enquadrar a realidade lingüística e
sociocultural do jeitinho em um script pré-formatado de comunicação, tornando a sua práxis
sociolingüística previsível e inteiramente regida por regras determinísticas.
Entendemos que o jeitinho não pode ser formatado em palavras, expressões e enunciados
que delimitem o seu uso em nossa vida social. Sabemos agora que existem enunciados típicos que
representam essa instituição social (p. ex. Você pode dar um jeitinho?”), no entanto, dependendo do
contexto e da situação em que se encontre um falante brasileiro, muito do que ele disser pode
transformar-se ou ser interpretado como um jeitinho.
O jeitinho funciona como o sistema da língua que falamos: as palavras que compõem o
seu léxico são finitas, mas as possibilidades de elaboração dos enunciados usados para se dar um
jeitinho são praticamente infinitas.
Ainda no campo lexical, percebemos que, com exceção da expressão dar uma
escapadinha” utilizada por uma informante que nasceu, foi criada e nunca saiu de Foz do Iguaçu
não como delimitarmos o território lexical de palavras e expressões utilizadas apenas pelos
falantes de Foz, até porque não optamos por fazer esse tipo de levantamento.
Tivemos a oportunidade de perceber uma grande heterogeneidade lingüística no falar de
Foz: naturalmente resultado da cidade ser um mosaico lingüístico e sociocultural, conforme
colocamos no corpo da dissertação. Na cidade, escutamos palavras e expressões que podem ser
facilmente identificadas como pertencentes a outros lugares, por exemplo Quebru galhu,
mermão!” (carioca), Qué qué isso, sô! É um cadim, coisim de nada.” (mineiro), Orrrra, meu!
Não entendeindo. É um jeitinho, meu?” (paulista),Ôxi ... Foi rôbo, não. Meu assessor pediu
um dinheirinho pru cabra, num sabe? limpim.” (piauiense). No entanto, a expressão dar um
jeitinho” apareceu em todas as variedades ouvidas na cidade.
Conforme argumenta Erickson
96
, uma pesquisa não deve se limitar “a mostrar o que e
como algo está ocorrendo, mas também como seria possível mudar a situação, tornando-a melhor
(1993 apud ANDRÉ, 2004, p. 118, grifo da autora). Assim, nosso desejo com esse trabalho foi
mostrar a realidade da linguagem do jeitinho brasileiro em nossa cultura e conscientizar as pessoas
quanto ao caráter nocivo desse tipo de fato lingüístico e sociocultural.
As características do jeitinho representadas pela criatividade, inteligência, flexibilidade
que utilizamos para ajudar outras pessoas ao invés de prejudicá-las, deveria ser uma prática
estimulada ou mesmo aperfeiçoada. O ideal seria fazermos sempre algo pensando nos benefícios
que nossa ação traria para todos, sem qualquer intenção egoística com benefícios somente para o
locutor.
Manter a atenção ao tipo de linguagem que utilizamos e procurar adequá-la às reais
necessidades do contexto melhoram nosso comportamento social e comunitário, pois ambos, social
e lingüístico, conforme comentamos anteriormente, andam lado a lado, ombro a ombro, não sendo
possível mexer em um sem mudar o outro.
Enunciados do tipoSe atendemos, perdemos o carro. Se não atendemos, não temos como
96
ERICKSON, F. Novas tendências da pesquisa etnográfica em educação. Conferência proferida na Faculdade de
Educação da USP, 1993.
sobreviver. Eles [o Governo] querem nos responsabilizar pelas mercadorias [contrabandeadas]
dos passageiros, disse, indignado, o presidente da Coopertáxi, Valdomiro Garcia da Rocha.”
(Gazeta do Iguaçu, Foz do Iguaçu, 3 nov. 2005, Caderno 1, p. 7) O Sr. Valdomiro expressava, na
época, a insatisfação dos taxistas que tinham seus carros apreendidos na fronteira por transportarem
passageiros que atravessavam a Ponte da Amizade, do Paraguai para o Brasil, com mercadorias que
caracterizavam a prática do descaminho e do contrabando.
Não nos cabe julgar se houve exagero ou não do Governo, nem tampouco a questão social
envolvida nessa disputa. Mas uma análise do discurso apresentado evidencia o que dissemos no
parágrafo acima, ou seja, os taxistas sabem que transportam contrabando e que isso constitui ação
ilegal, mas mesmo assim insistem na sua realização, pois mediante essa atividade retiram o seu
salário, embora saibam (e talvez não queiram admitir) que essa atitude fomenta práticas ilegais além
de afetar a economia do Brasil, tirando inclusive o salário de muitos trabalhadores e prejudicando
empresários que deixam de produzir os produtos que o substituídos por material pirata. O
discurso dos taxistas, portanto é incoerente, incompatível com a realidade.
Se não agirmos coerentemente com aquilo que falamos, estaremos apenas manipulando ou
alternando a variedade lingüística, seja ela diatópica, diastrática ou diafásica, que usamos, mas
mantendo a mesma intencionalidade, o mesmo subentendido, a mesma implicatura conversacional
que sempre apresentamos em nosso comportamento social. Se assim procedermos, estaremos
realizando o que poderíamos chamar de auto-engano sociolingüístico, ou seja, falamos uma coisa,
mas socialmente realizamos outra. Continuaremos a dar um jeitinho e retro-alimentar essa
instituição ou esse fato lingüístico e sociocultural em nossa comunidade.
Por fim, concluímos que o jeitinho, elemento típico da cultura e identidade tanto dos
cidadãos iguaçuenses quanto do povo brasileiro, apresenta uma linguagem argumentativa própria
que pode ser encontrada em uma variedade de palavras, expressões e enunciados da linguagem do
jeitinho, mostrando-se mais sutil e ampla do que pensávamos inicialmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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