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pecados em vida, a extroversão e a licenciosidade. O jejum e a continência sexual eram raramente
acatados, sendo levados a efeito somente em dias de grande significação do calendário litúrgico.
As obras de misericórdia eram feitas, basicamente, na iminência da morte e a participação nos
diversos sacramentos, principalmente o matrimônio, era demasiadamente irregular.
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O cisterciense Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana e fundador do
Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, prestando contas à Sagrada Congregação do Concílio
de Trento sobre seu governo episcopal, escreveu no ano de 1757 um relatório decenal. Na sexta
sessão deste documento o benemérito prelado expôs suas observações sobre a vivência moral e
religiosa nas Minas. Segundo ele:
O território desta região aurífera, a nenhum outro inferior na incontável multidão de
habitantes e adventícios, sobrepuja as maiores Cidades do Orbe na torpeza diversificada
dos vícios. Porquanto estende-se longe com enorme multidão de indivíduos nele
dispersos e projeta-se para o alto, mais que as outras, com vértices de montes muito
elevados, alicia os habitantes para os campos demasiado amplos dos vícios, precipita-os
no abismo bastante profundo da ambição, atrai os mineiros para o incitamento do mal, a
saber, a extração do ouro: pois que eles, envolvendo seus irmãos com inumeráveis ardis
de injustiça, roubando em benefício próprio, através de demandas dolosas, os veios do
ouro alheio, ensoberbecem-se com a altivez demasiado arrogante da avareza. Daí
encontrarás vários de seus vizinhos iludidos e apegados aos hábitos da ambição, vaidade,
soberba e aos falazes prazeres carnais, impelindo-os talvez a estas faltas a abominável
ganância do ouro. Nem digas que alguns eclesiásticos ficam imunes de se queimar nesta
desonra, já que a eles, não sem motivo, pode aplicar-se aquele dito de Kolkocius:
Procuram Libras não livros, obedecem às moedas, não às monições, ajudam alguém com
preço, não com prece. Inclinados por demais a estes vícios, no entanto, torna-os
grandemente merecedores de um único louvor a copiosa liberalidade para com os
Santos, graças à qual rios de ouro são destinados a promover o esplendor de todas as
Igrejas.
116
(sic)
115
Sobre a irregularidade do matrimônio Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. A “torpeza diversificada dos vícios”:
celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). 1993. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1993.; FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997. 198p. É preciso ressaltar que a simplificação da experiência religiosa e da conduta moral não foi uma
particularidade vivida na Capitania das Minas. De maneira geral, as sociedades cristãs da Idade Moderna
compartilhavam do mesmo padrão comportamental: só se preocupavam com o destino de suas almas na iminência da
morte. Cf. D’ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: Editorial
Notícias, 1997. MORAES, Douglas Batista. Bem nascer, bem viver, bem morrer: administração dos sacramentos da
Igreja em Pernambuco (1650 à 1790). 2001. 111 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.; ROLDÁN, Francisco Núñez. La
vida cotidiana en la Sevilla del Siglo de Oro. Madrid: Sílex, 2004. 248p.
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AEAM, Relatório Decenal do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento,
redigida por Dom Frei Manoel da Cruz. Mariana, 1 de julho de 1757. Língua original: Latim. Tradução de
Monsenhor Flávio Cordeiro.