Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
SANDRA RÚBIA DA SILVA
AS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL E DOS BRASILEIROS NA
INTERNET: A CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADE NOS SITES
ESTRANGEIROS
Dissertação de mestrado
PORTO ALEGRE
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
SANDRA RÚBIA DA SILVA
AS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL E DOS BRASILEIROS NA
INTERNET: A CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADE NOS SITES
ESTRANGEIROS
Dissertação de mestrado apresentada
como requisito parcial para a obtenção de
título de Mestre em Comunicação e Informação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Orientador:
Prof. Dr. Valdir Jose Morigi
PORTO ALEGRE
2005
ads:
SANDRA RÚBIA DA SILVA
AS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL E DOS BRASILEIROS NA
INTERNET: A CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADE NOS SITES
ESTRANGEIROS
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Comunicação e Informação,
linha de pesquisa Meios de Comunicação, Imagens e Representações, e aprovada pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
_______________________________
Profa. Dra. Ida Regina Chittó Stumpf
Coordenadora
Banca Examinadora:
______________________________
Prof. Dr. Valdir Jose Morigi
PPGCOM/UFRGS (orientador)
______________________________ _______________________________
Prof. Dr. Édison Luis Gastaldo Profa. Dra. Cornelia Eckert
PPGCOM/UNISINOS PPGAS/UFRGS
_____________________________ ___________________________________
Profa. Dra. Marcia Benetti Machado Profa. Dra. Ilza Maria Tourinho Girardi
PPGCOM/UFRGS PPGCOM/UFRGS (suplente)
Foram muitas as pessoas que me acompanharam nesta jornada.
Na impossibilidade de citar todos, gostaria de agradecer especialmente,
em primeiro lugar, à minha família, pelo apoio carinhoso e sempre presente;
ao meu orientador Prof. Dr. Valdir Jose Morigi, pela orientação e compreensão;
aos professores, colegas e amigos do mestrado e funcionários
do PPGCOM, por momentos de estudo e diversão compartilhados
com alegria; e, por fim, Viviane e Paulo, pela assistência
pronta e afetuosa em tantos momentos. Acima de tudo, agradeço à Força Superior
que torna possível a alegria e o vigor de viver.
RESUMO
A pesquisa consiste em um estudo qualitativo sobre as representações do Brasil e dos
brasileiros em sites da Internet gerados no exterior. A partir da hipótese de que as representações
de brasilidade, desde há muito, estão ligadas ao mito fundador do Brasil, busca-se discutir como
se constroem representações a respeito da identidade brasileira em tempos de mundialização da
cultura, quando as narrativas, através de mídias como a Internet, crescentemente circulam em
nível global. A discussão proposta encontra nas obras de Castells (1999; 2003), Hall (2002),
Chauí (1986; 2000) e DaMatta (1993; 1994; 1996) os principais interlocutores para a formação
de seu referencial teórico. A investigação propôs três objetivos distintos: a identificação das
imagens utilizadas e veiculadas pelos sites para narrar a brasilidade; a verificação de como se
constroem as representações a respeito do Brasil e dos brasileiros em suas narrativas verbais e
visuais e, finalmente, a identificação dos elementos do mito fundacional presentes nessas
representações. A análise do material empírico, realizada através de uma análise textual crítica
baseada na semiologia barthesiana, permitiu verificar que, embora a brasilidade representada nos
sites contenha elementos de ambigüidade e contradição, tais representações apontam
predominantemente para a utilização de formas mitológicas de representação do Brasil e dos
brasileiros. Ao circularem na Internet, tais representações atualizam a mitologia verde-amarela
que representa o Brasil como país de riqueza natural e o brasileiro como povo pacífico,
hospitaleiro, alegre e sensual.
Palavras-chave: Representação. Brasilidade. Internet. Mito fundador. Globalização.
ABSTRACT
The research consists of a qualitative study on the representations about Brazil and
brazilians performed on Internet sites generated abroad. Departing from the hypothesis that such
representations of brazilian-ness have been linked to the founding myth of Brazil over a long
period of time, the investigation aims at discussing the ways by which those representations are
constructed nowadays, when the globalization of culture is the rule of the day and the narratives,
via media such as the Internet, increasingly circulate on a global scale. The theoretical frame is
based primarily upon the works of Castells (1999; 2003), Hall (2002), Chauí (1986; 2000) and
DaMatta (1993; 1994; 1996). Three distinctive goals are proposed: the identification of images
used and broadcast on the sites to narrate brazilian-ness; the verification of how such
representations are constructed on the sites´ verbal and visual narratives; and the identification of
the elements of the founding myth of Brazil that occur in the representations. The analysis of the
empirical material, carried out through barthesian-based critical textual analysis, made it possible
to verify that the representations of brazilian-ness encountered may be at times contradictory and
ambiguous. However, those representations are mainly based on mythological ways of
representing Brazil and brazilians. Upon circulating on the Internet, such representations update
the green-and-yellow mythology which represents Brazil as a country of natural richness and the
brazilians as a pacific, hospitable, happy and sensuous people.
Keywords: Representation. Brazilian-ness. Internet. Founding Myth. Globalization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Mapas medievais representando a localização das Ilhas Afortunadas ..........................47
Figura 2 - Homepage do site Maria-Brazil.....................................................................................75
Figura 3 - Homepage do site Brazzil.com......................................................................................76
Figura 4 – Ramo de côco verde dominando a paisagem urbana....................................................87
Figura 5 – Cajus e jaboticabas........................................................................................................87
Figura 6 – A arara azul no habitat natural......................................................................................87
Figura 7 – Pitangas maduras...........................................................................................................87
Figura 8 - Sheila Thomson fazendo amizade com um macaquinho amazônico.............................87
Figura 9 – Capa do livro Frutas no Brasil .....................................................................................87
Figura 10 – Jacas no pé...................................................................................................................87
Figura 11 – Representações da cultura popular: cavalhada............................................................88
Figura 12 - Representações da cultura popular: músicos nordestinos............................................88
Figura 13 - Representações da cultura popular: maracatu.....….....................................................88
Figura 14 - Artesanato em palha com motivos indígenas marajoaras............................................88
Figura 15 – Dançarinos executando o lundu..................................................................................91
Figura 16 – Capa de livro de literatura de cordel...........................................................................91
Figura 17 – Capa de CD de música indígena.................................................................................91
Figura 18 – Entalhe em madeira representando a ciranda nordestina............................................91
Figura 19 – Imagens de brasilidade: caipirinha..............................................................................98
Figura 20 – Imagens de brasilidade: refrigerante de guaraná... .....................................................98
Figura 21 – Imagens de brasilidade: berimbau e fitinhas do Senhor do Bonfim...........................98
Figura 22 – Camiseta do bloco carnavalesco Simpatia É Quase Amor..........................................98
Figura 23 – Aperitivos que antecedem o churrasco.......................................................................98
Figura 24 – O prato nacional: a feijoada........................................................................................98
Figura 25 - Diversidade de tipos humanos na capa do livro Dicionário Mulheres do Brasil......108
Figura 26 – Capa do CD Garotas de Ipanema..............................................................................108
Figura 27 - Capa do CD SambaSoulGroove.................................................................................108
Figura 28 – Capa do CD Casa da Mãe Joana..............................................................................108
Figura 29 – Caboclo amazônico mostrando castanhas do Pará....................................................109
Figura 30 - Crianças banhando-se em rio da Amazônia...............................................................109
Figura 31 – Torcedores comemorando a conquista da Copa do Mundo de 2002........................109
Figura 32 – Dia de sol na praia.....................................................................................................109
Figura 33 – Brasileiro oferecendo champanhe à Iemanjá na praia...............................................109
Figura 34 – Tocador de embolada do Recife................................................................................109
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Análise quantitativa das imagens do site Maria-Brazil...............................................106
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................................9
1.1 O Brasil visto de fora ...............................................................................................................14
1.2 Objetivos ..................................................................................................................................22
2 GLOBALIZAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE O NACIONAL........................24
2.1 Representação e produção de sentido.......................................................................................24
2.2 Uma nação é um discurso: o papel da representação...............................................................28
2.3 A influência da globalização sobre as identidades...................................................................32
2.4 Globalização, diversidade cultural e Internet...........................................................................35
3 EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE NACIONAL: OS CAMINHOS DA CONSTRUÇÃO
DA BRASILIDADE.......................................................................................................................42
3.1 O mito fundador e a visão do Paraíso.......................................................................................43
3.2 A ideologia do caráter nacional brasileiro................................................................................50
3.3 A mitologia verde-amarela e a apropriação do popular pelo nacional.....................................54
3.4 Do caráter nacional à identidade nacional: visões recentes da brasilidade..............................59
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E INSTRUMENTOS DE ANÁLISE.....................66
4.1 A matriz de análise...................................................................................................................68
4.2 Corpus de análise.................................... .................................................................................72
4.3 Maria-Brazil: “o lar da cultura brasileira na Web” ..................................................................73
4.4 Brazzil.com: “tentando entender o Brasil” ..............................................................................76
5 MARIA-BRAZIL: AS NOVAS ROUPAGENS DO MITO FUNDADOR................................78
5.1 A Natureza........................................... ....................................................................................80
5.2 Os aspectos tradicionais da cultura nacional: o lugar do exótico e do tradicional...................87
5.3 Cultura popular e os símbolos de brasilidade...........................................................................91
5.4 As representações dos brasileiros.............................................................................................98
6 DO OUTRO LADO DO PARAÍSO: AS NARRATIVAS DA NAÇÃO DOS INTERNAUTAS
DO SITE BRAZZIL.COM ..........................................................................................................110
6.1 A violência urbana e as questões sociais...............................................................................111
6.2 O racismo e o autoritarismo ........................................... .......................................................115
6.3 O modo de ser do brasileiro ...................................................................................................123
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................132
REFERÊNCIAS...........................................................................................................................139
9
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa consiste em um estudo qualitativo que, pela via do estudo das
representações do Brasil e dos brasileiros em sites da Internet gerados no Exterior, pretende
inquirir sobre a atualização do mito fundador do Brasil no ciberespaço. A escolha do tema
remete a uma questão de fundo que permanece atual: o debate sobre a cultura brasileira e a
identidade nacional. Afinal, quando nos perguntamos o que outros países pensam a nosso
respeito, ou mesmo como nos apresentamos para o estrangeiro, ou ainda como essas
representações contribuem para a construção de nossa identidade, no fundo percebemo-nos
em torno da pergunta central: afinal, o que significa ser brasileiro?
Através de um estudo teórico-empírico, centrado numa abordagem sócio-cultural
da comunicação, pretendemos analisar como as representações a respeito de nosso país que
circulam no ciberespaço em sites voltados para o internauta estrangeiro contribuem para
atualizar o mito fundador do Brasil. Questões importantes que contextualizam a
problematização em torno do objeto empírico incluem a discussão das representações
identitárias no cenário da globalização, onde as novas tecnologias de comunicação e a questão
da diversidade cultural assumem crescente importância; os caminhos históricos e ideológicos
da construção da brasilidade e a visão que o estrangeiro tem a respeito do Brasil e dos
brasileiros. A partir desse enquadre teórico que procura ler o Brasil tanto por dentro quanto
por fora, procuraremos discutir como se dá a produção de sentidos a respeito da identidade
brasileira através dos olhos do Outro (o estrangeiro) em tempos de mundialização da cultura
1
,
1
Preferimos adotar a terminologia usada por Ortiz (2003) – que faz a distinção entre “globalização das
sociedades” e “mundialização da cultura” – em oposição aos teóricos de língua inglesa, como Featherstone
(1999) que utilizam o termo globalização para se referir tanto à intensificação de fluxos econômicos quanto
culturais. No entanto, da mesma forma que autores como García Canclini (2003, p. 43), reconhecemos a
polêmica em torno do uso dos dois termos – mundialização cultural e globalização cultural – assim como o
pressuposto de que referem-se ao mesmo fenômeno.
10
quando os discursos, através de mídias como a Internet, crescentemente circulam em nível
global.
O fenômeno que nos chamou a atenção e serve de ponto de partida para esta
pesquisa teve origem no TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) que fizemos ainda na
graduação.
2
Nosso interesse pelo tema teve início quando residimos em Londres, Inglaterra
(1994-1995) e constatamos o desconhecimento que existe a respeito de nosso país entre os
estrangeiros, assim como o fato de que a imagem brasileira no exterior ainda é muito
estereotipada.
Na época, o objetivo era mapear a imagem do Brasil como produto turístico na
Internet. Partimos da seguinte pergunta: “se um internauta estrangeiro quisesse obter
informações sobre o Brasil para, por exemplo, uma possível viagem, que tipo de informações
ele encontraria”? Um dos objetivos era avaliar a quantidade de sites que falavam sobre a
cultura brasileira na rede. Digitando a palavra “Brazil” nos sites de busca, descobrimos que há
relativamente poucos sites que se dedicam exclusivamente ao Brasil como tema. Chamou-nos
a atenção, principalmente, que a maioria dos sites eram projetos pessoais, de brasileiros
radicados no exterior ou de estrangeiros ligados ao Brasil por laços familiares e afetivos.
Agora a proposta é analisar a questão de forma mais aprofundada. A bagagem
teórica adquirida durante o mestrado revelou a pertinência de se repensar as construções
identitárias no contexto da globalização e da crescente influência das tecnologias de
comunicação e informação. A análise do que já foi produzido academicamente em relação ao
tema eleito reforça, a nosso ver, a contribuição que esta pesquisa pode dar em relação à
questão da construção de representações de brasilidade. Embora vários trabalhos acadêmicos
2
SILVA, Sandra Rúbia da. Redescobrindo o Brasil com Olhos Estrangeiros: o uso da Internet como
instrumento de propaganda na promoção do Brasil enquanto destino turístico. 1999. 84 f. Trabalho de Conclusão
de Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Publicidade e Propaganda). Centro de Ciências
Humanas e da Comunicação, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 1999.
11
tenham se ocupado da representação do Brasil feita por estrangeiros, nenhum ainda se ocupou
da mídia Internet.
3
Concomitantemente, muitas destas pesquisas trazem à luz a questão da
representação do Brasil e dos brasileiros feitas no estrangeiro, tema presente em nossa
pesquisa. Os resultados de tais pesquisas serão discutidos mais adiante, quando abordaremos a
construção do objeto científico. A relevância científica da pesquisa também se justifica pelo
fato de que o tema da cultura brasileira e da identidade nacional é recorrente entre a
intelectualidade brasileira e permanece atual até hoje.
4
Nos parece pertinente, portanto,
abordar a produção de sentido da brasilidade em cotejo com as novas tecnologias de
comunicação e informação.
Nossa proposta de trabalho diferencia-se, buscando complementar os
conhecimentos obtidos nas investigações anteriores em dois aspectos: primeiro, na ampliação
do âmbito do objeto de estudo para a mídia internet. Segundo, na originalidade do enfoque,
pois buscaremos redescobrir o Brasil a partir do exterior, através do estudo das representações
sobre nosso país feitas por brasileiros e estrangeiros em sites da Internet voltados para o
internauta estrangeiro. A partir dessa perspectiva intercultural, podemos dizer que, em nossa
investigação, o caminho para se responder à questão sobre o que é ser brasileiro passa pela
relação com a alteridade. Quem é esse Outro? Para autores como Chauí (2000) e Ortiz (1994),
esse Outro a quem constantemente nos comparamos é representado de forma paradigmática
pelos Estados Unidos, como representante por excelência dos chamados “países
3
Apenas um único trabalho encontrado ocupou-se da mídia Internet. Entretanto, diferentemente de nossa proposta,
os objetos empíricos eleitos são sites brasileiros e não estrangeiros. Trata-se da dissertação de mestrado de Júnia
Miranda Carvalho (2000) da Universidade Federal de Minas Gerais “Identidade nos 500 anos de Brasil –
produções discursivas na Internet” no qual a autora verifica o processo de formação da identidade nacional,
tendo como referência as produções discursivas de três sites na Internet, durante o período das comemorações
dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. O resumo da dissertação está disponível em meio eletrônico no Banco
de Teses e Dissertações da CAPES: <www.capes.gov.br
>. Acesso em: 03 jan. 2003.
4
Conforme atestam Skidmore (1994), Ortiz (1994), Chauí (1986; 2000) e DaMatta (1993; 1994; 1996). A
trajetória de construção da brasilidade pela intelectualidade brasileira é abordada no segundo capítulo desta
dissertação.
12
desenvolvidos”. Justifica-se, desta forma, nossa escolha por sites da Internet gerados nos
Estados Unidos.
Tendo como tema de estudo as construções identitárias em um contexto de
mundialização cultural, definimos nosso objeto de estudo nas representações sobre o Brasil e
os brasileiros veiculadas na Internet. Agora, cabe a pergunta: Por que estudar as
representações de identidades nacionais na contemporaneidade, na área de comunicação? E
mais, por que interessa estudar as representações de identidade nacional especificamente na
Internet?
Muito se têm discutido sobre o processo de transformação política, econômica e
cultural em escala planetária pelo qual estamos passando, relativizado no conceito de
globalização. Esse processo é possibilitado através da existência de uma rede de comunicação
em escala global, da qual a Internet é atualmente a grande vedete. O surgimento dos meios de
comunicação global e instantânea não só é uma das características centrais do processo de
globalização na modernidade tardia, como o torna possível. O processo de globalização, que
se intensificou enormemente a partir de meados da década de noventa do século XX, tem se
caracterizado pelo intenso fluxo de capitais e informação em nível global. Propiciado, entre
outros fatores, pela rápida evolução das tecnologias de comunicação e informação, o processo
globalizatório, típico de uma sociedade dita pós-industrial ou pós-moderna, tem exercido
enorme influência nas formas de cultura e sociabilidade contemporâneas. É justamente no
âmbito da globalização econômica e da mundialização cultural que a temática das identidades
culturais adquire força:
Antes de adentrar no debate da constituição das identidades, é preciso fazer apenas
referência ao contexto mais geral onde essa temática assume importância. Assim, a
primeira condição é reconhecer a desestabilização gerada pela modernidade nessa
discussão, assim como as implicações da problemática da pós-modernidade e seu
interesse na (re)construção das identidades. A segunda condição é apontar, como
pano de fundo, a existência da globalização. (ESCOSTEGUY, 2001, p. 141).
13
Entre outros, autores como Stuart Hall, na Inglaterra, assim como Jesús Martín-
Barbero e Néstor García Canclini, vinculados à escola de comunicação latino-americana,
incorporam esse fenômeno aos seus campos de interesse, enfatizando o advento de uma nova
relação entre a comunicação e a cultura, na medida em que é fundamental o papel dos meios
de comunicação na constituição, por exemplo, das representações das identidades nacionais e
culturais e no seu fortalecimento. Nesse sentido, o caso brasileiro é emblemático.
5
A globalização, ao mesmo tempo em que acentua desigualdades, fragmenta as
identidades em múltiplas derivações e remete ao temor do advento de uma cultura
homogeneizada, paradoxalmente parece reativar os interesses pelo local. Ao mesmo tempo
em que o processo de mundialização cultural aponta para uma homogeneização cultural,
constata-se uma revitalização de identidades culturais locais, ou seja, existe uma tensão entre
homogeneização e diversidade cultural (Castells, 1999b; Featherstone, 1999; Hall, 2002). No
cenário da globalização, Castells (1999a, p. 41) ressalta a importância das identidades na
busca por segurança em um mundo que experimenta mudanças cada vez mais velozes:
[...] a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significado
em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das
organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes
movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. Cada vez mais, as pessoas
organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas
são ou acreditam que são.
A respeito da Internet, parece ter-se tornado senso comum que esta simboliza a
mídia por excelência da globalização. Em nível científico, Castells (2003a,p. 8) reconhece a
evidência empírica: “A Internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a
comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global.” Nesse
5
A respeito do papel da indústria cultural na consolidação da identidade nacional brasileira nos anos 70, veja-se
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense: 2001.
14
sentido, o autor, em outro lugar, (1999a) chama nossa atenção para a questão do poder na
Sociedade da Informação. Segundo ele, o poder não mais se concentra nas instituições (o
Estado), organizações (empresas capitalistas), ou mecanismos simbólicos de controle (mídia
corporativa, Igrejas). Ao contrário, o poder está difundido nas redes globais de riqueza, poder,
informações e imagens, que circulam de forma descentralizada. Assim, podemos dizer que a
Internet proporciona um poder de difusão, interatividade e acesso global às informações que
não ocorre com as mídias de massa. Castells (2003a, p. 8) demarca o advento de uma nova era
da comunicação, que incorpora o poder de difusão do massivo de novas formas: “Assim como
difusão da máquina impressora no Ocidente criou o que MacLuhan chamou de a ‘Galáxia de
Gutenberg’, ingressamos agora num novo mundo de comunicação: a Galáxia da Internet.”
Castells acredita que as redes de comunicação digitais estão crescendo cada vez mais e
criando novas formas e canais de comunicação. Para o autor, trata-se de pensar em um novo
sistema de comunicação, que fala cada vez mais uma língua universal digital e “[...] tanto
está promovendo a integração global da produção e distribuição de palavras, sons e imagens
de nossa cultura como personalizando-os ao gosto das identidades e humores dos indivíduos.”
(CASTELLS, 1999a, p. 40).
Tendo feito referência ao contexto mais amplo onde se insere nosso problema de
pesquisa, passaremos agora às características da construção de nosso objeto de investigação,
suas questões e os objetivos para possibilitar compreendê-las.
1.1 O Brasil visto de fora
O processo de construção de identidade é articulado em relação ao Outro. Martín-
Barbero (2002, p. 16, tradução nossa) destaca a importância desta afirmação: “As
15
identidades/cidadanias modernas – ao contrário daquelas que eram algo atribuído a partir de
uma estrutura preexistente como a nobreza ou a plebe – se constroem na negociação de seu
reconhecimento pelos outros.” Para o autor, a identidade depende e vive desse
reconhecimento pois se constrói no diálogo e no intercâmbio, sendo aí que os indivíduos e
grupos se sentem depreciados ou reconhecidos pelos demais. E a preocupação com o “olhar
do outro” parece acentuar-se com a mundialização cultural potencializada pela intensificação
dos fluxos informativos. Nesse registro, afirma García Canclini (2003, p. 79): “[...] como a
identidade se define e redefine, uma e outra vez, em interação com outras sociedades, convém
também levar em conta como os outros nos vêem e como assimilamos esse olhar”.
No caso brasileiro, devemos assinalar que a oposição nacional/estrangeiro é
constitutiva do processo de construção da identidade nacional. O tema da cultura brasileira e
da identidade nacional é um antigo debate que se trava no Brasil, mas que permanece atual, de
acordo com Ortiz (1994). A identidade possui uma dimensão interna, que no caso do Brasil
consiste em saber no que nos identificamos, mas também e principalmente em relação ao
exterior:
Toda identidade se define em relação ao exterior, ela é uma diferença. Poderíamos
nos perguntar sobre o porquê desta insistência em buscarmos uma identidade que se
contraponha ao estrangeiro. Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de
sermos um país do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer que a pergunta é
uma imposição estrutural que se coloca a partir da própria posição dominada em que
nos encontramos no sistema internacional. (ORTIZ, 1994, p. 7).
Assim, cabe perguntar: qual é a imagem do Brasil no Exterior? Como é o Brasil
visto de fora? O antropólogo Roberto DaMatta (1996, p. 113) responde à questão da seguinte
forma:
Dentro de um quadro de notável e cretina ignorância sobre o nosso país,
surpreende-me uma imagem unânime e monolítica – um verdadeiro tijolo
simbólico – do Brasil como o país do café, do samba, das praias, das belas morenas,
do carnaval e também dos assaltos, da corrupção, da inflação e das ditaduras
.
16
A imagem do Brasil no Exterior também é esclarecida através da pesquisa
acadêmica. No estágio de preparação desta dissertação, consultamos diversas fontes para
verificar a extensão de trabalhos relativos ao nosso tema de pesquisa. No livro Teses e
Dissertações em Comunicação no Brasil: resumos (1997-1999), de autoria de Stumpf e
Capparelli (2001), pudemos verificar que há várias teses relacionadas à questão da identidade
nacional e identidade cultural, mas nenhuma específica envolvendo as representações
midiáticas da brasilidade geradas no exterior (excetuando-se as que têm como objeto de
estudo Carmem Miranda), tal como a tese de doutorado de Simone Pereira de Sá, “Baiana
Internacional: o Brasil de Carmem Miranda e as lentes de Hollywood”. Nessa pesquisa, a
autora analisa a imagem de baiana internacional veiculada por Carmem Miranda em
Hollywood. Sua premissa é a de que Carmem Miranda “[...] participou enquanto
protagonista da cultura musical carioca que transforma o samba em símbolo da identidade
nacional; e que sua atuação em Hollywood produz uma alegoria de Brasil fiel a suas ‘raízes’
brasileiras [...]” (SÁ, 1997).
Outra fonte consultada foi o banco de teses do site da Internet da CAPES
(www.capes.gov.br
). Nesse site constatamos a existência de apenas dois trabalhos relevantes,
que nos dão conta de quais são alguns dos sentidos hegemônicos a respeito da brasilidade que
circulam no exterior. O primeiro é a dissertação de mestrado de Antônio Jonas Dias Filho
(1998), da Universidade Federal da Bahia, financiada pela Capes, cujo título é “Fulôs, Ritas,
Gabrielas, Gringólogas e Garotas de Programa: falas, práticas, textos e imagens, em torno
de negras e mestiças, que apontam para a construção da identidade feminina nacional, a
partir da sensualidade atribuída à mulher brasileira”. Tomando como exemplo o turismo e o
comércio sexual em Salvador, o autor analisa imagens publicitárias veiculadas no Brasil e no
exterior, assim como narrativas de mulheres que entram em contato com turistas estrangeiros.
17
Sua conclusão é a de que as mulheres negras e mestiças, nessas imagens e textos, são
apresentadas como parte das atrações de lazer; sendo este fato uma conseqüência da
dimensão que adquiriu a imagem feminina em nosso país, a qual assim acaba por tornar-se
“[...] responsável pela noção – difundida pelo próprio povo brasileiro, representado em nossa
pesquisa, pelas mulheres, por seus agentes e pelas imagens e textos que são veiculados na
mídia especializada – de que a sensualidade feminina é uma marca do Brasil.” (DIAS FILHO,
1998).
O segundo trabalho foi defendido na Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo: a dissertação de mestrado de Rosana Bignami (2001), intitulada
Em busca de uma imagem: o discurso a respeito do Brasil em reportagens de turismo na
Itália” utiliza artigos e reportagens de uma revista italiana especializada em turismo na
análise e constata uma imagem turística do Brasil que aponta para a existência de graves
problemas sociais, reflete uma ideologia eurocêntrica e alerta para a falta de uma política de
promoção turística. Rosana Bignami publicou seu trabalho, acima citado, em 2002, sob o
título “A Imagem do Brasil no Turismo – construção, desafios e vantagens competitivas”. A
autora faz referência à duas investigações acadêmicas sobre as representações do Brasil no
exterior. Uma é a dissertação de mestrado de José Fernando Rodrigues, intitulada “Brazil for
Britons: not only samba and carnival. A study of Brazilian coverage in British quality
newspapers and of British readers’ perceptions of Brazil” (“O Brasil para os Britânicos: não
só samba e carnaval. Um estudo sobre a cobertura de jornais britânicos de qualidade e das
percepções de leitores britânicos a respeito do Brasil”), que foi defendida no programa de
“Master of Arts Course in International Journalism” da City University de Londres, em 1987
(BIGNAMI, 2002, p.102). Segundo Bignami, a pesquisa do jornalista Fernando Rodrigues
analisou 387 notícias dos mais importantes jornais ingleses durante o período de outubro de
18
1986 a março de 1987, constatando que a maioria das notícias teve enfoque econômico ou
político. Sobre os resultados da pesquisa, a autora revela que elementos considerados
fundamentais na representação da brasilidade “[...] tais como futebol, índios, carnaval e
samba apareceram com pouca freqüência nos jornais. Embora isso tenha sido constatado, o
autor diz que a imagem do Brasil sempre conduz àqueles aspectos na mente dos britânicos”.
(BIGNAMI, 2002, p. 102). Bignami também cita a tese de doutorado de Antônio Carlos
Amâncio da Silva sobre as representações do Brasil no cinema estrangeiro, defendida na
ECA-USP em 1998. Segundo a autora, a pesquisa de Silva dá conta da predominânica da
musicalidade e das belas imagens de natureza do Rio de Janeiro na associação de idéias com o
Brasil. Além disso, nas representações fílmicas analisadas,
[...] existe uma tendência a se mostrar o País como sendo um lugar onde não se
pode beber água, porque é mortal e onde, na noite do reveillon, os cariocas, todos
drogados, se ‘refocilam exorcisticamente na areia e se entregam em público a todo
tipo de dissipação’, com mulheres prontas a se entregar sexualmente a qualquer um.
(BIGNAMI, 2002, p. 98).
O binômio sensualidade/exotismo, presença constante nas narrativas a respeito do
Brasil e dos brasileiros, constitui um pólo positivo de representação, o qual é contrabalançado
pelas narrativas de violência e desvalorização das minorias. Nesse sentido, a imagem do
Brasil reveste-se de uma característica ambígua e contraditória, dividindo-se entre aquela de
“[...] país irresponsável [...]incapaz de punir os crimes mais hediondos contra as crianças, as
minorias e os pobres [e] a imagem positiva de país tropical abençoado por Deus e bonito por
natureza, como diz a famosa canção de Jorge Benjor”. (DAMATTA, 1996, p.216). No
entanto, as narrativas que enfatizam o Brasil como paraíso tropical e os brasileiros como povo
alegre e sensual estão presentes na mídia e no imaginário popular há mais tempo - desde pelo
menos a década de 40 - tendo como ponto focal a presença de Carmem Miranda nos filmes de
Hollywood (ORTIZ, 2001; CHAUÍ, 2000).
19
Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2002), Stuart Hall chama
a atenção para o caráter simbólico das construções identitárias. Ele argumenta que os
símbolos e as representações são tão importantes na composição das culturas nacionais quanto
as instituições culturais. Esclarece o autor (p. 50): “Uma cultura nacional é um discurso - um
modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção
que temos de nós mesmos [...]”. Nesse registro, Silva (2000, p. 78) reafirma o caráter
simbólico da construção da identidade: “A identidade e a diferença não podem ser
compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Não são
seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem.” E aqui podemos
acrescentar que, em conseqüência, as concepções que temos de nós mesmos interagem com as
concepções que outras culturas têm da nossa, posto que a identidade é construída na diferença
com o Outro – afirmo que sou brasileiro porque sei que não sou, por exemplo, americano ou
italiano. Para DaMatta (1994, p. 15), “[...] a identidade social é algo tão importante que o
conhecer-se a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia para se constituir
numa busca antropologicamente orientada.”
Nesse sentido, Hall (2002, p. 51) levanta algumas questões sobre estratégias de
representação: “Como é imaginada a nação moderna? Que estratégias representacionais são
acionadas para construir nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade
nacional? [...] Como é contada a narrativa da cultura nacional?” E, mais especificamente, nos
perguntamos a respeito do objeto desta dissertação: quais são as representações veiculadas
nos sites da Internet a respeito do Brasil e dos brasileiros? Como estas constroem uma rede de
significações sobre nossa identidade nacional nesse meio de comunicação, a Internet, tão
representativo de nossa contemporaneidade? Podemos constatar, portanto, a íntima relação
entre a construção de identidades, através de sistemas de representação, e sua expressão
20
através das narrativas. Assim, nossa opção de corpus empírico direciona-se para sites com
conteúdo cultural, que buscam divulgar a cultura brasileira para os internautas estrangeiros.
Nos parece que as tecnologias de informação e comunicação, em especial a Internet, surgem
como agentes potencializadores na difusão dessas representações na cultura contemporânea.
Autores como García Canclini (2003) e Castells (1999a) atestam a importância da Internet
como meio de comunicação representativo na intensificação da circulação de bens simbólicos
e de contato entre culturas diferentes.
Uma das estratégias utilizadas para representar a nação e a cultura nacional é
chamada por Hall (2002, p. 54) de narrativa do mito fundacional: “[...] uma estória que
localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que
eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo ‘real’, mas de um tempo ‘mítico’.”
Tomando o plano histórico, temos que no caso brasileiro o mito fundacional pode ser
localizado, ao contrário das nações européias, num tempo e espaço específicos: o momento do
descobrimento do país e da subseqüente colonização. Autores como Marilena Chauí (2000) e
Sérgio Buarque de Holanda (1994) afirmam que as concepções atuais da brasilidade estão
perpassadas pelo mito fundador: a representação de um Brasil calcado na natureza dadivosa e
edênica, assim como na convivência harmoniosa de um povo alegre e sensual. Tais
concepções encontram uma origem oficial na Carta de Pero Vaz de Caminha: uma narrativa
de contornos épicos cujos sentidos convergem para a mitificação do Brasil como sendo um
Paraíso Terrestre.
No plano simbólico, Chauí (2000) destaca o papel da mídia na atualização das
representações do mito fundador. No caso brasileiro, segundo a autora, é paradigmática a
apropriação ideológica do mito fundador pelo governo populista de Getúlio Vargas, que
utilizou principalmente o rádio para disseminar a imagem de “Brasil grande”. Assim sendo,
21
constata Chauí (p. 9), o mito possui a capacidade de atualizar-se continuamente: “Um mito
fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas
linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto
mais é a repetição de si mesmo.” A função ideológica do mito fundador e a maneira como
este se atualiza são explicitados pela autora:
O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em
cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do
ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que
comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos
vêm se acrescentar
ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que
necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se
das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova
quadra histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode
repetir-se indefinidamente. (CHAUÍ, 2000, p. 10, grifo nosso).
Baseados no resultado de pesquisas anteriores sobre a representação do Brasil e
dos brasileiros no exterior e na teorização de Chauí (2000) sobre a atualização do mito
fundador, tomamos em nossa investigação, como hipótese de trabalho, a ocorrência de
elementos do mito fundacional na narrativa dos sites analisados. Segundo Bignami (2002, p.
83) essa modalidade de representação persiste: “A imagem de um Brasil natural, edênico, faz
parte, sem dúvida e inclusive atualmente – para o mundo, de um modo geral - do processo de
classificação da nação para o estrangeiro”.
É nessa trama que intersecta a construção de representações identitárias, a
mundialização cultural e a Internet que se insere o objeto de pesquisa do presente trabalho: a
atualização do mito fundador da brasilidade no ciberespaço, vista a partir do exterior, ou
seja, tendo como objeto empírico o conteúdo de sites da Internet gerados no exterior em
língua inglesa e, portanto, voltados para o público estrangeiro.
Desta forma, chegamos ao problema de pesquisa:
22
Nesta nova arena global interligada pelas tecnologias de comunicação e
informação, como as representações sobre o Brasil e os brasileiros veiculadas em sites da
Internet gerados no exterior contribuem para atualizar o mito fundador de nosso país?
1.2 Objetivos
Estabelecemos como objetivo principal verificar a atualização do mito fundador
do Brasil e dos brasileiros na Internet em sites voltados para o internauta estrangeiro. Os
objetivos específicos estão delineados a seguir:
a) Identificar quais as imagens utilizadas e veiculadas pelos sites para narrar
a brasilidade.
b) Verificar como são construídas as representações a respeito do Brasil e
dos brasileiros nas narrativas verbais e visuais dos sites.
c) Identificar quais elementos do mito fundacional estão presentes nessas
representações.
O cumprimento destes objetivos proporcionará iluminar a produção de sentidos
sobre a brasilidade na Internet, num contexto de transformação social e cultural
proporcionado pelo fenômeno da globalização das sociedades e da mundialização da cultura.
Afinal, na contemporaneidade, continuamos tendo de lidar com nossas diferenças intrínsecas.
Estudá-las e compreendê-las parece ser a melhor forma de gerar um entendimento mais
fraterno entre os seres humanos, a oposição entre “nós” e o “outro”, para o qual este trabalho
busca ser uma contribuição no âmbito da compreensão de um aspecto – a representação da
23
identidade nacional no ciberespaço - da nova modernidade brasileira, entendida a partir de sua
relação com a alteridade.
Além desta introdução, a dissertação está estruturada em mais cinco capítulos. No
capítulo de número dois, “Globalização e produção de sentidos sobre o nacional”,
procuramos tematizar a ligação entre as mudanças trazidas pelo fenômeno da globalização e
sua relação com a produção de sentidos sobre a nação. No capítulo de número três, “Em busca
de uma identidade nacional: os caminhos de construção da brasilidade”, percorremos os
caminhos da formação da identidade nacional, com destaque para o mito fundador do Brasil e
sua incorporação nas representações a respeito do Brasil e dos brasileiros. No capítulo
quatro, os pressupostos metodológicos que orientam a investigação. Os dois capítulos
seguintes serão ocupados pela análise dos objetos empíricos. Por fim, as considerações finais.
24
2 GLOBALIZAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE O NACIONAL
O fenômeno da globalização das sociedades e da mundialização da cultura implica
em transformações profundas tanto em aspectos econômicos quanto culturais de nossa
contemporaneidade. Neste capítulo, procuramos tematizar a relação entre o advento da
globalização e as mudanças culturais, notadamente em relação aos modos de se pensar a
identidade nacional. Em primeiro lugar, fazemos uma reflexão em torno do conceito de
representação para, num segundo momento, articular sua importância em relação à produção
de sentidos sobre o nacional. A seguir, buscamos iluminar a questão da influência da
globalização sobre as identidades culturais. Como fecho do capítulo, discutimos o papel da
internet como elemento potencializador da intensificação do contato entre culturas diferentes.
2.1 Representação e produção de sentido
A etimologia da palavra representação remete ao latim repraesentatio. O termo,
segundo Gastaldo (2002, p.65),
[...] começou a ser usado a partir da Idade Média entre os escolásticos, referindo-se
a uma categoria da cognição, o conhecimento, entendido como “semelhança” com
o objeto. No fim da escolástica, o termo passou a ser usado para indicar o
significado das palavras. Ainda hoje esses sentidos para a palavra “representação”
continuam sendo empregados, embora muitos outros tenham vindo se agregar ao
longo do tempo.
Alguns desses múltiplos sentidos são esclarecidos por Silva (2000, p.90), que
revela que o conceito de representação tem uma longa história, o que lhe confere diversos
significados:
Na história da filosofia ocidental, a idéia de representação está ligada à busca de
formas apropriadas de tornar o “real” presente – de apreendê-lo o mais fielmente
possível por meio de sistemas de significação. Nessa história, a representação tem-
25
se apresentado em suas duas dimensões – a representação externa, por meio de
sistemas de signos como a pintura, por exemplo, ou a própria linguagem; e a
representação interna ou mental – a representação do “real” na consciência
.
Em O´Sullivan et al (2001) encontramos a conceituação de representação como
sendo tanto o processo social de representar quanto o produto do processo social de
representar, ou seja, o termo se refere tanto ao processo quanto ao produto de fazer com que
os signos se refiram a seus sentidos. Esse processo, operado pela representação, consiste em
colocar um conceito ideológico abstrato em formas concretas, ou seja, em significantes
diferentes: assim, pode-se ter representações de gênero, do nacional, da guerra e outras. A
representação, enquanto processo social de fazer sentido em todos os sistemas significantes
(fala, escrita, imprensa, vídeo, filme e até a Internet), guarda também em si a noção de re-
apresentação – o refazer e o trazer à vista diferentes significantes para o “mesmo” significado.
Trata-se então, segundo os autores, de pensar a representação como um conceito útil porque
“[...] unifica o que à primeira vista parece ser uma diversidade desconectada de pedaços
conceituais.” (O´SULLIVAN et al, 2001, p.214).
A definição acima inscreve-se claramente no campo de estudos de Comunicação e
Cultura, que considera a importância dos estudos de linguagem para o campo comunicacional
e toma o conceito da cultura como simbólico.
Nesse sentido, o termo representação é teorizado mais fortemente por Stuart Hall,
em diversos artigos. No entanto, é no seu ensaio The work of representation que o termo
adquire maior consistência. Para o autor, o termo representação significa, muito
simplesmente, a atribuição de sentido ao mundo real através da linguagem. Hall (1997a)
afirma que a representação utiliza-se de signos e símbolos, podendo ocorrer através de sons,
palavras escritas, imagens produzidas eletronicamente, notas musicais ou objetos. O autor
filia-se à uma abordagem construcionista da representação através da linguagem, que segundo
26
Hall (1997a, p.25, grifo do autor, tradução nossa) “[...] reconhece que nem as coisas em si
mesmas nem os usuários individuais podem fixar o sentido na linguagem. As coisas não
significam – nós construímos os sentidos, usando os sistemas de representação – conceitos e
signos”. Dessa forma, não se pode confundir o mundo material, onde as coisas e pessoas
existem de fato, com as práticas e processos simbólicos através dos quais a representação, o
sentido e a linguagem operam. Embora não neguem, obviamente, a existência do mundo
material, os construcionistas ressaltam que não é este que significa; o que significa, fixa e
transmite o sentido é a linguagem. O significado depende não da qualidade material do signo,
mas sim da sua função simbólica: “É porque um determinado som ou palavra está no lugar
de, simboliza ou representa um conceito que este som ou palavra pode funcionar, na
linguagem, como um signo e transmitir sentido – ou, como dizem os construcionistas,
significar.” (HALL, 1997a, p.26, grifo do autor, tradução nossa).
Portanto, torna-se claro que o autor é influenciado pelo pós-estruturalismo, pois é
este que vai questionar a noção filosófica clássica de representação baseada no mimetismo e
na realidade. No entanto, Silva (2000) enfatiza a preocupação em utilizar o conceito de
representação em conexão com uma teorização sobre a produção social da identidade e da
diferença:
Nesse contexto, a representação é concebida como um sistema de significação, mas
descartam-se os pressupostos realistas e miméticos associados com sua concepção
filosófica clássica. Trata-se de um representação pós-estruturalista. Isso significa,
primeiramente, que se rejeitam, sobretudo, quaisquer conotações mentalistas ou
qualquer associação com uma suposta interioridade psicológica. No registro pós-
estruturalista, a representação é concebida unicamente em sua dimensão de
significante, isto é, como um sistema de signos, como pura marca material. A
representação expressa-se por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um filme,
de um texto, de uma expressão oral. A representação não é, nessa concepção, nunca,
representação mental ou interior. A representação é, aqui, sempre marca ou traço
visível, exterior. Em segundo lugar [...] o conceito de representação incorpora todas
as características de indeterminação, ambigüidade e
instabilidade atribuídas à
linguagem [...]. Aqui, a representação não aloja a presença do “real” ou do
significado. A representação não é simplesmente um meio transparente de expressão
de algum suposto referente. Em vez disso, a representação é, como qualquer
sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a
representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e
27
estreitamente ligado a relações de poder. (SILVA, 2000, p. 90-91, grifo em itálico do
autor e grifos em negrito nossos).
Conforme afirma Stuart Hall (1997a) a representação consiste no processo pelo
qual membros de uma cultura usam a linguagem - definida de forma ampla como qualquer
sistema que emprega signos, qualquer sistema significante – para produzir sentido. Trata-se
aqui, para o autor, de deixar claro que somos nós, na sociedade, dentro das culturas humanas,
que fazemos as coisas tomarem sentido, ou seja, é o ser humano que significa as coisas; estas,
as pessoas, os objetos e eventos do mundo real não podem significar-se a si mesmos. Não há
garantia de que os mesmos objetos tenham os mesmos significados em culturas diferentes.
Esta é uma atribuição humana que nos diferencia fundamentalmente dos animais, por
exemplo. Representar significa, acima de tudo, produzir significado. O ponto-chave aqui,
portanto, é reconhecer que as representações constroem a realidade: “Assim, por exemplo, o
cinema, a literatura, as imagens da televisão não são um espelho que reflete a realidade
existente, mas essas representações nos constituem como sujeitos e, ao mesmo tempo, nos
posicionam na mesma realidade.” (ESCOSTEGUY, 2003, p. 67).
Assim, o conceito de representação se torna central nos estudos sobre identidade e
diferença pois, na medida em que estas têm de ser representadas, permanecem ligadas a
sistemas de poder: “[...] quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar
a identidade.” (SILVA, 2000, p. 91). De que forma isso ocorre em termos da identidade
nacional? Por que podemos afirmar, como defende Hall (2002) que uma nação é um discurso,
um modo de construir sentidos? É o que discutiremos a seguir.
28
2.2 Uma nação é um discurso: o papel da representação
O que é uma nação? A clássica definição de identidade nacional de Anthony D.
Smith (1997) ressalta a vinculação entre identidade nacional e território: a identidade nacional
pressupõe a existência de laços de pertença entre um grupo humano, designados por um
gentílico, compostos das seguintes características: um território histórico, ou pátria;
lembranças históricas e mitos coletivos; uma cultura de massas pública e comum para todos;
direitos e deveres legais e iguais para todos os membros, e uma economia unificada que
permite a mobilidade territorial dos membros. Nesse contexto, torna-se fundamental pensar na
evolução do conceito de nação em relação à categoria espaço. Mitra (2000, p. 692, tradução
nossa) nos esclarece que passamos de uma idéia de “[...] nação baseada na construção
geográfica, para a idéia de Gramsci de nação como sociedade civil e daí para a proposição de
Benedict Anderson de nações como comunidades imaginadas.” Anderson (1989) argumenta
que a construção do nacionalismo depende da disponibilidade de uma cultura impressa (como
o livro e o jornal) que interconecte as pessoas além do tempo e do espaço. Este conceito torna
possível pensar comunidades e nações estruturalmente, indo além da caracterização histórica
e geográfica, servindo de base para muitos autores pensarem o conceito de comunidades
virtuais. A conexão entre a nação e o simbólico também está presente nos escritos de Homi
Bhabha (1990, p.1, tradução nossa): “As nações, como as narrativas, perdem suas origens nos
mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente.” Para
Ernest Renan, autor do clássico ensaio O que é uma Nação?, a essência de uma nação es
calcada na memória coletiva e no desejo de seus cidadãos de perpetuá-la:
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas, que na verdade são uma
só, constituem esta alma ou princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no
presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de memórias; a outra é o
consentimento do dia presente, o desejo de viver juntos, a vontade de perpetuar os
29
valores da herança que se recebeu de forma individida. (RENAN, 1990, p.19,
tradução nossa).
A partir da citação de Renan, queremos neste ponto destacar o papel do elemento
simbólico nos modos de se considerar a nação. Para Hall (2002), as identidades nacionais são
formadas e transformadas no interior de sistemas de representação, constituindo-se numa
comunidade imaginada, como defende Benedict Anderson (1989). Para este autor,
comunidades e nações podem ser imaginadas em torno de práticas culturais compartilhadas.
Nesse sentido, Hall (2002) ressalta a importância do elemento simbólico nas
construções identitárias: para ele, uma cultura nacional é um discurso, composto por símbolos
e representações que dão suporte a uma comunidade simbólica. Nas palavras do autor,
As culturas nacionais, ao produzirem significações sobre "a nação", sentidos com os
quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos
nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente
com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2002, p. 51).
Nesse registro, Benedict Anderson (1989, p. 15) destaca a importância do
simbólico na produção de sentidos sobre a nação: “As comunidades não devem ser
distinguidas por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas.”
Elaborando a afirmação de Anderson, Hall (p. 51) afirma que este “[...] argumenta que as
diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas.”
Desta forma, Hall assinala que a nação não se restringe à uma entidade política mas se
constitui num sistema produtor de sentidos, através do mecanismo da representação. Para
Hall, "As pessoas não são apenas cidadãos/cidadãs legais de uma nação; elas participam da
idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade
simbólica." (2002, p.49, grifo do autor).
Analisar como é contada a narrativa de uma cultura nacional é tarefa bastante
complexa, acredita Stuart Hall (2002). No entanto, o autor destaca cinco elementos principais,
30
aos quais denomina estratégias discursivas que narram a nação. São eles: a narrativa da nação;
a ênfase nas origens, na tradição, na continuidade e na intemporalidade; a invenção da
tradição; a narrativa do mito fundacional; e, por fim, a narrativa do folk ou povo puro,
original.
Para analisar como é formada a narrativa da cultura nacional, Stuart Hall (2002)
detalha as cinco estratégias discursivas principais mencionadas acima: em primeiro lugar, há
a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais,
na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas,
cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as
experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação. Como
membros de tal "comunidade imaginada" (ANDERSON, 1989), nos vemos, no olho de nossa
mente, como compartilhando dessa narrativa.
A segunda estratégia discursiva coloca a ênfase nas origens, na continuidade, na
tradição e na intemporalidade. A identidade nacional é representada como primordial - os
elementos do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudes da
História. Está lá desde o nascimento, unificado e contínuo, "imutável" ao longo de todas as
mudanças, eterno. Aqui a estratégia discursiva aproxima-se do modo de construção da
identidade nacional que é denominado "essencialista", que concebe a identidade como fixa na
História.
Uma terceira estratégia discursiva é constituída, conforme relata-nos Stuart Hall
(2002) por aquilo que Hobsbawm e Ranger (1984 apud HALL)
6
chamam de invenção da
tradição. Constitui-se basicamente de tradições inventadas, que parecem antigas mas na
verdade são recentes. Na cultura brasileira, um exemplo emblemático é citado por Oliven
6
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984, p.9. Apud HALL, 2002, p.54.
31
(1992): o dos movimentos tradicionalistas gaúchos, que reviveram as tradições ancestrais
acrescentando novos elementos, inventados - caso dos vestidos de prenda.
Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito fundacional: uma
estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão
distante que eles se perdem nas brumas de um tempo mítico. A quinta e última estratégia
discursiva mencionada por Hall (2002) preconiza que a identidade nacional é também muitas
vezes simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folk puro, original. Mas, observa Hall,
nas realidades do desenvolvimento nacional, é raramente esse povo (folk) primordial que
persiste ou que exerce o poder. Novamente aproximamo-nos aqui da idéia de uma identidade
nacional essencialista.
Para o autor, discutir as estratégias discursivas que narram a nação serve para
mostrar que o discurso da cultura nacional pode construir identidades contraditórias:
Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o
futuro. Ele se equilibra entre a tentação de retornar a glórias passadas e o impulso
por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são
tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para
aquele 'tempo perdido', quando a nação era 'grande'; são tentadas a restaurar as
identidades passadas. (HALL, 2002, p. 56).
Nesse sentido, Hall (1997c) afirma que as identidades culturais pertencem tanto ao
passado quanto ao futuro, mas que devem ser pensadas nos termos de uma produção que está
em permanente transformação – ou seja, as identidades são construídas socialmente -
constituindo-se sempre dentro, e não fora, da representação:
Longe de estarem eternamente fixadas em algum passado essencializado, [as
identidades culturais] estão sujeitas ao contínuo curso da história, cultura e poder.
Longe de estarem enraizadas em uma mera ‘recuperação’ do passado, que está
esperando ser encontrado e, quando o for, assegurará nosso sentido de nós mesmos
para a eternidade, identidades são os nomes que nós damos às diferentes formas
pelas quais somos posicionados pelas narrativas do passado e nos posicionamos
dentro delas. [...] [O passado] é sempre construído através da memória, da fantasia,
da narrativa e do mito. Identidades culturais são pontos de identificação, os pontos
instáveis de identificação ou sutura, que são feitos dentro do discurso da história e
32
da cultura. Não uma essência mas um posicionamento. (HALL, 1997c, p.53, grifo
do autor, tradução nossa).
2.3 A influência da globalização sobre as identidades
Com a intensificação do fenômeno da globalização sobreveio o temor do advento
de uma cultura global, onde as culturas do mundo e as identidades nacionais estariam
ameaçada por fluxos econômicos, informacionais e culturais uniformizantes. Embora não se
possa negar o impacto da globalização sobre a cultura e sobre as identidades, autores como
Featherstone (1999) e García Canclini (2003) não acreditam na existência de uma cultura
global. O último chega mesmo a afirmar: “Muito do que se diz sobre a globalização é falso.
Por exemplo, que ela uniformiza todo o mundo”. (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 41).
No entanto, embora a idéia de uma cultura global pareça ser remota, o fato é que,
principalmente pela intensificação de fluxos informacionais e migratórios que conduzem ao
crescimento dos contatos interculturais, as identidades nacionais são, sim, influenciadas pela
globalização. A respeito do impacto do processo globalizatório sobre as identidades, Stuart
Hall (2002) discute o advento de uma identidade cultural pós-moderna, marcada pela
fragmentação e pelo descentramento. Em síntese, Hall (2002, p.7) afirma que
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em
essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A
assim chamada 'crise de identidade' é vista como parte de um processo mais amplo
de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social.
Da mesma forma, para Stuart Hall (2002), a reflexão sobre como as identidades
culturais, em especial a identidade nacional, são afetadas ou deslocadas pela globalização
33
continua presente, pois "[...] as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma
das principais fontes de identidade cultural" (p. 47).
Entretanto, Hall ataca fortemente a idéia de nação como uma identidade cultural
unificada, tal como é apresentada no interior dos sistemas de representação. Prova seu
argumento analisando a composição étnica das sociedades européias para concluir que “[...] a
Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma
única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais. (HALL, 2002, p.
62, grifo do autor). Para o autor, as identidades culturais pós-modernas são caracterizadas pela
fragmentação, descentramento e multiplicidade. Da mesma forma, as identidades nacionais na
pós-modernidade não são unívocas, deslocando-se, desta forma, de uma concepção
essencialista de identidade para uma que privilegia a construção social.
Para dar conta da proposição de que as identidades nacionais na pós-modernidade
não são unívocas, Hall (2002) toma como ponto de partida a premissa de que a globalização
está deslocando as identidades nacionais, sendo o fator de maior pressão a compressão
espaço-tempo, que aumenta o ritmo de integração global e acelera os fluxos e laços entre as
nações. Analisando os impactos desses aspectos da globalização sobre as identidades culturais
(em especial a identidade nacional), Hall identifica três conseqüências possíveis: a
desintegração, o reforço ou o surgimento de novas identidades híbridas.
A primeira conseqüência seria a de que as identidades estariam se desintegrando,
como resultado do crescimento da homogeneização cultural (propiciado primariamente por
padrões de consumo compartilhados) e do “pós-moderno global”. Por “pós-moderno global”,
Hall compreende a “[...] fragmentação de códigos culturais, multiplicidade de estilos, ênfase
no efêmero, no flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural [...] mas
agora numa escala global.” (HALL, 2002, p. 74). O autor não acredita na desintegração das
34
identidades por causa da homogeneização, citando três contratendências principais: primeiro,
ao lado da tendência homogeneizante convive, paradoxalmente, uma fascinação com a
diferença e com a alteridade; o impacto do global reativa o interesse pelo “local” e não o
substitui. Segundo, a globalização é desigualmente distribuída ao redor do globo e, terceiro,
devido à assimetria do fluxo globalizador, ela pode ser considerada um fenômeno
primordialmente ocidental. A segunda conseqüência discutida por Hall é a de que as
identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estariam sendo
reforçadas pela resistência à globalização. Hall exemplifica tal afirmação com o revival de
movimentos nacionalistas na Europa e o crescimento do fundamentalismo. Para ele, “O
fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles
membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras
culturas.” (2002, p. 85). Por fim, o autor identifica as identidades híbridas, possibilitadas
pelas migrações transnacionais, onde os sujeitos têm de transitar e negociar entre culturas
diferentes, o que caracteriza a sua condição intercultural. Para ele, as identidades movem-se
em direção a dois eixos: a Tradição, no qual as identidades culturais tentam resgatar uma
“pureza” ancestral uma essência inata – caso dos movimentos nacionalistas; e a Tradução,
onde existe uma permanente negociação entre “velhas” e “novas” identidades – caso das
identidades híbridas.
Em conclusão, Hall destaca que a globalização parece produzir efeitos mais
contraditórios do que inicialmente se poderia supor. Nem o global nem o local, em sua velha
forma “nacional”, são dominantes, ao invés disso, influenciam-se mutuamente. O autor (2002,
p. 87) acredita que a globalização realmente parece ter o efeito de deslocar as velhas
identidades fechadas de uma cultura nacional, trazendo novas possibilidades de identificação:
“[...] ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de
35
possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais,
mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas”.
2.4 Globalização, diversidade cultural e Internet
A globalização parece ter como aspecto central a intensificação das interligações
entre as sociedades, seja em seus aspectos econômicos ou culturais. A crescente
uniformização dos fluxos
econômicos gerou o temor de que o mesmo poderia ocorrer com a
cultura. Se, num primeiro momento, parecia provável o aparecimento de uma cultura global
unificada, rapidamente a discussão deslocou-se para a questão das novas possibilidades
trazidas pela globalização.
A respeito do que se convencionou chamar de “oposição local-global”, ou seja, da
tensão entre homogeneização e diversidade cultural, há opiniões diferentes. García Canclini
(2003, p. 31) acredita que “A intensificação dos intercâmbios, sobretudo com países
próximos, põe em cheque os estereótipos que tínhamos em relação a eles”. Para Featherstone,
citando o trabalho de Smith e Robertson (1999, p. 16) é preciso perceber que a intensificação
dos contatos faz com que as nações se aproximem uma das outras em competições por
prestígio cultural. Appadurai (1999, p. 311) acredita que “O problema central das interações
globais atuais é a tensão entre a homogeneização cultural e a heterogeneização
cultural”.Autores como García Canclini (2003) e Featherstone (1999) preferem discutir a
questão pelo viés da interculturalidade e da intensificação de contatos entre culturas. Para
Featherstone (1999, p. 17), “As variedades de respostas ao processo de globalização sugerem
com toda a clareza que existe pouca perspectiva de uma cultura global unificada; pelo
contrário, existem muitas culturas no plural”. García Canclini (2003, p. 31) percebe que “Com
36
a expansão global dos imaginários, incorporam-se ao nosso horizonte culturas que, até há
poucas décadas, sentíamos estranhas à nossa existência”. Para o autor (p. 28) a globalização e
a mundialização, mais do que ameaçar as identidades, trazem a questão de como encarar a
heterogeneidade, a diferença e a desigualdade, trazendo a esperança de que a convivência
global seja mais compreensiva.
Nesse sentido, parece ser fundamental o papel das tecnologias de comunicação na
expansão do imaginário global. Pretendemos, aqui, discutir mais detidamente o papel da
mídia, e em especial da Internet, na circulação dos fluxos globais de informação. García
Canclini (2003, p. 13) ressalta que “Onde a globalização aparece mais claramente é no mundo
audiovisual: música, cinema, televisão e informática vêm sendo reordenados, por umas
poucas empresas, para serem difundidos em todo o planeta”. Appadurai (1999) acredita que a
mídia constitui um dos cinco fluxos culturais globais que compõem a complexidade da
globalização. O repertório de imagens e de informações produzido e distribuído pela indústria
cultural é chamado pelo autor de “mídiapanoramas”. Os outros quatro fluxos culturais globais
que compõem o modelo de fluxo cultural global do autor são: o fluxo transnacional de
pessoas - “etnoparamas” -, o fluxo de tecnologias – “tecnoparamas” -, o fluxo de dinheiro –
“finançopanoramas” – e o fluxo de idéias e ideologias pró e contra o Estado – os
“ideopanoramas”.
O que parece estar em jogo no fenômeno Internet é justamente a intensificação da
circulação dos fluxos informacionais, assim como o âmbito global de seu alcance. A respeito
do potencial da Internet como meio de comunicação “de massa”, Castells (1999a,
p. 439)
revela que, em termos históricos, a Internet tem se disseminado mais velozmente do que
qualquer outro meio de comunicação: “[...] nos Estados Unidos, o rádio levou trinta anos para
chegar a sessenta milhões de pessoas; a TV alcançou esse nível de difusão em quinze anos; a
37
Internet o fez em apenas três anos após a criação da teia mundial.” Em outro lugar, o autor
comenta a respeito do crescimento da Internet:
O uso da Internet como sistema de comunicação e forma de organização explodiu nos
últimos anos do segundo milênio. No final de 1995, o primeiro ano de uso
disseminado da world wide web, havia cerca de 16 milhões de usuários de redes de
comunicação por computador no mundo. No início de 2001, eles eram mais de 400
milhões; previsões confiáveis apontam que haverão cerca de um bilhão de usuários
em 2005, e é possível que estejamos nos aproximando da marca dos dois bilhões por
volta de 2010, mesmo levando em conta uma desaceleração da difusão da Internet
quando ela penetrar no mundo da pobreza e do atraso tecnológico. (CASTELLS,
2003a, p. 8)
Desta forma, cumpre pensar o contexto em que a Internet assume importância: a
globalização do capital, onde os novos meios de comunicação eletrônica servem a interesses
econômicos. Nesse sentido, Santaella (2003, p. 24) lembra a ligação constitutiva entre o
ciberespaço e o capitalismo: “[...]o mundo digital nasceu e cresce no terreno das formações
socioeconômicas e políticas do capitalismo globalizado.” Assim, a autora (p. 25) deseja
chamar a atenção para a evidência do impacto do capitalismo sobre a Internet, pois embora
“[...] o ciberespaço possa ser significantemente diferente de outras mídias culturais, seus
programas, realidades virtuais e experiências dos usuários estão tão firmemente enraizados no
capitalismo contemporâneo quanto qualquer outra forma de cultura.”
Castells (2003b, p. 262) lembra que as tecnologias são produzidas por seu
processo histórico de constituição, mais do que por desenhos próprios da tecnologia:
A famosa idéia de que a Internet é algo de incontrolável, libertário etc. está na
tecnologia, mas porque ela foi desenhada , no curso de sua história, com essa
intenção. Quer dizer, é um instrumento de comunicação livre, criado de forma
múltipla por pessoas, setores e inovadores que queriam que fosse um instrumento
de comunicação livre.
O autor entrevê possibilidades amplas para as novas formas de comunicação
eletrônica, relacionando-as com mudanças culturais. Castells (2003a, p. 7) afirma que
38
A Internet é o tecido de nossas vidas. Se a tecnologia da informação é hoje o que a
eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época a Internet pode ser equiparada
tanto a uma rede elétrica quanto ao motor elétrico, em razão de sua capacidade de
distribuir a força da informação por todo o domínio da atividade humana.
O autor (1999a) tematiza a importância da Internet para a cultura, equiparando o
advento de um novo sistema de comunicação eletrônica, que atualmente possui a forma do
que conhecemos como Internet, à invenção da escrita:
A integração potencial de texto, imagens e sons no mesmo sistema – interagindo a
partir de pontos múltiplos, no tempo escolhido (real ou atrasado) em uma rede
global, em condições de acesso aberto e de preço acessível – muda de forma
fundamental o caráter da comunicação. [...] Como a cultura é mediada e
determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de
crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira
fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do
tempo. (CASTELLS, 1999a,
p. 414).
Nesse contexto, reconhece-se a possibilidade do uso político e ideológico das
novas tecnologias, em especial a Internet. Para Martín-Barbero (2002, p. 18, tradução nossa)
as tecnologias não são neutras; possuem função política e tornam-se constitutivas de novos
modos de representação:
As tecnologias não são neutras pois hoje, mais do que nunca, elas constituem
enclaves de condensação e interação de interesses econômicos e políticos com
mediações sociais e conflitos simbólicos. Por isso mesmo elas são constitutivas dos
novos modos de construir opinião pública e das novas formas de cidadania, isto é, das
novas condições em que se diz e se faz política.
Tudo isso nos leva, no caso de nossa pesquisa, à investigação de como as
identidades nacionais são narradas na contemporaneidade através do uso das novas
tecnologias de comunicação e informação, em especial a Internet. Até que ponto a técnica,
que permite a intensificação dos contatos, pode ter um papel relevante na expressão da
diversidade cultural no cenário globalizado, dominado pela hegemonia cultural norte-
americana? Afinal, a Internet possui um grande diferencial em relação à outras mídias, como
a televisão, conforme lembra Castells (1999a,
p. 439): “[...] os consumidores da Internet
também são produtores, pois fornecem conteúdo e dão forma à teia”. Nesse registro, Lévy
39
(1999) acredita que o desenvolvimento de uma alternativa às mídias de massa constitui um
dos principais significados da emergência do ciberespaço. Apesar de concordar que a questão
da infra-estrutura e da competência educacional ainda podem se constituir em barreiras de
acesso à Internet, o autor (p. 241, grifo do autor) ressalta que “[...] o principal fato a ser
lembrado é que os freios políticos, econômicos ou tecnológicos à expressão mundial da
diversidade cultural jamais foram tão fracos quanto no ciberespaço”. Uma das principais
potencialidades abertas pela interconexão geral e pela digitalização das informações, de
acordo com Lévy (1999, p. 239) é o fim dos monopólios da expressão pública: “Qualquer
grupo ou indivíduo pode ter, a partir de agora, os meios técnicos para dirigir-se, a baixo custo,
a um imenso público internacional.”
Em um mundo onde uma cultura global de consumo parece não sinalizar a
transcendência rápida da nação, García Canclini (2003) acredita ser importante relatar de que
maneira as narrativas tradicionais sobre os vínculos interculturais entre as sociedades são
reatualizadas ao serem situadas na globalização. Destacando o papel da mídia de massa, o
autor (p. 131) afirma que “[...] temos de começar a dizer de que maneira esses vínculos são
imaginados atualmente pelas indústrias culturais, narrados em mensagens televisivas e
eletrônicas e administrados por lobbies empresariais”. No caso da América Latina, García
Canclini (2003, p. 94) acredita que, apesar das aproximações migratórias, comerciais e
midiáticas da globalização, “[...] poucas mudanças ocorreram nos imaginários que circulam
entre a Europa, os Estados Unidos e a América Latina.” Para o autor (p. 86), o desencontro
entre latino-americanos e norte-americanos é um relato muito antigo e é “[...] um exemplo do
que a globalização não pode uniformizar.”
A atualidade da questão da diversidade cultural no contexto do processo de
mundialização cultural é defendida por Oliven (1992), que assinala que o mundo está
40
assistindo à afirmação das diferenças. A questão da identidade nacional, acredita o autor (p.
39) é “[...] reposta e atualizada à medida que novos contextos são criados”, sendo que, na
contemporaneidade, o fenômeno da globalização das sociedades e da mundialização da
cultura torna-se o novo contexto que incentiva o repensar a questão das identidades nacionais
e suas representações, principalmente midiáticas. A respeito da permanência de nações e
nacionalismos numa era global, afirma Smith (1999, p. 136): “Ambos continuam a ser
elementos indispensáveis de um mundo interdependente e de uma cultura de comunicações de
massas”.
Para Oliven (1992), apesar de estarmos inseridos no cenário globalizado,
necessitamos de marcos de referência que estejam mais próximos:
Uma das razões pela qual a problemática da nação e da tradição permanece sendo
extremamente atual, num mundo que tende a se tornar uma “aldeia global”, se deve
ao fato de as pessoas continuarem a nascer num determinado país e região, a falar sua
língua, a adquirir seus costumes, a se identificar com seus símbolos e valores, a torcer
por sua seleção nacional de esporte, a respeitar sua bandeira e a serem convocados
para defender as fronteiras da pátria e morrer pela honra nacional. (OLIVEN, 1992, p.
27).
Assim, quando se articula a questão das construções identitárias e da diversidade
cultural na globalização, é preciso assinalar a importância das narrativas para a constituição
das representações identitárias. Nas palavras de Jesús Martín-Barbero (2002, p. 15, tradução
nossa), podemos constatar a relação constitutiva entre narrativa e identidade: “[...] para que a
pluralidade das culturas do mundo seja politicamente levada em consideração é indispensável
que a diversidade de identidades nos possa ser contada”. O autor acredita que não há
identidade cultural que não seja contada, narrada, sendo que as formas de narrar a própria
identidade cultural ou as dos outros estão intimamente ligadas ao ideológico. Os processos de
imperialismo ajudam a explicar a transcendência que tomou o tema das identidades na
modernidade, no ponto de vista de Machado da Silveira (2003). A autora (p. 26) enfatiza a
41
ligação entre representações identitárias e meios de comunicação na contemporaneidade:
“Existe um longo recorrido que liga as narrativas mitológicas e sua cristalização em
representações que alcançaram nossos dias, atualizando-se através de processos tecnológicos
denominados ‘midiáticos’”.
Procuramos demonstrar, neste subcapítulo, que as tecnologias de informação e
comunicação, em especial a Internet, surgem como agentes potencializadores na difusão
dessas representações na cultura contemporânea. Estudar as representações do Brasil e dos
brasileiros que circulam na Internet em um contexto de globalização das sociedades e
mundialização da cultura passa, entretanto, pela reconstituição dos caminhos de construção da
brasilidade e da legitimação de seus símbolos. Esse é o tema do próximo capítulo.
42
3 EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE NACIONAL: OS CAMINHOS DA
CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADE
A preocupação com a questão da identidade nacional têm sido uma constante na
trajetória da vida intelectual brasileira. Ao longo de nossa História, a busca pelo entendimento
do nacional vem marcada pela discussão sobre o desenvolvimento econômico e por um forte
desejo de inserção mais eqüitativa do Brasil no cenário internacional. Para Renato Ortiz
(2001, p. 183), “[...] a busca de uma identidade nacional se insere na trama da história
brasileira na sua relação com o mundo exterior”. O marco inicial dessa relação pode ser
assinalado, de forma paradigmática, já na carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei de Portugal,
que inaugura um período onde as representações do Brasil e dos brasileiros se davam
principalmente pelos relatos dos viajantes estrangeiros.
O que propomos neste capítulo é trilhar os caminhos históricos e intelectuais que
conduzem à noção de brasilidade tal como a conhecemos hoje em dia. Em primeiro lugar, nos
deteremos sobre a formação do mito fundador do Brasil, calcado na idéia de Paraíso Terrestre.
Em segundo lugar, percorreremos a trajetória intelectual em busca da identidade nacional que
se inicia em meados do século XIX, quando o aquecimento da Revolução Industrial (no
contexto externo) e a Proclamação da República (no cenário interno) deflagram a discussão
sobre a influência do caráter nacional brasileiro nas possibilidades de desenvolvimento
econômico do Brasil em relação ao dito “mundo civilizado”. Veremos também como a obra
de intelectuais como Gilberto Freyre contribuiu para a instauração do mito da “democracia
racial”, o qual foi muito conveniente para o governo de Getúlio Vargas e seus planos de
integração do Brasil, quando o popular se torna nacional. As visões mais recentes de
brasilidade, que buscam explicar, no dizer de Roberto DaMatta (1994) “o que faz o brasil,
43
Brasil” concluem o capítulo. Em suas similaridades e diferenças, as reflexões das diferentes
correntes intelectuais que procuram interpretar o Brasil, segundo Ortiz (2001) guardam dois
pontos em comum: a inquietação com a busca de um destino nacional e a obsessão em criar
uma imagem na contraposição com o outro.
3.1 O mito fundador e a visão do Paraíso
Para que possamos explorar a construção do mito fundador do Brasil, é preciso
que tenhamos em conta o contexto histórico da época das Grandes Navegações, quando as
idéias da Igreja eram predominantes.
Marilena Chauí (2000) explica que o Brasil é uma invenção histórica e uma
construção cultural, ou seja, uma criação dos conquistadores europeus. Dito de outro modo,
“[...] a América foi sendo desenhada e descrita por pensadores, artistas, navegadores e
autores, durante um longo processo de conhecimento e estabelecimento de identidades”.
(BIGNAMI, 2002, p. 79). Deste modo, surge um mito fundador, uma idéia de Brasil que
percorre nossa história, atualiza-se continuamente – onde os novos discursos retomam
discursos preexistentes - e está presente nos símbolos cívicos como a bandeira e o hino
nacionais, na cultura brasileira e na maneira como os brasileiros se vêem e são vistos. Para
Chauí (2000, p.57, grifo da autora), “O Brasil foi instituído como colônia de Portugal e
inventado como ‘terra abençoada por Deus’, à qual, se dermos crédito a Pero Vaz de
Caminha, ‘Nosso Senhor não nos trouxe sem causa [...]”. É justamente essa construção
cultural que a autora designa como “mito fundador” do Brasil. A perspectiva divina, portanto,
é determinante na elaboração do mito fundador, que se desdobra em três elementos: a visão da
Natureza como obra de Deus, com a elaboração mítica do símbolo Oriente; a história pela
44
perspectiva teológica, ou seja, como a palavra e plano de Deus; e a sagração do governante
como rei pela vontade divina, isto é, pela vontade de Deus. Exploraremos aqui principalmente
o elemento do mito fundador que estabelece o Brasil como “visão do paraíso”, na formulação
clássica de Sérgio Buarque de Holanda (1985). O elemento político da sagração do
governante, com seus desdobramentos na cultura senhorial e no populismo, serão explorados
mais adiante, nas formulações de Marilena Chauí e Roberto DaMatta.
Chauí (2000) e Holanda (1994) percorrem o itinerário da construção do poderoso
mito do Paraíso Terrestre. A idéia da existência de um Jardim do Éden, cortado por rios de
leite e mel, já estava presente nos escritos antigos e medievais. Toda uma literatura cujo tema
era a localização e descrição do Paraíso Terrestre desenvolve-se na Idade Média com base em
textos antigos e é retomada durante a Renascença. É nos escritos medievais que são
mencionadas as Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas que, de acordo com as tradições
fenícia e irlandesa, localizavam-se a oeste do mundo conhecido; onde homens e animais
conviviam em harmonia, existia a primavera eterna e abundância de águas; não havia fome,
sede, doença ou sofrimentos; a vegetação era luxuriante e bela e a gente, dócil e amiga.
Os livros de História nos ensinam que o Brasil deve seu nome ao pau-brasil, árvore
abundante na época do descobrimento e da qual se obtinha um pó usado para tingir tecidos de
vermelho ou púrpura. A respeito da etimologia da palavra “brasil” , esclarece Tufano (1998,
p. 13):
A abundância dessa árvore pode ter contribuído para que a nova terra passasse a ser
chamada de “Brasil”, que, segundo alguns estudiosos, derivou do germânico brasa,
com o mesmo sentido que hoje tem em português. No século XII são registradas, em
francês, a forma brésil; em provençal, brézil; em italiano, braxile e brasile. Essas
palavras significavam “brasa” e eram usadas também com referência à madeira da
qual se extraía um corante da cor do fogo.
Mas a palavra “brasil” tem sua existência registrada desde épocas bem anteriores.
A anterioridade da palavra “Brasil” ao descobrimento e sua ligação com a idéia de paraíso,
45
através da imagem das Ilhas Afortunadas, são enfatizados por Chauí (2000, p. 60): “Os
fenícios as designaram com o nome Braaz e os monges irlandeses a chamaram de Hy Brazil.
Da mesma forma, Holanda (1994) revela que mapas irlandeses e catalães datados a partir do
ano de 1300 – uma primeira representação conhecida surge em 1330 (ou 1325) na carta catalã
de Angelino Dalorto - já representavam a localização, a sudoeste da Irlanda, da ilha mítica
conhecida pelas denominações Hy Brasil, Hy Breasial, Hy Bressail ou O´Brazil. O
significado de tais denominações? Ilhas Afortunadas.
Chauí (2000) nos recorda que, na Bíblia cristã, o paraíso terrestre localiza-se no
Oriente. Posteriormente, o termo “Oriente” vem a significar, nos escritos medievais e também
dos primeiros viajantes e dos jesuítas, o reencontro com a origem perdida, ou seja, o Paraíso
Terrestre descrito na Bíblia. No plano histórico construído na tradição judaico-cristã, o
achamento do Brasil demarca a realização do plano divino, fixando-se assim Deus e a
Natureza como os agentes fundadores da nação brasileira:
Se o Brasil é “terra abençoada por Deus”, se é paraíso reencontrado, então somos
berço do mundo, pois somos o mundo originário e original. E se o país está ‘deitado
eternamente em berço esplêndido’ é porque fazemos parte do plano providencial de
Deus [...]. Nosso passado assegura nosso futuro num continuum temporal que vai
da origem ao porvir e se somos, como sempre dizemos, “Brasil, país do futuro”, é
porque Deus nos ofereceu os signos para conhecermos nosso
destino: o Cruzeiro do
Sul, que nos protege e orienta, e a Natureza-Paraíso, mãe gentil. (CHAUÍ, 2000, p.
75).
A construção do mito fundador do Brasil, portanto, nutre-se dos antigos relatos
medievais e renascentistas que apostavam na real materialidade de um paraíso terrestre.
Holanda (1994) revela que os escritos dessa época, tais como o Boosco Deleitoso e o Orto do
Esposo, de autoria anônima, buscavam descrever as características que inevitavelmente
identificariam o paraíso bíblico perdido na Terra:
O parayso terreal he orto deleitoso, em que ha todas maneyras de aruores fremosas
que dam fructu. [...] e em elle nõ ha frio nem quentura, mais ha hy sempre temperança
46
de aar, e eña meetade delle estaa hua fonte que rega todo o pomar, e esta fonte se
parte em quatro partes de que se faze quatro ryos. (MAIER, 1956 apud HOLANDA).
7
Ainda segundo Holanda (1994), a popularidade de histórias do mesmo teor parece
explicar a mentalidade dos navegadores na busca desta terra prometida. Os modelos edênicos
presentes nos relatos medievais provinham de esquemas literários que tinham origem na
Antigüidade greco-romana, onde os poetas exaltavam uma “idade feliz” que teria existido no
começo dos tempos, onde o homem não precisaria labutar para conseguir o pão de cada dia:
“[o] solo generoso, sob constante primavera, dava de si espontaneamente os mais saborosos
frutos, onde os homens, isentos de desordenada cobiça (pois tudo tinham sem esforço e de
sobejo), não conheciam ‘ferros, nem aço, nem armas’, nem eram aptos para eles [...].”
(HOLANDA, 1994, p. 185). O Novo Mundo a ser descoberto seria encarado, assim, de
acordo com esquemas antigos:
Essa psicose do maravilhoso não se impunha só à singeleza e credulidade da gente
popular. A idéia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro
Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas
diferenças, a todos os espíritos. (HOLANDA, 1994, p. 184).
Em Tufano (1999, p. 14) encontramos as representações visuais dos mapas que
apontavam a localização do Paraíso Terreal, cuja busca inspirou tantos navegadores:
7
MAIER, Bertil (org.). Orto do Esposo. Texto inédito do fim do século XIV ou começo do XV. 2 vols. Rio de
Janeiro: edição crítica do organizador com introdução, anotações e glossário, 1956. p. 14. Apud HOLANDA,
1994, p. 178.
47
Figura 1: mapas medievais e renascentistas representando a suposta localização, a oeste da Irlanda, das
míticas Ilhas Afortunadas, aqui nomeadas como Insula de Brazil ou Ylla de Brazill.
48
Roberto DaMatta (1993) assinala que a representação da natureza como plena de
dádivas, servindo para o prazer e exploração do homem, onde as dificuldades pesam menos
que os atrativos, é inaugurada pelos portugueses através do primeiro documento do Brasil
recém-descoberto. Na carta de Pero Vaz de Caminha, exalta-se “[...] tanto a inocência e a
beleza dos nativos quanto as potencialidades da natureza.” Holanda (1985, p. 28), nesse
sentido, afirma que os colonizadores “[...] se deixavam atrair pela esperança de achar em suas
conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que a eles se ofereceria
sem reclamar labor maior, mas sim como dom gratuito”.
Segundo Roberto DaMatta (1993) essa representação da natureza como dadivosa e
edênica possui muita força ideológica, tanto que transparece na própria bandeira nacional,
símbolo cívico maior. Nela, surge o representação do Brasil como Jardim do Éden. A
bandeira nacional é construída como símbolo da grandeza e da riqueza do país. Chauí (2000)
introduz o elemento político quando demarca a diferença entre a bandeira brasileira e as
bandeiras revolucionárias desde a Revolução Francesa: estas tendem a ser tricolores e são
símbolos de lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto a bandeira
brasileira possui quatro cores e não exprime o político nem narra a história do Brasil –
diferente das primeiras, nossa bandeira corporifica a imagem mítica fundadora do Brasil como
paraíso, jardim do Éden e terra abençoada pela Natureza.
A visão da Natureza como paraíso, mas também como inferno, está presente nos
relatos dos primeiros viajantes ao Brasil, no século XVI (BIGNAMI, 2002). A presença do
binômio é diretamente influenciada pela consciência religiosa da época, baseada na dualidade
Paraíso-Inferno. Assim, chegam à Europa tanto as descrições da natureza idílica quanto
relatos como o de Hans Staden, que descrevia práticas de canibalismo entre os índios. Nesse
registro, Holanda (1994, p. XXIII) assinala que, ao lado da imagem positiva de paraíso mítico,
49
coexistiu uma imagem negadora dessa mesma fantasia, sendo possível denominá-la uma
“visão do inferno”. No entanto, para o autor, a imagem negativa não teve força para
cristalizar-se e assim tornar-se “[...] capaz de contrapôr-se às inúmeras visões edênicas que
inspiraram as novas terras”.
Após a vinda da família real para o Brasil em 1808, torna-se mais freqüente a
vinda de visitantes estrangeiros ao país. Várias expedições zoobotânicas e artísticas ajudam a
construir uma iconografia brasileira baseada principalmente em imagens da natureza
luxuriante e exótica. No século XIX, destaca-se o trabalho do artista alemão Johann Moritz
Rugendas (1802 – 1858), cujas pinturas mais célebres retratam o Rio de Janeiro. Para
Bignami (2002, p. 88) essa nova iconografia do Rio de Janeiro “ [...] é a precursora do uso das
vistas aéreas tão amplamente utilizadas pelo cinema no século XX e que, de certa forma, são
o ícone do Brasil por excelência, a imagem que mais representa a nação”. Simões (1999) e
Leite (1983) nos dá conta de um outro acontecimento que, na mesma época, concorre para
construir a imagem do Brasil como Paraíso Terreal. Em 1773, o guarda-mór da Torre do
Tombo de Lisboa descobre, entre vários outros papéis, o original da Carta de Pero Vaz de
Caminha. O documento, que permanecera inédito por três séculos, é reconhecido em sua
importância e divulgado. No Brasil, “[...] ela foi publicada pela primeira vez em 1817, na
Imprensa Régia do Rio de Janeiro [...] Logo após a publicação, o sucesso da Carta foi
retumbante. A partir dessa primeira publicação, abundaram as transcrições, estudos, traduções
e interpretações.” (SIMÕES, 1999, p. 40). Leite (1983, p. 155) assinala que a Carta “[...] é o
documento mais citado do descobrimento e algumas de suas frases tornaram-se antológicas,
repetidas sempre que se fala no Brasil.” Assim, a representação de Brasil é definitivamente
associada à idéia de Paraíso.
50
As representações dos viajantes do século XIX e a redescoberta e divulgação da
Carta de Pero Vaz de Caminha, juntamente com obras literárias publicadas durante o
Romantismo (tais como O Guarani, romance símbolo do Brasil como Estado nacional
moderno) compõem, de acordo com Dante Moreira Leite (1983) um período da história
brasileira marcado pela independência política e pela formação de uma imagem positiva do
Brasil e dos brasileiros – um período que perdura até cerca de 1880. A partir desse período, as
teorias evolucionistas e positivistas vigentes na Europa na época começam a influenciar
fortemente os intelectuais de nosso país, o que, como veremos a seguir, introduz nas
discussões sobre o Brasil e os brasileiros as questões do meio e da raça.
3.2 A ideologia do caráter nacional brasileiro
A introdução no Brasil das teorias raciais européias, no final do século XIX, marca
o início das Ciências Sociais no Brasil. Ortiz (1994) esclarece que o evolucionismo tinha
como postulado que os povos mais “simples” (povos primitivos) evoluiriam naturalmente
para o “complexo” (sociedades ocidentais), sendo possível estabelecer regras para o
progresso da civilização. Politicamente, a teoria possibilitava a legitimação ideológica da
“raça” branca no mundo ocidental.
A adoção de tais postulados, de fundo eminentemente racista, teve como efeito
principal o estabelecimento de um sentimento de inferioridade no que se refere ao Brasil e aos
brasileiros. Afinal, como um país de povo miscigenado poderia almejar um futuro mais
igualitário em relação às nações desenvolvidas? De acordo com Ortiz (1994) construir uma
identidade nacional torna-se, para os intelectuais do final do século XIX e início do século
XX, um dilema a ser enfrentado, na medida em que, consideradas as teorias evolucionistas, a
51
civilização brasileira era considerada inferior em relação ao mundo europeu. A construção do
Brasil como povo e como nação passa pela necessidade de se explicar o assim considerado
atraso brasileiro. Essa explicação calcava-se fortemente na consideração da miscigenação
moral, intelectual e racial do povo brasileiro como elemento fundamental desse atraso.
O médico baiano Nina Rodrigues, o crítico literário Sílvio Romero e o jornalista e
escritor Euclides da Cunha são os principais intelectuais cujas obras procuram apreender a
realidade brasileira em termos de meio ambiente e raça. Renato Ortiz (1994, p. 16) esclarece o
raciocínio pessimista da época:
A neurastenia do mulato do litoral se contrapõe, assim, à rigidez do mestiço do
interior (Euclides da Cunha); a apatia do mameluco amazonense revela os traços de
um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previdentes e racionais (Nina
Rodrigues). A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos deterministas,
clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e
inseguras da elite intelectuais, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a
sexualidade desenfreada do mulato.
Ao analisar a construção da identidade nacional, o brasilianista Thomas Skidmore
(1994) traz a obra do advogado-historiador Oliveira Vianna. Como Sílvio Romero e Euclides
da Cunha, este autor filia-se às idéias européias sobre raça; porém, introduz um novo
elemento, ao romantizar a colonização portuguesa. Ao não mencionar as revoltas de escravos,
por exemplo, Oliveira Vianna contribui para a instituição do mito do passado não-violento do
Brasil. Outro fator importante, na obra de Vianna, é o fato de que a colonização portuguesa
estaria contribuindo para o progressivo branqueamento do Brasil. Além da miscigenação,
Vianna acredita que os problemas brasileiros também eram causados pela falta de um Estado
centralizador.
Vianna, porém, não era o único a acreditar no branqueamento como solução para
os males brasileiros de origem. Em 1928, Paulo Prado, herdeiro de família cafeeira, publica
Retrato do Brasil, que abre com a seguinte frase: “Numa terra radiosa vive um povo triste.”
52
(PRADO, 1997, p. 53). De acordo com Skidmore (1994), Paulo Prado é pessimista quanto ao
futuro do Brasil na medida em que a combinação do clima sedutor do Brasil com a
amoralidade do português e a sensualidade do negro e do índio tornam o país desqualificado
para o moderno mundo industrial. Somando-se a isso, Prado lamenta a desorganização e a
politicagem das oligarquias que impossibilita, entre outras coisas, a exploração dos imensos
recursos naturais do Brasil. Skidmore (1994, p. 87) afirma que tanto Oliveira Vianna quanto
Paulo Prado acreditavam que “[...] o Brasil se encontrava à deriva.” Para Prado, a solução
viria pela guerra, única forma de curar um Brasil doente pela miscigenação de origem. Nesse
sentido, Ortiz (1994, p. 21) revela como o elemento mestiço não fazia parte do ideal de nação
brasileira: “O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no
processo de branqueamento da sociedade brasileira”. Portanto, para Prado e Oliveira Vianna o
Brasil só poderia se legitimar como Estado e nação através da eliminação dos traços das
“raças inferiores”, o que ocorreria através do chamado “melhoramento racial”.
A revolução de 30 introduz no processo de construção da identidade nacional um
corte histórico da maior importância, que marca o surgimento do pensamento do maior
intérprete da brasilidade do século XX: Gilberto Freyre. Nas primeiras décadas do século XX,
muitas mudanças ocorriam no Brasil. Começava a surgir uma burguesia urbana e o Brasil
modernizava-se.Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder pela Revolução de 1930,
segundo Ortiz (1994) as mudanças que já vinham ocorrendo passam a ser orientadas
politicamente; as teorias raciais tornam-se obsoletas, porque a nova realidade social impunha
um outro tipo de interpretação do Brasil. Para Ortiz, o trabalho de Gilberto Freyre vem suprir
essa demanda.
Em 1933, a publicação de Casa-Grande & Senzala marca uma mudança na forma
de se pensar nosso país. Ocorre aí uma reinterpretação pois o obra de Freyre permite pensar o
53
Brasil e os brasileiros mais positivamente do que no passado. Para Ortiz (1994) Gilberto
Freyre analisa em termos culturais o que antes era visto pelo prisma do determinismo racial.
A partir desse momento, torna-se de uso corrente a afirmação de que o Brasil constitui-se de
três raças, o branco, o negro e o índio, onde todas são consideradas importantes para a
formação do povo brasileiro. Instala-se assim a noção da harmonia racial brasileira, através da
ideologização do Brasil como “democracia racial” (ORTIZ, 1994). Para Skidmore (1994)
Gilberto Freyre vira de pernas para o ar o dilema da miscigenação. Aos intelectuais de outras
épocas, que perguntavam-se se a miscigenação havia causado um dano irreparável ao futuro
do Brasil, Freyre respondia que não. A miscigenação, segundo ele, era uma tremenda
vantagem, já que o colonizador português havia adquirido traços positivos de outras raças no
seu contato íntimo com o negro e o índio. Segundo Renato Ortiz (1994, p. 42):
O livro possibilita a afirmação inequívoca de um povo que se debatia ainda com as
ambigüidades de sua própria definição. Ele se transforma em unicidade nacional.
Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao
brasileiro uma carteira de identidade.
Tanto Gilberto Freyre como Sérgio Buarque de Holanda, que publica seu Raízes
do Brasil em 1936, procuram explicar o caráter nacional brasileiro não em termos de raça,
mas sim em termos culturais, onde o passado colonial português e seus valores assumem
posição de destaque. Embora superem o determinismo racial, o pensamento dos dois autores
faz parte da ideologia do caráter nacional brasileiro. Porém, há diferenças de pensamento a
serem consideradas. De acordo com Skidmore (1994) Casa-Grande & Senzala retrata a
sociedade patriarcal em tons bastante literários e com abundância de informações, revelando a
intimidade do senhor português em contato com o negro e o índio. Já em Raízes do Brasil,
Holanda (1995) pouco fala dos elementos não-europeus da cultura brasileira. Portugal surge
como a grande criadora da caráter nacional. A mais famosa contribuição de Holanda (1995, p.
54
146) é a concepção do brasileiro como homem cordial, e, portanto, pouco afeito à violência:
“[...] a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros
que nos visitam, representam, com efeito, um traço definitivo do caráter brasileiro [...]”. Note-
se que a expressão “homem cordial” suscitou desentendimento na época, por ser tomada ao pé
da letra por escritores como Cassiano Ricardo. Para Holanda, a cordialidade não deve ser
entendida como polidez, boas maneiras ou civilidade, mas sim como uma máscara ou disfarce
para interagir com o social, denunciando a ojeriza do brasileiro à discórdia e ao conflito.
Desta forma, Sérgio Buarque de Holanda e, principalmente, Gilberto Freyre
contribuem para a criação da imagem do brasileiro como fruto da fusão harmônica do branco,
do negro e do índio, resultando em um povo pacífico, ordeiro e racialmente tolerante. Nesse
sentido, Renato Ortiz (1994, p. 44) percebe sua função ideológica: “O mito das três raças é
neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos
se reconhecerem como nacionais.” Tais idéias interagiram fortemente com o pano de fundo
histórico e político da época – a ditadura de Getúlio Vargas e seus planos de integração
nacional e, posteriormente, com a ditadura militar do período 1964 – 1985.
3.3 A mitologia verde-amarela e a apropriação do popular pelo nacional
O que é a mitologia verde-amarela, ou verdeamarelismo
8
? De acordo com Chauí
(2000), trata-se de uma ideologia nacional-populista que serve aos interesses das classes
dominantes e procura legitimar o que havia restado do sistema colonial e da hegemonia dos
proprietários de terras. O verdeamarelismo celebra a imagem do Brasil como “país
essencialmente agrário” , através da exaltação da Natureza e do “tipo nacional” pacífico e
8
Utilizados aqui de forma intercambiável, os termos “mitologia verde-amarela” (CHAUÍ, 1986) e
“verdeamarelismo” (CHAUÍ, 2000), referem-se ao mesmo fenômeno – uma ideologia que ajuda a manter vivo o
mito fundador do Brasil. Preferimos manter, nas citações, os termos originais utilizados pela autora.
55
ordeiro. Embora tenha se fortalecido na época da ditadura Vargas e, posteriormente, na
ditadura militar, a essência do verdeamarelismo já estava presente na literatura regionalista do
século XIX. Para Chauí (2000, p. 47) na medida em que se fala do mito, convém relembrar
“[...] a primeira reatualização de nosso mito fundador, ocorrida significativamente em 1900,
por ocasião do IV centenário da descoberta do Brasil, com o publicação do livro de Afonso
Celso, visconde de Ouro Preto, Porque me ufano de meu país.” De acordo com a autora,
(2000) o livro, tido por ingênuo por muitos e criticado pelos modernistas, enumera motivos
para se orgulhar do país distribuídos entre a natureza, o povo e a história. Leite (1983, p. 211)
assevera que o nacionalismo exaltado e o evidente exagero do autor a respeito das riquezas
brasileiras “[...] não impede que alguns de seus argumentos continuem a aparecer até hoje em
livros de leitura da escola primária, e muitos brasileiros em Afonso Celso reconhecerão a
origem de explicações sobre a grandeza do Brasil.” A seguir, de forma esquemática, vejam-se
os argumentos de Afonso Celso: o país nos dá motivo para nos orgulharmos porque, quanto à
natureza, porque não temos furacões, terremotos, ciclones ou vulcões; somos um dos maiores
países do mundo, plenos de riquezas naturais. Na história, nunca fomos derrotados
militarmente. Nosso povo é mestiço e não conhece preconceitos de raça ou classe. O
brasileiro, para Afonso Celso, não será nunca um “inferior”; e o Brasil, digno, rico de
promessas e invejável, destinado a um futuro brilhante – o que ecoa a carta de Caminha
(SIMÕES, 1999, p. 134): “Porque é certo que esta gente é boa e de boa simplicidade. [...]
pois, Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos como a bons homens. E o Ele que por
aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa [...].”
É no governo de Getúlio Vargas que os meios de comunicação são utilizados
extensivamente para se construir o imaginário verdeamarelo (CHAUÍ, 2000). O Estado,
portanto, apropria-se da cultura popular, reinterpretando-a. Um exemplo, para Ortiz (1994) é
56
o da música de malandragem, que é combatida em favor da instauração de uma ideologia do
trabalho. Chauí (2000, p. 38) lembra que no verdeamarelismo da época Vargas a tese da
democracia racial é mantida; o povo aparece como mescla de três raças mas, agora, o “povo”
é também entendido como os “trabalhadores do Brasil”. O carnaval e o futebol tornam-se
espetáculos nacionais. Ortiz (1994) assinala, nesse registro que o popular e o mestiço tornam-
se nacionais, ainda que à custa do apagamento de suas especificidades. O autor (p. 43) destaca
o caso da legitimação do samba como símbolo de brasilidade: “Ao se promover o samba ao
título de nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem, que
era ser uma música negra”. Chauí (2000) destaca elementos do funcionamento da ideologia da
“unidade na diversidade”. Os programas do governo exaltavam as belezas naturais do país e a
gente brasileira. Nessa mesma época, o governo exige que as escolas de samba tenham
enredos nacionais. O Estado e a nação são unificados, simbolicamente, através da queima das
bandeiras estaduais; o culto à bandeira e ao Hino nacional tornam-se obrigatórios nas escolas.
Os produtos culturais acompanham o espírito dos tempos:
É dessa época a “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso), que canta as belezas naturais,
mas também o “Brasil brasileiro”, isto é, o “mulato inzoneiro”, os olhos verdes da
mulata, o samba, o “Brasil lindo e trigueiro”. Não é casual que a mesma época que
ouvia a “Aquarela do Brasil” também lia a Marcha para o Oeste, de Cassiano
Ricardo, para quem o Brasil era “um escândalo de cores”, escrevendo: “Parece que
Deus derramou tinta por tudo”, céu de anil, flores e pássaros em que gritam o amarelo
avermelhado do sol e do ouro, riquezas fabulosas e “todas as cores raciais, na
paisagem humana”. (CHAUÍ, 2000, p. 37).
No contexto internacional, não podemos deixar de mencionar o pan- americanismo
e a política de boa vizinhança do governo norte-americano. Nessa época, consolida-se em
nível internacional a representação do Brasil como país sensual, musical e exótico, através dos
filmes de Hollywood e, principalmente, da imagem de Carmem Miranda, que como
embaixadora da boa vontade foi instada a “[...] difundir a imagem telúrica e alegre do Brasil,
cuja capital era Buenos Aires e cuja música era mescla de samba, rumba, tango, conga e salsa.
57
Para acompanhá-la, os estúdios de Walt Disney criaram o papagaio malandro, Zé Carioca”.
(CHAUÍ, 2000, p. 39).
O suicídio de Getúlio Vargas não sepultou o verdeamarelismo. Para Chauí, essa
permanência da mitologia verde-amarela não ocorre por acaso; visto que o Brasil, até hoje,
ainda não se tornou uma economia capitalista desenvolvida e independente: “Se antes o
verdeamarelismo correspondia à auto-imagem celebrativa dos dominantes, agora ele opera
como compensação imaginária para a condição periférica e subordinada do país.” (CHAUÍ,
2000, p. 37). É preciso assinalar, no entanto, que durante os governos Kubitscheck e João
Goulart, os nacionalismos esquerdistas tentam desmontar o imaginário verdeamarelo, pois ele,
aqui, representa o atraso que o projeto desenvolvimenta do Estado procurava superar. Ortiz
(1994) lembra que, a partir da década de 50, o trabalho do ISEB (Instituto Superior de
Estudos Brasileiros) marcou o início da formação de uma consciência crítica sobre a posição
subalterna ocupada pelo Brasil. A questão cultural, que na obra de Gilberto Freyre, por
exemplo, é trabalhada na perspectiva histórica, no ISEB é remodelada em termos de se pensar
o domínio da cultura como o da transformação sócio-econômica. O ISEB questionava quais
seriam os elementos de uma “autêntica” cultura brasileira, buscando um nacionalismo crítico.
Entre os anos de 1962 e 1964, os CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE (União
Brasileira dos Estudantes) operam uma experiência mais radical: os fenômenos populares que
dominam a vida das classes subalternas, como o futebol, o carnaval e a religião, são
considerados alienantes; instigadores de uma “cultura alienada”, ou de uma “falsa cultura”.
(ORTIZ, 1994, p. 74)
Embora de forma difusa, o verdeamarelismo sobrevive no imaginário durante as
décadas de 50 e início da década de 60, mesmo quando o a ideologia nacional-
desenvolvimentista do ISEB, primeiro, e a ideologia nacional-popular dos CPCs, depois,
58
tratam a problemática cultural brasileira a partir de uma perspectiva filosófica e marxista, com
o objetivo de desalienar as massas e buscar um “nacional” “autêntico” (ORTIZ, 1994). Na
verdade, para Chauí (1986; 2000) a mitologia verde-amarela adquire nova força durante a
ditadura militar que se inicia em 1964 . Ela está presente na exaltação da vitória brasileira na
Copa do Mundo de 1970, como já estava nas Copas de 1958 e 1962, quando o futebol se
associa definitivamente ao nacional. Está presente na ideologia do “Brasil Grande”, da São
Paulo como “a metrópole que mais cresce no mundo” e do “milagre brasileiro”; assim como
nos planos da ditadura para o futuro do Brasil, através da ideologia do “Brasil Potência 2000”,
que se assentava no tripé da vastidão do território, das riquezas naturais e das qualidades
pacíficas, empreendedoras e ordeiras do povo.
A mitologia verde-amarela, portanto, a partir do governo Vargas e também na
ditadura militar posterior, reflete o que Renato Ortiz (1994, p. 140) qualifica de
“reinterpretação do popular pelo Estado”. O Estado apropria-se de elementos da cultura
nacional, tais como o candomblé, o carnaval, os reisados, o futebol, etc. para apresentá-los
como manifestações de brasilidade; a indústria do turismo, quando vende a brasileiros e
estrangeiros a identidade nacional manifestada nas produções populares, utilizada o mesmo
mecanismo de reinterpretação. Chauí (1986, p. 99) desvenda o papel da mitologia verde-
amarela nesse processo: “Cremos, pois, que o que permite a absorção contínua da Cultura
Popular pela imagem do nacional é a mitologia verde-amarela, cimento ideológico
inquebrantável.”
Em outro lugar, a autora (2000, p. 45) referindo-se ao verdeamarelismo como
operação ideológica na qual o Estado institui a nação sobre a base da ação criadora de Deus e
da Natureza, afirma que “Essa ideologia [...] nada mais faz do que manter vivo o mito
fundador do Brasil”. Desse modo, a força dessa ideologia permanece até nossos dias e,
59
embora tenham existido tentativas de superar a mitologia verde-amarela, esta subsiste com
força no imaginário coletivo da nação:
[...] nem os modernistas, nem o ISEB, nem os CPCs, nem o Cinema Novo, nem o
Tropicalismo, nem a MPB de protesto conseguiram aniquilar a imagem verdeamarela,
que se consolidou e brilha incólume naquela outra imagem, doravante apropriada pela
contemporânea indústria do turismo: café, futebol e carnaval, made in Brazil.
(CHAUÍ, 2000, p. 36).
3.4 Do caráter nacional à identidade nacional: visões recentes da brasilidade
Embora a imagem verdeamarela permeie o imaginário popular sobre a nação desde
há muito, na década de 50, como vimos, o Brasil começa a tomar consciência de que é uma
nação subdesenvolvida. Segundo Chauí (2000, p.34), a ideologia nacional-desenvolvimentista
elaborada pelo ISEB marca o período de passagem da ideologia do “caráter nacional” para a
ideologia da “identidade nacional”. A autora (p. 21) assinala que “[...] o ‘caráter nacional’ é
uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma ‘natureza
humana’ determinada” enquanto que a identidade nacional, na medida em que constrói-se na
referência ao que lhe é externo e pressupõe a relação com o que lhe é diferente, opera no
registro da falta, da privação e do desvio. No caso do Brasil, Chauí (p. 27) ressalta que o
outro, em relação ao qual a identidade subdesenvolvida brasileira é definida, são os países
capitalistas desenvolvidos.
Como poderiam ser demarcadas as diferenças entre essas duas categorias? Nos
termos da autora,
Para que se possa ter uma idéia da diferença entre as duas ideologias, tomemos um
exemplo. Na ideologia do “caráter nacional brasileiro”, a nação é formada pela
mistura de três raças – índios, negros e brancos – e a sociedade mestiça desconhece
o preconceito racial. Nessa perspectiva, o negro é visto pelo olhar do paternalismo
branco, que vê a afeição natural e o carinho com que brancos e negros se
relacionam, completando-se uns aos outros, num trânsito contínuo entre a casa-
grande e a senzala. Na ideologia da “identidade nacional”, o negro é visto como
classe social, a dos escravos, e sob a perspectiva da escravidão como instituição que
coisifica o negro, cuja consciência fica alienada e só escapa fugazmente da
60
alienação nos momentos de grande revolta. Na primeira, o caráter brasileiro é
formado pelas relações entre o branco bom e o negro bom (se nosso caráter for
louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso caráter for
depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violência branca e
alienação negra, isto é, como duas
formas de consciência definidas por uma
instituição, a escravidão. (CHAUÍ, 2000, p. 27).
Outro fator importante para a superação da ideologia do caráter nacional é, para
Skidmore (1994) o surgimento da moderna ciência social brasileira, marcado pela publicação,
em 1959, da tese de doutorado de Dante Moreira Leite, O Caráter Nacional Brasileiro, na
qual o autor, tomando por base o que já havia sido escrito a respeito do Brasil e dos
brasileiros, defende que as ideologias anteriores constituíam um obstáculo à compreensão da
realidade brasileira.
A partir da década de 70, a discussão da identidade nacional ganha em Darcy
Ribeiro e, particularmente, em Roberto DaMatta seus mais importantes intérpretes.
Analisando a contribuição de Ribeiro, Skidmore (1994) considera que a solução para o dilema
brasileiro proposta pelo intelectual foi a mais francamente política de todos os tempos. Como
Paulo Prado em outras épocas, Ribeiro acreditava que o choque político traria a redenção do
Brasil. No entanto, ao contrário de Prado, o povo brasileiro seria a vítima e não a causa dos
males brasileiros, provocados pela exploração do capital estrangeiro e pelo conservadorismo
das elites nacionais. Assim, a contribuição de Ribeiro está em denunciar a profunda violência
e a desigualdade social da sociedade brasileira.
Nesse ponto, gostaríamos de comentar aquilo que, na avaliação do próprio
DaMatta (1996) constituem duas linhas de interpretação da sociedade brasileira. A primeira,
uma interpretação normativa, dedicada à análise institucional, representada pelos autores
vistos acima, com exceção de Gilberto Freyre – “Obras que constroem a realidade nacional
com o intuito de proporcionar subsídios para consertar o Brasil.” (p. 246). A segunda linha,
que complementa a primeira, é representada principalmente pela obra de DaMatta e foi
61
inaugurada pela de Freyre – uma interpretação compreensiva do Brasil, que procura
evidenciar o que existe na cultura brasileira, mostra o que o Brasil é, e não como deveria ser o
Estado nacional. Desta forma, “[...] está ausente das interpretações compreensivas a idéia de
que no Brasil as coisas estão fora do lugar, ou que o Brasil perdeu o bonde da modernidade...
Para elas, o Brasil é”. (DAMATTA, 1996, p. 247).
Assim como a obra de Darcy Ribeiro, a de Roberto DaMatta também é instigada
pela desigualdade social brasileira; sua maneira de compreender o Brasil e os brasileiros,
porém, é principalmente de cunho cultural. O Brasil que emerge da obra de DaMatta é um
país autoritário e de sociedade hierarquizada, marcado por relações de poder desiguais
advindas dos valores do nosso passado colonial. A desigualdade de tais relações, no entanto, é
camuflada no imaginário nacional pelo que o autor (1987) chama de “racismo à brasileira” .
Nesse sentido, DaMatta faz a crítica da ideologia da evolução racial harmônica preconizada
por Gilberto Freyre; critica a existência da “democracia racial” e cunha a expressão “fábula
das três raças”:
Nela, tento mostrar como o problema político e social tem sido deslocado e
apresentado num código biológico (das raças), no qual se evita discutir
responsabilidades de segmentos e pessoas e, conseqüentemente, pôr em foco o
sistema de poder. (DAMATTA, 1993, p. 53).
Desta forma, acredita DaMatta, a fábula possibilita que não seja necessário
segregar, já que, em nossa sociedade, todos sabem o seu lugar na hierarquia. Essa hierarquia
que, segundo o autor (1979) só é invertida em momentos demarcados como, por exemplo, no
Carnaval. A ideologia do “cada qual em seu lugar” possibilitada pelo mito da “democracia
racial”, segundo o autor, também prejudica nosso autoconhecimento pois“[...] tem atrasado
nossa percepção de nós mesmos como uma sociedade dotada de estrutura social singular e
cultura específica.” (DAMATTA, 1987, p. 85).
62
Outra forma velada de o brasileiro demonstrar preconceito e autoritarismo em
relação aos seus inferiores socialmente é exposta por DaMatta (1979) através do seu estudo da
elocução “você sabe com quem está falando?”. Para o autor (1979, p. 140) a elocução “[...]
parece estar mesmo implantada – ao lado do Carnaval, do jogo do bicho, do futebol e da
malandragem – no nosso coração cultural”. Dois traços importantes da expressão devem ser
apontados: um deles, seu uso e aprendizado latentes – ensina-se às crianças e fala-se ao
estrangeiro do samba, do futebol, das maneiras informais, da praia e da mulher brasileira –
porém considera-se o “você sabe com quem está falando?” indesejável e mesmo execrável. O
outro, o fato de que a expressão remete a uma sociedade onde o conflito e a crise são vistos
como inadmissíveis. Justamente porque o conflito deve ser evitado procura-se dar um
“jeitinho” na situação que incomoda. Tanto o “você sabe com quem está falando” quanto o
“jeitinho” remetem à importância das relações pessoais na sociedade brasileira. Para DaMatta
(1993) ambos são maneiras de corromper, de relativizar as leis que em tese deveriam governar
igualitariamente todos os cidadãos.
A casa e a rua são, para DaMatta (1993), as dimensões sociais que caracterizam a
sociedade brasileira e refletem nossas incoerências. Cada qual possui as suas especificidades:
o mundo da casa é o mundo protegido das relações pessoais; enquanto que o mundo da rua é
visto como espaço de disputas e conflitos, onde só se torna pessoa – cidadão – o indivíduo
que possa apelar para a rede de relações pessoais. A idéia fundamental, para o autor, é a
completa dissociação e mesmo a contradição entre os dois mundos. O que se faz na rua nem
sempre se faz em casa. Para DaMatta, a contradição entre o mundo da casa e o mundo da rua
se traduz no “dilema brasileiro”: uma dissociação entre teoria e prática políticas que produz
fortes impactos no social. Nos termos do autor:
Tal paradoxo seria caracterizado pelo fato de o sistema social brasileiro agasalhar
valores modernos como o individualismo igualitário e as idéias de justiça social [...]
63
sem, entretanto, abandonar (ou “resolver”) um conjunto de práticas (e de
ideologias) tradicionais – como a patronagem, o clientelismo e o nepotismo -, que
continuam se reproduzindo e governando relacional e hierarquicamente a vida
social. (DaMATTA, 1993, p. 93, grifo do autor).
A ojeriza ao conflito, assim como a indistinção entre o público e o privado, estão
presentes na vida e na política brasileiras, como observa o autor (1993, p. 136):
Já dizia um arguto observador da vida brasileira, o inglês Ernest Hambloch, que foi
cônsul da Inglaterra no Brasil, que o brasileiro é “à prova de palavras” porque não
teria nenhuma coerência entre o que dizia e o que praticava. Também afirmava “A
política no Brasil nada tem a ver com as questões políticas” [...] E, ainda: “Questões
pessoais entram na política de todos os países. Mas desde o estabelecimento da
República, elas tornaram-se a quintessência do que é chamado a política brasileira.”
Como complemento à “casa” e à “rua”, a dimensão social do “outro mundo”, por
sua vez, demarca o valor da religiosidade – marcada pelo sincretismo – na vida social
brasileira. Ao mesmo tempo, DaMatta (1994) acredita que a esperança presente nas formas
mais populares de religiosidade assinala a crença do brasileiro em um futuro melhor e mais
igualitário. Para o autor (1996, p. 105) “Futebol, carnaval, feijão com arroz, música popular,
família, amigos, cerveja gelada, anedotas e muita esperança são certamente os traços
constitutivos do que faz o ‘brasil’, Brasil”.
Neste início de terceiro milênio, podemos afirmar que a questão da identidade
nacional ainda instiga os intelectuais e o cidadão comum brasileiro. Para Ortiz (1994)
evoluímos da busca da essência marcada pela totalidade à consciência da pluralidade
brasileira – em sua diversidade racial e cultural. Segundo Skidmore (1994), apesar das
diferenças, todos os autores que se ocuparam da brasilidade foram intérpretes da realidade
nacional. Nesse sentido, Ortiz (1994, p. 139) destaca a importância dos intelectuais como
mediadores simbólicos na construção da brasilidade. A pergunta persiste: o que é, afinal, o
Brasil e o que significa ser brasileiro?
Sabemos hoje que a discussão sobre a “autenticidade” do nacional, e portanto da
identidade, é na verdade uma construção simbólica, uma referência em relação à
64
qual se discutem diversos problemas. Na verdade, não existe uma única identidade,
mas uma história da “ideologia da cultura brasileira”, que varia ao longo dos anos e
segundo os interesses políticos dos grupos que a elaboram. (ORTIZ, 2001, p. 183).
Desta forma, Ortiz (1994) procura demonstrar em sua obra que a identidade
nacional está intrinsecamente ligada à reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à
própria construção do Estado brasileiro. O autor defende a posição, à qual nos filiamos, de
que não existe uma identidade única que seja “autêntica” mas, sim, uma pluralidade de
identidades. Chauí (2000, p. 8) exemplifica essa pluralidade:
Alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com as chacinas
dessas crianças ou com o desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-
terra, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos
um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência.
Em outro lugar, a autora destaca o caráter mitológico das representações de
brasilidade – as quais, no seu conjunto, formam a mitologia verde-amarela - que foram
incorporadas pela sociedade brasileira e que, embora contestadas pelo autoritarismo e
violência da vida diária,
[...] permanecem incontestáveis como representações justamente porque são mitos: o
Brasil como “dom da Natureza” e “presente de Deus” à humanidade (apesar das secas
nordestinas, das enchentes sulinas, das endemias, da fome e da miséria); como povo
pacífico, ordeiro e não-violento (apesar do genocídio da população indígena, da
escravidão da população negra, [...] das mortes violentas pela posse da terra); como
país da democracia racial [...]; como hospitaleiro e acolhedor para todos os que nele
desejam trabalhar e progredir ( [...] apesar da política econômica que concentra a
riqueza e arrocha os salários [...] ); como país de um povo alegre e sensual – “não
existe pecado ao sul do Equador”, diz a música (apesar do machismo, do
conservadorismo católico, da discriminação sexual legitimada pela religião [...] );
como “país dos contrastes” – não, evidentemente, entre pobres e ricos, mas entre
nossas paisagens e tipos humanos, como o “resignado caboclo”, o “sertanejo”, antes
de tudo um forte” e o “laborioso sulino”. Contrastes que são a promessa de um futuro
de grandezas sem par. (CHAUÍ, 1986, p. 97).
Em conclusão, as visões mais recentes de brasilidade, possibilitadas pela obra de
Marilena Chauí, a partir de uma perspectiva política, e principalmente de Roberto DaMatta,
procuram evidenciar justamente essa pluralidade de posições de identificação que
65
freqüentemente resultam em representações ambíguas e mesmo contraditórias da identidade
nacional. DaMatta e Chauí, como vimos, procuram desnaturalizar o caráter construído de
muitas representações de brasilidade que, se servem para fazer com que o brasileiro se
orgulhe se seu país, também encobrem a realidade de uma sociedade autoritária.
66
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E INSTRUMENTOS DE ANÁLISE
Tendo apresentado o quadro teórico de referência dentro do qual desejamos
estudar as representações do Brasil e dos brasileiros na Internet, passamos agora a explicitar
os caminhos metodológicos para a operacionalização da pesquisa: os fundamentos teóricos do
trabalho de análise, os pressupostos metodológicos e o corpus selecionado para estudo.
A crescente popularidade da Internet tem atraído a atenção de muitos
pesquisadores. Mitra e Cohen (1999) reconhecem esta tendência e afirmam que a pesquisa em
Internet tem se movido em direção a dois eixos, ou abordagens: pesquisas baseadas nos usos
sociais da Internet e pesquisas baseadas nos textos presentes na Rede, o que é o caso de nossa
investigação. A perspectiva que legitima a análise do conteúdo da Internet é, segundo os
autores a tendência ao reconhecimento, tanto popular quanto científico, do apelo da Internet
como meio de comunicação de massa.
9
Na análise da Internet através de seu conteúdo, o termo “texto” reveste-se, de
acordo com Mitra e Cohen (1999, p. 181, tradução nossa) de um significado amplo, que
incorpora as características do novo meio: o texto não se restringe à palavra escrita, mas “[...]
incorpora também as imagens multimídia cada vez mais presentes na Internet.” Ao tornar o
texto central, as questões sobre o seu conteúdo são complementadas por questões sobre as
formas pelas quais o texto apresenta a informação, ou seja, constrói sentidos. Segundo os
autores (1999), tal movimento analítico, no que tange ao estudo de textos da Internet, requer a
adoção de estratégias textuais que sejam mais abrangentes do que, por exemplo, a análise de
conteúdo:
Um analista defronta-se com uma forma textual que tem muitos elementos do texto
tradicional e por isso torna-se aberta à análise através de ferramentas testadas pelo
9
Veja-se o subcapítulo “Globalização, diversidade cultural e Internet” para as considerações de Castells (1999a;
2003a) e Lévy (1999) a respeito.
67
tempo. Desta forma, é possível considerar uma análise textual crítica, uma análise da
narrativa, uma análise semiótica, ou uma combinação dessas abordagens na análise do
texto da Internet. (MITRA; COHEN, 1999, p. 199, tradução nossa).
Isso não significa que métodos mais tradicionais, como a acima mencionada
análise de conteúdo, tenham perdido seu valor. Há muitas razões para uma aproximação entre
esta e a semiologia, por exemplo. É o que percebe Penn (2002, p. 339), aqui referindo-se à
análise de imagens, quando afirma que os dois enfoques podem ser empregados lado a lado:
“uma explicação semiológica de uma pequena amostra de imagens pode exemplificar
diferentes códigos analíticos de conteúdo.” Em nossa pesquisa, a análise de conteúdo está
presente em determinados momentos como forma de proporcionar algumas evidências
quantitativas em um trabalho eminentemente qualitativo.
Dentro do espírito das considerações apresentadas acima, e em vinculação com o
quadro teórico exposto, propomos operacionalizar a análise do objeto de pesquisa através da
construção de uma matriz que privilegie o aporte da análise textual crítica, fundamentado na
semiologia de Barthes (2003). A seguir, passamos a explicitar seus fundamentos teóricos,
bem como seus pressupostos metodológicos.
Dois aspectos do texto são levados em consideração em nossa análise textual
crítica. A esse respeito, Mitra e Cohen (1999) esclarecem que, em primeiro lugar, é preciso
considerar os aspectos formais do texto e suas estratégias significantes, sendo que a maneira
como o texto é construído pode ser elucidada, por exemplo, através da análise semiótica ou
estrutural, na tradição barthesiana. Em segundo lugar, a análise textual crítica analisa a
maneira pela qual um texto está conectado a outros textos similares. Como exemplo de
autores que utilizam essa noção – a de intertextualidade, que postula que a eficiência de um
texto em particular depende do discurso mais amplo do qual faz parte - Mitra e Cohen (1999)
citam autores como o próprio Barthes e Kristeva. A esse respeito, Barthes (2001) esclarece
68
que o conceito de intertextualidade é uma elaboração de Julia Kristeva e que sua incorporação
pela semiologia foi um avanço importante. O conceito de intertextualidade, para Kristeva
(1974, p. 64) traduz-se na afirmação de que “[...] todo texto se constrói como mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” A intertextualidade
também pressupõe que “Os autores dos textos geralmente não trabalham em um vácuo
cultural e, desta forma, seu trabalho é quase sempre intertextual devido à maneira pela qual
textos atuais e passados tendem a persistir nos novos textos.” (MITRA; COHEN, 1999, p.
184, tradução nossa). Tanto o conceito de intertextualidade – onde o texto deixa de ser lido
isoladamente e passa a ser percebido em relação a outros que o precederam - quanto o de mito
– onde as construções históricas são percebidas como dados da natureza - utilizados por
Barthes, são importantes em nossa investigação na medida em que temos como hipótese de
trabalho a existência de elementos do mito fundacional do Brasil nas representações que
circulam globalmente na Internet a respeito do Brasil e dos brasileiros.
4.1 A matriz de análise
Nossa matriz de análise compõe-se de um duplo eixo: a análise da narrativa verbal
(escrita) e a análise visual (imagética). Cumpre esclarecer que, embora aqui os dois eixos da
matriz estejam separados para melhor compreensão, ao longo da análise os diferentes âmbitos
textuais – verbal e imagético - assim como as diferentes categorias utilizadas poderão se
intersectar, em favor de uma melhor interpretação dos dados coletados. Por exemplo, a
narrativa do mito fundacional, do Brasil poderá ser ativada tanto por texto quanto por
imagens, posto que a imagem também funciona como narrativa mediadora da produção de
sentido. Os âmbitos verbal e imagético tiveram estatuto igual em nossa investigação, pois,
69
como defende Barthes (2003, p. 206, grifo do autor): “[...] o semiólogo deve tratar do mesmo
a escrita e a imagem: o que ele retém delas é que ambas são signos e chegam ao limiar do
mito dotadas da mesma função significante; tanto uma como a outra constituem uma
linguagem-objeto.” Penn (2002) esclarece que uma diferença importante entre a escrita e a
imagem, na visão de Barthes é que a imagem é sempre polissêmica ou ambígua: por isso, a
maioria das imagens está acompanhada por algum tipo de texto, o qual lhe diminui a
ambigüidade e contribui para o sentido completo.
Assim, a semiologia de Roland Barthes nos fornece as categorias norteadoras para
nossa análise dos textos: denotação, conotação e mitos, a qual contém o conceito de
intertextualidade. O trabalho de Barthes em Mitologias é citado por Mitra e Cohen (1999)
como exemplo de análise de textos determinados em relação a outros textos que os circundam
e transcendem. A abordagem de Barthes (2003) centra-se em duas questões fundamentais: a
questão da representação (o que os textos representam e como?) e a questão dos sentidos
ocultos dos textos (que idéias e valores transmitem as pessoas, lugares e objetos
representados?) A idéia-chave é a de que o significado chega ao leitor em camadas. A tarefa
da análise textual de base semiológica é revelar as várias camadas de significados dos textos,
chamando a atenção para a sua natureza construída.
Em Mitologias e Elementos de Semiologia, Barthes (2003; 1979) descreve o
funcionamento dos sistemas semiológicos de primeira e de segunda ordem, os quais são
construídos tomando como base a associação saussureana entre significante e significado para
a formação do signo. O signo desse sistema de primeira ordem se torna o significante do
segundo. Penn (2002, p. 323) exemplifica tal movimento da seguinte forma:
No primeiro sistema, por exemplo, o signo ‘raposa’ compreende a associação de
determinada imagem acústica, certo conceito (canino avermelhado com uma cauda
fechada, etc.) Na segunda ordem, essa associação se torna o significante para o
significado: astuto ou ardiloso.
70
O sistema semiológico de primeira ordem foi denominado por Barthes (1979) de
denotação. A denotação corresponde a uma primeira camada de significado, aquela que
responde à pergunta “o que, ou quem, está sendo descrito aqui?” A segunda camada de
significado, a conotação, responde à questão “que idéias e valores são expressos através do
que é representado, e da maneira com que é representado?” O significado denotativo já está
estabelecido, exigindo do indivíduo um conhecimento lingüístico e antropológico; à este
primeiro significado, uma segunda camada de reconhecimento/interpretação, baseada num
conhecimento cultural, é superposta: a conotação.
A respeito da proposição barthesiana, Penn (2002, p. 324) esclarece que, embora
“ [...] o signo de primeira ordem seja ‘pleno’, quando ele toma parte no sistema de segunda
ordem ele é vazio. Ele se torna um veículo para a significação. Ele expressa um conceito a
mais, derivado não do próprio signo, mas de um conhecimento convencional, cultural.” Desta
forma, “[...] um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é, ele próprio,
constituído por um sistema de significação [...]” (BARTHES, 1979, p. 95). Portanto, a
conotação surge através de associações culturais que se colam às pessoas, lugares e coisas
representadas.
Em seu livro Mitologias (2003) Barthes chamou os sentidos conotativos de
“mitos”. Os “mitos” são um outro sistema de significação de segunda ordem, junto com a
conotação. Mito é o meio pelo qual uma cultura naturaliza, ou torna invisível suas próprias
normas e ideologia, representa, fundamentalmente, uma confusão imperdoável entre história e
natureza: “[...] o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum surgir
da ‘natureza’ das coisas.” (BARTHES, 2003, p. 200). Nesse sentido, as fotografias são
ótimas formas de se transmitir tais sentidos, posto que os naturalizam, desviando a atenção de
71
sua natureza construída. Os mitos são, em primeiro lugar, conceitos amplos que condensam
tudo o que se pode associar ao que é representado. Barthes (2003) usou os termos
“militaridade” ou “francidade” para denominar tais sentidos. Em nossa investigação, o termo
privilegiado é “brasilidade”.
Em segundo lugar, os mitos são significados ideológicos, servindo para legitimar a
visão de mundo daqueles que detém o poder de representação. Representam a operação
ideológica por natureza, onde as construções culturais passam por dados da natureza. Nesse
registro, o autor (2003, p. 223) esclarece o funcionamento do mito:
Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato
de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde
existe apenas equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e
o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode exprimir-se essa confusão
de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o
consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é
lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico.
No âmbito da análise visual, cumpre esclarecer que as imagens, na perspectiva
semiológica, não são analisadas como registro da realidade mas sim como construto, “[...]
como uma evidência de como seus produtores (re) construíram a realidade, como evidência de
preconceito, interpretação ideológica, e assim por diante.” (LEUWEEN; JEWITT, 2001, p. 5,
tradução nossa). Por vezes, essa reconstrução é mínima, mas ainda assim deve ser levada em
consideração. Nesse sentido, os autores (p. 7, tradução nossa) afirmam que a análise textual
torna-se pertinente para identificar como as representações são construídas na medida em que
esta abordagem “[...] pode mostrar o que as representações incluem e excluem, o que elas
priorizam e tornam saliente, e quais diferenças elas constroem entre diferentes pessoas,
lugares e coisas.”
Além de recorrer às categorias barthesianas da denotação, da conotação e do mito,
outros elementos irão auxiliar na análise das narrativas a respeito do Brasil e dos brasileiros
72
presentes nos sites da Internet gerados no exterior, principalmente no que tange ao âmbito
verbal do texto. Tais categorias provém da análise da narrativa ligada à teoria literária
(GANCHO, 1991). Para complementar nossa matriz de análise, tomamos os seguintes
elementos para analisar as narrativas de brasilidade na Internet: os fatos, os personagens e os
temas tratados. Os descritores irão emergir da análise crítica do material empírico.
Os dois primeiros referem-se tanto aos fatos quanto aos personagens que compõem
as narrativas dos sites, dando suporte às representações. Já a categoria de análise dos temas
tratados servirá para esquematizar os diferentes elementos que constituem as narrativas. O
objetivo é verificar a recorrência de temas comuns, o que pode caracterizar uma estrutura
narrativa comum às representações. A partir desses elementos recorrentes, podem ser
estabelecidos padrões de representação, de modo a possibilitar a construção de uma
interpretação acerca da maneira e das categorias segundo as quais a brasilidade é representada
no discurso dos sites. Tais categorias nos ajudarão a verificar como as estratégias discursivas
que narram a nação se materializam nas narrativas, ou seja, de que forma a identidade cultural
brasileira se revela nos sites.
4.2 Corpus de análise
Nossa opção de corpus de pesquisa gira em torno de sites da Internet voltados aos
internautas estrangeiros. O primeiro critério de escolha é o de que os sites sejam gerados no
exterior. Os demais critérios de escolha são: primeiro, trata-se dos sites mais indexados nos
mecanismos de busca da Internet quando se pesquisa a palavra "Brasil". Com este critério, o
da popularidade, é determinante na escolha de sites quando se procura estudar a representação
de um determinado tópico na Internet, de acordo com Mitra e Cohen (1999, p. 192).
73
Segundo, trata-se de sites com conteúdo cultural, que buscam divulgar a cultura brasileira no
exterior. Esse centramento na cultura ocorre porque as categorias identidade e cultura estão
intimamente ligadas, conforme explicitado no quadro de referência teórico. Nas seções
seguintes, faremos uma breve descrição de cada um dos sites. Outros critérios para a escolha
dos sites analisados foram o da atualização constante (os sites devem ter sido atualizados mais
de uma vez em 2004) e de terem conteúdo na língua inglesa. Os sites foram observados no
período de novembro de 2004 a março de 2005.
Escolhemos analisar o site Maria-Brazil na sua totalidade, porém optamos por
analisar apenas parte do site Brazzil – seu fórum de discussão, onde se concentram as
narrativas que dão corpo às representações sobre o Brasil e os brasileiros. Optamos também
por analisar esse fórum de discussão porque ele constitui um contraponto interessante ao outro
site. No primeiro, Maria-Brazil, temos representações sobre o Brasil produzidas por uma
estrangeira ligada ao Brasil por laços afetivos. No fórum do site Brazzil, é dada voz não só ao
estrangeiro mas também ao brasileiro. Essa perspectiva enriquece a análise na medida em que
fornece um contraponto interessante porque temos aqui as representações que partem de
internautas que não são webmasters, como nos casos anteriores, mas sim usuários.
4.3 Maria-brazil: “o lar da cultura brasileira na web”
O site Maria-Brazil (www.maria-brazil.org) foi criado em julho de 1995 por Sheila
Thomson, uma norte-americana residente em Miami, EUA. O site é bastante popular,
recebendo em torno de cem mil internautas por mês. A ligação de Thomson com o Brasil
74
origina-se do fato de ter nascido no Brasil e passado parte de sua infância em nosso país.
10
Está já no ar portanto há quase dez anos, sendo atualizado constantemente, o que representa
uma vitória do esforço pessoal de sua idealizadora, quando se sabe que no ciberespaço sites
surgem e desaparecem rapidamente. O Maria-Brazil auto-intitula-se “o lar da cultura
brasileira na Web” (MARIA-BRAZIL, 2004). O nome do site é uma homenagem às mulheres
brasileiras, tanto as que vivem no Brasil como as que estão em todas as partes do globo.
Voltado para a cultura popular de nosso país, dirige-se principalmente ao público estrangeiro,
sendo editado apenas na língua inglesa.
Eu criei a Maria-Brazil exatamente porque estava cansada de ver a imprensa
americana só publicar coisas feitas, tristes sobre o Brasil, e nunca nada sobre a
maravilhosa cultura popular e a música, a comida, etc. Eu acho que o Brasil ainda é
muito desconhecido e mal-entendido. Mesmo aqui em Miami, por exemplo, as
pessoas conhecem muito pouco da nossa cultura.
11
Já na homepage o internauta é saudado com a frase: “we regret we´re not able to
offer you a cafezinho, as Brazilian hospitality demands!” (“Lamentamos não poder lhe
oferecer um cafezinho, como manda a hospitalidade brasileira!”). O site divide-se em várias
seções – culinária, , lugares favoritos, comportamento intercultural, música popular, folclore e
entrevistas.
Uma breve descrição ajudará a esclarecer quais os conteúdos privilegiados no site.
No âmbito do folclore, por exemplo, são privilegiadas as danças da região Norte/Nordeste do
país, como o bumba-meu-boi, o siriá, o maracatu, a lambada e a ciranda. Também são
enfocadas algumas lendas brasileiras e criaturas míticas, como o Saci, a Iara, o Curupira e o
Negrinho do Pastoreio (nesse caso o Sul do Brasil também está representado). Entre a música
10
THOMSON, Sheila. Re: Maria-Brazil é tema de dissertação de mestrado na UFRGS. [mensagem
pessoal]. Mensagem de correio eletrônico recebida por <sandra_rubia@hotmail.com> em 15 mar. 2005.
11
THOMSON, Sheila. Re: Congratulations! And some new information for you... [mensagem pessoal].
Mensagem de correio eletrônico recebida por <[email protected].br> em 27 jun. 1999.
75
e o folclore, estão os festivais e festas como Bois de Parintins, Festa de Iemanjá e Festa do
Divino.
Outro aspecto do folclore destacado são a cultura popular e o artesanato, com a
literatura de cordel, as rendas de bilro, trabalhos em argila e tapeçaria. No âmbito da música,
são trabalhadas tanto a música tradicional, folclórica (descrição das raízes da música
brasileira), quanto a música popular atual, através de resenhas musicais, entrevistas e páginas
com o histórico de alguns grandes nomes (e outros não tão famosos) da música brasileira,
como Carmem Miranda, Rafael Rabelo e Ilê Ayiê.
Figura 2: Homepage do site Maria-Brazil
76
4.4 Brazzil.com: “tentando entender o brasil”
O Brazzil.com (www.brazzil.com) era originariamente o site espelho da revista
BRAZZIL magazine, criada em abril de 1989, que não está mais sendo impressa, porém
continua ativa na versão online. A revista circulava principalmente na área da grande Los
Angeles, nos Estados Unidos. Já o website, baseado em Los Angeles, é visitado diariamente
por aproximadamente onze mil pessoas. Uma pesquisa feita pelo site (BRAZZIL, 2004)
revela que esses visitantes virtuais são de mais de 140 países, incluindo os Estados Unidos
(53%), Brasil (16%), Canadá (5%), Reino Unido (4%), Alemanha (2%), Austrália (2%),
Portugal (2%), França (1%), Itália(1%) e Países Baixos (1%). O BRAZZIL.com propõe-se a
ser um conexão entre o Brasil e todos aqueles – brasileiros ou não – que possuem um
interesse no modo de vida brasileiro, sua política, economia e cultura. Mais de noventa por
cento do site é em inglês, embora também haja espaço para a língua portuguesa. Nossa análise
se concentrará no fórum de discussão do site, com centenas de mensagens.
No fórum, há espaço para a interação entre os internautas brasileiros e
estrangeiros, sendo a maioria deles americanos. Os tópicos de discussão são dos mais
variados, passando pelos temas da ecologia, festas, cultura brasileira, comportamento e
educação, entre outros. Embora a maioria do conteúdo do fórum esteja na língua inglesa,
também existe um espaço privilegiado para nossa língua, dentro da seção “Aqui se fala
português”.
77
Figura 3: Homepage do site Brazzil.com
78
5 MARIA-BRAZIL: AS NOVAS ROUPAGENS DO MITO FUNDADOR
Nossa análise do site Maria-Brazil começa através do estudo de sua homepage.
Nela, já se observam elementos que concorrem para o reforço de significados que atualizam o
mito fundador do Brasil. Com isso, não queremos dizer que o significado mitológico é o único
presente, mas sim que é dominante.
Barthes (2003, p. 211) assinala que muitos significantes estão à disposição do
significado mitológico: “Um significado pode ter vários significantes [...] É [...] o caso do
conceito mítico: tem à sua disposição uma massa ilimitada de significantes [...].” Partindo da
teorização de Barthes, façamos um inventário dos elementos presentes na homepage do site
Maria-Brazil. No nível denotativo do âmbito imagético temos, na parte superior da página,
uma arara, uma flor de hibisco, uma mulher de cabelos curtos com um macaquinho agarrado
às costas, tendo ao fundo a floresta tropical; dominando a parte central da página, temos um
telefone público em formato de fruta-do-conde; uma mamãe preguiça com seu filhote;
imagens do casario tradicional e de uma antiga igreja; objetos artesanais em barro em forma
de figuras humanas simbolizando a tradição da cultura nordestina; e, por fim, uma imagem de
dar “água na boca”: uma bela torta de maracujá. Essas imagens recebem o reforço de sentido
de várias imagens menores que estão presentes à esquerda e à direita destas imagens maiores,
principais: neste momento, queremos destacar a imagem de um copo de caipirinha, de frutas
em exposição em uma feira-livre e duas belas fotos de natureza: um rio e uma lagoa cercada
por dunas. O internauta também pode visualizar imagens de uma carranca do Rio São
Francisco, a capa de um livro de literatura de cordel e um automóvel pintado nas cores verde
e amarela, enfeitado com muitas bandeiras do Brasil, que percorre uma grande avenida. O
elemento urbano aparece em duas imagens: uma do centro da cidade do Rio de Janeiro e outra
79
da cidade de Brasília. O âmbito imagético se completa com imagens que remetem à produtos
da indústria cultural brasileira: os DVDs do seriado da Rede Globo “Cidade dos Homens” e
da minissérie “A Cada das Sete Mulheres”; as capas de recentes lançamentos em CD – dos
cantores Marcos Sacramento e Inezita Barroso, assim como do Quarteto de Cordas Guerra
Peixe; e as imagens das capas de dois livros: o primeiro, um registro fotográfico das diversas
regiões brasileiras; o segundo, intitulado Futebol – the Brazilian way of life
12
.
No âmbito verbal da homepage, queremos destacar os seguintes elementos
lingüísticos: o enunciado Welcome to Maria-Brazil: home of Brazilian culture on the web,
que domina o centro superior da página e é complementado por este enunciado, que se
movimenta, chamando a atenção do internauta: we regret we´re not able to offer you a
cafezinho, as Brazilian hospitality demands!
13
Podemos observar, portanto, a ocorrência de significantes que convergem para
temas comuns, tais como a representações da natureza, do lugar, da culinária, da cultura
popular e do modo de ser do brasileiro. A respeito da recorrência desses elementos e
significados ligados à uma mesma temática, escreve Barthes (2003, p. 211): “Esta repetição
do conceito por meio de formas diferentes é preciosa para o mitólogo, pois permite-lhe
decifrar o mito: é a insistência num comportamento que revela a sua intenção.” Desta forma,
cabe aqui perguntar: como as imagens e enunciados acima descritos contribuem para
reatualizar o mito fundador do Brasil, convergindo para o mesmo sentido? Que imagens do
Brasil e dos brasileiros estão presentes nas narrativas do site Maria-Brazil?
Uma forma de abordar a questão é através das temáticas apresentadas.
Gostaríamos aqui de reuní-las sob as seguintes rubricas, que servirão como eixos de
orientação na apresentação dos resultados das observações feitas, assim como da análise: as
12
Em português: Futebol – o modo de vida brasileiro. (tradução da Autora).
13
Em português: Bem-vindo à Maria-Brazil: o lar da cultura brasileira na Rede. Lamentamos não poder lhe
oferecer um cafezinho, como exige a hospitalidade brasileira! (tradução da Autora).
80
temáticas da representação da natureza; dos aspectos tradicionais da cultura brasileira, como o
artesanato e o folclore; da cultura popular que fornece os símbolos de legitimação da
brasilidade e, por fim, a temática da representação do modo de ser do brasileiro. A primeira
temática abordada é a que mais fortemente reitera os sentidos que convergem para a
representação de Brasil que é inaugurada pelo mito fundador: o de Paraíso Terreal.
5.1 A Natureza
Conforme explicitado na parte teórica, a temática da natureza é essencial na
formulação do mito fundador do Brasil, que se liga à idéia de Paraíso na Terra. Desta forma,
temos presentes, já na homepage, os elementos que transmitem a idéia de paraíso: os animais
(a arara, as preguiças, o macaquinho) e também as paisagens naturais, assim como a floresta,
a flor e as frutas. A convivência pacífica entre seres humanos e animais no paraíso é mostrada
na imagem da mulher com o macaquinho agarrado às costas. O âmbito verbal nos revela que
trata-se de Sheila Thomson, a webmistress
14
do site Maria-Brazil. Um link para outra página
do site narra suas peripécias em visita ao Hotel Ariaú Tower, na Amazônia – um resort
encravado no meio da floresta amazônica, exclusivo, caro e muito visitado por turistas
estrangeiros. No texto (MARIA-BRAZIL, 2004) Sheila alerta que não se deve alimentar ou
brincar com os macacos que abundam em torno do resort, pois podem tornar-se agressivos
15
.
No entanto, este macaquinho em especial – o que é conveniente para o significado mitológico
– mostrou-se muito afetuoso e carente. Na narrativa, Sheila relata que o macaquinho a seguiu,
pois estava com sede; ela deu-lhe água e o bichinho agarrou-se às suas costas. Ela não se fez
14
Uma adaptação do equivalente masculino webmaster, referindo-se à pessoa que gerencia os conteúdos
colocados na Rede e cuida da atualização do site.
15
Como ambos os sites aqui analisados – Maria-Brazil e Brazil.com – são em língua inglesa, tomamos como
convenção, a partir deste ponto, verter o texto diretamente para o português. Todas as traduções foram feitas por
esta Autora.
81
de rogada e imediatamente levou-o para dar uma volta. Fotografias mostram cada estágio da
pequena travessura. A imagem da preguiça e de seu filhote, no centro da homepage, também
evidenciam a ligação dos animais, aqui tomados como feras dóceis e amigáveis, com a idéia
de Paraíso.
As frutas são outro elemento presente na mitologia do Paraíso Terreal. Frutas
tropicais, exóticas por natureza, fascinaram os viajantes e cientistas que as descreveram no
relato de suas expedições. De acordo com Holanda (1994) já em 1702 é publicado o livro
Frutas do Brasil, de autoria de frei Antônio do Rosário, que de acordo com o pendor
religioso próprio da época, alia as características das frutas brasileiras com elementos
religiosos, sendo o mais tocante deles a sua descrição de mais de vinte páginas que liga o
maracujá à paixão de Cristo. A fascinação com as frutas e frutos de nosso país expressa-se
uma vez mais no site Maria-Brazil, de forma intertextual, na atualidade: na seção intitulada
“Livros sobre o Brasil”, o site exibe a capa de Fruit in Brazil, de autoria de Silvestre Silva
que, ao mostrar inúmeras imagens de frutas tropicais, conota a riqueza e diversidade da flora
brasileira. Aqui está presente um dos elementos do mito fundador – a visão do Brasil como
dom da natureza e presente de Deus à humanidade.
Na homepage, a imagem de uma banca de frutas de uma feira livre evoca
novamente a representação da abundância e exotismo das frutas do paraíso, lugar onde
ninguém passa fome ou sede. E, no paraíso, conforme mostram várias fotos exibidas no site,
até os telefones públicos são em formato de frutas, o que mais uma vez reforça a idéia de
exotismo. No site há mais de duzentas imagens de natureza, divididas entre suas frutas e
frutos; as árvores, ervas e flores; e as paisagens que revelam a força da natureza, como a dos
grandes rios e das cataratas.
82
No âmbito textual, o enunciado presente no site reforça a visão do paraíso como
o lugar da abundância: “O Brasil é o país do mundo que mais tem frutas. [...] A variedade de
escolha é inacreditável [...].” (MARIA-BRAZIL, 2004, tradução nossa). Seja no cenário da
Amazônia ou da feira livre, as frutas e frutos da terra estão presentes. O âmbito imagético
destaca principalmente o exotismo, com imagens das frutas exóticas da Amazônia e do
Nordeste: o açaí, a acerola, o cupuaçu, o açaí, a pitanga, as castanhas, cajus, jacas, jaboticabas
e frutas-do-conde. Estas estão ao lado das frutas tropicais mais conhecidas: a melancia, a
banana, o mamão, a manga, o abacaxi, o maracujá e o côco-verde. Assim como as frutas, os
frutos da terra – os vegetais – também são postos em destaque pelo seu caráter exótico: “Os
brasileiros consomem rotineiramente alguns vegetais que podem não ser familiares a você:
chuchus, maxixe, jiló, palmitos frescos (peça instruções sobre como cozinhá-los) e a
mandioca (chamada de aipim em muitos lugares)”. (MARIA-BRAZIL, 2004, tradução nossa).
A diferença de costumes, que remete à uma conotação pré-tecnológica, no que tange ao modo
de comercializar aves, ovos e peixes é ressaltada no seguinte enunciado: “Isso pode
surpreender você, mas aves, ovos e peixes também são vendidos em feiras de rua, fora de
caminhões refrigerados.”
A flor de hibisco, logo acima da palavra Brazil, na homepage, também ajuda a
evidenciar a ligação da idéia de Brasil com o elemento tropical e exótico. As praias – que
tanto fascinaram os navegadores e cuja exaltação está presente já na carta de Caminha –
também contribuem para reforçar a imagem de paraíso tropical. Intertextualmente, a imagem
da praia em ligação com a visão do paraíso é explorada, na modernidade, através do cinema,
em numerosos filmes sobre os Mares do Sul. No site, são exploradas principalmente imagens
das praias do Rio de Janeiro, Salvador e dos Lençóis Maranhenses, o que evidencia uma
83
preocupação em se explorar outros aspectos do Brasil tropical, além do onipresente Rio de
Janeiro.
Nesse sentido, o discurso ecológico presente na modernidade não poderia deixar
de estar presente na exploração da imagem da Amazônia e suas riquezas. No âmbito verbal
demonstra-se, uma vez mais, o sentido dominante que relaciona o Brasil com o mito do
paraíso terrestre, embora aqui com um acento ecológico, que fala da necessidade de sua
preservação: “[...] a experiência [de visitar a Amazônia] é fundamental para todo aquele que
ama e deseja preservar nossa Mãe Natureza para as gerações futuras.” (MARIA-BRAZIL,
2004).
No entanto, cumpre ressaltar que a fascinação do europeu com a natureza
brasileira e com a Amazônia surge de relatos muito antigos. Holanda (1994) destaca dentre
eles os Diálogos das Grandezas do Brasil, redigido aparentemente por volta de 1618, e as
Raridades da Natureza e da Arte, publicado em 1759, que descreviam extensivamente a
fauna e a flora nativas. Segundo Holanda (1994) o próprio Colombo considerava o Amazonas
a verdadeira Porta do Éden. Muitos teólogos antigos e modernos argumentavam, segundo
Holanda (1994, p. 142): “[...] em favor da crença [da localização do] sagrado horto no coração
do Brasil, e de preferência na Amazônia.”
No texto do site Maria-Brazil, são variados os significantes que remetem às
representações da mitologização da Amazônia como “paraíso terrestre”, “bosque deleitoso”
ou “horto sagrado”. No âmbito verbal, o texto de Maria-Brazil destaca a grandeza das águas
amazônicas quando comenta a largura do Rio Negro: entre vinte e cinco e trinta e cinco
quilômetros. No nível imagético, Maria-Brazil evidencia em muitas imagens a riqueza das
águas da Amazônia, o que lembra a carta de Caminha a respeito do clima e das águas
brasileiras e seu papel na fertilidade da terra: “[...] a terra em si é de muitos bons ares, frios e
84
temperados como os de Entre-Doiro e Minho [...]. Águas são muitas, infindas. E em tal
maneira é graciosa que, querendo a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que
tem.” (SIMÕES, 1999, p. 138). Nas imagens do site, os rios são sempre margeados pela
floresta luxuriante. Um dos elementos importantes na formulação do mito fundador, como já
vimos, é a eterna primavera, evidenciada nas imagens do site pela perenidade do verde.
Holanda, citando o texto do jesuíta português Simão de Vasconcelos (1865 apud
HOLANDA)
16
, Crônica da Companhia de Jesus, publicado pela primeira vez em Lisboa em
1663, esclarece as quatro propriedades, cujo dom é divino, necessárias para que a terra seja
considerada boa e fértil:
A primeira está nisto, que se há de vestir de verde, com erva, pasto e arvoredo de
vários gêneros. A segunda, que gozará de bom clima, boas influências do céu, do
sol, da lua, das estrelas. Que sejam abundantes as suas águas em peixes, e seus ares
em aves, é esta a terceira propriedade, e a quarta, que produza todos os gêneros de
animais e bestas da terra.
Na páginas de Maria-Brazil que relatam viagens de Sheila Thomson à
Amazônia, vários sentidos são construídos com o intuito de fornecer a visão da Amazônia
como “paraíso terrestre”. As frutas exóticas, como o cupuaçu, são mostradas em seu estado
mais puramente natural, ainda na árvore. A castanha-do-pará, a cashew nut ou Brazilian nut
que o estrangeiro conhece embalada em pacotes, é mostrada em seu estado natural, recém-
retirada da castanheira.O internauta também é brindado com a imagem da castanha de caju em
forma de fruto e flor, na própria árvore. Do urucum, fruto utilizado pelos índios em suas
tinturas, é mostrada a planta. A imagem de crianças seminuas, banhando-se e brincando nas
águas do rio, remete à inocência dos nativos descrita na carta de Caminha. Essa inocência, por
sua vez, já encontra seu correspondente intertextual nos relatos bíblicos sobre a inocência de
Adão e Eva no paraíso, antes da Queda e do Pecado Original. Escreve Caminha: “Assim,
16
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Lisboa: ed. não
informada, 1865. p. 125. Apud HOLANDA, 1994, p. 143.
85
Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais, quanto à vergonha.”
(SIMÕES, 1999, p. 137).
A abundância de animais também é um elemento importante na representação do
paraíso terrestre, e encontra respaldo nas imagens mostradas pelo site. Já na homepage, como
vimos, temos a imagem do macaco e da preguiça. Nas cenas amazônicas, temos as capivaras
no Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará, e o jacaré que a turista segura nas mãos. Em
Brasília, são as emas que passeiam no cerrado. A abundância de peixes é evidenciada através
da culinária, utilizando-se a imagem do peixe assado de forma rústica, à moda indígena.
Entretanto, como destaca Holanda (1994) as aves canoras e coloridas são especialmente
postas em evidência nas representações medievais e quinhentistas do paraíso terreal ou Horto
das Delícias. Mais uma vez encontramos, aqui, a correspondência entre os relatos medievais e
a carta de Caminha: “Mas, segundo os arvoredos serem mui muitos e de infindas espécies,
não duvido que por esse sertão haja muitas aves.” (SIMÕES, 1999, p. 131). Nesse sentido,
Maria-Brazil evoca nas suas representações do Brasil e dos brasileiros esses elementos
intertextuais nos trazendo a imagem das araras (incluindo a hoje em dia rara arara azul), o do
periquito e do tucano (esta presente no banner
17
de seu patrocinador).
Na seção do site que se propõe a mostrar imagens que sintetizem a geografia
brasileira, novamente encontramos, no âmbito imagético do texto, imagens que constroem
sentidos a respeito da grandeza das riquezas brasileiras. Nesta seção, estão presentes três
imagens de vistas aéreas do Rio de Janeiro. Conforme nos lembra Bignami (2002) esse modo
de representação encontra sua origem nos ilustradores das expedições que vieram ao Brasil no
século dezenove – quando a cidade era a capital do Brasil - como Debret e Rugendas,
constituindo-se em uma maneira característica de representar nosso país. Além disso,
17
Formato de publicidade na Internet que consiste em uma imagem retangular situada preferencialmente no topo
da página.
86
encontramos elementos que revelam o poder e a força das águas: imagens da cascata do
Caracol, no Rio Grande do Sul, e das poderosas quedas das Cataratas do Iguaçu.
Um elemento bastante curioso do site Maria-Brazil, e que a nosso ver reforça a
idéia de associação entre Brasil e paraíso, é a relativa ausência de imagens urbanas em relação
às imagens da natureza. Mesmo quando presentes, a maior parte das imagens urbanas está
associada à algum elemento da natureza, que tende a ser predominante e ocupar o centro da
imagem, construindo seu significado. Desta forma temos, por exemplo, uma imagem do
calçadão do Rio de Janeiro que mostra um quiosque de praia, sendo que a maior parte da
imagem é ocupada por um vistoso ramo com muitos cocos verdes. Os telefones públicos em
formatos de frutas exóticas fazem parte da mesma cadeia de sentidos. Essa forma de
representação, que destaca a singularidade do exótico, é característica das estratégias de
marketing turístico. Escrevendo a respeito das representações de natureza no Brasil, DaMatta
(1993, p. 106) ressalta a moldura naturalista que se imprime na discussão sobre a exploração
da natureza – que se “oferece”, dadivosa, à exploração e fruição por parte do colonizador – e
em tempos modernos, poderíamos dizer, por parte dos turistas: “Tal como na carta de
Caminha, tudo aparece por meio de uma leitura que enfatiza o espontâneo, o natural e o
relativamente inocente.” A nosso ver, a representação da natureza brasileira no site Maria-
Brazil segue o padrão revelado por DaMatta e atualiza, sob novas roupagens, o conceito
mitológico do mito fundador: a representação do Brasil como paraíso na Terra, jardim de
delícias ou bosque deleitoso, do qual já falavam os relatos medievais.
87
Figuras 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 : entre as muitas imagens que constroem o sentido do Brasil-paraíso, temos aqui
o côco verde dominando a paisagem urbana; cajus e jaboticabas; a arara azul no habitat natural; pitangas
maduras; Sheila Thomson fazendo amizade com um macaquinho amazônico; capa do livro Frutas no
Brasil; jacas no pé.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
5.2 Os aspectos tradicionais da cultura nacional: o lugar do exótico e do tradicional
O aspecto tradicional da cultura brasileira é enfatizado através de imagens e
textos que falam de nosso patrimônio cultural. A cultura popular, “própria da gente de boa
simplicidade”, é mostrada na homepage nas imagens do artesanato popular nordestino. O
artesanato em barro retrata as tradições, manifestações folclóricas, festas regionais e locais,
tais como a cavalhada de Goiás, os sanfoneiros nordestinos e o maracatu de Pernambuco. As
imagens do casario dos séculos dezessete e dezoito e da igreja, presentes na homepage,
também concorrem para reforçar o sentido de tradicionalismo, harmonia e tranqüilidade do
paraíso, lugar onde o ritmo acelerado da civilização moderna não chegou e nem deve chegar.
As representações da paisagem urbana do Brasil, aliás, ocorrem predominantemente através
das imagens do patrimônio arquitetônico do período colonial. O caráter moderno surge, com
88
menor ênfase, no âmbito imagético, através da arquitetura da cidade de Brasília e de ícones
urbanos como o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro.
A riqueza de nossa cultura popular brasileira merece destaque especial no site
Maria-Brazil através de uma seção específica que trata apenas da música e do folclore. Nesta
parte do site, são construídos os sentidos de uma brasilidade que aponta para o tradicional, o
folclórico, o que ainda não foi atingido pela modernidade e logra preservar-se apesar da
rápida difusão da globalização ora em curso. O elemento do artesanal, que aponta para a não
utilização da tecnologia, revela-se no discurso verbal e imagético do site pela valorização do
artesanato em diversos formatos: em barro ou argila, cestaria, tapeçaria, entalhe em madeira e
renda de bilro, conforme demonstram as figuras abaixo:
Figuras 11, 12, 13 e 14: representações em barro de manifestações da cultura popular, respectivamente a
cavalhada, música popular nordestina e maracatu; artesanato em palha com motivos indígenas
marajoaras, no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
A construção de sentidos a respeito da diversidade cultural brasileira aponta,
também, para a questão de preservação dessa riqueza. Esse discurso evoca a memória
histórica e a necessidade de preservá-la em elementos que são fundamentais para a identidade
nacional brasileira: a música e o folclore, onde se mesclam as etnias fundadoras do país: o
branco, o índio e o negro. Dois enunciados nos dão conta dessa proposição: “O Ilê Aiyê,
fundado em 1974, é o primeiro e mais importante Bloco afro da Bahia. Seu nome significa
89
‘casa dos negros’ e seu objetivo é preservar e expandir a cultura afro-brasileira [...]” e também
o enunciado
[...] alguns anos atrás, essa tradição secular [o maracatu] – originada com grupos de
escravos e ex-escravos há mais de 300 anos atrás – parecia ter morrido, lentamente
desaparecendo das celebrações do carnaval. Mas recentemente, graças aos esforços
de um grupo chamado Maracatu Nação Pernambuco, a tradição retornou. (MARIA-
BRAZIL, 2004)
O caráter exótico é enfatizado na exploração do tema das danças folclóricas, das
lendas e mitos populares, além da música folclórica. Passaremos agora a explorar esses
elementos: que sentidos derivam a partir dessas representações sobre o Brasil e os brasileiros?
As lendas brasileiras trazem para a narrativa do site a riqueza da cultura dos
primeiros habitantes do Brasil: caipora, cobra-grande, Iara e Curupira apresentam para o
estrangeiro a mitologia indígena. O sul é representado pelas lendas do Negrinho do Pastoreio
e Salamanca do Jarau. Ao comentar a lenda da Iara, o âmbito verbal da narrativa revela o
movimento de miscigenação que caracteriza a cultura brasileira:
De acordo com os folcloristas brasileiros, a Iara não era uma sereia originalmente,
mas uma cobra aquática, também chamada mboiaçu – mboi, serpente e açu, grande
em tupi. No século dezenove ocorreu um processo de convergência entre a cobra
d´agua amazônica e o mito europeu da bela criatura metade humana e metade peixe
que atraía os pescadores com seu canto. (MARIA-BRAZIL, 2004).
No caso do tema das danças folclóricas, o que chama a atenção é a presença de
componentes das culturas indígena, portuguesa e, principalmente, africana. Danças como o
siriá, a dança do maçarico (que imita os movimentos de um pássaro amazônico), a ciranda
nordestina, o lundu (um precursor sensual do samba), o carimbó e o maracatu revelam o
hibridismo cultural que marca nossas manifestações folclóricas. A sensualidade brasileira, que
tanto apela ao imaginário estrangeiro, está presente nas imagens que mostram os bailarinos
dançando. No entanto, é importante demarcar que a sensualidade, aqui, não tem o apelo
erótico que é evocado intertextualmente, por exemplo, pelo cinema americano, e a respeito do
90
qual já escrevemos. Vejamos o que Sheila Thomson escreve a respeito da lambada, ritmo
brasileiro que fez retumbante sucesso no exterior na década de 90 (o que concorre para
reiterar os sentidos, já presentes nas representações da natureza, de uma brasilidade ligada ao
natural, ao inocente e ao espontâneo):
A palavra lambada refere-se tanto ao ritmo – uma fusão do carimbó e do merengue
– quanto à dança, que incorpora elementos do forró, samba, merengue e maxixe (a
dança brasileira do século dezenove que fez tremendo sucesso na Europa). A dança
é sexy, sim, porém é dançada por todos os tipos de pessoas, de todas as idades e
sexos, sem as conotações “sujas” dadas a ela por tantos filmes ruins de Hollywood.
(MARIA-BRAZIL, 2004, ênfase da autora).
A valorização do regional também surge no discurso do site pela exploração do
tema da música popular e folclórica. São inúmeros os CDs de música regional que são
resenhados e comentados (todos com as respectivas imagens das capas dos Cds), desta forma
divulgando para o internauta estrangeiro a música exótica, que no exterior é conhecida pela
expressão world music e possui até uma categoria no Prêmio Grammy – o Oscar da música.
Através de inúmeros gêneros musicais exóticos aos ouvidos estrangeiros, tais
como a embolada, o repente nordestino, o coco maranhense, o frevo, tambores de cuia e o
forró, por exemplo, o internauta trava contato com a diversidade cultural brasileira, resultado
do processo de hibridização das culturas portuguesa, negra e indígena. A respeito da
musicalidade indígena, o discurso do site evoca intertextualmente os relatos quinhentistas dos
primeiros exploradores, citando nominalmente os livros Viagem à Terra do Brasil, de Jean de
Léry, publicado em 1578, e Tratado Descritivo do Brasil, de autoria de Gabriel Soares de
Sousa, de 1587. Esses relatos já descreviam as canções, danças e instrumentos musicais de
diversas tribos.
A riqueza de manifestações culturais, tanto da dança quanto da música, assim
como do artesanato, que se revela nas manifestações folclóricas do bumba-meu-boi (de
origem portuguesa), bois de Parintins, ciranda e cavalhada, reitera os sentidos que apontam
91
para a riqueza da cultura brasileira, assim como da necessidade de sua preservação. Isso
torna-se mais evidente quanto o site divulga a música indígena, assim como a literatura de
cordel – a arte popular do nativo e do povo simples. Assim acentuam-se conotações,
conforme já demarcamos, de uma brasilidade marcada pela espontaneidade, exotismo,
inocência e espírito tradicional.
Figuras 15, 16, 17 e 18: da esquerda para a direita: dançarinos executando o lundu, dança de origem
africana, antigamente considerada escandalosa por sua sensualidade; capa de livro de literatura de
cordel; capa de Cd de música indígena; entalhe em madeira representando a ciranda nordestina.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
5.3 Cultura popular e os símbolos de brasilidade
Enquanto o subcapítulo anterior deteve-se sobre os relatos do site Maria-Brazil a
respeito do Brasil e dos brasileiros a partir de uma perspectiva eminentemente folclórica, esta
parte da análise ocupa-se dos símbolos mais conhecidos de legitimação de brasilidade que
fazem parte do imaginário a respeito do Brasil no exterior, tais como a comida (feijoada e
caipirinha); o samba, o Carnaval, o futebol e a música popular. Torna-se preciso enfatizar, no
entanto, que embora esses elementos estejam presentes, o discurso verbal e imagético de
Maria-Brazil toma o caminho da exploração da diversidade cultural, ou seja, procura construir
os sentidos a respeito da brasilidade a partir de uma perspectiva pluralizante e não
reducionista.
92
Iniciemos nossa análise pela forma como o Brasil é representado através de sua
comida. A seção de culinária do site abre com o seguinte enunciado: “Bem-vindo a um dos
segredos mais bem guardados do mundo: a fabulosa cozinha brasileira.” O sentido “paraíso” é
evocado através da palavra segredo, a qual conota a característica de exclusividade e desejo,
tal como nos relatos medievais que buscavam descobrir a localização exata do Jardim das
Delícias.
A narrativa do site que trata da temática da culinária prossegue construindo
sentidos que apontam para o exotismo e abundância de opções de comida e bebida preparadas
com os variados frutos nativos. A imagem da torta de maracujá presente na homepage revela,
nesse sentido, o exotismo do alimento preparado com as frutas da terra, fértil e formosa. Os
comentários sobre os diferentes pratos da culinária brasileira são, na grande maioria,
acompanhados por belas imagens do alimento já pronto.
Além do exotismo, outros signos de segunda ordem, que apontam para a riqueza
e abundância do alimento, ajudam a ratificar o sentido mitológico que constrói a imagem do
Brasil como paraíso na Terra – jardim de delícias onde ninguém passa fome ou sede.
Verifiquemos agora como esse sentidos são enfatizados na narrativa, assim como sua
correspondência intertextual. Escreve Sheila Thomson: “Se a seção de sobremesas fica cada
vez maior... bem, é porque há mais tipos de sobremesas no Brasil! As frutas, ovos e açúcar há
muito são combinadas em alguns dos pratos mais maravilhosos da Terra.” A variedade
disponível para usufruto, verificada no enunciado anterior, é complementada pelo sentido
conotativo “riqueza” dos frutos da natureza brasileira, que se revela no seguinte enunciado:
“Apenas duas das frutas tropicais nativas do Brasil, o caju e a acerola, contém mais vitamina
C do que qualquer outra fruta existente.” Na época das Grandes Navegações, sabia-se através
dos relatos que o sumo dos frutos tropicais ricos em vitamina C salvou muitos marinheiros do
93
escorbuto (HOLANDA, 1994). Esse sentido encontra uma correspondência intertextual no
Hino Nacional Brasileiro, que, assim como o texto de Maria-Brazil, também constrói a
imagem do Brasil como paraíso na Terra, evocando a riqueza de sua natureza em relação à
outros países: “Do que a terra mais garrida, teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
nossos bosques têm mais vida, nossa vida no teu seio mais amores.” (HINO...). A narrativa de
Maria-Brazil evoca essa ligação entre a natureza e o hino de forma poética, ao narrar uma das
cenas da viagem de Sheila Thomson à Amazônia. Nela, a americana, encantada com o
cupuaçu, visita a casa de uma senhora que fazia um doce da fruta enquanto cantava o Hino
Nacional.
Roberto DaMatta (1994) afirma que a comida é um elemento crucial na
identificação da brasilidade. Para o autor, a ligação que o brasileiro mantém com a comida é
semelhante à que mantém com a família; aliás, a comida é motivo não apenas da satisfação
dos sentidos, o que remete à sensualidade, mas evoca a segurança e aconchego da casa. Nas
palavras do autor:
Sabemos que somos tão bons em comida quanto em mulher ou futebol. Aqui,
afirmamos entre sorrisos, somos os melhores do mundo...E, como não poderia
deixar de ser, o mundo das comidas nos leva para casa, para nossos parentes e
amigos,para os nossos companheiros de teto e de mesa. Essas pessoas que
compartilham intensamente de nossa vida e intimidade. (DAMATTA, 1994, p. 54).
A narrativa de Maria-Brazil constrói, nos âmbitos verbal e imagético, os sentidos
apontados por DaMatta, que sublinham o valor que o brasileiro dá à socialização em geral e à
família em particular. Aqui, destacamos como isso ocorre através da comida. Quando
apresenta a feijoada, Sheila Thomson diz: “Este é o prato nacional do Brazil. É
tradicionalmente servido aos sábados e é uma refeição festiva a ser compartilhada com a
família e com os amigos.” Através da comida e bebida, revela-se também o espírito lúdico do
brasileiro. Falando a respeito das cachaças e das batidas feitas com frutas, a narrativa revela
94
que estas “[...] freqüentemente têm nomes humorísticos tais como xixi de anjo, suor de
virgem, leite de macaco, etc.” Não só nomes humorísticos, como também pornográficos, no
caso de algumas cachaças. A respeito destas, o âmbito verbal destaca o valor conotativo do
desejo pela bebida no Exterior, preparada na sua forma mais tradicional, a caipirinha:
“Atualmente, o tradicional drinque brasileiro preparado com cachaça causa o maior furor na
Europa e Estados Unidos. Acho que se poderia dizer que COSTUMAVA SER o segredo mais
bem guardado do Brasil, e agora tornou-se o drinque escolhido pelos gourmets desde Nova
York a Miami, alcançando altos preços.” (MARIA-BRAZIL, 2004, caixa-alta da autora).
Novamente, temos aqui o desejo de descobrir os tão bem guardados segredos desse paraíso
culinário que é o Brasil representado no site. O agradecimento por poder compartilhar deste
“tesouro” encontra-se no enunciado que revela a grande simpatia da narrativa do site pelo
Brasil e pelos brasileiros: “Obrigado, Brasil, pela música, pela feijoada e pelo maravilhoso
senso de humor!” (MARIA-BRAZIL, 2004).
A diversidade cultural resultante da miscigenação do branco, do negro e do índio
também se revela na narrativa do site, nas variedades culinárias regionais. Desta forma, o site
percorre a cultura culinária de todas as regiões do país, apresentando tanto o churrasco gaúcho
quanto o bobó de camarão da Bahia, passando pelos pratos típicos de diversas regiões, como
por exemplo o pão de queijo mineiro. O caráter exótico encontra-se nos ingredientes dos
pratos, preparados com os frutos da terra, assim como na bebida, pela invenção típica
brasileira: o guaraná. As variações brasileiras dos doces portugueses: o quindim e o
brigadeiro, não são esquecidas. No texto sobre este último, podemos observar a utilização do
superlativo no discurso a fim de persuadir o internauta a conhecer o paraíso da culinária
brasileira: “Estes doces feitos com leite condensado pertencem à maravilhosa categoria dos
95
docinhos brasileiros. [...] quando os faço para as festas de aniversário do escritório do meu
marido, fazem um enorme sucesso com os americanos também.”
Além da comida, outra característica marcante de nossa cultura popular
reconhecida em outros países é a criatividade musical. A esse respeito, Bignami (2002)
enfatiza que a musicalidade é a marca cultural que caracteriza o Brasil no exterior. Nas
palavras da autora, “A música brasileira exportada e reconhecida internacionalmente parece
ser uma música fortemente sensual e alegre, dotada obviamente de forte característica exótica
e erótica, como o samba, a bossa nova, o pagode, a salsa e os mais variados ritmos afro-
brasileiros.” (BIGNAMI, 2002, p. 117). As conotações de exotismo, sensualidade e alegria
características da terra e da gente brasileira, já construídas nas narrativas do site Maria-Brazil
através de signos ligados à dança e à comida, agora são exploradas também através da música
popular brasileira. As conotações de riqueza e diversidade cultural também são delineados
através das resenhas de CDs de diversos gêneros musicais. Embora o samba - reconhecido no
Exterior como o gênero musical brasileiro por excelência – mereça uma página exclusiva na
narrativa do site, outros gêneros musicais não são esquecidos. Desta forma, constrói-se a
conotação de que o Brasil não é o país apenas do samba e do carnaval, mas também da bossa
nova, da música do pampa sul-riograndense, do choro carioca, da música caipira e sertaneja,
além da música ligada às manifestações folclóricas sobre as quais comentamos no subcapítulo
anterior. É importante aqui ressaltar o papel da Internet enquanto suporte multimídia, pois
aqui a narrativa se enriquece com a utilização desse recurso. As representações da
musicalidade brasileira são construídas, nesse caso tanto através da linguagem escrita e
imagética quanto da utilização de arquivos no formato MP3. Através deles, o internauta pode
ouvir mais de dez músicas brasileiras, de artistas de diversas regiões do país, representando
diferentes gêneros, do reisado à bossa nova, passando pela música caipira e pelo choro.
96
Música e dança são elementos que remetem às festas, e a narrativa do site não
poderia deixar de fazer referência à principal festa popular brasileira, o Carnaval, que é
abordado não apenas na sua manifestação mais conhecida no Exterior – o Carnaval do Rio de
Janeiro – mas também no formato do Carnaval do Nordeste. Para DaMatta (1994) o carnaval
é um rito de inversão, onde momentaneamente inverte-se a hierarquia de poder que está
presente na sociedade brasileira, a qual possui um elemento de autoritarismo bastante forte.
No Carnaval, o pobre veste-se de rico e deixa de submeter-se ao trabalho por alguns dias para
festejar. Para o estrangeiro, a inversão própria do Carnaval brasileiro pode ser de difícil
compreensão. Nesse registro, DaMatta comenta uma entrevista que concedeu à TV americana
(1996, p. 221):
“Como”, perguntava-me ele [o entrevistador] depois de ter presenciado o desfile das
escolas de samba, “toda essa explosão de sensualidade e alegria, num país tão pobre?”
Para ele, nativo de uma sociedade fascinada com a coerência, quem era pobre tinha de
ser magro, feio, doente e triste. Pobreza associada a prazer, beleza e alegria eram uma
prova de que as coisas estavam definitivamente fora de lugar.
O narrativa de Maria-Brazil explica as origens históricas da festa – do entrudo
português às primeiras escolas de samba, fundadas no final da década de 20 - e sua relação
com a cultura negra: “[As primeiras escolas de samba consistiam em] grupos de negros e
mulatos que queriam fazer música e desfilar durante o Carnaval.” Maria-Brazil narra nosso
país para o estrangeiro reforçando atributos da grandeza (como no enunciado “O desfile [das
escolas de samba do Rio de Janeiro] é a maior atração do carnaval no Brasil e decididamente
luxuosa e gigantesca. Algumas escolas desfilam com mais de quatro mil participantes e em
torno de trezentos percussionistas.”), do apelo popular e do exotismo da festa - seja
mostrando imagens dos ricos trajes usados pelos membros das escolas de samba, as camisetas
dos foliões dos blocos carnavalescos ou evidenciando, no âmbito verbal da narrativa, o caráter
de loucura coletiva dos festejos:
97
Por vezes, mais de um milhão de pessoas, ocupando uma milha quadrada das duas
cidades [Recife e Olinda, em Pernambuco], dançam freneticamente ao som dos
trios elétricos. O mais famoso desses grupos de frevo é o Galo da Madrugada,
assim chamado porque supostamente começa o Carnaval na alvorada da manhã de
sábado, deflagrando quatro dias de loucura no centro do Recife. (MARIA-BRAZIL,
2004).
Desta forma, através de elementos presentes na cultura popular, como a comida,
a bebida, a música e o Carnaval, a narrativa do site constrói significados que apontam para a
mitologização do Brasil e dos brasileiros em torno dos sentidos do exotismo, da abundância,
da riqueza e do superlativo no que se refere a esses atributos. Novamente retomamos aqui a
formulação do mito fundador do Brasil em torno da idéia de paraíso terreno: o Jardim das
Delícias onde há comida em abundância, e portanto não se passa fome ou sede e não existe
doença; não é preciso trabalhar para se ganhar o pão e por isso a vida é uma eterna festa.
Nesse local ideal, as pessoas convivem alegres e em harmonia consigo mesmas e com a
natureza. Esse ponto nos remete ao tema do próximo subcapítulo, onde analisamos mais
detidamente um tópico que já delineamos em pontos anteriores da análise - como são
construídos as representações em torno do que é ser brasileiro pela narrativa do site Maria-
Brazil.
98
Nas figuras 19, 20, 21, 22, 23 e 24, imagens da brasilidade: caipirinha; refrigerante de guaraná; berimbau
e fitinhas do Senhor do Bonfim; camiseta do bloco carnavalesco Simpatia é Quase Amor; aperitivos que
antecedem o churrasco; e o prato nacional – a feijoada.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
5.4 As Representações dos Brasileiros
Como são representados os brasileiros no site Maria-Brazil? Que conotações são
associadas ao seu modo de ser, aos seus usos e costumes? Como a composição étnica
responsável pela formação do povo brasileiro – o português, o negro e o índio – aparece, ou
não, nos textos e imagens do site? A resposta à essas questões nos ajudará a entender como os
sentidos em torno do que significa ser brasileiro são construídos no site para o consumo do
Outro – o estrangeiro.
O primeiro ponto que chama a atenção na narrativa imagética surge por
contraste. Ao contrário de tantas outras narrativas, as imagens do site não exploram a
99
sexualidade feminina; não erotizam a figura da mulher. Intertextualmente, essa erotização da
figura feminina pode ser evocada, por exemplo, na publicidade do produto turístico Brasil no
exterior, onde a figura feminina, erotizada, conotava que esta fazia parte das atrações
turísticas, conforme recorda Bignami (2002, p. 115): “[...] folhetos da própria Embratur
[chegaram] a enfatizar esse aspecto para atrair turistas do mercado estrangeiro, com fotos de
bumbuns arrebitados, garotas usando tangas ou biquínis ‘asa delta’”. Esse ponto de vista – a
não erotização da mulher brasileira - se torna bastante claro na página onde Sheila Thomson
relata a criatividade do brasileiro ao reinventar o biquíni e o sucesso deste no Exterior:
Sinto muito, rapazes, não haverá aqui belas garotas de biquíni! Esta é uma pesquisa
séria [...] sobre como se pode usar criativamente um pedacinho de lycra! [...] Os
franceses podem ter inventado o biquíni – acredite ou não, em julho de 1946 – mas
os brasileiros continuam a reinventá-lo a cada verão, sempre com mais designs
fabulosos e novos estilos sensuais. (MARIA-BRAZIL, 2004).
O brasileiro, na narrativa imagética do site, é retratado principalmente nas
seguintes situações: em contato com a natureza ou divertindo-se, seja dançando, em contato
com a música ou torcendo pela seleção de futebol na Copa do Mundo. Em outras palavras, e
num sentido amplo, a figura humana é retratada fruindo os elementos presentes no paraíso
terreal. Desta forma, temos imagens do brasileiro na praia do Sudeste ou nadando nos rios da
Amazônia, por exemplo; cortando o côco verde com um facão para tomar sua água ou
bebendo sucos de frutas. No aspecto da diversão, o brasileiro é retratado tocando instrumentos
musicais – seja tambores de carimbó ou o pandeiro da embolada (o brasileiro mestiço e
caboclo), no plano das manifestações folclóricas, numa roda de choro (o brasileiro branco) ou
entretido com os atabaques da Bahia (o brasileiro negro), já no plano urbano. A figura do
índio está relativamente ausente, presente em imagens do interior do Museu do Índio, que
mostram seu modo de vida; nas capas de CD – mostrando sua musicalidade – e,
implicitamente, através do resultado de seu artesanato – há várias imagens do trabalho em
100
cestaria, principalmente na página dedicada à cidade de Belém. Ao lado do brasileiro
anônimo, encontramos as imagens dos brasileiros famosos – principalmente os músicos, nas
capas de CDs, como por exemplo Antônio Carlos Jobim, João Gilberto, Vila-Lobos, Ary
Barroso e Carmem Miranda. Não há imagens de jogadores de futebol – nem de Pelé. Diz-se
que “[...] os heróis são básicos para o povo. Sobretudo para esse povo brasileiro [...].”
(DAMATTA, 1996, p.126); nesse sentido, além dos músicos, outro brasileiro famoso
retratado verbal e iconicamente no site é Santos Dumont; constrói-se uma narrativa que o
heroísmo é representado pelo pioneiro inventor do avião.
Outra forma de retratar o brasileiro é torcendo pela seleção na Copa do Mundo. No
site encontram-se imagens dos brasileiros na rua, comemorando alegremente a vitória da
Seleção na Copa de 2002, assim como de carros e prédios decorados nas cores verde e
amarela. Uma das imagens – a do hotel Marina, no Rio de Janeiro, em parte coberto por uma
enorme faixa impressa com a bandeira nacional e os dizeres “Pra frente, Brasil” evoca, no
âmbito intertextual, a importância do futebol para a mitologia verde-amarela. Como nos
lembra Chauí (1986; 2002) as vitórias no futebol foram naturalizadas pelas ideologias de
Vargas e do governo militar, a partir de 1964, como questão de honra nacional. Na homepage,
encontramos a imagem do livro Football – the Brazilian way of life (Futebol, o estilo de vida
do brasileiro), de autoria do jornalista inglês Alex Bellos, cuja legenda demonstra a
apaixonada importância que o brasileiro devota aos jogos de futebol: “De um ex-
correspondente britânico no Rio surge esse relato sensível, profundo e engraçado da paixão
nacional do Brasil. Ao longo do livro, emerge um retrato de um povo que é impossível não
amar e uma nação plena de fantásticas contradições.” (MARIA-BRAZIL, 2004). Aqui revela-
se outro sentido presente na representação mitificada de nosso país – o do Brasil como “terra
de contrastes”.
101
Como são construídos os significados em torno das características psicológicas do
brasileiro, seus usos e costumes? A primeira delas diz respeito ao caráter comunicativo do
brasileiro no âmbito da comunicação não verbal. De acordo com Sheila Thomson (MARIA-
BRAZIL, 2004) os brasileiros ficam muito próximos dos italianos no que diz respeito à
riqueza do repertório gestual: “[...] tente assistir ao noticiário na TV brasileira... eles não
conseguem falar no Brasil sem usar as mãos!” O site oferece ao internauta estrangeiro uma
página onde é possível aprender os variados gestos que fazem parte da cultura brasileira,
desde os que servem para cumprimentar até os insultos.
Outro atributo importante é o da hospitalidade. A construção do Brasil e dos
brasileiros como país e povo hospitaleiro e acolhedor de todos os que nele desejam trabalhar e
progredir faz parte das representações mitológicas da brasilidade, conforme revela Chauí
(1986). A construção desse sentido já começa na homepage, logo abaixo do nome do site,
onde predomina o enunciado: “Lamentamos não poder oferecer-lhe um cafezinho, como
manda a hospitalidade brasileira!” O atributo aqui enunciado – a hospitalidade e o bem
receber o outro – é ativado por outros signos de segunda ordem na narrativa, como veremos a
seguir. Apresentando o significado do cafezinho na cultura brasileira para o estrangeiro,
escreve Sheila Thomson:
Contaremos a você agora um pouco sobre o cafezinho, uma palavra que, mais do
que ser um diminutivo da palavra café é quase um sinônimo para “bem-vindo” no
Brasil. Aonde quer que você vá, no minuto em que você caminha porta adentro,
alguém fará a pergunta: “você toma um cafezinho?” e eles não aceitam “não” como
resposta. Ou talvez eles nem perguntem e o cafezinho logo se materializa numa
bandeja trazida por uma empregada. Nos escritórios, alguém virá e servirá
cafezinhos para você na sua escrivaninha; então não fique surpreso se, no meio de
uma reunião de negócios, seu colega brasileiro lhe oferecer um cafezinho também.
(MARIA-BRAZIL, 2004, grifo da autora).
Na narrativa de Maria-Brazil, não é apenas o signo cafezinho que ajuda a construir
esses sentidos. No âmbito imagético, está presente a imagem que representa o Brasil no
102
Exterior por excelência: a estátua do Cristo Redentor, de braços abertos sobre o Rio de Janeiro.
No âmbito verbal, Sheila Thomson dedica o site “[...] com muito amor e gratidão aos meus
amigos brasileiros, que ao longo dos anos me acolheram e receberam em suas casas como se
fosse um deles.” A carta de Caminha, neste ponto, funciona como referência intertextual onde
se reconhece, desde há muito, a construção dos sentidos acima referidos: “Enquanto ali neste
dia [os índios] andaram sempre ao som de um nosso tamboril, dançaram e bailaram conosco.
De maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.” (SIMÕES, 1999, p. 134). As
conotações de hospitalidade, simpatia, alegria e do bem receber o estrangeiro nesta terra de
bons ares estão presentes no enunciado abaixo, que também enfatiza o valor que o brasileiro dá
à família:
Uma das noites mais agradáveis que já passei na cidade do Recife, no nordeste do
Brasil, foi quando aprendemos a dançar a ciranda defronte à igrejinha branca na praia
de Boa Viagem. Era domingo, depois da missa, e o tempo não podia estar melhor.
Havia uma bandinha de metais e tambores, e um cantor. Pessoas de todas as idades
deram-se as mãos e formaram um grande círculo. [...] Você pode entrar e sair da
ciranda quando quiser, e a dança pode durar a noite toda. As pessoas comem e bebem
batidas fortes feitas com cachaça e sucos de frutas tropicais, e as crianças adormecem
nos colos dos pais ou avós. (MARIA-BRAZIL, 2004).
A formas de sociabilidade com a família e os amigos, assim como o caráter lúdico e
alegre, fazem parte da brasilidade, nos lembra DaMatta (1994). Se a feijoada é uma ocasião
festiva a ser comemorada com a família e os amigos, o mesmo acontece com os aniversários
infantis. Ao descrever uma festa de aniversário à brasileira, a narrativa verbal não se esquece
de sublinhar, por contraste com o Outro, essa característica do brasileiro:
As festas de aniversário são um assunto de família no Brasil, onde pessoas de todas as
idades se misturam, dos bebês às vovós. Portanto, não se esqueça de convidar os
amigos de seus filhos E suas famílias. As pessoas aqui não fazem a festa só para as
crianças, como nos Estados Unidos. Eu me lembro da primeira festa de aniversário da
minha filha quando nos mudamos para os Estados Unidos. Fiquei muito triste, pois eu
e meu marido éramos os únicos adultos. (MARIA-BRAZIL, 2004, ênfase da autora).
103
A importância que o brasileiro devota à família e à comida, em sua qualidade e
abundância, também é sublinhada no enunciado que relata o costume brasileiro, que contrasta
com a cultura norte-americana, de interromper o trabalho para almoçar:
Seja em casa ou no restaurante, as refeições são sagradas: um tempo para comer, mas
também para compartilhar momentos preciosos com a família e amigos. Um costume
brasileiro do qual sinto muita falta: o do almoço ou jantar decente, calmo, à mesa [...]
as refeições “em família”. Aqui nos EUA temos até uma piada: se você vê pessoas à
mesa aqui por mais de meia hora, deve ser um almoço de negócios... E também esse
abominável costume americano de almoçar no local de trabalho, na sua escrivaninha
ou cubículo, é incompreensível para a maioria dos brasileiros, que saem dos
escritórios para comer com seus colegas em restaurantes e cafés. Você adivinhou, o
almoço brasileiro é uma refeição bem mais substancial do que aqui. Para o almoço e,
dependendo da ocasião, também o jantar, os brasileiros têm os maravilhosos e baratos
restaurantes onde comida caseira é servida a quilo. Você só precisa colocar a comida
no prato e alguém pesa para você. (MARIA-BRAZIL, 2004).
Um ponto do caráter nacional que tende a intrigar o estrangeiro é a maneira como
o brasileiro se relaciona com o tempo: por que todos eles parecem ter o costume de se
atrasar? De acordo com a narrativa de Maria-Brazil, “A percepção do tempo e o conceito de
pontualidade são muito diferentes no Brasil, mas eu insisto: isso não quer dizer que os
brasileiros sejam preguiçosos ou uma raça de procrastinadores.” Dessa forma, a narrativa do
site procura esclarecer um padrão cultural. Intertextualmente, podemos notar referências ao
discurso das teorias racistas vigentes no início do século vinte, que associavam às raças
inferiores que viviam nos trópicos um pendor natural para a indolência, conforme Ortiz
(1994). O discurso do site busca evitar qualquer preconceito, aconselhando o americano a
não considerar o atraso como ineficiência, sublinhando que o povo brasileiro é muito
trabalhador e que a questão do atraso está ligada a fatores estruturais (tais como a burocracia
e as longas filas nos bancos e repartições públicas), além do elemento cultural, pois os
brasileiros aproveitam todas as ocasiões para fortalecer a rede de sociabilidade. A maneira
104
como o brasileiro o faz, para o homem de negócios americano, por exemplo, é encarado
como “perda de tempo”.
A questão da sociabilidade nos leva, nesse ponto, ao tema da importância dos
processos interativos e das relações sociais no Brasil, o que por sua vez remete à
hierarquização como característica da sociedade brasileira (DAMATTA, 1993, 1994). O
âmbito verbal nos revela como essa questão é representada na narrativa do site Maria-Brazil.
Ao dirigir seu discurso ao homem de negócios americano, o enunciado conota o papel vital
das relações pessoais na nossa cultura: “As apresentações através de conhecidos em comum
são muito importantes. Providencie para que alguém ligue para o Brasil antes da sua partida
ou leve uma carta de apresentação com você. Nunca é demais lembrar a importância de se ter
contatos pessoais no Brasil.” O tema da hierarquia e do distanciamento social também é
mostrado no site por analogia com o mundo dos negócios:
Chamar pelo primeiro nome? Não, a não ser que seja convidado. O costume
americano de usar os primeiros nomes no local de trabalho é desconcertante para os
brasileiros, que estão acostumados à definições sociais bastante precisas sobre como
chamar um ao outro, em termos de status/idade e cargo/posição ocupada. Da maneira
como vejo, chamar o chefe de “Peter” não me torna seu igual, portanto é bom manter
distância, em termos lingüísticos. A língua portuguesa presta-se a isso através dos
pronomes formais “o senhor” para homens e “a senhora” para mulheres, no discurso
direto [...]. Também existem as palavras “Seu” antes do primeiro nome para homens e
“Dona” para mulheres, que são sempre usadas quando se fala com alguém (até a
pessoa lhe dizer que não as use, basicamente). [...] Existem exceções à regra, é claro:
seus colegas do sexo masculino ou feminino, caso tenham idade ou cargo
aproximado, provavelmente não ficarão ofendidos se chamados pelo primeiro nome.
É muito comum que chefes do sexo masculino, executivos e qualquer outra alta
autoridade ou burocrata seja chamado de ‘doutor’ no Brasil. Isso NÃO significa que a
pessoa seja um médico ou tenha um PhD, necessariamente... na maioria dos casos, na
verdade, é apenas um título honorário. (MARIA-BRAZIL, 2004, ênfase da autora).
O mundo do trabalho presta-se, na narrativa do site, a revelar o papel da hierarquia
e do distanciamento social na sociedade brasileira - e aqui podemos evocar o conceito de
mundo da rua de DaMatta (1994, p.30), como lugar de luta onde “[...] não se deve brincar
com quem representa a ordem [...].” A ligação do brasileiro com o “outro mundo”
105
(DAMATTA, 1994) desvela-se na narrativa do site, nos âmbitos verbal e imagético, pelo
relato do sincretismo religioso do brasileiro. A religiosidade e seu acento místico surgem, no
âmbito verbal, quando a narrativa explica os significados tanto da festa de Iemanjá, de origem
africana, quanto da Festa do Divino, católica por excelência. O caráter sincrético da
religiosidade brasileira é tornado explícito neste enunciado:
A foto de uma loja de umbanda no Rio é uma ilustração perfeita do sincretismo das
religiões africana e católica no Brasil: imagens de santos são vendidas lado a lado
com colares de contas de orixás e todos os tipos de sabonetes e ervas destinados a
ajudar a pessoa a ganhar dinheiro, tirar “mau-olhado” e coisas assim. (MARIA-
BRAZIL, 2004).
No âmbito imagético, estão presentes as imagens das oferendas a Iemanjá, da loja
de umbanda em Salvador e do berimbau adornado por fitinhas do Senhor do Bonfim, mas
também as da procissão da Festa do Divino. São as culturas portuguesa e negra revelando-se
na narrativa do site através da manifestação religiosa.
A grandeza da terra de contrastes brasileira é enfatizada, além da natureza,
também através da diversidade racial e cultural do povo brasileiro. Como já sublinhamos, a
miscigenação cultural brasileira torna-se explícita na narrativa do site quando o texto faz
menção às contribuições do branco português, do negro africano e do índio na música, no
folclore, no Carnaval, na comida e na religiosidade. Da mesma forma, a exaltação do povo
brasileiro, de seus tipos e sua história está presente também nos produtos da indústria cultural
que são anunciados no site e que complementam a narrativa da cultura e da identidade
nacional. Queremos aqui destacar os DVDs A Casa das Sete Mulheres, sobre a Guerra dos
Farrapos e, principalmente, Cidade dos Homens, que narra as aventuras de dois adolescentes
negros nas favelas cariocas, tendo origem no filme Cidade de Deus, de grande repercussão no
Exterior. Nesse sentido, Ortiz (2001, p. 204) explica como a mídia reflete mudanças culturais
na forma como os brasileiros se vêem e são vistos:
106
O Brasil mudou] [...] Nos anos 40, a mídia internacional projetava uma identidade
brasileira que se encontra condensada, por exemplo, num “ídolo” como Carmem
Miranda [...] A consolidação de uma sociedade moderna no Brasil reorienta essa
imagem na medida em que a cultura brasileira passa a integrar o mercado ajustada
agora aos padrões internacionais [...] A “autêntica” cultura brasileira, capitalista e
moderna, que se configura claramente com a emergência da indústria cultural, é fruto
da fase mais avançada do capitalismo brasileiro.
Em conclusão, através de nossa análise constatamos, na narrativa verbal e icônica
do site Maria-Brazil, a construção de uma representação do Brasil e dos brasileiros que remete
ao mito fundador. A tabela abaixo esclarece, em referência ao âmbito imagético da narrativa –
no site há mais de mil imagens - como diversos significantes contribuem para construir um
grande significado ou, como diria Barthes (2003) o conceito mítico:
Categoria da imagem Número de imagens
1 – A Natureza
Frutas e frutos 96
Árvores, flores e ervas 36
Praias 25
Animais 14
Imagens da selva e de acidentes geográficos, como as Cataratas do Iguaçu 58
Imagens do Brasil urbano onde o elemento natural predomina 50
Telefones públicos em formato de frutas 10
Sub-total 289
2 – Aspectos tradicionais da cultura popular
Imagens do artesanato em barro, cestaria, tapeçaria, entalhe em madeira e renda 138
Danças folclóricas 22
Casas dos caboclos 10
Casarios coloniais: o Brasil urbano tradicional 86
Imagens de fachadas de museus e suas exposições 11
Imagens de elementos ligados ao folclore: lendas e festas populares 10
Sub-total 277
3 – Cultura popular e símbolos de brasilidade
Religiosidade – sincretismo e festas religiosas 9
Comida e bebida 105
Futebol 4
Biquíni 6
Carnaval no Rio e na Bahia 12
A música popular – imagens de artistas e capas de CDs 145
Instrumentos musicais 6
Capas de livros sobre o Brasil em português e inglês; DVDs 38
Sub-total 326
4 – O brasileiro
Demonstrando sua linguagem corporal 28
107
Na selva, na praia ou outra forma de contato com a natureza e os animais 16
O brasileiro trabalhando 13
Imagens ligadas à brasileiros famosos 6
O brasileiro no dia-a-dia
- Religiosidade: Iemanjá e festa do Divino 2
- Tocando música 20
- No bar, restaurante, lanchonete ou casa de sucos 7
- Escolhendo biquínis 2
- Comemorando vitórias no futebol 11
- Descansando na rede 1
Sub-total 125
TOTAL DE IMAGENS DO SITE
1017
Tabela 1: Análise quantitativa das imagens do site Maria-Brazil.
Maria-Brazil constrói representações do Brasil-paraíso como dom da Natureza e
presente de Deus à humanidade de muitas formas: é o paraíso da riqueza natural, o da comida
farta e deliciosa, o da sensualidade inocente, o da simplicidade e hospitalidade do povo, o do
lugar onde não há mal, o da criatividade musical, o “país dos contrastes” pela diversidade
cultural e grandeza de seus recursos naturais . Bignami (2002, p. 101) nos lembra que o termo
surge no momento histórico onde “O Brasil começa a ser conhecido não só pelas
manifestações culturais, mas tem início um certo discurso preocupado com as questões
sociais. Roger Bastide cunha o termo ‘Terra de Contrastes’ ao publicar seu livro Brasil, Terra
de Contrastes, em 1959.” Na narrativa do site observa-se um apagamento dos sentidos sobre a
violência e a pobreza em favor da valorização da riqueza natural e cultural do Brasil. Não
parece ser a proposta do site discutir em profundidade questões sociais. Por exemplo, existe
no site uma única imagem de uma favela carioca na página de imagens do Rio de Janeiro, mas
não existe uma legenda descrevendo o seu significado. O tom persuasivo da narrativa do site
aproxima-o da estratégia de comunicação publicitária; o convite para que o estrangeiro visite
o Brasil e conheça melhor sua cultura torna-se explícito em muitos enunciados, como no que
segue: “Esperamos que esta introdução [à história do] Carnaval incentive-o a participar das
celebrações algum dia!” (MARIA-BRAZIL, 2004). Os patrimônios nacionais: cultural,
108
natural e histórico – assumem conotações de tesouro a ser descoberto pelo estrangeiro; dádiva
de Deus à humanidade que o brasileiro, generosamente, compartilha com os que aqui
chegam.
Os elementos analisados sublinham conotações que remetem a um universo em
que se enfatizam os atributos relacionados ao inocente, tradicional, folclórico, exótico, ao
anterior à tecnologia e mecanização da vida contemporânea. Um retorno ao paraíso - um
mundo de abundantes riquezas e maravilhosas delícias - onde a vida é descomplicada, as
relações sociais são harmoniosas e a diversão está sempre presente. A narrativa de Maria-
Brazil retoma símbolos e seus significados atualizando sob novas roupagens, agora no suporte
midiático multimídia que caracteriza a sociedade da informação – a Internet – o padrão
representacional do Brasil e dos brasileiros que aponta para o nosso mito fundador.
Figuras 25, 26, 27 e 28: nas capas de livros e CDs, representações do cotidiano do brasileiro: diversidade
de tipos humanos na capa do livro Dicionário Mulheres do Brasil; CD Garotas de Ipanema – evocando a
sensualidade doce e ingênua da garota da música de Tom Jobim; a cena bucólica do jogo de futebol na
praia, à noite, na capa do CD SambaSoulGroove; na capa do CD Casa da Mãe Joana, a representação da
roda de samba, com a figura sensual da mulata.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
109
Imagens do brasileiro nas figuras 29, 30 e 31: mostrando castanhas do Pará ao natural; crianças
banhando-se em rio da Amazônia; comemorando a conquista da Copa do Mundo de 2002.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
Imagens do brasileiro nas figuras 32, 33 e 34: aproveitando um dia de sol na praia; oferecendo champanhe
à Iemanjá; tocador de embolada do Recife.
Fonte: MARIA-BRAZIL, 2004.
110
6 DO OUTRO LADO DO PARAÍSO: AS NARRATIVAS DA NAÇÃO DOS
INTERNAUTAS DO SITE BRAZZIL.COM
Roberto DaMatta (1996) afirma as representações do Brasil e dos brasileiros
ocupam, no imaginário estrangeiro, um espaço polarizado e contraditório que pode ser
apreendido através da idéia de “tijolo simbólico” (p. 113): por um lado, representações que
exaltam as belezas e virtudes da natureza e do povo, remetendo ao mito fundador; por outro,
narrativas que também lembram o lado escuro, por assim dizer, do paraíso tropical,
materializado principalmente nos problemas que decorrem do fato de o Brasil pertencer ao
Terceiro Mundo. Nesse registro, Bignami (2002, p. 101) aponta a intensificação do processo
globalizatório como momento de consolidação da visão polarizada que remete ao mito do
“Brasil, país de contrastes”:
A idéia de um país de contrastes fundamentada na convivência das belezas naturais e
imagens do Éden com a violência urbana acaba por contaminar todas as instâncias
discursivas, porém culmina no discurso da imprensa que passa a identificar o país
através dessa metáfora. A década de 90 aponta para um olhar crítico, por meio do
qual o Brasil é visto sob a lente da imprensa que, sobretudo, classifica o país como
violento, corrupto, economicamente dependente e inadequado nas suas políticas.
É exatamente a polarização apontada DaMatta que encontramos nas
representações feitas pelos sites analisados nesta pesquisa. Podemos dizer que as narrativas do
fórum de discussão do site Brazzil.com funcionam como um contraponto ao conteúdo de
Maria-Brazil, na medida em que surgem temas mais polêmicos no que tange ao tema da
identidade nacional. São muitas vozes – de internautas brasileiros e estrangeiros – que
interagem no ciberespaço para expressar suas representações a respeito do Brasil e dos
brasileiros. A construção de sentidos, aqui, ocorre através do confronto de narrativas que dão
conta de uma brasilidade muitas vezes contraditória e ambígua. Neste ponto da análise, nossa
111
proposta é apresentar os resultados da observações feitas comparando-as, quando pertinente,
às narrativas do site Maria-Brazil, a fim de apontar similaridades e diferenças nos sentidos
conotativos encontrados. Interessa-nos responder à algumas questões: quais são os sentidos
dominantes a respeito do Brasil e dos brasileiros na narrativa de Brazzil.com? Serão
encontrados, na narrativa, elementos que possam remeter ao mito fundador do Brasil?
Os resultados das observações foram agrupados em torno das temáticas que
surgem das narrativas. Optamos por agrupar essas temáticas em torno de três grandes eixos
narrativos: a violência urbana e as questões sociais; o racismo e o autoritarismo; e o modo de
ser do brasileiro.
6.1 A violência urbana e as questões sociais
Uma das principais diferenças entre as narrativas de Brazzil.com e Maria-Brazil é
que, no segundo, tende a ocorrer um apagamento de sentidos em relação ao tema da violência
e da pobreza no Brasil, o que não ocorre no primeiro. No fórum Social Issues (Problemas
Sociais), encontramos o tópico com o seguinte questionamento: “Qual é o maior problema do
Brasil?”
18
A internauta que se identifica como Emilee postou a seguinte mensagem:
Até onde sei (e há MUITO sobre o Brasil que eu desconheço) diria que o maior
problema do Brasil é a enorme desigualdade na distribuição de renda. Os ricos são
vergonhosamente ricos e os pobres miseravelmente pobres. É muito difícil deixar a
economia em ordem, incentivar a educação ou promover o turismo quando há tantas
diferenças entre os estilos de vida das pessoas. (BRAZZIL.COM, 2004).
Ao lado do aspecto econômico, também é lembrado a construção da imagem de
Brasil pela mídia estrangeira, conforme vemos no post
19
da internauta Sheilinha 85, que se
18
Brazzil.com > Social Issues Forum > Post subject: What is the biggest problem facing Brazil?
19
Nome dado às mensagens colocadas (“postadas”) em fóruns de discussão na Internet.
112
identifica como brasileira: “A imagem que a mídia fornece do Brasil! Eu odeio isso! Um
monte de turismo sexual e também menores... Ruim demais!” Nesse sentido, a má qualidade
da publicidade para atrair turistas, que por muitas vezes ajudou construiu a imagem do Brasil
como lugar do sexo fácil, também é lembrada pelos internautas.
Lula e companhia estão fazendo justamente isso! Estão promovendo uma gigantesca
campanha de marketing nos EUA para aumentar o turismo mas como tudo o mais...
Duvido que vá funcionar por causa da imagem negativa que a imprensa dá sobre o
crime aqui! Mas, quem sabe [...] (BRAZZIL.COM, 2004).
A preocupação com a violência e o crime no Brasil parece dominar as narrativas
dos internautas, principalmente aqueles que planejam morar no Brasil ou realizar uma viagem
de turismo. No tópico intitulado “A criminalidade no Brasil é muito alta?”
20
encontramos
várias narrativas onde se torna claro a influência do discurso da imprensa na construção de
conotações a respeito da violência e do crime no Brasil:
Olá a todos... Estou muito preocupada sobre a violência contra os que visitam o
Brasil! Tenho lido algumas das mensagens do fórum sobre visitantes que são
assaltados com freqüência... Acho que depende da área onde você fica? Ou da sua
aparência? Mas o que é loucura para mim é pensar que as pessoas deixam dinheiro
nos bolsos para os ladrões roubarem! Dá vontade de contratar um guarda-costas [....]
(BRAZZIL.COM, 2004).
Os internautas que já visitaram o país apressam-se a dar a sua versão dos fatos,
baseada na sua experiência. Essas narrativas tendem a relativizar o discurso da grande
imprensa, conforme vemos no post a seguir: “Estou aqui há seis semanas e não vi nenhum
crime. Andei por todos os bairros, incluindo favelas... Com exceção da favela, sempre vejo
policiais por perto. Então... não sei onde todos esses assaltos estão acontecendo.” Outro
internauta, que divide seu tempo entre o Rio de Janeiro e a Flórida, declara que “Estive no
Brasil muitas vezes e tenho mesmo cara de gringo...nunca tive problemas, mas existe crime
em qualquer área do mundo onde haja turistas.” No post do internauta de Salvador, Bahia,
20
Brazzil.com > All and Everything Fórum > Post subject: Crime in Brazil how bad is it?
113
encontramos uma primeira referência ao mito fundador: “Aqui é o paraíso...” Na mensagem
do internauta de Washington, EUA, encontramos claramente uma referência à construção de
sentidos pela grande imprensa, que transparece intertextualmente no conteúdo encontrado na
Internet: “Sabe, quando comecei a pensar seriamente em ir para o Rio, pesquisei muito na
Internet sobre a criminalidade lá. Se você acreditar em tudo que lê online, ficará aterrorizado
em pensar em viajar para o Rio.” O internauta relata que chegou cauteloso, mas depois de
dois dias começou a se sentir bastante à vontade.
No entanto, embora encontre-se nas narrativas conotações que relativizam a
violência, isso não significa dizer que ela esteja ausentes dos relatos, como vemos a seguir:
“Vivo no Rio e digo que o índice de criminalidade aumentou muito ultimamente... Dois dias
atrás um turista foi esfaqueado em Copacabana... O que quer que você decida, o Rio é uma
das cidades mais bonitas do mundo, apenas seja bastante cuidadoso.” Encontramos também
relatos explícitos de episódios de violência, como este:
Meu amigo foi seqüestrado enquanto aguardava o sinal abrir na Avenida Brigadeiro
Faria Lima, em São Paulo. Dois caras entraram no carro (meu amigo estava com a
namorada) e o fizeram rodar pela cidade para retirar dinheiro de caixas eletrônicos
(meu amigo estava duro mas os ladrões não acreditaram). Passaram quatro horas com
ele e depois o libertaram, levando seu carro, a carteira e o celular pré-pago. Ele estava
dirigindo um carro popular, um Gol 99. (BRAZZIL.COM, 2004).
Embora reconheça-se que a violência existe no Brasil, os internautas, a partir de
sua experiência intercultural, procuram contextualizar a situação brasileira em relação à
outros países. A esse respeito, o internauta cujo nickname
21
é ET declara: “[sobre a violência]
o mesmo pode ser dito sobre Nova York, Miami ou Los Angeles, e nenhum é mais bonito do
que o Brasil.” ColombianGirl revela que “O crime no Brasil não é nada comparado com a
Colômbia. Então, aproveite e seja feliz!” Advogado do Diabo, um canadense residente no
21
Apelido ou pseudônimo usado pelos internautas com o objetivo de não revelar a verdadeira identidade.
114
Brasil e presença constante no fórum, que escreve a partir da “Ilha da Fantasia” (os
internautas podem declarar a localização real ou não) observa que
Já ouvi muita gente dizer: ah eu estive visitando por duas semanas e nada, e graças a
Deus por isso; mas depois de cinco anos morando aqui, já tive minha cota de estórias
de horror. Conheci pessoalmente três pessoas (gringos) que se envolveram em crimes
violentos. Curta bastante o Brasil, é um país fantástico, mas lembre-se de que não
estamos mais no Kansas... (BRAZZIL.COM, 2004).
É interessante observar que, mesmo nesta escrita em negativo, ainda sim
encontramos a construção de sentidos que apontam para a conotação de Brasil-paraíso, por
exemplo quando os internautas, apesar da violência e da criminalidade, reiteram o valor do
Brasil como “país fantástico”, cuja beleza não é inferior a nenhum outro – principalmente em
termos culturais. Nesse sentido, o internauta Jeromy, que escreve a partir de Atlanta, EUA,
reflete sobre seus motivos de mudar-se para o Brasil:
Eu admitiria que parte da minha motivação em mudar-me para o Brasil deve-se ao
medo da guerra. Lembro-me de dizer a um amigo brasileiro que nos próximos anos os
EUA se tornarão um lugar perigoso para viver devido às ameaças de ataques
terroristas em solo americano. Isso tem a ver com meus motivos de viver longe dos
Estados Unidos, pelo menos por um tempo. Mas não foi o principal motivo para eu
escolher o Brasil. Eu escolhi o Brasil devido à exposição que já tive à cultura
brasileira, aos meus amigos brasileiros e outras conexões com o Brasil. Certamente
não foi porque eu penso que o Brasil é um paraíso tropical, ou por causa das garotas
nuas, ou do Carnaval, ou porque quero ver praias ou explorar a Amazônia, ou porque
acho que o Brasil não tem problemas sociais, ou porque as mulheres brasileiras são
taaaaaaão sexy, ou porque quero ser missionário, ou porque quero impor minha
cultura e modo de vida americano aos brasileiros, ou porque quero trabalhar para uma
multinacional que explora a terra, a força de trabalho e os recursos do Brasil.
(BRAZZIL.COM, 2004).
Em apenas um único post, encontramos referência à várias conotações mitológicas
a respeito do Brasil e dos brasileiros, notadamente sobre os recursos naturais e a sensualidade
do povo. Jeromy, em sua narrativa, procura contrabalançar o mito do estrangeiro que vêm
tomar posse das terras e catequizar o povo, o que por sua vez remete as próprias narrativas
sobre a colonização do Brasil. O internauta revela, em sua mensagem, uma nova maneira de
115
construir o sentido do Brasil paraíso, quando observa que escolheu o Brasil para viver por
causa da riqueza cultural e para fugir da guerra: surgem, desta forma, conotações do Brasil
não só como refúgio de diversidade cultural e riqueza natural, mas também um refúgio seguro
contra o terrorismo que é a grande ameaça na era da globalização.
6.2 O racismo e o autoritarismo
Como já sublinhamos, um contraste marcante encontrado em Brazzil.com em
relação às narrativas de Maria-Brazil é o fato de encontrarmos, no discurso do primeiro, uma
alusão mais flagrante à temas polêmicos. Nesse registro, queremos analisar aqui a discussão
ocorrida no fórum em torno da célebre expressão brasileira “você sabe com quem está
falando?”
22
O internauta Cman, intrigado com a expressão, lança a questão perguntando
“Quais são as implicações de poder e classe do conceito? Li um ensaio sobre isso, mas
gostaria de saber o que vocês pensam. A expressão é muito usada?” Chipolata, que escreve do
Reino Unido e é o moderador
23
deste fórum, responde dizendo: “acho que é só outra maneira
de dizer: não subestime o seu oponente.” Estudante do Brasil, de São Luís do Maranhão, que
se declara marajá (os internautas podem escolher entre diversas opções como juiz aposentado,
deputado federal, vereador, etc – o que revela intertextualmente as narrativas sobre a
sociedade autoritária e os escândalos políticos brasileiros), observa que “Para mim, é algo
como isso: ‘Ei, tenho um grupo enorme de homens poderosos que me apóia. Sou melhor do
que você, e a lei é para você e não para mim, seu brasileiro inferior’. Tem um ditado assim:
‘Aos amigos os favores da lei, aos inimigos os rigores da lei”. O internauta que lançou a
questão, Cman, ainda não satisfeito, pergunta “O que quer dizer brasileiro inferior, tem algo a
22
Brazzil.com > Behavior and Education Forum > Post subject: Do you know who you are talking to?
23
Internauta encarregado de organizar a discussão do fórum, ditando suas regras. Muitas vezes o moderador
possui o poder de expulsar do fórum os internautas que não obedecem as regras e não contribuem para a
discussão em andamento.
116
ver com classe social?” O internauta brasileiro Canarinho responde escrevendo que é uma
maneira de exercer o poder daqueles que têm influência ou possuem relações com pessoas
influentes: “As implicações da expressão, eu acredito, tem menos a ver com divisões de
classe, mas sim com algo mais profundo sobre o Brasil. A idéia de que o rigor da lei não é tão
importante quanto os contatos pessoais.” Chipolata lembra que certamente isso é verdade
sobre o Brasil; seus pais estavam sempre falando sobre quem tinha “contato político” ou fazia
parte da “panelinha” e como isso podia influenciar tudo na vida: da escolaridade dos filhos até
seu próprio status pessoal e vida profissional.
Queremos assinalar, aqui, que embora o site Maria-Brazil também faça menção à
importância das relações pessoais no Brasil, não chega a tratar da questão com a mesma
profundidade encontrada no fórum de discussão de Brazzil.com. Nesse registro, queremos
destacar o post de Macunaíma, outro moderador, que revela ter tido algumas aulas com
Roberto DaMatta e explica, para os outros internautas, a profundidade da expressão “você
sabe com quem está falando?”:
As raízes do conceito retornam à teoria do “homem cordial” de Sérgio Buarque de
Holanda, articulada no livro Raízes do Brasil. Basicamente, a idéia é esta: em uma
sociedade escravocrata e patriarcal (em termos weberianos, não feministas) como a
nossa, conexões sociais verticalmente transgressivas são chave para se conseguir
qualquer coisa. Assim é a cordialidade brasileira, que muitos gringos confundem com
amizade. Ser cordial fornece uma desculpa para se forjar um relacionamento pessoal
com alguém que, embora tênue, poderá abrir portas no futuro. É o oposto da polidez:
a polidez levanta muros, a cordialidade lhe permite aconchegar-se no colo de alguém
e ajustar-lhe a gravata. Nesse contexto, o “você sabe com quem está falando?”
funciona como uma maneira eficaz de abruptamente romper a cordialidade,
colocando o seu “inferior” no seu devido lugar. Da Matta está certo quando diz que os
brasileiros se envergonham de usar essa manobra. É algo que os brasileiros evitavam
analisar até que DaMatta nos esfregou isso na cara. (BRAZZIL.COM, 2004).
Macunaíma encerra seu post esclarecendo que a expressão ainda é bastante
utilizada no Brasil e lança uma provocação aos internautas estrangeiros (a maioria é de
nacionalidade americana): “Por falar nisso, pessoal, vocês realmente acham que os políticos
dos EUA e Canadá não formam panelinhas? Vocês acham que o George Bush entrou em
117
Harvard porque era inteligente e passou nos exames?” Canarinho, escrevendo de Washington,
reconhece que a argumentação de Macunaíma, opondo cordialidade e amizade, é interessante:
“Nunca pensei nos brasileiros sendo amigos uns dos outros nestes termos, mas faz sentido.
Entretanto, acredito que amizade no Brasil significa muito mais do que pesar oportunidades
por ter algum tipo de relacionamento pessoal.” Nesse ponto, Estudante do Brasil “dá a mão à
palmatória”:
Ok, eu confesso. Sou o perfeito brasileiro. Sou muito cordial, nunca digo “não”, mas
“depende”. Estou sempre atrasado. Beijo minha avó em lugares públicos. E adoro
apelidos. Gostaria de ser mais assertivo, direto e pragmático. Admiro essa parte do
modo de vida americano. (BRAZZIL.COM, 2004).
A análise da elocução “você sabe com quem está falando?”, tão bem teorizada por
DaMatta (1979) assim como do mito do “homem cordial” brasileiro, revelam a discussão que
ocorre no site em torno do tema do autoritarismo na sociedade brasileira. Se eu tenho o poder
de mudar as leis e você não, porque não tem poder, isso nos torna cidadãos de um país onde o
cumprimento às leis é relativizado. A narrativa do site demarca, nesse sentido, uma oposição
com a cultura americana, que é fortemente marcada pelo rigoroso cumprimento às leis. O post
de Canarinho é bastante explícito nesse sentido, quando revela que os contatos pessoais
também importam nos EUA, como em qualquer sociedade, mas “É uma questão de gradação.
Nos EUA, as pessoas tendem a seguir as leis [...] enquanto que no Brasil nós tendemos a
confiar mais no jeitinho e nos contatos pessoais (ou subornos, que nos EUA também
funcionam às vezes.” O que não significa, conforme conotado na narrativa do site, que por lá
não seja possível haver corrupção, mas que de uma forma geral o cumprimento às leis é mais
disseminado do que no Brasil, porque o brasileiro confia menos nas leis do que o americano.
Para DaMatta (1979; 1993) esse é o grande dilema brasileiro: separar o interesse pessoal do
interesse público, as leis da casa das leis da rua.
118
Além do autoritarismo, há uma grande discussão sobre o tema racismo no site. O
debate sobre o racismo está fortemente ligado ao aspecto econômico, remetendo também às
questões da prostituição adulta e infantil, da pobreza e da violência; da questão racial que
acompanha o Brasil desde os tempos da escravidão. O tópico “A sociedade considera natural
que garotas negras...”
24
, ao expor um ângulo da situação, fornece pistas de como o brasileiro,
aos olhos do estrangeiro, lida com a questão racial:
A sociedade considera natural que as garotas negras façam trabalhos domésticos no
Brasil. Esta é uma afirmação forte no nosso mundo de diversidade e ideais globais de
justiça. Isso faz pensar sobre a prostituição infantil no Brasil e em outros lugares. [...]
A mão-de-obra é realmente barata para todas as intenções e propósitos em minha
análise da situação. (BRAZZIL.COM, 2004).
Nesse sentido, um tópico causador de grande polêmica é o que anuncia um estudo
que comprovaria que a América Latina seria mais racista do que os Estados Unidos
25
. Alguns
internautas, como Comandante, lembraram do mito da democracia racial, para dizer que este
foi desacreditado no início dos anos 80 no Brasil. A metodologia da pesquisa foi questionada
por vários internautas, entre os quais Macunaíma, o qual argumenta que
O único mérito da pesquisa – e eu enfatizo aqui, é o único – está no fato de que o
estudo dá razão para questionar a tese da “democracia racial” – isto é, a crença de que
a América Latina é MENOS racista do que os EUA. [...] a tese da “democracia racial”
já não se sustenta e isso é bem aceito por quase todos os cientistas sociais brasileiros
que conheço, e acredito que aconteça o mesmo no restante da América Latina. Provar
que a América Latina não é MENOS racista do que os EUA não é a mesma coisa que
provar que ela seja MAIS. (BRAZZIL.COM, 2004).
A polêmica continua no tópico que afirma que “Pessoas de cor não sofrem com
preconceito no Brasil.”
26
No post do internauta Praiera2, vemos uma foto da atriz Vanessa
24
Brazzil.com> Social Issues Forum > Post subject: Society considers it natural that black girls...
25
Brazzil.com > Race Forum > Study proves US is less racist than Latin America.
26
Brazzil.com> Race Forum > Post subject: People of color don't suffer with racism in Brazil.
119
Giácomo (protagonista da novela Cabocla no Brasil, mas desconhecida no estrangeiro), ao
lado da afirmação:
Essa é uma mulher de cor e tipos como ela não sofrem racismo no Brasil. Mulheres
como essa geralmente casam-se com brancos ou outros morenos. Morenos no Brasil
são muito racistas com negros e existe uma grande identificação entre morenos e
brancos. (BRAZZIL.COM, 2004).
O post gerou muita discussão no fórum a respeito a respeito de definições raciais,
como mostra a seguinte mensagem: “O Brasil é engraçado quando se fala de definir a palavra
moreno ou morena.” Nesse sentido, as mensagens dos internautas problematizam as
definições de termos como “mulato” ou “moreno”, demonstrando as diferentes conotações
existentes em torno destas palavras. Praeira2 explica para os colegas as particularidades da
questão racial em nosso país:“O Brasil não é 40% mulato, é 40% marrom, diversos tons de
marrom (o que é totalmente diferente). É um problema de identidade, “brancos” e a maioria
dos morenos não se identificam com os negros. Não é importante se eles têm sangue negro
neles ou não.” O termo “pessoa de cor” provocou muita confusão entre os internautas. Afinal,
o que o brasileiro classifica como “pessoa de cor”? O que isso tem a ver com o termo
“moreno”? Maica tenta sintetizar a questão, esclarecendo que “Moreno (a) = pessoa negra em
países de língua espanhola. Moreno (a) = pessoa de tom de pele bronzeada com feições
européias (nariz, lábios, e cabelo) nos países de fala portuguesa.” O post do internauta
YoungBuck procura fornecer algumas pistas, trazendo a questão cultural para dentro da
questão lingüística:
Bobinhos, “moreno” significa pessoa de cor em espanhol. Assim, na América Latina,
está-se geralmente fazendo referência aos negros. Mas no Brasil, usar o termo
“moreno” significa falar sobre pessoas de cabelo escuro e bronzeadas (significando
que portugueses e italianos podem ser morenos assim como boa parte dos 55% que
são população branca no Brasil). O “moreno” português tem significado diferente do
“moreno” espanhol. [...] pardo pode ser literalmente traduzido por “marrom” sem
referêcia de fundo racial. O Brasil parece classificar as pessoas de acordo com sua
aparência; pelo menos isso é o que meu amigo paulista Gabriel me disse. Então,
mesmo que você seja super pálido mas parcialmene negro, porém com status social,
você poderá ser considerado branco. (BRAZZIL.COM, 2004).
120
De uma forma geral, as mensagens demonstram que os internautas percebem que
existe bastante preconceito em relação aos negros, não só no Brasil mas na América Latina.
Para os internautas, no caso do Brasil a questão da raça parece ter mais a ver com como você
se vê do que com a quantidade de sangue negro ou índio que corre nas veias... RioMonger,
que se apresenta como “pajé”, relata como procura resolver o dilema quando está no Brasil:
“Fico tão confuso no Brasil sobre quem chamar de moreno, mulato, pardo, preto, etc... Eu
apenas chamo as pessoas pelo nome e evito quaisquer comentários raciais.” A questão do
preconceito velado, da não identificação dos morenos e brancos com as minorias negra e índia
transparece no post da internauta ColombianGirl, que lança uma provocação que faz refletir:
“Se você realmente quiser insultar um latino-americano, diga a ele que se parece com um
negro ou um índio, e eles terão um ataque.”
27
Outros internautas, surpresos, questionaram o
que poderia acontecer caso o latino-americano fosse chamado de “branco”. SilverxBullet deu
a resposta: “Se você quiser fazer um hispânico feliz, diga que eles tem a aparência de uma
pessoa branca. Eles prontamente vão dizer obrigado.”
Há momentos, na narrativa do site, onde o aspecto da questão racial se mistura
com o da sexualidade e, especificamente, do turismo sexual. O internauta que se identifica
como Joe90, no post intitulado “Ganhei das mulheres brasileiras no seu próprio jogo”
28
relata
sua visita ao Rio de Janeiro:
Sou um homem negro de 23 anos da Inglaterra. Fiquei no Rio duas semanas e a única
razão da minha ida foi porque um amigo do Reino Unido recomendou
entusiasticamente o Brasil por causa das mulheres; minha primeira impressão do
Brasil foi a de um desastre total. Acho que isso aconteceu porque, tirando as estrelas
de futebol, não há imagens ou modelos de sucesso para os negros brasileiros; no Rio
os mais pobres são negros e o trabalho sem qualificação é feito na maior parte por
negros. Quando estava lá nem uma vez vi um negro brasileiro dirigindo um carro
legal. Os negros brasileiros são na maioria excluídos; e eu diria que, pelos padrões
27
Brazzil.com > Race Forum > Post subject: If U Really Wanna Insult A Latin American Tell'em That....
28
Brazzil.com > Mature Talk Forum > I played Brazilian women at their own game and won.
121
brasileiros, ganho mais em um mês do que aquilo que um branco bem pago ganharia
em um ano. Quebrei o preconceito deles sobre o status de um homem negro. Ganhei
das brasileiras no seu próprio jogo porque nem uma vez eu paguei [por sexo]; muitas
garotas que encontramos em boates e na praia queriam sair conosco. Eu diria que a
maioria das mulheres brasileiras são muito mais bonitas do que as mulheres aqui no
Reino Unido. Mas infelizmente isso é tudo o que elas tem a oferecer; encontrar uma
mulher que pode oferecer uma conversa estimulante e que tenha ambição é muito raro
no Brasil. Eu me diverti bastante e pretendo voltar ano que vem, com uma filmadora,
para mais aventuras. (BRAZZIL.COM, 2004).
A mensagem, escrita num inglês claudicante, gerou muitas polêmicas e protestos
no fórum, que podem ser sintetizadas em um post como o que segue: “Era só o que faltava,
outro gringo vir ao Brasil para filmar bundas (sic).” A construção da imagem da mulher
brasileira pela erotização, com as conotações de fêmea lindíssima, sensual e de fácil acesso,
tão disseminadas no imaginário estrangeiro, é problematizada na narrativa do fórum. Outro
post, de Advogado do Diabo, parece querer colocar as coisas no seu devido lugar:
Não consegue encontrar uma mulher com quem ter uma conversa estimulante no
Brasil? Você fala português? (ou, como vocês dizem, “protegees”?) Talvez, se você
soubesse o idioma, você descobriria que há inúmeras mulheres inteligentes,
ambiciosas, articuladas e divertidas neste país... Muitas das quais falam inglês muito
bem – mas você não encontrou nenhuma delas porque elas têm juízo suficiente para
evitar perdedores como você. Então, vá em frente e visite o Brasil. Tire vantagem de
mulheres economicamente destituídas, abuse delas e jogue-as fora. Faça sua mãe ter
orgulho de você. (BRAZZIL.COM, 2004).
No fórum “Mulheres – por que as amamos” encontramos o tópico intitulado “Por
que as brasileiras são tão bonitas?”
29
. O intenauta Krust postou uma mensagem que dizia:
“Isso é o que encontramos quando digitamos [nos sites de busca] ‘mulheres brasileiras’...” A
mensagem exibia várias fotos de mulheres. Alguns internautas responderam postando outras
fotos de mulheres em poses sensuais no fórum. Macunaíma comenta a atração que a
representação da mulher brasileira exerce no imaginário do estrangeiro:
Essas fotos estão na rede, Krust, porque existe toda uma indústria lá fora que lucra
em cima da noção de que as mulheres brasileiras são de alguma forma uma parte mais
29
Brazzil.com > Women Forum > Why are Brazilian women so beautiful?
122
especial, mais bonita e mais sexy da humanidade feminina. Em resumo, não é que nós
tenhamos tantas mulheres sensuais aqui – acredite em mim, não temos. É que os
gringos querem acreditar desesperadamente que temos e pagarão um bom dinheiro
para ir atrás dessa crença. Assim, os brasileiros, que não são tolos, criaram todo um
mercado que viceja vendendo imagens de mulheres brasileiras de sonho de volta para
eles. A maioria das fotos que você postou são de modelos que na verdade ganham
dinheiro REPRESENTANDO o estereótipo da mulher brasileira. (BRAZZIL.COM,
2004).
Essa auto-imagem ecoa no imaginário que o estrangeiro tem a respeito do Brasil e
dos brasileiros. Essa conotação surge no post do internauta Amanirenas, escrevendo de
Cleveland, Ohio, que responde à Macunaíma: “Concordo em parte com seu argumento... Mas
digo que não são apenas os GRINGOS que perpetuam esse estereótipo. Todos têm orgulho de
seu país e dirão que tem as mulheres mais bonitas do mundo... Os brasileiros fazem
justamente isso.” Nesse registro, vale recuperar o comentário de DaMatta (1994) quando diz
que o brasileiro considera que em termos de futebol, comida e mulheres, é o melhor do
mundo. A imagem da mulher brasileira no exterior, tão ligada à sua sexualização, encontra
correspondência na imagem onipresente do brasileiro como bom de samba, conforme lembra
Bignami (2002, p. 41), a respeito do samba como símbolo da identidade nacional: “[...]
atualmente, no exterior, mas também entre nós, é comum afirmar que todo brasileiro sabe
sambar ou gosta de samba, o que, na realidade, não é o padrão de comportamento de todo
brasileiro, mas certamente é a imagem que se tem dele.” A construção de sentidos, aqui,
remete ao mito da alegria e da sensualidade inerentes ao caráter do povo brasileiro. No
entanto, de que outros ângulos podemos analisar a questão do modo de ser do brasileiro,
tomando as narrativas do site Brazzil.com? É o que veremos a seguir.
123
6.3 O modo de ser do brasileiro
As mensagens do fórum de discussão do site fornecem um material muito rico para
se analisar a questão da identidade brasileira por um ângulo que está presente nela desde a sua
formação. Estamos falando da questão da auto-estima do brasileiro. No tópico intitulado “A
campanha de Lula pela auto-estima”
30
, os internautas comentam, em diversos posts, a
utilização da mídia em recente campanha governamental
31
que procura trabalhar o patriotismo
e a auto-estima nacionais. Escreve o canadense Advogado do Diabo:
Tenho de admitir que ri um pouco lendo nos jornais o anúncio de Lula sobre sua nova
campanha pela auto-estima, destinada a fazer o brasileiro acreditar mais no seu
país/economia. Eu, pessoalmente, não vejo nenhum problema de auto-estima com os
brasileiros aqui. Com certeza todos eles reclamam sobre como as coisas funcionam, ou
não, mas isso é o passatempo da maioria dos povos. No entanto, Lula sentiu a
necessidade de abordar a questão formalmente e tão logo o anúncio foi feito as TVs do
país começaram a brilhar com imagens e estórias destinadas a nos fazer falar “uau”. Vi
o primeiro filme [sobre o músico Herbert Vianna] no Sony Channel ontem à noite. [...]
Simpática e bem produzida, a campanha te dá aquele sentimento gostoso por dentro –
mas será que isso deveria ser um projeto presidencial? Isso não cheira a algo como
“bem, não vou conseguir cumprir minhas promessas de campanha, mas o problema não
sou eu, é você, que precisa ver as coisas sob uma nova luz.” Parece ser um último
esforço para avivar as chamas do nacionalismo, para fazer todo mundo bater no peito
com orgulho enquanto esquece sobre as eternas injustiças sociais, econômicas e
criminais – mesmo que por pouco tempo. Acho que não me incomodaria nem um pouco
se fosse uma campanha vinda de um ministro, ou de músicos, atletas ou o que quer que
seja. Eu gosto da campanha. Entretanto, esta campanha é a menina dos olhos de Lula, e
não consigo evitar pensar que o presidente desta nação deveria estar fazendo algo mais
do que pedir à agências de marketing para produzirem estórias para “aquecer o
coração.” Talvez eu esteja sendo cínico demais. O que vocês acham? (BRAZZIL.COM,
2004).
Do Rio de Janeiro, responde Beachboy, “presidente do Senado”, que sublinha as
razões históricas e culturais em torno do patriotismo brasileiro (ou de sua falta):
A verdade é que os brasileiros não são patriotas. Devido à nossa história, nunca fomos
à guerra [...] nunca tivemos um grande problema com outro país; não nos sentimos
ameaçados (exceto nos acordos de comércio com países ricos); as pessoas pertecem à
30
Brazzil.com > Politics and Ideology Forum > Lula´s self-esteem programme.
31
A campanha “O melhor do Brasil é o brasileiro”, em veiculação no presente (2004 2005), cujo slogan é “sou
brasileiro e não desisto nunca”, promovida pelo Governo Federal com o apoio dos maiores anunciantes do
Brasil.
124
etnias diferentes, etc. Não nos sentimos ameaçados enquanto brasileiros mas sim
enquanto seres humanos: sabemos que se não pensarmos em nós, seremos pobres. A
governo nunca deu a mínima para nós (uma razão para não ser patriota) então
sabemos que só podemos contar com nós mesmos. Os judeus (sei que são uma
etnia, mas eles tem Israel agora) são muito mais unidos, eles sabem que se não forem,
serão riscados do mapa; tiveram a Segunda Guerra Mundial que os uniu, etc. Meus
amigos judeus que vivem aqui mandam dinheiro para o governo israelense todo mês.
Duvido que qualquer brasileiro faria isso. Os brasileiros colocam o próprio interesse
acima do interesse do Brasil, para poderem sobreviver. Dois nomes me vem à mente
como exemplos de brasileiros: como exemplo de caráter, o embaixador da ONU no
Iraque Sérgio Vieira de Mello; [...] como exemplo de perseverança e competência,
Ronaldo. Antes da Copa do Mundo, todos os experts disseram que sua carreira tinha
terminado. Mas ele foi à Copa do Mundo e foi o maior responsável pelo
pentacampeonato, sendo o melhor jogador. (BRAZZIL.COM, 2004).
Nesse registro, queremos lembrar aqui que a narrativa do site Maria-Brazil,
embora não de forma tão explícita, também trazia a questão da auto-estima do brasileiro,
dedicando uma página aos feitos do aviador Santos Dumont. Ao não poder contar com o
governo, esportistas como Ronaldo, um jogador de futebol, tornam-se os heróis nacionais. Os
brasileiros famosos e excepcionais, como Sérgio Vieira de Mello e Ronaldo, citados pelo
internauta, e Ayrton Senna, há bastante tempo, tornaram-se heróis brasileiros. Por contraste,
temos que nos EUA, por exemplo, os fundadores da pátria como Washington e os
governantes brilhantes como Lincoln são os grandes heróis nacionais, conforme recorda
DaMatta (1996). O autor (1996, p. 125) lembra que “[...] na sua excepcionalidade, os heróis
mostram não a mediocridade do Brasil, como querem as teorias fascistas que adotamos sem
pensar, mas, ao contrário, a enorme riqueza do Brasil, como quer o povo.”
O tópico “Brasileiros – eles são os melhores?”
32
também trata da questão da auto-
estima. Aqui persiste a polêmica sobre se o brasileiro é ou não patriota e que patriotismo,
afinal, é esse. Emergem conotações que reiteram a contradição e a ambigüidade da brasilidade
representada na narrativa de Brazzil.com. O Brasil será mesmo o melhor país do mundo,
mitologizado na expressão “Brasil, país do futuro?” Vejamos o post do internauta Heathcliff,
do Reino Unido, que embora ache que o Brasil é um dos melhores países do mundo, comenta:
32
Brazzil.com > Behavior and Education Forum > Brazilians – are they the best?
125
“Conheço bastante brasileiros e a maioria deles pensa que o Brasil é o melhor país do mundo.
No entanto, quando pergunto se já viajaram [para outros países] para fazer tal julgamento, a
maioria diz que não. Por que é assim?” Mark responde dizendo os brasileiros não são
diferentes da maioria dos cidadãos alemães, italianos, argentinos ou australianos que acham
que seu país também é o melhor do mundo – especialmente depois de passarem uma
temporada no Exterior. Brazuca polemiza em torno do tema, defendendo que os brasileiros
podem ser considerados chauvinistas, um pouco ao estilo dos americanos. Advogado do
Diabo concorda com Mark – os brasileiros não são diferentes dos outros – mas acrescenta que
os brasileiros também tendem a falar melhor do Brasil em outros países do que no próprio:
“Ironicamente, eu geralmente ouço muitas estórias sobre como o Brasil é horrível, e como é
bom ser de um país ‘desenvolvido’.Cman concorda que os brasileiros falam melhor do país
no exterior, mas argumenta:
Entretanto, conheci muitos brasileiros – a maioria – que não querem mudar-se para
uma sociedade mais rica; são bastante etnocêntricos como os americanos. Você nota
isso quando eles começam a falar dos gringos – o que inclui qualquer não-brasileiro.
O que eu não gosto sobre alguns (note que digo alguns) brasileiros é que eles gostam
que se mostre os aspectos positivos do país, mas ficam bravos quando lembrados do
que não é tão bom no Brasil. Entendo que ninguém goste de ouvir coisas negativas
sobre seu país ou povo, mas é bom estar consciente dessas coisas para poder pensar e
melhorar essas questões como uma sociedade, e não escondê-las e viver para sempre
assim. Por favor, notem que eu disse alguns brasileiros; geralmente muitos brasileiros
com formação conseguem falar sem problemas sobre as questões sociais do país; mas
também há os mais ignorantes que te insultam se você sequer mencionar algo como
favelas crescendo num ritmo alarmante. (BRAZZIL.COM, 2004).
Oryx, outro moderador, comenta as questões dos colegas: “É muito verdade... os
brasileiros no Brasil tem o maior complexo de inferioridade que já vi!” Advogado do Diabo
complementa dizendo que “Deve ser por isso que Lula criou a campanha pela auto-estima
brasileira e a transformou em sua cruzada pessoal...”
Mariane, “deputada federal”, comenta a contraditória auto-estima do brasileiro:
126
Devo admitir que nunca deparei com esse suposto complexo de inferioridade dos
brasileiros no exterior. Ao contrário, quando quer que se apresentem estão sempre
orgulhosos em exclamar “sou do Brasil!” como se isso fosse uma espécie de
conquista pessoal. Tenho observado que os brasileiros não gostam de lavar sua roupa
suja na frente dos gringos. Tudo é sempre cor-de-rosa no Brasil; uma vez uma pessoa
me afirmou mesmo que “Não existe fome no Brasil, é coisa do passado” apesar do
fato de alguns flagelados do nordeste terem saqueado supermercados naquele ano
(deve ter sido uma reação defensiva). Umas poucas semanas de contato e as
contradições começam a aparecer [...]. A ambivalência dos brasileiros em relação a
seu país desponta toda vez que um filme como Cidade de Deus, Central do Brasil ou
Ônibus 174 é lançado, e aí as opiniões se dividem: metade reclama que os filmes são
uma representação racista, grosseira e pouco elogiosa de seu país que prejudica o
turismo, enquanto a outra metade insiste que a vida real deve ser exposta como forma
de contrabalançar a representação do país como um paraíso onde pessoas felizes
bebem água de côco em praias virgens... (BRAZZIL.COM, 2004).
Nesta mensagem é possível analisar várias conotações que remetem ao mito
fundador, como os atributos naturais e a alegria do povo. No entanto, esses elementos do
fundador são aqui escritos em negativo, como forma de contrastar representações polarizadas
entre o positivo e o negativo, revelando o contraste entre a auto-estima do brasileiro aqui e no
exterior. A este respeito, escreve Roberto DaMatta (1996, p. 20): “Já é tempo de ver o Brasil
em paralelo e não debaixo ou, o que dá no mesmo, muito acima dos outros. O grande desafio
da modernidade não é o de ufanar-se imbecilmente do Brasil, mas embasbacar-se menos com
o estrangeiro.” Intertextualmente, a contradição e a ambigüidade apontadas por Mariane
remetem à discussão sobre o caráter nacional brasileiro. Paradoxalmente, conviviam, no início
do século vinte, as teorias raciais européias que inferiorizavam a miscigenação racial e
apontavam para um futuro sombrio para o Brasil com o livro que simboliza o ufanismo
brasileiro – conforme já vimos (CHAUÍ, 2000), o livro de autoria do Visconde de Ouro Preto,
Por que me ufano de meu país.
Tentar entender as diferenças que caracterizam a brasilidade em relação, por
exemplo, ao modo de ser no norte-americano também faz parte das discussões dos
127
internautas. No tópico “Qual é a maior diferença entre brasileiros e americanos?”
33
, Woody,
da Nova Zelândia, dá sua visão sobre o tema:
O modo de ser e a cultura. Os brasileiros tendem a ser calorosos, a aceitar os outros
sem julgá-los, e de modo geral muito simpáticos. Ninguém nunca é excluído, alguém
sempre paga pelas coisas, alguém está sempre lá para ajudá-lo, todos se beijam ou
apertam as mãos, todo mundo se respeita e, também, são mais educados quando
falam. Você nunca vê os caras chamando as garotas de prostitutas, vagabundas – mas
em outros países tendemos a ser mais abusivos verbalmente em relação aos outros.
Não vi violência entre as pessoas exceto a relacionada com álcool e drogas, o que
pode ser bem ruim. Se você é de descendência japonesa, sul-africana ou alemã mas
mora no Brasil e fala português, é considerado brasileiro.As pessoas dos EUA,
Europa e outros lugares sempre parecem estar julgando uns aos outros. Sou da Nova
Zelândia , e se algum jovem por aqui vê uma senhora chinesa andando pela rua,
alguém logo vai dizer “malditos asiáticos”. No meu país, os imigrantes não se
adaptam ao estilo de vida. São rudes, mal-educados e tendem a viver em guetos com
pouco contato com outras pessoas. [...] Estive nos EUA e acredito que seja a mesma
coisa. Divisão entre crenças e/ou nacionalidades. No Brasil tudo parece estar unido.
Todos se divertem juntos. Todos compartilham a mesma cultura da boa vida. Esse é
um bom modo de viver que eu não tinha visto antes. Nunca encontrei pessoas tão
amigáveis. Talvez haja algumas diferenças porque a maioria dos pobres são negros,
mas isso não parece dividir muito as pessoas. Também há milhões de brancos vivendo
nas favelas. Os americanos não são nem de perto tão amigáveis, nem os povos de
outros países. (BRAZZIL.COM, 2004).
Aqui encontramos claras conotações que remetem ao mito fundador no que tange à
representação do povo brasileiro como não-violento e amigável. O mito do “brasileiro
cordial” e da “democracia racial” também está presente. O atributo da hospitalidade, tão
ligada ao caráter nacional brasileiro, também se revela na narrativa da mensagem acima.
Chauí (1986) chama a atenção de que representação do Brasil como hospitaleiro, aberto ao
estrangeiro e acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar e progredir faz parte do
caráter mitológico das representações de brasilidade. Por comparação, queremos evidenciar
que a imagem do brasileiro acolhedor do estrangeiro também está presente na narrativa de
Maria-Brazil; por exemplo, na dedicatória do site aos “brasileiros que me acolheram e me
levaram para suas casas como se fosse um deles.” (MARIA-BRAZIL, 2004).
33
Brazzil.com > Behavior and Education Forum > Post subject: What is the biggest difference between
Brazilians and Americans?
128
No tópico “Amar o Brasil de fora”
34
, o internauta Cman filosofa sobre os
elementos da cultura brasileira que despertaram sua atenção para o país:
Escrevo isso porque quero refletir sobre o que significa amar um país. Como afro-
americano vivendo nos EUA, não amo em particular este país mas sim minhas raízes
nele. [...] Há alguns aspectos culturais dos EUA que amo, mas muitos deles se
perderam. A interação humana, em particular na comunidade afro-americana, não é
mais o que costumava ser. Foram o nível e espírito da interação humana que me
atraíram para o Brasil, assim como a continuidade da cultura negra sobre a qual li.
Gosto do Brasil por causa do espírito das pessoas que encontro, seus esforços para
aproveitar a vida apesar dos pesares. Muito do que vi lá é extraordinário se
comparado com o que vejo aqui nos EUA. Se dissesse que eu amo o Brasil a que
estaria me referindo? Eu definitivamente adoro o que vi lá em termos culturais. Amo
o ritmo e o espírito com que as pessoas vivem o dia-a-dia. Amo as pessoas que não
correm para casa para ver TV mas vão para o barzinho local para compartilhar o dia
uns com os outros. Adorei como as pessoas em Salvador se reuniam e dançavam
quase toda noite. Gosto da maneira como eles trazem os filhos com eles. Adoro o
modo como eles apóiam os próprios grupos, tradições, histórias, etc. Tudo isso é
muito importante para mim e é justamente o que vejo decaindo dia-a-dia aqui onde
vivo. Em Salvador, as pessoas me levaram para dentro de suas casas. Amei o valor
que se dá para a interação humana. Não amei, claro, a grande pobreza que vi por lá,
começando por São Paulo. [...] Isso existe nos EUA também, mas numa escala menor,
e não me importo de quem é a culpa – das elites brasileiras, dos EUA, dos pobres –
ainda assim é doloroso. Também não gosto de ver as pessoas de cor relegadas aos
escalões mais baixos da sociedade. [...] Quanto mais aprendo sobre o Brasil mais me
dou conta de que sei muito pouco. Sei que minhas vezes meu amor pelo Brasil surge
da necessidade de escapar das frustrações da minha vida aqui. [...] O Brasil pode ser
comparado com um novo relacionamento, onde a pessoa sempre parece perfeita
comparado com a última, até que você percebe que é humana e tem defeitos, como
você. Desejo o melhor para o povo do Brasil. Também agradeço aos brasileiros deste
site por compartilharem um pouco de sua cultura conosco. (BRAZZIL.COM, 2004).
CasadoComUmaBrasileira comenta: “Sinto o mesmo que você, especialmente o
aspecto da ‘interação humana’ e eu sou branco; então acredito que o Brasil é uma alternativa
cultural para muitos americanos.” UmObservador ressalta que muitas pessoas no mundo
anglo-saxônico conseguem sentir o problema da falta de interação, mas ainda não conseguem
entender a situação.
As representações do brasileiro que emergem da narrativa do site Brazzil.com
apontam, desta forma, para conotações em torno da valorização da cultura nacional,
especialmente no que se refere a atributos que se julga fazerem parte da alma do povo
34
Brazzil.com > Behavior and Education Forum > Post subject: To love Brasil from the outside.
129
brasileiro: a hospitalidade, o calor humano, o espírito lúdico e festivo, a sensualidade, a
interação social, a vontade de aproveitar a vida apesar dos pesares... Como escreve DaMatta
(1994, p. 19) “[...] o que faz o brasil, Brasil [é] a comida deliciosa, a música envolvente, a
saudade que humaniza e destrói o tempo e a morte, e os amigos que permitem resistir a
tudo...” Esse aspecto é o que mais parece chamar a atenção dos internautas quando se referem
ao modo de ser dos brasileiros. A importância das relações pessoais e as formas de
sociabilidade aparecem também na narrativa do site Maria-Brazil, constituindo um padrão
comum de representação. Da mesma forma que o internauta de Brazzil.com fica maravilhado
com a alegria das pessoas que saem para dançar quase as noites em Salvador, levando consigo
os filhos, ou vão do trabalho para os bares conversar e compartilhar o dia, também Sheila
Thomson exalta, em sua narrativa, a reunião de pessoas de todas as idades e classes sociais no
Carnaval e em manifestações folclóricas como a ciranda. Onde, inclusive, as crianças, levadas
junto para a festa, adormeciam no colo dos pais... (MARIA-BRAZIL, 2004). Quando os
internautas escrevem a respeito das formas de sociabilidade brasileiras, constroem conotações
do Brasil como alternativa cultural para o mundo, especialmente o anglo-saxônico, onde a
interação social, segundo apontam suas narrativas, estaria em decadência. Nessas conotações,
por sua vez, pode-se encontrar intertextualmente o que Ortiz (1994, p. 60) analisa a partir da
convergência entre o pensamento de Fanon e o pensamento desenvolvido pelo ISEB: “[...] o
Terceiro Mundo como matriz de libertação do homem universal.” Nos posts do site,
evidentemente a questão não converge diretamente para uma discussão sobre colonizadores e
colonizados ou sobre alienação cultural; entretanto, pode-se perceber conotações que remetem
à contribuição que os internautas acreditam que o povo brasileiro possa dar no sentido de um
reencontro com os valores humanos.
130
Observa-se a presença, na narrativa do site, de conotações que evidenciam
representações contraditórias e ambíguas a respeito do Brasil e dos brasileiros. A ambigüidade
surge nas narrativas sobre o povo e o país em vários momentos: o brasileiro que tem orgulho
de seu país quando está no exterior, mas que precisa de uma campanha de conscientização
para aumentar sua auto-estima e que não gosta de ser lembrado das mazelas do país por um
estrangeiro; que não se identifica com o negro, mas que dança o carnaval e cultua os orixás;
onde mesmo os pobres querem e sabem aproveitar a vida, apesar das mazelas econômicas; o
país em que acontecem seqüestros-relâmpago mas que, paradoxalmente, é visto como refúgio
para se morar por medo do terrorismo. A respeito de aspectos ambíguos e mesmo
contraditórios da brasilidade, escreve DaMatta (1994, p. 17):
Sei, então, que sou brasileiro [...] porque sei que não existe jamais um não diante de
situações formais e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela
amizade; porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo
honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos
católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto,
tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos
e nada posso negar à minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações
pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus
amigos americanos, que sempre se vêem e existem como indivíduos!
Nas narrativas do site, os nicknames (apelidos) que os internautas se atribuem
também produzem conotações que evocam desmandos, autoritarismos e escândalos políticos
brasileiros: juiz aposentado, deputado federal, senador, marajá, presidente e mesmo cidadão.
Nos mesmos nicknames¸ também podemos observar, por contraste, a presença de uma
lembrança da cultura indígena, evocada em nicknames como curumim, tupã ou caraíba. A
ambigüidade se manifesta também nas assinaturas
35
usadas pelos internautas, das quais, aqui,
queremos destacar duas: ao mesmo tempo em que o Brasil é o país do autoritarismo – no caso
35
Frase utilizada pelo internauta ao final da mensagem.
131
da assinatura “você sabe com quem está falando?” também é o país da esperança – presente
na assinatura “O Brasil é o país do futuro e sempre será.”
As mensagens dos internautas do fórum de discussão do site Brazzil.com
constroem, a nosso ver, uma narrativa que escreve sobre o Brasil e os brasileiros a partir “do
outro lado do paraíso”, por assim dizer, oferecendo uma leitura alternativa em relação às
representações de brasilidade presentes no site Maria-Brazil. No entanto, a aparente escrita
em negativo não esconde a presença de elementos do mito fundador. Embora o mito fundador
não se apresente, como nas narrativas do site Maria-Brazil, através de representações que
exaltem principalmente a grandeza e riqueza da natureza de nosso país, ainda assim podemos
descobri-lo quando as narrativas constroem representações que enfatizam o modo de ser do
brasileiro. O caráter mitológico das representações de brasilidade apresenta-se, assim, através
das conotações que dão conta do caráter pacífico e não-violento do brasileiro; do modo como
aparentemente as diferentes raças se misturam espaços públicos e nas festas – evocando o
mito da “democracia racial” (apesar da contradição entre “misturar-se” e “identificar-se” com
o negro, como vimos); do brasileiro como povo hospitaleiro e receptivo ao diferente, ao
Outro, ao estrangeiro; e também da representação do brasileiro como povo alegre e sensual.
Aprender e estudar a respeito do que pensamos a respeito de nosso país, assim
como o que o estrangeiro pensa a nosso respeito, nos torna mais conscientes a respeito de
nossa identidade, ainda que em seus aspectos de ambigüidade e contradição. DaMatta (1996,
p.20) evoca a utilidade dessa reflexão, a qual evidencia também a proposta desta pesquisa:
“Ter consciência dessas diferenças é se abrir para novas leituras do Brasil e do mundo.”
132
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das representações do Brasil e dos brasileiros em um contexto de
globalização das sociedades e mundialização da cultura nos revela a complexidade que
envolve a questão das identidades na contemporaneidade. Em um mundo onde os meios de
comunicação globalizados e os fluxos migratórios colocam em contato cada vez mais intenso
diferentes culturas, nossa proposta foi a de analisar a construção das representações de
brasilidade a partir de uma perspectiva intercultural. Na perspectiva da globalização das
sociedades e da mundialização da cultura, mais do que território, a nação torna-se narrativa. E
os meios de comunicação – principalmente a Internet – ao tornarem possível a difusão de tais
narrativas em nível global, tornam possível aos sujeitos narrarem a cultura de seus países.
Desta forma, a Rede funciona como instância negociadora e potencializadora da manutenção
da diversidade cultural.
Assim, mais do que apenas investigar o que o estrangeiro pensa a respeito do
Brasil – tema controverso que já foi objeto de muitas pesquisas - nossa investigação procurou
analisar as representações de brasilidade que surgem no ambiente intercultural que é a
Internet, feitas por sujeitos que transitam entre culturas diferentes. Nos propusemos a ler o
Brasil por dentro e, principalmente, por fora. Essa “visão de fora”, quando combinada com a
discussão sobre a globalização, revela a necessidade de um olhar que leve em conta a
interculturalidade. Nossa escolha dos objetos empíricos observou esse cuidado: por um lado,
analisamos a narrativa de um site gerenciado por uma americana nascida em nosso país, que
divide seu tempo entre os Estados Unidos e o Brasil; por outro, temos as narrativas de
internautas estrangeiros e brasileiros, muitos dos quais expatriados, que interagem no espaço
133
virtual do fórum de discussões de um site baseado nos Estados Unidos, que se propõe a
“tentar entender o Brasil”, traduzindo para o estrangeiro nosso modo de ser. Ambos se
propõem a divulgar a cultura brasileira no Exterior.
Os resultados da investigação nos dão conta de que as representações em torno da
brasilidade ocorridas no suporte midiático paradigmático da globalização - a Internet - giram
em torno de dois pólos que expõem ambigüidades e contradições. O confronto de sentidos
observado é exposto nas representações feitas nas narrativas dos sites: por um lado,
representações que constroem uma imagem positiva do Brasil e dos brasileiros, pela exaltação
da grandeza de sua natureza e da riqueza e diversidade cultural de seu povo; de outra parte,
representações que dão conta dos problemas advindos principalmente do fato de o Brasil ser
um país de Terceiro Mundo, os quais envolvem as questões da violência e da desigualdade
social, expondo uma sociedade autoritária. Subjazendo a esses dois pólos, mas em especial ao
pólo que constrói sentidos positivos em torno da brasilidade, percebemos a presença de
padrões de representação que, desde há muito, tem caracterizado as construções de sentido em
torno do Brasil e dos brasileiros.
O estudo da intertextualidade presente nas narrativas dos sites analisados nos
revela que tais padrões remetem claramente ao mito fundador do Brasil, o qual sustenta até os
presentes dias a chamada mitologia verde-amarela – uma ideologia que se faz presente nas
representações mitológicas do Brasil como dom da natureza e presente de Deus à
humanidade; terra habitada por um povo hospitaleiro, ordeiro e não-violento, onde as
diferenças se integram harmoniosamente; terra de um povo alegre e sensual, que sabe
aproveitar a vida apesar das dificuldades. Procuramos demonstrar que o mito fundador, que
tem no descobrimento do Brasil e na carta escrita por Pero Vaz de Caminha um marco inicial,
134
na verdade busca suas raízes em relatos bem mais antigos: na obsessão medieval pela busca
do Paraíso Terreal, prometido na própria Bíblia Sagrada.
A investigação propôs três objetivos distintos: a identificação das imagens
utilizadas e veiculadas pelos sites em questão para narrar a brasilidade; a verificação de como
se constroem as representações de brasilidade nas narrativas verbais e visuais dos sites e,
finalmente, a identificação dos elementos do mito fundacional presentes nessas
representações. O cumprimento dos objetivos propostos nos permitiu verificar a comprovação
de nossa hipótese de trabalho: nos níveis imagético e verbal das narrativas dos sites analisados
pudemos comprovar a presença de inúmeros elementos que, intertextualmente, remetem ao
mito fundador do Brasil. No entanto, a construção das representações de brasilidade pela
utilização do mito fundador, embora predominante, não foi o único padrão de representação
presente nas narrativas. Ao mesmo tempo em que observamos, no caso da construção de
representações pelo uso do mito fundador, a presença de representações identitárias que
remetem a um essencialismo cultural, por outro lado verificamos também a presença de
representações ambígüas e mesmo contraditórias da brasilidade, o que remete à questão das
identidades fragmentárias da pós-modernidade.
Ao retomarmos os objetivos a que nos propusemos, queremos nesse ponto evocar
as imagens utilizadas e veiculadas pelos sites para narrar a brasilidade. Tais imagens,
entendidas aqui como signos verbais e icônicos, formam um inventário denotativo que inclui,
no caso do site Maria-Brazil, principalmente as imagens da natureza, das manifestações
culturais e folclóricas da gente simples do povo e dos símbolos internacionalmente
reconhecidos de brasilidade – ou seja, revela-se aqui o lugar do natural, do tradicional, do
exótico e do relativamente inocente. Desta forma, Maria-Brazil narra o Brasil veiculando
imagens, por exemplo, da floresta Amazônica, das cataratas de Foz do Iguaçu, dos animais
135
silvestres em seu habitat natural e das inúmeras frutas, flores e árvores nativas do Brasil; dos
pratos da culinária preparados com os exóticos produtos da terra; da música das diversas
regiões; das manifestações folclóricas do Norte e Nordeste; das festas populares como o
Carnaval; do samba, da feijoada e da caipirinha como manifestações explícitas da cultura
nacional. Por contraste, as narrativas do site Brazzil.com evocam imagens que filiam-se a um
pólo mais negativo, por assim dizer, da representação da brasilidade: estão presentes na
narrativa do site as imagens da violência urbana, dos desmandos da política nacional, da
desigualdade social brasileira, da prostituição e do turismo sexual, da ambígua auto-estima do
brasileiro, do racismo velado e até do caráter autoritário da sociedade brasileira presente na
elocução “você sabe com quem está falando?”
Enquanto que no site Maria-Brazil as representações tendem a se construir
harmoniosamente, convergindo para o mito fundador, nas narrativas dos internautras do site
Brazzil.com ocorre um embate de sentidos. A construção das representações de brasilidade,
nesse caso, ocorre através do confronto de sentidos muitas vezes ambígüos e contraditórios. A
ambigüidade das representações a respeito do Brasil e dos brasileiros se verifica,
principalmente, na discussão sobre a violência – o mesmo país onde acontecem seqüestros-
relâmpago pode ser considerado refúgio contra o terrorismo – e sobre a auto-estima do
brasileiro – ufano de seu país no Exterior e inseguro quanto às potencialidades do Brasil na
sua vida aqui.
O contraste verificado nas narrativas dos dois sites em suas representações do
Brasil não se repete, ainda que em termos, nas representações a respeito do modo de ser do
brasileiro e da cultura nacional. Nesse caso, as narrativas de ambos os sites convergem na
evocação de imagens do brasileiro que remetem à representações que giram em torno do seu
caráter hospitaleiro, alegre, sensual, místico, amigável, gregário e não-violento. Assim temos,
136
por exemplo, no âmbito imagético do site Maria-Brazil, imagens do brasileiro dançando e
tocando instrumentos musicais; aproveitando o dia na praia; ofertando presentes à Iemanjá;
reunido com amigos no bar ou comemorando vitórias do futebol pentacampeão. No âmbito
verbal, tanto as narrativas de Maria-Brazil quanto as dos internautas de Brazzil.com
apresentam relatos de como os brasileiros de uma forma geral gostam dos estrangeiros e
tendem a recebê-los bem; de como gostam de dançar e de festas; do valor que dão à família e
aos amigos; de como apóiam-se uns aos outros; de sua religiosidade sincrética; e de que como
parecem saber se divertir e aproveitar a vida apesar das dificuldades econômicas próprias de
um país do Terceiro Mundo. Todos esses aspectos da “alma nacional” parecem exercer
grande fascínio sobre os estrangeiros, de acordo com a análise das narrativas dos sites. De
todos, aos olhos do internauta estrangeiro parece mais valioso e fascinante o aspecto da
valorização da interação humana por parte dos brasileiros, o que torna o Brasil uma
alternativa cultural para muitos americanos, por exemplo. De acordo com as representações
analisadas, conota-se que no Brasil ninguém nunca parece estar sozinho; ao contrário do
Primeiro Mundo, onde a interação humana parece estar em declínio, de acordo com alguns
relatos analisados.
Em nossa investigação, também nos propusemos demonstrar como essas imagens
atualizam o mito fundador do Brasil. A análise dos sentidos denotativo e conotativo das
narrativas, em seus âmbitos verbal e imagético, revela, como vimos nos capítulos analíticos,
os diversos fatos, personagens e temas presentes nas narrativas. Em nossa análise, observamos
que grande parte desses elementos revela a presença do mito fundador do Brasil nas
representações dos sites analisados. Quais são, então, os elementos do mito fundacional
presentes nas narrativas dos sites Maria-Brazil e Brazzil.com? Um primeiro elemento é o da
representação do Brasil como “dom da natureza” e “presente de Deus” à humanidade,
137
amplamente presente na maioria das imagens, principalmente do site Maria-Brazil, que
sublinha a representação da natureza brasileira como grandiosa, dadivosa e edênica; país dos
grandes rios, das frutas e frutos exóticos que não existem em outros lugares.
Outro elemento do mito fundacional é o da representação do Brasil como país da
democracia racial. O tema da integração de diferenças raciais – as “pessoas de todos os tipos”
que se reúnem, dançam ou festejam em harmonia - é representada de forma mais consistente e
linear nas narrativas de Maria-Brazil, enquanto que em Brazzil.com a temática racial gera
representações mais contraditórias e ambígüas. O mesmo acontece com outro elemento da
representação mitológica da brasilidade – o mito do “Brasil, país de contrastes”. Nas
narrativas de Maria-Brazil, o contraste é representado primordialmente em termos da
diversidade da natureza, dos tipos humanos e das manifestações culturais da gente brasileira –
contrastes que, ao revelarem a riqueza brasileira, tornam possível ao mito afiançar a promessa
de um futuro de grandezas - ao passo que em Brazzil.com surge, de forma mais explícita, a
representação do “país de contrastes” em termos da desigualdade social. Ainda que ocorra o
embate de sentidos muitas vezes ambíguos e contraditórios, permanece nas narrativas a
representação do Brasil como “país do futuro”. O mito faz-se presente, nessas narrativas,
ainda que escrito em negativo; da mesma forma que uma imagem fotográfica é formada em
negativo e em positivo.
Ao lado das representações da natureza, é nas representações do modo de ser do
brasileiro que a atualização do mito fundacional se revela com maior intensidade. Tais
atualizações encontram-se presentes no âmbito imagético, como vimos, mas principalmente,
no âmbito verbal, tanto nas narrativas de Maria-Brazil como nas dos internautas do fórum de
discussão do site Brazzil.com. Nessas narrativas a respeito dos brasileiros, completa-se o
círculo em torno do jogo de representações que atualiza – agora sob as roupagens multimídia
138
da Internet - o mito fundador do Brasil como paraíso terrestre, presente nas representações do
Brasil como refúgio de infinita riqueza natural e do brasileiro como povo pacífico, ordeiro e
não-violento; como povo alegre e sensual; assim como povo hospitaleiro e acolhedor de
todos os que desejam progredir e trabalhar no Brasil.
Como vimos, apesar do fenômeno da globalização e da interdependência entre as
nações, as representações a respeito do Brasil e dos brasileiros presentes nas narrativas dos
sites permanecem primordialmente relacionadas à padrões de representação que remetem ao
mito fundador do Brasil. Assim, podemos concluir que, apesar de por vezes problematizadas,
as representações do Brasil e dos brasileiros que circulam na Internet seguem ligadas à força
da mitologia verde-amarela: na associação da ideologia com a natureza, o internauta segue
consumindo sentidos naturalizados onde na verdade existem signos que são fruto de
construções históricas.
139
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.
APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia cultural global. In:
FEATHERSTONE, Mike (org.). Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade.
Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.
__. Elementos de Semiologia. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1979.
__. A Aventura Semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BHABHA, Homi. Introduction: narrating the nation. In: BHABHA, Homi (org.). Nation and
Narration. London: Routledge, 1990.
BIGNAMI, Rosana. A Imagem do Brasil no Turismo. São Paulo: Aleph, 2002.
BRAZZIL: trying to understand Brazil. Desenvolvido pela equipe do site. Disponível em:
<www.brazzil.com>. Acesso em: 24 ago. 2004.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. (A era da informação: economia, sociedade e
cultura; v.1). São Paulo: Paz e Terra, 1999a.
__. O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.2). São
Paulo: Paz e Terra, 1999b.
__. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003a.
__. Internet e Sociedade em Rede. In: MORAES, Denis de (org.). Por Uma Outra
Comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003b.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2000.
__. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
__. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
140
__. Conta de Mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco,
1993.
__. O Que Faz o brasil, Brasil? 7
a
. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
__. Torre de Babel: ensaios, crônicas, críticas, interpretações e fantasias. Rio de Janeiro:
Rocco, 1996.
DIAS FILHO, Antônio Jonas. Fulôs, Ritas, Gabrielas, Gringólogas e Garotas de
Programa: falas, práticas, textos e imagens, em torno de negras e mestiças, que apontam para
a construção da identidade feminina nacional, a partir da sensualidade atribuída à mulher
brasileira. 1998. 185f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 1998. Disponível em: <www.capes.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2003.
Resumo da dissertação de mestrado disponível no site.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Cartografias dos Estudos Culturais: uma versão latino-
americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Stuart Hall: esboço de um itinerário biointelectual. Revista
Famecos, Porto Alegre, n. 21, p. 61-74, ago. 2003.
FEATHERSTONE, Mike (org.). Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade.
Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. São Paulo: Ática, 1991.
GARCÍA CANCLINI, Nestor. A Globalização Imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.
GASTALDO, Édison. Pátria, Chuteiras e Propaganda: o brasileiro na publicidade na Copa
do Mundo. São Paulo: Annablume; São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2002.
HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart (org.). Representation: cultural
representations and sygnifying practices. London: Sage, 1997a.
__. Cultural Identity and Diaspora. In: Woodward, Kathryn (org.). Identity and Difference.
London: Sage, 1997c.
__. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 7. ed., 2002.
HINO NACIONAL BRASILEIRO. Poema de Joaquim Osório Duque Estrada; Música de
Francisco Manuel da Silva. Disponível em: <http://www.minc.gov.br/patrios/hino_bra.htm>.
Acesso em 23 mar. 2005. Site do Ministério da Cultura do Brasil.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil. 6
a
. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
__. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
141
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: história de uma ideologia. São
Paulo: Pioneira Editora, 4
a
. ed. definitiva, 1983.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MACHADO DA SILVEIRA, Ada Cristina. O Espírito da Cavalaria e suas Representações
Midiáticas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.
MARIA-BRAZIL: home of brazilian culture on the web. Desenvolvido por Sheila Thomson.
Disponível em: <http://www.maria-brazil.org/>. Acesso em: 10 nov. 2004.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Tecnicidades, identidades, alteridades: desubicaciones y
opacidades de la comunicación en el nuevo siglo. Diá-logos de la comunicación, México,
Felafacs, n.64, p. 8-23, 2002.
MITRA, Ananda. Virtual Commonality: looking for India on the Internet. In: BELL, David;
KENNEDY, Bárbara (orgs.). The Cybercultures Reader. London and New York: Routledge
– Taylor & Francis Group, 2000.
MITRA, Ananda; COHEN, Elisia. Analysing the Web: directions and challenges. In: JONES,
Steve (org.). Doing Internet Research: critical issues and methods for examining the net.
London: Sage, 1999.
OLIVEN, Ruben George. A Parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil-nação.
Petrópolis (RJ): Vozes, 1992.
O’ SULLIVAN, TIM et al. Conceitos-chave em Estudos de Comunicação e Cultura.
Piracicaba: Editora UNIMEP, 2001.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994.
__. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.
__. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003.
PENN, Gemma. Análise semiótica de imagens paradas. In: BAUER, Martin W.; GASKELL,
George. Pesquisa Qualitativa Com Texto, Imagem e Som: um manual prático. Petrópolis
(RJ): Vozes, 2002.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil:ensaio sobre a tristeza brasileira. 8. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
RENAN, Ernest. What is a nation? In: BHABHA, Homi (org.). Nation and Narration.
London: Routledge, 1990.
142
SÁ, Simone. Baiana Internacional: o Brasil de Carmem Miranda e as lentes de Hollywood.
1997. 230 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. Disponível em:
<www.minerva.ufrj.br>. Acesso em: 09 ago. 2003. Resumo da tese de doutorado disponível
no site.
SANTAELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da . A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
SIMÕES, Henrique Campos. As Cartas do Brasil. Ilhéus: Editus, 1999.
SKIDMORE, Thomas. O Brasil Visto de Fora. 2
a
. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
SMITH, Anthony D. La Identidad Nacional. Madrid: Tramas, 1997.
__. Nações e Nacionalismos Numa Era Global. Lisboa (Oeiras): Editora Celta, 1999.
STUMPF, Ida Regina C. e CAPARELLI, Sérgio (orgs.). Teses e Dissertações em
Comunicação no Brasil (1997 – 1999): resumos. Porto Alegre: PPGCOM/UFRGS, 2001.
THOMSON, Sheila. Re: Congratulations! And some new information for you...
[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <sandrars@zaz.com.br> em 27 jun. 1999.
TUFANO, Douglas. A Carta de Pero Vaz de Caminha: comentada e ilustrada. São Paulo:
Moderna, 1999.
VAN LEEUWEN, Theo; JEWITT, Carey. Introduction. In: VAN LEEUWEN, Theo;
JEWITT, Carey. Handbook of Visual Analysis. London: Sage, 2001.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo