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A tradição bíblico-judaica é trazida por meio dos costumes, como tomar banho,
vestir camisa limpa e jejuar no Yom Kipur, em A estranha nação de Rafael Mendes
(SCLIAR, 1983), e alguém lavar os pés a outrem ao crepúsculo, em “Os pés do
patrãozinho” (SCLIAR, 2003); rituais como o da circuncisão de Guedali, o bebê-
centauro, em O centauro no jardim (SCLIAR, 1985a), de Marcos, o filho da prostituta
Esther, em (O ciclo das águas) (SCLIAR, 1976b), e dos inúmeros Rafael Mendes e
Tiradentes, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983); festas, como a
de Pessach, Páscoa, a saída do Egito, e Purim, a festa da Rainha Esther, em A guerra
no Bom Fim (SCLIAR, 2001c); culinária, como o pão ázimo, matzot e borscht, sopa de
beterrabas, servidos por ocasião da festa de Páscoa, em A guerra no Bom Fim; pragas,
como as das águas sangrentas, rãs, moscas, peste, úlceras, saraiva, gafanhotos e morte
do primogênito, em “As pragas” (SCLIAR, 2000d); castigos, como apedrejamento do
pastorzinho, em A mulher que escreveu a Bíblia (SCLIAR, 2001f), e o sepultamento
do polidor de lentes Joseph, rebelde leitor de Baruch Espinosa, como suicida, ao pé do
cemitério judaico, em A estranha nação de Rafael Mendes (SCLIAR, 1983); além de
muitos outros ingredientes da obra scliarianas, reveladores da cultura bíblica.
Harold Bloom, na epígrafe do livro A mulher que escreveu a Bíblia, diz que a
Bíblia “tem formado a consciência espiritual de boa parte do nosso mundo”. Tal
consciência aparece nas linhas e entrelinhas da obra do escritor judeu, principalmente
no que diz respeito ao Velho Testamento, colocado, com freqüência, como forma de
resgate cultural, conforme os exemplos colocados anteriormente além do Novo
Testamento que é trazido também para a obra, embora em menor grau, com atitude
suspeitosa e de maneira, quase sempre, implícita e contrária à fala do filósofo Friedrich
Nietzsche — “Nós devemos aos judeus o mais nobre dos homens, Cristo” —, segundo o
livro de citações Se eu fosse Rothschild, de Scliar (1993, p. 144).
O Deus do Velho Testamento tem sua presença certa e indubitável — para o
escritor Martin Buber (SCLIAR, 1993, p. 145), “o judaísmo desempenha um papel
fundamental (...), sobretudo pela idéia de que Deus pode ser encontrado em tudo, e de
que tudo está em Deus” —, mas, talvez, por isso mesmo é tido por “irascível (...),
impiedoso, inescrutável” (SCLIAR, 1985a, p. 7), cujos desígnios são misteriosos, como
reclamam a mãe do narrador anônimo de A majestade do Xingu (SCLIAR, 1997c, p.