entre clãs. O estupro, cometido por um grupo de homens de outro clã, foi
recomendado pela Assembleia local, que considerou uma "ofensa à honra" a
porque o primeiro-ministro do Paquistão visitava a ONU e não se queria constrangê-lo. Ela falaria na
tevê da ONU, mas na véspera, a Instituição mandou informar que a entrevista ficaria para melhor
oportunidade, porque isso poderia incomodar o primeiro-ministro paquistanês, Shaukat Aziz, em visita
às Nações Unidas. A notícia correu mundo imediatamente porque a jovem pobre de uma aldeia
remota do Paquistão já havia se tornado uma celebridade. Mukhtar estava indo à ONU depois de
participar do lançamento de Desonrada, em Paris. Mukhtar Mai viveu uma das mais chocantes
histórias de violência contra a mulher já divulgada. Ela foi condenada pela jirga, a corte tribal, da
localidade de Meerwala, em junho de 2002, a ser estuprada coletivamente. Seu crime? Nenhum! Seu
irmão mais novo, então com 12 anos, estaria se encontrando com uma jovem de uma tribo,
considerada de casta superior. Ofendidas, as pessoas da tal casta exigiram, como vingança, pelo
suposto ataque à honra do grupo, que Mai fosse estuprada. Ela foi condenada pelo conselho tribal e
estuprada sucessivamente, por quatro homens. Seria mais um dos milhões de estupros de que, ainda
hoje, mulheres são vítimas, seria mais um dos casos de violência contra a mulher determinada por
alegações religiosas ou culturais, não fosse a espantosa coragem de Mai. Recusando-se a ficar em
silêncio, ela desafiou seus algozes e enfrentou o código tribal. Foi à Justiça comum do país, pedindo
punição para todos os culpados. Em 2004, eles foram condenados e ela recebeu uma indenização.
Com o dinheiro, abriu uma escola. Mai, que na sua época nunca teve permissão para estudar, disse
querer trabalhar para melhorar as chances da próxima geração. “A escola é o primeiro passo para
mudar o mundo. Em geral, o primeiro passo é o que dá mais trabalho, mas é o começo do
progresso”, disse, segundo a BBC News. Ela ainda enfrentou outro constrangimento: em 2005, teve
seus direitos de locomoção reduzidos pelo governo paquistanês, sob a alegação de que era para sua
segurança. A suspeita é de que a intenção era silenciá-la em sua condenação ao país e à omissão do
governo. Mai venceu mais essa batalha, mas a ONU acabou ajudando o governo do Paquistão. Para
isso, teve de esquecer até o preâmbulo da declaração que a criou, que diz o seguinte: ‘Considerando
que o desconhecimento e o desprezo dos direitos dos Homens conduziram a atos de barbárie que
revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos
sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta
inspiração do Homem...’. A ONU, guardiã e defensora dessa declaração universal, decidiu que, lá,
Mai tem de se calar. Entre dar voz a uma vítima de grave violação dos direitos humanos ou a mais
um burocrata de ocasião, ficou com a segunda opção. A luta da mulher por respeito é mais dramática
em alguns países, mas é mundial. No Brasil, uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, feita pelo
Ibope, mostrou que, entre mulheres que só estudaram até o quarto ano do fundamental, 31% não
discordavam da frase: ‘Ele bate, mas, ruim com ele, pior sem ele.’ Até entre quem tem curso superior
foi possível encontrar 8% que aceitavam a frase. Nessa área, os dados são imprecisos, porque
muitas mulheres preferem o silêncio, mas, segundo a Fundação Perseu Abramo, um terço das
mulheres com mais de 15 anos já foi vítima de alguma forma de violência física. Em mais de 50% dos
casos, a denúncia não é feita. No mundo, em alguns países, a taxa de violência chega até a 69% das
mulheres. Asma Jahangir, da Comissão de Direitos Humanos da ONU no Paquistão, escreveu na
revista Time Asia que, nos sete primeiros meses de 2004, nada menos que 1511 mulheres
paquistanesas foram estupradas da mesma forma e 176 foram condenadas à morte “em nome da
honra”. No ano em que Mai foi violentada, foram registrados outros 804 casos de estupros coletivos,
434 deles chegaram a ser noticiados. Os casos de suicídio de mulheres após condenação tribal –
única justiça em grande parte da área rural do Paquistão – são tão comuns que normalmente são
registrados em notícias pequenas nos jornais locais. O nome e a história de Mai correram o mundo e
continuarão correndo nos próximos anos. Ela virou um símbolo da luta contra a barbárie, pelos
direitos humanos, contra a violência contra a mulher. É admirada, respeitada e apoiada. Tudo o que
aconteceu a ela seria mais um caso de abuso contra a mulher num lugar remoto, tolerado pelo
mundo com a desculpa de que essa é a cultura local ou essa é a lei religiosa, não fosse sua
determinação de não se calar. Numa entrevista à CNN, Mai disse, numa vozinha baixa e tímida, uma
mensagem de extraordinário poder: ‘Eu tenho uma mensagem para as mulheres do mundo, todas as
mulheres que foram estupradas ou foram vítimas da violência. É preciso falar sobre o que houve e
lutar por justiça’. Parece simples e fácil, mas para todas as vítimas de violência sexual este é o passo
mais difícil: falar sobre o crime e expor a humilhação de que foi vítima”.