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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
AS RESSIGNIFICAÇÕES DE EXU DENTRO DA UMBANDA
LENNY FRANCIS CAMPOS DE ALVARENGA
GOIÂNIA
2006
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
AS RESSIGNIFICAÇÕES DE EXU DENTRO DA UMBANDA
LENNY FRANCIS CAMPOS DE ALVARENGA
Dissertação apresentada ao
Mestrado em Ciências da Religião
da Universidade Católica de
Goiás como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Luigi
Schiavo.
GOIÂNIA
2006
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DISSERTAÇÃO DO MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DEFENDIDA EM
31 DE AGOSTO DE 2006
E APROVADA COM NOTA 7,0 (SETE INTEIROS)
PELA BANCA EXAMINADORA
1) Dr. Luigi Schiavo / UCG (Presidente): _____________________________________
2) Dra. Irene Dias de Oliveira / UCG (Membro): _______________________________
3) Dra. Olga Rosa Cabrera Garcia / UFG (Membro): ___________________________
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AGRADECIMENTOS
Não teria conseguido terminar este mestrado sem que uma série de fatores
fosse reunida. Meus pais, Luiz e Doraci, são a base de tudo, sempre com amor,
priorizaram uma formação intelectual sólida para mim e meu irmão, como também
promoveram nosso crescimento moral e espiritual. A eles, meu amor e dedicação e
todo o reconhecimento do mundo pelos anos de renúncia pessoal em prol de seus
filhos. Obrigado por tudo!
Ao meu irmão Jules, pelo carinho e dedicação e por demonstrar tanto
interesse pela minha felicidade e bem estar, meus sinceros agradecimentos e os
mais profundos votos de crescimento espiritual a você, a Flavielle e o pequeno Davi.
A minha doce Dineiva, meu amor, meu esteio, a total responsável por minha
transformação pessoal, retirando-me do ostracismo em que me encontrava e me
dando um sentido para viver. Toda sua dedicação e seu amor incondicional me
ampararam nesta jornada, fazendo com que a mesma tivesse sentido com você
ao meu lado. Que Deus nos ilumine sempre! Te amo muito! “Muitão”!!
Agradeço ao Luiz Júnior, amigo confidente, pela sincera amizade e
companheirismo a longos e duros anos. E não poderia deixar de externar aqui
minha admiração e gratidão por seu pai, sr. Luiz, por tudo que fez por mim e por
minha família e que só Deus um dia saberá recompensar
Agradeço a Claudio Herbert Nina e Silva pela amizade incondicional. Sua
inteligência e senso crítico fizeram com que eu encontrasse um amigo fiel com quem
eu pudesse aprender sobre qualquer coisa.
Um agradecimento especial a Avimar Ferreira Júnior por sua amizade e os
profundos ensinamentos sobre a Religião dos Orixás. Suas explanações iluminaram
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v
pontos obscuros do meu conhecimento sobre o tema. Que Oxalá esteja sempre
contigo!
Agradeço aos professores Luigi Schiavo, Alberto da Silva Moreira e Haroldo
Reimer pelo incentivo durante a execução do trabalho.
Agradeço a Secretária Geyza Pereira pela atenção, paciência e humanidade
no trato para comigo.
Aos professores da Faculdade de Psicologia da Universidade de Rio Verde
FESURV Maria Flavina, Patrícia Pinto, Érik Melo, Aline Roberta, Luiz Fernando,
dentre tantos outros colegas que me apoiaram durante a realização do mestrado.
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RESUMO
ALVARENGA, Lenny Francis Campos de. AS RESSIGNIFICAÇÕES DE EXU
DENTRO DA UMBANDA. (mestrado em Ciências da Religião) Universidade
Católica de Goiás, 2006.
O objetivo da presente dissertação foi investigar a figura de Exu e as
ressignificações de sua imagem e função dentro da umbanda. Ao aprofundar no
tema, mais do que apenas um caso isolado dentro da religião umbandista, o mesmo
se transformou no exemplo de como estas ressignificações operam em um nível
mais elevado: o das sistematizações da teologia e doutrina de umbanda expressas
em suas principais correntes de pensamento. A partir de então estabeleceu-se um
modelo comparativo da figura de Exu em suas origens na África e suas
transformações em solo brasileiro, principalmente no que tange a umbanda. Suas
principais ressignificações foram a nível icnográfico e de função, mas ambos
responderam respectivamente ao sincretismo e a sistematização da teologia e da
doutrina da umbanda.
Palavras-chave: ressignificação, Exu, umbanda, sistematização.
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vii
ABSTRACT
ALVARENGA, Lenny Francis Campos de. THE SIGNIFICATES OF EXU IN THE
UMBANDA RELIGION. (masterate of Religion Sciences) Universidade Católica de
Goiás, 2006.
The finality of this dissertation was to investigate the functions, images and
significates of Exu in the umbanda religion. The developing of this theme
demonstrate that his significations works in one elevated level, that shows the
sistematization of the umbanda’s theology and doctrine in his more importants
streams of religious thinking. From this point of view, one comparative model of the
Exu’s image in his African origins and his transformations in the Brazilian ground was
maked, searching the sincretism and sistematization of this theology and doctrine, in
the level iconographic and functional.
Key Works: significates, Exu, umbanda religion, sistematization.
9
9
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS..................................................................................................4
RESUMO.....................................................................................................................6
ABSTRACT.................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................9
CAPÍTULO 1.............................................................................................................15
1.1 Linhas Interpretativas ..........................................................................................15
1.2 Umbanda.............................................................................................................27
1.2.1 O que é umbanda?...........................................................................................27
1.2.2 O surgimento da umbanda...............................................................................30
1.2.3 As linhas de pensamento dentro da umbanda .................................................37
CAPÍTULO 2.............................................................................................................44
2.1 Quem é Exu? ......................................................................................................44
2.2 Mitos, Símbolos e Ritos de Exu – Da África ao Brasil.........................................47
2.3 O que mudou?.....................................................................................................55
2.3.1 Exu e as linhas de pensamento da umbanda...................................................55
CAPÍTULO 3.............................................................................................................62
3.1 Elementos relacionados à ressiginificação de Exu..............................................62
3.1.1 A identificação Exu/diabo – aspectos históricos e atuais .................................64
3.1.2 Os inimigos da umbanda – resposta aos ataques............................................74
3.1.3 A influência da (pós)modernidade na umbanda...............................................82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................88
ANEXOS ...................................................................................................................93
10
10
1 – INTRODUÇÃO
Existem hoje no Brasil mais de 76 milhões de brasileiros que se declararam
negros ou afro-descendentes no último censo, o que representa cerca de 45% da
população do país
1
. A influência da cultura negra no dia-a-dia reflete sua importância
dentro do modelo civilizatório brasileiro. A culinária africana e afro-descendente,
antes legada somente ao paladar dos negros, são hoje iguarias especiais que
complementam o cardápio de importantes restaurantes. A sica e a dança, desde
o samba em suas raízes, a os movimentos sócio-culturais que surgiram sob a
égide do ritmo afro-baiano “axé”, além da capoeira e todos os ritmos e instrumentos
musicais oriundos da África influenciam grande parte da cultura brasileira. O folclore
afro-brasileiro que juntamente com outras tradições permeiam nosso imenso país
com suas festas populares (congada, por exemplo). A influência das línguas negras
(tanto dos grupos sudaneses quanto dos bantus) no português é duradoura,
principalmente no que tange o seu uso litúrgico dentro das denominadas religiões
afro-brasileiras: umbanda, quimbanda, candomblé, entre outras e mesmo fora
destas religiões, onde podem ser encontradas uma série de expressões de uso
cotidiano na língua portuguesa (CASTRO, 2001, p. 25).
a imensa influência cultural citada, em si justificaria a realização deste
trabalho, mas não posso me furtar de demonstrar, dentro do modelo cultural afro, a
crescente demanda religiosa dentro do cenário religioso atual.
1
Segundo dados do Censo Demográfico 2000 do IBGE e citados em
http://www.criola.org.br/dados_regiao.htm, (consultado em 17/08/2006).
10
10
As religiões afro-brasileiras constituem atualmente um amplo campo de
estudos, tanto pela importância histórica quanto atual na vida da sociedade
brasileira. A expansão de centros, terreiros, tendas, etc, destas religiões justifica o
número cada vez maior de teses e dissertações, além de artigos, livros e capítulos
de livros sobre o tema. No censo do IBGE em 2000, 0,34% dos brasileiros se
declararam seguidores de religiões afro-brasileiras, mas este número não reflete a
realidade destas religiões no país. Prandi (2002, pp. 03-07), indica que em censos, a
maioria absoluta dos seguidores e freqüentadores das religiões afro se escondem
atrás da denominação “católico”, ou mesmo “espírita”, mas o próprio, estima que
cerca de 30 milhões de brasileiros são freqüentadores (simpatizantes ou fiéis),
mesmo que sazonais, de terreiros em todo o Brasil.
No II Festival Mundial de Artes e Culturas Negras realizado em Lagos,
Nigéria, em 1978, René Ribeiro da Universidade Federal de Pernambuco
demonstrou, utilizando dados oficias do IBGE de então, que a religião que mais
crescia (em termos proporcionais) no país até aquele momento era a umbanda
(SAIDENBERG, 1978[a], p. 35); o que se confirmou no censo divulgado em 1980
(PEREIRA, 2002, pp. 03-04).
Prandi (1989, p. 37) chama a atenção para uma pesquisa realizada pelo
Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro em 1982 que demonstra
que na década de 1950 existia somente um (1) terreiro de candomblé registrado em
cartório no estado de São Paulo, enquanto que na década de 1960 o número foi de
83 terreiros, pulando na cada seguinte para 856 terreiros e até o ano de 1982 o
número era de 1.200 terreiros registrados, o que demonstra claramente um forte
crescimento. No Rio de Janeiro, estima-se que no início da década de 1970 existiam
11
11
mais de 20.000 terreiros de umbanda e 1.500 de candomblé no então estado da
Guanabara (BANDEIRA, 1972, p. 38).
atualmente uma revista mensal de caráter religioso (Revista Espiritual de
Umbanda, fundada em 2005), além de dois jornais (Jornal de Umbanda Sagrada,
fundado em 2001, e Jornal Orixás), um boletim (Saravá Umbanda, fundado em
1999) e um informativo (Novo Milênio), todos impressos e de circulação nacional a
respeito de umbanda, candomblé, quimbanda e outras manifestações religiosas de
origem afro; além de um sem-número de publicações on-line a respeito destas
manifestações religiosas. Com uma simples pesquisa no site de busca na Internet
Google, observamos que ao procurarmos pela palavra-chave Orixás” obtivemos
como resposta 302.000 sites sobre o tema ou que continham a palavra. Com a
palavra-chave “Umbanda” o número de sites encontrados subiu para 427.000;
com a palavra-chave “Candomblé foram 330.000 sites, enquanto que a palavra-
chave “Quimbanda” encontrou 23.500 páginas na Internet que continham este tema,
sendo todos os sites em português
2
. Se utilizarmos outras denominações para as
religiões de cunho mediúnico que sofreram influência das religiões e tradições afro,
como por exemplo o Catimbó, o Batuque, o ‘Xangô’ do Recife, o Tambor de Mina
Maranhense, bem como os nomes das divindades: Orixás, Voduns e Inkices
específicos e suas variantes; poderemos encontrar números ainda mais expressivos.
Todos os dados apontados acima reforçam a importância das religiões afro,
entre elas a umbanda, no cenário religioso das últimas décadas. Sua importância vai
desde o crescimento no número de adeptos, a movimentação econômica que
abrange o comércio de produtos e artigos religiosos até a publicação de livros e
2
Pesquisa realizada no Google em 23/08/2006
.
12
12
revistas, acadêmicos ou não, para fiéis, não-fiéis e simpatizantes pertencentes ao
círculo da Nova Era, além dos curiosos.
Dentro deste universo de informação, muitos livros e revistas têm enfatizado o
estudo dos diversos Orixás, Voduns, Inkices, Entidades Espirituais de umbanda,
entre elas, os guias pretos-velhos, caboclos, erês
3
e os povos baianos, boiadeiros,
jangadeiros, ciganos e mesmo povos de algumas regiões da África, como as
correntes de Nagô, de Angola, do Congo entre outros, além dos ditos povos de rua:
exus e pombagiras.
Com relação aos exus, muito se tem escrito sobre suas características
relacionadas à sexualidade humana (SANTOS, 1976, p. 50 e segs.), além de sua
intrínseca ligação com as coisas terrenas: Exu seria um Orixá, ou mesmo uma
entidade, que estaria mais próximo ao Aiyê (Terra), ou ao “plano material”. Foi
justamente esta ligação, associada ao caráter irascível, brincalhão, inconseqüente e
às vezes virulento de exu que levou vários missionários protestantes, católicos e
anglicanos na África a sincretizá-lo com o Diabo dos cristãos (VERGER, 1999[b], p.
119 e segs.).
Em visitas informais realizadas antes do início deste trabalho em várias casas
de umbanda de Goiânia-Go e Rio Verde-Go, pude perceber na grande maioria dos
terreiros visitados as imagens de Exu que reflete esta identificação. Mesmo assim,
algumas casas não apresentavam imagens destas entidades e outras nem sequer
faziam as chamadas “giras de Exu”
4
. Quando informalmente perguntados sobre a
3
Não é objetivo do presente trabalho discutir a etiologia da palavra erê, tão controversa em suas
explicações, podendo significar estátua ou mesmo um “estado” chamado de erê, caracterizado por
comportamentos estranhos e infantis do Iaô após a manifestação do orixá. Na umbanda, erê tem o
mesmo significado de criança.
4
As “giras” se referem ao trabalho mediúnico de incorporar a entidade dentro da prática ritual.
13
13
ausência da “gira”, alguns respondiam ser Exu uma entidade atrasada, com “pouca
luz” e, portanto sem condições de atender a assistência, os visitantes e os fiéis.
Em outras ocasiões, a resposta variou para a compreensão de que estas
entidades, na verdade, eram escravas dos orixás e guias de umbanda e
trabalhavam quando estes assim o determinavam. Uma outra variante de respostas
dizia respeito a Exu ser o protetor e guardião do terreiro e de todos que estão nele,
considerando, inclusive, que o nome genérico Exu, não refletia a verdadeira
natureza desta entidade e de suas atribuições.
Tais contradições me fizeram refletir sobre quais seriam os motivos que
levaram a tantas interpretações diferentes. Deparei-me, então, com um problema
metodológico: não havia nenhum trabalho acadêmico em nível de mestrado ou
doutorado que descrevesse as diferentes visões da umbanda e como cada uma
delas entendia Exu. Optei então por um trabalho teórico que pudesse dar
sustentação aos trabalhos empíricos que surgissem a partir de então.
Com este intuito, o presente trabalho visou identificar e descrever o processo
de ressignificação de Exu na umbanda, procurando entender o significado de tantas
interpretações sobre sua imagem e seu papel dentro da mesma. Para tanto foi
necessário que retornássemos a África para analisarmos seus mitos, ritos e
símbolos, o surgimento e as características do sincretismo diabo-exu, para
posteriormente identificarmos as mudanças sofridas dentro da umbanda. Para tanto,
foram adotadas as seguintes linhas de trabalho:
1) A descrição da umbanda, seu surgimento e a identificação de suas
principais correntes de pensamento;
2) Como que cada uma dessas correntes pensa e trabalha a questão de Exu
dentro de suas características próprias;
14
14
3) Apontar as principais causas das ressignificações de Exu dentro destas
sistematizações teológicas dentro da umbanda.
O caso de Exu e a análise destas ressignificações é um exemplo
paradigmático das mudanças que a umbanda passa e passou ao longo de sua
história e de como hoje, ingressa-se no processo de institucionalização
burocratizada que leva seus sacerdotes a se organizarem em Colégios, Novas
Federações (como as que surgem no estado de São Paulo) e até mesmo uma
Faculdade de Teologia Umbandista reconhecida pelo MEC.
15
15
CAPÍTULO 1
1.1 - LINHAS INTERPRETATIVAS
Para a compreensão do papel de Exu dentro da sociedade yorubá, é
necessário diferenciar e conceituar o que é um orixá, um ancestral e um egún dentro
de sua cosmovisão. A sociedade yorubá é monoteísta em sua essência, pois
identifica e classifica um único Deus como criador de tudo e de todos, inclusive dos
orixás. As classificações nominais seguem um modelo antropônimo de atribuição de
significados segundo suas realizações (BENISTE, 1997, p. 27). A este Deus único
são atribuídos vários nomes, entre eles: Olòórun (que significa o “Senhor do Céu” ou
“Dono do Céu”
5
) e Olódùmaré (que pode significar “Senhor Dono do Poder”)
(VERGER, 1999[a], pp. 21-22; 1999[b], pp. 487-492). Olòórun não possui culto
específico, mas não deixa de ser lembrado e saudado através dos mitos e ritos
dedicados aos orixás.
O nome dos orixás seguem a mesma premissa antropônima e geralmente
estão relacionadas a suas atribuições. Sobre a origem dos orixás Verger diz:
“O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, ,
estabelecera vínculos que lhe garantiram um controle sobre certas forças
da natureza [...], ou então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer
certas atividades como a caça, o trabalho com os metais [...] o
conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O poder,
àse, do ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se
momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno
de possessão por ele provocada. A passagem da vida terrestre à condição
de orixá desses seres excepcionais, possuidores de um àse poderoso,
produz-se em geral em um momento de paixão, cujas lendas conservam a
lembrança. [...] Estes antepassados divinizados não morreriam de morte
natural, morte que em ioruba vem a ser o abandono do corpo, ara, pelo
sopro, emí. Possuidores de um àse
muito forte e poderes excepcionais,
5
Céu seria uma representação aproximada da palavra yorubá Órun.
16
16
sofreriam uma metamorfose [...]. O que neles era material desaparecia,
queimado por essa paixão, e deles restava somente o àse, poder em
estado de energia pura.” (VERGER, 1999[a], p. 18).
Como os primeiros seres desta terra e fundadores das dinastias yorubás,
seriam eles ancestrais ou antepassados, ou seja, personalidades que viveram
efetivamente nesta terra. Mas as condições pelas quais a deixaram e o fato de
serem considerados como as primeiras criações de Olòórun, sendo posteriormente
considerados os primeiros a conviverem com o Criador, deu a eles a condição
especial de serem considerados e tratados como divindades, orixás. A própria
etimologia do nome lhes garante esta premissa; orixá poderia significar “O Senhor
da Cabeça” ou “A Origem do Orí (Cabeça)”, ou ainda “A Fonte do Orí” (BENISTE,
1997, pp. 83-84). Existem outros nomes que designam genericamente estas
divindades: Ebora e Inrúmalè que significa “Os Sobrenaturais da Terra” (SANTOS,
1976, p. 79-80).
o culto aos egúns
6
se caracteriza intrinsecamente por ser um culto aos
antepassados. Neste caso sim, ocorre à morte, onde emí deixa o ara. Um
antepassado é alguém de quem efetivamente somos descendentes, seja por
linhagem materna ou paterna. Mas, para os yorubás, não basta ser apenas um
ancestral para que se tenha um culto em sua homenagem; para tal, deve-se
alcançar uma idade avançada, além de ter conseguido posições de destaque dentro
da sociedade e mesmo do culto... além, é claro, do fato de ter deixado muitos
descendentes (BENISTE, 1997, p. 189-190).
6
Egún: osso, esqueleto, utilizado neste sentido para desginar ‘morto’. No culto pode ser invocado na
forma de Egúngún (mascarado), onde se manifesta coberto por vários panos e retalhos de diversas
cores.
17
17
Estas interpretações estão na base para o entendimento da principal
modificação que ocorreu no significado de Exu do culto original africano para a
umbanda: a transformação de um orixá em egún
7
.
Na África então, Exu é orixá e tem caráter de divindade. Para entendermos
suas ressignificações é importante entendermos algumas categorias antropológicas.
A noção de espaço/tempo é essencial nesta análise para o entendimento do culto a
Exu em seus diferentes contextos aqui propostos para estudo. A manifestação de
uma entidade se em um espaço específico que Eliade (2001, p. 42 e segs)
chama de espaço sacralizado. Este espaço diferencia o que é profano (não-sagrado)
do que é sagrado e sua justificativa se faz através da rememoração mítica e ritual
referente a uma época primordial, no caso, a época em que os orixás viveram e
realizaram seus feitos.
Na África, os espaços sagrados o caracterizados por uma consagração
específica como quando são erigidos templos religiosos de adoração aos orixás, por
exemplo, mas também existem os lugares naturalmente sagrados, como algumas
florestas, rios específicos (geralmente representações de orixás femininos), etc. Os
espaços sagrados de Exu são os lugares públicos, as entradas das cidades, das
casas, das vilas, feiras, entradas de templos, além dos templos erigidos em sua
homenagem. São nestes lugares, que seus assentamentos
8
o colocados;
característica esta que foi repassada para algumas correntes de pensamento
umbandistas.
Na África e no candomblé, o espaço sagrado é a porta para o òrun (moradia
dos seres sobrenaturais), de onde os homens podem ascender e os orixás e os
7
Voltaremos e este tema mais adiante quando falarmos das mudanças no significado da figura de
Exu da África para a umbanda.
8
Assentamento: “Artefato individual, representativo do Órisà, constituído de diversos elementos do
mundo mineral, animal e vegetal.” (PORTUGUAL-FILHO, 2004, p. 135).
18
18
antepassados podem descer até a terra; é onde a comunhão com o
transcendente, comunhão esta possível graças a Exu (SANTOS, 1976, p. 50 e
segs). Na umbanda, o próprio terreiro é o espaço sagrado por excelência e é através
dele que os guias espirituais descem de Aruanda (tem em tese o mesmo sentido de
òrun) e se manifestam.
O tempo no qual o culto acontece é diferente em terras da África do que é no
Brasil. A perspectiva dessa diferença pode ser entendida na medida em que
compreendemos que as concepções de tempo na África são características de um
período pré-capitalista, onde são marcados segundo acontecimentos naturais, como
o movimento dos astros e mudanças de Lua, o início e o fim das estações chuvosas,
etc.
O tempo na África é o tempo da narrativa, em que segundo Benjamin (1986),
narra os acontecimentos da vida segundo as percepções de quem as vivencia. Este
tempo da narrativa não precisa (e geralmente não está) estar atrelado ao tempo
cronológico, medido e quantificado tão característico da modernidade.
Para a umbanda, este tempo é totalmente adaptado as condições de vida
moderna. Os cultos são geralmente à noite e em horários fixos, o que permite que
as pessoas se programem e onde a maioria dos trabalhadores da casa quantos os
clientes e fieis, deixaram seu trabalho e se dirigiram aos seus lares, onde
permanecem envolvidos em suas atividades domésticas até o momento de irem ao
terreiro.
Outra categoria antropológica importante para a análise das modificações no
significado da figura de Exu na umbanda é o conceito de mito. Eliade define o mito
da seguinte forma:
“o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’... Os mitos,
efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das
19
19
plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais
em conseqüência dos quais o homem se converteu no que é hoje”
(ELIADE, 2000, p. 11 e 16).
A manutenção e o status quo ordenado da religião africana é mantida através
da rememoração dos mitos sagrados dos orixás e ancestrais (PRANDI, 2001[b], pp.
20-26). Segundo Eliade, os mitos devem ser investigados no contexto na qual ele é
vivo (ou foi vivo) e “fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso
mesmo, significação e valor a existência” (ELIADE, 2000, p. 08).
Os mitos descrevem o aparecimento do Sagrado no mundo, tornando-o tal
qual o conhecemos, mas com a qualidade religiosa necessária que o faz ‘Ser’; pois
são os mitos que descrevem e ‘regulamentam’ todas as atividades dos homens.
Os mitos deixam vivos na memória todo o complexo ritual para se manter
simbolicamente as ações realizadas pelos orixás nos tempos primordiais e assim
garantir a conservação do mundo tal qual ele é. São os mitos que determinam aquilo
que pode e aquilo que não pode, como nos casos dos “tabus”, “quizilas”, “preceitos”
e “restrições” da sociedade yorubá.
Além do estabelecimento do tabu, os mitos referem-se também aos aspectos
arquetípicos relacionados ao comportamento e mesmo a personalidade dos orixás,
sendo que os filhos destes orixás também apresentam as características dos
mesmos, confirmando sua correspondência aproximada (VERGER, 1999[a], pp. 33-
35).
Eliade (2000, p. 129 e segs.) elucida que os mitos podem existir basicamente
em dois momentos: um de grandeza e outro de decadência, e ambos dependem do
momento e da função que os mitos estão exercendo dentro de uma sociedade. Na
umbanda, muitos dos mitos relativos a Exu estão esquecidos ou foram modificados
20
20
nos processos de ressignificações pelo qual passaram e passam, caracterizando o
momento de decadência dos mitos originais.
Os mitos referentes a Exu foram absorvidos e reinterpretados no Brasil pelo
cristianismo, que encontraram no material mítico desta divindade, o reforço das
idéias de associá-lo ao diabo cristão. Neste contato entre as culturas está o cerne de
fenômeno amplamente estudado e discutido chamado de ‘sincretismo’
9
, onde
noções novas são agregadas, muitas vezes, a tradições regionais, como no caso
deste contato com as religiões afro-brasileiras, como a umbanda.
As mudanças na dinâmica das culturas podem acontecer através de
processos internos e externos; no caso do que se convencionou chamar de
‘sincretismo’, representa um processo externo caracterizado pelo choque e/ou
contato entre duas ou mais culturas (LARAIA, 1985, pp. 98-105). A umbanda, como
exemplo, resulta do contato entre as tradições do candomblé, somada a algumas
tradições indígenas, além de ter nascido, oficialmente, dentro de um centro
espírita
10
.
Segundo Ferretti (2001, p. 13) o processo de ‘sincretismo’, em seu sentido
amplo, no Brasil é mais evidente nas religiões afro-brasileiras, onde pode ser
estudado com mais facilidade; e mesmo para Prandi (2001[a], pp. 49-50), as
próprias religiões e tradições afro-brasileiras é que se fizeram ‘sincréticas’ (também
no mesmo sentido amplo), estabelecendo as primeiras identificações e correlações
com o sistema dominante.
Droogers (1989, p. 07-25 apud FERRETTI, 2001, p. 13) aponta dois sentidos
para se abordar o sincretismo: o primeiro se refere a um significado objetivo
9
Termo consagrado e usado comumente em seu sentido mais amplo de simples correspondência
entre divindades de diferentes panteões, mas que vem sofrendo profundas mudanças conceituais e
propostas de modificação do sentido na qual é comumente usado.
10
Voltaremos a este tópico quando falarmos sobre a umbanda, seu surgimento e suas
características.
21
21
caracterizado pela simples descrição neutra dos elementos sincretizados; o
segundo, subjetivo, refere-se às formas de interpretação ou a busca pelas causas do
sincretismo. Na tentativa de estudar este fenômeno evidenciando suas causas,
Bastide (1983, p. 159-193) se deparou com um problema de método, no qual
concluiu que o ponto de vista subjetivo era extremamente impreciso, pois o dito
“problema” do sincretismo não era visto assim pelos negros que o praticavam, nem
sequer pensavam sobre isso, e quando perguntados, davam somente respostas de
momento, sem deixar que tal assunto fizesse parte de suas elucubrações religiosas.
Para Bastide (1983, p. 159-193) o pressuposto de que para cada sincretismo
apresentado, deveria existir um “sincretismo psíquico” que o explicasse não se
confirmou, pelo contrário, fez com que ele acreditasse que o processo sincrético não
é uma fusão entre as divindades através das suas características e semelhanças,
mas sim um processo de cisão em que na verdade não há sincretismo, pois uma
divindade não se torna outra ou duas não se tornam uma (identificando-as e
misturando-as). Elas são apenas sobrepostas através de um sistema de
equivalência e não de substituição, portanto ao realizar o culto a uma divindade
africana utilizando um nome de santo católico, por exemplo, era esta e não a
católica que estava sendo verdadeiramente cultuada.
A expressão sincretismo, então, não podia ser considerada como explicativa
de todos os fenômenos de analogia encontrados, muito menos no caso do
sincretismo diabo-exu.
“O Exu dos nagôs é o Elegbá dos daomeanos, mas o Elegbá tem um
caráter fálico mais nítido; é igualmente o Homem da Rua dos caboclos,
mas o Homem da Rua ou das Encruzilhadas se assemelha muito mais ao
diabo que a Exu, que não é um espírito perverso e assim por diante.
Temos, por conseguinte, um simples jogo de analogias e nada mais.”
(BASTIDE, 1983, p. 183).
22
22
Por este motivo, o presente trabalho não fará uso do termo sincretismo, nem
mesmo em seu sentido mais amplo, para se referir ao processo de representação
estabelecido entre as divindades católicas e africanas.
Verger (1999[a], p. 25-28) afirma ser praticamente impossível determinar o
momento inicial da identificação entre os santos católicos e os orixás africanos.
Mesmo entre Exu e o diabo dos cristãos, todas as evidências apontam para uma
origem localizada na África
11
sobre esta representação.
Foi através deste sistema de analogias que a umbanda foi e é constituída de
um simbolismo único e é através do símbolo que o homem diferencia o sagrado e o
profano, o material do imaterial.
Eliade (1996, p. 20 e segs.) demonstra que nas sociedades arcaicas ou
tradicionais os símbolos surgem através de uma experiência original com o Sagrado.
Tudo recebe uma qualidade específica que diferencia um símbolo de outro. As
imagens em si o carregam necessariamente um único significado, mas através
de um ritual de sacralização pode-se atribuir-lhe um significado ímpar. Assim se
caracterizam os assentamentos de Exu.
Segundo Rocher (1971) o símbolo é qualquer representação de uma
realidade para outra. Sua característica é tomar emprestada unidades significativas
de um sistema constituído, submetendo-as a uma nova organização. Para tornar
uma pedra laterita parte do assentamento de Exu (tanto Exu-egún quanto para
qualidades de Exu-orixá), será necessário utilizar elementos do reino animal, mineral
e vegetal que carregam um significado pré-estabelecido, transferindo os mesmos
para a pedra, que passa então a apresentar as qualidades necessárias para se
tornar um assentamento de Exu (representativo e diretamente ligado a tal Exu).
11
Voltaremos a este tópico no capítulo referente à identificação Exu-diabo.
23
23
Um símbolo pode ter várias significações dentro de uma mesma sociedade e
estas significações vão depender em grande parte do que Geertz (1989, p. 143 e
segs.) chamou de “Ethos”, que consiste numa gama de características valorativas de
uma sociedade. “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida,
seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele
mesmo e ao seu mundo que a vida reflete” (GEERTZ, 1989, p. 143).
Juntamente com o ethos atua a “Visão de Mundo” que “é o quadro que
elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza,
de si mesmo, da sociedade (...) e contém suas idéias mais abrangentes sobre a
ordem” (GEERTZ, 1989, p.144). É a representação do ethos e da visão de mundo
que funcionam como um filtro para aquilo que é expressão autêntica ou não de um
povo específico.
Quando o seguidor da umbanda atribui significado a uma imagem ou objeto
(no caso das imagens dos exus encontrados nas Floras umbandistas espalhadas
por todo o Brasil), ele a está representando como um símbolo, e o faz segundo seu
ethos e visão de mundo característicos (que no Brasil, durante culos, derivou do
catolicismo romano).
Toda esta atribuição de significado obedece a um caráter mítico presente e
revivido periodicamente através dos ritos. O rito pode ser uma prática individual ou
coletiva e geralmente remete a um mito para justificá-lo. “O rito é uma ação seguida
de conseqüências reais; é talvez uma espécie de linguagem...” (CAZENEUVE, sd, p.
8).
O rito carrega em si significado (aspectos valorativos) que transcende os
significados inerentes ao mundo cotidiano, é também o significado que o diferencia
do simples ‘ato de fazer’, pois o fazer cotidiano (costume) também possui função e
24
24
sentido específicos, por exemplo, o ato de vestir determinada roupa não é um ritual
se atende somente à necessidade de se vestir (CAZENEUVE, sd, p. 12). Uma
cerimônia religiosa é um conjunto de ritos que relembram um episódio mitológico
(rito comemorativo), e nela contém toda a gama de rituais elementares (ritos de
controle a saber: louvações, tabus, purificações, sacrifícios, entre outros) que o
compõe.
Os ritos podem sofrer mudanças através do tempo, seja por mudanças
radicais de prisma religioso (como no caso das revoluções religiosas), ou por lentos
e mesmo imperceptíveis processos que dependem de uma lenta transformação do
ethos e da visão de mundo de quem as pratica, mas essas mudanças não
descaracterizam o rito como tal, sendo sua ‘rigidez’ justamente o que permite o seu
estudo pelo observador treinado (etnólogo, antropólogo, sociólogo, etc).
É justamente nos ritos que vão ser encontradas as principais diferenciações
do culto original de Exu na África e as formas como são executadas (quando o são)
na umbanda
12
.
Para Rivière (1997, pp. 80 e segs.), a estrutura dos ritos obedece a uma
gama de valores intrínsecos e transversalizados na vida cotidiana, pois servem
como legitimadores da ordem estabelecida pelo Sagrado e conhecido através dos
mitos, autenticando até mesmo aspectos temporais relacionando o tempo mítico
com o tempo social.
Uma das funções principais do rito é manter as relações sociais através de
hierarquias e “papéis” bem definidos, além de estimular a comunicação e
sistematizar as funções a serem exercidas. O rito se estabelece como troca entre os
homens e os Orixás, que através, por exemplo, dos ritos de passagem (iniciação e
12
Retornaremos novamente a este assunto mais adiante quando tratarmos das mudanças nos
símbolos e ritos de Exu.
25
25
obrigações de um, três, sete anos, por exemplo), eleva o status social do iniciado,
acarretando em uma mudança de cargo e levando-o a ter novas e mais atribuições
(RIVIÈRE, 1997, p. 80).
As reconfigurações dos mitos e ritos referentes a Exu dentro da umbanda,
obedecem a um processo social intenso. Da África ao Brasil, mais do que uma
mudança de localidade, mudou-se também os sistemas sociais dos africanos. Estes
deixaram de se relacionar pelo contato social
13
e passaram a fazê-lo (com o mundo
e o outro) através do estabelecimento de uma divisão social do trabalho
caracterizado pelo sistema escravagista que inexistia na África. Esta mudança é
mais abrupta do que se pensa a princípio, pois os africanos estavam distantes de
configurar na África os sistemas de trabalho servil característico escravidão.
Após a diáspora, suas relações étnicas se perderam, bem como seus
sistemas sociais e no Brasil, além de terem de se adaptar ao sistema servil de
trabalho, ainda tiveram que restabelecer o intercâmbio com os negros provenientes
das mesmas regiões. Mas à medida que o século XX surge e avança, a
modernidade aparece e contribui ainda mais com este distanciamento.
Na década de 1950, uma modernidade tardia e periférica impulsionou o
desenvolvimento das cidades brasileiras, que por sua vez buscavam mão de obra
para o seu crescimento, aumentando assim a migração do campo para as cidades,
culminando no aumento das periferias e consequentemente no aumento da pobreza
e da exclusão social. Dentre os que vinham para as cidades, estavam os negros,
atraídos pelas promessas de oportunidades e prosperidade fácil.
13
Apesar de já existir na África um intrincado sistema de comércio baseado nas feiras realizadas em
várias localidades do território yorubá, entre outros. E o mais interessante é notar que mesmo sendo
uma sociedade arcaica, o sistema de lucros não só existia como legitimava uma série de relações
sociais, mas por isso tornava a sociedade menos tradicional (VERGER & BASTIDE, 1992, p. 122-
159).
26
26
Na mesma década de 1950, Bastide (1985, p. 210-215) identificou a
umbanda, até então chamada de ‘macumba’
14
, e a facilidade com que se integrou as
grandes metrópoles do sudeste, onde os ideais religiosos da umbanda se
identificavam com vários elementos do campo religioso que se abria para seus
seguidores e sacerdotes. É neste contexto que a umbanda cresce e se fortalece,
estabelecendo com muita facilidade nestas periferias por se constituir em um culto
com mais qualidades urbanas do que rurais, adaptando-se a um campo religioso em
expansão
15
.
Para a análise desta expansão é preciso avaliar as estruturas e funções das
organizações religiosas. O’Dea (1969) afirma que existem dois tipos principais de
organizações religiosas, uma pertencente às sociedades arcaicas e outra
pertencente às sociedades urbanas modernas. A diferença básica consiste no
sistema familiar e comunitário relacionado às sociedades arcaicas em contraposição
ao caráter impessoal da sociedade moderna.
Esta dicotomia se torna evidente quando analisamos comparativamente o
culto aos orixás entre os yorubás, em seus vilarejos, seus sacerdotes e o cotidiano
de suas atividades caracterizadas pela transmissão de conhecimento conhecida
por tradição oral, na qual os mais velhos passam os conhecimentos de culto aos
mais novos – em relação à moderna umbanda, com seus cursos de iniciação,
faculdade de teologia umbandista, colégios teológicos de umbanda sagrada, que
ensinam dentre outras coisas, a como fazer um assentamento de Exu e cultuá-lo
através de rituais, etc.
14
Macumba: nome genérico usado na primeira metade do século XX como sinônimo de cultos de
origem afro. Atualmente tem um caráter pejorativo, não que não tivesse antes, mas mais acentuado
tanto para se referir as religiões afro, quanto para se referir de modo genérico aos trabalhos
realizados dentro dessas religiões. Etimologicamente o termo macumba se refere a um pequeno
instrumento de percussão utilizado durante os rituais para marcar o ritmo dos toques.
15
Sobre os elementos deste campo religioso em expansão vide o capítulo 02 desta dissertação.
27
27
O processo de se fazer conhecer o corpo moral destes dois modelos de
instituições religiosas fica a cabo do corpo de sacerdotes (Babalorixás, Iyalorixás e
seus congregados), este grupo “tem a ver diretamente com a racionalização da
religião e deriva o princípio de sua legitimidade de uma teologia erigida em dogma,
cuja validade e perpetuação ele garante” (BOURDIEU, 1998, p. 38).
É justamente na racionalização da umbanda através das várias tentativas de
sistematizar sua doutrina e teologia, que o culto a Exu, compreendendo seus mitos,
símbolos e ritos, sofrem as maiores ressignificações.
1.2 – UMBANDA
1.2.1 – O QUE É UMBANDA?
A umbanda é uma religião popular tipicamente brasileira, que apresenta um
caráter universalista que engloba principalmente em seu corpo doutrinário cinco
influências: africana, católica, espírita, indígena e orientalista (VERGER, 1999[a], p.
193).
Ela se caracteriza por seu caráter mediúnico, mas é erroneamente
considerada a única expressão religiosa genuinamente brasileira. A manifestação de
uma religiosidade popular com elementos de possessão mediúnica com “entidades”
de índios, caboclos, negros e ‘mestres’ é bem mais antiga do que os idos de 1908 e
as manifestações de Zélio. no século 19, Nina Rodrigues identificou fenômenos
28
28
mediúnicos com a presença de outras entidades além das do panteão africano no
nordeste brasileiro (Catimbó, entre outros), e no Rio de Janeiro, João do Rio estudou
a ‘macumba’ e suas diversas manifestações (BASTIDE, 1978, pp. 64 e segs.; 1983,
pp. 159 e segs. & DO RIO, 1976, pp. 13 e segs).
Para Freitas e Pinto (1970, pp. 73-76), a umbanda se enquadra como religião
porque reúne os elementos necessários para tal: a) a idéia do sagrado, através das
manifestações dos orixás, guias e demais entidades de umbanda; b) a ocorrência de
magias e milagres, a partir dos relatos de cura e da realização de trabalhos gicos
pelas entidades e sacerdotes; c) a crença em uma vida futura, pois acredita na
imortalidade do espírito e na reencarnação; d) a prática de cerimônias e rituais em
dias específicos de atendimento público e uma seqüência de festas religiosas que
seguem um calendário próprio e, e) uma explicação do universo através de uma
teogonia própria.
Para os trabalhadores de umbanda (médiuns e sacerdotes) a religião se
caracteriza por se fundamentar em três pilares: amor, fé e caridade. É importante
ressaltar que amor, e caridade também são pilares do espiritismo, que no Brasil
ficou mais conhecido com o nome de Kardecismo.
O cerne da prática umbandista é o trabalho público de consultas abertas a
qualquer pessoa em que os médiuns incorporam os diversos guias espirituais e
ministram passes, mas além dos passes, são dados conselhos, ensinados banhos
e/ou defumações, são preparados remédios para os casos de doença e feitas
orações e benzições. A umbanda também tem a premissa de desmanchar os
trabalhos de magia negra eventualmente feitos contra os consulentes
16
nos terreiros
de quimbanda
17
.
16
Esta característica tem implicações para o tema deste trabalho, pois na imensa maioria das vezes
os trabalhos de magia negra são feito em terreiros de quimbanda sob a égide de exus e pombagiras,
29
29
A umbanda é caracteristicamente um religião voltada a magia. A magia é para
a umbanda o instrumento direto de atuação do sagrado na solução dos mais
diversos aspectos da vida de um indivíduo. O uso constante de ervas medicinais e
com efeitos terapêuticos se faz presente em quase todos os trabalhos e servem para
os mais diversos fins: desde curas espirituais, através de banhos de descarrego
(limpeza de energias deletérias), banhos de força (para proteção) até as
defumações com as mesmas finalidades. A umbanda também faz constante uso de
velas, flores, frutos, minerais, sementes e raízes em seus trabalhos.
Apesar das diversas correntes de pensamento umbandista que surgiram
desde sua fundação oficial em 1908, alguns pontos em comum podem ser
apresentados: a) a umbanda é monoteísta
18
; b) Oxalá é o orisupremo abaixo de
Deus (muitas vezes sendo sincretizado com Jesus Cristo); c) As principais entidades
guias são os pretos-velhos, caboclos e crianças (erês), podendo existir mais
correntes espirituais como os povos baianos e ciganos, por exemplo, mas isso vai
depender de terreiro para terreiro; d) o uso da cor branca por parte do corpo
mediúnico representando paz, pureza e harmonia, qualidades atribuídas a Oxalá; e)
as defumações no início dos trabalhos mediúnicos para a limpeza espiritual dos
consulentes e médiuns; f) o uso de cânticos (pontos cantados) entoados pela
assistência para chamar os guias e homenagear os orixás; g) a gratuidade dos
trabalhos de atendimento ao público com consultas aos guias; e h) a umbanda
trabalha com 7 linhas comandadas por sete orixás principais.
estes já trabalhando completamente fora dos preceitos umbandistas de amor, fé e caridade e longe
da noção “kardecista” de que seriam espíritos em “evolução” como preconiza o espiritismo.
17
Quimbanda é um termo de origem bantu que pode designar, entre vários significados, o de
sacerdote, curandeiro, feiticeiro, etc. No Brasil o termo passou a designar a “outra face da moeda”,
onde o culto aos exus e pombagiras acontece livre das premissas cristãs de amor e caridade, que
ajudaram a formar o pensamento umbandista.
18
Onde Deus é comumente designado de Olorum (corruptela de Olóòrun) ou NZambi (nome de
origem Bantu para designar a divindade suprema).
30
30
A classificação destes orixás vai depender da corrente de pensamento
seguida pelo chefe de terreiro. Para DellaMonica (1993, p. 37), por exemplo, os
orixás das 7 linhas são: Oxalá, Ogum, Oxossi, Xangô, Yemanjá, Obaluaiê e Ibeji.
Freitas e Pinto (1970, pp. 103-104) subdividem da seguinte forma: Oxalá, Yemanjá,
Ogum, Oxossi, Xangô, Oxum e Omolu. E assim sucessivamente... Mas é importante
ressaltar que na maioria das casas de umbanda, cinco dos orixás serão sempre os
mesmos: Oxalá, Ogum, Oxossi, Xangô e Yemanjá.
Além dos guias já citados (pretos-velhos, caboclos, crianças), existem os
povos baianos, marinheiros, jangadeiros, boiadeiros, ciganos, encantados, além das
correntes do oriente, correntes africanas e correntes indianas. A quantidade de
espíritos que podem descer nos trabalhos de umbanda representa bem as
subdivisões das linhas. Cada linha tem 7 falanges e cada falange tem 7 sub-
falanges, e cada sub-falange tem mais 7 bandas e cada banda tem mais 7 legiões e
em cada legião haverão mais 7 sub-legiões e em cada sub-legião haverão mais 7
povos
19
(DELLAMONICA, 1993, p. 38).
1.2.2 – O SURGIMENTO DA UMBANDA
“Em 1908, no estado do Rio de Janeiro, município de Neves perto de
Niterói, lio Fernandino de Morais, com 17 anos, foi atacado por uma
paralisia que os médicos não sabiam diagnosticar e muitos menos fazer a
cura. Após alguns dias, Zélio levantou da cama e disse: Amanhã estarei
curado” e no outro dia ele voltou a andar normalmente.” (SAIDENBERG,
1978[a], pp. 34-35).
19
As linhas, falanges, sub-falanges, bandas, legiões, sub-legiões e povos refere-se a uma
classificação hierárquica onde milhares de entidades trabalham, buscando sempre a evolução de um
estágio para outro.
31
31
Assim foi, segundo a versão oficial para o surgimento da umbanda, a primeira
manifestação mediúnica de Zélio Fernandino de Morais, considerado pela maioria
dos seguidores da umbanda, como o seu fundador e principal codificador da
mensagem de fé umbandista.
O tráfico de escravos trouxe ao Brasil uma variedade de africanos que tinham
em seus países de origem uma especificidade étnica e religiosa ímpar (VERGER,
1999[b], pp. 19-23 & PRANDI, 2000[b], pp. 52-55). No Brasil estes africanos foram
obrigados num primeiro momento a se aglutinar a qualquer grupo étnico de origem
africana para trabalharem todos juntos como escravos. Esta experiência tornou
aqueles que antes, em terras africanas, eram na maioria das vezes inimigos, em
amigos e companheiros na saudade de sua terra e de seus costumes. As etnias
foram se misturando e as peculiaridades de cada culto, tal qual era praticado na
África, foram se mesclando e deram origem, por exemplo, ao que chamamos hoje
de Candomblé de Caboclo das nações de Angola e Congo (ambas manifestações
Bantu com influência de grupos Jejês e Nagôs) (PRANDI, 2000[b], pp. 55-60).
Nas fazendas, os negros eram obrigados a passar por uma catequese
forçada para se converterem em cristãos católicos; eles eram batizados e adotavam
nomes portugueses. Este contato forçado com o catolicismo resultou em uma forte
tendência que ainda observamos em muitos terreiros afro: a identificação de
divindades africanas com santos católicos (BASTIDE, 1983, pp. 159-192).
Os negros alforriados, ou aqueles que conseguiam fugir para o meio das
matas, em muitos casos, travaram contato com índios nativos que faziam uso de
uma erva chamada jurema, uma planta que estimulava o êxtase. Facilmente, os
negros, acostumados aos cultos com manifestações de transe, foram apreendendo
os ensinamentos desses índios e posteriormente aos “encantados” (espíritos da
32
32
floresta cultuados pelos índios), foram anexadas entidades chamadas de “mestres”
(basicamente, antigos mestres negros já falecidos do culto) da religião negra e
também elementos do catolicismo (que também havia sido introduzido aos índios
séculos atrás). A esta “mistura” de influências com preponderância do culto indígena
à jurema, é dado o nome de Catimbó (CASCUDO, 1972, pp. 104-105 & MORAIS,
1980, pp. 11-13).
No final do século XIX, imigrantes europeus trouxeram ao Brasil uma nova
religião que se baseava nas manifestações mediúnicas: o espiritismo. Surgida na
França, e tendo como principal líder o educador Hippolyte Léon-Denizard Rivail, o
Allan Kardec, essa doutrina encontrou espaço entre os intelectuais da época e
ganhou respaldo por apregoar a caridade, a ética e a moral cristãs. Muitos destes
conceitos, incluindo uma diferenciação de bem e mal estão hoje presentes na
umbanda (BANDEIRA, 1972, pp. 34-39).
Foi justamente no contexto de um Centro Espírita de Niterói, no então estado
da Guanabara, que surgiu oficialmente a umbanda. Segue abaixo a história mais
conhecida e divulgada sobre o surgimento da mesma.
Os estranhos acontecimentos ocorridos com o jovem Zélio Fenandino de
Morais (1891-1975), relatados, não foram explicados pela ciência e nem pela
igreja católica (seus tios eram padres) nos dias que o sucederam. Um amigo da
família o levou então para assistir uma sessão espírita na Federação Espírita de
Niterói no dia 15 de novembro de 1908. Zélio foi convidado a assumir um lugar na
mesa dos trabalhos. Pouco tempo após se sentar o jovem foi acometido pela mesma
voz que falou por ele no episódio da paralisia e contrariando a norma de que os
componentes da mesa não podiam se levantar, levantou-se e disse: Aqui está
33
33
faltando uma flor!”
20
, e retirou-se da sala voltando com uma rosa que colocou no
centro da mesa.
Houve um inevitável rebuliço entre os componentes da mesa e da assistência
e algumas manifestações mediúnicas começaram a ocorrer com outros membros da
mesa, também médiuns. As entidades manifestantes se diziam espíritos de antigos
negros escravos e de índios e caboclos. Os espíritos foram então convidados a se
retirar pelo dirigente da mesa visto que eram espíritos atrasados. Zélio, tomado
ainda pela mesma voz, perguntou aos dirigentes por que aquelas entidades não
poderiam trabalhar ali.
Um dos componentes da mesa respondeu a ele Por que o irmão fala
nestes termos, pretendendo que esta mesa aceite a manifestação de espíritos que,
pelo grau de cultura que tiveram, quando encarnados, são claramente atrasados? E
qual é o seu nome, irmão?”. Ao que Zélio, tomado pela entidade, disse: Se
julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios, devo dizer que amanhã
estarei em casa deste aparelho (o médium, Zélio), para dar início a um culto em que
esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem, e, assim, cumprir a
missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos
humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos,
encarnados e desencarnados. E, se querem saber o meu nome, que seja este:
Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim”.
O diálogo continuou: “ – Julga o irmão que alguém irá assistir ao seu culto?”
perguntou o mesmo membro da mesa que havia iniciado o diálogo, ao que o
20
As citações entre aspas (“”) das falas são dos depoimentos dados por Zélio e outros que estavam
presentes naquela reunião à revista Seleções de Umbanda em 1975, e o Jornal Giras de Umbanda
de 1977 e citadas em O Surgimento da Umbanda em Nosso País, artigo publicado na revista Planeta
(pág 34 à 38) em 1978 (SAIDENBERG, 1978[a], pp. 34-38).
34
34
Caboclo da Sete Encruzilhadas respondeu: Cada colina de Niterói atuará como
porta voz, anunciando o culto que amanhã iniciarei!”.
Segue o depoimento de Zélio sobre o desenrolar do dia 16:
– Minha família estava apavorada. Eu mesmo não sabia explicar o que se
passava comigo. Surpreendia-me haver dialogado com aqueles austeros
senhores de cabeça branca, em volta de uma mesa onde se praticava um
trabalho para mim desconhecido. Como poderia, aos dezessete anos,
organizar um culto? No entanto, eu mesmo falara, sem saber o que dizia e
por que dizia. Era uma sensação estranha: uma força superior que me
impelia a fazer e a dizer o que nem sequer passava pelo meu pensamento.
E no dia seguinte, em casa de minha família, na rua Floriano Peixoto, 30,
em Neves, ao se aproximar à hora marcada 20 horas se reuniam os
membros da Federação Espírita, seguramente para comprovar a
veracidade do que fora declarado na véspera; os parentes mais chegados,
amigos e vizinhos e, do lado de fora, grande número de desconhecidos.
Às 20 horas, (continua Zélio em seu relato) manifestou-se o Caboclo das
Sete Encruzilhadas. Declarou que se iniciava, naquele momento, um novo
culto em que os espíritos dos velhos africanos, que haviam servido como
escravos e que, desencarnados, não encontravam campo de ação nos
remanescentes das seitas negras, que trabalhavam somente com os
orixás, e os índios nativos de nossa terra poderiam trabalhar em benefício
de seus irmãos encarnados, qualquer que fosse a cor, a raça, o credo e a
condição social. (SAIDENBERGE, 1978[a], pp. 35-36)”
O Caboclo estabeleceu as normas do culto que se iniciava naquele dia:
sessões (assim seriam chamadas às reuniões mediúnicas de umbanda) realizadas
preferivelmente à noite, atendimento ao público gratuitamente, e o uniforme oficial
seria o branco. Ao terreiro que primeiro fundou deu o nome de Nossa Senhora da
Piedade, e a prerrogativa principal das atividades seria a prática da caridade, no
sentido de amor fraterno, que teria por base o Evangelho de Cristo, e como mestre
supremo Jesus (indicativo da identificação existente em sua origem, tanto com
crenças católicas, quanto com a base caritativa cristã apregoada pelo Espiritismo).
Sobre o nome Umbanda o dadas várias explicações sobre seu surgimento,
segundo uma dessas versões, este nome teria sido dado pelo próprio Caboclo das
Sete Encruzilhadas durante o desenrolar da primeira sessão em casa de Zélio
(SAIDENBERG, 1978, p. 36). Etimologicamente o termo umbanda é ponto de
discussão entre os autores. Alguns dirão ser um termo de origem bantu, mas de
significado amplo, podendo ser “sacerdote”, “feiticeiro”, “lugar de ritual”, ou mesmo
35
35
“terra” ou “linha da terra” (FREITAS & PINTO, 1970, p. 67). Outros afirmam ser um
termo de origem sânscrita e que originalmente seria escrito Aumbhanda: “Deus ao
nosso lado” (SAIDENBERG, 1978, p. 36).
Explicada as normas do culto e estabelecendo o termo para designá-la
[umbanda], o Caboclo passou a parte prática do trabalho e naquela noite, muitas
curas foram feitas em diversos tipos de enfermos. Antes do término da sessão,
manifestou-se um preto-velho, Pai Antônio, que vinha completar as curas. Nos dias
seguintes, verdadeiras romarias se formaram na rua de Zélio para poder receber a
cura para seus males.
Dez anos se passaram antes que Zélio, inspirado pelo Caboclo das Sete
Encruzilhadas desse início a criação de 07 (sete) templos que seriam o núcleo na
qual a religião se espalharia pelo Brasil e o culto se tornou popular em uma
velocidade espantosa. Até 1935, todos os sete templos são criados e em 1939, o
Caboclo determina a criação de uma Federação, com um conselho nacional
deliberativo para as questões referentes ao culto que seria a instituição que
congregaria todos os templos de umbanda que nascessem no país (FREITAS &
PINTO, 1970, pp. 177-183). Foi a partir de então que o nome ‘umbanda’ passou a
ser utilizado de modo mais abrangente para denominar os cultos de mediunidade
em que se manifestavam espíritos de antigos escravos, índios, crianças, povos de
rua (exus), entre outros já citados.
Em 1940, em um terreiro de umbanda no Rio de Janeiro, o Caboclo
Tupinambá promove outra revolução dentro da umbanda, “ordenou que se retirasse
a mesa do centro do salão. Assim deu espaço para os Exus se comunicarem com os
assistentes e consulentes, [...] em um ritual em que, após baixarem os Caboclos e
36
36
Pretos Velhos, baixariam também os Exus, antes de encerarem os trabalhos.”
(RONTON, 1989, p. 10)
Assim tem início oficial, as giras de Exu dentro da umbanda, gira esta antes
legada aos círculos de quimbanda, macumbas e candomblés de caboclos.
Das diversas influências religiosas e culturais sofridas pela umbanda,
algumas características podem ser facilmente identificadas: dos africanos vieram os
nomes, rituais e costumes (referentes aos orixás, por exemplo); dos índios, algumas
denominações e outros costumes (uso de determinadas ervas, e acesso a entidades
tipicamente indígenas, como os ‘encantados das florestas’, por exemplo); dos
espíritas, a doutrina filosófica moderna com seus conceitos de evolução espiritual,
moral, ética e a prática da caridade; do catolicismo, os santos, os sacramentos e
alguma coisa do ritual, como o uso comum de orações católicas tradicionais; dos
orientais, alguns conceitos e fundamentos teológicos (conceito de karma,
reencarnação, chacras, alguns símbolos como a mandala, etc).
Esta história a respeito do surgimento da umbanda vem se propagando
através dos anos nos terreiros de todo o Brasil e constitui um dos patrimônios mais
importantes da cultura afro-brasileira. Atualmente a umbanda caminha para uma
revalorização dos sistemas tradicionais que lhe deram origem, ao mesmo tempo que
sofre a influência do emparelhamento de outras práticas rituais e elementos de
ordem estética que não faziam, originariamente, parte de seu sistema simbólico e
que resulta em uma hipertrofia ritual de elementos no culto umbandista (PRANDI,
2000[a], pp. 83-88).
37
37
1.2.3 – AS LINHAS DE PENSAMENTO DENTRO DA UMBANDA
Apesar do grande número de freqüentadores, como visto na introdução
desta dissertação, alguns estados não têm uma federação para regulamentar o
funcionamento destes terreiros. Cada terreiro então passa a funcionar segundo seus
próprios critérios operacionais e seguindo diretrizes teológicas que podem variar em
tendência de terreiro para terreiro.
Os terreiros de umbanda não têm uma divisão de tarefas, com cargos
específicos que dependem de iniciação, e aprendizado prolongado, como no caso
do candomblé. Basicamente é o pai ou mãe de santo que responde tanto
teologicamente, quanto administrativamente pelo terreiro, assumindo também a
função de sacerdote, profeta e mago ao mesmo tempo, e as funções dentro do culto
podem ser praticadas pelos seguidores (médiuns ou não) de forma indistinta
ritualmente, obedecendo geralmente à preferência do dirigente do terreiro.
Os rituais são sistematizados e também obedecem às determinações
pessoais dos dirigentes dos terreiros que conforme suas preferências, optando pela
realização de alguns rituais em detrimento de outros; é o caso, por exemplo, do uso
do sacrifício ritual
21
, originalmente praticado pelos africanos e essencial no
candomblé, mas que não é obrigatório na umbanda.
Aliás, acreditar que existe uma umbanda é o mesmo que acreditar que
existe uma igreja evangélica e classificá-las de acordo com um dos vários
modelos específicos e depois generalizar para o todo.
21
O sacrifício com sangue animal é compreendido como um ritual de troca, onde o fluido vital
(portador de axé) é oferecido à divindade para que esta, utilizando-se deste axé, possa prover
felicidade, bons caminhos e realizações para os ofertantes do sacrifício.
38
38
Estas linhas de pensamento se referem às tentativas de sistematizar uma
doutrina única de umbanda que abarcasse todas as modalidades sob uma mesma
égide.
É importante enfatizarmos que anteriormente a época de Zélio, o nome
umbanda não existia oficialmente e muito menos era difundido, existiam as assim
chamadas macumbas em que se manifestavam as entidades que seriam
posteriormente agregadas ao complexo panteão umbandista (BASTIDE, 1983, pp.
193-200).
Nas demais linhas de pensamento a partir de Zélio encontramos:
A Umbanda Tradicional, fundada pelo caboclo das Sete Encruzilhadas na
faculdade mediúnica de Zélio Fernandino de Morais (já descrita anteriormente) e que
não trabalhava com Exu, aliás, desde a fundação da primeira tenda umbandista
“Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade” pelo Caboclo até os dias de hoje não se
fazem giras de Exu; mas outras tendas fundadas pelo Caboclo apresentavam as
giras de Exu desde o início, como, por exemplo, a Tenda São Jorge (REVISTA
ESPIRITUAL DE UMBANDA, 2005, 4, pág. 22-23). Outra característica
interessante e que reforça a informação sobre Exu é que sacrifício na “Tenda
Nossa Senhora da Piedade” para Ogum
22
.
A Umbanda Branca ou Kardecista com um cunho espírita muito acentuado.
São terreiros que apresentam uma tendência mais espírita em seus rituais,
dispensando muitas práticas tradicionais, como o uso dos tambores e das danças,
preferindo o silêncio, a oração e a realização de sessões de mesa branca. Nesse
22
http://www.revistaespiritualdeumbanda.com/rev_03/zilmeia05.jpg retirado em 19/07/2006
.
39
39
tipo de Umbanda não encontramos o cultro aos orixás, nem o trabalho dos exus e
pombagiras, ou a utilização de elementos como atabaques, fumo, imagens e
bebidas. Geralmente nessas umbandas, fazem o uso do Evangelho Segundo o
Espiritismo de Kardec, além de trabalhar somente com caboclos, pretos-velhos
entre outros mentores espirituais “espíritas”.
A Umbanda do Caboclo Mirim (Escola de Mirim) cuja história marca uma
tentativa de estabelecer mudanças doutrinárias e ritualísticas na condução dos
trabalhos de umbanda. Como na história de Zélio e do Caboclo das Sete
Encruzilhadas, a manifestação do Caboclo Mirim que deu origem a seu trabalho
doutrinário também nasceu dentro de um Centro Espírita, no caso com uma
verdadeira tradição espírita, visto que o médium do Caboclo Mirim, Benjamim
Gonçalves Figueiredo, fazia parte de uma conhecida família de grande importância
dentro do espiritismo. Vamos a sua história:
“No dia 12 de Março de 1920, o Médium incorporou, pela primeira vez, o
Caboclo Mirim, anunciando que aquela seria a última Sessão de Kardec e
que as próximas Sessões passariam a ser de Umbanda. Em uma de suas
mensagens ele disse que a partir daquele momento a TENDA ESPÍRITA
MIRIM seria reconhecida mundialmente e advertia que a mesma seria uma
Organização única no gênero em todo o Brasil, cujo método seria adotado
por outras Tendas, até mesmo em outros Estados da Federação.
Caboclo Mirim, Espírito Missionário, preparava então a antena receptiva
daquele que seria o intermediário do seu programa, de suas ordens e de
suas mensagens, ou seja, o seu dium, que preservaria a sua missão e
que cumpriria, religiosamente, a sua tarefa.
Aos 13 dias do Mês de Março do ano de 1924 foi fundada a Tenda Espírita
Mirim, uma Organização que já contou com mais de 50 Filias, contribuindo
de forma decisiva para o aprimoramento, crescimento e evolução da
Umbanda no Brasil.
Em 05 de outubro de 1952, foi fundado o PRIMADO DE UMBANDA, na
Cidade do Rio de Janeiro, como uma Organização Federativa Nacional de
caráter religioso e iniciático. O Primado de Umbanda foi também idealizado
pelo Caboclo Mirim e posto em prática pelo seu aparelho, o saudoso
médium Benjamim Figueiredo, o maior propagador e defensor da Umbanda
no Brasil, que introduziu pela primeira vez a Escola de Formação Iniciática
do ao Grau, usando a terminologia da língua Nheêngatú da nossa
Raça Raiz, a Raça Tupy, para identificar os respectivos graus de evolução
espiritual.” (retirado de http://www.tendaespiritamirim.com.br/ em
29/07/2006)
40
40
As características do trabalho doutrinário do Caboclo Mirim diziam respeito à
desafricanização dos trabalhos de umbanda (no uso da linguagem, uso do sacrifício
ritual com animais, recolhimentos, obrigações, camarinha), o enxugamento ritual e
da quantidade de apetrechos (roupas, indumentárias específicas das entidades, o
uso exagerado de guias no pescoço, o excesso de imagens no altar, etc), a
necessidade de constante estudo doutrinário (baseados em grande parte em duas
fontes de informação: a doutrina espírita e a Teosofia), a não realização de trabalhos
específicos somente de Exu., etc. Esta umbanda tem hoje o Primado de Umbanda
no Rio de Janeiro com um grande centro de divulgação da doutrina do Caboclo
Mirim, além de ser considerada por muitos como precursora da Umbanda Esotérica
A Umbanda Esotérica fundada por W. W. da Matta e Silva (1917-1988).
Chamada por eles de Aumbhanda. É a mais universalista das umbandas existentes
pois resgata fundamentos da cultura de todas as etnias do globo. A Umbanda
Esotérica desenvolve a tese de que todo conhecimento que rege o ritual e as
práticas, além das formas como os guias espirituais de umbanda se manifestam,
correspondiam a uma linguagem simbólica, oculta, mas passível de ser conhecida e
estudada. Havia então um aspecto exotérico e um esotérico na umbanda e o modo
de revelá-la era através do conhecimento das principais tradições religiosas do
mundo, entre elas a cabala, os vedas, etc.
Esta escola fundamentou o trabalho da umbanda também através de outras
tradições místicas e esotéricas como a Teosofia, a Astrologia, e em um instrumento
místico-esotérico chamado Arqueômetro, com o qual seria possível se chegar ao
significado oculto dos símbolos astrológicos, das combinações numerológicas, suas
relações com a cabala, relacionando-o também com o uso de determinadas cores.
41
41
Esta umbanda não faz sacrifícios animais e também rejeita outras
aproximações ritualísticas entre a umbanda e as tradições religiosas africanas. Para
a Umbanda Esotérica, as sete linhas de umbanda são compostas por: Oxalá, Ogum,
Oxossi, Xangô, Yemanjá, Yori e Yorimá. Yori e Yorimá, desconhecidos na África,
seriam as correntes espirituais que representariam a corrente das crianças (Yori)
como espíritos evoluídos que se esconderiam nas manifestações de crianças para
passar seus ensinamentos; e a corrente dos pretos-velhos, também chamados de
pai-velhos (Yorimá) como mestres ascencionados com missão de esclarecimento e
luz para toda a humanidade.
Esta escola encontra grande espaço nos meios umbandistas atuais e conta
hoje com uma derivação conhecida pelo nome de Umbanda Iniciática, que tem
como maior expoente atual Rivas Neto (Mestre Arhapiaga), fundador e atual diretor
geral da FTU Faculdade de Teologia Umbandista. Ambas têm grande influência
orientalista. Esta última faz grande uso de mântras e da utilização ritual e iniciática
com o sânscrito.
A Umbanda Mística, derivada da Umbanda Tradicional de Zélio e o Caboclo
das Sete Encruzilhadas, mas com grande influência do catolicismo popular e suas
tradições. A Umbanda Mística talvez seja a expressão umbandista mais difundida
pelas cidades de interior do Brasil a fora e também nas periferias das grandes
cidades. Na Umbanda Mística rituais de culto as formas com ritos e fundamentos
que se focalizam nas formas místicas de apresentação das entidades (índio, preto-
velho, criança) com adição de novas formas de folclore regional: baianos, malandros
cariocas, mineiros, boiadeiros, jangadeiros, marinheiros, ciganos, exus e
pombagiras. A Umbanda Mística não possui uma doutrina específica que a
diferencie de outros ramos da umbanda, estas diferenças vão se manifestar
42
42
principalmente na forma de executar os trabalhos pois seus cultos se baseiam na
utilização de muitos sacramentos da Igreja Católica (RONTON, 1989, pp. 07-14).
A Umbanda Sagrada desenvolvida por Rubens Saraceni, baseia-se nos
ensinamentos psicografados por ele através de entidades espirituais, como por
exemplo, o preto-velho Pai Benedito de Aruanda, entre outros. A Umbanda Sagrada
visa uma completa separação das teorias africanistas, espíritas, católicas e
esotéricas da umbanda, que segundo ele, tem uma teologia própria e muito bem
estruturada. Sua Doutrina e Teologia se aproximam muito de concepções
cientificistas para explicar a existência dos orixás, dos guias espirituais e das forças
da natureza, mas acaba se aproximando um pouco da tendência universalista da
umbanda.
O Omolokô, trazida para o Brasil por Tancredo da Silva Pinto. Omoloko é
uma palavra yorubá, que significa: Omo - “filho” e Oko “fazenda”, zona rural onde
esse culto, devido à intensa repressão policial que havia naquela época, era
realizado. No Omolocô tanto se manifestam entidades características da umbanda,
como se manisfestam os inkices (considerados a grosso modo como um
correspondente bantu para orixá).
Mas além do Omolocô, ainda podemos apontar uma tendência umbandista
que tenta se aproximar das tradições africanas. A chamada Umbanda Traçada,
vulgarmente conhecida como Umbandomblé, se caracteriza por praticar os rituais
do candomblé, fazendo também as giras de umbanda com todas as entidades deste
panteão, inclusive Exu.
Outras formas existem, mas não têm uma denominação apropriada. Se
diferenciam das outras formas de Umbanda por diversos aspectos peculiares, mas
43
43
como cada terreiro segue na maioria das vezes mais de uma tendência de
pensamento, fica impossibilitada sua classificação satisfatória.
44
44
CAPÍTULO 2
2.1 QUEM É EXU?
“Exu é o mensageiro dos outros Orixás, e sem ele nada se faz.”
(Pierre Verger, 1999[b], p. 119.)
“Tá chegando a meia-noite,
Tá chegando à madrugada,
Salve o povo de quimbanda,
Sem Exu não se faz nada.”
(Ponto cantado para Exu
de origem desconhecida;
muito popular em terreiros
de umbanda, quimbanda
e alguns de candomblé
– Pesquisa de Campo, 2005)
“Nada se faz sem Exu”
(Edson Carneiro, 1972, p. 49)
Estas citações são alguns exemplos de como Exu é tido como importante
dentro de terreiros de umbanda, quimbanda e candomblé espalhados pelo Brasil.
Apesar de ter papéis e significados distintos dentro de cada uma destas
manifestações religiosas, Exu, temido e adorado por muitos, é a expressão religiosa
e a esperança de solução dos problemas de muitos fiéis e freqüentadores de
terreiros em todo o país.
Sua significação é complexa, dependendo de sua origem e em qual religião
se manifesta, tem caráter de divindade, mensageiro, protetor, escravo de outras
divindades, demônio, espírito inferior e imperfeito.
Na tradição africana, Exu é o princípio dinâmico que permeia tudo, ou seja,
dinamiza tudo; Exu é aquele que permite as passagens (inclusive entre a terra e o
além), que permite as trocas simbólicas, que leva e traz as comunicações, pois sem
45
45
ele não há candomblé. Todo ritual, independente de qual for e para qual orixá é
dirigido, é precedido por uma oferenda para Exu, também chamada de despacho.
No jogo oracular dos búzios, é Exu quem leva as perguntas e quem traz as
respostas, podendo ser ele mesmo quem responde. É comum se dizer nos
candomblés que se o Exu da casa estiver de costas para o terreiro, este não
prospera.
Os Exus e pombagiras
23
, geralmente denominados na umbanda “povos de
rua”, são utilizados como agentes mágicos de atuação em diversos assuntos do
mundo material: dinheiro, relacionamentos, negócios de qualquer natureza,
vinganças, trabalhos de ódio, saúde, prosperidade, etc.
Esses “povos de rua”, no caso da umbanda, são espíritos (egún) que já
estiveram encarnados e que, quando vivos, eram marginalizados e segregados pela
sociedade abastada, mas que transitavam com facilidade na boemia e em seus
meandros, onde entraram em contato com a essência de muitas pessoas e diversos
estilos de vida. Seria justamente por conhecer as falhas humanas, seus vícios e
virtudes é que quando falecidos, esses espíritos se juntam às “correntes”
24
de Exu.
Em suas relações com os orixás dentro da umbanda, os Exus são tidos como
Guardiões de seus mistérios, as vezes confundidos com ‘escravo’ dos orixás e dos
guias espirituais (pretos-velhos, caboclos, etc) e funcionariam como verdadeiros
soldados protetores do terreiro e das pessoas a ele ligados. Na umbanda, os Exus
estarão sempre a esquerda, contrapondo a outra face da moeda: as correntes de
direita. Onde as de direita comandam as falanges e desmancham trabalhos
maléficos e os de esquerda podem tanto fazer trabalhos maléficos, quanto
23
Pombagira não fará parte de nossa análise por constituir vasto campo de discussão sobre o
sagrado feminino e seus arquétipos, além de todas as questões de gênero relacionadas à sua figura.
24
Representam uma categoria de espíritos que trabalham em uma vibração específica e que
obedecem a um mesmo líder.
46
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desmanchá-los. Mas vai depender sempre da denominação umbandista que o
mesmo se manifesta (se for o caso).
Os Exus são amorais, o são nem totalmente bons, nem totalmente maus,
podendo desde realizar várias curas, como realizar trabalhos prejudiciais a outras
pessoas. Essas características contribuíram com que os Exus fossem identificados
com o diabo dos cristãos, e é por isso que vemos nas lojas de artigos religiosos
especializados em umbanda aquelas imagens com chifres, rabos pontudos,
tridentes, dentes afiados, pés de bode e cabras. Os Exus são constantemente
confundidos com os kiumbas (espíritos inferiores que gostam de praticar o mal), que
segundo as estórias perpetuadas pelos terreiros, adquirem qualquer forma e são
mistificadores.
Hierarquicamente os Exus estão acima dos kiumbas e abaixo dos guias
espirituais e orixás de cada terreiro. Dentro da corrente de Exu, existem várias
subcorrentes que são classificadas pelos seus nomes: Exu Tranca-Ruas, Exu
Quebra-Galhos, Exu Pelintra, Exu Caveira, Exu do Lodo, Exu Veludo, e mais
uma infinidade de nomes. Cada uma destas subcorrentes contém uma infinidade de
espíritos que atendem pelo nome genérico de cada entidade. Isto explica o fato de
poder existir em um mesmo terreiro, dois ou mais Exus Tranca-Ruas ou Pelintras
incorporados.
Os trabalhos de culto a Exu dentro dos terreiros de umbanda o
caracterizados de duas maneiras: 1) como giras de Exu (trabalhos em que os exus
incorporam em seus ‘cavalos’) e 2) Pontos firmados, oferendas e despachos
(trabalhos em que os exus atuam invisivelmente, ou seja, sem a necessidade de
incorporação destas entidades).
47
47
2.2. MITOS, SÍMBOLOS E RITOS DE EXU – DA ÁFRICA AO BRASIL
O culto a Exu remonta desde antes do surgimento da umbanda em nosso
país, em meados de 1908. Sua origem se encontra na África, principalmente nos
territórios localizados em Benin e na Nigéria, lugares onde residem os povos de
língua yorubá e jejê, que o denominam de Legbá (VERGER, 1999[b], p. 119), apesar
de que nas regiões bantu (Angola, Congo, Moçambique, etc) exista também uma
divindade com estas características: Bonbonjira (que se transformou no Brasil em
entidade feminina denominada de Pomba-Gira). Com o tráfico de escravos,
estabelecido principalmente a partir do século XVI, vieram para o Brasil, mais
especificamente para a Bahia, muitos negros sudaneses, em sua maioria yorubás;
na bagagem, além da saudade, trouxeram também vários aspectos de sua cultura,
entre elas a religião de seus ancestrais (PRANDI, 2000[b], pp. 52-56).
Na África, Exu Elegbara, mais comumente chamado Exu, é divindade
essencial na cosmogonia da religião dos orixás. Divindade mensageira, representa
também o princípio dinâmico capaz de dar ordem ou trazer desordem ao mundo
(SANTOS, 1976, p. 130 e segs). Um mito conta que Exu, ao ver Xan(divindade
dos raios e trovões) tentar violentar Oxum (divindade das águas doces), impediu que
a união se desse pela violência, evitando assim que tempestades torrenciais se
precipitassem e destruíssem a terra e a ordem nela estabelecida; neste caso, Exu
apareceu como princípio regulador da ordem natural (JAGUM, 1999, pp. 84-85).
Entre os autores clássicos muita contradição sobre sua origem. Como
personagem histórica, os habitantes de Jebu Odé (Nigéria) acreditam ter sido Exu o
primeiro rei de Kêto (Alaketo), enquanto que os descendentes de Kêto na Bahia
48
48
difundem um mito no qual ele teria sido rei em Jebu Odé (PRANDI, 2001[a], p. 47;
VERGER, 1997, p. 76; 1999[b], p. 126), ou mesmo um dos companheiros de
Odudua em sua chegada a Ilé Ifé (Nigéria) (VERGER, 1997, p. 76).
Frobenius (1912, pág. 232, apud VERGER, 1999[b], pág. 122)
assiná-la que
em Ilé Ifé acredita-se que ele tenha surgido no leste, ao mesmo tempo em que no
leste fazem alusão a existência de duas divindades que se confundem: Exu
Elegbará ao norte, entre os yorubás e Legbá, divindade fálica ao sul, entre os fon.
Maupoil (1943, pág. 80, apud VERGER, 1999[b], pág. 122)
encontrou relatos que
afirmam que Legbá era um homem que se transformou em Vodum em Ijebu (antigo
Daomé). Em Ijebu, Epega (1931, pág. 21, apud VERGER, 1997[b], pág. 76)
encontrou informações de que Exu teria surgido em Ilé Ifé. Todas estas contradições
parecem apenas reforçar o caráter extremamente dinâmico e onipresente de Exu.
Sobre seus principais lugares de culto, Verger (1999[b], p. 122-137) aponta:
Woro, que Baudin (1884, pág. 44, apud VERGER, 1999[b], pág.122)
identificou
como a cidade que abriga seu principal templo; Larro, onde os irmãos Lander (1832,
pág. 144, apud VERGER, 1999[b], pág, 126)
identificaram e descreveram as
atividades de um sacerdote de Exu; Pobè, onde os sacerdotes de Exu são ligados a
diversos cultos e templos de outros Orixás; Òyó, onde Exu habita o mercado e lhe
são consagrados sacerdotes; Abéokuta, onde foram realizados os primeiros relatos
sobre Exu; Ondo, onde o culto a Exu é generalizado; Oxogbo, onde Exu é guardião
da cidade; Ouidah, onde foram realizadas as principais descrições históricas a
respeito de Legbá e muitas outras cidades e regiões da África onde culto aos
orixás e Voduns (VERGER, 1999[b], págs. 122-137).
A respeito das características icnográficas destas entidades, os primeiros
relatos etnográficos feitos na África se referem à Legbá. Pommegorge (1789, g.
49
49
201, apud VERGER, 1999[b], pág. 133) descreveu um assentamento de Legbá em
Ouidah (antigo Daomé) como sendo o de um deus Príapo com as características do
falo bem exageradas e desproporcionais e Duncan (1847, v. I, pág. 114, apud
VERGER, 1999[b], pág. 133)
o descreveu como sendo um montículo de argila com
formato que caricatura um homem de cócoras. As estátuas de Legbá apresentam
um caráter lascivo e erótico (chegando a ser cômicas), enquanto que as de Exu,
contém colares de contas, fileiras de búzios, cabaçinhas, a cabeça adornada com
chapéu pontudo (onde estaria escondido uma lâmina que lhe sai da cabeça) e
carregando um porrete em formato lico: ogó, instrumento mágico que lhe permite
atrair coisas localizadas a grandes distâncias e percorrer as mesmas em
pouquíssimo tempo, e com o qual faz gestos obscenos para as platéias presentes
nas festas e comemorações religiosas na qual toma parte no corpo de uma de suas
iaôs. (VERGER 1999[b], p. 127; 1997, p. 78).
Exu Elegbará tem seus assentamentos representados por montículos de terra
enfeitados com búzios que lembram os olhos, a boca e o nariz. Outra representação
muito comum é através da pedra laterita
25
, onde são depositadas suas oferendas.
Verger (1999[b], p. 127) não identificou entre os yorubás nenhum assentamento de
Exu que apresentasse o volumoso falo de Legbá.
Apesar das características fálicas de Legbá, Verger (1999[b], p. 127) rejeita a
idéia de que esta divindade seja responsável pela fecundidade e pela copulação;
para Verger, a presença do falo “é a afirmação de seu caráter truculento, violento,
desavergonhado e o desejo de chocar os bons costumes” (VERGER, 1999[b], p.
127).
25
Já descrito como assentamento em outra parte deste trabalho.
50
50
Tanto no Brasil como na África, as cores de Exu o o preto e o vermelho.
Seus assentamentos no Brasil são simbolizados pelo tridente de ferro enterrados em
pequenos montículos de terra e suas estátuas podem ser feitas de ferro, barro,
gesso, madeira, etc., mas na maioria das vezes, sua representação vai conter
algumas destas características: chifres, pés de bode ou cabra, dentes, unhas e
rabos pontudos, capas pretas e/ou vermelhas, tridentes e feições ferozes e traços
sombrios (características icnográficas que acabam reforçando a identificação de Exu
com o diabo dos cristãos da Idade Média).
Exu é dono do dendê, óleo extraído do dendezeiro e fundamental tanto para a
liturgia do candomblé, por ser portador e veículo poderoso de axé, como também
para a culinária afro-descendente (LODY, 1992, pp. 09-11). Exu também é ligado ao
fogo, que pertence ao Orixá Xangô; ligação esta que também pode ter contribuído
para associar Exu ao diabo dos cristãos (o elemento fogo associado ao inferno)
26
(ALMEIDA, 1987, p. 15).
No Brasil, sua primazia no candomblé é inegável, onde goza do direito de ser
o primeiro a receber as oferendas em todo e qualquer ritual ou “trabalho”, mesmo os
dirigidos a outras divindades. Esta primazia é legitimada por mitos perpetuados para
a manutenção da ordem e status quo da religião (ELIADE, 2000, p. 08), como por
exemplo, no mito em que cumpre o preceito de respeito e submissão, sendo o único
a usar na cabeça o ecodidé (pena de papagaio vermelho) na presença de
Olodumaré (o Deus supremo) e recebendo deste a primazia das homenagens
(PRANDI, 2001[b], pp. 42-44). Em outro mito, a fome de Exu, que causava o
desaparecimento de todos os alimentos da terra, foi aplacada por Orunmilá (orixá do
26
Retornaremos a esta análise mais adiante quando tratarmos especificamente da identificação Exu-
diabo.
51
51
oráculo de Ifá), quando este determinou que para haver harmonia e abundância
entre os homens Exu deveria comer em primeiro lugar (PRANDI, 2001[b], pp. 45-46).
No candomblé, seu status é de orixá mensageiro, como na África,
estabelecendo o contato dos homens com os outros orixás. Esta função está bem
estabelecida no jogo oracular dos Búzios, onde é Exu quem leva as perguntas e traz
as respostas, traduzindo-as, sendo às vezes, (como foi dito) ele próprio quem as
responde (PRANDI, 2001[a], p. 48). Mesmo no oráculo de Ifá (opelê-ifá), do qual o
jogo de búzios é uma variante mais simples, Exu aparece como o orixá que revela
os segredos da adivinhação para Ifá e posteriormente o revela também aos homens,
pois Exu é o princípio comunicador de tudo e de todos (BRAGA, 1988, pp. 46-49 &
PRANDI, 2001[b], pp. 60-61, 78-80).
Dono das entradas e passagens
27
, Exu têm seus assentamentos nas
entradas das casas e dos terreiros; na África, principalmente no Benin e na Nigéria,
Exu está na entrada das cidades, vilarejos, feiras, etc (VERGER, 1997, p. 76).
Bastide (1978, pp. 179-182) afirma que no Brasil, cada terreiro de candomblé têm
dois exus assentados, o primeiro deles de caráter extremamente arredio, agressivo
e virulento estaria assentado na entrada do Ilê Axé (terreiro), enquanto o segundo,
com características mais amenas, às vezes brincalhão, sedutor e cortês, em outras
sério e conselheiro, mas sempre vaidoso e orgulhoso de sua posição, chamado
muitas vezes de “compadre”
28
, está assentado na entrada do barracão onde são
realizadas as festas públicas. Sabe-se, entretanto, que qualquer terreiro de
candomblé pode apresentar mais de dois Exus assentados, podendo variar este
número de acordo com as qualidades de Exu presentes no terreiro. Exu também é o
27
. Atributo também recebido de Olofim (nome dado a Olodumaré pelos Lucumi – descendentes dos yorubás em
Cuba) em mito que Exu O cura e recebe as “entradas” e passagens (PRANDI, 2001[b], p. 53-54).
28
Denominação muito comum também em terreiros de umbanda e tem a conotação de “entidade de confiança”.
52
52
dono das encruzilhadas, atribuição e qualidade que recebeu de Oxalá (PRANDI,
2001[b], p. 40); qualidade esta que manteve na umbanda, sendo também o espaço
sagrado onde recebe suas oferendas e despachos.
Prandi (1996, pp. 67-72) afirma que a umbanda, influenciada pelas
concepções cristãs do catolicismo e do kardecismo, instituiu a divisão entre o bem e
o mal (mesmo que relativo) através da divisão de sua hierarquia espiritual em “linha
da direita” e “linha da esquerda”. A linha da direita é composta por entidades de luz
evoluídas do plano espiritual, como os caboclos e pretos-velhos e a linha da
esquerda é composta por Exus e Pomba-Giras, entidades atrasadas, sem luz e
amorais, que podem, devido ao seu grau de evolução, trabalhar tanto para o bem
(i.e. trabalhos de cura, desfazer feitiços) quanto para o mal (i.e. trabalhos de morte,
vingança e amarração), conforme seja o pedido (SAIDENBERG, 1978, pp. 54-58 &
ALMEIDA, 1987, p. 17).
Muitas atribuições de Exu passaram do candomblé para a umbanda, onde
seus “pontos” o “firmados”
29
nas entradas dos terreiros e também dos barracões,
os exus de umbanda passaram a ter características específicas de acordo com o
terreiro (mas sempre como egún), a história de vida de seus dirigentes, e o
sincretismo praticado em cada casa. Para Almeida (1987, pp. 16-17), os Exus atuais
se diferem da figura mítica de Exu trazida da África
30
e dos Exus das primeiras
décadas do culo XX
31
. Na umbanda atual, os Exus seriam entidades em
desenvolvimento espiritual e moral (SAIDENBERG, 1978, p. 57 & ALMEIDA, 1987,
p. 17). Para DellaMonica (1993, pp. 68-69) os Exus e Pomba-Giras de umbanda
29
Pontos firmados: desenhos feitos com giz ou pemba, de caráter cabalístico e muitas vezes mandálico, com a
presença de velas coloridas, copos e cuias com bebidas alcoólicas, água e infusões de ervas, e pedras que podem
representar o oté onde está o “axé, força” da entidade.
30
A propósito dos outros Orixás, e de acordo com a concepção dualista ocidental, podem fazer tanto coisas boas
quanto coisas más.
31
Figuras inteiramente maléficas identificadas com o diabo dos cristãos.
53
53
não têm uma forma específica, podendo adquirir qualquer forma de acordo com sua
vontade. Alguns dos Exus e Pomba-Giras citados por ela são: Exu Marabô, Exu
Quebra-Galhos, Exu da Capa Preta (todos ligados a Xangô); Exu Omulu (ligado ao
Orixá Omulu); Exu Caveira (ligado a Orunmilá), Exu Sete Encruzilhadas (ligado a
Oxalá), Exu Tranca-Ruas, Exu Tranca-Tudo, Exu Tira-Teimas, Exu Tronqueira
(ligados a Ogum); Exu Veludo (ligado a Oxossi); Exu Pedra Negra (ligado a
Tempo
32
); Exu Calunga (ligado a Oxum), Pomba-Gira Cigana (ligada a Oxum);
Pomba-Gira da Praia (ligada a Yemanjá), Pomba-Gira Maria Padilha (ligada a Nanã)
entre tantos outros Exus e Pomba-Giras (DELLAMONICA, 1993, pp. 77-80). Vale
lembrar que existe uma infinidade de Exus que são cultuados em diversos terreiros
de umbanda em todo o Brasil, e mesmo a lista de correlações entre os Exus e os
orixás a que estariam ligados vai depender sempre de terreiro para terreiro.
No candomblé cada Orixá tem seu peji (lugar onde se encontra o
assentamento), chamado de “casa”, em uma localização específica dentro do Ilê
Axé. Esses assentamentos podem ser públicos ou privativos aos iniciados, tendo
Exu (ou vários Exus do terreiro) também a sua casa, geralmente próxima à porta de
entrada do mesmo ou próximo a matas e passagens importantes. Alguns terreiros
de umbanda mantiveram esta tendência, principalmente no caso de Exu, que chega
a ter um barracão específico para a realização de suas giras e festas. Mas,
recentemente, tem-se observado que muitos terreiros de umbanda o realizam
mais as giras de Exu e em muitos casos, não os mantém nem mesmo como
entidades de “pontos firmados” protegendo seus terreiros. Em entrevista realizada
com Pedro Miranda, dirigente de um dos mais antigos e respeitáveis terreiros de
umbanda no Brasil, “Tenda Espírita São Jorge” fundada em 1936, este declarou:
32
Inkice bantu relacionado ao Orixá Irôco, ambos sendo divindades fitolátricas.
54
54
“... desde o início a Tenda São Jorge fez gira de Exu. [...] Nós temos alguns
segmentos religiosos respeitáveis dentro da Umbanda que não fazem gira
de Exu. Por exemplo, a Tenda Nossa Senhora da Piedade e o Centro
Espírita Caminheiros da Verdade. Nosso irmão João Carneiro dizia: Esse
negócio de que de que na Umbanda, sem exu não se faz nada, é uma
palhaçada’. [...] A tenda espírita Mirim, do Caboclo Mirim, [...] que deixou 43
filiais, era uma coisa espetacular e também não fazia gira de Exu.”
(REVISTA ESPIRITUAL DE UMBANDA, 2005, nº 4, pág. 22-23).
Mas apesar de também ser um fenômeno histórico, visto que segundo o
entrevistado, o primeiro terreiro de umbanda fundado em 1908 por Fernandino Zélio
de Morais, “Nossa Senhora da Piedade”, não praticava a gira de Exu, é também um
fenômeno novo, visto que em várias reportagens
33
(publicadas principalmente no
Jornal de Umbanda Sagrada e na Revista Espiritual de Umbanda) e sites e páginas
da web que tratam sobre o assunto, uma das perguntas repetidas a todos os
praticantes de umbanda é se realizam giras de Exu, e o que acham daqueles que
não a fazem ou deixaram de fazer.
O que aconteceu com a primazia mítica de Exu sobre os outros Orixás para o
recebimento de obrigações e oferendas? Os Exus deixaram de ter a função de
mensageiros? Os Exus desapareceram dos terreiros de umbanda ou foram
“remanejados” para outras funções devido a uma ressignificação de sua imagem e
personalidade? Seria por causa de sua identificação com o Diabo cristão? Será uma
resposta às denominações cristãs, mais recentemente as neopentecostais que
utilizam principalmente a figura de Exu para atacar as religiões afro e tentar agregar
novos adeptos convertidos ou temerosos de sofrerem os ataques de Exu? Ou
devido a uma tendência moderna (ou mesmo pós-moderna) de sistematizar uma
teologia e doutrina única para a umbanda, diferenciada do candomblé, onde esta
tendência a ressignificação é explicita, mas na qual é negado qualquer influência de
outras tradições?
33
Podem ser consultadas nos seguintes endereços eletrônicos:
www.jornaldeumbandasagrada.com.br e www.revistaespiritualdeumbanda.com.
55
55
Mas apesar dos avanços de pesquisa, estes aspectos atuais sobre Exu vêm
permanecendo obscuros por falta de estudos mais específicos sobre esta figura de
fundamental importância dentro dos cultos afro. No caso específico da
ressignificação ou a supressão (desaparecimento) da gira de culto a Exu dentro da
umbanda, derivada das tradicionais matrizes africanas, pode apresentar três
aspectos, relacionados acima nas três últimas perguntas, mas colocadas aqui como
hipóteses: a) Ser fruto da identificação com a imagem do diabo cristão, b) com a
moral apregoada pelo espiritismo com o qual a umbanda está ligada desde seu
nascimento, e c) por uma tendência a sistematizar uma teologia e doutrina
umbandista.
2.3 O QUE MUDOU?
2.3.1 EXU E AS PRINCIPAIS CORRENTES DE PENSAMENTO UMBANDISTAS
Enquanto na África seus mitos, citados em parte anteriormente, propagam
sua importância primordial, no Brasil e na umbanda ele é legado a ser ‘escravo’ de
outras divindades e entidades.
É fato consumado que a umbanda nasce oficialmente sem giras para Exu
na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Mas quando surgem oficialmente
dentro da umbanda nos anos 40 sob os auspícios do Caboclo Tupinambá, já surgem
com a principal das diferenças: Exu-orixá da África e do candomblé se
56
56
transformando em Exu-egún na umbanda brasileira. Mata-se a divindade Exu e num
processo de “morte natural”, Exu se transforma em egún, um espírito de morto.
Com a premissa de Exu, o orixá, ter se transformado em Exu, um egún, sua
importância e função são sistematicamente modificadas. No episódio do Caboclo
Tupinambá, já acontece uma mudança de premissa. Ao invés de vir antes das
outras entidades, eles vêm depois destas para trabalhar (RONTON, 1989 p. 10), o
que já demonstra claramente estar Exu sendo preterido em sua primazia.
Outra mudança evidente neste processo de ressignificação é a forma de
comunicação com Exu. Na África, tal qual nos candomblés mais tradicionais fala-se
com Exu ou com qualquer outro orixá somente através de oráculos: Opelê-Ifá,
cauris, búzios, obi, orobó, etc (BRAGA, 1988, pp. 75, 78-79, 95-97). Na umbanda, a
consulta para se falar com Exu passa a ser através da incorporação da entidade na
faculdade mediúnica de algum indivíduo que a tenha.
É interessante notar que apesar de Exu ter sofrido uma ressignificação tão
acentuada, algumas de suas características e domínios são mantidos na maioria das
casas de umbanda: as entradas, as encruzilhadas, as cores preto e vermelho e
mesmo a premissa de que Exu tanto pode fazer o bem quanto fazer o mal
34
. Este
último aspecto é evidente na dualidade apresentada neste ponto cantado:
“Exu que tem duas cabeças,
Ele faz sua gira com fé (2x)
Uma é Satanás dos Infernos
E a outra é de Jesus Naza
(Ponto de Exu. Pesquisa de Campo, 2005)
Exu é associado ao Diabo em seu aspecto maléfico e a Jesus em seu
aspecto de fazer o bem.
34
Que como dito anteriormente, é o único que pode servir como agente mágico na pratica do mal,
mas não sendo essencialmente mau, na verdade, sendo amoral, diferente da posição que os demais
orixás adotam na umbanda.
57
57
Na tentativa de responder as questões formuladas, principalmente no que
concerne a sistematização da teologia e da doutrina de umbanda e para que
possamos compreender com mais clareza estas modificações na imagem de Exu, se
faz necessário abordar as correntes de pensamento onde elas aconteceram. As
escolas analisadas atendem ao fato de apresentarem uma sistematização da
teologia e doutrina umbandistas e que no corpo de suas explicações abraçam a
figura de Exu. Estas escolas são: 1) Escola de Mirim do Caboclo Mirim; 2) Umbanda
Esotérica (Aumbhanda) de W. W. da Matta e Silva; 3) Umbanda Iniciática
(Ombhandhum) de Rivas Neto; 4) Umbanda Sagrada de Rubens Saraceni.
Ponto comum para estas escolas é que todas elas rejeitam a idéia de que a
figura de Exu está associada ao diabo dos cristãos.
A Umbanda da Escola de Mirim não trabalha fazendo giras específicas (com
dias e horários exclusivos) a Exu. Para eles Exu é um “agente mágico universal”,
entidade de ação, podendo ser ao mesmo tempo ‘neutro’, ‘positivo’ e ‘negativo’
(DECELSO, sd, p. 24 e segs.). Na Escola de Mirim, Exu é uma entidade tripolar, o
que justifica o uso do tridente, onde cada uma das ponterias representaria uma
polaridade; o que faz de Exu essencial em qualquer trabalho por sua capacidade de
transformar as energias do ambiente, atuando sempre sob a égide dos mestres
espirituais da umbanda a quem devem prestar contas.
Na umbanda do Caboclo Mirim “suas sessões de caridade sempre foram
muito produtivas, pois todos davam sua contribuição para alcançar o bem-estar e a
cura de seu semelhante: do encarnado ao desencarnado, do Caboclo ao Exu, todos
participavam simultaneamente do atendimento ao público, com discrição e perfeita
harmonia” (TEIXEIRA, sd,
retirado de: http://www.caboclopery.com.br/caboclo_mirim.htm em
29/07/2006
).
58
58
Na Umbanda Esotérica, Exu é o agente kármico responsável pelo
cumprimento da lei e da justiça. É ele quem executa a “lei do retorno”, ou seja, é ele
quem traz o positivo para quem faz o bem e o negativo para quem faz o mal
(MATTA E SILVA, 1997, p. 40 e segs.).
W. W. da Matta e Silva apresenta em “Umbanda de todos nós” um intrincado
sistema de identificação etiológica para explicar a origem da palavra Exu; o que em
última análise poderia explicar a própria origem de Exu dentro de seu sistema de
pensamento tido como esotérico:
“A palavra EXU, cremos, é corruptela ou correspondência fonética de
‘Yrschú”, que de 55 séculos para cá, vem encarnando o Princípio do Mal.
Yrschú [...] foi o nome do regente que comandou o ‘Schisma’ indiano, que
estremeceu o Mundo dessa época... A vibração malévola da palavra
Yrschú teve, logicamente, no espaço, seus afeiçoados, que encarnam nela
os princípios negativos...” (MATTA E SILVA, 2005, pp. 23-24)
Para W. W. da Matta e Silva, a umbanda, nos seus fundamentos espirituais, é
composta por Sete Planos da Lei, tanto nos seus aspectos positivos, quanto nos
seus aspectos negativos. Os aspectos positivos seriam relacionados ao
desenvolvimento e ordenação do mundo e estariam representados da seguinte
forma: Orixalá (A Essência Divina), Yemanjá (O poder oculto da palavra), Yori (O
poder do verbo), Xangô (O poder do conhecimento), Yorimá (O poder da palavra da
lei), Oxossi (O poder da vontade) e Ogum (O poder do pensamento criador)
(DELLAMONICA, 1993, pp. 83-86).
Em contrapartida os Sete Planos Negativos que correspondem aos Positivos
são todos chefiados por Exus e estão distribuídos da seguinte forma: Exu Sete
Encruzilhadas (corresponde à vibração de Orixalá), Exu Pomba-Gira (corresponde a
Yemanjá), Exu Tiriri (corresponde à vibração de Yori), Exu Gira-Mundo (corresponde
à vibração de Xangô), Exu Tranca-Ruas (corresponde à vibração de Ogum), Exu
59
59
Marabô (correspondem à vibração de Oxóssi) e Exu Pinga-Fogo (corresponde à
vibração de Yorimá) (MATTA E SILVA, 1997, pp. 40 e segs.).
Exu, portanto, dentro da Umbanda Esotérica, não pratica o mal porque é mau,
mas sim porque ele é o agente responsável pela execução do karma segundo o
merecimento das pessoas.
Na Umbanda Iniciática (Ombhandhum
)
, derivada da Esotérica, Exu é um
Arcano que guarda todos os segredos iniciáticos, sendo portanto o guardião dos
mistérios e segredos da Síntese Religiosa
35
. É Exu quem guarda os segredos das
forças sutis da natureza, ajuda a criar e renovar todas as forças dos reinos mineral,
vegetal e animal e dos elementos terra, fogo, ar e água, além de proteger os
segredos de outras dimensões da vida. Por conhecer todos estes segredos, é Exu
quem executa a Magia e a Justiça (NETO, 1993, pp. 15 e segs.).
Na Ombhandhum, Exu é uma entidade telúrica, apresentando aqui uma
dimensão tripolar; por estas características, Exu é usado nos trabalhos de limpeza e
descarga (NETO, 1993, pp. 15 e segs.). Novamente aqui não existe a perspectiva de
que Exu é mal, mas de que ele apenas faz retornar o mal a quem o faz, estando
ligado direta e exclusivamente, neste caso, a parcela passiva do karma (reação)
(NETO 1993, pp. 15 e segs.). Suas origens nesta modalidade de umbanda são
muito semelhantes à Esotérica, por isso não faremos menção a ela.
A Umbanda Sagrada de Rubens Saraceni faz uma diferenciação de Planos
Positivos e Negativos semelhante a Umbanda Esotérica, mas um ponto decisivo vai
diferenciar as duas doutrinas: a função de Exu. Enquanto na Umbanda Esotérica, o
Plano Positivo era contraposto pelo negativo através dos Exus, para Rubens
Saraceni (2005, pp. 25 e segs.), Exu não pertence ao Plano Negativo em si,
35
Filosofia de Rivas Neto que procura uma síntese única para todas as manifestações religiosas e segredos
iniciáticos, sendo Exu, portanto, o guardião desta síntese.
60
60
justamente por ser tripolar. A Função de Exu então, seria a de Guardião dos Planos
Negativos, que segundo Saraceni (1997, p. 240) não podem ser revelados aos
humanos, para que estes não atuem negativamente na vida das pessoas e nos
Planos Positivos.
Para Saraceni (1997, pp. 238-240), os Exus não são egúns, pois nunca
encarnaram na terra, sendo, portanto, uma espécie de “encantados”, pois
pertenceriam a outro plano da criação e estariam trabalhando como Exus para que
pudessem se “humanizar”
36
e poder então encarnar na Terra e começar seu ciclo de
encarnações para que possa evoluir.
Exu é um executor das leis divinas, tanto para o bem, quanto para o mal,
além de ser patrono da sexualidade masculina, tendo seu contra-ponto na figura de
Pomba-Gira (SARACENI, 2005, pp. 25 e segs.). Para Saraceni (1997, p. 240-241),
nem mesmo o nome Exu é apropriado para designar esta entidade e suas funções.
Para ele, o nome correto (que lhe foi revelado via psicografia) é Mehór Yê, que
significa, segundo ele, “senhor da potência e da virilidade” (SARACENI, 1997 p.
241).
Segue anexo (1) uma tabela de comparação entre os diferentes significados
de Exu na África e nas correntes umbandistas:
Vimos, portanto, nas explanações acima, que Exu, longe de ser aquela
entidade malévola apresentada a nós pelo imaginário coletivo de representação da
mesma, é uma entidade com importantes funções, todas elas relacionadas à
evolução e a proteção das leis divinas, à qual, em todos os exemplos acima, estão
subjugadas a ‘entidades mais evoluídas’.
36
Adquirir características humanas relativas a sentimentos, emoções, noções de ética, elevação
espiritual e moral, semelhante ao pensamento espírita de evolução.
61
61
A pergunta é: Por que ressignificá-lo? Por que é importante para a umbanda
que Exu não seja mais visto como uma entidade do mal, ou pior, sendo diretamente
e constantemente relacionada ao diabo?
62
62
CAPÍTULO 3
3.1 OS ELEMENTOS RELACIONADOS À RESSIGNIFICAÇÃO DE EXU
Levando em consideração que o fenômeno da ressignificação (identificado na
literatura) da imagem e função e Exu é mais evidente do que o da supressão
(desaparecimento) de seu culto, que mesmo quando acontece, está sempre
associado a ressignificação em si, partimos então na tentativa de evidenciar as
variáveis envolvidas na explicação do fenômeno.
Para tal faz-se necessário retornar as perguntas e hipóteses iniciais:
A primazia de Exu nas oferendas e demais trabalhos relacionados a umbanda
acabou? Vimos que sim, como apresentado no episódio amplamente
divulgado do caboclo Tupinambá e o início das giras a Exu na umbanda nos
anos de 1940 (vide páginas 37 e 58 desta dissertação).
Exu deixou de ter a função de mensageiros na umbanda? Sim, posto que o
mesmo passou a participar ao mesmo tempo dos trabalhos de outras
entidades e orixás dentro da umbanda, como visto na citação de Teixeira (sd)
referente ao trabalho mediúnico na Escola de Mirim (p. 60 desta dissertação).
Os exus desapareceram ou foram remanejados para outras funções? As
evidências apontaram para o fato de que passaram a ser ressignificados
37
(tanto em imagem quanto em função), pois mesmo quando suprimidos, assim
37
Afinal Exu é sempre mencionado nas principais correntes de pensamento dentro da umbanda.
63
63
foi feito devido a um processo de intensa modificação de seu significado ao
qual foi submetido ao longo da história da umbanda.
Como é evidente que a resposta a todas as perguntas acima são
transversalizadas pela questão da ressignificação da função e imagem de Exu
dentro do culto umbandista, torna-se necessário à verificação das possíveis
hipóteses e suas variáveis relacionadas, a saber:
A ressiginificação de Exu dentro da umbanda é fruto do processo de
identificação de Exu com o diabo dos cristãos;
Esta ressignificação é resposta aos constantes ataques cristãos, mais
recentemente de correntes evangélicas neopentecostais.
A ressignificação de Exu dentro da umbanda obedece a uma tendência
moderna de sistematizar a teologia e doutrina umbandista, geralmente
considerada tão difusa.
64
64
3.1.1 A IDENTIFICAÇÃO EXU-DIABO – ASPECTOS HISTÓRICOS E ATUAIS
Ao contrário do que comumente se pensa a identificação exu-diabo não
nasceu no Brasil, mas sim em terras africanas com os primeiros contatos dos
missionários católicos e protestantes com as tradições religiosas locais. Os irmãos
Lander (1832 apud VERGER, 1999[b], p. 126), identificaram que muitas das
opiniões contrárias e negativas dos próprios negros a respeito da figura de Exu,
inclusive considerando-o como um demônio, ocorriam também por influência
Islâmica que se expandia rapidamente entre as nações africanas.
Grosso modo, o culto a qualquer divindade apresentado pelos africanos,
independentemente de quais fossem as suas características para os fiéis locais,
foram tomados como o culto a divindades do mal (demônios, diabos, satã, etc.)
pelos europeus de modo geral (BOUWEN, 1858 apud VERGER, 1999[b], p. 134).
Quando não era essa a atitude dos brancos, eles consideravam mera superstição ou
fetiche sem sentido e de base ignorante.
As primeiras publicações referentes a Exu Elegbará na África
demonstravam a tendência a identificá-lo com o diabo dos cristãos por suas
características pouco convencionais em seus assentamentos públicos e em suas
manifestações extáticas no corpo de seus sacerdotes. Os mesmos irmãos Lander
descreveram o comportamento de um sacerdote tomado por Exu como “com ar
desvairado e rugindo como se estivesse possuído por um espírito maligno” (1832, p.
144 apud VERGER, 1999[b], p. 126).
A primeira descrição de Exu na região de Abéokuta faz alusão a Exu como
sendo o nome yorubá do diabo, mas é interessante notar que o autor do relato, o
65
65
Reverendo Bowen, chama a atenção para o fato de existirem uma enormidade de
outros espíritos maus (BOWEN, 1858 apud, VERGER, 1999[b], p. 134).
Abaixo alguns trechos das notas do abade Bouche reproduzidas por Verger
(1999[b]) sobre Exu Elegbará na África:
Elegbara é o espírito do mal, o Belfegor dos Moabitas [...] é um amontoado
de terra amassada e grosseiramente moldada, representando mais ou
menos a cabeça e o busto de um homem. Dois grandes búzios fazem o
papel dos olhos, duas fileiras de dentes de cachorro ou de pequenas
conchas formam a queixada; penas são implantadas no queixo, à maneira
de barba [...] É assim que os negros representam o espírito imundo. [...] Os
negros reconhecem em Satã o poder da possessão, pois o denominam
ordinariamente Elegbara... (BOUCHE, 1885, pp. 120-121 apud VERGER,
1999[b], p. 135).
E fazendo referência ao o(já citado anteriormente) depõe: “Os negros são
bem inspirados quando fazem desse instrumento o atributo de Elegbará,
personificação do demônio” (BOUCHE, 1885, pp. 120-121 apud VERGER, 1999[b],
p. 136).
Legbá, seu equivalente fon, foi primeiramente comparado a um deus Príapo
(POMMEGORGE, 1789, p. 201 apud VERGER, 1999[b], p. 133). Com toda a
certeza esta identificação segue a lógica das características fálicas de Legbá. Para
D’Avezac (1845, p. 84, apud Verger, 1999[b], p. 133) Elegwa
38
é um “gênio mau”
que coexiste com outros Deuses africanos. Ainda sobre Legbá, Burton diz ser ele
uma espécie de “diabo de deus que corre atrás das moças” (1857, p. 195, apud
VERGER, 1999[b], p. 134). Esse comentário reforça a idéia de que, sendo Legbá
uma divindade representada por um símbolo lico (pênis), foi facilmente ligada à
sexualidade, a copulação e a fecundidade; ligação esta rejeitada por Verger
(1999[a], p. 78) como dito anteriormente.
38
Grafia original do autor.
66
66
Sobre Legbá, a seguinte descrição de seu caráter: “Vodun pessoal [...]
sempre disposto a alguma malícia ou as piores maldades. [...] É Legba o causador
de quase todas as doenças e acidentes, desde o mais banal ao mais terrível.” (Le
HERISSÉ, 1911, p. 137 apud VERGER, 1999[b], p. 136).
Esses comportamentos, juntamente com a crença de Exu ser a cólera dos
homens e demais orixás (VERGER, 1999[a], pp. 76-78) cometendo desatinos e
provocando mal entendidos, justifica, pelo menos em parte, a identificação exu-diabo
praticada pelos missionários. Mas podemos avaliar outros motivos que poderiam ter
levado a esta identificação.
Sendo Exu o comunicador por excelência e gozando ele do privilégio de ser o
único orixá a ser homenageado em todos os rituais, inclusive recebendo suas
oferendas antes de qualquer outro orixá, é natural que estatisticamente, as
imolações, sacrifícios e qualquer outro tipo de cerimônia aconteça com mais
freqüência com ele do que com outras divindades, o que fez parecer que seu culto
de certa forma estivesse mais em evidência, o que causou uma série de
interpretações errôneas, todas elas relacionadas a um suposto medo que os
yorubás sentiam de suas armações e de sua violência e da necessidade de aplacá-
la.
Além disso, Exu é ligado ao fogo e tem como cores o preto e o vermelho;
elementos estes relacionados, na icnografia cristã ao diabo, ao inferno e as
deidades ligadas a este.
A sexualidade dos negros africanos é com certeza outro elemento que
contribuiu para chocar o decoro dos missionários europeus, tão cheios de valores
vitorianos e entendendo o sexo e a sexualidade de acordo com a noção de pecado
do pensamento cristão, não demoraram em categorizar Exu como uma entidade
67
67
“sexualizada e demoníaca” transitando entre o binômio “luxúria e maldade”
(PRANDI, 2001[a], pp. 46-47). Lembrando que a luxúria é um dos sete pecados
capitais.
Talvez haja uma necessidade etnocêntrica que justifique tal identificação para
os europeus missionários na África. O medo do diferente e a crença de que seus
sistemas filosóficos, religiosos, sociais, econômicos são superiores aos dos povos
africanos (etnocentrismo). A subjugação cultural se iniciou neste processo,
inferiorizando as crenças locais e seus sistemas de pensamento, na tentativa de
torná-los receptivos a todas as demais formas de dominação, incluindo a escravidão.
Após a diáspora negra tais interpretações atravessaram o atlântico, o que
ficou evidente com a publicação dos primeiros trabalhos brasileiros sobre a religião
dos orixás, muitos dos quais baseados nos antigos trabalhos publicados na Europa
pelos missionários que viveram na chamada “Costa dos Escravos”
39
no continente
africano (PRANDI, 2001[a], pp. 47-48).
No Brasil, o primeiro relato publicado sobre a religião dos orixás foi o trabalho
clássico de Nina Rodrigues publicado em 1900 e reeditado em 1935. Nele, o autor
descreve alguns mitos e rituais então propagados e praticados à época. Sobre Exu,
Nina Rodrigues diz: Esú, divindade adversa ou pouco propícia aos homens. Esú,
Bará ou Elegbará, é um santo ou orixá que os afro-bahianos têm grande tendência a
confundir com o diabo.” (NINA RODRIGUES, 1935, p. 40).
João do Rio (1976, pp. 02-03, 12, 58), em sua investigação sobre as religiões
no Rio de Janeiro no início do culo XX publicado originalmente em 1905, faz três
citações textuais a Exu como “o diabo” (pp. 02 e 12), e duas referindo-se a Exu
como “mau” (p. 03) e associando-o com o satanismo (p. 58).
39
Nome dado ao litoral dos atuais Togo, Benin e parte ocidental da Nigéria de onde partiram, entre os séculos
XVI e XIX, milhares de negros capturados na África para trabalharem no Novo Mundo como escravos.
68
68
Durante a década de 1950, Roger Bastide (1978, p. 171) defendeu a tese
histórica tão comumente aceita de que a identificação de exu com o diabo foi
enfatizada no Brasil pelo fato de que os negros escravos os utilizavam como uma
espécie de vingador, laçando-o contra os senhores brancos que os martirizavam.
Estes senhores viram em Exu o tão temido diabo dos cristãos (BASTIDE, 1978, pp.
171-175) e temerosos, o mediram esforços para fazerem seus escravos
entenderem e identificarem o princípio da maldade nesta entidade e as
conseqüências de se cultuá-lo e pedir os seus favores: a condenação eterna ao
inferno!
Com a abolição da escravidão e o estabelecimento dos primeiros terreiros de
candomblé no Brasil, não foram raros os casos em que os negros assimilaram esta
correlação e trataram de manter Exu, pelo menos aos olhos dos outros, fora de seus
domínios, o que tornou raro até mesmo, filhos do Exu-orixá (BASTIDE, 1978, p. 175;
PRANDI, 2001[a], p. 49-50).
Outra semelhança que pode ter influenciado a identificação exu-diabo: as
características fálicas de Legbá (fon), que ainda na África foi associado à imagem de
Exu (yorubá), que passou, no Brasil, a apresentar em seus assentamentos, a figura
do falo proeminente presente nos assentamentos de Legbá na África. E aqui no
Brasil, mais uma vez, Exu foi ligado à sexualidade e, portanto ao pecado e a luxúria
(BASTIDE, 1978, p. 172 & SANTOS, 1976, p. 130 e segs.).
Outra teoria muito difundida entre os terreiros de todo o Brasil, é aquela que
afirma ser a representação orixá-santo (de modo geral) fruto de uma estratégia de
sobrevivência cultural dos próprios negros. Tal estratégia se baseava no fato dos
negros esconderem embaixo dos altares, as imagens de seus orixás e outras
divindades africanas, ao passo que acima do altar permaneciam as imagens dos
69
69
santos do catolicismo (BASTIDE, 1983, pp. 159 e segs.). Com o passar dos anos foi
havendo uma mudança gradativa no pensamento dos negros, provocada por um
‘processo externo’ no sentido que Laraia (1985, pp. 98 e segs.) ao termo, que
passaram a representar suas divindades através da correspondência com os santos
que apresentavam características semelhantes
40
(BASTIDE, 1983, pp. 162-163,
166-167).
Com o surgimento da umbanda, as concepções cristãs que a influenciaram
41
transformaram seu pensamento mágico de tal forma que, mesmo cultuando os
orixás, o faziam segundo a concepção dualista de bem e mal e a noção cristã de
pecado. Neste sentido os demais orixás, com a exceção de Exu, que na umbanda
se torna egún, fazem o bem; e todo o mal que permite a realização de todos os
interesses escusos dos fiéis e clientes de umbanda, ficou legada a Exu
42
(NEGRÃO,
1998, pp. 20 e segs.).
Na medida em que surgem e se espalham pelo Brasil os terreiros de
umbanda, neles crescem as manifestações de Exu. A partir daí ficou fácil observar
nestes lugares a representação icnográfica de exu como diabo. Além do mais, o uso
do sacrifício animal nos trabalhos realizados para Exu tanto no candomblé, quanto
na umbanda (quando assim o faz) ajudaram na representação fantasiosa de que os
Exus seriam espíritos sedentos por sangue, portanto demônios. Estas relações
permeiam o imaginário de muitos indivíduos temerosos que acreditam que nesses
rituais é utilizado o sangue humano (de virgens, crianças, etc), crenças estas muito
semelhantes àquelas vinculadas a imagem da bruxaria na Europa medieval.
40
Qualidades, funções, personalidade, etc.
41
Católicas e espíritas: já descritas nos capítulos referentes a umbanda.
42
Não que ele seja na umbanda, somente mau; mas a maldade ficou-lhe associada por ser, dentro
da mesma, o único a praticá-la.
70
70
É interessante notarmos que o público leigo
43
, por não diferenciarem as
características da umbanda e do candomblé, o que podia enfatizar suas diferenças,
se referem as duas apenas por meio do termo genérico “macumba”. Quando este
público leigo se depara com despachos na rua, independente de serem para Exu ou
não (pois podem ser para Ogum, por exemplo, que também “come
44
na rua), se
foram colocados por praticantes do candomblé ou de umbanda, ou mesmo para qual
fim está naquele lugar, simplesmente o designam como macumba e o associam a
prática da feitiçaria.
As características de Exu quando “incorporado” em um médium também
reforçam esta idéia. Exu é muito truculento e agressivo em suas incorporações,
muitas vezes gargalhando e fazendo o uso de palavrões. Sua manifestação,
dependendo de qual Exu está se manifestando, apresenta no médium que o
incorpora as seguintes características: mãos retorcidas como se fossem garras, os
braços voltados para trás (nas costas), boca com lábios retorcidos mostrando os
dentes como se fossem presas, corpo curvado para frente à maneira de homens
“primitivos”, dificuldade de andar (sem grande mobilidade), movimentos
estereotipados com os pés (como se fossem patas), além do uso e consumo
constante de bebidas alcoólicas, principalmente as destiladas, em seus trabalhos.
Outro símbolo de Exu no Brasil que pode ter influenciado esta identificação é
o tridente
45
; típico instrumento icnográfico presente nas representações do diabo
cristão na idade média. Os tridentes estão presentes nos assentamentos de Exu e
nos pontos riscados representativos destas entidades.
43
Público leigo aqui se refere aos não-fiéis, ateus não-estudiosos, praticantes de outras religiões ou
mesmo alguém que nunca se interessou pelo estudo do tema.
44
“Come” refere-se a receber suas oferendas.
45
Símbolo de poder na forma de uma espécie de lança de três pontas, anterior à era cristã e
relacionado a diversas divindades, como os Deuses dos Mares Poseidon dos gregos e Netuno dos
romanos.
71
71
Pontos Riscados do Exu Caveira (presença dos tridentes)
É interessante notar que é possível relacionar Exu com o diabo em uma
cultura cujo ethos e visão de mundo estão diretamente relacionadas ao simbolismo
característico das duas representações. O Brasil é um caso clássico desse ambiente
propício a esta identificação, afinal durante séculos a religião oficial no Brasil foi o
catolicismo romano e nas florestas brasileiras se travava uma guerra cultural de
conversão e catequização dos índios. Com a chegada dos negros e sua cultura
religiosa, foi fácil, através das características de Exu, relacioná-lo ao diabo para
forçar a conversão dos negros.
Outros elementos europeus também facilitaram esta identificação, o uso da
sexta feira, por exemplo. Para os europeus, a sexta-feira sempre foi associada à
feitiçaria e na umbanda, este dia foi associado a Exu e seus trabalhos. Os horários
em que habitualmente o feitos os trabalhos de Exu são a meia-noite e durante a
madrugada, nunca as 6:00h e as 18:00h, associadas no catolicismo as horas do
Ângelus.
Alguns pontos cantados de Exu usados na umbanda confirmam esta
identificação com o horário:
“O sino da igrejinha faz belém, blem, blom (2x)
Deu meia-noite
46
o galo já cantou
Seu Tranca Ruas que é o dono da gira
46
Todos os grifos em negrito são meus.
72
72
Corre gira que Ogum mandou (2x)”
(PONTOS CANTADOS E RISCADOS
DE UMBANDA, 1951, p. 81
)
“Lá na beira
Do caminho,
Esse Congá tem segurança (2x)
Na porteira tem vigia,
Meia-Noite o galo canta (2x)”
(PONTOS CANTADOS E RISCADOS
DE UMBANDA, 1951, p. 81)
“Exu Tiriri,
Trabalhador na encruzilhada
Toma conta, presta conta
Ao romper da madrugada
(PONTOS CANTADOS E RISCADOS
DE UMBANDA, 1951, p. 81)
“Tá chegando à meia-noite
Ta chegando à madrugada
Salve o povo de quimbanda
Sem Exu não se faz nada”
(PONTOS CANTADOS E RISCADOS
DE UMBANDA, 1951, p. 82)
Outra associação que pode ter contribuído para o sincretismo exu-diabo no
Brasil é o fato, coincidente, da planta Figueira-do-Inferno, também conhecida como
Erva-do-Diabo (entre outros nomes) pertencer a Exu na África, onde recebe o nome
de Agogô (BARROS & NAPOLEÃO, 2003, pp. 68-69). Esta associação com a planta
permanece hoje nos candomblé e umbandas. Na umbanda temos um ponto cantado
para Exu que confirma esta ligação:
“Balança a figueira
Balança a figueira
Eu quero ver exu cair (2x)
Aonde moram os exus,
Que eu não vejo eles aqui
Aonde moram os exus
Balança a figueira pra eles cair”
(Ponto de Ex., Pesquisa de
Campo, 2005)
Outro ponto cantado já estabelece que quem está sendo chamado é o próprio
Belzebuth e o relaciona a outros elementos popularmente conhecidos como
associados a prática da Bruxaria:
73
73
SAUDAÇÃO AO REI BELZEBUTH
“Olha Belzebuth, Olha Belzebuth
Olha Belzebuth, Olha Belzebuth
Estão te chamando na Quimbanda, olha Belzebuth
Estão te chamando na Quimbanda, olha Belzebuth
Se Deus é bom,
O Diabo não é mal
Ele matou um gato preto na figueira a meia noite
Olha Belzebuth
Ele matou um gato preto na figueira a meia noite
Olha Belzebuth
(Retirado do site http://www.reinodeoxum.com.br/PontosCantExu.htm em 07/08/2006)
Fontenelle em seu livro Exu, descreve uma enormidade de associações
comumente usadas durante a primeira metade do século XX no qual as diversas
qualidades de Exu são identificadas a uma diversidade não menos numerosa de
diabos e demônios. Abaixo transcrevemos alguns exemplos ilustrativos:
“... a entidade suprema de “esquerda” é o Diabo Maioral, ou Exu Sombra,
que raramente se manifesta no transe ritual. Ele tem como generais:
Exu Marabô ou diabo Put Satanaika, Exu Mangueira ou diabo Agalieraps,
Exu-Mor ou diabo Belzebu, Exu Rei das Sete Encruzilhadas ou diabo
Astaroth, Exu Tranca Rua ou diabo Tarchimache, Exu Veludo ou diabo
Sagathana, Exu Tiriri ou diabo Fleuruty, Exu dos Rios ou diabo Nesbirus e
Exu Calunga ou diabo Syrach. Sob as ordens destes e comandando outros
mais estão: Exu Ventania ou diabo Baechard, Exu Quebra Galho ou diabo
Frismost, Exu das Sete Cruzes ou diabo Merifild, Exu Tronqueira ou diabo
Clistheret, Exu das Sete Poeiras ou diabo Silcharde, Exu Gira Mundo ou
diabo Segal, Exu das Matas ou diabo Hicpacth, Exu das Pedras ou diabo
Humots, Exu dos Cemitérios ou diabo Frucissière, Exu Morcego ou diabo
Guland, Exu das Sete Portas ou diabo Sugat, Exu da Pedra Negra ou diabo
Claunech, Exu da Capa Preta ou diabo Musigin, Exu Marabá ou diabo
Huictogaras, e Exu-Mulher, Exu Pombagira, simplesmente Pombagira ou
diabo Klepoth. Mas também os Exus que trabalham sob as ordens do
orixá Omulu, o senhor dos cemitérios, e seus ajudantes Exu Caveira ou
diabo Sergulath e Exu da Meia-Noite ou diabo Hael, cujos nomes mais
conhecidos são Exu Tata Caveira (Proculo), Exu Brasa (Haristum) Exu
Mirim (Serguth), Exu Pemba (Brulefer) e Exu Pagão ou diabo Bucons.
(FONTENELLE, sd, apud PRANDI, 2001[a]).
Para apresentar como estas correlações poderiam ser adaptadas ao ritual,
transcrevemos abaixo um “trabalho de Exu”:
“Trabalho de “Exu””
Encha uma garrafa com água do mar e uma torcida de algodão (serve
cadarço de pijama largo) de 3 palmos de comprimento.
74
74
Num sábado entre vinte três horas e meia noite, coloque a torcida de uma
vasilha de barro cozido nova e encha com água do mar, dizendo ao mesmo
tempo:
DUXGOR! DUXGOR! DUXGOR!
E doze vezes o seguinte:
AMAPOYLFAC!
Retire a torcida da água e pendure-a para secar à luz da lua, durante oito
noites consecutivas, isto é até a noite do próximo sábado e entre vinte três
horas e meia noite continuarás a operação diabólica.
Acende um fogareiro de barro cozido e jogue nas brasas um defumador
composto de:
Incenso em pó, farinha, um ovo, leite, mel, cânfora e pétalas de rosas,
fazer uma pasta e deixar secar antes de utilizar. Defume a torcida e ao
mesmo tempo vai fazendo nela sete nós, recitando a seguinte invocação:
Ó, pai Satã! Ó mão Sheva! Em vossas honras levantei esse pequeno fogo
para que me escuteis e ajudeis. (Ao chegar aqui faça um nós na torcida).
Eu vos invoco para que fulano me pertença em corpo e alma. (Faça outro
nó).
Eu vos peço com todas as forças de meu espírito, que Fulano não faça
caso de nehuma outra mulher mais que de mim. (Faça outro nó).
Eu quero, se ama a outra mulher ou tem relação com ela que a esqueça
desde este instante. (Faça outro nó).
Eu desejo que fulano sofra muito por mim, que me ame de todo coração
que não possa dormir nem sossegar sem mim e que minha imagem não se
aparte de seu pensamento. (Faça outro nó).
Eu quero que F... aqui peça o que desejar da pessoa em particular. (Faça
outro nó).
Ó pai Satã! Ó mão Sheva! Eu vos rogo que me concedais quanto vos pedi
e em pago disso, vos levantarei durante sete sábados seguidos, à mesma
hora de hoje, um pequeno fogo, como o desta noite.
(Faça o último nó na torcida).
Guarda a torcida envolta com um pano preto e oculta-a num lugar que
ninguém saiba e ninguém possa achar.
Para destruir o trabalho basta queimar a torcida.
Durante sete sábados seguidos acende-se o fogareiro, queima-se a citada
defumação dizendo:
Ó pai Satã! mãe Sheva! Em vossa honra faço este fogo e queimo estes
perfumes como pagamento da ajuda que vos pedi.” (VASARIAH, 2002, pp.
69-71).
3.1.2 OS INIMIGOS DA UMBANDA – RESPOSTA AOS ATAQUES
A forma de responder a questão acima perpassa na necessidade de
identificarmos quem são os responsáveis pela perpetuação da imagem negativa de
Exu e mais, quem são os responsáveis pela tentativa de desqualificação da
umbanda dentro de um modelo religioso válido. Em linhas gerais: Quem são os
inimigos da umbanda?
75
75
A perseguição histórica a Exu e todas as religiões conhecidas como afro-
descendentes ou afro-brasileiras remonta desde os tempos do Brasil colônia. A
princípio o principal inimigo das religiões afro no Brasil era a Igreja Católica
(BASTIDE, 1983, pp. 193 e segs.), fossem pelas tentativas de catequização ou as
constantes acusações de prática de bruxaria e feitiçaria, a verdade é que a Igreja
tinha grande interesse em desqualificar qualquer religiosidade diferente do
Catolicismo Romano.
Com a abolição da escravidão e a proclamação da República, criou-se um
mito de que o negro seria livre. Mas a única liberdade que o negro conheceu foi à
liberdade para com o trabalho escravo. Os poucos direitos adquiridos não lhes
garantiram, por exemplo, liberdade de culto. Pelo contrário, o Estado promoveu
verdadeiras caçadas aos locais de culto e a seus sacerdotes e seguidores. Mas a
Igreja Católica não deixou de atacá-las, apenas usou do expediente do próprio
Estado; pressionando os Legisladores para que aprovassem leis cada vez mais
duras contra a prática do que ficou conhecido naquele tempo, entre outros adjetivos
pejorativos, como crime.
Para a Igreja era a forma de não apenas evitar que mais pessoas se
interessassem por estas religiões, mas de manter também sua hegemonia frente à
sociedade brasileira (BRAGA, 1999, p. 115).
Instrumento comum era a instauração de inquérito policial nas delegacias de
Costumes de todo o país, para investigar as denúncias de charlatanismo feitas por
“pessoas de bem” contra “aquelas” que prometiam soluções fáceis para os
problemas individuais, aproveitando-se de momentos de fragilidade emocional ou
instabilidade financeira da “pobre vítima”.
76
76
Outro instrumento comum eram as blitz praticadas a qualquer momento pela
autoridade policial com o intuito de apreender objetos de culto, fechar casas
religiosas e ainda prender qualquer um que estivesse tomando parte nas
manifestações religiosas (BASTIDE, 1978, pp. 15 e segs.; BRAGA, 1999, pp. 114-
115).
A partir do surgimento oficial da umbanda em 1908, a Igreja Católica se
pronuncia no sentido de caluniá-la chamando-a de baixo-espiritismo e acusando-a
igualmente de práticas de magia negra e feitiçarias de todos os tipos.
A perseguição policial também se estende a umbanda, agora oficialmente,
visto que antes perseguiam a denominação conhecida como macumba,
principalmente no Rio e em São Paulo (BASTIDE, 1983, pp. 193-247).
Mesmo assim o movimento umbandista se organiza e expande seu papel na
sociedade brasileira através de congressos e encontros. Em outubro de 1941
acontece o primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda onde foi elaborado um
documento a Getúlio Vargas de repúdio a discriminação da religião umbandista e
propondo leis que integrem a umbanda dentro do cenário religioso nacional. O
Congresso alcança muitos de seus objetivos, inclusive o de promover a umbanda
além das páginas policiais e fazer com que ela fosse vista pela sociedade brasileira
de modo geral. Em 1964 a umbanda um importante passo para sua
institucionalização religiosa ao ser incluída no Anuário Estatístico do IBGE. Em 1971
surge o CONDU (Conselho Nacional Deliberativo de Umbanda) na tentativa de
organizar as federações dos estados e promover a expansão religiosa da umbanda.
(
consultado em 25/08/2006 no site: http://www.guia.heu.nom.br/acontecimentos_na_umbanda.htm
).
77
77
Outro importante fator no reconhecimento da umbanda como uma instituição
religiosa diz respeito ao reconhecimento oficial da Igreja através de seu Concílio
Vaticano II e suas fortes deliberações ecumênicas (NEGRÃO, 1996, pp. 50 e segs.).
A umbanda cresce e se fortalece, mas a verdade é que ela nunca conseguiu
extirpar os conceitos intrinsecamente permeados no imaginário brasileiro dos muitos
que não a conhecem, e consideram-na prática dos mais variados tipos de magia.
Muitas vezes, o preconceito neste caso vai classificar a umbanda como uma religião
satânica, ou demoníaca.
Esta tônica tem voltado à tona nas duas últimas cadas com os freqüentes
ataques públicos dos evangélicos, mais efetivamente neopentecostais da IURD
(Igreja Universal do Reino de Deus). Este fenômeno torna-se importante para a
análise, portanto me concentrarei especificamente nos ataques da IRUD contra a
umbanda. Para isto, abro um adendo para sua análise:
O último Censo Demográfico Brasileiro realizado em 2000 apontou que 15,4%
dos brasileiros se declararam evangélicos, sendo que destas, 67,6% se declararam
evangélicos pentecostais, 27,4% se declararam evangélicos de missão e 5%
pertencentes a outras denominações evangélicas. De 1950 a 2000 os evangélicos
ganharam não somente mais fiéis, como também espaço na disputa pelo campo
religioso brasileiro.
A Igreja Universal do Reino de Deus nasce com uma característica que a
diferencia das demais, o uso da mídia, principalmente televisiva, para divulgar suas
idéias e propósitos de fé. Criou-se então um grande diferencial que marca o
crescimento das igrejas evangélicas no país. Muitas delas ‘pegam carona’ na onda
midiática (que não para de crescer).
78
78
A IURD é uma instituição religiosa fundamentada no marketing de seus
serviços, e regula suas atividades de acordo com essa perspectiva norteadora. Nas
entradas das IURD’s, por exemplo, existem mesas que servem para orientar o
público que vai assistir ao culto, ou em horários em que não estão sendo realizados
cultos, para distribuição de material da igreja e para conversas informais a respeito
das vantagens de se freqüentar a IURD.
Em determinadas ocasiões, alguns colaboradores da igreja se dedicam a
abordar as pessoas que passam em frente à mesma oferecendo-lhes materiais de
divulgação da IURD como panfletos de pregação, de “propaganda” sobre os cultos e
suas respectivas “sessões”, além de jornais, entre outros materiais. Essas
abordagens, para aqueles que param, se transformam em verdadeiras “pregações-
propagandas” sobre as vantagens de se pertencer a IURD.
Nos cultos, dois tipos diferenciados de platéia: os fiéis e o público. Os fiéis
são aqueles evangélicos que pertencem à denominação da IURD ou mesmo de
outras denominações evangélicas. Em conversa com alguns pastores de outras
denominações (Igreja de Cristo, Congregação Cristã, etc) foi sugerido que uma
grande parcela das pessoas que freqüentam a IURD são parte de um contingente de
evangélicos que pertencem a outras denominações e que vão para receberem
bênçãos específicas. o blico, é composto geralmente por recém convertidos e
que às vezes nem convertidos são, mas que estão atrás de prosperidade
geralmente relacionadas com melhora financeira, no campo amoroso, no familiar,
mas também existem os casos de “possessão” e “perseguições” (que na IURD o
chamados de “encostos”, entre outros), cura de doenças desenganadas pelos
médicos, entre outras coisas.
79
79
A intensa atividade religiosa contra a atuação do mal (trabalhos de umbanda)
na vida cotidiana e a batalha do bem para vencer as figuras maléficas (Exus) é um
ponto crucial da propaganda da IURD. Acontecimentos relacionados à pós-
modernidade, como desemprego, por exemplo, são atrelados à figura de Satanás e
aos “encostos’ (Exus e Pomba-Giras); além de tragédias particulares, como
doenças, que também são associadas à presença do mal na vida dessas pessoas.
Nos programas de TV, veiculados das 13:00hs às 14:00hs de segunda a
sexta, são ofertadas bênçãos e serviços (mediadores do sagrado) para as pessoas
que buscam uma salvação para sua vida; salvação esta que se geralmente
atestada pela melhora de condição, tanto financeira, quanto de saúde e afetiva. Mas
para que tal aconteça é necessária à expulsão dos Exus da vida dessas pessoas.
Para isso, nas IURD’s, realizam-se exorcismos sempre com um mesmo modus
operandi que culminam, na maioria das vezes, com a humilhação do “encosto” e sua
expulsão (PRANDI, 2001[a], p. 80) e a posterior exaltação da própria religiosidade;
este fenômeno é transmitido via televisão (canal aberto) para todo aquele que quiser
ver.
Talvez a característica marcante de um movimento como a Igreja Universal
seja melhor descrita, sem neologismo, através do entendimento da história do
nascimento e expansão dos movimentos pentecostais (como movimento e ideologia
de caráter missionário) no final do século XIX (CAMPOS, 2000, p. 11), juntamente
com as ‘promessas’ do modernismo ou primeira fase do capitalismo (SOUZA
SANTOS, 2003). Apesar de a IURD pertencer mais ajustadamente ao
“neopentecostalismo” subproduto brasileiro (no caso) do pentecostalismo original,
fruto de uma série de combinações que vão desde o imaginário coletivo estimulado
80
80
pela cultura de massas, que é também estimulada pelos meios de comunicação, até
receitas importadas de pregadores norte-americanos (CAMPOS, 2000, pp. 02, 11).
No caso da Igreja Universal do Reino de Deus, seu criador, Edir Macedo,
vinha anteriormente de uma prática religiosa afro-brasileira fundamentada
justamente na umbanda, e essa prática não deixou de permear o imaginário do
Bispo Edir Macedo em sua organização da IURD. Isso explicaria o fato de se
usarem amuletos’ como pequenos cálices preparados para trazer bênçãos e
prosperidade, além do uso litúrgico de ‘banhos de descarrego’ (termo originário da
umbanda) com sabonetes compostos de extrato de arruda (erva clássica nos
banhos de limpeza espiritual na Umbanda), além do uso de termos como “encosto”
(para designar as entidade que se manifestam na umbanda, principalmente os
Exus).
Discutir os dados etnográficos abundantes fornecidos pela IURD através dos
meios de comunicação em massa (TV, Rádio, Internet, Jornais e Informativos
impressos) demonstra que os acontecimentos, tão característicos da humanidade
em si, são, para os “IURDIANOS”, uma extensa atuação destas entidades maléficas
na qual a IURD representa o Reino de Deus na Terra que visa lutar pela salvação de
todos e a erradicação do mal.
De tempos para cá, os meios umbandistas e a IURD vêm promovendo uma
série de guerras judiciais (através de liminar) que teve como estupim a publicação
do livro de Edir Macedo “Orixás, Caboclos e Guias Deuses ou Demônios” da
editora Universal. Macedo teve a venda de seus livros proibida pelo conteúdo
considerado agressivo e preconceituoso com a umbanda (ver anexo 2).
A verdade é que existe uma imensa proporção dos serviços oferecidos dentro
de um mercado religioso cada vez maior e tanto a umbanda, quanto a IURD
81
81
incorporam as tendências e necessidades de uma parcela da população
extremamente carente dos planos de prosperidade idealizados pela máquina do
Estado.
São pessoas que não encontram condições mínimas de saúde, ou que
foram desenganadas pelos dicos; pessoas que experimentam constantemente a
falta de itens de saneamento básico; pessoas que não podem se integrar ao
sentimento de pertencer a algo maior do que eles; o sentimento de participar de uma
instituição, mesmo que religiosa, e de receber sua atenção e afeto.
Todas estas condições contribuem para formar um quadro de carência
material e psicológica (principalmente emocional), que forma um ambiente propício
para que as instituições religiosas, no caso a umbanda e a IURD, com suas
diferentes formas de abordagem, mas baseadas principalmente em uma
propaganda boca-a-boca nos locais de menor instrução formal, se aproximem e
tentem cativá-los.
É neste processo que os ataques sofridos pela umbanda (centro da nossa
análise) se acentuam. Os ataques são diários e respeitam toda uma programação
de mídia para acontecer, sem contar a propaganda de fiel para fiel.
O foco dos ataques, naturalmente se concentra na figura de Exu, facilmente
associada (por motivos apresentados nesta dissertação), com o diabo dos
cristãos. A IURD, denominação neopentecostal cristã, faz uso desta tão famigerada
identificação para agregar cada vez mais fieis.
Mas não é dos evangélicos neopentecostais da IURD que surgem ataques
a imagem de Exu. Também de algumas denominações umbandistas que não
aceitam Exu nos trabalhos de umbanda. (veja o texto em anexo 3 “os exus o
82
82
pertencem ao ritual de umbanda”). Mas neste caso, talvez não seja uma forma de
agressão e sim uma forma de alcançar legitimidade ao afastar uma figura tão
controversa quanto Exu do panteão umbandista.
Esta análise nos permite inferir que a hipótese de ser a ressignificação de
Exu
47
resposta ao ataque das denominações cristãs neopentecostais (representado
nesta análise pela IURD) seja em parte verdadeira, ou seja, este elemento é com
certeza uma variável importante a ser considerada na compreensão do fenômeno.
3.1.3 A INFLUÊNCIA DA (PÓS)MODERNIDADE NA UMBANDA
Apesar da mudança paradigmática relacionada à sistematização da umbanda,
tal processo se intensifica com mais rapidez nos meios de comunicação, como a
internet, do que no dia-a-dia dos terreiros espalhados pelo Brasil.
Além dos mitos relacionados à história da própria umbanda, mitos africanos
sobre os orixás e seus feitos, mitos sobre a estória de algum guia ou entidade que
exista no terreiro, estórias católicas sobre a vida e a virtude dos santos, além da
história de vida do próprio dirigente fundador do terreiro, bem como de algumas das
principais personagens dos mesmos vêm contribuindo como legitimadores para o
estabelecimento das práticas rituais de muitos terreiros. A umbanda aparece então
como uma religião que, em cada terreiro, é feita uma releitura dos elementos
47
No caso, referente à ressignificação contida nas tentativas de sistematização da teologia e doutrina
umbandistas.
83
83
existentes, e a partir daí estabelecida uma maneira de se praticar o culto de uma
maneira que os leigos possam se identificar e tornar-se freqüentadores.
Contudo, entender o contexto nas quais os ataques ocorrem e a resposta da
umbanda sistematizando a teologia e ressignificando Exu, permite que façamos
uma leitura sociológica do fenômeno.
A modernidade, impulsionada pelos avanços científicos do final do século
XIX, questionou até mesmo o papel da existência das expressões religiosas,
promovendo a secularização e a crença racional nas verdades científicas,
transformando as relações do homem em seu meio social, onde são
supervalorizadas a produção, a divisão social do trabalho e a crença otimista de que
todos os problemas da humanidade (éticos, morais, políticos, de saúde, emocionais,
científicos, filosóficos, etc.) serão solucionados.
Para Souza Santos (2003, p. 80), o projeto da modernidade causou um
intenso processo de mal-estar pela impossibilidade clara de cumprir este anseio. “O
projeto da modernidade cumpriu algumas das suas promessas e até as cumpriu em
excesso, e por isso mesmo inviabilizou o cumprimento de todas as restantes. Estas
últimas... têm de ser reinventadas, o que só será possível no âmbito de outro
paradigma” (SOUZA SANTOS, 2003, p. 80).
A pós-modernidade surge não como um sistema, mas como uma resposta
paradigmática da sociedade, na lacuna provocada pela modernidade e uma de suas
principais características é justamente ser mais elástica do que a modernidade; não
se importando com a categorização e nem com a definição de todas as coisas que
existem. Se algo foge dos limites extáticos das definições das ciências naturais, isso
não leva necessariamente a um mal-estar científico; diferente da modernidade, que
84
84
passou a viver este mal-estar justamente por tentar enquadrar e estar enquadrada
em um padrão onde tudo pode ser resolvido.
A pós-modernidade permite ao homem, no sentido lato, o relativo conforto de
que saber e fazer nem sempre têm de ser seguido ou antecipado por uma
verbalização que a explique. Dessa forma o sentir passa a ser valorizado,
retomando a importância das expressões religiosas, e conseqüentemente buscado
pelos homens e ofertado em um mercado cada vez mais competitivo de religiões
(BAUMAN, 1997, pp. 205 e segs.).
É neste contexto pós-moderno que surge em resposta a crescente demanda
religiosa e a busca desenfreada por novas tendências new age, no sentido dado por
Bauman (1997, pp. 205 e segs.), uma grande tentativa de estabelecer uma doutrina
única para a umbanda. O que evidencia a busca por uma legitimidade dentro do
cenário religioso nacional.
Esta tentativa obedece a uma tendência de sistematizar uma teologia e
doutrina da umbanda, diferenciando-a do candomblé. Vale lembrar que a umbanda
sempre foi uma religião fundamentada no aqui-e-agora e na solução dos problemas
“reais” da população que a procura, não estando interessada, até então, em uma
teologia do pós-mortem, nem na gênese do mundo e da vida e tão menos nas
explicações sobre como as forças invisíveis (espirituais e mágicas) atuam no mundo.
Esta tendência à sistematização teológica se enquadra em parte no que
chamamos de institucionalização da religião. A fundação de uma instituição de
ensino superior autorizada pelo MEC, “Faculdade de Teologia Umbandista” em São
Paulo e de um “Colégio de Umbanda Sagrada ‘Pai Benedito de Aruanda’” autorizado
pela prefeitura de São Paulo, mostra bem a tentativa de buracratizar (WEBER, 1991)
os sistemas de transmissão de conhecimento religioso, antes passados via tradição
85
85
oral (que respeita as necessidades individuais e os méritos de cada um dentro do
sistema religioso). Cada vez mais, editoras como a Madras, de São Paulo, se
especializam na publicação de livros enquadrados dentro da ótica de “quanto mais
informação, melhor!” Isso acabou acelerando ainda mais o acesso do público aos
cursos de teologia, hoje concentrados principalmente na Região Sudeste, bem como
a livros sobre doutrina e teologia de umbanda, vendidos no país todo.
Na umbanda institucionalizada, a luta dos sacerdotes desta nova tendência
teológica e pragmática é para estabelecer a legitimação da instituição burocratizada
frente aos fiéis e clientes que se matriculam nos cursos, compram os livros, etc. Mas
ao mesmo tempo obedece a uma tentativa de “reformular” a umbanda no imaginário
brasileiro, inclusive ressignificando Exu, sua figura mais polêmica.
De maneira menos sistemática e mais pragmática, um dos principais
legitimadores da umbanda no público religioso (leigo ou não) é a cura e a pretendida
resolução rápida para os problemas cotidianos, podemos então expressar algumas
opiniões a respeito do futuro da umbanda no cenário religioso. Segundo Montero
(1979, pp. 24-27), a doença não se expressa apenas no âmbito fisiológico e sim num
contexto social mais amplo que envolve vários setores da vida do indivíduo, muitas
vezes tendo sua causa neste contexto social.
Neste aspecto a população mais carente não goza de uma assistência eficaz
a estes problemas, bem como outros, como falta de emprego, etc, se intensificam. É
justamente aqui que a umbanda funciona como um grande pólo de atração com a
possibilidade para se resolver, com poucos recursos, problemas de diversos tipos.
Sua terapêutica se baseia em ensinamentos dos antigos nativos (índios), e dos
negros que na África, utilizavam as plantas em todos os aspectos da vida (VERGER,
1995, pp. 29-464). A terapêutica da umbanda passa então pela receita e aplicação
86
86
de ervas, banhos, passes e despachos para os mais variados fins, sendo que ao
final, o fiel/freqüentador encontra mais do que uma solução simples e pronta, mas a
inserção dele em um mundo de possibilidades que ele não encontra na sociedade
civil. Esta característica tem feito da umbanda, umas das religiões mediúnicas de
“exportação”, mais acessíveis e ceis de se estabelecer em países do cone sul do
continente americano (Argentina, Uruguai, Paraguai, etc), sendo este outro aspecto
que contribui para sua sobrevivência e mais do que isso, sua expansão.
Outra forma que poderia justificar o crescimento da umbanda passa pela
questão do surgimento, ou ressurgimento do interesse do grande público em
atividades de cunho mágico. Sendo este interesse preenchido pelas religiões que
lidam com a questão da magia, como a umbanda, cultos de Nova Era, escolas e
sociedades de cunho esotérico, e uma série de outras que partem da premissa de
reaproximar o homem da natureza e entendê-la como sacralizada.
Exu, apesar de toda esta ressignificação identificada ao longo desta
dissertação, ainda se manifesta da mesma forma na maioria dos terreiros
espalhados pelo Brasil. Portanto a premissa de que esta ressignificação venha a dar
frutos a curto prazo é falsa. Como dito no início deste trabalho, este caso de Exu
apenas exemplifica um modelo maior de ressignificação da própria umbanda.
Como sugerido em outra parte deste texto, talvez os próprios umbandistas
procurem estratégias de diminuir o “peso” histórico de Exu, tão carregado de
significados pejorativos. Isso justificaria a ausência de culto a Exu em algumas
tendas de umbanda, mas sem necessariamente a distinção de corrente de
pensamento relacionada à sistematização teológica e doutrinária, mas sim no âmbito
prático da questão: não fazemos giras de Exu (como citado anteriormente em um
pequeno trecho de entrevista de um dirigente de terreiro ao se referir as outras
87
87
modalidades que não faziam o culto), ou mesmo, Exus não fazem parte da umbanda
(como no texto do anexo 3).
Faz-se necessário a realização de trabalhos empíricos que visem identificar
com mais precisão quais são as variáveis envolvidas neste processo de
ressignificação da umbanda e de Exu. As variáveis: a presença de sincretismo ou
não, a história de vida do(s) dirigente(s) do terreiro, tendência de pensamento
seguida dentro da umbanda, dentre outras; podem contribuir para uma análise mais
real do problema uma vez que este foi identificado.
88
88
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93
93
ANEXOS
10
10
ANEXO 1 – COMPARAÇÃO ENTRE OS SIGNIFICADOS DE EXU NA ÁFRICA E NAS CORRENTES UMBANDISTAS
África Escola de Mirim Umbanda Esotérica Umbanda Iniciática Umbanda Sagrada
Posição
e função
de Exu
no
panteão.
- Orixá/Divindade
Mensageira,
- Importância
primordial em todos os
rituais por permitir as
passagens e as
comunicações.
- Egún/Espírito
neutro,
- Agente mágico
executor da lei do
retorno,
- Segue sob as
ordens de outros
guias.
- Egún/Espírito neutro,
- Agente kármico
executor da lei do
retorno,
- Segue sob as ordens
de outros guias.
- Egún/Espírito neutro,
- Arcano responsável
por todos os segredos
da Síntese Religiosa,
- Protetor dos mistérios
da natureza,
- Segue a ordem de
outros guias.
- Encantado/Espírito
neutro,
- Guardião dos Planos
Negativos Espirituais,
- Segue a ordem de
outros guias.
Espaço
Sagrado
de Exu
- Assentamentos e os
templos dedicados a
Exu,
-Vias públicas (ruas,
estradas e
encruzilhadas),
- Espaços abertos,
- Entradas,
- Feiras,
Etc.
- Não há
assentamentos,
- Encruzilhadas,
- Entradas.
- Não há
assentamentos,
- Encruzilhadas,
- Entradas.
- Não há
assentamentos,
- Encruzilhadas,
- Entradas.
- Pode haver
assentamentos,
- Encruzilhadas,
- Entradas.
Rituais
para Exu
- Pode haver
incorporação (nos
candomblés
tradicionais não há
incorporação de Exu),
- Fala pelo oráculo
(búzios, opelê-ifá,
etc.),
- Uso do sacrifício
animal (sangue).
- Pode haver
incorporação,
- Não há o uso de
oráculos,
- Não há sacrifício
animal (sangue).
- Pode haver
incorporação,
- Não há o uso de
oráculos,
- Não há sacrifício
animal (sangue).
- Pode haver
incorporação,
- Não há o uso de
oráculos,
- Não há sacrifício
animal (sangue).
- Pode haver
incorporação,
- Não há o uso de
oráculos,
- Não há sacrifício
animal (sangue).
10
10
ANEXO 2



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+
<==>>>+++====?99;==@9=@8@+
Em 30/07/2006.
11
11
ANEXO 3
!"$$
!+
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http://www.nuss.hpg.ig.com.br/exus.htm
Em 30/07/2006.
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