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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE NORDESTINOS EM
MANAUS SOBRE O CABOCLO AMAZÔNICO
ALEXANDRE DE OLIVEIRA MARQUES
MANAUS
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE NORDESTINOS EM
MANAUS SOBRE O CABOCLO AMAZÔNICO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da
Universidade Federal do Amazonas, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia,
área de concentração Processos Socioculturais na
Amazônia.
Orientadora: Prof
a
Dr
a
Selda Vale da Costa
MANAUS
2007
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Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte realizada pela Biblioteca Central - UFAM)
M357r
Marques, Alexandre de Oliveira
As representações sociais de nordestinos em Manaus sobre o
caboclo amazônico / Alexandre de Oliveira Marques. - Manaus:
UFAM, 2007.
195 f.
Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na
Amazônia) –– Manaus, Universidade Federal do Amazonas,
2007.
Orientadora: Profª. Drª. Selda Vale da Costa
1. Estigmas 2. Estereótipos 3. Caboclos Identidade
(Psicologia) 4. Identidade social I.Título
CDU 316.647.8(811.3)(043.3)
ALEXANDRE DE OLIVEIRA MARQUES
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE NORDESTINOS EM
MANAUS SOBRE O CABOCLO AMAZÔNICO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia, da Universidade Federal do
Amazonas, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Sociedade e Cultura na Amazônia, área de
concentração Processos Socioculturais na
Amazônia.
Aprovado em 20 de setembro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Prof
a
Dr
a
Selda Vale da Costa, Presidente
Universidade Federal do Amazonas
Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida, Membro
Universidade Federal do Amazonas
Prof
a
Dr
a
Claudia Regina Brandão S. F. da Costa, Membro
Universidade Federal do Amazonas
No momento de dedicar, dedico
àqueles que com suas histórias me receberam
gentilmente e tornaram possível este trabalho.
À minha família, avós, pais, irmãos, por me fazerem
acreditar que sou maior que eu, e talvez por isso eu tenha
sido. Este trabalho é sua conquista, através da minha.
À Selda, este trabalho também foi minha tentativa de ser
um aluno à altura do seu ensino.
No momento de agradecer, também.
Ao Programa CAPES, pelo apoio financeiro,
demonstração de confiança em um profissional.
A Isabella e Gimima, pelo acolhimento que fez meu
caminho no mestrado menos difícil.
A Paulo Monte, porque sei que moro “confortavelmente”
em seu coração.
A Sérgio Ivan Gil Braga, pela palavra de início, quando
não se sabe ao certo o que virá em frente.
A Alfredo Wagner, que me abriu a possibilidade de
reinventar uma letra no momento em que escrita.
A Érica, pelo que sei e pelo que não sei, mas
principalmente por tudo que você me ensinou a ser.
Aos colegas de mestrado, enfim, pelas horas que
passaram quando achávamos que não, nas quais
compartilhamos além de teorias, um sentimento
mutuamente construído de amizade e confiança.
É fato que qualquer proposta de estudo sobre o caboclo
amazônico corre o risco de se instaurar, desde a sua
gênese, em bases movediças.
Graça Medeiros, Um estranho no espelho.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo conhecer as representações sociais de nordestinos em
Manaus sobre o caboclo amazônico. Uma tentativa de entender a história da palavra caboclo
revela que o primeiro significado da expressão pode ter sido formulado no tupi, “o que vem
da floresta”, para designar os assim chamados índios que, desregrados, passaram a conviver
nas vilas. É um termo que carrega hostilidade para com os grupos assim chamados, e que
segundo os estudos de comunidade realizados no baixo Amazonas na década de 1940 parece
ser aplicado somente aos outros, nunca ao próprio interlocutor. Entretanto, a partir da década
de 1980 em Manaus, observa-se um movimento basicamente levantado em propaganda
política, no sentido de entender o caboclo como uma identidade original, tomando a chamada
floresta amazônica como sua referência geográfica ou região natural. O caboclo seria então
identidade de um povo e o sentido depreciativo da palavra não seria mais que preconceito.
Nossa abordagem, por outro lado, entende que os estigmatizados não podem ser identificados
como pessoas reais. A teoria das representações sociais é empregada, portanto, para se
entender não apenas o produto, mas também o processo de construção da suposta identidade
cabocla. Nossa hipótese inicial é que não seria possível entender o caboclo sem considerar a
participação nordestina em Manaus, e assim, nordestinos residentes na cidade são
entrevistados na condição suposta de um grupo que não compartilharia dos preconceitos
locais, na tentativa de uma outra visão, de “fora” do problema. As nove entrevistas aqui
reunidas, porém, acrescentam que nordestinos e caboclos não se relacionam diretamente, que
apesar de considerado um tipo regional, o caboclo não detém condição privilegiada, e que as
representações, ao mesmo tempo em que “re-apresentam” um termo historicamente
consolidado, ajudam a manter a estigmatização, deixando o outro na condição de estranho.
Palavras-chave: Identidade cabocla; estigma; preconceito.
ABSTRACT
The present work intends to know the social representations of Brazilian north-east men,
residents in the city of Manaus, about the Amazonian caboclos. An analysis about the first
meanings of caboclo reveals that it could be an original tupi word, which means “the man
who came from the forest”. It was used so, to designate people called indigenous who, with
no identity recognized, started to live at towns. Caboclo is a word used in a hostile way, and,
according the “community studies” realized at the decade of 1940, it is a word which is
always applied to other persons. However, from the decade of 1980 so far, caboclo seems to
take a political meaning, used to indicate an identity supposed as original of the Amazonian
rain forest. In this point of view, the pejorative meanings for caboclo would be no more than
prejudice. In our approach we understand that stigmatized people can not be identified as real
persons. So, the theory of social representations helps us to understand the process, and not
only the product, presented in the construction of the caboclos identity. Initially, we thought
we can not understand caboclo without considering the presence of the Brasilian north-east
groups at Manaus. So we started to investigate the Brazilian north-east men representations
because this group was supposed to be outside of the problem, and able to contribute with a
non pejorative representation of caboclos. The nine interviews chosen here reveals that these
social groups do not encounters each other directly. Reveals that even caboclo is elected as an
Amazonian original identity, the people called as caboclos has no privileged condition.
Reveals finally that even representations “re-presents” a concept historically well-made, also
keeps stigmatization, treating the other in the condition of a stranger.
Keywords: Caboclo identity; stigma; prejudice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................10
1 O ESTIGMA COMO IDENTIDADE...................................................................................18
1.1 As representações sociais como instrumento de conhecimento.....................................28
1.2 Da negação do que se é: transformações da identidade..................................................37
1.3 Saindo da toca: “a partir de agora somos caboclos”.......................................................45
1.4 O problema de se assumir caboclo.................................................................................53
1.5 O defensor: a importância do que o caboclo “jogou fora”.............................................58
1.6 O caboclo como uma construção política.......................................................................65
2 O ENCONTRO NO DESENCONTRO ................................................................................73
2.1 “Quem faz o lugar são as pessoas”.................................................................................87
2.2 “O caboclo não fala”.......................................................................................................91
2.3 Preconceito e pejoratividade no caso dos caboclos amazônicos....................................95
2.4 Ser baiano em Manaus..................................................................................................103
2.5 A valorização das identidades ......................................................................................116
2.6 O que é estranho e assim permanece............................................................................118
3 O QUE MUDA E O QUE PERMANECE..........................................................................126
3.1 “Quanto mais primitivo, melhor”.................................................................................131
3.2 A invisibilidade privilegiada ........................................................................................140
3.3 Caboclo é “amigo”........................................................................................................142
3.4 As idéias de natureza e cultura nas representações sociais ..........................................148
3.5 O caboclo é “conhecido”..............................................................................................152
3.6 Um tipo de índio: ancoragem da representação de caboclo .........................................158
CONTEÚDOS DA REPRESENTAÇÃO COMUM..............................................................163
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................191
INTRODUÇÃO
Ao concluir o seu trabalho sobre representações sociais do caboclo amazônico, a
psicóloga Graça Medeiros consegue expressar ao leitor toda a ambigüidade deste homem, que
é também palavra, e desta palavra que por vezes não encontra morada na realidade.
O trecho apresentado de início aqui, nos coloca um problema que não deve ser
pensado apenas no que tem de metáfora, mas enquanto um obstáculo real e presente a todos
que se dedicam ao manejo dos conceitos, especialmente os conceitos que traduzem
identidades.
O presente trabalho, em grande medida, toma aquele como sua referência de partida,
e torna-se, por um tempo, experiência muito mais pessoal, porque no enfrentamento das
dificuldades de aluno.
Nosso objetivo foi conhecer as representações sociais de nordestinos em Manaus
sobre os caboclos amazônicos, tendo em vista duas hipóteses fundamentais a princípio: que as
representações de um outro grupo, supostamente “de fora”, poderiam trazer uma interpretação
menos preconceituosa sobre os caboclos, e também a proposta de que tal grupo fosse de
nordestinos, pelo suposto fato de que sua presença seria imprescindível para se entender a
formação do povo amazonense.
De acordo com a proposta de oferecer uma discussão teórica com base nos conceitos
de “pre-sença” e “ser-no-mundo” da fenomenologia heideggeriana, bem como na teoria das
representações sociais, este trabalho não visa ao estudo do caboclo, entendido como um ente
próprio, nem a um estudo sobre nordestinos em particular. Ao se estudar a categoria caboclo é
preciso ter em mente a necessidade de uma investigação que não compreenda a identidade
como um produto, como uma estrutura independente das relações cotidianas, uma vez que em
ambas as teorias, o sujeito e o objeto isolados se mostram abstrações do pensamento.
11
De modo a evitar uma separação, estuda-se aqui, coerentes com a estrutura ser-no-
mundo, ou sujeito-objeto, o modo como o caboclo é representado pelos entrevistados.
Inicialmente, porém, a preocupação esteve em definir os termos de trabalho e os
conceitos a serem trazidos para a reflexão, o que é feito na pesquisa com representações
sociais ao se construir seu objeto de estudo pela fala de entrevistados.
Foi preciso questionar o que chamamos de identidade cabocla, numa discussão que
teve lugar no primeiro capítulo, e então, tentamos nos colocar no momento anterior ao dos
conceitos acabados, no sentido de desvelar os esquemas interpretativos que nos orientam ao
conhecimento de nossos objetos. Assim, a própria escolha de nordestinos e caboclos como
temas da reflexão, embora não se queira investigar um ou outro separadamente, mas, por
assim dizer, a relação entre ambos, também teve de ser relativizada, no que permanecia
distante da realidade dos entrevistados.
Desde cedo também, a suposição de um conhecimento “ingênuo” e provavelmente
“exterior” foi abandonada porque identidades não são estruturas definidas sem ambigüidades,
e as diferenças sempre se mostram aliados insuficientes de qualquer definição.
Em relação ao nosso campo de trabalho, foram reunidas nove entrevistas para
compor o quadro de nossa pesquisa, organizadas de acordo com os temas abordados em
nossas conversas: uma entrevista com F., cearense que desembarcou em Manaus há cinqüenta
anos, entrevistas com A. e I., baianos, na cidade trinta e um anos, o filho do casal, E.,
vinte e nove anos em Manaus, P., proveniente do Rio Grande do Norte, em Manaus quase
vinte e um anos, C., potiguar da capital, Natal, em Manaus quase onze anos, J., também
natalense, há cerca de um ano em Manaus, e A., sergipana com cerca de um ano na cidade.
Observamos que as representações sobre o caboclo se modificam em relação ao
tempo de permanência dos nordestinos na cidade, mas não dizemos que isto se deve ao
contato com uma suposta cultura local, como estávamos dispostos a pensar de início, porque
12
nos parece, ao contrário, que as representações se modificam em relação à proximidade
despertada com um termo até então desconhecido – os entrevistados afirmam não terem
conhecimento de quem seriam os chamados caboclos, pois nos estados de origem essa
expressão não seria comum, ou não existiria.
As representações também não apresentam diferenças no que concerne ao lugar de
origem, naturalidade, dos entrevistados, porém em relação ao modo como as supostas
identidades são manipuladas em face da aproximação de outros grupos. Aqueles que
chamamos de nordestinos obviamente se reconhecem de outro modo quando consideramos as
diferenças dos grupos com os quais se identificam. Observamos que as representações se
distinguem mais em relação a uma disposição primeira, que na falta de outro termo, podemos
chamar de afetividade dos entrevistados, ou suas expectativas no momento da chegada a
Manaus.
A propósito, no segundo capítulo, reunimos as entrevistas que nos auxiliaram a sair
da idéia, também a seu tempo suposta, de que nordestinos e caboclos se encontram na cidade.
Vimos, então, como as expectativas sobre uns e outros atuam de modo a que, antes do
encontro físico, se opere uma separação entre ambos.
Ainda, sendo necessário esclarecer que a representação social de caboclo faz
referência a um homem através do conceito deste homem, isto é, faz este homem “existir” por
meio de um nome, procuramos, no terceiro capítulo, entender o que persiste nas
representações de caboclo, quando parece estar em curso um processo de mudança para o seu
significado.
Ao iniciar estas páginas se espera esclarecer que esta, e certamente saber disso será
de utilidade para o leitor, é obra de um psicólogo. Não que isto revele algo por si, mas pelos
vícios próprios a que os profissionais deste campo estão expostos desde que ingressam em
formação. A participação desses vícios que ocorrem contrabandeados para dentro da prática
13
de pesquisa é mais danosa na medida em que é desconhecida. Fecha a possibilidade da
reflexão, condena-nos à repetição do já sabido.
Mas não seria mesmo este o problema das representações? Não estaríamos, na posse
do objeto, condenados então à sua repetição?
Um dos problemas a serem enfrentados, e que não obstante se insere na própria
constituição do método de investigação em representações sociais, no caminho do que nos
propomos a fazer quando fazemos uma pesquisa, está em que ao tomarmos por entrevista um
conjunto de procedimentos que nada têm que ver com entrevistar alguém estamos
contribuindo para limitar os resultados de nosso trabalho.
Certamente não é por mérito e nem por força de hábito que encontraremos expostos,
e invariavelmente sempre ao final daquele trecho que recebe o nome de anexos, em forma de
perguntas, os ditos procedimentos que se conduziram durante as entrevistas. Aqui, durante o
trabalho da argumentação, nos valemos de monografias que tratam de representações
sociais, e com exceção daquelas que, obviamente por motivos de espaço, são resumidas em
forma de artigos em periódicos, todas reservam ao final algumas páginas para expor listas
com as perguntas feitas aos entrevistados. Assim é para os trabalhos mais clássicos e também
para os mais específicos.
Devidamente justificadas na sua escolha, tais perguntas permanecem, no entanto,
injustificáveis quanto à sua adequação para todos os entrevistados. Afinal, não basta que se
chame de entrevista aquilo que se faz, pois ao repetirmos perguntas para todos os
entrevistados, ao escolhermos que perguntas devemos fazer ainda antes de conhecer aquele
com quem travamos contato, mesmo que seja de frente para câmeras, ou sem o recurso do
lápis e papel, estaremos já fazendo questionário.
Uma entrevista, nesses termos, não é mais que acrescentar respostas a perguntas, e
necessariamente por isso, transformar perguntas em opiniões prévias. Ficamos restritos a
14
achar que para haver uma entrevista é preciso ter questões a responder, sem saber se os
entrevistados podem ao menos responder tais questões, e assim reduzimos nosso problema à
sua face mais superficial de perguntas previamente delineadas.
As perguntas passaram a ser mais úteis em nosso trabalho no momento em que se
procurou preservar as posições assumidas pelos entrevistados, e a partir delas, descrever os
argumentos levantados. Porém, é preciso tomar uma referência teórica, e neste caso, já a partir
da construção dos instrumentos de pesquisa, não se pode dizer que a participação dos
entrevistados tenha sido livre; mais ainda, quando a intervenção do pesquisador, em muitos
casos, contribuiu para retirar dos envolvidos a posse de uma interpretação própria.
Na condução de nossas entrevistas, teve lugar de início uma preocupação de modo a
contemplar os temas que, na fundamentação teórica, pareciam recorrentes na representação de
caboclos, tais como a própria definição, o caboclo enquanto “tipo regional”, as idéias de
“hospitalidade” e de “mansidão” que o acompanham.
É certo que não se consegue criticar um esquema usando seus elementos próprios,
uma falsa oposição disso decorre na medida em que os resultados de nossa crítica são
forçosamente os mesmos do objeto criticado. Nossa pesquisa incorre no mesmo problema,
uma vez que, conforme se observou, nossos erros são os mesmos dos autores que trouxemos
como referência.
Como exemplo, em nosso trabalho tivemos a intenção de abordar o estigma de
caboclo tomando o cuidado de entendê-lo como uma produção social, isto é, não
propriamente pessoas, mas um processo de representações que diz a respeito dos caboclos de
que falamos.
Ao deixar as coisas assim, não quisemos correr o risco de reificar uma construção
que parece existir somente quando as pessoas falam. É de pessoas, sem dúvida, que trata a
15
questão, mas ao mesmo tempo, de pessoas que são interpretadas, ou mesmo faladas, pelas
representações que assumem.
o risco de que, ao falarmos em caboclos, e aqui falamos muito, damos, sem
precisar de mais provas, sua existência por assegurada. Um dos problemas aludidos durante a
exposição pública de que consta este trabalho, por ser uma dissertação e ao considerarmos
tais dificuldades reforçamos a certeza de que numa introdução jamais estamos no início foi
nossa opção por uma abordagem indireta aos chamados caboclos. A questão a permanecer é
que a auto-identificação no caso de um estigma é sempre problemática.
Não quisemos abordar diretamente um estigma que se observa pela evocação de
outros, e no entanto, esta aparente alienação foi o resultado mais visível de chamar um outro
grupo para falar sobre caboclos, e não os próprios.
Uma dificuldade coerente com tal escolha se resume ao que, na conclusão do
trabalho, apresentamos em forma de produto, neste corpo mesmo que as alíneas, pelo poder
que têm de separar idéias, conferem a um texto.
Lembramos que não era interesse deixar as coisas nestes termos, ou dizer o que é um
caboclo, mas no final foi a isso que chegamos. Talvez em abono de nossa tentativa possamos
dizer que as idéias de caboclo precisam ser descritas, questionadas no ponto onde se formam,
e que o trabalho de reflexão não pára por certo que não esgotamos os efeitos dessas
idéias, incluindo os efeitos que despertam para aqueles que se assumem nelas.
A questão do método também revelou outras dificuldades como as provocadas pelos
efeitos a que uma entrevista está suscetível, basicamente pela falta de atenção para a distância
social ou cultural entre pesquisador e entrevistados. O fato de que entres estes se escolheu
ouvir profissionais sociólogos ou historiadores, cujo domínio do tema comum se acha num
campo diferente, ou que se tenha escolhido um presidente de uma associação, o que parte
de uma situação de desnível impossível de contornar, ou ainda entrevistados recém-chegados,
16
que mal ouviram falar de caboclos, ou ainda entrevistados com cinqüenta anos na cidade, que
por sua vez já ouviram a ponto de não haver mais a ser dito – tais são as relações de
assimetria encontradas.
Ao falarmos em caboclo cabe como medida primeira delimitar sob que aspectos este
conceito é abordado e por que o tomamos como objeto de pesquisa uma vez que seu estudo se
apresenta dificultoso. Parte-se aqui do problema do próprio conceito: é justo atribuir à
categoria caboclo a condição de conceito, com a formalidade e o consenso exigidos pelo
pensamento dito científico? Discutimos a pertinência da apropriação acadêmica do termo,
pois uma tal abordagem do caboclo traria o risco de considerar uma expressão que no uso
popular é pejorativa e dar a ela estatuto fixo destacado de seu uso corrente.
Acredita-se no presente trabalho que exatamente por apresentar diversos significados,
de termo pejorativo a expressão de identidade, se impede ao caboclo ser dotado de um sentido
único, fixo, e como se sabe pelo tratamento heideggeriano dedicado à questão do ser, não é
por não possuir um esclarecimento sobre a questão do seu sentido que tal questão se acha
resolvida.
Recorrer à teoria das representações sociais significa fugir ao reducionismo que
restringe os fenômenos psicossociais a duas esferas a cada tempo, uma para o indivíduo e
outra para a sociedade. As representações sociais são estudadas em psicologia social como
uma forma de entender como as pessoas ressignificam um conhecimento socialmente
estabelecido, e, portanto, sua importância para os estudos psicológicos se deve à idéia de que
conhecendo as representações se sabe como as pessoas podem agir em sociedade.
Se as representações se constituem saberes sociais é possível refazer o percurso dos
caboclos não enquanto homens descendendo de homens, grupos de grupos, mas enquanto
idéias que se alimentam de outras, ganham força em dado momento e autoridade para
alcançar a hegemonia sobre as demais.
17
Na teoria das representações sociais se faz uso da expressão “universo consensual”
para falar do processo no qual o homem se torna medida de todas as coisas, de modo que, ao
nos referirmos aos objetos não podemos mais distinguir de que maneira eles podem existir
senão pelo entendimento que deles fazemos. Compreender a relação entre pessoas e coisas
como um fenômeno consensual nos oferece uma alternativa ao que sabemos como “universo
reificado”, no qual tudo ganha um lugar definido, constante, e assim independente das
pessoas.
Caboclo implica também uma forma de tratar, de nomear o outro, é, portanto, um
termo que, aceito socialmente, reproduz um significado. A mudança que se pode observar
neste significado de tempos em tempos carrega a inevitável conseqüência da mudança sobre o
modo de agir frente ao outro.Cabe por fim estudar as representações sociais de um termo
historicamente consolidado como estigma, uma vez que as representações possuem a
capacidade de produzir novos significados. O caboclo, atualmente, não pode responder mais
unicamente por alcunha pejorativa, tendo em vista sua veiculação extensiva na mídia (com
critérios comerciais) estar associada a conceitos vagos de “raça” em oposição a apatia, e
“luta”, ainda, em oposição a passividade.
A pejoratividade da expressão, no entanto, parece acompanhar implicitamente as
variações nas quais a idéia recebe outro corpo teórico e atualidade.
1 O ESTIGMA COMO IDENTIDADE
Espera-se que uma definição de dicionário, sem muito esforço de convencimento,
tenha peso de autoridade, e mesmo de algo feito para não se questionar, porque afinal um
dicionário pressupõe a segurança do conhecimento, senão pronto, consensual.
Na definição de caboclo espera-se, novamente sem muito esforço, identificar aquele
homem que saiu do mato e aproximou-se da vida urbana. Trata-se de uma explicação
estigmatizante, dizer que alguém “saiu” do mato nesta forma de ver as coisas é dizer na
verdade que esse alguém continua lá, porque resume a pessoa ao lugar de onde veio.
É uma explicação que não deixa claro os motivos desta suposta saída, e que a mesma
não representa, de modo algum, uma transição pacífica de escolha dos sujeitos.
A qualidade pejorativa do termo caboclo acha-se a propósito descrita no trabalho
clássico intitulado Santos e visagens de 1955, que Eduardo Galvão, como tese de
doutoramento pelo departamento de antropologia em Columbia, dedica ao estudo das crenças
religiosas em uma localidade do baixo Amazonas. No final da segunda edição do livro (1976)
acha-se a definição para “caboclo da beira” como sendo um termo usado para desqualificar
alguém: “Designação pejorativa dada aos moradores das ilhas e das várzeas, identificando
também ao seringueiro. Indica posição social inferior” (GALVÃO, 1976, p. 165).
Orlando Sampaio Silva, que por sua vez estudou Galvão em tese de doutorado pela
PUC de São Paulo (1996), oferece uma descrição do pensamento daquele autor a respeito dos
caboclos em Santos e visagens em três contextos: como um produto de miscigenação entre os
chamados brancos e índios, também como uma constituição das diferenças entre cidade e
aldeia, ou seja, enquanto uma segregação feita contra tudo o que não é urbano, e
principalmente como uma expressão da sociedade de classes que vai ser erguida nos moldes
de uma estratificação social européia baseada na acumulação de capital.
19
O caboclo assim,
[...] é o homem que pertence às camadas ou classes sociais mais baixas da população
rural da Amazônia, os
trabalhadores rurais. Assim, na estratificação social regional,
ocuparia as camadas superiores da população o
patrão, detentor do capital,
seringalista (proprietário do seringal), dono do barracão, que promove os
aviamentos; o dominador é o “branco” (independente da cor de sua pele); o
subordinado é o caboclo, categoria social constituída de mestiços amazônicos, índios
em processo de aculturação, sertanejos nordestinos emigrados (qualquer que sejam
as cores de suas peles, inclusive os brancos), negros, portugueses e seus
descendentes [...] (SILVA, 1996, p. 223) [Grifos do autor].
Deve-se destacar a capacidade de Galvão em identificar nos caboclos uma
classificação de ordem geral que subordina e inclui até a nordestinos, negros e portugueses,
identidades que poderiam ser vistas como separadas e que manteriam oposição com uma
suposta identidade cabocla. A contribuição de Galvão está em sair da interpretação dominante
de que os caboclos representariam um tipo físico particular ou um grupo específico e
considerar a ordem social presente em sua definição:
O termo brancos, usado comumente para designar a classe superior é signficativo
de distinções sociais na base de cor da pele e tipo físico. Entre os
brancos, porém,
encontram-se indivíduos com acentuadas características negróides, ou mongolóides
[Aqui, talvez como forma de fazer sua crítica, Galvão acaba entrando na mesma
lógica racial que estava descrevendo de fora]. A cor da pele não constitui barreira à
ascensão social. Negros ou caboclos bem-sucedidos no comércio ou na política são
considerados
brancos do ponto de vista social. “O dinheiro embranquece a pele” é o
comentário local. Características físicas são usadas o mais das vezes, de modo
impreciso, para acentuar posição social inferior. Assim, um carregador de água,
branco como poucos na comunidade, era classificado como
caboclo, no sentido
racial e social dessa designação (GALVÃO, 1976, p. 20-1) [Grifos do autor].
De qualquer forma, numa compreensão naturalista das coisas, espera-se que o
caboclo, na condição de homem que se pode ver e identificar com facilidade, tenha
assegurada sua definição, pois afinal que conhecimento esperar de algo que se modifica senão
um conhecimento sempre parcial? Voltamos ao problema dos terrenos aparentemente
“movediços”, mas que, na realidade, apenas não podem ser totalizados, como aliás nenhuma
essência humana. É Heidegger, filósofo alemão que inaugura uma vertente própria de
20
investigação fenomenológica, quem primeiro nos alerta sobre a anterioridade da existência
quanto à essência, e que entes humanos, ao contrário de coisas, não podem jamais serem
completamente descritos ou conhecidos em suas essências (HEIDEGGER, 2002).
Assim, para uma interpretação negligente das coisas, seria de estranhar que no
Dicionário do Folclore Brasileiro (2001), cujo lançamento data de 1954, Câmara Cascudo,
intelectual brasileiro que se dedicou ao trabalho de catalogação dos costumes e crenças
brasileiros, subordine a definição de caboclo ao verbete de caipira, descuidando de tratar do
passado estigmatizante da expressão. A experiência mais singular de um dicionário de
folclore, que poderia nos precipitar à palavra morta, é descobrir, na comparação entre as
várias definições de seus verbetes, um movimento contraditório de mudança:
Caipira. Homem ou mulher de pouca instrução que não mora em centros urbanos.
Trabalhador rural, de beira-rio ou beira-mar, ou de sertão. É chamado também de
caboclo, jeca, matuto, roceiro, tabaréu, caiçara, sertanejo, dependendo da região
onde habita. A obra de Antônio Cândido,
Os Parceiros do Rio Bonito, oferece
algumas explicações a respeito: “Um lençol de
cultura caipira, com variações
locais, que abrange partes das capitanias de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso.
Cultura ligada a formas de sociabilidade e de subsistência que se apoiavam, por
assim dizer, em soluções mínimas, apenas suficientes para manter a vida dos
indivíduos e a coesão dos bairros” [...] (CASCUDO, 2001, p. 97-8) [Grifos do
autor].
Nenhuma menção ao caboclo como entidade amazônica, tipo regional do norte
brasileiro, mas enquanto um termo com que se nomeia o homem interiorano; e mesmo são
escolhidos autores de maneira a justificar esta compreensão do caboclo, ou caipira, como
homem rude, mas ao mesmo tempo, por seu exotismo, dotado de um interesse particular. É a
noção problemática de cultura, que permanece não explicada, ela mesma usada para explicar
este homem, que permite justificar o desviante e atribuir a ele um estatuto legítimo. Apesar
das críticas que Câmara Cascudo recebeu por ter pretendido compilar na forma rígida de
verbetes um saber que acontece em movimento, o autor se defende recorrendo aos préstimos
que tal serviço reserva aos estudiosos do folclore.
21
Um estudo de representações sociais visto como se pretende aqui, a princípio, não
seria um estudo de folclore e nem exclusivamente uma investigação sobre culturas porque não
estaria voltado exclusivamente para os conteúdos das representações, mas interessado em
desvendar como se chega até eles. Que elementos do saber comum permitem que os caboclos,
ora identificados como índios, ou como um tipo de homem natural da região amazônica, ora
como caipiras, os moradores do interior dos estados do sudeste brasileiro, sejam também ora
um termo preconceituoso e ora uma identidade?
Entretanto, o risco sempre presente está em que as representações sociais, ao serem
tomadas como objeto de pesquisa, induzem a se pensar que o seu trabalho se esgota neste
conhecimento, na pura descoberta das representações. Mesmo que se conheçam quais
mudanças têm lugar quando um conhecimento é transportado para o domínio das
representações, continua sendo preciso perguntar como ocorrem. Em parte o presente trabalho
reafirma a necessidade de investigação dos critérios nos quais o caboclo é resignificado, e dos
efeitos a que as pessoas identificadas com esta expressão encontram-se expostas em meio a
tais mudanças, porque se por um lado parece certo identificar mudanças é preciso perguntar o
que muda, e deixar claro a natureza interna do fenômeno da mudança. Considerar o dado
pronto não nos ajuda a conhecer o seu movimento no tempo e também não se trata de estudo
de representações.
Interessa-nos portanto as representações sociais, o modo como uma definição está
sujeita às mudanças de significado no tempo.
Assim sendo, merece atenção o aparecimento do caboclo como expressão de uma
suposta identidade regional, própria, presente em expressões que percorrem do discurso
político até a propaganda de marcas.
Por não enfrentar a questão da sua diversidade de significados creditam-se origens
diversas para o mesmo termo: os caboclos seriam, como tipo regional, diferentes dos caboclos
22
da propaganda porque, obviamente, uns seriam uma identidade, outros uma idéia a ser
vendida. Gostaríamos de unificar os significados de caboclo apontando que embora o uso da
expressão pareça criar contextos diferentes, subjacente aos mesmos trata-se de elementos
comuns que podem ser aproximados.
Ocorre que, com os enfrentamentos inaugurados entre europeus e os povos por eles
subjugados, um desconforto na escolha dos termos se mantém presente no momento de
definir identidades. Pela diversidade de grupos humanos envolvidos, e suas histórias, chamá-
los de índios ou indígenas obscurece sua compreensão. Da mesma forma, expressões gerais
como branco ou colonizador também não ajudam a entender o problema, apenas qualificam o
sujeito pela ação por ele praticada. Em especial, por isso, o termo caboclo, que implicaria
em estigma desde o surgimento, acaba sendo evitado como expressão de identidade.
Numa das explicações acadêmicas mais aceitas e repetidas atualmente, o caboclo
aparece como uma expressão historicamente consolidada sobre um grupo que não controla a
própria representação. O próprio termo caboclo indicaria que o grupo assim nomeado não
faria parte do mesmo nível do interlocutor. Nessa disputa pela supremacia das representações,
pelo poder de representar, o fenômeno precisa ser desdobrado para se atingir sua amplitude.
Orlando Sampaio Silva (1996) baseia-se no próprio método de investigação de
Eduardo Galvão para descrever os dois planos em que uma análise dos caboclos precisa ser
feita:
São dois os planos nos quais se pode objetivar os estudos sobre o caboclo na
Amazônia; um se encontra no próprio nível das subjetividades, das identidades
sociais e das atitudes e julgamentos nas relações grupo a grupo, pessoa a pessoa, na
sociedade; está na
empiria, na realia; outro passa pela lente das interpretações
teóricas do antropólogo em relação aos fatos observados na
realia, nas sociedades
específicas. Estes dois planos se entrecruzam. Aquele deve ser surpreendido pelo
observador na sua efetivação concreta na dinâmica social e ser por ele submetido à
análise e síntese descritiva e, à sua reflexão interpretativa e reconstrutiva.
Galvão agiu exatamente nesse entrecruzamento. Leu no
livro das sociedades
observadas, seus componentes humanos constitutivos, os entrelaçamentos, os
convívios e as oposições e reconstruiu a sociedade de classes de origem colonial, ao
abordar a questão do caboclo amazônico (SILVA, 1996, p. 230) [Grifos do autor].
23
Um fenômeno que nos mostra esta divisão entre planos que Galvão observa está em
que a mesma qualidade pejorativa dos caboclos vai ser empregada como meio para se
justificar argumentos às vezes contraditórios entre si, desde a valorização dos caboclos até ao
abandono do termo. Pode-se encontrar interpretações antropológicas que partem das
atribuições pejorativas para mostrar que, na realidade, tratam-se de povos para os quais não se
deu a devida atenção e respeito, por outro lado também se encontram aquelas que lembram a
natureza depreciativa de chamar alguém de caboclo para defender o abandono do termo nas
ciências sociais. Não tanto interesse nas posições assumidas, mas, como se deverá saber,
nas articulações teóricas que levam a uma conclusão ou a outra.
Presume-se, nesta divisão entre o nível empírico e o teórico, que haveria dois
caboclos envolvidos, mas ao estudarmos o problema pelo lado das representações sociais
devemos ter atenção às apropriações que o caboclo como fenômeno recebe de um lado ou de
outro, seja por um lado continuamente observado e reconhecido num saber das relações
sociais, ou, por outro, interpretado de diferentes maneiras pelas vertentes históricas, políticas,
psicológicas e antropológicas que a ele se dedicam.
Deborah Lima, antropóloga que estudou os caboclos em sua tese de doutorado,
apresenta duas definições para o termo, uma afirma que o caboclo vem do tupi “caa-boc”, e
significa “o que vem da floresta”, e outra, na qual o termo viria da palavra tupi “kari’boka”,
que quer dizer “filho do homem branco”:
Ambas as etimologias são especulativas, mas na minha opinião a primeira tem mais
probabilidade de estar correta. Isso porque, na Amazônia,
caboclo foi inicialmente
usado como sinônimo de
tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas
usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos (LIMA, 1999, p. 9)
[Grifos da autora].
24
Embora faça uso do termo a autora deixa claro sua inadequação e questiona os
motivos pelos quais teria sido levada, ao menos temporariamente, a dedicar atenção ao
mesmo:
[...] adotei o termo caboclos para definir o sujeito da minha tese, mesmo tendo tido o
cuidado de analisar a complexidade de significados e apesar de, na conclusão do
trabalho, apresentar nota sobre o caráter provisional do termo dado que não havia
termo genérico de auto-denominação. Hoje abandono essa opinião, mesmo a de que
é possível tomá-lo como termo provisório. Como mencionei, não creio que possa
existir um uso neutro para uma palavra que tem na memória coletiva um conjunto
tão denso de significados (LIMA, 1999, p. 25-6) [Grifo da autora].
Em parte a implicação dos caboclos como termo pejorativo tem seu lugar nas
ciências sociais a partir do trabalho de Charles Wagley nos anos 1940, com primeira
publicação em 1953, consagrado a
Uma comunidade amazônica (1988).
Na localidade do baixo Amazonas que ele conheceu e para a qual deu o nome fictício
de Itá, a mesma que depois também seria motivo de estudo por parte de seu aluno, Eduardo
Galvão, Wagley se interessou entre outros pelos aspectos da vida social, em saber como as
pessoas ali definiam seu sistema de relações sociais. Pesquisando entre os moradores de áreas
diferentes chegou à conclusão de que os caboclos seriam sempre os outros, não sendo assim
possível identificar um grupo particular com este termo:
Assim como a gente da cidade tem uma tendência a considerar Itá uma sociedade
homogênea de camponeses de aldeia, a
Gente de Primeira de Itá também costuma
classificar todos os que lhe ficam abaixo na escala social de “o povo” ou “caboclos”.
Por sua vez, a
Gente de Segunda da vila demonstra sua superioridade sobre toda a
população rural, chamando-a de “caboclos”, termo que, entre os lavradores, é
reservado aos seringueiros da ilha que consideram inferiores. E, finalmente, esses
seringueiros se sentem ofendidos quando são chamados de “caboclos”, pois não
fazem distinção entre si próprios e os lavradores (WAGLEY, 1988, p. 121) [Grifos
do autor].
E por último para os seringueiros os caboclos seriam índios de cabeceiras de
afluentes do rio Amazonas, segundo ressalva o autor.
25
Dois critérios sobressaem, nessa passagem, para o estudo do caboclo enquanto
estigma: primeiramente, Wagley descobre uma oposição constituída entre brancos, ou “gente
de primeira” na expressão dos moradores do local, e não-brancos, que serve para justificar o
uso da expressão, e em segundo lugar uma outra oposição, também social, mas que toma
como referência a localização geográfica, no caso, a definição de urbano e rural. Para os
moradores das cidades próximas toda a gente de Itá é de caboclos, com exceção de alguns
poucos, considerados brancos, que ocupam os cargos públicos do local. Na indeterminação da
palavra é que, para alguém da cidade, as relações sociais em uma comunidade como Itá
parecem homogêneas e os caboclos são tomados como uma classe social inferior:
Itá, [...] ao forasteiro a impressão de uma sociedade homogênea de camponeses,
de pessoas que pouco diferem umas das outras quanto à posição social. Em Belém,
as pessoas das classes mais altas costumam classificar a gente de Itá, com exceção
de uns poucos representantes do governo que trabalham, de caboclos (WAGLEY,
1988, p. 120).
entre a gente de Itá o escalonamento social é mais claramente conhecido, porém,
ainda assim, não melhor definido, porque baseado num critério relacional que, como tal,
aparece nos enfrentamentos do cotidiano.
Tomando o médio Solimões como campo de pesquisa Deborah Lima reafirma a
hipótese de Wagley e não situa o caboclo como um homem propriamente, mas como uma
categoria relacional, e é por esse aspecto que concentra sua investigação:
É importante frisar a natureza conceitual do termo pois existe o perigo de tomar-se o
termo
caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras absolutas para um
grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o termo
caboclo deve
ser entendido como uma categoria geral de referência e identificação (LIMA, 1999,
p. 8) [Grifos da autora].
Essa interpretação, presente no trabalho de Wagley (1988), significa que, para
além de homem, definição suposta como equivocada, o caboclo é também uma teoria sobre
26
este homem, coisa que também inclui um certo número de condições para que essa teoria seja
válida. Há, no entanto, o risco que se concentra mais em descrever o produto acabado que
clarificar as condições de seu aparecimento.
Goffman, pesquisador de contribuições na sociologia e psiquiatria, abordou a idéia
de categoria social em seu trabalho sobre
Estigma, de 1963, no qual atesta ao mesmo a
característica de ser uma expectativa aplicada aos outros: “Parece, em geral, verdade que os
membros de uma categoria social podem dar muito apoio a um padrão de julgamento que,
eles e outros concordam, não se aplica diretamente a eles” (GOFFMAN, 1988, p. 16).
O estigma não ocorreria pela mera concordância com uma expectativa, mas quando a
expectativa que recai sobre um grupo os coloca na obrigação de agir conforme o senso geral.
No entanto Goffman não esclarece o caso do qual parte para fazer esta distinção, ficando ela
mesma pouco clara.
A idéia de categoria deve ser aqui tomada com o cuidado de entender que a própria
interpretação pertence ao objeto interpretado de modo que ao falarmos em caboclos
colocamos em jogo pessoas, os significados atribuídos a elas e também o modo como foram
construídos esses significados.
O próprio modo de entender o caboclo, seja como homem, como termo pejorativo,
ou como identidade define um campo de abrangência somente seu.
Assim é que a interpretação que entende os caboclos como um termo sempre usado
para pechar os outros deve ser entendida dentro de suas limitações como uma interpretação
fundada numa visão histórica.
Numa outra interpretação, que se pode dizer do “senso comum”, embora nada
além da expressão “comum” denote arbitrariedade, mas, pelo contrário, se tenha presente uma
teoria evolucionista muito explícita, os caboclos seriam o resultado de uma mistura de raças
entre portugueses e índios. Tal interpretação concede aos caboclos a condição de tipo
27
regional, mas ela também por si é insuficiente para descrever todo o fenômeno. Se há um tipo
específico que se justifique chamar de caboclo isto não vale para o caso dos seus filhos que
teriam que aceitar um nome não assumido pelos pais. Adotando a idéia de tipo regional como
explicação para o surgimento dos caboclos se cria uma noção de continuidade que contraria o
próprio sujeito histórico e sua passagem no tempo valeria dizer que os caboclos do presente
se ligariam aos do passado por vínculos extensos tão palpáveis quanto laços genéticos,
embora para justificar esta idéia nada mais se empregue senão uma vaga noção de história.
numa interpretação “psicológica”, da ciência nomeada enquanto tal (apesar das
limitações impostas no seu próprio campo a que pensemos “antes” dos conceitos), deveríamos
colocar em evidência o processo de construção dos significados de caboclo, e considerar com
isso o modo como um estigma, aparentemente consolidado, parece se tornar identidade e ser
assim considerado.
Um trabalho recente nessa linha, Um estranho no espelho (2004) de Graça Medeiros,
pode ser visto como uma tentativa de entender o caboclo para além do estigma. Sua proposta
de identificar as representações sociais de adolescentes sobre o caboclo amazônico pretendia
estabelecer a possibilidade do caboclo como identidade:
A escolha das representações do caboclo amazônico como objeto de pesquisa foi
feita em razão do interesse despertado em vista de evidências empíricas quanto à
existência (ou resistência) de estereótipos fortemente arraigados na cultura local
relacionados ao termo, especificamente na cidade de Manaus (MEDEIROS, 2004, p.
86).
Ao introduzir na reflexão teórica um conceito específico da psicologia social, o de
representações sociais, a autora inicia uma abordagem pelo que de inacabado, pelo que
permanece continuamente resignificado, uma abordagem que escapa ao comum das críticas
ao evitar um conceito pré-fabricado de caboclo, e pode trazer uma compreensão mais ampla
28
ao descrever os meios com que se produz ou reproduz um consenso sobre os chamados
caboclos.
1.1 As representações sociais como instrumento de conhecimento
A idéia de representação é mais adequada na medida em que parece difícil que o
caboclo exista como uma pessoa real, mesmo porque as características que definem quem
seria um caboclo não estão completamente explícitas nem são objeto de consenso.
Ao constatar casos em que caboclo servia como termo de auto-identificação Lima
(1999) reconheceu no achado uma forma de certos grupos se depreciarem frente aos
chamados “brancos”: “Deve-se acrescentar que o uso da palavra caboclo como termo de auto-
designação por alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição e
conflito interétnico com os brancos” (LIMA, 1999, p. 12) [Grifo da autora].
Associamos os estigmas a pessoas, mas os estigmas têm uma legitimidade que pode
ser entendida à parte.
Os estigmatizados não podem ser encontrados como pessoas “reais”, com identidade
própria, sua identidade é atribuída com base em julgamentos de valor que determinam o
cumprimento de certas funções a partir de uma organização específica na qual se definem os
papéis a serem cumpridos em determinado momento pelos membros de uma sociedade:
[...] o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser
divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quanto um processo
social de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em
algumas conexões e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são
pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos
mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o
encontro (GOFFMAN, 1988, p. 148-9).
Por “contatos mistos” o autor define as situações em que normais e estigmatizados se
acham reunidos em relação uns com os outros. Prossegue Goffman:
29
Os atributos duradouros de um indivíduo em particular podem convertê-lo em
alguém que é escalado para representar um determinado tipo de papel; ele pode ter
de desempenhar o papel de estigmatizado em quase todas as suas situações sociais,
tornando natural a referência a ele, como eu o fiz, como uma pessoa estigmatizada
cuja situação de vida o coloca em oposição aos normais. Entretanto, os seus
atributos estigmatizadores específicos não determinam a natureza dos dois papéis, o
normal e o estigmatizado, mas simplesmente a freqüência com que ele desempenha
cada um deles (GOFFMAN, 1988, p. 149).
Goffman tem como contribuição sair de uma noção do estigma enquanto objeto e
enfocar o problema por outro lado, a partir do seu processo, ao modo como procederam, no
caso dos caboclos, autores como Wagley e Galvão. Portanto, mesmo ao tratar em termos de
“estigmatizados” e “normais” não deixa de relativizar sua posição.
Por estigma até o presente momento temos empregado o termo com a definição deste
autor, que entende o estigma enquanto um conjunto de exigências que fazemos, e que além de
geralmente serem depreciativas de alguém, não correspondem a uma identidade que o
estigmatizado demonstra possuir:
Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas significam
até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são preenchidas? É nesse ponto,
provavelmente, que percebemos que durante todo o tempo estivemos fazendo
algumas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo que está à nossa frente
deveria ser. Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais adequadamente
denominadas de demandas feitas “efetivamente”, e o caráter que imputamos ao
indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto
em potencial uma caracterização “efetiva”, uma
identidade social virtual. A
categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de sua
identidade social real (GOFFMAN, 1988, p. 12) [Grifos do autor].
Nos casos em que uma identidade é assumida nas vias do estigma, como nos parece
o processo na chamada valorização dos caboclos, esta identificação se torna sempre
problemática. Quando Graça Medeiros (2004) entrevista alunos de escolas estaduais faz isso
pela familiaridade que aquele campo lhe desperta, por também ser professora além de
psicóloga, e ainda pela expectativa de surpreender jovens em pleno processo de construção do
seu conhecimento explica-se que pela idade, e numa compreensão de uma certa psicologia
30
chamada do desenvolvimento, ao entrarem na fase de adolescência seria característico
encontrar rapazes e moças em dúvida quanto à definição de seus conceitos e por isso mesmo
ainda abertos a outras idéias.
Não foi o que a pesquisa revelou, no entanto. Em plena construção de conceitos não
se imaginaria sujeitos de cabeça mais feita, levando a autora a concluir que a permanência do
estigma na representação seria o primeiro problema a ser enfrentado no passo de uma
identidade cabocla:
Um dado relevante observado foi que, sempre que instigados, havia uma certa
resistência a falar no assunto, como se não interessasse.
“Não tem muito o que falar
sobre caboclo”
, disse um deles, “porque isso é coisa de gente do interior”
(MEDEIROS, 2004, p. 89) [Grifos da autora].
É que com o conceito de representação uma outra posição e dificuldades próprias se
inserem ao estudo do caboclo.
As representações sociais são teorizadas na década de 1960 no trabalho de Serge
Moscovici (1976) sobre a difusão dos conceitos da psicanálise no saber leigo da França.
Àquele momento, se definiu como campo de investigação conhecer os processos pelos quais
um conhecimento restrito a um certo número de pessoas, o conhecimento dito científico, seria
compreendido pela sociedade em geral e cairia assim no uso público. Com o alargamento dos
seus objetos de interesse, a teoria das representações sociais, no entanto, passou a ser
empregada também para pensar o modo como, pois afinal é disso que se trata, o diferente e o
estranho são trazidos para o mundo particular daquele que representa. Com isso se abriu a
possibilidade de trabalhar com representações de grupos sobre grupos, estudando o modo
como configuram suas relações em sociedade.
Moscovici (1976) defende que as representações sociais seriam formas de
conhecimento do mundo, assim o propósito primeiro de sua ocorrência seria fazer o estranho,
familiar, de modo que se pudesse falar sobre. A conclusão a que somos levados é que se algo
31
não pode ser entendido também não existe para aquele que fala, e o entendimento aqui é
sempre do ponto de vista daquele que entende:
Les représentations individuelles ou sociales font que le monde soit ce que nous
pensons qu’il est ou doit être. Elles nous montrent qu’à chaque instant quelque chose
d’absent s’ajoute et quelque chose de présent se modifie. Mais cette dialetique, son
jeu, ont une signification plus grande. Si quelque chose d’absent nous frappe, et
déclenche tout un travail de la pensée et du groupe, ce n’est pas ent tant que tel mais
parce qu’il est étrange d’abord, hors de notre univers habituel ensuite. La distance,
en effect, a pour nous la surprise dont nous sommes saisis et la tension qui la
caractérise. La psychanalyse parlant de l’enfance, du rêve, de l’inconscient non
seulement introduit dans un domaine éloigde la vie humaine adulte, elle jette
également une lumière qui étonne, choque. Les découvertes scientifiques ou
techniques frappent au sens prope du mot. La tension à laquelle nous faisons
allusion trahit constamment son origine (MOSCOVICI, 1976, p. 57).
1
Tornar “familiar” no sentido empregado por Moscovici não significa que não haja
estigmatização, pelo contrário, e Martin Heidegger (2002), na obra Ser e tempo, seu trabalho
de dez anos concluído em 1927, descreve os efeitos aprisionadores do conhecimento que não
se questiona. No que nos ensina, é pela falta de uma questão do ser, do questionamento, que
toda ciência do homem se torna uma repetição de palavras gastas.
A necessidade de também questionar as representações, não como realidade, nem
sequer como uma realidade, nos remete para a condição que ocupam, de interpretação em
constante mudança.
O modo como a teoria das representações sociais, ao se basear em um conhecimento
do cotidiano, tem como via quase que exclusiva de investigação o cotejamento das
interpretações de entrevistados entre si, traz o risco evidente de reificar este conhecimento da
______________
1
Numa tradução livre: As representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que nós
pensamos que é ou deve ser. Elas nos mostram que a todo momento alguma coisa que não estava presente é
somada e que algo presente se modifica. Mas esta dialética, e seu jogo, têm uma significação maior. Se algo
ausente nos ameaça, e instiga todo um trabalho de pensamento de um grupo, não é como tal, mas primeiro
porque é estranho, então fora de nosso universo habitual. Realmente, a distância nos guarda da surpresa, presos
que estamos, e da tensão que a caracteriza. A psicanálise que fala sobre a infância, os sonhos, o inconsciente,
não introduz um diferente domínio da vida humana adulta, mas também lança uma luz que surpreende,
choca. As descobertas científicas ou técnicas desafiam o sentido claro das palavras. A tensão a qual nos
referimos trai sua origem constantemente.
32
forma como se acha. Reificar, isto é, tomar como pronto e bastante algo que é construído, é
um risco que o pesquisador assume se não questiona também o conhecimento dos sujeitos que
entrevista.
Por outro lado, é também perigoso deixar que a interpretação do pesquisador rivalize
com a dos entrevistados, de modo que é preciso também o cuidado de separar da análise o que
não está presente de início e que o pesquisador coloca, para se evitar que sua interpretação
assuma a frente do trabalho à guisa de conclusão antecipada. Até que ponto, porém, este é um
cuidado e até onde ele se torna um instrumento de reificação da palavra dada? Pois, não
contrapor os entrevistados também deixa em aberto parte do trabalho de conhecer os
fundamentos de seu pensamento.
Para produzirmos alguma reflexão sobre identidades, conceito que traz ao mesmo
tempo o novo e o velho, as explicações se tornam dificuldades e não, como se pensa,
instrumentos do pesquisador.
Uma dificuldade se deu aqui pela primeira sugestão de título do trabalho, O migrante
e o caboclo, em que ambos foram colocados a princípio numa relação direta, desconsiderando
se tratar de termos definidos por critérios diferentes, um pelo de naturalidade e outro pelo de
domicílio, conforme nos foi assinalado
2
.
É preciso, no entanto, e aqui começam as ressalvas, entender o migrante e o caboclo
como duas unidades discursivas que precisam estar situadas nas teorias correspondentes para
não serem naturalizadas. É preciso tê-las antes como expressões datadas e presas aos
esquemas interpretativos dos quais se separam para ganhar vida própria. Não muito melhor é
a expressão nordestino, que qualifica os sujeitos da pesquisa, mas que nos remete de maneira
mais clara às representações sobre identidade.
______________
2
Em exame de qualificação no auditório do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,
de 23 de agosto de 2006.
33
A dificuldade do conceito de caboclo, menos facilmente identificável, reside em ter
significados que se modificam pelo contexto tomado e pela interpretação que se considera.
Em todo caso, não se deixou sem tratamento o arbitrário com que, na história de sua
construção, o termo foi transmitido. De fato, para fugir do arbitrário dos julgamentos de valor
e dos preconceitos é que este trabalho foi conduzido.
Assim se perguntou e se fosse possível recuar ainda mais no ponto de partida e
entrevistar os sujeitos antes mesmo que eles tivessem qualquer contato com a chamada cultura
amazonense? Seria igualmente possível, enfim, evitar qualquer idéia anterior e com isso
chegar a uma definição isenta de estigma?
De modo a contornar o problema do estigma foram selecionados sujeitos para formar
um quadro de representações isento das idéias preconcebidas que eles pudessem ter. Uma vez
que em Um estranho no espelho foram entrevistados estudantes naturais do Pará, Amazonas e
Acre, estados nos quais o termo caboclo é de uso corrente numa conotação pejorativa, na
presente pesquisa se tentou outra abordagem, escolhendo-se nordestinos em Manaus para se
ouvir o que teriam a falar sobre os chamados caboclos.
Pela impossibilidade de chegar aos próprios, recorremos a esta identidade
supostamente segura nos nordestinos, como num jogo de espelhos em que ao dirigir nossa
mirada a uns, temos o reflexo de outros. Antes, porém, como no estranho ao espelho, imagem
tomada a Silenius, e visitada por Graça Medeiros, o outro traz consigo um outro daquele que
se olha, e provavelmente não é quem se espera ver.
Por sua vez o problema da auto-identificação retorna quando tomamos a denominação
de nordestino como identidade de um grupo, e se não houver nisto outro motivo, apenas
porque aparentemente seria fácil atestar sua existência. É nesse sentido que fazemos outra de
nossas ressalvas, necessárias para entender este trabalho dentro das específicas posições que o
tornaram possível: nosso tratamento de hipóteses considerou o equívoco de pensar os
34
nordestinos como um grupo de coesão externa duradoura, enquanto sabemos que tal coesão,
presente nas identidades assumidas, depende em larga medida de uma disposição que as
pessoas, em suas relações, estejam dispostas a compartilhar. Tal disposição encontra-se
melhor definida nos momentos em que, especialmente uma outra terra, a proximidade com o
diferente e o estranho chama para assumir uma identidade suposta “original”.
Os nordestinos, assim, foram tomados como um grupo, supostamente portador de
uma “segunda” visão, alheia aos preconceitos históricos locais, para se evitar uma definição
estigmatizadora do caboclo. Contribuiu para esta escolha a idéia, de muito reificada, de que
não se poderia entender a realidade local sem se considerar a participação nordestina; idéia
defendida por Samuel Benchimol (1992) desde o seu trabalho de pesquisa na década de 1940
sobre os chamados “soldados da borracha”, os nordestinos recrutados para extrair o látex nos
seringais como parte do esforço para abastecer o exército americano na 2ª Guerra.
Tomando de início os nordestinos em Manaus, de certa forma se está na seguridade
dos objetos pré-fabricados, cuja garantia não expira, a salvos que estão, em qualquer época,
dos ataques das transformações sociais e do próprio modo que se convenciona de fazer
pesquisa, recursos que saem da história, feitos que são para não serem questionados, e não é
preciso muito esforço para explicar as coisas em termos de estigmas, atribuímos nomes
porque acreditamos que assim sabemos do que estamos falando, mas é preciso muito esforço
depois para sair do estigma, principalmente depois que tomamos os objetos pelas nossas
expectativas, e também o contrário.
Veja-se o quanto, embora os conceitos metodológicos, que ditam como se faz
pesquisa, pareçam lógicos e nos levem a deduções aparentemente encadeadas, é na evidência
dos julgamentos apressados e dos vícios de formação, aludidos, que se assentam, e
persistem, sem que sejam notados.
35
O espontâneo no critério de naturalidade, como exemplo, fez passar despercebido ao
entrevistador a associação implícita feita entre identidade e domicílio de origem, ou entre a
identidade e sua representação. Não por acaso o primeiro local visitado na pesquisa de campo
foi a sede do IBGE em Manaus, o que por si revela a orientação geográfica e estatística a que
pesquisadores psicólogos se rendem por nem sempre atentarem para seus instrumentos de
conhecimento.
Tentando escapar ao preconceito que uma palavra carrega, outro se instalou no
centro insuspeito dos procedimentos ditos metodológicos, exercendo seus efeitos para além
do esperado em termos que, em lugar garantido de imediato, prescindem da parte dos sujeitos,
inclusive. A exemplo de um certo controle de variáveis com que o pesquisador se sentiu à
vontade de início, a segurança dos procedimentos elegidos em torno de idéias extraídas das
ciências físicas, médicas e biológicas, e não são poucos os preconceitos que se admite por
importação, disfarça-nos, ao contrário, a ausência do controle defendido.
Dessa forma, para o controle do campo, os nordestinos, por um critério cronológico,
deveriam ter o menor tempo de estadia na cidade, de modo a evitar, no rastro do critério de
naturalidade com o qual foram escolhidos, que tivessem qualquer contato anterior com a
cultura local, para que não fossem influenciados pelos preconceitos locais (não muito longe,
na área médica, acharíamos a mesma idéia sob o nome de contaminação).
A idéia de influência, pela qual se mostra ampla aceitação nos estudos psicológicos,
muito depois foi abandonada pelo pesquisador, isto apesar dos inconvenientes, desde logo
sentidos, e dos malabarismos metodológicos necessários para se sustentar uma idéia tão
arbitrária.
Michel Foucault, o psicólogo francês, e seguramente saber a sua formação em nada
resume a sua obra, desde a década de 1960 quando estabelece uma revisão dos estudos que
36
antecederam sua Arqueologia do saber defende a necessária suspensão desses conceitos não
pensados, e também da idéia de influência,
[...] que fornece um suporte demasiado mágico para poder ser bem analisado – aos
fatos de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento
causal (mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenômenos de
semelhança ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo como por
intermédio de um meio de propagação – , unidades definidas como indivíduos,
obras, noções ou teorias (FOUCAULT, 2005, p. 24).
Ao estudarmos representações sociais foi preciso ainda pensar o limite temporal
imposto porque, a seu turno, não dizia respeito ao tempo dos sujeitos, o tempo em que se
colocam, e assim todo o trabalho de situar suas falas se pôs a perder no denominador
cronológico.
De qualquer forma, a experiência do campo levou a condução das entrevistas a ser
pensada não mais tendo por base critérios geográficos ou cronológicos, mas a partir de uma
concepção de identidades sociais que prezou pelo modo como os nordestinos, ao se saberem
assim, constróem em torno de si as condições que lhes permitem serem reconhecidos como
grupo, e as muitas expressões ditas regionais com que se defende tal nordestinidade fora de
“casa”. As entrevistas reunidas neste primeiro capítulo foram aproximadas em torno do
problema da identidade cabocla, surgido também a propósito dos questionamentos que os
sujeitos abriram – falando das possibilidades e dificuldades na construção dessa identidade.
Nessa discussão o caboclo não aparece somente enquanto homem, mas como uma
identidade a que esse homem se recusa assumir por motivos que deverão ser descritos mais de
perto. Neste primeiro momento são apresentadas as histórias de P. e C., um livreiro dedicado
ao estudo das ciências sociais, e um presidente de associação de nordestinos em Manaus,
respectivamente. Eles advertem em momentos diferentes sobre a necessidade dos caboclos se
assumirem assim, e as implicações daí decorrentes.
37
A entrevista com P. é apresentada sob a reflexão da identidade negada e C. pela
identidade que se deve assumir em ambos os casos um perfil de caboclo transparece pela
constatação de certas características comuns que precisariam ser afirmadas, segundo os
entrevistados, como próprias dos caboclos, em ordem de tornar possível uma identidade.
Ainda a entrevista com E., filho de um casal que viajou por todo o país antes da
família se estabelecer em Manaus, traz uma discussão sobre os lugares de nordestinos e
caboclos e de como o modelo de produção industrial foi recebido por ambos.
Em torno de um tema foram aqui colocados momentos diferentes, dos quais, sem
prejuízo às individualidades, se espera, pelo contrário, uma expressão fiel à palavra dos
entrevistados.
1.2 Da negação do que se é: transformações da identidade
A primeira entrevista realizada nesta pesquisa, numa tentativa de esboçar como
deveriam ser as entrevistas posteriores, aconteceu com P., livreiro, com formação em Ciências
Sociais, então com 37 anos.
Ele veio para Manaus quase vinte e um anos, quando Gilberto Mestrinho, um dos
políticos amazonenses que mais se valeram da imagem do “caboclo” em sua carreira, usava a
propaganda televisiva para divulgar esta imagem, e por isso, nas palavras do entrevistado, o
caboclo: “Está muito associado a canoa e remo” (P. – 20/01/2006).
P. nasceu em Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, uma localidade da qual saiu aos
sete anos em direção a Natal, capital, acompanhando o pai que havia recebido uma proposta
de trabalho. De para Manaus ainda demoraria mais algum tempo até que o pai, novamente
com uma oportunidade de trabalho em vista, se decidisse por Manaus em uma lista que
incluía também destinos na Venezuela, Congo Belga e Iraque. Nas palavras do entrevistado:
38
Deu uma crise econômica em 1983, meu pai não achava saída, até entrar numa
empresa prestadora de serviço de uma estatal e foi chamado para trabalhar aqui.
em 1985 eu vim pra cá, terminar o primeiro grau e porque eu nunca fiquei longe do
meu pai (P. – 20/01/2006).
Na verdade é em torno do pai que se a escolha nesse primeiro momento, ficar
perto do pai de quem nunca havia ficado longe é o que abre e fecha suas possibilidades. A
proximidade com a família funciona como um referencial numa terra a princípio estranha e
age como um dos motivos, o mais importante no caso, na origem da mudança. Atualmente,
com o pai morando em Natal outra vez, o entrevistado se inclina a pensar no retorno, um
momento que se aproxima.
Em Manaus, segundo P., se deu o início de sua “sociabilidade” como chama, também
pela idade com que chegou, pelos contatos que aqui fez, por ter se tornado mais “brincalhão”
por conta da “forma de tratar” que se tem aqui, porque, até mesmo pelo seu trabalho e relação
com a academia, tem muito mais leitura das questões amazônicas do que sobre o estado de
origem. O contato com Manaus se primeiramente pela formação acadêmica que a razão
mais objetiva subordinada à decisão de acompanhar o pai estava na conclusão do primeiro
grau quando aqui chegou. Foi na universidade, porém, que ele teve os meios de descobrir a
nova realidade: “[...] a universidade sempre foi minha orientação para conhecer tudo” (P.
20/01/2006).
A outra via para se interpretar sua relação com a cidade, como ele nos fala, está na
“afetividade”, a mesma com que ele pode aqui viver e não só estar:
Tenho uma certa afetividade muito forte, eu costumo dizer que eu não “estou” aqui
há vinte anos, eu “vivo” aqui vinte anos, essa é a diferença, saca como é? Mas só
que isso não me impede de criticar as coisas daqui, as pessoas confundem quando eu
falo que eu quero voltar pra lá, elas dizem que eu não gosto da cidade, não tem
nada a ver. O fato de eu viver aqui não tira a minha capacidade crítica (P.
20/01/2006).
39
Viver na cidade, assim, é também exercer a capacidade de criticar o que nela se
fora do lugar, e no caso de Manaus o entrevistado não entende a relação ambígua que as
pessoas parecem manter com a cidade, porque, conforme acredita, o ato de jogar lixo na rua
não seria algo isolado, não seria ação de um grupo, ou falta de educação (como este ato é
explicado num saber comum), nem de qualquer falta, mas de uma cultura que aqui tem seu
lugar:
Entrevistador: Que contribuição o nordestino pode dar a Manaus hoje?
Cultural. Fazer com que as pessoas gostassem mesmo daqui. Eu não entendo isso.
Como é que as pessoas podem ir pra televisão dizer que amam a cidade e jogam a
televisão no rio? (P. – 20/01/2006).
Uma das interpretações ainda correntes sobre a degradação ambiental na cidade
incide sobre o movimento de migrantes em Manaus, a partir da criação de um pólo industrial
na cidade. Pode-se ouvir como personagens principais dessa acusação nordestinos e
interioranos, agrupados como moradores de periferia.
Em Cidade de Manaus (2003), coletânea do Programa de Pós-Graduação Ciências
Ambientais e Sustentabilidade na Amazônia PPGCASA, reúnem-se trabalhos sobre a
produção do espaço urbano em particular enfocando o caso da bacia do Quarenta, um
conjunto de igarapés de Manaus que se acha continuamente ocupado por famílias que migram
para a cidade.
O artigo que apresenta os resultados da dissertação de mestrado de Nilciana Dinely
de Souza, sob orientação de José Aldemir de Oliveira, doutor em geografia urbana, traz a
interpretação que coloca os nordestinos e os migrantes do interior do estado na parcela de
responsabilidade sobre o fenômeno ambiental:
A ocupação das áreas dos igarapés de Manaus, particularmente da bacia hidrográfica
do Quarenta, remonta ao início da expansão da malha urbana da cidade. Num
primeiro momento, embora estivesse dentro do contexto urbano, articulado a ele, o
Quarenta possuía uso do solo diferente do atual: servia apenas como ancoradouro de
40
embarcações no período das enchentes. Aos poucos ele foi transformando-se em
alternativa de local de moradia para as populações de baixa renda. [...]
O processo de ocupação dos igarapés vai sendo também o processo de degradação
do meio ambiente, pela ausência de infra-estrutura básica de saneamento,
transformando-os em espaço agressivo às populações que residem. Esse processo
intensifica-se a partir do fluxo migratório originado pela atração produzida pelo
mercado de trabalho formal e informal gerado a partir da criação da Zona Franca de
Manaus, e pela expulsão das populações do campo e de outras cidades do Estado
pela falta de alternativas de sobrevivência nesses locais (SOUZA; OLIVEIRA,
2003, p. 84-5).
A definição de migrante naquela pesquisa é de alguém que mora no lugar em que não
nasceu, o que, apesar de evidente, implica sempre o risco dos julgamentos de valores que
passam despercebidos. Entendendo por migração a situação experimentada pelos seus sujeitos
os autores se colocam já na compreensão de natureza (embora não seja sua intenção explícita)
que define um ambiente próprio para cada um, o chamado migrante já estaria fora de lugar ao
sair da sua origem suposta. Os autores vão além desta interpretação ao concluírem depois que
a ocupação destas áreas da cidade não é uma alternativa propriamente, mas a falta dela:
Andando pelas margens do igarapé do Quarenta, o observador sente uma forte
impressão, ao presenciar o desmatamento, o intensivo processo de favelização, o
acúmulo de lixo em decomposição, a ausência de condições sanitárias mínimas, e
questiona sobre a racionalidade de um sistema que, ao mesmo tempo em que
preconiza o bem-estar da sociedade, promove relações que deterioram o ambiente,
comprometendo a qualidade de vida de boa parte da população manauara. Isso nada
mais representa do que o reflexo do próprio movimento contraditório do modo de
produção da cidade (SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p. 111).
A reflexão da realidade em termos de uma produção nos ajuda a entender que a
degradação urbana se achava em andamento antes da chegada do referido contingente na
década de 1960, na medida em que um conjunto de entrecruzamentos ocorria na produção
do espaço urbano, pois o “movimento contraditório” aí, implica em segregar um espaço e
valorizar outro, assim como mercadorias divididas de acordo com os poderes aquisitivos
(SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p. 109-12). Os processos de valorização, negação, proibição
atuam nos igarapés da maneira como, nas relações humanas, os grupos reforçam seus lugares
41
pela participação que permitem aos outros. Há, portanto, também o lado representacional
desta realidade.
Segundo P. refletiu em dada ocasião a degradação urbana seria um problema
favorecido também pela presença dos cearenses na cidade, que seriam nordestinos diferentes
dos demais porque não teriam o mesmo cuidado com a limpeza. Neste sentido, o cearense
estaria mais próximo do amazonense, quando se trata de jogar lixo na rua.
Ao situar a questão como cultural o entrevistado interpreta também o ato de jogar
lixo na rua como uma das características que separam os nordestinos e os “daqui”. Ele cita
Caicó, no Rio Grande do Norte, que seria a cidade mais limpa do Brasil, como um exemplo
para mostrar que essa não é cultura do Nordeste. Este modo de se relacionar com o ambiente é
uma diferença que aparece, não apenas para com os nordestinos, mas entre os “daqui” e os
caboclos, estes últimos, para pax( )-a
42
tem, e que eu não entendo, esse hábito das pessoas daqui de jogar lixo na rua, saca?
É a única coisa que eu não gosto daqui (P. – 20/01/2006).
P. afirma não poder fazer parte da mesma realidade dos caboclos, mas apenas porque
não teve o que chama de “imersão pesada” na sua cultura, e apresenta os elementos que lhe
faltam para que pudesse ser um caboclo: “[...] não gosto de pupunha, gosto de cará e de
cupuaçu. Caboclo não gosta de peixe liso, só japonês e eu é quem gosta” (P. – 20/01/2006).
Seria preciso uma investigação particular a fim de mostrar como a idéia de cultura é
chamada a explicar algo na ausência de explicação, como um conceito chave a servir aos mais
variados propósitos, dos valores positivos aos depreciativos é nesta base em que se assentam
os julgamentos na procura por um consenso que se pretende por fim definitivo. Não que a
cultura não tenha o poder de gerar unidade, aliás é um dos recursos de amparo com que se
conta nas representações sociais (MOSCOVICI, 2003), mas como critério de definição nos
parece que ela afinal nos isola da tarefa de compreender as variações que aparecem dentro de
si, ou de entender, usando o exemplo citado por P., se seria possível continuar sendo um
caboclo na ausência do peixe escamado.
Outro aspecto, que embora não apareça como negação, diz respeito a uma mudança
nas características físicas das mulheres que poderiam ser identificadas como caboclas. Essa
mudança física bem poderia ser entendida como perda de alguma coisa original, pois sobre ela
o entrevistado lamenta:
Essa cidade tá embranquecendo, o tipo de cabocla é pequena, perninha grossa,
bunduda, cara de índia e você não encontra mais essa mulher, estão espichando as
meninas, ficando parecidas com as do sul, loura, alta... estão ficando parecidas com
Fortaleza, eu tenho impressão que esse embranquecimento é das transas dos anos
oitenta, noventa (P. – 20/01/2006).
Esse embranquecimento a que ele se refere precisa ser entendido nos limites, não de
uma experiência em si, mas de uma interpretação, que como tal nos ajuda a situar o critério de
43
permanência da imagem de caboclo a transformação de um tipo físico, quando este passa a
trazer características de outro tipo, traz a perda de características distintivas de um grupo.
Esse conhecimento do que se é pelo que se vê não é questionado no que tem de real,
identificável, mas apresenta o que devemos investigar se queremos saber como uma
identidade se mantém: ela se mantém quando se consegue divisar uma imagem sua, não
facilmente compartilhada com outras.
E as caboclas, para o entrevistado, não são uma alegoria ou uma imagem abstrata de
44
como caboclos se isto continua sendo uma forma de se fazer existir aos olhos dos outros, aqui
identificados como aqueles do “sul”.
Durante a entrevista, em que por uma tarde P. me recebeu na livraria em que
trabalha, em alguns momentos recorria a músicas para explicar-me sobre o Nordeste e o que
se quer quando se põe em cena essa expressão. Em dado momento se pôs a falar sobre Jessier
Quirino, compositor e autor do livro Prosa morena, e colocou para tocar algumas canções
falando sobre o nordestino do sertão, daí iniciando um longo bate-papo sobre literatura de
cordel. Ao final da entrevista, P. se retira do local comigo e em rápida conversa me sugere
pensar duas questões que não poderiam faltar, segundo ele: a primeira dizendo respeito ao que
chamou de diáspora dos nordestinos, essa sua dispersão pelo Brasil que, não obstante, não
apaga a vontade de retorno, e a segunda, o que chamou de lógica do extermínio, uma
determinação ao confronto, que o nordestino teria mais acentuada.
Na entrevista o caboclo aparece mencionado em vários níveis diferentes entre si, de
modo que seria justificado definir a abrangência de cada um deles. A chamada identidade
cabocla aparece como um atributo não assumido totalmente pelos moradores de Manaus que
negariam os elementos dessa mesma identidade (natureza, vegetação) e passariam a se
considerar caboclos apenas por uma tentativa de se separar da identidade do homem do sul.
Esta reflexão sobre a identidade cabocla acaba por se basear numa idéia anterior de quem
seriam os verdadeiros caboclos, ou seja, o caboclo como homem adaptado ao seu meio,
morador da região, que respeita a floresta, não polui.
Aparece ainda o sexo como critério de definição de caboclo, no caso o termo cabocla
é usado pelo entrevistado para se referir às mulheres que seriam erroneamente chamadas de
morenas, porque a pigmentação pode ser próxima, porém não é igual; seriam ainda mulheres
de estatura baixa, com pernas grossas e demais atributos chamativos. Cabocla tem uma
conotação erótica evidente, podendo ser entendido como um termo usado por homens ao se
45
referir a suas mulheres, não pelas mesmas. ainda o caboclo ideal, um modelo de caboclo
que, pelo que pôde ser apurado, não precisa ser visto como um homem real, mas sim como
elementos comuns que podem aparecer e aparecem com mais freqüência, como um caso
geral.
A divisão feita com o auxílio do termo caboclo para a mulher uma conotação
erótica, a cabocla, e para o homem uma notação de virilidade. Quando se fala em mulher
amazônica, pelo contrário, o motivo de virilidade muda de lado e passa a ser uma qualidade
feminina, a idéia de luta é comumente representada na figura das mulheres guerreiras, das
amazonas guerreiras, da mulher amazonense que cria os filhos sozinha sem precisar do
marido, que seria uma figura paterna apagada, limitada à sua função biológica. Devemos
fazer uma clara distinção nos modos como duas representações hegemônicas, a representação
de cabocla e de amazona, ambas ainda na construção da realidade, encorajam expectativas
diferentes para os objetos de seu alcance, no caso as mulheres que não são nem as amazonas
gregas da literatura nem as caboclas no sentido da mulher ingênua feita para o prazer.
1.3 Saindo da toca: “a partir de agora somos caboclos”
A segunda entrevista foi realizada com C., presidente de uma associação de
nordestinos em Manaus, que é também sociólogo e professor. Estava em Manaus quase
onze anos no momento da entrevista, em uma manhã no início de 2006. Aos quarenta e oito
anos, suas atividades se dividem entre os cuidados pessoais e a vida profissional envolvida
pelos projetos da Associação.
O contato inicial, no momento em que o projeto de pesquisa ainda estava sendo
formulado, se deu primeiro a partir da Associação, através de uma campanha de fim de ano
que chamou a atenção do pesquisador. Conversando com C. foram fechados os detalhes desta
entrevista. Na verdade foram dois encontros, sendo que, no primeiro, apresentei a pesquisa e
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conversamos sobre a Associação, e no segundo, tivemos a entrevista que vai narrada aqui.
Interessava saber como uma associação abriria relações com o povo de outro Estado e ao
mesmo tempo manteria a posse de uma identidade nordestina. Também se pensou em ter na
associação um campo de pesquisa para entrar em contato com outros nordestinos em Manaus.
A iniciativa da associação é inseparável da vida do entrevistado. Ele esclarece que
veio para Manaus “em busca de aventura” e um atrativo da cidade estava na presença de um
grande contingente de nordestinos aqui, característica que ele precisava encontrar para
realizar seu projeto de um centro difusor de tradições nordestinas.
Antes de Manaus, o entrevistado esteve em Palmas no Tocantins, onde passou um
ano, e contou-me que suas viagens começaram por motivos pessoais, após a separação da
mulher: “Após a separação fui atrás de novos desafios, foi por questões pessoais, não foi por
questões financeiras porque eu estava muito bem empregado” (C. – 23/01/2006).
A associação, que então contava aproximadamente dezessete anos, teria surgido com
fins políticos que C., ao assumir a presidência nos últimos cinco anos, se preocupou em
substituir. Em suas palavras, a associação hoje, “é útil como paixão, paixão de um grupo,
ideologia e para conseguir uma sociedade melhor” (C. 23/01/2006). Por isso tem como
objetivo “divulgar a cultura nordestina e seus hábitos, fazendo um intercâmbio entre
amazonenses e nordestinos” (C. – 23/01/2006), tendo como base a idéia de que as duas
culturas são próximas uma da outra e também a idéia de que os caboclos em sua formação
estão ligados aos nordestinos.
Que contribuição o nordestino pode dar a Manaus hoje?
É uma questão delicada... porque eu não posso analisar hoje o que se deu ontem...
toda a formação histórica do caboclo está ligada ao nordestino... se fosse hoje e o
nordestino encontrasse o mesmo momento que encontrou aqui no período da
borracha também teria trazido a tecnologia, digo o “know-how”, traria a mão de
obra especializada, não tô dizendo que o caboclo não saiba fazer, ou não tenha
competência, a questão é que o nordestino vem com a intenção de contribuir
profissionalmente... e assim foi, com os nordestinos que chegaram e se destacaram
em todos os setores, da política, do judiciário, até a questão empresarial. O caso do
Urucum, aqui perto da gente, os cargos de médio-superior são ocupados por
47
nordestinos. O nordestino se sente em casa aqui, em toda esquina você encontra um
nordestino (C. – 23/01/2006).
O fato de que os cargos mais elevados de produção industrial amazonense estejam
destinados assim de antemão a grupos já definidos não parece para o entrevistado contrariar a
idéia de igualdade entre nordestinos e caboclos, mas sem dúvida deve produzir uma relação
de exclusão, porque os dois povos seriam iguais desde que ocupando lugares diferentes:
Nordestinos e caboclos, qual dos dois estará mais bem adaptado à vida no
Amazonas?
Os dois se confundem na verdade, uma pequena diferença enraizada é que o
nordestino tem espírito maior de luta, é mais obstinado. Ambos são maleáveis,
hospitaleiros, fáceis de se adaptar. O nordestino tem um pouco de pimenta a mais,
mas eu não concordo que o caboclo seja preguiçoso, não é isso, é que a acomodação
é uma parte da sua cultura (C. – 23/01/2006).
Para justificar uma oposição que soa estigmatizante se recorre à cultura, que serve
então como um critério absoluto: qualificar algo como cultural neste sentido é recorrer a uma
explicação natural dos fatos. Tenta-se fugir do preconceito buscando construir uma evidência,
prevalece a idéia de nordestino como a força de trabalho nata, que teria o mesmo preparo e a
competência dos caboclos para o trabalho, mas também algo que estes não – a vontade.
“O nordestino é, acima de tudo, um homem forte” é por esta citação, parafraseando o
original de Euclides da Cunha, que C. começa a descrever a associação em um de seus
folhetos informativos. O nordestino como força de trabalho ultrapassa o aspecto histórico e se
torna representação que serve para explicar todas as situações, torna-se uma natureza, com
que sempre contar. A metáfora do nordestino em Os sertões recorre à terra para buscar as
qualidades de pureza. A história na sua opinião também teria um gradiente de valores do mais
puro ao mais mestiçado, e Euclides parte assim do litoral brasileiro até o sertão, como quem
numa escavação identifica as camadas de um solo, do litoral ocupado primeiramente, e que
seria mais mestiçado, até o sertão, mais isolado e que por isso seria mais puro. O granito por
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fim seria esta rocha firme, resistente, da qual se vale o autor que era engenheiro para fazer sua
comparação natural.
A explicação que não explica a si mesma, mesmo que buscando justificativa na
cultura, continua sendo uma explicação natural, porque “naturaliza”, toma como pronto e
definitivo o fenômeno que é construído. A naturalidade com que podemos falar de
nordestinos é perigosa na medida em que nos parece a mesma empregada para justificar os
tratamentos diversos, quando usada no sentido mais positivo ou mais pejorativo, da mesma
forma não se tem argumentos para evitar. Quando se pensa em termos de natureza, e as
metáforas numerosas que se pode lançar mão para tomar as relações sociais como relações
naturais, a estigmatização está implicada.
Ao discutirmos os objetivos da entrevista falamos de que se tratava de um trabalho
sobre caboclos, e uma vez que o entrevistador é o primeiro a colocar o tema dos caboclos
então não se pode assegurar que o entrevistado falaria a respeito por conta própria.
A própria idéia de adaptação da qual nos valemos, dentre outras, nos parece uma
forma de imposição prévia dos conteúdos da entrevista.
Se nosso interesse está em descobrir as representações dos entrevistados, tentamos
primeiramente cotejar com as representações historicamente consolidadas, que em nosso caso
poderiam servir de critério para observar mudanças de sentido trazidas pelo saber cotidiano.
Nosso objetivo ao trabalhar com as representações de caboclo esteve em discutir os
esquemas e idéias com que se julga saber defini-lo, e daí que se tenha dado atenção a idéias
que, de antemão, se sabe não terem validade a não ser no campo do senso comum, tal como a
idéia de adaptação, tomada primeiramente de uma teoria evolucionista sem qualquer paralelo
com uma compreensão psicológica.
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Apesar do esforço em tentar descrever as representações unicamente a partir do
referencial dos entrevistados, a precipitação do entrevistador sugeriu em momentos como
este, e prontamente, os temas da conversa.
Tal dificuldade, pode-se antever, decorre a princípio da própria dificuldade do
objeto, de se trabalhar com um tema inicial que não emerge da experiência dos entrevistados,
o que nos conduz a obturar um saber já preenchido – visto assim, não se estranha a reação que
tal objeto tenha despertado, sendo chamado a cobrir uma ausência intuída apenas pelo
pesquisador.
A propósito da própria escolha do objeto, deve-se notar o quanto esta imposição, do
ponto de vista representacional se fez presente ao escolhermos falar em caboclos. Ao se
adotar um termo que não é do uso corrente dos entrevistados corre-se já o risco de obter deles
uma posição sempre alienada em relação à segurança do código vigiado apenas pelo
observador.
É um risco que se corre em pesquisas semelhantes, com termos supostamente de
domínio comum que poderiam ser associados a pessoas que se conhece, no caso dos estigmas
de louco ou soropositivo, afinal não se pode muito facilmente encontrar esses indivíduos em
sociedade? Não se teria para eles um lugar bem definido, de modo que fossem como atores
sociais em meio a outros? De fato a imagem pública de estigmas como os do louco está
identificada pela definição também comum de que poderiam ser qualquer um. Seriam
invisíveis exatamente porque poderiam ser confundidos com outros, não exatamente porque
não fossem ou não estivessem presentes.
A invisibilidade dos caboclos para o entrevistado também não parece estar associada
senão a uma forma de discriminação, mas nesse caso ao contrário, eles seriam identificáveis e
sua presença estaria assegurada, sabe-se bem quem são, mas sob a condição de serem negados
em seu direito à igualdade. A invisibilidade é mais da sua presença política, pela participação
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social limitada que lhe seria imposta, que propriamente física, notada no corpo ou em algum
conjunto de sinais.
O entrevistado, no entanto, observa que uma mudança está em curso, a fazer com que
as atenções ao caboclo, ora negligenciadas, vejam nele agora um homem politicamente
privilegiado porque conhecedor da realidade em que vive.
Pelo próprio trabalho como presidente de uma associação o entrevistado afirma que
no dia-a-dia precisa estar em contato com muitos caboclos; com seus alunos, sempre que
alguma rejeição é percebida, ele afirma que falar sobre caboclos, e, também chamar os alunos
de caboclos é importante para não se continuar a ver esta identidade com um fundo
pejorativo: “Com alunos se aplica para que ele sinta o quê as pessoas de cultura diferente
pensam, para que não reneguem o termo como um mal lingüístico... [...]” (C. – 23/01/2006).
A sala de aula foi também o lugar no qual se lembra de ter ouvido a expressão pela
primeira vez muito tempo, quando ainda estudante na sexta série, num tópico das “regiões
brasileiras”, onde ouviu caboclo como sinônimo de matuto e brejeiro.
Hoje o entrevistado emprega caboclo em um sentido que se aproxima daquele dos
grupos definidos pelo critério político. Ser caboclo é mais do que uma designação, “ser” passa
a ter um sentido de “assumir-se” aos olhos de outros:
O que significa ser um caboclo?
É ser amazônico, amazônida. Caboclo tem sido substituído por amazônico,
amazônida. O nome antigamente passava uma noção de atraso e a Zona Franca de
Manaus ajudou a trazer a diversidade que desmistificou essa imagem através de
pessoas como intelectuais que saíram da “toca” como eu falo, através de escritores,
Samuel Benchimol, Thiago de Mello, Aníbal Beça, Tenório Telles, escritores que
colaboraram muito. É como se parasse a história e se dissesse: “a partir de agora
somos caboclos”... o mesmo que gaúchos, paulistas, falam e pensam, nós falamos,
sentem, nós sentimos. O caboclo passou a ser o homem que conhece as ervas, que
preserva o meio ambiente, deixou de ser o atrasado para ser o esperto, e nós da
associação [omissão do nome da associação] contribuímos muito, no episódio do
Sílvio Santos por ex., quando houve aquele incidente infeliz, muitos escritores
saíram da “toca”, que estavam escondidos, passaram a se manifestar contra o que
aconteceu. A universidade também está contribuindo muito, formando mestres,
caboclos daqui (C. – 23/01/2006).
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Em qualquer situação, sempre um outro envolvido no surgimento da identidade.
Ser um caboclo estaria em relação com se assumir como tal, assumir uma identidade, algo que
o distingue de outros grupos, e que o distingue também politicamente em relação ao país. O
“incidente infeliz” a que ele se refere ocorreu por conta de um programa de televisão em que
o apresentador citado perguntou de que tribo um manauara teria saído.
A conotação de atraso, presente quando se evoca o termo índio não estaria presente
da mesma forma para os caboclos, pois segundo C., entidades como a Zona Franca de Manaus
ZFM, e a Universidade Federal, contribuem para os caboclos assumirem sua identidade
própria, conclusão que precisa ser entendida como uma representação do entrevistado, muito
mais de acordo com sua expectativa do que deveria ocorrer nestas instituições, e que de fato
conforme concluímos não acontece.
Aqui a ZFM aparece com uma participação de destaque na formação da nova
imagem dos caboclos porque, segundo o entrevistado, o Pólo Industrial de Manaus - PIM
mostraria que é possível para os caboclos adotar funções de trabalho antes negadas pela visão
de atraso. Esta é uma posição diferente do consenso comum de que a indústria em Manaus
veio servir como instrumento de desarticulação ao relegar aos caboclos e amazonenses uma
importância secundária no processo de produção.
De qualquer forma, o preço deste aparente avanço é a substituição da identidade de
caboclo pela de amazônico, mais geral. É possível ver uma distância entre o conceito de
caboclo, usado para falar do homem que possui um conhecimento natural, e do homem
amazônico que, como conceito, possui uma abrangência explicativa maior. O conceito de
índio, ao contrário, permanece sem modificações, deixado para trás, o que nos revela os
registros diferenciados em que se assentam as explicações para índio e para caboclo: “É que
os índios não são vistos, infelizmente, como os homens da terra” (C. – 23/01/2006).
52
Como, porém, os caboclos não se resumiriam a um tipo, parece que a tentativa de sua
definição, mesmo quando é escolhida com valores positivos, precisa deixar claro quando se
trata da identidade “autêntica”, para isso precisa ir buscar elementos mais radicais ao propor
sua distinção, e aí voltamos ao lugar seguro das noções preconcebidas:
O autêntico mesmo ainda é da zona rural, pois é aquele que preserva suas raízes.
Mas nas cidades você vai encontrar muitos caboclos, nas migrações também, porque
o caboclo não pode ser interpretado como daqui. Lula recentemente quando esteve
em Pernambuco se intitulou caboclo, caboclo que saiu de para vencer. Mas de
forma geral os migrantes não chegam aqui como caboclos, isso é a exceção (C.
23/01/2006).
Dois registros aí, o original é o caboclo rural, porque em contato direto com seu
ambiente, o mato. Este é o caboclo que se vai encontrar na definição comum, a definição
dicionarizada do tupi “caa-boc”. Há o caboclo como idéia, como sinônimo da fraqueza que se
supera a si mesma, é o caso do termo quando usado num contexto político, que pode elevar ou
descartar a referência ao caboclo, conforme haja conveniência nisso. Mas, por fim, com os
dois registros se quer dizer que os caboclos seriam moradores de locais específicos que não
sairiam de seu ambiente.
Deriva daí que o caboclo “crescerá mais” politicamente porque sobre ele se acendem
os holofotes da idéia de “preservação”, e o caboclo poderia se assumir nessa lógica de
posse dos seus elementos ditos “originais”. No seu ambiente, o caboclo estaria com a
vantagem de poder barganhar esse conhecimento original:
Na tua opinião que futuro o caboclo terá no Brasil?
A tendência é conquistar espaço em todos os rincões do país, o Brasil vai crescendo,
o acesso ao conhecimento aumenta e o caboclo vai se inserindo em detrimento dos
demais... o caboclo crescerá mais, será mais visto graças à idéia de preservação da
Amazônia, mais pesquisas estão sendo feitas, a tendência é sair da “toca”. Nós
tivemos um exemplo recente, de um jogador de futebol, ao sair daqui, o Lima, ele
disse e diz pra todos os lugares em que ele entrevista na Europa: “eu sou
caboclo”... esse é o autêntico (C. – 23/01/2006).
53
Outra idéia de autêntico surge: o que não se nega, não se esconde. A autenticidade
está assim na auto-identificação. Para que o caboclo seja mais visto é preciso, no entanto, que
abandone sua antiga apresentação diante dos outros. Sair da toca nesta abordagem meio
naturalista, não deixa de parecer com uma interpretação do caboclo enquanto “bicho”, e, de
fato, faz sentido que ele, nessa condição natural, “(en)intocada”, tenha que colocar a cabeça
de “fora” para se fazer notar e também se dar a importância que passa a receber:
[...] uma coisa que não consigo assimilar dos caboclos, é a visão que o caboclo tem
da gente que ocupa um lugar na mídia, um cargo, eles acham que a gente não tem
sentimentos, que não come, que não é a mesma pessoa... é um respeito do caboclo...
você tem que se assumir como caboclo e eu tenho que aceitar... (C. – 23/01/2006).
Respeitar demais o outro a ponto de se excluir não parece uma característica de um
grupo do qual se espera que cresça mais e assuma um papel de representante de uma
identidade regional.
1.4 O problema de se assumir caboclo
Coloca-se a este ponto o problema de como falar em caboclos sem implicar em
preconceito.
Quando o estigma é assumido, deixa de ser estigma, torna-se aquilo pelo que lutar,
pelo que continuar existindo, uma identidade perfeita, paradoxalmente porque jamais
alcançada.
Quando se assume o que se é, numa compreensão naturalista presente, impede-se
que outros tomem esta identidade e a transformem em estigma. Apropria-se de algo antes que
outros o façam. No entanto, Pierre Bourdieu, o sociólogo que em grande medida ataca os
fundamentos leigos da ciência, esclarece que a luta pelo poder simbólico se diferencia em
relação ao estado como os dominados se inserem nela:
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Quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram na luta em estado
isolado, como é o caso nas interações da vida cotidiana, não têm outra escolha a não
ser a da aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição
dominante da sua identidade ou da busca da
assimilação a qual supõe um trabalho
que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma [...] e que tenha
em vista propor, por meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem
de si o menos afastada possível da identidade legítima (BOURDIEU, 1989, p. 124)
[Grifo do autor].
Todos os agentes sociais ajustam sua representação de modo a corresponder a uma
expectativa que, em certos casos, pode estar associada a alguma vantagem. Como Goffman
(1985) desenvolve em seu estudo sobre as representações na vida cotidiana, é possível que um
55
protagonismo político dos caboclos, pois, se de um lado, a participação coletiva reserva aos
estigmatizados uma representatividade social, novamente aí os submete a uma forma de
participação na qual o indivíduo precisa se descolar do seu desejo para assumir uma
existência coletiva, massificadora, onde não fala e é falado.
Stuart Hall (2003), a quem se deve parte do mérito pela ampla disseminação dos
estudos culturais, baseia-se na teoria derridiana da desconstrução para concluir que a
identidade não pode ser definida totalmente. A rigor, o único momento em que o ser se
totaliza, segundo ensina Heidegger, a quem a desconstrução prossegue os trabalhos, é na
morte, e então, certamente, nem na sua própria morte, porque o ser não teria a consciência
deste último fenômeno (2002).
Ao falarmos em identidades, não se deve precipitar-se em definições prontas. Hall
(2003) trabalha com o conceito de “diferença” de Jacques Derrida para mostrar que a tentativa
de entender como fixas as fronteiras entre o eu e o outro, produz exclusão onde na realidade
passagem, por todo o lado não se encontram as diferenças definitivas, mas o diálogo, a
contínua produção de significado: “Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer
forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2003, p. 44).
Apesar de esclarecer o sentido do processo que deseja assinalar, o autor critica na
ontologia a falta de um aspecto que ela possui: se os estudos do ser, nos revelam algo de
mais imediato, é que o processo de tornar-se, está intrinsecamente presente.
A discussão da identidade “fora de casa”, no artigo Pensar a diáspora, marca os
cinqüenta anos do evento que simbolizou o movimento diaspórico do Caribe no pós-guerra,
quando migrantes caribenhos desembarcaram em Londres. O retorno, essa contradição
implícita na mudança, esbarra na impossibilidade de recuperar o momento original, estar
longe mesmo quando tão perto:
56
Esta é a sensação familiar e profundamente moderna de des-locamento, a qual
parece cada vez mais – não precisamos viajar muito longe para experimentar. Talvez
todos nós sejamos, nos tempos modernos – após a Queda, digamos – o que o
filósofo Heidegger chamou de unheimlicheit literalmente, “não estamos em casa”
(HALL, 2003, p. 27).
A referência a não estar em casa é real mesmo quando se está em casa, o que é o
efeito mais persistente desta suposta saída ou perda da origem, e com isto, paradoxalmente,
temos material bastante para questionar a idéia que viemos apresentando até aqui, de caboclos
e nordestinos como identidades.
Para C., assumir-se caboclo é uma questão que passa pela necessidade de assumir o
que se é, mas como definir seguramente o que se é? Se a identidade nunca está definida,
podemos supor que assumir-se caboclo é, antes de tudo, assumir uma construção particular de
como se pensa que um caboclo deve ser.
Convencionou-se pensar que o caboclo só existe quando e porque outros o dizem. C.,
por outro lado, defende que os caboclos não se nomeiam como caboclos por uma
ignorância do seu ser.
É possível, no entanto, deixar com que os caboclos falem “por si mesmos”?
no passado do termo caboclo é possível encontrar, desde o primeiro momento, a
dificuldade que o acompanha por toda sua história posterior, o fato de ser usado “[...] por
pessoas que não se incluem na sua definição” (LIMA, 1999, p. 5). De fato, a primeira menção
ao caboclo se fez como resultado de um outro olhar que não o dos grupos assim denominados.
A censura coletiva aos estigmatizados que recusam o próprio estigma tem o efeito adverso de
desautorizá-los a manipulação livre de sua identidade.
Daí o primeiro problema a ser enfrentado no domínio de uma identidade cabocla: o
caboclo como termo de auto-identificação.
57
O problema da auto-identificação está em que ela é usada para prescindir do
argumento. Por não se ter clareza sobre o que é ser um caboclo e não se pensar os elementos
que o justificam, se uma pessoa se identifica como caboclo tem-se a disposição para achar que
isto basta como justificativa. Mas é preciso no trabalho de localizar estas identidades
assumidas persistir interrogando em que justificativas se assentam. Antes de se assumir o que
se é deve-se interrogar quem decide o que se é? Este é o risco de se assumir no estigma,
persistir na reprodução de um conhecimento que não tem data, local, que nem ao menos pode
ser rastreado porque está sempre aí, porque uma vez assumido como identidade deixa sem
argumentos os que não se querem incluir na sua definição.
A identidade acaba sendo ela própria uma forma de estigma, na medida em que se
toma numa reprodução que visa a manter a concordância com uma definição constituída a
respeito de quem se é, e a identidade neste sentido introduz por si mesma uma desigualdade
ao separar os lugares sociais de acordo com expectativas diferentes sobre quem pode fazer
parte dos diversos grupos.
Por isso nos parece que em primeiro lugar assumir uma identidade no estigma passa
por fazê-lo dotado de um lugar, e para entender melhor deveríamos introduzir o conceito de
Goffman (1985) de papéis sociais, que afinal não são apenas um conjunto de expectativas a
desempenhar, mas fisicamente representam lugares próprios a que se pode ter acesso e
delimitam para os seus atores uma amplitude de relações e níveis a que eles podem chegar
pelo desempenho dos seus papéis.
Assim é que se criam campeonatos “pára-olímpicos”, torneios “sub-20”, centros de
convivência para a “terceira idade”, reuniões de “casais católicos”, e tantas formas pelas quais
em uma sociedade o estigma já está ali, aceito sem muito esforço, mas cuja segurança
depende de sua ordenação nos diferentes espaços que são criados para cabê-los.
58
Para os caboclos é ainda mais dificultoso chegar a uma identidade pelo fato de não se
ter um lugar inventado para eles, nenhum palco arbitrariamente definido em que se
desempenhe para os demais o papel atribuído de caboclo.
1.5 O defensor: a importância do que o caboclo “jogou fora”
E. é filho de um empregado aposentado da construção civil com quem trabalhou
como encarregado durante algum tempo. A entrevista foi concedida em sua casa, na chamada
área rural da cidade, no início de 2006, na companhia de A., sua esposa, com quem tem filhos.
A esposa é nascida no interior do estado, mas os dois se conheceram em Manaus. A. é
assistente social e coordena as atividades de uma escola comunitária, que o casal mantém ao
lado da propriedade. Por conta das viagens do pai, E. tem um extenso passado de viagens no
qual Manaus é o último destino. Estava na cidade quase trinta e cinco anos, a tendo
conhecido antes, no período de 1971 a 1976. Após esse período, viajou até a Paraíba porque
os pais queriam que ele terminasse seus estudos: “[...] os pais sempre acham que a gente é
criança, que não tem responsabilidade, mas eu ia terminar [...]” (E. 13/02/2006). Em 1977
retornou para Manaus, desta vez para ficar, voltando ainda ao Nordeste algumas vezes, mas
somente a passeio. A entrevista se inicia pela via da formação acadêmica, na qual o
entrevistado explica sua vinda a Manaus:
Como foi a escolha da cidade, você chegou aqui em 1971, você tinha quantos
anos?
Dezesseis anos.
Já no começo do segundo grau?
A minha trajetória de estudo foi muito difícil, eu comecei a estudar com nove anos,
outra é que o meu primeiro colégio foi em Brasília, meu primeiro ano, de Brasília eu
fui para São Paulo, do estado de São Paulo eu fui para o estado do Rio, Mangueiras,
de Mangueiras fomos para Barra Mansa, no estado do Rio também, de Barra Mansa
fomos para o estado da Paraíba, morar em Santa Luzia, de Santa Luzia nós fomos
para Patos, também Paraíba, de Patos fomos para Campina Grande, também Paraíba,
de Campina Grande nós fomos transferidos para cá. Quando eu cheguei aqui em
Manaus eu estava ainda na quarta série, eu com quinze anos, dezesseis, na quarta
série (E. – 13/02/2006).
59
Este relato foi deixado em toda sua extensão também para mostrar a seqüência de
viagens que atropela todo esforço para manter vínculos e para concluir uma formação
acadêmica com regularidade. O momento de prosseguir com a formação é o momento de
largar e começar novamente em outra cidade. Também o momento de viajar não é uma
vontade sua, mas uma imposição de uma necessidade que o excede confinando-o à vontade da
família.
Cada local conhecido nesta experiência tinha um propósito, uma ponte, uma
estrada, uma usina. Ao mesmo tempo em que participava da construção da história de um
país, a sua ficava por escrever, ainda mais adiante, talvez na próxima parada:
Fez outros amigos depois que chegou em Manaus?
Bastante, principalmente no trabalho, eu trabalhei em várias empresas, até hoje, bem
diferente do meu pai, ele trabalhou em duas empresas, aquela questão de
experiência, acho que quando se fala em experiência, “uma vasta experiência”, uma
vasta experiência para mim, só em uma empresa...
Discutível.
É, nunca ouvi falar de experiência assim, tem experiência naquele mundo...
Não tem parâmetros para comparar.
E.: Por exemplo, passei por várias empresas, em Manaus [...] então quer dizer, o que
já passei por indústria de bebidas, indústria química, siderúrgica...
Acha que se tivesse nascido em Manaus teria essa mesma liberdade nos locais
de trabalho? Trabalhar numa empresa, noutra, assim, escolher? Ou isso tem a
ver com a localidade de origem da pessoa, a terra de onde veio, o que você
acha?
A mesma facilidade? É, porque também a própria área que eu escolhi, área de
trabalho, também é muito relativa a isso, ela me levou a isso, ela me deu essa
oportunidade, fui parece um pula-pula e o mercado na época era vasto, de vagas
assim na minha área tinha muitas, então, eu não perdia essas oportunidades,
aproveitava, passava por todas elas assim com aquela maior naturalidade do mundo,
de eu mudar de empresa seria como chegar ali e trocar de roupa depois do banho, até
hoje, eu nunca me apaixonei por nenhuma delas, meu pai era apaixonado pela
empresa que ele trabalhava, eu não sou apaixonado por nenhuma, balançou, é,
mas na hora que eu estava querendo me apaixonar eu pulava fora.
O quê, medo de se enamorar da empresa?
De se apegar... eu não sei, vamos supor hoje eu estou para quebrar meu recorde de
tempo dentro de uma empresa, o recorde maior até agora foram quatro anos e meio,
já estou com quatro anos e quatro meses dentro da empresa.
O que acha, por que será que tem esse “pula-pula”?
Eu não sei, acho que eu tenho medo de mudança, primeiro...
Pelo contrário, tem um gosto por mudança.
É... eu não tenho aquela responsabilidade, aquele compromisso onde eu me
emprego, eu estou ali, eu vou ali hoje, mas eu não sei se amanhã eu estarei ali, tanto
pelo lado da empresa quanto por mim (E. – 13/02/2006).
60
Neste momento coloca-se em questão a fala do entrevistado porque não corresponde
à experiência que descreve ter: a mudança constante de empresa em empresa, ao lado do seu
suposto “medo de mudança”, dois momentos que parecem se contradizer também para o
entrevistado. Como se pode ter medo de mudanças ao mesmo tempo em que se evita o
vínculo?
Bauman (2004) ao estudar o modo como o homem se “conecta” numa sociedade de
mercado, afirma:
Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bençãos
ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não como determinar quando
um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam –
embora em diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os
relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores
e profundamente sentidos da ambivalência (BAUMAN, 2004, p. 8).
Apaixonar-se e desapaixonar-se é a capacidade exigida para manter vínculos num
sistema de “redes” ou “teias” a que nosso suposto mundo líquido convence com muitas
outras opções oferecidas ao mesmo tempo fazer uma escolha implica estar fechado para essas
possibilidades, de modo que a rapidez para se desvincular é a contraditória condição para se
estar “conectado”.
Com a expressão “líquido”, usada para adjetivar tantos substantivos, o autor, que se
dedica ao estudo de conceitos que alhures podem passar com facilidade como conceitos
evidentes, quer expressar a fluidez em que se esgota a realidade dos objetos feitos para o
consumo. Pensar em termos de fluidez, contudo, não descreve o fenômeno das relações, não o
explica, mas serve para entender o modo como aproximação e afastamento caracterizam os
relacionamentos humanos ditos modernos.
E. pode ter ao mesmo tempo a experiência de estar vinculado e a liberdade de não
estar preso, como que colocando nas próprias mãos neste momento da vida a autonomia para
decidir por si mesmo quando ir embora e quando ficar.
61
E em viagens, você tem o mesmo gosto por aventuras, por mudanças ou está
adaptado à cidade e vai ficar aqui?
Eu hoje não tenho muito interesse em viagem.
É? Parou aqui?
A A. [esposa] que o diga, teve vontade de conhecer outras cidades, diz: “ah casei
com um viajante... de uma hora para outra o viajante shhh... apagou...” mas hoje não
tenho mais interesse de mudar (E. – 13/02/2006).
Manaus nesse sentido traz o alívio para quem aqui vem encontrar um lugar para
permanecer e construir uma família.
A facilidade com que fez amigos em Manaus e com que se transferia de uma
empresa para outra mostra nestas passagens as diferenças entre pais e filho. Se o pai viajava a
trabalho, sendo a mudança uma determinação da empresa em que trabalhava, para o filho a
mudança se torna uma escolha, não um imperativo, sendo, ao contrário, as empresas que
mudam, cada uma a seu tempo, como trocar de roupa depois do banho. Se para a primeira
geração as relações no círculo interno da família eram motivação bastante, o filho pertence a
uma geração para a qual pela primeira vez compete alargar os limites desse convívio.
Até hoje as minhas raízes maiores são daqui, do que da minha terra.
Sua terra é...
Sou do interior da Bahia, Conceição do Coité, eu só nasci lá (E. – 13/02/2006).
Como se define para alguém uma “origem” em meio à viagem? Considerar que se
tenha nascido no Nordeste é algo ainda distante de ser nordestino. Como que escolhendo o
lugar em que nasce, aquele que viaja pode tomar em suas mãos uma escolha a que ninguém
jamais pode. Após um passado de viagens, Manaus não é um destino, mas o lugar escolhido
para fincar suas “raízes”. O entrevistado não se via em pertença a nenhum dos lugares pelos
quais passou, a trabalho ou por imposição (o que termina no mesmo), porque a terra em que
se decidiu por ficar passa a ser no fim a sua terra, guardando das outras apenas a memória de
uma sucessão sem sentido na qual cada destino era apenas mais um.
62
Já os caboclos, sobre os quais começamos a falar espontaneamente por associação de
outros temas, manteriam uma relação que não é de escolha, mas de uma imposição que não
enfrentam: ter nascido aqui é a única condição para aqui ficar e neste seu aparente
desconhecimento se revela sua falta de critérios, porque não conhecem outros lugares também
não sabem que moram no melhor de todos, não sabem e não se dão conta de que podem saber,
porque sua limitação está em que eles não se guiam pela mudança, pela viagem, preferem
aqui ficar não porque saibam que aqui é onde querem ficar, mas porque pensam, na sua
limitada possibilidade, que qualquer terra além da sua será “muito longe” para ir, “longe” para
alcançar, e assim se rendem à visão do imediato. Este é o sentido da interpretação dos
caboclos que o casal desenvolve.
O caboclo seria alguém que não se assume caboclo porque se desconhece, o portador
de uma riqueza que nega possuir porque não sabe que tem. A beleza do Amazonas, da
floresta, a beleza das coisas daqui é apontada como um critério de definição para os caboclos,
não assumir-se caboclo representa estar alheio a esta beleza, perder um recurso do qual
deveria fazer uso, como seu portador de direito.
Nesse ponto se marca uma diferença da representação mais comum na qual o caboclo
é interpretado como um morador negligente que despreza por vontade própria o lugar onde
vive. Para E., o caboclo provavelmente não conhece o que despreza, do contrário, não
desprezaria.
Este desconhecimento está na base da sua atitude pejorativa em relação a si mesmo e
a sua cultura. Aqui temos uma visão diferente, pois o caboclo não é tido somente como termo
pejorativo usado por outros, mas é também ele mesmo o agente dessa depreciação na medida
em que toma a si mesmo como objeto da hostilidade. Se ele conhecesse outros lugares,
seguindo a lógica desta interpretação, veria como é dono de uma riqueza que nenhum outro
tem, e se daria o merecido valor. A presença da companheira de E. durante a entrevista fez
63
alertar para a compreensão dos entrevistados de um modo que não se teria acesso de outra
maneira:
O caboclo tem algum privilégio aqui em relação aos grupos de outros estados,
gaúchos, paulistas?
É, ele teve, olhando assim tempos atrás, mas hoje menos, hoje assim bem
menos, o paulista hoje tem oportunidades melhores de gerenciamento, de
supervisão... o caboclo não era acostumado a colocar uma luva na mão para
trabalhar, no processo todo... o caboclo não era acostumado a botar o numa bota,
num calçado de segurança, e outros detalhes... e de uma hora para outra ele teve
muita dificuldade nessa adaptação, por isso os que vinham de fora tinham mais
facilidade, tinham mais oportunidade... por aquela adaptação mais rápida, assim nem
mais rápida, eles vinham adaptados... tem um ditado que o caboclo... no chão,
no chinelo? Pé no chinelo...
Que futuro o caboclo vai ter, não só no Amazonas, mas no Brasil, na sua
opinião?
Falta a ele descobrir a importância do que ele tem e que ele não consegue enxergar,
não encontrou esse valor ainda. Se ele realmente enxergasse...
Ele não tem essa noção?
A noção disso, o dia que isso fizer parte da vida dele, realmente ele vai dar um salto
que não tem mais tamanho, aí realmente ele vai se achar.
Vai se achar? Ainda não achou o lugar dele, então?
É, aí ele vai ver tudo quanto ele perdeu, tudo quanto ele jogou fora.
A. [esposa]: Eu penso que essa postura de não utilizar bem o que ele tem, vejo que é
fruto mesmo da desvalorização da cultura amazonense, da cultura do caboclo, das
próprias pessoas que vieram, nordestinos, das próprias pessoas que vieram do sul,
vieram de outros lugares, contribuíram para que essa cultura, essa falta de auto-
estima, essa desvalorização do que ele está falando... vieram com essa visão de que
o povo era um povo preguiçoso. E passou a ser esse estigma. E aceitou isso.
Aceitou... e só quando ele descobrir isso aí...
Quer dizer que foi uma coisa imposta por outros, não por ele mesmo?
E.: Isso.
Pelo que E. estava dizendo é uma coisa dele, do caboclo mesmo, que ainda não
descobriu. [...]
Mas eu estou falando como amazonense, eu sou daqui, sou do interior, e o que eu
observei é que as pessoas de fora vinham com aquela coisa, que “vocês aqui são
inferiores”, e se deixou, aceitou isso aí... [...] a questão da auto-estima, e perguntei
uma vez aqui na escola: “Mas por quê tem essa reação aqui, a pessoa fica
parada?”. Falaram assim: “É porque o pessoal daqui é ribeirinho”. Eles são
assim mesmo, é parte da cultura, aceitar, ficar calado... [...] confirmou a coisa que
eu sentia desde a minha infância... [...] aqui é o caboclinho, aqui é o ribeirinho...
Acomodação?
Isso, e nós aceitamos e ainda não tivemos essa consciência de ver, aceitamos isso
aí... [...] e ainda não nos encontramos como ele falou... [...] ele [o marido] valoriza
isso aqui, acha isso aqui o lugar mais lindo, não abre mão para tirar férias em
nenhum lugar do Nordeste.
É, eu sou um defensor disso aqui, porque essas pessoas que são daqui mesmo, o
caboclo, ele não teria essa mesma concepção.
Porque ele [o caboclo] nunca saiu daqui, ele acredita no que as pessoas passam
pra ele, por isso.
Ele não tem aquela visão...
O lugar mais longe que eu fui foi em Belém que ainda é norte, eu não sei, eu não
posso contar toda essa experiência que ele [o marido] tem... eu não posso dizer que
aqui é a coisa mais linda do mundo como ele, ele viajou o Brasil todo
praticamente... eu sei que é lindo porque ele me confirma isso, entendeu? Mas
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quantos não sabem disso? Acham que o mais lindo é “lá” onde eles nunca foram
nem irão. Tem que defender!
(E. e A. – 13/02/2006).
O viajante que defende a terra confere uma contradição com a idéia do viajante que
apenas passa e preserva o seu lugar de fora. No caso de E., os lugares é que passaram,
deixando-o na condição daquele que fala da terra porque não mais exposto à viagem. O
viajante que se apagou é viajante em relação aos que nunca saíram do Amazonas, ter viajado é
assim uma autorização para defender o que é “daqui”, pois aqueles que teriam essa
responsabilidade, os caboclos, não sabem o valor de sua terra, e porque nunca viajaram,
apenas imaginam que “lá” (o distante) é o melhor lugar.
O caboclo, então, parece ser “defendido”, mas a idéia de defesa também é
estigmatizante porque, para funcionar, admite que os caboclos não precisariam de algo além
deles mesmos. A limitação que esta maneira de pensar impõe aos grupos chamados de
caboclos aparece claramente por ser romantizada em demasia – a interpretação do caboclo nos
termos de alguém que não precisaria muito mais do que conhecer o próprio “valor” o faz
desumanizado um homem sem paixões, que tem tudo de que pode precisar (embora não
saiba), um suposto homem independente, porém escravizado pela própria autonomia que o
emancipa. A “valorização” dos caboclos também facilita sua exclusão, porque o isola da
participação na sociedade em que vive.
Persiste a idéia de caboclo como um homem preso a um local próprio, aquele que
não sai da sua terra, não conhece outra além da realidade que vê, portanto não pode ter
critérios para comparar, nem para definir a si próprio quem, afinal, o escolhe para ser o
portador de recursos que ele mesmo desconhece? Quem a não ser os outros aos quais resta o
trabalho (nenhuma suspeita nisto) de defender aquilo que ele ignora?
65
1.6 O caboclo como uma construção política
No aparente movimento de transformação pelo qual parece justificado tomar o
caboclo como identidade, certamente não se teria pouco a dizer sobre a participação da
política e da propaganda.
O livreiro P. se refere ao período de mais de vinte anos desde a década de 1980,
quando chegou a Manaus, como o momento em que teve contato com os caboclos, no sentido
atribuído de homem do Amazonas, e identifica a participação da política na construção desta
suposta identidade cabocla: ao mesmo tempo em que os caboclos são associados a
interpretações em termos de “gente de segunda”, homem do interior, no sentido do
afastamento da cidade, na política amazonense, ao contrário, pode-se lembrar de candidatos
que, quando em campanha, se valeram da imagem de caboclo para criar empatia com seus
eleitores.
Gilberto Mestrinho, como lembrado pelo entrevistado P., constitui sua fala,
principalmente na década de 1980, com auxílio da propaganda televisiva, a partir de
elementos que procuram ressaltar supostos aspectos originais, ou assim parece, incluindo a
idéia de um povo também autêntico, do interior, de quem o político se afirma conhecedor e
por isso autorizado como porta-voz.
Também na mesma década, o político Amazonino Mendes vai retomar a
argumentação a respeito de quem chama de caboclos, ou ainda “povos da floresta”, isto é, os
habitantes amazônicos. na década seguinte, em seu discurso da tribuna do Senado Federal
(MENDES, 1991), aparece o mesmo apelo, em relação àquele que seria o mais urgente
problema a ser enfrentado na idéia então dominante de preservação da Amazônia, o seu
homem:
66
Enquanto esse discurso de apologia da floresta e do extrativismo ganha foro
internacional e aceitação em quase todas as conferências, congressos e seminários
nacionais e internacionais, o processo esquizofrênico demonstra a nua realidade
através de constrangimentos, leis, regulamentos, portarias e comportamentos de
burocracia, para impedir que os povos da floresta e do beiradão usufruam dos
recursos naturais do meio ambiente, obtendo-se, do terrorismo de multas
confiscatórias, a destruição de humildes homens e comunidades do interior os
próprios extrativistas (MENDES, 1991, p. 4).
Àquele momento, exatamente um ano antes de um evento mundial a ser realizado no
Rio de Janeiro e que tinha como pauta preservar os recursos naturais, especialmente a
Amazônia, enquanto uma entidade desvinculada de nacionalidade, devolver o homem da
Amazônia para o centro da discussão deveria ter, com a intenção de justificar o objeto pela
sua importância, um propósito humanista:
O caboclo do beiradão, o homem da floresta daquele discurso da apologia está
sendo, agora, crucificado nesse novo tipo de holocausto: a destruição de sua
identidade, de seus valores tradicionais, de suas formas de trabalho no interior,
trocados pelo espaço urbano miserável e violentador de sua dignidade de homem de
produção (MENDES, 1991, p. 8).
Ocorre que ao mesmo tempo em que se tenta dar aos caboclos uma emancipação
política, a condição mesma em que tal tentativa tem seu lugar é estigmatizante, o homem que
mora na floresta passa a ser o homem “da” floresta.
Podemos concluir que, os termos que deixam indeterminadas as pessoas e suas
condições, são também responsáveis por uma situação de estigma – ou ao menos assim parece
o caso dos caboclos, já que, por força de uma idéia e de um significado aceitos, são
tomados dentro de uma definição que os limita.
A chamada identidade cabocla, conforme nos apontam as entrevistas realizadas,
sustenta uma ordem social da qual serve ao mesmo tempo de justificativa, e os caboclos têm
assegurada nesta ordem uma definição de consenso.
O consenso, porém, não é a melhor garantia de que a representação reflete o seu
objeto. Se o consenso se forma, no caso da identidade, a partir da preocupação em garantir os
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lugares existentes, então os critérios escolhidos de participação social continuarão sendo
baseados na quantidade de pessoas que concordam a respeito de uma definição. Assim, de
acordo com uma conveniência de lugares, a ordem social vai se impor aos caboclos, dentro
dos critérios de participação dispostos na representação dominante.
A propósito, veja-se o quanto o caboclo, para os entrevistados, está associado à vida
no interior do estado. O quanto esse caboclo é representado como se não estivesse
acostumado ao trabalho sistemático, ou industrial, ao trabalho que, tido como próprio de outra
cultura, importado, por assim dizer, não lhe seria próprio.
Sua participação na cidade fica restringida por conta de representações para as quais
se apresenta uma explicação dita “cultural” de sua limitação, explicação que, no entanto, não
parece existir senão num julgamento prévio.
O caboclo não nos parece o chamado homem amazônico, ou o amazonense,
emancipado politicamente, embora façamos sua referência dentro de um critério geográfico. É
preciso, sendo particular a história da construção social de seu sentido, cuidado para não
acreditar que ele tenha deixado de ser um termo pejorativo para ser tomado como identidade.
Mudanças assim demandariam um tempo maior para serem confirmadas na prática.
Parece-nos por enquanto, e até onde nos foi possível avançar com as entrevistas, que o
aspecto de estigma dos caboclos se acha preservado, porém agora, na condição de identidade.
A mudança que se observa, e de fato é possível identificá-la, atinge diretamente as
pessoas, diz respeito ao modo como elas passam a ser vistas, e ao acesso que lhes passa a ser
permitido ou negado.
Propaganda e política merecem uma atenção particular, enquanto dois instrumentos
por vezes indissociáveis de produzir consenso em uma sociedade, dois fenômenos cujas
relações internas os comprometem a tal ponto de não ser bem claro onde fazer a distinção do
caboclo como objeto político ou como objeto com valor de mercado. O caboclo não é
68
representado livremente, seu conceito serve à propaganda, inclusive política como visto,
como objeto de mercado, também como produto, como justificativa para uma interpretação
romantizada da história, para manter uma idéia de diferença entre identidades, para assegurar
ou negar privilégios.
A política e a propaganda, enquanto instrumentos de seus agentes específicos, podem
ser situadas como duas ordens de manutenção de lugares sociais: na política, o caboclo tem a
qualidade de homem de luta, na propaganda é o homem ligado à idéia de preservacionismo.
Todo produto “natural” que precise de um agente de credibilidade o terá no caboclo enquanto
este homem também da natureza.
O caboclo, como estigma, mostra que sua definição não está assegurada por si, no
que precisa acompanhar a mudança do contexto. Assim o estigma muda em relação ao
argumento que se quer justificar. Se o homem caboclo é segregado por ser interiorano e rude,
o caboclo da política é o homem privilegiado porque resiste à agressão, se é o homem alvo de
preconceito facilmente reconhecível, para a propaganda, ao contrário, não importa quem seja,
desde que preserve suas supostas origens.
O papel da imprensa e da mídia nesta representação dos caboclos é servir de modelo
para forjar o consenso, ela não produz a representação, mas dá a sua autoridade na medida em
que a repete com estatuto de verdade, a verdade jornalística, que se confere o valor de palavra
última. O fenômeno da imprensa como instrumento de manutenção de consenso se aproxima,
no apoio que dedica à idéia de caboclo como homem do interior de uma parcela da
produção acadêmica que, também se valendo de seus meios específicos de produção do
consenso, por meio de suas revistas especializadas (e aqui nos ausentamos por ora dos
exemplos para não limitar autores a excertos), oferece à comunidade de pesquisadores
também o seu próprio acerto de passo para manter a já conhecida imagem de caboclo.
69
Aqui cabe criticar que a identidade age como estigma ao exigir uma coerência com o
que se foi e fazer uma ligação misteriosa entre atitudes do presente e supostas atribuições a
serem guardadas de um passado vago.
A propósito do que Goffman trabalha como identidade “deteriorada” (1988) o
estigma no caso dos caboclos não parece dissociado de sua suposta identidade, a chamada
identidade cabocla, a propósito, também não nos parece menos estigmatizante na medida em
que é constituída com os mesmos elementos da representação comum, isto é, a representação
de homem interiorano, pescador, que vive na floresta.
Segundo o entrevistado C., que vem para Manaus na década de 1990, isto é, já depois
do aparente movimento de tomada do caboclo como identidade amazônica, ser caboclo
passaria por se assumir assim aos olhos daqueles que o desacreditam, ignoram, representados
pelos paulistas, os chamados sulistas em oposição aos nortistas, os supostos superiores tendo
que aceitar uma espécie de ascensão dos que antes lhes estavam abaixo.
Deve-se notar que, se em um primeiro momento é o estigma que aparece pelos olhos
dos outros, no seguinte, a própria identidade se na dependência de um olhar externo que a
autorize.
Dizer-se caboclo na política eleitoral, e não à toa esta política é lembrada pelo
entrevistado P., significa fazer parte de um grupo que não seria ele mesmo excludente, mas
excluído; “invisível” é a palavra que aparece com maior freqüência. Não se resume, porém, a
um período de eleições, seu apelo de política está na participação que determina. Podemos por
isso observar o movimento de assumir-se caboclo, que C. aponta, como um movimento
político com objetivo de demarcar espaços de participação social para os seus agentes, antes
discriminados.
70
A chamada identidade cabocla parece permanecer uma forma de estigma porque
constituída sobre elementos cujos próprios agentes, neste caso os que se assumem como
objetos da expressão, não têm controle sobre a mesma.
Tal conotação pejorativa é usada como argumento de propostas que esperam o
abandono da palavra, ao menos no que se refere ao escopo das produções científicas:
Estamos vendo que os “caboclos”, por possuírem muitas características dos seus
ancestrais indígenas, poderiam ser considerados “índios”, ainda que não “tribais”.
Porém, assim como não aceitam ser chamados de “caboclos”, não querem ser
classificados como “índios”. São brasileiros, dizem. Eles concordam que são
descendentes dos índios que moravam antes no lugar, mas não são mais índios
porque são “civilizados”, diferentes dos índios “selvagens”, que andam nus e matam
impiedosamente (para eles não é possível ser “civilizado” e “selvagem” ao mesmo
tempo) (VAZ, 1996, p. 62-3).
.
Aceita-se como explicação de origem que o caboclo tenha surgido enquanto um
termo pejorativo, e que por isso seu uso jamais poderia ser neutro. Florêncio Vaz, que
trabalhou em localidades do baixo Amazonas, e realizou sua pesquisa sobre caboclos quando
cursava ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendeu suas
conclusões de maneira mais inflexível:
Chega de “lendas dos caboclos” da Amazônia, “campesinato caboclo” da Amazônia
ou “população cabocla” da Amazônia. Como cientistas, não podemos continuar com
isso, pois significa um apego aos resquícios da ideologia racista do século XIX. É
persistir na visão evolucionista índio (raça pura) - caboclo (tipo híbrido
“embranquecido” e “degradado”) - branco (o ponto de chegada), ainda que não seja
essa a intenção do pesquisador (VAZ, 1996, p. 64).
O autor propõe o termo “ribeirinhos ameríndios”, no lugar de caboclos, pois assim
ficaria mantida a referência à ancestralidade indígena de tais povos sem a conotação
pejorativa evidente. Porém isto também não ajuda porque o problema não parece estar no
nome, mas nas idéias envolvidas.
71
Nas três entrevistas deste capítulo pode-se observar a ação de um processo contínuo
de ressignificação que atravessa e modifica a maneira como se identifica um suposto grupo de
caboclos. na entrevista com E., alheio às preocupações antropológicas, sugere-se que, se o
caboclo tem uma definição pejorativa, este não parece o maior dos impedimentos ao seu uso,
de fato para E. o problema está em que os caboclos não sabem o que perdem ao não se
assumirem. Nesta interpretação faltaria ao caboclo achar a si mesmo.
Nesse ponto se marca uma pequena diferença da representação na qual o caboclo é
interpretado como um morador negligente que despreza por vontade própria o lugar onde
vive. Para E. o caboclo provavelmente não conhece o que despreza, do contrário, não
desprezaria. São todas formas que resultam em uma compreensão geral demais e por isso
estigmatizante.
Como contraponto, porque nada parece tão seguro nas representações de caboclo,
temos a lembrar que é pela via oferecida pelo outro, de qualquer forma, que se pode sair da
estigmatização. Não seria o caso todavia dos nordestinos que assumem postos de trabalho no
PIM, ocupando cargos de excelência, lugar em que se posicionam ao mesmo nível dos
chamados “brancos”, os paulistas e sulistas, com os quais a identidade cabocla parece ser
mantida em oposição.
É-se caboclo nesta circunstância quando se enfrenta um outro superior e se vence,
quando na perda não se vai justificar a derrota pela condição de caboclo. Dá-se então sempre
no enfrentamento, como estigma em relação àquele que lhe é superior, e como identidade em
relação ao superior que se enfrenta e derrota.
certa honra em ser menor, o “caboquinho”, como a figura do pequeno que supera
o grande, uma grandeza do inferior que se conjuga nos modos como o caboclo aparece
citado em relação sempre a algo que o excede, mas não o atinge, que o supera, mas não o
substitui.
72
Goffman (1998) estabelece que o estigma age na diferença entre a identidade social
real e o seu correlato virtual, que condensa a expectativa geral criada em torno dos
estigmatizados. Medeiros (2004) observa a diferença entre as identidades, mas, com base em
seu trabalho de campo, define a identidade cabocla como uma identidade virtual, que ainda
pode vir a se realizar, dependendo de certas condições:
[...] mesmo dentro deste limitado espaço interpretativo é possível cogitar da
existência de uma identidade cabocla “virtual”, uma identidade que efetivamente
não se realizou, mas ainda é passível de realizar-se. Existe, sim, uma negativa
implícita e explícita, por parte dos entrevistados, a uma categoria social
desprestigiada e estigmatizada, mas esta multifacetada abstração que é o caboclo
comporta possibilidades outras que se nutrem também no imaginário, mas vivem no
espaço das contradições: o mesmo imaginário que imobiliza, porque constituído de
elementos que demandam atualizações para se transformarem, revela as raízes de
um povo cujos valores latentes precisam de espaço para vicejar (MEDEIROS,
2004, p. 158).
Apesar de concordarmos com o efetivo processo de mudança que as representações
produzem sobre os significados históricos, (e mesmo que a metáfora da agricultura nos
convença de supostas raízes que devamos lembrar) não podemos confirmar esta possibilidade
positiva no futuro dos caboclos, porque as representações surgidas, com base em nossa
experiência de entrevistas, levam a crer apenas numa variação nova surgindo (e mesmo não
tão nova) sobre as mesmas idéias que fundamentaram a sua discriminação social.
O apelo do caboclo na propaganda política amazonense parece ter sido gradualmente
trocado pelo poder também provisório de outros termos, de demandas ora em evidência, como
negro e mulher. De qualquer modo a propaganda e a política parecem ter o único interesse de
criar uma situação favorável para o estigma com objetivo na eleição do seu representante. O
político que se identifica no mesmo lugar do estigmatizado passa a idéia de que, uma vez
eleito, seu estigma terá o poder depreciativo minimizado, vantagem que obviamente se
estenderia aos eleitores.
2 O ENCONTRO NO DESENCONTRO
No presente trabalho, ao tomar as representações de nordestinos sobre caboclos
como seu objeto seguro, e, por isso, também como solo da reflexão, instaura-se no próprio
objeto do diálogo as construções anteriores sobre o mesmo. Assim é para tantos termos com
os quais se procura nomear os sujeitos, mas que, a exemplo de uma certa literatura
sociológica, deixa o pesquisador à mercê de reservas que nada engendram além de antigos
preconceitos. Temos em mente os trabalhos de sociologia de Samuel Benchimol sobre
nordestinos em Manaus, durante muito tempo as únicas referências sobre o tema, que foram
realizados nos anos 1940, em um contexto de migração em massa para a Amazônia, por isso
restando como exemplares do seu tempo específico:
Mesmo depois de ganhar a confiança, o que não é muito difícil, é preciso ter cuidado
com o cearense. Fala demais, gesticula muito. Não é preciso nem “dar corda” na sua
língua. Mente um bocado. [...] Por isso é perigoso tomar qualquer nota do que ele
está dizendo (BENCHIMOL, 1992, p. 12).
Benchimol afirma que contornou tal problema deixando de informar aos sujeitos a
real finalidade da sua “conversa” e mesmo omitindo o fato de estar registrando os dados, pois
assim os sujeitos não teriam motivação para falsear a verdade. Nisto se o extremo em que
métodos de pesquisa que tomam o controle de variáveis como filosofia epistêmica tateiam às
cegas.
Ocorre que, conscientes ou não, os dados trazidos pelos entrevistados ganham
sentido por si, sentido que precisa ser descrito pelo pesquisador, e mesmo que não
correspondam à realidade dos fatos, isto se deve a que, como nos adverte Adriano Holanda,
em seu artigo sobre as relações entre fenomenologia e psicologia: “Fatos somente são obtidos
por abstração. Fenômenos são vividos” (HOLANDA, 2001, p. 39). O que está de acordo com
74
a abordagem do problema, proposta aqui, como meio de interpretação, no qual os fenômenos
são primeiro tomados não no que se pode demonstrar, entender para fora deles, mas sem sair
dos mesmos e das conseqüências que apontam.
Não é que Benchimol seja por si só responsável por dar a um preconceito comum sua
face mais autoritária de prática de pesquisa nenhum autor em estado isolado é significativo
para compor uma idéia da extensão que os preconceitos podem ocupar na prática científica. É
mais seguro assinalar o tempo, e nem mesmo o tempo cronológico, mas o tempo em que se
fala, que, longe de ser uma seqüência única, tem mais a ver com uma aproximação entre
dizeres ocorrendo por força de semelhança ou de dessemelhança.
Qualquer tempo que possamos definir a respeito da presença dos nordestinos nos
seringais, ainda que na forma de um período histórico bem situado, como é o caso de se falar
em “batalha da borracha”, enfim, não é disto que Benchimol tira a vitalidade de suas
conclusões, embora sobre um autor sempre haja expectativa que aborde determinados objetos,
mas certamente porque ele também, como pesquisador, está preso aos modos com os quais se
deu conta de tratar dos nordestinos em Manaus: a condição de seringueiro coloca o nordestino
numa posição inferior, e daí que ao perder sua mobilidade social perde o direito a ter um
nome, passa a ser chamado, à semelhança dos caboclos, pelos nomes que traçam sua origem
o “cearense”, o “paraíba”, e, sem mais também, de bruto a mentiroso, suas características são
atribuídas sem seu conhecimento, ou aprovação.
Até aqui temos falado de nordestinos e caboclos como pessoas com identidades bem
distintas umas das outras, mas o que não se tem muita tendência a pensar é que, pelas próprias
diferenças com que se separam, os dois não podem ser encontrados com tanta facilidade.
A psicologia social de orientação mais aberta às contribuições dos recentes estudos
culturais tem salientado que nenhuma corrente teórica que se ocupe de um sujeito isolado
pode passar de uma abstração e a mera junção de termos que permanece não questionada,
75
digamos, claramente, este conceito de psicologia como ciência do comportamento, e
tampouco o adjetivo social que também não resolve nossos problemas, porque o lugar do
sujeito não é do lugar de uma hermenêutica. Anita Bernardes e Júlio César Hoenisch, no livro
de Neuza Maria Guareschi e Euclides Bruschi (2003), psicólogos do Rio Grande do Sul,
acrescentam que a aproximação recente experimentada entre psicologia social e estudos
culturais também não é da ordem de uma sobreposição:
Não se trata de uma psicologização superficial dos estudos culturais, nem de uma
reversão ao conceito de “representação mental”, o que em nosso entendimento seria
um equívoco. Não se trata, também, de ocuparmo-nos dos processos de significação
e suas decorrências em um plano individual, em uma suposta instância para além
dos artifícios culturais e discursivos, produzidos socialmente, que os constituem,
uma vez que se fala de posições-de-sujeito. Trata-se de um campo de articulação do
psicológico que não se ocupe de prescrições e “evoluções” do sujeito, nem de uma
excessiva “psicanalização” da psicologia. Trata-se de uma proposta aberta, de
conciliação de práticas da psicologia social (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p.
113).
Os autores, assim, estão preocupados em saber como se configura o campo teórico de
uma psicologia social que, antes do estudo das representações sociais, propunha semelhança
entre sujeito e indivíduo, e agora parece deslocada no próprio solo epistemológico do seu
objeto:
O pós-estruturalismo propõe o descentramento do sujeito, ele não é mais algo
absoluto, pelo contrário, está sempre por vias de se fazer, é uma função e, ao
contrário de derivar práticas sociais, é das práticas sociais que se derivam os
sujeitos. Ou seja, ele é uma construção, produção e resultado. Então, não eram
possíveis aproximações honestas que não corressem o risco de cometerem equívocos
epistemológicos (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 114).
Como produção e resultado, ou ainda, como processo e produto, termos com os quais
é mais comum deparar a respeito das representações sociais, o fenômeno é abordado em suas
relações intrínsecas, nos contextos de seu aparecimento e efeitos, não se perde a compreensão
sobre os modos nos quais se configura e aparece, ao contrário do que ocorre com teorias
explicativas cuja amplitude termina no exterior do fenômeno, tratado como produto apenas.
76
Com a abordagem a partir de “posições-de-sujeito”, os autores querem fazer uma
separação quanto às teorias de papel social, denunciando o que nelas seria uma maneira
equivocada de se entender o que é da ordem do sujeito em sociedade, que está para além de
prescrições supostamente implícitas nessas teorias:
Quando falamos de posições-de-sujeito, não estamos nos remetendo a teorias de
papel, de papéis sociais, mas da interpelação da cultura no sentido de recrutar
indivíduos ou grupos sociais a ocuparem determinadas posições, a se identificarem
com determinados discursos, tomando-os como verdades, sujeitando-se a
determinadas significações que os tornam o que se é. Por exemplo, não falamos do
papel da mulher na sociedade, mas de diferentes modos da mulher se tornar o que é
pelo discurso, pela imposição de sentidos (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p.
113-4).
Entretanto, o conceito de papel, tal como empregado por Goffman em A
representação do eu na vida cotidiana (1985), obra publicada inicialmente como monografia
em 1956 e como livro três anos depois, vai apontar para uma direção que não é, como se
tende a pensar, a de uma psicologia do sujeito, mas sim, buscando no teatro o entendimento
de como se manipula a própria apresentação frente aos outros:
Definindo papel social como a promulgação de direitos e deveres ligados a uma
determinada situação social, podemos dizer que um papel social envolverá um ou
mais movimentos, e que cada um destes pode ser representado pelo ator numa série
de oportunidades para o mesmo tipo de público ou para um público formado pelas
mesmas pessoas (GOFFMAN, 1985, p. 24).
Tivemos a oportunidade de perguntar sobre direitos e deveres ao menos em duas
situações no presente trabalho, quando foram levantadas discussões a respeito do futuro
político dos caboclos e se sugeriu para eles papéis bem definidos:
Quais os direitos e os deveres de um caboclo?
É complicada essa questão, porque tá atrelada à Constituição. Todos são iguais
perante a lei... pelo menos se não são deveriam ser.
Os caboclos também seriam, então, brasileiros?
Com certeza (C. – 23/01/2006).
77
As expectativas criadas em torno dos papéis são também manipuláveis pelos agentes,
é o que permite a uma representação pejorativa modificar-se e ser aceita como parte de uma
identidade depois:
Quais os direitos e os deveres de um caboclo?
Comer peixe, jaraqui, farinha. Gostar de bebida, beber dia de domingo.
E os deveres?
Conhecer um peixe (P. – 20/01/2006).
Papel, no entanto, tem mais a ver com o que se esconde e o que fica explícito, no
movimento de manipulação da própria apresentação diante dos outros. Não gostaríamos de
situar os papéis, nem suas expectativas de direito e dever implícitas, na condição de
“máscaras”, isto é, entidades objetivas e separadas dos sujeitos (embora o termo
personalidade tenha muito a ver com a apresentação do eu). Quando a questão é tratada assim,
os papéis adquirem uma realidade própria, e novamente se perde de vista o fenômeno e não
resta outra saída a não ser nomear incessantemente objetos isolados (papéis de homem e de
mulher, de rico, de pobre, de brancos e caboclos).
A identidade, por outro lado, depende de um duplo processo de igualdade com uns e
exclusão de outros, uma tentativa de estar entre os seus, que precisa buscar na diferença a sua
justificativa. Denise Jodelet, pesquisadora de contribuições reconhecidas por Moscovici para
a relação entre representações sociais e alteridade, igualmente exorta, em um breve artigo
(1998), a pensar em termos de um duplo processo presente na produção de identidades,
baseado no que chama de construção e exclusão social: “[...] indissoluvelmente ligados como
os dois lados de uma mesma folha, mantêm sua unidade por meio de um sistema de
representações” (JODELET, 1998, p. 48). Se a diferença que é empregada como substantivo,
produz a exclusão do outro, a alteridade instaurada na produção da diferença, assim mesmo,
substantivada, permanece dependente da exclusão do outro para se manter.
78
A diferença empregada por Stuart Hall (2003), no sentido extraído da teoria da
desconstrução, isto é, como uma conseqüência da memória, continua como uma extensão que
recria, reapresenta, daí o sentido de representação, o seu próprio ponto de origem. Percebemos
que, aplicada a identidades, a diferença situa o outro sobre novas bases, evitando a produção
do sentido estigmatizante, que por definição, fixa as partes envolvidas a uma posição de
poder. É neste sentido que Hall (2003) trabalha o conceito de identidade, descartando as
idéias prontas e as diferenças não questionadas, mesmo para mostrar que ao mudarem as
representações, as disposições de poder mudam junto.
Não se ataca qualquer identidade assim, diretamente, dirige-se à produção, aos
modos de ser, em relação a uma prática social, a representações, papéis, pois colocar foco na
identidade tem como conseqüência passar longe desse objeto.
a representação, no sentido empregado por Goffman, não tem semelhança com a
definição moscoviciana de representações sociais; observando a descrição de Goffman (1985,
p. 29) seria mais oportuno chamá-la de “apresentação”, no sentido de apresentar-se para os
outros, da mesma forma que um ator em cena, embora em português o termo equivalente seja
“encenação”, o que confere um aspecto de descrédito que não está previsto no original.
Comparando-se também a tradução brasileira com o título em inglês, The presentation of self
in everyday life
, pode-se ver que “presentation” não responde por representação, e o uso de
“self”, por outro lado, não corresponde propriamente a um estudo do “eu”, conforme fica
claro:
Não discutiremos o conteúdo específico de qualquer atividade apresentada pelo
indivíduo participante, ou o papel por ele desempenhado nas atividades
interdependentes de um sistema social. Somente me ocuparei dos problemas
dramatúrgicos do participante ao representar a atividade perante os outros
(GOFFMAN, 1985, p. 23).
79
Aqui fazemos uso dos conceitos de papel, identidade e estigma, supondo que eles
apresentem, ou imponham, diferentes condições aos chamados caboclos. É no sentido de
manipulação da própria imagem diante dos outros que recorremos à teoria de papéis de
Goffman, não para conhecer o papel de caboclo, supondo um, mas porque o estudo dos papéis
tem algo a nos revelar sobre as expectativas de direitos e deveres assim nos parece o caso
para o caboclo tomado enquanto ocupação.
É o que acontece com a descrição de pescador, ou ribeirinho, comumente associada
aos chamados caboclos, em que de forma genérica os mesmos são denominados ou também
conhecidos por aquilo que fazem.
Uma posição a ser questionada, e hoje teríamos instrumentos para isso, está no valor
prejudicial que atribuímos ora ao estigma. No trabalho, damos a entender que o estigma
possui apenas uma face depreciativa para os envolvidos. Pensando hoje, gostaríamos de
atenuar esta impressão conceitual preferindo descrever, com melhor exatidão, os diferentes
preços, e também vantagens, que os estigmas oferecem.
Não podemos concluir que as representações de caboclo a que chegamos sejam
menos ou não sejam estigmatizantes, como visto, a própria transposição desse estigma para o
domínio identitário tenta ver em elementos originalmente pejorativos a força desse caboclo.
Parece-nos que sair do estigma não seja a questão, mas como dele os grupos se valem para
barganhar posições mais vantajosas.
Nesse sentido Goffman foi muito pertinente ao introduzir o estigma na definição de
identidade, e embora não o faça por vias diretas em todo o estudo dedicado a isto, cabe-lhe
tratá-lo como identidade deteriorada.
Nosso trabalho teve, portanto, a finalidade de investigar as condições nas quais um
estigma é construído socialmente como identidade, ou melhor – por ser a representação
sempre uma re-apresentação do objeto saber como a identidade de um grupo emerge pelos
80
contatos travados entre os grupos, onde, de um ao outro, as fronteiras simbólicas se deslocam,
ou fazem deslocar as posições dos sujeitos coletivos.
Desde então se colocou a questão de trazer a figura do outro para decidir sobre as
representações de um grupo alienado (ou constituído) na razão alheia. O outro sempre na
origem ou no termo desta decisão, assume o lugar que a balança dos pesos confere como de
juízo, ele mesmo sem peso.
Assim a alteridade que lhes escapa, e que nós atestamos como segura, ela mesma
existe também na segurança de um novo recorte, também arbitrário, nessa relação entre
outros. Os nordestinos estão assegurados enquanto grupo? Acreditamos que não. Certamente
que podemos falar em sua identidade, mas nenhum grupo suposto pelo estigma se acha
assegurado, é preciso que se façam escolhas persistir no estigma dado pelo outro, ou criar,
para si, as condições de um próprio?
A contribuição maior de Goffman, nesse sentido, e apesar do conceito de papel não
ser uma contribuição original sua, não está propriamente numa teoria de papéis, mas em
mostrar que nunca se pode ser sincero, ou, como se diz comumente, ser a si mesmo pelo
contrário, pois se está em outro lugar diferente daquele que se pensa ou se diz no momento
mesmo em que se pensa ser “si mesmo”.
Em nossa pesquisa, no instante em que os entrevistados eram informados de que se
tratava de uma investigação sobre nordestinos e caboclos, sentiam-se na responsabilidade de
controlar suas representações dentro de um papel comum de nordestino, e, assim,
contrariamente, fica-se sem saber mais a respeito exatamente porque introduzimos tais noções
sem esperar que talvez se revelassem espontaneamente.
Não se sustenta, dada nossa dificuldade, não lembrarmos da estória de Arácne, que
continua sendo uma metáfora da implicação do ser pela linguagem, e de como estamos presos
tal qual a personagem grega a uma rede que tecemos e na qual existimos, sem conexão com o
81
real. É a condição que nos permite falar das coisas, produzir uma teia cujos elementos estão
separados do “Olimpo”, da sua referência divina, absoluta, e se falamos em nordestinos e
caboclos é porque paradoxalmente eles não estão mais apreendidos pelo nome que lhes
damos.
Considerando as representações sociais, e sempre que elas são lembradas para dar
uma resposta última sobre os problemas do conhecimento, é preciso que fiquemos atentos
para a situação do que chamamos de “realidade”, que permanece atuando de fora, na condição
de conceito não questionado, no fundo da nossa reflexão. Uma dificuldade aparece porque se
induz a acreditar que ambos, nordestinos e caboclos estariam numa realidade outra, da qual os
nomes seriam mera representação.
Pierre Bourdieu (1989), que se dedicou a investigar de que modo um conhecimento
dito científico também pode reproduzir preconceitos e julgamentos comuns no seu interior,
estabelece sua crítica das práticas sociológicas atacando o que chama de “cães de guarda
metodológicos” (p. 26), e uma vez que não se prescinde de uma teoria, especialmente quando
nada se faz de mais prático, não precisamos também mais de preceitos do que de saber o que
estamos a fazer realmente.
Não é de realidade que se trata no caso de nordestinos e caboclos. Se podemos
evocá-los através de símbolos a qualquer momento é porque eles são reais, isto é, há algo que
nos indica sua presença, e uma associação de nordestinos, como visto, pode jogar com um
certo privilégio quanto a esta visibilidade.
A relação do estigmatizado com a comunidade informal e as organizações formais a
que ele pertence em função de seu estigma é, então, crucial. Essa relação, por
exemplo, estabelecerá grande distância entre aqueles cuja diferença cria muito pouco
de um novo “nós” e aqueles, como os membros de grupos minoritários, que se
consideram parte de uma comunidade bem organizada com tradições estabelecidas
uma comunidade que formula consideráveis exigências de renda e lealdade, que
define o membro como alguém que deve orgulhar de sua doença e não buscar
melhora. De qualquer forma, quer o grupo estigmatizado esteja ou não estabelecido,
é, em grande parte, em relação a esse grupo-de-iguais que é possível discutir a
82
história natural e a carreira moral do indivíduo estigmatizado (GOFFMAN, 1988,
47-8).
Um grupo-de-iguais legitima um estigma, de modo que é a ele que se recorre para
aceitar uma condição que, fora dele, enfraqueceria seus portadores. Evidentemente, aqui não
podemos fazer menção aos portadores do estigma de caboclo, porque nos achamos no
caminho de discutir primeiramente as expectativas. um ponto no qual a representação se
comunica com o real, é quando pensamos falar de pessoas ou coisas que conhecemos. Na
maior parte do deslizar rumo ao significado, porém, as pessoas se acham primeiramente
subordinadas a expectativas trazidas junto das representações.
Certamente, se o que se quer é o real, podemos aqui falar em representações, porque
fazem parte do real, mas, como nos lembra Bourdieu (1989), no início de sua crítica ao
conceito de região, não o são. Então, o que se quer quando se fala em representações sociais?
Tomar como referência última o que nos dizem os entrevistados não nos oferece
senão a palavra morta, recurso da certeza que não esclarece, pelo contrário, tem o objeto
somente, no lugar da reflexão, substitui, pelo conceito acabado, o trabalho da descrição do
fenômeno.
Reunir as falas dos entrevistados, encontrar seu sentido, construí-lo mesmo nessa
espécie de recorte, constitui uma reflexão que continua na descrição, etapa necessária para
não perder o caráter de construção das representações. Sem o esforço da descrição, as falas
podem ser colocadas no lugar de representações, entificando, isto é, substantivando um
processo, sem chegar a conhecer a racionalidade dos argumentos e a maneira pela qual eles
ganham uma coerência.
Uma das dificuldades, porém, intrínseca à própria escolha do objeto, está no termo
caboclo, elegido sem que antes se tivesse feito uma aproximação com o campo para definir se
os entrevistados teriam nele uma expressão de uso comum.
83
expectativas não reveladas na maneira como as representações ocorrem para
marcar diferenças, para definir uns e outros. Nomes como caboclos ou nordestinos, nessa
relação como que imposta pelo observador, parecem incapazes de nos levar para além de
nossa própria interpretação.
Não se pode subestimar o peso destas falhas, ainda que sob o rótulo explicativo da
psicologia para a qual, por si, estas parcas descrições serviriam num quê de reveladoras.
Não é isso. Tudo vale, e tudo pode ser válido, de posse do trabalho pronto e, simplesmente,
ter colecionado algo de interesse ao leitor não evita que, num trabalho semelhante, se deva
recuar no ponto de partida.
O problema é que caboclo não é de maneira alguma uma questão que se coloca para
os entrevistados; fala-se em amazonenses, amazônida, manauara, vizinho, “daqui”, mas o
caboclo não marca lugar, ao menos assim está posto na cidade, nem participa do cotidiano
senão nesta forma imaginada, lembrada a propósito de um certo homem que identifica os
demais, uma construção por oposição a nordestino, também este último mais uma qualidade
que propriamente uma identidade.
Neste trabalho, quando falamos em nordestinos e caboclos, assim de um modo
impessoal, ou com a mesma distância de termos como “representações”, podemos perder de
vista o de quê se trata aí, pois, enfim, são pessoas que nos recebem em suas casas ou em seus
locais de trabalho e aceitam falar sobre suas vidas para o entrevistador.
De fato, tentando encontrar nordestinos, se encontrou pessoas, estas os
informantes valiosos que com suas histórias nos falaram de caboclos e abriram ao
entrevistador o conhecimento dos modos de ser nordestino em Manaus.
Certamente que saber disso tudo não nos evita o erro, quando no centro mesmo do
problema de pesquisa se acha um objeto pré-fabricado. Bourdieu (1989) nos alerta para a
84
importância, ela mesma não justificada, do objeto da pesquisa, esse objeto para o qual não
devemos descuidar de sua construção:
Tem-se demasiada tendência para crer, em ciências sociais, que a importância social
ou política do objeto é por si mesmo suficiente para dar fundamento à importância
do discurso que lhe é consagrado e isto sem dúvida que explica que os sociólogos
mais inclinados a avaliar a sua importância pela importância dos objetos que
estudam, como é o caso daqueles que, atualmente, se interessam pelo estado ou pelo
poder, se mostrem muitas vezes os menos atentos aos procedimentos metodológicos
(BOURDIEU, 1989, p. 20).
Certamente, no presente trabalho, o pesquisador seria o elemento suscetível aos
erros, pois afinal a escolha do tema pouco traria do “interesse” quase forçado de quem se
obriga a ter na base de sua reflexão um motivo pessoal recôndito, algum privilégio que o
autorize a portar a voz do objeto alguém supsserocediseria edi o
85
si mesma na série de esforços teóricos necessários para isso: a “participação dos nordestinos”,
a “importância da participação nordestina”, o caboclo como “um misto de índios e
nordestinos” – e não aos procedimentos da pesquisa.
É, sim, comum encontrar referências a nordestinos em obras que tratam de migrações
para Manaus (MELO; MOURA, 1990; CAETANO, 1998) sempre a partir de um enfoque
econômico, isto porque ao deixar de ser problematizado, o conceito de migração é tido por um
conjunto de mensurações e estatísticas que limitam sua definição. Elementos dessa
construção, que respondem pelos nomes de “progresso”, “crescimento” e “dinâmica”,
tomados de empréstimo das ciências físicas, denunciam os parâmetros que orientam a feição
do conceito.
Quem é o migrante senão aquele que migra? Ao contrário desta linha de
interpretação, o que nos mostram as histórias dos entrevistados é que não se trata de migração.
O caboclo, por sua vez, na sua aparente qualidade de homem comum, termo vulgar, é
tomado por objeto de uma interpretação anterior que o define como um elo entre passado e
presente, cujo entendimento seria imprescindível para se entender por extensão a Amazônia.
Djalma Batista, médico acreano formado pela Universidade de Medicina da Bahia,
que contribuiu com estudos ainda lembrados sobre temas amazônicos, inclusive sobre
Manaus, escreveu o ensaio chamado “Da habitabilidade da Amazônia”, inicialmente
apresentado em fórum no Rio de Janeiro em 1963, e republicado no livro Amazônia – cultura
e sociedade (2003), no qual os chamados caboclos são explicados como uma “dissolvição” da
população original (e o critério demográfico das “sessenta mil almas” trai a inclinação do
autor pelas contagens), em um processo de miscigenação que se reafirma com base no que
chama de “tradição brasileira”:
Na Amazônia, a população indígena propriamente dita anda por umas 60.000 almas,
atualmente, encontrando-se diluída nos “caboclos”, que representam, na planície, a
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reafirmação da tradição brasileira da miscigenação, enquanto na África, negro
continua a ser negro, [...] (BATISTA, 2003, p. 115).
Caberia saber de que se trata neste “propriamente” quando se fala em “população
indígena” uma vez que é neste critério de comparação que se define quem são uns e outros no
caso dos caboclos, ao menos para o autor, o que nos deixa com dúvidas não resolvidas, de
onde se tira a segurança com que se diz, como se pensa, que uns são índios, outros negros,
outros caboclos, outros brancos.
Nosso trabalho corre assim na trilha deixada pelas representações acabadas, em
nome das quais se deixa de ver que para os caboclos um ganho particular em serem os
“invisíveis” do sistema econômico, e não somente alvo de uma expropriação como se corre o
risco de interpretar.
Para evitar percorrer o lugar comum das interpretações recorrentes de caboclos e
nordestinos lentamente se adotou a perspectiva de só trabalhar com a ordem dos temas trazida
pelos entrevistados, cotejando-as depois com as representações comuns.
Apesar de ter como objeto das representações um suposto homem comum, as
entrevistas mostram que nordestinos e caboclos não se encontram na cidade, a menos para
aqueles que, por ocasião do trabalho, conhecem caboclos, ou ainda pela vida noturna da
cidade que favorece que se conheçam as “caboclas”, no caso da entrevista com o livreiro P.,
ou ainda porque esse caboclo pertence à família ou ao grupo de amigos próximos.
Com a intenção de preservar cada entrevista como um registro particular, se quer
dizer que, e apesar dos esforços de se enxergar algo geral no que é falado, cada relato deve ser
entendido no que traz de novo, seu, no que inaugura para a reflexão, não no que acrescenta a
uma pergunta. Assim, no que é dito sobre caboclos e nordestinos toma-se o cuidado de não
explicar em termos de caso geral, mas descrever os contextos diversos das representações.
As entrevistas do presente bloco, com os pais de E. (o entrevistado cuja história é
narrada no primeiro capítulo), que percorreram todo o país a trabalho e se estabeleceram por
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fim em Manaus, e de R., baiana que abriu na cidade, junto com a mãe, um restaurante com
receitas do seu estado, foram agrupadas pelos temas do encontro com os caboclos e de como
esta aproximação pode servir, ao mesmo tempo, para definir os lugares ocupados por aquele
que chega e por aqueles que aqui estão, e para separá-los em contextos específicos a suas
práticas, de tal sorte a se permitir dizer que este encontro não se dá senão num desencontro.
2.1 “Quem faz o lugar são as pessoas”
As duas entrevistas seguintes foram concedidas por A. e sua esposa I., devido a
duradouros laços de amizade com o entrevistador. Foi numa conversa anterior que se falou a
respeito da presente pesquisa, da qual eles concordaram em participar, sendo ouvidos em sua
casa, numa tarde de 2006.
Nos trechos seguintes apenas A. conversa com o entrevistador, enquanto I., com
quem residia “amigado”, como se diz das uniões matrimoniais não-oficializadas, assiste
televisão em outro cômodo da casa.
No momento da entrevista eles residiam há trinta e um anos em Manaus; ele é natural
de Feira de Santana na Bahia, ela de Jequié, e quando se estabilizaram em Manaus, em 1975,
cuidaram da criação dos filhos. O casal teve cinco filhos, incluindo E., entrevistado nesta
pesquisa (ver entrevista no primeiro capítulo).
Começamos a entrevista a partir de uma conversa informal na qual falamos sobre seu
longo currículo a serviço de uma empresa nacional da construção civil, na qual trabalhou até
se aposentar, e pela qual sua vida foi de viagens constantes por todo o país:
Eu conheci todo o Brasil a serviço, eu não conheci Fernando de Noronha e o Rio
Grande do Sul, mas o resto, tudo.
Quantos anos de serviço o senhor acumulou?
Dezoito anos de serviço, eu trabalhei até me aposentar... eu trabalhei em Prainha,
aqui na Transamazônica, isso foi depois que eu vim do Mato Grosso em 1962, lá eu
trabalhei na estrada 353, nós asfaltamos lá. Você imagina a dificuldade de trabalhar
sob um frio de 4 graus, não é moleza... (A. – 03/02/2006).
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Não havia uma preferência anterior por Manaus, não foi um destino escolhido, mas,
como fica muito claro, surgido pela exclusão de outros destinos possíveis e também porque na
cidade se ofereciam as chances, naquele momento, de uma melhor formação escolar para os
filhos. A escolha é algo que não está presente na maneira como A. compreende a
subordinação à empresa, de modo a fazer entender que sua escolha está em não fazer
escolhas.
A. se orgulha da sua folha profissional, pelo fato de ser um motorista destacado na
empresa, conhecido por sua excelência, para quem o trabalho na empresa ocupou posição
central, de onde partiu sua compreensão do mundo. De um certo modo, sem embargo,
podemos dizer que A. situou-se na condição de despossuído para quem sua função era um
trabalho e, ao mesmo tempo, sua morada para viver.
O conhecimento que teve sobre o Amazonas é também próprio deste modo de se
relacionar, por conta de suas viagens terem se dado unicamente por motivos de trabalho, e
porque sua aprendizagem do mundo é sempre inscrita na ética vivida no interior da empresa:
O que o senhor adquiriu da cultura local desde que chegou aqui?
Eu não sei porque eu não trabalhei na terra. Não mergulhei em rio. acho que a
gente tem que ser obediente aos nossos governantes. Aprendi que o tratamento, tudo
era igual, do primeiro ao último funcionário o tratamento dispensado era o mesmo
(A. – 03/02/2006).
Judith Vero, psicóloga, narrou, em seu trabalho de mestrado pela PUC-SP, a história
de judeus húngaros imigrados para o Brasil, desde a primeira geração que escapou da
perseguição da guerra, até a terceira, dos netos nascidos em território brasileiro. A própria
autora refaz sua trajetória de estrangeira entrecruzando as memórias:
Creio que um sentimento que talvez nunca os tenha abandonado foi exatamente
aquele que pede a permanência, o imutável, a garantia contra, em última análise, a
despersonalização, e a morte. Ou seja, o medo. Essas pessoas são fruto de uma
89
geração que sobreviveu a duas grandes guerras, viveu as conseqüências da
dissolução do império austro-húngaro, o início da escalada anti-semita deste século
na Europa e, por fim, sua instalação em forma de um fascismo “xiita” na Hungria
(segundo esse grupo, os fascistas húngaros eram “piores” do que os nazistas) [...]
Não é estranho, portanto, considerar que no seu inconsciente pessoal e coletivo
estivessem constelados arquétipos terríveis de destruição. De alguma forma, para
impedir esses arquétipos (que sentiam como grande ameaça) de se manifestarem,
acabaram criando aqui, no Brasil, uma pequena Hungria paradisíaca, onde podiam
desfrutar o prazer da existência protegidos por suas frágeis e sofridas identidades.
Essas pessoas, apesar de estarem no Brasil, por não disporem de um confronto com
o novo (uma vez que viviam voluntariamente segregadas, à margem da cultura local,
praticamente sem contato significativo com “diferentes”), foram se cristalizando em
estereótipos que redundaram em certezas inquestionáveis [...] Essas “certezas” (país
maravilhoso, gente boa, sou brasileiro) e a “realidade” (não se relacionam de fato
com o brasileiro) permanecem como facetas estanques de suas identidades, uma não
reconhecendo na outra sua própria imagem (VERO, 2003, p. 51-2).
Assim como no caso dos primeiros estrangeiros húngaros no Brasil, cuja situação foi
pensada por Judith Vero, talvez a aproximação maior de nosso entrevistado tivesse o efeito de
uma representação menos cautelosa a respeito dos chamados caboclos e amazonenses. O
respeito acentuado pode ter o efeito desejado de não se envolver, ao mesmo tempo, com os
problemas do local ou das pessoas; como ele fala, não sabe mais a respeito da cidade por não
ter “trabalhado” aqui (A. nunca trabalhou em Manaus propriamente, mas abrindo estradas
pelo Amazonas, e demais obras públicas na região norte) e, assim, sempre o dever é que
determina o espaço da aproximação.
Após se aposentar do trabalho, e decidir viver e criar os filhos em Manaus, A. retoma
a atividade de motorista trabalhando com táxi, em 1978, na cidade: “Não deu um bom
dinheiro, mas deu para criar os filhos, graças a Deus, não tenho o que dizer do amazonense. É
verdade... é como eu costumo dizer: quem faz o lugar são as pessoas.” (A. – 03/02/2006).
Com a expressão “quem faz o lugar são as pessoas” o entrevistado coloca em uma
sentença a maneira como define suas relações com a cidade de Manaus e as outras que
passou, bem como as pessoas que encontrou em cada uma. De um lado, este modo de pensar
faz com que se evite as definições prontas, que se tome com cautela os julgamentos
apressados, e, uma vez que, conforme nos parece, no estigma são os lugares que definem seus
portadores, situar as pessoas antes dos lugares significa renunciar aos estigmas. O
90
entrevistador então é quem começa falando sobre caboclos, porque seriam eles considerados
os homens da terra em nossa hipótese de trabalho, coisa que gostaríamos que o entrevistado
indicasse se concorda ou não:
O que significa ser um caboclo?
Eu não ponho nada disso na cabeça, não vou ficar tratando por essa parte, trato do
jeito que a pessoa quiser.
Mas o caboclo existe? O que o senhor acha?
Depende da pessoa, se ela quiser ser chamada assim... se não quiser, fulano de tal, a
gente chama do jeito que ele quiser... tem gente que fala assim, sorrindo...
Debochando?
É, e ele pode não gostar.
Mas o senhor já chamou alguém de caboclo?
Não, eu tenho outro modo de tratar.
O senhor então acha errada essa palavra?
Acho errado o uso que é feito, não se deve falar em caboclo, devemos chamar a
pessoa pelo que ela quer ser chamada... não tenho nada contra a palavra, mas acho
que deveria ser tirada do vocabulário. Não é o próprio homem daqui que se chama
assim, ele é chamado pelos outros (A. – 03/02/2006).
Em parte, seu modo amistoso de tratar e entender caboclo como um termo pejorativo,
aplicado por outros, talvez aconteça pela hieraquia que teve de respeitar em seu trabalho na
relação com os seus superiores. Segundo A. deixa claro, é o trabalho que confere o modo de
sua participação na vida social. Quando pergunto sobre diferenças entre Manaus e outras
cidades pelas quais passou, A. responde: “Não achei diferença, quem faz o lugar são as
pessoas... se não quiser ser chamado de caboclo, chama de outra coisa, tem gente que fala de
caboclo querendo dizer outra coisa, eu não” (A. 03/02/2006). Dizer que quem faz o lugar
são as pessoas, também possui este outro sentido de se manter distante:
Quem faz o lugar são as pessoas, então se fosse em outro lugar seria do mesmo
jeito?
Em qualquer lugar seria do mesmo jeito... a minha carteira de trabalho... ninguém
tem uma carteira de trabalho como a minha... uma vez o coronel precisava do meu
serviço, mandou me chamar, ele explicou porque tinha que ser eu... olhou a minha
carteira e falou: “A sua carteira não registra uma folga em mais de trinta anos de
serviço...”. É... (A. – 03/02/2006).
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Então, seu respeito ao modo como os outros se colocam é também conseqüente à sua
formação profissional, ao fato de estar em um local sempre a trabalho e sempre de passagem,
com um prazo em vista, de modo a se resguardar por isso de qualquer aproximação maior ou
mais duradoura com as pessoas de cada local:
O que o senhor percebeu de diferenças entre nordestinos e amazonenses?
Nenhuma, eu tive um funcionário aqui, trabalhou no meu setor, um rapaz jovem... o
funcionário do outro setor veio reclamar que este rapaz havia pego um carro da
empresa e feito cavalo de pau... eu esperei e fui falar com esse rapaz, eu
perguntei: “Você quer trabalhar direito ou quer ser demitido?”, pronto, nunca mais
ele fez... até hoje vem me agradecer. uma conversa bastou pra resolver... então,
tratando todo mundo bem não tem problema...
Só essa palavra, caboclo, que é errada?
É, você tem que chamar a pessoa pelo que ela quer ser chamada. Não adianta
chamar de caboclo, tem que chamar por uma coisa boa...
Que futuro o senhor acha que vai ter essa palavra no Brasil?
Nenhum, não vai ter futuro nenhum... mas não é por causa de uma palavra que você
vai perder... como se diz... seu artigo (A. – 03/02/2006).
Algum tempo depois desta entrevista, A. veio a falecer de causas naturais, sem que
se pudesse apresentar um resultado dos estudos, e pelo que fica a vontade de termos debatido
mais uma vez sobre o tema, como fazíamos sempre a respeito dos mais variados assuntos.
2.2 “O caboclo não fala”
A entrevista com I. ocorreu logo depois da entrevista com seu marido, que ainda
ficou próximo a nós durante o início desta conversa, mas se retirou em seguida.
A entrevistada é natural de Jequié na Bahia, e a decisão de vir para Manaus não teve
sua participação direta, pois as viagens sempre dependiam em primeiro lugar da aprovação do
marido. Ambos possuíam compromissos familiares quando se conheceram, rompendo com
eles para ficarem juntos: ela abandonou um noivado na pequena cidade interiorana da Bahia,
ele deixou para trás um casamento anterior.
I. sempre foi dona de casa porque lhe era natural ficar ao lado do marido, para quem
provia a base familiar necessária para o desempenho no trabalho. Assim como o marido, cuja
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satisfação estava no cumprimento do dever na empresa, I. se ocupava com afinco do cuidado
dos filhos nos anos em que ambos viajaram pelo Brasil até se estabelecerem em Manaus:
E nesse período que vocês vieram para Manaus, os filhos estavam
trabalhando? Já estavam todos pensando em trabalhar?
Não, estavam todos estudando ainda. Quando ele aposentou, que a gente inventou de
ir, foi que eles já estavam trabalhando.
Inventou de ir?
A gente inventou de ir embora daqui, mas aí não dava mais.
Vocês voltaram à Paraíba?
Voltamos à Paraíba, mas nisso o E. [um dos filhos, que não é o entrevistado neste
trabalho] ficou aqui, já tinha a E. [neta].
Qual era o atrativo da Paraíba? Qual era a vantagem de lá?
É porque a gente estava aposentado. ia para lá. Chegando lá, ele [o marido]
ficou trabalhando com táxi, como ele já trabalhava aqui.
Aí vocês pensaram em se estabelecer na Paraíba?
É, por causa dos filhos. Mas porque lá eles não podiam trabalhar...
E não encontrou trabalho lá?
Não.
Então o melhor para trabalhar é aqui em Manaus?
É. Lá é bom só para o aposentado mesmo, lá é bom para a pessoa que é
aposentada. É o caso de ir para para descansar, para quem tem aposentadoria,
mas isso aqui mesmo é difícil... (I. – 03/02/2006).
Ela não compartilha do cuidado do marido em evitar expressões pejorativas, também
não entende os caboclos como alvos do preconceito; em vez disso, identifica muito bem quem
seriam esses caboclos, porque traz uma realidade vivida no cotidiano das pessoas que, assim
como no seu caso, supostamente se relacionariam com eles. Ao contrário do marido, I. pôde
fazer uma idéia mais abrangente sobre as diferenças entre os vários estados, e sobre as
pessoas que conheceu em cada um:
Quanto ao povo, tem diferença da gente daqui para a de outros estados?
É muito diferente. Dos de fora... o povo daqui mesmo era afastado.
A senhora sentia isso?
Senti muito. Agora eles já são assim mais comunicativos, tudo melhorou (I. –
03/02/2006).
O entrevistador introduz o termo caboclo na conversa, de modo a deixar mais
explícito que não se trata somente do povo manauense, mas especialmente desse grupo que se
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quer saber. As representações da entrevistada passam a coincidir então para caboclos e para
aqueles que ela chama de “daqui”, ela não parece fazer distinção entre os dois:
Dos estados que a senhora já conheceu, as pessoas não são acanhadas também?
Mas não é igual aos daqui. Eu não sei por quê são todos acanhados.
E no nordeste, como é?
eles fazem muita amizade, fazem amizade demais com as pessoas, é igual em
Goiás, é igual em Minas. É um pessoal todo hospitaleiro, pessoal todo legal. São
Paulo, agora até o Rio também, o Rio tem umas pessoas que são boas, agora tem
outras também que... Rio de Janeiro é fogo também!
Então é assim em todo local?
Agora daqui mesmo, como você perguntou agora, como é o povo daqui. Eu vivo
quanto tempo aqui e não tenho amigo, amiga daqui...
Mas já conheceu...
Já, essa minha vizinha é do Acre, chegou aqui quase não falava, agora essa daqui
é de Fortaleza, é uma pessoa dada. A daí de frente é daqui, mas é meio... não é
fechada, mas fica para lá, sai na porta: “oi, oi”. Agora tem uma que é daqui,
“da gema”, quase não tinha contato com vizinho, mas como vive aqui muito
tempo já é dada (I. – 03/02/2006).
Entender o caboclo como “acanhado”, isto é, como aquele que não consegue ou não
faz aproximação com outras pessoas facilmente, é uma interpretação recorrente, de modo a
ser atribuída à uma própria “natureza” deste homem. Assim surge, nas palavras da
entrevistada, a imagem do caboclo “da gema”, aquele cuja ação não se questiona mais, por se
acreditar que tudo seu passa a ser regulado por uma natureza anterior que o explica.
Não podemos dizer que a representação pejorativa de I. seja motivada exatamente
pelo fato de se tratar de caboclos; parece que suas expectativas têm mais relação com os
lugares ocupados pelas pessoas a que ela se refere, empregados e vizinhos, pessoas com quem
teve mais contato pela restrição desde sempre imposta no papel de dona-de-casa, ou seja,
pessoas cujas relações sociais estão demarcadas de início pela necessidade da manipulação
certa de seus papéis, e não pela espontaneidade amistosa e desinteressada.
O aparente “acomodamento” dos caboclos é outra interpretação que, por sua vez,
também serve para estabelecer diferenças entre caboclos e os nordestinos, os trabalhadores
incansáveis, que não desistem dadas as dificuldades:
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A senhora que é nordestina, o que o nordestino é que o caboclo não é?
Eu acho que o caboclo, tem muitos que não têm interesse... o nordestino luta para ter
as coisas, está voando terra na cara dele, não chove, mas ele está tentando fazer...
trabalhador ora... é isso que eu acho diferente. Os daqui largam o mato e vem
embora para a cidade para ficar, para fazer o quê? Fazer o quê pelo amor de Deus?
Mas é assim, ele vai no rio, tem uma canoa, pega o peixe, compra a farinha,
acabado, “e vamos nos acomodar!”.
[...]
se for para trabalhar é melhor em Manaus, [no nordeste] eles [nordestinos] lutam
e vivem como dá... o nordestino vai para São Paulo e sofre que só. Aí vem o caboclo
da roça para cá e já não se interessa... (I. – 03/02/2006).
Acanhamento e acomodação se equivalem no sentido da diminuição dos caboclos.
Estar acomodado é estar assegurado no seu lugar, é se manter excluído por vontade. E não só,
pois o acanhamento desse caboclo também não é visto como uma mera timidez, como algo
comum a outros grupos, mas usando-se critério de freqüência, que, baseado em expressões
como “tem muito”, passa a responder por todos os casos, independente do particular:
Tem outras pessoas, outros povos no Brasil, que tenham a mesma
característica?
aqui... tem muito esse tipo de gente por aí, mas, até o momento, que eu conheci,
o mais fechado mesmo é no Rio de Janeiro, mas mesmo assim ainda tem muita
gente dada... (I. – 03/02/2006).
Não é possível excluir completamente os opostos, e mesmo que I. procure dizer que
não outras pessoas tão reservadas quanto os caboclos, não consegue justificar plenamente
essa impressão, pois as lembranças de outros estados a contradizem:
Mas não será timidez, ou os caboclos são assim mesmo?
Eu não sei, acho que é porque eles são assim mesmo, deve ser do jeito deles mesmo.
A gente morou na Paraíba... e em vários lugares quando estavam fazendo estrada,
em todo lugar que a gente chegava era muito bom, pessoal muito dado, moramos no
Estado de São Paulo, muito bom, moramos no Estado do Rio, em Volta Redonda,
Barra Mansa, pessoal todo dado também, o mais fechado é o carioca que é de de
dentro do Rio, esse mesmo não tem tempo para ninguém, não conversa com
ninguém quase (I. – 03/02/2006).
As relações sociais de I. não podem, entretanto, ser consideradas menos acanhadas
que as do caboclo a que ela aponta, pois, segundo suas palavras, ao fim da entrevista, não
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possui muitos amigos aqui: “Daqui mesmo de Manaus eu não tenho amigos, eu não sei se é
devido à família da gente, cada qual é da família, até hoje eu não tenho assim para dizer:
‘tenho muitas amizades, muita coisa...’” (I. – 03/02/2006).
Mas aí se tratam de situações diferentes: se o silêncio e a distância dos caboclos estão
em algo que não fica de todo claro, para I., por outro lado, ter menos contato com as pessoas
do lugar é parte da própria condição de mulher dedicada à família em que ela se encontra;
pois é pelos filhos e pela formação deles que o casal pensa em se estabelecer na cidade, além
da própria aposentadoria do marido.
Trata-se de uma divisão erguida entre família e amigos que caberá à segunda geração
transpor. No primeiro momento supomos que se vive uma oposição “dentro-fora” que
desestimula o contato com as pessoas do local, consideradas ainda como sendo de fora da
família, não há amigos, esse significante é guardado também para descrever as relações
familiares. E., o filho também entrevistado na pesquisa, que chegou ao final deste encontro,
confirmou a mesma impressão, falando espontaneamente do comprometimento com a família,
e do quanto a criação dos filhos e a preocupação com seu futuro limitou o contato social dos
pais.
2.3 Preconceito e pejoratividade no caso dos caboclos amazônicos
A. e I. não têm, como representantes da primeira geração que chega em Manaus, a
responsabilidade de expandir suas relações na cidade. I. possui representações mais
pejorativas que A., porém no caso dela isto não parece ter a ver com estarmos falando de
caboclos, porque as dificuldades aparecem no decorrer das relações empíricas que ela pode
descrever muito bem: é o caso do desentendimento com empregados e das dificuldades de
aproximação com os vizinhos. O preconceito parece mais ligado a estas posições dos
sujeitos, que propriamente se tratar de caboclos.
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Gostaríamos também de situar as representações sociais presentes em nossos relatos
como uma tentativa de justificar, racionalmente, a disposição afetiva primeira que se
apresenta ante a presença despertada pelas pessoas e demais entes da vida cotidiana. De
modo, então, que nenhuma representação é imparcial, porque na sua origem se acha um
conteúdo emocional ou um julgamento de valor, fazemos coro a Moscovici (2003) ao
ressaltar que nenhuma representação é somente um fenômeno cognitivo. Ao dizermos,
portanto, que as representações sociais têm uma natureza cognitiva, não afirmamos de modo
algum que sejam o tempo todo conscientes.
Uma conclusão que podemos ter na entrevista com A., pelo seu cuidado em perceber
como as pessoas querem ser chamadas, é que todo estigma aparece quando não se sabe de
quem se fala – assim é para “velhos”, “loucos”, assim parece o caso também para “caboclos”.
Ao estudarmos a familiaridade como critério de definição, encontramos, não por acaso,
definições mais favoráveis para os caboclos que possuem alguma relação amistosa, ou
parentesco, ou seja, também um conteúdo afetivo favorável, com o entrevistado.
Uma vez que os próprios nomes engendram expectativas, é possível evitar o
preconceito? Quando falamos em nordestinos e caboclos temos a impressão de que será fácil
apontar uns e outros, porém, não é porque alguém se apresenta sob um nome que resolvemos
o problema da identidade. Somente a auto-identificação, que por si é bastante problemática,
não serve como garantia para se evitar o estigma. Em reportagem de Elaíze Farias (2005)
intitulada Igualdade e diferença, o problema dessa definição de lugares é discutido por
Adjalma Jacques, diretor do departamento de “disseminação”, do IBGE de Manaus:
O gerente do IBGE em Manaus, [...] brinca que se fosse ser levada em conta a
pigmentação do brasileiro, haveria no país mais de 200 cores. Mas, para efeito de
levantamento étnico, existem apenas cinco raças no país: branca, preta, amarela,
parda e indígena. [...]
Está na categoria “pardo” a principal incógnita que nem mesmo o IBGE sabe
responder. No caso do Amazonas, quem seriam os pardos? Composto
visivelmente
por uma maioria cabocla, está na auto-definição a solução desta confusão, segundo
Adjalma.
97
“É uma questão de conscientização e de como a pessoa se auto-define. [...]”.
(FARIAS, 2005, p. 13) [Grifo nosso].
O emprego da palavra “visivelmente”, no texto, assim como todas as expressões com
as quais não se procura questionar o fenômeno, retira novamente do interlocutor a
responsabilidade sobre as expectativas atribuídas aos outros. A consciência pessoal é
lembrada a propósito da auto-identificação, pela tendência de se acreditar, enfim, que
identidades se resolvem no que se diz a respeito delas, e da recusa em tratar do estigma a que
as identidades induzem, limitando os grupos à reprodução da expectativa dominante. Não se
discute aí, em nenhum momento, que as pessoas tenham o direito de se recusar a fazer parte
de qualquer classificação.
No fim, não importa o que se diz ser, pelo menos não é tudo o que importa para se
saber quem fala, pois dizer-se caboclo, ou dizer-se um poste, não significa que se é, pois a
essência, mesmo secundária à existência, é o seu substrato inapreensível. Precisamos
certamente dar voz às pessoas, ainda assim isto não responde a tudo.
Para Roberto Cardoso de Oliveira, antropólogo que recebeu destaque ao estudar,
desde 1959, a dialética senhor/escravo de Hegel aplicada ao caso dos Tikuna no alto
Solimões, e a propósito da entrada do que chamou de “mundo dos brancos” na cultura
daquele povo, falar em caboclos já seria uma alienação de si. É o que chama de caboclismo:
Quando o índio se diz Tükúna ou Marubo, por exemplo, ele o diz reconhecendo-se
membro de um grupo determinado; quando esse mesmo índio se diz
índio ou
caboclo, ele o diz classificando-se numa categoria que só toma sentido quando
oposta à de
branco ou “civilizado”. Ao identificar-se como membro de uma
determinada tribo (“consciência tribal”), sua ação se reveste da maior autenticidade
e não implica na afirmação da existência
do outro. Ao identificar-se como índio, sua
ação decorre em função do
outro: a categoria índio existe porque existe a
categoria branco. É claro que a consciência étnica também pode ser autêntica, desde
que se constitua numa
objetivação de uma situação concreta, a saber, a existência de
índios e brancos, em oposição. Mas pode ser inautêntica, desde que se constitua por
um subjetivismo ambíguo, característico do que chamamos “caboclismo” e gerador
da “consciência infeliz” a que nos referimos, parafraseando Hegel. Neste último
caso, esta consciência engendra uma prática alienadora (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1981, p. 100) [Grifos do autor].
98
Alienação que podemos encontrar explicada no estudo de Goffman (1985) sobre os
papéis sociais que, como visto, mostram que toda forma de constituir uma auto-identificação
não aparece sem levar em conta os outros que estarão observando.
Devemos, neste momento, fazer o contraponto entre aquilo que temos chamado até
aqui de estigma, que envolve de alguma maneira uma expectativa preconceituosa, algo que se
afirma, mas que não se sustenta, e por outro lado, qualquer caracterização pejorativa que
apesar de estar associada ao estigma e preconceito, gostaríamos de salientar, não é por si
um indicativo de qualquer dos dois. Com efeito, o que vemos no primeiro capítulo, na
entrevista de E., funcionário do PIM, e sua esposa, é que algumas observações que poderiam
justificadamente ser vistas como pejorativas, não obstante, possuem uma correspondência
com eventos reais, que exatamente respondem pela força de sua manutenção. É preciso
aprender a identificar que fenômenos da vida social embasam as representações, por mais
arbitrárias que pareçam.
A constatação do casal E. e A., na entrevista descrita no primeiro capítulo, de que
caboclos e amazonenses não conhecem outros estados, e por isso não teriam referências para
conhecer o local em que vivem, tem uma realidade bem material que os entrevistados
conseguem recordar, porém que deve ser separada das conclusões posteriores, basicamente da
idéia de que os caboclos não sabem que moram no lugar mais lindo de todos, e dependem
do que lhes é dito sobre esse lugar.
A esposa de E., naquela ocasião, observou que uma certa posição auto-depreciativa
dos amazonenses existe na dependência da informação que recebem de outros grupos. Ela
menciona uma experiência que ocorreu com seus alunos para confirmar sua hipótese, ou seja,
consegue reconstituir vivências empíricas a favor de suas conclusões.
Nem tudo o que é pejorativo parece ter cunho de estigma, uma vez que a
estigmatização ocorre quando é dada uma autoridade interpretativa à observação particular,
99
sem que se faça necessária referência ao caso empírico, de modo a se empregar julgamentos
de valor associados, e assim, sem que se tenha feito uma descrição de como o fenômeno
acontece, o próprio fenômeno é usado para explicar a si mesmo, não sendo acaso que os
termos mais usados nas explicações com base em estigmas, conforme se pode avaliar, sejam
“natureza” e “cultura”. O que esclarece por que, mesmo quando definidos dentro dos mesmos
elementos, nordestinos e caboclos não se aproximam. Aquilo que, para um, poderia soar como
timidez, para o outro ganha rapidamente peso de cultura ou de natureza.
Podem ser encontradas observações pejorativas que não são sem fundamento
empírico, a despeito da tendência comum a ver no estigma apenas a representação pura, sem
materialidade. Na entrevista com P., no primeiro capítulo, aparece a tentativa de conciliar a
afetividade com a cidade e, ao mesmo tempo, a crítica aos aspectos negativos que se
observam nos manauenses. A nosso ver, o entrevistado margeia o preconceito somente
quando procura deixar entendido que os nordestinos (do Rio Grande do Norte), e também os
caboclos, preservam o lugar em que vivem, mas não os manauenses.
É quando o pejorativo se torna uma expectativa sobre o outro, que se abertura
para a estigmatização. Tomando o caso particular da degradação urbana, incorremos em
preconceito quando atribuímos expectativas rígidas para uns e para outros, estabelecendo
diferenças com base nesses julgamentos. É preferível sempre, por outro lado, descrever as
condições em que as pessoas pensam e agem, para não perder a clareza sobre a especificidade
dos fenômenos.
Precisamos, neste momento, dividir o que chamamos de contexto, e definir as
condições nas quais os caboclos são lembrados pelos entrevistados. Temos até aqui usado
contexto para evocar o conjunto da interpretação no qual o caboclo é mencionado como
objeto, porque o caboclo, seja lembrado como identidade de um grupo, ou como uma
100
expressão pejorativa, comunica-se com muitos elementos que precisam estar juntos para
formar uma representação coerente.
Toda representação toma por objeto algumas referências empíricas que constituem as
condições que tornam possível pensar o que se pensa, e agir conforme se pensa. Para os
caboclos, as referências empíricas são buscadas depois de estabelecido o contexto da
representação, mesmo que esse contexto seja baseado inicialmente em um único caso
empírico. As representações aqui reunidas aparentam basear-se em uma generalização de um
elemento somente, seja um evento, ou uma característica observada, que, aplicada
indistintamente, ganha peso de uma identidade, e pode mesmo se tornar estigmatizante.
Observamos que ao deixar obscuras as condições de seu aparecimento, a
representação se torna um estigma, aplicável invariavelmente, não importando mais a qual
situação particular faça referência. O estigma se toma pela sua própria condição.
O estigma de caboclo não nos parece explicitamente articulado a nenhuma
justificativa que não seja a de valores morais, ou motivada por alguma experiência prévia.
Haveria, no entanto, alguma possibilidade do encontro entre nordestinos e caboclos ocorrer
sem expectativas e do modo como imaginamos, a princípio, sem preconceitos? Se a
representação, todo o tempo, se ocupa de tornar conhecido o estranho, o que resta de
realmente novo a se conhecer?
O preconceito contra os caboclos aparenta ser uma deturpação de algum evento
singular observad[(Have,vada )-26e meada forda que representações 15493(2ncisda )-25e po(um )-723(ser 15421(constincdm as )] TJ0 -2.3 Td[(com )-275(baom )-249(em )-27a6(pivas )7328(um )-28[(elemento )-27izanrior,2( )-260(que )865e pode )-273(ser )-278(um )-28reconceiho, uma um
telo.e, que se representaçõte, ao como de seu
101
Deste modo, se tomarmos a idéia de que o caboclo não se aproxima, não é amistoso e
“não fala”, sabemos que ela acompanha o primeiro sentido do termo, significando o arredio, o
atrasado.
Em “Letras da Amazônia”, ensaio publicado originalmente em 1938, baseado numa
conferência pronunciada por Djalma Batista no Centro de Estudos Amazônicos da Bahia, e
republicado em Amazônia – cultura e sociedade (2003), autores amazônicos são apresentados
em leitura aprofundada, embora mais opinativa que crítica.
Vamos nos recordar, naquele texto, de ver representações semelhantes em uma parte
da literatura romanesca que coloca de lados opostos nordestinos e caboclos, não como dois
tipos particulares de regiões diferentes, mas pela representação implícita com que cada um se
mantém: o caboclo como homem do mato, resignado, e o nordestino como o aventureiro e
desbravador, viajante sem responsabilidade:
[...] A onda imigratória, esses “cearenses”, como ele [o caboclo] se exprime,
abraçando-a num termo genérico, em vago ressaibo de desprezo e despeito, chofraria
em praga, invadindo a floresta... Extinguiria até a caça e o peixe, assenhoreando-se,
ambiciosa e sem escrúpulos, da terra que o viu nascer: gente vinda ontem e feliz da
vitória que o antigo nativo ainda aspira e não consegue! (RANGEL, 2001, p. 47).
O escritor Alberto Rangel, pernambucano, escreveu essas passagens em seu livro,
Inferno verde, de 1907. É do autor também a comparação entre a Amazônia e o éden bíblico,
pensamento que foi erroneamente atribuído a Euclides da Cunha ao prefaciar o livro:
“Realmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênese” (CUNHA, 2003,
p. 354).
De fato, uma vez aceita a comparação da Amazônia ao paraíso original, torna-se
lugar comum explicar a relação entre nordestinos e caboclos como uma disputa semelhante à
dos irmãos Caim e Abel, em jogo uma floresta para ambos, e também nesse caso o sangue
de um é a medida do estigma para o outro.
102
O próprio Samuel Benchimol, pesquisador também afeito a comparações bíblicas e
romantizadas, admite a insuficiência das tentativas de classificação moral, embora continue
sutilmente fazendo uso delas:
O imigrante, ainda hoje, não sabe se isso aqui é Canaã ou Califórnia. A idéia de
considerar a Amazônia, ora como inferno, ora como paraíso, que vai passando,
graças às novas diretrizes de pesquisa e investigação que estão surgindo, parece que
contagiou o imigrante também. Ele não entende bem o mundo em que vai viver
(BENCHIMOL, 1992, p. 81).
A pesquisadora Déborah Lima nos recorda que, no livro Terra imatura, de Alfredo
Ladislau, de 1923, os nordestinos aparecem, ao contrário dos caboclos, como os únicos
capacitados para assumir os encargos da terra, disposição verificada em seu inerente "sangue
forte". É comum, aliás, encontrar a palavra sangue para justificar o aparente vigor do
nordestino como força de trabalho:
O primeiro ensaio do livro apresenta algumas das opiniões contrastantes sobre a
população e o meio ambiente amazônico na forma de um diálogo entre dois tipos
regionais. Os dois interlocutores têm visões opostas sobre o potencial de
desenvolvimento da região. Ambos, porém, concordam com o fato de que falta aos
caboclos energia e vontade para levar a cabo essa tarefa por eles próprios.
Um dos interlocutores mantém que não só o meio ambiente, mas também as pessoas
são inadequadas. A terra é julgada imatura, não preparada ainda para sustentar uma
população civilizada e as pessoas são consideradas de uma cepa racial precária
[...]
Ao contrário do primeiro tipo, o segundo interlocutor mantém que a tarefa de
desenvolver a Amazônia não deve ser entregue a migrantes de uma nação
alienígena, mas aos brasileiros. No entanto, a idéia expressa mina o potencial do
amazônico nativo de alcançar esse desenvolvimento sozinho. O caboclo não é
considerado suficientemente forte nem determinado (LIMA, 1999, p. 15-16).
Devemos observar que as representações não atuam de maneira igual para os
diferentes grupos que compõem o nome geral de “nordestino”, mas isto claramente porque as
disputas começam a partir das identidades atribuídas aos vários estados. É como se cada
grupo possuísse um lugar especial ordenado de acordo com sua história em Manaus.
103
O cearense é o nordestino estigmatizado, porque mais próximo, e por sua presença
ter sido constituída como a mais visível; suas histórias são vistas como próximas, coisa que
favoreceria sua estigmatização, e é até mais fácil recair sobre a sua imagem o peso da
insatisfação com a ocupação nordestina na cidade.
Os baianos, ao contrário, preservam o diferente, o desconhecido, por isso despertam
uma curiosidade positiva, como destacou E. ao lembrar da maneira como foi recebido
inicialmente em Manaus:
E como foi tua recepção aqui?
Boa, ainda mais por aquela vivência de outras cidades, as pessoas têm curiosidade de
saber detalhes, a maioria nasceu aqui, se criou aqui, moram aqui, sempre tiveram
muita curiosidade. A gente criou um laço de amizade muito grande, muito rápido,
onde a gente chegava geralmente tinha esse laço de amizade, até dos colegas, quando
eu cheguei nas escolas que eu estudei (E. – 13/02/2006).
E. fala sobre uma característica das pessoas de Manaus no modo como o receberam,
delimitando ao mesmo tempo dois lugares aí, primeiro o seu, de viajante, depois o lugar da
gente que, em suas palavras, “nasceu aqui”, isto é, para o olhar do viajante o olhar de quem o
recebe “em terra” (com intenção de trocadilho) é o olhar de quem conhece o lugar em que
nasceu tal constatação vai delimitar a definição com que o casal E. e A. interpreta os
caboclos.
Também encontramos uma disputa simbólica entre as muitas divisões que podem se
abrigar na expressão “nordestino”, e o modo como se encontram com os caboclos, a propósito
da entrevista com uma dona de restaurante nordestino em Manaus.
2.4 Ser baiano em Manaus
A presente entrevista foi realizada com R., fundadora, junto com a mãe, dona R., de
um restaurante baiano aberto em Manaus três anos e meio. A primeira visita aconteceu
uma semana antes da presente entrevista, ambos os momentos no final de 2006. Naquela
104
primeira ocasião estavam presentes a mãe, dona R., que todos chamam de “mainha”, e sua
filha mais nova, que conversaram com o entrevistador a respeito da pesquisa. Em poucos dias,
R., a filha, entrou em contato e a entrevista foi marcada. O entrevistador provou o acarajé, que
as proprietárias anunciam com orgulho em uma faixa logo à frente do restaurante como “o
melhor acarajé de Manaus”.
O entrevistador soube do restaurante através de um site de relacionamentos na
internet, o que despertou interesse pela possibilidade de conhecer mais sobre as identidades
nordestina e cabocla em Manaus a partir de uma outra via, a da culinária.
Pedimos para que R. nos falasse inicialmente de sua vinda para Manaus, como forma
de situar seus primeiros contatos na cidade e o começo do restaurante. A entrevistada falou de
sua tia por parte de mãe, que veio para Manaus antes de todos e que foi a motivação da vinda
de “mainha”, a pioneira do restaurante:
Ela [a tia] praticamente não tem nada a ver com a gente, mal vem aqui, ela tem a
vida dela independente... e chamou minha mãe para vir, para a área de saúde e
também para cuidar um pouco dela. E a mãe veio e nesse intervalo ficou indo e
voltando, Manaus-Salvador, sempre, ela culinarista também, então sempre veio
aquela coisa forte da comida. Nordestino tem esse negócio de que, onde ele vai tem
que ter a carne seca, a farinha, aquela coisa, e aí um amigo, outro, chama e pede para
cozinhar uma coisa, e é aniversário de alguém, e faz um pratinho e a pessoa
se empolga e chama outros amigos e quando viu, foi aquele “boom”... ela montou
um barzinho lá no bairro, mas não deu muito certo...
Ela?
A “mainha”. Assim, não tinha divulgação, não tinha uma pessoa de ligação como
eu, que faço toda a parte de divulgação, conheço muita gente, então o que aconteceu:
não deu certo. Ela desistiu e montou uma loja de lembranças da Bahia, ali no bairro
[...] e essa loja de lembranças vendia direitinho, santinhos..., relíquias mesmo da
Bahia que a gente tem, frutos, estrelas do mar, conchas, enfim, vendia de tudo,
camisa, um monte de coisa. Tinha um público bom, que eu cheguei e senti
necessidade de comer o acarajé, de comer uma coisa mais grossa, uma muqueca,
uma coisa. E a gente saiu em busca, tudo que a gente achou não era nada próximo
do que a gente esperava, muito pelo contrário, a gente comeu num local que eu
briguei com a mulher porque era totalmente descaracterizado, ela me deu um acarajé
frito no óleo, com farinha de trigo na massa, sem caruru, pimenta no tucupi, servido
no guardanapo... e o vatapá era amazonense, para ter uma idéia, e eu briguei
com a moça, falei com ela que não tinha cabimento...
Vatapá amazonense?
Completamente diferente do nosso. Falei para ela: “olha, não tem sentido a senhora
se propor a fazer uma coisa dessas e descaracterizar totalmente, se você tira o
caruru, porque na Bahia tem muito lugar que você não come acarajé com caruru,
encarece, e o pessoal tira, muita gente não gosta do quiabo, então assim você vai
encontrar muitos lugares em Salvador que você não vai achar o caruru, perfeito, até
105
tudo bem, mas daí a fritar no óleo, colocar farinha de trigo na massa, assim é
outro prato, não é acarajé, e a decepção foi grande e a gente resolveu: “não
mainha, faz aí, dá um jeito”, ela resolveu fazer, e aí chamou dois amigos para comer,
e começou a brincadeira, chamou um amigo hoje, outro amanhã, de repente o
pessoal estava ligando, queriam o acarajé, quando a gente notou a loja não era
mais loja, já era um barzinho... (R. – 26/11/2006).
Ficamos livres para acompanhar, ao longo da conversa, em quais momentos e por
quais vias a entrevistada apresentava um pouco de sua vida: em primeiro lugar aparece a
comida, a comida nordestina que marca para si um modo particular de preparo que guarda
distância em relação à comida amazonense. Essa distância, como a entrevistada deixa claro,
não acontece em relação à comida como gênero de consumo, mas porque em torno dela se
forma uma cultura, reforçada nos momentos em que um grupo de nordestinos se aproxima
para reencenar seu modo de cozinhar, servir e comer, particulares ao Nordeste. Quanto mais
impróprio aparece o modo amazonense de compartilhar dessa cultura (acarajé com farinha de
trigo na massa, servido em guardanapo, o atendimento que não aproxima os clientes) se tem
um meio de afirmar uma identidade própria:
Tem uma coisa muito regional, então é difícil você se firmar num estado que é rico
em peixe, que o peixe é diferente do nosso, o tempero é mais leve. O que tem de
pesado aqui? A tartaruga. No nosso estado não, é feijão, a feijoada é diferente,
porque aqui tem muita feijoada carioca, então quando a gente faz aqui dia de sábado
é uma loucura, quando eles sabem, quando a gente resolve fazer uma buchada de
bode para o pessoal que é mais de cima, Ceará, Paraíba, é outra loucura, então volta
e meia, um deles ou uma turma, solicita um prato da sua cidade, do seu estado e a
gente vai e faz. Por isso eles ficam me questionando por que não mudar o nome
para Restaurante
3
Nordestino, só que o forte nosso realmente é a comida baiana, que
é nosso, é o que a gente mais sabe fazer, mas para fazer a do nordeste, e virou
esse ponto, de encontro. [...] E todo ano, São João é aquela loucura, e esse ano a
gente fez uma festa, e eu cheguei a colocar no site, chamei algumas pessoas, eu não
dei conta de atender, as vizinhas estavam nos ajudando porque eu falei: “gente, isso
é uma brincadeira, o pessoal acreditou”. Não era nada assim, macro, um cantinho
para mostrar um pouco de como é a nossa região porque eu falava e ninguém
entendia. Fiz uma fogueira na porta, assei milho, assei queijo, quando eles viram
uma fogueira na porta todo mundo ficou assim: “ai!”. Tanto que eu falei: “gente, se
fosse na Bahia, na rua que a gente morava, não passaria um carro, porque ia ter
uma fogueira em cada porta”. Então, volta e meia eu derramo uma coisa de lá. A
______________
3
Restaurante é uma licença, talvez não muito apropriada, tomada aqui para substituir o nome do
estabelecimento, isto porque a entrevistada não se refere a ele como restaurante pelo motivo da proximidade
que deseja manter com os clientes.
106
festa de Iemanjá, a gente fez uma carreata até a Ponta Negra, um mini trio, mainha
vestida de baiana, a santa arrumada para ser depositada lá, a barca dos presentes,
simplesmente parou o trânsito, lógico uma carreta pára, mas tinha uma faixa e
muita gente ligando e perguntando o que era, o que se tratava, chegou a sair num
programa de televisão.
Vocês têm então um calendário próprio.
Tem. Por exemplo, agora em dezembro, a gente vai fazer a lavagem, eu não sei
exatamente o dia porque como a gente está num outro estado a gente tem que
respeitar um pouco o dia, lá na Bahia fecha mesmo, pára e você faz, aqui não, aqui a
gente tem que respeitar porque a gente está na terra dos outros [...] Normalmente as
nossas festas são no domingo, o que também tem um outro objetivo que é não
terminar tão tarde, porque atrapalha muito, [...] então a gente tem que ter todo esse
respeito, todo esse cuidado...
Você está falando, por exemplo, dessas experiências, mas está colocando
também algumas características daqui mesmo da terra, às vezes vocês têm que
se adaptar também, como é isso?
Tem que se adaptar, por exemplo, como eu te falei a festa de Iemanjá, no que ela
consiste? Tem um ritual dela, você sai com os presentes dentro de uma barca, que
são... perfumes, é o presente que agrada a santa, na verdade. Iemanjá é a santa do
mar, é a rainha do mar, então aqui como não tem mar a gente se adaptou, [...] A
gente estava fazendo a nossa festa, a gente tentou fazer no dia, respeitar o dia que
seria dois de fevereiro, mas a gente sabe que não para fazer tudo, por exemplo os
nossos pratos também são adaptados muitas vezes, a gente usa na Bahia o feijão
fradinho, aqui é feijão de praia, é muito próximo, mas não é igual. Então, o nosso
camarão é seco defumado, o daqui é só seco, a gente não acha defumado, lógico que
a gente de quinze em quinze dias consegue trazer, às vezes sai caro, às vezes a gente
não consegue, é adaptado, por exemplo, nosso vatapá leva amendoim, leva castanha
de caju e leva gengibre, nem sempre a gente põe castanha de caju, por quê? O clima
é muito quente. Amendoim também, diminui a dosagem, porque não dá, desarranja
geral aí. Então as festas têm isso, essa de Iemanjá, a gente teve que respeitar, teve
um dia que a gente não pôde, teve dois anos que a gente não pôde fazer no dia
mesmo porque aqui não é feriado, lá em Salvador é ponto facultativo, aqui nem isso
é, então a gente não podia fazer, a gente tem que se adaptar ao dia, tem que passar
para um domingo por exemplo, o lance de não ser o mar, de ser o rio. Isso seria
crucial, não sei como o santo lida com isso, enfim, mas a intenção da gente trazer
um pouco da nossa cultura é o que prevalece. Então a gente tem que dar essa
adaptada senão não pode fazer (R. – 26/11/2006).
Neste momento ocorre que “adaptação” e “descaracterização” guardam um limite.
Para a entrevistada, o importante é trazer sua cultura, sem perder o elemento suposto na
origem, que funciona como garantia de que se está nessa espécie de contato virtual com a
terra:
Como seria essa adaptação e a descaracterização, tem um limite entre as duas?
Tem porque é o seguinte: se você tem os meios e não faz de acordo é uma
descaracterização, se você não tem os meios e tenta fazer o mais próximo do que
você tem, você está fazendo adaptação, por exemplo, o meu acarajé e o acarajé da
moça que eu citei, era totalmente descaracterizado, se ela não tivesse os
ingredientes, o papel permanecesse, porque o acarajé ele é servido nesse papel de
embrulho, ele não é para ser servido em guardanapo. Então, essa diferença, a meu
ver, se eu tenho os meios para fazer próximo, igual não vai ser nunca, mas se eu
tenho os meios para fazer próximo, eu não estou descaracterizando, eu estou
107
adaptando, mas se eu não tenho como fazer, porque no caso eu não tenho o mar
aqui, e eu tenho essa vontade de manter essa tradição, eu estou adaptando... não é
descaracterizar, descaracterizar seria se, por exemplo, se eu tivesse mar, no Pará, e
fosse para o rio (R. – 26/11/2006).
Então, “mainha” prepara uma sobremesa de banana especialmente para o
entrevistador. O tom informal da entrevista revela o aspecto familiar do local e do modo de
atendimento, tratados por R. como características nordestinas, e assim não podendo ser
descuidados. Atender um cliente à maneira nordestina é não torná-lo um simples cliente, mas,
em alguns casos, também um amigo:
Isso aqui é um... taí: a nossa banana, por exemplo, a banana da terra que a gente
chama, aqui chama-se de banana pacovan. Esse salgado, esse doce é feito com
banana da terra, aqui ele foi adaptado com a banana pacovan, eu não sei qual a
diferença da banana pacovan para a banana da terra, a gente que parece com a
banana pacovan, ela é mais grossa, talvez maior, e a banana da terra é mais fininha,
não sei... mas é uma adaptação, é como te falei, não existe banana da terra aqui
como não existe banana pacovan em Salvador, talvez seja a mesma banana e ela seja
um pouco diferente e em função do clima, plantio... aí eu não sei te dizer [...]
Uma outra característica do restaurante, aonde a gente vai, a gente trocou de
endereço... esse é o quinto endereço do restaurante, eu estou com uma semana que
eu me mudei, a gente ainda nem estruturou, ainda falta pintar, porque o outro você
não viu... o outro tinha na parede pintado o Farol da Barra, o Elevador Lacerda, o
Pelourinho, o Mercado Modelo, vamos fazer, tem uma semana! Acabou o dinheiro,
a gente estava pagando dois aluguéis construindo aqui, matou mesmo, então eu
estou com uma semana aqui, no segundo dia, a gente ainda não tinha nem mudado
nada, tinha gente almoçando aqui, eles vêm atrás. Esse pessoal que estava aqui,
ele achou agora, achou hoje: “eu vi no site, achei e cheguei”. Então volta e
meia chega um: “achei o endereço, eu vim atrás de vocês” (R. – 26/11/2006).
Em torno dessa idéia se constituiu no restaurante um espaço que reúne nordestinos
em torno de um vínculo doméstico: ser nordestino neste espaço significa pertencer a uma
família, na qual a figura da “matriarca”, a mãe de nossa entrevistada e também dona do
restaurante, age como um elemento de unidade, e com isso estabelece a idéia de “lar” na nova
terra:
Esse lance que o pessoal vem atrás da gente eu acho que é necessidade que se tem de
estar próximo... basta eu te dizer que quando a gente estava no outro endereço,
aquele sol de dia de domingo, aquele sol pesado de três horas da tarde, o pessoal ia
e falava assim: “ah R., falta o mar, eu vim aqui sentir o cheiro do dendê,
ouvindo um axé, nosso sotaque, falta o mar”, então essa necessidade, passava a
108
tarde inteira num lugar extremamente desconfortável, aquele calor, é essa a
necessidade que o nordestino tem de estar próximo da cultura, a cultura que faz isso.
Mais uma característica?
Ah, os clientes da gente, eles viram nossos amigos, e você encontra situações como
essa, eles chegam, você servindo: “eu estou nessa ou estou nessa?”, é todo mundo de
casa, às vezes a gente está aqui tão atarefada, começa a chegar gente, também eles
vão se atendendo, no final eles mesmos dão as contas deles, já me dão o dinheiro, eu
passo o troco, é uma coisa tão pessoal para mim... ah, não tem nordestino não,
tem gente de todo lugar do mundo, tem francês, tem alemão, tem uma turma
imensa... (R. – 26/11/2006).
Na primeira visita foi possível perceber esta unidade familiar ao falar com “mainha”,
da forma como ela explicou, dizendo que os clientes são como filhos adotivos seus, e que por
isso ela adotaria o pesquisador também. Ela, inclusive, somente informou seu nome após ser
perguntada, situação que a sua filha, R., nossa entrevistada, esclarece ao dizer que a maior
parte dos clientes não sabe seu nome:
[...] o restaurante é aconchegante, tem a estrutura de minha mãe que eu acho
importantíssima, porque eles se identificam com ela, esse negócio da “mãezona”,
todos chamam ela de mainha, poucos chamam ela de dona R., acho que a grande
maioria não sabe o nome dela, mas a maioria chama ela de mainha, então eles se
identificam, ela faz as vontades e faz um pratinho e um come verdura e ela separa e,
ela tem todo esse cuidado, não é um restaurante, não é, é um recanto
4
. Então assim,
essa influência que os nordestinos têm, também com relação aos outros, pelo
comportamento, pela alegria, pelo desprendimento... Ele acaba atraindo, porque
também tem alguns estados que não têm muita referência, o que o paulista tem? De
tradição? Comida italiana, que é uma coisa que você não come todo dia porque você
enjoa de massa, mas o paulista, o sulista, herda o carisma do Nordeste, então ele
pode criticar porque a gente sabe que existe esse bairrismo, mas ele tem o sangue
nordestino, ele foi criado comendo comida nordestina, então quando ele chega,
aquele cliente ali é paulista, ele chegou: “olha, não tem tudo porque a gente
começando...”, “mas tem o arrumadinho, tem o escondidinho?”, não tem prato mais
nordestino, não necessariamente baiano, do que o arrumadinho, tem o arrumadinho
na Paraíba, tem o arrumadinho em Pernambuco, alguns mudam um ingrediente ou
outro, você viu os ingredientes... então, a carne seca, o charque, carne de sol. O
feijão, a farofa e uma saladinha, é simples assim, mas é a comida nordestina, é o
básico, aquele feijão que o cara prepara com aquela farinha para levar para o
sertão, para levar para a roça, a carne seca que é muito forte... então o cara chama a
mainha, ele vem, chega aqui, ele gosta, sente esse aconchego, como eu te falei com
relação ao atendimento eu sinto também que é uma dificuldade do estado, com
relação ao atendimento... eles se sentem à vontade, se sentem em casa, tem gente
que vai para o meu quarto dormir... pede a rede, vai e deita... (R. – 26/11/2006).
______________
4
Trocadilho com o nome do restaurante.
109
A proximidade com o nordeste é também o que assegura a unidade entre os membros
dessa família por oposição aos demais grupos de Manaus.
Uma das conclusões que podemos ter é que a identidade vai ser encontrada mais
claramente numa outra terra, diferente daquela que supomos a princípio como a sua origem,
por isso tais explicações em termos de “terra” e “raiz” permanecem mais metafóricas que
reais. Lembramos que não é unânime no nordeste a idéia de que os baianos sejam de fato
nordestinos, segundo P., o nordeste seria principalmente o Rio Grande do Norte e Paraíba,
chegaria a incluir uma parte de Minas, mas não Salvador na Bahia, que teria mais
proximidade cultural com São Paulo e o Sudeste; entretanto, em Manaus, a identidade baiana
pode ser demonstrada sem dificuldades:
Você acha que essa proximidade foi uma das razões pelo sucesso rápido do
restaurante com os nordestinos de Manaus?
Eu acho.
Será que eles, enfim, sentiam a mesma coisa?
Dois pontos tem aí, que eu destaco: primeiro é a proximidade do que se tem
realmente no Nordeste, isso que eu te falei que eu não encontrei em nenhum lugar.
O segundo ponto é o atendimento, atendimento é uma coisa cruel aqui em Manaus,
então, você vai a um lugar, às vezes a pessoa não atende direito. Quando a gente
começou, tinha um nome lá, mas as pessoas nem percebiam direito e chegavam:
“você não é daqui, né?”, e eu dizia: “não” “Logo se vê, esse sorriso no rosto”.
Então, a gente tem um negócio diferente, a gente bota música, aqui toca música
baiana, eu não toco outra música, de vez em quando eu toco um forrozinho,
justamente para puxar um pouco dos pernambucanos, [...] e assim, o atendimento, a
forma de você atender, de vez em quando tu vais chegar aqui, vai estar eu e a minha
mãe dançando, atendendo, brincando, isso você não encontra em outro, você chega
nos outros lugares do país, na grande maioria, para não generalizar, as pessoas estão
mais sisudas; problema a gente tem, tem o tempo inteiro, mas esse lance de estar
sorrindo, brincando, é uma coisa que é nata, é do nordestino. Nordestino vem da
seca, o cara está no sertão, não tem água para beber, está comendo naquela vala,
mas o cara está sorrindo, você uma entrevista desses caras na televisão, tem
aquele sofrimento rasgado no rosto, mas ele dá aquele sorriso banguelo para ti, que é
nato, você não encontra em outro lugar do país. Aqui uma terra tão rica, você o
povo, fartura de água, pode morrer de fome, mas de sede o cara não vai morrer. Mas
não tem, às vezes você vê as pessoas sisudas, não tem aquele respeito com a cultura,
com o nordestino não, é diferente. Você pega um menininho, um neguinho daquele
do Pelourinho, ele sabe te contar a história dele, porque ele é negro, porque ele está
ali naquele Pelourinho, o que foi o Pelourinho, o que representou para o país, a gente
aprende isso, você convive diariamente com a cultura, eu lembro que na escola a
gente tinha aula de história, sobre a “guerra dos holandeses”, e aí depois a gente ia lá
nos Fortes, que fizeram parte da defesa do país naquela época. Então tudo muito
próximo, é rico, a gente respira cultura, uma coisa que eu acho, por exemplo, que
aqui em Manaus não tem, não é valorizado. Salvador você chega no Pelourinho, em
qualquer canto tem um menino fazendo um batuque, é como eu estou te falando é
110
nato, você chega nas minhas festas aqui, os baianos, só dá um toquinho, estão
dançando, e aquela coisa que você identifica que é nordestino (R. – 26/11/2006).
Os laços da “nordestinidade” não seriam tão fortes acaso as pequenas diferenças não
se impusessem, no modo de preparar o acarajé, de receber nas festas, de estar sempre
sorrindo, de ser baiano. Daí o que leva a entrevistada a comentar que “ser baiano em Manaus
é a melhor coisa que existe”, porque entre os seus, ela se torna invisível, mas entre outros sua
identidade aparece sem deixar dúvidas:
Com relação às pessoas daqui, que não é nordestino, acabou se tornando
uma coisa de todo o pessoal que gosta da comida e quer, não pela comida,
mas quer conversar, está com saudade, pela mainha, e como é essa relação com
outras pessoas de Manaus, você tem contato com outros grupos de Manaus,
quais são os grupos, assim, as pessoas de Manaus que você tem...
Ah tenho, eu conheço, por exemplo, tem muito repórter, cantores amazonenses que
freqüentam aqui, tem políticos, que apadrinharam também, eles fazem propaganda,
tem pessoas influentes, professores, [...] então a relação com o pessoal aqui de
Manaus é muito tranqüila e muito amigável, a gente foi muito bem recebido aqui,
[...] Essa estória de ser a mainha, essa coisa assim que mainha tem de abraçar
mesmo a turma e ser, a matriarca, ela gosta disso, ela é festeira, às vezes eu não
quero fazer festa, estou muito cansada, fico imaginando, dá muito trabalho, “ah
mainha não conte comigo...”, mas ela necessita disso. [...] porque ela tem aquela
identificação, aqui eu acho um pouco diferente, no nordeste, por exemplo, a vizinha
vai na casa, pegar um pouquinho de sal, vai sentar para assistir a novela junto e
fazem uma festa no final de semana, um almoço, não é festa para comemorar nada
não, é aquele, aquela cotinha né, aquela coisa e faz e, um churrasquinho, aqui tem
muito, mas é a turma mais jovem, os vizinhos assim são mais contidos, não tem
muito aquela coisa, no nordeste não, é aquela coisa misturada, você é criado com o
vizinho que você diz para todo mundo que é irmão, que é primo... vira primo, vira
da família, e aqui a gente pôde fazer um pouco disso, tem um monte de menininhos
da rua que chama minha mãe de tia, de vó, porque tem esse negócio dela forte,
presente o tempo inteiro, e os amazonenses, a gente chega, é baiano é tal, e querem
pegar, diz que está com axé, tem aquela coisa, festeja. Então a gente é bem recebido,
você fala em Salvador que ser baiano em Manaus é a melhor coisa que existe... é
muito legal a convivência... (R. – 26/11/2006).
Este seria um elemento pelo qual passa a nordestinidade em Manaus, conforme R.
indica, os laços familiares na Bahia são respeitados mesmo em relações que para os
amazonenses não teriam muito de familiares.
Outra via de representação que nos revela a entrevistada, e pela qual ela nos mostra
como se dão as diferenças entre nordestinos e caboclos, é a dos sinais com que os grupos se
identificam na cidade: a frase “você não é daqui, né?” seria a expressão simbólica desta
111
diferença que aparece no rosto, através do sorriso que disfarça qualquer sofrimento, uma
característica apontada pela entrevistada como sendo inconfundível do nordestino.
A mesma expressão foi observada também por ocasião do trabalho de Graça
Medeiros (2004). Em Um Estranho no Espelho, a inspiração inicial da autora estava numa
questão-problema que a acompanhava até ali, quando confrontada por diversas vezes com a
pergunta “você é amazonense?”, e a conclusão paralela: “não parece!” (informação verbal
5
).
Transformou esta inquietude em problema de pesquisa quando começou a investigar
representações sociais do caboclo amazonense.
Em nossa pesquisa, a entrevista com R. dividiu a produção do pesquisador, a partir
então, a preocupação passou a ser em evitar os termos pré-definidos, razão pela qual esta é a
primeira vez que não se mencionou a palavra caboclo diretamente durante a conversa, mas
buscando uma associação ao conceito de homem da terra, supondo que haveria um, conforme
se acredita:
Como seria, quem seria esse “homem da terra” assim, você está aqui
quatro anos...
Quatro anos.
Você já formou alguma idéia a respeito?
Como eu estou te falando, o amazonense é o público menor que a gente tem talvez...
mas assim, em termos de que tu estás falando... de como ele se porta lá, se ele se
adapta, se ele come a nossa comida...
É assim, o que você já conheceu até agora, quem você acha que seriam os
autênticos homens da terra aqui, no Amazonas, assim em contraste com os
nordestinos... quais são os termos que você usa assim para se referir?
Ah, o caboclo, baré! Eu me intitulo metade baré, metade baiana, estou assim, é
aquele, eu acredito que seja aquela pessoa que come farinha do uarini, que come o
peixe com farinha, que faz aquela lama com a farinha do uarini, o peixe com
aquele caldo do peixe, esse pessoal que tem, como eu vou te dizer, eu não parava
para pensar muito nisso, mas aquela coisa calma...
[...]
Então para mim o amazonense carrega esse tipo de costume, de dormir na rede, de
comer aquela farinha grossa que para a gente aquilo ali é jogado fora, a nossa
farinha a gente passa no liquidificador, uma outra adaptação, peneira para poder
comer. Então eu acho que o amazonense é aquele cara que não está também tão
preocupado em sair correndo atrás não, ele está vivendo o dia dele, está tranquilo, é
um pouco próximo do baiano. O nordestino tem mais aquela gana porque as
______________
5
Em defesa proferida no auditório do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,
em 23 de agosto de 2004.
112
dificuldades acho que são maiores, então tu tem que estar sempre provando para
todo mundo que você está precisando, que você precisa vencer aquilo, que você vai
conseguir. Eu vejo, tiro pela gente, porque se a gente também parasse aqui, não é o
que nos dá renda... grande não, porque tem dia que é fraco, bar, restaurante é sempre
assim, eu tenho outra renda, trabalho em outro lugar, mas assim, se a gente parar
também, vai fazer falta. Então você tem aquela consciência de que isso aqui também
é um fator importante para a gente viver aqui em Manaus, eu não me imagino sem o
restaurante aqui por exemplo, é difícil para mim... então o amazonense, talvez eu
não tenha respondido tua pergunta a contento, porque eu realmente não fiz esse
parâmetro assim.
Esse caboclo e esse baré seriam a mesma coisa?
É porque isso eu também estou arrendando do que eu vejo falarem. Aqui em
Manaus tem o lance do ribeirinho, por exemplo, aqui você não tantas pessoas
com traços indígenas como se imagina no resto do país, pensa que você vai
encontrar índio...
Você imaginava achar aqui?
Eu não imaginava aquela lenda de encontrar índio na rua... de tanga, mas eu
imaginava encontrar pessoas com mais traços indígenas, tipo Salvador, você vai
encontrar negro, e é negro, negro... quando eu voltei, pela primeira vez para
Salvador, me questionaram: “ah, tem índio no meio da rua?”, as pessoas ainda
pensam isso, e eu falei assim: “olha, tem muito menos índio do que tem preto em
Salvador”. É porque no resto do país também pensam que em Salvador só tem preto,
isso é uma lenda, mas Salvador, é a segunda capital, do mundo, em termos de negro,
tirando Angola, aquelas coisas, é Salvador que reina. Em termos da figura negra na
113
R. faz uma relação direta entre o caboclo e o morador da Zona Leste de Manaus, ou
mais precisamente o pobre, morador da cidade que não freqüenta os mesmos lugares que os
barés, estes os autênticos cidadãos manauaras, ou de classe média. A associação entre
caboclos e os moradores da Zona Leste nos revela uma outra variação para se entender a
representação de caboclos no ambiente urbano:
Falando de caboclos e barés, você falou também ribeirinhos, qual seria a
diferença entre o nordestino, o baiano talvez?
Eu acho aquilo que eu te falei antes, eu acho que, por exemplo, o nordestino tem
mais esse negócio de provar para todo mundo que ele é bom, para o pessoal do sul,
falam assim: “ah, o pessoal do norte”, mas quando eles falam “pessoal do norte”
eles não estão se remetendo necessariamente aos nortistas, estão se referindo aos
nordestinos... eu não sei, o nortista ele fica meio que, não vou dizer despercebido,
não é no sentido pejorativo que eu estou falando, mas o nordestino é mais cobrado,
ele aparece mais também... o apelo que se tem do nordeste, até mesmo em função da
cultura, dessas bandas de axé que vão na mídia, o Boi não é uma coisa divulgada,
então fica meio que apagado. Quando o cara de baixo fala que o nortista é isso,
nortista aquilo, não está se referindo ao nordestino, e o nordestino, a grande maioria
da população é negra, então você tem que trabalhar o tempo inteiro com essas
variáveis, do cara ser negro, do cara ser nordestino, então ele tem que estar sempre
pronto, o nortista não, ele tem aqui uma riqueza imensa, vem todo mundo para cá,
mamar, então ele está na dele e fala: “olha, vocês estão usando, estão abusando e eu
quero retorno”, você muita gente aqui vendendo, alugando o seu espaço para que
pessoas de fora vão trabalhar e ganhar dinheiro e ele ganha o aluguel, eu acho isso...
então, por exemplo, os nossos funcionários aqui, uma reclamação que eu tenho, eles
chegam, “cara eu morrendo de fome”, vem andando da Cidade Nova, sem
comer três dias direito, a gente faz, uma cesta básica, um salário mínimo e
roupa, não sei o quê, enfim, de repente, um final de semana, não aparece!
chega no outro dia como se nada tivesse acontecido, ah dona R. foi isso, foi aquilo,
aí começa um final de semana sim, outro não, daqui a pouco outro...
[...]
Eu estou dizendo que é o que eu percebo, isso falando das pessoas que eu convivo
aqui, o nordestino tem uma diferença, ele sabe que se ele não trabalhar e juntar
aquilo ali, ele vai ter seca e ele vai passar fome, e ele já passou e não quer fazer isso
de novo, e o nortista não, ele sabe que se o negócio apertar, ele vai para a beira do
rio, joga lá um anzolzinho, ele vai comer peixe. No nordeste não tem isso, então se o
cara não fizer aquele trabalho da formiguinha, de juntar no inverno, no caso o nosso
seria no sertão, na época do verão mesmo, ele não vai ter o que comer. Eu acho que
o nortista não, ele está acostumado, por exemplo, com esse esforço, essa invasão que
se tem de pessoas de fora, ocupando os cargos, eu acho isso um absurdo, outra
crítica que eu tenho, você não vê aqui grandes empresas amazonenses, você não vê,
tem várias, lógico, mas a grande maioria é de fora, o cara vem, pega um incentivo do
governo, monta uma empresa aqui, traz toda a parte da diretoria lá de baixo. O chão
de fábrica é amazonense. Os cargos intermediários são amazonenses, mas ele está
acostumado a isso porque ele tem o dele, ele tem a qualidade de vida dele, o peixe.
Isso é diferente do nordestino. O nordestino não, pode observar, [...] Então tem isso,
você pode ver um amazonense progredindo assim, pode ver, mas tem muita
influência do cara que é o pai dele, que é um político, que é um cara influente, que
herdou uma herança, é difícil você ver um amazonense que batalhou, teve que
construir um patrimônio desse, porque também tem um outro detalhe: aqui, como eu
te falei antes, é muito rico, então tem famílias que são ricas, sei lá, tinha-se muito
patrimônio, muita terra e foi vendido, como tem muita gente de fora você vende, é
114
isso que eu te falei do aluguel, de vender, então ele ganha e com esse dinheiro ele
vive hoje, o nordestino não, o cara veio para cá, não teve um nordestino que veio
com dinheiro, porque ele não sai da terra dele se ele tiver dinheiro, a maioria, quase
que total, na totalidade veio com a mão na frente e outra atrás, e hoje ele tem o que
ele tem. Então, é diferente. Ele está na terra dele, os que progrediram hoje, entre
aspas, não fizeram mais do que obrigação, porque eu não vou ver amazonense
saindo daqui para o nordeste, você não vai ver amazonense saindo daqui para o sul,
migrando, são poucos. Deve ter milhares, mas na devida proporção que veio o
nordestino, não sai! Não tem como! É isso que eu estou te falando, aqui tem a
condição do cara, o nordestino não tem, [...] é a minha observação, não é uma crítica
pejorativa.
[...]
Para o nordestino,que está acostumado a passar fome, ele vai vir para cá, varrer, é
aquilo que eu estava te falando, o amazonense se ele sabe que vai ter no final do
mês, aliás qualquer povo, se souber que vai ter no final do mês o cara não vai se
estressar não, não seria o nordestino também, não é privilégio do nordestino, não é, é
que aqui você tem essa oferta, e a gente não, a gente vem, com aquela idéia de que
você vai ter que ralar...
[...]
Então assim, essa gana do nordestino, de vencer, de mostrar, de provar, e de querer
melhorar de vida, eu não vejo, não identifico, o ribeirinho é um povo que eu não
conheço, eu já fui por aí e tudo, mas eu imagino que também não tenha esse
“boom”, o ribeirinho mais ainda, mais do que ninguém ele está tranqüilo lá, ele
planta, ele colhe, ele pesca. Então assim, não dá. O baré em si, aquele cara que
chamam de baré, eu até brigo porque eu não consigo identificar também, se eu te
dizer assim: “ah, esse cara é um baré”, porque outro dia eu perguntei o que é um
baré, me explicaram que era porque quem nasce em Manaus, tem uma região,
tribo Tuxaua, e eu não não vou saber identificar para você o que é: “você não, não é
amazonense, é tuxaua, um baré”, não. O baré é uma forma mais generalizada,
diferente, um pouco diferente do caboclo pra mim, pra mim o caboclo é mais
aquele pessoal da Zona Leste, pessoal mais classe média ou classe mais baixa, sem
nenhuma instrução, o baré acredito que seja esse pessoal da sociedade mesmo, que
convive com a gente, classe média, pessoas que também estudam, que trabalham,
que fazem faculdade.... em Salvador não tem como comparar assim, por classe. Mas
é aquela pessoa, o cidadão amazonense, pronto: o manauara. O baré para mim é o
cidadão manauara, não tenho como te explicar de uma forma diferente, não sei como
explicar (R. – 26/11/2006).
O caboclo é sobretudo aquele que não freqüenta os mesmos lugares que a
entrevistada, denunciando com isso que a definição de caboclo não pode ser fixada a um
contexto ou a outro, nem pela definição dos espaços nos termos da urbanidade, do que é
centro ou margem: estes são os critérios da definição, não respondem pela mesma. Sendo
assim o caboclo se torna familiar não por marcar para si um ou outro espaço, mas pela
proximidade ou distância dos lugares freqüentados pelos outros grupos. O caboclo não
aparece como uma pessoa real aí, mas uma personagem que se evoca e ganha existência
somente quando se fala nela. Não faz parte do cotidiano vivido por R. no restaurante a não ser
quando lembrado, em torno de um conjunto de expressões próprias a ele.
115
Medeiros (2004) traz a metáfora do espelho em sua dissertação, para tratar do
problema da identidade cabocla, resta saber se os assim chamados nordestinos e caboclos
seriam distintos um do outro, ou o mesmo, diante do espelho. A entrevistada R. nos abre uma
possibilidade de destrinchar este problema, ao mencionar uma disputa entre nortistas e
nordestinos pela hegemonia da representação de “homem do norte”. É como se ao falar em
“nortista” se quisesse na verdade apontar ao nordestino, no que o nordestino, para a
entrevistada, detém uma hegemonia sobre a representação de “homem do norte” para o
restante do país. O nordestino seria mais visível, mais “visado”, do que o nortista que
permanece em sua terra e que daí não sai.
Isto, é claro, sempre aos olhos dos outros, pois os outros, neste caso, os “do sul”,
antes representados como “brancos”, ou simplesmente “os normais”, a quem Goffman (1988)
se refere, são aqueles que devem decidir a disputa, na condição suposta de outros
privilegiados.
Uma vez desenvolvidas as condições para o surgimento de uma identidade cabocla,
fora das interdições impostas pelo caráter moralista e pejorativo que a palavra conota,
acreditamos que o processo de seu fazimento ocorra de modo mais livre, no sentido de uma
manipulação mais direta por parte dos estigmatizados, a partir do contato entre grupos e a
identidade sendo submetida a esta relação, com outras identidades.
Tem-se então a possibilidade da auto-definição dos chamados caboclos, ao se
restituir o olhar do outro na formação da própria identidade, – mas não um outro cuja
assimetria faça impor condições alheias a alteridade estabelecida deve ser capaz de
preservar os sinais admitidos pelos próprios caboclos.
Parece-nos, ao observar este fenômeno, que nordestinos e caboclos se confundem
atualmente aos olhos preconceituosos de um “outro” superior, porém não nos momentos
116
particulares à vida cotidiana, nos quais se diferenciam em relação à vantagem dos lugares que
ocupam.
Para nordestinos e caboclos, a disputa admite a vantagem especial de uns ganharem
mais visibilidade que outros, e os limites dessa disputa, quando entendidos dentro de uma
mesma circunscrição, como no caso da cidade de Manaus, passam a ser físicos, desenhando
no espaço social lugares próprios de uns e de outros.
2.5 A valorização das identidades
Podemos observar um aparente movimento de “valorização” dos caboclos e dos
nordestinos na cidade de Manaus. Se na valorização dos nordestinos ganha peso uma
característica “cultural” de sua participação, na valorização dos caboclos, por outro lado, o
entrevistado P. nos apresenta o critério político com que a idéia de caboclo é apropriada
recentemente na história dos grupos humanos a que o termo faz referência.
A valorização do caboclo não parece sem conseqüências, porque atrelada à fabulação
de ciclos econômicos que se pretendem instaurar com periodicidade. Nos momentos de
transição econômica, principalmente de declínio da produção, é a figura do caboclo, assim
como foi do seringueiro nordestino, a que se recorre para indicar a importância do esforço
de produção. Maria Magela Mafra de A. Ranciaro, em sua pesquisa sobre problemas sociais
dos chamados ribeirinhos do rio Andirá (2004) no médio Amazonas, aponta as dificuldades
de se manter, sem questionar, uma certa representação destes grupos como justificativa das
políticas consideradas de desenvolvimento:
Considerando a escala dos primeiro e segundo ciclos econômicos o extrativismo
da borracha e a Zona Franca de Manaus , o trem da história resolve subitamente
frear, sob pena de precipitar novamente num outro abismo de lamúrias e incertezas.
A brusca parada indica que o caminho não é mais o dos grandes centros, da capital.
É preciso fazer o caminho inverso e, na reversibilidade da história, retornar ao
campo, ao interior do estado. A placa de sinalização acena em direção a um Terceiro
Ciclo. Entretanto, o retorno implica uma nova roupagem, pois a da borracha ficou
117
velha e se esfacelou com o tempo. Agora, é preciso abandonar o trem, pular para a
canoa e remar contra a correnteza. Assim, inaugura-se uma nova fábula na
Amazônia. Parece que, pelo próprio aspecto físico da região, a imaginação está
sempre predestinada a, constantemente, criar e recriar fabulações e encantamentos: o
desenvolvimento auto-sustentável está, desde já, na ordem do dia (RANCIARO,
2004, p. 93-4)
Em seu artigo “A morte do caboclo”, Lygia Sigaud (1978) constata que os
trabalhadores das plantations açucareiras de Pernambuco na década de 1960 se denominavam
caboclos quando em diálogo com os proprietários, porém, ao entrarem na disputa por direitos,
organizados politicamente, passaram a se chamarem camponeses:
Ao se classificar como camponês, o trabalhador estaria assumindo a sua condição de
ator político, adquirida nas lutas sociais das Ligas Camponesas e dos Sindicatos e
que vem sendo reprimida quatorze anos. [...] O que chama a atenção é a
retenção pela memória social de um termo que evoca todo um conjunto de atitudes
bastante diferentes daquelas encontradas nos outros contextos, durante todo um
período em que permanecem fechadas as vias de participação política dos
trabalhadores rurais (SIGAUD, 1978, p. 28) [Grifo da autora].
No processo de valorização concorre também a idéia de que nordestinos em Manaus
e caboclos possuem uma história em comum. Não se pode negar que os nordestinos tenham
participado da história do Amazonas, porém de tanto que esta idéia se torna uma certeza,
perde-se a justificativa para questionar, e com isso a própria idéia se torna a explicação de
uma série de fenômenos que, não sendo destrinchadas as suas relações implícitas, passam a
ser explicados pela certeza previamente composta.
Quando os estigmas se encontram não se pode ter uma definição não pejorativa, de
modo que, em primeiro, nordestinos e caboclos não se encontram, e em segundo, uma disputa
tem lugar quando se trata das vantagens em relação ao uso da terra. Nordestinos e caboclos
podem entrar em conflito pela participação na cidade de Manaus, pelos privilégios supostos
nas expectativas de direitos e deveres, basicamente em relação ao trabalho na cidade. Nesse
contexto, o caboclo é considerado o homem da terra, mas esta expressão parece reservar um
118
lugar pejorativo, como que reconhecendo que o homem da terra é inabilitado, não mais
incapacitado ou inferior, mas ainda assim, excluído das funções exercidas pelo nordestino.
2.6 O que é estranho e assim permanece
Um dos fenômenos observados por Goffman a respeito do estigma (1988), e também
pelos psicólogos que investigam relações entre grupos, é a mudança no tratamento recebido
pelos estigmatizados dependendo da intimidade que os outros têm com eles.
Observou-se que, hipoteticamente, ao se aproximar a pessoa estigmatizada do círculo
íntimo do entrevistado, as representações tendem a ser menos favoráveis do que quando o
estigmatizado é uma pessoa distante. Talvez pela falta de um conceito elaborado, o termo
usado para se referir ao que acontece é familiaridade, que, neste sentido, quer dizer o mesmo
que intimidade:
A área de manipulação do estigma, então, pode ser considerada como algo que
pertence fundamentalmente à vida pública, ao contato entre estranhos ou simples
conhecidos, colocando-se no extremo de um
continuum cujo pólo oposto é a
intimidade (GOFFMAN, 1988, p. 62) [Grifo do autor].
Sandra Dahia e Joanne Paola de Oliveira (2002) realizaram uma pesquisa com
estudantes da Universidade Federal do Amazonas para investigar as representações sociais,
supostamente leigas, sobre o paciente mental, tomando-se o cuidado de não abordar
estudantes de psicologia, pois estes teriam o conhecimento científico oposição entre
conhecimento e representação ainda bastante questionável nos trabalhos atuais.
Das primeiras às últimas perguntas, fazendo um percurso do geral para o particular,
começando por perguntas mais amplas como “o que você entende por doença mental?” até
finalizar com “você acha possível ficar louco?”, o trabalho avança sobre o terreno instável de
uma condição para a qual antigas representações parecem não ser suficientes, uma condição
que recebe aceitação, semelhante a destas que chamaríamos de miséria humana e, até certo
119
ponto, é compreendida, mas que, certamente, ninguém quer para si (DAHIA; OLIVEIRA,
2002).
entre os nossos entrevistados, no sentido inverso, vamos encontrar idéias mais
favoráveis exatamente para aqueles que tiveram familiaridade maior com os caboclos. Ao
contrário do que se mostra em trabalhos semelhantes sobre grupos estigmatizados, como é o
caso das representações sociais de grupos como os homossexuais e os soropositivos, nos quais
a familiaridade faz o estranhamento, em nosso caso a familiaridade faz com que os caboclos
sejam representados de modo mais simpático.
Há, certamente, algo de novo pairando nas representações, ao menos, a suspeita de
que há alguma coisa de “errado” com as antigas definições sociais, e que, embora não se saiba
com clareza o que é, pode-se perceber que não mais consegue dar conta da realidade que se
conhece:
As pessoas de onde eu passava, do nordeste mesmo, tinham noção que: “olha, tem
índio para todo lado, índio no meio da rua”, então hoje seria como das vezes que eu
voltei para lá, para passear, e as pessoas chegavam: “mas lá tem muito índio no meio
da rua?”, e eu ficava zangado com aquilo: “eu antes de lhe responder, vou lhe
perguntar, aqui também ainda tem muito cangaceiro pelo meio da rua?”. Entendeu?
Mas isso você está falando depois que chegou aqui... antes, não tinha idéia...
Não, não tinha noção, mas agora não, essa coisa me incomodava, se me fizessem
essas perguntas, eu respondia de uma forma bem ignorante, dizia: “olha, o que você
me responder, é o que eu teria para te responder”, então, o que ele iria me dizer, que
existe cangaceiro lá, no meio da rua?
Com relação ao caboclo, o que eles sabem lá? ouviram falar do caboclo em
outros lugares que você passou?
Não [...]
Ninguém falava, ninguém comentava para lá, não se tem aquela visão assim, e eu
por incrível que pareça, conheci Manaus num livro que a gente estudava, num livro
de admissão, e ele tinha o Porto de Manaus que eu achava interessante, o Teatro
Amazonas, eu conhecia por livros, fotografia preto e branco, o Porto Flutuante.
Aquilo era uma das coisas que, quando eu vim para cá, eu já sabia que existia... aí eu
via aquelas coisas ali, eu digo: “não, não é como o pessoal está falando, é uma
cidade normal como outra”, mas foi um dos lugares mais diferentes que eu vim,
houve esse choque, essa coisa: “ah, você vai para lá...”, e aquela preocupação que
havia, era como se eu fosse para o meio de uma selva (E. – 13/02/2006).
Quanto mais próximo, mais o caboclo em questão se torna compreendido e algumas
de suas faltas são minimizadas. Não é algo que o estigmatizado possua, de si para os outros,
120
não é como uma doença que se tem ou o caso de um comportamento indesejado, embora
possa se apresentar assim também. Por ser tomado como identidade de um povo, o caboclo,
ao se tornar familiar para os entrevistados, passa a receber expectativas que atribuem para ele
um lugar, de modo que o estranhamento aparece quando ele não se coloca neste lugar que lhe
é reservado:
Se você tivesse um filho aqui algum dia, ele poderia ser chamado de caboclo?
Poderia. Se eu te contar que eu vi uma pessoa aqui engravidar e ir para o Rio de
Janeiro para ter o filho e depois voltou com um ano de idade para dizer que o
filho é carioca... ela é daqui, toda a família daqui, foi para ter o filho lá, para não
dizer que é daqui. O nordestino não faz isso! (P. – 20/01/2006).
O estigma de caboclo é menos justificável na medida em que simboliza um modo de
ser, no caso, o que seria um modo de viver próprio ao Amazonas, a menos que se encontrem
elementos pejorativos com os quais se pode definir distância entre eles e os nordestinos.
Portanto, seguindo o que Heidegger nos ensina (2002), podemos dizer que é somente
quando o objeto frustra o sujeito, que passa a existir de fato, e o caboclo não vai ser
“encontrado” nos lugares entendidos para ele.
Por “lugar” nas representações sociais entende-se não o espaço físico primeiramente,
mas o espaço em que as representações ocorrem; esse espaço representacional não produz
uma única essência, mas uma multiplicidade que pode ser tão numerosa quantas forem as
visões de mundo (HEIDEGGER, 2002). Percebe-se como a produção deste lugar é anterior à
produção do espaço que lhe serve de tradução. Ricardo Vieiralves de Castro, trabalhando com
representações sociais, observou o fenômeno a respeito do preconceito contra as prostitutas da
Zona do Mangue, área “legalizada” sob controle da Prefeitura do Rio de Janeiro e concentrada
numa pequena vila, denominada pelas prostitutas de “Vila Mimosa”: “os territórios
simbólicos de conduta moral expressam-se em espaços físicos” (CASTRO, 1993, p. 153).
121
Se aquelas mulheres são aceitas, trata-se de oficializar algo que não pode ser visto à
luz do dia das famílias, porque uma prostituta não reclama sua profissão fora do trabalho:
A Zona do Mangue especializou-se diante de outros locais de prostituição no Brasil
por ter sido a primeira a fundar uma associação de prostitutas de caráter sindical,
estabelecendo outras formas de interlocução com o estado e a sociedade civil
(CASTRO, 1993, p. 150).
O que caracteriza essa guetização, por um lado, é a barganha do poder simbólico,
indissociável do poder econômico exercido pelas prostitutas, e que lhes assegura conviver em
dois lugares diferentes na sociedade, o de “dentro” e o de “fora”:
A questão que se coloca como principal não é a de que os familiares da prostituta
não sabem de sua atividade. Não é isso que está em jogo; o jogo é omitir que sabem.
Tornar explícito que conhecem a atividade de prostituta, e que, principalmente,
beneficiam-se dela, faz os ideais burgueses de família, assentado na moral sexual,
entrarem em questão. É preciso um “acordo” implícito entre os membros da família,
que, como um texto dramatizado, bem ensaiado, seja tão convincente que o faça
parecer real. A primazia da necessidade sobre a moral, sem que a moral seja abalada
(CASTRO, 1993, p. 167).
A propósito do que o entrevistado C. aborda na entrevista “Saindo da toca”, uma
tentativa de evitar o paradoxo do “mal necessário”, no caso dos caboclos, estaria em assumir
essa expressão como identidade. Esconder a condição de caboclo teria o efeito negativo de
ficar mais exposto à segregação social, porque, ao contrário de grupos estigmatizados, como
prostitutas, soropositivos, homossexuais, cujos sinais, até certo ponto, podem ser disfarçados,
a apresentação de um caboclo está explicitamente marcada pela definição de seus traços
indígenas, cabelos negros, pele amendoada, roupas simples ou rasgadas, e tantos sinais
quantos se queira distinguir nele. Os sinais com os quais os caboclos são identificados
socialmente se configuram como imposições e, portanto, não poderiam ser manipulados
pelos próprios agentes.
122
Aliás, porque se diz que um caboclo pode passar por qualquer um, é que, na verdade,
não pode. Um caboclo pode ser qualquer um, menos o próprio interlocutor.
É-se caboclo, também, de dois modos, quando familiar e quando estranho, e o
tratamento dispensado também se modifica. A mesma proximidade que torna a representação
mais favorável, também pode ser usada em outros casos para segregar este outro que continua
sendo diferente.
Compreendendo o caso de R., no restaurante baiano, a familiaridade também marca
diferenças, porque unidade a nordestinos e aos que se aproximam ou são trazidos para a
“família” inaugurada por ocasião do restaurante, separando-os a partir de seu lugar próprio,
um sentimento de pertença criado como um dos modos possíveis de ser baiano em Manaus.
Estar entre os seus é, porém, correr o risco de estar irremediavelmente jogado numa
travessia entre o legítimo e o ilegítimo, sem, no entanto, uma linha divisória claramente
demarcada entre os dois.
uma dificuldade em que, por trazerem uma identidade definida para si, os
sujeitos cumprem a função de reconstituir na nova terra os vínculos que mantinham no
nordeste. Ser nordestino em Manaus faz explicitar claramente que vínculos seriam
propriamente nordestinos porque não se encontra mais entre pares: a presença de uma cultura
supostamente diferente serve de espelho negativo para formar uma identidade nordestina.
De modo que a própria cultura nordestina que se desenvolve em Manaus, feita por
manauaras, é vista como uma representação equivocada do que se tem no nordeste
duplamente a identidade nordestina é reconstruída (e por isso construída pela primeira vez,
porque consciente, como algo que se pensa sobre) deslizando incessantemente sobre trilhos
com os quais não se pode ter contato: de um lado a cultura local, e do outro um simulacro
local da cultura nordestina.
123
Pensamos, por outro lado, que ao falarmos de nordestinos e caboclos estamos
falando de pessoas que existem e podem ser encontradas, quando, de fato, além de pessoas,
estamos principalmente pondo em jogo representações sobre pessoas. Com nordestinos se
torna mais fácil apontar para grupos específicos, afinal, podemos lembrar de termos
conhecido um.
Ao contrário, encontrar um caboclo na cidade é mais difícil, a não ser para os
entrevistados que lidam com atividades que envolvem contatos mistos e para os quais o
caboclo é alguma figura conhecida, como um filho, um amigo, um cliente.
Mas afinal, como supor que nordestinos e caboclos não se encontrem, se nos parece,
a princípio, que os caboclos “predominam” na cidade?
Seus descendentes espalham-se na cidade, ostentando nos caracteres somáticos a sua
herança. A julgar somente pela aparência física, especialmente nos bairros
periféricos da cidade, poder-se-ia dizer que em Manaus predominam caboclos, e eles
estão inseridos em todas as classes sociais, estão nas escolas, nas universidades, em
carros importados e em ônibus lotados (MEDEIROS, 2004, p. 167).
O que caracterizou Um estranho no espelho (2004), e daí o título desta dissertação, é
que o caboclo então representado permanecia um estranho, apesar da visão compartilhada
pelos entrevistados de que ele simbolizaria o homem da terra, ou um povo que poderia ser
facilmente encontrado.
Goffman (1988) nota que o estigma decorre, em sua forma mais comum, de
características não desejáveis, no sentido de inferiorizar alguém:
Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa
estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande algumas vezes ele também é considerado um
defeito, uma fraqueza, uma desvantagem e constitui uma discrepância específica
entre a identidade social virtual e a identidade social real (GOFFMAN, 1988, p. 12).
124
Entretanto, não é por nenhum atributo que o autor define o estigma, pois os
estigmatizados também não podem ser identificados por nenhuma característica particular, é
em relação aos seus efeitos que sabemos se tratar de estigmatização.
Todas as coisas existem na medida em que delas falamos, e a representação, como
visto, faz parte do objeto (BOURDIEU, 1989), mas o estigma parece manter uma relação
diferente, que ao nos referirmos em termos de estigmas, nos iludimos a ponto de achar que
estamos falando de objetos – grupos ou pessoas, que existiriam também.
O caboclo aparece na história como uma produção de outros sobre outros, o que
conduz a se pensar que, pelo fato de não se afirmarem politicamente, como no caso de judeus,
ou homossexuais, acabam por se tornarem outros “invisíveis”.
É, portanto, um outro indeterminado, e não um outro de fato, o que justifica dizer
que, para os entrevistados, o caboclo não é um “outro”, apenas é. Isto porque o contorno de
termo pejorativo persistiria quando ele não deixa claro sua posição.
O caboclo identificado, ao contrário, ganha uma distinção, recebe o mérito de um
passado próprio, uma qualidade de nascença, porquanto assumir-se caboclo implica na
negação do estigma. Por isso, o caboclo permanece estranho para a entrevistada I. (ver “o
caboclo não fala” no presente capítulo), porque não se aproxima, porque seu silêncio não tem
racionalidade, ele não fala porque não fala, e, com isso, também não deixa claro o que quer,
quem é, ou enfim, uma posição que pudesse chamar de sua.
Pode-se presumir que, quando os caboclos se tornam próximos, tornam-se também
compreensíveis, que ao terem suas diferenças legitimadas, deixem de ser tão somente “os
outros”. Porém, esta alteridade não é sem preço. Os caboclos que não se “assumem” no
estigma continuariam a ser outros indeterminados.
Ao começarmos o presente trabalho, havíamos imaginado encontrar nas
representações de um grupo supostamente “de fora”, como os nordestinos, a saída para a
125
estigmatização histórica evidenciada para os caboclos na cidade de Manaus. Vê-se, no
entanto, que a presença do outro jamais conseguiu deslocar as concentrações de poder
existentes, colocando-se, outrossim, a serviço de antigas disposições.
Gostaríamos de situar nordestinos e caboclos como supostas “essências”, que se
tomadas isoladamente, obscurecem as existências das pessoas que se acham à sombra desses
termos; essências que, em alguns momentos, correspondem à maneira como, para as pessoas
em questão, é dado participar em sociedade. O encontro no desencontro estabelece uma
ordem muito bem definida, e aceita porque não totalmente explícita, na qual os chamados
nordestinos sabem quem seriam os caboclos, mas porque sabem, nada mais resta a dizer.
O caboclo certamente ocupa a condição de homem da terra, aquele com quem,
supomos, haveria o encontro, mas isto não lhe confere vantagem alguma, pois não é com os
caboclos que os entrevistados se relacionam diretamente na cidade, como fica claro, este
homem da terra é ao mesmo tempo alguém a quem não se dedica muita atenção.
3 O QUE MUDA E O QUE PERMANECE
As representações sociais, desde seu aparecimento inicial, no trabalho de
Moscovici (1976), surgiram caracterizadas como sendo um conhecimento dinâmico, por
oposição ao conceito de representações coletivas de Émile Durkheim, teórico francês que
redefiniu a pesquisa sociológica no século XIX.
O conceito durkheimiano de representações coletivas está interessado no modo como
um conhecimento confere coesão a uma sociedade, e a impediria de se fragmentar. Estuda as
formas fixas que esse conhecimento tem na vida social, através dos mitos e da religião.
Moscovici (1976), por outro lado, atenção ao caráter continuamente mutável das
representações, base das transformações sociais.
Se toda a sociedade fosse estruturada unicamente de acordo com uma força de
coesão, como as representações coletivas, não haveria espaço para as mudanças sociais.
Durkheim, assim, abordaria as representações na condição de conceito, enquanto
Moscovici, conforme explica em um trabalho recente, as entenderia como um fenômeno a ser
também descrito no processo de seu fazimento, ou seja, não apenas como uma questão de
descrever o que se sabe, mas de definir “como” se sabe:
[...] se, no sentido clássico, as representações coletivas se constituem em um
instrumento explanatório e se referem a uma classe geral de idéias e crenças
(ciência, mito, religião, etc.), para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e
explicados. São fenômenos específicos que estão relacionados com um modo
particular de compreender e de se comunicar um modo que cria tanto a realidade
como o senso comum. É para enfatizar essa distinção que eu uso o termo “social”
em vez de “coletivo” (MOSCOVICI, 2003, p. 49).
O simples acréscimo, porém, do adjetivo “social”, ao entendimento das
representações, deixa questões não respondidas, conforme salienta o autor:
127
Quelles sont les significations que l’adjectif “social” ajoute au substantif
“représentation”? Nous en avons déjà décrit une: celle de dimension des groupes
sociaux. Mais nous avons déclaré dès le début qu’il s’agissait d’une signification
superficielle. D’une façon ou d’une autre, elle correspond à un critere
d’ expression.
On voit immédiatement surgir une foule de questions. Quelles sont les limites
précises du social, quelle représentation ne serait pas sociale, à quels indices
reconnait-on le degré d’adéquation entre une représentation et un groupe social et
ainsi de suite? Le champ de bataille de la sociologie et de la psychologie sociale
classiques est jonché de livres et de systemes ayant essayé de donner l’assaut à ces
questions et de trancher entre les réponses possibles. Nous ne les imiterons pas, non
que nous soyons maintenant plus avisés, mais parce que nous croyons ces questions
stériles et l’arbre de la science sur lequel poussent les réponses porteur de fruits secs.
Cherchons donc ailleurs, du côté du
processus de production des représentations, un
point d’attaque mieux défini. Et, dans cette perspective, qualifier une représentation
de sociale revient à opter pour l’hypothese qu’elle est produite, engendrée,
collectivement. On connait les oppositions que cette hypothèse a soulevées de la part
des psychologues et des sociologues qui ont insisté sur l’importance, exclusive, de
l’individu dans la genese des conceptions adoptées par la société. La controverse
entre Durkheim et Tarde est encore dans toutes les mémoires
6
(MOSCOVICI, 1976,
p. 74-5) [Grifos do autor].
7
Márcio de Oliveira (2004), doutor em sociologia e professor da Universidade Federal
do Paraná, em sua resenha ao livro de Moscovici, Representações sociais: investigações em
psicologia social (2003), apresenta a questão que marcaria a distância entre a teoria das
representações sociais e o tratamento dado por Durkheim:
______________
6
Aqui Moscovici faz referência a Gabriel Tarde, que assim como Durkheim, notabilizou-se por
significativas contribuições à sociologia francesa, embora suas obras tenham recebido atenção menor
que as de Durkheim. A controvérsia entre Tarde e Durkheim está nas posições teóricas em relação à
participação do indivíduo na produção das crenças em uma sociedade. Enquanto Durkheim abordava a
questão pelo estudo do que chamava de representações coletivas, Tarde estava interessado na
microssociologia do fenômeno, isto é, no modo como crenças e desejos individuais se entrecruzam
ainda ao nível da sub-representação. Para uma crítica detalhada, ver livro de Eduardo Vargas,
Antes Tarde do
que nunca (2000).
7
Numa tradução livre: Quais são as significações que o adjetivo “social” acrescenta ao substantivo
“representação”? Nós descrevemos uma delas: a que diz respeito à dimensão dos grupos sociais. Mas
declaramos desde o início que esta é uma designação superficial. De uma forma ou de outra,
corresponde a um critério de expressão. Vê-se surgir, imediatamente, uma série de questões. Quais são
precisamente os limites do social? Que representação não seria social? Que indicativos alguém teria
para reconhecer o grau de adequação dentre uma representação e um grupo social, e assim por diante. O
campo de batalha entre sociologia e psicologia social clássicas está repleto de livros e sistemas tentando
resolver tais questões e se decidir entre suas possíveis respostas. Nós não queremos fazer o mesmo, não que
agora estejamos mais prudentes, mas porque acreditamos serem questões estéreis, e a árvore da ciência,
na qual se tiram tais respostas, está cheia de frutas secas. Vamos além, pelo ângulo do processo de produção
das representações, buscando uma abordagem melhor definida. Nessa perspectiva, qualificar uma
representação de social significa optar pela hipótese de que ela é produzida, engendrada, coletivamente. Sabe-
se da oposição que esta hipótese despertou entre os psicólogos e sociólogos que insistiram na importância,
exclusiva, do indivíduo na gênese das concepções adotadas em sociedade. A controvérsia entre Durkheim e
Tarde ainda está em nossa memória.
128
[...] o autor aponta uma solução para o problema, ao afirmar que representar é um
processo de produção de conhecimento que funciona como que “rolando” por sobre
estruturas sociais e cognitivas locais (e populares), sendo, portanto, sociovariável.
Com esta atitude, ele parece romper definitivamente com a idéia durkheimiana de
“forças coletivas” ou de “ideais” que apenas cimentam e conferem sentido às
sociedades [...] (OLIVEIRA, 2004, p. 183).
Moscovici está, portanto, mais interessado em descobrir como as representações
sociais se tornam um meio de produzir as transformações, e explica este fenômeno da
aparente mudança, pelo fato das representações não estarem subordinadas a nenhuma
estrutura social, o que equivale dizer que é pelas relações que se sucedem, e também o que
nos ajuda a evitar o preconceito das explicações de causalidade histórica, ainda tão em voga
nos estudos de caboclos. As explicações históricas utilizam fatos separados e buscam dar-lhes
uma seqüência a eles no tempo, tentando formular alguma conexão causal, afirmando que o
caboclo é ainda hoje um termo pejorativo porque na sua origem foi usado pejorativamente.
No entanto, as representações sociais não se apresentam menos estáveis somente
porque o processo de sua constituição se sobre meios de comunicação mais velozes ou
porque elas se diversificam para os subgrupos a que as produzem.
Conforme pudemos avaliar em nosso trabalho, seja para os entrevistados que estão
pouco, ou muito tempo na cidade, ocorre uma ordenação que age não somente através
das representações, porém antes delas, e que define as participações de nordestinos e caboclos
em lugares previamente estabelecidos.
Ao menos assim parece para as representações sociais de supostas identidades, que
correspondem a um conhecimento que mira a totalidade do que o outro é, coisa que pode ter,
facilmente, um efeito estigmatizante.
Quando a representação atua sobre a pessoa, faz estático algo que está em
movimento, torna familiar o que no outro produz diferença, faz parecer uma essência, onde
originalmente, há um fenômeno expressivo.
129
As representações sociais produzem o novo, porém ancorado ao velho, de modo que,
em qualquer mudança nos conteúdos das representações, nos parece ainda ser possível
encontrar os mesmos elementos pejorativos com que os caboclos são estigmatizados.
Moscovici (1976) alude ao propósito das representações sociais, de tornar familiar o
estranho, e conclui que, por isso, toda representação é uma “re-apresentação” do objeto:
Le transfert de l’extérieur vers l’intérieur, le transport d’un espace éloigné vers un
espace proche sont des opérations essentielles de ce travail cognitif particulier. Mais
on n’est pas tenu de se limiter à cette façon de voir. La représentation n'est pas, à
notre avis, une instance intermédiaire, mais un processus qui rend le concept et la
perception en quelque sorte interchangeables, du fait qu’ils s’engendrent
réciproquement. Ainsi l’objet du concept peut être pris pour objet d’une perception,
le contenu du concept être “perçu”. Par exemple on “voit” l’inconscient, situé vers le
bas, en tant que partie de l’appareil psychique, ou bien on voit qu’une personne
“souffre d’un complexe”. Certaines conduites, au lieu d’être décrites comme
conduites de timidité à partir de ce que l’on voit, sont envisagées comme des
manifestations évidentes d’un “complexe de timidité” qu’on conçoit sans le voir et
localisé dans l’individu [...]
Du point de vue du concept, la présence de l’objet, voire son existence, est inutile,
du point de vue de la perception, son absence ou son inexistence est une
impossibilité. La représentation maintient cette opposition et se développe à partir
d’elle: elle re-
présente un être, une qualité, à la conscience, c’est-à-dire qu’elle les
présente encore une fois, les actualise malgré leur absence et même leur non-
existence éventuelle (MOSCOVICI, 1976, p. 55-6) [Grifo do autor].
8
A representação social é, ao mesmo tempo, uma percepção e um entendimento do
objeto. A representação se produz neste movimento contraditório entre tornar o objeto
presente num certo sentido, o perceptivo, e ausente no outro, o conceitual. E não se entende o
______________
8
Numa tradução livre: A passagem do exterior para o interior, a mudança de um espaço distante para
dentro de um espaço próximo, são operações essenciais deste trabalho cognitivo particular. Mas nós
não temos de nos limitar a este modo de ver. A representação não é, em nossa opinião, uma instância
intermediário, mas um processo que faz o conceito e a percepção, de alguma forma, intercambiáveis,
de sorte a se engendrarem um ao outro reciprocamente. Por isso, o objeto do conceito pode ser
tomado como o objeto da percepção, o conteúdo do conceito a ser “percebido”. Por exemplo uma
pessoa pode “perceber” o inconsciente, situado abaixo, como parte da estrutura mental, ou pode
perceber que alguém “sofre de um complexo”. Algumas condutas, ao invés de serem descritas como
condutas de timidez de uma pessoa, são concebidas como demonstrações óbvias de um “complexo de
timidez”, que não se vê, mas que se localiza no indivíduo [...]
Do ponto de vista do conceito, a presença do objeto, ou mesmo sua existência, não faz diferença, do
ponto de vista da percepção, sua ausência ou sua inexistência é uma impossibilidade. A
representação sustenta essa oposição e se desenvolve a partir dela: ela re-apresenta um ser, uma
qualidade, à consciência, diríamos que ela os apresenta ainda mais uma vez, atualizando-os malgrado
sua ausência ou mesmo sua eventual não-existência.
130
novo, o estranho, nos seus termos próprios, como ele é, mas como ele se apresenta à
consciência, principalmente, à luz de representações anteriores.
Não deveria constituir-se insuspeito para nós que as representações de caboclo,
mesmo que se fale do seu aspecto dinâmico, agem no sentido de confirmar o que se sabe,
ou já se espera.
Se a representação faz do ente um objeto conhecido sobre o qual incide uma
definição consensual, seus aspectos desconhecidos permanecem estranhos, porém agora
ignorados pela mera “curiosidade” que os deixa onde estão; não muito boas soluções em
ambos os lados.
Trata-se de algo que se sabe, sem saber de fato, porque não é algo para ser falado, ou
representado. A re-apresentação dos caboclos pode variar em torno de elementos
incorporados de maneira recente na sua estrutura, mas permanece reproduzindo os mesmos
esquemas interpretativos do passado do termo.
Os significados mudam porque acompanham mudanças das quais são contingentes,
políticas, nos modos de participação, na distribuição de poderes, mas essas mudanças visam a
manter um conjunto coerente, e restaurar um sentido único de início: no caso dos caboclos, o
homem do “chão de fábrica”, da pesca, ou da Zona Leste, aquele que preserva a floresta,
seriam significados aparentemente distintos, porém o sentido permanece o mesmo. O
significado é o que permite falar sobre alguma coisa, é o que sustentação material ao
objeto, o que permite a ele ser falado, mas o sentido é a estrutura que o mantém existindo
apesar das mudanças, é o nível não pensado da mudança.
Tendo nas identidades um objeto, pode-se ver de maneira mais clara que a mudança
presente nas representações sociais produz o novo, mas um novo predito num contexto do
qual não se separa totalmente, não produz ruptura. Mais: que a identidade se faz reconhecível
131
apesar das mudanças porque atrelada a um conceito primeiro, não aberto à revisão, cuja
origem se perde ou não se pensa.
Esta face dogmática das representações sociais revela uma disposição para a
manutenção de uma ordem, de uma prática atrelada a esta ordem, sendo preciso separar o que
é feito para manter o que se conhece, e o que é feito para mudar.
No presente capítulo, se descreve as entrevistas com a historiadora J. e com a
laboratorista A., ambas então com cerca de um ano em Manaus, e com F., radialista e ex-
seringueiro, com cinqüenta anos na cidade. Suas definições para caboclo podem ser
aproximadas em relação ao dilema das representações: entender o novo em seus próprios
termos, ou a partir da tranqüilidade do já conhecido?
3.1 “Quanto mais primitivo, melhor”
Na presente entrevista, conversamos com J., nascida em Natal, no Rio Grande do
Norte, que veio para Manaus quando seu marido recebeu um convite para trabalhar na ZFM.
A participação de J. se deu por uma via inusitada, pois ao contrário dos demais
entrevistados, foi ela que veio até nós, ao saber da nossa pesquisa através da secretaria do
mestrado, e se ofereceu para colaborar com o trabalho.
Naquele momento, início de 2005, ela ainda nos procurou buscando referências de
literatura para uma pesquisa sua, também sobre nordestinos em Manaus, de maneira que até
hoje compartilhamos opiniões sobre o tema que ajudou a nos aproximar.
Em 2006, quando ocorre a entrevista, ela estava cerca de um ano na cidade,
contava então com quarenta anos de idade, e já cursava aqui uma pós-graduação, trabalhando
como professora para os ensinos fundamental e superior. Iniciamos a entrevista pelos motivos
de sua vinda a Manaus:
132
Sobre o motivo que te levou a fazer essa viagem, você pode comentar algo a
respeito, como se deu a tua mudança para Manaus?
O principal motivo foi uma proposta de trabalho feita ao meu marido,
especificamente no Distrito Industrial.
Feita para ele, e você aproveitou e veio?
A proposta foi feita para ele e o meu interesse em vir era a atração da Amazônia,
essa questão ligada à área de ciências humanas e a questão antropológica, a
Amazônia me atraiu muito, é tanto que ele recebeu esse convite por três anos, eu
torcendo que ele viesse, ele resolveu aceitar no terceiro ano, mas assim, estava
na torcida que ele viesse porque eu achava que iria encontrar subsídios para os meus
interesses (J. – 17/07/2006).
Reaparece, então, o problema da terra que não é “valorizada”, e, por isso,
desconhecida, porque sua gente não saberia o valor daquilo que ignora:
E em 2004, quando veio para cá, você tinha uma expectativa de Manaus.
Como surgiu essa expectativa, o que você esperava encontrar aqui e o que te
motivou para vir junto com o seu marido?
O mito amazônico, na verdade acho que fora da Amazônia o mito é muito mais
debatido, muito mais falado do que aqui dentro. Então, a Amazônia lá fora, pelo que
eu percebi nessa vinda para cá, o nome Amazônia tem um peso muito maior do que
aqui dentro. É assim, quando eu cheguei aqui houve até uma certa decepção entre
aspas, porque eu imaginava que iria encontrar muito mais trabalho, muito mais
campo, devido à imagem que é vendida fora da Amazônia, e aqui parece que as
pessoas ainda não perceberam a dimensão do que é a Amazônia (J. – 17/07/2006).
J. é graduada em história, por isso o interesse em vir para Manaus, estava na busca da
chamada “Amazônia”, lugar real e imaginado, no qual se espera, de acordo com uma visão
histórica, reconstituir o presente pelo passado: “O Rio Grande do Norte, e acho que o
Maranhão, se não me engano, são os dois únicos estados do Brasil em que não existe nenhum
indígena. Foram todos exterminados” (J. – 17/07/2006).
Não devemos pensar neste momento, no índio como uma figura real que J. se refere,
e ela certamente se refere assim, mas no que a entrevistada considera como sendo “indígena”.
O índio é suposto na condição de portador privilegiado de uma história interrompida o que
justifica este que seria um privilégio amazônico, a busca por um povo das “primícias”, a que a
entrevistada faz alusão em dado momento, se baseia assim num pressuposto de origens.
Discutimos então o tema da viagem para o nordestino, quase que sua condição de
homem enquanto errante aparece para justificar a mudança, a aceitação da mudança, a vida
133
pela mudança, seja motivada pela seca, ou pelas contingências que agiriam para levar o
nordestino em procura de outros lugares.
Não se pode dizer, no entanto, que o tema surge sem participação do entrevistador
que o sugere na condução da conversa:
E a tua adaptação à cidade, talvez ainda esteja em andamento né? O que você
pode falar sobre?
De acordo com um grande amigo meu, eu sou mundista, me adapto em qualquer
lugar. Então eu me adapto muito bem, não tenho problemas de adaptação.
Tem algo a ver com ser do nordeste?
Provavelmente. O nordestino por si tem um espírito meio que nômade, a seca, ela
induz o nordestino a ser... um pouco migrante... um pouco nômade. E tem o meu
lado pessoal, eu sou muito: “se está em Roma, viva Roma!”. Então, me adapto em
qualquer lugar, qualquer situação, e tenho para mim que quanto mais primitivo
melhor, sou muito primitivista.
E pelo que você falou, você está migrando muito mais por um interesse, por um
sonho antigo, que por necessidade.
Eu diria que por opção, eu tinha opção de ficar e opção de ir. Eu tenho uma teoria:
não sou árvore, não tenho raízes, não preciso nascer e morrer no mesmo lugar. Então
a coisa de mudar, de conhecer, do novo, me atrai muito como pessoa (J.
17/07/2006).
Se, numa interpretação descuidada, disséssemos que esta é uma entrevista com uma
nordestina, ou mesmo que o que fazemos aqui é entrevistar nordestinos, teríamos que ver
primeiro que tais definições em nada contribuem para entender as posições com que os
sujeitos participam em sociedade:
Tem contato com outros nordestinos na cidade?
Tenho, inclusive no condomínio em que eu moro, ele é praticamente de nordestinos,
nordestinos em sua maioria que vieram trabalhar no Distrito. Em sua maioria na
mesma profissão que meu marido veio para cá.
São amigos, vocês saem, como vocês aproveitam a “cena” nordestina na
cidade?
Na verdade eu esqueci que sou nordestina, virei manauara, então, os nossos amigos,
aqueles com quem a gente sai, socializa, são manauaras [...] uma grande maioria de
pessoas que a gente tem laço social são todos manauaras. Esqueci dos nordestinos.
Com relação aos caboclos, você tinha um contato anterior com a expressão,
como surgiu esse teu conhecimento?
Isso é a melhor parte, eu me identifiquei assim com isso, até porque eu percebi que
um grande percentual da população de Manaus tem uma origem nordestina, são
descendentes de nordestinos, e talvez isso tenha sido a identificação, a questão do
acolhimento. O manauara é muito comunicativo, como o nordestino, até a própria
comida tem determinada semelhança, muito sutil, mas tem, mais do que no Sul. A
questão da adaptabilidade, que o nordestino tem, que a gente encontra também no
manauara, tanto que foi super fácil, até alguns termos eu adotei de cara, como por
134
exemplo “maninha”, eu achei fantástico, “maninha” do manauara, do caboclo
manauara, então, foi muito legal essa adaptação, tanto que hoje eu me identifico
muito mais com o pessoal daqui que com o pessoal do nordeste. Modo de dizer, das
raízes em si, eu me identifico mais com o manauara hoje que com o nordestino, que
com o natalense especificamente.
Você está colocando alguns pontos em comum entre as duas culturas, ainda
para separar, ainda dá para diferenciar, com tantos pontos em comum?
para separar da seguinte forma, isso é uma percepção muito minha, sem
fundamentos científicos, bem pessoais, mas por exemplo, uma coisa que eu adorei
de cara nos primeiros dias que eu cheguei aqui em Manaus e que eu comecei a andar
no Centro da cidade para conhecer, o marido ia trabalhar e eu ia andar no Centro: foi
o jeito descontraído do manauara, assim, o pessoal anda muito à vontade, enquanto o
natalense é meio almofadinha, é meio arrumadinho, todo mundo no salto, todo
empacotado, manauara não, é bem mais largado e eu sou largada, então eu me
senti em casa já nos primeiros dias, isso foi muito legal pra mim, essa é uma
diferença né? Essa descontração do manauara que eu já não acho, que eu não
percebo no natalense, tanto que as minhas próprias irmãs, nós somos cinco, e eu sou
a única largada, as demais são todas arrumadinhas e aqui eu me sinto em casa.
Em relação aos caboclos também?
O quê que você chama de caboclo, especificamente? (J. – 17/07/2006).
Aqui surge um problema, que se mostra na indefinição de caboclo e na dificuldade
particular de estar sugerindo um tema que, a princípio, não é levantado pela entrevistada. J.
não se referiu a caboclos, a não ser, e somente, quando a expressão foi introduzida na
conversa; em vez disso, manauara e amazonense foram os termos usados para fazer referência
às pessoas do local.
Se J. logo reconhece a expressão caboclo, e sobre a mesma passa a falar sobre suas
idéias é porque estamos aí no domínio da auto-evidência, do qual, de certa forma, se trata nas
representações sociais aquilo para o que o entrevistador, sem motivo ou justificativa
necessária, se a licença de argumentar e inserir no diálogo, como fosse uma palavra entre
tantas, uma palavra sobre a qual se tem um significado e não se precise mais voltar à sua
definição.
De que caboclo afinal se trata? Esta pergunta não aparece até a inclusão, meio sem
tato, de um termo para o qual a entrevistada já havia situado um lugar: este “caboclo” é falado
a propósito da “população de Manaus” em primeiro lugar, e em segundo, a respeito do
acolhimento. Não se trata, portanto, apenas de um homem, isto apesar do esforço que só toma
135
sentido pela falta de atenção do entrevistador ao introduzir diretamente a discussão sobre os
caboclos:
Cultura cabocla, na verdade é aquilo que você entende, eu queria ter
conhecimento sobre quais foram, enfim, os significados que você ouviu para
essa expressão, se você conheceu aqui ou lá.
Você está falando caboclo de uma forma geral, o amazonense no todo, ou o caboclo
aquele daquelas comunidades ribeirinhas? (J. – 17/07/2006).
A cultura então é mencionada como um critério de divisão entre nordestinos e
caboclos, mas com a ressalva de que este não foi o primeiro atrativo que a motivou a vir para
Manaus. Como visto, a entrevistada se refere às populações da Amazônia e sua cultura como
seu objeto de interesse, e, segundo acrescenta, as expressões nas artes e na música figuram
depois, incluídas. Por conta da interrupção no pensamento e a sugestão do tema “cultura”, no
entanto, é que a conversa parece direcionada para o “caso geral” e a descrição do caboclo nas
palavras da entrevistada se perde por um momento:
Falando sobre cultura, o que é preciso para alguém estar inserido ou se
considerar da cultura cabocla, ser um caboclo?
Acho que estar aqui. É, estar aqui e deixar viver. É aquela história: está em Roma,
viva Roma! Porque a gente conhece algumas pessoas, até mesmo no próprio
condomínio que a gente mora, que estão aqui sete, oito anos, e não conhecem
Presidente Figueiredo, não conhecem Balbina, nunca foram ao Boi, então você estar
aqui, como eles dizem: “ah, eu gostaria de trabalhar em Manaus e morar em
Natal...”, não está vivendo em Natal, e são vários casos que a gente conhece, vários,
tanto que eu e meu marido nós passamos a ser exceção quando a gente chegou aqui,
em seis meses a gente acampou em Figueiredo, acampou em Balbina, todo lugar
fora de casa a gente acampou.
Exceção em relação a quê?
A essa, [exceção] a não se deixar aculturar pelo que tem na terra, pelos valores da
terra, em todos os aspectos.
Seria uma resistência?
É, acredito que sim. Eu pelo menos percebi muito isso entre as pessoas de Natal que
a gente conhece, e principalmente paulistas, é tipo assim: “aqui não é igual ao meu
lugar então...”, e a gente chegou quebrando isso e hoje algumas pessoas que estão
aqui há oito anos, ligam para a gente para pegar roteiro para viajar, e acho que agora
que estão vendo que é possível você viver em um lugar, não viver em função das
férias para voltar para Natal, tem isso também, quando chegam, eles não querem
descobrir o novo (J. – 17/07/2006).
136
Em torno do “condomínio”, como espaço para o relacionamento, a entrevistada
aponta o que podemos chamar de um aprisionamento. Não que se esteja ali, de fato preso, mas
sim pela vontade de preservar-se distante, pela visão de que tudo no lugar é passageiro e que a
realidade mesma está na terra que ficou para trás e para onde se deve retornar ao fim do
trabalho forçado. Não por acaso também esse trabalho se na ZFM, no pólo industrial em
que nordestinos e manauaras, como se pode notar para os caboclos também, acham-se
separados pelas expectativas atribuídas e pelo espaço social que ocupam.
Para os nordestinos que chegam, recrutados pela indústria, esta recusa acontece
porque Manaus não é o seu lugar e, portanto, não se “está” verdadeiramente aqui; para os
caboclos é uma impossibilidade de sua própria “cultura”, não serem os homens que viajam
por já terem tudo de que precisam aqui:
Além de viver o lugar e as relações humanas, vamos para um caso mais
específico, você está colocando que o nordestino pode chegar aqui e se tornar,
por exemplo, da cultura cabocla... agora, o caboclo, se for para outra cultura,
teria essa mesma capacidade ou isso vai muito da pessoa?
Na minha visão, o espírito amazonense é diferente do espírito nordestino, por
exemplo, uma coisa que eu percebi aqui, não existe a cultura de viajar. São poucos,
acho que até assim, mais uma determinada classe, que é uma classe com menos
elementos por si só, que tem aquela cultura de viajar, mas de uma forma geral, até
mesmo a classe média que é um pessoal que tem, que pode viajar, não tem cultura
de viajar, é tanto que em janeiro deste ano eu levei oito manauaras para Natal
comigo, e foi quase assim, uma “forçação de barra” porque eles têm um ritmo assim
como se Manaus, como se o Amazonas proporcionasse tudo e eles estão felizes aqui,
não querem sair daqui, e de repente eu vejo marmanjo de quarenta anos, professor
universitário, que nunca tinha visto o mar. E que eu tive assim o deslumbre de
presenciar esse encontro. Foi uma experiência muito legal ver marmanjo se
deslumbrando com o mar, foi uma coisa muito boa. Então, por isso que eu não sei
dizer como é a questão do caboclo estar numa outra cultura, como se dá essa relação,
não sei se pelo próprio aspecto geográfico, um pouco fechado no universo
amazonense. Tanto que, pessoas daqui, se você pegar na faixa de quarenta, quarenta
e cinco anos, poucos conhecem o interior do estado, poucos conhecem Novo Airão,
Itacoatiara, Figueiredo (J. – 17/07/2006).
Ao falarmos sobre trabalho, observa-se novamente uma divisão feita entre
nordestinos e caboclos, na dependência de uma habilidade que os nordestinos teriam: a seca é
empregada como chave interpretativa de sua realidade, ou seja, o trabalho com recursos
limitados. A ZFM para nordestinos e os demais, aparece como instituição que oficializa em
137
seu desenho de hierarquia uma divisão que, informalmente, valeria como uma definição
cultural:
E o caboclo saberia aproveitar a cidade?
Olha, eu lhe digo que o nordestino sabe aproveitar, pela memória do nordestino, é
aquele trabalhador do interior. Não, e hoje também da capital. Ele sabe aproveitar a
Amazônia. Tipo assim, um mundão d’água desse aí, nossa! É tanto que
sobreviveram. Sobreviveram aos seringais. Assim, o ritmo de trabalho, o nordestino
vem de uma terra rachada de seca, e aqui ele encontra esse verdão, esse mundo
d’água, ele não passa fome, não passa mesmo. E tem outro universo atual, que é o
Distrito Industrial. Se você fizer uma análise, eu, pessoalmente, vejo assim, os
maiores cargos do Distrito estão com o “sul maravilha”: São Paulo, Rio. Os cargos
intermediários estão com os nordestinos. E a peãozada mesmo, se você fizer essa
análise vai ver que é o pessoal daqui. É como eu te falei, é como se o pessoal não
tivesse consciência do que tem. Do potencial que tem. A maior prova disso é que
Manaus, Amazonas, é a quarta maior economia do país. Amazonas é uma das
poucas regiões do Brasil que recebe mais do que gasta e tem um índice tão baixo de
educação, de saúde, então isso mostra que ainda falta o pessoal acordar.
Então tem mais a ver com o pessoal daqui acordar, que propriamente o
nordestino saber aproveitar?
Eu acho que é mais ou menos isso. É difícil detectar onde é que está o disso aí.
Porque isso que eu acabei de falar para você é uma realidade, se você fizer uma
pesquisa você vai identificar isso aí. Por que, por exemplo, empresas do Distrito, de
seis em seis meses estão indo buscar norte-rio-grandenses, paraibanos para trazer
para trabalhar como engenheiros? Seis em seis meses tem um pessoal de recursos
humanos, dessas empresas, trazendo pessoal para cá. Então, por que um Distrito
Industrial como este não tem um curso de engenharia mecânica de qualidade, e aqui
engenharia mecânica é uma vertente, não é uma coisa como é em Natal, por
exemplo, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte [UFRN] é o quarto
melhor curso do Brasil. Por que Manaus não é até melhor, que a gente tem um
pólo industrial? Em Natal, quase não tem luz, não tem pólo industrial, e aqui num
pólo desses a gente não tem curso de qualidade, por quê? (J. – 17/07/2006).
Encerramos a entrevista procurando deixar mais explícito o termo primitividade, a
que a entrevistada se referiu no início, de modo a saber até que ponto a idéia de Amazônia não
constitui uma representação pejorativa. Esta primitividade, para a entrevistada, é o motivo de
ter vindo para o Amazonas, e portanto é também representação e expectativa que espera
confirmar:
Você falou que um dos teus interesses dentro da antropologia em relação a
Manaus, e Amazonas, era a primitividade, você achou isso, de que forma você
achou, ou não achou?
De várias formas, como eu falei, a própria forma das pessoas viverem. Da
cumplicidade das pessoas, isso está ligado ainda à comunidade. Em meio
desenvolvido, como, por exemplo, São Paulo, você não encontra isso, aqui as
pessoas são mais simples, eu acho, são mais fáceis de estabelecer uma comunicação.
138
A proximidade com a natureza. Você está no meio da rua, pára o carro, passa um
casal de araras por cima do seu carro, também são valores assim, imensuráveis,
inestimáveis, é esse lado mesmo. Que influencia o próprio comportamento humano.
Essa proximidade que ainda de primitivo, mas eu estou falando de primitivo não
no termo pejorativo, de jeito nenhum, primitivo mesmo das primícias (J.
17/07/2006).
Observamos que, se por um lado algumas interpretações históricas são abandonadas,
ou não têm mais força explicativa, outras assumem a frente em determinados períodos, como
variações de idéias antigas sobre Amazônia. Assim nos parece ocorrer na idéia de que os
caboclos ainda não desenvolveram uma consciência sobre o que têm, sobre a importância da
Amazônia.
A idéia de que o homem da Amazônia não descobriu um projeto próprio é
alimentada em particularidades históricas que falam a favor de uma origem perdida, de uma
identidade que produz vergonha e orgulho ao mesmo tempo. Este projeto não se sabe ao certo
qual seria, mas se defende a sua procura com base em que, sem este conhecimento da própria
realidade, não se teria uma identidade. Embora justificada, não se pode deixar de lado a tarefa
de explicitar as idéias que fundamentam essa procura por uma identidade.
Stephen Nugent, professor de antropologia em Goldsmiths, Universidade de
Londres, faz alusão, em seu livro de 1993, Amazonian caboclo society, aos argumentos
empregados para sustentar uma imagem “primitiva” de Amazônia, no sentido de uma
oposição entre modos de vida atrasados e modernos:
Large sedentary riverine populations, elaborate and large-scale ceramic
manufacture, ranked lineages, funerary urns,
farinha ovens and other evidence point
to a pre-colonial Amazonia far removed from the remote forest-dwelling
9
archetype.The point here is not that such discoveries are overlooked although that
does seem largely to be the case – but that the lack of recognition of the significance
of such evidence contributes to the perpetuation of the idea that pre-modern
Amazonia was a
tabula rasa upon which society had failed significantly to inscribe
itself [...]
In this brief discussion of the connection between pre- and post-colonial amerindian
groups all I wish to have put foward is the idea that the conception of Amazonia-as-
______________
9
A expressão “forest-dwelling”, pode também ser encontrada como tradução de caboclo.
139
a-natural-domain asserts itself in two different considerations of amazonian
societies: in relation to the link between amerindians and
caboclos, nature is the
constant factor as amerindian society dissolves and
caboclo society haphazardly
replaces it; and in relation to the link between pre- and post-colonial amerindian
societies, [...] the state of contemporary amerindian groups is implicitly [...] viewed
as a sub-routine of an unyielding natural domain (NUGENT, 1993, p. 32) [Grifos do
autor].
10
Toca-se aí, por primeiro, no ponto frágil desta articulação presente na idéia de
origem, que estabelece um critério geográfico logo no começo da associação entre caboclos e
a idéia de Amazônia como domínio natural. É o pressuposto de que a paisagem continua
sempre a mesma, tomada como ponto de referência para entender e tornar visíveis as supostas
transformações das chamadas sociedades caboclas.
Mais recentemente, Nugent, em seu artigo “Utopias e distopias na paisagem social
amazônica”, publicado no livro Sociedades caboclas amazônicas (2006), organizado pelos
pesquisadores da Universidade de São Paulo USP, Cristina Adams, Rui Murrieta e Walter
Neves, comenta a apresentação pública de um filme seu, sobre judeus na Amazônia, e das
reações adversas que o trabalho despertou:
Ao ser exibido a europeus em um ambiente antropológico/acadêmico, no entanto,
ficou evidente que o filme foi percebido como uma obra sobre judeus, e não sobre a
Amazônia. De fato, era um filme sobre judeus, mas judeus da e na Amazônia (com a
exceção de duas pessoas entre duas dúzias, todas foram criadas na região, sendo de
terceira ou quarta geração). Para a platéia, isso contrariou as expectativas, pois todos
sabem que a Amazônia é uma terra de índios, colonizadores predatórios,
desmatadores, fazendas de pecuária e degradação ambiental. O fato da Amazônia
incluir judeus, japoneses, libaneses, holandeses, franceses, ingleses, ucranianos, etc.,
______________
10
Numa tradução livre: Populações ribeirinhas rigidamente fixadas, manufatura de cerâmica elaborada de
alta-escala, produção organizada, urnas funerárias, fornos de farinha e outras evidências apontam para
uma Amazônia pré-colonial muito distante do arquétipo do morar-na-floresta. Trata-se aqui, não tanto
que tais descobertas estejam superadas – embora pareça mesmo ser o caso mas que a ausência de
reconhecimento da importância dessas evidências contribui para o conceito de Amazônia pré-moderna
como tabula rasa, sobre a qual a sociedade teria falhado significativamente em se inscrever [...]
Nessa breve discussão sobre a relação entre os grupos ameríndios pré e pós-coloniais, tudo o que
desejo colocar é que o conceito de Amazônia-enquanto-domínio-natural se baseia em duas diferentes
considerações sobre as sociedades amazônicas: em relação à ligação entre ameríndios e caboclos, a
natureza é tida como o fator constante enquanto as sociedades ameríndias dissolvem-se e são
substituídas a esmo por uma sociedade cabocla; e em relação à ligação entre sociedades ameríndias pré
e pós-coloniais [...] a situação atual das sociedades ameríndias é implícitamente vista como
subordinada a um domínio natural invariável.
140
surpreendeu de maneira incômoda, destruindo certezas sobre os clichês que muitos
prezavam (NUGENT, 2006, p. 34).
A idéia de primitivo, original, em nome da qual se atribui à paisagem uma referência
estática, pode também nos conduzir a atrelar a participação dos grupos humanos ao próprio
local no qual estão inseridos. Caboclos, então, se tornam moradores da floresta, cujas
características passam a ser resumidas pelos modos como vivem, pescam, habitam. E não só,
pois as representações sociais de caboclo, conforme estamos aptos a perceber,
necessariamente implicam em juízos de valor, que, por sua vez, conduzem a expectativas
sobre como o homem assim chamado deveria ser.
É em torno de idéias como primitividade, que evocam um passado possivelmente
original, no sentido de uma pureza perdida, que se vão reunir os elementos para decidir,
conseqüentemente, quem poderia ser considerado mais original e próprio, os legítimos
homens da terra.
3.2 A invisibilidade privilegiada
A presença de um grupo, sua visibilidade, é questionada pelos entrevistados sempre
em relação a alguma outra categoria com a qual se põe uma rivalidade.
R., dona de restaurante, supõe que em Salvador, de onde veio, haja muito menos
negros do que se imagina no resto do país, mas esta afirmação, que de fato soa estranha para
nós, é justificada em relação à presença do índio em Manaus, que segundo ela também seria
superestimada.
Para o entrevistado P., o suposto privilégio dos caboclos também está relacionado ao
modo como se participa da cultura: “Tem quem conheça mais as coisas daqui que o próprio
local. Tem! [...] tem sujeito que imigrou, que conhece peixe, isso tem muito no interior. A
identidade cabocla está muito incorporada” (P. – 20/01/2006).
141
Stephen Nugent (1993) constrói sua teoria em torno dessa aparente “invisibilidade”
dos caboclos e, propondo-se evitar uma concepção de “atraso” destes, conclui que a economia
dos grupos caboclos é, ao contrário de japoneses e nordestinos, a única verdadeiramente
adaptada à região. Tal “modelo” econômico é chamado pelo autor de “complexo caboclo”:
[...] this expansion of the caboclo repertoire represents a model of resource-use
based on public access to public land, i.e. it is a significant precursor to models of
extractive reserves which are at the forefront of current attempts to legitimate forest
and river peoples’ claims to public resources, and as such, the
caboclo complex
deserves closer attention as a well-established system for achieving an
environmentally suitable mode of human appropriation of Amazonian natural
resources (NUGENT, 1993, p. 182) [Grifos do autor].
11
Percebe-se uma ordem implícita a circunscrever os caboclos, como um grupo de
uma região, um grupo privilegiado embora “esquecido”. Como os pesquisadores Brondízio e
Siqueira (1992), por sua vez, definem o caboclo, o “Habitante esquecido” no título de seu
artigo, e adotam ainda o esforço intelectual levado a cabo por antropólogos e cientistas sociais
brasileiros no decorrer dos anos sentido de fazer o caboclo “existir” para a identidade
nacional:
A profundidade da sabedoria cabocla representa uma fonte imprescindível para
realmente se conhecer a diversidade e potencialidade dos ambientes amazônicos.
Seu sistema de convívio com a região é a chave mais importante [...] para que a
sociedade brasileira encontre novas alternativas que visem gerar um
desenvolvimento [...] para o bem-estar do homem amazônico e começar a resolver
assim um grande dilema nacional:
a real integração das muitas Amazônias ao Brasil
(BRONDÍZIO; SIQUEIRA, 1992, p. 192) [Grifo nosso].
______________
11
Numa tradução livre: [...] esta expansão do repertório do caboclo representa um modelo de uso de
recursos baseado no acesso público para terras públicas, i.e. é um precursor significante de modelos de
reservas extrativas que estão à frente das tentativas atuais para legitimar as reivindicações dos
ribeirinhos pelos recursos públicos, e como tal, o complexo caboclo merece ser visto mais de perto
como um sistema bem estabelecido por alcançar um modo ambientalmente adaptado de apropriação
humana dos recursos naturais amazônicos.
142
Ao mesmo tempo original e perdido, esquecido e privilegiado, este caboclo ganha, na
sua invisibilidade, um privilégio da literatura acadêmica em relação a outros grupos
amazônicos. Assim o caboclo adquire contornos de uma identidade “original”.
Moscovici (2003) descreve a aparente “invisibilidade” como um fenômeno para o
qual concorrem as representações sociais, e que, longe de nos tornar cegos, no sentido de uma
ausência de percepção, constitui-se no próprio meio e justificativa em que classificamos o que
conhecemos: “[...] uma classificação das pessoas e coisas que a compreendem [a realidade],
que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis” (MOSCOVICI, 2003, p. 31).
O que é não-familiar parece estar diante de nossos olhos, como sempre esteve, mas
algo mudou, e o objeto não é mais o mesmo, embora ainda seja possível identificar nele a
presença antiga do que nele já estávamos acostumados a ver.
Certamente para os caboclos um lugar reservado, ao menos na condição dessa
sociedade a que se presta tão pouca atenção, segundo Nugent (1993). que se ter porém
que, nessa sua invisibilidade, ele adquire maior atenção que os demais grupos com quem
rivaliza a propriedade de homem original.
3.3 Caboclo é “amigo”
No ano de 2006 realizamos uma entrevista com A., sergipana de vinte e dois anos,
que após participar de um congresso de uma universidade do seu estado decidiu seguir em
viagem para Belém do Pará, e daí para Manaus onde fez companhia para o sobrinho recém-
nascido e família, decidindo ficar na cidade.
Após nosso contato inicial, através de uma comunidade virtual de nordestinos, em
um site de relacionamentos da internet, A. concedeu a presente entrevista.
143
Ela conta que um irmão seu chegou em Manaus em junho de 2004, motivando sua
viagem. Seu irmão, que é mais velho, veio junto com o pai, prestar o concurso para uma
empresa, e após esse irmão ter sido aprovado, o pai retornou.
Segundo conta, A. poderia ter ido para o Espírito Santo, por ter morado por três
meses, porém em Manaus se oferecia algo que na sua cidade, e perto da família, não teria da
mesma forma, isto é, responsabilizar-se por si própria:
[...] hoje eu tenho uma profissão, sou laboratorista fotográfica, agora nem sou mais
laboratorista fotográfica, na minha carteira está laboratorista, agora passei para
operadora de micro em laboratório digital, passei a fazer restauração e tudo...
subiu um pouco na minha profissão...
Em Sergipe teria essa mesma oportunidade, como seria lá?
Até teria, o problema era a faculdade e meu pai não me deixava trabalhar...
entendeu? Se eu arranjasse trabalho faria de tudo pra sair...
Foi mais também pra levar uma vida sozinha, uma vida tua?
É. Crescer... (A. – 12/08/2006).
É o trabalho que define assim as circunstâncias do contato inicial, do que se espera
na cidade, e também das relações a serem construídas aqui, mas, no caso de A., o trabalho
responde por uma parte, e deve ser entendido assim, de sua busca por autonomia longe do pai.
Teu irmão veio para morar aqui, ele continua morando aqui?
Não, ele veio porque a empresa chamou. Primeira oportunidade que ele teve de
ganhar a transferência ele foi embora para a Bahia, ele não gostava daqui. E nenhum
dos nordestinos, nenhum dos meninos que vieram, gosta daqui. Todos estão pedindo
transferência, já estão concursados, vão embora.
O pessoal da empresa que o seu irmão prestou concurso?
É. Meninos da empresa. Todos vão embora. Vai ficar um [...] porque ele vai casar
com uma menina daqui [...] (A. – 12/08/2006).
Surge aqui o caso daqueles que não querem permanecer em Manaus, que têm na
cidade um meio para atingir um fim, e, concluído seu objetivo, se encerra o horizonte a ser
enxergado. Trata-se do dilema atual dos trabalhadores da ZFM, cujo lar ficou distante, e
também dos que procuram vagas ou são chamados para trabalhar em multi-nacionais, e que
uma vez concursados ou com a previsão de seus ganhos, podem voltar.
144
O casamento é então apontado como uma das vias para se permanecer na cidade. A
entrevistada afirma que, de qualquer forma, é complicado manter-se em uma nova cidade,
especialmente para ela que se acha aqui sem a família, e sem os seus amigos da cidade de
origem. As dificuldades começaram principalmente quando seu irmão foi embora, e para
conseguir manter-se sozinha foi preciso, em suas palavras, “força de vontade”:
[...] foi complicado, mas, tranqüilo, quando a pessoa tem força de vontade e quer
vencer, consegue.
Quais foram as diferenças que, de início, você percebeu quando chegou aqui?
O comportamento do pessoal. Aqui tem muita mulher, vamos dizer, que mais
soltas, mais abertas, mais liberais, logo de cara estranhei isso, mulher fala o que
quer, xinga, anda na rua do jeito que quer, a roupa, a coisa é mais reservada,
falam do nordestino, mas não é como aqui.
Está falando também da presença masculina? Lá deve ser uma coisa mais
impositiva, ou não?
É, também. O homem, respeita mais... aqui é bagunçado! (A. – 12/08/2006).
Outra diferença que observa está no modo de falar, que marca um reconhecimento
imediato na cidade, é que pelo sotaque se pode saber quem são os nordestinos e quem são os
manauenses:
[...] quinta-feira passada encontrei com um grupo de baianos que estão aqui na
empresa, hospedados num hotel próximo daqui, dei de cara com eles, eles falaram:
“você é do Nordeste!”.
Como vocês se reconhecem na cidade?
Pelo sotaque. Falou, você já olha. Ele falou não sei o quê com uma menina, a
menina passou, e ele: “ô minha linda!”, quando eu olhei: “é baiano”. “E você de
onde é?”. Ela disse: “de Sergipe”, se tem um sergipano no meio eu comecei a
fazer amizade... (A. – 12/08/2006).
Neste momento da entrevista, certamente mobilizado por uma condução mais direta,
embora não justificada, de conhecer suas representações a respeito dos caboclos, me decido
por antecipar as perguntas mais específicas, o que é feito deixando-me em situação de não
poder questionar esse caboclo colocado, afinal, uma vez lembrado, ele passa a “existir”
para a entrevistada que até então não dava mostras de que iria falar nele espontaneamente.
145
Uma das vias que, se melhor explorada, poderia revelar melhor as representações da
entrevistada está na diferença que observa entre as mulheres, “mais liberais” aqui do que lá, e
sobre os termos que a própria A. faz uso para se referir às pessoas – “daqui” é um deles. Outra
via, espontaneamente citada pela entrevistada, para manter a diferença com a cultura local,
está na culinária. A entrevistada conta que não conseguiu se aproximar de nenhum dos pratos
da culinária local, e que prefere, ao contrário, alguns pratos do nordeste e o acarajé que come
em restaurantes para o público nordestino na cidade.
O que te vem à cabeça, quando eu falo a palavra caboclo?
Eu nunca parei para pensar nisso. Caboclo... logo que eu cheguei aqui, as pessoas
diziam, caboclo? Mana, maninho, achei tão esquisito! Mas eu nunca parei para
pensar. O que vem na minha cabeça: me lembrei de um menino do trabalho, porque
todo mundo ele chama de caboclo, pode ser mulher, homem, caboclo, lembro
dele. Mas não tem nada a ver... (A. – 12/08/2006).
Caboclo aparece como um termo indiscriminado, com que se evoca a figura de
alguém, seja homem ou mulher. A entrevistada vê nos caboclos uma expressão para se referir
a alguém, mas os critérios dessa evocação não ficam claros, nem se definem no momento em
que se aplicam, de modo que não se sabe dizer quando e onde o termo será usado, embora se
saiba para quem.
“Eu nunca parei para pensar...” é a expressão deste estranho que se sabe, mas não se
pensa. Seu lugar é o da curiosidade, que desperta atenção, mas não significa nada além da sua
evidência, no caso do caboclo a idéia de “amigo” ou “mano”:
Você faz uso da expressão caboclo, que significados você escuta, o que você
escuta desde que chegou aqui?
Nunca cheguei a perguntar. Para mim não tem muito significado, por quê? Ter, tem,
porque é amigo...
Amigo?
Sim, é nome que a gente fala, que não tem significado, é próprio da expressão
mesmo (A. – 12/08/2006).
146
José Veríssimo, autor paraense, bacharel em Direito, que no final do século 19 e
início do século 20 dedicou-se ao estudo das regionalidades brasileiras, é citado em um
trabalho oficialmente compilado pelo Conselho Nacional de Geografia no ano de 1966 sobre
os chamados tipos amazônicos. Em verbete então exposto, o autor refere-se a um aspecto
“sentimental” no qual a palavra caboclo designaria a pessoa querida, como um sinal de
proximidade com o outro.
Neste sentido, observado pela entrevistada, podemos chegar a conclusões sobre a
maneira com que os caboclos, quando chamados assim, são inseridos no meio social.
Sabemos que apelidos são termos pejorativos, porém, também sabemos que quando usados
para amigos, tornam-se uma forma de incluir o outro dentro do círculo íntimo. É estabelecida
uma cegueira sobre a condição infeliz do outro, e somente nesta condição específica, ele
ganha a vantagem de ser chamado e aceito por sua condição não aceitá-lo passa a ser
passível de punição, exclusão. Ele se inclui, pelo estigma. Assim, o estigma parece não apenas
excluir, mas incluir. Não aceitar a própria condição inferior, passa a ser estranho para aqueles
nela identificados.
Contudo, um termo feito para não se pensar, conforme acrescenta a entrevistada, nos
indica também, no cuidado desta aproximação, que fora dos domínios estritamente familiares
do diálogo, e do apelido (note-se como um apelido é feito para não se pensar), nenhum dos
identificados como caboclo aceitaria sua definição nesses termos:
Caboclo, se referiria a alguma pessoa ou um grupo particular, ou seria mais
uma expressão também?
É, eu acho que é expressão só pra pôr, parece, para alguém.
E o que é preciso para alguém ser considerado caboclo, para chamar alguém de
caboclo?
Não tem, pior que não tem, o pessoal parece que tem um complô, qualquer coisa
estão chamando, não entendo, não tem o que entender.
É possível que sendo uma expressão, ela continue se perpetuando?
É possível, em Sergipe a gente tem mania de chamar de “mestre”: “ô mestre!”,
aqui é caboclo, tudo “mestre, faz favor!”, e não é caboclo? a gente tem a mania
de chamar de mestre, “grande”, aqui tem a mania de chamar de caboclo, tem essa
ligação entre o nordeste e aqui.
147
Então aqui você não usa, porque o termo que vocês usavam lá não era esse, era
outro?
Era outro, eu digo assim: “ô meu grande vem cá!”. Quando é alguém do bairro,
caboclo eu não uso, porque ainda estou com meu costume de lá, não quero perder
meu costume.
E o que você pensa quando ouve falarem de cultura cabocla?
Eu não sei, porque eu não vejo cultura aqui, é muito difícil... vai procurar uma
cultura, vai perguntar para uma pessoa: “como é a cultura aqui?”. “Que cultura? Ah
é o forró”. Forró é cultura? É uma coisa corriqueira. “Ah, mas aqui é o melhor forró
que tem”. Qual o lugar que dança forró melhor? Porque todo mundo elege o seu o
melhor, claro, mas não é cultura daqui. a ciranda, tudo bem, é cultura, bom, deve
ser quadrilha, cada região tem seu tipo de quadrilha, tem uns que é mais xote, outros
tocam mais xaxado, mas a quadrilha tem que ter tudo, aqui não, aqui é separado,
xote, xaxado, é tudo separado, não, a quadrilha tem que envolver tudo, a cultura
também é isso, está mais nessa parte, agora forró, do que tem aqui, acho meio
cultura da Bahia.
Não acha?
Não, porque se propagou mais lá. Não é uma coisa de lá, nem nasceu lá, nem
tem lá, entendeu? É coisa brasileira também, mesmo jeito que tem na Bahia, sempre
teve em Sergipe, em Fortaleza, muitas coisas boas, que Bahia é mais visado,
cresce mais e leva como se fosse lá... tem o Pelourinho que é um centro cultural
muito bom, aqui tem também uns modelos muito bons, interior que eu fui aqui,
não sei, eu queria alguma coisa como Ouro Preto, que é fantástico, porque é a cidade
inteira, ou então como São Cristóvão, que é a cidade mais antiga do país. Você só
aqueles palacetes, museu, igreja, a casa dos moradores, eles deixam você entrar
para ver a arquitetura, tudo. [...] Até vi alguns prédios aqui no centro, arquitetura,
mas, fechado, abandonado, largado. Complicado!
Você acha que está havendo uma confusão entre aquilo que a gente chama de
cultura daqui, e algumas expressões do nordeste?
É... confunde um pouco porque aqui tem muito nordestino, e cearense, ô lugar para
ter cearense! Todo canto alguém tem parente do Ceará. [...] Mas a cultura daqui é
difícil de você achar, de você encontrar alguém que conheça a cultura daqui,
conversei com um senhor, ele tem uma cultura incrível, conversa com ele, o cara
fala, que uma coisa é você falar e outra é você estar vendo, estar participando da
cultura, e eu queria participar, para conhecer, é bom conhecer, e eu ainda não parei
para conhecer a cultura aqui. Teve agora, um negócio, nem lembro, de festival
folclórico, gostaria até de ter ido ver o festival cultural da Amazônia, abriu lá, e eu
não vi nada de cultural... nada! Lá, uma quadrilha gay, os caras em cima, tirando
onda, eu ri, estava engraçado, mas não é cultura. Aquilo é uma apresentação.
Apresentação como outra qualquer. [...]
Fala dos elementos, na tua opinião, que deveriam haver aqui para ser
considerado uma cultura.
Aqui tem tudo para ser um lugar cheio de cultura. Eu acho que falta incentivo,
cabeça do pessoal, porque não tem incentivo para as pessoas entenderem que um
teatro faz bem, que um teatro é um ótimo programa, eu vou para o teatro, tem
apresentações maravilhosas nesse Teatro Amazonas, [...] falta o pessoal entender,
que a cultura não é o forró... também não é questão de incentivo, não sei se é
educação, a escola devia incentivar mais isso, pelo que eu vejo a educação aqui não
é muito boa, todo mundo tem que admitir, a escola incentiva o aluno a ir para o
banho, mas não incentiva a ir para o teatro [...]
Você acha que o caboclo faria parte dessa cultura, poderia ser incluído nessa
cultura?
Eu acho que até a palavra caboclo é uma coisa cultural. Uma coisa que acabou se
afastando da coisa cultural, com a realidade. Isso é cultura no modo de falar, mas é
cultura também no modo de agir, no modo de pensar (A. – 12/08/2006).
148
Acontece que, quando se alargam as definições e cresce prodigiosamente o círculo de
pessoas a que se pode chamar de “caboclo”, com aspas aqui para indicar que este não é um
homem, mas antes uma expressão, perde-se, ao mesmo tempo, o modelo para definir quem
seriam os caboclos, ou propriamente o que seria um.
Alguns fenômenos da vida cotidiana precisariam ser encarados como tangíveis,
porque os mesmos atributos que nos permitem falar sobre eles são os mesmos que de
qualquer forma asseguram para nós sua existência. E, uma vez garantida sua existência, não é
evitando o seu problema que os mesmos desaparecem.
3.4 As idéias de natureza e cultura nas representações sociais
A idéia de cultura recebe da teoria das representações sociais um tratamento quase
mágico, no sentido de não deixar bem claro qual sua real parte no fenômeno de produção dos
conhecimentos do cotidiano.
A cultura na concepção adotada por Moscovici nos remete a um conceito inclusivo
que subordina à sua estrutura o fenômeno das representações sociais podemos supor, no
entanto, e com base até onde avançamos em campo, que a cultura aparece
a posteriori,
acompanhando o sentido dado pelo primeiro elemento que ancora a representação. Como
vimos no caso do caboclo que é remetido ao índio e explicado pelos termos daquele, a cultura
passa a ser tomada como o contexto geral da representação, ganhando seu sentido pelo sentido
da representação que a antecede e coisifica.
A cultura passa a ser interpretada nos termos em que a representação se define, e se
torna o substantivo da representação.
Definir uma característica como cultural não é “familiaridade” ainda, mas é uma
aproximação para tornar familiar o estranho. A procura por uma explicação cultural continua
expressando o desconforto com certo atributo que no outro parece desagradável, mas é um
149
esboço de uma proximidade que procura tentar encontrar uma forma de rotinizar o contato
com o estigmatizado, de forma a não pensar no estigma.
O teor pejorativo de seus atributos continua evidente, porém se quer pensar que eles,
apesar de incômodos em certas ocasiões, são próprios à pessoa em questão. A cultura é
chamada como uma tentativa de viver com um incômodo social: se não se pode ter aprovação,
a alternativa à exclusão do outro é a sua aceitação.
Queremos, além de tudo, dizer que a idéia de cultura, no seu sentido não explicitado,
pode ser empregada para fundamentar qualquer representação, de modo que, por si mesma,
não teríamos como dizer se ela apresenta um sentido pejorativo. A propósito, Graça Medeiros
(2004) explica a alienação do eu pelo outro, essencialmente, quando a cultura implicada não é
tida como “própria”:
O peso desse imaginário no qual se encontra a imagem deteriorada do caboclo é
evidenciado nas representações dos sujeitos da pesquisa, e assume especial
relevância quando se considera que esses jovens fazem parte de uma geração que
tem acesso a uma quantidade elevada de informações e estas tendem a preencher o
espaço vazio do conhecimento não consolidado. Ou seja, na ausência ou fragilidade
de uma orientação ou formação cultural, o que resta senão reproduzir o que vem
pronto (a cultura
fast food) e que iguala a todos em um mesmo nível de alienação?
(MEDEIROS, 2004, p. 169) [Grifo do autor].
A autora sustenta com isso uma alienação de “fora”, que viria, para não fugir de sua
metáfora, “enlatada” numa série de elementos que não pertenceriam à cultura original, e nem
a uma cultura própria daqueles adolescentes, e seguindo sua argumentação, se diferenciariam
principalmente de um estigma “original”. Ainda que nos distanciemos das oposições
construídas, como “dentro” e “fora”, a que Medeiros (2004) se refere implicitamente, a
vitalidade de sua crítica está em que mesmo os estigmas podem ser entendidos como
produções próprias, culturais, e que quando apropriados de outro contexto, redobrariam a
própria alienação, tornando-a, assim, impessoal.
150
O problema de quando falamos em identidade cabocla é que, seguindo este
argumento, estamos prontos a sugerir ainda a existência de uma “cultura” cabocla, e demais
práticas supostamente caboclas. É o lado estigmatizante da identidade.
As representações sociais não constituem um conhecimento isento, como fizemos
parecer ao investigar se ainda haveria estigmatização nas representações de um grupo sobre
outro. O fato de ser um conhecimento dinâmico, como observado nas entrevistas, não quer
dizer, contudo, que este conhecimento esteja livre de preconceito.
O próprio controle da informação, intensamente exercido pela imprensa, o que por si
mostra o quanto este conhecimento não é livre, atua no sentido de produzir o significado a que
outros terão acesso mediado – a imprensa que associa caboclo e natureza em suas veiculações,
codifica e, ao mesmo tempo, descodifica, a mensagem que tenta transmitir, porque sua
atuação implica igualmente uma disposição de poder:
As decodificações que você faz se dão dentro do universo da codificação. Um tenta
englobar o outro. A transparência entre o momento da codificação e a decodificação
é o que eu chamaria de momento da hegemonia. Ser perfeitamente hegemônico é
fazer com que cada significado que você quer comunicar seja compreendido pela
audiência somente daquela maneira pretendida. Trata-se de um tipo de sonho de
poder nenhum chuvisco na tela, apenas a audiência totalmente passiva. Ora, o
problema para mim é que não creio que a mensagem tenha somente um significado.
Por isso, desejo apostar em uma noção de poder e de estruturação no momento de
codificação que todavia não apague todos os outros possíveis sentidos (HALL,
2003, p. 366)
Neste sentido, podemos ler com outro peso a constatação de Medeiros (2004) ao
descobrir, em sua pesquisa, a televisão como fonte de conhecimento preferencial, em geral
única, escolhida por seus entrevistados no momento de formarem opinião:
A fonte preferencial de informação é a televisão. O que este contexto pode significar
relativamente à produção de representações sobre o caboclo, ainda não é possível
inferir, mas é possível pressupor a existência de condições desfavoráveis ao
desenvolvimento de consciência crítica e mesmo de capacidade analítica em relação
à sua realidade social (MEDEIROS, 2004, p. 94).
151
As representações sociais têm sido até agora teorizadas por conta da questão de como
um saber constituído, legitimado na forma científica, é re-apresentado por um saber leigo. No
caso dos caboclos, entretanto, não esse lugar tão bem definido, porque a sua apresentação
se pelo inverso, do saber do cotidiano para sua representação antropológica, histórica,
jornalística, política, e talvez depois para sua apropriação novamente pelo saber comum.
O lugar do caboclo nas representações sociais não é, portanto, da ordem do disenso,
conforme presente nas discussões científicas, mas do consenso, e da familiaridade buscados
no cotidiano.
Moscovici (1976) separou sua teoria das representações sociais, interessado no
dinamismo com que se produz o conhecimento cotidiano, do correlato durkheimiano das
representações coletivas, mais estático, interessado no modo como um conhecimento dá
coesão a um grupo social. Não podemos afirmar, no entanto, que as representações sociais de
caboclo se beneficiem largamente deste suposto dinamismo.
Acreditamos que a dinamicidade está implicada na maneira pela qual o
conhecimento se reproduz, de modo a não ser pensado, pois o tempo do meio de veiculação
do conhecimento limitaria o tempo para se representar livremente. A dinamicidade estaria,
assim, também na dependência dos modos como se veiculam as representações sociais.
Se Charles Wagley em 1953 ressaltou o aspecto relacional da produção do
significado, atualmente perde-se em parte o contato pessoal, em troca do caráter mediado, e
pronto, dos instrumentos de comunicação. Isto opera uma diferença para as representações de
caboclo, porque não deixa mais o que pensar, perde-se a referência ao empírico que
fundamenta a representação e a separa do estigma.
Acompanhada pela linguagem jornalística, cuja velocidade na produção do
conhecimento precisa operar a passagem do caso, no momento em que ocorre, para a notícia,
152
a representação parece adotar a mesma velocidade, sem dispor com isso do tempo para
questionar o objeto representado. O produto do conhecimento passa a mediar o processo.
Também devemos observar que, na limitação do tempo para a reflexão, a
dinamicidade implica em compreender a totalidade de uma pessoa, sua identidade, a partir de
um elemento que, destacado do contexto, ganha autoridade para representar todo o conjunto.
Assim parece o caso, para os elementos que, separados, não podem nos dizer muito da
história de um objeto, mas que, quando destacados de sua relação com os demais elementos,
ganham autoridade explicativa sobre todo o conjunto da identidade. Culturaliza-se a natureza,
ou naturaliza-se a cultura.
Não nos parece ocorrer uma mudança, esta aparente mudança se dá, ela mesma,
dentro de estruturas conhecidas, para manter a coerência de um conjunto. A idéia está na
necessidade de formar um todo coerente, o que impede que as representações sociais
consigam uma mudança no processo, pois, essencialmente, o que muda pode ser limitado aos
conteúdos das representações.
3.5 O caboclo é “conhecido”
Durante um dia de 2006, o entrevistador visitou uma “rádio comunitária” de Manaus,
para falar sobre seu projeto de pesquisa, conhecendo F., um radialista que, quando jovem,
trabalhou em seringal, e que concedeu esta entrevista, a quarta, pela ordem cronológica da
pesquisa.
Houve um certo receio do entrevistado, de início, pois revelou sua origem
nordestina quando, na apresentação da pesquisa, foi-lhe dito, meio sem jeito, terem sido
entrevistados nordestinos com trinta anos de Manaus (o que naquele momento foi um exagero
do entrevistador que nem chegara perto disso), ao que F. imediatamente prontificou-se a
superar, quase que em repente de vaidade: “pois eu tenho é cinqüenta anos de Manaus!”.
153
Com seus dez filhos já criados, ele hoje mora só, compartilhando a atenção com suas
“duas famílias”, a “biológica” e a do “coração” que inclui também os colegas de rádio e a
“comunidade”, um bairro de Manaus, em que trabalha.
F. desembarcou a primeira vez em Manaus vindo de Sobral no Ceará, em 1953, no
momento da grande cheia
12
que ele presenciou e que narra aqui. “Eu vi acontecer”, é assim
que se refere ao evento. Segundo lembra, andava-se em tablados perto do Relógio Municipal
e Alfândega. Ele contava então vinte e quatro anos de idade. Observa-se que a via de entrada
para a entrevista está no episódio da enchente, e não por temas gerais como “migração” ou
ainda outras evidências a que o entrevistador iniciante estaria limitado pelo método adotado:
Então, de início, essa foi a grande dificuldade que o senhor encontrou aqui na
cidade...
Certo, porque as pessoas têm na cabeça que o nordeste é seco, lugar seco.
Principalmente, o pessoal fala do Ceará: “ah, o Ceará é seco”. Às vezes eu falava
para as pessoas assim: “vai para o Ceará para ver se você não morre afogado lá” (F.
– 2006)
13
.
O critério de entrada da entrevista que poderia ser apressadamente entendido como
geográfico, se revela numa petição de autoridade tendo participado diretamente de eventos
históricos, sendo ele observador e agente, estaria mais apto a falar ou pelo menos tanto quanto
aqueles que aqui vivem. Ele recorda o crescimento da cidade, o surgimento de novos bairros,
o fim do tempo dos ônibus de madeira, o fim do seringal em que trabalhou: este é o sentido
dos “cinqüenta anos de Manaus”, exigir ser parte da história.
Outro aspecto de sua viagem e que nos chama a atenção é que Manaus não pode ser
considerada como seu primeiro destino, porque após desembarcar na cidade F. viajou para
trabalhar em um seringal de Rondônia:
______________
12
Em Manaus, o nível do rio Negro indica os períodos regulares de “cheia” e “vazante”. A cheia de 1953
não foi a única de grande proporção, tendo sido precedida pela de 1922.
13
A data desta entrevista não pôde ser recuperada, mas remonta ao período de realização das primeiras
entrevistas no ano de 2006, sendo provável entre os meses de março e abril.
154
Fui seringueiro em Rondônia! Plantei seringa.
Em que período?
Na seringa, doze anos.
Doze anos, mas em que período, em que década?
Nesse mesmo período que eu vim para Manaus, cheguei aqui em março de
cinqüenta e três, saí daqui em junho, eu fui para Rondônia, fui para o seringal,
que eu passava um ano lá, e vinha para cá, ou para o Ceará, nunca passei mais do
que umas três ou quatro vezes lá no seringal (F. – 2006).
Àquele momento Samuel Benchimol captura a cena do porto na chegada do
contingente nordestino em Manaus, passagem obrigatória para o trabalho nos seringais.
Porém ele mesmo interpreta a migração em torno da necessidade que os nordestinos teriam,
forçados pela seca, a buscar asilo em outra região.
Na idéia de migração assim se toma como certo associar pessoas a palavras,
considerar a ação definindo o sujeito, além do que se deixa de questionar supostos achados
que contrabandeiam julgamentos morais para o domínio da ciência. A propósito da entrevista,
se pode ver, por exemplo, como a idéia de necessidade deve ser posta em suspenso, como um
desses julgamentos rápidos. O combate à idéia de necessidade se faz necessário para se evitar
que o senso comum passe despercebido para o campo da ciência, e deixe de ser questionado
através de teorias que não fazem senão legitimar julgamentos morais quem chamaria um
paulista de retirante? Ele continuaria sendo um migrante na outra terra, a exemplo dos
nordestinos?
Se para os nordestinos de Benchimol esta conclusão podia estar situada em um
contexto, no caso do entrevistado não. Mesmo tendo dito que sua intenção primeira foi a de
trabalhar em Rondônia, F. ressalta que sua viagem não deve ser entendida como uma
“necessidade”, e nos propõe evitar essa interpretação: “É porque as pessoas às vezes pensam
que o nordestino vem para por causa de necessidade, pode até alguns virem por causa de
necessidade, mas eu não, eu vim por curiosidade mesmo” (F. – 2006).
155
Essa “curiosidade”, segundo F., foi alimentada pelas histórias que ouvia sobre os
rios, a floresta, porque segundo explica, não havia mais florestas a conhecer no Ceará, nada
assemelhando ao que ouvia do Norte.
Durante a entrevista, F. não fez distinção entre caboclos e índios, ele conclui que
para os nordestinos não faria diferença falarmos sobre índios:
Poderia ser um índio?
Caboclo é índio?
É. Caboclo, por si mesmo, se falar para o nordestino, ele conhece como índio (F. –
2006).
Da sua experiência com os índios, ou caboclos, porque os dois seriam o mesmo, está
bem presente que entre eles e os nordestinos não há o que chamaríamos “mistura” numa certa
interpretação comum. Quando F. comenta o que chama de “unidade na diversidade” para falar
que os caboclos mesmo diferentes fazem parte do mesmo país e são tão brasileiros como
outros grupos, ao mesmo tempo é certo para ele que nordestinos e caboclos estariam
visivelmente separados de modo a não haver confusão entre as duas identidades:
Nordestinos e caboclos, em quê eles se parecem na sua opinião?
Não sei, não sei dizer em quê eles se parecem... porque cada um tem uma cultura
diferente... o físico também é diferente... o nordestino é diferente do caboclo... onde
tiver o nordestino, se tiver um caboclo e um nordestino você sabe quem é o
nordestino e quem é o caboclo... (F. – 2006).
Durante o período de aproximação com o campo, a conversa com F. tornou-se
pessoalmente elucidativa para o pesquisador, no sentido de trazer a lembrança de um avô
cearense, há muito falecido:
Então, sobre o caboclo o que o senhor teria para falar?
O caboclo, caboclo mesmo, o amazonense, ele é diferente. Você, você não é
caboclo... você tem alguma coisa de nordestino. Não tem?
Meu avô era do Ceará.
Exatamente...
Tenho o queixo quadrangulado...
156
Exatamente, é conhecido. O que eu tenho a dizer do caboclo é que ele é conhecido
(F. – 2006).
Ainda assim é um erro reduzir uma identidade a algumas características gastas, que
ao serem encontradas nos confundem a achar que há sinais privilegiados na representação dos
grupos, quando de fato não.
Ser conhecido não resolve o problema, mas traz dificuldades para que a
representação dos caboclos se assente sobre outro fundamento que não o preconceito se os
caboclos já são conhecidos entende-se porque a permanência de idéias que se tornam comuns
sem que se tenha o trabalho de questioná-las; estar fora de questão parece a autoridade do
estigma e das identidades baseadas no estigma. Por mais que o significado mude no caso dos
chamados caboclos o estigma continua atuante se o sentido não mudou.
O ser não se deixa questionar diretamente, senão através de um conjuntos de
elementos com os quais ele se mostra no seu movimento, isto signfica que porque existimos o
ser não permanece o mesmo. Não se pode entretanto questionar, isto é, fazer sentido, o tempo
todo. Parte do que nos revela a procura por sentido na vida está em nos “perder” num mundo
de conceitos anteriores dos quais tomamos a orientação para agir.
Se Moscovici nos fala das representações sociais como este processo de fazer do
novo algo familiar e “ancorar” este saber estranho no conhecido temos que considerar o
lado não tão nobre deste conhecimento que enquadra e define antes de conhecer. Ou melhor,
que “já” conhece.
Uma vez ainda o tempo se torna a medida do processo de conhecer porque um
conhecimento que acompanha as mudanças rápidas e por isso bruscas com que as notícias se
sucedem precisaria também ser capaz de se redefinir rapidamente. O que não o torna um
conhecimento superficial, este o segredo, mas um particular e complexo processo constituído
para fazer do estranho e do familiar uma unidade coerente.
157
Quando se faz do estranho e do familiar uma unidade, se perde de vista o que de
realmente estranho, e por fim, por não se tornar completamente familiar, se faz do estranho a
margem não refletida nos limites da qual se definem os outros de quem se fala. O que não
participa do que é imediatamente visível ou compreensível se perde para esse estranho, essa
margem que tudo engolfa pela obscuridade.
O que não se entende fica sem explicação, ao ser ancorada, a interpretação tem que
estar completa, se algo não pode ser reduzido pela explicação então é ignorado como algo
incompreensível, não é visto como parte do mesmo objeto e passa a ser em si mesmo um
atributo separado. Toda representação cria as condições do aparecimento dentro de si de um
conteúdo não explicado e não inteligível, que atua como reserva de sentido sempre que não se
encontrar lugar para alguma coisa. É o lugar destinado ao contraditório dentro da
interpretação, que ajuda a fazer do todo um conjunto permanente. Colocar os dois lado a lado
na interpretação é romper com a ordem que as representações procuram passar.
Deve-se atentar para os conceitos escolhidos pelo modo como estes se revestem de
autoridade científica para falar de um conhecimento consensual. Quando se faz da noção de
senso comum um objeto de análise deve-se distinguir o quê está por ser analisado, e se
certamente a parte do conteúdo é a parte ôntica, a parte do objeto mesmo, temos que ter a
atenção para o que é estrutural. Nota-se a estrutura e o conteúdo lado a lado porque aquilo que
muda, que se vive, que se pensa sobre, parece no entanto a parte mais última de um processo
que começa bem atrás, que, no caso de F., define significados diferentes para nordestinos e
caboclos sem que ele até perceba que é apenas mais um de muitos que poderão repisar o
mesmo conceito indefinidademente, isto é, o conceito de caboclo como o homem que não
fala:
Na personalidade, a diferença é porque o nordestino é um cara aberto.
Comunicativo. O caboclo não. Mais fechado, ele tem aquela conversa para ele,
158
entre ele mesmo. A não ser comigo porque tive a felicidade que logo eles fizeram
amizade comigo.
E o que o senhor fez para conquistar essa amizade?
Não sei, mas eu conquistei a amizade deles, eles gostavam de mim, eles gostavam
mesmo (F. – 2006).
Não se pode referendar, apenas com esta observação, por mais que ela se baseie em
fatos vividos, que nordestinos e caboclos tenham definições bem asseguradas – isto seria fazer
da identidade um substituto para o trabalho interminável de existir.
A aparente espontaneidade dos nordestinos, ou a reserva dos caboclos, nada em si
garante seu lugar, mas ainda assim persistem essas definições porque não estamos tratando
senão de identidades já “conhecidas”, e afinal o que restaria a dizer sobre o já conhecido?
Chama a atenção no entanto que essa característica dos caboclos que F. conheceu, de
serem pouco comunicativos, é relacional, o que nos situa uma pequena diferença da
representação comum. Logo não se aplica a todo caso que os caboclos estejam fora do
convívio social. Estes caboclos que F. conheceu têm amigos, os escolhem talvez, e se
tornaram amigos do entrevistado; não é o mesmo caboclo “do mato”, representado em geral
como o “arredio”; porém, F. permanece sem saber o que sucedeu para serem amigos, a
racionalidade dos caboclos em certo sentido é deixada em aberto, seria um capricho, seriam
eles dotados enfim da possibilidade de escolherem seus amigos, ou isto seria, enfim, um
acaso?
3.6 Um tipo de índio: ancoragem da representação de caboclo
Tem-se uma interpretação específica, e também a disposição para ver neste
argumento uma evidência na qual os caboclos são situados historicamente como um produto
imaginário, uma construção alheia, feita por colonizadores, sobre um grupo de descendentes
de “índios” com “brancos”.
159
Resolve-se a questão pela busca de uma ordem cronológica para os termos: primeiro
seriam os índios, explicados neste contexto como os habitantes originais, e os caboclos como
uma gente secundária, nascida de uma mistura.
É preciso, para assegurar esta ordem, que se interponha entre índios e caboclos uma
transição bem definida como níveis que se sobrepõem em uma escala e aceitando esta
premissa, há os que questionam que valor se deve atribuir à mesma, se por fim é boa ou ruim.
O caboclo de qualquer forma não é visto como índio, mas apesar disto se recorre ao
“ancestral comum” na esperança de garantir-lhe um “solo” epistêmico ou pelo menos algo
que explique suas supostas qualidades, como a sua suposta qualidade de homem “rural”, “não
civilizado”, alheio às realizações materiais de uma sociedade chamada moderna.
O outro ponto de vista que pretende uma espécie de valorização dos índios e
caboclos como grupos “originais”, diz que é pela entrada do conceito de “civilização”, e pelo
ingresso no mundo “branco”, que o índio se torna um alienado: “O índio que se civiliza anda
para trás, retrocede culturalmente. Integrado, torna-se um paria”, assim se expressou Noel
Nutels em entrevista comentada por Djalma Batista no artigo “Brancos e índios na formação
da Amazônia”, publicado em Amazônia – cultura e sociedade (2003, p. 168).
O caboclo que perde seu passado em comum com o índio, que se desvincula dessa
cultura mais arcaica, e uma construção específica de argumentos que procura justificar
essa explicação de origem (VERÍSSIMO, 1970), não rompe totalmente como se procura
deixar entendido. Os elementos de identificação do índio são evocados também a propósito
dos caboclos. Na entrevista com F. sustenta-se a defesa de que ambos estão ligados de tal
modo que não seria possível distinguir:
O caboclo, o senhor disse que pode ser confundido com o índio. Seriam o
mesmo, índios e caboclos, ou eles têm diferenças, o que o senhor observa?
Caboclo, acho que se eles estiverem juntos, assim, dois ou três índios, dois ou três
caboclos, qual é o índio, qual o caboclo daqui? Não tem diferença (F. – 2006).
160
A mudança no conceito de caboclo observada por P. e C., nas entrevistas anteriores,
é aqui ignorada, F. não tem, em certo sentido, aquilo que pensamos ao entrevistar os
chamados nordestinos, uma interpretação “de fora”, sua referência para definir os caboclos
continua sendo o seringal. Ele fala dos caboclos com quem conviveu no seringal, de pessoas
reais (e não poderiam ser outras).
Assim, para F., índios e caboclos não mudam, não se sucedem, são um ontem e
hoje, e até mudam, mas no que deixam para trás e que não podem reproduzir na nova vida – o
hábito, a cultura, uma identidade, todo um patrimônio tido como seguro, que se ganha, se
perde, aumenta e diminui, ou mesmo se troca.
Quando perguntado sobre se alguma coisa havia mudado entre os caboclos ou índios
com quem ele conviveu, e os de hoje, F. responde:
Eu acho que hoje mudou muito, [...] hoje tem índio na universidade, nas faculdades,
tem sim senhor! Agora uma coisa que ainda não me entrou na cabeça, foi o índio
da selva, ele tem um estilo, quando ele é militar tem outro, a mesma pessoa que é lá,
tem um estilo, aí muda na cidade... [...] (F. – 2006).
O caboclo não deixa de revelar uma “natureza” sua, que o entrevistado admite como
conhecida, e a mudança, qualquer que seja, mesmo acompanhando os tempos diferentes,
não é vista senão como algo incompreensível a esta identidade, porque parece ameaçar o lugar
da definição segura.
Se temos na representação uma re-apresentação segundo Moscovici (1976) não
podemos a rigor considerar o ponto de vista de F. como “representação”, a menos que nela se
apresente algo de novo que provoque ruptura com antigas formas de interpretação, mas sem
esquecer que o novo também pode servir para reforçar o velho.
A partir do conceito de ancoragem de Moscovici entende-se que um objeto antes
estranho torna-se familiar pela adoção de um modelo que lhe empresta sua seguridade.
161
Que modelo anterior parece atuante na maneira de F. representar os caboclos que
afirma ter conhecido no seringal? Aparentemente é porque não se conhece e não se pode
definir com facilidade um caboclo que se recorre à descrição já existente do índio para
entender o caboclo. Contraditório que seja exatamente porque os caboclos são conhecidos
que se perca de vista “quem” eles sejam.
É como se a primeira representação exercesse um poder com base no qual todas as
outras tentam se aproximar posteriormente, buscando legalidade.
Se caboclos e índios compartilham para o observador atributos em comum, se o
caboclo pode ao menos sob certos aspectos ser comparado ao índio, se ele pode ser definido
pela comparação com o índio, os dois termos são postos em relação direta, e rapidamente o
caboclo se torna um tipo de índio, mais que isso, depois da operação finalizada, a própria
distinção não se torna mais necessária.
Ocorre um problema neste aspecto conservador que as representações sugerem, pois
não se pode defender que elas sejam da forma como Moscovici (1976) tenha pensado, isto é,
um meio de transformação da realidade.
Pode-se argumentar que F. apresenta uma representação datada, e é por ser
endereçada a um momento particular, do trabalho nos seringais dos anos cinqüenta, que a
representação ultrapassa o próprio entrevistado e fala antes e através dele. Mesmo que a
entrevista tenha se realizado em um tempo, a representação nos remeteria a outro, vivido pelo
entrevistado, e que não se conta pela passagem das décadas mesmo que as mudanças sejam
inegáveis, porque obedecem a uma construção anterior, intocada em seu lugar inquestionável
de identidade.
Este processo de ancoragem do novo, precisa, portanto, de um suporte na realidade
familiar. Quando o não-familiar precisa ser “ancorado”, parece-nos que é ao conceito
dominante que se recorre para fazer a passagem do objeto estranho ao léxico familiar. No
162
caso dos caboclos, as representações sociais primeiro se aproximam de uma representação
consensual já existente, e é como se em torno de uma representação tida como legítima, outras
precisassem se amparar não se como um processo direcionado, como representação de
um objeto: o próprio objeto e sua representação se dão um pelo outro, estando a própria
representação recriando a si mesma, disputando sua inclusão na ordem do consenso.
Na tomada do caboclo como um termo em especial, uma identidade positiva, persiste
uma interpretação de fundo evolutivo, com base na qual se supõe um processo de transição
inevitável. Como parte desse processo, a aparente separação entre caboclos e índios pertence à
idéia de que entre os dois acontece um salto histórico, idéia de fundo evolucionista,
orientando tal transformação: hoje os caboclos, depois algo além. Perde-se de vista que, a
princípio, o que define um, serve ao outro, aproximando ambos a um conjunto de elementos
bem “conhecidos”, portadores de uma suposta autenticidade. A entrevista com F. se mostra
particularmente válida para se pensar os critérios pelos quais o caboclo, continuamente
ressignificado, permanece representando o “morador tradicional”, o “homem da região”.
CONTEÚDOS DA REPRESENTAÇÃO COMUM
Na fábula A cigarra e a formiga, em que pese hoje ser conhecida como literatura
infantil, podemos encontrar uma comparação simbólica que nos permite entender o que está
colocado nas representações de nordestinos sobre caboclos.
É de chamar a atenção como estórias repetidas por séculos de transmissão oral se
somam ao quadro de representações para as quais estaríamos dispostos a pensar não haver
nada de mais original e próprio nosso. Não seria um fato comprovável empiricamente que os
nordestinos são mais “trabalhadores”, e os caboclos mais “acomodados”? não se trata de
fábulas, mas de entender o já entendido, e repetido, geração após outra, sempre porém,
permitindo às identidades assumir roupagens novas.
O conteúdo das representações não deve nos iludir com seu aspecto cognitivo
aparente, elas não são menos morais que as fábulas, e nelas, como nas estórias que se conta
para servir de lição, sabe-se que o destino menos afortunado recai sobre o preguiçoso.
As conseqüências para os caboclos de não serem um grupo, organizado enquanto
resposta à estigmatização, mas somente pessoas que, no estado isolado estão desprovidas da
manipulação da própria representação, aparecem desde já na distribuição dos lugares sociais.
Como é dado aos caboclos participarem socialmente, se não são vistos num
“trabalho” formal, porém apenas ocupados com atividades que, a rigor, não se encaixam na
definição estreita de “produção”, como caçar, pescar, cultivar o roçado?
No conjunto coerente das representações sociais assim fundadas, um conceito de
caboclo aparece em relação a alguns argumentos bastantes que, como numa ordem sem
começo ou fim, justificam-se mutuamente no trabalho de não deixar nenhuma pergunta sem
resposta, nenhuma lacuna sem preencher, e o resto inevitável é purgado, porque o significado
não cobre tudo, todo o tempo.
164
O sucesso dessa significação está de modo a não levantar dúvida sobre o significado,
e a diferença não resolve o problema da incerteza em que o ser caminha.
No limite da significação, o objeto escapa, e perde o sentido de coerência do
conjunto, passa para o outro lado como o que não foi respondido, o que não se sabe, o
incompreensível. Estes elementos a partir dos quais se poderia ganhar o sentido do todo,
porque eles permanecem no lugar do estranho, "não familiares", são tomados como a exceção
sem importância.
A propósito, o caboclo em si, já se acha na condição de não-familiar, os entrevistados
afirmam não ter contato anterior com esta expressão a não ser de modo rápido, e com outro
significado. No Amazonas, o termo possui uma extensão de usos, que podem ser empregados
para falar do homem real, ou também de uma identidade, podem estar presentes na
conversação para chamar um amigo, mas também para hostilizar o outro. Dentro dessa
variação de usos, parecem não familiares num primeiro momento, para depois serem
entendidos dentro dos critérios já familiares para os nordestinos.
Como a representação é na verdade uma re-apresentação do objeto, devemos realizar
sua crítica a partir dos elementos perdidos, dos seus pontos de junção forçados entre o novo e
o velho, de onde elas tiram sua coerência no tempo e que lhes permitem reduzir o estranho.
Foi neste sentido que se procurou dar atenção aos conteúdos das representações, uma
vez que eles se atualizam a partir de variações de idéias já existentes.
As “re-apresentações” de caboclo, ao longo da história, parecem deixá-lo, a cada
mudança observada (para lembrar de sua definição conhecida), no lugar de onde teria “saído”.
O caboclo permanece um estranho, mesmo quando “familiar”.
A designação de “homem da terra” que empregamos, e que os entrevistados aceitam
para se referirem aos caboclos, não é a garantia dessa familiaridade ser o homem da terra,
conforme nos foi mostrado, não assegura aos caboclos freqüentar os mesmos lugares que os
165
nordestinos, ou receber expectativas mais favoráveis. Seu lugar, o “mato”, continua sendo o
lugar distante, incompreensível, de modo que eles estão do lado “de fora”, daquela que, na
representação, é colocada como sua “terra”.
Os caboclos são definidos pela proximidade com o mato, a floresta, numa divisão
entre urbano e rural, depois numa oposição entre centro e margem. Se o caboclo é visto como
o homem do mato, o chamado homem da floresta, na cidade, porém, sem a referência de
urbano e rural, a transposição é feita para centro e margem e o caboclo é visto como o
morador da Zona Leste.
O caboclo, mesmo quando localizado na cidade, não é tirado do seu contexto, as
mesmas oposições que o delimitam como este homem do “mato”, passam para a realidade
urbana em outras oposições: se no “campo” são definidos como o homem do mato em
oposição ao da cidade, na cidade a oposição entre centro e margem reserva ao caboclo o lugar
do pobre que não freqüenta os mesmos espaços públicos, o morador da periferia.
As mudanças, então, podem fazer parecer que o estigma está anulado, mas este
apenas prossegue, substituído por outro.
O caboclo é superado neste processo de “re-apresentação”, mas como ponto de origem
que se desloca não para trás, mas por se tratar de um processo de memória, sempre para mais
adiante. A memória, assim, ajudaria a escapar ao preconceito, preconceitualizando.
Poderíamos questionar se não é pelo fato dele se tornar identidade que sua origem é
sempre representada como “perdida”, afinal, a origem parece sempre adiada.
Observamos, conversando com nossos entrevistados, que os estigmas atingem
diretamente também aos nordestinos na cidade, em identidades usadas em sentido pejorativo
como “cearense”, ou “paraíba”, e que, assim como no caso dos caboclos, um movimento de
valorização parece em curso, de modo a legitimar, para os assim chamados nordestinos,
também um privilégio na cidade, na idéia sempre freqüente de que qualquer estudo sobre a
166
formação de Manaus deverá levar em conta, dispostas em expressões corriqueiras, as
chamadas “importância da participação nordestina”, “contribuição nordestina” ou “influência
nordestina”.
Os chamados nordestinos também se acham inferiorizados pelos seus “outros”
superiores (paulistas, sulistas), assim como no caso dos caboclos, onde parte da conquista do
direito de barganhar, está em obter vantagens na condição de assumir-se “menor”.
O que pensamos a respeito de identidades, de início, porque motivados por
definições leigas, não se confirmam de posse deste trabalho. A idéia de que grupos
supostamente “de fora” teriam como escapar ao preconceito nos parece então reduzir a
questão ao seu aspecto mais exterior. Vimos, ao contrário, que nordestinos podem ou não,
contribuir com uma visão não estigmatizante, e algumas vezes, dependendo da posição que
ocupam, até contribuem para excluir os chamados caboclos, dos atributos, profissionais
inclusive, que guardam para si mesmos.
O caboclo que achamos aqui não é o mesmo que se vai encontrar na definição como
termo pejorativo, mas um caboclo que se apresenta após a década de oitenta, onde nos foi
revelado o programa político de fazer dele uma qualidade, e ainda em um período cuja ética
de mercado tem mais a render com esse homem puro na massificação das propagandas,
entocado na sua fibra de homem da terra, do que nele enquanto resto negativo da invasão. O
caboclo como ofensa parece mencionado somente por aqueles que, mais tempo em
Manaus, relembraram a representação ora dominante de “homem do mato”.
Como fossem construções da realidade, o que mostram as cerca de nove entrevistas
aqui descritas, é que quando as pessoas falam, e mesmo que falem do mesmo objeto, suas
palavras são carreadas por representações que as tornam, de uma vez, reprodutoras e criadoras
daquilo que falam. O caboclo de um entrevistado, ainda que traga os elementos de uma
interpretação comum, não será o mesmo caboclo de outro entrevistado, o que mostra a
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necessidade de buscar o que é particular de cada experiência, de cada história que nos foi
contada. O que, nos parece, vai contra a interpretação predominante nos trabalhos com
representações sociais, nos quais esta referência ao particular é perdida em favor de conceitos
que reduzem a interpretação ao caso geral.
Este foi o risco inicial desta pesquisa que ao escolher o caboclo e o nordestino como
temas, deixou-se de lado, ao menos por um momento, a qualidade de representações desses
termos, que põem em jogo uma série de elementos de significação, de modo que não se pode
dizer caboclo e nordestino, assim no singular. Quando se nomes para as pessoas, e as
entendemos por estes nomes, as coisificamos.
Passamos então, ainda, a pensar que falamos do mesmo caboclo, de um caboclo que
vai se repetir em todos os relatos porque o nome em comum produz uma idéia de semelhança.
Como se pode ver aqui, a representação de cada entrevistado nos conduz a caboclos
diferentes, porque retirados da multiplicidade da experiência concreta, no trabalho, na
vizinhança.
Ao falarmos em caboclos, e pelo tanto que usamos este termo para nos referirmos a
pessoas, com freqüência passamos a acreditar que elas podem ser agrupadas de acordo com
algumas características próprias e outras não tão próprias.
Dividir os dois é necessário para que não se case a pessoa e a representação social
feita sobre ela.
Falar em nordestinos igualmente dá a impressão de que eles se afirmam enquanto um
grupo em Manaus, na verdade a denominação de nordestinos é evocada em circunstâncias
específicas, quando eles se unificam em torno de manifestações para marcar diferenças:
aparecem então contextos nos quais é possível falar em “nós”.
Outra das dificuldades do trabalho assim está na tentativa de unificar os entrevistados
dentro do signo comum de nordestinos, enquanto os mesmos apontavam para outros critérios.
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É preciso ver o que lhes dá unidade em Manaus, expressões como “cearense”,
“baiano” unificam e dão a identidade. Nordestino, por sua vez, aparece a propósito de
situações bem localizadas, a respeito de realidades que se evocam para falar de atributos em
comum, como “trabalhador” e “alegre”, por oposição às qualidades regionais, não é portanto
algo que fale por pessoas, mas uma garantia de diferença na cidade.
Os nordestinos não são nordestinos todo o tempo, não precisam de nomes para
acompanhá-los, o rótulo de nordestino não é a prioridade deste reconhecimento, mas o
conjunto de expressões próprias que marcam esse lugar em comum, e dentro do qual
sinalizam uns aos outros sua identidade no dia a dia: no sotaque, o modo de falar arrastado ou
falar cantando, através de práticas específicas, na culinária, nas expressões ditas culturais.
Considerar assim o problema, também nos serve para relativizar as concepções de
brancos e índios, com que se observa ser feita uma oposição aos caboclos.
Se não é possível identificar os portadores de estigma pelas qualidades atribuídas,
temos que renunciar à aceitação do valor das explicações históricas que tomam o termo
caboclo como entidade suficiente a criar uma linha de continuidade em momentos diferentes.
Os que entendem o objeto pela sua história desconsideram, nessa vertente interpretativa, que
conceitos não geram conceitos, e que a contigüidade observada nos laços de sangue, a que se
atribui o peso de miscigenação, não atribui ou sustenta por si a estrutura de significados
necessária para dar sentido quando se fala em caboclos. Esta, só pode ser encontrada no modo
como as pessoas falam e ao falarem põe em jogo os significados atribuídos aos entes
humanos.
Não temos que pensar quem seriam os “índios”, ou quem seriam os “brancos”, mas
que os nordestinos, às vezes, dependendo de sua posição, podem se inscrever no papel de
branco. Assim, os caboclos podem ser simplesmente “os outros”, porém os outros, para os
caboclos, também não apresentam posições asseguradas.
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Interessou-nos, ao final, falar em nordestinos e caboclos, mas pela maneira como as
pessoas manipulam suas apresentações diante de outros, não exatamente uma teoria dos
papéis, entendidos como entidades separadas dos sujeitos, mas o modo como se articulam as
representações feitas sobre os outros, e principalmente, para os outros.
Por isso não intencionamos mais falar em identidades nordestina e cabocla, como a
princípio, pois se tivermos que discutir como ambas as identidades se “encontram” na cidade,
nossa resposta seria: não se encontram.
Sempre na condução das entrevistas, pelo fato de que os chamados caboclos não
pertenciam ao círculo comum dos entrevistados, tivemos que introduzir a expressão de acordo
com determinadas associações aos temas trabalhados. Por vezes assim, tivemos que associar
caboclo à expressão homem da terra, para indicar que estávamos falando de pessoas ou de
grupos que poderiam interessar ao entrevistado.
Em todo caso, mostrou-se que, ao contrário das elaborações teóricas e associações
prontas em que se possa confiar, os caboclos na cidade não se acham próximos dos que se
definem nordestinos, não é este o caso. A não ser para aqueles que, por conta do trabalho, ou
pela necessidade de manter contatos mistos, dizem conhecer alguns caboclos.
Também nos deparamos com uma ambiguidade, muito encontrada em trabalhos
similares: pode-se perceber duas interpretações correndo paralelas nas representações de
caboclo, e de acordo com a disposição enfrentada, de hostilidade ou de aceitação, ambas
podem entrar em cena a qualquer momento, como justificativas da representação.
O caboclo, pode-se dizer, possui uma definição para ele, algo que o explica e o
situa, com passado, identidade e mesmo uma imagem prontos. O que os entrevistados trazem,
no entanto, fala a respeito de uma apropriação, algo que não cessa de ser reinterpretado, e que
preferimos conhecer com os seus próprios elementos.
170
De acordo com uma posição muito particular na produção antropológica, o termo
caboclo deveria ser abolido do léxico dos trabalhos acadêmicos uma vez que sua definição,
para homem “do mato”, caipira, seria um termo pejorativo usado por outros que não os
sujeitos assim identificados.
Foi possível, no entanto, identificar ao menos dois sentidos da palavra sendo
evocados, sentidos que parecem rivalizar pela representação dos caboclos: o caboclo como
termo depreciativo, de um lado, e como identidade a ser assumida, de outro.
As experiências, trazidas pelos entrevistados, nos lembram que o mundo das coisas e
pessoas não pode ser entendido sem ter em conta que as representações estão para
emprestar-lhes uma ordem.
Assim foi preciso identificar em que situações os caboclos poderiam ser evocados
tanto como termo pejorativo quanto identidade.
De fato, a experiência das entrevistas, esta reunião de histórias que se toma para falar
de um tema, pode nos levar ao uso de uma faca teórica que opera cortes guiada pela vontade
do entrevistador, levada pelo seu senso estético no interesse de erguer uma ordem de coisas
que sempre será arbitrária uma vez que os cortes aparecem na dependência de um autor que
os modela. Acaso não se tenha cuidado com definir os contextos específicos em que as
representações aparecem, se perde o que há de particular nas entrevistas, e voltamos ao
momento anterior às mesmas.
Não se pode entender, em conjunto, todas as entrevistas, porque as representações
podem parecer contraditórias em uma reunião de casos separados. que se entender,
portanto, os contextos nos quais os elementos lembrados pelos entrevistados ganham sentido
explicativo, e os entrevistados podem falar de suas expectativas em relação aos caboclos.
Neste momento, um problema se apresenta ao falarmos aqui sobre o conteúdo das
representações, pois sua investigação não substitui a descrição dos processos, e é por estes
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que se deve começar em qualquer situação. O objeto da representação precisaria
necessariamente ser conhecido no processo mesmo de sua construção, do contrário corremos
sempre o risco de naturalizar o conteúdo, tomando-o como a representação acabada, e
continuamos, ainda mais, à porta de entrada do fenômeno.
Nossa primeira recusa em tratar dos conteúdos das representações sociais está,
portanto, na pouca atenção que se reserva comumente ao processo de sua construção,
momento que reside ocultado em sua forma expressiva.
De qualquer modo, um conhecimento de consenso emergiu ao reunirmos as
representações apontadas, quando definimos os elementos comuns presentes nos esquemas
interpretativos:
a) Terra da abundância uma das idéias retomadas pelos entrevistados e que nos
parece hoje estar relacionada ao passado em comum de nordestinos e caboclos
está no que se pode chamar de “terra prometida”. A terra é aquela para se
reclamar a posse, a terra em que todos os sonhos têm lugar. Para o nordestino que
sai da sua “terra”, isto é, daquele conjunto de experiências que se toma pelo que
se pisa, esta é a realidade que se abre à frente, e pelo que se aceita deixar o que se
tem e começar novamente. Veja-se a respeito o relato do livreiro P.: “[...] aqui,
onde se vai, se ganha dinheiro... não é assim, em Fortaleza há muitos pedintes,
aqui é como se fosse a ‘terra da abundância’” (P. – 20/01/2006).
para C., sociólogo e presidente de associação de nordestinos, o problema da
terra prometida parece estar em que ela não responde por tudo, desde que não
pode dar conta de tudo que se busca:
Pretende se estabelecer definitivamente em Manaus?
Não.
E por quê?
172
Sou um sonhador, quero ir em busca de novos horizontes (C. – 23/01/2006).
A idéia de terra prometida, no entanto, não deve ser confundida com seu
correlato na literatura, pois, para os entrevistados, este não parece um conceito,
mas uma conclusão a ser tirada: é que a relação com a terra não é a mesma para
nordestinos e caboclos.
Para os entrevistados, parece incompreensível que os “daqui”, morando numa
terra tão “rica”, ainda tenham necessidades a satisfazer, pois estes moram na terra
que os outros ainda almejam conquistar. É como se o caboclo, na condição de um
dos homens da terra prometida, aquele que pode ser chamado de “autêntico”,
para quem os segredos da floresta (ocultos aos nordestinos) se revelam em
detalhes, tivesse como obrigação sorver ao máximo os recursos que, por
natureza, seriam seus.
Não há para o caboclo o direito de falhar, porque morador de uma terra que a ele
se confunde, enquanto que, para os nordestinos, como homens “fortes”, saídos do
sertão, da terra sem as mesmas possibilidades, a tarefa de encontrar os meios de
sua sobrevivência está por sua conta.
Onde é melhor de ganhar a vida para nordestinos e caboclos?
Isso está muito associado a destino... se você encontrou sua terra prometida,
conseguiu se adaptar, essa é a vantagem do nordestino (C. – 23/01/2006).
Na entrevista intitulada “Saindo da toca”, no primeiro capítulo, surge assim uma
ligação com o caráter de homem “trabalhador” do nordestino, e também do
homem que atende ao chamado do “destino”, que procura por novas
possibilidades, porque assim os nordestinos estariam em vantagem na adaptação
a qualquer terra;
173
b) Nordestino como um “forte” um elemento para se pensar a diferença entre
nordestinos e caboclos está em que, ao contrário do “homem forte”, o caboclo
está em um meio que o deixa resignado a viver preguiçosamente em razão da
fartura de tudo o que precisa. É a conclusão a que R. chega a respeito dos
caboclos: “Porque eu acho que é um pouco advindo da cultura indígena mesmo,
daquela coisa de subsistência. O cara tem ali, para aquele mês, ele não está muito
preocupado, não sei se é observação minha, se eu estou certa” (R.
26/11/2006).
Assim, no contexto de um restaurante baiano, o modo de preparar a comida e de
prová-la, dentro das regras particulares de sua apresentação, marca um espaço em
comum que evoca também um modo de pensar e de agir frente às necessidades
impostas: se o amazonense ou caboclo sabe que lhe basta atirar a linha e o anzol
quando precisa de peixe, o nordestino nada terá caso não produza o que precisa.
Os nordestinos, por negação aos caboclos, também se encontram como que
presos por antigos esquemas conceituais: a idéia de “nordestino como um forte”,
de nordestino como “pau para toda obra”, como “força de trabalho”. É possível
preservar a identidade mesmo que com outros elementos, supostamente não
pertencentes à esta identidade? Somos levados aqui a aceitar que, de modo
algum, o que está certo ou dado como original de uma identidade é fundamento
suficiente para mantê-la. A identidade precisa se manter, e ela se mantém, porém
no movimento dos objetos.
Dentro de uma outra cidade, como Manaus, se cria uma identidade que não se
teria como fundamentar na terra de origem. Para perpetuar a idéia de nordestino
como “forte”, as oportunidades relativamente fáceis de campo de trabalho que se
acham em Manaus contribuem para, ou acabam sendo, levante decisivo para
174
explicar que este homem seja um “trabalhador” incansável. Assim se que as
condições para justificar uma identidade vão operar mais claramente numa outra
cultura, suposta a princípio como diferente.
Podemos observar também que as mesmas representações empregadas para se
pensar o nordestino podem ser empregadas para os caboclos, e então, no
alargamento da definição dos estigmas, ao mesmo tempo em que as disposições
de poder se alteram, com as pessoas sendo ordenadas dentro de outras definições,
a representação que perdeu o seu contato com a realidade antiga precisa ser
ancorada novamente com base em outras constatações empíricas, como por
exemplo, o significante “rede”, que é representado em outro contexto, mais
desculpável, da casa de veraneio, e nesse sentido a pecha de preguiçoso muda de
lado:
[...] o amazonense é difícil, por exemplo, falam que o baiano é preguiçoso, eu fico
sacaneando muito aqui, preguiçoso é o amazonense.
[...]
Tem aquele negócio de descansar, tirar a sesta na hora do almoço, nós não temos
isso, isso é uma lenda, baiano não dorme em rede como se costuma propagar por aí,
a gente tem rede em casa de veraneio, nos momentos oportunos, a gente não tem
rede em casa. Hoje eu durmo na rede, se você chegar no meu quarto, vai ver a minha
rede, eu digo que eu sou baré, eu me adaptei a isso, tranqüilamente, eu não
conseguia dormir quinze minutos na rede, tirar aquele cochilo, eu não conseguia.
Hoje eu durmo em rede há mais de quatro meses (R. – 26/11/2006).
Neste momento, a entrevistada se coloca como “baré”, que neste contexto
específico é definido pela característica de dormir na rede, e em outro momento
também vai ser o termo aplicado ao manauense, ou seja, o morador da cidade,
dos lugares mais próximos.
Pode-se sublinhar mais nitidamente aqui a disputa pela representação, de estado a
estado, marcando posições relativas ao modo como os chamados baianos não se
reconheceriam em estereótipos comuns, empregando-os para outros. Uma
175
representação comum de baiano elege a figura de uma rede de dormir, junto da
qual ele está associado, cria-se uma imagem com auto-evidência para transmitir a
idéia de preguiça. Se os caboclos, sem motivo aparente, têm o hábito de dormir
na rede, o elemento rede pesa então contra os caboclos, sendo possível relançar
para estes a representação pejorativa de preguiçoso que os baianos carregam;
c) A idéia de acomodação - o caboclo compartilha dos elementos antes usados para
qualificar o índio, porém não da mesma forma, uma vez que os caboclos não
“são” índios, e deste modo se revelam os argumentos construídos na tentativa de
justificar que os caboclos, pelo contrário, são alvo de representações erradas do
passado.
Assim, não é que os caboclos sejam preguiçosos como se diz, e certamente,
muito foi dito a respeito nas representações de índio.
A professora Neide Gondim (1994) em seu trabalho sobre a “invenção” da
Amazônia, estabelece que Américo Vespucio foi o primeiro a se referir a uma
suposta indolência dos índios, que, de acordo com esta interpretação, nada
produziriam e nada tirariam de proveito de suas terras.
Essa interpretação tem fôlego para ganhar reprodução, sendo tomada ainda que
muito depois, na forma renovada de um fatalismo psicológico, como identificado
pelo professor Agnelo Bittencourt, em 1943, em um Congresso de Geografia no
Rio de Janeiro:
A alma do tapuio, como a de todos aqueles que foram dominados pelo ambiente
amazônico, reflete a lentidão com que os rios deslizam na planície ou melhor a
letargia dos seus lagos... Ao recolher a coleta censitária todos os agentes
recenseadores notaram a falta de noção de tempo, no preenchimento e devolução dos
boletins censitários (BITTENCOURT, 1943?, p. 213).
176
Não se observa, por exemplo, que os procedimentos censitários podem em nada
parecer interessantes para os sujeitos considerados. José Veríssimo (1970), em
seu trabalho “As populações indígenas e mestiças da Amazônia”, no livro
Estudos Amazônicos publicado originalmente em 1878, que define como uma
contribuição sua ao estudo da psicologia do povo brasileiro, assim se refere à
suposta falência de aspirações dos grupos na Amazônia:
Se o chefe da família vai à pesca e traz bom pescado, se o ano foi farto e a mandioca
abundante, enfim, se eles têm alimento, ou segundo a sua expressão, mantimento,
para algum tempo, as flechas, os anzóis, os arpões do pescador adormecem a um
canto juntos da enxada e do terçado que serviram para o mofino cultivo da maniva,
da cana ou do tabaco, até que acabem as provisões e que haja mister refazê-las. Tudo
o que exige ação, iniciativa, exercício continuado, persistência, a energia moral por
onde as fortes individualidades se afirmam, lhes é impossível (VERÍSSIMO, 1970,
p. 22).
A idéia de acomodação, como aparece na entrevista com I., apontada neste
capítulo, deve ser vista também como uma variação que modifica a idéia de
preguiça, trocando-a de contexto.
Sobre negócio assim de casa, essas coisas, você compra a casinha, luta para ajeitar
ela, fazer qualquer coisa, você tem muito o que fazer. E muitos aí... tem casas aqui
deste conjunto que, com trinta e poucos anos, tem gente que não fez nem o muro
ainda. É isso que eu digo, a gente não pode seguir aquilo que está aqui, por causa
dessas coisas, esse tipo de coisas, o resto é se adaptar... meus filhos todos fizeram a
convivência deles, agora não são como os daqui, de se acomodar (I. – 03/02/2006).
O caboclo, nesse sentido, se torna algo similar a uma espécime do mundo natural,
que se multiplica, deixa sua herança para outros de novas gerações, reproduz o
mesmo modo de fazer, de viver, de se relacionar, porque a história para ele não é
senão a sucessão do tempo subordinado à sua permanência imutável. Na lógica
do evolucionismo social, os caboclos seriam como fósseis representantes de um
passado com que se rompeu, assim como os índios provavelmente também
tiveram o seu período, os nordestinos cumprem a função do rompimento, e
177
contribuem inaugurando uma lógica própria que os caboclos nem sonhariam
conhecer: a vontade de trabalhar, de ganhar dinheiro.
Por mais estranho que o argumento do capital possa parecer, tem-se muita
credulidade com o mesmo na defesa do nordestino como uma “força de trabalho”
que não cessa, não diminui, não se altera, apenas se reproduz independente do
contexto em questão.
A gente fala em acomodação, mas assim, pescar... porque ele não tinha uma
indústria, esse lado não existia aqui... aí ele tinha lá que fazer a farinha dele, pescar...
tinha aquele lado da festazinha que ele gosta, as pessoas têm aquela visão do
caboclo como preguiçoso, não tem nada a ver... [...] (E. – 13/02/2006).
Vemos a idéia de acomodação como um esforço no sentido de naturalizar, ou em
alguns casos, quando a disposição primeira é favorável aos caboclos,
despejorativizar sua preguiça suposta. A necessidade de tentar retirar o
pejorativo daquilo que se diz é o que fundamenta as ressalvas feitas pelos
entrevistados, que reconhecem implícita a presença dos mesmos elementos
agressivos nas representações, mas que as empregam tentando retirar seu peso
estigmatizante. Torna-se, não mais uma falha de caráter, mas caindo num
resultado talvez pior, pois uma adaptação “cultural” deste homem com a sua
terra. Se o nordestino é aquele que vai buscar os recursos que lhe faltam, o
homem da Amazônia possui tudo o que precisa, não sendo um preguiçoso,
mas alguém que faz uso do meio com inteligência, uma inteligência, diríamos,
irônica. Pelo que, a idéia de “terra prometida” a atuar na base desse pensamento,
confere-lhe uma coerência. O caráter do caboclo, por extensão, torna-se volúvel,
por se permitir querer ou não querer, e quando querer, enquanto para o
nordestino a certeza do trabalho não é um capricho, mas, na inconstância do
amanhã, uma necessidade de sobrevivência. A representação não nos parece
178
estabelecida, a menos que haja coerência formada entre suas partes. E junto da
coerência, o todo precisa de um motivo que o unifique. Assim, para os
entrevistados, o caboclo não pode ser preguiçoso, isto porque preguiça
corresponde a uma falta de ação, e não é o caso quando se imagina que os
caboclos vivam no interior, longe de qualquer assistência. Se lá eles sobrevivem,
é então porque tem tudo de que precisam. E a explicação de não “trabalharem”
tanto quanto os homens da cidade (note-se que a idéia de trabalho,
implicitamente, carrega um juízo de valor sobre qual seria o trabalho autêntico),
se deve não mais à preguiça, mas a uma “acomodação”;
d) Caboclos não viajam – em alguns momentos a definição de nordestinos se
aproxima da definição de judeus buscando legitimaçao na idéia de povo errante,
que deseja retornar. Os nordestinos seriam representados nesses momentos
“como se” fossem judeus, um tipo de judeu: “[...] eu tinha vontade de conhecer
outros lugares, os nordestinos têm essa vontade como se fossem judeus, mas eu
não tinha vontade de sair de casa” (P. 20/01/2006). Neste momento, aparece o
dilema entre cumprir a destinação de nordestino embora a vontade pessoal seja
outra.
Esta aproximação com os judeus como forma de explicar a situação nordestina é
recorrente na extensa literatura sobre o enfrentamento de nordestinos e caboclos,
mas para o entrevistado tem muito mais um apelo prático, que se traduz no
retorno ao lar:
[...] me confundiram com paulista, porque dizem que eu chio muito como
paulista.
Quem falou?
Um sujeito que mora a poucos quilômetros de onde eu morava. Sou um estrangeiro
na cidade em que eu nasci (P. – 20/01/2006).
179
Quando entendemos simplesmente a identidade como nordestina podemos deixar
de perceber que ela não é tanto de onde se nasce, mas de um sentimento de
pertença desenvolvido com a experiência vivida na outra cidade. A identidade
que se mantêm à distância se fortalece porque no lugar seguro do que não se
vive, do que não se muda, do que permanece intocado no horizonte da idéia de
retorno. A identidade também não muda quando confrontada com uma outra, dita
local, regional, pois oferece o campo para se construir as diferenças. Ocorre que
as duas identidades se confundem de modo que na escolha dos elementos pode-se
recorrer ao lugar seguro das definições prontas, do estigma, ou do sorteio dos
elementos com que se quer marcar distância entre nordestinos e caboclos.
O encontro entre nordestinos e caboclos aparece neste momento como um
encontro entre judeus e índios, quando o contexto de definição tomado é o da
contingência de mudança: o nordestino como judeu moderno vive submetido às
condições que lhe permitem seu meio, de modo que mudar para ele não seria uma
opção, mas um imperativo que cedo ou tarde teria espaço. Para os caboclos, ao
contrário, morar numa terra que lhes tudo de que precisam tem o preço de
deixa-los, à semelhança do índio, satisfeitos em tirar tudo o que daí quiserem,
sem o esforço ou a necessidade da vida que se vive pela mudança.
A idéia de que caboclos e manauaras não viajam, surge por oposição explícita a
uma suposta cultura nordestina da viagem, da mudança. O que também determina
um certo afrouxamento da vontade que se traduz numa persistência quase
invencível do nordestino para quem não lugar que não se possa chegar, e o
caboclo aquele que se limita ao horizonte que apenas. Se por um lado é
inegável a existência de fundamentos empíricos para esta observação, uma vez
180
que o objeto é sempre recortado pelo discurso, devemos cuidar das implicações
de tal representação.
Aliás, as comparações com a viagem bíblica da diáspora, identidades de judeus,
ou até metáforas com a natureza, comparações com terra e raízes e broto,
amálgama, mistura, crescimento, ganham crédito pela indeterminação das
identidades de nordestinos e caboclos, elidem o fato de que, na verdade, se
precisam de tantas metáforas quando os objetos de que tratam não são facilmente
encontrados.
A interpretação mítica de uma circunstância, ao menos quando se sabe que ela
não é duradoura, é intrínseca à vida. A tendência a se pensar que a história se
repete, ou a experiência se completa quando passa novamente pelo ponto de
começo exemplificam crenças no retorno à origem como o objetivo da vida.
É que a origem seria tida como interpretação chave, o ponto intangível de peso
imaterial, contendo em si todos os elementos a serem desenrolados
posteriormente.
Devemos ter em mente, no entanto, a ligação concreta da idéia, de outro modo,
não se tem os seus motivos pessoais, no caso a idéia de retorno está muito
presente na vida de P., o entrevistado que espera o momento de voltar para morar
junto de seu pai, enquanto que para E., a mudança não possui mais nenhum
apelo.
Por um lado, P. fala como pessoa, como filho que nunca esteve separado do seu
pai por muito tempo, e por isso, quando o pai viaja para Manaus, decide ir morar
junto. Por outro, o cumprimento da destinação implícita na identidade
nordestina, ter de sair de casa para trabalhar, mandar dinheiro para os que
ficaram, e aguardar o momento do retorno;
181
e) Caboclo manso observamos uma lenta transição entre duas interpretações, o
caboclo que não fala nos parece o mesmo caboclo manso, que por sua vez, não
reclama. Em uma delas a característica de exclusão é explícita, diminuindo as
pessoas alcunhadas com essa denominação, ou reduzindo sua participação.
Também o silêncio dos caboclos, já compreendido como submissão (LIMA,
1999), o silêncio forçado que foi colocado na formação do seu estigma, é
reinterpretado como um sinal de inteligência sua. Quando da entrevista com P.,
em dado momento o entrevistador perguntou o que era preciso para ser amigo do
caboclo de que falávamos, ao que ele respondeu: “entender o seu silêncio” (P.
20/01/2006). Este silêncio tem então uma racionalidade, e pode ser entendido.
Persiste porém o problema que este silêncio coaduna à identidade cabocla: é que,
supostamente, por não marcar com clareza sua posição, o caboclo torna-se objeto
de estigma e de “esquecimento”.
O que está posto é que, pela relação com a terra, por esta ser sua “terra”, não
pelo que lutar com maior obstinação, realidade que se traduziria em um modo
mais “calmo” de viver que os caboclos teriam. Esta seria uma diferença a
observar entre caboclos e nordestinos, estes últimos os portadores de uma “lógica
do extermínio”.
Foi com esta expressão que P. se referiu ao nordestino que preferiria o combate
direto a se curvar. Ao final de nossa entrevista, P. citou a propósito a luta armada
de resistência ao regime militar, que teria sido maior no nordeste que no
Amazonas. Ele define o que é característico do homem “daqui” e de “lá”,
partindo também dessa interpretação: é que o nordestino teria essa “lógica do
extermínio” de modo “mais pesado”.
182
Como se fosse uma determinação “suicida” do nordestino assim, porque o
caboclo seria mais predisposto à sobrevivência, a não entrar em conflito.
Sendo homem de poucas necessidades, faz mesmo sentido que o caboclo não se
entregue ao confronto direto, se puder evitar e, da maneira como se acha,
permanecer em vantagem. Pode-se entender isto como uma “característica” que
passa a responder por identidade. Não é de todo, porém, uma construção nova,
trata-se de uma representação recorrente na literatura. A “resignação” do caboclo,
e este termo expressa melhor a idéia, aparece mais ressaltada face ao
enfrentamento do outro:
O caboclo respeita sempre as idéias daquele que o procura. É excessivamente
tolerante. Isso é uma maneira de evitar o choque, e evitar o conflito com aquilo
que se chama em sociologia
dobrar a esquina. Não é o caso de uma dupla
personalidade. Haja o que houver, o caboclo continua inalterável. O seu âmago
estrutural é sereno, calmo, frio até. Cede tudo e não se sente inferiorizado. Não é um
hipersensível. Não tem complexo de inferioridade, nem de superioridade. Seus
impulsos são mínimos. Não desespera. Não critica. Sabe até onde vai seu direito.
Compreende quando lhe usurpam o que é seu. (ARAÚJO, 2003, p. 145) [Grifos do
autor].
Este parágrafo resume tão variadas possibilidades dessa “resignação”, que mal
poderíamos dizer o que o caboclo não é. Sob outra forma também podemos
reconhecer a mesma idéia na definição do caboclo como “manso”, “pacífico”, os
termos com que ele é qualificado.
Quando da entrevista com o sociólogo C. estas características dos caboclos foram
notadas: “[...] a tolerância, a paciência, não sou mais o ‘azogado’ de antes. O
homem amazônico tem uma característica: se hoje tem farinha, vamos comer
farinha, admiro isso”.
uma transição, contudo, a ser observada na história dessa representação
quando, num primeiro momento, o caboclo foi interpretado em termos do
“selvagem”, do “índio que se amansou”, enquanto que na idéia de “mansidão”
183
trazida aqui pelos entrevistados passa a fazer sentido apenas que, por ser um
homem de poucas necessidades, ele não queira o confronto, evite problemas;
f) Caboclo como homem “da terra” investigamos esta associação, pela qual
introduzimos o termo caboclo durante as entrevistas, de modo a conhecer como
se sustenta para os caboclos, e se ainda é assim, a idéia de que eles são os povos
“originais”, ou os primeiros brasileiros a ocupar a terra (supondo uma distância
entre uma sociedade brasileira e outra indígena). O entendimento de caboclo
como o homem da terra, produz uma contrapartida, pois se para o entrevistado F.
os caboclos são índios, para C., no primeiro capítulo, os dois pertencem a
momentos muito distintos no Brasil, e para a entrevistada A., por outro lado,
caboclo assume simplesmente o significado de “amigo”, como uma entidade
quase desmaterializada, ou seja, nem um nem outro;
g) Urbano e rural outro critério para marcar diferenças está na urbanidade, o que
se poderia chamar assim, a partir do que se define o que é o próprio urbano e o
que não é. A ZFM aparece como espaço de divisão na cidade para nordestinos e
caboclos porque ajudaria a firmar o que é de uns e outros, o caboclo tomado
como o homem próprio da cultura, destinado ao “chão de fábrica”, e o nordestino
o real homem da Zona Franca. O pólo industrial é tomado como o novo
significante que vem reinterpretar as configurações sociais no Amazonas.
Quanto a nordestinos e caboclos, qual dos dois estaria mais adaptado em
Manaus?
Nordestino se for ver... para a capital, estou dizendo para a capital, o nordestino
ainda está mais adaptado... aquela necessidade... principalmente, os que vieram de
cidades... ele sabe o que ele quer, ele tem aquela preocupação com zelar pelo
trabalho... (E. – 13/02/2006).
184
A indústria, numa certa vertente sociológica, foi interpretada como elemento de
oposição das estratificações baseadas em etnia, raça, classe, segundo o professor
Gusfield (1975), autor de estudos sobre os conceitos de comunidade e sociedade,
analisa:
The time of entry of migrating groups into a society; the skills already distributed
and their relation to structural opportunities; the myths and beliefs of social groups
about each other all contribute to the clustering of communal groups into
particular segmented areas of social institutions and hierarchical levels. Since
cultures and power are seldom distributed randomly at any point in history; roles
and positions often follow group lines. The transmission of capital, skill and
sponsorship within lineage, religious and other communal boundaries perpetuates
and supports the segmentation once it emerges. [...]
Prevailing sociological theory has ignored these considerations and has viewed
industrialism, urbanism and bureaucratic organizations as great solvents of
communal hierarchies and as catalysts of class division. Yet the processes of
industrialization and the division of labor have not served to eradicate communal
identities in the economic or work arenas (GUSFIELD, 1975, p. 65-6)
14
.
Não se trata, logo, de uma estratificação agindo de fora de uma comunidade
homogênea, as hierarquias industriais ou de classe obedecem a uma divisão
anterior encontrada por ocasião de outros critérios, de raça, de religião, de
representações mútuas entre grupos.
O modelo ZFM estabelece um espaço de segregação entre nordestinos e caboclos
e manauenses, na divisão de trabalho que impõe, porque nesta ordem teriam
vantagem imediata os mais qualificados, recrutados entre os nordestinos aqui
presentes ou trazidos de seus Estados para o trabalho em Manaus. Não espaço
______________
14
Numa tradução livre: O momento da entrada de grupos de migrantes em uma sociedade; as funções
distribuídas e sua relação com as oportunidades estruturais; os mitos e crenças de grupos sociais sobre
outros grupos tudo contribui para o fechamento dos grupos comunais em áreas particularmente segmentadas
de instituições sociais e níveis hierárquicos. Já que culturas e poder raramente são distribuídos de modo
fortuito em qualquer período da história; papéis e posições seguem freqüentemente linearizações
grupais. A transmissão do capital, habilidades e patrocínio pelas linhagens, limites religiosos
e outras fronteiras comunais, perpetua e apóia a segmentação uma vez que ela emerge. [...] A teoria
sociológica predominante ignorou estas considerações e viu industrialização, urbanismo e as organizações
burocráticas como grandes solventes das hierarquias comunais e como catalisadores de divisões de
classe. Ainda que os processos de industrialização e de divisão do trabalho não tenham servido para
erradicar identidades comunais dentro das arenas econômicas e de trabalho.
185
nesse modelo para a caça e a pesca, elas mesmas atividades associadas ao
estigma de caboclo.
O modelo da pesca para representar os caboclos ocupa um lugar seguro, funciona
como um critério de definição de identidade: o caboclo como pescador foi assim
visto por Leandro Tocantins (2000), em seu primeiro livro,
O rio comanda a
vida
, de 1949, no qual interpreta o rio como significante para se entender as
relações sociais que tomam seu lugar na Amazônia:
Assim é o pescador na Amazônia. Aonde se lhe veja o destro manejo do arco, do
arpão, aonde se lhe observe a perícia de armar os engodos para a embiara e a
faculdade apurada de descobrir o pescado, de ir aos seus sítios preferidos, de
conhecer, pelo marulho da água, pelo canto dos pássaros, pelas plantas marginais,
pelo cair dos frutos junto à toalha líquida, a presença e a qualidade do peixe, a vinte,
a cem, a mil léguas dali, são outros ouvidos afinados, outros tatos sensíveis, outra
inteligência penetrante, outros braços e mãos habilidosos, a afirmar a identidade
cultural (TOCANTINS, 2000, p. 160).
Dá-se a conhecer nestas passagens um homem indissociado do seu meio, aquele
que, e mesmo isto se pode imaginar na escolha dos termos com que é definido,
deveria fazer do meio em que vive a sua casa, nesta “toalha líquida” em que se
assenta. Não demora a que, pescar, para este homem que depende do seu meio e
dele não poderia pensar fora, deixe de ser atividade e se torne também sua
profissão e seu esporte. Há também algo de místico aí, a afirmação de uma
segura semelhança e de um passado comum com os índios, os “arquiavós”, e o
autor nos oferece assim, enquanto os “pescadores” da Amazônia.
Um suposto “predomínio da mentalidade aborígine”, “desambição” e “apego à
vida livre” são outros elementos nos quais o autor constitui sua interpretação dos
pescadores (TOCANTINS, 2000, p. 158). Ser pescador guarda um lugar e o que
seria uma característica assim se torna uma identidade, um sinal que demarca à
distância.
186
Segundo o entrevistado E. observou em nossa conversa uma divisão a ser
reconhecida entre a indústria e seu modo de produção e a pesca, espécie de
atividade ocupada pelos caboclos não conciliada com o interesse das empresas
do pólo industrial.
Sobre as supostas ameaças de “extinção” da Zona Franca aqui, quando
eventualmente se alardeia que um presidente tomará medidas visando seu
término, E. se manifesta cético, pelo argumento de que na dependência do pólo
industrial se toda uma economia que não poderá simplesmente ser
redirecionada de uma hora para outra, como o entrevistado E. afirma: “[...] aí vira
um deserto, porque as indústrias vão querer sobreviver de alguma forma, e vão
para onde? Aqui vão sobreviver da pesca? isso aqui vira um deserto, [...]” (E.
– 13/02/2006).
A imagem do “pé-no-chão”, tão freqüentemente invocada para construir a
representação de caboclo como um homem ingênuo, “não urbano”, também toma
lugar no dilema do pólo industrial. Talvez não seja acaso que um dos termos
mais empregados para formar uma imagem objetiva dos caboclos seja
exatamente a dos pés descalços. Na configuração da ZF, vemos que a
apropriação da imagem do caboclo “pé-no-chão” se na imagem do “chão-de-
fábrica” identificado como espaço de caboclos e de manauaras por oposição aos
de “fora”, nordestinos inclusive.
Cai assim a idéia de industrialização ou modernização como o fim das relações
comunais de trabalho, porque as linhas de poder se redistribuem conforme
critérios de poder já existentes entre os grupos.
A idéia de urbano e rural também é usada para marcar níveis diferentes de ser
caboclo. É em torno dessa idéia de caboclo como homem da terra, da região,
187
autêntico, que se vai definir quem é mais caboclo ou menos caboclo, porque o
caboclo não está representado de uma vez, há diferentes níveis de ser caboclo,
de acordo com critérios de localização, costumes, vestuário, porte físico, traços
indígenas. Quanto mais próximo do mato, menos compreensível nos termos do
homem da cidade e mais caboclo, por isso mais original, “rústico” e “ingênuo”.
Também Manaus nesta oposição entre urbano e rural é identificada como uma
cidade que não se diferenciou da natureza, idéia criticada pela entrevistada R.:
Então você, de certa forma, não veio com essas expectativas?
É... é como eu te falei, eu não imaginava, por exemplo, que eu ia encontrar onça na
rua, nada disso, primeiro porque quando eu vim para eu dei uma pesquisada na
internet do que seria a cidade, eu vi que é o segundo PIB do país, eu vi que tem um
milhão e seiscentas famílias, quatrocentas mil, sei lá, então uma cidade como essa
não pode ser uma cidade qualquer, eu acho que quem pensa dessa forma realmente é
um pouco ignorante mesmo, as pessoas não conhecem a cultura do país e ficam
emitindo opinião sem ter conhecimento, não que eu não tivesse, mas enfim, eu dei
uma olhada, e também é culpa da mídia, o que o Globo Repórter passa dia de sexta-
feira? Pantanal, a floresta, as onças de não sei o quê, por que não faz um programa
com o Distrito Industrial? Por que não faz com a Universidade Federal em termos de
pesquisa, o cara que está lá, desenvolvendo o mouse ocular? Então, eles não falam
disso, não é interessante falar disso. Eles vão e falam da fauna, da flora, é isso o que
é vendido, então é isso o que as pessoas acreditam também que tenha por aqui. Eu
não tinha essa idéia errônea, tive, eu devo ter tido, eu não me lembro, porque
também não era o foco, [...] (R. – 26/11/2006).
A entrevistada R. mostra, por sua vez, como o tratamento dado ao caboclo na
imprensa obedece a uma lógica de propaganda, pois este suposto homem original
é vendido pela sua suposta aproximação com a natureza quanto mais natural,
mais próprio, e neste sentido o homem da tecnologia não pode ser o mesmo da
floresta, porque respondem por estigmas diferentes, o cientista ou o acadêmico
não atraem turismo, ou necessidade de “preservação”. A ZFM, embora se insista,
na propaganda política local, em reproduzir para ela a mesma lógica de
preservação, em expressões como “em defesa da ZF”, ou “contra a extinção da
ZF”, aparece vivamente como o contraponto da idéia de identidade cabocla.
Enquanto a ZF é o pólo industrial, o lugar da “produção”, o lugar do caboclo é a
188
floresta, os rios, o extrativismo, isto é, sua interpretação reside na idéia de
produção de subsistência.
Não devemos discutir aqui, se é ou não assim, pois os fatos empíricos podem ser
encontrados para justificar esta divisão, porém devemos pensar até que ponto a
representação de caboclo não termina por contribuir para também limitar a
realidade do ente representado. Visto pelo ângulo da proximidade dos espaços
sociais, nos parece que uma representação do caboclo em termos de canoa e remo
serve para torná-lo mais estranho e menos próximo da realidade dos
entrevistados. A representação de caboclo nos termos do homem do interior, de
canoa e remo, ajuda a manter uma segregação silenciosa com os caboclos, e a
fechar de início a possibilidade de entrar para o mundo da produção industrial, da
tecnologia compartilhada na cidade.
Quando o caboclo se associa a este mundo, por isso, a impressão de uma
renúncia às suas “origens”, como não fosse autêntico querer participar da
realidade urbana. Esse caboclo que não representa mais a cultura das primícias
passa a não ser mais considerado homem da terra.
Dos entrevistados que se mostraram à vontade para falar dos caboclos o que de
acordo com uma compreensão teórica seria impossível, pois tal conceito seria exclusivamente
aplicado para “outros”, e não alguém de fato, o contexto no qual aparecem suas falas vai
desde o plano imaterial da identidade até o das relações cotidianas, quando o caboclo é o
“conhecido”, um amigo.
Assim, aparecem em diferentes momentos, a moça que se avistou no bar, o amigo de
trabalho, a empregada doméstica, o afilhado. São, portanto, como entradas para o contato com
os caboclos, e sua conseqüente aproximação:
189
a) A proximidade dos caboclos aos lugares freqüentados pelo entrevistador (não
apenas no espaço físico);
b) A disposição inicial para viver, de fato, na cidade.
Podemos ainda mencionar dez termos associados, e os limites que registram
domínios específicos para cada um: Amazonense/amazônico/amazônida; manauara; daqui;
Baré; índio; amigo; morador da Zona Leste.
Amazonense, amazônico e amazônida são tomados em sinônimo ao morador natural
da região compreendida com o nome geral. Podem ser tomados como sinônimo de caboclo.
Os termos índio, pobre e morador da Zona Leste não figuram como um atributo para
um grupo específico, mas quando lembradas, a associação se deu diretamente como sinônimo
de caboclo.
Os termos, porém, são lembrados a partir de critérios particulares quando caboclos
são tomados como um grupo específico na cidade, aparecem associados à figura do morador
das zonas afastadas, quando tomados como identidade, aparecem associados aos termos
comuns da definição política dos tipos regionais, e assim podem ser mencionados enquanto
caboclos amazônicos ou amazonenses, manauaras ou caboclos manauaras.
Uma crítica feita ao nosso posicionamento de relacionar os termos empregados para criar essa
quase “tipologia” está em mostrar que nos aproximamos aqui da pretensão ilusória de Samuel
Benchimol ao tentar definir grupos na Amazônia usando critérios de fora desses grupos. Não
é a isto que recorremos, nem para validar uma teoria classificatória, mas porque sabemos,
com Moscovici (2004), que palavras são mais que palavras e conotam práticas e toda uma
ordem a elas associada.
190
Quando os caboclos são representados como homens da floresta, do mato, o termo
manauara é citado num sentido diferente, querendo indicar o homem da cidade, por oposição
ao caboclo. O termo “daqui” também não apresenta posição definida, podendo indicar
manauaras, por oposição aos caboclos, ou os caboclos, por oposição aos nordestinos, mas
sempre para formar uma diferença em relação a qualquer grupo que se identifica. Sempre que
o entrevistado quer acentuar que não possui determinada prática que seria própria da cultura
local, usa-se a expressão “daqui”, querendo assim dizer que não se é amazonense ou
manauara. Quando o contexto tomado considera um gosto pela mudança, nordestinos e
caboclos se encontram na condição do nordestino como aquele que viaja, mas preserva suas
raízes, e o caboclo como o homem que não viaja porque suas raízes o prendem aqui, ou
porque qualquer lugar fora de sua terra será longe demais para alcançar.
Para um caboclo, não se oferece possibilidades de agir em sociedade, a não ser
enquanto caboclo, aprisionado que é à expectativa de uma geografia particular, de uma
descrição que o isola e condiciona a um conjunto de sinais.
Alguém não teria razões, a nosso ver, para assumir-se dentro dos sinais de caboclo
ainda hoje. Talvez o lado de orgulho que ser caboclo parece despertar, tem seu apelo, de
modo que o estigma apresenta uma face também amistosa. Mas as principais razões para ser
caboclo ainda não estariam assim formuladas no interesse próprio daqueles grupos assim
identificados, que restam à margem dos sinais que se tem deles.
Ao abordarmos os conteúdos investigados, que permanecem recorrentes nas
representações sociais, é certo que uma mudança em curso, pois o significado é deslocado
no sentido de tornar a representação condizente com uma expectativa que se quer criar, porém
os elementos nos quais esta aparente nova representação se estabelece, ocorrem de acordo
com o princípio da ancoragem, preservando a memória, ao passo em que a mesma é recriada.
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