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Rozângela Alves Vilasbôas
ASPECTOS DO PÓS-MODERNISMO E DO REALISMO MÁGICO
EM
MOACYR SCLIAR
Araraquara
2007
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Rozângela Alves Vilasbôas
ASPECTOS DO PÓS-MODERNISMO E DO REALISMO MÁGICO
EM
MOACYR SCLIAR
Tese apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”,
Câmpus de Araraquara, para
obtenção do tulo de Doutor em
Letras (Área de Concentração:
Estudos Literários).
Orientador: Profª. Drª. Maria Lúcia Outeiro Fernandes
Araraquara
2007
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Rozângela Alves Vilasbôas
ASPECTOS DO PÓS-MODERNISMO E DO REALISMO MÁGICO
EM
MOACYR SCLIAR
TESE PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
Araraquara, ___ de ___________ de 2007.
4
Graças
Ao Deus da minha vida,
Ao Seu Filho da minha redenção,
E ao Espírito Santo da minha luz.
A minha orientadora Profª. Drª. Maria Lúcia Outeiro Fernandes, esposo e filhas pela doação,
A minha família pelo apoio,
Aos professores Ana Luíza Camarani, Sílvia Telarolli e Eduardo Coutinho pelas
preciosas contribuições,
E a todos que de diferentes formas ajudaram-me na realização deste trabalho.
5
“Benditos sejam os que residem na tua casa.”
(Mas eu imagino, senhor, que a tua casa seja mais espaçosa que a minha choça.)
Eu te louvo, meu Deus e Rei.”
(De que me adiantaria fazer o contrário?)
Todos os dias te abençôo”
(mesmo de estômago vazio).
O Senhor é bom para todos”
(bem, talvez esqueça alguém de vez em quando, mas é que Ele tem muitos em quem
pensar).
Ele satisfará os desejos dos que o temem, ouvirá seus brados e os salvará.”
(Mas quando, Senhor? Quando?)
Scholem Aleichem
6
Resumo
Este trabalho trata da contemporânea obra de Moacyr Scliar (1937), a qual exibe um
verdadeiro cosmos ficcional de temas, abordados à maneira peculiar do escritor,
imprimindo o absurdo e o cômico em sua narrativa. Procura-se, ainda, abordar a
receptividade da obra junto à reivindicante crítica e ao público.
Mostra um painel disjuntivo e esquizofrênico, onde uma diversidade neobarroca de
ingredientes e estratégias literárias, picos também do pós-modernismo, projeta-se aos
olhos do espectador/consumidor a fim de problematizar e fazer descrer da performativa
hiper-realidade que motiva semiótica e ideologicamente o contexto atual.
Apresenta o realismo mágico como uma saída para desconstruir e pôr em xeque a
contemporaneidade internacional e latino-americana na qual, por imperar o vazio, a
realidade vigente reclama suas faces racional e mágica, de forma contraditoriamente
não manifesta, por meio de outras dimensões lingüísticas.
Palavras-chave: Moacyr Scliar, pós-modernismo, realismo mágico, absurdo, humor.
7
Abstract
This research focuses on the contemporary work of Moacyr Scliar (1937), which
exhibits a true fictitious cosmos of subjects, approached in the writers peculiar way,
printing the absurd and the comic in his narrative. It intends also to focuse his work
reception because of the claiming critics and the public.
It presents a disjoint and esquizofrenic panel, where a neobaroque diversity of
ingredients and literary strategies typical also of the post-modernism, projects in the
eyes of the spectator/consumer in order to problematize and make disbelieving in the
performing hiper-reality that motivates semiotic and ideologically the present context.
It shows the magic realism as a way to desconstruct and put in check the international
and Latinamerican contemporanity in which for predominating the emptiness, the
effective reality demands its rational and magic faces, in a contradictory not manifest
way, through other linguistic dimensions.
Key words: Moacyr Scliar, post-modernism, magic realism, absurd, humour.
8
Sumário
Introdução 10
1 Moacyr Scliar 23
1.1 O autor
23
1.2 A temática 27
1.2.1 O judaísmo 27
1.2.1.1 A ficção e a história 31
1.2.1.2 A política
33
1.2.1.3 A revalorização da cultura
36
1.2.1.4 O cotidiano 39
1.2.1.5 Os cristãos-novos
42
1.2.1.6 A busca da identidade
44
1.2.1.7 A Porto Alegre 45
1.2.1.8 O bíblico
48
1.2.1.9 O mitológico 53
1.2.1.10 O lendário
56
1.2 1.11 A infância 57
1.2.1.12 O olho
62
1.2.1.13 A medicina e a literatura 63
1.2.1.14 A psicanálise e a ficção
67
1.3 A obra
71
1.4 O processo de criação 84
1.5 A crítica
110
2 A condição pós-moderna em A estranha nação de Rafael Mendes
115
2.1 Fragmentos/sintagmas justapostos
119
2.1.1 A metaficção
119
2.1.2 A metaficção historiográfica
125
2.1.3 A morte do sujeito
132
2.1.4 A realidade como representação: espetáculo, simulacro e pastiche 135
9
2.1.4.1 O espetáculo 135
2.1.4.2 O simulacro 138
2.1.4.3 O pastiche
142
2.1.5 O kitsch
148
2.1.6 A exaustão 155
2.1.7 A esquizofrenia 161
2.2 Implicações do tempo da ficção no tempo da história 166
2.2.1 Para começar
166
2.2.2 Para prosseguir 168
2.2.2.1 A síntese da história
168
2.2.2.2 O narrador 170
2.2.2.3 A cronologia narrativa
171
2.2.3 Para tentar fechar 183
2.3 Os ideais/sonhos sonhosideais dos Mendes
185
2.3.1 E os sonhos acontecem... 185
2.3.2 ...e os sonhos têm uma análise...
186
2.3.3 ...e os sonhos param de sonhar.
195
3 O realismo mágico em Sonhos tropicais
197
3.1 A imprecisão terminológica
10
Introdução
As iias da modernidade, para críticos como Chiampi (1991), vistas sob o ajuste
do contas” de um grupo de beligerantes auto-intitulado pós-moderno, em 1960,
mostram-se, hoje, como um programa falido pela utopia de seu elitismo e autoritarismo,
enquanto a arte que expressa tais idéias está com seu poder de inovação — ruptura,
experimentação e transgressão esgotado. Por outro lado, os defensores da
modernidade reconhecem sua crise de identidade, mas uma crise que não implica
extinção de seus princípios, e sim a retomada da razão crítica dentro da atual sociedade
pós-industrial do capitalismo avançado, a fim de impulsionar o utopismo iluminista e
completar o projeto inacabado da modernidade.
A obra do escritor e médico Moacyr Scliar, iniciada oficialmente em 1962, com o
romance Histórias de médico em formação (1962), à medida que questiona
intensamente os fundamentos da arte modernista e traduz certa descrença nos
metarrelatos, bem como nos valores prezados pela modernidade (LYOTARD, 1993),
traz inegáveis marcas da pós-modernidade, podendo ser tomada como exemplo de uma
nova contextualização e uma nova ótica dada ao movimento ocidental de renovação
artística surgido no período entre-guerras e canonizado como modernismo. Na
perspectiva adotada por Lyotard, a pós-modernidade resulta da desconfiança em relação
a toda forma de conhecimento apoiada nos metadiscursos e da sua dependência dos
mecanismos de fomento da pesquisa, ou seja, o saber transforma-se em mais um
produto de consumo, valendo pelo seu “valor de uso” e deixando de “ser para si mesmo
seu próprio fim” (p. 5).
Ao se problematizar as contradições da contemporaneidade, a linha pós-moderna
apostata a religião do século XX, isto é, a ciência e tudo que a implica como razão,
sujeito, totalidade, verdade, progresso (LYOTARD, 1993). Em conseqüência, a crença
na ciência como forma de progresso fica rasurada e ganha fôlego a relatividade
semiótica. Fala-se sobre outras falas; uma linguagem o máximo que consegue é dialogar
com outras linguagens; os fatos estão presos a imagens, clichês e simulacros, e a forma
de se chegar a eles é impossível a não ser pela conveniência da linguagem
inerentemente não neutra e não referencial; os limiares entre realidade e ficção, centro e
11
fora, autor e narrador, literatura e história estão para sempre confundidos. E, dessa
forma, a verdade se converte em uma questão de ordem do dia; a história não pretende
ser total, mas apenas se desenvolver a partir de micro-histórias, narradas não
necessariamente por “narradores” oficiais; o cosmos se torna a pluralidade caótica de
cacos, porém muito bem juntados de acordo com a ótica e a ênfase que se quer dar a
eles.
Na relativização lingüística e na mistura de fronteiras, pode-se dizer que reside a
proposta pós-moderna incrédula e democrática, cujo planejamento pretende conhecer as
formas de representação e seus discursos manipuladores e homogeneizadores para dar
conta de atingir e conviver com as diferenças dos setores mais minoritários e
marginalizados da sociedade. Para tanto, não se promove o privilégio de nenhum grupo
social sobre o outro, nem ainda o de uma corrente estética sobre a outra, mas acolhe
todos e todas criticamente, sem contudo implicar a devoção ao capitalismo tardio
(JAMESON, 1997) como novo estilo de época, nem tampouco à irracionalidade acrítica
à nova fase desse sistema potico. Antes se viabiliza o convívio com o outro e com sua
diferença, aliás o que garante uma democracia social em sentido lato, uma vez que, para
Deleuze-Guattari, o esquizofrênico ideal é aquele sujeito psíquico que ‘percebe
somente através da diferença e da diferenciação, se isso for concebível” (p. 346).
Este trabalho não pretende passar o receituário de uma nova forma totalizante de
engajamento e emancipação artística, mas, apesar dessa sua não pretensão descabida,
poder-se-á notar sua contribuição para atualizar e antenar a sensibilidade para os
aspectos reveladores e críticos da arte, em relação à realidade circundante, subjugada ao
domínio dos meios de comunicação que transformaram o real em signo e imagem em
nome da informação, a partir das ponderações de Jameson (1997), Lyotard (1979) e
Baudrillard (1981). O pós-moderno, linha na qual está situado, aguça a percepção para o
exercício da diferença e da tolerância, uma vez que se pauta nas fendas e nas tensas
contradições que os sistemas das macro-histórias e das metanarrativas modernistas não
deram conta de explicar suficientemente, esquivando-se em sua visão panorâmica e
igualitária com vistas à camuflagem de detenção do poder institucional.
É por isso que Santiago (1991, p. 5), em uma entrevista dada ao Suplemento
Literário de Minas Gerais, diz que trabalhou com o pastiche na composição de seu
12
livro Em liberdade, como forma de entrar nas brechas deixadas pelos modernistas sem
causar maior escândalo, sem destruir ou sem ser iconoclasta, pois a reação à tradição
não deve ser mais somente a paródia que debocha ou a reverência que anula. Faz-se
necessário “buscar uma maneira de trabalhar as brechas do Modernismo. Suas lacunas.
Certos tabus. E de trabalhar os medos e, até mesmo, as insuficiências modernistas”.
Desse modo nota-se que enquanto o pastiche ou a cópia, por exemplo, são colocados
como fórmulas exaustas (BARTH, 1967), uma estratégia de renascimento e
convalescença (BARTH, 1981 e VATTIMO, 1987) também se apresenta como válida.
Deve-se ver as perspectivas pós-modernistas, seguindo a sugestão de Touraine
(1993, p. 236), como viajantes — portanto fora de seu espaço natural —, conscientes
das inevitáveis rupturas de tal viagem, e partir com todas as suas bagagens das mais
diversas áreas da arte e da cultura, levados pela esperança não utópica de assentar e
aceitar o cidadão social portador de diferenças individuais, não apenas o homem.
Embora paradoxalmente, como coloca Hutcheon (1991, p. 136), a pós-modernidade
presa dentro da realidade que questiona e problematiza — usa, abusa, subverte e desafia
as formas dessa realidade da qual lança mão, e é consciente de que “na ficção pós-
moderna, o literário e o historiográfico são sempre reunidos — e normalmente com
resultados desestabilizadores, para não dizer desconcertantes”.
Reunidas pelo elo lingüístico, literatura e história, fião e realidade, grande arte e
arte das massas reduzem-se a meros ingredientes constituintes da matéria detentora do
poder sobre o consciente e o inconsciente das pessoas: a linguagem e seus sistemas
simbólicos. O contexto capitalista, interior do qual ela é gerada, é sempre
problematizado e olhado com desconfiança pela pragmática e relativista estética pós-
modernista, uma vez que não é a arte que deve se curvar à potica do capital, como quer
Jameson (1997), esta serve para subsidiar as reflexões artísticas. Pois a arte está atenta,
inclusive para o desvendamento e a alteração de códigos de potica, economia e
sociedade, nos quais interesses individuais e subjetivistas estão diretamente ligados, daí
um projeto literário e alternativo suscitado pela arte.
A noção tradicional de sujeito como observador neutro é implodida no contexto da
instituição, e com ela a noção tradicional de originalidade e de autoria. A lei altamente
conveniente da pureza e da não contaminação está para sempre sem efeito, aliás ela
13
nunca existiu de fato, sua existência sempre foi de direito, mas só conseguido
ilicitamente a fim de legitimar e garantir os discursos hegemônico-sociais de poder e de
posse.
Se o modernismo compreende, para Lyotard, a renovação artística do pensamento
ocidental, no entre-guerras, o pós-modernismo pretende mudar a prática de se olhar, de
se perceber e de se fazer arte, no pós-guerras. Portanto essa estética, que não quer ser
total nem grandiosa, mas valorativa do heterogêneo e do marginalizado, promove uma
alteração ontológica e epistemológica na forma de ver a entrópica sociedade da
informação. Ela rejeita as pretensões totalizantes e reducionistas, segundo Guelfi (1994,
p. 24), recusando-se a confiná-la a um só conceito generalizante e exclusivista, pois “o
desejo de tentar encontrar um significado totolizador para o conceito em questão não é
nada pós-moderno”. E, assim, nessa nova forma de pensamento, a sugestão “seria
trabalhar com a pluralidade de teorias surgidas em torno do debate contemporâneo
sobre a modernidade, mantendo e explorando a tensão entre elas”.
No caótico pluralismo e no acaso fragmentário que integra o universo, no que diz
respeito ao passado/presente, sobressai-se na pós-modernidade a metaficção
historiográfica (HUTCHEON, 1991, p. 131), como forma de manter a tensão da
problematização em detrimento da mera desconstrução. A metaficção historiográfica, de
maneira desafiadora e auto-consciente, aborda o passado, atualizando os vários
discursos, formas e funções que o representam, sem perder de vista a representação do
passado como já sendo ‘semiotizado’ ou codificado, ou seja, já inserido no discurso e,
portanto, ‘sempre já’ interpretado (mesmo que apenas pela seleção daquilo que foi
registrado e por sua inserção numa narrativa)”.
A contemporânea obra de Moacyr Scliar embora tenha raízes judaicas, é
produzida na América Latina, e, segundo Chiampi (1980), o discurso americanista da
atualidade converge para uma esforço de se (re)construir uma imagem eufórica da
América, cujos atributos contemporâneos são de latinidade e mestiçagem.
Devido a preconceitos positivistas e europeus a América Latina sempre foi vista como
inferior por natureza, pelo seu caráter mestiço, “impuro”, e tem gerado anseios de
descolonização cultural. Porém, paradoxalmente, é por essa mestiçagem que a realidade
latino-americana é, a partir da ainda utópica mas objetável La raza cósmica (1925) de
14
José Vasconcelos, a reserva dos ideais humanitários da cultura ocidental. Na América a
assimilação biológica e cultural das raças, tanto séria quanto jocosa, outorga-lhe um
signo de recepção geradora, pois não apenas é aberto às raças, mas também é
antropofágico na medida em que seu produto final não é a cópia, e sim o simulacro
destruidor da dignidade do modelo”. O homem americano, para Mayz Valenilla, possui
uma têmpera fundamental: um não-ser-ainda que é existencialmente um “não-ser-
sempre-ainda”. Assim o povo da América Latina caminha para um processo de síntese
feliz da evolução humana para a quinta raça ou “raça cósmica”, com um projeto
universal de cultura sinfônica e não-disjuntiva.
A América Latina, com sua latinidade, implica uma realidade latino-americana,
com sua mestiçagem. Tal hibridização justaposta, na obra de Scliar, consistirá
grandemente na representação problemática e desmistificadora da gênese da realidade:
o racional e o absurdo, além de encontrar no humor a única forma de se apresentar um
paliativo aos impasses desse inexplicável que inunda o real.
Uslar Pietri, em seu ensaio Las nubes (1951), diz que a literatura hispano-americana é
carnavalizada, não na acepção bakhtiniana de inversão, mas por manifestar “o gosto
pelas formas elaboradas, obscuras e complicadas; a proliferação do mítico e do
simlico; o predomínio da intuição e da emoção; o tom patético e truculência
psicológica; a utilização da literatura como instrumento de luta política e pregação
reformista” (CHIAMPI, 1980, p. 125).
Contrariamente à colocação de Pietri, a cultura hispano-americana, de forma geral
ria ou paródica ao aglutinar a influência das raças que a compõem, em alguns
momentos, trabalha sim com a inversão, na acepção de Bakhtin. Já faz parte da ppria
linguagem e do comportamento do mestiço manifestar hipocrisia, cinismo e
dissimulação como produto da exploração e humilhação da América pelos
colonizadores de todos os tempos. O mestiço precisa, muitas vezes, negar-se para
reconhecer sua verdadeira identidade, e aliás, como ele próprio acaba por admitir, ela se
colore de um “tom patético”.
Tampouco a literatura pós-modernamente pretende ser moralista ou reformista a
ponto de servir como evasão ou redenção ao político-social, ou pretende universalizar a
sociedade debaixo de rótulos que só objetivam totalizar e relativizar para melhor
15
mascarar sua fórmula de dominação. Ela não postula mais que tensionar pequenos
pontos, a fim de iluminar criticamente e de outra maneira o que já esaí posto, relendo
e problematizando os descompassos e os pontos críticos deixados pelos projetos
anteriores, bem como os desvãos deixados de lado por esses projetos.
Mas, como pondera Pietri, ao lado do bem elaborado, a literatura da latino-
americana tem como predileção o ilógico e intuitivo, o que leva Alejo Carpentier em
uma entrevista a Miguel F. Roa, em 1975 (CHIAMPI, 1980, p. 47), a considerar a
América Latina como um “mundo maravilloso”. E essa realidade oculta atrás das coisas
visíveis, as entranhas do invisível e as forças que movem nosso solo e nosso mundo
telúrico só podem ser expressas por meio de um vocabulário metafórico, rico em
imagens e cores, antes de tudo barroco.
É por isso que o período barroco
1
pode ser o signo metafórico da cultura
heterogênea da América Latina. Conforme os apontamentos de Chiampi (1994, p. 126-
127), o barroco tem caráter polifônico, de cruzamento de discursos e códigos culturais
por causa de suas línguas, raças, falas, tradições, mitos e práticas sociais, propiciadas
pela colonização da América. Embora desprezados alguns esteticistas e formalistas
sempre o viram como um “eón” atemporal, uma forma que transmigra, renasce ou
ocorre em muitas épocas e latitudes, sem vínculos sociológicos ou ataduras a feitos
históricos. No entanto, como se trata agora de um barroco que não teatraliza mais os
tics” do classicismo, mas teatraliza os tics” do modernismo fase auto-reflexiva
deste, chamada de pós-modernismo —, essa nova síndrome barroca também pode ser
chamada de neobarroca.
Com a metáfora “síndrome”, a autora alude ao rechaço das totalidades
modernistas e sua obsessão epistemológica pelo fragmentário/fratura no terreno
político, bem como seu compromisso ideológico com as minorias, ou seja, o potencial
desconstrutivo barroco, emergido em um momento de crise modernista, tem a ver com
uma nova concepção de arte e cultura dos povos e culturas periféricos. Na pós-
modernidade, esse barroco atual, o neobarroco, é a arte do destronamento e da
1
Tomar-se-á por Barroco a concepção de García-Morejón (1968, p. 30), para quem (...) el Barroco
es la crisis vertical de los valores clásicos, la encrucijada del optimismo. Mana la desilusión y el
desengaño por doquier. Y el hombre trata de engañarse a si mesmo, huyendo por los desfiladeros
del sueño y transformando las aparencias en realidad.
16
discussão, porque revela as carências e os desequilíbrios do contemporâneo, e a
harmonia almejada é um sonho inatingível.
Segundo Chiampi, nos anos 70, sem utilizar o termo pós-modernidade, Sarduy
fala dela como pertencente ao barroco, por causa de seu artifício e metalinguagem,
enunciação paródica e autoparódica, hipérbole de sua própria estruturação, apoteose da
forma e irrisão dela. Ele fala de uma “estranha modernidade” pertencente ao
neobarroco, pressentindo uma nova arte no sistema cultural da terceira revolução
tecnológica: a sociedade pós-industrial.
Ao analisar o homem barroco, Gasques (1991, p. 3) o vê carregando tristezas,
desordem íntima, desencanto e desilusão do século XVII, principalmente com a política
e com a religião. Desse modo o mundo é visto ao revés e como um confuso labirinto.
Em um dos Sueños, de Damaso Alonso, intitulado El mundo por de dentro”, um
jovem aventureiro e cheio de sonhos é apresentado a um velho, chamado Desengaño”.
Este lhe mostra um cortejo no qual as pessoas, de diferentes profissões, vão mascaradas,
por uma rua chamada “Hipocresía”. O moço, decepcionado com a verdade da falsa
aparência exibida por elas, diz: Qué diferentes son las cosas de como las vemos. Desde
hoy perderán conmigo todo el crédito mis ojos y nada creeré menos de lo que viere!”
Na atualidade, é bom lembrar, não é mais preciso ver a realidade para crer, pois o
que se tem para ver e acreditar é a simulação da realidade, transformada em hiper-
realidade e transpassando os modismos de “neo” e os escárnios pós-modernos, para ser
mais real que a realidade.
Em relação à obra de Moacyr Scliar, a crítica tem constantemente atentado para
sua tendência ao estranho, ao mítico e ao intrigante, denominando essa peculiaridade de
sua ficção indistintamente de realista, fantástica, realista fantástica, real(ista)
maravilhosa ou realista mágica, respectivamente, como se pode ver pelas citações
abaixo:
Na aba e na última capa da edição [A guerra no Bom Fim], aliás primorosa, o
autor é apresentado como “um realista mágicoe o livro como “uma das primeiras
manifestações realmente importantes do fantástico na literatura brasileira”. Receando que
isso venha a ser muito repetido por falta de melhor, me oponho, embora não esteja tão
mal. A fórmula “realismo mágico”, que em si me parece confusa e dispensável, se aplica
17
pouco a Scliar. Ele é muito real nas coisas de que parte; apenas não segue a evolução
narrativa mais ou menos convencional que qualquer outro tiraria dessas coisas, e sim
brinca de acompanhar idéias e conclusões que a sua sensibilidade não estereotipada lhe
sugere a propósito delas. Há antes razão e sonho que mágica nisso.
A noção de fantástico igualmente não se ajustaria. Fantásticos eram antes os
contos de fantasmas e hoje os pesadelos mecanicamente armados da ficção científica,
ambos feitos para assustar mentes pueris. Scliar faz humor, às vezes macabro, sempre
gentil. Não é um assombrado nem um escritor trágico e metafísico como Kafka e os de
seu clã. É um pequeno judeu que sofre com um sorriso nos lábios. (Judeu porque assim se
quer, sem dúvida por não perdoar nem os não-judeus nem os seus, e pequeno também
porque quer, numa escolha que aliás contribui decisivamente para o encanto do que
escreve). (HECKER FILHO, 1973, p. 4).
A linha que define a separação entre a fantasia infantil e o escapismo do adulto é
realmente muito tênue para os personagens de Scliar, embora a falta de verossimilhança
(realismo mágico?) seja indistinguível. (SILVERMAN, 1982, p. 183).
A simplicidade evidente em toda a obra de Scliar faz vir à mente tanto as fábulas
do Esopo como obras de literatura infantil (O carnaval dos animais, por exemplo, tem
sido chamado de fantástico, mais lúdico do que sério”). (p. 188).
Você tem, na sua ficção, uma linha de realismo-fantástico e uma linha de realismo
simples, pura, urbana, de ascendência judaica. (GOMES, 1989, p. 9).
All of Scliars creations are curiosities: they make the real unreal, and vice versa.
After reading them, one understands that fantasy and reality, paganism and Judaism, can
become an oxymoronic unity only in Latin America, where life is a bit more bizarre,
where existence is always on the edge of the believable. (STAVÁNS, 1988, p. 64)
2
.
Uma das características mais salientes de sua ficção é a justaposição inesperada e
chocante de um realismo cru (naturalismo) e uma fantasia espantosa (qualidades que
2
Todas as criações de Scliar são curiosidades: elas fazem do real irreal, e vice-versa. Depois de lê-
las, entende-se que fantasia e realidade, paganismo e judaísmo, podem se tornar uma unidade
oxímora somente na América Latina, onde a vida é um pouco mais bizarra, onde a existência está
sempre no limiar do acreditável (Tradução nossa).
18
freqüentemente caracterizam o folclore judaico), temperada por uma ambigüidade
resultante da ironia que o autor utiliza na manipulação do real e do imaginário. (MONIZ,
1982, p. 59).
Para analisar a realidade latinoamericana, neobarroca e cotidiana, Chiampi (1980,
p. 43-44) justifica ter escolhido como título para seu livro O realismo maravilhoso a
expressão “realismo maravilhoso” ,e não “realismo mágico”. Ao invés de usar
realismo mágico”, diz ter usado “realismo maravilhoso”, porque considera
maravilhoso um termo já consagrado pela Poética e pelos estudos crítico-literários, não
ligado a modismos, e por se referir a um tipo estrutural de discurso, assim como o
fantástico e o realista. Além disso o termo maravilhoso baseia-se na não contradição
com o natural, pois é o “extraordinário”, o “insólito”, o que escapa ao curso ordinário
das coisas e do homem (preservando algo de humano em sua essência), exorbitando as
leis físicas e as normas humanas com seu sobrenatural; e contém a maravilha, “coisas
admiráveis”, contrapostas às naturalia (não preservando nada de humano ou natural em
sua essência), sem explicação racional. Já o termo mágico vem de outra série cultural e
acoplá-lo a realismo “implicaria ora uma teorização de ordem fenomenológica (‘a
atitude do narrador’), ora de ordem conteudística (a magia como tema)”. E magia é a
arte ou saber que implica em dominar os seres ou as forças da natureza, produzindo
efeitos contrários às leis naturais através de certas práticas. Como ramo do Ocultismo, a
realidade se torna um símbolo, cujo sentido se deve buscar de símbolo em símbolo, e
para tanto, o sujeito sofre um processo de metamorfose gradativa até alcançar a gnose.
Assim, “por ser um modo de conhecimento sintético do mundo e por implicar o
comprometimento do sujeito (que sofre a mutação ontológica), a prática mágica difere
do conhecimento científico”.
Ao preferir a expressão “realismo maravilhoso” a “realismo mágico”, Chiampi
parece estar mais preocupada com o reducionismo acadêmico do termo realismo
maravilhoso e em mantê-lo ligado, obrigatoriamente, às correntes ocidentais de todos os
tempos. Ela parece evitar a mistura, inevitável, de um discurso com o outro, bem como
a intervenção atitudinal do sujeito, embora já se saiba que qualquer atitude ou
mensagem do narrador é subsidiada pela ideologia que o constitui (ADORNO, 1985).
19
Menton (2001) não coloca a vantagem de um termo sobre o outro, ele os
diferencia. Para ele, o realismo maravilhoso se caracteriza por seu barroquismo e
excesso de adornos. É proveniente das culturas indígena e africana que perfazem a
cultura da América Latina, por isso não tem limites cronológicos nem é internacional,
enquanto para o autor suas personagens acreditam no mito e no metasico, inerentes a
sua cultura. Por outro lado a obra realista mágica trabalha com o realismo, e, apesar do
surgimento de algo inverossímil, o equilíbrio se mantém. A prosa é clara, com limites
cronológicos e tendência internacional, enquanto para o autor o mundo é um labirinto,
onde coisas inverossímeis e possíveis acontecem sem muitos dramas.
Faz-se necessário fazer uma ressalva a respeito do parecer de Menton, pois o
realismo maravilhoso nasce em 1949, com o romance El reino de este mundo, de
Alejo Carpentier, e se torna uma tendência internacional posteriormente. Quanto ao
realismo mágico, sua prosa não é clara, nem é internacional com uma cronologia
precisa, apesar de que sua primeira manifestação literária se dá em 1920, no conto “El
hombre muerto”, de Horacio Quiroga, e seu boom acontece umas décadas depois com
contos de Borges e Cien años de soledad (1967), além das lendas locais, de García
rquez. A junção em García Márquez, por exemplo, do maravilhoso subjetivo com o
coletivo mostra que só o inconsciente individual e freudiano não é mais suficiente para
atualizar a maravilha, antes precisa do inconsciente coletivo e junguiano para melhor
redimensionar e abarcar a mágica da realidade com seus mitos e crenças. E a
inverossimilhança acontece ao lado da verossimilhança, mas de modo dramático.
Uma nomenclatura conciliatória para realismo maravilhoso e realismo mágico
parece ser a proposta por Spindler (1993). Ela se deriva das concepções de Carpentier,
em 1949, representando a realidade modificada pelo mito e pela lenda, e de Astúrias,
em uma palestra de 1954, representando o irreal como fazendo parte do real.
Contraditoriamente, referente à primeira concepção, o sobrenatural é aceito no estilo,
mas refutado na estrutura; e referente à segunda concepção (uso atual e substitutivo da
primeira), há duas visões de mundo, uma racional e outra lógica, apresentadas como se
fossem contradirias por causa dos mitos e crenças de grupos etno-culturais para quem
essa contradição não se manifesta. Então Spindler propõe uma tipologia para dar conta
dos diferentes tipos de realismo mágico: o realismo mágico metafísico, com a mágica
20
advinda da ilusão de ótica; o realismo mágico antropológico, com a mágica advinda das
crenças coletivas; e o realismo mágico ontológico, com a mágica advinda do
inexplicável como se não fosse contradirio.
Como se vê, no momento contemporâneo, reconhece-se que todos os sucessos e
insucessos, e todas as impressões e aptidões estão irremediavelmente cedidos ao poder
ideológico da linguagem — Barthes (1970), Hutcheon (1991), Connor (1992) —; o
medo e o inlito, antes suscitado no nível semântico, agora, também, está a cargo do
sintático Volobuef (2000) —; além da forma de expressão, o estilo — Gay (1990) —
subjetivo, lingüístico e relativo, com certeza.
E já que é uma questão de expressão, embora com nuanças variadas, o estilo da
atualidade tende ao paródico. Uma das formas de representação, privilegiada na pós-
modernidade, é a paródia, segundo Hutcheon (1985), pois ela atua como a auto-
reflexividade, continuidade e transferência, que marca a diferença no discurso
interartístico. A paródia pode estar presente desde um texto sério até um texto
zombeteiro. Seu âmbito abrange desde a admiração respeitosa até o ridículo mordaz,
demandando sempre um descodificador ativo. Fazendo uma separação entre a paródia e
a sátira, percebe-se que o alvo da primeira é extramural e não inico, enquanto o da
segunda é intramural e irônico. A paródia moderna, o pastiche, é imitativo e não porta
uma relação transformadora nem um julgamento negativo, com outros textos.
Em contrapartida, para fazer sua avaliação negativa e ridicularizadora dos vícios e
loucuras da humanidade — o século XX morre de rir” (MINOIS, 2003, p. 554) —, a
ironia utiliza o veículo paródico da correção. Este objeto do humor, a correção, é,
também, apontado por Bergson (1943), Muecke (1995) e Minois (2003), pois “a ironia
não é zombaria: no fundo, leva as coisas a sério, mas dissimula sua ternura” (MINOIS,
2003, p. 570).
No contemporâneo, como forma de intensa auto-reflexividade paradoxalmente
conservadora e transformativa, a paródia, ria ou risonha, é outra marca de origem
barroca. A produtividade textual latinoamericana é o espaço do dialogismo, polifonia,
carnavalização, paródia e intertextualidade. Logo, a América Latina é o continente, por
excelência, do barroco que se apresenta como uma rede de conexões e de sucessivas
21
filigramas, cuja expressão gráfica se dá em volume espacial e dinâmico (CHIAMPI,
1994, p. 125).
Este trabalho, objetivando lançar à obra contemporânea de Moacyr Scliar um
olhar condizente com o momento de sua inserção, a fim de melhor olhá-la, faz um
passeio pelos muitos temas scliarianos, muitas vezes, pertencentes a lugares incomuns e
sem propósitos coesivos. Também, inclui no passeio, o conhecer das obras de maior
receptividade e ilustrativas de sua temática; o parecer da crítica sobre a produção
ficcional desse escritor-médico e brasileiro-judeu; o construir literário do autor, em
meio a suas habilidades e seus obstáculos, mas impregnado de fantástico (entenda-se
realismo mágico) e de humor. Dessa viagem pelo cosmos do escritor, trata o capítulo
“Moacyr Scliar”.
Da perspectiva atual, vislumbrada na obra de Scliar, torneados com o humor,
elevam-se dois grandes pilares neobarrocos: o pós-modernismo e o realismo mágico.
Diferentes fios de conexão justapostos compõem e poluem o caos ficcional da obra A
estranha nação de Rafael Mendes, tensionando e desconvencionalizando pontos
modernos, deixados rotos ou mal unidos/discutidos. Uma intensa reflexão pós-moderna
sobre esses pontos parte da reflexividade lingüística e subjetiva, inerente à metaficção;
da intertextualidade lingüística entre passado e presente, apregoada pela metaficção
historiográfica; da existência ontológica fraca e impura do sujeito, presente em a morte
do sujeito; do show, da imagem e da cópia como única forma hiper-real de se aproximar
do real, analisada em a realidade como representação: espetáculo, simulacro e pastiche;
do destronamento da grande arte em prol da valorização também da arte das massas,
visto em o kitsch; do esgotamento e ao mesmo tempo do lento reabastecimento,
apreendidos em a exaustão; da convulsiva adjunção atemporal de formas e estilos,
mostrada em a esquizofrenia.
Além desses nós, a exibição do pilar pós-moderno scliariano consiste na
problematização de mais dois pontos. O primeiro, Implicações do tempo da ficção no
tempo da história, diz respeito à interferência esquizofrênica do presente no passado e
do passado no presente como determinação do futuro, atemporalidade influenciada pelo
protagonismo semiótico da linguagem e pela ótica sempre muito pessoal do narrador. E
o segundo, Os ideais/sonhos sonhosideais dos Mendes, refere-se à necessidade de se
22
redimensionar a visão onírica freudiana em prol de visões mais coletivas e socialmente
contextualizadas. Dessas tensas reflexões sobre uma obra específica, trata o capítulo “A
condição pós-moderna em A estranha nação de Rafael Mendes”.
A outra pilastra, sobressalente na contemporaneidade da ficção de Scliar e
igualmente carente de reciclagem barroca, enxerga-se no realismo mágico de Sonhos
tropicais. Apesar de controvérsias terminológicas, nota-se que uma dessas
terminologias subjuga-se ao romance, uma vez que aborda uma nova atitude de se ver o
real, ou seja, o romance de Scliar projeta ontologicamente a face racional e a gica da
mesma realidade. Dessa problemática crítica sobre uma das obras scliarianas, em
particular, trata o capítulo O realismo mágico em Sonhos tropicais”.
23
1 Moacyr Scliar
1.1 O autor
Moacyr Jaime Scliar, nascido a 23 de março de 1937, é um gaúcho-judeu natural
de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, cuja família de imigrantes veio da Rússia, como
muitas outras, foragida de progroms e de perseguições.
É descendente de uma família enorme, confinada ao bairro do Bom Fim, onde a
convivência entre as pessoas é intensa e a troca de emoções mais intensa ainda: “era
habitual que as pessoas entrassem sem bater [a porta da casa dos Scliar não tinha chave]
da mesma forma que se metiam na vida umas das outras” (LEITE, 1989, p. 4). O
menino Moacyr cresce, nessa espécie de gueto judeu, ouvindo histórias contadas por
seus pais, Sara e José Scliar, tios e vizinhos que, na sua maioria imigrantes da Rússia,
contam histórias reais e fascinantes de sua vida nas aldeias, de seus antepassados, de sua
miséria, da Bíblia, de sua religião, de sua profissão como artesãos e pequenos
comerciantes. Contar histórias. Eis uma coisa que meus pais, o pai marceneiro semi-
analfabeto e a mãe professora, sabiam fazer particularmente bem, com graça e humor;
sabiam transformar pessoas em personagens, acontecimentos em situações ou cenas”,
como ele mesmo declara a Zilberman (1988, p. 4). E todo esse ambiente de experiência
pessoal, de maneira destilada, será matéria para muitas de suas narrativas.
Do ouvir histórias em casa ou nas calçadas, à noite, passa à leitura delas,
estimulado pela família e, sobretudo pela mãe: “De minha mãe adquiri o gosto pela
leitura” (ZILBERMAN, 1988, p. 4). Sua mãe é professora primária da Escola de
Educação e Cultura (atual Colégio Israelita Brasileiro), onde estuda. Scliar explica, em
Leite (1989, p. 4), que “a sociedade judaica (...) é tradicionalmente paternalista no
sentido de que o pai é o chefe da casa e o guardião da lei, mas na realidade a mãe é o
centro porque é ela quem alimenta. E minha mãe era extremamente alimentadora”.
Apesar de pobres, não miseráveis, dinheiro para a compra de livros é o que não falta e,
assim, o livro se torna para ele a barreira, mas também a porta entre ele e o mundo; a
barreira que o protege dos preconceitos dos quais são vítimas os judeus, mas também a
porta que o sintoniza a esses preconceitos para melhor com eles conviver. A leitura
permite-lhe ficar antenado para os problemas de seu tempo e espaço, bem como para o
24
conhecimento de sua tradição e do mundo, oferecendo-lhe autonomia nos diferentes
prismas de ver a realidade presente, pretérita e futura, além de lhe conferir sentido à
existência e ordem na forma de vê-la. De tudo há em sua biblioteca, desde histórias-em-
quadrinho e romances até produção científica Os autores lidos são Monteiro Lobato, seu
preferido, Cecília Meireles, Charles Kingsley, Érico Veríssimo, Alexandre Dumas,
Viriato Correa, João Câncio, além de livros como Tarzan, Robin Hood e Alice no país
das maravilhas.
Estimulado pela leitura e pelo ouvir histórias refrão que o imortal Moacyr
Scliar retoma até no dia 22 de março de 2003, ocasião de sua posse na cadeira 31, na
Academia Brasileira de Letras, ao dizer: “Sou filho de imigrantes pobres, que me
ensinaram a amar os livros” (CARAS, 2003, s.p.) —, nasce esse grande contador de
histórias, de infância pobre em termos materiais, mas rica em termos de vivência e
fantasia. Além de escritor é médico sanitarista, já que, conforme declara em Gomes
(1989, p. 8), é daqueles “escritores que combinam duas profissões, o que não é raro
neste País”. Seus parentes, assim como os demais imigrantes, trazem para o “Novo
Mundo” seus mitos e sonhos; emperrados ao se depararem com terras inférteis e com a
desilusão de esperanças comunitárias de redenção. Dessa forma acabam por deixar as
terras da ICA ou JCA (Jewish Colonization Association), uma associação filantrópica
fundada pelo Barão judaico-francês Maurice de Hirsch, nos municípios de Erexim e
Quatro Irmãos, interior do estado, a fim de se dirigirem a Porto Alegre ou a outras
cidades, integrando-se mediocremente à classe média brasileira, vivendo em guetos e
trabalhando como comerciantes.
Tanto na medicina, cuidando da saúde pública, quanto na literatura, primando por
conteúdos sócio-políticos, o escritor gaúcho parece estar vinculado definitivamente a
uma profunda solidariedade humana, fruto de uma vida comunitária que objetiva à
mudança, na intenção, mas que, muitas vezes, na prática, é apenas utopia. Isso ocorre
em sua experiência na saúde pública, que, apesar de lhe beneficiar com um alargamento
de visão de país e de mundo, também acaba por lhe causar crescentes frustrações,
devido, sobretudo, à problemática social brasileira, que continua a mesma desde que se
formou, em 1962. Acontece também em sua experiência na literatura, já que a voz do
componente étnico do qual é representante, apesar do seu índice numérico, ainda soa
25
demasiado tímida e sem intensidade, além da escassez de bons leitores e de poder de
compra para os livros. E assim suas duas profissões liberais — encorajadas pelos pais
que, descendentes de peregrinos e fugitivos de país em país, orientam os filhos a
levarem consigo as coisas mais importantes — fornecem-lhe uma fonte inesgotável de
matéria-prima para sua produção literária, com essência no humano.
A herança judaica de Scliar liga-o necessariamente a duas instâncias culturais:
uma próxima e outra longínqua, sem, contudo, prendê-lo a nenhuma. A que está mais de
perto é o seu gauchismo sul-riograndense de “centauro dos pampas” (SCLIAR, 1989a,
p. 50) e “monarca das coxilhas” (MONTEIRO, 1998, p. 187), como é chamado o
gaúcho. A mais distante tem a ver com sua condição de imigrante que convive em uma
espécie de aldeiazinha da Europa Oriental, está quase extinta no plano do consciente,
mas viva no remoto inconsciente. Ela faz parte de seu judaísmo que, apesar de sua rica
herança cultural, ligada desde os tempos blicos à palavra escrita, condicionadora do
destino de milhões de pessoas, é obrigado a ser abafado pela identidade dos cristãos-
novos, por várias vezes. Ao longo da História o judeu é tima de perseguições,
holocaustos e extermínios, tragédias históricas motivadas por interesses econômicos,
mas sempre realizadas em nome da limpeza das raças ou disfarçadas em expiação
religiosa, uma vez que é atribuída aos judeus a culpa do assassinato de Cristo. Embora
seja bom lembrar, sobre o judaísmo, que o escritor lamenta profundamente o
embargamento de sua marcha de extinção terminológica, ocasionada pela fundação do
Estado de Israel, uma vez que, de acordo com seu parecer, o renascimento do Estado
israelense só causou regressão para “o processo de assimilação e desaparecimento dos
judeus”, primitivizando a violência dos judeus egressos, assim como travando a “tardia
naturalização” dos judeus “como homens iguais a todos”, no resto do mundo, como se
pode conferir em Hecker Filho (1973, p. 4).
Acostumado a ver por meio dos olhos do imigrante russo-judeu, Scliar olha o
Brasil de forma diferente, pois, para ele, “a condição judaica é uma coisa que marca
fundamente a pessoa que a porta” e “isso condiciona uma certa maneira de ver o
mundo” (SCLIAR, 1989a, p. 48), permitindo-lhe ver coisas que as pessoas com raízes
mais tradicionais não percebem, o que explica a forma de ver do imigrante, uma vez
que, como coloca Marx, este se introduz nos “poros da sociedade”, vislumbrando
26
benefícios pessoais e ramos da economia para, daí obter sucesso, no que é imperceptível
aos cidadãos locais. E, como quem enxerga dentro, a partir de uma posição externa,
embora não se considere um escritor judeu, como Isaac Bashevis Singer, mas um
escritor brasileiro de ascendência judaica, reclama a falta de representantes dos demais
componentes étnicos da brasilidade. Por exemplo, a literatura carece de porta-vozes
para o negro, o índio, o árabe, o italiano, o alemão e outros. Fazendo literatura pela
perspectiva do imigrante, no papel de um exilado permanente, na maioria das vezes,
Scliar (1985c, p. 8) toma o cuidado para não incidir no que ele próprio coloca sobre a
questão do exílio: perda progressiva das raízes”, “idealização tica da pátria”, ou
ainda “exílio interior” que resulta em uma literatura engajada metaforicamente apesar
de evasiva, além de que o distanciamento do exilado se repercute, ora como forma de
estímulo, ora como forma de paralisia à produção ficcional.
De sua cultura milenar, gosta da comida, das anedotas e do modo de se contar uma
história, porém não se considera nem melhor, nem pior, apenas diferente, a começar
pela marca da circuncisão estampada na carne. Na realidade, “a condição judaica deve
ser entendida e elaborada. Os judeus são aquilo que a História fez deles; entender o
judaísmo é entender o ser humano” (MEDINA, 1985, p. 9). Scliar confessa ter sofrido
muito e ter rejeitado seu semitismo até os doze anos, carregando o tormento interior da
27
esse material simples e extraordinário, colhido do fato de se criar um filho, esteja ainda
longe de outras páginas literárias.
Na condição de escritor premiadíssimo, com traduções de suas obras em outros
idiomas, com críticas estrangeiras sobre seus livros e tendo que falar a pessoas no
exterior, Scliar sente, por um lado, como que uma massagem em seu ego e, por outro,
com uma missão importante a ser desempenhada”, segundo diz em uma entrevista
(SCLIAR, 1987, p. 7). Tal privilégio, além de fazê-lo sentir-se mais brasileiro, em um
país tão dependente culturalmente da Europa e dos Estados Unidos, torna-se mais
excelente, porque o escritor tem a oportunidade de atravessar fronteiras, podendo voltar.
Na condição de artífice da palavra, considera-se um profissional dessa área, mas não
cartorizado, como anuncia em Medina (1985, p. 9): “Me considero um profissional da
palavra, ainda que não tenha carteira de trabalho assinada”.
Moacyr Scliar é sempre estimulado a escrever pela família, sobretudo pela mãe de
quem recebe as primeiras e importantes lições. Nos serões familiares todos param para
ouvir a leitura de suas redações, desde cedo deixa transparecer o gene da palavra em
suas publicações de amador, mas que nem por isso deixam de ser premiadas, como se
pode ver a seguir: o conto “O relógio” (1952), no Jornal Correio do Povo, de Porto
Alegre, sua primeira publicação; uma crônica sua é a vencedora, em 1954, no Concurso
de Crônicas sobre o Dia dos Pais, da Folha da Tarde; o conto “Em busca da
juventude” (1954), no Concurso de Contos da União Internacional de Estudantes, fica
em 2º lugar; além de vários outros contos premiados, em concursos de Porto Alegre,
Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Brasília (LEITE, 1989, p. 11).
1.2 A temática
1.2.1 O judaísmo
Moacyr Scliar é o grande exemplo, na literatura brasileira atual, do tema do
judaísmo — para Leite (1989, p. 5), no momento, Scliar “é o único escritor brasileiro a
trabalhar o judaísmo em seus livros”. Seu judaísmo implica o trabalho sistemático com
28
o “fenômeno da imigração e das colônias judaicas” (VOGT, 1979, p. 71), tentando dar
voz e vez à minoria étnica representada por esse imigrante, cuja importância para a
constituição da brasilidade é vital, assim como as outras fatias étnicas, e cuja
repercussão ainda se faz de maneira tímida. Seu real valor precisa ser legitimado, ao se
engrossar a fila e o substrato literário dos escritores latino-americanos que têm
procurado “dar voz àqueles que não a têm, fazendo de suas histórias a História que a
versão oficial deturpa ou pasteuriza” (SCLIAR, 1985c, p. 8). O escritor naturaliza seu
judaísmo como crítico, caracterizando seu trabalho literário, em depoimento a Espeschit
(1983, p. 8), pela abertura à temática social, pela abordagem eventual de temas ligados
ao judaísmo e também pelo humor”. Essa abertura ao social nada mais é que a
preparação do social para a recepção, percepção e ação de sua co-responsabilidade para
com essa parcela fundadora da sociedade.
O autor admite haver, por trás desses temas, a influência de sua condição judaica:
“Fui fortemente influenciado pela minha origem judaica”, alinhavada à cultura
brasileira, embora ao sofrer preconceito por ser descendente de judeus não lhe tenha
passado em branco a fase de ter se convertido ao catolicismo, mesmo que
secretamente
3
, aliás assunto retratado em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975), pela
personagem Raquel, e Um sonho no caroço do abacate (SCLIAR, 1996d), pela
personagem Mardoqueu.
Scliar, ao pintar o quadro vivo das inquietações e conflitos do povo judeu, não se
esquece de pintar, ademais do imigrante judeu, também a “alienação da segunda
geração de descendentes que, se por um lado, não se encontram e esquecem suas raízes,
por outro, não conseguem liberta-se delas” (JOZEF, 1981, p. 97). Ademais, como
brasileiros, tal geração sofre um processo de aculturação ao solo tropical, estando ainda
fortemente ligada à cultura européia e judaica, segundo a qual é educada. O resultado,
em seu âmago de seres humanos, é uma cisão interior, uma instabilidade emocional que,
apesar de buscar na melhora profissional e/ou financeira a compensação para sua
infância de origem judaica, feita de pobreza, veda-lhe o encontro com a felicidade, por
causa desse seu sentimento de insatisfação e inautenticidade.
3
Fue alumno de un colégio católico primario, Moacyr Scliar. Eran tres en su grado, los
diferentes condenados: un chico protestante, uno negro y él. Pesadillas insoportables. Trató de
escapar, evadir, convirténdose en católico oculto. (BOLLINGER, 1987, p. 88-89)
29
É o caso, por exemplo, das personagens Joel, em A guerra no Bom Fim
(SCLIAR, 2001c), Mayer Guinzburg, em O exército de um homem (SCLIAR,
1973), Raquel, em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975), Éster, em (O ciclo das
águas) (SCLIAR, 1976b), Guedali, em O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a).
Dessa característica da alienada posição social, na qual se encontram os filhos dos
imigrantes judeus, decorrem, pelo menos, duas resultantes: a aculturação passiva e o
apego ao judaísmo, que pode gerar, inclusive, uma tentativa de mudança social, e,
portanto, uma aculturação ativa, pontuando, na obra scliariana, peculiaridades
marcantes que só fazem reforçar a característica arrolada anteriormente como a
emigração judaico-européia para o Brasil, com suas conseqüências de adaptação a esse
novo sistema de sociedade.
Por isso, puderam ser identificados nela [na obra de Scliar] seus traços mais marcantes: a
narração da trajeria da emigração judaica da Europa para o Brasil, com suas
conseqüências mais diretas, tais como a instalação desse contingente de pessoas no País,
especialmente no Rio Grande do Sul, as dificuldades de adaptação, a preocupação com a
educação dos filhos, o sucesso profissional desses, os problemas pessoais decorrentes da
integração ao novo modo de vida. (ZILBERMAN (1988, p. 4).
Desse contingente migratório judeu, para o Brasil, na pesquisa dos etnógrafos, e
para a literatura brasileira, na ficção do escritor gaúcho, resgata-se também a questão da
diáspora judaica, colada ao fato de que “ser judeu significa a crença no eterno
recomeçar” (JOZEF, 1981, p. 98). Liga-se a ela também à crença messiânica no retorno
do exílio, amparada no direito à Lei do Retorno, segundo a qual todo judeu tem direito
a voltar a Israel” (SCLIAR, 1985b, p. 27), com suas repercussões sionistas, no século
XVII, de natureza religiosa — (“O ano que vem em Jerusalém, era a prece tradicional
na festa de Pessach”) — e política, igualmente sem decolagem, liderada pelo jornalista
do caso Dreyfus, Theodor Herzl (SCLIAR, 1985b, p. 50). Afinal, conectado ao mito do
judeu errante e conhecedor das diásporas, caminha o mito do filho pródigo.
Segundo Zilberman (1980, p. 104), a temática regionalista deixa de fornecer “o
assunto predominante à prosa desde a superação da literatura de 30, voltada esta à
denúncia dos desequilíbrios sociais”. Assim, o romance de 30 de Vianna Moog, Um rio
30
imita o Reno, sobre o colonizador europeu alemão, e o grande painel histórico mapeado
por Érico Veríssimo, em O tempo e o vento, abordando também os colonizadores
alemães, italianos e judeus, traz um ingrediente inusitado à narrativa anterior: a figura
do imigrante no palco das denúncias sociais. Juntam-se a Moog e Veríssimo outros
escritores, como Josué Guimarães, com A ferro e fogo, Gladstone Osório Mársico, com
Cogumelos de outono e Luiz Antônio de Assis Brasil, com Um quarto de légua em
quadro, apesar de lhe concederem um papel periférico: o texto concede a estes grupos
apenas um papel colateral no transcurso do relato” (ZILBERMAN, 1980, p. 92).
Dois importantes representantes do judaísmo na literatura brasileira, já falecidos,
são Samuel Rawet (1925-1984), autor do clássico Contos do imigrante, primeiro
grande livro de literatura brasileira judaica — no fim de sua vida passa a escrever vários
textos anti-semitas, revelando seu auto-ódio judaico”, atacando a si mesmo” em
função de interesses próprios sem se dar conta de que o “judaísmo é algo mais profundo
que a vinculação a um grupo de interesses” (SCLIAR, 1985b, p. 102) —, e Clarice
Lispector, que não tem ressentimentos judaicos, mas aparentemente não dá muita
importância a sua ascendência judaica, embora se possa imaginar que esse seja um
mecanismo psicológico, nada mais nada menos que um tipo de literatura engajada e de
denúncia, ainda que de roupagem metafórica, traduzido em “literatura intimista, ou
alegórica, ou surrealista (categorias que não são mutuamente excludentes)”, chamada
por Scliar (1985c, p. 8) de “exílio interior”. O escritor gaúcho-judeu prefere imaginar
que o importante para Clarice é unicamente sua literatura, segundo declara em Gomes
(1989, p. 9): “A Clarice é uma mulher, pelo que eu conheci, desligada de qualquer coisa
que não fosse a literatura dela”.
Scliar, cujo projeto literário é o da celebração do povo judeu como gente social e
não isolada, digna de respeito, lembra que a democracia tem que sobreviver, ao doar a
sua literariedade um papel também ecumênico, e, mais que isso, cumpre seu objetivo,
pois o resultado é que, em Scliar, se fica querendo bem à beça aos judeus, respeitando-
os pela injunção de terem de vencer uma insensata desvantagem de nascença”
(HECKER FILHO, 1973, p. 4).
Desse tema-gerador, o judaísmo do imigrante judeu, o escritor confecciona uma
grande teia de temas a ele relacionados. Por exemplo: a ficção e a história, a potica, a
31
revalorização da cultura, o cotidiano, os cristãos-novos, a busca de identidade, a cidade
de Porto Alegre, o blico, o mitológico, o lendário, a infância, o olho, a medicina e a
literatura, a psicanálise e a ficção.
1.2.1.1 A ficção e a história
A ficção e a história, de fronteiras comprometidas, o elencadas na obra do
escritor gaúcho, russo e judeu como uma confluência não só de dois discursos, mas da
arte e da ciência de forma geral. Os recortes seletivos desses discursos são alinhavados
com a linha do humor, além de possibilitar, por óticas múltiplas, a focalização da
realidade, obtendo-se uma apreensão melhor da perspectiva dada à história para se
poder questionar, segundo Araújo (1987, p. 27), qual versão da história está em
pauta?”, “versão histórica de quem?”, a partir de qual patamar?”. Além dos vários
ângulos dados à história, é possível enxergar as entrelinhas da ficção que, como nicho
da arte, tanto pode servir para se colocar a história ao sabor da verossimilhança ou da
pura fantasia, deslegitimando a verdade, pois, partindo de ponderações de Braudel
(1978, p. 93), “todas as ciências sociais se contaminam umas às outras e a história não
escapa a essas epidemias”.
E, por meio desse fértil diálogo, o resultado em Scliar é, para Araújo (1987, p. 87),
um horizonte alongado por parte do leitor: “O horizonte de expectativa do leitor é
ampliado, e este vê, através de uma reconstrução estética de normas sociais, as relações
de analogia inevitáveis entre tempos e espaços históricos diferenciados”.
Fazer a ficção brotar do bojo da história, principalmente quando o cenário é
ditatorial, portanto anticultural, não é tarefa muito fácil, e esse é o desafio da tríade
Moacyr Scliar, Marcio Souza e Ignácio de Loyola Brandão que, de acordo com o
parecer de Bollinger (1987, p. 96), são personalidades criativas, de realidade dura,
dificílima em que vivem, a qual resistem, que testemunham, que transformam em
mundos imaginativos vitais, libertadores — inquietando e enriquecendo seus leitores
atentos, onde quer se encontrem no mundo
4
. No entanto, o próprio Scliar (1985b, p. 41)
4
personalidades creativas, de la realidad dura, dificilísima que viven, a la que se resisten, que
atestiguan, que transforman en mundos imaginativos vitales, libertadores inquietando y
32
fala que “abrir os porões da História, nestas circunstâncias, é uma necessidade”,
circunstâncias de pura perplexidade, porque a corrupção, de todo tipo, fica impune e só
resta ao cidadão comum se perguntar: “Que país é este?
A obra de Scliar, A festa no castelo (SCLIAR, 1982a), é um exemplo de recortes
da política brasileira que, como todo fato político, entra para o arquivo da história. Estão
aí enumerados episódios como a Revolução de 1964, culminando com a queda de
Jango, o engajamento dos estudantes nas mudanças aspiradas — Scliar é militante
político dos movimentos estudantis e progressistas do Rio Grande do Sul que frustraram
a primeira intenção de Golpe Militar, em 1961, segundo declaração de Bollinger (1987).
A obra também retrata a imobilidade estudantil pela intervenção burguesa da época,
além do cotidiano do imigrante italiano no início do século XX.
A ética scliariana, quanto às etnias que compõem a brasilidade, é a “verdade
histórica”, a “verdade ficcional”, de acordo com Araújo (1987, p. 29), e várias outras
verdades, por elas entrelaçadas. Porém, assim como elas “não são categorias
excludentes, o fato histórico terá sido percebido de múltiplas faces, conforme as
relações de identidade ou oposição com os valores do movimento”, sem contar que,
muitas vezes, a ficção de Scliar reveste-se de um teor autobiográfico. Mas mesmo Gay
(1990, p. 177), em seu livro O estilo na história, ao falar do fazer histórico, argumenta
que “o estilo, justamente por ser a marca que diferencia e distingue o historiador, é
também a prova de sua invencível subjetividade”.
Silverman (1982, p. 172) diz que, em Scliar, “todos os livros compartilham de
igual afinidade em relação ao intermitente movimento de ida e vinda, o próprio tema da
viagem, o qual, ao contrário dos temas religiosos de Scliar, está sempre presente nas
novelas e nos contos”. Pensando-se, sobretudo, na questão historiográfica de sua obra, a
ponderação sobre o tema da viagem — não apenas como movimento de ida e vinda
pendular, encerrado em um ciclo, mas como espiral que vai trabalhando com o
cronômetro e acompanhando os avanços, com as retomadas do movimento da história
— é bem pertinente, pois, enquanto em outros temas essa dinâmica da viagem, às vezes,
enriqueciendo sus lectores despiertos, donde se encuentren en el mundo (BOLLINGER, 1987, p.
96).
33
não fica muito evidente, no percurso da história, essa temática mostra-se bem mais
delineada.
Em entrevista para Veredas (SCLIAR, 1989a, p. 45-47), Moacyr Scliar declara
que no período atual, de pós-repressão, em que muitas expectativas se frustraram, ainda
não se tem um movimento literário que marque a história da ficção e da cultura
brasileira. As gavetas se abriram e os grandes textos infelizmente não surgiram e, como
escritor dos anos 60, também se inclui, colocando que “esse é o período que estamos
vivendo, de perplexidade, de confusão, um período em que continuamos a nos perguntar
que país é este, ainda sem encontrar resposta”. Ele acredita que a chave será dada pelo
ensaio, como forma de busca da brasilidade em suas raízes históricas, éticas, sociais e
psicológicas, responsáveis por fornecer a matéria-prima para a ficção, já que é preciso ir
mais fundo. Talvez seja por isso que Scliar tenha partido dessas raízes brasileiras para
34
sociólogos, de cientistas políticos. De escritores espera-se que seu testemunho seja
elaborado, e transformado em matéria ficcional, na qual a palavra deixa de ser apenas o
veículo para se transformar em instrumento de criação artística” (SCLIAR, 1985c, p. 8).
Tanto o romance de 30 quanto o de Veríssimo tiram a posição central e ufanista
do gaúcho para se debruçarem sobre a pesquisa histórica e étnica do estado do Rio
Grande do Sul. As preocupações scliarianas e de outros escritores não param aí e passam
a se orientar pela ordem política que dá margem “à expansão de uma narrativa engajada,
na qual as estruturas de poder o analisadas e avaliadas” (ZILBERMAN, 1980, p. 93),
conforme se pode exemplificar nos romances Mês de cães danados, de Moacyr Scliar, e
Os tambores silenciosos, de Josué Guimarães.
Mês de cães danados (SCLIAR, 1977), por exemplo, publicado em 1977, aborda,
com exclusividade, os anos entre 1961 e o dia do golpe militar, em 1964, mostrando a
renúncia de Jânio Quadros, em 1961, bem como as conseqüentes manobras poticas
que ascendem João Goulart à presidência da República. Todos esses importantes
movimentos políticos do país são observados a partir de um único espaço — uma das
ruas de Porto Alegre —, e narrados do restrito ponto de vista do mendigo de perna
atrofiada, Mário Picucha, cuja única herança familiar é o poncho no qual se abriga,
constitdo de “dureza”, “impermeabilidade”, sujeira” e “suor”, uma simbologia da
acumulação histórica, que não deixa de ser também, de forma geral, “o espaço exíguo
da perspectiva do narrador” (VOGT, 1979, p. 76).
Os cavalos da República (SCLIAR, 1990a) é outro exemplo de tema potico e,
em forma de literatura infanto-juvenil, trata do evento da Proclamação da República
(1889), assistido pelo garoto Aristides Lobo, que recebe uma piscada brejeira do cavalo
no qual Marechal Deodoro esmontado.
É bom lembrar que a política, assim como suas flexões históricas, pontilham toda
a teia ficcional de Scliar, de forma que, mesmo a obra estando no plano da arte, essa
temática outorga à narrativa um status de verdade ou de verossimilhança, ao mesmo
tempo em que a obra e o leitor se aproximam e o sintonizados às circunstâncias da
realidade, cuja pragmática de verdadeira realidade contém em seu gene a diferença
derridiana entre o real e o não real, o observável e o não observável, o contável e o
incontável, pois “se todo elemento do sistema só possui identidade em sua diferença
35
com relação aos outros elementos, cada elemento está marcado assim por todos esses
que ele não é: ele traz portanto o traço deles” (DERRIDA, 1995, p. 60).
Um exemplo de colcha de retalhos político-hisricos, marcado por fatos políticos
da história do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo, em seu respectivo tempo e
espaço, é o romance A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983) — prova
isso a demora para a redação do livro que, “iniciado em 1975, é o livro que M. Scliar
levou mais tempo para escrever” (LEITE, 1989, p. 16). Esse livro enfoca fatos políticos
gerais que vão do profeta Jonas, apregoando a destruição da extinta cidade de Nínive e,
por associação a ruína de Israel, que de 966 a 26 a.C., um longuíssimo período de crise
coloca em extinção a sobrevivência da nação judaica, que é dominada por assírios,
babilônicos, persas, gregos e romanos” (VILASBÔAS, 2001, p. 67), à expulsão dos
judeus de Portugal, em 1497, já que a rainha espanhola só cede “a mão de sua filha
[Isabel] ao rei Dom Manuel” mediante a expulsão dos “judeus de Portugal” (A
AVENTURA, 2000, p. 71) e sua filha diz que “não pisaria em Portugal enquanto o país
não fosse ‘limpo’ dos judeus” (SCLIAR, 1994a, p. 109). Enfoca-se, ainda, a conversão,
à força, dos judeus ao cristianismo, para que, permanecendo eles no país, permaneçam
também os seus capitais tão necessários ao financiamento das explorações marítimas,
para ficar em apenas alguns traçados da política mundial.
Em âmbito de Brasil, a obra aponta desde o descobrimento — endossado e
financiado, mais que por todos, pelo “investidor florentino Bartolomeu Marchion, judeu
convertido, um dos primeiros a pôr fé e ver fortuna na saga descobridora dos
portugueses” (A AVENTURA, 2000, p. 31) —, até o golpe de novembro de 1937: o
Estado Novo, “baseado num falso plano de tomada do poder pelos comunistas — o
Plano Cohen — em novembro de 1937 Getúlio Vargas deu um golpe de Estado,
outorgando uma nova Constituição (...). Enfim, estavam criadas as bases do Estado
Novo, regime que vigorou no Brasil entre 1937 e 1945” (DREGUER e TOLEDO, 1995,
p. 133).
Em vel de Rio Grande do Sul, os fatos políticos do romance passam pela
Revolução Farroupilha (1835-1845), com a tomada de Laguna, Santa Catarina, pelos
farrapos e seus líderes, Bento Gonçalves, David Canabarro e Giuseppe Garibaldi, os
quais “por terra, sobre carretas, conduziram dois navios de Porto Alegre a Laguna e
36
pegaram as forças imperiais de surpresa” (ARRUDA e PILETTI, 1996, p. 225),
proclamando a República Juliana, em julho de 1836.
Depois se volta ao cenário mundial da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), para a
qual até então se havia usado as idéias como meros instrumentos a serviço das
necessidades vitais. Agora vai se fazer com que a vida se ponha a serviço das idéias,
segundo Ortega e Gasset
6
. Finalmente para pôr fim aos conflitos entre nacionalistas e
republicanos, o general Franco assume o comando da Guerra Fratricida, de dimensões
não esperadas.
A Guerra Civil Espanhola tem sido considerada a última guerra romântica e a
última grande causa da humanidade. E não só pela participação apaixonada do povo
espanhol, mas também porque homens de pelo menos 53 nações abandonaram
espontaneamente suas casas para lutarem ao lado dos republicanos, formando as Brigadas
Internacionais. (...) apresentaram-se aproximadamente setenta mil voluntários. Mais da
metade era formada por comunistas. Os demais eram antifascistas, democratas,
socialistas, judeus, alemães e italianos perseguidos em seus países. Participaram ainda
desses grupos cerca de cinenta mil espanhóis, dando origem às chamadas Brigadas
Mistas, tentativa republicana para unir, sob o mesmo comando, estrangeiros e espanhóis.
(MEIHY e BERTOLLI FILHO, 1996, p. 27-28).
Nota-se que os temas políticos, em Scliar, não se limitam apenas ao local, mas
também ao universal, pois a dimensão dada à política, tal qual a da Guerra Civil
Espanhola que ganha proporções ilimitadas, extravasa as fronteiras do Rio Grande do
Sul, passando pelos fatos políticos da história do Brasil e transcendendo para a política
de ordem mundial.
1.2.1.3 A revalorização da cultura
A revalorização da cultura é um tema trazido à superfície, principalmente por estar
ligada ao judaísmo que, por sua vez, lembra palavra escrita e, ao mesmo tempo faz
6
hasta entonces se había usado de las ideas como de meros instrumentos para el servicio de las
necesidades vitales. Ahora se va a hacer que la vida se ponga al servicio de las ideas (apud
RAMA, 1960, p. 107).
37
referência aO Povo do Livro”. Mas, na condição de povoar somente uma das fatias não
grandes do gráfico social brasileiro, o semitismo torna-se sufocado, desconhecido e
38
econômico que a compra de livros pode representar para o parco orçamento doméstico
de sua família, ele — garoto que nem dormiu à noite, tamanha a ansiedade por chegar o
dia de finalmente poder comprar livros —, pergunta à mãe quanto pode gastar; ao que
ela lhe responde que pode comprar quantos livros quiser.
São palpáveis também essa valorização e revalorização dadas à cultura pelo autor,
de modo geral. Não quer apenas acumular o conhecimento que ainda não tinha
enquanto menino, mas se esforça para conservar uma memória viva da cultura
adquirida, não só de seu pequeno grupo étnico, como também da majoritária etnia da
humanidade.
Tomando-se apenas dois exemplos, há na ficção de Scliar, em O centauro no
jardim (SCLIAR, 1985a), por exemplo, a personagem Guedali, centauro adolescente,
que, durante o dia fica enclausurado em seu quarto, não lhe sendo permitido nem sair
para o pátio. Em contrapartida, a família faz de tudo para que ele tenha uma educação
da mais requintada possível, e sua mãe sempre lhe diz: “Lê, meu filho, lê (...), essas
coisas que tu aprendes nunca ninguém vai poder te tirar; não importa que sejas
defeituoso, o importante é ter cultura” (SCLIAR, 1985a, p. 54). Essa verdadeira
reverência pelo livro, e pela cultura por ele portada, também transparece em A estranha
nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), principalmente com o autodidata Prof.
Samar-Kant, judeu, que, em co-autoria com o médico Rafael Mendes, também de
descendência judaica, reconstrói a genealogia deste último. Ao fazerem essa
reconstrução, passam por fatos históricos da humanidade ocidental e oriental,
abordando e dando um outro olhar ficcional à história geral e à do Brasil. Tal história
nasce nas fontes bíblicas com o profeta Jonas, no Oriente Médio, e se estende até os
golpes financeiros, de práxis no Brasil e em particular no Rio Grande do Sul. Depois de
abordarem todas essas questões históricas, o Prof. Samar-Kant reclama que pouca gente
valoriza o trabalho do genealogista, e a conseqüência é que o Rio Grande do Sul (...)
não tem história” (SCLIAR, 1983, p. 66). Nesses episódios, o escritor pontua a
necessidade de se manter viva a História dos povos e inerentemente sua cultura.
Talvez essa reclamação do genealogista seja uma forma crítica de Scliar assentar a
própria condição humana do judeu errante e conseqüentemente do gaúcho que, com seu
cultural machismo, chimarrão e bombacha, apesar de isolado na extremidade do país,
39
esforça-se para que haja a manutenção de sua identidade minoritária, confinada a um
regionalismo que periga extinguir-se na fronteira do Brasil.
Percebe-se, em Scliar, uma necessidade de fazer o Rio Grande do Sul aprofundar
raízes para a manutenção da minoritária cultura gaúcha e para a sobrevivência da, ainda
menor, cultura judaica, fazendo aflorar mais um contingente gaúcho-judaico e brasileiro
que, com certeza, recebe um novo alento com a ida do escritor para os imortais da
Academia Brasileira de Letras.
1.2.1.4 O cotidiano
A magia do cotidiano é outra forma para a qual a obra scliariana es
sensibilizada. A evidência dessa aura fica ainda longe dos domínios convencionais da
cotidianidade, à medida que o escritor sabe como potencializar essa temática em suas
crônicas, contos e/ou minicontos, conseguindo a façanha de imprimir esse cotidiano no
conto ligeiro das situações, sem o enfado das longas descrições sico-psicológicas e dos
rococós barroquistas. “Scliar disseca a violência, a crueldade e a miséria, usando a
ironia e a imaginação para evidenciar as chagas mascaradas pela resignação e pela
mediocridade do cotidiano”, como mostra a página sobre livros de Le Monde
(SCLIAR, 2000d).
As crônicas de Scliar, como as presentes, por exemplo, no livro Minha mãe não
dorme enquanto eu não chegar (SCLIAR, 2001e), mostram a beleza do cotidiano,
evidenciada ao seu natural. Abordada de uma forma sempre inesperada, inusitada, e por
isso mesmo belíssima, a banalidade do dia-a-dia, ao ser chamada à superfície deixa de o
ser, à proporção que o escritor lhe acrescenta o poder de suscitar a reflexão sobre o
cotidiano. Dentre os assuntos referentes às relações humanas, tratados nas crônicas,
pode-se enumerar alguns como: o relacionamento entre pais e filhos, em “Minha mãe
não dorme enquanto eu não chegar”, “O filho mais velho (uma queixa)” e O filho mais
moço (outra queixa)”; a falta de relacionamento humano, em “Os adolescentes e a
solidão”; as complicadas relações pai e filhos, em Um filho e seu pai”; os desencontros
e encontros humanos consigo mesmos, em “O vestibular” e “Uma parábola de Natal”;
as veneráveis relações mãe e filhos, em “Pietà”, “O depoimento de uma mãe” e “Mãe,
40
por incrível que pareça, é só uma”; o relacionamento entre professor-alunos e alunos-
alunos, em “Os olhos da mestra” e “Trabalho de grupo” — tema também presente em
Pra você eu conto (SCLIAR, 1990b); as solidárias relações entre escritor e
entrevistadores, em “Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores”; o
primeiro ato de fazer a barba como ritual de acesso ao mundo adulto, em “Rito de
passagem”; a possibilidade do diálogo entre assaltantes e assaltados, em “Carta a um
assaltante” e “Carta a um jovem que foi assaltado”; o relacionamento entre a gramática
e a vida, como em “Ai, gramática. Ai, vida.”; além de outros.
Os temas tratados giram em torno do relacionamento pessoal, sobretudo no que
diz respeito às relações entre pais e filhos, um eterno diálogo de incompreendidos que,
sem apelar por uma violência exacerbada, é utilizado pelo cronista para mostrar como
esses problemas de relacionamento, antes de tudo, contribuem para a construção da
sensibilidade do ser humano no curso normal da cotidianidade.
Em seu livro de crônicas O imaginário cotidiano (SCLIAR, 2002c), Scliar,
também exalta a cotidianidade, enfrentando o desafio lançado pelo jornal Folha do São
Paulo, desde 1993, a vários escritores, também convidados para a empreitada literária
de transfigurar a vida diária em literatura. As histórias são compostas a partir de
manchetes de notícias das seções Cotidiano, Folhateen, Mundo, Folhainvest, Esporte,
Equilíbrio, Brasil, Especial, Turismo, Folhaequilíbrio, Informática, Folha Online, Folha
Dinheiro, Sua Vez, Roteiro de Empregos, Dinheiro, Painel do Leitor, Ciência, e
Ilustrada.
Fazendo uso de uma formatação di8(F)2pre1(n7(t)-15(ra F)18(o )-46(t)25(h)iv)2prr] TJ0.0611Tc1.98637w26.8275 9 TD/F2 12 Tf[(O imaginá)-r9(o) cotidiano
41
No desvendamento desse dia-a-dia, Scliar, autor também de contos e de
minicontos, trabalha com duas premissas, apontadas por Zilberman (SCLIAR, 2001a, p.
9-15), na crítica feita aos contos de O carnaval dos animais (SCLIAR, 2001a): a
“violência” e a “banalidade da existência”. A violência já é estimulada e liberada desde
o virtual do cotidiano, como no espetáculo, em “Trem fantasma”, e no cinema, em “O
dia em que matamos James Cagney”; concretizando sua ação aniquiladora na realidade
do cotidiano, pela exploração do outro, inclusive, por meio do canibalismo, em “A
vaca”, “As ursas” e “Cão”, do extermínio, em “Os leões”, e pela auto-exploração, por
meio de um autocanibalismo, em Canibal”, chegando ao mulo do espetáculo, em “O
clube dos suicidas” e “Torneio de pesca”. Por sua vez, a banalidade da existência é
mostrada nos contos “Uma casa” e “Shazam”, mas sempre depois das personagens
passarem pelo crivo da violência de outrem, no primeiro conto, ou da violência sobre
outrem, aliás no segundo ana forma de histórias-em-quadrinhos.
O veio da narrativa fantástica, presente em O carnaval dos animais, só faz
confirmar que esses contos, partindo do cotidiano, acrescentam à realidade sua face
mágica, não como forma evasiva, mas de maneira a lançar uma crítica ao cotidiano, no
qual e do qual o indivíduo se encontra violentado e banido, tamanha é a opressão da
engrenagem social que sobre ele paira. Assim a função desse absurdo não é a de
exacerbar para melhor evidenciar a problemática da violência social, mas sim mostrar a
própria existência humana, dotada de exploração, em todos os veis, de uma forma
assustadora, ao ser apresentada na realidade da ficção, sendo o que choca mais o leitor
não o irracional da realidade, mas o ilógico da fantasia/ficção, como se uma coisa
estivesse alheia a outra.
Ademais dos temas do cotidiano espalhados pelas crônicas e contos de Scliar, é
bom lembrar que o todo-dia não se presentifica somente em textos que reportam a esse
fim, mas estão também nas páginas de textos mais longos como os romances,
justamente por fazerem parte do todos-os-dias da coletividade brasileira e humana. Tal
tema do cotidiano é, por exemplo, o futebol, presente em A colina dos suspiros
(SCLIAR, 2001b), onde um verdadeiro “gol de letras” revela um duplo dia-a-dia: o da
paixão esportiva nacional pelo futebol, no âmbito da ficção, e o do fanatismo do pai de
Moacyr Scliar pelo Esporte Clube Cruzeiro, de terceira categoria no futebol gaúcho, no
42
âmbito da realidade, ou seja, “no jogo psicológico de personagem e autor, não raro eles
se misturam para viverem emoções comuns” (LEITE, 1989, p. 6).
1.2.1.5 Os cristãos-novos
Dos vários fios que também fazem parte do tecido étnico brasileiro, inclusive
considerando a diversidade numérica, o judeu, como os demais, é parte dessa cultura
etnográfica e múltipla, embora ainda integre a “face oculta do Brasil”. Mas, conforme
lembra o escritor em Veredas (SCLIAR, 1989a, p. 49), “não podemos esquecer que os
imigrantes judeus estiveram presentes na colonização deste país desde o primeiro
momento, sob a forma dos cristãos-novos que a Inquisição tanto perseguiu,
principalmente no Nordeste e no Sudeste”, alertando ainda que precisam ser
investigados a contribuição judaica, bem como o papel que ela desempenhou na
formação do caráter e da psicologia do brasileiro.
É interessante que, estimulado pelo meio e imbuído da precisão de se mascarar
para conseguir acesso e respeito no âmago da sociedade, o jovem Moacyr Scliar
também precisa de um passaporte para nela adentrar. Essa permissão para passagem é
sua conversão ao catolicismo; portanto, ele recebeu, durante sua crise religiosa, o rótulo
de cristão-novo, mesmo que apenas intimamente, como revela a Bins (SCLIAR, 1987,
p. 7): “Freqüentei um colégio católico, onde passei por uma crise religiosa e converti-
me (secretamente, pois não daria o braço a torcer) ao catolicismo [igual atitude tem a
personagem Raquel, retratada em sua obra Os deuses de Raquel]. Tive militância
socialista, pensei em viver num kibutz, analisei-me longamente; como médico, entrei
em contato com o sofrimento, com a morte, e com a miséria... Tudo isto está, de uma
forma ou de outra, nos meus livros, e particularmente em O centauro no jardim”.
Logo, pelo rol de condutas e crises pelas quais passa o escritor, percebe-se que o
fato de ter, em algum momento de sua existência, tornado-se cristão-novo, só serve para
a auto-afirmação as suas raízes, tendo a ver com a busca scliariana de um sentido para a
vida, o que inclui um mundo mais justo e igualitário.
Em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), por exemplo, o autor
traz à tona esse tema do cristão-novo que paradoxalmente tem o mesmo tanto de
43
verdade que o de desprezo na genética do Brasil. Além de ser uma forma hipócrita e
policialesca arranjada pela Inquisição, a etiqueta de cristão-novo presta-se apenas como
estímulo à dissimulação, à mentira e ao disfarce da verdadeira identidade, a fim de que,
com essa estratégia, pudessem os judeus sobreviver.
Da indagação que o escritor se faz constantemente “Que País é esse?—, sobre
a bricolagem de raças e de culturas, de graves fatos poticos impunemente resolvidos e
de importantes acontecimentos históricos relativizados na hibridez do descaso,
fazendo se avolumar incontrolavelmente nos dias atuais, A estranha nação de Rafael
Mendes vai mostrando, por meio de seus dezessete representantes genealógicos, a
gradativa dissolução dos cristãos-novos no Brasil. Daí a perplexidade congênita que
acompanha os Rafael Mendes. Quase sempre fazendo parte de uma dupla, cujo
companheiro é o líder, eles atuam, não como personagem principal, mas o papel do
patético, do boquiaberto e do perplexo, frente às peripécias da vida, semelhantes a
Sancho Panza, no clássico par de Cervantes.
Historicamente o termo cristão-novo, conforme lembra Scliar (1985b, p. 103), é
sinônimo do “fanático ataque às raízes rejeitadas; fanático e auto-destrutivo, pois, para
usar a analogia, que planta pode viver sem raízes?”. Devido a seu trabalho de
solidariedade para com os judeus, em sua obra, em geral, e de aprofundamento de
reconhecimento do cristão-novo, nessa obra, em particular, nota-se que o escritor não
concebe o termo da forma como sempre foi denotado ao longo da Hisria, mas analisa
essa máscara judaica como a necessidade da luta pela sobrevivência. Por isso há o
disfarce, bem como o próprio diluir das origens no embate contra o tempo, gerando o
esquecimento ou a ignorância.
A obra A estranha nação de Rafael Mendes surge como um painel das várias
cenas da história brasileira co-protagonizada por cristãos-novos, mas seu principal
objetivo não é o de mostrar um retrato dos cristão-novos, e sim do Brasil, onde, segundo
lamenta Scliar (LEITE, 1989, p. 5), se fatos tão misteriosos como o da presença dos
cristãos-novos são engolidos ou ocultados, é porque o país ainda não tem esses
episódios muito bem elaborados para si mesmo: “Acho que um país que engoliu um
episódio tão misterioso como esse é um país que não tem coisas muito bem elaboradas
44
dentro de si. É como uma família que tem antepassados meio diferentes sobre os quais
não fala”.
1.2.1.6 A busca da identidade
Da complexa hibridez que o constitui enquanto ser humano, Scliar, misto
genealógico de judeu, russo, brasileiro e gaúcho, partindo de uma ngua, de um povo e
de uma cultura particulares, ou seja, de um microcosmo, para galgar o ser-homem do
macrocosmo universal, por meio dessa somatória de particular-universal, parece fazer
de sua obra a descostura de sua própria composição humana. Parece buscar, desse
modo, sua essência de ser humano individual e, a partir dela, fazer a costura de sua
condição humana e coletiva de ser no mundo. Esse “mito da eterna busca do ser
humano numa síntese trans-histórica”, segundo o parecer de Jozef (1981, p. 98),
contribui para que o tempo se insira no “absoluto” e se transforme em “símbolo”. E,
nessa busca angustiada da identidade miscigenada da gente, do povo e do mundo aos
quais pertence, a priori, Scliar procura nos meandros de sua composição literária, sem
pressa e resignadamente, sua auto-identidade.
Em Scliar, a leitura é um dos trilhos para a trajetória ontológica, pois o contar
histórias sempre existiu, de forma oral ou escrita, como retratado no conto “O conto se
apresenta” (SCLIAR, 2002a).
Dentre suas personagens, existem aquelas para quem a leitura é realmente uma
aquisição humana, como Guedali, de O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), Max
Schmidt, de Max e os felinos (SCLIAR, 1982b), e o próprio Moacyr Scliar, como
narrador de Memórias de um aprendiz de escritor (SCLIAR, 2002d). Há aquelas cuja
leitura passa a ser uma busca de respostas existenciais, como Rafael Mendes, de A
estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), o anônimo narrador da vida de
Noel Nutels, d’A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c), e o ator de teatro, narrador de
Éden-Brasil (SCLIAR, 2002b). Existem ainda aquelas personagens que absolutamente
não são dadas à leitura, como Esther, de (O ciclo das águas) (SCLIAR, 1976b), David,
Dado, o irmão mais velho de Mardoqueu, narrador de Um sonho no caroço do abacate
45
Moacyr Scliar pertence ao povo cuja herança cultural recebida é o livro como
viabilizador das acumulações sistemáticas do homem através dos tempos. Talvez por
essa questão, persiste em sua obra, segundo Zilberman (1988, p. 5), “uma visão
iluminista da leitura”, sendo a função da leitura “eminentemente emancipadora, porque
leva as pessoas a romperem com os limites estreitos da vida cotidiana”, podendo ser a
portadora-atualizadora do sonho trazido pelos livros ou a portadora-divulgadora de tal
sonho. O livro, desse modo, é concebido como uma ferramenta de intervenção no
indivíduo e na sociedade, enquanto “a fantasia [entenda-se imaginação], ponto de
partida e resultado da ficção, [é] encarada como parte desse processo revolucionário, e
não condenada como escapista ou compensatória”. Assim, ao alargar a visão da
realidade, a leitura para as personagens scliarianas, assim como para o ser humano, de
forma geral, corrobora para a sabedoria, mas também para a incógnita; para a saciedade,
mas também para a avidez; e, de qualquer forma, para a busca do ser em si mesmo e na
sociedade.
A busca de identidade, em Scliar, deve-se ao fato de que ele, especificamente
como raça e, portanto, como cultura, reside no cruzamento entre judeu e brasileiro,
aventureiro e burguês acomodado, enquanto que, como qualquer ser humano, constitui-
se do componente homem e animal, daí as explorações da alteridade, da
heterogeneidade social e das articulações de identidades pluriculturais
7
de sua obra.
1.2.1.7 A Porto Alegre
Porto Alegre, transformada em cenário temático, integra Scliar na tradição de
escritores como Érico Veríssimo e Dyonélio Machado, que também escolhem a capital
gaúcha como território eleito para sua literatura, subvertendo a tradição apenas
regionalista do Rio Grande, anterior à literatura de 30. A obra scliariana se liberta dela
e, ainda, desmistifica seus emblemas regionais consagrados, pois, uma vez que tal
cidade comporta, ao longo de sua formação histórica, o imigrante judeu de procedência
diversa e demografia significativa, conseqüentemente um formador social e cultural do
7
the explorations of alterity, social heterogenity and articulations of pluricultural identities
(PIROTT-QUINTERO, 1998, p. 2681A).
46
Brasil, o escritor faz uso da presença dessa tradição, ao mesmo tempo em que se
desprende dela. Vai além, quando lhe acrescenta essa figura “quase ausente na matéria
de ficção, quer como tipo social, quer como personalidade individualizada” (LEITE,
1989, p. 18), engendrada no processo de reificação ao qual o contexto urbano lhe
confina.
Assim, Porto Alegre é construída sob uma nova arquitetura e habitada por gente,
até então, ignorada. Aspectos da paisagem são descobertos e comportamentos de seus
moradores são evidenciados, revelando peculiaridades importantes não só do judeu, mas
também da sociedade no âmbito mais geral, à medida que deixa transparecer, por vias
do gueto judaico porto-alegrense, problemas enfrentados pelo rculo familiar burguês,
em vel local e conseqüentemente extra-local.
Pode-se dizer que, mais uma vez, a tradição se renova, pois as personagens
scliarianas se reduzem, em princípio, apenas ao rio Guaíba, em (O ciclo das águas)
(SCLIAR, 1976b); às ruas Voluntários da Pátria, em Os Voluntários (SCLIAR, 1979b)
— essa rua e seus arredores eram conhecidos anteriormente como “Caminho Novo”
(SCLIAR, 1985b, p. 89) — e Rua da Praia, em A estranha nação de Rafael Mendes
(SCLIAR, 1983); aos bairros Bom Fim, em A guerra no Bom Fim (SCLIAR, 2001c),
Partenon, em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975); e a toda a cidade de Porto Alegre,
em História porto-alegrense” (SCLIAR, 2003b). Contudo posteriormente essa
geografia textual vai se ampliando e elas migram por toda a sociedade brasileira,
demonstrando um alargamento de dimensão e de ótica do autor, não apenas geográfico,
mas igualmente sociológico, histórico e mitológico sobre essa parcela da sociedade
brasileira: o judeu.
Em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983) e O centauro no
jardim (SCLIAR, 1985a), ambas da década de 80, Scliar conduz a “análise até os
limites máximos de uma sátira corrosiva cujo núcleo reside no universo familiar em
franca desagregação” (LEITE, 1989, p. 19) — vale dizer que essa desagregação não
cerceia apenas o reduto da família, mas toda a sociedade, portadora genealógica da
violência e da maldade hereditária, já existente no ancestral homem Caim, longe,
portanto, de pertencer apenas a Porto Alegre. Evidencia-se, assim, as complexas
relações sociológicas em ambos os exemplos, além dos links hisrico, na primeira obra,
47
e mitológico, na segunda, só para citar alguns veios do amplo percurso de sua obra
transdisciplinar e transgeográfica.
Scliar, ao sondar os Mistérios de Porto Alegre (SCLIAR, 1976d), descortina os
mistérios da capital gaúcha tanto em relação ao espaço quanto em relação à sociedade
que a povoa com seus hábitos e sua condição social. No conto “História porto-
alegrense”, por exemplo, mostra que o espaço tem elo estreito com a classe social das
personagens, ou melhor, de um lado, permite a visualização da compartimentação da
sociedade sulina; de outro, traduz de modo simbólico a personalidade e existência de
seus heróis” (ZILBERMAN, 1980, p. 107), como é o caso do “altivo filho de um
fazendeiro da fronteira”, portanto da classe alta, que leva sua amante, a “modesta
caixeirinha de um armarinho da Cidade Baixa” (ZILBERMAN, 2003, p. 113), para
morar em diferentes espaços de Porto Alegre, dependendo do grau de importância que
ele lhe atribui nas respectivas circunstâncias.
Armarinho na Cidade Baixa — pequena burguesia
Palacete no Menino Deus aristocracia rural
Casa em Moinhos de Vento alta burguesia
Casa em Petrópolis — classe média
Casinha em Três Figueiras pequena burguesia
Casebre na Vila Jardim operários
Casa-barco no rio Guaíba marginais (ZILBERMAN, 1980, p. 107)
A capital do Rio Grande do Sul, “na contradição entre o presente, a vida vivida do
quotidiano (a provisória) e os anseios ancestrais durante o eterno exílio (a sonhada ou
messiânica)” das personagens, conforme coloca Jozef (1981, p. 98), torna-se o
entrecruzamento da obra scliariana, no qual Porto Alegre passa a ocupar um plano ideal.
Perde, assim, sua objetividade para transfigurar-se nos ideais de sua população fictícia,
na maioria das vezes, imigrantes judaicas que deixam aí impresso o testemunho de seus
hábitos e anseios na formação social e cultural não só porto-alegrense, como também
brasileira e mundial.
Na qualidade do local alargado a uma dimensão universal, a capital gaúcha
funciona como metáfora dessa qualidade e como metomia dessa transmutação. Pois
48
Porto Alegre sai de sua condição de espaço redutor, construído para ilustrar o judeu do
gueto chamado Bom Fim e de seu conseqüente judaísmo tradicional — exemplificado
na tríade scliariana A guerra no Bom Fim (SCLIAR, 2001c), O exército de um
homem (SCLIAR, 1973) e Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975) —, para alçar vôo
fora da shtetl, sem contudo abandoná-la, rumo à leitura cultural da sociedade brasileira e
geral.
É bom lembrar também que o escritor, aproveita-se do cenário citadino para falar
de temas que vão muito além de uma cidade em particular. A questão da exploração da
mulher, por exemplo, uma vez que ela é usurpada tanto no nível do casamento — “O
amante da Madona” (SCLIAR, 1997a) e “Os direitos de Maria” (SCLIAR, 2002c) —,
quanto nos níveis das relações familiares, em geral “Laços de família” (SCLIAR,
2002c), “O regimento interno da família” (SCLIAR, 2001e) e No caminho dos sonhos
(SCLIAR, 1988) —; do trabalho — “Notas ao pé da página” (SCLIAR, 2001d) —; da
saúde — “Pequena história de um cadáver” (SCLIAR, 2003b) —; e das relações
extraconjugais, como no conto visto História porto-alegrense” (SCLIAR, 2003b).
Ou seja, em todos os casos a figura feminina é tomada como um mero autômato da
ideologia e da ação manipuladora dos que com ela convivem e que são, em geral, seus
próprios esposos, membros familiares, amantes e colegas ou chefes de trabalho. Todos
são confinados em um ambiente local-universal asfixiante e, por isso, descarregam sua
tensão e frustração do cotidiano no ser desprotegido e imediato a eles: a mulher, em
todos os exemplos da cidade.
1.2.1.8 O bíblico
A influência blica, à causa de seu judaísmo, é fortíssima em Moacyr Scliar e
essa herança compreende desde temas mais explícitos, até os mais velados. Referências
blicas explícitas se pode encontrar, por exemplo, nos nomes próprios que fazem de
sua obra uma grande família blica, de maneira a deixar o leitor muito familiarizado a
esse ambiente. Alguns exemplos desses nomes são: Joel, Mardoqueu, Eliseu, Salomão,
Samuel, Nathan, Isaac, Gedeão, Miguel, Jacob, Daniel, Messias, Marcos, Raquel, Ester,
Maria, Ana, Rute, Madalena, etc. Referências à Bíblia (1989) aparecem até nos títulos
49
de suas obras, tanto por meio de nomes, como Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975),
“Cego e amigo Gedeão à beira da estrada” (SCLIAR, 2001d), A balada do falso
Messias (SCLIAR, 1976a); quanto por meio de passagens, como, “As pragas”
(SCLIAR, 2000a), “Diário de um comedor de lentilhas” (SCLIAR, 2000a), “As ursas”
(SCLIAR, 2001d), A mulher que escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f).
referências a passagens bíblicas fiéis, como no conto “As pragas”, em que a
família sofre as conseências das pragas do livro sagrado: as pragas das águas que se
tornam em sangue, das rãs, das moscas e mosquitos, da peste, dos tumores ou úlceras,
da saraiva ou granizo, dos gafanhotos, da morte do primogênito. Há também menção à
Bíblia, mas com modificação, como é o caso do displicente Anjo da Morte, no conto
Um emprego para o anjo da morte” (SCLIAR, 2000a); do ciclo vicioso iniciado pelas
ursas comedoras dos meninos que xingam de careca o profeta Eliseu, no conto “As
ursas” (SCLIAR, 2001d); da própria escrita da Bíblia, sob a égide feminina e o furor da
sexologia atual, pela única esposa de Salomão a deter o saber escrito da palavra, em
meio a suas setecentas mulheres e trezentas concubinas, no romance A mulher que
escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f).
Outros preceitos blicos também são colocados de maneira clara, apesar de não
por meio de referências diretas a passagens d’A BÍBLIA. o os casos ilustrados, por
exemplo, nos contos “Não mentirás” (SCLIAR, 2002c), no qual três ladrões, de três
caixas eletrônicos, conseguem levar dois e usam como critério de sorteio para o caixa
que deveficar a contagem até o número dezoito, idade do mais jovem deles, que,
aliás, mente a respeito da idade, dizendo a mais; quando os abre, ambos estão vazios,
provavelmente havia dinheiro no caixa que ficou. No conto Não nos deixeis cair em
tentação” (SCLIAR, 2002c), um ladrão rouba alguns poucos objetos que encontra em
uma igreja, mas coma a beber do vinho suave e licoroso, encontrado sobre a mesa do
altar, e se embebeda, o que lhe impossibilita a resistência e é preso. E no conto, “Toda
nudez secastigada” (SCLIAR, 2002c), no qual o tímido rapaz, com o auxílio de sua
câmara, passa a ver as peças íntimas afrodisíacas de sua vizinha que, ao saber de sua
ajuda virtual, apresenta-se a ele completamente nua para decepção dele, que prefere
muito mais a fantasia emitida pela câmera mágica.
50
A tradição blico-judaica é trazida por meio dos costumes, como tomar banho,
vestir camisa limpa e jejuar no Yom Kipur, em A estranha nação de Rafael Mendes
(SCLIAR, 1983), e alguém lavar os pés a outrem ao crepúsculo, em “Os pés do
patrãozinho” (SCLIAR, 2003); rituais como o da circuncisão de Guedali, o bebê-
centauro, em O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), de Marcos, o filho da prostituta
Esther, em (O ciclo das águas) (SCLIAR, 1976b), e dos inúmeros Rafael Mendes e
Tiradentes, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983); festas, como a
de Pessach, Páscoa, a saída do Egito, e Purim, a festa da Rainha Esther, em A guerra
no Bom Fim (SCLIAR, 2001c); culinária, como o pão ázimo, matzot e borscht, sopa de
beterrabas, servidos por ocasião da festa de Páscoa, em A guerra no Bom Fim; pragas,
como as das águas sangrentas, rãs, moscas, peste, úlceras, saraiva, gafanhotos e morte
do primogênito, em “As pragas” (SCLIAR, 2000d); castigos, como apedrejamento do
pastorzinho, em A mulher que escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f), e o sepultamento
do polidor de lentes Joseph, rebelde leitor de Baruch Espinosa, como suicida, ao pé do
cemitério judaico, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983); além de
muitos outros ingredientes da obra scliarianas, reveladores da cultura bíblica.
Harold Bloom, na epígrafe do livro A mulher que escreveu a Bíblia, diz que a
Bíblia tem formado a consciência espiritual de boa parte do nosso mundo”. Tal
consciência aparece nas linhas e entrelinhas da obra do escritor judeu, principalmente
no que diz respeito ao Velho Testamento, colocado, com freqüência, como forma de
resgate cultural, conforme os exemplos colocados anteriormente além do Novo
Testamento que é trazido também para a obra, embora em menor grau, com atitude
suspeitosa e de maneira, quase sempre, implícita e contrária à fala do filósofo Friedrich
Nietzsche — “Nós devemos aos judeus o mais nobre dos homens, Cristo” —, segundo o
livro de citações Se eu fosse Rothschild, de Scliar (1993, p. 144).
O Deus do Velho Testamento tem sua presença certa e indubivel — para o
escritor Martin Buber (SCLIAR, 1993, p. 145), “o judaísmo desempenha um papel
fundamental (...), sobretudo pela idéia de que Deus pode ser encontrado em tudo, e de
que tudo está em Deus” —, mas, talvez, por isso mesmo é tido por “irascível (...),
impiedoso, inescrutável” (SCLIAR, 1985a, p. 7), cujos desígnios são misteriosos, como
reclamam a mãe do narrador anônimo de A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c, p.
51
58), quando seu marido perde o braço em um atropelamento — “Em desespero,
galopava pelo pequeno pátio da casa, uivando e clamando aos céus, ah, Deus, por que
nos fazes sofrer tanto, Deus, já não bastavam os progroms e os cossacos, Deus, Deus.
—, e a mãe de Mardoqueu, em Um sonho no caroço do abacate (SCLIAR, 1996d),
quando fica sabendo que seu filho está namorando uma i e mulata — Mas por quê,
Deus meu? O que fiz para merecer este castigo, Deus meu? Eu não cuidei desse filho?
Eu não lhe dei de comer? (...) Hein, Deus? Eu não fiz tudo que uma boa mãe deve
fazer? Responde, Deus! Se eu errei, diga onde errei, Deus! Diga!” (SCLIAR, 1996d, p.
55).
Já o filho de Deus, Jesus Cristo, do Novo Testamento tem uma existência
duvidosa e, por isso, sua presença é sempre colocada em xeque e encarada criticamente,
como é o caso dos contos “Os pés do patrãozinho” (SCLIAR, 2003b), no qual a babá
Almerinda se habitua a lavar os pés de Júlio, ao crepúsculo, à maneira como fizeram a
Jesus e Ele mesmo fez com seus discípulos, o que ocasiona a Júlio desprezo e críticas de
seus colegas, da noiva e da família; “A balada do falso Messias” (SCLIAR, 1976a), no
qual o próprio amigo mais íntimo de Shabtai Zvi, que se proclama o Messias, afirma no
início e no final do conto que nunca compreendeu e nunca compreenderá essa sua
história de Messias e de vinho feito água, na realidade, uma inversão messiânica, am
de deixar em dúvida o messianismo no transcorrer de todo o conto; Uma parábola de
Natal(SCLIAR, 2001e), em que o Papai Noel até desiste de presentear o contraditório
e pobre Jesus de Nazaré que, ao mesmo tempo, diz que os pobres e os famintos são
bem-aventurados, mas que não adianta ganhar o mundo inteiro e perder a si mesmo; “O
depoimento de uma mãe” (SCLIAR, 2001e), no qual a mãe faz uma reclamação de seu
filho único, dizendo que preferiria ter um filho comum, além de que nunca entendeu
porque tantas pessoas o reverenciam hoje em dia; “Meu pai, meu pai, por que me
abandonaste” (SCLIAR, 2002c), em que um garoto engana a mídia e o prefeito de Nova
York, dizendo que viajou 4.800km, em busca do pai, na verdade, morto meses antes;
Uma história de Natal” (SCLIAR, 2002c), no qual se narra mais uma história de Natal
que, de acordo com o jornalista, foi importante pelo mistério da viagem política dos três
reis e não necessariamente pelo nascimento do filho de Deus; “A noite em que os hotéis
estavam cheios” (SCLIAR, 2001d), em que a chegada do casal de forasteiros, ela
52
grávida, a Belém, é vista com desprezo, oportunismo e chacota até, sendo mais
importante pela chegada, posterior, dos três Reis Magos e não pelos peregrinos que
trariam o Salvador do Mundo.
Em relação ao conto “A balada do falso Messias”, Moniz (1982, p. 66) diz que a
missão de Shabtai Zvi, sem redenção social ou pessoal, é uma empresa quixótica,
destinada ao fracasso, e o sorriso irônico e esico é a única forma de dignidade frente a
falibilidade humana num mundo absurdo, onde impera o caos. Desse modo o
significado metafórico do conto se estende não apenas ao livro que dá o nome, mas
torna-se metáfora de um dos temas principais da obra de Scliar, isto é, a constatação da
auto-decepção a que se submete o homem em virtude da sua condenada busca de
transcendência”.
Há referência na obra scliariana à Bíblia de maneira mais implícita, à medida que
passa pelo blico e segue seu próprio caminho, sem deixar de seguir a ideologia
blica. É o caso, por exemplo, do conto “Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade”
(SCLIAR, 2001a), em que o terrível pistoleiro do Texas se arrepende de ter tido piedade
do mexicano Alonso que o desafia com duas bofetadas e depois mata-o, mas, apesar de
achar que deveria tê-lo matado, como fez com muitos outros, o pistoleiro não quer mais
matar ninguém e, ademais, pensa na viúva e nos cinco filhos, na filha maior que se
tornará prostituta e no filho menor que se tornará ladrão. No conto “Queimando anjos
(SCLIAR, 2001d), Munhoz, mesmo durante as refeições ou festas, entra em seu estúdio
fotográfico, sob o pretexto de revelar filmes negativos, para, na verdade, queimar
minúsculos anjos, atraídos pela luz de vela, e o que para ele são anjos, para seus
familiares são besouros que ele veste dessa forma para imolá-los no fogo; Munhoz não
concorda, porque, para ele, não são os simpáticos insetos conhecidos como besouros e
sim anjos mesmo, dando alnr os quanjetponserem ets sosabli
53
embora de casa, por causa da intervenção do tio. E no conto “Os profetas de Benjamin
Bok” (SCLIAR, 2003b), a manifestação da encarnação dos inúmeros profetas bíblicos
na personagem Benjamin só serve para lhe causar problemas na família e no trabalho.
1.2.1.9 O mitológico
O arsenal literário do escritor gaúcho compõe-se também do instrumento
mitológico e, embora integre obras da atualidade, conforme as ponderações de JESI
(1972), jamais deixa de pertencer ao passado que, por sinal, exerce sobre os homens
certo poder
8
. Esse poder exercido sobre os homens em geral e sobre a ficção de Scliar
em particular é o que o impulsiona a tomar “mitos genuínos”, como, por exemplo, o
mito grego do duplo, representado pelo centauro e pela sereia, e mitos da Bíblia, um
livro tico por natureza, para a partir deles erigir sua obra com esses mitos já
tecnificados”.
A título de ilustração da força do mito na narrativa scliariana tem-se O centauro
no jardim (1980), o romance que mais mobiliza afetivamente o escritor no que diz
respeito à escrita. Emociona-o de tal forma que ele fica possesso e simplesmente não
pode mais parar de escrever, segundo sua própria declaração: “Eu não podia parar de
escrever esse livro porque de repente me pareceu assim que eu tinha detectado um tema
absolutamente novo para mim e novo também na temática brasileira porque a idéia de
um centauro judeu de repente me mobilizou de tal maneira que eu não podia parar
(GOMES, 1989, p. 9).
O romance O centauro no jardim em princípio, só um conto sem importância,
escrito para o jornal, do qual o escritor nem guardou cópia; nascido por causa do
centenário da Revolução Farroupilha e por ocasião de uma corrida de cavalos ocorrida
todos os anos em Porto Alegre, com o Grande Prêmio Bento Gonçalves — como cavalo
e homem num só metabolismo, remete ao centauro dos pampas preso no jardim da
classe média imigrante, sendo a metáfora da metáfora aplicada ao judeu brasileiro,
8
También la doctrina política más progresista se sirve de un instrumento intrínsecamente
reaccioario cuando recurre al mito, aun tecnificándolo, pues el mito jamás deja de ser <pasado>:
pasado que ejerce sobre los hombres cierto poder, el cual es, precisamente, explotado por la
propaganda (JESI, 1972, p. 44).
54
brido da miscigenada cultura brasileira, feita pelo índio, negro e imigrantes de todas
as latitudes. O centauro, esse ser já híbrido por natureza, invade o terririo da fábula e
constitui-se também de fantasias e aventuras, além do mito regional do gaúcho como
centauro dos pampas. É retomado, segundo Zilberman (1981, p. 8), porque “nunca
havia sido abandonado”, ou suficientemente explorado, sendo relegado ao plano avesso
do recalque. Nesse livro, mesmo após a negação da origem, o gauchismo e o judaísmo,
com a amputação da metade cavalar, Guedali quer restituir sua parte animal que, não
sendo mais possível via cirurgia, ele a consegue fugindo para o livre galopar dos
pampas estancieiros. De modo metalingüístico, pensando no espaço do próprio
romance, a obra mostra a eterna insatisfação do homem com seu espaço constitdo,
porque para se acomodar as suas leis carece de aspectos deixados no mundo que
abandonou e, por isso, luta sempre para ampliar e redimensionar seu espaço atual, fruto
do desejo de transcender um mundo pronto e acabado” nascido “da própria
ambigüidade que é o homem”, segundo a análise dos espaços físicos e psicológicos em
O exército de um homem só (SCLIAR, 1973), feita por Barral (2002, p. 34). Além da
colocação de Bernd (1986, p. 23), para quem, “na origem, o mito nasce nos momentos
de crise como tentativa de ampliar o espaço criado pela ruptura entre o homem e a
natureza”
9
, e, se nas sociedades primitivas e arcaicas o discurso mítico se constrói para
reparar uma ruptura, participando da reorganização do cosmos e da ordem do universo,
as obras atuais elaboram, por sua vez, sua própria mitologia para tentar resolver uma
crise de identidade.
Lembrando, ainda, a dualidade humana elencada por Scliar no mito do duplo,
pode-se tomar como exemplo a figura da sereia em (O ciclo das águas) (SCLIAR,
1976b). Esther, vinda de uma aldeia na Polônia, leva consigo um abajur em formato de
sereia de um bordel de luxo, por onde passa em Paris para ser iniciada nas artes
profissionais do amor” e ser transformada em prostituta, antes de chegar ao Brasil. A
função mitológica, aí parece retratar o impasse de identidade de uma condição à outra,
uma vez que o objeto é adquirido nessa fase de transição. Igualmente seu filho Marcos
também parece estar nessa fase de transição à procura de sua identidade humana, pois,
9
À lorigine, le mythe naît dans lês moments de crise comme tentative de remplir lespace créé
par la rupture entre lhomme et la nature (BERND, 1986, p. 23).
55
professor de História Natural, deixa de olhar para o mundo circundante, preferindo
olhar para dentro de um microscópio, a fim de enxergar na divisão entre as águas puras
e impuras do riacho da Vila Santa Luzia a sereia devoradora de larvas e micbios. O
que Marcos procura nas águas poluídas de um rrego é a imagem da mãe, tentando
fazer a distinção entre a fonte (origem pura da água/mãe) e o leito do córrego (condição
atual de impureza da água/mãe). Na realidade, com tal procura “Marcos busca o
fundamento tico de sua [própria] origem” (BORTOLOTTI, 1991, p. 50), usando para
tal empreitada o instrumento técnico de abordagem da natureza, o microscópio. Utiliza-
se claramente da metáfora para a travessia do plano profissional para o plano tico da
decifração do enigma de sua existência, e conseqüentemente da grande origem
mitológica da vida.
Logo, a orientação funcional do mito vai ao encontro das ponderações de
Mielietinski (1987, p. 196), para quem ela presta a dar sentido às lacunas deixadas pela
ciência que, apesar de sua logicidade, nem sempre esclarece, sobretudo a sociedade
moderna, pois o pensamento mitológico “se concentra acima de tudo em problemas
‘metafísicos’ como o mistério do nascimento e da morte, o destino, etc., que, em certo
sentido, são periféricos para a ciência e para os quais as explicações puramente lógicas
nem sempre satisfazem inclusive na sociedade moderna”.
Scliar, antenado para essa questão, objetiva revisitar não só o pensamento
mitológico dos mitos gregos, mas também um sem número de mitos blicos, como o
do Deus vingativo e irado do Velho Testamento, em Um sonho no caroço do abacate
(SCLIAR, 1996d), “As sete pragas” (SCLIAR, 2000d), A majestade do Xingu
(SCLIAR, 1997c), A mulher que escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f); o da praga que
o profeta Eliseu joga nos meninos que o xingam de calvo, em “As ursas” (SCLIAR,
2003b); o de Jesus Cristo, em A balada do falso Messias (SCLIAR, 1976a); e muitos
outros, só para ficar com poucas ilustrações. Esse chamamento do mitológico avaliza as
ponderações de Zilberman (1981, p. 13), para quem a natureza do racionalismo
moderno “não suplanta os mitos, mas constrói para eles uma plausibilidade que os torna
suportáveis”, e vai além, à medida que, não apenas os atualiza, mas também, questiona
e distorce tais mitos, para os manter, uma vez que a função do mito, no cosmos, é a de
atualização pela sua organização, de explicação pelo seu questionamento e sanção, e de
56
distorção e manutenção pela sua reprodução.
O mito explica e sanciona a ordem social e smica vigente numa conceão de
mito, própria de uma dada cultura e explica ao homem o próprio homem e o mundo que o
cerca para manter essa ordem; um dos meios práticos dessa manutenção da ordem é a
reprodução dos mitos em rituais que se repetem regularmente. (MIELIETINSKI, 1987, p.
197).
1.2.1.10 O lendário
Em seu livro A literatura no Rio Grande do Sul, Zilberman (1980, p. 91) fala
que a valorização da história sulina está também presente no romance Tiaraju, de
Manoelito de Ornellas, responsável por contar o episódio deflagrador da formação deste
estado, porque narra como a guerra missioneira leva à dizimação da experiência
jesuítica da República Guarani”, e, ao colocar o índio Sepé Tiaraju como o herói de seu
relato e protagonista central, “Ornellas vê os acontecimentos sob a ótica local,
rejeitando a perspectiva lusitana”, aderida por Basílio da Gama, em O Uruguai. Assim,
retoma a tradição popular do “Lunar de Sepé”, fixada por Simões Lopes Neto, nas
Lendas do Sul. É nessa vertente fixadora da história em lenda que Scliar também situa,
em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), seu índio Sepé Tiaraju,
como exemplo lendário de rebeldia, bravura e força, por não aceitar os preceitos do
padre João de Buarque sem questionar, mas defender o padre e toda a tribo com exímia
bravura na Guerra Jesuítica, até que uma doença desconhecida, talvez, o cólera, vinda
do poço de onde tomam a água, ataca-os a todos, inclusive, o bravo guerreiro que,
segundo a lenda, não se curva à morte e sai galopando livremente pelos pampas.
Além de muitas outras figuras histórico-lendárias, em Scliar, pode-se também
tomar como ilustração a figura do coronel Picucha, em Cavalos e obeliscos (SCLIAR,
1981), que sonha com a façanha épica de amarrar novamente o cavalo no monumento
da Avenida Rio Branco, onde o cavalo do Marechal Floriano Peixoto lhe piscou. Tal
personagem é reiterada em A estranha nação de Rafael Mendes, no episódio médico-
político do Ruivo que, liderando os índios da região, invadem as terras do “doutor
Saturnino, rico fazendeiro da região missioneira, bisneto do famoso Picucha, o
57
Degolador” (SCLIAR, 1983, p. 210), sob o argumento de lhes pertencerem desde a
época dos jesuítas. Depois, Picucha, essa personagem lendária, reaparece na obra Mês
de cães danados (SCLIAR, 1977), no movimento conhecido por Legalidade, de 1961,
encabeçado no Rio Grande do Sul por políticos, intelectuais, operários e estudantes,
tendo-se em vista que, por causa da renúncia de Jânio Quadros, em agosto, os chefes
militares querem impedir a posse à presidência do gaúcho João Goulart. Mário Picucha,
no papel do herói-narrador, em primeira pessoa, segundo Zilberman (1980, p. 100),
confere um sentido original ao texto, amenizando seu caráter histórico” e, em
conseqüência, reforça seu caráter de lenda. Mário Picucha narrando, agora, a partir da
posição social de um mendigo, mas que, à época do movimento, teve participação ativa,
aparece no presente da obra apenas como museu marginal do passado e da história e, na
sua condição de porta-voz dessa época que já passou, “Picucha revela segmentos da
vida rio-grandense retirados do quadro de referências oficial”, evidenciando, desse
modo, ainda mais, o caráter da história vista de baixo
10
, além de enfatizar sua
imortalidade lendária, capaz de transpassar, até mesmo, a história.
É bom ressaltar que o escritor gaúcho, embora use elementos ticos, lendários e
históricos no tecer de sua ficção, faz questão de enfatizar que é um “cético” e seu
pensamento não é simbólico”, ou, melhor dizendo, ele não tem uma visão “mágica ou
stica do mundo”, apesar de ser herdeiro de uma forte tradição simbólica que vai
desde a cabala até a psicanálise, e de o escritor, por natureza, já ser um fabricante de
símbolos, protótipos e paradigmas (SCLIAR, 1987, p. 7).
1.2.1.11 A infância
A infância como tema, no escritor gaúcho-judeu, é reincidente, pois ele evoca sua
própria infância e a infância de seu filho Beto aliada a sua paternidade, já que, para ele,
todo escritor é autobiográfico para, depois ser autônomo, embora o passado sempre seja
fonte constante de inspiração.
10
Essa noção de história vista de baixo é apregoada pela Nova História, a partir da revista francesa
Annales, em 1929, de autoria de Lucien Febvre e Marc Bloch, bem como, posteriormente, por
Fernando Braudel, em 1949, um dos primeiros teóricos dessa história estrutural (BRAUDEL, 1978).
58
Sempre me perguntam se meus livros o autobiográficos — e eu sempre
respondo a mesma coisa: todo escritor, quando começa, é autobiográfico. Com o tempo
ele acaba se libertando de suas lembranças que adquirem existência autônoma. Isto não
quer dizer que a gente não se volte para o próprio passado em busca de inspiração. Vale a
pena, sim, lembrar a nossa própria história, quando há nela passagens que podem
interessar a todos. (SCLIAR, 1996c, p. 7).
Desde sua tenra idade, Scliar aborda a infância de menino filho de imigrantes
fugitivos e pobres, porque é altamente incentivado a contar histórias pelos pais,
professores, parentes e amigos, que o faziam com extraordinária arte e humor, nas
calçadas, durante o verão ou ao redor do samovar de chá, durante o inverno. E, assim, o
pequeno Moacyr é levado não a contá-las, mas a fazer isso tendo como ferramentas o
lápis e o papel, apoiado, sobretudo, por sua mãe e professora Sara — Minha mãe corria
a mostrar minhas historinhas aos parentes e amigos” (SCLIAR, 1985b, p. 98). —; por
ambos os pais — “Ganhei dos meus pais uma máquina de escrever” (SCLIAR, 1985b,
p. 92). —; por professores — No colégio recebi prêmios variados” (SCLIAR, 1985b,
p. 92). —; e pela comunidade do Bom Fim “Eu escrevia. E era conhecido, no Bom
Fim, por isso: o guri que escrevia” (SCLIAR, 1985b, p. 98).
Além de contar histórias, ele é um leitor voraz para quem o dinheiro do livro não
falta. Nascem-lhe personagens filhas de imigrantes de vida difícil, mas dedicadas à
leitura, como se pode notar na personagem Mayer Guinzburg, em O exército de um
homem (SCLIAR, 1973), que lê Rosa Luxemburg, Michael Gold, Howard Fast,
Maiakovski, Walt Whitman, José Goldman, Isaac Babel; na personagem Leia, em O
exército de um homem só (SCLIAR, 1973), que lê Walt Whitman; na personagem
Paulo, em Os voluntários (SCLIAR, 1979b), que lê Herculano, a Coleção Terramarear;
na personagem Guedali, em O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), que lê desde
Monteiro Lobato até o Talmud; na personagem Max Schmidt, em Max e os felinos
(SCLIAR, 1982b), que lê Andersen, Grimm, Goethe, Schiller; na personagem Nicola, o
sapateiro socialista, em A festa no castelo (SCLIAR, 1982a); e na personagem Prof.
Samar-Kand, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983).
Toda essa população scliariana lê infinidades de livros e revistas. E suas fantasias
de uma infância preenchida pelos livros são as responsáveis por uma visão engajada do
59
mundo, mesmo que não para sempre. Conforme coloca Zilberman (1988, p. 5), “assim,
a fantasia [entenda-se imaginação] vem a ser a alternativa escolhida por esses homens
que tiveram a infância preenchida por livros; e assume uma função básica: permite
conservar a integridade dos ideais, mesmo quando a necessidade de acomodação se
impõe e eles terminam por se conformar à mediocridade de suas vidas”.
Influenciadas pelo afã cultural do ouvir, do ler e do contar histórias de quem lhes
deu existência ficcional, há também personagens que contam histórias da infância,
como Paulo, de Os Voluntários (SCLIAR, 1979b); ou histórias de toda sua vida, como
o anônimo eu-narrador, de A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c), que faz — não se
sabe se de forma real ou imaginária — a narração de toda sua trajetória de filho de
imigrante russo-judeu a um médico igualmente anônimo; além daquelas personagens
que se dedicam à escrita de cartas, primeiro imaginárias, depois imitativas e, por último,
pessoais, como o anônimo eu-narrador, de A majestade do Xingu.
Porém, como ainda lembra Zilberman (1988, p. 5), “nem todos os protagonistas
dos romances e novelas de Moacyr Scliar são leitores dessa natureza, profundamente
mergulhados na literatura” desde crianças. É o caso, por exemplo, do médico Rafael
Mendes, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), que passa a ler
história e filosofia; ou, ainda, de Dado, David, em Um sonho no caroço do abacate
(SCLIAR, 1996d), que odeia ler e estudar.
Scliar também evoca, ademais de sua própria infância, a infância de seu filho
Beto, aliada a sua paternidade. Tal paternidade é considerada por ele um “fenômeno”,
uma vez que se trata de um processo de transferência, meio antropofágico, do pai para
com o filho e do filho para com o pai, pois no adulto sobrevive a criança, que enfrenta
ruidosa as cruezas da vida. Na verdade, há uma reciprocidade de crescimento humano
entre o velho e o novo, embora o crescimento do velho caminhe para sua integralização,
enquanto o crescimento do novo caminhe ainda para um processo.
Nessa segunda acepção do tema infância, que agora compreende pais e filhos, o
autor consegue transmitir ao leitor, pelo veio ficcional da crônica, em Um país
chamado infância (SCLIAR, 1996c), o resgate mnemônico de situações dos tempos de
criança tanto dos pais quanto dos pais com seus filhos. Essas situações são crônicas,
segundo Krauz (1989, p. 7), em seus dois sentidos primeiros, ou seja, corresponde ao
60
sentido de tempo, e nesse caso são “preservadas do esquecimento (...), são salvas do
tempo”; e ao sentido de arquétipo, e nesse caso são crônicas porque se “repetem
constantemente, ao longo do tempo e das gerações dos homens”. E é por essas duas
peculiaridades que esses infanto-epsódios funcionam como um passaporte para esse
país do qual fomos exilados e que, em certas situações especiais, conseguimos revisitar:
o mundo sem tédio e sem ‘déjà vu’ da Infância”.
No prefácio do livro de crônicas Um país chamado infância, Moacyr Scliar
(1996, p. 6-7) diz acreditar muito na frase do poeta inglês William Wordsworth, para
quem a criança é o pai, ou a mãe, do adulto, acrescentando que “a maturidade consiste
em voltarmos constantemente à infância. Que é uma fonte inesgotável: de sabedoria e
de encanto”. E, ao adentrar nesse país de endereço incerto, são encontradas — em
situações surpreendentes, dada a familiaridade e a forma de sua atualização — as
travessuras (“O garoto e as chaves”, “Vou-me embora desta casa”, “Lição para casa”),
os momentos inesquecíveis (“O primeiro dente”, “O guri não quer comer”, “Os
comícios dos adolescentes”), e a relação pais e filhos (“A patologia da manhã infantil”,
Oração de um pai”, “Qual destes é o seu pai?”), para arrolar apenas algumas dessas
situações.
É importante colocar que esse país chamado infância é povoado não só por
crianças e seus pais, mas por adolescentes rebeldes, revolucionários, engajados e
hippies, percorrendo a obra como um todo e não apenas as crônicas. A ficção de Scliar
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em Porto Alegre, chefiados por Joel, sofre, luta e vence os alemães que atacam Capão
da Canoa. Nesse pensar coletivo do grupo, projeta-se a visão fantasiosa e infantil, mas,
de qualquer modo, não deixa de ser uma preocupação com os problemas de outrem,
além de se tratar de uma problemática política, universal e histórica, já que a guerra
desse grupo de meninos judeus contra os alemães representa a maquete ideal do
confronto real que está acontecendo, isto é, a Segunda Guerra Mundial, na qual o
minoritário grupo étnico dos judeus corre risco de extermínio na Europa. Para Schüler
(1974, p. 96), “a presente novela é, na verdade, a negação da guerra. Os conflitos
políticos, raciais, religiosos, refractados na acção, perdem a seriedade. Moacyr Scliar
cria um mundo lúdico”. Porém, sem estabelecer limites para a fantasia e a realidade,
cria o lúdico infantil e também o irônico adulto pela confrontação e contradição dos
dois planos: o da criança, da fantasia e do riso, e o do adulto, da realidade e do ódio,
sem, contudo, interferir na essência das personagens que não agem sobre a realidade de
modo a alterá-la e para quem as coisas acontecem em outro vel: o da busca da unidade
sonhada e do fundamental no homem.
Esse tema da infância, em A guerra no Bom Fim, está mais para a comparação
entre o mundo da criança (paz) e o do adulto (guerra). Já, em O carnaval dos animais,
esmais para a alegoria, pois, apesar do título remeter de imediato a um mundo no qual
se projetam os gostos e a sensibilidade infantis e, por isso mesmo, ao alcance da
apreciação da criança, devido às historinhas de animais (“Os leões”, “As ursas”, “A
vaca”, “Cão”), super-heróis (Shazam”), espetáculos (“O trem fantasma”, O dia em
que matamos James Cagney”, “Torneio de pesca”), aventuras (“Nós, o pistoleiro, não
devemos ter piedade”, “Carta de navegação”), ecologia (“Reino vegetal”, “Ecológica”),
etc., sua dimensão alegórica vai bem além, ou seja, atinge, nas entrelinhas, o mundo do
homem adulto, onde as historinhas infantis são pretextos para se colocar o bisturi na
ferida, que tem o mesmo diâmetro da sociedade, ao evidenciar a violência do homem
contra o outro, e do homem contra si mesmo. Portanto, essa obra de caráter,
aparentemente infantil, revela a violência em todos os níveis, e o que é colocado para
a criança em forma de história e espetáculo, é lamentavelmente a realidade que cerceia
as relações interpessoais.
62
1.2.1.12 O olho
O olho como tema em Scliar tem a ver com a voracidade da criança que usa a mão
instintiva, mas que é instigada, em primeiro lugar, pelo olho, pois, antes do impulso da
ação infantil concretizado pela mão, está a mirada, interna e externa, que será a
responsável pelo gerenciamento dessa ação. Para Scliar, o olho é divindade”, é
transcendência — “o olho do escritor é que orienta sua mão; o olho interior, digo. O
olhar tem um poder superior ao do raio laser, no sentido de dissolver as aparências e
penetrar na realidade” (SCLIAR, 1987, p. 7).
Por exemplo, pode-se notar essa metonímia divina e transcendente na presença
misteriosa e intrusa do olho que tudo vigia, em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975)
e O olho enigmático (SCLIAR, 1986), presença essa que pode até atingir, como declara
o escritor, uma dimensão fantasmagórica: “como ficcionista sou fascinado pela magia
do cotidiano, pelo efeito surpreendente e fantasmagórico que cria, por exemplo, um
olho no espelho no espelho retrovisor de um carro”.
Esse olho guloso de tudo ver e de tudo perscrutar, também é elencado na definição
do “V de Ver”, dada por Scliar (2003a, p. 115), em seu livro Dicionário do viajante
insólito, no qual o turista é metonimizado em olho, como se pode conferir: “O turista é
um grande e guloso olho que viaja pelo mundo”. Tanto o turista quanto o imigrante, de
quem descende sócio-culturalmente o escritor, fazem parte do estranho na sociedade,
talvez, vazio de genealogia e de direito, mas cheio de perspicácia para enxergar o
invisível aos olhos do nativo e, depois agir muitas vezes com sucesso conduzido por sua
mão.
E aí — no olhar — está o primeiro poder do estranho. Ele vê o que os outros não
vêem. Olho arguto, olho mágico, enxerga poros nas superfícies lisas, minúsculas fissuras
nos revestimentos. O estranho, até então frio e vazio como um ventre de larva, é agora um
olho — enigmático. Mas abaixo do olho está a mão. Valendo-se do que vê o olho, a mão
mete-se. O mirar dá lugar à ação. E agir vai de um extremo a outro, da militância
revolucionária à especulação financeira. Agir inclui também o fazer, o fabricar. (SCLIAR,
1985b, p. 93).
63
Esse olho se relaciona também com a função comunicativa da literatura, pois
procura aproximar escritor, representado pela mão que, por sua vez, está direcionada
por um olho —, e leitor, representado pelo olho. Procura também aproximar escrita e
leitura, aproximar habilidade de produção e de compreensão, isso tudo nascido da ação
do olho do escritor que duplamente conecta-se a sua mão e logo ao olho do leitor,
implicando, com isso, a comunicação e seus sistemas.
O tema do olho do viajante e do olho em si, um viajante nato, vinculam-se ao
movimento contínuo da humanidade de ir-e-vir, bem como ao próprio judeu errante,
necessitado de tudo ver e tudo investigar minuciosamente, a fim de se safar ou se
apoderar de seu destino de expatriado.
1.2.1.13 A medicina e a literatura
Para Scliar, ser médico e ser escritor é uma combinação comum, mas não
necessária, assim como não é necessário ser judeu para ser escritor. De qualquer forma,
à semelhança do judaísmo, a medicina, com seu forte componente de realismo social
também fornece matéria-prima a sua literatura.
Na obra do médico-escritor de Porto Alegre, segundo a entrevista concedida a
Bins, para Scliar (1987, p. 7) medicina e literatura vinculam-se a uma outra atualidade
que é a presença do tema da morte. Na medicina, apesar de Scliar encarar esse desfecho
eventual e previsível como insuportável, sente que pode dividir essa angústia com os
colegas, podendo ainda estudar e se aperfeiçoar profissionalmente, mas como
ficcionista, segundo confessa, a única atitude possível diante do absurdo que é a
fragilidade humana” é “a ironia”, marca estilística do autor como janela que se abre nos
momentos-limite.
Essa forma de pensar a temática medicina versus literatura, como fatalmente
ligada a temática da morte, encontrando como único paliativo a ironia, não constitui
uma regra para o escritor. Ele finaliza seu livro infanto-juvenil O livro da medicina
(SCLIAR, 2000b, p. 59), colocando que, embora a medicina tenha evoluído muito desde
os feiticeiros da pré-história até a atualidade, o seu fundamento em amparar o ser
humano continua o mesmo, “porque o interesse na doença, como disse o grande escritor
64
alemão Thomas Mann, na verdade faz parte de um interesse maior, um interesse que
todos nós temos e que é o interesse pela vida em si mesma”. Ou seja, é possível
perceber que, ao contrário do que diz Bins, o nculo da medicina à literatura scliariana
está na vida e não na morte, já que “a doença nasce em silêncio” — início do livro A
paixão transformada, de Scliar (1996b, p. 7-8) —, mas a consciência de anormalidade
orgânica do paciente, despertará a doença da morte, ou do silêncio, pois a doença
caminharumo a expressão em palavras. E, devido a esse gesto verbal de quem porta a
enfermidade e quer livrar-se dela, comunicando-se, a doença poderá até se transformar
em vida, tudo isso por causa da palavra, da abstenção do silêncio que, por sua vez,
traduzir-se-á em uma história de vozes do paciente e de seu corpo dialogando com o(s)
médico(s) e com seus instrumentos médicos, em uma relação cuja “comparação da
medicina com o amor é muito pertinente”, ademais de ser, “inevitavelmente colorida
pela emoção”. Como diz Thomas Mann, “a doença se manifesta como paixão
transformada” (SCLIAR, 1996b, p. 9), causa pela qual, na medicina, como no amor, não
há nem jamais, nem sempre
11
.
É importante notar também que esse culto à vida não se faz apenas de forma
individual, mas coletiva, daí o interesse scliariano, enquanto médico, pela saúde
pública, responsável por atingir a população como um todo. A saúde pública não se
restringe apenas à área médica, mas ocupa-se de vacinas, saneamento básico, assistência
à gestante e à criança, saúde oral, envolvendo também outros profissionais, como
enfermeiros, dentistas, engenheiros, etc.; seu objetivo, portanto, é promover a saúde e
evitar a doença, dar lugar para que as ações preventiva e a curativa se complementem.
Ademais, o interesse do médico e escritor Moacyr Scliar por essa área preventiva e
coletiva mostra sua concretude, nos livros Oswaldo Cruz (SCLIAR, 1996a) e Sonhos
tropicais (SCLIAR, 1992), dedicados ao médico-sanitarista Oswaldo Cruz (1872-
1917), e A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c), dedicado ao médico-indianista Noel
Nutels (1913-1973).
Embora Scliar tenha chegado à Saúde Pública quase por acaso, é influenciado
posteriormente pelo trabalho de Noel Nutels, figura carismática e empenhada na causa
indígena, fato que também contribui para o médico-escritor dirigir-se a essa importante
11
Dans la médecine, comme dans lamour, ni jamis, ni toujours (SCLIAR, 1996b, p. 9).
65
área médica, responsável por organizar a prevenção de doenças não individuais, mas de
todo o corpo social.
Scliar chegou à Saúde Pública quase por acaso, pois esta não era uma área muito
desenvolvida no seu tempo de estudante. Ao trabalhar como interno num sanatório
estadual para tuberculosos, começou a ter uma visão da doença como problema social e
da Saúde Pública como estratégia para enfrentar a doença de forma organizada e racional.
“A sensação de que se está fazendo alguma coisa organizadamente pela população por
certo foi o que mais me atraiu, muito mais do que ficar num consultório no centro da
cidade à espera de clientes”. (LEITE, 1989, p. 6).
No terceiro ano da faculdade de medicina, o escritor-médico vai aprender a parte
cnica na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, ficando a seu cargo colher a
anamnese de um novo paciente. Dispara-lhe perguntas e recebe, ao final, de um médico
residente que o chama de lado, uma grande lição de sabedoria: Se tu deixares o
paciente falar, ele vai acabar te dizendo tudo o que queres saber” (SCLIAR, 2000b, p.
30), ou seja, “os médicos escrevem. É natural que os médicos escrevam. Como muitos
outros profissionais, habitam o universo da palavra escrita; sempre buscaram
conhecimento em textos clássicos (...) e até pensam, seguindo o aforismo do grande
cnico William Osler, no paciente como ‘um texto’(...) às vezes fácil (...), às vezes
difícil(SCLIAR, 1996b, p.8). Mas pena que essa anamnese, por priorizar demasiado o
científico, ao invés de se aproximar do literário, mesmo que em forma de “memória”
enxuta, de relato não-ficcional e objetivo, sem deixar de ser rigorosamente literária,
tenha se aproximado mais do prontuário, aumentando ainda mais o abismo de mútua
incompreensão”, sumarizado no conceito das duas culturas”, como lamenta, em uma
conferência, o famoso clínico Charles Pierce Snow (SCLIAR, 2000b, p. 30).
Nos últimos anos, segundo Scliar (2000a, p. 248), vários autores, como K.M.
Hunter, têm proposto a inclusão da grande literatura no currículo médico para o
alargamento da visão dos profissionais, situando a doença no contexto maior da
existência e dos valores humanos”, diminuindo a distância entre as duas culturas para
transformá-las em uma só: a cultura do ser humano em sua totalidade”, o que implica a
passagem obrigatória pela anamnese. Dessa forma, Moacyr Scliar, ao trazer para o
66
ambulario literário a mostra médica, parece querer transformar o hiato existente entre
essas duas culturas em um ditongo que una essas duas instâncias da existência humana
pela celebração dos valores da vida.
Scliar (1997b, p. 528), em seu artigo “O exame pré-nupcial: um rito de passagem
da Saúde Pública”, coloca que na memória da Saúde Pública do Brasil e do Rio Grande
do Sul, terra de Getúlio Vargas e, portanto, sede de um apreciável movimento nazi-
fascista, o exame pré-nupcial, com vistas à eugenia sempre teve boa acolhida, já que as
“boas condições de saúde de ambos os cônjuges são indispensáveis à formação de filhos
sadios”, segundo figura em um de seus tópicos. Embora esse rito de passagem”
sanitário — expressão cunhada por Arnold van Gennep, em 1909 — já tenha sido
superado pelo progresso científico e pela mudança das condições sociais, ele evidencia
o processo pelo qual um indivíduo passa de uma condição social a outra, recebendo
aceitação e reconhecimento.
Na obra O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), percebe-se claramente a
simbologia desse processo de transição para se receber aceitação social, não por meio
do exame pré-nupcial, mas pela cirurgia que Guedali e sua mulher Tita fazem, a fim de
removerem as patas, apesar de Guedali querer posteriormente retroceder nesse processo
para readquirir sua liberdade perdida e já não ser mais possível.
A crião artificial da vida, presente na obra scliariana também está filiada ao
tema medicina e literatura e resulta, num primeiro momento, do fato de que “todo
escritor gosta de brincar de Deus, o escritor de ficção muito mais e o escritor de ficção
judaica mais ainda”, de acordo com a opinião de Scliar (COUTO, 1991, p. 8). E com
essa brincadeira de ser Deus, Scliar traz para seu rol temático, em Cenas da vida
minúscula (SCLIAR, 1991), a primeira obra do Criador feita não pelo poder de sua
palavra, mas pela confecção de suas mãos: a criação de seres vivos, como por exemplo,
o homúnculo. O “homúnculo” é tomado do experimento do médico-alquimista suíço,
Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1490-1541),
autodenominado Paracelso, que afirma “ter criado o ‘homúnculo’, um ser nascido pela
incubação do esperma num frasco mantido tépido pela imersão em esterco de vaca
constantemente renovado” (SCLIAR, 1996b, p. 66).
67
O escritor-criador erige sua manufatura lançando mão tanto do minimalismo
quanto do maximalismo, uma vez que, como admite em Couto (1991, p. 8), tem
realmente uma obsessão por figuras pequenas e gigantescas”. Ao fazer literatura com
A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, evidencia, além da recreação, a conduta
irreverente e teimosa do Povo Eleito em relação a seu Deus, pois, conforme o parecer de
Scliar (1985b, p. 8), os judeus têm “com a divindade uma relação dialética”, apesar da
irracibilidade desta. Assim, Scliar, fazendo uso do humor e da imaginação, traz à tona
um profundo humanismo para falar de seus objetivos temáticos: a relação do homem
com suas divindades, bem como a identidade cultural e religiosa, no exercício da
tolerância.
A criação artificial da vida conecta-se ao pensar ou ao estigma dos/sobre médicos
como semideuses, porque, uma vez que “o texto médico (...) quer prescindir da
emoção” (SCLIAR, 1996b, p. 8-9), convertendo-a em uma linguagem simples e neutra,
o médico recorrerá à ficção e à poesia, como forma compensatória, e, “às vezes sem o
saber, ou fingindo não saber: quando Paracelso descreve a criação do homúnculo a
partir do esperma incubado está pretensamente descrevendo um evento científico, mas
em realidade esinventando”.
Em Cenas da vida minúscula, ao tratar da criação de pequenos seres humanos,
uma das fantasias mais antigas da humanidade, mostrando o jogo entre homem e Deus,
bem como a petulância da criatura em, sempre que possível, intentar se sobrepor ao
Criador, “Moacyr Scliar reduz seres e objetos para extrair alegorias do cotidiano desde
os tempos do rei Salomão” (ISMAEL, 1991, p. 4). E, em “Histórias da terra trêmula”,
ao falar da criação de seres gigantescos, como a colona doméstica Gertrudes, toda
amputada por seus patrões, deixa-se entrever a fantasia mítica judaica, em conformidade
com Couto (1991, p. 8), a qual, aliás, “emerge nos momentos de maior crise desse
grupo humano” e está relacionada “com o poder, sobre quem domina quem”.
1.2.1.14 A psicanálise e a ficção
Psicanálise e ficção, na obra scliariana, ora caminham juntas apenas, ora se
perpassam, ora se confundem, deixando entrever uma tênue relação entre ciência e
68
magia, racional e irracional, técnica e arte, terapia material e ocultismo judaico (cabala,
alquimia) espiritual. Nesses binômios, o realismo se relaciona com o escapismo
revelando muito do que é comum entre cada par, apesar de que cada elemento existe
na medida em que o seu outro também o faça. No caso específico da psicanálise e da
ficção, como pondera Scliar (1987, p. 7), “ambas lidam com a linguagem, que num caso
é instrumento terapêutico, noutro a ferramenta de criação artística, ambas lidam com a
metáfora, ambas acreditam na força das emoções e no poder do inconsciente”.
Assim, embora a psicanálise habite um terreno partilhado pela ciência (medicina)
e pela ficção (literatura), enfoques diferentes como se sabe, é também compartilhada
pela linguagem, comum a ambas — responsável por lhes trazer a certeza mas também a
incerteza, a razão mas também a sedução, o remédio mas também a perversão, o
diagnóstico palvel mas também o miraculoso inexplicável. A psicanálise liga-se ao
inconsciente, portanto, às emoções, mais ligadas, por sua vez, ao verossímil da ficção
que ao verdadeiro, necessário, da ciência, e mesmo Freud (1856-1939) relutava em
enquadrá-la em um dos ramos da medicina.
É significativo que o grande prêmio atribuído a Freud tenha sido o prêmio Goethe
(1930), pela cidade de Frankfurt, uma vez que ambos buscam uma síntese entre as duas
culturas. Aliás, o pai da psicanálise, conforme aponta Scliar (1996b, p. 11), parte, com
freqüência, da literatura para sua investigação do inconsciente, valorizando a palavra
como instrumento de prospecção e terapia, isto é, “psicanálise sem palavras é
virtualmente impossível. Como é impossível literatura sem palavras”. Portanto a palavra
é a interface das duas culturas e nela há pontos em comum: “uso da palavra, a utilização
da metáfora, o problema com a censura”; bem como diferenças: “na forma de usar a
palavra, no objetivo com que a metáfora é utilizada, na maneira de enfrentar a censura”.
Como se vê, ainda segundo Scliar (1996b, p. 11), o uso que a psicanálise e a
literatura fazem da palavra é diferente, pois para a literatura a palavra é um instrumento
estético que valoriza o conteúdo, enquanto para a psicanálise tanto a adequação da
palavra quanto a inadequação da mesma — o lapso, o silêncio, o gesto, a entonação
o importantes. Há, ainda, dois pontos em comum entre elas, sendo um deles sua
ligação com a Bíblia, mitos e narrativas fantasiosas na construção da metáfora, por
exemplo, Freud usa a metáfora Ego, Superego e Id para desmanchar a neurose. O outro
69
ponto é em relação à briga com a censura, pois, embora a censura faça com que a mente
mande para o inconsciente os conflitos que a incomodam, tanto para a literatura quanto
para a psicanálise a estratégia orgânica do recalque não funciona, uma vez que “os
conflitos retornam sempre”. Pode-se dizer que, em vel ficcional, retornam em forma
de literatura, tardia muitas vezes, para sarar o inconsciente das pessoas, e, em nível
psicanalítico, retornam em forma de pesadelos, transtornos somáticos e sofrimentos,
para sarar o inconsciente do indivíduo.
A título de exemplificação do efeito terautico da psicanálise no indiduo e, por
vezes, até em todas as pessoas da mesma ascendência a partir de então, pode-se tomar a
obra A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), na qual o Rafael Mendes,
financista, sempre tem pesadelos com cavaleiros medievais, profetas e personagens
históricas, assim como tiveram os outros Rafael Mendes da mesma genealogia. “A
repetição”, para Derrida (1995, p. 185-186), “não acrescenta nenhuma quantidade de
força presente, nenhuma intensidade, reedita a mesma impressão: tem contudo poder de
exploração”. Mas é possível perceber que a reicidência, atualizada na forma de
pesadelos e, portanto, de sintomas psíquicos, funciona como pulsões de vida ou como a
diferençaderridiana, para a busca terapêutica que acontecerá após o conhecimento
integralizado de toda a história genealógica dos Rafael Mendes.
E isso só acontece depois da leitura de cadernos (“Primeiro caderno do cristão-
novo”, “Segundo caderno do cristão-novo” e “Terceiro caderno do cristão-novo”),
sendo, por sua vez, um alívio tanto para o indivíduo Rafael Mendes, financista, como
para todos os demais membros da genealogia que eventualmente nascerem após ele.
Desse modo é preciso redimensionar a ponderação freudiana — para quem “os sonhos
são realizações de desejos” (FREUD, 1987, p. 322) —, pois, como se pode ver, assim
como os sonhos realizam as aspirações do dia-a-dia, eles, antes de realizá-las, também
impulsionam buscas a fim de que as aspirações se realizem.
Embora para Freud, o impulso artístico escape à análise, Hermann Hesse (1877-
1962) e Thomas Mann (1875-1955) consideram a análise psicanalítica importante tanto
para o artista, à medida que o legitima perante ele mesmo, quanto para a ficção, à
medida que escancara para a sociedade convencional a verdade do inconsciente.
70
Como Thomas Mann, ele [Hesse] via na análise uma aproximação filosófica à fantasia, e,
sobretudo, uma busca da verdade interna. “A análise exige uma sinceridade à qual não
estamos habituados”, escreveu. Uma coisa que considerava mais importante que o
confortável ajuste ao mundo e a seus valores”. Para ele, o inconsciente poderia ser uma
fonte de solidariedade contra uma sociedade cheia de convenções. (SCLIAR, 1996b, p.
210).
É importante ressaltar, em Scliar, a inflncia da leitura freudiana, embora o
escritor gaúcho-judeu considere seu compatriota Freud um auto-repudiado. Moacyr
Scliar diz que “os fortes, humanamente fortes, as grandes cabeças descendentes de
famílias judias tem-se distanciado de todo judaísmo, assumindo um ponto de vista
exterior a ele e de fato objetivo ou cultural, como Marx ou Deutscher, e até detestando-
se como Freud” (HECKER FILHO, 1973, p. 4). Além de que parece, segundo a
declaração feita a um jornalista, em 1926, ter ficado ao lado dos semitas, não por um
sentimento próprio, mas só por causa do ódio e preconceito do qual eles eram
vitimados: “A minha língua é o alemão. A minha cultura, as minhas realizações, são
alemãs. Eu me considerava intelectualmente um alemão, até a emergência do
preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então, prefiro me proclamar
judeu” (SCLIAR, 1993, p. 137). Pela fala de Freud, dá-se a impressão de que ele se
converteu contraditoriamente ao judaísmo mais por ódio que por amor aos judeus, à
semelhança do polêmico escritor Arthur Koestler (1905-1983), em cuja obra,
diversificada e desigual, apesar de interessante, poder se ler em suas páginas: “tornei-
me judeu porque odiava os judeus” — romance parcialmente autobiográfico Ladrões
na noite (SCLIAR, 1993, p. 149).
Scliar admite ter lido e aprendido muito com Freud, o primeiro a explorar as
fantasias do inconsciente, a tatear o caminho entre o ego e o id, aproximando-se desse
problema não só por uma atitude científica, mas também emocional. Certamente
também foi com Freud que aprendeu o sui generis escritor judeu-americano, Isaac
Bashevis Singer (1904-1991), cujos temores que o perseguem, fantasias cultivadas e
clima místico evocado fazem parte de um inconsciente judaico composto de histórias
blicas e de legendas acumuladas ao longo dos séculos.
71
As descrições patológicas das personagens são corriqueiras ao longo da obra de
Scliar que, por sinal, sente-se muito à vontade, devido a sua familiaridade e
consangüinidade com a leitura freudiana, bem como a sua habilidade no diagnóstico de
médico, enquanto “o sexo”, de acordo com Silverman (1982, p. 175), “é claramente
relegado a segundo plano, e tratado apenas como uma expressão de comicidade, talvez
devido à preocupação do autor em não enfatizar a superdependência freudiana”. No
entanto, essa constatação sobre a questão sexológica scliariana não parece muito
compatível com a ótica do escritor, pois considera que, do tema sexo, não há mais como
se desvencilhar, por estar presente em todos os lugares (informação verbal)
12
.
1.3 A obra
A obra scliariana, de natureza prosaica, já chega, hoje, a um arsenal cultural
autônomo e auto-suficiente com características próprias de, mais ou menos, setenta
livros, dentre eles contos, romances, novelas, crônicas, ensaios, antologias e coletâneas,
além de sua contribuição dada em eventos nacionais e internacionais, em revistas e
colunas de jornais de grande circulação como Folha de São Paulo e Zero Hora. Muitas
de suas narrativas foram adaptadas para o cinema, teatro e televisão. Sua obra suscita
interesse tanto de um público mais jovem e inexperiente, que busca na literatura as
primeiras orientações e a fantasia, quanto de um público mais maduro e ávido de cultura
e conhecimento humanos, que busca na literatura a denúncia e a História, ambas
suportáveis, muitas vezes, pela máscara ficcional e pela presença do humor tão
peculiares ao autor.
A literatura do imortal Scliar já está traduzida para mais de doze idiomas, dentre
eles o inglês, francês, espanhol, alemão, sueco, hebraico, finlandês, búlgaro, noruegs,
polonês, etc. Transita com absoluta autonomia pelo amplo continente literário latino-
americano do pitoresco tropical, da saga potico-social e do realismo mágico, sem se
12
Informação fornecida por Moacyr Scliar em uma palestra proferida no Congresso de Professores
da Rede blica Estadual Ler e Viver”, em Serra Negra, São Paulo, em maio de 2005.
72
deixar prender, mas também sem ser estranha e marginal a todo esse continente. Suas
principais publicações, segundo o prefácio do livro Um sonho no caroço do abacate
(SCLIAR, 1996d, p. 6), são O centauro no jardim [o mais traduzido], A estranha
nação de Rafael Mendes, O exército de um homem só, romances, e A orelha de Van
Gogh, contos”.
É detentor dos prêmios: Prêmio Academia Brasileira de Letras, Prêmio Guimarães
Rosa, Prêmio Brasília, Prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Casa de
las Américas, Prêmio Pen Clube do Brasil, Prêmio Academia Mineira de Letras, Prêmio
Joaquim Manoel de Macedo, Prêmio Cidade de Porto Alegre, Prêmio Fernando
Chinaglia, Prêmio Walmap, Prêmio Érico Veríssimo, Prêmio Escrita, Prêmio Jabuti,
Prêmio Mário Quintana, Prêmio José Lins do Rego, além de menções honrosas.
Eis uma breve apresentação, apenas de suas obras premiadas:
O carnaval dos animais (SCLIAR, 2001a), Prêmios Academia Mineira de Letras
(1968), Joaquim Manoel de Macedo (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1974) e
Cidade de Porto Alegre (1976, para um conto).
Os contos contidos em O carnaval dos animais (1968) atualmente são tanto da
primeira edição, 1968, pela Editora Movimento, de Porto Alegre, quanto da segunda
edição, 2001, pela Ediouro, de São Paulo, quando foram acrescentadas outras histórias,
na sua segunda parte. Nessa obra, por exemplo, é saliente a presença do fantástico
(entenda-se realismo mágico), em que os contos, partindo do real, acrescentam à
realidade o fantástico, não como forma evasiva, mas de maneira a lançar uma crítica ao
cotidiano, no qual e do qual o indivíduo se encontra violentado e banido, tamanha é a
opressão da engrenagem social que sobre ele paira. Assim a função desse fantástico não
é a de exacerbar para melhor evidenciar a problemática da violência social, mas sim
mostrar a própria existência humana, dotada de exploração, em todos os níveis, de uma
forma assustadora, ao ser apresentada na realidade da fantasia, sendo o que choca mais
o leitor não o fantástico da realidade, mas o fantástico da fantasia/ficção, como se uma
coisa estivesse alheia à outra.
O exército de um homem só (SCLIAR, 1973), novela ainda inédita recebe
menção honrosa, Prêmio Fernando Chinaglia (União Brasileira de Escritores, 1972) e
Prêmio Joaquim Manuel de Macedo (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1974).
73
O exército de um homem só (1973) é importante pela sua quixotesca personagem
central que, no papel de Mayer Guinzburg, representa a metade do quixotismo judeu do
desejo de enriquecer, e, no papel do Capitão Birobidjan, representa a outra metade do
quixotismo judeu do idealismo, perseguido por seus fantasmas.
Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975) recebe a menção honrosa Walmap, antes
mesmo de sua publicação e com outro título: Os dias de Raquel (1973).
A narrativa, passeando entre a história de Raquel, do bairro latino Partenon, onde
ela vive, dos imigrantes judeus, da psiquiatria gaúcha e do olhar, mostra tamanha asfixia
e necessidade de busca de identidade, por parte de Raquel, que pode chegar aos mesmos
limites da loucura do narrador-personagem Miguel. Empregado na ferragem do pai de
Raquel, Miguel, “profeta”, vigia-a de perto, por meio de um olho onisciente, enquanto
ela dirige pelas ruas da cidade, ademais da perseguição de seus fantasmas da infância,
adolescência e idade adulta. Para Monteiro (1998, p. 191), Raquel representa os
dilemas dos imigrantes judeus em busca de demarcar o “lugar” de sua identidade no
espaço urbano: uma territorialidade”, além de fazer parte do paradigma scliariano para
as personagens centrais: patéticas e perplexas, ou, nas palavras do mesmo Monteiro
(1998, p. 186), seus personagens centrais são os ‘gauches’ da vida, as quais, na
tentativa de compreender a fatalidade do seu destino, realizam um mergulho na sua
história de vida e na do grupo (familiar, étnico, geracional)”.
(O ciclo das águas) (SCLIAR, 1976b), Prêmio Érico Veríssimo de Romance
(1975) e Prêmio Érico Veríssimo (1976, 2º lugar), além de fornecer um retrato da
presença, na ficção urbana, do imigrante judeu na formação social e cultural da região
sul do Brasil, trata do conflito de identidade psicológico e cultural vivido pela segunda
geração desse imigrante que esquece as raízes de seus pais, mas não pode se livrar delas
e, por isso, o personagens problemáticas e problematizadas, apresentadas em
momento de crise, ao encarnarem as contradições do ser humano. Elas vivem e se
debatem em meio a esse conflito, e, tal qual o ciclo das águas, o ciclo vital, que tem
permanente movimento desde seu início até seu término, esbarram-se sempre nas
paredes desse ciclo, pois, embora ele seja dotado de uma dinâmica própria, pouco
espaço deixa para se sair dele, daí os parênteses do tulo. Esses parênteses, conforme a
análise de Vogt (1979, p. 72), justificam-se porque essa obra mostra-se como uma
74
consciência tica das formas de produção ficcional do autor, aparecendo, então, como
uma espécie de alegoria de si mesmo e dos romances que o precederam”.
A personagem principal da obra, Esther, é inspirada na figura de uma velha
prostituta a quem Scliar atende como médico. Ela o impressiona muito pelo contraste
entre a deterioração sico-mental e a capacidade de sedução. Essa personagem carrega
por trás da fantasia ficcional a amarga denúncia do tráfico judeu de mulheres brancas na
América Latina, inclusive, segundo Scliar (1985b, p. 101), pouco depois que o livro foi
publicado, ele recebe um telefonema anônimo, em que a pessoa o censura por ter
tratado de “um assunto que deveria ‘ficar em silêncio’”. A desconformidade de seu
anônimo interlocutor é compreensível, devido ao suposto receio de que os anti-semitas
explorassem o assunto, mas o que o escritor tenta deixar claro é que judias prostitutas na
Latino-América ou gangsters judeus nos Estados Unidos nada têm a ver com o caráter
judaico” que, por sinal, condena o tráfico e o banditismo, providenciando ajuda às
mulheres timas de lenocínio, por intermédio da instituição londrina Ezrat Nashim,
todavia em circunstâncias de miséria e de luta pela sobrevivência os judeus também
recorrem a métodos que outros usariam e usam.
Histórias da terra tmula (SCLIAR, 1976c), livro que recebe, por ocasião de
sua publicação, pela Vertente, em São Paulo, o Prêmio Escrita (Revista Escrita, 1976).
Em muitos dos contos, quem domina quem e as implicações dessa relação no tecido
social são postas em xeque. A exemplo disso, o conto de mesmo nome evidencia a “fina
ironia de Moacyr Scliar”, no dizer de Fonseca (1981, p. 7), pois o socialmente pequeno,
mesmo sendo hiperbolizado, ainda assim é eufemizado pelo socialmente grande que, de
maneira natural, mantém-no como tima de seu poder.
O conto “História porto-alegrense”, publicado no livro Mistérios de Porto Alegre
(1976) é patrocinado e premiado pela Prefeitura de Porto Alegre, premiação coerente
com os objetivos da administração local, uma vez que o conto expõe um painel da
expansão territorial de Porto Alegre, em contraposição com a diminuição sentimental e
amorosa de um casal de amantes porto-alegrenses, cujo destino pode até ser a deriva
estóica da vida.
Doutor Miragem (SCLIAR, 1978), ainda inédito, Prêmio Guimarães Rosa
(1977), de linguagem envolvente, anedótica e coloquial, imitando a forma íntima
75
brasileira de falar, é a narração alternada entre a simultaneidade e a ulteridade. Ou seja,
o médico porto-alegrense, Felipe, na condição de seqüestrado, vai mostrando o que
acontece “agora”, frente a seu seqüestrador, Ramão, ao mesmo tempo que apresenta as
lembranças que lhe vão vindo à tona, fruto de um “antes”, tudo isso em um tom de
monólogo. Apesar de um episódio contado parecer incoerente ou até fantástico, em
relação à narrativa, posteriormente nota-se que tudo diz respeito a tudo. Assim, o
aparente descompasso do antes-agora”, presente em Doutor Miragem, funciona como
um grande quebra-cabeça que vai se montando, a partir das duas narrativas de caráter
presente e pretérito. O que parecia não aplicável à obra se deixa perceber como
pequenas sugestões, responsáveis pelo clima de envolvimento e magia ficcional, tão
peculiares ao autor que demonstra grande habilidade no vaivém da dupla temporalidade.
Nessa dupla e concomitante cronologia entre presente e passado, tem-se o médico
Felipe em seu cativeiro, ao lado de seu agressor, Ramão, no “agora” da narrativa, versus
a trajetória paralela de suas vidas, desde a infância até a fase adulta: Felipe, filho de
caixeiro-viajante, que se torna médico, e Ramão, interiorano muito pobre, que vai para a
capital e torna-se seqüestrador, no antes” da narrativa.
É apenas por meio de sugestões que vai havendo uma aproximação entre o
agressor, Ramão, e o agredido, Felipe, até ficar claro, ao final, a troca de papéis
executados pelas personagens ao longo do paralelismo de suas vidas, isto é, aquele que
parece, no nível do “agora” ser o agressor, Ramão; no nível do “antes” é o oprimido e
vice-versa, pois Felipe tem causado dano a seu seqüestrador, à medida que autopsia sua
irmã, “mata” seu pai e transa com sua mulher. Dessa forma, repete-se, mais uma vez, o
paradigma social de que o pobre é sempre vitimado pela classe média Ramão, ainda
para confirmar isso, aparece desmaiado frente a Felipe, seu real agressor — e a classe
média pela alta — Felipe aparece no perfil de um boneco frente aos charlatões ricos e
espertos da medicina, seus agressores —, daí a vida ser apenas uma miragem, como
bem sintetiza o tulo, alinhavado à frase final do romance, porque, ao se tentar dar
concretude aos sonhos, a felicidade almejada não passa de uma mera ilusão de ótica. De
mais a mais, o que está sempre presente, como alega Leite (1989, p.15) é o “humor e [a]
ironia, do realismo ao absurdo, mas sempre com a reflexão sobre o poder”.
76
Marchon (1981, p. 90), porém, mostra no autor tanto qualidades como defeitos,
que, por sinal, estão para sempre ligados”, apontando falhas ao esboçar personagens,
demasiado, esquemáticas, muito em função de uma idéia anterior a elas: Os
personagens parecem surgir para provar uma teoria, num parcial regresso aos moldes
naturalistas”. Contudo o ctico não deixa de citar as virtudes de Scliar, ao primar pela
não gratuidade de nada: “É toda uma habilidosa técnica de construção de romance, onde
nada aparece por acaso...”. Estas últimas são, de igual modo, referendadas por Patai
(1980, p. 378), para quem Moacyr Scliar mostra novamente as infinitas possibilidades
de uma técnica contra-pontual nas mãos de um romancista que sabe o que fazer com
ela
13
. Mês de cães danados (SCLIAR, 1977), ainda inédito, Prêmio Brasília (1977) é
um exemplo da presença dos fatos sociais e políticos na obra de Scliar, pois esse
romance de 1977 trabalha exclusivamente sobre a renúncia de Jânio Quadros, em 1961,
e as conseqüentes peripécias políticas que levam João Goulart à presidência. O herói do
romance é o mendigo de perna atrofiada, Mário Picucha, que perpassa, com sua história
pessoal, os grandes acontecimentos políticos do país, reduzido aos limites de sua
herança familiar, um poncho, com a típica perspectiva espacial exígua do narrador,
fixada a partir de um ponto de uma rua porto-alegrense.
Nessa obra, a consciência do indivíduo é meramente cronológica e anedótica,
mostrando uma seqüência de números e datas que caminham juntos aos eventos, mas de
maneira desarticulada. É dessa forma que o narrador-personagem registra a história, ou
seja, pelo viés da subjetividade de um diário e pela contingência com que amontoa
também notícias de jornal, tratando, por sua vez, de assuntos que vão desde a projeção
de problemas particulares, como sua impotência sexual, até fofocas sociais e fatos
políticos.
O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), Prêmio Associação Paulista de Crítica
de Arte (1980), primeiro livro de scliariano a ser traduzido, é o preferido do escritor. O
centauro representa o poder, o olhar o mundo desde o alto, um poder que ao longo da
história raramente esteve nas mãos dos judeus. Escrevê-lo foi uma experiência diferente
das demais, tão empolgante que, segundo o próprio Scliar (1989, p. 50) declara,
13
Moacyr Scliar again shows the endless possibilities of a contra-punctual technique in the hands
of a novelist who knows what to do with it (PATAI, 1980, p. 378).
77
passava as noites em claro, escrevendo simplesmente porque não podia parar de
escrever”. É uma experiência tão visceral e obsessiva que, para a cena da circuncisão do
centauro, o autor pergunta a um amigo veterinário se cavalos têm prepúcio e, enquanto
escreve a obra, galopa pelos pampas de sua imaginação e vai dar a lugares tão
surpreendentes que se sente um pouco cavalar, o que gera até o comentário de um
crítico americano: “Mr. Scliar deve ter sangue de centauro” (SCLIAR, 1987, p. 7). Na
elaboração dessa obra, o ficcionista — arrastado pelas potencialidades da personagem,
que em sua metade de cavalo remete à figura do gaúcho, o centauro dos pampas, à iia
de liberdade, do instinto puro, da possibilidade de se poder galopar além dos estreitos
limites da aldeia e do gueto — não poderia utilizar-se de espaço melhor, os campos do
Rio Grande do Sul, para a representação dessas cenas. E, uma vez que “o escritor é, de
certa forma, um fabricante de símbolos, de protótipos, de paradigmas” (SCLIAR, 1987,
p. 7), o centauro lhe ocorre por causa de sua simbologia dual e faz com que vá dar no
conflito de identidade dos aspectos racionais e irracionais que compõem a simbologia
mitológica do centauro, estendendo-se ao conflito de sua dupla identidade de homem e
animal, judeu e brasileiro, homem do campo e homem da cidade, burguês acomodado e
aventureiro, isto é, o protótipo de sua geração: do filho do imigrante (informação
verbal)
14
.
Segundo Sobral, Scliar em O centauro no jardim levanta a problemática de
como integrar a cultura individual dentro da dominante sem perder o sentido próprio.
Essa perspectiva interna é combinada com a negociação da cultura judaica, numa
narrativa de como a diferença é percebida”
15
. Nota-se que, enquanto o conflito de
identidade é instalado também pela divisão antropológico-cultural do homem brasileiro
e judeu, o fator diferenciador, portanto o judaísmo, é justamente o responsável por
assegurar essa unidade da diferença, apesar de contraditoriamente a condição judaica
ser de permanente exílio e descentramento social” (ZILBERMAN, 1981, p. 8).
14
Informação fornecida por Moacyr Scliar em uma palestra proferida no Congresso de Professores
da Rede blica Estadual Ler e Viver”, em Serra Negra, São Paulo, em maio de 2005.
15
raises the problematic of how to integrate ones own culture into the dominant one without
losing a sense of self. This inner perspective is combined with the negotiation of Jewish culture; a
narrative about how difference is perceived (SOBRAL, 1998, p. 2681A).
78
Em O olho enigmático (SCLIAR, 1986), Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do
Livro, 1988), presentifica-se o tema do olho, semelhante à obra Os deuses de Raquel
(SCLIAR, 1975), em que há a presença intrusa e misteriosa do olho que vigia Raquel.
Essa temática do membro olho é algo que incomoda o escritor e, por isso, escreve a
respeito dela. Por exemplo, uma coisa que o impressiona, dado seu caráter
fantasmagórico, é a imagem do olho no retrovisor. Talvez Scliar conceba no olho,
membro-metade ao qual é reduzido o imigrante, a metomia paradoxal de diminuição
necessária para o exercício da perscrutação, mas também a resultante da ampliação da
autodefesa e do poder que, às vezes, lhe é concedida. Assim, o imigrante, no papel do
estranho à sociedade, apesar de tudo espiar e por tudo expiar, encontra no olhar,
enigmático para quem o mira, sua primeira defesa, como declara Scliar (1985b, p. 93):
“Mas ele [o estranho] espia e expia. E aí — no olhar — está o primeiro poder do
estranho. Ele vê o que os outros não vêem. Olho arguto, olho mágico, enxerga poros nas
superfícies lisas, minúsculas fissuras nos revestimentos. O estranho, até então frio e
vazio como um ventre de larva, é agora um olho — enigmático”. E toda essa cognição e
abstração advinda do olho se materializa de forma ativa na mão, metonímia da ação e,
portanto, o outro membro constituinte do contraponto genético do imigrante, como
também o declara Scliar (1985b, p. 93): “Mas abaixo do olho está a mão. Valendo-se do
que vê o olho, a mão mete-se. O mirar dá lugar à ação. E agir vai de um extremo à
outro, da militância revolucionária à especulação financeira. Agir inclui também o
fazer, o fabricar”.
A orelha de Van Gogh (SCLIAR, 2000d), Prêmio Casa de las Américas (1989) é,
conforme aponta a redação do caderno Letras da Folha de São Paulo (SCLIAR, 1989b,
p. 8), “um sucesso já a partir do título, como lembrou um editor (...), já sai premiado: foi
considerada a melhor obra de prosa entre as inscritas no concurso promovido este ano
pela Casa de las Américas”. O título do livro é também o título de um dos contos do
livro, cujo narrador-personagem é um garoto de doze anos, confidente do pai,
comerciante de secos e molhados à beira da falência. O conto é, segundo o comentário
da obra feito na aba da edição da ocasião do prêmio (SCLIAR, 2000d), um “modelo de
concisão e ironia, onde uma situação humana quase trágica, tensionada por um detalhe
mórbido, produz uma verdadeira ‘bofetada metafísica’ no leitor, para usar expressão
79
muito cara a Julio Cortázar”. Isso tudo oscilando em intensidade, mas, de qualquer
forma, repetindo-se nos demais contos, nos quais, ademais da desestabilização do leitor,
está presente uma peculiaridade judaico-kafkiana: a parábola, que é uma narrativa, de
acordo com Scliar (1985b, p. 76-78), indireta, coloquial e aberta, mashal em hebraico;
ou uma curva com ponto de chegada definido ou indefinido, portanto, paradoxal,
parábola em grego.
Além de trazer à baila a temática judaica, bem nas entrelinhas também pela
questão do comércio, pela necessidade da arte e sensibilidade para com o artista, e pela
condução alimentadora da família pela mãe, de maneira afetiva e racional, o conto
aborda temas como a original e a réplica, no que diz respeito à arte; o biográfico e o
pseudobiográfico, no que diz respeito ao artista; o contra-ponto entre a razão e a
emoção, no que diz respeito ao ponto de vista dos adultos; e os labirintos que se
sobrepõem à inteligibilidade, no que diz respeito à criança e ao adolescente.
Segundo as considerações de Santos e Santos (1998, p. 111), ao proceder à análise
do conto “A orelha de Van Gogh”, tais labirintos são transformados em verdadeiras
incógnitas — “que a vida é um labirinto, nós sabemos, o que não sabemos é como sair
dele, o que não faz a menor importância: Jorge Luís Borges preferiu morrer neste
labirinto a ser devorado pelo minotauro, Van Gogh sai dele no rastro de uma bala de
revólver”.
Há no conto outros temas, presentes, inclusive, nos outros vinte e três contos que
compõem o livro. o eles o desengano humano da hipocondríaca personagem Jorge,
em “Não pensa nisto, Jorge”; a exploração do outro em todos os veis, em “Inéditos”; a
tragédia humana das ações sempre como perdas, em “No mundo das letras”; o sadismo
do roubo pelo roubo do próprio dono da livraria, em “No mundo das letras”; etc.
A imensa produção ficcional de Moacyr Scliar, é premiada, em seu conjunto, pelo
menos, duas vezes, com os Prêmios Pen Club do Brasil (1990) e Mário Quintana
(1999), antes do escritor assumir o posto da imortalidade, na Academia Brasileira de
Letras, em 22 de outubro de 2005, ocupando a cadeira de número 31, pertencente
anteriormente ao escritor mineiro Geraldo França de Lima, falecido em 22 de março do
mesmo ano.
80
A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c), Prêmio José Lins do Rego (Academia
Brasileira de Letras, 1998) permite a Scliar realizar o antigo desejo de dedicar uma de
suas obras a uma das figuras mais extraordinárias do Brasil contemporâneo: Noel
Nutels, sanitarista que trabalhava com populações indígenas” (SCLIAR, 1985b, p. 107),
defendendo a causa indígena numa “época em que nossos índios eram exterminados por
causa de suas terras”, Nutels era um médico com visão social” (SCLIAR, 2000b, p. 57-
59). Judeu da Ucrânia e da mesma região de Isaac Babel e Clarice Lispector, refugia-se
com a família em Recife e na pensão de sua mãe, Dona Berta, moram também Rubem
Braga e Ariano Suassuna. Embora pouco vinculado à comunidade judaica, Nutels tem
muito do humor e do espírito contestador inerentes a esse povo, e tamanho é seu
entusiasmo, que nasce no médico-escritor, Moacyr Scliar, a vontade de se dedicar à
saúde pública.
A majestade do Xingu (1997) narra a história de um velho cardíaco, na UTI,
contando para seu jovem médico, ou o seu inconsciente contando — uma vez que esse
suposto interlocutor jamais se manifesta —, sobre sua vida, mas principalmente sobre o
médico indigenista Noel Nutels. Apesar de falar o tempo todo, quase, só do médico
indianista, com ele tem contato pessoal, apenas quando criança, durante a viagem de
navio, onde a família do narrador e a família de Noel, ambas judaicas e foragidas da
Rússia, conhecem-se e os dois garotos travam passageira, mas forte amizade. Ao
chegarem ao Brasil, dona Berta, a mãe de Noel, ele e a tia se encontram com o pai,
Salomão, e seguem para Laje do Canhoto, Pernambuco, enquanto a família do narrador
segue para o Bom Retiro, em São Paulo, capital. Apesar de nunca mais se encontrarem,
o narrador sabe tudo sobre a vida de Noel que se tornará conhecido internacionalmente
como o médico dos índios e comunista. O anônimo narrador tem até uma pasta com
fotos, entrevistas, artigos de jornais e revistas, piadas e inscrições de banheiro
colecionadas por Noel. Mostra-a a seu médico do UTI, ou é seu inconsciente quem
mostra; enfim, sabe e acompanha tudo que se trate de Noel Nutels.
O narrador-personagem narra a história a partir de um anonimato absoluto, pois
não se sabe nunca seu nome ou apelido. Sabe-se de cada membro de sua família e até
detalhes muito particulares da vida de Noel Nutels, ou seja, conhece-se muito a respeito
do outro que integra a obra. Em contrapartida, esse narrador em primeira pessoa, como
81
o, em geral, as personagens narradoras de Scliar, é medíocre e tem apenas um papel
de fantoche social. Ocupa puro e simplesmente um espaço e um tempo sobre os quais,
em sua função pró-forma, lhe é vedada a possibilidade da intervenção, só lhes restando
o desprezo da família e da sociedade, à causa de sua pateticidade patológica e crônica,
porque, eternamente vai adiando a ação.
O anônimo narrador, mesmo venerando seu companheiro de viagem, de seu tempo
de criança, e querendo sempre reatar aquele laço de amizade do passado — daí manter
em estado de quarentena tudo que se refere ao menor detalhe relativo à vida do médico
indigenista —, tem sua ação castrada pela opinião familiar a respeito dele e pela sua
própria opinião, o que resulta em uma inatividade absoluta e em uma frustração do eu”
com o espelho sócio-familiar e com seu auto-espelho. No entanto, de modo paradoxal,
se para a sociedade interior à ficção, esse narrador é totalmente sem autoridade,
pensando-se na sociedade exterior ao ambiente narrativo, para o leitor por exemplo,
esse narrador tem autoridade máxima, e é única e exclusivamente por intermédio dele
que a narração é viabilizada.
A mulher que escreveu a Bíblia (1999) — (SCLIAR, 2001f) —, Prêmio Jabuti
(2000), pode-se dizer que está dividido em duas partes. Na primeira, bem sucinta, com
apenas dez páginas, impressas em ilico, um famoso terapeuta de vidas passadas conta
como sendo um medíocre professor de História chega a essa especialidade da
psicanálise. E, dentre seus importantes pacientes, passa a receber a anônima filha de um
fazendeiro que, ao regredir no tempo durante as sessões, descreve-se, em pormenores,
como sendo uma das muitas esposas — apaixonada — do rei Salomão. O terapeuta se
apaixona pela paciente, mas, no dia em que resolve confessar-lhe seu amor, ela deixa
um recado que não comparecerá e lhe pede para ir a seu apartamento. Dobrando a
esquina, ele a vê, tomando um táxi, feliz, abraçada a um homem que seguramente é o
antigo empregado do pai dela, quem o fazendeiro surra e expulsa por desvirginar sua
outra irmã, no dia em que a paciente decide confessar-lhe seu amor. No apartamento,
com uma colega de trabalho, ela lhe deixa uma carta, agradecendo a ajuda, através da
qual é possível dissipar a raiva pelo rapaz e proporcionar o renascimento do amor, e
uma pasta, contendo a história que havia escrito, baseada em suas viagens ao passado.
82
Na segunda parte da obra, da qual a narrativa propriamente se ocupa-se e impressa
em letra normal, uma das setecentas esposas de Salomão, também anônima, conta desde
sua infância de aldeia israelense, pobre e desprezada, por causa de sua lendária feiúra,
até tornar-se uma das esposas do rei, por causa de alianças poticas. Porém, sendo a
única a saber ler e escrever, o monarca a incumbe de escrever um livro sobre a trajetória
do povo judeu: a Bíblia — aliás os judeus são conhecidos como “o povo do livro”. Ela
o faz, sem não poucas brigas com os velhos detentores do saber palaciano a quem
Salomão entrega a redação da obra anteriormente. Mas eles, apesar de saberem tudo, até
como testemunhas oculares, há dez anos, apenas falam, discutem, brigam e não chegam
83
histórico, não apenas um código moral ou uma fonte de encantamento, mas o marco de
sua própria identidade. A Bíblia foi uma pátria portátil” (SCLIAR, 1993, p. 14).
É na redação de A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983) que Scliar
mais se demorou — Scliars best book”, de acordo com Staváns (1988, p. 63);
caracterizado pela crítica como o seu melhor romance até a data e segundo o júri do
Concurso Museu de Literatura de São Paulo, um dos cinco melhores livros do ano de
1983 no Brasil” (LEITE, 1989, p. 6). Esse livro também entusiasma muito o escritor
pela sua abordagem histórica, uma vez que, segundo sua observação, em Gomes (1989,
p. 9), “a temática histórica neste País é uma vertente inesgotável”, e ele se questiona
porque a gente não escreve mais dentro dessa corrente, sobre a História do Brasil”.
A obra não apenas faz uma escrita da História de maneira ficcional, mas a
desestabiliza, pois, conforme o que alega Bollinger (1987), a comunidade humana dos
povos da América Latina tomou, à força, o lugar histórico pertencente ao povo judeu; e
finalmente, conforme o parecer de Margarido (1985), o livro apresenta uma nova
proposta de reescrita historiográfica: apenas a versão do tronco judaico para, a partir
dele, erigir a etnia da brasilidade, composta de brancos, negros e índios. No entanto, o
interessante e peculiar em Scliar é que ele conta suas estórias de largo alcance histórico,
ou seja, suas estórias-histórias, sempre com “a presença do humor no livro, não só do
humor negro (humor judeu, segundo Wilson Martins), que parece uma marca do estilo
de Scliar, como também o bom humor e ainda o riso desbragado com que os
personagens reagem às situações-limite” (PARKER, 1985, p. 113). Essa qualidade
scliariana contribui para enriquecer o romance de leitura fácil, sem abrir mão da
seriedade do projeto do autor, já que “não é possível a vida humana autêntica sem a
ironia”, pois esta é aquela pitadinha de sal que, sozinha, torna o prato saboroso”, como
diria Thomas Mann (MUECKE, 1995, p. 19), concordando com Kierkegaard ou citando
Goethe, respectivamente.
84
1.4 O processo de criação
Moacyr Scliar, médico e escritor, por causa de sua vida ocupada e dividida no
exercício de ambas as profissões, não conta com um horário fixo para a redação de suas
obras. Segundo revela em Gomes (1989, p. 8), padece de uma “culpa judaica” que o
obriga a fazer uma coisa útil na vida, fora da Literatura”, mas mesmo que “tivesse todo
o tempo do mundo”, ele “não teria um horário gido”.
A ficção de Scliar, parte da imaginação, mas chega quase a ser engajada com
pretensões de interferir no real, pois critica a realidade, apesar de o escritor ceticamente
não parecer acreditar que a possa mudar.
Os narradores de Scliar, geralmente em primeira pessoa, costumam ser pessoas
medíocres, sem muito prestígio social, o que os leva a ser, com freqüência, cobrados a
respeito de sua inatividade congênita por parte de seus próprios familiares, e muitas
vezes até desprestigiados sócio-financeiramente, uma vez que mal sobrevivem com as
atividades de seus trabalhos. Fazem parte do conjunto de um anonimato uniforme e
reificador que não permite ao leitor, muitas vezes, sequer saber seus nomes.
À semelhança dos narradores, as personagens centrais scliarianas como, por
exemplo, as da obra Os voluntários (SCLIAR, 1979b) são “criaturas marginalizadas e
comovedoras, convincentemente humanas, apresentadas em momentos de crise, anti-
heróis que encarnam as contradições do ser humano e que introduzem a serenidade e a
alegria ingênuas e a fé humilde numa sociedade industrial mecanizada, numa dialética
de mundos contrastantes” (JOZEF, 1981, p. 97). Com essas personagens, crédulas na
condição humana, ao extremo, o autor constrói um universo de significações, “a meio
caminho da fantasia, a meio passo da realidade”.
Às personagens scliarianas também falta-lhes o gesto heróico peculiar aos que
ainda encantam-se com o mundo. Elas sofrem de crise de identidade e de
impossibilidade de ação, à moda kafkiana, fazendo parte, portanto, da massa da
“narrativa da ilusão, porque nenhuma das personagens possui o privilégio da ação e a
nenhuma será atribuída a possibilidade de modificar o espaço oferecido” (CHAVES,
1994, p. 78).
Em Scliar, narradoras ou não, tanto as personagens crédulas demais no outro, em
menor grau, ou descrédulas demais no outro, em maior grau — estas por representarem
85
simplesmente um percurso mais avançado da trajetória humana, pelo qual as crédulas
personagens, fatalmente também passarão —, mostram-se perplexas frente às
circunstâncias que as rodeiam.
Ismael (1991, p. 4) alega que a herança judaica, na qual a obra de Scliar se pauta,
é a responsável pela cisão com o paganismo e, em conseqüência, pelo afastamento do
homem da alegre confluência com a natureza, por isso, os personagens de Scliar
carregam o peso de uma privação transmitida inexorável e monotonamente geração
após outra”.
As personagens são quixotescas na medida em que, muitas delas, têm ou lutam
por um ideal, mas são, segundo as palavras do escritor (LEITE, 1989, p. 6), como essas
pessoas que não dão certo”, que sempre acabam “quebrando a cara”, porque o
desfecho de seu idealismo já está sentenciado. Certamente é por isso que o escritor nutre
por elas especial carinho: “Sou realmente fascinado por essas figuras. Certamente não
gostaria de ser assim e talvez não tenha coragem de ser, mas olho-as com muito
carinho”.
O foco narrativo, em Scliar, sempre oscila entre as terceira e primeira pessoas. Em
muitas de suas obras, há um ir e vir entre um narrador-testemunha, de existência
comprovada ou não na obra, e a personagem principal. Em (O ciclo das águas)
(SCLIAR, 1976b), por exemplo, o narrador está em terceira pessoa, mas freqüentemente
passa a palavra a Marcos, isto é, passa para a primeira pessoa, de modo que o ponto de
vista sobre as outras personagens parece ser, ou do narrador ou de Marcos, mesclando-
se, então, os focos narrativos. Uma estrutura semelhante parece se dar em A estranha
nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), em que os capítulos do presente da obra são
narrados pelo Prof. Samar-Kand, na primeira pessoa quando narra sobre si, ou na
terceira pessoa quando narra sobre a vida do Rafael Mendes financista; porém, os dois
catulos referentes à história genealógica dos Rafael Mendes, portanto, pertencentes ao
passado da obra, apresentam um entrecruzar de focos narrativos.
O primeiro deles, o Primeiro caderno do cristão-novo”, começa com a narração
em terceira pessoa, muda para a primeira, em seguida volta para a terceira para aí
continuar até o final do capítulo. Acredita-se que, do mesmo modo que acontece com a
mescla dos narradores de (O ciclo das águas) e sua, conseqüente, mescla de pontos de
86
vista, existe no capítulo em questão a mesma miscelânea devido à alternância de focos
narrativos. Nesse capítulo de A estranha nação de Rafael Mendes, há uma melhor
ilustração de pontos de vista múltiplos, tendo-se em vista que a redação do mesmo
capítulo é feita por Rafael Mendes, médico, e pelo seu genealogista, o Prof. Samar-
Kand. Já o outro capítulo, Segundo caderno do cristão-novo”, esnarrado por inteiro
na primeira pessoa, uma vez que é o médico Rafael Mendes quem o narra, e é sobre a
sua própria vida, apesar da ajuda do genealogista.
Essa cessão de turnos narrativos do narrador oficial às personagens contribui para
uma maior interação entre narrador e personagens, no ambiente textual, e, em
conseqüência, para uma maior democratização do texto com o leitor, no ambiente extra-
textual.
Moacyr Scliar demonstra muita habilidade no manejo temporal da montagem de
suas narrativas, que dão grandes saltos cronológicos, passando de um tempo a outro de
uma forma direta. Faz essa escala temporal de maneira segura, lançando mão de sutis
ligações temáticas, como Cenas da vida minúscula (SCLIAR, 1991), Doutor
Miragem (SCLIAR, 1978) e A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983),
por exemplo, além de que o cuidado do A. marca, aliás, toda a construção do romance,
onde nenhum episódio, personagem ou palavra aparece por acaso; tudo tem relação e se
articula harmoniosamente, numa narrativa povoada de pequeninas sugestões que os
factos posteriores só farão confirmar, em correspondências por vezes bem distantes”
(MARCHON, 1981, p. 89). Mesmo fatos aparentemente fantásticos e irracionais, como
o da sedução de uma jovem por um lobisomem, ou a atividade do feiticeiro da Calábria,
na obra Doutor Miragem, exemplificados pelo mesmo crítico, encontram mais tarde
explicações lógicas, e, ao invés de constituírem episódios à parte, interligam-se no todo
racional da história, onde as várias personagens acabam sempre por se encontrar.
Sobre essa questão de os acontecimentos ilógicos alçarem um patamar de
logicidade, é bom esclarecer que o crítico não está correto ao dizer que os fatos
fantásticos acabam tendo uma explicação lógica no amarrar da narrativa. Mas, pode-se
colocar que essa aparente lógica é porque a incoerência e a falta de lógica da realidade
estão tão presentes, como uma das faces desse todo chamado real, que é como se essa
87
contradição entre racional e irracional não se manifestasse, uma vez que sua separação é
algo impossível.
O trabalho de Scliar, enquanto produtor de narrativas, segundo os apontamentos
de Monteiro (1998, p. 192), é o do mediador entre um tempo absoluto/cósmico sobre o
qual o homem não tem nenhum controle (a eternidade), o tempo da experiência
vivida/quotidiana e o tempo da memória onde diferentes tempos já estão imbricados”;
além do tempo posterior à escritura: a ação de tecer os tempos cósmico, da
experiência, da memória, do pensamento no presente”, momento esse completado com
o tempo da leitura.
Dono de um estilo veloz e com a capacidade de um novelista que sabe criar
vigorosas cenas de dialogação” (SCHÜLER, 1975, p. 98), o escritor judeu-brasileiro
trabalha em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975), por exemplo, com dois planos. A
partir da colocação de Waldman (1977, p.311-312), são esses planos: um narrativo,
evocando “um mundo judaico enxertado em Porto Alegre”, e outro, também marcado
pelo comentário blico, mas destacado do corpo narrativo do primeiro plano, “inclusive
pela utilização de uma tipologia gráfica” — estratégia parecida ocorre também em A
mulher que escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f). E essa espécie de “colagem” ou de
organização intersectada” é feita de fragmentos justapostos e que, por força da
justaposição, vai estabelecendo relações de contaminação”, a ponto de se poder falar
em um “duplo movimento conjuntivo/disjuntivo”. Apesar de que essa disjunção vai se
encaminhando para a “conjunção” ao longo da obra, e a tensão criada” vai se
resolvendo em uma absorção constante da narrativa, que, ao fim, acaba por englobar o
comentário transformando o intertextual em intratextual”, o discurso bíblico passa a
fazer parte da composição ideológica do texto.
No tecer ficcional do autor, salta aos olhos sua linguagem, isenta de rodeios e
rebuscamentos formais e pautada sempre na simplicidade, como se verifica no emprego
de pronomes átonos antes das formas verbais em início de frases; ou no emprego do
dialeto gaúcho, presente no uso do pronome pessoal reto “tu”. Apesar desta aparente
simplicidade, as narrativas scliarianas apresentam um elevado grau de complexidade
formal em sua construção, o que demanda um leitor atento e culto.
88
Scliar (1989a, p. 47) comenta em Veredas que se preocupa muito com a
decadência da linguagem escrita no Brasil, onde muitos jovens querem escrever sem um
completo domínio do idioma. Segundo o escritor é preciso um rigor absoluto com a
palavra escrita, pois, segundo um ensaio de George Orwell a decadência da linguagem
acompanha a decadência potica, e vice-versa”. Portanto a recuperação da palavra
escrita, no Brasil, deve ser parte de um esforço maior, nacional, para que haja a
recuperação do próprio país.
Quanto à forma seca de escritura do escritor, segundo Leite (1989, p. 7), o próprio
Scliar comenta que seu processo de criação aponta para a sua afinidade com o estilo
seco de Kafka. Da mesma forma que este, com quem aprendeu muito, busca apreender a
vastidão do mundo em seus aspectos essenciais, escrevendo de forma linear e simples,
sem fazer demagogia com as palavras”. Como se verifica; o ficcionista revela:
Primeiro me recuso a escrever o que estou querendo, até que isto se torne impossível
de conter. É um desafio à própria imaginação, partindo do princípio de que se a idéia é
boa, ela voltará. Então, nesse processo muitas das coisas acessórias se perdem. Depois é
uma questão de técnica. Cortar, cortar bastante, deixando apenas o essencial”.
Faz parte dessa sua opção peculiar de fazer literatura, uma ficção muitas vezes
nima e essencial, objetivando dizer por meio do “menos” o “mais”, afinal é na síntese
que acontece a incisão direta e profunda sem devaneios. E o conto é esse espaço
propício, já que, conforme declara o autor para Bins (SCLIAR, 1987, p. 6), o conto é,
ou deveria ser, um texto sintético por sua natureza”. Scliar, além de ter ingressado na
carreira literária como contista, ainda hoje considera que um conto bem feito (...) é
uma peça de ficção insuperável. As raízes da literatura estão no conto. (...) toda aquela
carga emocional e estética que se espera da literatura está concentrada da forma mais
evidente no conto” (LEITE, 1989, p. 6). E por isso, para o escritor, “um conto bem
realizado é uma obra superior a qualquer outra de ficção” (ESPESCHIT, 1983, p. 8).
Embora no momento trabalhe mais com a novela, por achá-la mais gratificante em
termos de comunicação com o público, o autor considera o gênero conto como o texto
literário por excelência; embora também acredite que nele os acertos são poucos e os
erros não têm remédio.
89
É dessa forma sintética como sinônimo de força verbal, completude e habilidade
literárias, que surge o miniconto — gênero do qual Scliar é um dos pioneiros no Brasil
—, cuja extensão não corresponde, em absoluto, à escassez de qualidade e de
aprofundamento literários. Segundo a colocação de Scliar (1987, p. 6), “um miniconto
nem sempre é um conto minimalista. O minimalismo diz respeito sobretudo à exata
modulação dos sentimentos, e à exata expressão desta modulação (...). O minimalismo é
importante, porque é responsável pelo ressurgimento do conto moderno”.
Em relação ao conto, essa peculiaridade do escritor de dizer muito em poucas
palavras, sem circunlóquios e articios ornamentais, de forma cristalina e precisa,
proporcionando apenas a distância necessária para fazer transparente o que está por trás
ou embaixo da realidade e das aparências, tem a ver, como argumenta Bollinger (1987,
p. 88), com o treo de seu sobrenome. Scliar, em russo, significa “vidriero”, ou seja,
vidraceiro.
No caso da forma de redação do conto, gênero que assinala fortemente sua obra,
Scliar — com uma vida corrida, bipartida entre as profissões de médico sanitarista e
escritor não pode ter o tempo todo livre só para escrever e, segundo declara em Gomes
(1989, p.8) também não quer ter, a fim de não se sentir tão ansioso — escreve um conto
“de uma vez só. Se eu [o autor] tenho de escrever o conto mais de uma vez eu já
desconfio da qualidade dele”.
Outro aspecto ressaltado por Scliar ao comentar seu processo de criação é a
preferência por produções que nascem de lampejos, o que também concorre para que o
escritor privilegie neros como o conto e o miniconto. Valorizando o papel da
inspiração, Scliar apresenta a criação do conto e do miniconto como o brotar de uma
coisa episódica, contida em si própria, até mesmo pelo tamanho que lhe aumenta o
espaço de circulação, pois constituem textos que podem aparecer em revistas e
suplementos literários.
Já a produção de outras narrativas, como o romance, por exemplo, é feita por meio
de uma espécie de “associação livre”, isto é, não consegue “planejar um romance, ter a
arquitetura dele, escrever o nome dos personagens, fazer mapas, diagramas”, mas, vai
tomando notas e juntando essas notas para depois descobrir qual a coerência que existe
entre elas”. Desse modo, vai traçando um painel histórico e pintando um retrato da
90
sociedade. Para o escritor, a soma dessas intuições é o que lhe dá a idéia de um
romance.
Para Scliar, escrever, contar histórias é questão de sobrevivência, como sempre foi
o ato de ler, ao longo de toda sua vida. É provável que seja dessa necessidade vital,
dessa comunhão entre corpo e alma para que haja vida, que surja a necessidade de
escrever à mão: Eu sempre escrevo à mão. Eu acredito assim numa continuidade entre
o corpo e a palavra, via caneta ou lápis” (GOMES, 1989, p. 8).
Outra necessidade valorizada por Scliar é a de escrever no jornal aos domingos,
como forma de manter um contato mais direto com o leitor e fugir da solidão da qual o
escritor é vitimado em seu exercício literário. Principalmente porque abre no jornal
outra fenda que não é a da potica ou do futebol, mas a fenda da crônica para falar e
refletir sobre o cotidiano das pessoas de forma mais acessível a elas.
No que diz respeito ao modo scliariano de converter a história em ficção, fica
sempre claro que suas narrativas são sobre a história e não meros textos apenas
inspirados na hisria, ou historicamente rigorosos. Logo, o compromisso do escritor,
depois de muito pensar, não é com a restituição histórica:
O processo literário do escritor é complicado. Pensa durante muito tempo, faz
anotações, o se preocupa com a pesquisa e reconstituição histórica (seu compromisso se
restringe ao grande movimento histórico que está no fundo das situações ficcionais, mas
que está bem no fundo mesmo), todas as informações que acumula têm de se diluir. Ele
fica impregnado delas e depois destila sob forma de ficção. (MEDINA, 1985, p. 9).
O escritor-médico combina, com sucesso, em sua volumosa obra, jocosidade,
imaginação e grande compromisso com a dolorida condição humana, ao trocar a vida
por palavras, à maneira do absurdo kafkiano.
No processo ficcional de Scliar, uma característica marcante é o fantástico.
Por fantástico, partir-se-á da definição de Bessière, para quem o fantástico não
resulta da hesitação entre as ordens do natural e do sobrenatural, mas de sua contradição
e de sua recusa mútua e implícita. A narrativa fantástica provoca a incerteza, ao exame
91
intelectual, porque trabalha com dados contradirios reunidos seguindo uma coerência
própria
16
.
No nero fantástico, em conformidade com alguns críticos, Scliar “é um dos
principais representantes no Brasil” (ESPESCHIT, 1983, p. 8), e considerado mestre da
literatura fantástica, tendendo ao absurdo, não partindo nunca de eventos reais para
produzir sua palavra escrita (BOLLINGER,1997, p.87-88)
17
. Tanto no romance quanto
no conto, de acordo com Leite (1989, p. 19), o fantástico scliariano surge como recurso
que abre espaço para o sonho, a alucinação ou o gesto inlito que provoca
invariavelmente a fratura da realidade”.
Embora não poucos críticos apontem um realismo mágico na obra de Scliar, há
críticos como Ramos (1973, p. 3), por exemplo, que preferem ver tal realismo mágico
“mais como introdução no contexto de elementos que se diferenciam agigantados ao
romper a sua unidade”.
Representante, no Brasil, da personificação da cultura judaica, a obra scliariana
aparece como uma alegoria da História dos judeus realizada, conforme pondera Marin,
na articulação do racional e do fantástico, da realidade presente e da memória do
passado judeu, feito de misticismo, de messianismo, de utopia e de tradição
18
.
Um dos momentos mais difíceis para o acontecimento da literatura de Scliar são
os anos 70, quando apreendem livros de Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola, José
Louzeiro. Atingido pelo medo desse clima de tensão ditatorial, no livro Mês de cães
danados (SCLIAR, 1977), o autor escreve de maneira mais metafórica, justificativa
para a qual ele dá sobre seu fantástico, apontado pela crítica.
A presença do elemento fantástico, na obra scliariana, pode ser manifestada no
imaginário das personagens, por meio de um dos temas do sobrenatural, a loucura,
16
Le récit fantastique provoque lincertitude, à lexamen intellectuel, parce quil met en oeuvre
des données contradictoires assemblées suivant une cohérence et une complémentarité propres
(BESSIÈRE, 1974, p. 10).
17
Moacyr Scliar es considerado realista mágico o, por otros, maestro de la literatura
fantástica, tendiendo, como también Loyola, a lo absurdo (BOLLINGER, 1997, p. 87).
Parte, en lo que escribe, no obstante, nunca de eventos reales. Parte de la palavra, de la
escritura (p. 88).
18
Au coeur de sa réflexion, elle place la question de larticulation, dans loeuvre de lécrivain
gaucho, du rationnel et du fantastique, de la réalité présente et de la mémoire du passé juif faite de
mysticisme, de messianisme, dutopie et de tradition (MARIN, 1996, p. 214).
92
podendo ser considerada da mesma forma que Nodier: uma forma privilegiada de
sensibilidade, percepção e sabedoria, que conduz a uma vida plena, logo à felicidade”
(CAMARANI, 2002, p. 84). Um exemplo desse veio se materializa em O exército de
um homem (SCLIAR, 1973), obra na qual, conforme aponta Malard (1981, p. 200),
o recrudescimento corresponde a uma transgressão cada vez mais ativa das normas do
comportamento dito ‘saudávele conseqüentemente à entrada no fantástico ou loucura,
espaços-limite da exclusão social”, apesar de, como se pode notar, o crítico usa
erroneamente a loucura como gênero e não como tema do fantástico.
Kafka também é o grande mentor de Moacyr Scliar no tema do insólito, do
absurdo e da alienação, como declara o escritor: “A leitura de Kafka foi para mim uma
revelação, a emoção mais forte de minha vida. De repente eu encontrava um escritor
que, através de uma narrativa simples, criava um clima quase insuportável em termos do
absurdo [entenda-se realismo mágico]” (SCLIAR, 1987, p. 6).
Essa declaração do autor, a respeito do clima narrativo “quase insuportável em
termos de absurdo” remete, sem dúvida, à tendência do fantástico no culo XX a que
se convencionou chamar realismo mágico, definido por Spindler como um termo que
descreve textos em que duas contrastantes visões de mundo (uma “racional” e outra
“mágica”) são apresentadas como se não fossem contraditórias, lançando mão de mitos
e crenças de grupos etno-culturais para os quais essa contradição não se manifesta
19
.
Para se ter um exemplo, tomar-se-á o conto “Torneio de pesca”, em que Antônio,
com sua ridícula família, invadem a praia e se apossam dos peixes dos participantes do
torneio. O desembargador Otávio, presidente do clube de pesca, corta ambos os braços
do pai da enorme tribo, mas mesmo assim no dia seguinte, Annio, só com os cotos
envoltos em panos ensangüentados, tenta novamente pegar os peixes, como se pode
conferir: “Cerca das nove horas aparece o tal Antônio. De longe, via-se que tinha os
membros superiores amarrados em trapos sangrentos. ‘Cortei-lhe os braços – explicou o
desembargador – à altura dos cotovelos. Não me falhou a minha fiel faca de pescador’”
(SCLIAR, 2003b, p. 175). Todavia, ao contato com a água fria, a “disgusting
19
the current usage, which describes texts where two contrasting views of the word (one
rational and one magical) are presented as if they were not contradictory, by resorting to the
myths and beliefs of ethno-cultural groups for this contradiction does not arise” TwD[fINDLE, 228(o1993,] TJ-0.013 Tc3.1796Tw-374 -12.72 TD/[p. )78
93
personagem urra de dor, em meio às gargalhadas dos pescadores, e desse modo entoa ao
céu uma monótona melopéia, toma sua família e se vão dali, lugar em que as águas
nunca mais dão peixes.
Ou seja, tem-se uma situação perfeitamente banal em que nem a presença do
incerto faz com que se tenha grandes alterações, pelo menos, do ponto de vista
discursivo: “Aquelas águas não deram mais peixes. Não houve mais torneio de pesca na
praia da Alegria” (SCLIAR, 2003b, p. 175).
A forma estranha do escritor colocar a realidade tem um caráter de ceticismo e não
de símbolo, magia ou mito, como ele próprio declara (SCLIAR, 1987, p. 7): “Como
disse, meu pensamento não é simlico. Não tenho uma visão, digamos, mágica ou
tica do mundo; sou um cético”, embora o escritor seja, “de certa forma, um fabricante
de símbolos, de protótipos, de paradigmas”.
Como se sabe, é condição inerente ao fantástico e ao realismo mágico a linhagem
realista. Aliás, ao se tomar como ponto de arranque o cotidiano e as experiências
próximas do escritor e do leitor, aumenta-se a verossimilhança da ficção, para depois,
no caso da obra realista mágica, mostrar a verdadeira composição da realidade que,
além do real, é coabitada pelo não explicável, segundo os mesmos paradigmas do
cotidiano social.
Esse corriqueiro, em Scliar, deixa transparecer uma violência velada, como se
pode conferir no livro O tio que flutuava (SCLIAR, 1994b), em que o súbito flutuar do
tio sugere bruxaria, ou uma violência destrutiva e escancarada, nos contos “Cão”
(SCLIAR, 2003b), em que o minúsculo cão japonês vai comendo tudo e todos, sem nem
alterar o tamanho de seu abdome; “Histórias da terra trêmula” (SCLIAR, 2003b), em
que a doméstica Gertrudes é mutilada por seus patrões, e vai rindo ou berrando
enquanto o fazem; e Canibal” (SCLIAR, 2003b), em que a faminta Angelina começa a
se auto-mutilar e se auto-ingerir, continuando ainda com vida.
Regina Zilberman, ao analisar os contos de O carnaval dos animais (SCLIAR,
2001a, p. 13), mostra que “o fantástico [entenda-se realismo mágico] é empregado para
denunciar os problemas verificados na sociedade” ou como diria Volobuef (2000, p.
110) ao analisar Casa tomada, de Julio Cortázar, para denunciar a “sensação de
impotência frente à realidade opressiva”. Dentre esses problemas, estão a desigualdade
94
e a brutalidade, embora muitas vezes haja uma recusa em se enxergar tais anomalias
sociais. Scliar, como artista sensível para ver outras dimensões do real, posiciona-se
criticamente diante de tal omissão, à medida que representa a realidade de forma
exagerada, sendo a exacerbação justamente o que existe de mais real, porque é a
realidade que se mostra metafisicamente fantástica. Dessa forma, Moacyr Scliar,
partindo da tradição realista do conto brasileiro machadiano, contribui para a renovação
desse gênero, ao lhe incluir a vertente realista mágica, um instrumento útil para o
desvelamento crítico dos processos do cotidiano, pois é nos meandros do dia-a-dia que
o indivíduo se torna alienado e submisso à opressiva engrenagem social.
É bom lembrar que a temática da violência não está presente somente em O
carnaval dos animais (SCLIAR, 2001a), mas também em outras obras, como A
balada do falso Messias (SCLIAR, 1976a), Histórias da terra trêmula (SCLIAR,
1976c) e O anão no televisor (SCLIAR, 1979a). Nelas se tem um raio-X pictorizado do
“mundo observado que se desfigurou pela violência, verdadeiro estigma originário do
homem”, e a característica de traço mais notável do conto de Moacyr Scliar”, segundo
Chaves (1994, p. 78), chegando ao extremo da fatalidade, de acordo com o que se pode
ver nos contos “Queimando anjos” e “Na minha suja cabeça, o holocausto, presentes
em Histórias para (quase) todos os gostos (SCLIAR, 2001d).
Todorov (1970, p. 168) diz que a função do sobrenatural é subtrair o texto à ão
da lei e com isto mesmo transgredi-la”. No entanto, apesar da crítica falar, muitas vezes,
em fantástico na obra scliariana, o escritor não subtrai o texto à ação da lei, nem a
transgride, e sim retira exemplos da realidade, realçadores do mistério inerente a ela,
sem fazer uso do fantástico. O que Scliar faz é salientar o irreal da realidade, na forma
avultada de hiper-realidade, e dessa maneira critica a sociedade, no que diz respeito à
ação violenta de mutilação e aniquilação dela mesma, fruto de suas mazelas e vícios.
O autor de Introdução à literatura fantástica, em outra obra As estruturas
narrativas (TODOROV, 1970, p. 179), ao falar da diferença entre a narrativa fantástica
tradicional do século XIX e a narrativa fantástica moderna do século XX, iniciada por
Kafka, em A metamorfose, coloca que “A metamorfose parte do acontecimento
sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e
o final da história é o mais distante possível do sobrenatural”, assim como ocorre em O
95
castelo e O processo, enquanto no século anterior “a narrativa fantástica partia de uma
situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural”.
Scliar, para delinear seu sobrenatural, une as duas pontas dos séculos XIX e XX,
enquanto projeta-se rumo ao século XXI, pois parte de um acontecimento natural, à
maneira do fantástico tradicional, e em seguida o coloca na condição de progressiva
familiaridade, apesar da hesitação e do estranhamento iniciais. Comparado a Kafka, seu
percurso do sobrenatural pode ser assim esquematizado:
Kafka: sobrenatural à natural
Scliar: natural à sobrenatural à natural
Ao entrevistar Scliar, Gomes (1989, p. 9), faz-lhe uma observação e depois duas
perguntas: “Você tem, na sua ficção, uma linha de realismo-fantástico e uma linha de
realismo simples, pura, urbana, de ascendência judaica. Qual a que pesa mais e que
você prefere mais? O realismo-fantástico ou o realismo puro?” De antemão, faz-se
necessário esclarecer, na constatação do crítico, que “realismo-fantástico” é um termo
inventado por Borges em sua ficção, portanto parece que com o emprego de tal
terminologia, o crítico quer dizer justamente o realismo mágico scliariano; ao passo que
em relação às perguntas o escritor entrevistado lhe responde que prefere a imaginação,
apesar de seus riscos.
(Scliar) Eu sou um escritor daqueles que, talvez por uma razão infantil (uma
dessas coisas de que a gente não consegue se livrar, que nos acompanham ao longo da
vida) ainda preferem olhar o mundo com os olhos da imaginação.
Eu não nego que isso seja uma coisa perigosa. Eu acho que é muito fácil a gente
escorregar no realismo-gico, botar personagens para voar e outra coisa é o risco que a
gente corre. Isso é, o de desvalorizar o tema em função da facilidade que esse gênero
provoca, desvalorizar esse instrumento naquilo que ele tem de melhor, que é a visão
crítica da realidade que a gente vive.
Mas é com a fantasia que eu tenho a maior afinidade, me sinto melhor. Quando eu
estou fazendo uma ficção fantasiosa [entenda-se como aquilo em que há fantasia] e
quando eu estou fazendo uma fião realista eu fico me perguntando porque eu não estou
escrevendo um ensaio. (GOMES, 1989, p. 9).
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Fica claro, pela colocação de Scliar, que sua concepção de imaginação e de
fantasia tem relação de causalidade — fantasia: “aquilo que não corresponde à
realidade, mas que é fruto da imaginação” (FERREIRA, 1999, p. 878). Quanto ao temor
do escritor de, uma vez estando no terreno da imaginação, escorregar para o “realismo-
mágico” e, assim, desvalorizar o tema”, embora seja um risco no qual se tenha que
incorrer, é bom esclarecer que, de acordo com a concepção abordada por ele, realismo
mágico” deve ser entendido como fantástico e “desvalorizar o tema” como o passar do
realismo mágico para o fantástico. Scliar ainda coloca que, ao trabalhar com a fantasia,
sente-se melhor por lhe possibilitar uma visão mais crítica da realidade, ao contrário de
se trabalhar com a “ficção realista”. Nesse contexto, o escritor parece empregar “ficção
realista” como sinônimo de ensaio, ou de relatório histórico ou científico.
O escritor Luís Giffoni (GOMES, 1989, p. 9), sobre o fazer scliariano, argumenta
que, mesmo no livro em que Scliar procura a fonte histórica, como A estranha nação
de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), sabe-se que “toda história é pessoal e imparcial”,
sobretudo quando o autor, em questão, “transforma[-a] em ficção”, já que “a realidade
que poderia ter acontecido e a estória em si ou essa estória é a ficção que poderia ter
acontecido, coisas que se mesclam muito”. Dessa forma Giffoni crê que Scliar vai,
com a sua imaginação, agir sobre o real freqüentemente, esteja ou não fazendo
realismo-fantástico [entenda-se realismo mágico]”. Ou melhor, mesmo em obras
consideradas de caráter histórico: A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR,
1983), Sonhos tropicais (SCLIAR, 1992), A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c),
etc, cuja intervenção no real se faz por meio da metaficção historiográfica também se
presentifica o não lógico, como o outro lado da mesma moeda chamada real.
No entanto, a interferência no real pela via da imaginação, tanto metaficcional-
historiográfica, quanto mágico-realista, Scliar considera, sempre, um risco, por acabar,
de certa forma, enganando o leitor.
(Scliar) E isso também é outra coisa que implica em risco, porque o leitor muitas
vezes quer saber o que é ficção. Certo tipo de leitor não gosta de ser enganado, que se
apresente para ele como estória romantizada aquilo que, na verdade, é ficção sobre a
história. Quer dizer, ele admite ler um texto em que a imaginação do escritor entra para
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completar certos detalhes, mas ele quer ter certeza de que 90 por cento daquilo aconteceu.
(GOMES, 1989, p. 10).
É bom lembrar, no entanto que, de acordo com Medina (1985), Scliar não está
preso a correntes, nem regionalistas, como a gaúcha; nem gentílicas, como a judaico-
brasileira; nem genéricas, como a realista e a realista mágica. Sua busca sempre foi uma
visão emotiva, envolvendo o novo e o inusitado, apesar de o escritor não se considerar
inovador. Nunca foi realista, nem mágico-realista, mas sim a realidade, e em especial a
latino-americana, é que sempre se manifestou espantosa, com uma distância muito
encurtada entre o real e o absurdo.
Sempre relutou em ser o repórter da medicina. Quando se trata de contar uma estória,
prefere confiar na visão literária, entregar-se aos aspectos mais emotivos, ainda que mais
grotescos, ainda que não muito verazes. A busca do novo, do inusitado, embora não se
considere inovador, é sua bússola.
Por isso nunca foi realista. Nem realista fantástico [entenda-se realista mágico],
porque a realidade latino-americana é por si espantosa e os limites o extremamente
tênues entre o real e o fantástico (...).
Artista sensível percebe a realidade dos extremos em que se vive no Brasil. Scliar
não precisa recorrer a navios sobre os telhados para montar a cena fantástica [entenda-se
realismo mágico]. (MEDINA, 1985, p. 9).
Nota-se que o crítico fala de um realismo mágico scliariano, não escancarado, mas
como parte constante da realidade brasileira, e é esse parco limite, entrevisto nas duas
instâncias do âmbito real e do absurdo, o responsável pela atualização e
problematização do cotidiano. Pode-se levar em conta o parecer de Volobuef (2000, p.
110-111), para quem o gênero fantástico “não cria mundos fabulosos, distintos do nosso
e povoados por criaturas imaginárias, mas revela e problematiza a vida e o ambiente que
conhecemos do dia-a-dia”, pois no século XX o fantástico transporta-se “para a
linguagem, por meio da qual é criada a incoerência entre elementos do cotidiano (a
causa da angústia está na falta de nexo na ordenação de coisas comuns, na falta de
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sentido, no surgimento do absurdo)”. Antes o insólito era produzido no “nível
semântico”, no século XX ele está presente no nível sintático”.
Além disso, contribui para a narrativa fantástica em sua obra o próprio dialogismo
de muitas vozes, presente na América Latina. A realidade latinoamericana é
evidentemente barroca, justificando o parecer carpentiano de este ser o continente do
real maravilhoso” (CHIAMPI, 1994). Contudo, com a junção do realismo maravilhoso
e do realismo mágico sob um único termo, unificador das duas faces do fantástico atual:
realismo mágico, proposta por Spindler (1993), nesse momento atual de releitura da
modernidade, pode-se dizer que a realidade latinoamericana é o continente do realismo
mágico neobarroco, realismo mágico para revelar a face racional e a face mágica da
mesma realidade, e neobarroco para revelar a releitura tensa e desconstrutiva do
modernismo pelo que ele fez e pelo que ele deixou de fazer.
Perpassam a obra desse escritor contemporâneo a metafísica com noções de
absurdo e de sobrenatural, em evidência, a tecnologia moderna e a motivação sexual,
além da crueza do neonaturalismo. A conjunção de todos esses elementos resulta em um
presente esticado rumo ao passado e ao futuro, na medida em que um determina e logo
se funde ao outro com seus mitos e fantasias, encruzilhada onde se encontra o homem
do cotidiano, a meio caminho da fantasia, a meio passo da realidade”, segundo Jozef
(1981, p. 4), sendo que no real está o irreal e no possível está o impossível, banalizando-
se o ilógico e o incrível com o que deveria ser, ou seja, “a normalidade e o absurdo
aparecem invertidos: o absurdo é o real, a normalidade consiste em organizá-lo
mentalmente”, aliando-se realismo e realismo mágico e substituindo-se as “relações de
causalidade” pelas “relações de contigüidade”, uma das vertentes mais ricas do humor
judaico, filiado à tradição de Saul Bellow e Philip Roth.
Portanto colocações sobre Scliar, como: “Rememorações pueris à maneira de José
J. Veiga aparecem em várias hisrias de O carnaval dos animais (e em todas as
novelas do autor), tanto realistas quanto surrealistas [entenda-se realistas mágicas]”
(SILVERMAN, 1982, p. 183), não são muito procedentes. Afinal, a organização
ficcional, passando pelos meandros do mistério para a problematização do real, ou ao
contrário, além de consoante às necessidades contemporâneas, ampara-se em
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repercussões bem mais anteriores, pelo fato de sempre terem existido, mas só
atualizadas nessa vertente típica da contemporaneidade, que é o realismo mágico.
Em um depoimento concedido a Espeschit (1983, p. 8), ao falar sobre o fantástico,
gênero pelo qual opta em seu livro O carnaval dos animais (SCLIAR, 2001a), Scliar
afirma ter se afastado do “fantástico” (no sentido de realismo mágico), por recear cair
no “fantástico pelo fantástico” (no sentido de sobrenatural), talvez receando nesse caso
a perda do senso crítico da literatura, embora acredite ser a “fantasia” (no sentido de
Ferreira (1999) de não correspondente à realidade, mas fruto da imaginação) uma
dimensão legítima da literatura.
Todavia, afirma o escritor:
Tenho me afastado disso que se convencionou chamar de “fantástico”. No
entanto, acho que é uma dimensão legítima da literatura, talvez a mais legítima, aquela
que põe a literatura no seu papel mais importante, que é o de falar à condição humana
através da fantasia [entenda-se imaginação]. Há realidades, como a de certas regiões da
América Latina, que o naturalmente fantásticas. O perigo disto é cair na gratuidade, no
fantástico pelo fantástico. (ESPESCHIT, 1983, p. 8).
Vê-se, porém, pela leitura de suas obras, que o escritor não tem se desvencilhado
do gênero fantástico, acredita-se que pelo mesmo motivo que ele aventou ser “uma
dimensão legítima da literatura”. Além disso, a crítica continua a pontuar tal temática na
obra scliariana, o que contribui para a necessidade de se deter um pouco mais sobre a
narrativa fantástica, em Scliar, justificando um capítulo à parte sobre uma de suas obras,
tendo por objetivo analisar se há ou o fantástico em obras mais atuais do autor, ou se
o que há é realismo mágico.
Além da narrativa fantástica, concatenada ao realismo mágico, verifica-se também
na obra de Scliar um inerente gracejar, mesmo que, por vezes, com certa acuidade.
Como profissional também da saúde da palavra, não brinca com a literatura,
embora tenha certeza de que ela não seja suficiente para redimir as pessoas do
sofrimento. Acredita que ela seja um importante instrumento para a sondagem da
realidade, logo não faz dela apenas um enfeite ou um brinquedo que extrai sorrisos da
sociedade, em um país onde muitos passam fome. Apesar de que nem por isso a
100
literatura, para mostrar seriedade, tenha que ser carrancuda: “Se a literatura é supérflua
— e ela o é — cabe a quem escreve fazer o possível para torná-la séria (mas não
carrancuda. Seriedade não tem nada a ver com mau humor)” (MEDINA, 1985, p. 9).
Assim como Scliar prefere ficar com a fantasia, ou seja, com a imaginação, não
temendo correr o risco inerente à transição da ficção realista para o realismo mágico
(GOMES, 1989, p. 9); ele não reluta em inserir em sua literatura a piada e o anedótico,
“mesmo correndo o risco de cair do lado (...) da anedota”, contrariamente a escritores
“literário[s]” que têm “horror ao anedótico”, por considerarem a “anedota a antítese da
literatura” (COUTO, 1991, p. 8).
Além disso ele também não hesita em ser criticado por incorrer num processo de
rebaixamento do mito” e de avacalhação do mito, não usando valores simbólicos para
o que constrói, conforme faria Kafka, por exemplo. Mas antes fica com seu fazer
original, embora perigoso, conforme lembra o crítico Vogt (1979, p. 76): “mesmo os
símbolos do mundo demoníaco sofrem nos romances de Moacyr Scliar um
rebaixamento na relação com a realidade hisrica ou imediata, o que constitui, em
grande parte, o procedimento responsável pelo humor e pela ironia tão caractesticos do
autor”. Apesar de a partir do parecer de Medina (1987, p. 132), ao falar sobre O
centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), esse “coxear” ou esse rebaixamento também ser
ocasionado pela preocupação scliariana de tudo contar, de tudo explicar e de a todas as
objeções vindas da verossimilhança e dos hábitos realistas do público servir resposta
condigna, aceivel”.
Esse procedimento scliariano de rebaixamento do mito e conseqüentemente da
realidade, fica bastante evidente em O mistério da Casa Verde (SCLIAR, 2000c). No
texto, toda a incógnita construída no inconsciente dos itaguaienses, ao redor do hospício
chamado Casa Verde, gerado a partir do conto machadiano “O alienista”, é
desconstruída, à medida que Scliar faz uso do suspense, mas vai desvendamento o
mistério que paira sobre a cidade de Itaguaí, Rio de Janeiro, por meio da personagem
Arturzinho, o líder xereta de sua turma. Desse modo, vai se esvaecendo o mito
fantasmagórico que a obra de Machado de Assis só fez aumentar, para de maneira bem
humorada, rebaixar o mito do fantasma da Casa Verde, enquanto vai se explicando a
realidade dos fatos. Ou seja, o fantasma, do qual a população jura ouvir gritos e
101
gemidos à noite, e cuja visão faz a turma de garotos ficar aterrorizada, é o bisneto do
alienista Bacamarte, chamado Jorge. Seu avô é fruto da paixão do alienista pela
portuguesa Ana que cuida da Casa Verde nos dezessete meses que Simão Bacamarte
fica aí recluso, antes de falecer. Jorge, esquisito desde pequeno, acaba fugindo da
mulher e da filha para ir morar no antigo hospício, uma vez que, segundo ele, o mundo
está cheio de loucos e então ele, como seu bisavô Simão Bacamarte, tem que ficar na
Casa Verde, único reduto para se proteger do mundo-hospício.
Assim são banalizados simbolicamente os valores da realidade pelo dissipar do
mistério e até avacalhados, pois, na obra, depois os valores simbólicos da sociedade de
Itaguaí são travestidos e transformados em teatro, bem como o hospício da Casa Verde
em clube, onde Arturzinho e sua turma podem dançar e curtir seu rock a todo volume.
Tal avacalhação reflete simplesmente uma sintonia das manifestações da
contemporaneidade da obra de Scliar com o momento presente, composto de descrença,
de despaixão e de destotalização, no qual até mitos tidos como eternos e grafados em
letras maiúsculas são relativizados nas letras minúsculas de mais uma versão da mesma
coisa.
De forma geral os críticos apontam na obra de Scliar a combinação de realismo
mágico — ao qual será dedicado um catulo à parte — e de humor judeu (humor
negro), semeado de uma sexualidade muito evidente hoje em todas as relações sociais,
segundo o autor — Minois (2003, p. 560) diz que o elemento cômico mais comum é o
sexo”. Assim, na ficção scliariana, o absurdo aliado ao humor são os responsáveis por
criarem “todo um universo de signos bridos, de tempos e espaços distintos, porém
justapostos” (KRAUSZ, 1989, p. 7).
O cômico, como pondera Bergson, não existe fora do que é essencialmente
humano
20
. Porém no que diz respeito à sociedade judaica, o humor já tem se tornado um
de seus ingredientes culturais, pois conforme aponta Birman (2005, p. 103-104), os
chistes judaicos têm a ver com o anti-seminitismo do qual sempre foi vítima, sendo
assim uma forma de transformar os discursos mortíferos e violentos a seu respeito “em
franco e inico objeto de chiste e de riso”. Essa forma criativa e reacionária da cultura
judaica a fez diferente das demais minorias étnico-religiosas, porque os judeus não se
20
Fuera de lo que es propiamente humano, no hay nada cómico (BERGSON, 1943, p. 12).
102
mantiveram passivos frente à crueldade dos discursos anti-semitas, o que causaria a
fatalidade de seu aniquilamento enquanto tradição e literalmente enquanto ethos; ou
ainda a incrustação de seus valores no registro masoquista de vítimas.
Nessa perspectiva, o humor e o chiste judaicos o emblemáticos da tradição
judaica, na medida em que impediram que esta fosse engolida por esta dupla armadilha
perversa, que destruiria esta cultura. De forma que transformar a agressão mortífera em
chiste e gozar ainda com o que assim se realiza, pelo riso que provoca, com efeito,
implica, para a tradição judaica, não se identificar com o agressor e esvaziar em ato, na
cena social, o aniquilamento presente no gesto anti-semita. (BIRMAN, 2005, p. 104).
Esse senso cômico judaico, esse riso que exorciza a angústia, segundo os
apontamentos de Minois (2003, p. 564), tem seu centro na religião, “zomba-se dela, mas
amigavelmente”. Portanto a essência do humor tico-judaico é um meio de se libertar
de uma fé sufocante de que se tem orgulho — é nessa tensão que o cômico reside”. O
humor, com seu aspecto libertador e catalisador, serve na verdade de máscara para os
conflitos, sendo uma inversão deles via procedimento carnavalesco. Uma vez que o riso
expressa o inconfessável, o inexplicável e o irremediável de uma forma aceita na
sociedade, podendo chegar ao niilismo, pois como diz Jean Duvignaud: “Não se ri de
Chaplin, ri-se daquilo que, apresentando ao longo da fião a imagem — comum a cada
pessoa do público — de um fracasso secreto, nos permite fazer economia de angústia”
(p. 588).
Assim, a fim de dar vazão à angustia e à amargura existenciais que o dilaceram
enquanto porta-voz social, é no humor, aliás bem próximo ao amor, que o ficcionista
Moacyr Scliar encontra a única saída diante da dor e dos impasses da cultura judaica
que, de acordo com a visão de Medina (1985, p. 9), vê-se “sem futuro no Brasil e da
qual Scliar é uma das testemunhas mais sensíveis”. E esse humor, que se abre para o
humano, com ternura e dimensão transcendental(JOZEF, 1981, p. 4), tem sua foz no
mundo fantástico kafkiano da amargura pela perda de uma identidade cultural, agora
amadurecido pelo exercício da tolerância, sendo por isso não mais amargo e sim
agridoce, do tipo humor sutil e melanlico, capaz de fazer rir à mente com seus
paradoxos muitas vezes cruéis.
103
Seguindo o raciocínio de Kehl (2005, p. 53), nota-se que “o humor nos poupa da
fadiga de viver”, aliviando temporariamente o fardo dos reveses da vida, o cálculo de
cada passo e de cada escolha, bem como de suas conseqüências. O humor conduz ao
riso, reflexo corporal do relaxamento das tensões vitais, e assim “relaxamos, ‘entramos
no jogo’ que consiste em abordar o recalcado por atalhos surpreendentes, para em
seguida retornarmos à seriedade habitual”.
A ironia scliariana, ilustrada de forma radical, porque não é apenas amarga, mas
também azeda e doce, não se expressa por meio só do humor e da paródia, mas também
de “um tique poético capaz de se manifestar, de forma poderosamente compreensiva,
até mesmo diante dos momentos mais terríveis de miséria humana, quando a ironia e
o humor oferecem condições de integridade crítica e reflexiva”, conforme o parecer de
Vogt (1979, p. 79). Ironia e humor traduzem-se muitas vezes no riso, a única estratégia
capaz de dar conta da irônica condição humana, ao lhe oferecer uma saída digna para tal
impasse, principalmente porque o autor, dono de uma “sensibilidade agridoce, amarga
no fundo mas cheia de gentilezas no seu modo de ser”, permite-se captar “os contrastes
injustos” e os dourar “com uma frase polida e modesta e uma graciosa fantasia
[entenda-se imaginação]” (HECKER FILHO, 1973, p. 4).
Esse modo clássico para se preencher os interstícios impostos pela existência
humana, tem a ver com a inerente condição judaica comum também a Kafka que, apesar
de não ligado ao semitismo na aparência, mostra-o com toda força de sua imanência,
potencializado em uma defensiva ao desespero, capaz de ocupar o lugar da angústia e da
amargura com a alegria de uma orquestra tocando enquanto o navio naufraga, conforme
recomenda Kafka a Max Brod (SCLIAR, 1985b, p. 79-80): “Mas em nosso tempo
agnóstico deve-se ser alegre. É um dever. A orquestra do navio tocou até o fim no
afundamento do Titanic. Desta maneira, a gente se defende do desespero”. Em verdade
apesar da forma ímpar de Kafka se aproximar do judaísmo, como se pode checar por
sua fala para o Diário de 8 de janeiro de 1914 — “Que tenho em comum com os
judeus? Mal tenho uma coisa em comum comigo mesmo. Deveria ficar contente em
meu canto, feliz por poder respirar” —, o melodramático desse humor judaico-kafkiano
faz com que o leitor também fique sensibilizado para a problemática dos judeus, devido
à humildade cética da colocação.
104
A título de exemplo desse riso agridoce e rebelde tomar-se-á primeiramente duas
situações presentes, na obra A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983),
além de outras presentes em outras obras. Dessas duas situações, uma é quando Moisés
bem Maimon, o médico e filósofo Maimônides, autor de O guia dos perplexos, notifica
a sua majestade, o sultão Saladino, que a doença que o aflige é o cólera. Saladino, de
posse da causa, mas sabendo que sua morte é iminente, começa a rir
incontrolavelmente, sendo seguido por seu médico. Ambos se põem a rir
convulsivamente — um humor nomeado por Freud como riso úmido, por sua mistura
com as lágrimas” (KUPERMANN, 2005, p. 25). Chegam a rolar na cama de tanto rir,
até que adormecem, e Maimônides, ao acordar, vê que Saladino está morto. Na
realidade é um riso negro e avesso ao medo, pois “o humor negro exorciza o grande
medo do homem moderno ateu: o medo do nada” (MINOIS, 2003, p. 582).
A outra é quando o financista Rafael Mendes está preso junto com Boris
Goldbaum, seu chefe e dono da financeira Pecúnia S.A., além do autor de um golpe
financeiro no estado e em seus clientes. Rafael, ao ouvir Boris começar a gemer com tão
pouca convicção, a fim de chamar a atenção do guarda e sob essa justificativa ser
removido para uma clínica e de lá fugir para o Uruguai, começa a rir às gargalhadas,
chegando a rolar na cama de tanto rir. É seguido por Boris e ambos começam a rir
incontidamente. Conforme alega Araújo (1987, p. 28), a presença do riso nas
personagens está associada a uma desestruturação da ordem vigente, ou a uma não
aceitão de suas normas”, e por meio dele busca-se uma outra lógica, busca-se novas
realidades.
. M. Ives Delage diz que, para que uma coisa seja mica, é preciso haver entre a
causa e o efeito uma desarmonia
21
. Essa afirmação convalida a colocação de Bergson
sobre o fato de o riso cumprir a função útil de correção
22
, justamente pela “ambigüidade
irresolúvel que está no fundo de cada piada” (KUPERMANN, 2005, p. 22).
21
En un interesante artículo de la Revue du Mois, M. Ives Delage oponía a nuestra concepción de
lo cómico la definición en que él mismo había pensado: Para que una cosa sea cómica, decía, es
preciso que entre el efecto y la causa haya desarmonía (BERGSON, 1943, p. 149).
22
La risa es ante todo una corrección (...). En general, es indudable que la risa cumple una
función útil (BERGSON, 1943, p. 145).
105
Enquanto em muitas situações-limite a saída pode ser a arte, na arte de Scliar,
além do riso aberto das personagens-pateta, em A estranha nação de Rafael Mendes
(SCLIAR, 1983), ou ainda da personagem-destoante, Lina Però, em A festa no castelo
(SCLIAR, 1982a), há outros exemplos dele no vasto painel ficcional scliariano. São
eles, sempre saídas de situações-limites para dar a impressão de que se dominou a
situação, mas com diferentes máscaras, atualizadas por meio da resistência, como a da
personagem-olho, Miguel, em Os deuses de Raquel (SCLIAR, 1975); da loucura,
como a da personagem-quixotesca, Capitão Birobidjan, em O exército de um homem
(SCLIAR, 1973); do instinto sexual, como o da personagem-médico, Felipe, em
Doutor Miragem (SCLIAR, 1978); da leitura, como a da personagem-dupla, Guedali,
em O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a); e da prática da religião (judaísmo), como
a da personagem-prostituta, Esther, em (O ciclo das águas) (SCLIAR, 1976b).
Tudo isso culminando com o humor, única ferramenta válida no enfrentamento da
tradução alegórica da miserável exisncia humana, ilustrado, segundo Minois (2003, p.
553), por um riso nervoso e incontrolável que riu de tudo, de seus deuses, de seus
demônios e de si mesmo; uma “doce droga” capaz de energizar a humanidade para
“sobreviver a suas vergonhas”; um riso que foi “o ópio do século XX”, morto de
overdose de riso”, em meio a seu nonsense. Ao mesmo tempo, essa gargalhada causa
no leitor a mesma admiração que Mário Quintana causou em Scliar, ao filosofar e
pensar sobre o mundo e as coisas “com graça, ternura e beleza”, conforme sua própria
declaração, em Zilberman (1985, p. 11).
Em Cenas da vida minúscula (SCLIAR, 1991), por exemplo, Ismael (1991, p. 4)
fala de dois momentos desse humor requintado de Scliar que se presta mais a asfixiar do
que propriamente a oxigenar a narrativa. O primeiro se dá quando a minúscula Laila é
enterrada em um prosaico vaso de plantas, a narrativa brasileira atinge um de seus
estágios mais comoventes, pois fala-se do “melodramático sem usar seus edulcorados
recursos”. O segundo se dá quando, no fundo de uma gaveta, é a boneca Barbie quem
faz companhia a Laila, ponto em que “o humor de Scliar nunca foi tão metafórico ao
mitigar a solidão feminina”.
O projeto literário dessa obra é, sem dúvida, ambicioso, da mesma forma de A
estranha nação de Rafael Mendes, pois a narrativa vem desde a antiguidade bíblica
106
até 1984, ou seja, nasce na antiguidade blica, passa pela Grécia antiga, pela idade
média, pela aurora da modernidade européia nos séculos XV e XVI, até chegar ao
Brasil em 1984, percorrendo, pelo menos, dezoito séculos. À inicialmente anônima
personagem Habacuc, não o profeta bíblico menor, mas um fictício filho do rei
Salomão, ligam-se todos os outros Habacuc’s que de forma humorística vão se
desvencilhando dos obstáculos que perpassam seu caminho através dos séculos, e assim
todos eles vão superando, com leveza e graça, a anulação do tempo para chegar à
atualidade sem grandes problemas. Percebe-se que a ambição scliariana traz em seu
bojo uma forte dimensão de alegoria sobre o Brasil, com o baixinho judeu do Amazonas
na busca de sua identidade acidentada. Ele é auxiliado pela fantasia e pela alucinação,
pelo tratamento irônico e pelo tratamento humorístico dados às queses, o que remete,
inclusive, ao anti-herói brasileiro, Macunaíma.
A capacidade de atravessar incólume e com bom humor situações embaraçosas ou
perigosas recorda ao leitor brasileiro um outro anti-herói invulnerável e zombeteiro:
Macunaíma. em Habacuc traços do herói arquetípico do folclore, capaz de ultrapassar
enormes barreiras sem sofrer maiores conseqüências sicas ou psicológicas, embora
evidentemente Scliar remete antes ao anti-herói judaico, esperto e infeliz, personagem
daquelas historietas e piadas um tanto autodepreciativas que tanto agradavam a Freud.
(ARAÚJO, 1993, p. 103).
Um outro exemplo do humor scliariano, elencado por Araújo (1987, p. 28-29),
está em A festa no castelo, obra na qual o humor é visto como “um jogo do qual
participam o A. e os leitores. Como em um pacto, o entendimento se faz através de
códigos que o leitor decifra facilmente”, embora “aparentemente simples, a tessitura
narrativa e o repertório do livro, para serem apreendidos em sua totalidade,
necessitariam de um horizonte amplo de expectativas”.
Quanto ao humor scliariano, há críticos como Bollinger (1987) que consideram
seu humor do tipo escondido” e “suave”. Mesmo Moacyr Scliar, ao comentar sobre o
livro Os deuses de Raquel, por ocasião de sua publicação pela Editora Expressão e
Cultura, do Rio de Janeiro, diz que o humor dessa obra é “mais sério, de humor mais
sutil e negro, mais profundo e com mais coisas para serem meditadas” (LEITE, 1989, p.
107
14). Por outro lado, há críticos como Silverman (1982, p. 170) que concebem “a
característica fundamental de Scliar (...) a ironia, não a do tipo relativamente sutil de um
Machado ou de um Eça, mas a ironia vibrante, intensa, própria de sua espécie particular
de parábola contemporânea”, combinando em seus escritos fantasia e inocências
infantis, escapismo adulto, tragimica insensatez humana, implicações autobiográficas,
descrições patológicas, crueza neonaturalista, religiosidade, herança cultural judaica,
metafísica, absurdo, sobrenatural, tecnologia moderna e motivação sexual. Tudo isso se
intersecciona em uma ironia oscilante entre o ridículo e o sublime, por meio de uma
perspectiva inica e até mesmo satírica com a presença do suspense mordaz, de
pinceladas de sadismo e masoquismo, acrescidas de humor apimentado, além de
prolongados flashbacks.
Desse modo, para o crítico, o elemento irônico scliariano se dá por uma rica
variedade de imagens, símbolos e motivos que se repetem constantemente, porém o que
repete, ocasionando a ironia, é a natureza cíclica da vida, ou seja, a efemeridade no
homem que se mostra atemporal, esticado para o passado e para o futuro, à medida que
intencional ou (in)conscientemente se revela igual aos homens seus ascendentes e
descendentes. A preocupação naturalista do autor pelo homem faz com que ele tenha
dele uma visão hiperbólica e dantesca, abordando o que há de mais cru e feio, apesar de
vital na sociedade. Há ironia também nos conflitos metafísicos das personagens com a
questão da metamorfose do mal para o bem, ao passar de um mundo para outro.
Scliar não é, como muitos dos críticos queriam, em princípio, um regionalista,
nem seu humor é puramente judaico. O autor é um universalista que não está
preocupado com restrições de idade, tabus sociais e realidade convencional, mas sim em
esculpir, com seu modo único, um mundo irônico e fantástico, mostrando assim sua
preocupação com a forma dinâmica e irônica de se construir uma nova sociedade, a
partir do comportamento social humano.
Assim, como forma de suplantação à absurda e frágil condição humana, a ironia
que percorre a obra de Moacyr Scliar é o instrumento-chave para lhe dar coerência
ficcional e provocar essa conexão também no tempo presente de sua inserção, bem
como na cognição do leitor.
108
(...) em toda a obra, a ironia é o instrumento-chave do autor, o fator básico de coesão em
seu mundo ficcional, e o maior responsável por sua crescente popularidade. A ironia
provoca no leitor gargalhadas e lágrimas, compaixão ou aversão; pode inclusive alterar os
valores básico de alguém — ou fortalecê-los. A ironia de Scliar é matizada por um humor
mais como meio do que como fim, presente mais para reforçar suas tiradas agudas e
irônicas do que para neutralizá-las. (SILVERMAN, 1982, p. 173).
Nota-se que, apesar de Silverman tentar argumentar, em princípio, a respeito
apenas de uma ironia vibrante em Scliar, por fim sua análise acaba por propagar a ironia
mais sutil e cética admitida por Bollinger e pelo próprio escritor.
Ao falar da ironia e da alegoria na obra scliariana, Moniz (1982, p. 66) coloca que
é somente através do ritual, a infraestrutura mais importante da alegoria, e da corrosão
inevitável do objeto simbólico, causada pela sua própria insuficiência, que Scliar pode
oferecer-nos uma visão que, graças à sua repetição e simetria, cria a única ordem
possível num universo caótico: a coerência estética e intelectual do texto”.
Concomitantemente, este torna-se uma irônica contemplação da limitada capacidade
intelectiva e racional do homem, e confirma o caos inerente ao cosmo”. Dessa forma, é
possível perceber que a ironia, como peça-chave, (des)tranca os universos textuais,
enquanto escancara as portas para o caos, ao portar alegorias que a contemporaneidade
não tem mais como sustentar seus sentidos. Ao mesmo tempo ela torna essas produções
textuais extremamente fechadas e coerentes com seu momento atual, ao trazer em si o
reflexo de uma ironia inerente ao cosmos de então, tudo isso muito bem protagonizado
pelo ceticismo scliariano.
O cético Scliar que, ao contrário de outros escritores judaico-descendentes, no
Brasil, como o anti-semita Samuel Rawet (1925-1984) e a resignada Clarice Lispector
(1925-1977), nunca se negou nem foi resignado, a ponto de aceitar passivamente todos
os sofrimentos, mas foi de sua “condição judaica que nasceu a ironia e a ferocidade,
acentuadas no tempo de estudante de medicina (...). O humor melancólico dos meus
livros é, na realidade, uma forma irônica de reclamar, de revelar desconformidade”
(LEITE, 1989, p. 5). Antes, a obra scliariana, com sua inconformada ironia e seu humor
melanlico que implica um rir com lágrimas nos olhos, um rir não do outro, mas com o
outro. Tem muito do que ele coloca, ao falar da ficção do primeiro grande representante
109
literário do humor judeu, Scholem Rabinovitz (1859-1916), pseudodenominado
Scholem Aleichem, cujos textos estão repassados de típico humor judaico, um humor
amargo, que não exclui compaixão; Scholem Aleichem não ri de seus personagens, ri
com eles” (SCLIAR, 1993, p. 100). O humor de Aleichem é o “humor peculiar do
perseguido, que é uma defesa contra o desespero; um humor agridoce, melancólico, um
humor de meio-sorriso, não de risos” (SCLIAR, 1985b, p. 43).
Como se vê, ademais do humor, a crítica tem apontado dois segmentos para a obra
scliariana: um de fantástico/realismo mágico e outro de realismo puro. Porém, para o
escritor o que pesa mais é o segmento do realismo mágico, pois, como declara: “é com a
fantasia [entenda-se imaginação] que eu tenho a maior afinidade, me sinto melhor
(GOMES, 1989, p. 9). Quando está escrevendo uma ficção realista fica se perguntando
porque não está redigindo um ensaio. Scliar ainda prefere ver o mundo com os olhos da
imaginação, independente de correntes, talvez por uma razão infantil, da qual não
conseguirá se livrar nunca, embora não descarte a possibilidade de perigo ao deslizar
para o realismo mágico e incorrer em uma desvalorização de determinado tema e, em
conseqüência, da visão crítica da realidade, dada a facilidade que esse tema
proporciona. Essa facilidade na descaracterização do tema do realismo mágico, temida
pelo escritor, é a passagem involuntária do realismo mágico para o fantástico, conforme
sua colocação em Gomes.
Tendo-se em vista a presença da literatura fantástica na obra de Scliar, é bom
refletir sobre o porquê da concomitância dessa expressão do real, percorrendo a ficção
scliariana junto ao humor. Uma conclusão possível pode ser amparada na reflexão de
Minois (2003, p. 592) sobre a função do riso no mundo contemporâneo. Para o teórico
do riso, o fato de o próprio absurdo”, antes motivo de escândalo, ter se tornado um
dos motores do cômico atual”, revelando muito da evolução cultural contemporânea,
mostra que a revelação do absurdo como componente fundamental do ser é uma das
marcas do século XX e encontrou uma réplica: “o riso veio tampar esse buraco oco no
tecido da existência”. O século XX realmente morreu de rir do ser e do nada, porém,
como o século morreu, o riso, muito utilitário para ser verdadeiramente alegre, é “um
riso em mutação”.
110
Apesar de tudo que se tem aventado sobre a obra do imortal Moacyr Scliar, faz-se
necessário colocar que seus temas e modo ficcional, vistos assim de forma estanque,
dão até a impressão de algo artificial e estigmatizado. No entanto não há como fazer
análise sem passar por tal limiar, e de certa maneira perigando empobrecer seu percurso
narrativo. Pois, na naturalidade de seu fluir e na concretude de suas palavras, tem muito
mais de enriquecedor e complexo a oferecer, dadas as amarras de sua trama narrativa,
do que em uma inevitável redução analítica.
1.5 A crítica
A produção literária de Moacyr Scliar se justifica, na medida em que ainda não
uma interpretação coerente da brasilidade. Mesmo como escritor da geração dos anos
60, ele se coloca no rol dos escritores que deixaram de contribuir com grandes textos,
capazes de superarem as frustrações do período pós-repressão e marcarem a história da
ficção e da cultura no Brasil. Pois, se o nosso país se perfaz da somatória de muitas
vozes, nem todas se fazem ouvir, em sua integridade, conforme declara o escritor:
“Acho que o Brasil é uma soma de muitas vozes que, por enquanto, ainda se fazem
ouvir muito abafadas, e que, por isso, estão fazendo falta” (SCLIAR, 1989a, p. 46).
Para a crítica, dentre os poucos escritores brasileiros descendentes de judeus a
trabalharem com o tema da literatura da imigração, Scliar demonstra ser o “mais
politizado”, na opinião de Gomes (1989, p. 9). E, o seu olhar luzidio é o “reflexo
mágico que vivifica a palavra e percorre as mais sutis gamas da aventura humana”
(SCLIAR, 1987, p. 6), dando-lhe nutrientes para a construção de “uma obra que agora
conquista destaque ímpar na Literatura mundial” e na literatura brasileira
contemporânea, sediada na imortalidade da Academia Brasileira de Letras.
Os escritores mais genuinamente criativos, segundo a crítica, o aqueles capazes
de cunhar na literatura seu modo peculiar de sentir, pensar e escrever, estabelecendo,
assim, um diálogo franco e original entre o ser-escritor e a entidade-literatura. De
acordo com o que pondera Ismael (1991, p. 4), ao comentar a obra Cenas da vida
111
minúscula (SCLIAR, 1991), no artigo “Cenas de um estilo maior”, Scliar é um grande
escritor, porque faz da imanência da sua “judiedade” a articulação de um intelecto que a
transcende. Com isso a “problemática judaica” passa a ser a de todo o Ocidente, já que
a ruptura com o paganismo afastou o homem da natureza, acabando com a festa
primordial que o mantinha numa alegre confluência”, suas personagens carregam “o
peso de uma privação transmitida inexorável e monotonamente geração após geração”.
Desse modo, conforme pondera o crítico, o escritor instiga, no organismo social, uma
ampla reflexão estética sobre as contradições do judeu da diáspora, no mundo de hoje.
Nas palavras de Scliar (GOMES, 1989, p. 8): “os críticos norte-americanos que
escreveram sobre meus livros detectaram um grão fantasioso que é típico da Literatura
Latino-americana, mostrando a coexistência disso com o componente que eu trago da
minha ascendência judaica, que para eles resultou em uma coisa original”. Portanto, eis
uma fórmula da obra scliariana apontada pelos críticos norte-americanos: grão
fantasioso + ascendência judaica = coisa original. O “grão fantasioso” deve ser
entendido como o realismo mágico presente em sua narrativa; a “ascendência judaica”
deve ser entendida como a fonte de sua obra, o judaísmo; e a “coisa original”, derivada
das duas junções anteriores, deve ser entendida como o humor que perpassa sua
literatura, justamente como uma estratégia para se conviver, suportar e lograr o impasse
absurdo da condição judaica e humana.
Tal fórmula reforça o parecer de Gomes (1989, p. 8), pois considera Scliar “um
dos mais criativos escritores brasileiros desta geração”, uma vez que a busca do novo e
do inusitado, ainda que mais grotescos, muitas vezes, é sua bússola; apesar do escritor
não se considerar inovador e não procurar outros júris para avaliarem suas obras, senão
o seu júri interior e, por isso, procurar escrever o livro que ele mesmo gostaria de ler.
A respeito do grão fantasioso”, ou de acusações sobre sua temática do fantástico,
para a qual Silverman (1982, p. 183) diz que Scliar usa apenas “rememorações pueris à
maneira de José J. Veiga”, o escritor se defende, em uma palestra, em Serra Negra, São
Paulo, em 23 de maio de 2005, justificando que foi apenas um “período” de sua obra,
em que escrever de forma mais alegórica se fazia uma necessidade, devido ao clima da
ditadura getulina.
112
Porém a crítica coloca que Scliar, por fazer parte também do rol de escritores dos
anos 70, período de grande difusão do gênero fantástico, continua sendo um dos
principais representantes dessa vertente ficcional, acrescentando também que esse
extraordinário” não exerce sempre a mesma função, ou tem se alterado ao longo de sua
carreira literária. Na ficção romanesca do início dessa década, segundo os apontamentos
de Zilberman (1982, p. 8), o fantástico scliariano prima por mostrar a não aceitação do
ser com o próprio ser em sua rivalidade entre duas culturas, judaica e brasileira,
funcionando, nesse caso também como economia do discurso narrativo, pois permite o
acesso à interioridade dos agentes, sem que o narrador precise recorrer às técnicas
intimistas do romance psicológico”. Já na prosa de meados dos anos 70, a partir da
publicação de Mistérios de Porto Alegre (SCLIAR, 1976d), mais no gênero conto e
crônica, o fantástico se viabiliza, pela rapidez do conto ligeiro, na atualização da
violência explosiva e moderna, inerente ao contexto citadino, onde a sofisticação
tecnológica da sociedade moderna só faz monstrualizar a primitividade dos instintos
humanos individuais. Aí o extraordinário nada tem de alucinação” ou de “fantasia”,
mas serve para que o leitor, pela horizontalidade de temas e pela verticalidade de seu
trajeto histórico, tenha um quadro real de desenganos sociais, bem como “a
oportunidade de reflexão aguda e crítica” da época e das circunstâncias
contemporâneas.
Tomando como base o conto “Cão” (SCLIAR, 2003b), um exemplo da
primitividade e monstruosidade tecnológica da violência do homem contra o homem,
acredita-se que a personificação da literatura fantástica na obra do autor gaúcho tem se
mantido, revelando a coexistência contraditória e não manifesta das faces racional e
mágica, constituintes da mesma realidade.
De qualquer forma, é posvel perceber que o fantástico, em Scliar, realmente tem
diferentes nuances. Como bem o escritor argumenta, o da época ditatorial, pode-se dizer
que é mais de caráter alegórico e se restringe apenas a esse período, enquanto o pós-
ditadura tem mais um caráter fantástico, no sentido próprio do termo e condizente com
o fantástico atual, o realismo mágico, e é o que predomina em sua produção literária
desde então.
113
Moniz (1982) tem um artigo, intitulado Do símbolo à alegoria corrosão do
significado”, que parte das colocações de críticos como Arrigucci Jr., Lafetá e Vogt
sobre o símbolo na ficção scliariana. Segundo eles, Scliar é o autor do símbolo, mas
nunca atinge o símbolo, pois sempre estraga a alegoria, restando apenas uma profunda
solidão. Ele degrada suas imagens simbólicas no instante de serem alegorizadas. Moniz
justifica esse procedimento alegórico como sendo de transcendência vazia e sem
significado, denominado por Frye de “anti-alegoria” — uma alegoria moderna —, e não
da forma entendida por esses críticos, ademais de ser uma marca de coesão e de
inserção da obra de Scliar no contexto atual. Isso significa não apenas preencher as
lacunas, deixadas pela censura, com símbolos reveladores de experiências totais, mas,
uma vez que “alegoria pressupõe transferência”, significa que o escritor,
compromissado sócio-politicamente em meio a essa energia negativa e caótica
patrocinada pelo capitalismo, usa sua sensibilidade crítica de forma produtiva. Contudo
somente a usa ao se distanciar, por meio da ironia, e ao acreditar nas raras
manifestações de autenticidade, revelando a afirmação da angústia enfrentada pelo
homem moderno na realidade social. Daí o esforço scliariano de recuperar a coesão
entre o signo e a significação da transcendente alegoria, à medida que combina a ela a
auto-centrada e não transcendente ironia.
Quando Couto (1991, p. 8) coloca em uma entrevista com Scliar que ele tem
muito do humor característico de escritores de herança judaica, dando, inclusive, a
impressão de abrir parênteses na narrativa para inserir piadas, o escritor-judeu
argumenta que o escritor “literário acadêmico” tem horror ao anedótico e se leva
demasiado a sério. Mas ele, mesmo acreditando haver uma fronteira muito tênue entre o
literário e o anedótico, não hesita em explorar esse limiar, ainda que corra o risco de
cair do lado do anedótico e de ser criticado de rebaixar o mito, ao explicá-lo ou
avacalhá-lo, diferentemente de Kafka.
(...) o Kafka, quando constrói um livro como “A Metamorfose”, usa aquilo como valor
simbólico, quer dizer, Kafka fala de uma metamorfose, mas ele não explora o ser no qual
o herói se metamorfoseou. Ele nem nos diz se é uma barata ou não... Ele diz que é um
inseto. Agora, eu não hesitaria em estudar essa barata, ver como ela se comporta frente
114
aos inseticidas, quais são as preferências dela e tal, quer dizer, eu avacalharia a barata.
(COUTO, 1991, p. 8).
Na verdade Scliar acha que é “um sinal de boa saúde para o escritor ser cético em
relação ao seu trabalho”, acrescentando que também é criticado por Rubem Fonseca de
não acreditar muito no que faz. Ele concorda com tal acusação, pois como médico
sanitarista sabe que “a literatura também tem a marca do frágil” e não é através da
literatura que o ser humano escapa dessa fragilidade.
Contrapondo os pareceres de críticos como Arrigucci Jr., Lafetá e Vogt ao parecer
de Moniz sobre a alegoria scliariana, nota-se que a análise desta última é pertinente. Ela
interpreta a não sustentação e o rebaixamento do símbolo de Scliar como uma “anti-
alegoria”, sem transcendência, fruto do desencanto do homem contemporâneo, mas que
acopla a ela a ironia como forma de se auto-centrar e de se auto-sustentar, para poder
desafiar essa apostasia. Desse modo, confirma tanto as palavras do escritor, na
entrevista de Couto, ao dizer que se propõe a “avacalhar” o símbolo — daí a moderna
alegoria, peculiar a Scliar, isto é, a sua “anti-alegoria” —, quanto justifica a grande
reincidência da crítica em sempre pontuar que o escritor, por meio da estratégia retórica
do humor, atualiza temas sérios, tirando-lhes o bolor — daí a ironia de Scliar.
115
2 A condição pós-moderna em A estranha nação de Rafael Mendes
Tomar-se-á, nessa etapa do trabalho, o catulo 5: Segundo caderno de cristão-
novo”, de A estranha nação de Rafael Mendes, cujo narrador é o médico Rafael
Mendes, pai do último Rafael Mendes da longa genealogia dos Mendes.
Tal narrador redige esse caderno, contando sua vida desde sua entrada na
faculdade de medicina, em 1929 (SCLIAR, 1983, p. 192), até sua ida para a Espanha,
em 1938 (SCLIAR, 1983, p. 246).
Fazendo um resumo do capítulo 5, tem-se, de modo diverso dos demais capítulos,
uma autobiografia do penúltimo representante masculino da genealogia: o Rafael
Mendes médico. Trata-se do único capítulo escrito em primeira pessoa e por um dos
Mendes, uma vez que os outros oito capítulos são escritos em terceira pessoa e pelo
genealogista, Prof. Samar-Kant, ou, no máximo, em co-autoria com o médico Rafael
Mendes.
Nesse capítulo, o médico conta que, sendo de descendência judaica, apesar de
ignorar por completo tal dado, coma a fazer medicina e logo se vê atraído pela altiva
judia chamada Débora, discriminada por todos da faculdade por ser a única mulher da
turma e uma das poucas mulheres a ter cursado medicina até então. Como Débora
sempre coloca limites no relacionamento deles, a possível paixão ou amor de Rafael
acaba não ultrapassando as fronteiras da amizade. Ele se casa com Alzira, filha de um
fazendeiro amigo do então Presidente, Getúlio Vargas. Segue clinicando e operando
como médico traumatologista, e logo Rafael é nomeado pelo Presidente como Chefe da
Seção de Doenças Infecto-Contagiosas do Estado do Rio Grande do Sul. Devido a essa
condição é convocado pelo sogro e por Saturnino, amigo íntimo de Getúlio Vargas e
rico estancieiro da região missioneira, para averiguar o caso de uma súbita doença que
se espalha entre os índios e seu líder branco — conhecido como o Ruivo — invasores
das terras de Saturnino. Não querendo se envolver no caso, Rafael pede a Débora,
médica da região, para ir até lá examinar os doentes. Ela, eufórica diante da
possibilidade de ser uma doença rara e de poder conquistar reconhecimento em sua
carreira, engaja-se na questão, levando o Ruivo, único sobrevivente dentre os doentes,
para Porto Alegre. Vivendo já no ante-cenário do Estado Novo, os jornais e as pessoas
116
da esquerda aproveitam-se da situação para acusarem o amigo de Gelio Vargas de ter
envenenado um poço usado pelos invasores e, com isso, atacam ruidosamente o regime
político-totalitário do Presidente. Finalmente o doente acaba morrendo, apesar dos
infindáveis e inférteis esforços de Débora e do redemoinho comunista, que também vai
se abaixando. Em 1938, Débora decide ir para a Espanha prestar seus serviços médicos
aos integrantes da Guerra Civil, e Rafael, a fim de se certificar de seu amor por ela,
deixa sua mulher, seu filho, Rafael Mendes, sua clínica e seu cargo de chefia no Estado,
enfim, deixa tudo e também ruma-se à Espanha, morrendo, segundo uma nota
genealógica de seu genealogista, o Prof. Samar-Kand, no navio, ou segundo disseram a
sua mulher, Alzira, na guerra, sendo sepultado em uma vala comum perto de Madrid.
A condição pós-moderna, presente no título, parte da idéia do estágio
contemporâneo atual, portanto implicando algo dinâmico, como se pode ver nas obras A
condição pós-moderna, de Jean Lyotard (1979) e A condição judaica, de Moacyr
Scliar (1985). A obra lyotardiana é tida como um marco tardio do pós-modernismo, por
sua primeira publicação ter ocorrido em 1979 apesar de grande parte dos teóricos
terem tornado evidente sua presença no mundo ocidental desde o final dos anos 60 e
início dos anos 70 —, é o primeiro livro a tratar a pós-modernidade como uma
verdadeira mudança na condição humana (ANDERSON, 1999, p. 33). A obra
scliariana, em sua introdução, o escritor já explica que o tulo implica o pressuposto de
que não se toma o judaísmo como algo intrínseco e imutável, não se tratando de
inevitabilidade ou destino, mas de uma condição mesmo, resultante do relacionamento
de um grupo humano com outros grupos humanos, em diferentes épocas e em diferentes
circunstâncias econômicas, políticas, sociais e culturais (p. 3).
Jameson (1997), ao falar sobre “A lógica do capitalismo tardio”, a fim de se referir
ao conceito cunhado por Howe e Levin, o pós-modernismo”, entende-o como uma
quebra radical, datada de fins dos anos 50 ou começo dos 60, na qual, ao invés de
perspectivas de futuro, tem-se decretos sobre o fim (fim da ideologia, da arte, das
classes sociais, “crise” do leninismo, da social-democracia, ou do Estado do bem-estar,
etc.).
117
A arte é vista como a extraordinária floração final, impulso do alto modernismo,
desgastado e exaurido, mas é na arquitetura que as modificações são mais evidentes e é,
a partir dela, que a concepção de Jameson sobre pós-modernismo começa a emergir.
Como sugere o próprio tulo do manifesto de Venturi, “Aprendendo com Las
Vegas”, a arquitetura pós-modernista é um populismo estético, uma vez que a fronteira
entre alta cultura e cultura de massa se apagou, havendo um enorme fascínio pela
paisagem “degradada” do brega e do kitsch, denunciada com tanta veemência pelos
ideólogos do moderno.
Essa ruptura, porém, é mais ambiciosa e não se restringe apenas ao âmbito da
cultura, mas do social e do político. Inaugura-se um tipo de sociedade totalmente novo,
conhecido como sociedade pós-industrial”, sociedade de consumo, sociedade das
dias, sociedade da informação, sociedade eletrônica ou high-tech. Sua missão é
demonstrar, para seu próprio alívio, que a nova formação social não obedece mais às
leis do capitalismo clássico de Marx, com seu primado da produção industrial e com a
onipresença da luta de classes. Então, o que o economista Ernest Mandel propõe, em
seu livro O capitalismo tardio, não é apenas fazer a anatomia da originalidade histórica
dessa nova sociedade (que ele considera um terceiro estágio ou momento na evolução
do capital), mas também demonstrar que se trata de um estágio do capitalismo mais
puro do que qualquer dos momentos que o precederam.
É com tal idéia condicional e dinâmica de pós-modernismo, inspirada em Scliar,
presente em Lyotard e amadurecida no estágio do capitalismo puro de Jameson, que se
pretende analisar a obra A estranha nação de Rafael Mendes, de Moacyr Scliar, com
o objetivo de mostrar a rasura dos marcos entre alta cultura e as outras manifestações
culturais, bem como a fascinação que esse amálgama imagético desperta em quem a
contempla.
Ademais, pós-moderno não é colocado como sinônimo de contemporâneo, mas
como uma das faces da contemporaneidade — ao lado das outras quatro: modernismo,
vanguarda, decadência, e kitsch, elencadas por Calinescu (1987). Nesse sentido, a idéia
do tempo cristão de “revoluções históricas”, cara ao pós-modernismo, comporta, clico
e espiralmente, um retorno histórico à origem humana, pressupondo um encontro com
Lyotard, no que diz respeito a uma face-estado da contemporaneidade, e com Jameson,
118
ao suscitar a pureza desse estado de coisa, a saber, o capitalismo evoluído em sua
terceira fase.
Pensadores pós-modernos, como Vattimo, Lyotard, Jameson e Baudrillard, entre
outros, segundo Guelfi (1999b, p. 209), “vêm demonstrando um contínuo
enfraquecimento na concepção do ser como sujeito doador de sentido e a dissolução da
idéia de realidade como algo que pode ser racionalmente compreendido e aprisionado
numa representação correspondente”, ao contrário do modo de pensar dos filósofos
modernos. Dessa maneira, se entre os filósofos contemporâneos, verifica-se um
enfraquecimento da noção de ser, muda-se respectivamente a ótica em relação ao ser
humano, ou seja, de um ser forte e dotado do poder hermenêutico e persuasivo da
interpretação circunstancial, passa-se a uma concepção do ser como fraco,
ontologicamento, por se auto-formatar dos fragmentos semiológicos que as
circunstâncias lhe permitem. O ser e seus construtos, agora só o, à medida que passam
pelo império da linguagem, fabricada a partir de interesses e de convenções.
No plano da narrativa, por exemplo, tal enfraquecimento se mostra pela
relativização das produções textuais interrelacionadas. Os textos são tidos como de
concepção unilateral e política, e, de original, têm a forma particular de seu produtor.
De acordo com Guelfi (1999c, p. 26), a narrativa, multiplicada em encaixes até a
exaustão, projeta-se em profundidade, sem uma preocupação totalizante, e “os fatos
surgem como construções de linguagem, o que destrói qualquer ilusão de fronteiras
entre ficção e real, mito e verdade, mundo interior e mundo exterior, literatura e
história”, acabando por haver a contaminação mútua dos vários códigos, antes,
paralelos. também uma desestabilização ontológica, justamente, porque, pautando-se
na consciência pós-moderna, conforme pondera Guelfi (2002, p. 120), a concepção
política se torna difusa: “O poder e a luta são compreendidos como sendo dispersos por
todo o domínio cultural e não apenas localizados nas esferas do estado e da atividade
econômica”.
A análise da obra de Moacyr Scliar, A estranha nação de Rafael Mendes,
pretende mostrar e atualizar alguns ingredientes, amalgamados no texto, reveladores do
fluir da pós-modernidade nas malhas textuais.
119
2.1 Fragmentos/sintagmas justapostos
Harvey (2004, p. 52-53) considera que a ficção pós-moderna se preocupa com a
alteridadee com “outros mundos”. Para a descrição dessa confluência de pluralismos,
fragmentações e autenticidades de outros mundos e de outras vozes, uma imagem
perfeita é a heterotopia foucaultiana por designar a “coexistência, num ‘espaço
impossível’, de um ‘grande número de mundos possíveis fragmentários’, ou mais
simplesmente espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos
outros”. Tal heterotopia traz consigo o problema agudo da comunicação e dos meios de
exercer o poder através do comando, bem como a fascinação pelas novas possibilidades
da informão e da produção, análise e transferência do conhecimento.
São alguns exemplos desses fragmentos e sintagmas, picos também da pós-
modernidade, que, a seguir, serão arrolados, em sua justaposição.
.
2.1.1 A metaficção
Segundo Scholes (1970), ‘metaficção’ termo novo, originado de um ensaio do
romancista e crítico americano William H. Gass (1970) e de prática velha — é aplicado
à escrita, a fim de chamar a atenção para seu status de artefato e seus métodos de
construção, além de questionar a relação entre ficção e realidade, tanto nas estruturas
ficcionais, quanto na possível ficcionalidade existente no mundo fora do texto literário
ficcional. A auto-reflexividade e a dúvida formal postas pela metaficção vêem a
subjetividade fora do romance, e, uma vez que o nosso conhecimento de mundo é
mediado pela linguagem, ela é um modelo útil para se aprender sobre o senso de
realidade”, construída e mantida inteiramente pela linguagem e suas convenções,
portanto, na ficção, ‘meta’ explora a relação entre o mundo da ficção e o mundo fora da
ficção. A metaficção reside na versão dos princípios de incerteza de Heisenberg (1972)
que coloca a impossibilidade de se descrever um mundo objetivo, pois o observador
sempre muda a coisa observada, ou seja, há um dilema: se o metaficcionista pretende
representar o mundo, ele percebe que o mundo não pode ser representado, só se
podendo representar o discurso do mundo. O termo ‘metalinguagem’, definido por
120
Hjelmslev (1961), é uma linguagem que toma outra linguagem como seu objeto ou seu
significante, e a ‘metaficção’, por sua vez, exibe o processo de construção das
convenções particulares do romance, pretendendo criar estruturas ou ficções lingüísticas
alternativas que simplesmente implicam formas antigas de encorajar o leitor a se valer
de seu conhecimento das convenções literárias tradicionais, ao se esforçar para construir
um sentido para o novo texto. A metaficção, de importância ímpar para o romance
contemporâneo, em momento de crise e falência dos valores tradicionais, torna a
linguagem da ficção sempre consciente, ao exibir, exagerar e expor os fundamentos de
sua instabilidade, à medida que questiona e relativiza o conflito de duas vozes, cuja
arena é o texto, portador de linguagens com verdades não eternas, mas de uma série de
construções, articios e teias de sistemas semióticos conectados e não permanentes.
A natureza romanesca de A estranha nação de Rafael Mendes não repousa em
uma forma acabada, como desejaria Lukács (s.d., p. 79-80), pleiteando ser “um
processo” cuja abstração só toma forma ao se desmascarar “lucidamente a si mesma”;
ou, ainda, Lima (1989, p. 103), intencionando mostrar “a autonomia da arte” cujo
significado é o seu desinvestimento por tudo que não seja ela própria”. A narrativa de
Scliar busca outorgar ao leitor a interação com o universo ficcional, fruto, por sua vez,
do contexto extraficcional, apontando-lhe seus meandros e entraves, todos resultado de
um viés da opção do autor.
Embora a ficção scliariana tenha natureza hermenêutica — de “arte da
interpretação” (LIMA, 1983, p. 52) — de si mesma, não se volta apenas para seu
código, mas “no lugar das linhas diferenciais que marcam as fronteiras entre os gêneros,
o texto pós-moderno é intertexto, mosaico de citações procedentes dos mais diferentes
lugares” (OLIVEIRA, 2000, p. 223).
Pode-se dizer que a metaficção, como coloca Paro (1990, p. 218), adquiriu sua
maioridade na pós-modernidade
23
, pois ela se altera e sua ênfase, ao invés de pairar
apenas na “auto-consciência”, recai agora na “auto-reflexão”. A metaficção debruça-se
inteira sobre si, para refletir sobre a confecção de sua ficção, outorgada pela ngua,
23
Enquanto Paro atribui a maioridade da metaficção à pós-modernidade, Pressler (1997, p. 99)
atribui a “metamorfoseda “alegoria” — também, uma forma de debruçar sobre si, contudo, de
maneira “melancólica” —, à pós-modernidade que, por sua vez, não está ainda na maioridade da
metaficção, mas em seu estado de “adolescência”.
121
trazendo à superfície uma forma de ver a realidade ontológica do mundo, tanto do
escritor quanto do leitor, problematizada pelo texto e pelo que está fora dele, além de
condicionada cultural e ideologicamente e mediada totalmente pela linguagem.
Na história e na ficção, a partir das ponderações de Piteri (1997, p. 14), as
convenções da narrativa não são restrições, mas condições que possibilitam a atribuição
de sentido. A ruptura ou a contestação dessas convenções tem por objetivo questionar
noções estruturadoras básicas como a causalidade e a lógica”.
Dessa forma, o romance de Scliar, ao dar mostras de seu feitio — “Muitas vezes, o
comentário narrativo ou um espelho auto-refletor interno (uma mise-en-abyme)
assinalaeste duplo status ontológico ao leitor”.(HUTCHEON, 1985, p. 46) —,
evidencia também o árduo processo de exame e reexame, no caminho da história à
ficção, pelo qual ele deve passar para se constituir como tal. A personagem Rafael
Mendes, por exemplo, sem entender o porquê de sua angústia em sua suave rotina de
recém-casado, começa a procurar auxílio no passado, para entender seu presente, por
meio de leituras hisrico-filosóficas.
Tudo bem, portanto — mas eu me sentia estranho: certo vazio, certa angústia. De
repente me dera vontade de estudar — História, Filosofia — e ficava horas encerrado em
meu gabinete compulsando textos de autores obscuros. Eu nunca fora de muitas leituras;
os amigos até achavam graça. Estás caducando muito cedo, dizia o Micróbio. (SCLIAR,
1983, p. 208).
Contudo, não se deve esquecer de que todas essas convenções narrativas, inclusive
de natureza refletora, como coloca Hutcheon, não passam de estratégias estruturais
doadoras do sentido global da obra, como coloca Piteri.
Segundo Marchese e Forradellas (2000, p. 261)
24
, todo discurso sobre uma língua
é uma metalinguagem. O fragmento da obra dá uma mostra dessa auto-consciência
lingüística. Um jovem filósofo belga da linguagem lamenta essa auto-consciência e a
denomina de adlinguisticidade, conforme lembra Lyotard (1993, p. 14), dizendo que “o
pensamento continental, perante o desafio que lhe lançam as máquinas da fala”, tem
24
todo discurso sobre uma lengua es una metalenguaje.
122
abandonado para estas a preocupação com a realidade” e tem substitdo o paradigma
referencial pelo da “adlinguisticidade(fala-se sobre falas, escreve-se sobre escritos,
intertextualidade)”. Parecer, contudo, contrário ao dos filósofos “mais velhos” da pós-
modernidade, uma vez que a ficção já não pode ser mais o espelho do “real”, conforme
aponta Guelfi (2002, p. 126), e “não será mais uma representação de algo exterior,
debruçando-se sobre sua própria representação”, com personagens “bem construídas” e
coerentes, mas complexas e participativas de sua construção, não tendo expectativas
predeterminadas por estarem à mercê dos discursos que as envolvem.
O romance pós-moderno, talvez, à causa do esgotamento do sujeito, a partir de
uma perspectiva vattiana, experimenta a marca e o preço do papel oportunístico, ao se
infiltrar nos descompassos de outras áreas, como a política, a sociologia, a história; e de
outros momentos, como o passado, perscrutando suas carências e trabalhando suas
necessidades, enquanto objetiva destruir a aura do original e dissolver a idéia do
referente único, por meio de um processo de “adlinguisticidade” (como
intertextualidade, ou seja, o falar sobre falas, o escrever sobre escritos) e “anamnese”
(como análise, ou seja, a procura de desregulação, de elaboração, que se encontram
rarefeitas, mesmo fora da infância do pensamento didático) (LYOTARD, 1993).
Na ficção de Scliar costumeiramente os momentos de reflexão e análise sobre o
constante passar a limpo da história, da filosofia e da genealogia parecem ser aqueles
que procedem de um determinado acontecimento. Em A estranha nação de Rafael
Mendes, parece ser o contrário, pois os momentos que impulsionam o médico Rafael
Mendes a suas pesquisas na História ou na Filosofia, como meio de auto-conhecimento,
o os que se mostram rotineiros, obrigando a personagem, devido à angústia causada
pela rotina, a buscar sentido e preenchimento do vácuo.
Rafael, por exemplo, pára para fazer essas reflexões e essas buscas, após seu
casamento e/ou antes de lhe aparecer o caso médico-político de Ruivo — sobrevivente
infectado por uma doença desconhecida e líder dos intrusos da fazenda do amigo
pessoal de Getúlio Vargas, na região missioneira. O mesmo acontece terminado o caso
que, por sinal, culmina com o golpe do Estado Novo (1937-1945), em novembro de 37,
e a personagem passa a buscar novamente respostas para o presente, tanto no passado da
123
História, quanto no passado da Genealogia, a fim de saber mais a respeito da saga dessa
estranha e perplexa genealogia, aliás perplexidade imanente aos Mendes.
Eu estudava História, estudava muita História. Cada vez mais eu tinha vontade de
conhecer o passado — a ver se entendia o presente. E do estudo da História passei ao da
genealogia quem sou? Quem são meus antepassados? Estudando suas vidas, eu queria
na realidade descobrir quem eu era; queria respostas para as perguntas que me
atormentavam; queria saber o que tinha acontecido, o que estava acontecendo, o que ia
acontecer. Queria trocar a perplexidade pela sabedoria; não, pela paixão. (SCLIAR, 1983,
p. 245).
Percebe-se um entrave entre a História e a falta de conhecimento, pois a pesquisa
dos simples acontecimentos historiográficos mostra-se insuficiente para o entendimento
de questões mais complexas, como o drama e a necessidade de gênesis de Rafael, que
clama não por uma história como mera ‘versão’ dos fatos, reverenciadora dos feitos
heróicos — como diria Nietzsche
25
, os homens atuais tratam com ironia os grandes
interesses, pois, por estarem tão a serviço deles, são incapazes de os levarem a sério —,
mas por uma História que dê conta de transpassar os acontecimentos e analisar as suas
estruturas, como apregoa la nouvelle histoire, isto é, a Nova História.
Retomando um fragmento da citação da p. 208: De repente me dera vontade de
estudar — História, Filosofia — e ficava horas encerrado em meu gabinete
compulsando textos de autores obscuros”, vê-se que Scliar, ao falar sobre a forma de
tecer sua ficção, coloca em pauta uma constatação apontada por Forster (1969, p. 133-
134), para quem “a História se desenvolve, a Arte permanece”, o que salienta o caráter
de verificação da história, bem como o de veracidade e reflexão da filosofia da arte.
A Hisria, como quer Forster (1969, p. 135), “só conduz as pessoas, é apenas um
trem cheio de passageiros”, necessitando, portanto, de algo que a vivifique, que a faça
substancializar-se e efetivamente permanecer, enfatizando, com isso, o monopólio
filofico da supremacia da Arte em detrimento da História; e nas palavras de Gay
25
La ironía de los hombres actuales. Actualmente el procedimiento de los europeos es tratar
todos los grandes intereses con ironía, porque, a fuerza de estar ocupados en el sevicio de éstos, no
tienen tiempo para tomarlos en serio (NIETZSCHE, 1956, p. 108).
124
(1990, p. 175): “por mais que possamos apreciar as histórias de ficção pelas verdades
que revelam, apreciamo-las muito mais pelas mentiras que contam”.
Assim, não descartando a consideração forsteriana e sabendo-se que a tarefa do
romancista é passar pela reescrita dos fatos novos pela via única dos velhos,
adicionando-lhes o mecanismo de sua mente criadora, é bom recorrer a Eco (1995, p.
573) para lembrar que “mesmo à falta de gênio, a imaginação é sempre criativa”. E,
embora a Hisria seja tida, pela convencionalidade, como mais objetiva”, enquanto
que a Arte como mais “subjetiva”, deve-se não perder de vista que, no universo
semiótico em que se vive tanto a História quanto a ficção narrativa, ambas têm o papel
de “senhoras de linguagem, imaginação e reflexão” (DUBY, 1986, p. 8), reforçando-se
a inexorável transmutação dos acontecimentos em fatos transcritos pela mão da
narratividade, ao mesmo tempo em que se dissolve a relação, aparentemente inerente
entre objetividade e verdade.
A metaficção desconstrói para interpretar, e claro que de forma unilateral, fazendo
um reexame das convenções do realismo, sem abandonar tais convenções. Desse modo
descobre, por meio de sua auto-reflexão, qual a forma ficcional mais culturalmente
relevante e compreensível para que os leitores contemporâneos adquiram o
reconhecimento de uma escrita madura e válida para o mundo contemporâneo que
igualmente começa a ganhar consciência precisa de seus valores e práticas construídas e
legitimadas no berço da linguagem cultural. Nela, o leitor é abolido de seu papel de
sujeito hermenêutico e de consumidor passivo do texto, deixando-lhe uma total
liberdade de escolha e de alternativa da realidade ficcional semiotizada.
Barth (1990, p. 96) considera que para o artista modernista o tema é sempre o
processo, enquanto que para o pós-moderno é mais a história de seu meio
26
, parecer
teórico que se confraterniza com a prática ficcional de Moacyr Scliar, pois o romance
scliariano, ao enfocar a escritura de seu código, construído ideologicamente entre autor
e leitor, pelas experiências internas e externas à obra, coloca também em xeque o modo
de se plasmar o substrato de sua ficção, congestionada pela história e pela arte,
26
para el artista modernista el tema es a menudo el processo, para el post-moderno es más la
historia de su medio (BARTH, 1990, p. 96).
125
problematizando ambas, sem menosprezar, nem a experiência historiográfica, nem a
liberdade artística, no traçado de sua trajetória: o romance.
2.1.2 A metaficção historiográfica
De acordo com Hutcheon (1991), no século XIX, antes do advento da “história
científica” de Ranke, literatura e história são consideradas ramos da mesma árvore do
saber. A arte pós-moderna questiona essa separação, pois as recentes leituras críticas da
história e da ficção têm se concentrado mais no que ambas têm em comum. A
verossimilhança entre as duas reside no fato de que são intertextualidades construídas
lingüisticamente, aliás esses são os ensinamentos implícitos da metaficção
historiográfica. Conforme sugere esse tipo de ficção pós-moderna, verdade e falsidade
não são os termos corretos para se discutir a ficção, uma vez que os romances pós-
modernos lembram que não existe uma só Verdade, mas verdades no plural, rejeitando
as pretensões de representação autêntica” e cópia “inautêntica”, e de originalidade
artística e transparência da referencialidade histórica. Apesar de tanto o recorte histórico
quanto a forma ficcional fazerem parte de uma seleção prévia feita pelo autor — daí sua
natureza de sistemas culturais de signos, de convenções de narrativa e de construções
lingüístico-ideológicas —, história e ficção não fazem parte da “mesma ordem de
discurso”, o problema da primeira é a verificação e o da segunda é a veracidade. A
metaficção historiográfica instala e depois indefine a separação entre ficção e história,
isto é, problematiza-as, com intensa autoconsciência, ao narrar o passado. Suas
personagens são atípicas, excêntricas, marginalizadas e figuras periféricas da história
ficcional, nas quais se evidencia o reconhecimento da pluralidade e da diferença.
O médico Rafael Mendes, por exemplo, faz parte diretamente da tentativa do
aparato getulino de manutenção da ordem e de preparação para o golpe ditatorial do
Estado Novo, mas lhe é atribdo um papel de anonimato na história, ao lhe ser dado
uma representação ficcional de não querer se comprometer com a problemática
governamental do Presidente.
126
A mefaficção historiográfica, ainda segundo a mesma autora, apropria-se das
verdades e das mentiras do registro histórico e incorpora esses dados, mas raramente os
assimila, uma vez que ela estabelece uma ordem totalizante, só para contestá-la com sua
provisoriedade, intertextualidade e, muitas vezes, fragmentação radicais. O pós-
modernismo estabelece, diferencia e depois dispersa as vozes e os corpos narrativos
estáveis, utilizando-se da memória para tentar dar sentido ao passado, inclusive, por
meio da paródia, como expressão do desejo de escrever o passado sob um novo
contexto. A linguagem da metaficção historiográfica, em um primeiro vel, refere-se a
outros textos do passado, que realmente existiram, ou seja, à história textualizada, mas
depois problematiza didaticamente a atividade da referência recusando-se a enquadrar o
referente, ou mesmo a reconhecê-lo enquanto tal. Conclui-se, assim, que existe uma
perda de fé na capacidade de se conhecer essa realidade de forma não problemática,
pois o real existe, mas é possível de ser representado pela linguagem, e nesse aspecto
não há diferença entre ficção e história. Esse tipo de arte pós-moderna sugere a auto-
representação externa modernista de forma autoconsciente, porém depois utiliza esse
referente sempre cultural e possuidor de uma ideologia poderosa, porque dependente
daquilo que contesta —, para ressaltar a natureza discursiva de todas as referências
literárias e historiográficas. Na metaficção historiográfica, nós, ao mesmo tempo
espectadores e atores do processo histórico, só tomamos conhecimento dos
acontecimentos ontológicos pela via dos fatos epistemológicos, iniciados com a
narrativização, de modo que a autoridade e a objetividade das fontes e das explicações
históricas se tornam debilitadas e a ficção pós-moderna passa a não aspirar a contar a
verdade.
Santiago (1991, p. 5) confessa que sua geração, a dos pós-modernistas, trata o
modernismo com o maior prazer, e como modo de reação à geração anterior não usa a
negação da tradição pelo veio do deboche paródico, todavia não pode fazer
reverência, se não deixa de existir. Então os pós-modernistas trabalham as brechas,
insuficiências, medos e tabus do modernismo pelo pastiche
27
, como gesto reverencial,
além de suplementar, uma forma de pluralidade, acrescentando que “temos que
conviver e abrir espaço para as pessoas que não pensam como nós. Enquanto
27
O tema pastiche será tratado mais adiante.
127
intelectual, é meu dever lutar para que as minorias falem. Não com minha voz, mas por
sua própria voz”.
É nessa fresta da reverência e da análise problemática que se insere o romance de
Moacyr Scliar, pois o escritor toma as requias textualizadas da história da gestão
getulina, de 1929 a 1938, que antecedem o Golpe do Estado Novo (1937-1945), além da
lenda de Sepé Tiaraju, nascida no contexto da Guerra Guaranística — mesmo a
narrativa fantástica pode competir com o registro oficial como um veículo de verdade
histórica
28
—; de um caso médico-político de Ruivo, talvez, o porta-voz e agitador
indígena, pseudodenominado B. Traven; e de fragmentos de artigos de revistas médicas
sobre doenças raras, contagiosas e febris com manchas na pele, a fim de manufaturar
sua ficção.
Essa, por sua vez, pode ser tomada como um exemplo de vários textos e contextos
que dão origem a um outro texto, feito de intertextualidade, canibalismo e metatexto,
como coloca Connor (1992, p. 45) a respeito do jogo puro e aleatório de significantes,
denominado pós-modernismo, em que já não se produz obras monumentais do tipo
modernista, “mas [se] rearranja sem cessar os fragmentos de textos preexistentes, os
blocos de construção da produção social e cultural mais antiga, em alguma nova e
exaltada bricolagem: metalivros que canibalizam outros livros, metatextos que unem
pedaços de outros textos”.
Privilegiar a intertextualidade como estratégia de criação literária é uma das
características relevantes da literatura pós-moderna. Calvino (1999, p. 266), em uma
nota da edição italiana de Se um viajante numa noite de inverno, enfatiza: “Mas,
sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros,
em relação e em confronto com outros livros”.
A verossimilhança lingüística da história, da ficção e dos outros gêneros textuais
revela apenas mais uma forma de se redatar o passado, portanto, perguntar se essa
reescrita é verdadeira (“objetiva e histórica”) ou falsa (“subjetiva e ficcional”), já não é
mais procedente. O que esna pauta da discussão pós-moderna não é a Verdade única,
mas as verdades plurais de alguém, proferidas de um certo lugar, e enriquecidas pela
28
Conversely, fiction, even fantastic or apocryphal or anachronistic fiction, can compete with the
official record as a vehicle of historical truth (MCHALE, 1987, p. 96).
128
narração do ressaibo de um “‘realismo’ derivado do choque da percepção desse
confinamento e da consciência gradual de que estamos condenados a buscar a História
através de nossas próprias imagens pop e dos simulacros daquela história que continua
para sempre fora de nosso alcance”, pois o passado como referente” é, aos poucos,
colocado entre parênteses e, por fim, desaparece de vez, só restando textos em nossas
mãos (JAMESON, 1997, p. 52).
As narrativas pós-modernas embaralham, de propósito, as fronteiras entre história
e fião. Contudo há autores que vêem, em tal propósito, uma falta de originalidade,
conseqüente do cansaço provocado pela reflexão sobre o real e suas representações,
uma vez que elas são sempre a reescritura de outro texto, reescrito a partir de outro
texto, e assim retrospectiva e sucessivamente, perdendo-se a aura modernista.
Peixoto (1989a, p. 4), por exemplo, considera que, “nessa sobreexposição, nada
mais tem mistério, a proximidade é absoluta. Nessa hiper-realidade, tudo o que é visível
se converteu em clichê, repetido à exaustão. Tudo o que se mostra é imediatamente
vulgarizado”.
Desse modo, a cópia que, segundo Gumbrecht (1988, p. 111), significava riqueza
oratória e era uma palavra absolutamente positiva, na Antigüidade Clássica e na Idade
dia, passa a denotar saber em demasia, pois “onde não existe uma inventividade
exclusiva, há citações, citações, citações”, ressaltando ainda mais essa falta de
originalidade, ao também se levantar a hipótese de que, se “a consciência da
possibilidade de criar algo novo está perdida”, essa questão contribui para haver, na
produção artística, um momento de grande nostalgia e de vontade de originalidade, de
criatividade, de imaginação, etc (...). E quanto mais tivermos esta consciência, mais
vontade teremos de poder ser produtivos”.
Faz-se necessário esclarecer que não é esse o conceito de original entendido pelo
pós-modernismo. A originalidade, da forma como deixam transparecer Peixoto e
Gumbrecht, é a prezada pelos modernos, isto é, no sentido de texto primeiro, enquanto
que, contrária a ela, a concepção pós-moderna visa o texto criado por meio de uma
imaginação que tudo ilumina, à maneira peculiar de cada artista, e aí assiste sua maneira
original. Logo, o artista moderno, concebido como demiurgo criador de realidades
novas, independentes de tudo que foi criado até então, não mais existe ou nunca existiu.
129
Connor (1992, p. 106-107) relata que McHale vê a poética pós-moderna como
uma ruptura com a decorosa hierarquia de neros literários, em prol de um carnaval de
estilos, onde reina uma perturbadora cacofonia de discursos conflitantes e
“heterotopias” geográficas incompatíveis, cabendo à literatura, elasticamente, abarcar
toda essa subversão. Pois bem, a literatura, em sua função criadora, acampa-a, mas não
sem deixar visível essa incompetência nos veios da própria linguagem literária, além de
se aproveitar dela para fazer sua repercussão a respeito dos metadiscursos cacófonos
que funcionam, mais ou menos, como diferentes vozes, responsáveis por tecerem
reflexões sobre o papel da linguagem na construção das verdades semiotizadas.
Comparada a McHale, Hutcheon não concebe tal poética de forma tão estável,
mas a inscreve sob o termo “metaficção historiográfica”, para designar a reflexão
consciente sobre a condição da ficção, a impossibilidade de uma distinção clara entre
ficção e história, a ficcionalidade narrativa da própria história, mas sem recair na mera
auto-absorção técnica, ao devolver a auto-reflexividade co-extensiva ao mundo real-
histórico.
No cerne desse paradoxo de mundo real metamorfoseado em literatura, portanto
ficção e história fazendo parte das duas pontas do mesmo plano representacional, e uma
sendo a co-extensão da outra — “se devo demonstrar que tudo é interpretação, não
posso considerar um objeto que é dado fora da interpretação” (VATTIMO, 2001, p. 6)
—, A estranha nação de Rafael Mendes ilustra bem o procedimento da metaficção
historiográfica, ao instalar primeiro os diversos discursos, para depois indefinir a
separação entre eles.
Na obra se demole a presunção da história de ser “uma narração que tem ainda por
cima a pretensão de ser uma ciência, e não simplesmente um romance” — (LYOTARD,
1993, p. 33) —, isto é, há uma problematização autoconsciente da redação tanto
historiográfica, quanto ficcional.
Eu estudava História, estudava muita História. Cada vez mais eu tinha vontade de
conhecer o passado — a ver se entendia o presente. E do estudo da História passei ao da
genealogia quem sou? Quem são meus antepassados? Estudando suas vidas, eu queria
na realidade descobrir quem eu era; queria respostas para as perguntas que me
130
atormentavam; queria saber o que tinha acontecido, o que estava acontecendo, o que ia
acontecer. Queria trocar a perplexidade pela sabedoria; não, pela paixão.
Neste empreendimento, contava com a ajuda de um bom amigo, um genealogista
que por acaso conheci, e que se transformou não apenas num consultor, mas num
verdadeiro guia espiritual. Esse homem me revelou, com a maior tranqüilidade, coisas
assombrosas. Descender do profeta Jonas — quando é que eu imaginaria isso? E no
entanto, de que outro profeta poderia eu descender a não ser do anito Jonas? De que
outro médico, se o do perplexo Maimônides? A eles fui me afeiçoando; sobre eles
escrevi ginas e ginas, reais ou imaginárias, emocionando-me com suas aventuras,
sofrendo com suas atribulações. Tentando entender a perplexidade deles [de todos os
Mendes]. A minha perplexidade. (SCLIAR, 1983, p. 245).
Nota-se que a personagem, sob o ponto de vista do qual é relatada a autobiografia,
embora em co-autoria com o Prof. Samar-Kand, foge do centro das convenções
narratológicas. Ela é dependente de uma outra personagem, o genealogista, e só tem
contato de longe com a história oficial, cujo herói é a figura do Presidente Getúlio
Vargas, por causa dos amigos deste: o Doutor Saturnino, seu sogro e o mulato do
Departamento de Imprensa e Propaganda. Aliás tal fato faz de Rafael um autômato
dessa oficialidade, pois apesar de o tornar seu explorado, já tem o pacote de seu fim
pronto pelas malhas de seu discurso. Ele é apenas mais uma de suas vítimas anônimas
— o próprio nome Rafael Mendes, repetido exaustivamente em quase todos os
membros da genealogia Mendes, equivale ao mesmo ou a nada, daí se falar em
anonimato.
É possível perceber uma mudança de foco narrativo, já que se prioriza, na obra,
não mais as “metanarrativasou as grandes narrativas, abordando temas historiográficos
tidos como grandes por pretenderem ser emancipadores e metafísicos, além de gerarem
todos os outros temas e naufragarem as especificidades culturais na violência gramatical
do nós”, como coloca Lyotard, mas as “micronarrativas”, pequenas no sentido de
promover toda sorte de diversidade cultural, mais de acordo com as pessoas gramaticais
“você”, em sua especificidade, e “ela”, praticando, assim, o exercício cultural da
tolerância, em relação também a outras culturas, focadas por outros pontos de vista.
Pois pela via de um argumento lingüístico da palavra “nós”, explicita-se que esse “‘nós’
131
(...) é uma forma de violência gramatical, que visa negar e obliterar a especificidade do
‘você’ e do ‘ela’ de outras culturas através da falsa promessa de incorporação numa
humanidade universal (...). Em vez disso, devemos acolher e promover toda forma de
diversidade cultural, sem recorrer a princípios universais” (CONNOR, 1992, p. 37).
Embora a metaficção historiográfica demonstre que a ficção é historicamente
condicionada e a história é discursivamente estruturada” (HUTCHEON, 1991, p. 158),
como se pode ver no próprio excerto do livro de Scliar, o uso e abuso que se faz da
intertextualidade tanto das verdades quanto das mentiras só tem natureza provisória e
paródica do passado reeditado sob o signo do artifício e da instabilidade dessa parte da
Era de Vargas.
Exemplo semelhante ocorre no livro Inês é morta, de Roberto Drummond
(GUELFI, 2002, p. 127), situado no período da ditadura militar. Na obra não há
quaisquer objetivos didáticos, nada deseja esclarecer. Nem pretende levar o leitor a
compreender os fatos, como se eles tivessem alguma essência passível de ser capturada
por algum espírito lúcido, ou elucidada por um narrador experiente, testemunha
fidedigna de eventos a serem devassados por uma memória consciente”.
Rafael, em busca do “ser”, procura-o em meio a suas experiências individuais,
derivadas da cultura circundante, e nos livros de história e genealogia, ou seja, busca-o
sempre envolto em certa ideologia que, mesmo fazendo parte da historiografia, possui
verificações parciais, devido a seu caráter fatalmente narrativo. Isso instala o
questionamento permanente das fontes e das explicações obtidas — faz-se, nesse caso,
“uma história a contra-pêlo”, no dizer de Santiago (1991, p. 4) —, pois a obra histórica
ao executar “essa mediação, segundo sua percepção mental e sua maneira, o historiador
trabalha sempre com atos lingüísticos, ou seja, poéticos” (WHITE, 1995, p. 21).
Assim, a ficção scliariana, fazendo uma intersecção com a história pelo sistema
semiótico, comum a elas e a qualquer dos discursos do mundo, pede o mesmo que
Nietzsche: a mobilidade geral da vida e do universo, a existência de verdades apenas
relativas, que são aqui-e-agora e que podem não ser ali-e-depois” — (COELHO NETO,
2001, p. 110) —, em uma contínua e infinita performance.
132
2.1.3 A morte do sujeito
“A morte do sujeito” Foucault sustenta a tese do “fim do sujeito”, “fim do
autor” (COELHO NETO, 2001, p. 147) —, ou o fim do individualismo, como diz
Jameson (1993, p. 30), em uma linguagem mais convencional, refere-se, na verdade, a
duas posições. A primeira se contenta em dizer “sim, numa certa época, na era clássica
do capitalismo competitivo, no apogeu da família nuclear e da emergência da burguesia
como classe social hegemônica, havia uma coisa chamada individualismo, sujeitos
individuais”, porém, hoje, na era do capitalismo empresarial, do chamado homem da
organização, da burocracia comercial e estatal, e da explosão demográfica, esse antigo
sujeito individual burguês já não existe”. A segunda posição, mais radical e pós-
estruturalista, acrescenta que “não só o sujeito individual burguês é coisa do passado,
como também nunca houve esse tipo de sujeitos autônomos”, sendo, apenas um
construto mistificado pela filosofia e pela cultura que procuraram convencer as pessoas
de que elas tinham” sujeitos individuais e possuíam essa identidade pessoal única.
que se admitir, segundo Jameson (1997, p. 42), o descentramento do sujeito,
ou psique, antes centrado”, mas que, em verdade, nunca passou de “miragem
ideológica”, sujeito tido por esfacelado, porém, apenas, desmistificado por integrar e
continuar integrando uma realidade da aparência”, uma vez que, como afirmava
Heidegger (VATTIMO, 2001, p. 6), a casa do ser é a linguagem, porquanto o ser se
como evento acima de tudo lingüístico”.
O ser autônomo e auto-suficiente, já fragmentado desde o modernismo, no pós-
modernismo, pode-se dizer que é visto como sendo ainda mais estilhaçado, à causa da
invasão das divisas entre imaginação e realidade, dentro e fora do sujeito, dentro e fora
da ficção, etc., além da contaminação avassaladora da cultura de massa, anuladora de
todos os esforços modernistas em busca de uma expressão autêntica e única, isto é,
original, embora fragmentada, do ser. Nota-se, pois, que o sujeito continua mais fendido
do que nunca, e, em conseqüência, sua capacidade criadora, assim como ele próprio, é o
eco ideológico de seus construtos culturais formadores.
Rafael Mendes, produto ficcional de Scliar, ilustra bem esse sujeito automatizado
e fissurado culturalmente.
133
Estava tudo bem. Tudo bem? Na Espanha havia uma guerra civil, prelúdio, ao que
todos diziam, de um conflito mundial. No Brasil, depois do fracasso do levante comunista
de 1935, Getúlio Vargas consolidava sua posição, mas em muitos Estados — no Rio
Grande do Sul, inclusive — conspirava-se para derrubá-lo. Nada disso me dizia respeito,
naturalmente, e poderia estar tudo bem mas não estava tudo bem. As sensações, os
pressentimentos, estranhos acontecimentos. Que música é essa que cantas quando
embalas o Rafaelzinho? — perguntou-me um dia Alzira. Não soube responder, não soube
dizer que cantiga era aquela, Duerme, duerme mi angélico / hijico chico de tu nación. Lia
muito; lia e trabalhava. Operar me distraía; a aparição do osso branco entre as carnes
sangrentas era consoladora, apaziguadora. (SCLIAR, 1983, p. 210).
Nota-se que o sujeitoteima em continuar ocupando uma posição numa realidade
da qual pensava fazer parte, mas acaba percebendo que ela já não é mais a sua. Desse
modo, o que sempre aparentemente lhe parecera estar bem, devido a sua falta de
percepção, agora é questionado. À luz da exterioridade dos contextos sócio-políticos,
como o da Guerra Civil Espanhola, são implodidas a auto-suficiência e a
intransponibilidade desse papel social do qual Rafael, antes, pensava ser o dono perene.
O “sujeito” já não se reconhece como tal, bem como não é mais capaz de dar
conta da aura hermenêutica que sobre ele pairava, isto é, não é mais capaz de identificar
e interpretar suas pprias produções, como Rafael que não está apto nem para falar a
respeito da origem da canção entoada por ele mesmo ao embalar seu filho.
A “função-autor” ou a “estrutura-autor”, de acordo com Foucault, não passam,
segundo ele, de modismos culturais, automatizados e manuseados pelo ready-made”,
tendo-se em vista que, a partir de Foucault, e de Duchamp, segundo Coelho Neto (2001,
p. 156-157), “nenhum autor se sente preso a um mesmo estilo, a um mesmo modelo, a
uma mesma voz”, sendo possível ver com nitidez a “quimera da origem” e a pureza dos
estilos, distanciadas do estruturalismo, à medida que cada momento histórico não é uma
totalidade homogênea, com sentido único, e distanciadas do marxismo, à medida que
não é uma continuidade histórica ideal, composta de cadeias de causalidades, portanto a
autoria contemporânea, diferente do século XIX ou XVI, “será uma iia da autoria que
não mais elimina de uma obra aquilo que contraria sua linha central, será uma idéia da
autoria que não se preocupa mais com traçar o retrato de uma suposta unidade da obra.
134
Será, mesmo assim, uma idéia de autoria”. E é, mesmo, só uma idéia de autoria, visto
que a única coisa que o sujeito” pode fazer é uma eterna reorganização lingüística de
suas experiências e das experiências de outrem.
Pelo fragmento scliariano, percebe-se que o sujeito” se encontra multifacetado,
diluído e problematizado, em meio a um texto que põe em xeque suas próprias marcas
de produção internas e externas, exemplificadas pelas leituras feitas, pela música
cantada e pelos boatos lidos e ouvidos por Rafael. Devido à contaminação dos vários
códigos e discursos, paradoxais ou não, que o compõem, como a história antiga e
contemporânea e a medicina, isenta-se do jugo das interpretões bem acabadas,
refazendo-se interminavelmente, como explica Guelfi (1999b, p. 210), dos “fragmentos
de espelhos que refletem as máscaras do cotidiano”, de forma que, em sua pós-
modernidade, “o texto permite ao leitor perceber que a subjetividade se constrói
permanentemente por meio de códigos, textos, imagens e outros artefatos culturais”.
Assim, Huyssen (1991, p. 69) lembra que a questão da subjetividade perdeu o
estigma e já não implica cair na armadilha da ideologia burguesa (...): o discurso da
subjetividade foi liberado de suas amarras no individualismo burguês”, proclamando o
vigor do ressurgimento de questões como a subjetividade e a autoria, na atualidade, na
qual o que importa é saber quem está discursando e, a partir, de qual circunstância.
Também, não se deve esquecer do parecer da noção de sujeito como algo
oscilante, descrita por Morin (1996, p. 54-55), de que o indivíduo, ou seja, o sujeito tem
uma autonomia que, por sua vez, é extremamente relativa e complexa, pois, ao mesmo
tempo em que o sujeito é o tudo e “é o centro do mundo”, representando ele sozinho um
universo, ele é o nada e é minúsculo, efêmero” na imensidão do universo. Esse pensar
o sujeito, em meio a uma ontologia dinâmico-conflitante entre o finito e o infinito,
enfim, no recriar-se a partir da extinção e da criação, talvez, vá ao encontro de
ponderações, como a de Guattari (1996, p. 131), pois, sobre “O novo paradigma
estético” e processual dos dias atuais, ele também vê uma tensão em direção a essa raiz
ontológica da criatividade, envolvendo a composição de agenciamentos enunciativos
que atualizam a possibilidade conjunta de dois infinitos, o ativo e o passivo”, mas essa
tensão não é de “nenhuma maneira congelada, catatônica ou abstrata, como a dos
135
monoteísmos capitalísticos, mas animada de um criacionismo mutante, sempre em
processo de reinventar-se e também sempre a um passo de perder-se”.
Esse “sujeito”, representado e atualizado em Rafael Mendes, do qual se tem
apenas uma noção e cuja consciência o deixa ainda mais enfraquecido, conforme se
pode ver, faz com que, ao se perder em status, ganhe-se em criatividade, uma vez que
sua desestabilização é também de certa forma sua necessidade de alguma afirmação:
não é o ser que possui a hermenêutica, senão a hermenêutica que possui o ser.
2.1.4 A realidade como representação: espetáculo, simulacro e pastiche
2.1.4.1 O espetáculo
Debord (1997), em seu livro A sociedade do espetáculo, defende a tese de que o
nosso tempo prefere “a imagem à coisa”, a cópia ao original”, “a representação à
realidade”, “a aparência ao ser”, considerando a ilusão como sagrada e a verdade como
profana. O espetáculo, a vida e o modelo da sociedade atual cuja essência surge da
realidade do espetáculo, está nas relações sociais mediadas por imagens, que se
transformam em sua principal produção: os objetos, e a ilusão religiosa divina é
reconstruída sobre as bases da materialidade terrestre. Preocupando-se com o
monopólio da aparência e da réplica, o espetacular funciona como o instrumento de
unificação social, em que o importante é o desenrolar e não o fim, porém essa união”
de multidões solitárias, tomada sob o aspecto restrito dos “meios de comunicação de
massa”, faz-se como separado e nada tem de neutra. O espectador, por sua vez, não se
sente em casa em lugar nenhum, porque o espetáculo está em toda parte, há um grande e
permanente espetáculo mundial, onde o tempo é substituído pela publicidade do tempo
e a vida real é substituída pela representação mais realmente espetacular da vida,
consumida ilusoriamente pelo espectador/consumidor. A unidade da miséria do
proletariado é camuflada sob a embalagem furta-cor do espetáculo, acumulada a tal
grau, que se torna imagem.
No livro A estranha nação de Rafael Mendes, o caso médico-político de Ruivo,
der branco dos invasores indígenas das ruínas da Igreja de São Tolentino na região
136
missioneira, onde se localizam as terras do estancieiro Saturnino, amigo de Getúlio
Vargas, é uma exímia ilustração espetacular. Ruivo, o único sobrevivente de uma
doença que parece ser contagiosa, é uma verdadeira vitrine para toda sorte de interesses
e até de desinteresses, expressados por meio de desabafos, denúncias, críticas e
covardias.
Dezenas de pessoas se aproximam do caso por interesses/desinteresses diversos,
por exemplo, na urgência de reaver suas terras, como o Dr. Saturnino, na obrigação de
defender seu amigo Saturnino, como o sogro de Rafael Mendes, na intervenção à
conspiração para tirá-lo do poder, como Getúlio Vargas, no mandato de veto à
democracia, como o mulato do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), na
divulgação de material importante, como Kurt Schnitzel, na glória da valorização na
carreira médica, como Débora, na necessidade científica de se testar a penicilina, como
o Dr. Micróbio, em material de sessão solene da Faculdade de Medicina, como o Dr.
Brito, nos ressentimentos trabalhistas sob pretextos comunistas, como o Dr. Artêmio,
nas agitações comunistas contra a ditadura de Vargas, como os estudantes da Faculdade
de Medicina, na denúncia jornalística e intimidação, como o jornalista do Alerta, no
caso amoroso com o jornalista do Alerta, como a enfermeira-chefe da enfermaria, e na
necessidade de se acovardar de confusões, como o Dr. Rafael Mendes.
Uma imagem de espelho em toda sua extensão, o caso médico-político de Ruivo é
um exemplo de espetáculo. Na concepção de Jameson (1997, p. 57), o espectador pós-
moderno é chamado a fazer o impossível: “ver todas as telas ao mesmo tempo, em sua
diferença aleatória e radical”. Nessa forma reificada de ver o mundo, tanto Ruivo,
tomado como personagem de um grande e multiforme espetáculo, quanto os seus
espectadores, transformam-se nos fragmentos de eus-objetos de suas próprias imagens,
construídas a partir das crenças e pareceres que a mídia bombardeia naquele que
contempla suas imagens, apresentadas a partir de um ponto de vista bem interesseiro,
por um lado, e relativo, por outro. E, conforme a colocação de Peixoto (1989b, p. 2),
“neste universo saturado de imagerie, os mitos são tão fortes que usurpam nossa própria
identidade. A vontade de ser quem se quiser em qualquer lugar acaba resultando em não
ser ninguém em lugar nenhum. A proliferação das imagens leva a uma fragmentação do
eu, a uma espécie de múltipla esquizofrenia”.
137
O universo imagético da obra pós-moderna de Scliar deixa ver a ação como
imagem representacional do “gesto ensaiado daqueles que, num palco, comandam o
espetáculo”, segundo menciona Guelfi (1994, p. 202), ao analisar “o tempo do clichê”,
a estética do olhar” e “as perspectivas pós-modernas da ficção”, já que se perdeu
totalmente a aura dos objetos sagrados, originais e únicos, símbolos de essências e
portadores de eternidade” e, em conseqüência, “a obra de arte pós-moderna não se
dirige ao espírito, mas aos olhos do espectador”.
Fica evidente que, na montagem das cenas desse espetáculo presente em A
estranha nação de Rafael Mendes, cada cena faz parte da mesma representação, por
sua vez, unificada em separado, como coloca Debord (1997, p. 44), e em cujo
espetáculo não se exalta os homens e suas armas, “mas as mercadorias e suas paixões”.
Afinal, cada espectador monta e exalta a imagem de sua mercadoria, com base em seu
interesse reificador e apaixonado, de maneira que o espetáculo não chega a lugar
nenhum que não seja ele mesmo.
Ruivo morreu naquela manhã (...).
(...)
A necrópsia, que podia esclarecer algo, o foi realizada. Naquela mesma noite
roubaram o corpo do necrotério, onde seria necropsiado, no dia seguinte; o guarda disse
que não viu nada. Saturnino e o jornalista tornaram a trocar acusações, mas a coisa foi
morrendo. (SCLIAR, 1983, p. 244-245).
De certa forma, a vida, ou seja, a experiência humana transforma-se em espetáculo
de imagens mercadológicas, fabricado para a obsessão dos olhos e do consumo, com a
necessária duração do tempo de um evento programado até que os interesses se dêem
por esgotados, embora encenem sempre um autismo generalizado e sem saída.
Na obra scliariana, essa realidade espetacular
29
, visível no palco das imagens, para
fazer sua montagem, usa os mais diferentes e inusitados meios de comunicação de
massa, como pesquisas bibliográficas, bilhetes, artigos jornalísticos, manuscritos de
29
Convalida-se tal hiper-realidade em concepções como o de Merquior (1980, p. 20), para quem “o
alegorismo pós-moderno é de cunho predominantemente hiperreal e metonímico”.
138
memória, lenda e história. Ligando tal diversidade de apresentação ao estudo do
contexto da cultura pós-moderna, feito por Coelho Neto (2001, p. 219), percebe-se
comportar uma realidade pós-moderna que “é antes de mais nada uma realidade pós-
mediática (pós-advento dos meios de comunicação de massa e de toda a informática) e
que isso teria trazido um estado geral de desestetização e uma generalização do kitsch,
do mau gosto, do vulgar, ao se fazerem concessões à incultura da massa” .
Portanto, esse exemplo de “sociedade do espetáculo”, em Scliar, mostra, pelas
vias do espetáculo, sua performance, cuja resultante é uma realidade espetacular, ou
seja, uma hiper-realidade, exagerada e comprometida ideologicamente por natureza.
2.1.4.2 O simulacro
Pensando-se no exemplo baudrillardiano da mais bela alegoria da simulação,
escrito por Borges, em cuja fábula, os cartógrafos do Império desenham um mapa tão
detalhado que acaba tendo seu exato tamanho, e, semelhante à ruína do Império, o mapa
também vai se desfazendo, de forma que o duplo do mapa acaba por confundir-se com
seu real territorial; nota-se que essa abstração já não é mais possível. Conforme pondera
Baudrillard (1981, p. 8), tal simulação é impossível, uma vez que o simulacro atual não
tem mais referente, apenas simula “um real sem origem, nem realidade”, um “hiper-
real”. Logo, ao contrapor os sentidos de “dissimular” (fingir não ter o que se tem) e
“simular” (fingir ter o que não se tem), Baudrillard parte da irreferencialização do signo
por trazer à superfície sua ausência de significado.
Essa hiper-realidade, veiculada pela mídia, que, de acordo com Fawcett (1989, p.
4), é o sexto elemento depois da água e do fogo, fornece fetiches, fantasias, realidades
transformadas em espetáculos — as pessoas querem e só conseguem ver as imagens da
realidade, a realidade das imagens e não a realidade —, a esse real impossível, Fawcett
chama de “fetiches-simulacros”, porque “são novas realidades e não cópias degradadas
ou imitações baratas ou ilusões, falsificações”.
Essa hiper-realidade é a resultante saliente do recorte feito à realidade e, por isso,
bastante alterada e até exacerbada por exibir o real avultado, devido ao efeito
macroscópico em parte dele. Desse modo, o hiper-realismo brilhante tem o efeito, aos
139
olhos de quem aprecia a imagem, de uma mirada reluzente, cujo único fundamento é a
imagem de recortes fotográficos que um dia pertenceu à realidade, porém, por fazer
parte, agora, não mais da realidade, mas do auto-relevo do real, portanto da ênfase da
realidade, tida apenas para mostra experimental e saliente de uma vida já morta, torna-
se cada vez mais vivificada e alucinante nas estratégias e nos propósitos de sua própria
imagem. Para usar as palavras de Coelho Neto (2001, p. 219), “antes [nos séculos
anteriores], o que era importante aparecia no jornal; agora, o que aparece no jornal é
importante”.
Por meio da obra de Scliar, é possível tomar, diferente da ilustração de simulação,
proposto na fábula borgiana, exemplo de simulacro bem aos moldes pós-modernos, isto
é, o espetáculo de um mundo convertido em sua própria imagem e sagaz de um
“historicismo” aleatório. Aliás, tal simulacro, segundo Jameson (1997, p. 45), em nada
se difere da concepção de Platão, o qual é a cópia idêntica de algo cujo original jamais
existiu”. A respeito da vida na atualidade, Gumbrecht (1988, p. 114) pondera que “é
precisamente como se vivêssemos com a lembrança de um cosmos cheio de sentido mas
que já não existe”.
O excerto ilustra um simulacro dos muitos aos quais a mídia doa e legitima a
existência, e dos quais o aparato político-social se incumbe de sustentar e aclamar o
império do teor do simulacro enquanto tal.
Estendeu-me um grosso envelope. Continha um exemplar do Diário Oficial que
circularia no dia seguinte. E ali estava minha nomeação para o cargo de Chefe da Seção
de Doenças Infecto-Contagiosas do Estado. Olhei-o sem entender.
Foi o próprio doutor Getúlio que autorizou disse, com satisfação. Estou
tratando disto há tempo... Mas não te falei nada. Queria te fazer uma surpresa.
Eu não sabia o que dizer. (...) disse que o era cargo para traumatologista,
depois, eu nem sequer tinha tempo (...).
Sei que não tens tempo, mas nem precisas ir , a coisa está toda arranjada:
há quem tome conta daquilo. É um cargo importante e além disto, representa uma
segurança para o futuro.
(...)
140
Na manhã seguinte dirigi-me à Seção de Doenças Infecto-Contagiosas (...).
Aguardavam-se todos os funcionários; bateram palmas à minha entrada, o que chegou a
me constranger, mas não deixou de me surpreender agradavelmente — eu nunca tinha
sido aplaudido antes (...). Levaram-me até a minha sala, trouxeram-me uns papéis para
assinar — nada de importante; quando conclui, disse o oficial administrativo:
— Pronto, doutor. O senhor está livre.
No dia seguinte foi a mesma coisa; e no outro, e no outro. Meu sogro tinha razão: a
coisa não me daria trabalho nem me tiraria tempo. E me conferia prestígio: na primeira
vinda de Getúlio Vargas ao Estado, eu figurava entre as autoridades convidadas, e minha
foto apareceu na primeira página do jornal. (SCLIAR, 1983, p. 208-209).
Rafael, sem ser, nem saber e nem querer, torna-se o chefe da Seção de Doenças
Infecto-Contagiosas do Estado do Rio Grande do Sul, só porque a amizade de seu sogro
com o Presidente da República patrocina esse não ser que se torna ser, ou melhor, um
ser vazio e desprovido de suas reais atribuições, mas que, ainda é e continua sendo com
mais intensidade, pelo poder da representatividade.
Inclusive, segundo o que aponta Connor (1992, p. 52), Baudrillard diz que a
representação passou, ao longo da história, à pura simulação, uma vez que, no primeiro
estágio, o signo é reflexo de uma realidade básica”; no segundo, o signo “mascara e
perverte uma realidade básica”; no terceiro, o signo “mascara a ausência de uma
realidade básica”; e no último estágio, o signo “não tem relação com nenhuma
realidade: ele é o seu próprio simulacro puro”.
Pelo que se pode perceber, no fragmento, acima, extraído da obra, Rafael Mendes,
apesar de médico traumatologista, é nomeado chefe da Seção de Doenças Infecto-
Contagiosas do Estado do Rio Grande do Sul, um cargo, no mínimo, para sanitarista,
apenas por causa da amizade de seu sogro com o Presidente Getúlio Vargas. Ademais,
essa representação entra na legitimidade pela poder de representatividade do Diário
Oficial, veiculado pela mídia. O cargo, de grande importância social, além de não
condizer com a área médica de Rafael, não lhe toma tempo algum, mesmo para assinar
papéis, para ele, eram sem importância, mas lhe confere aplausos e prestígio social,
junto à figura do Presidente.
141
Portanto, o signo vazio, presente no simulacro, não pode ser comparado a nada
que se possa chamar de real”, mas, no contexto atual, dominado pelas verdades
politicamente forjadas, esse signo, modelado dentro da miragem exagerada e da
luminosidade alucinatória, apresenta-se com mais aparência de real do que a própria
realidade. A personagem scliariana, sem a competência do ser, só pelo poder que lhe é
outorgado pelo título, significante humano, de chefe de seção estadual, ou seja, pelo
poder da representação, angaria importância, mesmo que metonimicamente vazia, mas
simulada, em âmbito estadual, representada por seus despachos e assinaturas, e federal,
representada por sua foto na primeira página dos jornais, ao lado de Vargas. Rafael
figura-se como personagem mais real e importante que as que o circundam, como
outros médicos traumatologistas e sanitaristas, políticos, etc., isso à causa da
exacerbação espetaculística da qual é revestido.
Segundo as considerações de Guelfi (2002, p. 126), sobre hiper-realismo, pode-se
dizer que a existência hiper-real do médico Rafael Mendes se explica e se justifica
como tentativa de compensar esse desaparecimento do real, através de uma construção
artificial e exagerada do ‘verdadeiro’ e da experiência vivida”.
Vianna (1989, p. 5), em seu artigo Já não podemos ter o real”, critica Nelson
Brissac Peixoto (1989) por seu artigo “A cultura do simulacro”, alegando que o
professor quer nos salvar da cultura do simulacro”, anunciando a volta iminente da
autenticidade e do enraizamento no panorama da arte contemporânea, como se, ainda,
fosse possível virar as costas para o simulacro e escolher a realidade. Logo, Vianna,
parecendo recusar a existência do real emrico, à moda dos filósofos orientais, propõe
uma reeducação radical para a contemporaneidade, dizendo que “teremos que nos
acostumar a não saber/ver o que ‘realmente’ aconteceu”, e quem quiser a autenticidade
vai ter que se contentar com o autêntico simulado”, uma vez que o simulacro não está
para a realidade, assim como a cópia está para o original ou o falso para o verdadeiro.
Não existe uma técnica para desmascarar a simulação e atingir o real, porque, quando
uma simulação é bem-sucedida, torna-se impossível distingui-la do real, desaparecendo
as diferenças entre falso e verdadeiro, cópia e original, realidade e ilusão.
Debatendo-se na impureza do ser, do discurso, do contexto e da ideologia, o que
se pensa ser o real, certifica-se ser apenas miragem de uma existência real e cartorizada
142
em versões textuais de diferentes sistemas semióticos, portanto de hipertextos
30
que
enchem de sentido a ficção da vida. Daí a angústia representacional da sociedade
programada e da informação
31
, na qual há a consciência de que o real existe, porém o
que não existe ou nunca existiu é a ponte que dá acesso a ele.
O hiper-realismo, na tentativa de representar o real, ou melhor, fragmentos do real,
coloca-lhes tanta ênfase que acaba por exacerbá-los e desreferencilizá-los, criando-se,
inclusive, novas formas de realidade ou de hiper-realidades muito mais bem sucedidas e
sedutoras que a “realidade”. E, dessa forma, pensando-se na obra de Scliar, nota-se que
a hiper-realidade, da qual a personagem Rafael Mendes é revestida, até como modo de
compensação, torna-a mais viva ficcionalmente falando que as outras; logo, torna-a
mais personagem.
2.1.4.3 O pastiche
Uma vez que se tornou inviável definir a cópia do original, no contexto da
realidade como efeito do espetáculo ou da hiper-realidade, quem ganha força, nessa
produção pós-moderna, é o pastiche.
Jameson (1997, p. 44-45) considera que o momento da paródia já passou, sendo
substitda pela estranha novidade, denominada pastiche. Como a paródia, ele é o imitar
de um estilo único e o usar de uma máscara lingüística, falando em uma linguagem
morta; contrário a ela, é uma prática imitativa, mas neutra de motivos inconfessos, “sem
o riso e sem a convicção de que, ao lado dessa linguagem anormal que se empresta por
um momento, ainda existe uma saudável normalidade lingüística”. Portanto, segundo o
autor, o pastiche seria “uma paródia branca (...): está para a paródia assim como uma
30
Por hipertexto entendo ser uma forma híbrida, dinâmica e flexível de linguagem que dialoga
com outras interfaces semióticas, adiciona e acondiciona à sua superfície formas ou outras maneiras
de textualidade” (XAVIER, 2005, p. 171).
31
Para Marcuschi (2005, p. 13), os gêneros emergentes na nova tecnologia da sociedade da
informação o relativamente variados, com similares em outros ambientes, tanto na oralidade
como na escrita. (...) a Internet é uma espécie de protótipo de novas formas de comportamento
comunicativo (...). Pode-se dizer que parte do sucesso na nova tecnologia deve-se ao fato de reunir
num só meio várias formas de expressão, tais como, texto, som e imagem, o que lhe dá
maleabilidade para a incorporação simultânea de múltiplas semioses, interferindo na natureza dos
recursos lingüísticos utilizados”.
143
certa ironia branca (...) — está para o que Wayne Booth chama as ‘ironias estáveis’ do
culo XVIII”, além de que o não riso e a não neutralidade lingüística do pastiche não
significam ausência, mas, muitas vezes, reverência, pois a sua onipresença “não é
incompatível com um certo humor nem é totalmente desprovida de paixão: ela é, ao
menos, compatível com a dependência e com o cio”, apetite, historicamente original,
dos consumidores de imagem da “sociedade do espetáculo”.
O que Hutcheon (1985) considera como pastiche é algo que vai mudando ao longo
dos períodos cronológicos, e cada época tem sua preferência por determinado tipo de
paródia. A concepção de paródia moderna, por exemplo, vem de Thomas Mann e seus
precursores, os românticos alemães, cujo intento é destruir o que acham ser ilusão
artística, subvertendo, mas também criando uma nova ilusão artística, pois ironia e
paródia são meios importantes para se criar novos níveis de sentido e ilusão. Aliás a
ironia é a estratégia que permite ao descodificador interpretar e avaliar, porém, parece
que ela é apenas substitda pela tradicional zombaria do texto alvo, no sentido grego de
contra-canto”. No caso da contemporaneidade, há uma predileção pelo conceito de
paródia que outros teóricos chamam de pastiche, concepção que, nem sempre, permite
que um texto tenha mais ou menos êxito sobre o outro. A paródia, que anteriormente é,
na sua irônica “transcontextualização” e inversão, uma repetição com distanciamento e
diferença, cede lugar ao pastiche, no qual se acentua mais a semelhança e a
correspondência. A paródia vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial e é
transformadora, já o pastiche é imitativo, parecendo ser mais superficial. O que
caracteriza a relação entre esses dois estilos é mais a semelhança à diferença, pois a
paródia está para o pastiche, assim como a figura de retórica está para o clichê, no
pastiche e no clichê a diferença se reduz à semelhança. A paródia está relacionada ao
burlesco, à farsa, ao pastiche, ao plagiarismo, à citação e à alusão, à medida que estes
repetem sempre outro texto discursivo, contudo ela não envolve necessariamente o
144
a qual a paródia se encontra ainda e por causa da sua trivialização, devida à inclusão do
ridículo na sua definição.
A pós-modernidade, no entanto, apesar do argumento de Hutcheon, não prefere a
concepção de pastiche só porque a paródia pertence a um campo semântico
estigmatizado, mas mais em conformidade com o aparecer de Jameson, o pastiche
prevalece sobre a paródia por causa da condição assumida pela hiper-realidade, nesse
contexto. Ou seja, o foco central não está mais no deboche ou não da paródia em
relação ao texto-base. Uma vez que a distinção entre o original e sua cópia se tornou
inviável, a supremacia da paródia também, pois estando cópia e original colados, na
atual sociedade espetacular, debochar de um é debochar de igual modo do outro; não se
sabe mais o que ou quem está sendo ridicularizado. Daí a força adquirida pelo pastiche
na produção pós-moderna, pois semelhante ao que parece ocorrer com a paródia, ele
ridiculariza ou reverencia a si mesmo como um duplo, contudo sem se distanciar e se
portar como se fosse superior ao texto de origem. Aproxima-se em tudo dele, até se
fundir a ele, de maneira que um cultua e suplementa o outro, sendo, na verdade, apenas
duas facetas de um mesmo texto.
Para se analisar o pastiche na obra de Scliar, como integrante do resultado hiper-
real, derivado do status performativo da sociedade do espetáculo, pautar-se-á na
concepção jamesoniana de indistinção de cópia e original, portanto na seriedade até do
pastiche ao elencar outros textos. O pastiche, visto como um tipo de “paródia moderna”,
implica aproximação/repetição para a semelhança e a paródia implica
aproximação/repetição para a diferença. Pode-se dizer que o pastiche continua
implicando aproximação/repetição para a semelhança, mas nem por isso uma
correspondência menos crítica, ao suplementar outros pontos de vista; ou mais ridícula,
ao eventualmente rir junto com a obra e não necessariamente rir da obra.
A paródia, como se vê, não implica necessariamente o ridículo, pois sua
tonalidade pode variar desde o ridículo até o reverencial. O pastiche, desdobramento da
paródia preferido pela pós-modernidade, parece não ser mais sério, mas se tinge mais
com os tons reverenciais da homenagem — Santiago (1991, p. 5) diz que o pastiche “é
ao mesmo tempo uma reverência e um gesto suplementar”, com a ausência total de
145
essência. Em conseqüência, esses tons são mais imitativos e semelhantes, porém
também implicados no amplo conceito social de paródia.
É justamente esse procedimento que se verifica em Scliar. Ao fazer pastiche não
apenas de modelos literários, mas de história, memória e lenda, mostra-se, segundo as
considerações de Barth (1981, p. 403), um autor pós-modernista ideal por não repudiar,
nem imitar simplesmente seus parentes modernistas e pré-modernistas
32
.
Nas páginas 231-235, Moacyr Scliar reescreve a Memória da Igreja de São
Tolentino, sob o ponto de vista do Padre João de Buarque, apresentado por seu narrador,
o médico Rafael Mendes. Como o conflito da obra gira em torno da causa desconhecida
da morte de vários indígenas da região missioneira e de ruivo, o único sobrevivente dos
invasores de terras, o Dr. Micróbio, colega de Rafael Mendes desde os tempos da
faculdade, traz-lhe, como prova histórica, um velho opúsculo, amarelado e comido de
traças. Micróbio, com tal referência histórica, objetiva eliminar a hipótese de
envenenamento da água do poço, onde Ruivo e os demais invasores tomavam água, nas
ruínas da igreja, e assim poder testar, no desvalido paciente, a penicilina que havia
criado para combater doenças infecciosas da região missioneira e da Argentina.
Na primeira parte, o padre conta como foi investido da missão divina, que lhe foi
atribda por o Tolentino. Na segunda parte, conta sua viagem ao Brasil, o encontro
com os doces selvagens, a construção da igreja para o exigente santo, o ataque
castelhano na Guerra Guaranística, a morte em massa dos sobreviventes por uma
pestilência desconhecida, e a lenda do indomável e único índio sobrevivente à guerra e à
doença, Sepé Tiaraju.
O médico Rafael Mendes, na condição de narrador, apesar de colocar o ponto de
vista do padre, a fim de ressaltar a validade memorial e histórica dos fatos narrados,
usando para isso aspas, travessões e itálico ao fazer citações, deixar entrever também
seu parecer e sua interpretação, por meio do que vai relatando em sua narração, e, para
tanto, às vezes, faz uso até de parênteses.
Para Coelho Neto (2001, p. 214), embora se acredite que no quadro pós-moderno
a arte fez concessões ao mau gosto da massa, provocando sua desestetização, devido às
32
Mon auteur postmoderniste idéal ne répudie pas et nimite pas simplesment ses parents, les
modernistes du XXe siècle, et ses grands-parents, les prémodernistes du XIXe siècle (BARTH,
1981, p. 403).
146
marcas do sistema de produção, fatalmente impressas no produto, o que existe não é a
ascendência absoluta do pólo da arte elevada sobre o pólo da cultura de massa, ou ao
contrário; mas forças “em tensão (para não dizer ‘dialética’)”, no interior das quais os
enfrentamentos e eventuais deglutições, incorporações (recuperações) não se fazem sem
se deixar, nesse jogo, as marcas de um elemento sobre o outro. Neste caso, não
culpas pela recuperação mesmo porque essa recuperação não é tão clara e forte assim”.
Assim, arte elevada e cultura de massa são contaminadas reciprocamente, de forma que
o resgate das marcas de cada um dos pólos só pode ser obtido mediante novas e sutis
marcas, já pertencentes a outras circunstâncias, logo de desmembramento impossível.
Ainda, considerando o parecer de Bertens, o pastiche e a citação, por aproprião,
o métodos que podem ser vistos para ampliar virtualmente cada aspecto de nossa
cultura
33
, porque contribuem de uma forma ou de outra para o enriquecimento, ou pelo
menos para o aditamento cultural.
Um trecho, transcrito abaixo, a título de exemplo, deixa entrever tais marcas
tensas, em que a memória do eclesiástico, mais ao gosto da arte elevada, e o relato da
personagem Rafael Mendes, mais ao gosto da cultura de massa, dialogam por meio do
pastiche que Scliar vai tecendo com as ponderações de ambos. Na confecção desse
pastiche, o autor também não se esquece de tonificá-lo com certo humor, a fim de
mostrar a multiformidade do mesmo relato, além de relativizar o status do original
sobre a cópia, do verdadeiro sobre o falso, e da realidade sobre o simulacro, por meio da
intervenção do narrador pelo discurso indireto livre, com ou sem parênteses, bem como
do não uso de travessões para o discurso direto.
Foi então que um jovem índio veio ter ao aldeamento. Era conhecido como Sepé
Tiaraju; e desde o início revelou-se uma personalidade forte, um guarani contestador.
Discutia com o padre argumentando que os índios precisavam não de crucifixos, mas de
lanças; não de igrejas, mas de fortalezas.
— Uma igreja é uma fortaleza — retrucava o padre. — Uma fortaleza de fé.
33
For appropriation, pastiche, quotation these methods can now be seen to extend to virtually
every aspect of our culture, from the most cynically calculated products of the fashion and
entertainment industries to the most committed critical activities of artists, from the most clearly
retrograde works (...) to the most seemingly progressive practices (...) (BERTENS, 1995, p. 93).
147
— E resiste a canhões? — o índio, irônico. Tu sabes tudo, respondia o padre,
desconcertado e irritado, és como Adão, depois de comer o fruto da Árvore da Ciência do
Bem e do Mal; mas não te esqueças, a única coisa que ele descobriu é que estava nu.
— Já foi uma descoberta respondia Sepé. — É bom a gente ter a consciência da
própria nudez, não te parece? Só que eu, no lugar de Adão, continuaria andando nu. Aliás
é o que nós, índios, fazíamos, antes que vocês aparecessem. Éramos mais felizes, eno.
Mas nós trouxemos a vocês a palavra divina, protestava o padre. Sepé ria: palavra
divina? A palavra divina estava conosco, padre. Não esqueças — tu mesmo o disseste —
que somos uma das tribos perdidas de Israel, que descendemos do rei Salomão.
(...)
Estas conversas perturbavam o Padre João, que não tinha respostas para Sepé.
Anima minha língua, São Tolentino, suplicava em suas preces (...). Deste modo, a missão
do Padre João parecia cumprida e ele, velho, se preparava para morrer em paz, quando
sobreveio a tragédia: o ataque dos castelhanos. A aldeia foi rapidamente arrasada, em
meio a uma verdadeira carnificina: “riachos de sangue corriam pelas ruas” (...). O Padre
João descrevia longamente os dramas de consciência que o assaltavam: poderia profanar
um templo, ainda que fosse para salvar vidas humanas? Vidas de bugres? (Sim — de
repente lhe dava nojo daqueles selvagens: nojo e raiva da situação: por que tenho de estar
aqui? (...)).
(...)
E então, “grande fúria brotou em minha alma, contra São Tolentino; feriste errado com a
tua espada, eu bradava, feriste os teus devotos e não teus inimigos, tolo santo!” (SCLIAR,
1983, p. 232-234).
Aliás, o fragmento ilustra, na repetição da história, algo bem ao gosto do
consumidor-espetacular: o riso provocado pela perda de paciência do Padre João com o
santo, a ponto de o xingar de tolo. O riso não é um elemento obrigatório da paródia
tradicional, mas apenas mais um ingrediente, facultativo por sinal, da paródia moderna,
o pastiche, como declaram Hutcheon e Jameson, por ser ocasionado mais pela imitação
reverencial, que pela simples ausência.
Essa oscilação do pastiche tem a ver com o tempo da simetria, em contraposição
ao tempo circular, como se pode notar pelas palavras de Schneider (1990, p. 82): “o
pasticho literário é uma das maneiras de escapar desse ‘tempo circular’ e de romper
148
com o plágio”, podendo também ser vista pelo viés da saturação, que gera a necessidade
criativa de se lidar com as mesmas peças do jogo, exemplificada na escritura e
reescritura infinita da Memória da Igreja de São Tolentino pelo Padre João.
O estado do padre se agravou, e durante semanas ele esteve “entre a vida e a
morte, por esta última implorando... Mas Deus não quis me conceder tal graça.” Salvou-
se, voltou para Portugal e lá viveu seus últimos anos, escrevendo e reescrevendo a sua
Memória da Igreja de o Tolentino... (SCLIAR, 1983, p. 235).
É bom lembrar que, nas constantes escritas e reescritas da Memória da Igreja de
São Tolentino — a do narrador fazendo o papel do próprio historiador, na condição de
escriba, como sendo o padre João; a do narrador retomando a informação histórica para
tentar salvar as reputações de Saturnino e de Getúlio Vargas, além de convalidar as
hipóteses médicas de Débora; bem como a do narrador utilizando-as para tirar suas
próprias conclusões existenciais —, à maneira pós-moderna, a narrativa se torna
paradoxal, configurando um caos em que todo o relato é constantemente reescrito com
outros significados” (GUELFI, 2002, p. 121). Tal procedimento não deixa de ter sua
importância, pois, apesar de Jameson (1993, p. 31) reclamar do fracasso da arte, do
estético e do novo, por seu aprisionamento ao passado, o teórico também conclama que,
em um mundo cuja inovação estilística é impossível, resta apenas imitar estilos mortos
do museu imaginário, como, por exemplo, o da reescrita da memória e o da retomada da
história, pois “a arte contemporânea ou pós-modernista deverá dizer respeito à própria
arte de uma nova maneira”.
2.1.5 O kitsch
Jauss (1996, p. 54), em seu ensaio intitulado Tradição literária e consciência
atual da modernidade, afirma que, para os Anciens, cada época tem costumes e gostos
diferentes, porém predileções, sempre, apoiadas no antigo, pois, segundo as
ponderações de Friedrich Ohly, o novo realça o antigo, o antigo sobrevive no novo. O
novo é a redenção do antigo e nele se fundamenta”.
149
E, fazendo jus a essa miscelânea de velho com novo, de clássico com vulgar, de
original com cópia, o pós-moderno constitui-se também do fenômeno kitsch, cujos
significados podem ser, segundo Eco (1970, p. 71), “esboço, no inglês, “tirar a lama
das ruas”, “reformar móveis para fazê-los parecer antigos, ou construir móveis novos
utilizando-se de pedaços de móveis antigos”, no dialeto mecklemburguês; e, ainda,
segundo Moles (1975, p. 10), “vender barato”, no alemão.
Um breve histórico do kitsch, a partir dos apontamentos de Franco Junior (1999),
mostra que o kitsch tem se tornado conceito entre o final do século XIX e início do
século XX, de forma que as obras e os objetos passam a ser identificados e
classificados, em uma perspectiva kantiana e aristotélica, como um desequilíbrio entre a
função estética e as funções comercial, potica, moral, religiosa, pedagógica, etc., dos
elementos. Esse desequilíbrio acontece pelo sujeitamento da função estética aos
interesses comerciais. O campo semântico do kitsch sempre extrapolou o campo da arte,
abrangendo comportamentos, atitudes, moda, decoração, etc., como sinônimo de mau
gosto. No campo das artes, o kitsch, de acordo com a crítica modernista, significa tensão
contrastante dos materiais utilizados na construção da obra; a expressão do gosto pelo
efeitismo e pelos clichês, evidenciando alienação e despreparo intelectual; sistema
paralelo, irracionalidade; e imitação da arte. A partir dos anos 50, com os movimentos
contraculturais e críticos ao Modernismo, fica cada vez mais difícil associar kitsch à
idéia de mau gosto, sem questionar o prisma e a ideologia de tal idéia, num contexto de
crise dos valores do moderno, bem como do esgotamento de suas vanguardas.
Em A estranha nação de Rafael Mendes, transcendendo-se a idéia de mau gosto,
atribda em prinpio ao kitsch, vê-se que esse conceito, próprio das vanguardas
modernistas, é regenerado para uma atitude crítica em relação à ideologia de tal período,
colocando em relevo a homogeneização do momento atual, onde o kitsch impera,
porque, conforme a colocação de Hansen (1994, p. 62), “pós-moderno é o tempo em
que aparentemente o kitsch deixa de existir, porque não há critério que se oponha a ele e
o negue; logo, no pós-moderno, o kitsch é geral ou tudo é kitsch”.
A fim de mostrar essa estrutura do mau gosto” — título do capítulo de Eco
(1970), que trata dessa questão — na obra scliariana, tomar-se-á primeiro um exemplo
da descrição do quarto-prisão, onde Boris Goldbaum e Rafael Mendes são detidos sob
150
acusação de peculato, e depois um exemplo da Intentona Comunista, mencionado pelo
sogro de Rafael Mendes, seguido de alguns exemplos do comportamento do agente do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), situações em que as idéias poticas,
carentes de sustentação no contexto atual, revelam-se kitsch.
Percebe-se, na descrição do quarto e principalmente pelo quadro da parede, um
desnível entre as fronteiras da arte elevada e da cultura de massa, se bem que vistas a
partir do ponto de vista de Rafael Mendes.
A Boris Goldbaum e Rafael Mendes foi reservado, na casa-prisão, um quarto
bastante amplo; há ali duas camas com colchões de espuma e colchas de chenile, duas
mesinhas de cabeceira com abajures, um guarda-roupa, uma cômoda; tapete com
desenhos orientais; e na parede, a reprodução de um quadro; uma baía, o mar quebrando
na praia de areia muito branca, e aves — uma, duas, três, quatro, cinco, seis — seis aves
coloridas contra o céu flamantemente azul. Só que as aves parecem imóveis, colocadas ao
céu. A habilidade do pintor não foi suficiente para dar a impressão de que voam. Mas é
agradável olhá-las, de qualquer modo. E, de qualquer modo, para cenas de maior
mobilidade, há um televisor, verdade que P&B, verdade que apenas de 16 polegadas; sem
antena externa; sem controle remoto; fabricado na Zona Franca de Manaus, na longínqua
Amazônia, lugar misterioso onde há ainda índios e aves coloridas, canoras. Em resumo,
este aposento, que tem até banheiro, poderia ser o quarto de um hotel de duas, talvez três
estrelas (dependendo da condescendência do funcionário da Embratur). (SCLIAR, 1983,
p. 264).
Outros exemplos da presença do kitsch ideológico se pode ver quando os índios,
liderados pelo alemão, conhecido por Ruivo, instalam-se na região das missões
indígenas, onde fica a fazenda de Saturnino, rico fazendeiro, bisneto do famoso
Picucha, o Degolador, e amigo particular de Getúlio. O sogro de Rafael, também
fazendeiro e amigo do presidente, diz que a lição da Intentona Comunista ainda foi
insuficiente para lhes ensinar.
— E o que querem? — perguntei.
— As terras — respondeu meu sogro. — Dizem que são deles, desde a época dos
jesuítas. Que foram expulsos, e que agora estão voltando. E que só sairão mortos.
151
Eles dizem isto?
— O branco. O branco fala por eles.
— E quem é?
— Aí é que está. Ninguém sabe. Deve ser um agitador; um comunista, decerto.
Eles o aprenderam a lição da Intentona.
— O problema, doutor — interveio Saturnino — é que isso não é coisa de bugre.
É cobra mandada, meu doutor. Não é só a mim que querem atingir; é ao Doutor Getúlio,
de quem sou amigo pessoal. Eles sabem disso. (SCLIAR, 1983, p. 211).
No dicionário Houaiss (2001, p. 1631), o próprio termo “intentona” quer dizer
cometimento temerário; plano insensato, ataque imprevisto, conspiração para revolta
ou motim, especialmente se frustrado”, revelando um cômico mau gosto ideológico, por
parte do sogro de Rafael, ao apelar para algo originariamente frustrado como a
Intentona Comunista.
Nesse ataque histórico, chefiado pelo General Eurico Gaspar Dutra, a 27 de
novembro de 1935, usou-se, para reprimir os comunistas, liderados por Luís Carlos
Prestes, gases tóxicos, canhões, disparos feitos por avisos da Marinha de Guerra e
bombardeio pela aviação. Afinal a administração getulista tinha que competir com as
crescentes exincias de mudanças na distribuição de direitos e na partilha de riquezas e
poder e os anseios populares escapavam cada vez mais às delimitações impostas pelas
elites controladoras do estado brasileiro, culminando em greves, levantes, publicações
diversas e até mesmo novas organizações políticas (como o Partido Comunista
Brasileiro), para fazer pressão por mudanças.
Além das idéias improcedentes, vistas na fala do sogro de Rafael Mendes, pode-se
ver também mais um exemplo dessas idéias-kitsch pelas atitudes do mulato do DIP.
Nos exemplos comportamentais do representante do DIP, no papel de julgar e
impedir quaisquer notícias, na dia, que denegrissem a imagem ditatorial e populista
de Getúlio Vargas, reflete-se, no plano ideológico, a estrutura do “esmaecimento de
algumas fronteiras ou separações fundamentais, notadamente o desgaste da distinção
prévia entre a alta cultura e a chamada cultura de massa ou popular”, previsto no pós-
modernismo, apontado por Jameson (1993, p. 26).
152
A seguir, no fragmento da p. 220, é possível notar que a aparência da personagem
parece ser escolhida para causar efeito de poder, tanto pela força, quanto pela elencia.
No fragmento da p. 221, seu discurso revela o treinamento para a censura. No
fragmento da p. 223, sua conduta mostra apenas o poder burocrático da força,
desprovido de compromisso social. No fragmento das p. 223-224, seu temperamento
denota alguma perda de controle da situação. E, no fragmento da p. 227, seu murmúrio
revela a perda total de controle sobre a situação.
Fui até o hotel; lá encontrei o Saturnino, meu sogro, dois assessores do Palácio, e um
mulato alto e forte, elegantemente vestido, que se apresentou como agente do DIP, o
Departamento de Imprensa e Propaganda. Saturnino pediu desculpas por perturbar minha
rotina. (SCLIAR, 1983, p. 220).
O mulato do DIP acompanhou-me até o corredor para me dizer que, quanto à
imprensa, podia deixar com ele. Eu não quis discutir: limitei-me a agradecer, entrei no
carro, fui para o hospital (...). (SCLIAR, 1983,p. 221).
De súbito, me ocorreu: o DIP. Me repugnava, aquilo, mas podia ser uma solão.
Eu precisava encontrar o mulato imediatamente, antes que o jornal fosse rodado. (...)
invadi a sala de Moreira, o assessor designado para acompanhar o caso (...). Expus-lhe
rapidamente o caso, pedi-lhe que me localizasse o agente do DIP. Ligamos para o hotel.
Não estava lá, evidentemente — cara de mulherengo bem que tinha.
Vamos ao Marlene.
Era ali perto, na Sete de Setembro. Subimos rapidamente as escadas do
bordel. A própria Marlene veio nos receber:
A que devo tanta honra?
Sim, o homem do DIP estava ali. Sem perder tempo, entramos no quarto;
estava no quarto com uma mulher que se pôs aos gritos, ele de imediato saltando
para o revólver na mesa de cabeceira. Reconhecendo-nos, acalmou-se; expusemos
rapidamente a situação, ele achou que era realmente de impedir a circulação do
jornal, mas precisava pedir autorização ao Rio:
— Infelizmente a coisa não é o fácil. (SCLIAR, 1983, p. 223).
153
Voltamos ao Palácio. As ligações telefônicas eram lentas, havia demora; e um
mandava falar com o outro, de modo que só às seis da manhã tínhamos uma decisão e
esta vinha do próprio Getúlio: era para deixar circular o jornal. Responder às acusações,
mas deixar circular. O homem do DIP estava irritado:
Que besteira! Que besteira!
De qualquer forma modo o jornal já estava nas ruas: do próprio Palácio ouvíamos
os gritos dos jornaleiros (...). (SCLIAR, 1983, p. 223-224).
Brito tentou retomar o controle, mas era impossível: a confusão se generalizara,
os estudantes invadiam o sao, aos gritos de abaixo a ditadura, punhos fechados
erguiam-se no ar. A coisa está preta, doutor, murmurou alguém a meu ouvido, e era,
naturalmente, o mulato do DIP (...). (SCLIAR, 1983, p. 227).
Bercito (1999, p. 30), analisa O Brasil na década de 1940, sob os anos de
ditadura. Neles a propaganda visa angariar a ideologia nacionalista, por meio de seu
departamento garantidor da ditadura (DIP), sobretudo após a queda da República Velha,
nos anos compreendidos entre 1930, com o icio do período getulista e as fases de
Estado de Sítio, até 1945, com o fim do Estado Novo. Nesse período, “tanto a
propaganda do regime quanto a censura eram atribuições do Departamento de Imprensa
e Propaganda”, e “a propaganda ideológica, certamente, teve um papel de grande
importância na difusão da ideologia do regime e no esforço em conseguir a adesão
coletiva a ele”.
Pelas ilustrações da obra, a conduta do funcionário do DIP pretende mostrar bem o
forte controle exercido pela censura, nas ações e na opinião pública. Contudo, embora
também haja uma fábrica mantenedora do poder da gestão getulista, a própria
personagem representante desse poder, o mulato do DIP, acaba por revelar por sua
conduta que o objetivo de coerção e vigilância de tal departamento se encontra minado
e já não condiz com as aspirações do momento, carecendo de um questionamento a
respeito de sua eficiência e de sua real validade no momento.
Tal conduta metaforiza, na obra de arte, uma solução “transvanguardista” ou “pós-
moderna”, no sentido de Jencks (apud LYOTARD, 1993, p. 19), ou seja, um ecletismo
que é o grau zero da cultura geral contemporânea de público fácil, pois, tornando-se
154
kitsch, a arte lisonjeia a desordem que reina no “gosto” do amador. O artista, o galerista,
o crítico e o público comprazem-se juntos seja lá no que for, e a hora não é favorável ao
rigor”.
A hora é favorável, conforme acentua a crítica recente (JAMESON, 1997, p. 57), à
heterogeneidade e descontinuidade da obra de arte, que não é mais unificada ou
orgânica, mas “um saco de gatos ou um quarto de despejo de subsistemas desconexos,
matérias-primas aleatórias e impulsos de todo tipo”, a obra de arte transformou-se em
um texto, “cuja leitura precede por diferenciação, em vez de proceder por unificação”.
Portanto, no contexto da obra de Scliar, a aplicabilidade de estratégias de outrora,
sob prismas muito particulares, contribuem para uma recepção um tanto postiça das
concepções no plano da realidade ficcional. Aliás é o que marca a sua diferença e o seu
hibridismo, típicos do pós-moderno.
Pelos exemplos vistos, é possível notar que, no ecletismo revelador do momento
atual e presente da obra, tanto no que diz respeito ao campo das idéias quanto ao campo
das artes que as concretizam, aparece o kitsch, não como fórmula de vanguarda nem
como oposição entre instituição e mau gosto, mas como pêndulo crítico capaz de
sintonizar e transdimensionar os sistemas modernistas, como desafio à constante
“hostilidade do modernismo para com a cultura de massas” (HUYSSEN, 1991, p. 31),
pondo em evidência os avessos de suas ideologias, ao fazer uso da erupção da indústria
cultural, aliada à art-pop.
O kitsch, um tipo de arte, é uma reatualização dos procedimentos Dada, criados
pela filosofia de Duchamp, “mas [que] difere fundamentalmente da atitude
aristocrático-modernista do Dada e da crítica filosófica de Duchamp ao mergulhar, com
frieza e cinismo, na própria sacralização do mercado de arte e da indústria cultural
(FRANCO JUNIOR, 1999, p. 79).
De acordo com o perfil contemporâneo, a arte do mau gosto, como
antropofagismo de estilos, pode inclusive imprimir à exaustão, a descrença e a
observação da realidade por meio de um outro prisma: o da relativização ideológica. E
do modo como fez Scliar, bem pode ser a técnica do hiper-realismo, na qual os artistas
pop “apropriavam-se de elementos do contexto político-social, da mesma forma que se
apropriavam de objetos e símbolos do cotidiano, agrupando-os por meio da colagem.
155
Recolhidos e reunidos em novo contexto, esses fragmentos criam efeitos de
deslocamento, muito próximos do estranhamento e do desvio surrealistas(GUELFI,
2002, p. 122).
A tela não simétrica da casa-prisão, a burlesca concepção do sogro de Rafael e a
colagem comportamental do agente do DIP, deslocadas do contexto sócio-político da
história para os signos da literatura, além da diferenciação descritiva da arte elevada
para a pop-art, marcam o esboço de uma hiper-realidade kitsch, na obra, composta de
diversos discursos que se tangem, se nivelam e se diferenciam no mesmo texto pós-
moderno.
Afinal, partindo da percepção de pós-moderno de Coelho Neto (2001, p. 144-145),
que pode ser adequada ao kitsch e à cultura das massas, “para um povo sem heróis
comuns e sem heróis políticos, o marginal parece ser um herói possível”.
2.1.6 A exaustão
A produção literária na pós-modernidade tem que reconhecer seu papel de
exaustão, tem que se reconhecer como a literatura do esgotamento” (BARTH, 1967),
com regressus in infinitum”, como diz Barth (1967), sobre mais um exemplo desse
motivo impossível de Jorge Luis Borges (1999, p. 186-187), presente em “Metáforas
das mil e uma noite” e referente a As mil e uma noites.
Borges, de acordo com Barth (1967, p. 34), considera que a visão intelectual e
literária da história tem sido barroca e também tem exaurido as possibilidades
romanescas
34
, às margens da caricatura, o que não deixa de ser uma forma de esgotar o
mundo e se aproximar de seu fim. Dessa forma o escritor argentino traz para a literatura
o paradoxal mitológico regressus in infinitum como uma maneira de assentar essa
impossibilidade do mito, e, ao usá-lo, cita Schopenhauer como evidência de que o
mundo é o nosso sonho, a nossa iia, e no qual se pode encontrar tênues vestígios de
34
While his own work is not Baroque, except intellectually (the Baroque was never so terse,
laconic, economical), it suggests the view that intellectual and literary history has been Baroque,
and has pretty well exhausted the possibilities of novelty (BARTH, 1967, p. 34).
156
irracionalidade, a fim de nos lembrar que nossa criação é falsa, ou, pelo menos,
fictícia
35
.
Uma vez que, pela via schopenhaueriana, a única certeza possível é a da
contaminação da realidade pelo sonho, ou melhor, do sonho pela realidade, o que é
importante é simplesmente mudar de lugar, descobrir uma nova utilidade para qualquer
coisa, ou juntá-la a outra” (FAWCETT, 1989, p. 4). Isso não deixa, segundo Connor
(1992, p. 45), de abordar uma contradição inexpressa, pois “de um lado, o capitalismo
de consumo pós-moderno representa o termo final de uma lógica da reificação
(alienão, diferencião, dissociação entre significante e significado), ao passo que, do
outro, parece haver um colapso absoluto da diferenciação, na medida em que o reino
cultural se torna intico ao socioeconômico”.
O romance scliariano A estranha nação de Rafael Mendes vislumbra um
exemplo dessa exaustão, cuja saída possível é a do rearranjo das mesmas coisas ou das
mesmas imagens oníricas e ideológicas do que se pensa serem coisas, sob várias
perspectivas. Monta um verdadeiro painel informativo de diferentes sistemas
lingüísticos para apresentar mais uma versão textual da gestão administrativa do
Presidente Getúlio Vargas, mostrada em seu cotidiano, colocada em xeque sob o
pretexto no episódio dos índios, liderados por Ruivo, invasores das terras do doutor
Saturnino, bem como da morte em massa dos indígenas e do como do branco.
Scliar, ao costurar sua rapsódia textual, apresenta, em sua narrativa, um desfile no
qual o substrato literário é borrado de múltiplas áreas, como a educação, a história, a
política, a publicidade, a medicina, a psicanálise, a filosofia, a religião, a mitologia, a
música e outras, veiculadas por meio dos media: jornais AlertaSem uma palavra, o
fazendeiro estendeu-me um recorte de jornal. Intrusos prometem resistir, era a
manchete: um bando de bugres, homens, mulheres e crianças, liderados por um homem
branco, tinha invadido as terras do doutor Saturnino e dali recusava-se a sair.” (p. 210-
211, além das p. 209, 220, 223, 224, 229, 239, 244, 245) —, Avante — “Por que não
largava tudo, o maldito doente, o Hospital de Isolamento, a Seção de Doenças Infecto-
Contagiosas, o Avante, Micróbio, a enfermaria, Kurt, Brito e todo o resto? Por que não
35
(...) Borges himself uses it [regressus in infinitum], citing Schopenhauer, as evidence that the
world is our dream, our idea, in which tenuous and eternal crevices of unreason can be found to
remind us that our creation is false, or at least fictive (BARTH, 1967, p. 34).
157
largava Débora e ia para a fazenda, para junto de minha família? Por quê?” (p. 240) —,
e Diário Oficial — “Estendeu-me um grosso envelope. Continha um exemplar do
Diário Oficial que circularia no dia seguinte. E ali estava minha nomeação para o cargo
de Chefia da Seção de Doenças Infecto-Contagiosas do Estado.” (p. 208) —; rádio
“A caminho de casa, porém, ouvi uma notícia no rádio do carro que mudou o rumo de
tudo. De tudo mesmo, como eu viria a constatar depois. A informação era de que os
intrusos tinham se entrincheirado nas ruínas da antiga igreja de São Tolentino,
localizadas nas terras do Saturnino.” (p. 213) —; rádio amador “As comunicações
com a região eram difíceis, mas consegui falar com Débora, através da guarnição da
Brigada, usando o rádio do Palácio.” (p. 214) ; rádio-telégrafo “Logo depois, o
radiotelegrafista fazia novo contato com a guarnição de São Tolentino: a própria Débora
queria falar comigo.” (p. 214) —; telefone — “O papai telefonou. Quer que tu vás
imediatamente à casa dele. Tem um assunto muito importante a falar contigo.” (p. 210,
além da p. 214) —; comício — “De costas para ele, e voltado para o público, Artêmio
fazia um comício: ‘Porque se é envenenamento, meus senhores, temos de esclarecer os
fatos! Já se passou o tempo em que, neste país, os crimes ficavam impunes. O mundo
quer justiça, senhores. Agora mesmo na Espanha, trava-se uma luta sangrenta pela
democracia, uma luta com a qual também estamos comprometidos. É nosso dever
descobrir o que espor trás disto!’(p. 226-227, além da p. 198) —; discurso exaltado
— “Brito tentou retomar o controle, mas era impossível: a confusão se generalizara, os
estudantes invadiam o salão, aos gritos de abaixo a ditadura, punhos fechados erguiam-
se no ar. (...) De pé sobre uma cadeira um jovem médico proferia um violento discurso
contra Getúlio, aplaudido por uns e vaiado por outros.” (p. 227) —; abaixo-assinado
“‘É aquele doutor maluco, o velho Artêmio. Está fazendo circular um abaixo-assinado,
pedindo para tirarem o doente do Hospital de Isolamento. Alega que o cabra corre risco,
que os capangas do Saturnino são capazes de liquidá-lo lá mesmo.’” (p. 237-238, além
da p. 239) —; sessão médico-universitária — “O Salão Nobre estava cheio; todo o
mundo sabia da importância do caso. O clima era de expectativa. (...) Brito fez soar a
campainha e abriu a sessão. Começou agradecendo a presença de todos. Disse que a
reunião se revestia de um interesse especial, já que se tratava de um surto de doença
contagiosa ocorrido em pleno Rio Grande do Sul. E, aí passou a palavra a Débora.” (p.
158
225, além das p. 226, 227) —; bilhete — O bilhete de Schnitzel era longo: ‘Tenho
todas as razões para crer que o homem conhecido como Ruivo, que está neste momento
baixado no Hospital de Isolamento, é um militante trotskista que conheci em Berlim, em
1930. (...) Ameaçou então revelar tudo que sabia sobre o nazismo na América Latina,
indicando inclusive o nome de importantes figuras do governo e do mundo dos
negócios...’” (p. 227-228) —; e propaganda do DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) — “lá encontrei o Satunino, meu sogro, dois assessores do Palácio, e um
mulato alto e forte, elegantemente vestido, que se apresentou como agente do DIP (...).
Saturnino pediu desculpas por perturbar minha rotina: ‘Mas é importante, doutor. O
Getúlio me telegrafou hoje cedo. Eles tem informação lá, no Rio, que essa história dos
bugres doentes vai ser explorada ao máximo pelos jornais. Vão querer saber que fim
eles levaram... E sobretudo vão exigir informações sobre esse que esno Hospital.’” (p.
220- 221, além das p. 223, 224, 227) —; além das experiências sensoriais também
responsáveis pela transmissão dessas organizações lingüísticas até oralmente, ao longo
do escoar de gerações, como a dos Mendes.
Esse capítulo do romance, Segundo caderno de cristão-novo”, constitui-se pelo
exaustivo colocar das mesmas peças de retalhos sobre parte da Era Vargas, anterior ao
Estado Novo. Em tal colcha de retalhos que compõe a obra, nota-se a necessidade de
tomar o já existente: material sobre parte da Era Vargas anterior ao Estado Novo, 1929
a 1938, para confeccionar, a partir daí, uma arte sobre a arte de um novo modo”, como
diria Jameson (1997, p. 19), ou seja, um outro tecido, o tecido do pós-moderno, feito,
agora, com os mesmos retalhos, apenas montados de forma diferente, e responsável
justamente pela garantia da criatividade e da autenticidade do pós-moderno.
Inclusive, é bom lembrar que o pós-moderno, ingrediente do contemporâneo, na
concepção de Huyssen (1991, p.74-75), não é uma “simples seqüela do modernismo” ou
um “modernismo obsoleto”, mas um campo de tensão entre tradição e inovação,
conservação e renovação, cultura de massas e grande arte (...), compreendido mediante
categorias como progresso versus reação, direita versus esquerda, presente versus
passado, modernismo versus realismo, abstração versus representação, vanguarda
versus kitsch”, sem a aristocracia unilinear dos segundos em relação aos primeiros, ou
uma “irracionalidade” ou “frenesi” apocalípticos. Com impulsos criativos, a partir da
159
exploração de contradições, contingências, tensões e resistências, tal campo tenso força
um movimento para adiante”, pois o pós-modernismo “joga uma nova luz ao
modernismo e se apropria de muitas de suas estratégias e técnicas estéticas, inserindo-as
e fazendo-as trabalhar em novas constelações”.
Segundo um prisma pós-moderno, esse considerar no mesmo patamar as
diferentes facetas do presente e do passado, de Huyssen, combina com a ótica vattiana
de enfraquecimento do ser e da história, transformada em evento.
A modernidade, para Vattimo (1987), está sempre em busca da “superação, da
novidade que envelhece”, o que causa o prejuízo da criatividade perseguida pelo
modernismo, portanto, sai-se da modernidade sem a possibilidade de a superar, de
acordo com o pensamento niilista de Nietzsche, ponto de partida para as reflexões do
filósofo pós-modernista. Uma outra saída, então, para essa época em que o ser é
pensado sob o signo do novum não é a idéia do eterno retorno, do regressus in infinitum,
do Uebermensch, em que se recorre a valores “supra-históricos”, mas a convivência
com a errância por meio de uma atitude diferente: o bom temperamento e a
convalescença, inclusos no termo Verwindung, cuja superação metasica reconhece
traços de aceitão(perda)-convalescença(dor)-distorção(aprofundamento). Resulta daí
um moderado relativismo histórico, com abertura e ultrapassagem dessa história, sem a
usar como meio, em um sentido radicalmente ontológico, porque o ser não é senão a
trans-missão das aberturas histórico-destinais que constituem, para cada humanidade
histórica, o seu acesso ao mundo, por meio de três características provisórias do
pensamento pós-moderno para um novo começo, a saber, a fruição/rememoração, a
contaminação/repetição/distorção e a “ontologia fraca”.
A fim de justificar o esgotamento e o enfraquecimento inicialmente do ser, no
momento atual, Coelho Neto (2001) e Lyotard (1993) têm pontos de partida diferentes.
Coelho Neto (2001, p. 111) parte de um novo niilismo reativo, do qual Nietzsche é o
primeiro adepto, ao integrar o rol dos “niilistas intransigentes que levam às últimas
conseqüências a aceitação do mundo como caos, da vida como ela é: relativa”. Lyotard
(1993, p. 26) parte, não do “pouco de realidade”, próxima do niilismo de Nietzsche, mas
do kantiano conceito, anterior e moderno, de sublime, que compreende o prazer
derivado da dor, concebido, na ótica pós-moderna, como o ‘impresentificável’ na
160
própria ‘presentificação’; aquilo que se recusa à consolação das boas formas, ao
consenso de um gosto que permitiria sentir em comum a nostalgia do impossível; aquilo
que se investiga com ‘presentificações’ novas, não para as desfrutar, mas para melhor
fazer sentir o que há de ‘impresentificável’”.
A literatura do esgotamento/exaustão (BARTH, 1967), ao contrário do que se
interpretou, conforme a consideração feita pelo mesmo Barth (1981, p. 405), não se
refere a uma literatura acabada, sem nada por fazer, só restando aos escritores
contemporâneos se expressarem por meio do pastiche e da paródia dos grandes
escritores de outras épocas
36
, e também não se refere à invenção de um substituto
qualquer do modernismo. Refere-se, antes, a uma verdadeira criação que o suceda e
iguale, podendo ser chamada de ficção pós-modernista e, algum dia, de a literatura da
renovação/recomeço/reabastecimento
37
.
Assim, retomando-se a narrativa de Scliar, na qual há uma saturada reimpressão,
por meio da constante reescrita da narrativa histórica, textualizada na visão de pessoas,
contextos e ideologias múltiplos, acerca de um momento da gestão getulina, nota-se que
a entropia
38
vigente no contemporâneo é positiva, ao emitir novas luzes ao ofuscamento
informacional ora, quando se sofre um ofuscamento, não se enxerga mais nada da
realidade circundante, mas se vê outros/novos flashes de outras cores. Logo, ainda
assim, novos rearranjos sempre serão possíveis para desafiar a criatividade unilateral e a
reelaboração do que se assiste como real.
36
(...) ont cru que je disais que la littérature, du moins le roman, cétait fini; que tout avait dé
été fait et quil ne restait plus aux écrivains contemporains dautres ressources, vu lépuisement de
leur moyen dexpression, que le pastiche et la parodie de nos grands prédécesseurs (...) (BARTH,
1981, p. 405).
37
(...) le terme de postmodernisme dans le sens que la critique actuelle lui confère (...),
étaient déjà lancés, non dans linvention dun substitut quelconque du modernisme, mais dans une
véritable création qui lui succéderait, qui légalerait et que lon nomme maintenant, tant bien que
mal, la fiction postmoderniste; jespère quelle pourrait être aussi considérée um jour comme une
littérature du renouvellement (BARTH, 1981, p. 405).
38
Entropia é a “medida de desorganização de um sistema fechado, (...) pode sugerir a perda de
diferenciação, pelo excesso de informação. (...) estado indesejável, marcado pela redundância e
irrelevância, uma espécie de sinal inundado de rdo”, de acordo com Maltby (1991), mas dentro
de certos limites, a entropia pode ser positivamente valorizada como forma enriquecedora da
mensagem”, de acordo com Slade (1985) (GUELFI, 1999a, p. 28-29).
161
É evidente que, mesmo criticando, ironizando, parodiando, fazendo pastiche,
problematizando, reverenciando, suplementando, enfim, desautomatizando a percepção
que o leitor tem de seu universo, essas formas de se retomar um mesmo pico
constituem estratégias das quais o cotidiano também lança mão. Elas são medidas de
sobrevivência possíveis para o estado de esgotamento que cerceiam o contemporâneo,
ademais de outras maneiras de expressá-lo, nem por isso restritas apenas ao pós-
moderno, mas ao entrelaçamento de cadeias que convivem também no contemporâneo,
de modo geral. Fazem parte dessa multiformidade de maneiras, motivadas na
representação lingüística, a entropia, a hiper-realidade, a fantasmagoria da realidade, o
exagero, a esquizofrenia, a cópia, o clichê, o “mau gosto”, a imagem, o espetáculo, o
simulacro, a fragmentação, o hiper-texto, a impureza, o enfraquecimento, a metaficção
historiográfica, etc.
Na verdade, pode-se pensar a pós-modernidade como alicerçada nas pilastras
filoficas do des” derridiano de desconstrução e seus derivados — destemporalização,
destotalização e desreferencialização, propostas por Gumbrecht (1988, p. 105). Todavia,
não apenas para destruir, mas sim para fazer um balanço terapêutico do que foi e do que
está aí posto, pois ao contrário do modernismo “as correntes pós-modernas, em geral,
não expressam nenhuma num projeto político redentor para a sociedade” (GUELFI,
1996, p. 142). De todo modo, mesmo assim de forma despretenciosa e unilateral, podem
buscar uma “literatura da renovação/recomeço/reabastecimento” proposta por Barth
(1981).
2.1.7 A esquizofrenia
39
39
No ramo médico, esquizofrenia (do grego fender, clivar o espírito) é um termo criado por E.
Bleuler (1911) para designar um grupo de psicoses (a hebefrénica, a catatônica e a paranóide) cuja
unidade tinha já sido mostrada por Kraepelin. Bleuler pretende evidenciar o que ele constitui o
sintoma fundamental daquelas psicoses: a Spaltung (“dissociação”). Clinicamente, a esquizofrenia
diversifica-se em formas aparentemente muito dissemelhantes, em que se distinguem habitualmente
as seguintes caractesticas: a incoerência do pensamento, da ão e da afetividade (designada pelos
termos clássicos discordância, dissociação, desagregação), o afastamento da realidade com um
dobrar-se sobre si mesmo e predominância de uma vida interior entregue às produções
fantasmáticas (autismo), uma actividade delirante mais ou menos acentuada e sempre mal
sistematizada. Finalmente, o caráter crônico da doença, que evolui segundo os mais diversos ritmos
no sentido de uma “deterioração” intelectual e afectiva e resultada muitas vezes em estados de
162
Segundo Guelfi (1999c, p. 28-29), a perspectiva pós-moderna é manifesta pela
postura do entre-lugar, necessária adotar durante a leitura, quando diversos discursos
o confrontados, os indícios se proliferam e a decifração se torna cada vez mais
impossível por se configurar um universo entrópico
40
.
Assim, como a completa ausência de luz impede a visão, o excesso de luz,
também provoca o mesmo efeito. A literatura contemporânea, inclusive, encontra-se a
tal ponto ofuscada por esse clarão de imagens e ruído de informações, provocados pelo
jogo de diferentes luzes, sons e estampas, que ela se encontra surda-muda, além de gasta
e exaurida, por um lado; e multienriquecida, além de reverenciadora, crítica,
problematizadora e terapêutica, por outro. Nas palavras de Huyssen (1991, p. 29), a
esquizofrenia pós-moderna é uma tensão criativa que resulta em edicios ambiciosos e
bem sucedidos e onde, pelo contrário, ela se desvia em direção a uma incoerente e
arbitrária mistura de estilo”.
A religião do modernismo é a ciência, mas como o progresso”, inerente a ela,
entra em crise e perde sua cronologia, ficando cada vez mais longe do real, oco de
imparcialidade e repleto de representação, motivada ideologicamente, a religião do pós-
modernismo passa a ser a imagem ou simulacro, repleta de experiências esquizofrênicas
no tempo e de experiências de pastiche no espaço.
Consta na introdução de O mal-estar no pós-modernismo, de Kaplan (1993, p.
17), quatro pontos contestados no ensaio O pós-modernismo e a sociedade de
consumo”, de Jameson: esmaecimento da antiga distinção entre alta cultura e cultura de
massa, no pós-modernismo; postura política de todas as teorias do pós-modernismo a
respeito do capitalismo multinacional; conceito periodizante de pós-modernismo; e
exibição de quatro características básicas do pós-modernismo: nova falta de
profundidade da teoria contemporânea e da imagem ou simulacro, senso histórico
enfraquecido público e particular — evidente na estrutura “esquizofrênica” das artes
seculares, novo modo e nova tonalidade emocional — denominada por Jameson de
feição demencial, é para a maioria dos psiquiatras um traço primacial, sem o qual não se pode
diagnosticar esquizofrenia” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1970, p. 214).
40
Ver nota sobre entropia.
163
“intensidades” — de se relacionar com os objetos, e centralidade das novas tecnologias
vinculadas a um novo sistema econômico mundial.
Dessas características básicas do pós-modernismo, faz-se necessário enfatizar que
a estrutura “esquizofrênica”, mencionada por Jameson (1997, p. 53), é tomada de Lacan
e descrita como sendo “a ruptura na cadeia dos significantes”. Uma vez que o
significado, agora, “é gerado no movimento do significante ao significado” e o que se
concebe por significado é um “efeito-de-significado, como a miragem objetiva da
significação gerada e projetada pela relação interna dos significantes”, quando essa
cadeia se rompe e se quebram as cadeias da significação, tem-se a esquizofrenia sob
forma de um amontoado de significantes distintos e não relacionados”. Entendendo-se a
conexão entre a psique do esquizofrênico — “efeito de uma certa unificação temporal
entre o presente, o passado e o futuro” — e esse tipo de disfunção lingüística — “essa
própria unificação temporal ativa é uma função da linguagem, ou melhor, da sentença,
na medida em que esta se move no tempo, ao redor do seu círculo hermenêutico” —, de
forma que, com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofnico se reduz à
experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de
puros presentes, não relacionados no tempo”.
A coexistência de tempos diversos, para Jameson, por exemplo, configurada na
mente humana como um grande presente, como o tempo tico, e banida a
obrigatoriedade do sentimento de tempo como progresso linear, com evolução do
inferior para o superior, além de implicar a simultaneidade de tempos heterogêneos,
redunda muitas vezes na pluralidade de estilos que vem sendo chamada de
“historicismo”, pois retoma-se e se convive, lado a lado, o fascínio barroco pelos
espelhos, labirintos, máscaras e simulacros; o sentimentalismo e irracionalismo
românticos; o gosto pelas descrições realistas’, o exagero do ‘real’ transformado em
‘hiper-real’”. O contexto social destemporalizado e o indivíduo bombardeado pelo
excesso de informações, imersos em um presente “esquizofrênico”, faz com que se
perca o sentido histórico da passagem do tempo (GUELFI, 1999c, p. 34).
Na obra, em questão, pode-se tomar um exemplo dessa intoxicação de tempos, de
histórias privada e pública, de ser ficcional e histórico, na situação alucinógena em que
se encontra a personagem Rafael Mendes, financista filho do Rafael Mendes médico.
164
Acorda com batidas violentas na porta.
Rafael! Abre a porta, Rafael! É Helena.
e-se de pé, num pulo, olha o relógio: oito horas. Como é que
Abre, Rafael! Abre, pelo amor de Deus!
Ele abre, Helena entra, desgrenhada, olhar esgazeado, transtornada:
Que foi? grita ele, alarmado. Que foi, Helena?
Ela atira-se nos braços dele, chorando.
Ai, Rafael, que desgraça! Que desgraça!
Fala, Helena! O que aconteceu?
A Suzana, Rafael! Ela foi embora!
Mas para onde? Quando? (SCLIAR, 1983, p.253).
Nesse fragmento do capítulo 7, Rafael Mendes: a corrida”, Rafael financista, que
tendo dormido e o texto escorregado de suas mãos após as leituras da genealogia de
seus antepassados capítulo 2, Primeiro do cristão-novo”, capítulo 5, “Segundo
caderno do cristão-novo”, e capítulo 6, Nota genealógica” —, acorda quando o dia
começa a clarear com as batidas de sua mulher à porta.
Nota-se que, Scliar, ilustrando um momento da zona de transição entre o sono e a
vigília, apresenta sua personagem em uma verdadeira anacronia, coabitada da história
presente de sua vida, da história de sua longa genealogia, bem como de um porvir
iminente, ou sejam, em um turbilhão informacional para a qual ela não está preparada.
Isso desencadeia uma degeneração do ser ficcional e histórico para dar origem a um ser
esquizofrênico, com perda do sentido do significado do tempo cronológico, já que o
sentido histórico lhe é apresentado em um imenso painel imagético, onde um
monumental presente lhe fantasmagoriza a história congelada, sem a distinção temporal,
e de forma disfórica e irreal.
Morin (1994, p. 45-46) considera que, no seio da cultura ocidental, desde o século
XVII, “vivemos uma estranha disjunção esquizofrênica” entre os mundos objetivo-
científico e intuitivo-reflexivo, de forma que dentro dessa oposição “não podemos
encontrar a menor sustentação para a noção de sujeito”. Agora percebe-se que o sujeito
é constituído apenas de fragmentos experimentais e parciais.
165
A literatura e o cinema americanos, segundo Peixoto (1989b, p. 2) fazem uma
recriação alucinada da história, “colocando no mesmo plano de realizada história
factual, relato, mito, ficção e até quadrinhos. No universo da mídia, vivemos estórias já
vividas, em lugares já conhecidos. A realidade, evacuada, foi substitda por cenários.
Aí toda descoberta é apenas uma revisitação”. Tudo que se tem são fachadas habitadas
por clones, desprovidos de espessura e vida, em que as imagens, banalizadas pela
repetição, convertem-se em meros clichês, a apropriação reiterada das mesmas figuras e
histórias acaba exaurindo o seu vigor e significado. Isso porque “a proliferação
desmedida desses artifícios resultou num mundo meramente vazio e esquizofrênico”
(PEIXOTO, 1989a, p. 4).
Na confecção dessa colcha paratática, o autor da linhagem dos Rafael Mendes
monta um único tecido, a partir das partes da história antiga e contemporânea, dispostas
no mesmo vel, o presente. Mas o faz com costuras tortas, o que permite fabricar um
pano ficcional que, além do colorido inusitado e irreal, estampa-se com a pluralidade de
sentidos, com o multiforme do mosaico transdisciplinar e com o frêmito visionário dos
vestígios do real, no momento, atingidos pelo poder espetacular de sua representão.
Para Calinescu (1987), a herança judaico-cristã do tempo histórico, cuja
contribuição é uma das grandes contribuições da modernidade, faz com que se apreenda
o tempo cristão” organizado horizontalmente entre o passado que anuncia e prepara o
futuro” (GUELFI, 1999a, p. 260).
Contudo o texto scliariano dinamita essa concepção, de forma esquizofrênica, uma
vez que, mergulhado na contemporaneidade, atrai a partir dela o passado, parasitando e
mimetizando diversas áreas e momentos até se contaminar, a tal ponto, que suas
fronteiras histórico-literárias se tornam imprecisas e mal sinalizadas. O pretérito se
metamorfoseia em um novo prisma, o presente, e a literatura faz-se mais rica e
congestionada pela iluminação e pelo ofuscamento de outras áreas.
Dessa forma cada texto mostra sua verdade particular, ou, nas palavras de Paro
(1990, p. 220): “Hoje diríamos: As verdades históricas do texto, sob o manto diáfano
(mas não necessariamente) da fantasia do autor e do leitor”.
166
2.2 Implicações do tempo da ficção no tempo da história em A estranha nação de Rafael
Mendes
2.2.1 Para começar
A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), objeto do trabalho em
questão, tem como ingrediente a história genealógica, de forma meta-historiográfica, o
que permite analisá-la a partir de uma postura contemporânea e por que não tamm
pós-moderna?
Uma das definições de história, dada por Ferreira (1999, p. 1055), é ser uma
“narração de acontecimentos, ações, fatos ou particularidades relativos a um
determinado assunto”. Por se tratar da história vinculada à genealogia dos Rafael
Mendes, constata-se mais uma vez a pós-modernidade da obra, uma vez que essa
historicidade está pautada na linha da Nova História, em oposição à História
Tradicional, mais de cunho interpretativo e estrutural, pois a nova vertente, ao valorizar
a história das mentalidades, segundo Le Goff e Nora (1988, p. 71), “situa-se no ponto de
junção do individual e do coletivo, do longo e do quotidiano, do inconsciente e do
intelectual, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral”. E ainda, como
acrescenta White (1995, p. 115) sobre o fazer historiográfico, seguindo o pensamento de
Hegel, os historiadores devem lidar com eventos e temas em sua concretude e
particularidade”. Afinal, uma abordagem micro-histórica, além de revelar a falibilidade
e a incoerência dos contextos sociais, convencionalmente definidos, permite que as
formas de abstração do particular elucidem, por fatos insignificantes e casos individuais,
um fenômeno mais geral.
O tecido literário da obra é tingido pelo histórico, por meio da metaficção
historiográfica, explicando-se e paradoxalmente problematizando-se, conforme
ponderações de Hutcheon (1991). Tal sintoma, ao lado de uma paródia mais reverente,
convalida a obra nos parâmetros pós-modernos da contemporaneidade, uma vez que, se
o escritor ficcionaliza a hisria, é porque ela já tem sua parte com a ficção, conforme
considerações de Guelfi (1994), Connor (1996), Villaça (1996) e McHale (1996), no
sentido de que os pós-modernistas ficcionalizam a história, mas ao fazerem isso eles
167
querem dizer que a própria história pode ser uma forma de ficção
41
.
A historicidade de uma obra implica sua memorialidade, segundo os pareceres de
Bosi (1979) e de Runho (2001), mas também, no caso da obra scliariana, fluxo da
consciência, conforme as reflexões de Humphrey (1976). Desse modo pode-se dizer que
a história, da qual a narrativa se compõe, provém da memória (memória coletiva), dada
por interferências documentárias, e da reminiscência (memória individual), dada por
interferências de exercícios de reflexão, erigindo-se uma composição textual em que o
sistemático memorialista e o assistemático reflexivo fazem parte da narrativa.
Além disso Humphrey (1994, p. 118-120), em sua obra Uma história da mente,
referente à consciência histórica, aos sentidos e sensações da mente e à psicologia
genética, argumenta que a palavra concious [consciente], do latim con [“junto com”] e
scire [saber”] significa literalmente partilhar o conhecimento com outras pessoas, isto
é, antes de mudar seu sentido gradativamente, chegando à partilha do conhecimento
com algumas pessoas, e além de outros, finalmente, a um sentido cada vez mais
limitado e, inclusive, invertido. A palavra consciência passou, dessa forma, de um
significado transitivo para um intransitivo.
Perfazendo-se pelas arestas historiográficas, A estranha nação de Rafael
Mendes não pode deixar de trabalhar a categoria do continuum temporal (VÉSCIO,
1995), oferecida pela história, e a do vaivém cronológico, produzida pela ordem da
narração, atualizada, sobretudo, com a ajuda da teoria de Genette (19[...]), além de
Nunes (1988), porque é se fazendo perguntas para o passado que se encontra respostas
para o presente e conseqüentemente para o futuro.
A fim de demonstrar preocupação com o passado para se entender o presente,
primeiramente se tomará da narrativa de Moacyr Scliar uma cantiga de ninar como um
marcador cronológico da obra, que assegura o andamento da narrativa e a continuidade
da genealogia Mendes para, depois tomar um marcador cronológico na obra, o coma do
Ditador Franco, que marcará a ruptura dessa genealogia. E ambos, a cantiga
(continuidade) e o coma (ruptura), são anunciados e profetizados por uma pergunta
radiofônica, remetendo, de modo geral, às palavras de Benjamin (1985, p. 212), para
41
The postmodernists fictionalize history, but by doing so they imply that history itself may be a
form of fiction (MCHALE, 1996, p. 96).
168
quem “a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo”, e, de
modo específico, às palavras do próprio Scliar (MEDINA, 1985, p. 9), que penhora sua
obra a essa questão, ao dizer que seu compromisso, enquanto autor, restringe-se ao
grande movimento histórico que está bem no fundo das situações ficcionais” e, depois
de impregnar-se dele, destila-o sob forma de ficção”.
2.2.2 Para prosseguir
2.2.2.1 A síntese da história
Na obra A estranha nação de Rafael Mendes, há duas narrativas interpostas:
uma que se desenvolve no momento da narrativa (narrativa principal) e outra que se
inicia no passado e prossegue até o momento da narração (composta por várias
narrativas secundárias). Logo de início, percebe-se, segundo as ponderações de Véscio
(1995, p. 14), que, a partir do presente interroga-se o passado; pois o desconhecimento
do passado impede a compreensão e uma ação eficaz sobre o presente”. O discurso
histórico é uma constante construção do passado que, a cada época, reconstrói-se
conforme preocupações do presente.
A narrativa principal, narrada em 1975, enfoca Rafael Mendes, o último
representante masculino da genealogia Mendes. Essa personagem é um executivo-
financista, preocupado com sua mulher depressiva e perplexo com a condição atual de
sua única filha, Suzana, hippie-essênica. Ele é pego de surpresa pelo golpe financeiro
dado por seu amigo e chefe Boris Goldbaum, dono da financeira Pecúnia.
As narrativas secundárias vão desde o profeta blico, Jonas, até 1975, enfocando
toda a genealogia dos Rafael Mendes, por meio de três cadernos: “Primeiro caderno do
cristão-novo”, “Segundo caderno do cristão-novo” e “Terceiro e último caderno do
cristão-novo”. No primeiro caderno, conta-se desde o primeiro representante da
genealogia, o profeta Jonas, até o Rafael Mendes ferroviário, avô do último Rafael
Mendes (a partir de agora, esse último Rafael Mendes será chamado apenas de Rafael).
O segundo caderno fala sobre o médico Rafael Mendes, pai de Rafael. No terceiro e
último caderno, é narrada a vida de Rafael.
169
É importante salientar que essas narrativas-segundas, relacionadas direta ou
170
2.2.2.2 O narrador
A narrativa em questão apresenta dois narradores, cuja predominância
heterodiegética, no vel extradiegético, parece ter o papel de incutir na mente do leitor
o tom de verdade apregoado pela história tradicional. Esses narradores são o médico
Rafael Mendes, pai de Rafael, e o velho judeu, seu amigo, conhecido por Prof. Samar-
Kand, que diz ser um autodidata historiador e genealogista.
Para apresentar primeiramente a descrição dessa alternância irregular dos
narradores, tem-se:
capítulo: Velho ao amanhecer”: narrador autodiegético (Prof. Samar-Kand);
capítulo: “Rafael Mendes”: narrador heterodiegético (Prof. Samar-Kand);
capítulo: Primeiro caderno do cristão-novo”: narrador heterodiegético (Rafael
Mendes, médico), narrador autodiegético (Rafael Mendes, médico), narrador
heterodiegético (Rafael Mendes, médico);
capítulo: “Rafael Mendes: intervalo”: narrador heterodiegético (Prof. Samar-Kand);
capítulo: Segundo caderno do cristão-novo”: narrador autodiegético (Rafael
Mendes);
capítulo: “Nota genealógica”: narrador heterodiegético (Prof. Samar-Kand);
capítulo: Rafael Mendes: a corrida”: narrador heterodiegético (Prof. Samar-Kand);
8º capítulo: “O velho no aeroportonarrador autodiegético (Prof. Samar-Kand);
catulo: “Terceiro e último caderno do cristão-novo”: narrador heterodiegético
(Prof. Samar-Kand).
É possível perceber que, nos capítulos relacionados à narrativa principal (capítulos
1º, 2º, 4º, 6º, 7º e 8º), constituintes do momento narrativo e, portanto, do presente da
enunciação, o Prof. Samar-Kand, no papel de narrador autodiegético e num vel
intradiegético, ao falar dele mesmo, ou no papel de narrador heterodiegético e num
vel extradiegético, ao falar de Rafael, quem o historiador-genealogista diz conhecer a
fundo, mais do que o próprio Rafael pensa (SCLIAR, 1983, p. 71), admite que o fato de
a pessoa do narrador estar na primeira ou na terceira pessoa gramatical é uma escolha,
segundo coloca Genette (19[....], p. 243), puramente gramatical e retórica”, tendo em
vista que o narrador “só pode estar na sua narrativa, tal como qualquer sujeito de
enunciação no seu enunciado, na ‘primeira pessoa’”.
171
Nos capítulos referentes às narrativas secundárias (capítulos 3º, e 9º), fazendo
parte da história, propriamente dita, o Prof. Samar-Kand (capítulos e 9º), no papel
gramatical e/ou retórico de narrador heterodiegético e num vel extradiegético,
deposita na narrativa todos os seus esforços a fim de fazer transparecer a “verdade”
incontestável da história. O mesmo acontece com o outro narrador, o Rafael Mendes
médico (capítulo 3º), pois inicia o capítulo como heterodiegético, num vel
extradiegético; logo, no segundo e terceiro parágrafos, passa para o papel de
autodiegético, no vel intradiegético, ao falar metanarrativamente de sua profissão de
médico e genealogista e de suas fontes de pesquisa histórica; para, em seguida, voltar à
condição de narrador heterodiegético, no nível extradiegético, do início do capítulo, e aí
seguir até o final. Ou seja, os narradores, dizendo-se historiadores sentem a necessidade
de se distanciarem da obra, a fim de conquistarem para a narrativa maior credibilidade
histórica, por parte do leitor. No entanto, “antes de qualquer mensagem de conteúdo
ideológico já é ideológica a própria pretensão do narrador” (ADORNO, 1983, p. 270),
confirmando as ponderações de Bal (1977, p. 10-11), para quem “o narrador relega a
palavra a um outro”, porque o signo traz para seu patamar tanto a narrativa de
acontecimentos quanto a narrativa de palavras, de forma que se reduz tudo a discurso e
os dois tipos de narrativas formam apenas um”.
2.2.2.3 A cronologia narrativa
O ponto de arranque de A estranha nação de Rafael Mendes se dá justamente
quando se instala a curiosidade pelo desconhecido, no momento em que Rafael, movido
por um pressentimento, abre a porta de seu apartamento, pela manhã, e lá encontra uma
caixa.
Levanta-se, vai até a porta e, num gesto brusco, abre-a. Há algo.
Há uma caixa diante da porta.
Uma caixa de papelão, velha e rasgada. Grosseiramente amarrada com um
barbante encardido. (SCLIAR, 1983, p. 21).
172
Humphrey (1994, p. 25) diz que, pela primeira vez na história desde o início do
universo, as experiências sensoriais, anteriores ao fato real”, começam a surgir como
fenômenos significativos, pois antes de haver outros tipos de fenômenos há “‘sensações
em estado natural’ — gosto, cheiro, cócegas, dores, sensação de calor, de luz, de som e
assim por diante”. Pois, segundo Patlagean (1990, p. 312), a exigência contemporânea
do tempo como dimensão mestra de qualquer pesquisa sobre o homem e sobre as
sociedades humanas, prevê relações entre o inconsciente e as culturas, inclusive, por
meio de sonhos; portanto, “os estudos históricos sobre o imaginário são um exemplo
bastante bom da atual redistribuição das cartas entre a história e as ciências sociais, de
um lado, e entre a história e as histórias de ... literatos e estetas do outro”.
Na obra pode-se exemplificar essa fenomenologia das experiências sensoriais por
meio do pressentimento de Rafael, visto no fragmento acima, e por sensações de som,
que serão vistas através de uma cantiga e de uma notícia de rádio.
É essa curiosidade empírica que gera o mote para a curiosidade epistemológica,
alimentando a busca historiográfica da obra que, pela leitura dos cadernos, via
narrativas secundárias, percebe-se ter um alcance de quase 2500 anos, indo desde o
primeiro representante da genealogia, o profeta Jonas, em Nínive, mais ou menos 500
a.C., até o último representante, o Rafael financista, em Porto Alegre, no dia 20 de
novembro de 1975, enquanto a amplitude do momento narrativo vai das 6h. (SCLIAR,
1983, p. 7) do dia 17 de novembro de 1975 (SCLIAR, 1893, p. 10), até às 23h.
(SCLIAR, 1983, p. 281), do dia 20 de novembro de 1975, i.e., a duração da narrativa é
de três dias.
A priori, a obra parece separar definitivamente os capítulos dedicados ao alcance
da história (capítulos 3º, 5º e 6º) dos capítulos referentes à amplitude do momento da
narrativa (catulos 1º, 2º, 4º, e 8º). Porém, é no catulo que o alcance da história
passa a coincidir com sua amplitude, ou seja, o alcance é igual à amplitude uma vez que
o tempo da hisria passa a caminhar junto com o momento do relato, mostrando, ao
mesmo tempo, a preocupação em se vincular a história passada à contemporânea.
Para representar esse pêndulo historiográfico, ecoando desde o tempo da história
até o momento do relato, tomar-se-á a cantiga de ninar, material histórico que
acompanha toda a genealogia dos Rafael Mendes, perpassando-a e sobrevivendo às
173
anulações do tempo e às diásporas judaicas, em seu continuum histórico. Tal cantiga,
além de servir como um exemplo estratégico para se ilustrar a ordem cronológica da
história, traz implicações para a história contida na narrativa, objeto do trabalho em
questão.
A referência a essa canção de ninar aparece, no decorrer da obra, por doze vezes e
será utilizada para dar exemplos de prolepses, do relato em tempo narrativo real, e de
analepses. Devido a sua característica paradigmática e generalizante no cotidiano
narrativo, ela é mencionada, às vezes, apenas de forma breve, por se tornar muito
familiar ao leitor.
No papel proléptico, ela se manifesta primeiramente no germe insignificante do
esboço, quando Rafael, sem entender a mudança brusca operada na filha, questiona-se,
por meio dos amorces, sobre o quê, de fato, deve ter ocorrido com sua Suzana.
Como é que aconteceu isso? Como é que a menina que ele embalava para dormir se
transformou nessa estranha, com a qual não consegue conversar? (SCLIAR, 1983, p. 19).
Suzana ria, feliz. Riam os três, brincavam, entoavam canções infantis. (SCLIAR, 1983, p.
29).
Depois a cantiga, como anúncio da descoberta que Rafael fará no tocante a sua
genealogia, faz uma breve alusão a ela mesma, no momento em que Rafael encontra as
coisas pertencentes a seu pai na porta de seu apartamento, embora ele ainda não saiba
disso e, muito menos, quem as enviou.
E a letra de uma cantiga de ninar:
Duerme, duerme, mi angélico,
hijico chico de tu nación (SCLIAR, 1983, p. 43).
Na condição de prolepse repetitiva, como se verá a seguir, e mostrando sinal de
impaciência narrativa, a canção traz também à superfície da obra a sua pós-modernidade
por meio de elementos típicos da metaficção historiográfica, ao deixar transparecer as
formas de sua composição, feita de história, ademais de sua inerente ficcionalidade.
174
Segundo considerações de Campos (1999, p. 3), o historiador parte “de problemas que
sempre têm a ver com o presente e, tentando compreendê-los, utiliza fontes dos mais
diversos tipos para a obtenção de documentos a serem estudados (...) e usados de formas
diversas, dependendo do trabalho do historiador”.
Pois bem, pode-se exemplificar a prolepse repetitiva pela colocação do narrador
autodiegético, Rafael Mendes médico, sobre seu trabalho de historiador, para o qual
parte das mais variadas fontes.
Meu nome é Rafael Mendes. Sou médico e um aficionado da genealogia. Explorando as
raízes de minha família — o que envolveu o estudo de documentos, de velhos alfarrábios,
de braes em talheres e até de letras de cantigas de ninar, cheguei ao nome de Jonas
como o mais remoto dos meus antepassados conhecidos. (SCLIAR, 1983, p. 77).
Essa estratégia narrativa de debruçar-se sobre si mesma a fim de fazer uma
reflexão de sua ficcionalidade e de sua historicidade vai ao encontro das ponderações de
Hutcheon (1991), para quem a “metaficção historiográfica” presta-se a designar obras
de ficção que fazem uma reflexão consciente sobre sua própria condição de obra
ficcional, colocando em evidência também o autor e sua escrita, além de que,
explicitando melhor à luz das ponderações de Guelfi (1994, p. 179), só a “metaficção
(...) o é sinônimo de pós-modernidade”, mas sim o seu historicismo. O fato de a obra
expor sua ficcionalidade implica a ficção da história, de cujo substrato lança mão,
negando-se, portanto, a existência de limites muito claros entre história e ficção, ao
apoiar-se no argumento de que a história só se dá a conhecer mediada pela
representão, inclusive narrativa. E, como coloca Connor (1996, p. 107), “uma vez que
o real se transformou em discurso, já não há separação entre texto e mundo a ser
transposta”, ou, citando Lopes (1997, p. 358), tudo se transforma em “signo” e, afinal,
em “mito”, cedendo a sua convencionalidade ideológica.
Ainda se referindo ao trecho citado (p. 77), o narrador Rafael Mendes médico, na
condição de co-historiador da sua própria história, diz pautar-se na memória coletiva
para fazer o resgate genealógico de sua família, o que confirma a concepção de
memória de Halbwachs (BOSI, 1979, p. 17), pois a memória de Rafael, enquanto
indivíduo, “depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a
175
escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo”.
Nota-se, porém, que a narrativa não é apenas constituída dessa forma mnemônica
objetiva e transubjetiva. Está presente também, em sua composição, a memória
enquanto estado bruto, portanto, subjetiva e inconsciente, apregoada na concepção de
Bergson (BOSI, 1979, p. 14), para quem “antes de ser atualizada pela consciência, toda
lembrança ‘vive’ em estado latente, potencial. Esse estado, porque está abaixo da
consciência atual (‘abaixo’, metaforicamente), é qualificado de ‘inconsciente’”, e de
acordo com seu sentido primeiro, conforme aparece no Dicionário etimológico da
língua portuguesa (MACHADO, 1967, p. 1542), memória, vinda do latim, significa
relembrar; período alcançado pela lembrança”. Mesmo o narrador, Rafael Mendes
médico, faz menção, em outro momento, a essa memória com sentido de reminiscência,
própria da vita contemplativa.
Que música é essa que cantas quando embalas o Rafaelzinho? — perguntou-me um dia
Alzira. Não soube responder, não soube dizer que cantiga era aquela, Duerme, duerme, mi
angélico / hijico chico de tu nación. (SCLIAR, 1983, p. 210).
Essa ótica de bergsoniana, sem dúvida, predomina na forma como a canção é
trazida para a narrativa, pois, de suas doze manifestações, em onze delas, ela é fruto
latente do inconsciente, já que, de acordo com as ponderações de Humphrey (1976, p.
110), “a consciência, nos níveis que antecedem a fala [e, por associação, a escrita], não
tem um padrão definido; uma consciência, por sua própria natureza, existe independente
da ação”.
É possível observar o que Bartlett (BOSI, 1979, p. 26), cuja concepção mnêmica
coincide com os conceitos de “quadros sociais” e de “convencionalização” de
Halbwachs, distingue como “modo da recordação” (como se lembra), no fragmento da
p. 77, e como “matéria da recordação” (o que se lembra), no fragmento da p. 210. Mas,
mais do que isso, os dois trechos citados exemplificam a teoria psicossocial de Stern
que, segundo Runho (2001, p. 32), combina uma “psicologia tradicional, de cunho
personalista”, aproximando-se da memória pura e retentiva, mantida no inconsciente, de
autoria de Bergson — fragmento da p. 210 —, com uma psicologia objetiva, que
176
admite o peso das interações do corpo com a sociedade”, aproximando-se da memória
elaborativa, dados os valores coletivos do presente, de autoria de Halbwachs
fragmento da p. 77.
Voltando a falar da anacronia em A estranha nação de Rafael Mendes, a
passagem da referência proléptica à cantiga de ninar propriamente dita, isto é, do
tempo narrado” ao “tempo do narrar”, segundo Muller (NUNES, 1995, p. 30), vê-se
que essa passagem se dá de forma brusca. Toda a referência feita à cantiga pode ser
chamada de prolepse parcial e não completa, uma vez que ela não se prolonga até o
desenlace da obra, mas, depois do relato em tempo narrativo real, lugar à analepse.
Eis o relato em tempo narrativo real da canção infantil, no qual a referida
canção é narrada em seu tempo e em sua vez. O itálico das referências prolépticas e
depois analépticas, aqui, no tempo narrativo real do relato, desaparece e é substitdo
por aspas.
Anos depois morria Moisés bem Maimon, o Maimônides, seus descendentes
voltaram a Córdoba; na Espanha viveram em paz, gerando os filhos, embalando-os com
canções em dialeto ladino:
Duerme, duerme, mi angélico
Hijico chico de tu nación...
Creatura de Sión,
no conoces la dolor.
Mais tarde, dirigiram-se a Portugal. O nome da família foi mudado: Maimônides,
Maimendes, Memendes, Mendes. (SCLIAR, 1983, p. 106).
Regressando abertamente ao que já foi dito, a analepse, agora, referente à música
de criança faz menção a Rafael Mendes, exportador de couros, que, quando adolescente,
junta-se aos Farrapos a fim de encontrar o pai, o Rafael Mendes comerciante de ouro e,
depois fazendeiro.
Dele, Rafael guardará a imagem de um homem esquisito, mas carinhoso, que o tomava
nos braços e que o embalava com uma canção em ladino, língua de remotos ancestrais:
Duerme, duerme, mi angélico
177
Hijico chico de tu nación...
Criatura de Sión,
no conoces la dolor. (SCLIAR, 1983, p. 176).
É interessante lembrar que, dentro da analepse, há um outro ir para trás no
momento narrativo, quando o jovem Rafael Mendes pergunta aos voluntários se não faz
parte deles um “homem que cantava duerme, duerme, mi angelico” (SCLIAR, 1983, p.
178).
Essas analepses homodiegéticas vão se repetindo na obra, de forma muito familiar
ao leitor e, por vezes, de maneira muito sucinta. Em princípio a retrospectiva aparece
quando o jovem Farrapo parece ouvir a canção trazida pelo vento.
Uma noite, vagueando insone pelos arredores de Laguna, parece-lhe ouvir,
trazidas pelo vento, as palavras de uma bem conhecida canção: Duerme, duerme, mi
angelico... (SCLIAR, 1983, p. 182).
Em seguida, Rafael Mendes, exportador de couros, diz embalar seu filho à toada
da cantiga.
Quando nasceu seu próprio filho, contudo, como o embalou? Ora, cantando duerme,
duerme, mi angelico; era mais forte que ele. Coisas arcaicas são assim: poderosas, ainda
que misteriosas. (SCLIAR, 1983, p. 183).
Depois, quando Alzira, a esposa do Rafael Mendes médico, pergunta-lhe sobre a
procedência da música cantada por ele, ao embalar o filho, o que ele ignora
completamente.
Que música é essa que cantas quando embalas o Rafaelzinho? — perguntou-me um dia
Alzira. Não soube responder, não soube dizer que cantiga era aquele, Duerme, duerme, mi
angelico / hijico chico de tu nación. (SCLIAR, 1983, p. 210).
Para finalmente se repetir, no momento em que Boris Goldbaum, após ter dado
178
um golpe financeiro em seus clientes, está no aeroporto para fugir com Suzana, a filha
de Rafael, para o Uruguai.
o amantes e vão fugir juntos. Boris continua a falar, mas sua voz agora soa distante a
Rafael, embora seja importante o que diz (narra como surgiu o amor entre os dois:
repentinamente; diz porque querem recomeçar a vida longe — Montevidéu é só uma
escala — num lugar de idílica paisagem, uma baía, o mar quebrando na praia de areias
brancas, coqueiros, aves coloridas esvoaçando contra o céu; e não querem mais saber de
finanças, nem de mansões, nada; querem amar-se); e Rafael não o ouve, porque está
pensando na pequena Suzana que embalou (duerme, duerme, mi angelico) e na menina
Suzana, e na moça — (SCLIAR, 1983, p. 255-26).
Essa cantiga de ninar, por perseguir a genealogia dos Rafael Mendes, é
mencionada, pela primeira vez, antes de iniciar a narrativa primeira (p. 19), estendendo-
se para além do começo da mesma (p. 255-256), ou seja, constitui-se uma analepse
mista, pois seu ponto de alcance é anterior e seu ponto de amplitude é posterior ao início
da narrativa primeira; o que permite enxergar realmente sua presença total pela
genealogia Mendes, por meio de sua cronologia narrativa.
Pela mensagem meta-historiográfica da música infantil, que percorre toda a
cronologia narrativa, Rafael também toma conhecimento, embora de forma
problemática, da metaliterariedade que o constitui enquanto personagem fictícia e
literária, ao interar-se da perplexidade irresoluta, à qual toda sua genealogia está fadada:
“não a perplexidade do olho arregalado, da boca aberta e do queixo caído; uma
perplexidade menor, embrionária; mas inquietante...” (SCLIAR, 1983, p. 191). E essa
questão também diz respeito às preocupações dos Annales (VÉSCIO, 1995, p. 15), que
valorizam a “história-problema”, ao apropriarem-se do estudo das mentalidades, criando
a psico-história” e defendendo a história dos sentimentos”.
Além da canção infantil, outro marcador cronológico na obra é a insistente
menção ao coma e, por fim, à morte do General Franco. Se a música, pela sua
cronologia ficcional, assegura a continuidade da narrativa e, pelas referências hisricas
por ela aportadas, assegura a continuidade genealógica da história, o coma do Ditador
179
espanhol, pelos seus anúncios, à moda dos retornos proustianos, marca um reinterpretar
narrativo e, pela sua morte, pontua a ruptura e o indício do reiniciar dessa genealogia.
Semeadas por toda a obra (p. 9, 18, 19, 25, 26, 33, 35, 36, 52, 266 e 271), há
referências ao estado de coma de Franco.
Que horas são? Que dia é hoje? Como está o tempo? A quanto está o dólar? Morreu, o
Franco? (SCLIAR, 1983, p. 9).
Um anúncio e, logo a última notícia: o generalíssimo Franco continua em estado de coma.
Que coisa, murmura Rafael. Não costuma falar sozinho; mas, como todos os porto-
alegrenses, como todas as pessoas de modo geral, não pode deixar de se espantar com a
resistência do ditador. Como é que não morre esse diabo, é o que se perguntam todos (ou
pelo menos é o que ele imagina que todos se perguntam). Não que esteja particularmente
interessado no assunto; não gosta de Franco, não sente nenhuma peculiar estima pelo
caudilho espanhol, mas — é um ser humano. Bem, mas ser humano ou não, pouco
importa. (SCLIAR, 1983, p. 18).
É possível notar, no excerto da p. 18, que Rafael faz referência ao Ditador de
forma irônica, o que contribui para a convalidação de A estranha nação de Rafael
Mendes nos pressupostos da pós-modernidade, pois, a partir do que coloca Hutcheon
(1985, p. 52) sobre a confrontação de um texto com outro — no caso, o texto literário
com o histórico — via paródia, é “um modo de auto-reflexidade”, ou melhor, “uma
maneira de chamar a atenção para o convencionalismo”, que os críticos consideram
central na definição de arte.
As menções ao estado de Franco, no que dizem respeito às estratégias de
comunicação, dão-se por meio de pessoas físicas, rádio, jornal e televisão. Quanto às
estratégias da narrativa, elas se dão via anúncio, cuja função é referir-se
antecipadamente a um acontecimento que só será contado posteriormente.
Nas últimas páginas da obra, o relato, embora de forma breve, da morte de
Franco (1892-1975), em uma conversa entre Rafael e o médico que vai à cadeia a fim
de facilitar sua fuga e a de Boris.
180
A propósito murmura Rafael, uma voz débil morreu, o Franco?
Quem? o velho pensa não ter ouvido bem.
O Franco. O general Franco.
Ah! O doutor surpreso. Morreu, sim (...). (SCLIAR, 1983, p. 283).
De acordo com Genette (19[...], p. 57), a utilização mais pica do retorno é, sem
dúvida, em Proust, aquela pela qual um acontecimento já provido a seu tempo de uma
significação vê depois essa primeira interpretação substitda por uma outra”. Pois bem,
na obra, o anúncio da agonia e depois da morte do Ditador, em 20 de novembro de
1975, culminando com a queda do Franquismo, segundo Meihy e Bertolli Filho (1996,
p.67), depois de seu longo período de ditadura (1939-1975), toma os moldes do retorno
proustiano, já que o anúncio retorna com uma nova significação: “a obra, em questão,
centra-se no romper do ciclo, que acontece não sem resistência, metaforizado no
caminhar junto com a longa ditadura — longa linhagem dos Mendes — e com a
relutância do ditador espanhol Franco em morrer, apesar do coma a resistência desta
longa genealogia em se romper” (VILASBÔAS, 2001, p. 272).
Tendo-se em vista que, em qualquer texto, o significado das frases não é
autônomo, essa análise da longa ditadura de Franco e de sua queda, como metáfora da
longa genealogia dos Rafael Mendes e de sua ruptura, é procedente, uma vez que o
General falece em 20 de novembro de 1.975, o mesmo dia em que o tempo do narrar”
termina. Ademais, um dos críticos de Scliar, falando sobre sua obra Doutor Miragem
(SCLIAR, 1978), coloca a não gratuidade das referências e as correspondências, por
vezes, distantes nos textos scliarianos.
O cuidado do A. marca, aliás, toda a construção do romance, onde nenhum
episódio, personagem ou palavra aparecem por acaso; tudo tem relação e se articula
harmonicamente, numa narrativa povoada de pequeninas sugestões que os factos
posteriores só farão confirmar, em correspondências por vezes bem distantes.
(MARCHON, 1981, p. 89).
O rompimento do ciclo genealógico dos Mendes, de quase 2500 anos por sinal,
machista, porque sua cisão se deu com a única representante feminina, Suzana, a filha
181
de Rafael, e sua previsão de reinício é a de renascer-se com um menino —, só faz
prever o reicio da mesma genealogia, vislumbrada por meio dos sonhos que Rafael
espera ter. E o ciclo de tal família prevê, em sua pauta, a mesma trajetória errante dos
judeus, mas não com os vícios das personagens casmurras, comprometidas com a velha
e bolorenta História Tradicional e sim com a pureza livre das baixas e infantes
personagens da Nova História.
Rafael Mendes deita-se, fecha os olhos. Espera pelo sono que virá; e pelos
sonhos... Não os olhos do Profeta, nem as fogueiras da Inquisição, nem a cabeça decepada
de Tiradentes, nem o guerreiro medieval, nem a sacerdotiza de Astarté, nem Habacuc,
nem Eliezer, nem Naomi, nem nenhum dos essênios, Velhos ou Novos; nem Maimônides,
nem Saladino, nem Bandarra, nem Colombo, nem o Inquisidor-Mor, nem Afonso
Sanches; nem o cacique, nem Pombinha, nem os índios; nem Bento Teixeira, nem
Vicente Nunes, nem Joseph de Castro; nem Frans Post; nem Felipe Roys; nem Manoel
Beckman, nem João Felipe Bettendorf, nem Maria de Freitas, nem Gracia Tapanhuna;
nem Álvaro de Mesquita, nem Zambi, nem M’bonga, nem os quilombolas; nem
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nem Bárbara Santos, nem Pedro Telles; nem Diogo
Henriques, nem Isabel Henriques; nem o bandeirante cego; nem Garibaldi, nem Anita;
nem a doutora Débora, nem o Micróbio, nem o doutor Saturnino, nem o jornalista do
Alerta, nem o Padre João de Buarque, nem Sepé Tiaraju; nem nenhum dos muitos Rafael
Mendes que jazem sob a terra, ossos e pó, pó e ossos; nada disto verá; verá, isto sim, um
menino em roupinha de marinheiro a espiá-lo, sorridente, por entre os ramos da Árvore da
Vida. (SCLIAR, 1983, p. 287).
Um outro exemplo desse tipo de anúncio, semelhante ao retorno de Proust e
fundamental para divulgar o nó narrativo, é uma incômoda pergunta radiofônica feita
por um locutor, causando estranhamento na personagem Rafael, em nível narrativo,
além de enfatizar o inusitado por meio do ilico, em nível formal. O questionamento é
apresentado logo no início da obra e repetido mais três vezes no decorrer das primeiras
páginas.
Liga o rádio.
Está você preparado para a grande aventura de sua vida? — pergunta o locutor,
182
numa voz grave, mas neutra, sem excitação, sem promessas. A indagação fica sem
resposta: o dio emudece, a estação saiu do ar. Corte de energia”. (SCLIAR, 1983, p.
16).
Nota-se que a pergunta feita, antes de Rafael tomar conhecimento de todos os seus
antepassados, funciona, mais ou menos, como uma preparação profética para ele.
Pretende ser o mais neutra possível, sem despertar nenhuma expectativa. Quer ser bem
objetiva, uma vez que o conteúdo a que ela se propõe a descortinar é o histórico.
Porém, fazendo uso de uma posição enunciativa com a possibilidade de ocultá-la
— segundo aponta Bertrand (2003, p. 111) — embora o narrador heterodiegético, a
partir de uma focalização extradiegética, diga, em seu discurso, que a indagação veicula
apenas a neutralidade, fica clara a instalação de uma espécie de ansiedade impressa, por
meio dela, na personagem Rafael, devido ao corte brusco de energia elétrica e,
sobretudo, à falta, proposital, de resposta.
Está você preparado para a grande aventura de sua vida? A pergunta fica a lhe
ressoar nos ouvidos. De que grande aventura se trataria? De uma viagem ao redor do
mundo, numa frágil caravela? De uma exploração espacial? De uma expedição à África?
De encontro com mulher misteriosa? De mergulho no passado em busca de espectros
infantis ou mesmo de raízes históricas? De sondagem do futuro num audaz exercício de
prospectiva? Não, claro que não. Deve ser um loteamento na praia. Ou um novo modelo
de automóvel. A emissora volta ao ar, o locutor pede desculpas; foi, efetivamente, um
corte de energia elétrica; é o que ele informa, sem nenhum aparente rancor. Mas não diz
qual é a grande aventura, passa ao anúncio seguinte, e logo se inicia o noticiário.
(SCLIAR, 1983, p. 17).
No elencar das possíveis respostas à questão, exibe-se um anúncio dentro do
próprio anúncio e se revela o caráter histórico da obra, acompanhado do genealógico: a
cantiga de ninar. Pois dentre o arrolar das propostas, a resposta já é delineada: “De
mergulho no passado em busca de espectros infantis ou mesmo de raízes históricas?”.
Embora aparentemente passe despercebida por se tratar de mais uma possibilidade
dentre várias.
183
O narrador parece querer trapacear o leitor e fazê-lo realmente acreditar que o
questionamento é inocente e não já endereçado a Rafael, ao apresentar uma resposta
comum de loteamento imobiliário, no fragmento da p. 25, e monótona devido à
repetição musical de fim de programa, no fragmento da p. 53.
Senta-se à mesa, liga o dio. Os últimos acordes de uma suave melodia e logo em
seguida o locutor torna a perguntar — Está você preparado para a grande aventura de
sua vida? — na mesma voz grave e sem emoção. Trata-se, como Rafael supunha, de um
loteamento à beira-mar em Santa Catarina, próximo à Laguna. Lugar de sonho. A brisa do
mar, o encanto da paisagem, etc., tudo por uma módica prestação. Rafael serve-se do
café, sorve um gole. Frio. Toma-o assim mesmo. (SCLIAR, 1983, p. 25).
A característica musical assinala o fim das notícias. Nada — felizmente — sobre
a Pecúnia. Logo depois Está você preparado para a grande aventura de sua vida?
o motorista, a pedido de Rafael, desliga o rádio. (SCLIAR, 1983, p. 53).
Esse anúncio também como o do coma de Franco, ao chegar ao momento do
conhecimento do fato, lança-se retrospectivamente sobre a obra, na forma de retorno, e
especificamente do jeito proustiano, pois a grande aventura passa a significar a tomada
de consciência, por parte de Rafael, de sua genealogia a qual porta uma perplexidade
inerente e secular. A atualização dessa perplexidade fornece material para a reflexão
sobre ela, de maneira que a posse desse conhecimento já é, de certa forma, a
amenização da mesma, embora nem por isso deixe de ser problemática. Transportando
essa perplexidade, consciente, em Scliar, para o sintagma das obras pós-modernas, do
qual a narrativa faz parte, Santos, na aba do livro de Villaça (1996), diz que os autores
pós-modernos oferecem “uma imagem menos enigmática da nossa perplexidade face ao
mundo contemporâneo”.
2.2.3 Para tentar fechar
A estranha nação de Rafael Mendes invade as fronteiras da história para daí
184
extrair seu substrato e se constituir como literatura. Nessa invasão, ela não fica ilesa da
cumplicidade com a pós-modernidade, pois, ao se deixar pincelar pela história, de modo
consciente e problemático, acaba por se contaminar e, por fim, confundir-se com ela,
uma vez que é o discurso, ou seja, o signo lingüístico que se incumbe de gerir tanto a
história quanto a literatura. É nesse entrave discursivo que se situa a ficção scliariana.
O duplo feitio do qual se reveste a obra vai se delineando de um jeito irônico e
paródico, estratégias de sua auto-reflexividade problemática, à medida que coloca em
xeque a forma de composição narrativa, no que diz respeito a questões narratológicas,
mnemônicas e cronológicas.
Os dois narradores, no papel de historiadores do resgate genealógico ocupam a
posição narrativa de heterodiegéticos, a partir de um nível extradiegético, devido à força
da convenção, imposta pela História Tradicional, ironizando, assim, esse status de
verdade e objetividade.
A história genealógica que ia na superfície da ficção brota do substrato
memorialista do indivíduo, fruto tanto das impressões sensoriais do inconsciente como
de sua reelaboração, senão coletiva, pelo menos, dupla, por meio da redação de
cadernos. Apesar de predominar a sinestesia do inconsciente, revela-se, em ambas as
formas de resgate, a memória como alicerce historiográfico, em suas várias
modalidades: individual e coletiva, trazidas para o presente por necessidades
contemporâneas, até mesmo por meio de fontes minoritárias e sentimentos particulares.
A história presente na obra envereda-se pela corrente da Nova História,
valorizando fatos cotidianos e sentimentos não coletivos para galgar, a partir dessa ótica
microscópica, fenômenos mais gerais capazes de dar conta da mentalidade de gerações.
É o caso, por exemplo, da canção de ninar que acompanha toda a genealogia dos Rafael
Mendes e contribui para desvendar sua perplexidade ancestral, a fim de, pela tomada de
consciência, aprender a lidar de maneira mais eficiente com sua problemática, ou seja, o
presente, para se compreender e se auto-afirmar na atualidade, cobra sempre do passado
o legado que esse lhe deve por já ter sido.
Concretizando essa questão na estrutura da obra, a narrativa subordina sua
cronologia ao serviço do tempo histórico. Este, além de se manifestar na música
infantil, assegurando a continuidade genealógica, atualiza-se também na notícia do
185
coma e da morte do Ditador Franco, marcando todo o ciclo dos Mendes com sua
resistência, sua cisão e sua provável continuidade. Ademais, presentifica-se na
indagação radiofônica, preparando tanto o personagem Rafael como o leitor para o
arranque narrativo, cujas implicações do tempo da ficção repercutem no tempo da
história de A estranha nação de Rafael Mendes.
2.3 Os ideais/sonhos sonhosideais dos Mendes em A estranha nação de Rafael Mendes
2.3.1 E os sonhos acontecem...
O trabalho, em questão, a partir do romance do médico e sanitarista judeu, Moacyr
Scliar, intitulado A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983), versará sobre
os pesadelos e sobre os ideais das personagens da longa linhagem dos Mendes, cuja
trajetória vem desde o Oriente (Oriente Médio: Israel) até o Ocidente (Europa e
América do sul: Brasil), e é povoada por dezessete representantes masculinos, dos quais
só cinco não recebem o nome de Rafael Mendes, os outros todos o recebem como
disfarce à perseguição do judeu errante, findando-se com a única representante
feminina, Suzana. Ou seja, o trabalho tratará dos “sonhos dormindo” — atualizados na
obra em forma de pesadelos e só em sua última manifestação de maneira tranqüila, por
se tratar de um pensamento onírico e não efetivamente de um sonho — e dos “sonhos
acordados” — atualizados em forma de ideais. Pois, se Freud (1987, p. 322), em sua
obra A interpretação dos sonhos, coloca que “o trabalho do sonho se serve do sonhar
como forma de repúdio, confirmando assim a descoberta de que os sonhos são
realizações de desejos”, então se pode aventar que os “sonhos acordados” implicam os
“sonhos dormindo”, uma vez que, assim como “a unidade significante-significado liga-
se a novos contextos, favorecendo o aparecimento de significação renovada na cadeia”
186
a partir das ponderações de Silva (2002, p. 111), em sua análise do conto The mark
on the wall de Virginia Woolf —, os pensamentos e aspirações humanas do estado de
vigília também se renovam no contexto onírico de quem dorme.
2.3.2 .... e os sonhos têm uma análise...
Tomar-se-ão tanto os sonhos em estado de vigília, “sonhos acordados”, quanto os
sonhos propriamente ditos, sonhos dormindo”, à medida que forem aparecendo ao
longo da obra, a fim de mostrar a constituição psíquica da genealogia dos Mendes,
enigmática e perplexa, até galgar ao conhecimento de si mesma.
O Rafael Mendes, financista, o último representante da genealogia,
constantemente, tem pesadelos, cujo “conteúdo manifesto”, que para Freud (1987, p.
270) é o sonho “tal como se apresenta em nossa memória”, é povoado de aventura,
violência, personagens históricas e cavaleiros medievais.
Eis o seu sonho:
Os olhos do profeta? Hein? Os olhos do profeta?
Não. Nem os olhos do profeta, nem as fogueiras da Inquisição, nem a caravela,
nem a cabeça decepada de Tiradentes, nada disso Rafael Mendes vê, ao abrir os olhos. E
no entanto foi uma noite de aventuras, de amores e de traições; foi uma noite de fogo e de
sangue, de vinho e de urucum; foi uma noite de harpas e tambores. Foi uma noite que
durou séculos. E da qual poderia não mais acordar; no último de uma espantosa sucessão
de sonhos e pesadelos era atacado por um cavaleiro em armadura medieval que lhe
apertava o pescoço com manoplas de ferro; a ponto de que não podia mais respirar; a
ponto de — embora sabendo que tudo não passava de pesadelo — sentir-se morrer.
Salvou-o a lida madrugada; ao primeiro clarão deste dia despertou, sobressaltado,
arquejante, banhado de suor. Mas vivo. (SCLIAR, 1983, p. 13).
Nota-se que o financista ignora, por completo, no plano do consciente, seus
descendentes judeus, bem como suas respectivas relações interpessoais com
personagens históricas como profetas, fugitivos da Inquisição, marinheiros
187
descobridores de novas terras, Tiradentes e índios, embora no vel inconsciente, ele
tenha obtido essas informações, mesmo que via intra-uterina, e, dessa forma, o prazer
dessa noite de aventuras, amores e traições é achatado pela máscara do “recalque” que,
de acordo com Bennington (1996, p. 103) “quer que o prazer possa ser vivido como
desprazer”, fazendo com que o “prazer inconsciente possa ser desprazer consciente”.
Portanto, Rafael só tem, em nível consciente, o “conteúdo manifesto”, e não o
“conteúdo latente”, definido por Freud (1987, p. 270) como os “pensamentos do
sonho”, mas não a interpretação dele.
Esse pesadelo, do qual foi visto um exemplo, encontra-se sempre atrelado aos
ideais dos Mendes, errantes, em busca do mito do paraíso perdido — presente no
fragmente abaixo —, perfazendo-se um balanço de causa (ideais) e efeito (pesadelo),
em que a realização do desejo culmina no pesadelo, devido às aspirações do sonho em
estado de vigília, como se pode ver a seguir:
No entanto, um olho estava intacto; um olho intacto o fitava irônico, com a mesma
expressão que antes o perturbara. Sacando a faca, Bandarra extraiu aquele olho de seu
soquete. Examinou-o cuidadosamente; algo havia de estranho ali... Movido por uma força
invencível, espiou atras da pupila dilatada. Teve eno visões que muito o
impressionaram. Terras desconhecidas; uma linda paisagem. Uma baía, um mar azul,
ondas quebrando numa praia de areias muito brancas. Coqueiros. Aves coloridas,
exóticas, em revoada no azul glorioso de um céu desconhecido. Nesta praia surgem de
repente criaturas estranhas, homens, mulheres e crianças, de tez bronzeada, resto pintado
de cores berrantes, adornos de plumas nos longos cabelos; ajoelham-se — diante de
quem? Do Messias? De um rei que ainda está por nascer? De um dos Mendes? Bandarra
não pôde descobrir. A visão foi se esmaecendo, o olho voltando a ser o que era, o globo
ocular de um novilho morto. (SCLIAR, 1983, p. 107).
O “sonho acordado” é proveniente de um episódio inexplicável como a visão do
sapateiro-poeta, Bandarra, a respeito das buscas idílicas de seus senhores portugueses de
Troncoso com cenas de um paraíso perdido perfeito, o qual, por ser caracterizado pela
beleza tropical e indígena, bem pode ser suas vontades de deixar o velho mundo e rumar
188
para o novo (E por que não o Brasil?), em busca “de terras distantes, e aparentemente
ricas e dadivosas” (SCLIAR, 1983, p. 108).
Bandarra, em conseqüência disso, passa a aconselhar os jovens Mendes a
aprenderem a arte de velejar e de ler mapas marítimos. Não se sabe ao certo se é por
causa de seus conselhos, mas no fim do século quinze, o jovem Rafael Mendes — o
primeiro da genealogia a receber tal nome — torna-se cartógrafo, mesmo contra a
vontade do pai.
Essa vio do sapateiro da família imprimi-se na linhagem dos Mendes e, dessa
mark on the wall”, a saber, dessa marca na parede — como escreve Virginia Woolf
(1993, p. 53) em seu conto de mesmo nome —, uma vez que todo traço é traço de
traço. Nenhum elemento jamais está presente em nenhum lugar (nem simplesmente
ausente), só há traços”, segundo Bennington (1996, p. 60), fica o rastro para os desejos
das novas gerações, como se pode ver pelas divagações do Rafael, cartógrafo:
Rafael Mendes, o cartógrafo, não respondia ao pai. Respeito? o. É que sequer o
ouvia. Flutuava no espaço, por assim dizer; e o que via lá de cima eram paisagens
longínquas, misteriosas, fascinantes. Era a visão de uma baía; ondas quebrando numa
praia de areias muito brancas. Coqueiro. Aves coloridas, exóticas. O azul glorioso de um
céu desconhecido. (SCLIAR, 1983, p. 110).
Conforme as colocações de Aristóteles, o melhor intérprete de sonhos é aquele
que melhor capta as semelhanças...” (DERRIDA, 1991b, p. 286), habilidade possuída
por Rafael, como se pode constatar pela percepção que o cartógrafo tem do novo lugar
desconhecido, decorado de lindas praias tropicais e indígenas, semelhantemente a seus
sonhos em estado de vigília, ainda em Portugal, depois de longas torturas e de uma
longa viagem, foragido do longo braço da Inquisição, junto a seu amigo Afonso:
Raiou o dia, um belo dia; avistaram ssaros — o que os animou: diriam estar
perto da terra. De fato, pouco depois, ajudados pela correnteza davam a uma praia de
areias muito brancas, cheia de coqueiros. Estenderam-se na areia e adormeceram. Um
sono bruto, sem sonhos. Quando acordaram, estavam rodeados de índios.
189
Uns trinta. Nus, os corpos pintados de urucum, fitavam impassíveis os dois
homens. Sobressaltados, Rafael e Afonso se puseram de pé. Rafael tremia tanto que seus
dentes chocalhavam; foi Afonso que demonstrou presença de espírito. Tirou do bolso o
espelho que, vaidoso, levava sempre consigo. Os índios aproximaram-se, interessados.
Ao verem refletidos na superfície polida uns rostos pintados, uns olhos arregalados
riram. Riram deliciados, como crianças. Qualquer fúria assassina que porventura tivessem
alimentado desfez-se naquele instante. Amigos! dizia Afonso e os índios repetiam:
amigos, amigos! (SCLIAR, 1983, p. 123).
Percebe-se que o sono dos dois amigos é “brutoe sem sonhos”, pois se Freud
(1987) diz que o sonho é o guardião do sono e a realização do desejo, pelo fragmento
pode-se notar que só há sono, sem sonho, visto que Rafael e Afonso repousam na
concretude idílica das paisagens brasileiras de seus desejos de outrora.
O Rafael Mendes, farrapo, filho do Rafael Mendes, ator, inconfidente e
fazendeiro, pouco sabe a respeito do pai desaparecido, além de seus pesadelos com
guerreiros e profetas: “Pouco sabe desse pai. Parece que era um bom homem, silencioso
mas amável. Tinha ocultas inquietudes, dormia mal, sonhava com guerreiros e profetas”
(SCLIAR, 1983, p. 176).
Seu pai parece se debater, à noite, na concretização do conhecimento que lhe falta
sobre seus ancestrais e suas buscas, tentando resgatar não apenas a beleza visual dos
ideais de sua genealogia, uma vez que esta o passado lhe bloqueou, mas a que ainda se
pode resgatar pelos sentidos, confirmando os apontamentos de Freud (1996, p. 237),
para quem “por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria
das qualidades do sentir”.
Derrida (1991b, p. 296) argumenta que o que o “nosso espírito vê são, ou objetos
sicos e materiais que afetam os nossos sentidos, ou objetos metafísicos e puramente
intelectuais absolutamente acima dos nossos sentidos”. Com base nisso, nota-se que o
jovem farrapo, tendo os sentidos afetados pela lembrança do pai, de quem mal se
recorda, é contaminado por algo que vai mais além, ou seja, por uma nostalgia
metafísica, que lhe foge totalmente ao controle, de forma que tem não os mesmos
pesadelos paternos, mais no nível dos sentidos, mas as mesmas prováveis ideologias,
190
situadas mais além e, já, responsáveis por causar as noturnas inquietações no pai, como
é possível constatar:
Sofre da nostalgia do pai, que mal recorda. Sofre da nostalgia do mar, que nunca
viu. Quer rever este pai, quer ouvir as histórias que contava; e quer ser marinheiro, quer
navegar para lugares distantes e misteriosos, Angola, Egito, Palestina: quer avistar praias
de areia branca, coqueiros, aves exóticas. (SCLIAR, 1983, p. 176-177).
Vê-se, então, a partir das reflexões freudianas (FREUD, 1996, p. 238) sobre O
estranho que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é
conhecido, de velho, e há muito familiar”. Além de que, comparando o funcionamento
do aparelho perceptivo da mente a um bloco mágico, segundo Freud (1974, p. 256),
percebe-se que ele “pode fornecer tanto uma superfície receptiva sempre pronta, como
traços permanentes das notas feitas sobre ela”.
Os mesmos velhos-novos sonhos voltam a sintonizar mais um dos Rafael a sua
genealogia — dessa vez o Rafael Mendes engenheiro ferroviário —, à procura da
cognição de sua trajetória, tendo em vista que, de acordo com Bennington (1996, p.
104) “a vida psíquica em geral é descrita como um jogo de poder entre pulsões”. Apesar
desse conhecimento estar velado, ele existe em forma de recalque e, então, encontra
vasão no psíquico, manifestando-se pelos sintomas oníricos, como se pode ver: “Rafael
Mendes, homem desconfiado, de sono constantemente agitado por pesadelos
(SCLIAR, 1983, p. 182).
O delírio do jovem arqueólogo, Norbert Hanold, personagem do conto “Gradiva”
(1903), de Wilhelm Jensen, analisado por Freud (1987, p. 18), é “uma expectativa
ansiosa, uma intenção, uma reflexão”. De modo semelhante, os sonhos de Rafael, que
também são criações oníricas, tal qual no conto de Jensen, aparecem como disfarce das
lembranças reprimidas no inconsciente da genealogia Mendes, querendo resolver-se
pelo seu auto-conhecimento, sendo que, para um parecer derridiano (DERRIDA, 1995,
p. 185-186), “a repetição não acrescenta nenhuma quantidade de força presente,
nenhuma intensidade, reedita a mesma impressão: tem contudo poder de exploração”.
Em seu ensaio sobre a estátua O Moisés de Miguel Ângelo”, Freud (s.d., p. 144)
fala a respeito da busca do sublime na obra de arte, pois, diante de “algumas das mais
191
notáveis e magníficas criações artísticas (...) obscuras à nossa compreensão”, nós, os
expectadores, sentimo-nos dominados por elas, “mas não sabemos dizer o que é que
representam para nós”. De modo análogo, pode-se dizer que os Mendes recordam-se,
perplexamente, de seus sonhos e se sentem envolvidos por eles, sem, no entanto,
conseguirem pelo menos dar-lhes uma possível interpretação, restando aos integrantes
da genealogia apenas os sonhos e pesadelos se repetindo, pelo fato de “a percepção
absoluta não existir, pois a complexidade do recalque impede a simultaneidade das
inscrições” (NASCIMENTO, 1999, p. 175), tal qual se vê pela ilustração abaixo:
Os sonhos, porém, não o deixam. O que é este aposento, senão um reduto de
pesadelos? Antes que amanheça surge, de entre as brumas de um sono agitado, o
cavaleiro medieval. Vem em direção a Rafael que, trêmulo, o espera; e dedica-se então à
sua tarefa habitual, qual seja, a de apertar com as manoplas de ferro o pescoço de sua
tima. E aperta com muito mais força que de costume, o que faz supor que desta vez é
para valer, é para terminar mesmo com a longa — segundo o genealogista, mas pode ser
tudo mentira, invencionices de velho caduco e/ou safado linhagem dos Mendes.
(SCLIAR, 1983, p. 268).
O Rafael Mendes, financista, o último homem dos Mendes, é quem toma
conhecimento de toda a genealogia pela leitura de cadernos, escritos por seu pai, Rafael
Mendes, médico, em co-autoria com o professor judeu Samar-Kand, genealogista
autodidata. Esse senhor lhe dá os dois cadernos intitulados “Primeiro caderno do
cristão-novo” e “Segundo caderno do cristão-novo” para apreciação, pretendendo lhe
vender, por dez mil lares, e lhe dar um brinde genealógico, o Terceiro e último
caderno do cristão-novo”, o qual versa sobre a vida do próprio Rafael financista. Em
relação a essas leituras, o financista se mantém desconfiado da veracidade ou não dos
escritos, não se dando conta da indistinção textual e suplementaria a que toda realidade
está fadada. O que faz lembrar o pensamento de Derrida (1991a, p. 122), para quem “só
há repetição possível no gráfico da suplementaridade”, construído para demonstrar as
espécies de repetição no phármakon o qual, por sua vez, em sua essência de farmácia,
não se pode mais distinguir o remédio do veneno, o bem do mal, o verdadeiro do falso,
o dentro do fora, o vital do mortal, o primeiro do segundo etc”.
192
Como se pode ver, derridianamente falando, a noção de remédio e veneno,
verdadeiro e falso, real e ideal, é borrada, na concepção de Rafael, quando se depara,
apenas, com o simulacro das aspirações de sua família, na parede da prisão especial,
onde inocentemente é preso, junto a seu chefe Boris Goldbaum, acusados de peculato,
na ilustração abaixo:
(...) e na parede, a reprodução de um quadro: uma baía, o mar quebrando na praia de areia
muito branca, e aves uma, duas, três, quatro, cinco, seis — seis aves coloridas contra o
u flamantemente azul. Só que as aves parecem imóveis, colocadas ao céu. A habilidade
do pintor não foi suficiente para dar a impressão de que voam. Mas é agradável olhá-las,
de qualquer modo. (SCLIAR, 1983, p. 264).
Esse simulacro familiar pode ser considerado um exemplo de ornamento
contemporâneo da geração do suplemento e da réplica, no qual prevalece a desautoria,
pois, segundo Nascimento e Glenadel (2000, p. 89), “a minha autenticidade é sempre já
minada pela inautenticidade. Tampouco minha responsabilidade pode ser total”.
Além do mais, tal fragmento dá margem à paródia que, para Hutcheon (1985, p.
13), “é uma das formas mais importantes da moderna auto-reflexividade; é uma forma
de discurso interartístico” da sociedade-embalagem, na qual, como pondera Debord
(1997, p. 140), o “espetáculo” causa o apagamento dos limites do eu [moi] e do mundo
pelo esmagamento do eu [moi] que a presença-ausência do mundo assedia”, suprimindo
os “limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda verdade vivida, diante da
presença real da falsidade garantida pela organização da aparência”.
Suzana, filha do financista e última representante da genealogia Mendes, apesar de
ser uma rebelde hippie-essênica, também porta o rus da busca do paraíso perdido,
impregnado na genética da longa linhagem dos Mendes, como uma espécie de “herança
onírica”, e, embora ignore isso por completo, seu “sonho acordado”, é o mesmo de seus
ancestrais, como se pode vislumbrar no excerto a seguir:
Ela respondia que casar não queria, que achava o casamento um saco; mas finalmente
concordou, casaria com ele, desde que partissem, que fossem para longe, para um lugar
tranqüilo à beira-mar, de preferência num outro país. Ali levariam uma vida idílica,
193
andariam nus ou quase, dormiriam ao relento ou em grutas, se alimentariam de frutos
silvestres, ela sempre adornada de flores. Com os índios manteriam uma relação de
amável respeito, expressa em gestos amistosos; jamais falariam com eles, evitando assim
recorrer ao poder corruptor da palavra, mesmo a oral. E jamais deveriam dar presentes a
estes índios, espelhinhos sendo particularmente perigosos. No momento em que fizessem
isto, pior, no momento em que aceitassem em troca das dádivas qualquer coisa, pau-
brasil, por exemplo, estaria caracterizado o comércio e a conseqüente perda de toda a
inocência duramente reconquistada. (SCLIAR, 1983, p. 279).
No pensar, de aparência despropositada, da última representante feminina da
genealogia, a respeito das aspirações de toda sua genealogia, nota-se a impressão do
pensamento filosófico de Derrida, a partir da leitura de Nascimento (1999, p. 112), em
relação à literatura, sobre a noção de phármakon, concebida como o suplemento que
aparentemente vindo do exterior consegue contaminar a pureza de uma interioridade
presente a si mesma”, pois “o problema dos suplementos é embaralharem a linha que
separa o fora do dentro”. Tal noção de descentramento, em que prevalece o reverso e a
contaminação, bem de encontro a um pensar contemporâneo, cuja postura produzida,
em conformidade com Guelfi (1999c, p. 28-29), é a “de se colocar no entre-lugar (...)
durante o processo de leitura, quando diversos discursos são confrontados, [é] que se
denomina (...) como perspectiva pós-moderna”.
A esse propósito, pode-se refletir sobre a possível mudança do signo nesse ganhar
e/ou perder sentidos, ou, mesmo, ao se posicionar nesse entre-lugar”, confirmando o
parecer de Hutcheon (1991, p. 124), para quem de acordo com a consciência semiótica
todos os signos mudam de sentido ao longo do tempo”. Por associação tamm
acontece o mesmo com os sonhos e ideais humanos, pois, como se pode observar pelo
sonhar em estado de vigília de Suzana, no âmago de suas aspirações de família, estão os
seus ideais de busca do paraíso perdido, mas carregando alterações, em conseqüência,
de fatores sociais, históricos e poticos pelos quais seus descendentes já passaram. Ou,
ainda, pensando pela ótica de Nascimento (1999, p. 179), “o texto enquanto tecido de
rastros — permite substituições infinitas”.
Rafael Mendes, financista, após não querer fugir para o Uruguai com Boris e sua
filha Suzana, que decide viver junto com o chefe caloteiro de seu pai, fica deitado na
194
cama da prisão. Espera não por sonhos ou pesadelos, em forma de sintomas orgânico-
psíquicos daquilo que quer e precisa se resolver, mas, em estado de vigília como está,
restringe-se a dar formato as suas criações oníricas, compostas, agora, da resolução
plena da problemática que os pesadelos buscaram e finalmente realizaram. Rafael, pela
via da chegada ao conhecimento da longa e estranha nação dos Mendes, delineia o que
serão sonhos dormindo”, a partir de “sonhos acordados”. Estes continuam cheios de
ideais, modificados — na medida em que os fantasmas históricos e guerreiros medievais
já não mais aparecem ; e/ou rastreados — na medida em que levam consigo a
inscrição da errância judaica, como se pode ver pelas roupas de quem viaja, ou seja,
pela roupinha de marinheiro” do menino que se incumbe de reiniciar o ciclo da longa
genealogia de Rafael Mendes, enquanto pontua o mito do eterno retorno —; e/ou, ainda,
redimensionados — na medida em que, antes, os Mendes corriam atrás da Árvore do
Ouro e, agora, buscarão a Árvore da Vida —, tal qual se pode ver no trecho abaixo:
Rafael Mendes deita-se, fecha os olhos. Espera pelo sono que virá; e pelos
sonhos... Não os olhos do Profeta, nem as fogueiras da Inquisição, nem a cabeça decepada
de Tiradentes, nem o guerreiro medieval, nem a sacerdotiza de Astarté, nem Habacuc,
nem Eliezer, nem Naomi, nem nenhum dos essênios, Velhos ou Novos; nem Maimônides,
nem Saladino, nem Bandarra, nem Colombo, nem o Inquisidor-Mor, nem Afonso
Sanches; nem o cacique, nem Pombinha, nem os índios; nem Bento Teixeira, nem
Vicente Nunes, nem Joseph de Castro; nem Frans Post; nem Felipe Roys; nem Manoel
Beckman, nem João Felipe Bettendorf, nem Maria de Freitas, nem Gracia Tapanhuna;
nem Álvaro de Mesquita, nem Zambi, nem M’bonga, nem os quilombolas; nem
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nem Bárbara Santos, nem Pedro Telles; nem Diogo
Henriques, nem Isabel Henriques; nem o bandeirante cego; nem Garibaldi, nem Anita;
nem a doutora Débora, nem o Micróbio, nem o doutor Saturnino, nem o jornalista do
Alerta, nem o Padre João de Buarque, nem Sepé Tiaraju; nem nenhum dos muitos Rafael
Mendes que jazem sob a terra, ossos e pó, pó e ossos; nada disto verá; verá, isto sim, um
menino em roupinha de marinheiro a espiá-lo, sorridente, por entre os ramos da Árvore da
Vida. (SCLIAR, 1983, p. 287).
Por meio da exemplificação dessa resultante pensamentos oníricos que não
é mais nem sonho nem ideal, ou que não é mais só sonho ou só ideal, galga-se ao
195
conceito de hymen, concebido por Derrida que, em conformidade com a leitura de
Nascimento (1999, p. 93), penhora as noções de entrecruzamento dos signos e, portanto,
de phármakon e de meio de tessitura de signos, indiciando uma ausência de centro
absoluto”, ao deslocar e re-marcar as “verdades” únicas.
2.3.3 ... e os sonhos param de sonhar.
Rafael, financista, o último representante masculino da genealogia Mendes, assim
como os seus ascendentes, tem “sonhos acordados”, ideais, e “sonhos dormindo”,
pesadelos, tendo em vista que faz parte do rol dessa estranha e perplexa genealogia
cujos descendentes dariam tudo para trocar a perplexidade pela sabedoria. Mesmo seu
pai, o Rafael Mendes, médico e co-pesquisador de sua linhagem, diz: quem sou? Quem
o meus antepassados? Estudando suas vidas, eu queria na realidade descobrir quem eu
era; queria respostas para as perguntas que me atormentavam; queria saber o que tinha
acontecido, o que estava acontecendo, o que ia acontecer. Queria trocar a perplexidade
pela sabedoria” (SCLIAR, 1983, p. 245).
Contudo, conforme é possível perceber pela análise feita, os cadernos recebidos
do genealogista, para leitura e compra, m efeito psíquico-terapêutico para Rafael, uma
vez que, após chegar ao conhecimento de seus antepassados, é como se seu sistema
psíquico realizasse seu desejo, ou seja, se integralizasse, ao ter reunido em si os
fragmentos do conhecimento dessa genealogia, pois, até o momento, esses vestígios de
conhecimento chegavam a ele, apenas pelo “conteúdo manifesto” e pelo conteúdo
latente” de seus pesadelos, sobre os quais o financista sequer sabia dar alguma
interpretação.
Os pesadelos funcionam, então, como pulsões” de vida, ou como a “diferença
derridiana, que objetivam alavancar o desejo de conhecimento pleno da genealogia,
assim como de suas aspirações e buscas, a fim de se normalizar e se tranqüilizar para o
reinício do ciclo Mendes, com seus novos/velhos, velhosnovos ideais.
Tenta-se concluir, multiplicando e redimensionando o ponto de partida freudiano
— para quem “os sonhos são realizações de desejos” (FREUD, 1987, p. 322) —, pois,
196
assim como os sonhos realizam as aspirações do dia-a-dia, os sonhos também
impulsionam as buscas dos ideais, do estado de vigília, de maneira que o limiar entre
sonho e ideal, fantasia e realidade, sono e vigília torna-se móvel e transponível,
eliminando a diferença entre o remédio” e o “veneno” da farmácia da obra. Dessa
forma a essência do “verdadeiro” e do “falso” é colocada em dúvida por já estarem
misturadas, talvez, e fazerem parte da duplicidade de uma única composição:
ideais/sonhos sonhosideais.
197
3 O realismo mágico em Sonhos tropicais
3.1 A imprecisão terminológica
Como já se esboçou desde a introdução, a crítica tem constantemente atentado
para a tendência, na ficção de Moacyr Scliar, ao estranho, ao mítico e ao intrigante,
denominando essa sua peculiaridade literária de forma indistinta: realista, fantástica,
realista fantástica, real(ista) maravilhosa ou realista mágica.
Na primeira citação, percebe-se que, para Hecker Filho (1973), o sobrenatural em
Scliar é descartado, preferindo-se falar em um realismo repleto de humor:
Na aba e na última capa da edição [A guerra no Bom Fim], aliás primorosa, o
autor é apresentado como “um realista mágicoe o livro como “uma das primeiras
manifestações realmente importantes do fantástico na literatura brasileira”. Receando que
isso venha a ser muito repetido por falta de melhor, me oponho, embora não esteja tão
mal. A fórmula “realismo mágico”, que em si me parece confusa e dispensável, se aplica
pouco a Scliar. Ele é muito real nas coisas de que parte; apenas não segue a evolução
narrativa mais ou menos convencional que qualquer outro tiraria dessas coisas, e sim
brinca de acompanhar idéias e conclusões que a sua sensibilidade não estereotipada lhe
sugere a propósito delas. Há antes razão e sonho que mágica nisso.
A noção de fantástico igualmente não se ajustaria. Fantásticos eram antes os
contos de fantasmas e hoje os pesadelos mecanicamente armados da ficção científica,
ambos feitos para assustar mentes pueris. Scliar faz humor, às vezes macabro, sempre
gentil. Não é um assombrado nem um escritor trágico e metafísico como Kafka e os de
seu clã. É um pequeno judeu que sofre com um sorriso nos lábios. (Judeu porque assim se
quer, sem dúvida por não perdoar nem os não-judeus nem os seus, e pequeno também
porque quer, numa escolha que aliás contribui decisivamente para o encanto do que
escreve). (HECKER FILHO, 1973, p. 4).
Silverman (1982), aborda-se sim a questão do fantástico scliariano, mas ligado ao
lúdico:
198
A linha que define a separação entre a fantasia infantil e o escapismo do adulto é
realmente muito tênue para os personagens de Scliar, embora a falta de verossimilhança
(realismo mágico?) seja indistinguível. (SILVERMAN, 1982, p. 183).
A simplicidade evidente em toda a obra de Scliar faz vir à mente tanto as fábulas
do Esopo como obras de literatura infantil (O carnaval dos animais, por exemplo, tem
sido chamado de fantástico, mais lúdico do que sério”). (p. 188).
Gomes (1989) fala em realismo fantástico, terminologia empregada por Borges,
mas que efetivamente não existe em se tratando de narrativa fantástica:
Você tem, na sua ficção, uma linha de realismo-fantástico e uma linha de realismo
simples, pura, urbana, de ascendência judaica. (GOMES, 1989, p. 9).
Stávans (1988) traz à baila o realismo maravilhoso, de maneira incoerente, ligado
à fantasia enquanto gênero, abordando o termo realismo maravilhoso como se ainda
fosse usado somente para a América Latina:
All of Scliars creations are curiosities: they make the real unreal, and vice versa.
After reading them, one understands that fantasy and reality, paganism and Judaism, can
become an oxymoronic unity only in Latin America, where life is a bit more bizarre,
where existence is always on the edge of the believable. (STAVÁNS, 1988, p. 64).
Moniz (1982) faz alusão ao realismo mágico em Scliar, cuja ficção é feita da
mistura de elementos do real e da fantasia:
Uma das características mais salientes de sua ficção é a justaposição inesperada e
chocante de um realismo cru (naturalismo) e uma fantasia espantosa (qualidades que
freqüentemente caracterizam o folclore judaico), temperada por uma ambigüidade
resultante da ironia que o autor utiliza na manipulação do real e do imaginário. (MONIZ,
1982, p. 59).
Bem, se no século XX o fantástico imanentemente contradirio, morreu, e o
realismo fantástico nunca existiu na teoria, a obra de Scliar só poderá fazer parte da
199
tendência do fantástico atual, isto é, do realismo mágico
42
, no sentido spindleriano.
Além de que Spindler (1993), sob esse termo, sugere a reunião do realismo
maravilhoso, por ter se tornado sinônimo de realismo mágico, e obviamente a reunião
do realismo, pois, na atualidade, o “racional” e o “mágico” convivem de mãos dadas,
sem que essa contradição se manifeste, por toda a dimensão da realidade.
3.2 A caminho da precisão
Pelo fato de a mesma crítica também colocar que esse tipo de fantástico convive,
no mesmo vel, com a realidade manifesta, pode-se, a princípio, refletir sobre o
romance Sonhos tropicais (1992), nos moldes da Literatura Fantástica, mas pela
vertente do realismo mágico, parecer inicial que, caso não seja pertinente, pode,
contudo, ser confirmado, alterado, ou, ainda, confirmado e alterado até o final desta
parte do trabalho.
Realismo mágico, segundo Chiampi (1980), é uma expressão cunhada em 1925
pelo historiador e crítico de arte Franz Roh, a fim de retratar um complexo e vigoroso
fenômeno ficcional emergente a partir de 1940 que segue até 1955 e significa, antes de
tudo, a crise do realismo e explica a passagem da estética realista-naturalista para a nova
visão (“mágica”) da realidade. Com a publicação de romances como Yawar Fiesta, de
José Maria Arguedas, em 1941, novas técnicas são usadas para constituir uma imagem
plurivalente do real e já mostrar o germe das formas revolucionárias dos anos de 60 e
70, atestadas pelo lúdico, pelo paródico e pelo questionamento sistemático do gênero
romanesco, na pós-modernidade. Entre as soluções formais mais freqüentes, pode-se
citar a desintegração da lógica linear de consecução e de conseqüência do relato, através
de cortes na cronologia fabular, da multiplicação e simultaneidade dos espaços da ação;
caracterização polissêmica das personagens e atenuação da qualificação diferencial do
42
“Mágico”, “magia” serão tomados no sentido, proposto por Spindler (1993, p. 82), das
ocorrências inexplicáveis, prodigiosas ou fantásticas que contradizem as leis do mundo natural e
não possuem explicação convincente: The Word magic here refers to inexplicable, prodigious
or fantastic occurences which contradict the laws of the natural world, and have no convincing
explanation.
200
herói; maior dinamismo nas relações entre o narrador e o narratário, o relato e o
discurso, através da diversidade das focalizações, da auto-referencialidade e do
questionamento da instância produtora da ficção. O termo realismo mágico revela uma
“nova atitude” do narrador diante do real, identificada com a “magia”. Roh, em seu
livro Nach expressionismus, sobre a produção realista mágica na pintura, propõe-se a
atingir uma significação universal exemplar, não como fizera o expressionismo de ante-
guerra, mas pelo reverso: representar as coisas concretas e palveis, para tornar visível
o mistério que ocultam. Roh deixa entrever a idéia de uma realidade maravilhosa em si,
porém o que lhe interessa postular é antes o ato de percepção do que a qualidade
essencial do mundo objetivo, daí o controle da subjetividade deformadora do artista.
Pela mesma época, Massimo Bontempelli fala em “realismo místico” e “realismo
mágico” como fórmulas para superar o futurismo e, tanto para Bontempelli quanto para
Roh, a nova estética refuta a realidade pela realidade, a fantasia pela fantasia, isto é,
busca outras dimensões da realidade, mas sem escapar do visível e concreto. Quem
primeiro incorpora o termo ao romance hispano-americano é Arturo Uslar Pietri, em
1948, colocando que a realidade é considerada misteriosa ou “mágica” e ao narrador
cabe “adivinhá-la”; a realidade é prosaica e ao narrador cabe “negá-la”, ou seja, o
crítico vacila quanto à atitude do narrador. Em literatura, a designação realismo mágico
é posta definitivamente em moda, em 1954, na conferência de Angel Flores, onde ele
fala da dificuldade de se classificar todos os movimentos literários hispano-americanos,
a partir de cânones europeus, observando a pertinência de se integrar as obras de vários
narradores contemporâneos sob tal designação. Coloca também que a tendência a
amalgamar o realismo e a fantasia, estimulada por Kafka e Proust, manifesta-se em
Borges e Mallea, como resultado da convergência das duas vertentes da ficção hispano-
americana que a tradição mantivera isoladas: a realista (de origem colonial, mas fixada
no Oitocentos) e a mágica (que remonta a Colombo e aos cronistas da Conquista), mas
seu esforço em caracterizar uma tradição americana ininterrupta de literatura “mágica”,
leva Flores a conciliar erroneamente o exotismo modernista (de filiação simbolista e
parnasiana) com o “mágico” das crônicas, cujo (pseudo) sobrenatural é resultante do
deslumbramento dos europeus e das influências do lendário medieval. Esse falso
parentesco remete à confusão entre a literatura fantástica e a realidade mágica, da qual a
201
crítica posterior não mais se libertará. Mas, apesar do equívoco, Flores determina
corretamente o ponto de arranque do realismo mágico: a publicação de História
universal de la infamia, de Borges, em 1935. A definição de Flores, que leva em conta
o modo kafkiano de “naturalizar o irreal”, só peca por eliminar a sua contrapartida, ou
seja, a “sobrenaturalização do real”. O romance realista mágico entra em sua fase áurea,
em 1955, mas a crítica mostra-se tímida diante de queses centrais de poética, não
discutindo sua pertinência ou procedência para a reformulação e complementação das
sugeses críticas anteriores. Só em 1967, Luis Leal tenta reanalisar e preencher a
lacuna deixada por Flores. Enquanto Flores faz coincidir o real mágico com a
“naturalização do irreal”, relacionando-o com o modo kafkiano de tornar verossímeis os
acontecimentos sobrenaturais, Leal inverte esse percurso para negar a orientação de
Flores, aproximando-se mais da “sobrenaturalização do realfórmula que, por sua vez,
apóia-se tanto no lema antiexperimentalista de Roh (não violação do sistema real de
objetos e fatos), como na proposta surrealista da “ontologia” da realidade (a existência
do maravilhoso na realidade). Leal insiste que a nova tendência não visa a criar mundos
imagirios, polemizando com Flores, e, pela generalidade da definição, alberga tanto a
ficção quanto à poesia. Na exposição de Leal ficam claras as duas linhas correlatas do
romance realista mágico: a fenomenológica e a ontológica, oscilando, como Uslar
Pietri, entre a caracterização do realismo mágico como produto do modo de percepção
do autor e como produto da captação do “ser misterioso” das coisas reais, no plano da
linguagem. Leal ingenuamente afirma que o romance realista mágico é uma “nova
consciência estética”, apoiada nos termos que elege, deixando de considerar aspectos
importantes da construção da intriga, da predicação das personagens ou do código
narracional do texto realista mágico. É na explicação da atitude realista mágica frente à
realidade que as contradições de Leal tornam-se mais flagrantes, por confundi-la com a
reação das personagens que, como as de Metamorfose, de Kafka, aceitam magicamente
o irreal como parte da realidade. A inclusão da reflexão de Carpentier sobre o “real
maravilhoso americano” na questão, possibilitam a Leal introduzir a faceta realista” do
realismo mágico
43
, diferenciada da literatura fantástica, e do realismo tradicional
43
Embora há críticos que consideram semelhantes os termos “realismo mágico” e real
maravilhoso”, como Chiampi (1980, p. 24 e 27) e Hegerfeldt (2002, p. 63), ou sinônimos, quando
202
hispano-americano. Preocupado em retificar Flores, Leal não vislumbra a possibilidade
de integrar sua proposta a de Flores, pois, aparentemente contraditórias, o apenas duas
manifestações da retórica verossimilhante para o mesmo conceito da realidade
americana. Porém, para Vera Kuteishchikova, a partir dos apontamentos de Chiampi, o
termo realismo mágico carece de um conteúdo nítido e não pode ser pensado fora da
linguagem narrativa, vista em suas relações com o narrador, narratário e contexto
cultural.
Voltando um pouco a Leal (1995, s.p.), é bom lembrar sua ponderação sobre o
escritor do realismo mágico como aquele que confronta a realidade e tenta emaranhá-la
para descobrir o misterioso das coisas e da vida, com o simples expressar dos atos
humanos, por si mesmos dispensadores de explicações lógicas ou psicológicas para os
eventos-chave. Frente ao real, na verdade, o autor tem uma atitude e, por isso, não cria
mundos imaginários nos quais se pode esconder do cotidiano, à medida que escapam à
realidade e acabam por tomar o lugar do real, regido pela razão, como acontece com o
sobrenatural, inerente ao fantástico, preocupado em evocar emoções. Ele também não
fere a realidade, distorcendo-a ao tentar transpassá-la com seus motivos oníricos, como
os surrealistas, ou também não copia a realidade, como os escritores realistas
44
. Para o
realista mágico, não se faz necessário justificar o mistério dos eventos, mesmo porque
ele já respira atrás das coisas e o que lhe importa é a descoberta da realidade misteriosa
entre o homem e suas circunstâncias, expressando-se, para isso, de forma culta ou
popular, por meio de estilos elaborados ou rústicos, e de estruturas fechadas ou abertas.
O escritor de tal tipo de literatura, para falar dos mistérios da realidade, usa seus
sentidos até encontrar um estado extremo (estado limite) que lhe permite intuir as
“real maravilhoso” estiver no sentido de realismo mágico antropológico, como Spindler (1993, p.
77); há outros que os consideram diferentes, como Menton (2001, p. 1-2), conceituação que se
pretende tomar, primeiramente, para se diferenciar “realismo maravilhoso” de “realismo mágico”,
antes de se tomar, definitivamente, a definição de “realismo mágico” de Spindler (1993), bem como
seus matizes específicos.
44
É possível que o crítico não tenha feito a diferença entre o objeto de trabalho do escritor do real
maravilhoso (tal conceito será desenvolvido mais adiante), porque considera o real maravilhoso o
início do realismo mágico, como se pode conferir: The existence of the marvelous real is what
started magical realist literature, which some critics claim is the truly American literature (LEAL,
1995, s.p.). Portanto, imagina-se que ele considere os mesmos princípios para reger o trabalho de
ambos, já que um descende do outro.
203
sutilezas imperceptíveis do mundo externo e multifacetado — i.e., fenomenológico, de
acordo com Chiampi (1980).
Primeiro tomar-se-á a concepção de relato fantástico
45
de Menton (2001),
inclusive podendo ser criticada nos travessões, conjuntamente a de críticos e teóricos
como Molino (1980), Lovecraft (2003), Gomes (1994), Ehrsam (1985), Brooke-Rose
(1983) e Todorov (1975), antes de se falar sobre a diferenciação que Menton faz do
fantástico em real maravilhoso
46
e realismo mágico.
O relato fantástico, igual ao real maravilhoso, não tem limites cronológicos — o
sobrenatural, saído das crenças populares, irrompe na literatura e triunfa na Europa
ocidental, a partir de 1830
47
—, pode dar-se na primeira metade do século XIX, com os
contos de Edgar Allan Poe — pertencente aos tecelões do horror cósmico”, inspirados,
por sua vez, na “escola gótica” (LOVECRAFT, 2003, p. 25) —, ou no início do culo
XX, com os contos de Leopoldo Lugones — momento que surge a necessidade de
tradição da ruptura”, e essa obsessão do novo, agravada pela crise de valores, dando
origem a uma avalancha de vanguardas, porém, dentre elas, a que oferecerá uma
“matéria fundamental” para se sair “do desespero e do niilismo reinante”, pela via da
utopia do sonho”, é o Surrealismo (GOMES, 1994, p.11 e 16), um forte contribuinte
para a renovação do fantástico, ao explorar as riquezas do inconsciente (EHRSAM)
48
, ou em meados do século XX, nos contos de ficção-científica (entenda-se como de
realismo mágico) — a verdadeira revelação desse novo fantástico tem, sem dúvida, sua
porta aberta no absurdo do fantástico kafkiano (EHRSAM)
49
, e justifica sua existência à
medida que o Grande Medo diante do sobrenatural está se desvanecendo e é preciso que
o escritor se ponha a jogar com o sobrenatural, desenvolvido modernamente em
45
Menton (2001, p. 2) usa “relato fantástico” no sentido de fantástico”.
46
Chiampi (1980) e Spindler (1993, p. 77) usam o termo “realismo maravilhoso”, enquanto Gomes
(1989, p. 9), de modo confuso, usa o termo realismo-fantástico”.
47
On voit ainsi la place stratègique quoccupe la littérature fantastique au sens strict du terme,
est-à dire ce genre que triomphe à partir de 1830 en Europe occidentale, au point de rencontre
entre tradition populaire et littérature (MOLINO, 1980, p. 41).
48
Les surréalistes, en explorant les richesses de linconscient, ont ainsi fortement contribué au
renouveau fantastique (EHRSAM, 1985, p. 30).
49
est la porte ouverte au fantastique kafkaïen (EHRSAM, 1985, p. 33).
204
fantástico científico e técnico, i.e. na ficção científica, uma vez que as formas
tradicionais deste já começam a não provocar mais completamente o medo
50
.
E, nessa nova perspectiva de se tentar assegurar esse medo, que, agora, tem muito
de absurdo e de técnica científica, noções como as de Brooke-Rose
51
— para quem no
fantástico puro a explicação não é dada, mantendo-se a ambigüidade do texto —, no
caso do absurdo, assim como as de Todorov (1975, p. 92) — para quem no fantástico
tradicional a primeira condição para o fantástico é “nos coloca[r] diante de um dilema:
acreditar ou não?” —, no caso da ficção-científica, as considerações de Brooke-Rose
parecem se sobrepor às de Todorov.
O real maravilhoso — ou “real maravilhoso americano”, a partir do prólogo do
livro El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, em 1949 (CARPENTIER, 1985 e
1987) — porta um barroquismo e uma prosa superadornada. Proveniente das raízes
culturais de certas zonas da América Latina, bem como das raízes indígenas e africanas,
que podem se manifestar tanto na literatura colonial como nos romances de Alejo
Carpentier e de Miguel Ángel Astúrias, o realismo maravilhoso não tinha limites
cronológicos, nem era uma tendência internacional — torna-se posteriormente. Para o
autor do real maravilhoso, suas personagens, indígenas ou negras da Guatemala, Cuba
ou Brasil, crêem nos aspectos mitológicos ou espirituais da sua cultura
52
.
O realismo mágico plasma o mundo como se fosse totalmente realista, no qual,
de repente, surge algo inverossímil, mas tudo continua tranqüilo e impassível. A prosa é
50
Mais en même temps Hoffmann suggérait lidée dun fantastique moderne qui, à da suíte, et
pour répondre à lusure des thèmes traditionnels, va se développer dans (...) le fantastique
scientifique et technique, que se cristallisera peu à peu en un nouveau genre, la science-fiction
(...).
Le surnaturel issu des croyances populaires fait irruption dans la littérature au moment même où
la Grand Peur devant le surnaturel est en train de seffacer; lécrivain se met a jouer avec le
surnaturel quand celui-ci, sous sés formes traditionnelles, commence à ne plus faire tout à fait
peur (MOLINO, 1980, p. 40-41).
51
The explanation however, can come at various points, and is often withheld till the end, or
alternatively, in the pure fantastic, not given at all, thus preserving the ambiguity beyond the text
(as in The Turn of the Screw) (BROOKE-ROSE, 1983, p. 234).
52
Carpentier (1987, p. 129), ao falar do real maravilhoso americano, menciona o fato de que a
América inteira é uma crônica do real maravilhoso e, portanto, “seremos os clássicos de um enorme
mundo barroco que ainda nos reserva, e reserva ao mundo as mais extraordinárias surpresas”.
205
clara, precisa e, às vezes, estereoscópica — o que não corresponde à verdade. É uma
tendência internacional, tem limites cronológicos e surge desde 1918 — o que, tamm
não corresponde à verdade. Refere-se tanto à pintura quanto à literatura, tem
contribuições de Franz Roh por meio de seu livro, de 1925, sobre as diferenças entre o
expressionismo e o pós-expressionismo (realismo mágico) na pintura que também pode-
se aplicar à literatura, apesar de sua primeira manifestação, no conto “El hombre
muerto, de Horacio Quiroga, datar-se de 1920, chegando a seu boom umas décadas
depois com contos de Borges e Cien años de soledad, de García Márquez — García
rquez também apresenta muitas lendas locais. Para o autor mágico-realista o mundo
é um labirinto onde as coisas mais inesperadas e inverossímeis (sem ser impossíveis)
podem acontecer do modo mais antidramático — o que não pode corresponder à
verdade, uma vez que a própria incerteza instalada no ambiente do texto realista mágico
impede a antidramacidade do mesmo.
O escritor contemporâneo, Moacyr Scliar, considera, segundo declara em Leite
(1989, p. 6), que Kafka foi a sua maior influência no sentido do fantástico [entenda-se
realismo-mágico]”, e, com vistas a se analisar o grão fantasioso [entenda-se realista
mágico]” que perpassa sua obra, tomar-se-á um romance histórico
53
ficcionalizado,
intitulado Sonhos tropicais (1992), embora se saiba que em um mesmo autor pode
haver mais de um tipo de literatura fantástica, i.e., de realismo mágico (metasico,
antropológico e ontológico), como se verá mais a frente, espalhado no conjunto de sua
obra, como constata Spindler
54
. O romance citado parece, senão abarcar toda essa
peculiaridade scliariana, o que não é nem a pretensão, pelo menos, exemplificar aquilo
que soa como recorrente no escritor gaúcho.
Para tratar de tal questão, a escolha justamente de uma narrativa que trata do
discurso histórico, pode até se mostrar, em princípio, fora de propósito, devido a sua
53
Por romance histórico, partir-se-á da tipologia dada por Menton (2001, p. 2) que considera o
romance histórico tradicional, datado do início do século XIX com as obras de Walter Scott, uma
narrativa cuja meta é captar da maneira mais fiel possível a realidade, da maneira mais verossímil, o
ambiente sócio-histórico de certo período com protagonistas fictícios. As personagens históricas, às
vezes, pronunciam-se mas quase sempre estão no fundo.
54
The fact that there is a degree of overlap between the three types of Magic Realism suggested
here, and the fact that works by the same author can belong to different types, demonstrate that they
are all related in different ways (SPINDLER, 1993, p. 83).
206
necessidade de ser o mais verossímil possível, mas é bom lembrar que o realismo
mágico prima por revelar a magia presente na realidade, bem como, por causa da
contradição reinante, instalar a incerteza; além de que o romance de Scliar, como ficção
sobre a história, favorece ainda mais esse veio baseado no modo de percepção da
realidade, presente na composição do autor. Logo, a seleção objetiva elencar, de forma
paradoxal, aquilo que convida ao exame, sobretudo porque, em um primeiro plano,
referenda-se os assuntos historiográficos, e, de forma extremista, traz à baila o absurdo.
A obra, mesmo tratando da vida de Oswaldo Cruz, atrelada a episódios da história
brasileira, portanto supostamente uma narrativa mais positivo-realista — Scliar tem
também sobre a história-vida do sanitarista Oswaldo Cruz, uma outra obra de caráter
ensaístico, intitulada Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas (SCLIAR, 1996a) —,
o artista Moacyr Scliar ainda consegue abrir arestas a fim de descortinar aos olhos e à
percepção do leitor uma outra instância que igualmente compõe a existência humana: a
irracional.
A priori, far-se-á uma apresentação da obra para depois comentar-se os exemplos,
em forma de citações da mesma, objetivando mostrar a inserção da face mágica e
fabulosa da realidade, presentes no texto literário.
Em Sonhos tropicais, enquanto aguarda a chegada ao Rio de Janeiro de um
pesquisador norte-americano interessado na vida do sanitarista Oswaldo Cruz, um
médico desempregado relata a vida e as lutas deste pioneiro da medicina experimental
no Brasil do início do século XX.
Durante toda a obra é esse médico anônimo e que “não certo na vida” quem
conta a história de Oswaldo Cruz, como se estivesse em um franco diálogo com o
próprio sanitarista, recordando junto com ele todos os acontecimentos de sua vida. E
esse “bate-papo” que se propõe a ser um diálogo, mas é um mologo, pois seu
interlocutor, Oswaldo Cruz, nunca se manifesta, sendo apenas o médico quem fala, é tão
unicamente entre os dois que o médico só se reporta a ele pelo pronome “tu”,
dispensando os tratamentos “você” ou “senhor” para Oswaldo, como explica no livro:
Ignora que não posso compartilhar com ninguém os diálogos que contigo travo nas
207
noites sanitárias; que este é um diálogo eu-tu (nem sequer eu-você é), excluindo
automaticamente uma terceira voz” (SCLIAR, 1992, p. 193).
Na realidade, esse médico relata três histórias ao mesmo tempo: a vida de
Oswaldo Cruz, a predominante, e as vidas do pesquisador norte-americano e do médico-
narrador, menos freqüentes. Ao longo de toda a obra, ao mudar de uma história para a
outra, no plano formal, há espaço em branco. As histórias são narradas no presente, só
no final, quando as histórias do médico e do pesquisador se tornam a história do médico
e do pesquisador, é que se muda o tempo verbal para o futuro.
Sobre Oswaldo Cruz, o médico conta que, quando menino de colégio, Oswaldo, a
chamado do pai, é mandado ir para casa, porque não arrumou sua cama. Seu pai, o
doutor Bento Gonçalves Cruz, perde o pai quando criança e também a herança paterna,
que é desperdiçada por seu tio; cursa medicina com grande dificuldade; oferece seus
serviços como voluntário na Guerra do Paraguai; a irmã e os parentes não querem que
ele vá, mas ele corre para o navio, mesmo depois que este levanta ferros, de forma que é
preciso o capitão mandar parar as máquinas para ele entrar; casa-se com a sensível e
culta Amélia Bulhões; vai clinicar em São Luís do Paraitinga, vale do Paraíba; nasce
Oswaldo Cruz a 5 de agosto de 1872, o mais velho, e depois cinco irmãs; mudam-se
para o Rio em 1887; o doutor Bento torna-se médico da Fábrica de Tecidos Corcovado
e, à tarde, clinica no consultório; é um homem sério, íntegro e adepto da disciplina. Na
puberdade, Oswaldo, no bonde com sua amada Emília, a filha do comendador Manuel
José da Fonseca, corta um pedaço do vestido de uma senhora, ela reclama a seu pai e ele
é obrigado a ir a casa dela se desculpar e buscar o vestido para sua mãe consertar. Em
1887, entra na faculdade de medicina e logo se interessa por microbiologia. Começa a
fumar e, censurado pelo pai, diz-lhe que ele também fuma charuto e o doutor Bento lhe
responde que, então, parará de fumar. A 8 de novembro de 1892, defende com
brilhantismo a tese: “A veiculação microbiana pelas águas” e, nessa mesma tarde, seu
pai falece, à causa de uma doença renal provocada pela presença de albumina na urina.
Herda do pai a responsabilidade pela família, o consultório e o emprego na fábrica.
Passa a ser chamado doutor Gonçalves Cruz. Casa-se com Emília em 1893 e constitui
sua “tribu” de seis filhos: Bento, Oswalo, Elisa, Hercília, Walter e Zaira. Ganha do
sogro um completo laboratório de microbiologia que instala no primeiro andar de sua
208
casa à rua Lopes Quintas. Salles Guerra, amigo a quem ficará para sempre ligado,
convida-o para dirigir o laboratório da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, e Francisco
de Castro, o maior clínico da época, sugere-lhe estudar no Instituto Pasteur, em Paris.
Em 1896, vai por três anos, com a família, para a França, onde estagia, para manter sua
família, com o famoso urologista, o professor Guyon; faz estágio também no
Laboratório de Toxicologia de Paris, chefiado por Ogier e Vibert, onde Oswaldo decifra
um caso de envenenamento por gás, obtendo grande prestígio; e estuda no Instituto
Pasteur, onde é muito respeitado por seu orientador, Émile Roux, quem, inclusive, o
apresenta ao ilustre sanitarista Adrien Proust, pai de Robert e Marcel Proust. De volta
ao Rio, reassume seus trabalhos e instala um laboratório de microscopia e
microbiologia. É designado pela Diretoria Geral de Saúde Pública para ajudar Adolfo
Lutz e Vital Brasil a investigarem casos suspeitos de peste bubônica em Santos. Como a
moléstia não tardará a chegar à Capital Federal, cria-se o Instituto Soroterápico
Municipal, a ser dirigido pelo Barão de Pedro Afonso, em Manguinhos, onde Oswaldo
trabalha na preparação da vacina contra a peste. Surge a febre amarela, causando muitos
óbitos. Salles Guerra fala de Oswaldo a Seabra, ministro da Justiça e do Interior, a quem
está confiada a responsabilidade pelo Departamento Federal de Saúde Pública, de forma
que, a 26 de março de 1903, ele se torna o Diretor da Saúde Pública. É recebido pelo
Presidente do Brasil, Francisco de Paula Rodrigues Alves, o Soneca, cujo projeto
político é transformar o Rio numa cidade civilizada para atrair investidores e, para isso,
conta com o prefeito, Pereira Passos, a fim de transformá-la na cidade-luz, como Paris,
e com Oswaldo Cruz, a fim de acabar com as doenças, além de contar com os ministros
Seabra e Lauro Müller e com o engenheiro Paulo de Frontin. Com disciplina, o
sanitarista lança-se ao trabalho, enviando os mata-mosquitos às casas, em busca de
focos de mosquitos, e o trabalho tem êxito. Os ratos têm febre amarela e Oswaldo e seus
homens procuram exterminá-los. Em abril de 1904, declara a febre amarela extinta do
Rio. Em meados de 1904, começa a campanha contra a varíola que, devido à
obrigatoriedade, cria-se uma resistência da população que, na verdade, reage não à
vacina, mas a uma questão de dimensão política contra Rodrigues Alves, favorecida
pela violência dos megalhas e pelo autoritarismo de Pereira Passos, estimulando
discussões de ordem potica, administrativa, moralista e médica, na imprensa e nas
209
massas populares, contra Oswaldo Cruz. No dia 12 de novembro de 1904, começam as
manifestações que se transformam na Revolta da Vacina, nos dias 13, 14 e 15. A
rebelião nada mais tem a ver com a vacina, torna-se uma causa em si, mas no dia 16 é
dominada. Com o novo Regulamento Sanitário, a 29 de maio de 1905, tira-se a
obrigatoriedade da vacina. Com o auxílio de Seabra, Oswaldo termina o Instituto de
Manguinhos que, desde 1908, torna-se Instituto Oswaldo Cruz. Ele é convidado a
representar o Brasil no Congresso Internacional de Higiene em Berlim, e, tempos antes
da viagem, já começa a sentir os sintomas de albumina na urina. Em 1909, entra em
vigor a lei proibindo o acúmulo de cargos e Oswaldo prefere ficar com o Instituto, cujo
presgio internacional atrai muitas visitas ilustres, como o ex-presidente americano
Theodore Roosevelt. A 16 de junho de 1910, segue para Belém, Manaus e Porto Velho,
objetivando coordenar, para a Madeira-Mamoré Railway, o saneamento da região, junto
a Carlos Chagas, Pacheco Leão e João Pedroso, todos de Manguinhos. Em 11 de maio
de 1912 entra para a Academia Brasileira de Letras, apesar de não cultivar a vida
literária, tomando posse, em 26 de junho de 1913, da cadeira cujo patrono é o poeta
Raimundo Correa. Em 1915, realiza, para o presidente do Estado do Rio, uma
campanha contra a saúva. Com a uremia, agora, intensificada, muda-se, sob sugestão de
seu filho médico, Bento, para Petrópolis, dedicando-se ao cultivo de rosas. A fim de lhe
reativar as energias, Bento também encoraja-o a se candidatar à prefeitura de Petrópolis
e, muito respeitado pelo governador, é indicado. De imediato, entra em choque com a
Câmara Municipal por ferir interesses locais e pede demissão. A doença se agrava,
vindo a falecer às 9 horas da noite de 11 de fevereiro de 1917. No testamento, encara a
morte com a normalidade de um cientista, advertindo à família que não quer luto, nem
as anti-higiênicas roupas negras.
Sobre o pesquisador norte-americano, o médico conta que recebe uma carta dele,
dizendo-lhe que vem ao Brasil, por ocasião do Carnaval, a fim de coletar material para
sua tese e, por isso, recebendo sua indicação de uma pesquisadora, quer ouvi-lo falar
sobre o sanitarista Oswaldo Cruz. O médico lhe liga no apart-hotel, de um orelhão, e
eles combinam de se encontrar em frente ao Instituto Oswaldo Cruz. O pesquisador vai
de ônibus, às 12:30 horas para não se atrasar. Ao atravessar uma passarela para chegar
ao lado da avenida, onde fica o Instituto, é abordado por dois assaltantes: um loiro e um
210
mulato. Reage, leva dois tiros e é levado para o hospital. É separado da mulher e tem
uma filha envolvida com drogas, mas a ex-mulher vem buscá-lo. No avião, volta triste
por não ter se encontrado com o médico que fala com Oswaldo Cruz.
Sobre si mesmo, o médico conta que nasce em São João do Curumim, Santa
Catarina, em uma modesta família de pai dono de armazém e mãe dona de casa. Faz
medicina, gosta da pesquisa, mas, como não tem dinheiro para se dedicar a tal área,
volta a sua cidade do interior. Gosta de operar, não de clinicar. Casa-se com a filha do
fazendeiro local e é eleito vereador. Trai a esposa com a cunhada, começa a beber e
provoca dois óbitos. Tem uma ruína conjugal, profissional e política. As famílias,
estimuladas pela tevê e pelo ex-sogro, que lhes paga advogado, levam-no à justiça para
pagar indenizações. Só não é julgado, porque foge para o Rio. Trabalhando no
ambulario de uma fábrica, conhece uma auxiliar de enfermagem, sua atual amante.
Dorme durante uma consulta, a paciente é membro do sindicato e ele é demitido. Com
34 anos e alcoólatra, mediante os exames de rotina, recomenda-se ao médico medidas
higiênico-dietéticas e cuidado com as fantasias, sobretudo, as que envolvem a figura de
Oswaldo Cruz. Com o aluguel da casa na zona norte pago, muitas vezes, pela namorada,
e desempregado, passa as tardes na biblioteca de Manguinhos, lendo sobre a vida de
Oswaldo Cruz. Lá, conhece uma pesquisadora que se espanta com seu conhecimento
sobre o autor da Revolta da Vacina. Já que o médico não tem telefone, ela passa seu
endereço ao pesquisador americano, cujo trabalho é sobre o sanitarista brasileiro. Na
lista do pesquisador, ele é o nome mais desconhecido. Combinam de se encontrar às 3
horas, na entrada do Instituto Oswaldo Cruz. Encontro que não acontece.
A obra, enquanto faz conviver o discurso histórico-biográfico, a respeito do
sanitarista Oswaldo Cruz, o discurso profissional e educacional, a respeito do
pesquisador americano, e o discurso pessoal e descomprometido, a respeito do médico
anônimo, veiculados por um único narrador, o médico alcoólatra e desempregado, é
pincelada também por outra faceta da realidade. Essa face latente é que, de acordo com
Bozzetto, dá a coerência aparente do mundo empírico, portanto, convocado, mas que
211
está subordinado à existência de outras leis misteriosas e que, segundo Borges,
assemelham-se à magia
55
.
Nota-se que, na obra coexistem, de forma natural, as duas faces da existência: a
racional e a irracional, e não é nem que o mistério descende do mundo real
representado, ou é sua extensão, ele o complementa, mesmo, já que não se presta ao
escapismo, mas está no mundo representado, integrando o real e sendo regido por suas
leis próprias, para as quais a herança emrico-positivista do homem contemporâneo o
tem deseducado.
Em Sonhos tropicais, Scliar mistura as realidades visível e invisível, inerentes à
mestiçagem e ao barroquismo dos latino-americanos, trazendo à tona as ponderações de
Moses que considera que, embora algumas vezes distinto do realismo mágico”, a
noção do real maravilhoso americano” de Alejo Carpentier (popularizada no romance
cubano em 1949) tenha tido uma influência crucial no entendimento subseqüente e na
prática ficcional do realismo mágico, pois, Carpentier argumenta que “o real
maravilhoso americano” é um novo modo de representação de escrita, único das
Américas, enraizado firme e inseparavelmente nas realidades de vida peculiar,
experimentadas pelos habitantes da América Latina e do Caribe
56
. Contudo, faz-se
necessário esclarecer que certos elementos da cultura popular, presentes no romance e
relacionados de alguma forma ao real maravilhoso americano, como se verá mais
adiante, fazem parte de uma categoria maior, a do realismo mágico, preocupada com
questões do neobarroquismo presentes na consciência racional e mágica da sociedade,
por isso antropológica, ou seja, é o que Spindler (1993) chamará de realismo mágico
antropológico.
55
Dans ce récits, la cohérence apparente du monde empirique, pourtant convoquée, est
subordinée à lexistence supposée dautres lois qui demeurent mystérieuses et qui selon Borges,
apparentent à la magie (BOZZETTO, 1998, p. 113).
56
Although sometimes distinguished from magical realism, Alejo Carpentiers notion of lo
real maravilloso americano, (popularized by the Cuban novelist in 1949), has had a crucial
influence on the subsequent theoretical understanding and fictional practice of magical realism.
(...) Carpentier argues that lo real maravilloso americano is a new representational mode of
writing unique to the Americas, one firmly rooted in and inseparable from the peculiar realities of
life as experienced by the inhabitants of Latin America and the Caribbean (MOSES, 2001, p.
107).
212
Hergerfeldt (2002, p. 80-81) coloca que o realismo mágico é uma literatura
engajada no projeto de indepenncia pós-colonialista, como a crítica, de forma geral,
também coloca, porém vê essa literatura não como uma modalidade pós-colonial e sim
como uma modalidade pós-moderna, uma vez que tenta desconstruir o mundo aí
colocado, ao tentar desestabilizar as hierarquias estabelecidas, dando, assim, abertura
para a produção de um novo conhecimento. Por outro lado, Linda Hutcheon considera
não ser possível questionar um paradigma estando dentro dele, ou seja, não seria
imparcial um questionamento das estruturas, quando se é a própria estrutura. Daí que,
de acordo com a discussão de Anne Hegerfeldt, em relação à entrada do realismo
mágico na Grã-Bretanha, não é possível conservar as mesmas características da
América Latina, nem fazer o mesmo vel de debate, uma vez que o romance realista
mágico o pode contar apenas com uma postura tipicamente pós-moderna, uma vez
que, estando no centro”, ou seja, no alto da hierarquia, seus objetivos europeus, mesmo
primando pela desconstrução, terão propósitos de desarticular outras instâncias e não
desafiar as formas institdas, lançando-lhes seus tentáculos desestabilizadores rumo à
denúncia de suas formas anti-coloniais
57
.
Moacyr Scliar, em seu romance, mostra a parte mágica da realidade,
exemplificando-a por meio de comentários, uma vez que todo o livro se constrói via
comentários e rememorações, feitas do médico para Oswaldo Cruz. Nesse seu diálogo
o médico aborda passagens em que entram em cena personagens, fruto da consciência
coletiva ou de sua mente perturbada, como o Saci, a Princesa Moura, Lucy Smith, o
marinheiro, a vitória-régia, a úlcera, seres da lama e a garrafa, todos seres atuantes em
lendas, nos “causos”, ou na subjetividade ontológica do narrador, mas, de qualquer
forma, seres que povoam as mentalidades coletivo-junguiana e individual-freudiana do
romance. Aparecerão outras personagens, como o Curupira, a Cuca, a Uiara e a Mula-
sem-cabeça, mas não entrarão nas análises por não serem representativas na obra.
Ademais de seu componente ontológico, embora Sonhos tropicais, também passe
pelo imaginário e pelas crenças latino-americanos, assim como o realismo mágico
também passa pela noção de real maravilhoso americano de Carpentier na direção de
57
Bozzetto (1998, p. 113) também fala que o fantástico sul-americano é diferente do europeu:
Cependant, ce fantastique sud-américain implique la prise em compte dune image de la réalité
différente de leuropéenne.
213
sua evolução, segundo já tem colocado Moses, Scliar faz de seu texto uma confluência
na qual o imaginário popular convive com o real. No entanto, o autor transpassa essa
simples convivência, à medida que mostra a face mágica colada à concretude da
realidade, como ingrediente do realismo mágico, sem se preocupar em explicar o que
parece ser inverossímil, uma vez que isso faz parte da naturalidade do real, apesar de ser
visto de maneira mágica e cética, e não mística.
Em meio aos vários discursos que se entrelaçam na obra, com objetivos diversos,
apesar de sob o mesmo ponto de vista, personifica-se o invisível, no vivel do texto, só
para atualizar o mistério que subjaz no real. Essas passagens que remetem ao mágico do
real podem aparecer uma vez; reiterarem-se literalmente, ou de maneira alterada; ou,
ainda, inter-relacionarem-se com as outras, intratextualmente.
A personagem do folclore brasileiro, o Saci, por exemplo, aparece em diferentes
momentos e situações (p. 5, 25,43,168-169, 183, 184, 195,196 e 210), além de dialogar,
no texto, com outras instâncias de sua natureza — apesar de manifestarem-se, em
diferentes momentos da obra, tanto o exemplo em que aparece o Saci quanto os
exemplos com as demais personagens só serão analisados em um de seus momentos.
Tomar-se-á primeiramente um trecho em que, por ocasião da Revolta da Vacina, o
sanitarista Oswaldo Cruz manda que sua esposa Emilia e seus filhos se escondam em
outro lugar e ele fica sozinho em casa, a fim de se iniciar a ilustração de como o
realismo mágico — entendido, pelo menos por enquanto, no sentido, proposto por
Menton (2001), de verossímil e inverossímil trilhando os caminhos do real —, é capaz
de captar o mistério que palpita no mundo. No entanto, se o hesitar é condição básica
para o fantástico tradicional, na nova consistência adquirida pelo fantástico no século
XX, realismo mágico, em momento algum se encontra vestígios de hesitação, no
fragmento a seguir.
Quando saem, tu apagas todas as luzes, afundas numa poltrona, e ali ficas,
imóvel, na sala escura. E eno, das sombras, ouves uma risadinha.
É ele quem está ali, o Saci. Veio debochar de ti, o negrinho de uma perna só. Tu
finges ignorar a incômoda presença; mas é inútil, sabes que ele te mira, zombeteiro:
então, Oswaldo? O que dizes disto tudo, Oswaldo? Ah, calas? Tens de calar mesmo,
Oswaldo. Quem dá com os burros n’água, como tu, tem mesmo de ficar calado. Tu te
214
enganaste, Oswaldo. Não estás, para usar a expressão de teus amigos franceses, “au
dessus de la melée”. Surpreende-te que eu conheça a língua de Molière, Oswaldo? o
sou o tosco que tu pensas. Nem eu, nem o Curupira, nem a Cuca. Nós habitamos este país
há muito tempo, Oswaldo, estávamos aqui quando os franceses vieram, aprendemos com
eles a usar certas expressões. É o que nos permite sobreviver, Oswaldo: esta capacidade
de incorporar, de assimilar, que vai desde o canibalismo até ao sincretismo e à micagem
pura e simples: É que somos humildes, Oswaldo. Não temos a tua arrogância. Não nos
consideramos, como tu, apóstolos da ciência. Não queremos endireitar essa gente a
marteladas. E o que queremos, então? Eu, por mim, quero me divertir: quero pular, quero
sambar. Com uma perna só? — perguntarás.
É, Oswaldo. Com uma perna . Não me tira a alegria, o fato de ter uma perna .
É nisto que somos diferentes, Oswaldo. Eu e outros brasileiros. Aceitamos a nossa sorte,
sem queixas, sem ressentimentos. (...) Esta perna não me faz falta nenhuma. Se os
brasileiros me imaginaram assim, é porque sou assim; a outra perna ficou esquecida na
cabeça deles, ou então resolveram me sacanear. Não tem importância, a sacanagem é um
tipo de relação como qualquer outra, aliás é a coisa de que eu mais gosto, a sacanagem.
Meu lema é: não deixo passar dia sem uma safadeza. De qualquer tipo. Por exemplo:
trepo com loiras adormecidas — não é difícil, entro no quarto delas como entrei em tua
casa, introduzo-me em suas camas, penetro-as com suavidade; nem notam, pensam que
estão sonhando. Não sabes quantos filhos tenho por aí, Oswaldo. Essa molecada que anda
pelas ruas te vaiando, te atirando pedras — meus filhos, todos, filhos do Saci. E se a
Emilia não se cuidar... (SCLIAR, 1992, p. 168-169).
O Saci passa de seu mundo, dito popular”, pico do maravilhoso com suas lendas
e contos de fadas, de caráter oral e antropológico — nota-se também a ampliação e a
mistura de lendas, pois Scliar amplia a lenda brasileira do Saci, adicionando-lhe a lenda
européia do íncubo —, para o mundo da ciência, apesar de revelar seu lado individual e
inexplicável, de caráter ontológico, representado por Oswaldo Cruz. E, nessa passagem,
sem pedir licença, de forma muito real e natural, o Saci encontra lugar nas entrelinhas
da vida do sanitarista, sempre para debochar dele, e com isso, impulsioná-lo a suas
buscas, como, no fragmento em que Oswaldo, já doente com uremia e voltando do
Congresso em Berlim, ouve a voz debochada e instigadora do Saci: “Mas estás feliz.
Apesar da doença, e da vozinha do Saci, que de vez em quando soa zombeteira na
215
sombra (“Triunfaste na festa, Oswaldo, mas o Rio não é uma festa e nem uma barricada
é um mural de exposição”), te sentes recompensado. Podes agora voltar, ungido pela
ciência universal” (SCLIAR, 1992, p. 187).
Essa nova forma de se olhar a realidade, em si mesma, repleta de mistério e magia,
independe de explicações, não há ambigüidade textual, porque há a certeza de uma
maneira distinta de se ver a existência, ou seja, com os olhos do invisível existente. E é
esse mistério pulsante, a cara-metade do real, que persegue Oswaldo, dispensando
elementos contrastantes entre os domínios do natural e do sobrenatural para que ocorra.
A aparição dessa entidade do folclore, fazendo parte do mágico, peculiar a tudo
que envolve o Brasil, ao mostrar uma outra realidade de forma inesperada também não
provoca espanto. Embora Moses acredite que o romance realista mágico não é escrito
para aqueles que acreditam no maravilhoso, e sim para aqueles que gostariam de
acreditar no maravilhoso
58
, os episódios mágicos da realidade não estão aí postos para
suscitarem credibilidade ou não; eles estão aí colocados porque fazem parte da
sensibilidade de quem consegue ver o lado oculto e invisível do real, e que acreditam na
magia ancestral, da qual toda realidade se compõe. Busca-se, em verdade, o encontro,
de novo, com um mundo pré-moderno e não ocidentalizado — o mundo do real
maravilhoso americano” —, ainda, passível de ser fundamentado e desencantado, com
suas crenças primitivas — por isso no âmbito do realismo mágico antropológico
(SPINDLER, 1993).
O Saci não apenas abre arestas no cotidiano real da obra, como também inter-
relaciona-se com outros seres responsáveis pelas forças ocultas que igualmente manm
o equilíbrio do cosmos. Esses seres não serão aqui analisados por estarem relacionados
ao romance apenas indiretamente, uma vez que são somente citados, como o Curupira, a
Uiara e a Mula-sem-cabeça, isso quando Oswaldo Cruz vai coordenar o saneamento da
região amazônica para a Madeira-Mamoré Railway: “Ah, mas alguém dali te observa, e
não são apenas os desconfiados indígenas. É ele, o Saci, que te mira com aquele ar
debochado: bem-vindo aos meus domínios, Oswaldo, bem-vindo aos donios do
Curupira, da Uiara, da Mula-sem-cabeça” (SCLIAR, 1992, p. 195).
58
The magical realist novel is not written by or for those who believe in the marvelous, but rather
for those who would like to believe in the marvelous (MOSES, 2001, p. 115).
216
Porém o Saci se relaciona também a outros seres da face oculta do real, mas que
têm presença ativa na obra, por aparecerem em vários momentos do texto, como é o
caso da Princesa Moura
59
, que aparece, junto ao Saci, quando o Dr. Cruz ainda está no
Amazonas: “Aqui vicejam, exuberantes como a vegetação tropical, visões de um mundo
mágico: o Saci, a Princesa Moura” (SCLIAR, 1992, p. 25), ou, quando o sanitarista
falece e ao redor dele estão o médico, seu íntimo prosador, e todos os que ajudaram a
construir sua história-vida, de uma forma ou de outra, inclusive ele (o Saci) e a Princesa
Moura: “O Saci sorri, mas a Princesa Moura te olha amorosamente” (SCLIAR, 1992, p.
210).
Nota-se que Sonhos tropicais elenca duas realidades possíveis da mesma
realidade e, nessa união de forças irreconciliáveis, em que não é possível demarcar o
aqui e o ali, isto é, onde coma o implícito e onde começa o explícito, esjustamente,
conforme coloca Moses, a característica constitutiva do realismo mágico: um poderoso
hibridismo de realístico e fabuloso
60
.
A presença da Princesa Moura (p. 69, 76-77, 88, 170, 179, 184, 187, 192, 193, 206
e 210) é também tão recorrente na obra quanto a do Saci, e, com semelhante função,
integra o mistério oculto no cotidiano.
59
Segundo A Lenda da Princesa Moura ou Princesa Fátima, esta bela e jovem, filha única do emir, é
guardada dos olhos dos homens em uma rica torre mobiliada, em companhia de suas aias. Apesar de
prometida a seu primo Abu, Fátima se apaixona pelo cavaleiro cristão mais odiado por seu pai, Gonçalo
Hermingues, o Traga-Mouros”. Em suas cavalgadas pelos campos o cavaleiro poeta vê a jovem à
janela, por quem tamm se apaixona. Sabendo que ela participará no cortejo da Festa das Luzes, mais
tarde noite de S. João, prepara uma cilada de amor. Embora seja vigiada por Abu, Gonçalo rapta a
Princesa Moura. Os cavaleiros mouros, chefiados por Abu, saem no encalço dos cavaleiros cristãos,
chefiados por Traga-Mouros”, mas a luta revela-se fatal para Abu. Como recompensa pela morte e
prisão dos mouros, o cavaleiro cristão pede a seu rei, D. Afonso Henrique, licença para se casar com a
moura, este consente com a condição de que ela se converta. A região que primeiro acolhe o jovem casal
passa a se chamar Fátima, e a princesa, já com o nome cristão de Oureana, dá tamm seu nome ao lugar
onde se instalam definitivamente, a Vila de Ourém (A LENDA, 2006)
.
60
The constitutive feature of magical realism is a powerfully appealing hybridism of the fabulous
[no sentido de mágico] (MOSES, 2001, p. 109).
217
A lenda da Princesa Fátima também aparece, reduplica-se e se altera. Pois, como
fruto do imaginário coletivo luso-brasileiro, ademais de fazer tal fusão e se alterar de
Festa das Luzes para Noite de São João, presentifica-se para o ser individual: Oswaldo
Cruz, que, por ocasião da Revolta da Vacina, está em casa sem a esposa e os filhos,
sendo satirizado pelo Saci; então dorme e sonha com a Princesa Moura.
Choras, choras muito. E por fim, exausto, adormeces na poltrona.
O sonho te indeniza.
Porque é com ela que sonhas, com a Princesa Moura. Chama-se Fátima, esta
princesa. Linda: longos cabelos escuros, olhos negros, boca vermelha como a polpa de...
Linda. Vocês se encontram no longo corredor de um palácio. É noite; sob a luz da lua, as
fontes rumorejam no tio. Sopra uma suave brisa, que agita os ramos das tamareiras. Ela
vem vindo, no seu leve passo, graciosa, como se estivesse a bailar (Salomé diante do
rei?). Tu a fitas, olhos esgazeados, a boca entreaberta. Estendes teus braços... Ela foge,
rindo — seu riso é como a água da cascata nas pedras. Tu a persegues: espera por mim,
princesa, espera por mim. Ela desaparece nas sombras. Tu só ouves o seu riso cristalino.
Mas, este riso, tão musical, vai se transformando num som agudo, melico, como se
fosse um clarim.
É um clarim. Está amanhecendo, e ao longe soa um clarim. De quem? Das tropas?
Dos revoltosos? Um clarim. Mais um dia começa. (SCLIAR, 1992, p. 170).
A personificação da Princesa Moura nasce do sonho, é verdade, mas os vestígios
de sua presença deixam-se ficar no estado de vigília, concretizado pelo clarim, que é o
responsável por fazer a catarse do mundo onírico para o mundo real, dando mostras,
como no mundo de Macondo, de García Márquez (MOSES, 2001), que, no romance
realista mágico, o realismo, por suposto, nunca é inteiramente abandonado. O mundo da
ciência, da tecnologia e do conhecimento empírico existe lado a lado com o mundo do
mágico e do sobrenatural e as personagens sabem que existe uma tensão, à maneira do
fantástico, entre as características reais” e “mágicas” do mundo em que elas habitam.
E, como sustentam Louis Parkinson Zamora e Wendy Faris, segundo Moses, nos textos
218
realistas mágicos, o sobrenatural é um problema comum e que acontece todos os dias,
admitido, aceito e integrado na racionalidade e na materialidade do realismo literário
61
.
Ao se domiciliar na última fase dos vários séculos de processo de modernização e
globalização, o romance realista mágico é subversivo e busca uma nova ordem para o
mundo, como se pode ver em outra presença trazida à baila, na obra, a “lenda” de Lucy
Smith (p. 121-123), no decorrer da Revolta da Vacina, quando a população do Rio
resolve rejeitar a vacina primeiro pela obrigatoriedade desta, depois para dizer um basta
à política autoritária de Rodrigues Alves e de Pereira Passos.
De acordo com a sabedoria popular, a linda puritana inglesa, Lucy Smith, como
presente de dezessete anos, quer se deixar vacinar, mas, mesmo impedida pelo pai por
constituir em abominação e sendo exorcizada, rouba as economias da família e vai a
Londres se vacinar. Transforma-se em uma vitela agressiva e fogosa e, dias antes de
morrer, nascem-lhe dois chifres, como sinal de que está totalmente possuída pelo
demônio, porque desobedece seu pai e se deixa tomar a vacina.
O exemplo ilustra a rebeldia narrativa, pois, mesmo se erigindo de material pré-
moderno, do passado, representado pela “lenda”, com as inovações do contemporâneo,
representado pela vacina e pelos protestos contra ela, a obra caminha rumo a um futuro
imaginado, cuja transformação pode se derivar em uma, real, correção do passado, até
por causa da mudança de prisma de uma visão dominante do mundo — as pessoas já
não acreditam mais no passado fabuloso — ou, apenas, em mais uma versão dele,
calcada em fatos reais — a “lenda” de Lucy dá origem a boatos de vacinas preparadas
com sangue de rato, porque Oswaldo Cruz, quando faz a campanha contra a febre
amarela, estimula a captura de ratos por também serem veiculadores da doença.
Ainda há, no Brasil de 1904, pessoas que acreditam em histórias como a de Lucy
Smith, mas não são muitas. Os protestos são contra a qualidade do imunizante, e algum
fundamento têm: nem sempre a técnica de fabricação é a mais apurada. Os problemas daí
61
By the same token, the realism of García Márquezs Macondo is never entirely abandoned
the world of science, technology, and empirical knowledge exists side by side with the world of the
magical and the supernatural. The characters of García Márquez notoriously fail to acknowledge
that there even exists a tension between the real and the magical features of the world they
inhabit. As Louis Parkinson Zamora and Wendy Faris put it, in magical realists texts ... the
supernatural ... is an ordinary matter, an everyday occurence admitted, accepted, and integrated
into the rationality and materiality of literary realism (MOSES, 2001, p. 109).
219
surgidos dão origem a boatos e à tétrica história de vacina preparada com sangue de rato
(para o que podes involuntariamente ter colaborado, Oswaldo, com a tua insistência na
captura de roedores). (SCLIAR, 1992, p. 123).
Esse tipo de literatura é uma miscelânea cultural, evolutiva e viva, confeccionada
a partir de retalhos das culturas ocidentais e não ocidentais, modernas e pré-modernas,
embora, apesar de tal hibridez, sua preocupação se centre mais na cultura popular e nas
crenças mágicas, que, a partir das ponderações de Hegerfeldt, apesar de perderem, com
freqüência, seu status, como ficções, mudando-se para “fato” aceitável, são pedras
fundamentais de qualquer visão de mundo, como consideram pensadores das mais
diversas áreas
62
.
Por intermédio do fragmento sobre o marinheiro (p. 36-38), essa outra
personagem realista mágica, entra em cena, exemplificando o verdadeiro mundo das
mais extraordinárias surpresas que compõem a realidade da crônica americana, de
fundamentos surpreendentes e com muito, ainda, por descobrir.
Ao Dr. Oswaldo Cruz, a quem nada na clínica impressiona mais que a
microbiologia, surge-lhe o caso do marinheiro sueco, a propósito do qual escreve um
trabalho em 1891: Um caso de bócio exophtalmico em individuo do sexo masculino”.
Assim que vê o paciente, pensa que seu corpo devastado é apenas o suporte para os
gigantescos globos oculares, parecendo que vão saltar das órbitas. Ao se aproximar, no
entanto, percebe em seu pescoço a “tumoração” de uma descomunal glândula de
tireóide; enquanto, de forma antagônica, todo o corpo doente lhe pede para que o cure, e
o monstro marinho lhe fita distante, transmitindo-lhe, pelas cicatrizes, a mensagem para
não lhe roubar a presa.
Fala-te, o corpo doente; e, ao mesmo tempo em que se expressa, pede-te: cura-me.
Cura-me, diz o coração que bate acelerado (...). Cura-me, diz a artéria, que, no pescoço do
homem, dança sem cessar. E já que te fala, o corpo, tens de falar também (...). Pedes ao
homem que te conte o que aconteceu, como ficou desse jeito.
62
Thinkers from all of the aforementioned fields (plus a few others) have examined the way in
which cultural constructs and beliefs, not infrequently losing their status as fictions and mutating
into accepted fact, are firm cornerstones of any world view (HEGERFELDT, 2002, p. 79).
220
Em seu português arrevesado, narra-te o sueco uma estranha história. Marinheiro
por vocação, navegar pólos sete mares, sempre alegre e com boa saúde Um dia, seu navio
chegou às Índias Ocidentais, paraíso tropicas: sol, mar azul, brisa. Era uma tarde quente,
ele tinha feito seu serviço; resolveu nadar um pouco. Prazer inocente.
Lançou-se à água, e nadou, nadou bastante, feliz...
De repente avistou o polvo. Um polvo enorme, que vinha em sua direção. Antes que
pudesse fazer algo o monstro marinho lançou um jato de líquido escuro — e logo em
seguida um tentáculo o envolveu, ventosas poderosas grudaram-se a seu peito. Gritou por
socorro inútil, não havia ninguém que pudesse acudi-lo —, debateu-se, até que, por
verdadeiro milagre, conseguiu se soltar. O sangue jorrando de rios ferimentos, ele
voltou ao navio, foi socorrido pelos companheiros. Nos dias que se seguiram, sentia-se
melhor; parecia que a recuperação ocorreria sem problema; mas então o pescoço começou
a crescer, os olhos ficaram esbugalhados; possuído de um apetite devorador, comia sem
cessar; tinha pesadelos, ataques de terror: “o seu somno era agitado e de quando em vez
de elle, despertava sobressaltado”. É, concluis, “a nevrose cardíaca conhecida em
pathologia sob o nome de bócio exophtalmico... Parece-nos bem patente que o factor da
molestia foi uma causa de ordem moral. Um grande susto”.
Pronto, Oswaldo. Aí estás, no mundo das causas morais, no sombrio universo
povoado pelos demônios de Dostoievski. Ai, Oswaldo, Oswaldo, por que foste tirar os
olhos do microscópio? Por que foste olhar o mundo, com a curiosidade de um voyeur
espiando atras do buraco da fechadura? Fremes, agora, como a tireóide do homem;
fremes de dúvidas. O que teria ativado a glândula? Seque resulta, a antecipação da
morte, numa aceleração de processos vitais, tipo: é hoje só, amanhã não tem mais? Hein?
E este polvo, Oswaldo? Que dizes deste polvo, deste ser apenas concebível nas Índias,
naquelas misteriosas regiões do pássaro Roca, que carregou Sindbad, o marinheiro? Pelos
tentáculos do polvo, Oswaldo, também foste, de certa forma, envolvido: da distância, ele
te fita com olhinhos malignos, enquanto examinas as pequenas cicatrizes deixadas pelas
ventosas no tórax do paciente: a mensagem do monstro dos mares. Não te aventures aqui,
é o que ele te diz, não te atrevas a me arrebatar a presa. (SCLIAR, 1992, p. 37-38).
No texto scliariano, essas surpresas em estado bruto, latente e onipresente deixam
entrever o cotidiano, realista mágico por natureza. Pois, embora haja a intervenção
médica, mostrando a face real desse dia-a-dia, em contraste, nas entrelinhas dessa
intervenção, também se mostra a contradição que permanece por causa do nível mágico,
221
coexistente do real. Contudo, a contradição não se manifesta, além de ser relativizada
pela introdução do diagnóstico médico com o verbo parecer” e pela conclusão dada: de
ordem moral ou proveniente de susto.
O mágico sempre esteve no cotidiano, e, no romance realista mágico, ele é
duplamente previvel, por já fazer parte do mundo circundante e também devido à
natureza desconstrutiva e desautomatizadora de tal literatura — indo de encontro às
ponderações de Rodrigues (1988, p. 49) sobre o fantástico atual, no qual “não
reconstrução; nenhuma explicação é dada ao acontecimento estranho, permanecendo
B...C [a indeterminação]
63
na total ambigüidade”. Vê-se também que o realismo
mágico, fazendo uso da ficção, usa vários recursos para poder promover uma reação a
um conhecimento, por natureza limitado, do homem sobre o mundo, já que esse
conhecimento teima em ser vedado ou reduzido pelos paradigmas científico-racionais
das ciências positivistas.
Na obra, um outro exemplo, no qual o mundo intuitivo palpita junto ao racional,
descortinando o mistério oculto em sua lógica, é o da viria-régia (p. 41). Pelo excerto,
percebe-se que acontecimentos mágicos e fugazes, fora do alcance da compreensão, são
interseccionados com o real do contexto cotidiano, deixando, apenas, entrever ou
subentender uma outra realidade que faz sua morada entre o real e o mágico da mesma
realidade.
Como se pode ver, no percurso diário de Oswaldo Cruz rumo a seu emprego na
fábrica de tecidos Corcovado, a planta aquática, vitória-régia, misturada a sua lenda
local e Amazonense de estrela das águas, com a criança loira e angelical, de natureza
ocidental e européia, dá origem a uma outra realidade inapreensível e fugaz, advinda
das raízes brasileira e européia: a criança loira e linda levada pela folha de viria-régia
na correnteza do estreito canal do Amazonas.
Todos os dias para lá te diriges. É uma caminhada agradável; passas pelo Jardim
Bonico, cujas altas, hirtas palmeiras guarnecem tranqüilas aléias. Ali estão espécimes da
fauna brasileira. Ali está a vitória-régia, planta aquática de folha tão grande que uma
63
“Considerando a história total uma seqüência representada por ABCD, suponha-se que uma das
partes não fique totalmente explicitada. A indeterminação será representada pelos pontos
suspensivos: B...C” (RODRIGUES, 1988, p. 48).
222
criança pode sobre ela se sentar. Certa criança loira e linda que sobre ela se sentou, num
igarapé da Amazônia, foi levada pela lenta correnteza e sumiu: tal o destino das frágeis
criaturas imaginárias, principalmente quando loiras e lindas. (SCLIAR, 1992, p. 41)
Nota-se que essa planta aquática do Jardim Botânico, guardando seus nculos
com a flora de onde nasceu, parte da natureza para a ciência, e, muito mais que abordar
apenas sua lenda; ou Moisés, o bebê da Bíblia, nos juncos à borda do Nilo; ou Ceci, a
personagem alencariana, na cena final de O guarani; ou, ainda, as crianças loirinhas,
picas criaturas celestiais, elenca a verdade mágica posta no mundo representado, mas
pouco apreensível nas lentes convencionais do cotidiano. Afinal, de acordo com o que
assinala Bozzetto, ao diferenciar o “real maravilhoso” do “realismo mágico”, diz que o
primeiro, institui uma escrita original do mundo, pois ele devolve ao objeto o mundo em
seu “maravilhoso”, enquanto que o segundo, ao contrário, faz alusão a um modo de
representação do objeto, sendo uma estética, embora obras como Cem anos de solidão,
de García Márquez, tentem conjugar essas duas diferenças
64
. Daí que para precisar uma
terminologia a ser utilizada, a visão de realismo mágico spindleriana, abordada mais à
frente, a cada vez mais, mostra-se a mais coerente por postular uma ótica aditiva e
globalizante das várias terminologias.
Tem-se outro exemplo de realismo mágico, em Sonhos tropicais, quando se abre
uma úlcera (p. 15) na testa ou na fronte do garoto Oswaldo Cruz. Todavia, o mistério
latente é naturalizado ao se usar o conectivo como” que dá a idéia, apenas, de
comparação e não de realidade.
A demonstração acontece, quando, na escola, o menino é convocado a ir até sua
casa, onde seu pai, o doutor Bento Gonçalves Cruz, amigo da disciplina e da
integridade, espera-o para lhe dizer que se esqueceu de arrumar sua cama. Então,
sozinho no quarto a executar sua tarefa, brotam-lhe lágrimas e lhe surge a ferida,
invisível, mas igualmente dolorida, pelo desamparo e pelo não apoio da mãe com um
64
On pourrait remarquer que le real maravilloso renvoie à lobjet, le monde, en soi
merveilleux: il institue un rapport original au monde. Par contre le réalism magique fait
allusion à un mode de représentation de lobjet. Il renvoie à une esthétique. Mais les oeuvres
constituent peut-être le lieu et le moyen pour que cette vision du monde et ces tentatives esthétiques
se conjoignent. On peut penser à Cens ans de Solitude de G. Garcia Márquez, comme un exemple
possible de cette conjoincture (BOZZETTO, 1998, p. 96).
223
beijo, o que ela, jamais, ousaria fazer, naquele momento, por configurar em uma
intervenção na ordem paterna. Esse evento incrível é ilustrativo no sentido de que as
ciências ocultas e oníricas, que não seguem necessariamente o chamado
“intelectualismo” cultural e lógico também apresentam um sentimento face à realidade
representada.
Causa-te, Oswaldo, sofrimento atroz a falta deste beijo. É como se tivesse na testa
(ali onde Caim recebeu sua marca?) ou na fronte (ali onde brotaram os chifres daquela
estranha moça, a Lucy Smith?) uma úlcera; uma úlcera que ninguém vê — a pele está
íntegra — mas que nem por isso é menos dolorosa: chaga, estigma. E só o bálsamo
representado pelos cálidos, úmidos lábios de tua mãe pode aliviar teu medonho
sofrimento. Um sofrimento que te faz bradar: e, por que me abandonaste? e, beija-
me, mãe! No minuto seguinte ela está a teu lado, te beijando. (SCLIAR, 1992, p. 15).
Nesse caso, não se pode dizer que os elementos, não visíveis ao olho nu da
realidade, evocam ou remetem a várias episódios de ordem bíblica, lendária e literária,
objetivando justificar a presença do universo não racional, inerente ao real, mas, pode-
se colocar que o fragmento traz à mente uma riqueza de discursos que se interceptam,
como a marca bíblica do castigo de Caim, por ter matado seu irmão, à causa da inveja; a
lenda britânica da puritana Lucy Smith que se transforma em novilha, por ter
desobedecido o pai e se deixado vacinar; o episódio literário da obra proustiana, À la
recherche du temps perdu, em que o garoto Marcel não é capaz de dormir, porque a
mãe não pôde vir lhe dar o costumeiro beijo antes dele dormir, por causa de algo como
uma festa na domesticidade da casa. Além disso, exemplifica o diálogo de uma
passagem do romance com outra, e monta, dessa forma, uma teia discursiva, em sua
cumplicidade intratextual.
A penúltima mostra do mágico da realidade pode ser vislumbrada no episódio dos
porcos emergentes da lama (p. 29-30, 97-98), no qual o racional e o não lógico
racionalmente, têm o mesmo peso avaliativo, tanto para o narrador quanto para as
personagens, professor e estudantes de medicina de cuja turma pertence Oswaldo Cruz,
224
pois, sem seus deuses e sem encanto com o mundo, apresentam-se céticas
65
, em relação
à referência do professor de microbiologia a tal ocorrência.
Mas a verdade é que a medicina moderna deve muito a Louis Pasteur, que
aliás não era médico, mas químico. Fez uma carreira impressionante. Começou
demonstrando que a geração espontânea não existe. Ora, senhores, na geração espontânea
muitos acreditaram, a começar pelo grande Aristóteles. Ratos nascendo de lixo, moscas
brotando da carne podre — e eu mesmo conheci, no Nordeste, um homem que semeava
porcos. Sim, senhores, semeava porcos: uma orelha, uma pata, o fígado, tudo isto ele
semeava na lama, em noite de lua cheia, dizendo certa reza. Aí, doutor, contou-me, a
gente espera umas quatro semanas; coma então na lama uma agitação, um borbulhar, e
um dia se vê um olhinho nos espiando alegre da lama, e logo um porco aparece, um
leitãozinho gordo. Este homem se propôs a me ensinar, por módica quantia, a tal reza.
o aceitei. Poderia ter ficado rico, criando suínos imaginários, mas preferi o ensino da
microbiologia. Trata-se de verdadeira vocação para o sacrifício. (SCLIAR, 1992, p. 29-
30).
A repetição na página 98 praticamente literal, começando por conheci”, ao invés
de “eu mesmo conheci”, de igual modo, é uma forma usada para se iniciar os “casos” e
lhes suscitar maior credibilidade por parte do enunciatário/ouvinte, ao se mencionar que
o próprio enunciador conheceu a pessoa que aliás conta com a “boca dela”. Scliar, ao
introduzir na ficção esse lado do real próprio das narrativas contadas, com seu caráter
oral, mas habitante da convenção literária, mesmo em meio à moderna produção
industrial, à tecnologia de informação e aos mercados literários internacionais, confirma
o parentesco do escritor do realismo mágico com o contador de histórias, conforme
lembra Moses
66
.
65
It is, in short, the world of modern society in which the gods have vanished and in which
scientific rationalism, religious skepticism, and the secularization of civil society are taken for
granted. The realistic novel, in short, represents what Max Weber calls the disenchantment of the
world (MOSES, 2001, p. 110).
66
That is, in the midst of a written and printed text itself a product of modern modes of
industrial production, information techology, and international literary markets the magical
realist writer often dramatizes the role of the traditional storyteller, who orally narrates one or
225
O romance realista mágico prevê sua transversalidade com outras disciplinas para
que o homem possa entender o mundo e se entender melhor. Na obra, o professor de
microbiologia explica à turma de Oswaldo Cruz que ciência e fantasia, no sentido de
magia, sempre andaram juntas, apesar da arrogância e presunção científicas: “Ciência e
fantasia sempre andaram, sabeis, de mãos dadas: a química e a alquimia, a astrologia e a
astronomia. Sob o véu diáfano e inocente da ilusão, a implacável subversão: a ciência é
a arma com a qual a burguesia abaterá o inimigo feudal” (SCLIAR, 1992, p. 25).
Por ocasião do outro exemplo de reduplicação dos seres que se originam da lama,
os porcos, nas páginas 97-98 realmente é possível arrolar a transversalidade disciplinar
do realismo mágico tanto em relação à ciência médica — na fala do professor de
microbiologia de Oswaldo Cruz —, quanto em relação à ciência terapêutica — na
anamnese que o Prefeito Pereira Passos faz ao Dr. Cruz sobre seus sonhos, nos quais a
cabeça de um porco nojento e velho lhe pisca e lhe persegue, ao que o lendário prefeito
interpreta administrativamente como a necessidade de se demolir cortiços do Rio de
Janeiro, o Cabeça de Porco, por exemplo, a fim de dar à capital fluidez ao trânsito, o
sangue do organismo econômico”. O que coincide com o parecer de Hegerfeldt (2002),
para quem o realismo mágico insiste vigorosamente em mostrar sua natureza
construída, já que todas as visões de mundo são essencialmente construções regidas pela
causalidade e, portanto, os eventos obscuros são sinais e sintomas dessas causas e
efeitos, devendo caminhar lado a lado com os eventos visíveis, a fim de fazer brotar a
contradição e, em conseqüência, avivar uma nova percepção humana, proporcionando a
discussão e a revisão da estrutura do mundo.
O último exemplo a ser tomado para análise do realismo mágico scliariano, em
Sonhos tropicais, sobre a conversa do narrador-alcoólatra com sua garrafa (p. 188-
191), reportando a seu diálogo (ou monólogo?), constante, com ela sobre o falecido
sanitarista Oswaldo Cruz, deixa transparecer uma agudez emotiva, mas também
referencial do narrador. Nessas únicas páginas da obra, quem narra também é esse
médico alcoólatra e desempregado, mas é o único trecho em que o foco narrativo es
several of the most memorable magical episodes. (Of course, the oral character of these stories is
necessarily a literary fiction or convention.) (MOSES, 2001, p. 112-113).
226
em terceira pessoa, somente por se tratar de um exercício de redação de prontuário
médico, feito por ele.
É alcoólatra. Dependendo de seu crédito no bar da esquina, toma o que chama de
“vários martelos de parati” por dia, cerveja e até uísque. Conversa muito com a garrafa e
também com Oswaldo Cruz, famoso sanitarista já falecido. Sustenta que assunto não lhe
tem faltado. É que se dedica a estudar a vida de Cruz. Desde que perdeu o emprego o
emprego, freqüenta assiduamente a biblioteca de Manguinhos. Cita, entre suas leituras: a
biografia de Oswaldo Cruz escrita por Salles Guerra; a Opera omnia, coletânea de
trabalhos de Cruz; A escola de Manguinhos, de Olympio da Fonseca Filho; Oswaldo Cruz
e a caricatura; Oswaldo Cruz no julgamento de seus contemporâneos; e muitos outras.
(SCLIAR, 1992, p. 190).
É interessante a técnica não discriminatória, usada por Scliar, pois, ao mesmo
tempo em que coloca, no mesmo pé de igualdade, no interior do todo textual, o
subjetivo e o objetivo, o racional e o mágico, confere ao texto uma destituição
hierárquica da sobreposição de um discurso a outro e de uma categoria literária a outra,
num processo de relativização e de desautoria dos discursos e das formas “superiores”,
além de dar o turno discursivo a um alcoólatra, alguém, por natureza, colocado à
margem, indo de encontro ao que é previsto nas obras de autores realistas mágicos,
segundo as ponderações de Moses
67
.
3.3 A precisão do termo
Para se tentar estudar os processos inexplicáveis racionalmente na obra Sonhos
tropicais, de Moacyr Scliar, partiu-se, com parcialidades, do que Menton (2001)
considera como realismo mágico — claro, sem a pretensão de reduzir a obra a uma
vertente literária —, para finalmente chegar às considerações de Spindler (1993), sobre
67
The authors of many magical realist novels, as well as their reviewers and critics, have
emphasized the ways in which new alternative voices of the marginalized and the subaltern are to
be heard in their pages (MOSES, 2002, p. 114).
227
tal questão, explanadas em seu artigo Magic realism: a tipology”, embora seja válido
dizer que outros romances scliarianos, como A guerra no Bom Fim (2001c), A
majestade do Xingu (1997a), O centauro no jardim (1985a), Cavalos e obeliscos
(1981), muitos de seus contos de A balada do falso Messias (1976a), A orelha de Van
Gogh (2000d), Histórias da terra trêmula (1976c), Histórias para (quase) todos os
gostos (2001d), O anão no televisor (1979a), Os melhores contos de Moacyr Scliar
(2003b), O carnaval dos animais (2001f), e muitas de suas crônicas de Minha mãe
não dorme enquanto eu não chegar (2001e), e O imaginário cotidiano (2002c)
também apresentem características que dariam bons estudos, além de necessários, em
relação a esse veio da literatura fantástica no cotidiano da obra do escritor-médico,
tendo-se em vista que, assim como cada autor, cada obra pode ter suas especificidades
de realismo mágico.
Tanto no romance quanto no conto não são raras as passagens em que o escritor
lança mão do recurso ao fantástico, abrindo espaço para o sonho, a alucinação ou o gesto
insólito que provoca invariavelmente a fratura da realidade. Nem por isto deixa de
pertencer à linhagem realista. Scliar obteve aquele realismo integral” dos verdadeiros
narradores que admite na sua tessitura precisamente aquilo que a realidade contém de
mágico, onírico ou...irreal. (CHAVES, 1994, p. 79).
Spindler (1993) tem como objetivo incorporar as diferentes manifestações do
Realismo Mágico em só um molde, mantendo os pontos de contato entre elas. O crítico
coloca que, ao surgir o termo com Franz Roh, em 1920, aplicado a um grupo de
pintores, na Alemanha, ele (o termo) prescreve um novo olhar sobre a realidade,
portanto, não uma mistura de realidade com fantasia, mas uma maneira de revelar o
mistério oculto nos objetos da realidade cotidiana. Em 1949, no prólogo de seu livro O
reino deste mundo, Alejo Carpentier apresenta seu conceito de o real maravilhoso”,
não como as fantasias de um autor em particular, mas como os prodígios naturais,
culturais e históricos que fazem a América, fonte superior e inesgotável de verdadeiras
maravilhas, ser tão diferente da “malfadada pretensão de suscitar o maravilhoso” da
Europa, além de revelar sua desilusão com o Surrealismo. Carpentier parte da
fascinação surrealista pelo “merveilleux”, mas apresenta duas visões de mundo
228
contrastantes: uma racional, moderna e discursiva e outra mágica, tradicional e intuitiva.
Porém, diferente dos surrealistas que pretendem separar a realidade oculta da realidade
do dia-a-dia, o real maravilhoso pretende representar a realidade modificada pelo mito e
pela lenda, aproximando, assim, as idéias de Jung de “inconsciente coletivo” às idéias
de Freud de inconsciente individual, o que atraiu os surrealistas. Em 1940, Miguel
Angel Astúrias, interessado na concepção da realidade colorida por crenças mágicas de
Maya de Guatemala, diz que o “realismo mágico” é assim chamado, porque a realidade
surge não do palpável, mas da imaginação mágica. Em 1954, em uma palestra sobre
“Realismo Mágico na Ficção Hispano-Americana”, em Nova Iorque, Angel Flores parte
de Roh, incluindo no realismo mágico as narrativas que transformam o comum do dia-
a-dia no assustador e no irreal, em um tempo atemporal, onde o irreal faz parte da
realidade. Baseado em Flores, essa categoria começa a se associar a narrativas que
empregam com aparente segurança descrições realistas de acontecimentos fantásticos, o
significado oposto do termo original. Realismo mágico e realismo maravilhoso”
tornam-se, mais ou menos, intercambiáveis e aplicados ao “Romance Novo” pós-
Segunda Guerra Mundial. Em 1967, Luís Leal tenta retornar à fórmula original de Roh
de fazer o comum parecer sobrenatural, pois para ele o escritor mágico-relista
compactua com a realidade objetiva e tenta descobrir o mistério dos objetos, vida e atos
humanos, sem usar o fantástico. Semelhante a Leal, Enrique Anderson Imbert rejeita o
sobrenatural no realismo mágico que, para ele, é protonatural, i.e., excede o normal,
sem transcender os limites do natural, dando aos acontecimentos reais uma ilusão de
irrealidade. O debate atinge uma esfera maior que passa a ter duas diferentes e
contraditórias depreensões do termo: (1) o original, que apresenta a realidade a partir de
uma perspectiva incomum sem transcender o natural, mas que induz no receptor um
senso de irrealidade, no estilo, apresenta o natural como sobrenatural e na estrutura,
exclui o sobrenatural como interpretação válida, e (2) o uso atual, o mais comumente
empregado pelos críticos de ficção latino-americana e substituto do uso (1),
contrastando duas visões de mundo (uma “racional” e outra “mágica”), apresentadas
como se fossem contraditórias, ao lançarem mão de mitos e crenças de grupos etno-
culturais para os quais essa contradição não se manifesta. O uso (2) baseia-se na
extensão do real maravilhoso”, sinônimo de realismo mágico na América Latina, e, no
229
estilo, o sobrenatural é apresentado como natural, enquanto que, na estrutura, o
sobrenatural é essencial para a existência do realismo mágico. Chanady propõe três
critérios para que um texto pertença ao realismo mágico ou não: duas conflitantes visões
de realidade (o natural e o sobrenatural, o racional e o irracional, o esclarecido” e o
primitivo”), a aceitação e validez dessas duas visões pelo narrador, a reticência do
autor sobre a veracidade do sobrenatural. Nem o uso (1), de tradição pictorial e
européia, nem o uso (2), de tradição literária e latino-americana, por si só é suficiente
para dar conta de todos os diferentes exemplos de obras mágico-realistas. Então
Spindler propõe uma tipologia unificadora e, ao invés de ter duas concepções diferentes,
o realismo mágico terá apenas dois lados para a mesma moeda, além de um terceiro
tipo, apesar de haver mais pontos de coincidência entre os três tipos e de eles não serem
mutuamente excludentes. Obras de um mesmo autor podem cair em diferentes
categorias que aliás correspondem a três diferentes significados da palavra “mágico”.
No realismo mágico metafísico, “mágico” é tomado como conjurar, produzir efeitos
surpreendentes pelo arranjo dos objetos naturais por meio de truques, instrumentos ou
ilusão ótica, e corresponde à definição original do termo. Na pintura, tem-se uma
atmosfera tranqüila e melancólica, em que a claridade das cores e a precisão das
dimensões formam contrastes com cada “sombra”, a fim de dar o efeito metafísico. Em
literatura, encontra-se em textos que induzem a um senso de irrealidade no leitor pela
técnica do Verfremdung (estranhamento), por meio do qual uma cena familiar é descrita
como se fosse nova, desconhecida e impessoal, mas sem lidar com o sobrenatural para
dar o efeito do mistério, o romance abre na mente do leitor a impressão de ser
confrontado com uma alegoria ou metáfora de algo quase ao alcance, mas
desconhecido. No realismo mágico antropológico, “mágico” é mostrado no sentido
antropológico de um processo usado para influenciar o curso dos acontecimentos
fazendo funcionar os princípios secretos que controlam a Natureza, o narrador
normalmente tem “duas vozes”, r-0.06(lisd3uas d5(co )-19(os )-18(a3)20(oneal)24(6)17(m)26(en)19(to)-27(s de u)-23(oeren)223(o )-(s 32(vi)26(s)1adas)] TJ06089 Tc-3.524 Tw0 -20.64 TD4(cre)a17(l)23(i)26ra)2a(o: )-ou9(o )-58liátinio: os 5(2(a5i)37(to1-3onh),5(a )-hi)3io efat8(a )-((, )-1(ei)35(o69)23(i)elaniEneno: omcaica
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te4o mado4arranocal paravbrepeadgo no
230
americana, em distinção ao realismo mágico europeu, sinônimo do tipo metafísico.
Spindler prefere, para essa variedade, o uso de realismo mágico antropológico por ser
um termo mais exato e prático, além de colocá-lo dentro de uma categoria maior
(Realismo Mágico) do qual é parte e não confiná-lo à América Latina, como o real
maravilhoso (americano) faz. Na literatura latino-americana, o realismo mágico
antropológico participa de uma tendência mais geral, preocupada temático e
formalmente com o estranho, o inexplicável e o grotesco, e com a violência, a
deformidade e o exagero, tendência que recebe o nome de neobarroquismo, além do
impacto modernista e provincianista, sendo que esta última tendência, por vislumbrar
nas personagens uma consciência racional convivendo com uma consciência mágica”,
igual ou superior ao racionalismo ocidental, liga o realismo mágico antropológico à
cultura popular, mágica e tica, embora não seja exclusivamente hispano-americana. A
foa do realismo mágico na periferia (América Latina, África e Caribe) comparada ao
centro (Europa e Estados Unidos), deve-se ao fato de que mitos coletivos e crenças pré-
industriais adquirem maior importância na criação de novas identidades nacionais.
Periferia e centro se igualam, à medida que o realismo mágico dá a mesma importância
à cultura popular e às crenças mágicas que os ocidentais dão à ciência e à racionalidade.
No realismo mágico ontológico, “mágico” se refere às ocorrências inexpliveis,
prodigiosas e fantásticas que contradizem as leis naturais e não possuem explicação
convincente, não correspondendo a nenhuma perspectiva cultural em particular. É uma
forma individual, em que o sobrenatural se apresenta de modo realista, como se não
contradissesse a razão, nem fosse inexplicável. O autor exercita de forma livre sua
criatividade de escrita, sem fazer referência à imaginação tica de comunidades pré-
industriais. O narrador não está cético ou perturbado em relação ao sobrenatural, como
ocorre na literatura fantástica, descrevendo-o como se fosse uma parte normal da vida
comum. Formalmente o verdadeiro estilo empregado no realismo mágico ontológico, no
qual situações impossíveis são descritas de forma realista, representa o oposto do
estranhamento do realismo mágico metafísico. Esse tipo de texto pode ser interpretado
no vel psicológico e os acontecimentos descritos vistos como o produto da mente de
um indivíduo perturbado”, entretanto é um texto mágico-realista, pois a visão
“subjetiva” e irreal é endossada pelo narrador “objetivo” impessoal, por outros
231
personagens ou pela descrição realista de eventos com estruturas normais e plausíveis.
Trabalha com duas realidades: uma subjetiva e irreal e outra objetiva e ontológica.
Em Sonhos tropicais, de Moacyr Scliar, partiu-se do conceito de realismo
mágico, mais amplo, com muitas restrições, dado por Menton (2001), em relação à
ambientação textual coabitada, de modo impassível, pelo inverossímil no verossímil, e
mediado por vários outros críticos, como Chiampi (1980), Hegerfeldt (2002), Gomes
(1989) e Leal (1995), tendo-se em vista que, na obra, estão espalhadas as peculiaridades
dessa categoria literária proveniente da literatura fantástica, para depois chegar-se a um
conceito desse estilo e estrutura de literatura, mais precisos, ou seja, o realismo mágico
ontológico, dado por Spindler (1993), apesar de que a obra continua, em linhas gerais,
portando as características colocadas pelos outros críticos, que, inclusive, são as
mesmas desse último, apenas ele as classifica, de forma mais sistemática. Isso permite
conservar o romance no sentido múltiplo do termo realismo mágico, mas também
colocá-lo em uma tendência mais específica do mesmo termo, além de que, pelo fato de
pertencer ao realismo mágico ontológico, em sua predominância, a obra não esimune
de características que permitam enxergar também momentos das outras tendências
realistas mágicas, aliás todas faces da mesma moeda.
De modo mais específico, depois da distinção dos três tipos de realismo mágico
oferecida por Spindler, colocar-se-á o texto scliariano em pauta no segmento ontológico
do termo por vários motivos. Às ocorrências inexplicáveis e fantásticas de entidades do
imaginário coletivo e individual, como o Saci, a Princesa Moura, Lucy Smith, o
marinheiro, a vitória-régia, a úlcera, seres da lama e a garrafa, apesar de incoerentes
com o regimento do mundo ordinário, não há nenhuma preocupação em justificar sua
presença, nem, muito menos, de convencer o leitor a favor ou contra seus prodígios.
Quando o Saci aparece na penumbra, onde Oswaldo Cruz, escondido, reflete sobre seu
protagonismo na Revolta da Vacina, que se encontra ao vivo nas ruas do Rio de Janeiro,
sua aparição, embora se refira ao misticismo das comunidades pré-industriais, é dada de
forma totalmente natural e até banal para o sanitarista que só lhe arremessa um vaso de
cristal, porque o negrinho está sempre a rir e debochar dele. Percebe-se que nem o
médico-narrador, nem os estudantes de medicina da disciplina de microbiologia se
232
mostram absolutamente intrigados com o sobrenatural nos porcos que vão nascendo da
lama, a partir de orelhas, patas, fígado, etc., pelo contrário, aceitam o absurdo de forma
tão natural que dá a impressão de que se semear partes suínas elas realmente nascerão
como as sementes nascem na terra. O diálogo ou monólogo permanente do narrador
com a garrafa de bebida alcoólica e com o falecido Oswaldo Cruz dá margem a
interpretar essa obra no vel psicológico, pois o narrador-personagem é um alcoólatra,
portanto mentalmente “perturbado”, que dialoga com sua garrafa e com o falecido
sanitarista, mas não será, assim, interpretada, uma vez que, embora o narrador se
debruce em sua apreensão psicológica, subjetiva e irreal dos acontecimentos, pauta-se,
de igual modo ou até mais, na concepção referencial, objetiva e ontológica que a leitura
dos textos histórico-biográficos dá a respeito do falecido sanitarista, apresentado, em
verdadeiras descrições realistas de eventos normais e históricos, e ao lado de outras
personagens de existência comprovada, como o Bento Gonçalves Cruz, Salles Guerra,
Rodrigues Alves, Pereira Passos, Adolfo Lutz, Vital Brasil, e muitas outras. A
antinomia é deixada irresoluta, permanecendo no plano do parecer” e da causalidade
moralista, mesmo depois da análise médica, na estranha ocorrência do polvo que ataca o
marinheiro e este adquire nevrose cardíaca, imprimindo no leitor uma sensação
perturbadora. A existência da úlcera na testa ou na fronte do menino Oswaldo Cruz
pretende ser relativizada e camuflada de forma que o irracional pareça não contradizer a
razão, pela presença comparativa da conjunção “como”, e caso semelhante acontece
com o clarim onírico do castelo onde Oswaldo Cruz se encontra com a Princesa Moura,
pois para que o acontecimento ilógico não sofra contradição, ele é transformado
catarticamente no clarim real que marca a chegada de mais um dia. No contexto da
Revolta da Vacina, apesar de suscitarem histórias como a de Lucy Smith, a bela
transformada em vitela, como campanha anti-obrigatoriedade da vacina, a
transformação horripilante não tem mais poder para provocar nada no público carioca,
que protesta não contra a vacina e sim por outros propósitos, como as formas de
governo autoritárias, de forma que o corriqueiro e o não corriqueiro têm a mesma
natural receptividade, não sendo suscitado, pela leitura da obra, nenhuma provocação
para o mistério ou o suspense. No Jardim Botânico, as enormes folhas de viria-régia,
em algum momento, levaram crianças loiras e lindas pela correnteza, porém para tal
233
mistério não se pede nenhuma explanação, o leitor é apenas convidado a embarcar
também na folha dessa magistral planta aquática e aceitar a realidade ontológica desse
incrível evento.
Por conseguinte, olhando a partir de uma ótica spindleriana para o romance
Sonhos tropicais, nota-se que nessa obra de Moacyr Scliar, embora o autor faça uso,
em sua composição, de forma particularizada, de elementos inexplicáveis e grotescos
como mitos e crenças coletivos, dando o mesmo grau de importância às culturas
modernas e tradicionais, latino-americanas e européias, e mostrando que o
conhecimento popular e não racional existe igualmente ao lado do científico e
positivista, ambos inerentes a uma versão antropológica de realismo mágico, as
peculiaridades da narrativa, como um todo, estão vinculadas ao realismo mágico
ontológico.
234
Conclusão
Uma vez que moderno implica em eterno presente, pós-moderno pode implicar
em um marcador de diferença temporal de importância circunstancial, embora com
notável desenvolvimento teórico (ANDERSON, 1999, p. 20).
Falido ou não, esgotado ou não, o projeto modernista está aí implementado e
carente de diferentes olhares e críticas, embora também se saiba da dificuldade de
percepção inerente ao posto do contemporâneo.
É desse posto da contemporaneidade que o pós-moderno tenta imprimir suas
marcas de reflexividade nas lacunas e nas interrogações deixadas pela modernidade,
mostrando-se atento à concomitância em que os discursos tanto do centro quanto da
periferia se motivam, e incrédulo à representação e ao império da linguagem cujo
referente é ela mesma e sua inocência é apenas convenção semiótica.
Sarlo (1997) diz que na atualidade o denominador comum é a miscelânea da
imagem, mas sustentada pela velocidade do zapping que passeia pelo projeto de
presente das culturas. O estilo padrão vigente é o show, no qual tudo se transformou.
“Apesar de tudo, as imagens significam cada vez menos e, paradoxalmente, são cada
vez mais importantes” (p. 68).
Daí que a brida literatura pós-moderna, sendo terreno fértil a discursos de outras
áreas e, inclusive, ao uso lingüístico que dela faz a cultura de massa, para ver
criticamente e com um pouco mais de nitidez seu derredor, atém-se às micro narrativas,
colocando juntas a grande arte e a arte das massas, a fim de melhor desconstruí-las,
criticando e problematizando seus processos ideológicos. Os conceitos de originalidade
e cópia, bem como a pureza do ser são todos implodidos dentro da exaustão
esquizofrênica da contemporaneidade em favor do pastiche de uma realidade
representada, mais real que a própria realidade, portanto, de uma hiperrealidade, na qual
o real atual é apenas o signo lingüístico de outrora.
A contaminação do dentro (centro) pelo fora (margem) e vice-versa remete, no
caso, não à idéia de subordinação ou de rejeição dos modelos europeus, e sim do
dependente convívio com eles, inerentemente, alterando, transgredindo e
suplementando-os.
235
Talvez seja por isso que Anderson (1999, p. 33) considera de antemão A condição
pós-moderna (1979), de Lyotard, a obra mais citada sobre o assunto, pois pela primeira
vez “no tulo e no tema, (...) foi o primeiro livro a tratar a pós-modernidade como uma
mudança geral na condição humana”, não meramente na estética ou na potica, mas na
política da cultura do dia-a-dia.
Essa mudança, conforme pondera Bauman (1998), gera na sociedade, ao invés de
mais liberdade, mais vontade dela, devido à consciência de que ganhar o valor da
liberdade é também perder outros valores.
A América Hispânica e toda a América Latina — além de que o escritor gaúcho,
Moacyr Scliar também se encontre na fronteira do Brasil com a hispanoamérica —, com
suas respectivas literaturas, são a heterogênea expressão de uma pós-modernidade
nativa
68
, prendida e desenvolvida no/do próprio processo de colonização eurocêntrico.
Sua identidade é por si atípica e multicultural.
68
Segundo Anderson (1999), ao contrário do que se imagina, o termo e a idéia de pós-modernismo
não surgem no centro, Europa e Estados Unidos, mas na periferia, América hispânica. Surge na
década de 1930, uma década antes de seu surgimento na Inglaterra e nos Estados Unidos, cunhado
por Federico de Onís. Ele o usa para “descrever um refluxo conservador dentro do próprio
modernismo: a busca de refúgio contra o seu formidável desafio lírico num perfeccionismo do
detalhe e do humor irônico, em surdina, cuja principal característica foi a nova expressão autêntica
que concedeu às mulheres” (p. 10), contrastando-o com a radicalidade ultramodernista em uma
poesia rigorosamente contemporânea de alcance universal. É claro que como categoria de época e
não estética só surge no mundo anglófono uns vinte anos mais tarde. No primeiro volume de Study
of history (1934), Arnold Toynbee já argumenta que duas forças poderosas concorrem para moldar
a recente história ocidental: o industrialismo e o nacionalismo. Embora após A Segunda Guerra
Mundial, como historiador, Toynbee tenha que encontrar novos horizontes para a época, quinze
anos depois, na publicação do oitavo volume, em 1954, sua definição em relação à idade pós-
moderna continua negativa sobre suas duas evoluções: a ascensão de uma classe operária industrial
no Ocidente e o convite de sucessivas intelligentsias fora do Ocidente a dominar os segredos da
modernidade e voltá-los contra o mundo ocidental. Quatro décadas depois, com a perspectiva de
uma terceira guerra, nuclear, Toynbee decide que a categoria de civilização ocidental, a tecnologia
desenfreada, torna-se universal, mas com promessa de ruína sobre todos. Em 1959, apropriam-se do
termo C. Wright Mills e Irving Howe; em 1960, Harry Levin; e, assim, sucessivamente.
236
Aliás, Guelfi (1994, p. 295) coloca que uma forma pós-moderna de problematizar
a racionalidade dos sistemas de pensamento impostos nas relações entre o centro e o
Terceiro Mundo, considerado o outro colonizado, é questionar e desconstruir os
estereótipos etnocêntricos embutidos nos povos colonizados. Nos países latino-
americanos, algumas tendências literárias pós-modernas de escrita contra o
imperialismo eurocêntrico é o realismo mágico, na linha de Gabriel García Márquez.
Essa escrita, por sua hiper-racionalidade, desconstrói a racionalidade central e
homogeneizadora que sempre sufocou as manifestações culturais.
Em Scliar, tal forma de reflexividade não se faz por vezes sem uma pitada de
humor — humor não apenas típico dos judeus, mas do cidadão pós-moderno —, única
ferramenta válida no convívio com o nonsense existencial, porquanto, segundo Minois
(2003, p. 572), o humor é o único remédio capaz de distender os nervos do mundo sem
adormecê-lo, dando-lhe liberdade de espírito sem torná-lo louco, e desse modo colocar
o peso de seu próprio destino nas mãos dos homens sem quebrá-las.
Moacyr Scliar, como escritor pós-modernamente reflexivo, aborda a expressão da
minoria étnica judaica, bem como sua ideologia discursiva e sua cultura impregnada de
poder não factual e transparente, mas representado e comunicativo. A dramaticidade da
realidade textual é flagrante na obra scliariana, além de estar a serviço da resisncia ao
poder do capitalismo avançado e de suas práticas totalizadoras de achatamento.
No primeiro capítulo do trabalho, Moacyr Scliar”, o autor é apresentado em sua
genealogia e em sua bibliografia. Descendente de judeus russos, vive no gueto judeu do
Bom Fim, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em meio à pobreza, à prática e aos
conflitos com a cultura e a religião judaico-brasileira, incluindo o ouvir histórias com a
graça e o humor peculiares aos judeus.
O importante a ressaltar é que, de seus primórdios hispanoamericanos, o pós-modernismo atual
parece conservar algo da idéia de pós-modernismo de Onís, tanto no que diz respeito ao
conservadorismo típico do capitalismo avançado quanto à reação radical e reflexiva a ele, em
âmbito universal.
237
Apesar da vida difícil, o que não lhe faltam são os livros. Assim, do ouvir e do ler
histórias, nasce o tenro escritor Moacyr Jaime Scliar (1937), hoje ocupante da cadeira
31, da Academia Brasileira de Letras.
No exercício de duas profissões, o da literatura e o da medicina, uma ocupação
doando subsídio à outra, Scliar vive a prática e a reflexão do humano, sobretudo em
seus momentos de crise. Contudo, apesar de sua atuação dual, é consciente de que tanto
uma quanto outra resulta muitas vezes apenas em utopismo, isso porque, na condição de
estrangeiro e contemporâneo, vê a realidade com as lentes do estranho e do exterior.
Como artífice da palavra e tecelão de textos, sente-se orgulhoso de sua
repercussão internacional, mas se considera um escritor ligado ao Brasil, embora não
tenha carteira de trabalho assinada”. Ficcionalmente Scliar é representado por meio de
uma profusão temática e multiforme, além de plural.
Em meio a tantos temas scliarianos, a pilastra geradora e sustentadora é sem
dúvida sua herança judaica. É no momento o único escritor brasileiro a dar voz e vez, de
forma expressiva, a essa minoria étnica brasileira, à medida que desvenda seu processo
de culturação e aculturação. Pois outros escritores representantes do judaísmo na
literatura brasileira, como Samuel Rawet e Clarice Lispector, nem sempre se
posicionaram politicamente em relação a essa causa.
A ficção e a história são pontuadas pela linguagem, já interpretada e comum a
ambas. Por isso se faz necessário ter em vista o ponto a partir do qual são narradas,
principalmente, em se tratando de contextos ditatoriais ou revolucionários, como é o
caso de algumas obras scliarianas, como A estranha nação de Rafael Mendes, Sonhos
tropicais e A majestade do Xingu. Embora Scliar acredite no ensaio como porta de
entrada para os grandes textos reveladores das raízes da brasilidade, o fator
epistemológico fatalmente subjaz esse tipo de texto, como os demais.
A política é abordada de forma que a ficção enriquece o simples relato, nem por
isso mais neutro, mas por isso mesmo analisado mais criticamente pelo crivo literário,
como na obra Mês de cães danados. As manobras políticas são evidenciadas também
em A estranha nação de Rafael Mendes, mostrando suas deficiências desde âmbitos
locais até internacionais.
238
A revalorização da cultura, em particular a semita, tem implicações no desfiar da
temática judaica. O artista gaúcho atualiza e democratiza em sua arte ficcional essa
cultura que é muito anterior à brasileira, e com certeza é sua principal fonte, ao lado da
indígena e da africana, já que é a trazida pelo branco, o colonizador-mor do Brasil. A
busca da cultura, visível em O centauro no jardim e A estranha nação de Rafael
Mendes, tem a ver com a busca scliariana da(s) verdade(s) sobre si mesmo, além de
procurar afundar as estacas e imprimir as marcas das minorias étnicas judaico-gaúcha,
residente no extremo-sul do Brasil.
O cotidiano com sua efemeridade é metaforizado, inclusive pela narração do conto
ligeiro, e transmite a espontaneidade do dia-a-dia, permeado de resignação,
mediocridade e violência no que diz respeito às relações sociais. Banalidades e
surpresas do cotidiano são arroladas nas crônicas de Minha mãe não dorme enquanto
eu não chegar e O imaginário cotidiano, bem como nos contos de O carnaval dos
animais, e no romance A colina dos suspiros. O fantástico e a ironia erigidos do
corriqueiro são formas críticas de se ver a hiperrealidade, codificada por natureza, e de
problematizá-la.
Os cristãos-novos, sob um verdadeiro rótulo da Inquisição estimulador do disfarce
e da máscara para uma identidade falsa, fazem parte da etnia da brasilidade. Se os
colonizadores, os índios e os negros, em muitos de seus ramos genealógicos, pertencem
aos judeus, ou dissimuladamente aos cristão-novos, em A estranha nação de Rafael
Mendes, segundo o crítico português Margarido (1985), a proposta scliariana é que a
etnia brasileira seja concebida a partir de um único tronco genealógico, o do cristão-
novo e judeu.
A busca da identidade em Scliar parece relatar o óbvio, pois todo artista como ser
humano busca seu auto-encontro por meio de seus atos. No entanto, Scliar busca tal
encontro indo direto a ele, sem dar muitas voltas. Em suas personagens muitas vezes ele
mostra essa procura na cultura transmitida pelos livros, como em Memórias de um
aprendiz de escritor, O centauro no jardim, Max e os felinos, A estranha nação de
Rafael Mendes, A majestade do Xingu, Éden-Brasil, (O ciclo das águas) e Um
sonho no caroço do abacate. E essa busca leitora para a identidade é uma ferramenta
que, com saciedade ou avidez, viabiliza a intervenção no indivíduo e na sociedade.
239
A Porto Alegre deixa de ser apenas a capital gaúcha para se transformar em palco
do imigrante judeu confinado no Bom Fim com seus hábitos e tradições, na tríade
scliariana A guerra no Bom Fim, O exército de um homem só e Os deuses de
Raquel. Como se vê, além de se exibir a geografia porto-alegrense também se exibe,
em seu mapa, o massificado imigrante judeu, revelando peculiaridades maléficas do ser
humano no que diz respeito ao local e ao universal, na trilogia vista, em (O ciclo das
águas), Os voluntários, A estranha nação de Rafael Mendes, O centauro no jardim,
Os mistérios de Porto Alegre, No caminho dos sonhos, e em vários contos, como “Os
direitos de Maria”, O amante da Madona”, “Laços de família”, O regimento interno
da família”, “Notas ao pé da página”, “Pequena história de um cadáver”, e Hisria
porto-alegrense”.
O bíblico aparece na obra scliariana, de forma mais explícita ou menos explícita,
em nomes próprios, passagens e referências à Bíblia literais ou alteradas, em Os deuses
de Raquel, Cego e amigo Gideão à beira da estrada”, A balada do falso Messias, “As
pragas”, “Diário de um comedor de lentilhas”, “As ursas”, A mulher que escreveu a
Bíblia, “Um emprego para o anjo da morte”, “As ursas”, “Nós, o pistoleiro, não
devemos ter piedade”, Queimando anjos”, “Amai Henrique sobre todas as coisas” e
Os profetas de Benjamin Bok”. Preceitos bíblicos também são evidenciados, em “Não
mentirás”, Não nos deixeis cair em tentação”, “Toda nudez será castigada”; além de
tradições, em A estranha nação de Rafael Mendes, “Os pés do patrãozinho”, O
centauro no jardim, (O ciclo das águas) e A guerra no Bom Fim.
A Bíblia que, de acordo com Harold Bloom, tem formado a consciência espiritual
de grande parte do mundo, permeia uma infinidade de páginas de romances e contos
scliarianos, com o Deus impiedoso e misterioso do Velho Testamento, de presença
indubivel; ou com seu quixotesco filho Jesus Cristo do Novo Testamento, de presença
duvidosa.
O mitológico em obras de Scliar aparece já “tecnificado”, contudo por isso mesmo
mostra que está atualizado, de uma forma ou de outra, por causa do poder que exerce
sobre os homens. É o caso, por exemplo, do centauro, em O centauro no jardim, e da
sereia, em (O ciclo das águas), mostrando a dualidade humana e a sobreposição não
definitiva de uma das partes sobre a outra. A atualização redimensionada e por vezes
240
distorcida do mito em momentos de crise de identidade, também se dá com mitos
blicos do Deus vingativo, em Um sonho no caroço do abacate, “As sete pragas”, A
majestade do Xingu, A mulher que escreveu a Bíblia, da profecia que não volta atrás,
em “As ursas”, e de Jesus Cristo, em A balada do falso Messias.
O lendário no escritor gaúcho é salientado por meio do elemento fundador do
estado do Rio Grande do Sul, o índio Sepé Tiaraju, e do mbolo gaúcho de machismo e
poder, o coronel Picucha. O primeiro atualiza o representante natural e valente que não
se curva nem à Guerra Jesuítica nem à morte, em A estranha nação de Rafael
Mendes. O segundo atualiza o protagonista da tradição da cultura e do poder,
endossado pela honra do gaúcho dos pampas com poncho, bombacha, churrasco e
chimarrão, em Cavalos e obeliscos. Esses elementos típicos podem passar na história,
mas permanecem na lenda, e a partir não só de pontos de vista privilegiados, mas de
outros pontos de vista, inclusive menos privilegiados, como, por exemplo, o do olhar de
um mendigo, em Mês de cães danados.
A infância se duplica, na ficção de Scliar, pois ele evoca a sua própria infância e a
infância de seu filho Beto. O escritor, falando de sua condição de menino e de pai,
entende que buscar matéria-prima para a ficção no passado tem a ver com o fato de todo
ficcionista ser primeiro mais autobiográfico, depois menos — claro que em um plano
menos conotativo. As personagens vindas de sua própria infância de incentivo à leitura
e à escrita, conseqüentemente, são leitoras e buscam saída para a mediocridade
cotidiana na leitura, como se pode ver em O exército de um homem só, Os
voluntários, O centauro no jardim, Max e os felinos, A festa no castelo e A guerra
no Bom Fim. As personagens vindas de sua paternidade, considerada por ele um
fenômeno de transferência e antropofagia, são arquetípicas e salvas da efemeridade
cronológica, ou seja, são realmente crônicas, nos contos de Um país chamado
infância, e nos romances A estranha nação de Rafael Mendes, A majestade do
Xingu, Um sonho no caroço do abacate e O carnaval dos animais.
Com fantasia/imaginação, à maneira e com a graça típica do mundo infantil, o
autor faz uma reflexão comparativa e alegórica sobre problemas individuais e coletivos
que cerceiam o mundo do adulto (guerra), em contraposição ao mundo da criança (paz).
241
O olho é o orientador e impulsionador das ações da mão, é visto como a divindade
poderosa que orienta ou como o impulso da mão infantil que instiga. Exemplifica-se
essa parte do corpo humano que pode até tomar dimensões fantasmagóricas, em Os
deuses de Raquel, O olho enigmático e Dicionário do viajante insólito.
Metonimicamente o olho pode representar o olhar guloso do turista, perscrutador do
imigrante/judeu, e interativo do escritor/leitor.
A medicina e a literatura para Scliar são combinações comuns, ainda que não
necessárias, embora em relação à morte a medicina aceita mais co-parceiros que a
literatura. Esta só aceita como co-parceira a ironia, mas como incentivo à vida — O
livro da medicina e A paixão transformada —, e de forma geral um culto à vida
coletivo e sanitário Oswaldo Cruz, Sonhos tropicais, A majestade do Xingu e O
centauro no jardim. É interessante que a doença ou aa morte podem ser convertidas
em vida pelo poder verbal ou impresso da palavra, do diálogo, da anamnese. Todo
paciente afinal de contas é um texto para o grande clínico William Osler. Daí a
necessidade de se retratar cada vez mais a aproximão entre medicina e literatura, pois
mesmo querendo usar uma linguagem simples e neutra, o médico/cientista está
inventando e se projetando lingüisticamente, logo não de forma neutra.
Vinculado a esse tema, também, está a criação artificial da vida, maximalista e
minimalista, em “Histórias da terra trêmula” e Cenas da vida minúscula,
respectivamente, já que todo médico e todo escritor, sobretudo de descendência judaica,
sentem-se um pouco deuses além de revelar a relação dialética e desafiadora dos judeus
com a divindade, de forma criativa e bem humorada.
A psicanálise e a ficção na obra do escritor-médico estão sempre se perpassando, a
fim de mostrar a imbricada e estreita relação entre o racional da ciência e o irracional da
magia, ocasionada pelo elo da linguagem, instrumento de terapia e de arte. Por essa
causa a psicanálise parece estar bem mais próxima à literatura, embora a utilização que
ambas fazem do lingüístico tem tanto pontos em comum como incomuns. O que elas
têm em comum é principalmente o que diz respeito ao uso da metáfora, bem como da
censura e do recalque, como em A estranha nação de Rafael Mendes. Já a divergência
entre elas é que a função do lingüístico é diferente, pois para a literatura a linguagem e
242
sua adequação são primordiais, enquanto para a psicanálise a linguagem e sua
inadequação são primordiais.
Sem dúvida, com referência às descrições patológicas e sexuais, há uma grande
influência freudiana em Scliar, apesar do escritor ressentir o desprezo do pai da
psicanálise pelos judeus, de quem Freud também descende.
A obra do imortal Scliar, sintonizada em sua realidade latinoamericana sem se
deixar prender a ela, sobressai-se nacional e internacionalmente com a participação do
autor em eventos e publicações no Brasil e no exterior. Sua obra bem diversificada
reúne, mais ou menos, setenta livros e muitos deles estão traduzidos para vários
idiomas. A prosa scliariana atinge um público bastante amplo, ao falar da condição
humana com a máscara que só a ficção admite proporcionar, e com o humor que torna
essa fala suportável.
O processo de criação do escritor e médico, subsidiado pela imaginação e pelas
experiências do dia-a-dia, busca a reflexão sobre o mundo. Suas personagens centrais,
narradoras ou não, em geral, fazem a performance do anti-herói, representando a fé
extrema ou a apatia patológica nos atos humanos. Não pretendem remir nada nem
ninguém, só automatizam o que lhes mandam com a atitude dos perplexos e fascinados
ante o poder da representação. Tais figuras quixotescas parecem carregar junto com o
autor o fardo judeu, e é por isso que Moacyr Scliar olha com carinho para essas
pessoas que não dão certo” na vida, como em Sonhos tropicais e A majestade do
Xingu.
Scliar revela grande habilidade no zigue-zag temporal e na alternância de turnos
entre os narradores. A narrativa dá grandes ou pequenos saltos para frente, para trás ou
para o momento da enunciação, em forma de prolepses ou analepses, para usar a
terminologia de Genette (19[...]). Esses saltos servem para que a própria trama narrativa
vá tecendo seu tecido narrativo, a fim de que tudo seja alinhavado pelo menos
provisoriamente no final, como se vê em Cenas da vida minúscula, Doutor Miragem
e A estranha nação de Rafael Mendes. Muitas vezes o tempo vem separado em
planos, capítulos e disposição gráfica diferentes, como em Os deuses de Raquel e A
mulher que escreveu a Bíblia. Se bem que o tempo, em todas essas obras, torna-se
atemporal, uma cronologia cósmica, quando o tempo do cotidiano, da fantasia e até o da
243
leitura se funde, pois o movimento disjuntivo inicial deixa-se absorver pela ideologia
dos outros tempos, de forma que o intertextual se torna intratextual, e o movimento
disjuntivo inicial se torna conjuntivo. E assim toda essa forma ficcional passa a fazer
parte da ideologia da composição textual.
O foco narrativo, passando da primeira para a terceira pessoa, mostra inclusive
uma con-fusão de turnos entre narradores oficiais e oficiosos, como em A estranha
nação de Rafael Mendes e (O ciclo das águas). Na verdade, tal mescla e impureza do
foco narrativo evidenciam a mudança de turno meramente representada, uma vez que
seu locus narrativo já está assegurado: a focalização da primeira pessoa, segundo
Genette (19[...]). Além disso evidencia o papel performativo, tanto do narrador quanto
do autor, pois assim como o narrador é personagem do autor, o autor é personagem do
contexto hiperreal que o circunda e o inunda. O sujeito da criação pode até existir, mas
débil e vulnerável a todos os rus que o constituem.
Scliar é dono de um ritmo textual ligeiro, sem rodeios e próximo muitas vezes da
fala coloquial, o que justifica o uso do fragmentário e da citação em sua obra,
estabelecendo com o leitor uma interação paradoxal. Pois enquanto há o fluir textual da
coloquialidade, exige-se dele um papel ativo para preencher as lacunas textuais com
significação e subsídio anteriores. Pode-se até metonimizar a forma enxuta de Scliar
pelo conto “Rápido, rápido” (SCLIAR, 2003b).
Ao falar sobre a vastidão do mundo com secura, cortando o acessório e só
deixando o essencial, o escritor demonstra a influência de Kafka em seu fazer literário.
Talvez seja por essa busca que privilegie, como lugar para pôr sua ficção, o conto,
sabendo que nele os acertos são poucos e os erros são sem remédio. Como excelência
da literatura, o conto expande a força verbal de forma completa, habilidosa e sintética,
junto ao miniconto, subgênero ao qual Scliar tem se dedicado a fim de continuar
chegando ainda mais ao essencial literário.
E embora no momento tenha trabalhado mais com a novela por ser mais
gratificante em termos de comunicabilidade com o público, o espaço tomado pelo conto
permite sua maior circulação. Nos dias atuais, pela carestia dos livros, a crônica
244
Quanto à técnica de composição, Scliar produz o conto de uma vez como se
fosse uma espécie de inspiração episódica. o romance e outros textos são produzidos
como uma espécie de “associação livre” das idéias e das notas tomadas. Assim a
somatória dessas intuições, achada uma coerência, é o que o ficcionista entende como
romance. E quando sua obra se propõe a converter a história à ficção, fica claro para o
leitor que seu livro não é sobre história, mas sobre ficção e apenas inspirada na história.
Na escrita de Scliar ficam claras uma vertente fantástica assim como uma humorística.
O fantástico, segundo a crítica, eleva Scliar à categoria de um dos principais
representantes brasileiros nesse gênero. A narrativa fantástica surge como um recurso
para se ver e refletir sobre o real através de suas arestas exacerbadas, como a loucura,
em O exército de um homem só, e principalmente a violência, em O tio que flutuava,
O carnaval dos animais, A balada do falso Messias, Histórias da terra trêmula e O
anão no televisor.
Embora tenha dito que o usou tal recurso mais na redação de Mês de cães
danados, quando o clima ditatorial requeria escritas mais metafóricas, Scliar segue
fazendo uso do realismo mágico. E segundo o ficcionista, essa sua forma diferente e
sobre um outro prisma de se ver a realidade convencional é atributo do efeito da fantasia
(imaginação), que veio em sua bagagem da infância e com a qual se sente melhor.
Esse prolongamento da literatura fantástica não se restringe apenas a uma
necessidade alegórica para se expressar na época da ditadura, mas permeia a narrativa
scliariana e acompanha a evolução do gênero fantástico para o realismo mágico,
apresentando tonalidades diferentes, ao longo das décadas. No icio dos anos 70, em O
centauro no jardim, por exemplo, o extraordinário parece ser o sintoma da busca de
identidade em meio ao choque cultural judaico-brasileiro, cuja economia discursiva
requer o fantástico, como estratégia substitutiva das técnicas do romance psicológico. A
partir de meados dessa década, em Mistérios de Porto Alegre e no conto “O cão”, por
exemplo, o fantástico sintomatiza na literatura a projão da violência desmedida do
homem contra o homem, mostrando seu barbarismo primitivo, hiperbolizado com as
modernas tecnologias. Após esse período, no entanto, o fantástico além de continuar
exibindo essa forma de violência moderna, em O imaginário cotidiano, por exemplo,
245
mostra-se também, fazendo conviver o explivel e o inexplicável da realidade, como se
entre eles não houvesse contradição, em Sonhos tropicais.
A mola estimuladora de Scliar, no que diz respeito ao absurdo em sua obra, foi
indubitavelmente a leitura dos textos kafkianos, assunto desenvolvido de forma mais
específica no capítulo O realismo mágico em Sonhos tropicais”.
A outra vertente do processo ficcional de Scliar é o humor.
O humor scliariano se compromete com a árdua condição humana, no entanto
apenas como mais um eco de suas muitas vozes; não pretende falar por nenhuma delas
ou tomar o lugar de nenhuma delas como se fosse seu porta-voz. E sempre almejando
ser uma voz suplementária dela, e quiçá uma forma de homenageá-la, continua a cauda
tensa da reflexão sobre o humano com a estratégia — só suportável por causa — do
humor.
Justamente por saber que a literatura não é redenção do sofrimento humano, Scliar
faz uso de sua jocosidade para a reflexão. Não faz uso de seu tom humorístico para a
fuga, nem perde a seriedade sobre a questão, antes faz do humor que é uma percepção
somente de natureza humana uma forma de se chegar ainda mais perto da problemática
do ser humano, e com interatividade. Essa interação tem a ver com o humor criativo e
reacionário dos judeus, de quem particularmente descende, ao longo da história, e com a
mestiça e explorada realidade latinoamericana, onde convive.
No que se refere ao humor judaico, o cômico scliariano com via de mão única por
questões sexológicas tem seu destino nas questões religiosas que tanto incomodam e
sensibilizam os judeus. Assim a comicidade também funciona como máscara para se
inverter e se suportar os próprios conflitos que críticos, como Jozef, atribuem ao
irreversível definhamento da cultura semita no Brasil. Aliás a ironia peculiar a Scliar
mostra uma atitude clássica e digna de se enfrentar os impasses impostos para se ser
gente, resultando na solidariedade para com o humano e com o judeu.
Um relaxamento momentâneo para as tensões predominantes no dia-a-dia que
chega às gargalhadas e às lágrimas acontece, por exemplo, em A estranha nação de
Rafael Mendes, com o perplexo médico Maimônides e sua majestade, Saladino, na
iminência da morte deste, e com o financista Rafael Mendes e seu chefe, Boris
Goldbaum, na iminência da condenação desses. Ou seja, o riso molhado ocorre em
246
momentos-limite, quando há uma desestruturação iminente da ordem vigente e se busca
corretivamente novas lógicas e novas realidades para essa ordem. Porém essa saída
corretora não se dá apenas pelo riso, mas por outras formas igualmente inicas e
distensas, vistas nas obras A festa no castelo, Os deuses de Raquel, O exército de um
homem , Doutor Miragem, O centauro no jardim, (O ciclo das águas) e Cenas da
vida minúscula.
Sobre o humor scliariano, exigente por solicitar a interação com/do leitor, a crítica
o coloca em uma freqüência que vai do escondido/cético ao vibrante, da fantasia
imaginativa infantil à fantasia absurda do adulto, derivando-se em uma ironia oscilante
entre o ridículo e o sublime. Além disso ela considera que o autor para falar da condição
humana, reincidente, clica e atemporal, melhor tensionando-a, usa os recursos
inerentes ao contexto contemporâneo de sua fião, a hiper-realidade, uma vez que o
humor melancólico de Scliar tem a ver com ferocidade e desconformidade, e a única
coerência cósmica possível é a estética e intelectiva, fornecida pela linguagem textual.
Pensando na questão do humor scliariano vinculado ao hiper-real da “civilização
da linguagem” ou da “civilização da imagem” — conforme denomina Aumont e já
denominava Enrico Fulchignoni, em 1969, respectivamente (AUMONT, 1993, p. 313-
314) —, talvez seja por isso que, apesar de acusado por críticos como Arrigutti Jr.,
Lafee Vogt de rebaixar o mito, em O centauro no jardim, ou de tudo explicar, como
se pode ver em O fantasma da Casa Verde, o ficcionista admita que estiliza sua forma
literária não na sutileza simbólica de um Kafka, mas na avacalhação, uma das vertentes
pessoais de sua tão característica ironia. Moniz (1982) explica esse procedimento de
Scliar como um esforço para se recuperar a coesão entre o signo e a significação da
transcendente alegoria, à medida que combina a ela a auto-centrada e não transcendente
ironia.
Contudo seria mais conveniente e pós-moderno não tentar engajar o escritor em
nenhuma recuperação alegórica, mas ver em seu rebaixamento do mito, cheio de
explicações e avacalhações, a desconfortante coerência com a anti-alegoria do contexto
contemporâneo. Uma vez que no sentido fryeano tal alegoria é vazia e sem significado
por refletir a angústia e o medo do homem cotidiano pelo nada, então não se deve
pressupor transferência, mesmo porque não há, mas continuar vendo na obra scliariana
247
o auto-centramento intransferível de uma ironia puramente reduzida ao signo da
sociedade da linguagem, portanto mais utilitária que alegre, assim como o riso atual.
Pela ótica dada a esse trabalho, vê-se que Scliar trabalha com o humor e com o
realismo mágico no que diz respeito a seu estilo de sintaxe textual. É interessante
porque, mesmo achando que está correndo o risco” de cair do lado do anedótico ou do
realismo mágico, ele continua lançando mão dessas estratégias sintático-literárias. Pois
segundo ponderações do escritor, para ser incisivo, quando se refere à condição
humana, seriedade literária não tem nada a ver com mau humor, mas a dimensão
legítima da literatura é recorrer à fantasia, no sentido das zonas intuitivas e subjetivas da
imaginação.
A forma scliariana de se olhar o real e o efeito apreendido por esse olhar resulta
em um humor tico. Tal humor é uma imediata reação de sobrevivência para superar a
condição de exploração da qual a América Latina como outros países tidos como
periféricos são timas, assim como longinquamente dos judeus ao longo da história.
Logo, em Scliar, o fantástico contemporâneo, o realismo mágico, apesar de mostrar a
convivência entre o lógico e o ilógico como se a contradição entre eles não se
manifestasse, carrega certa angústia meio que anônima, mas que ressente pela falta de
ordem originada do absurdo, e a única maneira de suportá-lo é pelo paliativo do humor.
Se a realidade fosse concretizada em uma moeda na ficção scliariana, de um lado se
teria o real/racional e do outro o mágico/irracional, sendo que em suas duas faces se
imprimiria o humor.
A crítica considera que a produção literária de Scliar, desde os anos 60 faz parte
da somatória de muitas vozes pós-período de repressão, embora segundo o escritor,
muitas delas, ainda não se manifestaram suficientemente e mesmo as que se manifestam
não adquiriram ainda uma consistência necessária.
Atualmente, Scliar é considerado o escritor mais politizado, quanto a sua literatura
de imigração judaica. Ele consegue imprimir em sua produção a problemática humano-
judaica, de forma que uma marca individual torna-se universal e vice-versa. Aliás
críticos americanos consideram que o criativo de sua ficção reside na junção de sua
herança judaica com o realismo mágico, pico da literatura latinoamericana.
248
No segundo capítulo, “A condição pós-moderna em A estranha nação de Rafael
Mendes”, tem-se um hibridismo de ingredientes típicos também do pós-moderno,
convivendo lado-a-lado, justapostos e sobrepostos, sem necessariamente serem comuns,
ou seja, tem-se uma heterotopia entrópica de fragmentos, trazendo consigo a
problemática da comunicação e o fascínio da informação.
O ser, de natureza motivada estatal, econômica e culturalmente, tem suas
produções textuais reduzidas a interesses e convenções ideológicos.
A metaficção, para Scholes (1970), além de refletir o esboço do artefato,
problematiza a subjetividade existente fora da ficção, pois o observador/ficcionista só é
capaz de representar o discurso do mundo. Em um momento de crise de valores como o
pós-moderno, a tipologia textual preferida é a metaficção, já que nesse ambiente
semiótico e mutável digladiam o significado e o significante de um mesmo signo: o
texto.
Em A estranha nação de Rafael Mendes, o autor favorece a participação do
leitor na obra, optando por dialogar com ele sobre a produção textual, enquanto permite
ativar a interatividade de quem lê — poluída cognitivamente —, com o universo de
quem escreve — feito de mosaicos lingüisticamente incongruentes. E, assim, pode-se
dizer que a metaficção de Scliar está pós-modernamente em um estágio maior e de auto-
reflexividade.
Um dos objetivos da metaficcionalidade na obra é o questionamento da
personagem, o médico Rafael Mendes, sobre sua genealogia e a busca de si na história.
Contudo uma tentativa impossível, dada a intransponibilidade discursiva, carente de
referente e de originalidade no plano narrativo, e o vazio da rotina doméstica, carente de
sentido no plano ficcional.
Por mais que história e arte tenham objetivos diferentes, nota-se, no espaço
textual, o encontro nem tanto objetivo e de verdade única da história em relação à arte
ou subjetivo e verossimilhante da arte em relação à história. O leitor, por sua vez, tem
uma liberdade condicional, pois não é mais visto como leitor passivo
extraficcionalmente, porém é um leitor passivo das amarras e lentes comunicativas
intraficcionalmente.
249
A metaficção historiográfica, a partir de uma perspectiva hutcheoniana, aborda
sobretudo os pontos em comum entre literatura e história, e o que concorre para isso é
seu nculo lingüístico. Os conceitos de verdade, autenticidade, referencialidade e
transparência históricos são borrados em prol da representatividade reflexivo-ficcional
que perfaz os metarrelatos.
Embora o romance scliariano porte uma seleção semiológica feita pelo autor, a
história com sua verificação e a ficção com sua veracidade se encontram no texto, onde
o papel da metaficção historiográfica é o de fazer a diferença entre essas duas áreas do
conhecimento para, depois, traçar a imprecisão entre elas, deixando de reconhecer os
fragmentos historiográficos dos quais partiu, à medida que fala sobre o passado em
outras versões, bem como de maneira tensa e problemática. A personagem Rafael
Mendes, por exemplo, é figura atípica no sentido de querer renegar sua função
mantenedora da ordem presidencial de Getúlio Vargas, isso tudo de forma muito
paródica e provisória, em sua performance de autômato da oficialidade e de anonimato,
a começar pela repetição de seu nome em quase toda sua genealogia.
Integrando a pluralidade suplementar dos desvãos cacófonos do passado, A
estranha nação de Rafael Mendes presta uma homenagem a ele, falando, em outras
palavras e vozes, de parte (1929-1938) da Era Vargas, antecedente ao Golpe do Estado
Novo; da lenda de Sepé Tiaraju, nascida no contexto da Guerra Guaranística; de um
caso médico-político de Ruivo, agitador e porta-voz de conspirações indígenas,
pseudodenominado B. Traven; e de fragmentos de artigos de revistas médicas sobre
doenças epidérmicas raras. Assim esse alguém, Scliar, produz seu jogo textual, a partir
do lugar de sua experiência de mundo discursiva, com uma bricolagem de fragmentos,
cuja resultante é a intertextualidade, o canibalismo e o metatexto, e é justamente nessa
forma de restauração que reside a originalidade do texto scliariano. Na concepção de
muitos críticos, o original torna-se negativamente exaustivo pela cópia, ou
positivamente consciente de vontade produtiva.
Contrariamente aos parâmetros da história, a mudança de foco narrativo para a
primeira pessoa só serve para desestabilizar a objetividade histórica e declarar sua não
pretensão de chegar a nenhuma verdade comprovada e infinita, mas à verdade
individual e finita da lingüística da ficção.
250
A morte/fim do sujeito foucaultiana já não aponta mais para a existência do sujeito
individual no capitalismo tardio, como também aponta para sua inexistência. O sujeito
autônomo, fruto filosófico-cultural modernista, nunca existiu. Chega-se à consciência
do descentramento do sujeito, de acordo com Jameson (1997), uma vez que ele sempre
foi apenas miragem ideológica e lingüística, segundo Vattimo 2001). Em conseqüência,
tanto ele quanto suas produções continuam mais fendidos e motivados do que nunca.
Rafael Mendes exemplifica essa cisão em sua condição de produto ficcional da
passageira idéia de autoria scliariana e de personagem ontologicamente esfacelada. Na
narrativa, o que contribui para tal consciência é a crise circunstancial gerada pela
Guerra Civil Espanhola. Esta gera uma crise existencial na essência do ser, a ponto de o
fazer perder de vista suas origens, tendo sua subjetividade constantemente refeita. A
personagem, fraca ontologicamente, reinventa-se e se perde sempre em meio à
hermenêutica dinâmico-conflitante de sua constituição.
A performance/representação da realidade exibe-se em forma de espetáculo,
simulacro e pastiche, resultando na hiperrealidade do real.
O espetáculo é muito familiar na sociedade atual, para Debord (1997), pois nela o
que se tem acesso é a imagem, a cópia, a aparência e a representão do ser e da
realidade. O espetáculo, em toda parte a iludir o espectador para consumir, justapõe
multidões solitárias pelos ideológicos meios de comunicação de massa. O mundo, o
tempo, a própria vida são representações espetaculares embaladas no furta-cor do
espetáculo imagético.
No romance A estranha nação de Rafael Mendes, o caso médico-político de
Ruivo é um exemplo dessa reificação humana na arena espetacular dos mais variados
interesses que subsidiam as relações sociais. A personagem, nessa vitrine de interesses
relativos e provisórios, tem sua imagem refletida em vários ângulos do espelho de
forma que se cria um labirinto imagético, no qual as imagens falam das imagens, o mais
completo espetáculo. Porém personagens e espectadores transformam-se em eus-
objetos, manufaturados para os olhos e por um tempo já programado. Todos fragmentos
esquizofrênicos e mercadorias apaixonadas de suas próprias imagens.
O simulacro, à maneira baudrillardiana, toma o lugar o real, já que o referente não
existe mais. Tem-se novas realidades, ou seja, hiper-realidades, mais brilhantes que a
251
realidade, por causa do poder macroscópico da anatomia de partes do real. A imagem
projetada pelo espetáculo transmite um auto-relevo do real inexistente, uma vez que se
trata de representação.
Rafael Mendes, apesar de ser médico traumatologista e não patologista ou
sanitarista, sem saber e sem querer é nomeado Chefe da Seção de Doenças Infecto-
Contagiosas do Estado do Rio Grande do Sul, tornando-se mais verdadeiro que o Dr.
Artêmio, sanitarista. Tudo isso por causa do poder da representatividade, gerada pela
amizade de seu sogro com o Presidente e legitimada pela mídia, o Diário Oficial. Tal
simulacro, criado e oficializado pelo espetáculo dos meios de comunicação de massa,
mostra que o signo é um simulacro puro e sem real, porque qualquer pretensão de
realidade é mediada pela linguagem. Proporcionalmente o simulacro não está para a
realidade, mas é a representação compensatória que está para a hiper-realidade.
Hutcheon (1985) considera que uma nova forma de sentido e de ilusão dado à arte
é a paródia e a ironia. A ironia permite interpretar e avaliar, mas o pastiche — tipo de
paródia predileto do pós-moderno substitui a tradicional zombaria pelo imitativo e
pelo superficial, primando pela semelhança e pela correspondência. Jameson (1997) vê
essa prática como imitativa, não neutra, reverente, não debochada, mas com certo
humor e paixão, com um gosto pela dependência e pelo vício, que é típico do
leitor/consumidor da sociedade do espetáculo. Ele a considera, portanto, uma
terminologia bem aceita na pós-modernidade não só para se livrar de estigmas, mas por
causa da realidade exacerbada que se tem.
O pastiche se sobressai no contexto pós-moderno pela inviabilidade de se separar
a cópia do original na hiper-realidade espetacular.
Tomando-se a concepção jamesoniana, na qual original e cópia não são mais
discerníveis, e reverenciar ou debochar de um é fazer o mesmo do outro, nota-se na obra
de Scliar o delinear do pastiche, cujos intentos não são prepotentes, mas suplementares.
Não se prioriza apenas o grande texto literário, mas se trabalha com diferentes tipos de
texto como a história da Igreja de São Tolentino, a memória da Igreja reescrita pelo
Padre João de Buarque e a lenda do índio Sepé Tiaraju. Neles se deixa entrever
claramente a intervenção do narrador, em uma tensão dialógica, na qual as marcas
252
impressas já não são mais dissociadas, porque a arte contemporânea é a própria arte
vista de uma maneira diferente.
O kitsch, com o significado de esboço” (ECO, 1970), de “vender barato”
(MOLES, 1975), é considerado por Jauss (1996) como a sempre reincidência do velho
no novo. Resultado do subjugar da função estética aos interesses comerciais, segundo
Franco Junior (1999), kitsch é uma imitação tensa da arte, e sua convenção de mau
gosto é uma questão de ponto de vista ideológico.
A partir de uma ideologia em que tudo é kitsch, em A estranha nação de Rafael
Mendes, pode-se enxergar exemplos dessa carente estrutura do mau gosto em objetos,
como o quadro do quarto-prisão de Boris Goldbaum e Rafael Mendes; em idéias
coercivas, como as do sogro de Rafael Mendes a respeito da Intentona Comunista; e em
comportamentos, como o do mulato agente do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), porque o texto artístico pauta sua hibridez contemporânea na diferença cínica, no
não rigor e na colagem postiça.
A exaustão é evidente na produção literária da pós-modernidade, segundo Barth
(1967), a ponto de culminar em um esgotamento, sobretudo pelo seu caráter de arte
barroca apontado por Borges. Além disso há nela uma contradição inexpressa, devido
ao final da lógica da reificação e do colapso da diferenciação, no capitalismo de
consumo pós-moderno (CONNOR, 1993).
Scliar monta, com o rearranjo das mesmas coisas e de um novo modo, um
exaustivo painel lingüístico-informativo sobre o caso médico-potico de Ruivo. Essas
informações, ambientadas na Era Vargas anterior ao Estado Novo (1929-1938), são
provenientes dos mais variados sistemas lingüísticos e áreas da informação, a fim de
representarem e porem em xeque mais uma versão textual da administração de Getúlio
Vargas, em seu cotidiano. Daí o campo de tensão entre conservação e renovação,
apontado por Huyssen (1991), visto que o pós-modernismo trabalha também com o
moderno em novas estratégias e constelações.
A exaustão tem que implicar, não um niilismo e um esgotamento, como mal se
interpretou Barth (1967), mas um abastecimento (BARTH, 1981), é claro, a partir da
convalescença de uma ontologia fraca (VATTIMO, 1987). Portanto esse clima
entrópico exemplificado em A estranha nação de Rafael Mendes revela uma forma
253
coerente de se reescrever, terapeuticamente, e de se “criar” uma obra com
peculiaridades pós-modernas.
A esquizofrenia, com seu legado dissociativo e entrópico, permeia o tempo
contemporâneo. Para Huyssen (1991), resulta da tensão criativa de estilos incoerentes
que povoam o pós-moderno. As cadeias da significação são rompidas, segundo Jameson
(1997), gerando significantes materiais e desconexos, de modo atemporal e
historicista em que presente, passado e futuro reduzem-se apenas a um presente
neobarroco.
No romance scliariano, nota-se tal presente esquizofrênico, quando a personagem
Rafael Mendes perde o sentido histórico da passagem do tempo. No momento de
transição entre o sono e a vigília, com as batidas de sua mulher à porta, Rafael
experimenta um historicismo esquizofrênico, uma vez que tudo se mistura e se
desconecta: o passado de sua genealogia lido nos cadernos, seu presente convulsivo e
congestionado de informações e o futuro iminente seu e de sua família.
As implicações do tempo da ficção no tempo da história em A estranha nação de
Rafael Mendes, vistas sob o prisma da Nova História e da metaficção historiográfica,
servem para que a releitura da história pela ficção, além de oferecer mais um de seus
desdobramentos, problematiza-a por meio de um veículo comum a ambas: a linguagem.
Porém esse veículo parte, perambula e chega ao destino de si mesmo. Assim as
considerações pós-modernas do poder ideológico dos sistemas de comunicação se
mantêm.
Nesse romance, a ficção da história, pautada na longa genealogia dos Mendes
judeus é narrada levando-se em conta acontecimentos individuais, marginais,
cotidianos, conjunturais e inconscientes, ao lado de acontecimentos coletivos, gerais,
remotos, estruturais e racionais. Aqueles não aparecem nas páginas da História
Tradicional e Oficial, mas aparecendo na obra literária, suscita a reflexão sobre outras
formas de verdade também possíveis sobre eles, já que nada impede de terem ocorrido
nos bastidores dessa história, de forma concreta ainda que por via particular e abstrata,
configurando, portanto, mais uma das versões da história ficcionalizada, sempre carente
de eventos que revelem e contradigam sua unilateralidade, a fim de melhor ir
254
iluminando e contextualizando os acontecimentos históricos, significativamente,
embora a conta-gotas.
O resgate histórico da narrativa, por via ficcional e histórica é feito por meio da
narração das personagens Rafael Mendes, médico, e Prof. Samar-Kand, genealogista.
Tal apanhado histórico-ficcional se faz pelo registro ou não em cadernos, mas têm
muito de documentário, assim como de impressões sensoriais e inconscientes (cantiga
de ninar). Ou seja, fendas microscópicas pelo viés literário se abrem na realidade
historiográfica a fim de iluminar senão o todo da História, pelo menos o todo
genealógico dos Mendes.
A obra, delineada pelo inico e pela paródia, usa dessas estratégias para sua
reflexividade problemática, colocando em xeque forma de composição narrativa, em
relação a questões narratológicas, mnemônicas e cronológicas.
A estranha nação de Rafael Mendes, de modo irônico, faz uma reflexão crítica
sobre seu feitio narratológico. Seus dois narradores, passeando entre papéis
autodiegéticos/heterodiegéticos e níveis intradiegéticos/extradiegéticos, fazem
enfatizar as conveniências discursivas para se dar status de ficção (verossimilhança e
subjetividade) ou de história (“verdade” e objetividade) a determinado acontecimento.
Os processos mnemônicos, tanto da memória coletiva mais relacionada à história
quanto da memória individual mais relacionada à reminiscência, mostram-se
implicados, pois a cantiga de ninar, típica das várias gerações dos Mendes, cronometra
o tempo da ficção, mas também o tempo da história, abordada na obra, assegurando a
continuidade temporal da narrativa e dessa família judia. E, no final, a cronologia da
ficção, marcada pelo coma do Ditador Franco, realmente, coincide de modo
esquizofrênico com o tempo da história, deixando-se entrever a ruptura com proposta de
reinício do ciclo-Mendes.
A ficção vai de encontro a características da metaficção historiográfica, pois lança
mão, sim, da história, porém autoreflexivamente e a partir de perspectivas individuais e
sinestésicas. Além disso no interior da narrativa essa estratégia serve como forma de
análise terapêutica e reelaboração genealógica para o Rafael Mendes, financista e filho
do médico Rafael Mendes, como para seus futuros ascendentes, em relação à História, a
sua própria história e a sua perplexidade genealógica. E esses pequenos pontos
255
iluminados de forma muito particular contribuem para, quem sabe, a compreensão e
recondução de outros pontos e de outras mentalidades. E assim o discurso ficcional não
deixa nada a desejar para o histórico, uma vez que quem gera ambos é a arbitrariedade
lingüística.
E, para essa vivência entre literatura e história na estrutura da obra A estranha
nação de Rafael Mendes, já se pode notar a narrativa subordinando sua cronologia ao
tempo histórico. Este se atualiza na cantiga de ninar, que mantém o seguimento
genealógico dos Mendes; no coma e na morte de Franco, que metaforiza a resistência a
cindir do ciclo-Mendes, além de uma proposta de reinício; e na pergunta radiofônica,
que prepara a personagem e o leitor para a aventura ficcional e dialógico-reflexiva
usada pelo signo para falar sobre seu próprio mundo.
Os ideais/sonhos sonhosideais dos Mendes em A estranha nação de Rafael
Mendes tratam dos sonhos acordados” (ideais) e dos “sonhos dormindo” (pesadelos e
pensamentos oníricos) de toda a genealogia dos Mendes, enigmática e perplexa na
ignorância de si mesma, ademais de portar o vírus da busca do paraíso perdido em sua
herança genética.
Visões, pensamentos e aspirações populam os ideais dos Mendes, passando a
fantasmagorizar, por meio de pesadelos também seus sonhos. Dessa forma os ideais são
a causa do efeito orico, os pesadelos, que por sua vez são a causa da realização do
desejo, segundo considerações freudianas. Contudo o enredo não se limita apenas às
ponderações Freud (1987), pois depois de ter conhecimento pleno de sua descendência
pela leitura de cadernos, Rafael Mendes financista não espera mais por sonhos ou
pesadelos — seu desejo já se realizou —, mas cria em estado de vigília o que serão e o
que quer para seus sonhos doravante, com pensamentos oníricos.
Assim pode-se dizer que, na obra de Scliar, a perspectiva freudiana é modificada
— os fantasmas e guerreiros já não aparecem —, rastreada — o garotinho marinheiro
que reabre o ciclo-Mendes do eterno retorno continua um judeu errante —, e
redimensionada — os próximos Mendes correrão atrás da Árvore da Vida, ao invés da
Árvore do Ouro.
Nota-se a hibridização e o descentramento, elementos típicos de uma perspectiva
s-moderna, percorrendo as páginas scliarianas.
256
No terceiro capítulo, “O realismo mágico em Sonhos tropicais”, arrola-se uma
questão demandada pela crítica, a respeito do “grão fantasioso” na obra de Moacyr
Scliar. Para nomear essa tendência da contemporânea ficção scliariana, os críticos usam
diversas terminologias: realista, fantástica, realista fantástica, real(ista) maravilhosa, ou
realista mágica.
A literatura realista aborda os aspectos explicáveis da realidade; a fantástica
aborda os aspectos do mundo natural e sobrenatural em sua coerência própria, mas
contraditória ao exame intelectual; a realista fantástica não existe em termos de
classificação literária, é apenas um termo cunhado por Borges em sua obra, em
particular; a realista maravilhosa aborda os aspectos mitológicos ou espirituais da
antropologia, associada à América Latina; e a realista mágica aborda aspectos das faces
racional e mágica, pertencentes à mesma realidade, como se a contradição entre ambas
não se manifestasse.
Sabendo-se que a narrativa scliariana se insere no contexto contemporâneo, cuja
tendência da literatura fantástica é a realista mágica, e que o romance Sonhos tropicais
— ambiente literário no qual se nota tal tendência — possui uma nova atitude do
narrador frente ao real, buscando outras dimensões da realidade, pode-se dizer que esse
livro de Scliar tem aspectos realistas mágicos. Contudo isso não quer dizer que outras
obras do escritor tenham ou não, obrigatoriamente, tais peculiaridades.
Embora para a análise se tenha levado em consideração pareceres de Menton
(2001), Chiampi (1980), Hegerfeldt e Gomes (1989), além de Moses (2001) e Leal
(1995), muitas vezes, mesmo para criticá-los, mantendo-os ou refutando-os, o parecer
que se mostra o mais coerente, inclusive por englobar os conceitos de realismo
maravilhoso e realismo mágico sob a única nomenclatura de realismo mágico além de
oferecer mais um terceiro conceito alternativo, é a tipologia de Spindler (1993).
Sonhos tropicais, apesar de não estar ileso às outras faces do realismo mágico
reunidas na tipologia spindleriana, parece portar especificidades do realismo mágico
ontológico. Nessa narrativa, “mágico” diz respeito à presença do inexplicável e do
fantástico, vinda do inconsciente individual e coletivo do narrador alcoólatra, como o
Saci, a vitória-régia, a Princesa Moura, Lucy Smith, o marinheiro, a úlcera, seres da
lama e a garrafa. Mas a esse “mágico”, apresentado de forma realista, não há
257
preocupação em lhe dar uma explicação convincente, uma vez que o sobrenatural
parece naturalizado ou até banalizado, de forma que essa desarmonia não se manifesta,
ou, pelo menos não contradiz a ordem da razão.
Apesar de o anônimo médico-narrador conversar o tempo todo com sua garrafa de
bebida alclica e com o falecido sanitarista Oswaldo Cruz, parecendo estar
perturbado” ou cético em relação ao sobrenatural, concebendo-o como se fosse parte
normal da vida comum, ele não está só cético e perturbado”, no que diz respeito ao
fantástico, pois discursa com/sobre personalidades de existência comprovada no
contexto referencial dos textos histórico-biográficos que lê sobre Oswaldo Cruz.
A acontecimentos que mostram o lado subjetivo e intuitivo da realidade, como o
ataque do marinheiro pelo polvo, a úlcera na testa ou na fronte do menino Oswaldo
Cruz, o clarim do castelo onde Oswaldo Cruz se encontra com a Princesa Moura, a
história da metamorfose da bela Lucy Smith em vitela, no contexto da Revolta da
Vacina, e as enormes folhas de viria-régia do Jardim Botânico que levaram, em algum
momento, crianças loiras e lindas na correnteza, não lhes são demandados nenhuma
explicação lógica. Desse modo essa antinomia irresoluta da realidade se acomoda no
plano do parecer, da causalidade, da moralidade, da relatividade, da camuflagem, e da
catarse. O leitor é apenas convidado a aceitar essa realidade de antinomia irresoluta, na
qual tanto o corriqueiro quanto o não corriqueiro têm a mesma natural receptividade e o
mesmo peso, outorgado no crivo da linguagem que cobre e/ou descobre o plano real e o
mágico da mesma realidade.
Na perspectiva dada à ficção scliariana se nota a falta de convenção ao se falar do
momento contemporâneo por meio da literatura. Há a presença de uma nova síndrome
do Barroco, chamada Neobarroco, e faz parte de seus sintomas trazer à superfície os tics
do Modernismo e os colocar todos, de forma justaposta e dissociada, no mesmo painel
do presente esquizofrênico. E, na junção dessa hiper-realidade semiótica e motivada
ideologicamente, as formas de desautomatização modernistas são o cômico, cujo motor
é o realismo mágico, cujo motor é pós-moderno. Todos eles maneiras de apostatar a
sociedade do olhar e do show, além de problematizar o absurdo reinante no mundo
atual, na América Latina e nos seus sistemas de comunicação, de modo inclusivo.
258
Referências
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Pòs-modernismo e realismo gico em Moacyr Scliar / Rozângela
Alves Vilasbôas. – Araraquara : [s.n.], 2007
280 f.; 30 cm.
Orientador: Maria Lúcia Outeiro Fernandes
Tese (doutorado) Universidade Estadual Paulista, Faculdade
de Ciências e Letras
1. Literatura brasileira – História e crítica. 2. Prosa brasileira. 3.
Scliar, Moacyr, 1937- – Crítica e interpretação. 4. Pós-modernismo
(Literatura) 5. Realismo mágico. 6. Humor (Literatura) I. Fernandes,
Maria Lúcia Outeiro. II. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras. III. Título.
CDU – 821.134.3(81).09
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