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Andréa Teixeira Acioli Ferreira
Desenvolvimento Tipo Exportação:
Quando o desenvolvimento das ONGs se choca com os
desenvolvimentos das coletividades
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Geografia da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Geografia.
Orientador: Prof. João Rua
Rio de Janeiro
Junho de 2010
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812089/CA
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Andréa Teixeira Acioli Ferreira
Desenvolvimento Tipo Exportação:
Quando o desenvolvimento das ONGs se choca com os
desenvolvimentos das coletividades
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Geografia do Departamento de
Geografia do Centro de Ciências Sociais da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. João Rua
Orientador
Departamento de Geografia – PUC-Rio
Prof. Gláucio José Marafon
Co-Orientador
Instituto de Geografia – UERJ
Prof. Alvaro Henrique de Souza Ferreira
Departamento de Geografia – PUC-Rio
Prof. Miguel Ângelo Campos Ribeiro
Instituto de Geografia – UERJ
Profª Mônica Herz
Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 10 de junho de 2010
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812089/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Andréa Teixeira Acioli Ferreira
Graduou-se Bacharel em Geografia pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2007). Coordenadora
Adjunta do Núcleo de Estudos de Geografia Fluminense
- NEGEF/UERJ e Pesquisadora associada do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Espaço e Metropolização -
NEPEM/PUC-Rio. Professora substituta do
Departamento de Turismo da UERJ, Coordenadora e
professora assistente do Departamento de Geografia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé
(FAFIMA). Tem experiência em Geografia Humana,
desenvolvendo estudos nas áreas de Meio Ambiente e
Sustentabilidade, Geografia Agrária, Pensamento
Geográfico e Ensino da Geografia.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Ferreira, Andréa Teixeira Acioli
Desenvolvimento tipo exportação: quando o
desenvolvimento das ONGs se choca com
desenvolvimentos das coletividades / Andréa
Teixeira Acioli Ferreira ; orientador: João Rua; co-
orientador: Glaucio José Marafon. – 2010.
102 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Geografia, 2010.
Inclui bibliografia
1. Geografia Teses. 2. Hegemonia. 3.
Desenvolvimento. 4. ONGs. 5. Autonomia. 6.
Sociedade civil. I. Rua, João. II. Marafon, Glaucio
José. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Geografia. IV. Título.
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Ao amigo João Rua, por toda paciência nos
últimos tempos.
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Agradecimentos
Escrever os agradecimentos me traz sempre uma quantidade enorme de
sentimentos. Traz a lembrança dos últimos dois anos e das pessoas que fizeram
parte deles. Faz perceber como o tempo corre, como o mundo se modifica em tão
curto espaço de tempo e com ele também nos modificamos. É, portanto, um
exercício de reflexão sobre tudo que passei e aprendi neste período e sobre o
resultado dessa transformação. E é através desses sentimentos que procuro me
remeter à todos que puderam ou tentaram, de alguma forma, contribuir para mais
esse passo.
Começo agradecendo à todos os colegas do mestrado da PUC, que possibilitaram
incontáveis momentos de reflexão, de críticas e de contruções que sem elas,
certamente não teríamos avançado. Agradeço a todos os funcionários do
departamento de Geografia da PUC, em especial à Marcia, que está sempre
disponível para ajudar. Sem ela eu teria me perdido nos prazos, deveres e
processos da PUC.
Devo também muito dessa trajetória aos professores do departamento, por todo o
conhecimento que nos ajudaram a construir. Mas agradeço em especial ao
professores João Rua e Álvaro Ferreira. Esses, além de amigos que são para mim,
possibilitaram uma das experiencias mais incríveis que já tive como aluna. Tenho
suas aulas hoje como uma referencia pois possibilitaram descontruir as certezas
com as quais chegamos, nos deixando na angúnstia de apreender que a
complexidade do mundo que vivemos nos traz cotidianamente um novo devir. E
mais ainda, conseguiram fazê-lo de forma leve, sempre com suas divertidas
brincadeiras que me deixaram lembraças maravilhosas. João, acho que nunca
conseguirei traduzir em palavras o tanto de admiração e de amor que sinto por
você! Você é a referencia que eu tenho e que tento levar para o meu futuro como
pessoa e como professora.
Inúmeras outras pessoas também foram importantes nesses anos. Prof. Miguel
Angelo, que desde cedo me ajuda a caminhar por essas trilhas geográficas, sempre
com seu jeito amigo, com seu carinho e sua alegria. Prof. Glaucio Marafon, este
sempre esteve e sempre estará em meus agradecimentos! Nem preciso dizer o
quanto este amigo tem sido importante em cada conquista que tenho na minha
vida. Já faz parte de minha trajetória há muitos anos e sempre me ajudou e me
impulsionou, não só na vida profisional mas também como o amigo que tem sido
e que sempre vou carregar comigo. Boa parte do que sou hoje devo à voce, pois
poucas são as pessoas que dedicam parte da seu tempo, da sua vida, à ajudar os
outros a crescerem como voce faz.
Um agradecimento especial à Frederico Koeler que esteve presente durante todo o
decorrer desse caminho e dividiu minha atenção pacientemente com os livros.
Uma pessoa especial a quem não posso deixar de lembrar.
Agradeço ainda aos amigos antigos e os aos amigos que fiz nesse processo. Felipe
Demier, que sempre contribui com as discussões teóricas, os amigos do NEGEF:
Renatinha, Leandro, Eduardo, Vinícius, Romulo, Gabriel, entre tantos outros que
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despertam questionamentos muito relevantes e onde eu sempre retorno para me
fortalecer e continuar aprofundando meus conhecimentos. O NEGEF é a minha
origem, onde fui formada e onde sempre estarei presente.
Às amigas Marta Nascimento e Letícia Giannella. A Martinha pela amizade, pelos
longos bate-papos e por ter sido tão importante desde os estudo para a seleção,
mas que esteve muito presente a todo momento ao meu lado. E à Letícia, uma
mulher muito dedicada e companheira. Amiga, voce esteve muito presente nos
últimos tempos, ajudou não só com sua parceria acadêmica, mas também ajudou a
me segurar e me manter de pé. Sem as horas de terapia semanal que seu ombro
amigo me ofereceu talvez eu não estivesse aqui, neste momento, escrevendo
agradecimentos. Se o faço agora é porque apesar de tudo, consegui terminar...
São tantas as contribuições que tive que fica dificil falar em tão pouco espaço,
mas espero que todos que estiveram ao meu lado se sintam abraçados e cientes de
que nunca serão esquecidos. À todos muito obrigada!!!
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Resumo
Ferreira, Andréa Teixeira Acioli; Rua, João. Desenvolvimento Tipo
Exportação: quando o desenvolvimento das ONGs se choca com os
desenvolvimentos das coletividades. Rio de Janeiro, 2010, 102p.
Dissertação de Mestrado. Departamento de Geografia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Este estudo é decorrente de alguns anos de pesquisa sobre as Organizações
Não-Governamentais (ONGs), seu surgimento, atuação e mais recentemente
acerca dos resultados obtidos através de suas ações. Devido à proximidade com o
objeto pudemos perceber que atualmente há uma grande quantidade de ONGs que
se territorializam a partir de uma atuação centrada no desenvolvimento por elas
desejado. Partiremos então em busca da compreensão de como diferentes noções
de desenvolvimento podem interferir nas relações de uma coletividade, tentando
entender se esses projetos de desenvolvimento, da maneira como costumam ser
implementados, são capazes de atender às reais necessidades dessas coletividades.
Para isso utilizaremos autores como Cornelius Castoriadis (1987, 1992), Edgar
Morin (1999), Antonio Gramsci (1991, 2002) e Marcelo Souza (1996 e 2006), que
nos servirão de base e nos auxiliarão no entendimento das questões apresentadas.
Palavras-chave
Hegemonia; desenvolvimento; ONGs; autonomia; sociedade civil
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Abstract
Ferreira, Andréa Teixeira Acioli; Rua, João. (Advisor). Development for
export: when the development of NGOs clashes with collectivities
development. Rio de Janeiro, 2010, 102p MSc. Dissertation - Departamento
de Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This study is the result of several years of research on the Non-
Governmental Organizations (NGOs), its appearance, performance and more
recently on the results achieved through their actions. Given its proximity to the
object we see that currently there are a lot of NGOs that would territorialized from
an activity centered on the development they want. Then depart in search of
understanding of how different notions of development may interfere in the
relations of a community, trying to understand whether those development
projects, the way they are usually implemented, are capable of meeting the real
needs of these communities. For this we use authors as Cornelius Castoriadis
(1987, 1992), Edgar Morin (1999), Antonio Gramsci (1991, 2002) and Marcelo
Souza (1996 and 2006), we will provide the basis and assist in the understanding
of the issues presented.
Keywords
Hegemony, development, NGOs, autonomy, civil society
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Sumário
1. Considerações Iniciais 11
2. O Projeto de desenvolvimento ocidental e sua relação com as
ações das ONGs 27
2.1. Da relação entre o Estado e a Sociedade Civil: o surgimento
de um novo sujeito 33
2.2. (Re)pensando o desenvolvimento para além do capital 46
3. Os conflitos entre as diferentes concepções de desenvolvimento 54
3.1. Crise/crítica do desenvolvimento à maneira das ONGs 54
3.2. Primeiros passos: o papel da participação popular 59
3.3. Do desenvolvimento pelas ONGs ao desenvolvimento numa
perspectiva autonomista 73
4. Caminhando para fazer o caminho 91
5. Referências Bibliográficas 99
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Desconfiai do mais trivial
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Bertold Brecht
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1.
Considerações Iniciais
Este estudo é decorrente de alguns anos de pesquisa sobre as Organizações
Não-Governamentais (ONGs), seu surgimento, atuação e mais recentemente
acerca dos resultados obtidos através de suas ações. Ao falar de um
“desenvolvimento tipo exportação” procuramos enfatizar que os projetos de
desenvolvimento na modernidade, são na maior parte das vezes produzidos em
escalas muitos distantes de onde são realizados. Desta forma, são como produtos
“tipo exportação”, produzidos em massa e levados a todos os locais de interesse,
que possuam características de ‘mercado consumidor potencial’ para seu produto.
Este é o eixo central por onde se desenrola nosso pensamento neste estudo.
O tema das ONGs nos chamou atenção devido a inúmeros fatores que
fizeram dele o objeto desses anos de observação e análise. Num primeiro
momento procuramos entender a forma como essas organizações atuavam
espacialmente e analisamos os territórios que são criados através de sua atuação.
Mas foi olhando para os dias de hoje que pudemos perceber que há uma grande
demanda de ONGs que se propõem a atuar junto à população, levando consigo
projetos de desenvolvimento e a partir daí criam laços de parceria com as
coletividades envolvidas, bem como novos territórios de atuação, agora definidos
a partir de questões ligadas em grande parte à oferta de recursos para seus
projetos.
A maioria das fontes financiadoras, como no caso de empresas privadas,
fundações internacionais e nacionais entre outras, atualmente tem se apropriado
do discurso do desenvolvimento e da sustentabilidade, discursos que estão na
moda hoje, mas que precisam ter seu conteúdo analisado com mais profundidade e
é isso que nos propomos fazer neste presente estudo.
Partiremos então em busca da compreensão de como diferentes noções de
desenvolvimento podem interferir nas relações de uma coletividade. Alguns
questionamentos nos servirão como eixo norteador para esse estudo buscando
entender se: podemos dizer que esses projetos de desenvolvimento, da maneira
como costumam ser implementados, são capazes de atender as reais necessidades
dessas coletividades? A participação da população no processo de aplicação dos
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projetos é capaz de dissolver as diferenças de concepções de desenvolvimento
entre as ONGs e as coletividades
1
atendidas? Como fazer para que essas
coletividades consigam ter mais autonomia neste processo?
Retomando nossos estudos anteriores, os quais nos permitiram uma maior
proximidade com o objeto, percebemos que atualmente há uma grande quantidade
de ONGs que se territorializam a partir de uma atuação centrada no
desenvolvimento de algumas coletividades. Pudemos perceber que as ONGs
atuam de maneira a não limitar seu campo de atuação considerando uma
divisão político-administrativa do território, mas sim estabelecendo uma nova
área de atuação com base em políticas e projetos por elas desenvolvidos junto
à comunidade. Elas se territorializam através de suas ações e práticas, e das
relações que estabelecem, com isso, essas organizações dão origem a
territórios materiais e imateriais por elas controlados e modificados. Esses
territórios possuem uma existência bastante fluida e dinâmica, rapidamente se
desfazem e se reconstroem de acordo com o movimento das ONGs no espaço. E é
analisando esse movimento que podemos dizer que as ONGs apresentam uma
enorme mobilidade, que faz com que modifiquem rapidamente suas práticas,
políticas e projetos, bem como suas áreas de atuação e grupos atendidos
(ACIOLI, 2007). Dessa primeira observação sobre a relação entre sua atuação e os
territórios criados surgiram outras questões como a das concepções de
desenvolvimento que carregam de intencionalidade a contrução desses territórios.
Alguns exemplos podem nos ser úteis neste estudo e, portanto, buscaremos
na atuação de ONGs como o Instituto Sete Capitães e a ONG Grupo de
desenvolvimento tecnológico harmonia, homem, habitas – ONG 3Hs, indícios que
nos permitam melhor observar os conflitos existentes na relação ONG-
coletividade atendida.
Varias são as razões que levam um pesquisador a realizar uma seleção em
um objeto e fazer dele seu foco de análise, pois o real que o cerca traz
1
Sabemos dos riscos que corremos ao utilizar o termo “coletividade” para se referir a um conjunto
de indivíduos que fazem parte da mesma sociedade. Contudo incorporamos as críticas efetuadas
por autores como Vainer (2002) e Brandão (2003) que apontam para o reducionismo que pode
estar contido no termo se esta coletividade for tomada como algo homogêneo, livre de
contradições e conflitos de classe. Diante disso, nos preocupamos em esclarecer desde já que ao
utilizarmos, ao longo deste estudo, o termo “coletividade” o fazemos tendo sempre como premissa
as diferenciações de classes e as assimetrias de poder existentes nesse universo.
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inquietações, angústias, dúvidas e questionamentos, o real o desafia. Mas talvez o
fator mais importante nesta seleção sejam as experiências de vida do pesquisador,
seu modo de ver o mundo e apreendê-lo, pois desta construção particular ele
jamais poderá se distanciar.
Uma das razões do nosso mergulho no mundo das ONGs se deve ao
destaque cada vez maior de tais organizações no cenário mundial nas últimas
décadas. Boa parte das ações que antes eram empreendidas por governos do
mundo todo, hoje é tomada pelas rédeas das Organizações Não-Governamentais.
Essa mudança tem tido notável repercussão mundialmente, fazendo com que cada
dia mais as ONGs conquistem espaço na mídia, poder junto à sociedade e a
esperança de melhoria da qualidade de vida nelas depositadas por milhões de
indivíduos pelo mundo afora.
Contudo, como dito anteriormente, a construção do pesquisador enquanto
indivíduo influencia sobremaneira o recorte temático e neste caso não poderia ser
diferente. Alguns anos de militância na esquerda brasileira trouxeram consigo
uma pesada carga crítica ao conteúdo e à atuação das ONGs no mundo todo. Parte
disso se deve à mudança na atuação dessas organizações a partir do surgimento do
ideário neoliberal, pois embora tenhamos claro que o surgimento das ONGs se
trate de um fenômeno anterior ao neoliberalismo é a partir dele que identificamos
um momento chave de mudança nas políticas e ações por elas empreendidas.
Não podemos também deixar de atentar para alguns vícios teóricos da
esquerda marxista até hoje e que tentaremos não reproduzir aqui neste estudo. É
fato conhecido a diversidade de compreensões que a obra de Marx tem tido pelo
mundo todo e pelas mais variadas correntes do pensamento de esquerda.
Encontramos inclusive leitores assíduos que muitas vezes se mostram presos a
uma leitura quase bíblica e, portanto bastante reducionista da obra de Karl Marx.
Sabemos das dificuldades que enfrentaremos, pois se trata de um
rompimento inicial com anos e anos de verdades absolutas e até bem pouco tempo
indissolúveis. Contudo aos poucos caminhamos no sentido de um diálogo maior
com diversos autores, que poderão nos oferecer um horizonte mais amplo de
possibilidades para nosso estudo.
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Buscamos, portanto trazer as ideias do velho Marx para os dias de hoje,
dialogando com a realidade atual, da qual este autor em sua época não poderia
jamais antever, embora muito do que tenha dito possa ser facilmente aplicável aos
dias de hoje. Nosso desejo é que através do diálogo com autores contemporâneos,
que buscam uma releitura, uma atualização ou até mesmo continuação dos
escritos de Marx, possamos enriquecer o debate acerca da sociedade atual e
aprofundar o estudo sobre a atuação das Organizações Não-Governamentais, sem
abrir mão das visões revolucionárias marxianas. Tentaremos, portanto, não
reproduzir uma leitura fechada de Marx, mas tê-lo como base durante todo o
processo sem, contudo, reificá-lo, abrindo possibilidades de diálogos com outras
correntes, com outros pensamentos.
Diante deste cenário a questão do método utilizado se coloca como algo
bastante relevante. Tendo definido a teoria marxista como nossa base, o método
dialético se apresenta como a melhor forma de análise, pois entendemos que
através dele sejam melhor apreendidas as contradições existentes no espaço
geográfico. Essa opção metodológica nos permite analisar uma realidade concreta
buscando apreender suas contradições, bem como suas ligações, buscando sempre
a unidade e o movimento.
É com Henri Lefebvre que encontramos uma enriquecedora interpretação do
método na perspectiva da dialética materialista quando o autor aponta uma dupla
complexidade da realidade social, sendo esta horizontal e vertical. Lefebvre com
seu método regressivo-progressivo procura mostrar que através destes dois
momentos é possível apreender de forma mais abrangente e mais aprofundada a
realidade social. A complexidade horizontal requisita do pesquisador uma
descrição das relações sociais, do visível, enquanto a complexidade vertical
aprofunda esse olhar, buscando analisar a realidade e não mais a apenas descrevê-
la. Aqui o pesquisador consegue observar que a realidade social não pode ser
apreendida apenas na sua aparência, pois se torna clara a existência de relações
sociais diferentemente datadas coexistindo num mesmo momento, mas nem por
isso contemporâneas. Sendo assim Lefebvre também nos desperta a necessidade
do reencontro com o presente, mas agora um presente compreendido, no qual as
contradições são fruto de desencontro de tempos, são produzidas historicamente e
encontram na sua gênese possibilidades não realizadas, virtualidades não
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concretizadas. Esse movimento de ir e vir, regressando ao passado, mas sempre
referenciando o presente é o que nos permite compreender melhor o espaço e, no
caso do nosso objeto, entender as relações que as ONGs estabelecem com as
coletividades envolvidas.
As ONGs, ao longo dos seus anos de existência, têm passado por inúmeras
transformações, no modo de atuação, no tipo de projeto, nas políticas, nas
parcerias e até mesmo na sua filosofia. Mas também não podemos negligenciar
que sob a bandeira do termo Organização Não-Governamental se abriga uma
diversidade incomum de organizações, com as mais variadas práticas, objetivos e
áreas de atuação. Ainda que existam características comuns a quase todas elas, sua
diversidade dificulta a construção de uma delimitação do termo.
Mesmo sendo um terreno de difícil acesso, alguns autores já se aventuraram
na construção dessas classificações utilizando-se dos mais variados critérios para
tal. Sandra Zarpelon (2003) aponta alguns exemplos como no caso dos estudos
pautados em classificações com base na origem das organizações, sobre os quais
foram delimitados quatro grupos distintos de ONGs. Em um primeiro grupo
encontram-se as ONGs derivadas dos movimentos sociais das décadas de 1970 e
1980, caracterizadas principalmente por prestarem assessoria e suporte político
aos movimentos que mantinham parceria. Um segundo grupo com caráter
filantrópico, composto de organizações mais recentes e ligadas a entidades
filantrópicas e grupos religiosos. O terceiro grupo, seguindo essa visão, abriga as
organizações que se fundem com o movimento com o qual integram, como as
ONGs ambientalistas. E por fim, um quarto grupo composto pelas organizações
fundadas por empresas, o que se convencionou chamar de terceiro setor.
Existem ainda outras abordagens para a construção de classificações, como
a que se pauta na definição de objetivos e métodos próprios, na definição de áreas
geográficas e setores da população que serão alcançados através de sua
intervenção e a definição do tipo de serviço que pretende prestar à população. E
há também aqueles autores que preferem utilizar como parâmetro o critério de
atuação dessas ONGs, sendo que a maioria delas se encaixa no campo da
filantropia ou assistência social.
Utilizamo-nos desta longa exemplificação, pois entendemos necessário
destacar a complexidade deste tipo de exercício classificatório das ONGs visto a
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diversidade encontrada de organizações com distintas origens e os mais diversos
propósitos. No nosso entendimento, ainda que se faça um esforço no sentido de
criar uma classificação dessas organizações, não há como o fazer de forma
categórica uma vez que seus resultados políticos e práticos são os mesmos, ainda
que suas intenções não o sejam.
Através do mergulho que vimos fazendo no mundo dessas organizações nos
últimos anos, observamos algumas tentativas no sentido de estabelecer certa
homogeneidade em torno do termo ONG. Uma delas foi empreendida através da
criação, em 1991, da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais
– ABONG. Com o objetivo de dar uma delimitação ao termo ONG, a ABONG
traçou diretrizes que as organizações deveriam seguir para serem reconhecidas
como tal. Alguns desses requisitos dizem respeito a seu posicionamento político e
social, como no caso da exigência de que
sejam autônomas frente ao Estado, às igrejas, aos partidos políticos e aos
movimentos sociais; mantenham compromisso com: a constituição de uma
sociedade democrática e participativa, incluindo o respeito à diversidade e ao
pluralismo; busquem o fortalecimento dos movimentos sociais de caráter
democrático; busquem a ampliação do campo da cidadania, a constituição e
expansão dos direitos fundamentais e da justiça; tenham caráter público em
relação aos seus objetivos e ação (ABONG, 2005).
Contudo, a realidade nos mostra que no Brasil o termo ONG vem
frequentemente sendo empregado sem que se atendam aos requisitos definidos
pela ABONG, o que fica explícito quando observamos que, segundo o IBGE
(2004, p.23) até 2002 existiam 276.000 associações sem fins lucrativos e
Fundações Privadas, das quais apenas 266 eram filiadas à ABONG. Com isso,
chamamos atenção para a imprecisão acerca do termo ONG, tendo apenas como
ponto explicitamente comum seu caráter não-governamental e sem fins lucrativos.
Outro ponto que observamos nos nossos estudos anteriores nos permite
afirmar que muitas vezes, como apontado por Maria da Glória Gohn (2005), essas
organizações não possuem um projeto político claro, o que abre espaço para que
frequentemente se apresentem como apolíticas. Por outro lado, é possível
identificar uma estreita relação entre a atuação destas organizações e a
disseminação de políticas e consolidação da hegemonia neoliberal no Brasil.
Muitas vezes a atuação das ONGs se faz de maneira que este ideário penetre nas
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classes dominadas a partir de seus próprios movimentos, através do discurso de
ineficiência do Estado e pela valorização do privado (ACIOLI, 2007, p. 40).
Este tipo de organização peculiar da sociedade civil
2
começou a se proliferar
em todo território nacional a partir de meados da década de setenta, sendo o
surgimento destas, na verdade, um fenômeno de caráter mundial, a exemplo de
organizações como o GREENPEACE, ATTAC, entre outras. No Brasil uma das
primeiras, fundada por Betinho
3
, foi o IBASE, organização que até hoje tem uma
atuação destacada ao lado de movimentos sociais e que ganhou notoriedade com a
campanha pela “ética na política”, campanha esta que, aliada a outros fatores,
culminou com a deposição do ex-presidente Fernando Collor de Mello (FICO,
1999, p.83).
Logo nos primeiros anos de seu surgimento no Brasil, mais precisamente
nas décadas de 1960 e 1970, as ONGs em sua grande maioria prestavam
assessoria aos movimentos populares. Seu caráter não-governamental se dava
principalmente pela resistência ao regime ditatorial da época, pois tudo que era
governamental era imediatamente identificado com o regime ditatorial e ser não-
governamental aparecia como uma negação a esse regime. Mas com o fim da
ditadura e a ascensão do modelo neoliberal no Brasil, o discurso não-
governamental foi cooptado por um discurso anti-estatal. Segundo Silva (2006,
p.53 et seq.)
2
Iremos trabalhar com a perspectiva gramsciana de sociedade civil, segundo a qual esta é
composta por organizações privadas que estão fora do escopo do Estado, mas que auxiliam na
tarefa de dominação de classe. Precisamos, contudo, destacar que o conceito de sociedade civil na
obra de Gramsci possui antinomias e que a separação entre Estado e sociedade civil deve ser
apenas metodológica, para sua análise, e não orgânica. Desta forma, estes dois planos são
indissociáveis, são como planos superpostos que em última análise conformam o que seria por
Gramsci chamado de “Estado ampliado”. Consideramos ainda, que a sociedade civil é um todo
conflituoso, composto por diversos grupos sociais (classes, etnias, gêneros), que buscam atender
seus interesses, mas também realizam acordos entre si. (GRUPPI, 1980) e (GRAMSCI, 1991)
3
Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, foi um sociólogo brasileiro que teve sua
trajetória muito comprometida com os movimentos sociais de esquerda. Foi um dos fundadores do
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE, em 1981, participou ativamente da
luta pela reforma agrária no Brasil e esteve presente nas mobilizações pelo impeachment do
Presidente Fernando Collor. Mas seu reconhecimento veio principalmente ligado ao projeto que
comandou, a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”.
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a maioria das ONGs que nasceram pós-noventa que não tiveram relação com os
movimentos sociais de resistência a ditadura, e nem relação com os pactos que
geraram a criação da ABONG, surgem com posturas e práticas diferenciadas. Ao
invés de lutarem por uma ampliação do Estado, acabaram por pregar um anti-
estatismo reforçado por uma perspectiva que alimenta a concepção de que tudo o
que é governamental é ruim. Que só a sociedade civil salva. Foi desta reorientação
dos discursos sobre ser não-governamental que emerge o termo terceiro setor.
Diante disso, podemos afirmar que ao longo de sua trajetória essas
organizações têm mudado bastante o seu perfil. Podemos inicialmente observar
seu surgimento através de uma política da Organização das Nações Unidas –
ONU, que desde a segunda metade da década de 1940 já utilizava o termo ONG
em seus documentos para se referir às organizações internacionais que se
destacaram a ponto de possuírem direito a uma presença formal na ONU, contudo
não representavam governos. Mas é nos anos 60 que a ONU proporcionou o
surgimento de várias organizações deste tipo, incentivando o aumento de
programas de cooperação internacional que financiavam entidades para ajudar
países subdesenvolvidos.
Por outro lado, precisamos destacar outros fatores, como a conjuntura social
e política vivida a partir da década de 60, que muito contribuíram para a
proliferação das ONGs. Conforme mostrado em Acioli (2007, p.36), o
protagonismo hoje vivenciado pelas ONGs foi alavancado em dois momentos
distintos e por duas tendências originalmente opostas. Uma destas com sua matriz
no pensamento de esquerda que teve repercussão a partir da década de 60 e
culminância em 68 e outra como conseqüência da política neoliberal do “Estado
mínimo”.
Como resultado de algumas experiências não muito bem sucedidas de
revoluções socialistas pelo mundo afora e incorporando discursos pacifistas da
época, a partir da década de 60 algumas vozes da esquerda se levantaram em favor
da idéia de se “fazer política” sem a perspectiva de tomada de poder. Críticos da
atuação das organizações tradicionais da esquerda (social-democratas e
comunistas), tais movimentos propunham novos caminhos para a participação
política e uma renovação das formas tradicionais de organização (BIANCHI,
2002, p. 2). Construíram-se em torno de bandeiras de luta específicas como da
afirmação de grupos étnicos, de gênero e de outros atores sociais que até então
eram marginalizados na sociedade. Defendiam ainda a causa ecológica e a
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expansão dos direitos fundamentais como saúde e educação e atuavam
principalmente prestando assessoria a grupos populares organizados.
Podemos citar alguns momentos marcantes deste processo, como as
mobilizações nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã e as lutas pela
ampliação dos direitos de negros e mulheres, as manifestações estudantis de 1968
na Europa Ocidental e ainda as lutas contra os regimes políticos autoritários na
América Latina e no Leste Europeu (BIANCHI, loc. cit.). Todo este contexto fez
com que houvesse um ascenso dos movimentos sociais neste período e com isso o
surgimento de novos atores que viriam cumprir o papel de organizar e dar
assessoria às ações destes grupos.
Em outro momento de sua trajetória as ONGs tiveram seu crescimento em
todo o mundo impulsionado pelo surgimento do neoliberalismo. De matriz
conservadora, aqui podemos identificar políticas no sentido de obter uma
autonomia do mercado em relação ao Estado, fazendo com que este perca cada
vez mais o poder de inflncia na economia. O neoliberalismo provocou também
uma redução da participação do Estado no mercado de trabalho, promoveu
políticas de privatização de empresas estatais, com a abertura da economia para
multinacionais e uma diminuição do tamanho do Estado com o discurso de que
desta forma se tornaria mais eficiente.
Na medida em que se reduz o Estado, isentando o seu papel em promover os
direitos sociais à população, deixa-se um espaço aberto que imediatamente vai
sendo preenchido por novos atores, como o caso das ONGs. Inúmeras
transformações na relação sociedade-Estado decorrem deste processo, pois se por
um lado se abre a possibilidade de se construir mobilizações e organizações
populares de reivindicação das questões sociais, por outro, o que observamos foi
um aumento do número de organizações que, diante deste quadro, se colocam
como mediadoras.
A trajetória das ONGs no Brasil, desde o seu surgimento até os dias de hoje
não foi muito diferente; as primeiras delas tiveram sua origem nos anos 60 sob
influência da Igreja Católica e da atuação de grupos, principalmente de
pesquisadores, que assumiam na época compromisso com o desenvolvimento de
projetos de assistência aos movimentos populares (KAROL, 2000, p.31). Esse
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quadro se amplia na década de 70, quando o regime ditatorial vigente no Brasil
naquele período se torna alvo de resistências e oposição pela população.
Neste mesmo período surgem novas organizações, agora comprometidas
com esse projeto de resistência e de denúncia das questões ligadas àquele regime.
O termo não-governamental aqui assume um papel principalmente político, de
negação e oposição ao que seria governamental e, portanto, representado pelo
regime ditatorial no qual o país se encontrava (ACIOLI, 2007, p.38).
Já na década de 1980, há um aumento considerável do número de ONGs no
Brasil, sendo favorecido principalmente pelo período de abertura política pelo
qual o país passava nesse momento e pelo avanço dos movimentos sociais.
Podemos então observar que a atuação dessas organizações continuou ainda muito
marcada pela parceria e a assistência a esses movimentos.
Sua principal característica nesta fase era o apoio ao fortalecimento dos
movimentos populares e o auxílio na estruturação desses movimentos, muitas
vezes desenvolvendo trabalhos de educação política dos grupos organizados.
Mas é somente no inicio dos anos 90 que podemos verificar a proliferação
das ONGs por todos os cantos do país (ABONG, 2005), com os mais distintos
objetivos e práticas. Neste momento elas assumem um papel de protagonistas no
cenário mundial, devido principalmente ao avanço das políticas neoliberais,
através das quais elas foram colocadas em evidência. Um marco nesse período e
que impulsionou a popularização das ONGs foi a realização da ECO-92 na cidade
do Rio de Janeiro. O evento reuniu organizações governamentais e não-
governamentais do mundo todo e teve a cobertura massiva da imprensa (SILVA,
2006, p.51).
A década de 1990 é extremamente importante para que possamos
compreender a atuação das ONGs hoje, pois foi neste período que houve uma
mudança radical no perfil da maioria dessas organizações. Boa parte daquelas
ONGs que possuíam um caráter militante, cidadão e com um perfil ideológico e
político bem definido passam a se colocar à frente dos movimentos sociais,
tornando-se muitas vezes instituições autônomas e desvinculadas desses
movimentos, por outro lado, elas passam a conviver com novas organizações,
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denominadas terceiro setor e fundadas por empresas ou empresários (GOHN,
2005, p.89).
Esse novo quadro nos mostra que é ainda na década de 90 que as ONGs
começam a estreitar seus laços com a iniciativa privada através da busca pelo
financiamento de seus projetos dentro dos chamados programas de
responsabilidade social, que se trata na verdade de uma espécie de cidadania
corporativa. Torna-se cada vez mais clara a mudança radical que estas
organizações sofreram neste período, criando novas táticas de sobrevivência,
rompendo com os ideais de sua origem e reestruturando suas estratégias e suas
formas de atuar.
O que vivenciamos hoje nos permite afirmar que as ONGs aprenderam a
mudar sua “personalidade” de acordo com a conjuntura. Se a conjuntura política
em um campo de atuação se torna desfavorável, imediatamente são capazes de
uma readaptação para que busquem alternativas melhores de parcerias e
financiamentos. Resultado disso é um evidente abandono de seus ideais
norteadores, pela busca incessante de reproduzir-se a qualquer custo.
As ONGs atualmente aparecem como entidades capazes de muitas vezes
resolver elas mesmas as demandas sociais, buscando auxilio na iniciativa privada
e até mesmo no Estado. Esse caráter assistencialista das ONGs no Brasil muitas
vezes faz reproduzir o discuros neoliberal de que o Estado é inoperante e ausente
no atendimento das necessidades da população. Elas se apresentam como
independentes do Estado e melhor capacitadas a realizar o atendimento às
questões sociais da população. Resultado disso é a evidente desmobilização da
população, tendo em vista que suas questões são muitas vezes atendidas e o
Estado deixa de ser alvo de cobranças e reivindicações populares. Contudo, não
podemos deixar de alertar para o fato de que essas organizações possuem uma
práxis comprometida com os interesses do Estado (KAROL, 2000, p.40).
Seu caráter não-lucrativo também vem sendo bastante questionado, pois o
volume de recursos por elas utilizado é algo bastante significativo, sendo boa
parte destes recursos proveniente de fonte estatal. Por outro lado, a setorialização
da sua atuação e a expressiva utilização de trabalho voluntário, indica uma grande
redução de gastos que o Estado obtém incentivando o atendimento a questões
sociais através das organizações privadas. É importante ainda ressaltar que os
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benefícios que o Estado provia se aplicavam ao conjunto da sociedade, já a
atuação das ONGs, por mais que atenda às necessidades da população, o faz de
forma precária e segmentada
4
(ACIOLI, 2007).
O que se pode observar neste processo é que ao mesmo tempo em que este
setor emprega uma quantidade cada vez maior de trabalhadores, com destaque
para os especializados, por outro lado, o voluntarismo e o apelo solidário ainda
constituem grande parte deste campo, principalmente entre as organizações
filantrópicas ligadas as igrejas ou centro espíritas. Fica claro, portanto, que essa
combinação de fatores contribui bastante para a ampliação do projeto neoliberal
do Estado.
O quadro até agora apresentado nos mostra o quão polêmico e complexo é o
universo das ONGs. Encontramos uma diversidade muito grande de organizações,
de práticas, de projetos e também de territórios por elas criados. Devemos,
portanto, ressaltar que estas organizações apresentam uma enorme fluidez, se
movendo de uma área a outra, direcionando suas práticas para os mais variados
grupos, alterando muitas vezes profundamente suas políticas e projetos.
A dinâmica destas organizações se realiza através de sua inserção territorial.
Sua mobilidade espacial, a dinâmica das relações que estabelece, suas interações
com outras organizações e também com as comunidades, se territorializam e
definem o território em que atuam, portanto se torna evidente que estas
organizações, ao realizarem seus projetos, terminam por articular várias escalas
espaciais. O fator determinante para tal está na sua adequação às variações da
intermediação que representam entre as instituições que as financiam e os grupos
que atendem.
Atualmente, como já dissemos, as fontes financiadoras de projetos das
ONGs tem dado maior importância àqueles voltados para a sustentabilidade e o
desenvolvimento das coletividades. Esse tipo de ação tem tido muito destaque na
mídia, principalmente nos últimos anos, quando as críticas aos modelos de
4
Não pretendemos de forma alguma sugerir uma noção revisionista do Estado neoliberal como a
solução para os problemas e carências sociais. Contudo, procuramos sim reafirmar que a partir do
neoliberalismo surge o discurso de redução do Estado, no qual este deixa de atender cada vez mais
as demandas sociais, que já não eram efetivadas de forma satisfatória. Na nossa visão, o Estado
capitalista é uma instituição produzida pela sociedade, mas que coloca acima dela e possui a
função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe.
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desenvolvimento se mostram cada vez mais incisivas sob a alegação
principalmente destes modelos terem se mostrado ineficazes. Os investimentos do
governo e de agências internacionais em projetos voltados para o meio ambiente e
desenvolvimento tem sido maiores, o que provoca uma procura maior por parte
das ONGs em desenvolver estudos e planejamentos voltados para essa área de
interesse.
Essa busca por desenvolver-se não é uma realidade recente e sempre esteve
relacionada ao desejo de uma melhor qualidade de vida para os indivíduos e
coletividades. Contudo, a que desenvolvimento nos referimos ao tratar desse
assunto? Qual seria o desenvolvimento desejado?
O que comumente chamamos de desenvolvimento vem de uma construção
ocidental, que atualmente tem sido muito criticada por seu caráter estritamente
econômico, que despreza a diversidade cultural e que tem se mostrado na maior
parte das vezes ineficaz na busca da melhoria da qualidade de vida da população.
O modelo de desenvolvimento moderno possui um forte apelo ideológico, de tal
forma que o mundo entrou numa busca desenfreada por modernizar-se e
desenvolver-se.
Por outro lado, devemos atentar para as contradições existentes nesse
pensamento, pois indo a fundo ao problema observamos que desde cedo o
desenvolvimento foi criado para diferenciar, separando as sociedades mais
“avançadas”, as sociedades ocidentais, a partir de então chamadas de
desenvolvidas, das demais sociedades. Cria-se uma clara hierarquia entre
sociedades ditas “modernas” e as sociedades onde ainda era necessário percorrer
diversas etapas para crescer e se modernizar. Todo esse cenário possibilitou o
surgimento de uma verdadeira ideologia do desenvolvimento (VERHELST, 1992,
p.25). Não podemos, contudo, deixar de destacar que mesmo nos centros
desenvolvidos encontramos espaços de subdesenvolvimento e o contrário também
é verdadeiro.
Com a expansão do Ocidente em todos os cantos do mundo, podemos
verificar também a sua inserção não só material, mas também no imaginário social
através da crença nas vantagens do modelo ocidental. O mundo se modificava a
passos largos e as organizações públicas e privadas aproveitaram esse clima
positivo para produzir diversos programas de desenvolvimento, aplicáveis às mais
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diversas coletividades por todo o mundo. O principal problema deste tipo de
atuação está na distância existente entre a escala de produção desses programas e
a escala de aplicação dos mesmos, pois essa distância não favorece a apreensão da
realidade local. Com isso, a aplicação dos programas de desenvolvimento às
comunidades não se mostra tão efetiva e as ONGs assumem o papel de tentar
mediar esse encontro.
Por outro lado, temos que procurar entender o que se esconde por trás
desses projetos de desenvolvimento trazidos pelas ONGs. Retomamos então uma
de nossas questões; será que esses projetos de desenvolvimento, da maneira como
costumam ser implementados são capazes de atender as reais necessidades dessas
coletividades?
Mesmo com a atuação das ONGs mais próximas ao local, os resultados
obtidos através de sua intervenção tem se mostrado ineficazes em atender as
necessidades das coletividades envolvidas, muito menos na busca pelo seu
desenvolvimento e da melhoria da qualidade de vida. Parte disso se deve à forma
como são construídos seus projetos de desenvolvimento, que geralmente partem
de fora dos limites da coletividade e são implantados em diversos locais,
desconsiderando seus mais variados modos de vida. Outro fator importante esta na
constituição das redes sociais que estas ONGs integram, através das quais
terminam reproduzindo no local a heteronomia contida nas mais diversas escalas
que elas perpassam. A população raramente é consultada sobre suas reais
necessidades e anseios, mesmo quando existe o discurso da participação. O que
vemos então é uma situação desoladora, onde há uma crescente carência por parte
das populações e o surgimento de uma consciência de tutelados, ou seja, de um
sentimento de imobilismo, no qual as coletividades perdem a dimensão de sua
força para lutar por si mesmas, deixando às ONGs este papel.
Através dessa ideia de participação, a população é convidada a opinar sobre
os caminhos a serem tomados em determinados projetos. Mas será que a
participação da população no processo de aplicação dos projetos é capaz de
dissolver as diferenças de concepções de desenvolvimento entre as ONGs e a
coletividade atendida? E como fazer então para que essas coletividades consigam
ter mais autonomia neste processo? Novamente nos colocamos diante dessas
questões tão relevantes para este estudo.
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Através dos projetos de desenvolvimento as ONGs buscam inserir as
coletividades atendidas no mercado, para que possam assim, se desenvolver.
Contudo, devemos ressaltar que a dimensão econômica não pode ser a única
privilegiada quando da adoção de políticas de desenvolvimento.
Este tem sido então o foco central das críticas direcionadas à atuação das
ONGs, sua negligência para com a cultura local, com os modos de vida, as
aspirações e a realidade existente. A reação das ONGs a essas críticas pode ser
vista nos últimos anos através da incorporação do discurso de “resgate das
culturas locais”, que nada mais é do que uma reinvenção de cultura local, agora
adaptada ao mercado.
A nossa preocupação com as diversas dimensões do real neste estudo não
nos deixa ficar omissos diante do enfoque que tem sido dado à idéia de cultura
recentemente. O que podemos ver é um reducionismo brutal da cultura a um mero
adereço folclórico. A cultura não pode de forma alguma ser entendida apenas
como algo exótico e reproduzível. A cultura para nós admite uma dimensão muito
mais profunda, ela incorpora o modo de vida de cada coletividade.
Sendo assim, se torna imprescindível para nós entender a diversidade
cultural existente, buscando romper com paradigmas estabelecidos, com certezas
até então inquestionáveis, para que assim, cada coletividade possa ter o controle
de seu próprio destino, para que cada coletividade possa ser o sujeito de seu
próprio desenvolvimento.
Esse movimento nos servirá como um norte no nosso estudo, mas sabemos
ser uma tarefa de difícil resolução, visto que teremos que romper com algumas
verdades absolutas e atravessar obstáculos até então intransponíveis. Será
certamente um desafio para nós e para cada geógrafo que por essa trilha se
aventurar.
Algumas referências teóricas nos possibilitaram vislumbrar caminhos
possíveis para seguirmos, como a elaboração que Edgar Morin (1999) faz com seu
paradigma da complexidade. É com Morin que partimos para um (re)aprender a
caminhar, pensando dialeticamente e rompendo com o reducionismo característico
do pensamento moderno, buscando cada vez mais as interações complexas do
real, que se apresenta de forma multidimensional.
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Já em Cornelius Castoriadis (1987; 1992b) encontramos o princípio da
autonomia individual e coletiva de uma sociedade. É através deste pensamento
que buscamos oferecer a cada coletividade a possibilidade de decidir sobre os
caminhos a seguir, definindo suas próprias necessidades, os meios sobre os quais
atingirão seus desejos e os fins a que se destinam. O princípio da autonomia nos é
muito caro neste estudo, pois é através dele que podemos confrontar a atuação das
ONGs por seu caráter assistencialista, que retira das coletividades o papel de
sujeito no processo de desenvolvimento e transformação para melhor de suas
próprias vidas.
Fica claro, portanto, que buscamos neste estudo a construção da noção de
desenvolvimento de forma aberta, ampla e não de um novo modelo de
desenvolvimento. Nosso objetivo final é contribuir para que através da autonomia
individual e coletiva, a sociedade consiga alcançar o desenvolvimento como um
meio à melhoria da qualidade de vida dos povos e com isso romper com a idéia de
desenvolvimento somente como redução da pobreza.
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2.
O projeto de desenvolvimento Ocidental e sua relação com
as ações das ONGs
Diariamente somos convidados a assistir as ações quase que ‘miraculosas’
de organizações não-governamentais que muitas vezes se colocam como
propulsoras do desenvolvimento nas comunidades. Contudo, precisamos
ultrapassar as lentes midiáticas e analisar como esse suposto desenvolvimento
propagandeado aos quatro ventos, transforma a vida nas comunidades, suas causas
e principalmente as consequências deste processo.
Entendemos que o modelo de desenvolvimento à maneira ocidental, vem
sendo muito criticado e muitas vezes invalidado como possibilidade de busca da
melhoria da qualidade de vida das sociedades. Por outro lado, o modelo
civilizacional que dele se apropriou gerando uma homogeneização cultural, hoje
se encontra em crise, o que nos permite identificar a produção de resistências e de
diferentes especialidades nas mais diversas escalas.
Buscamos então através da compreensão do surgimento do fenômeno ONG,
sua trajetória e suas ações hodiernas, entender como diferentes noções de
desenvolvimento podem interferir nas relações de uma coletividade. Para tal,
neste capítulo tentaremos apreender o processo de ocidentalização do mundo e
através dele, a construção da noção de desenvolvimento que hoje conhecemos. Ao
confrontar as diferentes visões do desenvolvimento, centraremos nosso olhar para
as idiossincrasias existentes no conflito entre o desenvolvimento sob lentes do
projeto da modernidade, implementado pelas ONGs em sua atuação, e os
desenvolvimentos desejados por cada coletividade, utilizando para isso os
exemplos apresentados.
Diante desse quadro não podemos nos furtar à tarefa de localizar o leitor
acerca do nosso entendimento do termo ONG. Para isso se faz necessário um
retorno a uma temática mais ampla, de relação entre o Estado e a Sociedade Civil,
para que possamos então apreender o real significado deste termo e sua trajetória
até os dias de hoje. Somente através desse movimento e regressando ao processo
de ocidentalização e suas resultantes é que poderemos alcançar nosso objetivo de
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entender como as diferentes noções de desenvolvimento podem interferir nas
relações de uma coletividade.
Sabemos que o Ocidente possui em seu seio as idéias de modernização e
desenvolvimento, tendo buscado desde os primórdios de sua existência, a
expansão destas para todo o mundo. O ocidente cria a modernidade e com ela o
desenvolvimento passa a ser o fim desejado por todos.
Inicialmente temos um período que Castoriadis (1992a, p.19) chama de “a
emergência do Ocidente”, onde presenciamos mudanças tanto materiais, como a
“auto-instituição da protoburguesia [e] a construção e o crescimento das cidades
novas”, quando mudanças intelectuais, artísticas, mentais, enfim, do modo de vida
dos indivíduos.
Já no período que segue às duas guerras mundiais, se apresenta bastante
turbulento, um período de questionamentos e de rupturas, não só com as formas
políticas estabelecidas, mas também de contestação das formas de propriedade,
bem como “a organização da economia, a família, a situação das mulheres e as
relações entre sexos, a educação e o estatuto dos jovens” (CASTORIADIS, loc.
cit.). Segundo Castoriadis (ibid., p. 21) “o caráter essencial da época encontra-se
na oposição e tensão entre as duas significações nucleares: autonomia individual e
social de um lado, expansão limitada do “domínio racional” do outro. A expressão
afetiva dessa tensão acha-se na manifestação e na persistência do conflito social e
ideológico”.
O capitalismo assume então a sua forma mais pérfida. Ele se expande, se
mundializa, se mostra um processo histórico capaz de transformar a vida social,
cultural, economia e política dos indivíduos e das sociedades. Transforma e recria
a significação imaginária social sob a égide da racionalidade e ao mesmo tempo
em que unifica o mundo sob seus pés, leva também à diferenciação. Como nos
mostra Rua, se modificam também os valores básicos da sociedade, uma vez que
o capitalismo deixa de ser apenas um modo de produção e passa a se mostrar um
verdadeiro modelo civilizatório. Segundo o autor, “tal expansão tem se dado com
a intenção de integrar cada vez mais espaços e pessoas como produtores e
consumidores, em uma espécie de espiral capitalista que difunde especialmente o
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modo de agir, pensar e produzir que algumas regiões do Ocidente já haviam
desenvolvido” (RUA, 2007, p. 151).
Os valores da civilização e do progresso tomam conta do mundo, e diante
disso, a colonização bruta não é mais um fator essencial à dominação ocidental. O
que observamos foi o surgimento de um neocolonialismo, pois como aponta
Latouche (1994, p. 26)
esta apoteose do Ocidente não é mais a presença real de um poder humilhante por
sua brutalidade e sua arrogância. Ela se apóia nos poderes simbólicos cuja
dominação abstrata é mais insidiosa, mas por isso mesmo menos contestável. Esses
novos agentes da dominação sob a ciência, a técnica, a economia e o imaginário
social sobre o qual elas repousam: os valores do progresso.
O processo de ocidentalização do mundo se mostra bastante complexo, ele
se expande de forma desigual e ainda esbarra nas realidades existentes em cada
canto do mundo. Ele encontra as mais variadas formas de civilização, de cultura,
diferentes tipos de pensar, de agir, de se organizar, que reagem de formas
diferenciadas ao processo histórico da ocidentalização. “No âmbito dessa
pluralidade de formas civilizatórias revela-se a pluralidade de formas de
ocidentalidade” (IANNI, 1993, p. 78).
O Ocidente consegue ‘reproduzir-se’ no imaginário de cada sociedade e de
cada indivíduo, o mundo almeja ocidentalizar-se e para isso desenvolve uma
espécie de mimetismo, no qual se busca ter o mesmo poder do Ocidente, e a
ciência e a técnica passam a ser vistas como os vetores para modernização, para o
desenvolvimento. Como sublinhado por Latouche (1994), a dimensão econômica
assume papel de protagonista no cenário mundial, passa a ser um fim em si. Mas
há algo mais poderoso nesse processo, quando entendemos que
o modelo de desenvolvimento moderno é interiorizado. Os dirigentes do Terceiro
Mundo pensam em fundar sobre o desenvolvimento o futuro de seus países, o
imaginário popular sonha chegar ao conforto e a abundância, graças a ele. O anzol
é ideológico, tanto quanto econômico. Não se pode escolher, é preciso ir pra frente
(CHESNEAUX, 1996, p. 69 et seq.).
Neste contexto, o mundo todo entra numa busca desenfreada pelo
desenvolvimento e este se coloca como
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a aspiração ao modelo de consumo ocidental, ao poder da magia dos Brancos, ao
status relacionado a esse modo de vida. O meio privilegiado de realizar esta
aspiração é, evidentemente, a técnica. Aspirar ao desenvolvimento quer dizer
comungar com a fé na ciência e reverenciar a técnica, mas também reivindicar por
conta própria a ocidentalização, visando ser mais ocidentalizado para se
ocidentalizar mais (LATOUCHE, op. cit., p. 29).
Necessidades e desejos são criados, são ‘exportados’ pelo Ocidente que dita
a forma de comportamento, de pensar, tudo passa a ser comandado e padronizado.
A invasão cultural de que falou Latouche denomina de forma invisível o
imaginário social, como uma doação ou como um destino a ser cumprido pelo
Ocidente na busca de encaminhar as outras sociedades rumo ao desenvolvimento.
E assim, o Ocidente triunfa, “sente-se perfeitamente que o termo dessa expansão
dominadora não é uma fraternidade universal. Não é um triunfo da humanidade,
mas é um triunfo sobre a humanidade” (LATOUCHE, 1994, p. 33).
As diferenças culturais são transformadas em desigualdades capazes de
legitimar o discurso hierarquizador do Ocidente em relação aos não-ocidentais. As
sociedades passam a ser qualificadas positiva ou negativamente de acordo com
sua inserção no modelo ocidental e o discurso de sua superioridade se torna
presente mediante canais variados, não só pelas relações econômicas, mas
também através da educação, das formas políticas e das leis, como nos aponta Rua
(2007).
Além do discurso, podemos observar também o poder como forma de
manutenção da relação entre o Ocidente e o Resto, de que fala Hall (2002). Este
autor afirma que as idéias de Oeste e o Resto, não só são produzidas, mas também
produzem conhecimento, formas de agir, de pensar, de organizar as relações de
poder globais. Com base nas suas idéias Oeste e Resto, são formados padrões de
pensamento e de linguagem. Hall então retoma Foucault quando este conclui que
not only is discourse always implicated in power; discourse is one of the “systems”
through which power circulates. The knowledge which a discourse produces
constitutes a kind of power, exercised over those who are “know” in a particular
way will be subject (i.e.,subjected) to it. This is always a power-relation. (See
Foucault 1980:201) Those who produce the discourse also have the power to make
it true – i.e., to enforce its validity, its scientific status
5
(Hall, 2002, p. 63, tradução
nossa).
5
not only is discourse always implicated in power; discourse is one of the “systems” through
which power circulates. The knowledge which a discourse produces constitutes a kind of power,
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Importante contribuição para o entendimento desta análise é oferecida por
Eduard Said (2002), ao afirmar que existe uma relação de complementaridade
entre o Ocidente e o que ele denomina Oriente. Para o autor ambos são
construções, tendo na verdade a existência de um, implicações na existência de
outro, ou seja, não só o Ocidente cria o Oriente, mas também o Oriente ajuda a
definir o Ocidente. O autor traz a noção de discurso de Foucault para argumentar
que o oriente foi produzido e manejado de forma política, sociológica, ideológica,
científica e imaginativa. Said nos permite então enxergar a complexidade inerente
a este processo, uma vez que fica clara a não existência de uma separação plena
de um e de outro, o que vemos é cada vez mais a coexistência de características
ocidentais e orientais, num mesmo espaço.
É claro que nesse jogo, não podemos desprezar as assimetrias de poder
existentes, o Ocidente exerce sua dominação sobre as outras sociedades e o faz
através da hegemonia. Portanto, como afirma Said, “the Orient was Orientalized
not only because it was discovered to be “Oriental” in all those ways considered
common-place by an average nineteenth-century European, but also because it
could be – that is, submitted to being – made Oriental” (SAID, 2002, p. 49 et
seq.).
A forma encontrada para o exercício desta hegemonia foi o consenso, que
vem da base gramsciana, segundo a qual a sociedade civil seria responsável pela
profusão de idéias através de suas instituições, contudo essas idéias não se
propagam através da dominação, mas pelo consenso. Ele enfatiza que, quando
tratamos do discurso e da troca cultural, o que normalmente circula não é a
“verdade”, mas uma representação (ibid., p.53).
Rua (2007, p.163) retoma Gramsci para afirmar que a hegemonia do
Ocidente abre espaço para contradiscursos em nível planetário, o que ele nos
chama atenção é o fato de surgirem, nos mais variados cantos do mundo, formas
de resistência ao discurso hegemônico. Essa hegemonia e as formas de resistência
a ela empreendidas conformam visões de mundo diferenciadas, que são projetadas
no espaço de cada sociedade. Há sempre um conflito entre as representações do
exercised over those who are “know” in a particular way will be subject (i.e.,subjected) to it. This
is always a power-relation. (See Foucault 1980:201) Those who produce the discourse also have
the power to make it true – i.e., to enforce its validity, its scientific status.
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espaço projetadas pelas potências hegemônicas, e os espaços de representação
contra-hegemônicos. Mas essas representações muitas vezes são traduzidas como
algo natural e inevitável, tornando-se concreta e manipulando o vivido.
No caso do desenvolvimento sob o modelo Ocidental, há discursos que
reproduzem a idéia de que este se mostra inevitável para que as sociedades
alcancem seus desejos de mudança para melhor. Esse modelo de desenvolvimento
então se torna algo natural e desejável. Mas qual desenvolvimento se busca? Pois
mesmo nos centros desenvolvidos, encontramos situações de
subdesenvolvimento, e vice-versa. Não há uma pureza nestas idéias. A questão
que se coloca então é: o que vem a ser esse desenvolvimento, o que se esconde
por trás dessa cortina de fumaça?
“Desenvolvimento pressupõe mudança, transformação – e uma
transformação positiva, desejada ao desejável” (SOUZA, 1996, p. 5).
Encontramo-nos todos na espera de alcançar esse desenvolvimento. Mas desde
cedo ele foi criado para diferenciar, para separar as sociedades onde havia o
progresso, a expansão, que caracterizavam as sociedades ocidentais, a partir de
então chamadas desenvolvidas, das demais sociedades, onde era necessário
recuperar o atraso ajudando a percorrer as etapas de crescimento, ou como aponta
Castoriadis, entrar na fase do “crescimento auto-sustentado”. Tornou-se óbvio que
o Ocidente, a partir de então, passa a ser um modelo para se espelhar e, segundo
Verhelst (1992, p. 25), foi “essa concepção que resultou numa verdadeira
ideologia do desenvolvimento”. O mundo desejava, agora, ocidentalizar-se, e para
isso, era preciso que toda a sua forma de existência se modificasse para se ajustar
ao modelo ocidental (CASTORIADIS, 1987, p. 141).
O papel das ONGs neste contexto sempre foi bastante claro, sua atuação
junto às coletividades onde mantêm seus projetos procurou ampliar o acesso
destas aos direitos fundamentais, como educação, saúde e alimentação, buscando
desta maneira um desenvolvimento para essas coletividades. Mas ao tratarmos do
fenômeno ONG não podemos deixar de analisar seu real conteúdo, seu
surgimento, sua trajetória, para que possamos então compreender a dimensão do
fenômeno hoje.
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2.1.
Da relação entre o Estado e a Sociedade Civil: o surgimento de um
novo sujeito
O mundo se modificara, o Terceiro Mundo recebe cada dia mais a
presença do Ocidente, seja sob a forma de importação de tecnologias ou mesmo
no imaginário social, criando cada vez mais a crença nas vantagens do modelo
ocidental. Todo esse clima positivo contagia as organizações públicas e privadas,
contudo o local permanece “distante” dessa realidade, o acesso dos programas de
desenvolvimento às comunidades não se mostra tão eficaz, pois a escala de
produção destes não favorece a apreensão da realidade local. As ONGs procuram
entao assumir este papel, o de se colocar como representantes a levar ao local as
idéias e práticas ocidentais para a modernização (VERHELST, 1992).
Mas o que de fato se esconde por trás do termo ONG? Como dissemos
anteriormente, a temática em questão é nosso foco de estudo há alguns anos e,
portanto iremos reapresentar aqui algumas idéias discutidas anteriormente em
Acioli (2007), ao tratar das proposições teóricas que hoje se evidenciam acerca da
estrutura da sociedade contemporânea e que deram origem às noções de terceiro
setor e de organização não-governamental.
Encontramos nos debates recentes uma clara tentativa de resignificação na
concepção do papel do Estado, sob a qual este perde a sua responsabilidade no
atendimento das necessidades básicas da sociedade, passando então esta função a
um “novo” setor, de âmbito privado que seria o que hoje se coloca como o
“terceiro setor”. Um dos principais caminhos encontrados para a disseminação
deste pensamento foi a adoção, de forma bastante utilitarista, das noções de
solidariedade, de voluntarismo, de generosidade entre outros valores que tomam
destaque na atual conjuntura da sociedade e através dos quais buscam dar
proteção às classes oprimidas. A cada movimento da totalidade, modificam,
modificam-se todas as outras variáveis, como também os símbolos e com isso
podemos dizer que a cada transformação na sociedade há a necessidade de uma
renovação das ideologias e dos universos simbólicos (SANTOS, 1999, p. 103) e é
exatamente este processo que explica essa tomada de novos valores, que temos
observado desde o surgimento do neoliberalismo. O caráter ideológico com que
são colocados estes valores permite “criar uma cultura de autoculpa pelas mazelas
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que afetam a população e de auto-ajuda e ajuda mútua para seu enfrentamento”
(MONTAÑO, 2005, p. 23).
Não podemos deixar de apontar que desta forma, o terceiro setor emerge
como um grande auxiliar no processo de expansão da ofensiva neoliberal de
reestruturação do capital. Fruto de toda essa mudança podemos identificar a
emergência de novas formas de associativismo nas últimas décadas e que têm
trazido à tona a idéia de uma “sociedade civil organizada”, e muitas vezes em
oposição à ação do mercado e do Estado. Montaño afirma que diante da
hegemonia burguesa no âmbito estatal, no mercado e no espaço de produção, a
sociedade civil se apresenta como o lócus das lutas sociais e de classe na disputa
por poder, contudo essa articulação das lutas num projeto de classe dificulta a
busca da hegemonia burguesa na sociedade civil o que, por outro lado se fortalece
quando há o
isolamento (mediante a “setorialização” de esferas da sociedade) e a mistificação
de uma sociedade civil (definida como “terceiro setor”), “popular”, homogênea e
sem contradições de classes (que em conjunto buscaria o “bem-comum”) e em
oposição ao Estado (tido como “primeiro setor” supostamente burocrático,
ineficiente) e ao mercado (“segundo setor”, orientado pela procura do lucro) (ibid.,
p. 16).
Para que possamos construir um instrumental teórico capaz de servir de
base para tal análise é necessário que façamos um breve estudo da configuração
da atual sociedade, buscando apontar a relação existente entre o processo atual de
reestruturação do capital, o neoliberalismo e o conceito de terceiro setor. Para
isso, encontramos nossa base teórica principalmente em Antonio Gramsci, teórico
de filiação marxista, que o tempo todo norteia nosso entendimento acerca da
sociedade e seus conflitos.
Como sabemos, o capitalismo possui contradições internas e vive
constantes períodos de crise e reestruturação. Como nos mostra Ianni (1993, p. 55;
59),
a rigor, a história do capitalismo pode ser vista como a história da mundialização,
da globalização do mundo. Um processo histórico, de larga duração, com ciclos de
expansão e retração, ruptura e reorientação [...] visto assim, em perspectiva
histórica ampla, o capitalismo é um modo de produção material e espiritual, um
processo civilizatório revolucionando continuamente as condições de vida e
trabalho, os modos de ser de indivíduos e coletividades, em todos os cantos do
mundo.
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Devido à crise inerente ao capitalismo frequentemente são requisitadas
novas maneiras de sobrevivência e o projeto neoliberal surgiu como uma
estratégia hegemônica de reagir a esta crise e ainda ampliar os níveis de
acumulação do capital, tendo desdobramentos em alguns campos. Num primeiro
momento podemos verificar o “combate ao trabalho”, o que fica explícito quando
observamos os constantes ataques às leis e políticas trabalhistas e mais ainda às
lutas sindicais e da esquerda, incluindo neste último a forte ofensiva no sentido de
cooptação destes movimentos. Temos ainda a “reestruturação produtiva” e a
“reforma do Estado”, que já vínhamos falando (MONTAÑO, 2005, p. 26).
Ao analisarmos a sociedade civil na concepção com que comumente vem
sendo utilizada, podemos dizer que esta noção surge entre outras razões, com base
numa apropriação distorcida da sociedade civil em Gramsci. No Brasil,
contribuem também para este processo a proximidade com o marxismo, de
militantes e simpatizantes de outrora e que hoje estão fortemente comprometidos
com o projeto neoliberal, mas de maneira não tão inocente ainda justificam suas
ações e discursos sobre a base de seu passado na esquerda brasileira.
A idéia com que tem sido concebida a sociedade civil passa pelo
entendimento de uma suposta homogeneidade no seu interior, através da qual se
desconsidera a existência de classes sociais distintas como um processo central
para o entendimento da dinâmica social, direcionando o foco para a busca de
consensos. Esse processo em nenhum momento abre a possibilidade de um
rompimento com o status quo, pois uma vez que incorporada a idéia de uma
homogeneidade no interior da sociedade, este modelo termina por minimizar os
conflitos sociais e com isso reproduzindo e garantindo a manutenção da
hegemonia da democracia liberal.
Por outro lado, sabemos que de forma alguma podemos descartar a
existência dessas classes sociais com seus interesses conflitantes, e sendo assim,
podemos afirmar que a busca destes consensos jamais pode dar conta dos
conflitos mais profundos existentes no interior da sociedade. Mesmo diante da
atuação das ONGs, vemos um dinstanciamento entre a necessidade mais imediata
da população, que geralmente é atendida por estas organizações, e os reais
problemas que atingem essas populações, que tem sua raiz muito mais profunda.
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Argumentos não faltam de todas as partes para defender a atuação das
ONGs. Alguns partem do pressuposto que se o Estado não vem cumprindo o
papel de melhorar a qualidade de vida da população, as ONGs podem e devem
fazê-lo. Outros preferem apelar para o individualismo contido no discurso de que
se cada um fizer a sua parte o mundo se torna um lugar melhor e com isso
podemos ter como consequencia o surgimento de um discurso na tentativa de
propor não mais a mobilização como um caminho para a busca da dissolução dos
problemas sociais, mas a busca de medidas assistencialistas e compensatórias.
Vários são os exemplos de organizações, governamentais ou não, que se ocupam
da difusão deste pensamento no interior da sociedade, e muitas vezes o fazem de
uma forma bastante subliminar e por trás de uma lente progressista.
A idéia chave deste pensamento é a generosidade, sentimento este que vem
sendo utilizado como um artifício para confundir a visualização do que esta por
trás dos problemas que por ora se apresentam de maneira superficial. A falta de
acesso à educação em uma coletividade, por exemplo, pode ser facilmente
resolvida através da generosidade de voluntários, membros de ONGs ou não, mas
que se proponham a ensinar esses indivíduos. Por outro lado, nem de longe esta
ação vai dar àqueles indivíduos a solução de seu problema real, que está na forma
como a sociedade se organiza, o problema é estrutural. Mais ainda, essas ações
empreendem uma espécie de alienação sob a qual os indivíduos atendidos, deixam
nas mãos de seus “tutores”, o papel de lutar por seus direitos. Contudo, não
podemos desprezar totalmente a possibilidade de ganhos concretos que as ações
imediatas podem alcançar, se tomadas como um meio de atingir um horizonte
mais amplo de transformações.
Inúmeras são as formas utilizadas para difusão deste tipo de ideologia. Ela
não se propaga apenas através da mídia, mas por todas as formas que o poder
hegemônico na sociedade encontra e facilitado ainda mais pela rapidez e fluidez
com que as informações se realizam atualmente.
As ONGs, pela sua atuação, também auxiliam na manutenção da hegemonia
burguesa e para que possamos visualizar este processo basta observar que com o
surgimento do neoliberalismo houve uma multiplicação de possibilidades para a
construção de projetos por parte das ONGs. A década de 1990 vivenciou um
momento de refluxo dos movimentos sociais, e neste período as ONGs deixam a
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sombra desses movimentos e passam ao papel de protagonistas na sociedade.
Mesmo se reafirmarmos a existência de um campo mais progressista no qual se
insere as ONGs que teriam como objetivo buscar um aprofundamento da
democracia, tornando-a mais participativa e assim atuando na construção de
novos espaços públicos, ainda assim precisamos concordar com Zarpelon (2003,
p. 25) quando afirma que “não há ONG contestatória do status quo exatamente
porque sua sobrevivência depende da doão de organismos comprometidos com
o status quo”.
Exatamente este comprometimento das ONGs nos faz retomar Álvaro
Bianchi (2002) quando o autor ressalta que as atividades produtivas, incorporadas
pelas ONGs, são muitas vezes orientadas pela lógica do mercado e amparadas na
ação do Estado. Sua análise destaca três pontos principais, nos quais se podem
identificar dificuldades teóricas do modelo apresentado.
Um deles aponta que “o estabelecimento de nítidas fronteiras entre o
Estado, mercado e sociedade civil e a afirmação de uma contraposição entre esta
última e os ‘subsistemas administrativo e econômico’, impede a compreensão da
interpenetração dessas três esferas no mundo contemporâneo” (BIANCHI, 2002,
p. 4).
Recorremos também à Gramsci (1991) quando nos mostra que uma
distinção entre sociedade civil e Estado pode ser feita com caráter analítico e
não orgânico. Para o autor a sociedade política (Estado) e a sociedade civil
formam um par conceitual marcado pela unidade na diversidade. O Estado é
considerado por autores como Marx, Engels e Gramsci como tendo sua gênese
nas relações de produção que se instalam na sociedade, em outras palavras, o
Estado é a materialização do modo de produção. Neste sentido, a relação entre
Estado e sociedade civil é entendida como uma relação ente dois planos
indissociáveis, mas portadores de contradições.
Outra crítica está no fato de que “a afirmação de uma sociedade civil
homogênea e portadora dos impulsos positivos para a renovação democrática da
sociedade deixa escapar os conflitos e antagonismos existentes no interior dessa
sociedade civil” (BIANCHI, 2002, p. 4). Este é um elemento central existente na
formulação de Gramsci e ignorado pelos autores do terceiro setor, pois para
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Gramsci a sociedade civil possui um caráter claramente classista, ela faz parte “do
Estado (lato sensu) que por sua vez é permeado pelos interesses e conflitos das
classes sociais conformadas na estrutura econômica (MONTAÑO, 2005, p. 126).
O que pretendemos destacar então é que não podemos deixar de perceber na
sociedade civil a existência de interesses tanto da classe dominante, quanto os
interesses das classes subordinadas. No caso das classes dominantes podemos
dizer que detém os meios de produção, comunicação e ainda do aparelho do
Estado, através do qual reproduzem sua ideologia e assim garantem o controle
hegemônico. Já as classes dominadas estão em constante oposição à classe
burguesa numa busca incessante por meios mais adequados a sua própria
reprodução.
Neste sentido, a sociedade pode ser vista como possuindo no seu interior,
antagonismos entre classes sociais diferenciadas,
mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos
colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se
necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a
amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido
da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado
(ENGELS, 1978, p. 191).
Por último Bianchi destaca que “definida a sociedade civil como mola
democrática da sociedade e não como lugar do conflito político e ideológico, seu
‘projeto utópico’ aparece como utopia que a atual relação de forças na sociedade
civil permitira realizar, daí seu caráter autolimitado ser, precisamente, a limitação
da ordem atual” (BIANCHI, 2002, p. 4). Com isso, reafirmamos que qualquer
ação empreendida com base nesta suposta homogeneidade, se faz de forma
parcial, ideologicamente carregada de subjetividade e comprometida com a
manutenção da dinâmica social hegemônica atual.
Partindo dessas críticas de Álvaro Bianchi, seguimos então em busca do
entendimento da real dimensão do que o termo sociedade civil em Gramsci, de
maneira que incorpore nesta análise os conflitos existentes no seu interior e nos
permita apontar contribuições para o debate acerca da atuação das ONGs.
Para Gramsci “o Estado não é concebível mais que como forma concreta de
um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção”
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(GRAMSCI, 2002, p. 36) ele afirma que a relação existente entre a superestrutura
(Estado capitalista) e a estrutura econômica expressa uma totalidade.
Nesta démarche a sociedade política é reconhecida como o Estado no
sentido restrito, o qual exerce mecanismos de coerção sobre a sociedade a fim de
manter sua hegemonia, e o faz através do aparelho governamental. Mas Gramsci
não deixa de sublinhar que o Estado não pode ser visto apenas com seu caráter
repressivo e coercitivo, “a construção do consenso também encontra lugar neste
Estado” (BIANCHI, 2002, p. 5) e “exatamente porque Gramsci tem a clara
compreensão de que a estrutura da sociedade é fortemente determinada por idéias
e valores, a luta pela hegemonia também encerra em si um debate sobre a
cultura”
6
.
Ao apontar em sua obra a sociedade política e a sociedade civil como
situadas na superestrutura e, portanto, fora da estrutura econômica, Gramsci foi
muitas vezes interpretado de maneira equivocada por inúmeros autores que
partem desta análise e terminam propondo uma separação entre a sociedade
política, o mercado e a sociedade civil. Muitas dessas leituras acabam por fundar
concepções distorcidas da realidade social e serviram como base para inúmeros
discursos, como no caso do terceiro setor.
Para Gramsci, na noção geral de Estado entram elementos que também são
comuns à noção de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado
= sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção)
(GRAMSCI, 1991, p. 149). Podemos dizer então que o Estado passa a ser
entendido como um conjunto, do qual fazem parte tanto a sociedade política,
quanto a sociedade civil, sendo esta a noção de Estado ampliado que Gramsci
elabora. O que o autor propõe é uma ampliação do conceito de Estado, no qual
seja incorporada tanto a noção marxiana de Estado-coerção, como também uma
dimensão que tenha a função de hegemonia e de dominação de um grupo
dominante sobre o conjunto da sociedade, realizada através de aparelhos privados
como a escola, as igrejas, associações e, podemos acrescentar aqui, as ONGs. Esta
outra dimensão é a sociedade civil definida por Gramsci como sendo um
6
Trecho capturado em dezembro de 2007 do seguinte artigo: Simionatto, Ivete. O social e o
político no pensamento de Gramsci no sitio <www.artnet.com.br/gramsci/arquiv41.htm>
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40
“conjunto dos organismos vulgarmente chamados ‘privados’” (GRAMSCI, apud
BIANCHI, 2005, p. 17).
Ao tratar deste assunto Gramsci ressalta a função que os organismos da
sociedade civil desempenham na busca da articulação de consensos entre classes
dominantes e subalternas e que criam condições favoráveis à manutenção da
hegemonia dos grupos dominantes. Para ser efetivo esse processo, portanto,
precisa ser realizado de forma que as massas não o vejam como uma realização
vantajosa para uma minoria. A partir de então se enfatiza a idéia da construção de
“uma vanguarda de trabalho ativo e responsável. O elemento ‘voluntariedade’ na
iniciativa não poderia ser estimulado de outro modo pelas mais amplas multidões”
(GRAMSCI, 1991, p. 89).
Neste sentido, contrariamente aos autores do “terceiro setor”, a categoria de
sociedade civil em Gramsci supõe sua articulação com outras categorias centrais: a
hegemonia de classe e a revolução. Pensar o conceito gramsciano de sociedade
civil desconhecendo sua articulação com estas questões representa um claro
reducionismo e esvaziamento da estrutura do seu pensamento (MONTAÑO, 2005,
p. 127).
Através do controle do Estado, dos instrumentos hegemônicos, do controle
da informação, e principalmente do controle do poder econômico da sociedade,
uma minoria dominante consegue produzir uma ideologia no sentido de
deslegitimar o Estado, valorizando as ações setorializadas, localizadas e
imediatistas. Com isso, à medida que estas construções ideológicas se reproduzem
e são absorvidas pelo senso comum, as classes dominantes conseguem legitimar
sua hegemonia, obtendo o controle social e político.
Sabemos que a formação histórica do Estado tem sua configuração alterada
de acordo com as relações que são estabelecidas na sociedade, o que significa que
o Estado é parte dessa sociedade, gerador de uma ideologia hegemônica e que
elabora polítcas que atendam às necessidade de uma minoria dominante. Desde o
década de 1990 vemos no Brasil o surgimento e avanço do projeto neoliberal que
se caracteriza, entre outras coisas, por uma redução do Estado no sentido de
provocar a ausência de políticas para algumas comunidades e setores da
sociedade, produzindo o discurso no sentido de incentivar a “autonomia” destas
comunidades em relação ao Estado e propondo uma não obrigatoriedade de
financiamento de infra-estrutura e de políticas sociais. Conforme afirma Ianni
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(1993, p. 59) “o ideário do neoliberalismo adquire predomínio mundial, como
ideologia e prática, modo de compreender e agir, forma de gestão do mercado e
poder político, concepção do público privado, ordenação da sociedade e visão do
mundo”.
Quando nos reportamos à atuação das ONGs, podemos observar que em
alguns países, como no caso do Brasil, grande parte dos investimentos
conseguidos pelas mesmas para implementação de seus projetos vem de
organização e fundações internacionais.
A questão central é apontar que desta relação de troca, ou até mesmo de
dependência das ONGs para com as fontes financiadoras, resulta que o papel que
realizam em momento algum possui o caráter de questionar a ordem vigente da
sociedade. Muito pelo contrário, seus objetivos passam pela tentativa de
humanizar o capitalismo, e tornar os conflitos sociais mais brandos, sem, contudo,
alterar a estrutura social para isso.
Um exemplo deste processo pode ser visto através dos projetos assitencias
que as ONGs implementam, pois estes minimizam os problemas enfrentados pelas
coletividades atendidas, contudo não aprofundam suas questões para que se
alcance a base de todos os problemas que os aflige, que está no modelo
civilizatório que (re)produz os conflitos e diferenciasções de classe. A ação das
ONGs aparecem como paliativos, como retalhos que procuram melhorar a
aparência de uma trama que não possui mais conserto. Aos problemas locais,
procuram soluções que na maior parte das vezes não ultrapassam a dimensão
econômica e nem mesmo conseguem superar o aprisionamento na escala local.
O que vemos é que
ao abandonar-se a constituição de redes públicas permanentes capazes de oferecer
bens e serviços justamente onde eles são mais necessários, ficam evidentes a
fragmentação das ações e o seu caráter emergencial e provisório. Substituem-se
programas nacionais e regionais por iniciativas “locais” incapazes de dar uma
cobertura suficiente e cujo impacto é praticamente nulo quando se trata de grandes
contingentes populacionais em situação de pobreza e/ou “exclusão”. Caímos no
reino do “minimalismo”, onde pequenas soluções ad hoc são mostradas como
grandes exemplos pelo governo e pela mídia (MONTAÑO, 2005, p. 12).
As ONGs que atuam nestas comunidades deixam escapar a forma
segmentada de sua atuação quando vemos que seus projetos são na maior parte
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das vezes para grupos específicos, como apontamos em Acioli (2007) ao utilizar o
exemplo dos projetos voltados à alfabetização de adultos. Reafirmamos ser
inegável a necessidade e a relevância de termos a população toda alfabetizada,
ninguém com o mínimo de razão crítica pode ser contra esse argumento, mas o
questionamento se encontra na maneira como é conduzido o processo. Raramente
se discutem as razões pelas quais estes indivíduos permaneceram até a fase adulta
sem acesso à educação, ainda que a mais básica. Ao Estado não interessa que este
pensamento seja levado ao conjunto da sociedade, pois mantendo a população sob
condições limitadas de acesso à educação, garante que desta não emirjam
indivíduos questionadores, que venham a por em xeque a hegemonia social
vigente. Tampouco interessa às ONGs, que retiram destes paliativos seu sustento
e principalmente sua existência. Outros inúmeros exemplos poderiam ser aqui
utilizados, como o caso de algumas bandeiras da questão de gênero, de etnia, entre
outras, onde o caráter classista da sociedade se dissolve dando lugar as lutas e
conquistas territoriais.
À sociedade civil então é acrescentada uma nova dimensão produtiva,
responsável pela produção de bens e serviços sociais e que serve de base para as
atuais noções de “terceiro setor” e de “organizações não-governamentais”. Este
processo se inicia com o surgimento do neoliberalismo e sua política do “Estado
mínimo”, que se torna parte do discurso das ONGs a partir do momento que estas
entram em cena para ocupar o “vazio” deixado pelo Estado nessas áreas
(BIANCHI, 2002). Contudo, é importante mais uma vez ressaltar que a atuação de
algumas destas organizações efetivamente consegue suprir essa ausência, mas não
mais para o conjunto da sociedade, como seria o papel do Estado, e sim para
algumas áreas e algumas comunidades. Sua forma de atuação se mostra bastante
setorizada e segmentada.
O debate sobre a forma de atuação das ONGs é um tema bastante polêmico
e que se encontra em evidência nos debates acadêmicos e científicos hodiernos.
Participam deste debate as mais variadas correntes de pensamento, através das
quais podemos enxergar o emaranhado de posições acerca da atuação destas
organizações, de onde emergem inúmeras críticas, questionamentos e possíveis
caminhos para esse relevante processo.
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43
Uma das principais críticas efetuadas contra as ONGs está na utilização de
recursos públicos para sua manutenção. Por outro lado, sempre surgem
argumentos em sua defesa como o que encontramos em Waldemar Boff
2
,
destacado por Zarpelon (2003, p. 10) quando diz que “tanto faz a origem do
dinheiro, se ele viabiliza as questões públicas dos excluídos. Este é o nosso
ponto”. O que este quadro deixa escapar é mais uma vez a face neoliberal que o
Estado assumiu, deixando que a visão imediatista, da realização de uma
necessidade urgente, supere qualquer questionamento mais profundo. Vemos
neste processo um aumento dos financiamentos públicos a projetos e ações que
antes eram da sua responsabilidade.
Essa visão imediatista das políticas destas organizações termina
negligenciando uma construção ideológica que garanta uma mudança na base dos
problemas em longo prazo. E seu caráter assistencialista é outro ponto relevante
de críticas, uma vez que pode ser diretamente associado à desmobilização dos
movimentos sociais, bem como à diminuição de sua capacidade reivindicativa.
Isso se deve ao papel que as ONGs cumprem, tanto em atender algumas das
demandas desses grupos, quanto em se colocar como intermediárias no processo
de “negociação” com o Estado.
A partir de toda essa complexidade de análises apresentadas pelos mais
diversos autores, que apontam diferenças nas concepções de terceiro setor e da
sociedade civil, podemos a partir de agora, buscar entender como se efetivou a
trajetória das organizações não-governamentais no mundo e no Brasil e sua
relação com as políticas de desenvolvimento.
Desde sua primeira aparição nos anos 40, as ONGs sempre tiveram uma
relação muito próxima com os projetos de desenvolvimento a maneira Ocidental.
Mas por sua proximidade com as populações locais, na década de 60 as ONGs
receberam um destaque levando às comunidades, os projetos concebidos nos mais
distintos cantos do mundo. Eram projetos de desenvolvimento, que muitas vezes
sequer conheciam a realidade das comunidades para a qual foram criados.
Portanto o que vemos, neste período, foi a colaboração das ONGs com a ideologia
dominante, onde seu papel passa pela ajuda aos países do Terceiro Mundo a se
modernizarem. Tratava-se claramente de uma visão exógena de desenvolvimento
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que era transplantada para as comunidades, sem sequer serem discutidas as reais
necessidades das mesmas.
Os resultados deste tipo de intervenção não se mostraram muito benéficos,
pois até hoje são poucos os exemplos que podemos apontar onde se conseguiu
romper com a miséria, construindo algum tipo de desenvolvimento socialmente
justo e de melhoria da qualidade de vida das coletividades envolvidas. O que
comumente observamos é uma contínua e crescente carência por parte das
populações, no atendimento das expectativas para o seu bem-estar e, muitas vezes,
o surgimento de um sentimento de imobilismo, de alienação, na qual as
coletividades só conseguem se enxergar sob a tutela desses programas, apagando
de si mesmos a força para lutar com suas próprias armas pelos seus desejos.
Esse modelo de ação implementado nos anos 60, de cooperação para o
desenvolvimento, tem se mostrado bastante fracassado. Neste período questões
como a dos limites naturais ao crescimento e o preço alto que as gerações futuras
pagariam por isso, tomam lugar importante nos debates da sociedade. Mas o
capitalismo soube responder rapidamente a estes questionamentos. Incorporou o
discurso ambientalista de tal forma que este passou a fazer parte até do marketing
de grandes empresas poluidoras. E ainda nos dias atuais podemos observar a
utilização dessa propaganda pelas mais variadas instituições, que desenvolvem
projetos com o rótulo da “sustentabilidade”.
Após enfrentar as críticas ao modelo de desenvolvimento até então
construído pelo Ocidente, as duas décadas seguintes trouxeram uma renovação. A
teoria da dependência surge como uma visão de que a diferenciação existente
entre as sociedades, na verdade não seria fruto de um atraso histórico a ser
derrubado, mas sim de uma dependência entre as diferentes sociedades. Esta
sendo criada pelo longo processo de exploração dos países do sul, tidos como
subdesenvolvidos, pelos países do norte, os desenvolvidos.
Quanto às ONGs, neste período surgem novas organizações, não mais
ocupadas com uma “cooperação técnica” ou em oferecer “ajuda para o
desenvolvimento sócio-econômico” sublinhado por Verhelst (1992, p. 31), agora
“a reflexão se faz em termos de parceria e de solidariedade em relação aos povos
do Terceiro Mundo, em sua luta pela independência política e sócio-econômica”.
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45
No Brasil esse processo se refletiu no comprometimento que as ONGs tiveram em
resistir, ao lado do povo, ao regime ditatorial daquele período, assumindo um
papel centralmente político.
A partir de então, o caráter puramente assistencial, passa a dividir espaço
com análises das necessidades concretas das coletividades. Não podemos
desprezar alguns resultados positivos extraídos desta mudança como no caso da
‘conscientização’ segundo a “pedagogia dos oprimidos”, de Paulo Freire, que
permitiu às comunidades refletirem sobre as reais causas de sua situação
socioeconômica. Contudo, este caráter supostamente libertador, esbarra na
maioria das vezes na atuação fragmentária destas organizações que terminam por
promover resultados paliativos. Sendo assim, a estrutura de poder estabelecida
termina sem grandes abalos.
Com o período de abertura política vivenciado na década de 80 há um
aumento do número de ONGs ligadas à parceria e assistência aos movimentos
sociais. Podemos dizer que neste momento “as ONGs eram suportes para a ação
dos movimentos. Eram ONGs cidadãs, movimentalistas, militantes. A face
movimentalista encobria, nas próprias ONGs, sua face, produtiva, geradora de
inovações no campo de alternativas às necessidades e demandas sociais” (GOHN,
2005, p. 89).
Contudo, como mostrado por Verhelst (1992, p. 35), há outra lacuna
deixada pelas ONGs, quando observamos o distanciamento que geralmente
apresentam de suas ações com as culturas locais. Mesmo quando suas ações para
o desenvolvimento são constituídas com base em análise das necessidades do
local, mesmo com a participação de indivíduos de dentro da comunidade na
efetivação dos projetos, ainda assim trata-se de uma visão “de fora”, ou seja, em
última análise, alguém determina quais são os seus problemas ou como resolvê-
los.
Por outro lado, essa imposição de um modelo de desenvolvimento sofre
constante resistência por parte das comunidades. Trata-se de
uma resistência não apenas levantada contra o processo de desenvolvimento
apoiado na dependência e no mimetismo, mas tamm contra as análises e
estratégias à maneira ocidental, que lhes são propostas pelos defensores da tese
libertadora centrada na conscientização, na organização popular e no
desenvolvimento econômico autocentrado (VERHELST, loc. cit.).
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46
Podemos dizer agora que as noções de desenvolvimento que conhecemos
até hoje estão submetidas a concepções monodimensionais da realidade social,
uma vez que se apóiam apenas na sua dimensão econômica, modernizadora
(SOUZA, 1997). Sublinhamos também que estas não conseguiram atingir os
objetivos para os quais foram gestadas, deixando as coletividades mergulhadas na
“eterna” esperança de transformação em seu modo de vida. O projeto da
modernidade fracassou ao tentar, pelo menos no discurso, resolver as mazelas das
sociedades ditas subdesenvolvidas, ou em vias de desenvolvimento, como agora
são conhecidas.
Por outro lado, não podemos fechar os olhos para o fato de que as duras
críticas dispensadas ao projeto da modernidade atingem também a idéia de
desenvolvimento. Contudo, como dito anteriormente, “desenvolvimento
pressupõe mudança, transformação – e uma transformação positiva, desejada ao
desejável” (SOUZA, 1996, p. 5). Caberia então abandonar totalmente o termo
desenvolvimento? Acreditamos que não, que ganhamos mais ao buscar romper
com as visões hegemônicas até hoje, abrindo a possibilidade de (re)construção do
desenvolvimento sob a perspectiva de uma transformação realmente positiva e
desejada pelas coletividades. Como fazê-lo? Não sabemos, porém como diz uma
conhecida passagem do poeta espanhol Antonio Machado, “caminhante, não há
caminho, faz-se o caminho andar”, portanto, tentaremos, como já o fazem alguns
autores, dar os primeiros passos.
2.2
(Re)pensando o desenvolvimento para além do capital
Analisando a conjuntura política e social do final da década de 1980 e início
da década de 1990 vemos que ela provocou profundas alterações na dinâmica das
organizações não-governamentais e favoreceu a separação entre as ONGs e os
movimentos sociais da época, surgindo assim organizações mais articuladas a
empresas e fundações. Estas deixam para trás os movimentos sociais, tomando a
dianteira dos processos políticos da época e atuando agora de forma autônoma,
desenvolvendo seus próprios projetos para o atendimento das necessidades das
coletividades. Boa parte do financiamento conseguido por elas está relacionada
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47
neste momento aos chamados programas de responsabilidade social,
desenvolvidos pela iniciativa privada.
Outra mudança pela qual estas organizações passaram, a partir dos anos 90,
vem da necessidade que apresentaram em reestruturar suas estratégias e suas
formas de atuar.
A não rigidez em suas formulações possibilita-lhes mudar quando a conjuntura
política se torna desfavorável [...] Se a conjuntura política mudou, o discurso e as
práticas também mudam rapidamente. O perigo desta postura é o abandono de
alguns princípios que deveriam ser os pilares norteadores das ações (GOHN, 2005,
p. 99 et seq.).
Se por um lado há uma defesa sempre constante da atuação das ONGs com
base no discurso de inoperância do Estado, por outro lado, por trás desse discurso
se esconde a funcionalidade que estas ideologias têm em legitimar e ampliar a
ofensiva neoliberal. Todo esse panorama também nos mostra que cada vez mais o
local resiste à ocidentalização e vemos então a explosão de diversos conflitos
sócio-espaciais de rejeição/reação (ACIOLI et al., 2009, p. 2). O combate à
homogeneização do mundo passa, portanto, pela valorização da escala local.
Mesmo tendo a modernidade, com seu projeto expansionista, tentado
reduzir o mundo a uma massa uniforme e passiva às suas idéias, o que
presenciamos é uma crescente rejeição ao projeto da modernidade, que carrega
para o mesmo fim a idéia de desenvolvimento. Rua (2007) nos atenta para o fato
de que a visão do desenvolvimento como modernização é restaurada pelo
neoliberalismo, mantendo uma perspectiva positiva de progresso, mas agora
diretamente ligada à esfera financeira. O autor destaca ainda a continuidade do
desenvolvimento enquanto processo natural que a cada momento se recria,
destruindo o velho, num constante movimento de declínio e destruição.
As coletividades não aceitam passivamente a heteronomia contida neste
projeto, nem mesmo a banalização de suas idéias e comportamentos. Diante disso,
como aponta Chesneaux (1996, p. 59) “o local resiste, ele representa não
sobrevivências passageiras, mas âncoras singulares, vivas, a partir das quais outra
qualidade de desenvolvimento permanece possível”.
Se olharmos com mais profundidade para os projetos de desenvolvimento
que são implementados, chegamos a conclusão que muito pouco mudou desde as
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últimas décadas. No caso das ONGs, boa parte de suas ações continua
comprometida com a manutenção da ordem estabelecida, ou seja, muito pouco, ou
podemos até mesmo afirmar que quase nada foi feito para que se alcançasse uma
mudança social real.
Anthony Bebbington (2004, p. 727) argumenta que é inegável que a
presença de ONGs traz significados, formas de exercício de poder, recursos,
conceitos de modernidade e toda uma gama de influências sobre o lugar, logo a
presença de uma ONG torna-se parte da produção e reprodução do local. Por
outro lado, essa atuação tem resultados diferentes em cada local de atuação, pois a
realidade existente é diferenciada, o que contribui para uma desigualdade nos
padrões de desenvolvimento. Não podemos deixar de ressaltar, que as
desigualdades da presença de atividade das ONGs no espaço estão muito
relacionadas às redes sociais e de interação dessas organizações. E sob o rigor de
uma sociedade heterônoma, essas organizações terminam reproduzindo no local, a
ordem hegemônica nas diversas escalas que ela perpassa.
Ainda que existam características comuns a quase todas as ONGs, podemos
afirmar que existe uma variedade muito grande de tipos de organizações sob este
rótulo de não-governamental, tendo apenas como ponto explicitamente comum,
seu caráter não-governamental e sem fins lucrativos.
Grande parte delas atua da mesma forma, usando os mesmos métodos, os mesmos
recursos e, principalmente, chegando aos mesmos resultados políticos e práticos,
ainda que suas intenções sejam diferentes. Desta forma, entendemos que a
heterogeneidade existente no campo das organizações não-governamentais não
impede a existência de congruências nos resultados políticos e práticos obtidos
através de sua intervenção na área de políticas sociais (ZARPELON, 2003, p. 7).
O que queremos dizer com isso é que qualquer tipo de análise feita sobre
essas organizações, não deve ser considerada como uma análise de totalidade das
ONGs existentes. Quando falamos das políticas de desenvolvimento
empreendidas por estas organizações e ainda de sua postura perante a estrutura
social vigente, não pretendemos de forma alguma indicar que não existam
exceções neste campo. É preciso ter isso claro daqui em diante.
Atualmente, boa parte das ONGs trabalha com projetos de desenvolvimento
local, ou seja, seu foco de atuação é na escala mais próxima da comunidade e dos
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indivíduos. Suas ações se constroem muitas vezes somente na tentativa de inserir
as comunidades atendidas no mercado, de forma que estas consigam produzir e se
reproduzir. Raramente a comunidade é consultada sobre seus desejos e
necessidades, na maior parte das vezes, os mesmos projetos são transplantados e
aplicados em diversos locais, com histórias, culturas e modos de vida
diferenciados.
Quando vemos nos últimos anos o enorme número de críticas sendo
lançadas sobre as ONGs, podemos observar que boa parte se refere a não-
incorporação da cultura como elemento central para as suas análises e projetos de
desenvolvimento. Isso fez com que essas organizações se adaptassem e criassem
uma espécie de compromisso com a “manutenção” ou mesmo com o “resgate” das
“culturas locais” através de seus projetos.
Contudo, chamamos atenção para o fato de que o que eles chamam de
cultura, não passa de uma versão reducionista do que nós conhecemos e
denominamos cultura. Não podemos ver a cultura como algo exótico e folclórico,
que englobe apenas tradições como música, danças e a arte, mas sim como algo
mais amplo, que incorpore desde os conhecimentos técnicos, a mentalidade, até as
atividades produtoras. Enfim, tudo que diz respeito à organização de uma
coletividade. E o maior perigo desse simplismo reside no fato de que as políticas
de desenvolvimento empreendidas pelas ONGs muitas vezes ameaçam a
integridade cultural dessas coletividades (VERHELST, 1992).
Ao invés de negar as diferenças culturais, ou mesmo de destruí-las através
de um processo de aculturação, devemos buscar cada vez mais a
autodeterminação de cada coletividade enquanto sujeitos de seus próprios
desenvolvimentos. Isso só se tornará real a partir do ponto em que nós consigamos
romper com as certezas a que vínhamos sendo submetidos, como mostra Morin
(1999), devemos buscar o diálogo entre a certeza e a incerteza, a separação e a
inseparabilidade, evitar, pois, apreender a realidade através de uma relação
simplificadora de causa/efeito. Como ele diz, realizar uma verdadeira reforma
paradigmática.
Diante dessa necessidade, o paradigma da complexidade, de que fala Morin,
se coloca como uma base sobre a qual precisamos (re)aprender a caminhar.
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Marcelo Souza (1997) ressalta a importância desse pensamento quando diz que
devemos mergulhar no paradigma da complexidade para expulsar a teoria do
desenvolvimento de seu pseudoparaíso de certezas mumificadas. Com isso, fica
clara a premência de pensar dialeticamente, ou seja, romper “com os raciocínios
lógicos e reducionistas, incorporando um enfoque que busca interações
complexas”.
Sabemos que num sistema tão complexo como a sociedade, jamais podemos
extrair análises que dão conta do todo, pois este se mostra por demais complexo e
“cada sociedade cria uma trama de significações para representar a si mesma e o
mundo, trama essa que, por sua vez, estabelece o caldo de cultura onde são
socializados os indivíduos” (SOUZA, 1997, p. 78). Podemos somente apreender
algumas interelações entre as dimensões desse todo, mas que serão sempre uma
representação do real e nunca o real complexo como se apresenta. Ainda assim,
não podemos aceitar que os problemas sociais tenham uma monocausalidade nas
suas explicações.
Como então pensar o desenvolvimento através dessa lente da
complexidade? A partir do momento em que entendemos a sociedade na sua
complexidade real, com diversas dimensões interdependentes já conseguimos dar
o primeiro passo. Como nos aponta Souza (1996, p. 18)
se se quiser ultrapassar os parcialismos analíticos ancorados na Epistemologia
positivista, produtores de visões monodimensionais do desenvolvimento – p.ex. o
conceito de “desenvolvimento econômico” -, é necessário compreender a sociedade
como um todo indivisível, constituído não de “instâncias”, “estruturas” ou
“sistemas” autônomos (economia, política...), mas de dimensões interdependentes,
onde cada dimensão, embora distinta das demais, não pode ter sua própria
dinâmica apreendida se a desconectarmos, “por pragmatismo”, das demais.
A multidimensionalidade analítica se coloca então, como uma espécie de
pré-requisito para qualquer reflexão sobre o desenvolvimento e a cultura é uma
das dimensões que vem enriquecer este debate. Como vínhamos falando, a cultura
se mostra um elemento de destaque neste debate se analisarmos, por exemplo, que
cada sociedade, incorpora os elementos culturais do Ocidente à sua maneira, de
acordo com suas características e seu grau de aculturação ao modelo ocidental.
É importante lembrar que vivemos mergulhados numa realidade que se
apresenta de forma complexa e contraditória, sendo assim inexiste em qualquer
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parte do mundo, atualmente, uma pureza cultural, sem contaminações e
influências de fora, do outro. Podemos então dizer que as sociedades, mesmo as
ocidentais, vivem sob uma pluralidade cultural, na qual participam da dinâmica
cultural mundial. Esta por sua vez, se mostra bastante incorporada à modernidade
ocidental.
Por outro lado, é possível encontrar focos de resistência ao processo
uniformizador da cultura Ocidental. O modelo de globalização empreendido leva
também à diferenciação, e esta sugere que as diferenças existentes entre o
Ocidente e não-ocidente podem ceder espaço para que algumas sociedades
consigam certa autonomia para construir seus próprios modelos de sociedade.
Neste sentido, as ONGs têm tido um papel importante para os agentes do
desenvolvimento capitalista, uma vez que na maior parte das vezes atuam de
forma a levar às coletividades envolvidas em seus projetos, um modelo
monocultural, que mesmo quando considera as formas culturais existentes, o faz
sob uma ótica reducionista. A cultura sendo vista como um mero adereço e não
como um processo histórico amplo.
O momento em que vivemos, de crise e crítica da modalidade, favoreceu o
surgimento das novas perspectivas como na visão dos defensores da pós-
modernidade e do pós-desenvolvimento. O discurso da pós-modernidade nos
trouxe uma dimensão mais subjetiva da realidade, fez com que a dinâmica social
que antes era vista como centralmente econômica, agora passasse a incorporar a
dimensão cultural. Contudo, o faz de uma forma superficial, sem considerar as
conexões existentes entre as diversas dimensões do real. Muitas vezes os vemos
cair em discursos localistas ou simplistas na sua análise, sendo o local um fim de
si.
Esta nova perspectiva que se desenha, por outro lado nos toma atenção por
possibilitar que, rompendo com reducionismos e simplismos, consigamos
incorporar a subjetividade inerente ao todo social e perceber o papel relevante das
dimensões sociais, dentre elas a cultura, na produção e reprodução social. A escala
de análise pode nos indicar um caminho para esta abertura. Assim como Souza
(1996), acreditamos que a dimensão espacial se mostra relevante tanto do ponto
de vista teórico-conceitual, quando do ponto de vista metodológico neste debate
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sobre o desenvolvimento. A multiescalaridade dos processos não pode ser
negligenciada em nossos estudos.
Na relação desenvolvidos/subdesenvolvidos a questão da escala se mostra
um elemento diferenciador. Se focarmos somente na escala global, corremos o
risco de enxergar apenas a disparidade existente entre as sociedades ditas
desenvolvidas e as chamadas subdesenvolvidas. Por outro lado, se o foco for o
local, podemos recair no erro de não perceber as determinações do global no local,
ou mesmo de enxergar esse local como algo homogêneo, livre de contradições.
Mas se finalmente conseguirmos romper com essa dicotomia local/global,
poderemos avançar para outras escalas e perceber as interelações existentes. As
sociedades desenvolvidas não estão livres de conflitos e contradições,
encontramos nelas a coexistência do subdesenvolvimento e o mesmo se pode
dizer das sociedades ditas subdesenvolvidas. É um jogo de poder que se mostra
cada vez dinâmico, esse conflito é o que move as sociedades. Não podemos,
portanto, negligenciar o papel diferenciador da incorporação de diversas escalas
para que possamos nos aproximar um pouco mais do real, embora sabendo que
nunca poderemos dar conta do todo.
Sabemos agora que é preciso ter uma visão multiescalar e multidimensional
deste processo para que possamos ter uma aproximação maior com a realidade.
Podemos dizer também que as diferenças existentes entre as diversas sociedades
constituem a diversidade que move o Ocidente. Mas como fazer para romper com
essa hegemonia do modelo de desenvolvimento Ocidental? É também nesta
diferença que encontramos um dos possíveis caminhos. Como romper com a
submissão ao modelo hegemônico numa sociedade heterônoma? Um importante
passo nos é indicado por Castoriadis quando trata da autonomia individual e
coletiva numa sociedade.
A autonomia, segundo o autor, se apresenta como um processo através do
qual os indivíduos e as coletividades são capazes de decidir sobre seus desejos,
necessidades, meios de se atingir esses desejos e os fins para os quais são
construídos. Com este pensamento em mente e olhando para a forma de atuação
da maioria das ONGs, percebemos que suas ações muitas vezes criam uma
barreira à autonomia das coletividades. Empreendendo políticas assistencialistas,
essas organizações terminam criando uma mentalidade de tutela em relação às
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comunidades atendidas e estas por sua vez, muitas vezes, se acomodam e não
vêem na sua autonomia um caminho para a resolução de seus problemas. Ficam a
espera de alguém que interceda por elas.
É consenso que algo precisa ser mudado, mas acreditamos também ser
possível alcançar o desenvolvimento de uma forma ampla, um desenvolvimento
que não seja fechado, mas que se construa a partir das expectativas e desejos das
coletividades. Que estas possam ter autonomia para construir o seu próprio
desenvolvimento, sem que tenham que abrir mão de sua cultura, de seu modo de
vida. O projeto de desenvolvimento como comumente vem sendo apresentado
pelas ONGs, de redução da pobreza, já se mostra bastante ineficaz para tal fim.
Como aponta Bebbington (2004, p. 741), devemos, pois, recuperar o significado
de desenvolvimento como justiça social.
Souza (1996, p. 9), ressalta que o desenvolvimento fora do âmbito do
desenvolvimento capitalista, deve ser visto de forma aberta, rompendo com a
heteronomia embutida como uma de suas dimensões, no projeto da modernidade.
Diante disso, não pretendemos e muito menos podemos definir aqui, um conceito
de desenvolvimento que seja livre das vicissitudes do projeto da modernidade. O
que podemos fazer é apontar caminhos para que cada coletividade consiga
aprimorar os seus meios de atingir a mudança desejada. A autonomia de que fala
Castoriadis, nos parece o horizonte deste caminho. Sem ela, tudo termina se
perdendo em um discurso de participação que não necessariamente conduzirá por
novos caminhos.
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3.
Os conflitos entre as diferentes concepções de
desenvolvimento
3.1.
Crise/crítica do desenvolvimento à maneira das ONGs
Ao se criticar a visão puramente econômica com a qual o desenvolvimento
vem sendo abordado majoritariamente na sociedade, não podemos também
negligenciar que “a melhoria das condições materiais dos pobres, além de ser um
objetivo humanitário em si, pode, justamente, propiciar a base para outros
avanços, no que tange à consciência de direitos e à organização política”
(SOUZA, 2006, p.27). A questão que se apresenta é a de não ter essa dimensão
material como um fim em si, mas justamente a de se romper com este tipo de
reducionismo, ampliando nossa capacidade de reflexão e de entendimento da
complexidade do todo social. Sem essa percepção, nada pode ser transformado
radicalmente.
A complexidade de realidade social que presenciamos atualmente nos
permite dizer que cada coletividade possui seu funcionamento próprio, sua
organização e cultura próprias, embora não descoladas do todo social. Todavia
não se pode ignorar que sob a alegação de seu desenvolvimento, surgem cada dia
mais discursos e práticas na maior parte das vezes insuficientes para a
concretização de uma mudança para melhor no modo de vida dessas
coletividades. O que temos visto nos últimos anos foi a construção e
implementação de projetos de desenvolvimento construídos como modelos
prontos e reproduzíveis indiscriminadamente em todos os cantos, negligenciando
a diversidade de realidades.
Em um diálogo entre Edgar Morin e o líder indígena Marcos Terena,
realizado no ano de 1999 na Universidade de Brasília, encontramos uma
contribuição para essa discussão quando Morin afirma que “a sustentabilidade do
desenvolvimento nacional é um problema de enfrentamento do paradoxo
global/local que anima o mundo contemporâneo (...). Não há respostas prontas
para este enorme desafio epistemológico” (MORIN, 2008, p. 11). Ficamos ainda
com as considerações apresentadas neste diálogo, que ao tratar da complexa
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55
organização entre os saberes globais e os saberes locais, traz perspectivas
interessantes para nossa reflexão.
Marcos Terena relembra a diversidade de tribos indígenas que existiam no
Brasil quando de sua descoberta e aponta que é
este universo que foi matado para dar lugar ao desenvolvimento (...). Quando
morre um povo indígena, ele nunca mais volta. Desaparece uma civilização, sua
língua que nunca mais é redescoberta. Porque a nossa comunicação era falar com
as pessoas. Contar para as pessoas, como eu quero contar agora, a beleza da
filosofia indígena, do conhecimento e da ciência indígena” (MORIN, 2008, p. 17
et seq.).
O líder indígena argumenta que toda a sabedoria indígena foi transformada
em mercadoria e seu povo considerado não desenvolvido, uma vez que para o
homem branco seu conhecimento religioso e espiritual não tem valor. Contudo,
defende que não ser desenvolvido – se referindo ao desenvolvimento econômico
da sociedade capitalista – “não significa ser culturalmente ou intelectualmente
pobre [o problema foi que] o homem branco não sabia compreender a linguagem
do homem indígena” (ibid., p.23).
Vemos então a destruição dos saberes locais, da cultura local para dar
lugar ao desenvolvimento, e esse é apenas mais um dos inúmeros exemplos de
conflitos criados mediante a sobreposição da ordem global sobre a ordem local. O
desenvolvimento na modernidade vem cada vez mais cumprindo esse papel.
Morin nos chama atenção para as dificuldades encontradas pelas
coletividades para que consigam sair da submissão às determinações globais como
sendo, principalmente, a falta de poder e de consciência da necessidade de se
organizarem (ibid., p.25). E ao criticar o desenvolvimento à maneira ocidental
afirma que
cada civilização possui um pensamento racional, empírico, técnico e, também,
um saber simbólico, mitológico e mágico. Em cada civilização há sabedoria e
superstições. A nossa civilização é assim, ainda que muitos pensem que não, que
a razão, a ciência, a técnica não são mitológicas. Com efeito, atribuir à técnica, à
ciência a missão providencial de solução de todos os problemas humanos – esta
era a idéia até a metade deste século – era uma idéia mitológica. Havia uma
mitologia do progresso como uma lei da história que, automaticamente, iria
produzir o melhor e cada vez melhor. Hoje sabemos que não é assim (ibid., p. 27
et seq.).
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Trazendo esse conflito para o campo de atuação das ONGs, buscamos
apreender o embate existente entre a concepção de desenvolvimento empreendida
pelas ONGs através de seus projetos e o desenvolvimento desejado pelas
coletividades atendidas. Sabemos que na maior parte das vezes as ONGs criam
táticas de ação para fazer com que as coletividades atendidas possam ter suas
demandas solucionadas, mas o que se vê é que seus projetos de desenvolvimento
são comumente estruturados fora dos limites das coletividades e aplicados sem
que se tenha a dimensão do que de fato cada indivíduo e cada coletividade deseja.
Mesmo que todo esse sentimento seja tomado em consideração via participação da
coletividade na implementação do projeto, ainda assim seria apenas adequeção de
uma visão exógena do desenvolvimento local.
Utilizaremos para isso o exemplo do Instituto Sete Capitães e da ONG
Grupo de desenvolvimento tecnológico harmonia, homem, habitas – ONG 3Hs. A
escolha dessas organizações se deu por possuírem práticas voltadas à busca pelo
desenvolvimento dos territórios onde atuam e por se apresentarem como
mediadoras entre a coletividade e o Estado.
Fundado em setembro de 2009, o Instituto Sete Capitães é uma associação
sem fins lucrativos, que segundo seus fundadores possui a finalidade de executar
atividades relacionadas à preservação, a pesquisa e a valorização do patrimônio
histórico, cultural e ambiental da região Norte e Noroeste Fluminense, bem como
estimular o desenvolvimento do turismo ecológico e cultural na região. Tem como
presidente o empresário Renato Abreu, também presidente do Grupo MPE
empresa que atua no campo da engenharia, administração e do agronegócio.
Segundo o secretário de Desenvolvimento Econômico de Quissamã, Haroldo
Carneiro, além da sua atuação local, o Instituto mantém parcerias com outras
instituições no estado do Rio de Janeiro, como no caso da Preservale – que
congrega fazendeiros do Vale do Paraíba , e instituições de âmbito nacional como
a Fazendas do Brasil. Através do Fazendas do Brasil o Instituto consegue
participar de uma rede internacional de ONGs com projetos na área de turismo,
como a Turihab, da União Européia.
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Já a ONG 3Hs
7
, atua somente no município de Quissamã, embora também
possua parcerias em diversas outras escalas, até mesmo da caráter mundial como a
GTZ, empresa alemã de cooperação e implementação de projetos de cooperação
técnica. Sua atuação apresenta como foco o desenvolvimento de atividades
relacionadas ao turismo e à pesca, principalmente em Barra do Furado, São
Miguel do Furado e Flexeira.
O local que nos servirá de exemplo é Barra do Furado, no município de
Quissamã. Esta localidade se encontra a 42km de distância do distrito sede e
possui cerca de 1.200 habitantes. A principal atividade produtiva é a pesca, que
cumpre um importante papel na subsistência das famílias, mas também praticam o
artesanato.
Os moradores desta localidade tem enfrentados alguns desafios uma vez que
recentemente foi criado um consórcio envolvendo as prefeituras de Campos dos
Goytacazes e Quissamã, visando estabelecer parcerias nos setores público e
privado, e tendo como principal resultado o desenvolvimento do projeto do
Complexo Logístico e Industrial de Farol. De acordo com material de divulgação
do emprendimento, esse projeto sesediado em Barra do Furado tendo como
objetivo atender a demanda pela exploração de petróleo no litoral norte
fluminense, através da implantação de indústrias ligadas aos setores naval, do
petróleo e gás.
Conforme pudemos perceber em entrevistas com alguns moradores que ali
vivem, as famílias estão receosas quanto às transformações no seu espaço e no seu
modo de vida. E do outro lado, encontra-se a prefeitura, que buscado a parceria
das ONGs apresentadas tem tentado convencer a coletividade dos ‘benefícios’
econômicos que terão quando da impantação do complexo. O próprio secretário
de Desenvolvimento deixa transparecer a forma como essa parceria, entre a
prefeitura e às ONGs que atuam em atividades de valorização do turismo e da
cultura, se estabelece ao afirmar que a “região certamente passará por um
processo de desenvolvimento espetacular nos próximos 10 anos. Por isto, são
necessárias ações que visem resgatar e manter, de forma sustentável, a nossa
7
Por se tratar de uma ONG de pequeno porte, cok atuação somente em Quissamã, tivemos
dificuldade em obter informações sobre sua história, trajetória e atuação. Contudo, optamos por
mante-la como exemplo uma vez que trabalha diretamente com a coletividade de Barra do Furado,
que tomamos como exemplo.
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história, a cultura e o meio ambiente, através do turismo”
8
. Haroldo Carneiro se
referia à projetos de desenvolvimento criados pela prefeitura, dentre eles o
Complexo Logístico e Industrial Farol-Barra do Furado.
Para o Instituto Sete Capitães o turismo tem um potencial transformador da
realidade do minicípio, e, no nosso entendimento, essa organização viu na
efetivação do projeto do complexo industrial, a possibilidade de revitalização do
patrimônio local e o desenvolvimento econômico que poderá surgir como
consequência, entre outro fatores, do aumento da infra-estrutra local que o
empreendimento demanda.
No caso da ONG 3Hs, foi realizado em 2006 um projeto de “turismo de
base comunitária” em Quissamã, do qual a coletividade de Barra do Furado fez
parte e expôs suas necessidades e desejos para melhoria da qualidade de vida das
familias que ali vivem. Segundo o “relatório de diagnóstico”
9
das atividades
desenvolvidas foram observados dois pontos principais de preocupação dos
moradores, um primeiro trata do desejo de construção de um mercado de peixes,
no qual os pescadores pudessem comercializar seu produto deixando de se
submeter à atravessadores, o que implica menor renda. Outro ponto de destaque
foi a preocupação com a implantação do estaleiro na região, uma vez que “os
moradores têm muitas dúvidas e temem que a comunidade não venha a ser
beneficiada”
10
.
Contudo, a organização parece ter visto no projeto do complexo industrial
uma alternativa para a solução das carências daquela coletividade, uma vez que a
prefeitura se comprometeu a fornecer aos pescadores toda infra-estrutura
necessária para a modernização de suas atividades, construindo um frigorífico,
oferencendo incentivos de créditos para compra de embarcações maiores.
Contudo, o que pudemos perceber é que essa proposta encontra resistência por
parte das famílias de pescadores.
8
Entrevista publicada em site de divulgação formado por grupo de jornalistas da região norte
fluminense. < http://urgente.blogspot.com/2009/09/membros-do-instituto-sete-capitaes.html>
9
Documento em meio digital, capturado no sitio da prefeitura de Quissamã, no endereço
<http://www.quissama.org.br/images/03-difinal.pdf>, em 24/01/2010.
10
Trecho capturado do “relatório da oficina de diagnóstico rural participativo Barra do Furado,
São Miguel do Furado e Flexeiras” desenvolvido pela ONG 3Hs, obtido em 12/08/2006 no sitio <
http://www.quissama.org/images/007-relatoriodrpbarradfuradofinal.pdf>.
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Diante desse cenário, pode-se observar um conflito entre o desenvolvimento
desejado pela coletividade de Barra do Furado e o projeto de desenvolvimento
construído pela prefeitura e legitimado pelas organizações em questão. Podemos
dizer entao que as ações das ONG, neste momento, não se mostram efetivas na
busca da superação da racionalidade dominante. Isso tem ocorrido com boa parte
das ONGs pelo Brasil que se propoem a transformar a realidade de parcelas da
população, mas o que conseguem são apenas espasmos de resistencias num mar
de heteronomia. Suas ações muitas vezes não ultrapassam a superficialidade,
ficando presas ao puro assistencialismo.
Por outro lado, a simples possibilidade de mudança que essas ONG trazem
no seu discurso pode desencadear um sentimento de busca, por parte da
coletividade, por transformações reais ou pelo menos originar uma reflexão nesse
sentido. Esses pequenos passos não podem ser descartados uma vez que é através
deles que podem ser construídos embriões de uma mudança real. A virtualidade
contida neste processo, ainda que não concretizada, pode nos ajudar a encontrar
caminhos para a busca de desenvolvimento que liberte a sociedade e os indivíduos
do aprisionamento em que vivem, transformando-os em sujeitos de sua existência.
Daqui em diante, tentaremos aprofundar essa discussão buscando caminhos que
possam apontar para a superação desses problemas.
3.2.
Primeiros passos: o papel da participação popular
Partilhamos do incômodo e irritação de que Marcelo Souza fala quando
critica as atuais formas com as quais a expressão “participação popular” tem sido
utilizada. Souza não se apresenta de forma alguma contra este tipo de ação, mas
deixa transparecer sua indignação em um momento de desabafo logo nas
primeiras linhas de introdução à sua obra quando diz: “faz algum tempo que,
quando eu topo com a expressão ‘participação popular’, já me preparo para me
irritar, já levanto guarda” (SOUZA, 2006, p. 9). Mesmo enfatizando seu
posicionamento favorável e, mais ainda, em defesa da participação popular, ele
nos atenta para o fato de que “poucas foram as expressões das quais se tenha
utilizado mais abusivamente, mais hipocritamente nas ultimas décadas, no campo
da administração pública local e da política urbana” (SOUZA, loc. cit).
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60
O debate acerca da participação popular na sociedade não é recente, sendo
abordado não só por pesquisadores como também por grupos políticos,
instituições da sociedade civil entre outros, em diversos momentos diferentes, mas
ainda assim sem que se tenha alcançado algo próximo de um consenso. Pelo
contrário, o que vemos ainda hoje é um intenso debate e ainda o uso
indiscriminado do termo. Nas duas últimas décadas pudemos presenciar cada vez
mais a popularização e até mesmo a vulgarização da idéia de participação popular,
tendo, dentre inúmeros outros fatores, colaborado para este processo a ampliação
do número de ONGs no Brasil e no mundo e a massificação de suas atividades,
trazendo para o senso comum
11
a necessidade, e mais ainda, o dever de
‘participar’ voluntariamente em defesa da cidadania.
Proliferam políticas e ações de ONGs por todos os lados que dão conta da
profusão deste pensamento, mas que não necessariamente procuram através desta
participação uma ampliação do poder das coletividades. Na maior parte das vezes
o que vemos é uma busca pela participação como forma de democratizar o
capitalismo e abrandar os conflitos sociais. Como já dissemos anteriormente, as
ONGs atuam muitas vezes de forma a amenizar, e muitas vezes resolver, as
necessidades imediatas das coletividades onde atuam, através de seus projetos de
desenvolvimento. Contudo, a questão por trás disso está no pensamento de curta
duração, ou seja, resolver o problema urgente não significa que futuramente se
tenha algum ganho concreto em relação à melhoria de qualidade de vida para
essas coletividades. Este tem sido o grande problema e uma das maiores críticas
efetuadas contra a atuação das ONGs.
Quando falamos de participação enquanto um processo coletivamente
construído, temos naturalmente que enfatizar a necessidade de formação dos
indivíduos de maneira que atinjam uma maturidade política mínima a fim de que
não sejam apenas marionetes nas mãos de instituições e grupos políticos com
intencionalidades diversas e na maior parte das vezes apenas “vestidas” de
democracia ou de transformação. Podemos dizer que este processo depende, quase
sempre, da organização e mobilização política e social construídas por grupos
11
Entendemos por senso comum o conjunto de saberes e opiniões que uma dada sociedade
acumula ao longo de seu desenvolvimento. Este conhecimento se caracteriza por ser superficial,
referente à vivênvia de mundo de cada indivíduo, cada sociedade e acrítico, uma vez que não se
constrói a partir de estudos ou reflexões prévias.
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61
e/ou indivíduos dotados de interesses em gerar tal mobilização. Trata-se então de
uma artificialidade da participação, pois segundo Silva “a participação ativa dos
agentes sociais em espaços de gestão pública assim como todas as formas de ação
coletiva, longe de ser algo natural, como apressadamente afirmam muitas
ideologias políticas, é uma construção social que depende de um aprendizado
fundado na experiência de uma trajetória social”. (SILVA, 2001, p. 45)
Um dos exemplos apresentado por Marcelo Silva (2001) em sua tese de
doutoramento é bastante significativo, pois ao tratar da participação popular
utilizando como estudo de caso o Orçamento Participativo em Porto Alegre,
aponta que do total de indivíduos atuantes neste processo entre os anos de 1993 e
1998, cerca de 70% era membro de entidades sociais, evidenciando com isso que
a experiência associativa constitui-se “em fator importante na mobilização e
organização dos indivíduos para a atuação neste espaço de participação direta na
gestão municipal” (SILVA, 2001, p. 52). Quando analisamos o caso das ONGs
podemos observar o incentivo que oferecem à participação das coletividades na
implementação de projetos de democratização dos direitos sociais e de acesso à
cidadania, que antes eram atribuídos ao Estado. Por outro lado, não podemos
deixar de perceber que mesmo imbuídas desse papel de transformação, ainda
assim na maior parte das vezes as ONGs mantêm uma parceria e em muitos casos
uma dependência direta do Estado e suas políticas assistencialistas.
Um exemplo desta proximidade de ação do Estado com as ONGs pode ser
observado em projetos do Governo Lula, como o Programa Bolsa Família, o
Fome Zero e na área da educação o Programa Universidade para Todos -
PROUNI
12
. Em momento algum têm como intenção o rompimento com a
12
“O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com
condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa
de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70), de acordo
com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004.
O PBF integra a estratégia FOME ZERO, que tem o objetivo de assegurar o direito humano à
alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a
erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais
vulnerável à fome.” Sitio do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
<http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/o-que-e>.
Já PROUNI “tem como finalidade a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos
de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior.
Criado pelo Governo Federal em 2004 e institucionalizado pela Lei nº 11.096, em 13 de janeiro de
2005, oferece, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas instituições de ensino que
aderem ao Programa”. Sitio do Ministério da Educação, <http://prouniportal.mec.gov.br/>.
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62
estrutura social vigente, que produziu e reproduz cada vez mais os problemas que
estes mesmos projetos pretendem solucionar, buscando remediar as desigualdades
sociais e encontrando na sociedade civil apoio necessário para sua efetivação. O
componente de valorização do voluntarismo e de criação de uma consciência de
necessidade ou mesmo de dever em ajudar as populações mais carentes traz uma
série de indivíduos a participar desses projetos, mesmo que não pela via
institucional do governo, mas por outros canais como as ONGs. Essas ações
muitas vezes cumprem o papel de convencer as coletividades atendidas de que sua
participação, nestes casos bastante determinada e limitada, pode ser fundamental
para uma transformação para melhor, o que para nós não significa uma
transformação estrutural.
Quando observamos a pesquisa realizada pelo IBGE (2005) em parceria
com outras organizações constatamos o grande número de Fundações Privadas e
Associações sem Fins Lucrativos, conjunto no qual as ONGs estão inseridas, que
atuam com projetos na área de educação. O documento aponta um crescimento de
“22,6% no número dessas associações, que passaram de 275,9 mil em 2002 para
338,2 mil em 2005”, sendo quase 42% delas criada na década de 1990. Deste total
merece destaque o número de entidades que possuem caráter religioso, que atinge
cerca de 25%. Contudo, no caso de educação e cultura, os dados apontam um
quantitativo de cerca de 20% das ONGs existentes no Brasil. Neste caso é
possível verificar a parceria com os programas de assistência estatais mesmo que
não o seja de forma tão direta, mas através da criação de propostas de ação que
caminhem no mesmo sentido desses programas. Se a pesquisa apresenta os dados
comparativos dos anos de 2002 a 2005, podemos traçar uma relação destes com o
período do governo do Partido dos Trabalhadores e suas políticas. As ONGs
buscam essa parceria como forma de facilitar o seu acesso aos financiamentos
disponibilizados pelo Estado para projetos de desenvolvimento empreendidos por
instituições da sociedade civil, uma vez que tanto para o Estado quanto para as
ONGs interessa esta parceria. Vemos então que os indivíduos envolvidos nestes
processos, na maior parte das vezes apresentam algum vinculo institucional, no
nosso caso com alguma ONG e mesmo quando o apelo ao voluntarismo angaria
seguidores, o faz tomado por relações marcadas por uma intencionalidade própria
à instituição que os representa.
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63
Com isso pretendemos sublinhar a relação estreita entre associativismo e
participação uma vez que os agentes que buscam produzir uma participação
social, não o fazem apenas por um ímpeto natural em resposta às crises sociais
existentes, mas o fazem principalmente através de condicionantes atribuídas ao
campo de relações do qual fazem parte e que termina impondo a esta intervenção
limites e possibilidades determinados pelos seus interesses próprios na efetivação
de seu projeto social. Não pretendemos de forma alguma atribuir qualquer
significado negativo à participação através de instituições, associações, grupos
políticos ou qualquer outra forma organizativa, pelo contrário, nosso objetivo é
apenas salientar a dificuldade encontrada por indivíduos que não fazem parte
destas instâncias, de se inserir em processos de participação de forma plena, o que
seria taticamente muito importante, pois como enfatiza Silva
é nestes espaços [de participação] que os indivíduos realizam a experiência
objetiva de organizarem-se e atuarem coletivamente, em um processo de
aprendizagem que, além de construir as “habilidades” necessárias ao agir coletivo,
possibilita desconstruir determinados elementos de um habitus produzido por uma
trajetória na qual historicamente predominaram fatores voltados à individualização,
à subordinação, à desmobilização, à geração de oportunismo e ceticismo (SILVA,
2001, p. 60 et. seq., grifo do autor).
Tomando como exemplo as camadas mais pobres da sociedade podemos
perceber as dificuldades muitas vezes encontradas para sua participação, não
apenas por questões econômicas, mas também por falta de acesso à informação e
à formação política. Se por um lado as desigualdades vivenciadas pelas classes
sociais mais oprimidas podem levar à sua organização e mobilização para uma
disputa de poder, por outro, podem também, e é o que mais temos presenciado nas
últimas décadas, levar a um desestímulo por lutar e até mesmo discutir tais
questões, terminando muitas vezes como massa de manobra para legitimação de
políticas de manutenção do status quo.
Tomando como exemplo Barra do Furado, no município de Quissamã,
podemos ilustrar bem esse processo quando observamos que devido à falta de
acesso a informação e a formação política de seus indivíduos, estes terminam
consentindo a implementação de um projeto de desenvolvimento que nem de
longe atende às suas expectativas e seus anseios de melhoria da qualidade de vida.
A ação da ONG Instituto Sete Capitães, neste caso, buscou através da parceria
com a prefeitura de Quissamã levar à essa coletividade o discurso do
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desenvolvimento local que seria efetivado a partir da construção dos estaleiros,
convencendo a população dos ganhos materiais e do apoio que receberão tanto da
própria instituição, quanto da prefeitura. Diante disso, podemos dizer que ao
legitimar o discurso do Estado, o Instituto Sete Capitães termina contribuindo com
o enfraquecimento do poder local. Esse processo é facilitado pela falta de
informação sobre os reais interesses por trás da proposta e ainda mais por falta de
poder de organização e de argumentação da coletividade diante desta realidade. A
coletividade ali existente, mesmo sabendo que este não seria o caminho por ela
desejado, não consegue lutar por um projeto próprio. A esta coletividade
simplesmente foi negado o direito à participação.
Ao analisar esta questão, Maria da Glória Gohn (2002) nos lembra alguns
momentos passados nos quais as formas encontradas pela sociedade para que se
pudesse ampliar a participação popular foi na forma de conselhos. A autora aponta
que na modernidade estes tendem a surgir em momentos de crises políticas e
institucionais, numa tentativa de se opor à lógica capitalista, confrontando
organizações mais tradicionais na busca por outras formas de poder, este com
caráter mais autônomo, descentralizado e que garanta a autodeterminação dos
caminhos a serem seguidos por cada coletividade. Como exemplos mais
destacados Gohn aponta a “comuna de Paris, os conselhos dos sovietes russos, os
conselhos operários de Turim – estudados por Gramsci,” etc. (GOHN, 2002, p.
10).
Nos anos de 1980 os conselhos populares aparecem como expressão da
oposição à ditadura militar, mas com funções diversas podendo ser tanto
organismos do movimento popular atuando com parcelas de poder junto ao
Executivo (tendo a possibilidade de decidir sobre determinadas questões de
governo); como organismos superiores de luta e organização popular, gerando
situações de duplo poder – uma espécie de poder popular paralelo às estruturas
institucionais; ou como organismos de administração municipal, criados pelo
governo para incorporar o movimento popular ao governo, no sentido de que sejam
assumidas tarefas de aconselhamento, de deliberação e/ou execução (ibid, p. 11).
Todos estes exemplos carregavam consigo o apelo por parte da sociedade
civil por uma democratização através da participação popular, que naquele
momento foi definida como “esforços organizados para aumentar o controle sobre
os recursos e as instituições que controlavam a vida em sociedade” (GOHN, loc
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65
cit.). Já nos anos 1990 surgem os chamados conselhos gestores, onde apenas
instituições tinham participação e sua composição se constituía da combinação de
representantes do poder Executivo e de instituições da sociedade civil. Estes
conselhos foram construídos por meio de instrumentos legais através da
Constituição de 1988, que previa a criação de mecanismos concretos para
viabilizar a cidadania via democracia participativa. Seu papel principal estava na
mediação da relação entre a sociedade e o Estado. Contudo, devemos sublinhar
que o maior equívoco da institucionalização da participação se dá quando há a
perda da dimensão de ação coletivamente construída (SILVA, 2001, p. 20).
A partir de então pudemos observar a adoção do discurso de ampliação da
cidadania, de universalização dos direitos sociais e de uma nova compreensão do
papel do Estado, que estava diretamente ligada à idéia de participação. Nas
palavras de Maria da Glória
a participação passou a ser concebida como intervenção social periódica e
planejada, ao longo de todo o circuito de formulação e implementação de uma
política pública, porque as políticas públicas ganharam destaque e centralidade nas
estratégias de desenvolvimento, transformação e mudança social. [...] A principal
característica desse tipo de participação é a tendência à institucionalização (GOHN,
2002, p. 12).
Podemos então dizer que nos marcos da democracia representativa essa
participação popular se torna bastante restrita, tendo em vista o caráter
nitidamente manipulador e castrador com que têm sido efetivadas as
representações políticas no Brasil e no mundo afora, e que não só explicitam
como também referendam as assimetrias de poder contidas nas relações sociais
que as definem. O princípio da representação, base deste regime, aliena da
maioria da população o poder pleno de decisão sobre os caminhos a serem
seguidos por cada coletividade através da política e da administração pública,
passando aos representantes esse poder de arbitrar livremente sobre os fins e os
meios a que se destina cada decisão. O simples reconhecimento do quantitativo
populacional elevado nas sociedades contemporâneas, e com isso a dificuldade de
que todos possam fazer-se ouvir diretamente, e mais absurdamente a defesa de
uma pretensa incapacidade desta população de decidir por conta própria, dado deu
baixo conhecimento e preparo para tal, sem considerar ao menos a possibilidade
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de uma “alfabetização política”, se tornam alguns dos mais utilizados argumentos
em defesa desse regime “democrático”.
Ao abordar este tema, Souza traz uma importante colaboração para o debate
ao apontar os “obstáculos à participação popular”. Ele afirma que
por instinto de sobrevivência e capacidade de ajuste, o sistema incorpora ‘uma
certa’ exigência de participação como fator de eficiência e eficácia; cabe aos
políticos profissionais se adaptar, saudando uma ‘governança aberta à participação’
em detrimento de um ‘governo restrito ao Estado’, transferindo tarefas para as
organizações não-governamentais – a versão neoliberal da ‘descentralização’ – e
promovendo elogios ritualísticos à transparência, à accountability etc., restando aos
mais retrógrados perecer por sua incapacidade de adaptação aos novos tempos.
Nessas circunstancias, a ‘participação’ cai na boca do povo: o militante popular, o
funcionário da ONG, o político em campanha (e não somente políticos de
esquerda), todos defendem a ‘participação’ (SOUZA, 2006, p. 400 et seq.).
O autor divide ainda três grandes conjuntos de obstáculos, sendo o primeiro
ligado ao problema da cooptação, outro relativo à implementação e por fim um
terceiro grupo relacionado a desigualdade. A problemática da cooptação pode
resultar em processos como o da “domesticação da sociedade civil por parte das
forças políticas à frente do aparelho do Estado” (ibid, p. 410), sendo muitas vezes
resultado de políticas deliberadas, nas quais os esquemas de participação
terminam perdendo seu caráter e passando a meras representações, ou mesmo de
situações não intencionadas por grupos políticos particulares, resultando na
“desmobilização ou não-avanço político-pedagógico” (SOUZA, 2006, p. 410).
No caso das ONGs no Brasil, podemos observar nos últimos sete anos, nos
quais vivenciamos o governo do presidente Lula, certa semelhança com essa
situação. Qual tem sido o papel das ONGs diante de governos democráticos mais
participativos, como é o caso do governo Lula? Observamos que neste período
houve uma aproximação maior dessas organizações com as políticas do governo,
do que se comparada com governos anteriores. A figura do presidente Lula, e o
Partido dos Trabalhadores do qual faz parte e ajudou a criar, neste caso tiveram
um peso muito grande. Sua trajetória, desde seu surgimento no cenário político
brasileiro, traduziu o desejo e criou a esperança de grande parte da população
brasileira na possibilidade de transformação social, principalmente frente às
constantes decepções que os governos anteriores representaram. Ao assumir o
poder, mesmo não tendo provocado profundas alterações na estrutura social, o
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governo Lula tem desenvolvido ações de caráter assistencial, que reduzem ou
pelos menos mascaram as profundas desigualdades criadas pelo capitalismo, o que
até certo ponto o diferencia de governos anteriores. Estas ações encontram na
atuação das ONGs uma parceria muito vantajosa. De um lado facilita a ação do
Estado quando da implementação de seus programas, uma vez que atende um
maior número de indivíduos sem que se tenha todo o peso da responsabilidade em
suas mãos, sendo este papel divido com as ONGs, e ainda cria um sentimento
geral de satisfação com o governo Lula, legitimando sua trajetória de lutas em
defesa dos trabalhadores. Já para as ONGs, a parceria com os programas do
Estado amplia o seu acesso aos financiamentos estatais para seus projetos,
fazendo com que aumente consideravelmente seu poder de ação junto às
coletividades atendidas. Diante de todo esse cenário, podemos perceber uma
atuação muitas vezes conjunta dessas duas instâncias sociais, reduzindo a margem
de cobrança por parte das ONGs em relação ao Estado. Não podemos afirmar de
maneira alguma que se trata de uma ação deliberada deste governo, mas apenas
ressaltar a importância de que o conteúdo deva ser melhor analisado pelas ciências
sociais, uma vez que sob pena de perder de vista nosso horizonte de estudo não
podemos nos aprofundar neste momento.
Ainda analisando os obstáculos à participação popular Marcelo Souza
(2006) aponta a problemática da implementação, que trata das dificuldades de
ordem prática e política nas quais esbarram não só as administrações estatais, mas
principalmente as organizações da sociedade civil quando da tentativa de buscar
uma maior democratização social, através da construção de focos de resistências,
de mobilizações e até mesmo de elaboração de contraprojetos.
E temos ainda a problemática da desigualdade, que esbarra em obstáculos de
ordem material, como a falta de recursos da população mais pobre para estar
presente em assembléias dentre outros movimentos, e de ordem social como a
dificuldade muitas vezes encontrada de argumentação, de articular demandas e a
baixa autoconfiança, que o autor em vários momentos da obra aponta como
ausência de práticas político-pedagógicas, as quais teriam papel importante de
reduzir essas dificuldades.
Dentre os conjuntos apontados, o elemento de cooptação dos esquemas
participativos nos parece um tanto quanto mais pernicioso visto que o componente
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imaterial, e por isso mesmo muitas vezes imperceptível, age de forma a camuflar
o domínio e a deformação sofrida pelos mecanismos de participação e que
terminam, como aponta Souza (2006) diminuindo a “margem de manobra
autônoma da sociedade civil”. Mas nem tudo nos parece perdido! No meio desse
“mar de heteronomia” que vivenciamos na nossa sociedade, ecoam por todos os
cantos vozes destoantes, que tentam de várias formas se fazer ouvir e demonstrar
todo o seu descontentamento e sua força e vontade de lutar por sua sobrevivência.
Destarte, ao analisar a democracia representativa e a participação popular
neste contexto, se faz necessário ultrapassar essa cortina de fumaça,
reconhecendo, portanto as relações de poder que se escondem por trás dessa
dinâmica, avançando no sentido de buscar mecanismos de participação concretos
nos quais as coletividades possam administrar e ter a liberdade de fazer seu
próprio caminho.
Sabemos que a crítica à participação popular como vem sendo construída
não se trata de uma inovação no campo das relações políticas e sociais, tanto que
podemos recordar as palavras divulgadas por estudantes em cartazes durante os
protestos de maio de 1968, as quais diziam:
je participe
tu participes
Il participe
Nous participons
Vous participez
ILS PROFITENT (apud SOUZA, 2006, p.9)
por outro lado, o que vemos acontecendo nas ultimas décadas é uma completa
deturpação do sentido real do termo.
A defesa da participação popular tornou-se hoje um dos principais canais
para administrar a crise vivida na sociedade, tendo em vista que as restrições
estruturais limitam a possibilidade de libertação das coletividades e, portanto, da
construção de espaços de resistência, de participação concreta e de transformação
social. O discurso da participação aponta então com o papel de preencher esse
vazio, de forma a apaziguar os ânimos numa encenação da qual muitos participam
e poucos decidem, legitimando, portanto, a ordem social vigente.
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Com base nesta perspectiva surgem inúmeros pesquisadores que
questionem, duvidem e até mesmo tragam argumentos contra a possibilidade de
realização de um processo de participação popular pleno, contudo não podemos
deixar de observar que
embora difícil (e quem duvidaria disso?), a participação popular consistente é
perfeitamente possível, e que ela compensa, em vários sentidos. Ou seja: a
competência analítica de que se precisa para fugir ao ramerrão dos estudos de caso
e exames pouco ambiciosos diz respeito, também, ao plano, por assim dizer,
“operacional”. Do mais abstrato ao mais concreto; do mais geral ao mais particular,
e mesmo ao singular; reflexão político-filosófica, exame empírico detalhado e
preocupação “pragmática” com a ação eficaz: não se trata, de forma alguma, de
elementos contraditórios, mas de peças complementares de um quebra-cabeça
político e intelectual (ibid., p. 13).
Percebemos então que o problema é muito maior do que a simples
deterioração e a destruição do poder de um sistema social e político
desigualizador como temos hoje o capitalismo. É preciso mais que isso,
precisamos dar o próximo passo, em outras palavras, apontar perspectivas
renovadoras, de construção de uma nova sociedade, de um novo modelo de
desenvolvimento, mas tendo sempre em mente que “estamos diante de um
problema para o qual não temos solução, temos unicamente aspirações” (MORIN,
2008, p. 38).
Essas aspirações de que fala Morin podem e devem ser construídas
coletivamente e sem a determinação de um novo modelo, de um novo projeto
fechado. No nosso entendimento a base para este processo está na complexidade
da análise social, no pensar complexo que Morin traz como contribuição às
ciências sociais. De acordo com o autor o pensamento complexo integra em si
mesmo uma visão sempre em busca da multidimensionalidade, da
contextualização (MORIN, 2008, p. 59).
A incorporação da cultura como uma das dimensões que mais pode libertar
da prisão econômica na qual o desenvolvimento na modernidade se encontra,
enriquece o solo do desenvolvimento, trazendo a diversidade cultural e com ela a
multiplicação de resistências ao modelo capitalista de desenvolvimento. Destarte,
devemos buscar romper com a visão de diversidade como hierarquia, entendo-a
pois, como pluralidade de possibilidades.
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Decorre deste raciocínio a relevância da valorização da escala local para
nosso estudo, pois é no local onde encontramos possibilidades e podemos
desenvolver espaços de resistências, de insurreição e embriões de transformação,
para que possamos romper com o “conformismo generalizado” de que fala
Castoriadis (1992a), tendo então a perspectiva de que a participação local
concreta, pode não ter um alcance transformador da estrutura social como um
todo, mas pode – e para nós é imprescindível que o faça - cumprir um importante
papel na construção de caminhos e aspirações maiores. Todavia devemos atentar
para o risco de cair no localismo criticado por Carlos Vainer (2002) e para que
não o façamos é preciso ter uma visão transescalar dos processos sociais, não
analisando o local em si mesmo, mas diante das interações deste com as diversas
escalas do todo social.
Se tomarmos como base o território e a territorialidade de cada coletividade,
podemos avançar no sentido de ultrapassar os limites que as relações de poder
muitas vezes impõem ao espaço social onde se (re)produzem, transformando-os
em territórios dominados pelo pensamento heterônomo seja sob a forma de
limitações materiais, de restrições de poder e influência, de redução das
possibilidades de resistência ou até mesmo das liberdades, desejos e aspirações de
cada coletividade.
Essa presença de territórios hegemônicos coexistindo com territórios e
territorialidades contra-hegemônicos, no mesmo espaço, configura a disputa e o
movimento sempre constante na busca de poder e domínio social. Faz-se
imprescindível que consideremos a multiterritorialidade aqui presente, a fim de
que possamos enriquecer a análise - voltaremos a esse assunto mais adiante. Se
para nós a territorialidade e as relações de poder que determinam os territórios
onde impera a heteronomia são dimensões essenciais, não podemos também
perder de vista papel ativo do espaço na reprodução da sociedade.
O espaço social aqui deve ser apreendido no sentido de ser um espaço onde
a dialética se faz presente, onde este não só se apresenta como um produto das
relações sociais, como a expressão de uma sociedade sendo produzido através da
sua materialidade bem como das suas significações, mas também se oferece como
condicionante a reprodução desta mesma sociedade. O espaço refere-se também,
como aponta Álvaro Ferreira (2007), “simultaneamente, à ação dos agentes locais
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71
em associação com grupos de ação, muitas vezes de âmbito global. Nesse sentido,
o espaço produzido pode contribuir mais para ocultar do que revelar”.
É interessante a análise que Léfèbvre (2008) traz do espaço ao afirmar que
este é um produto social, que se materializa de acordo com a sociedade que o
produz, sendo um instrumento político intencionalmente manipulado, como forma
de transmitir as significações imaginárias sociais
13
do poder hegemônico. Sendo
assim o espaço aparece como instrumento de ação e de pensamento, como um
meio de controle e de dominação, sendo, portanto, produto e produtor da
sociedade. O autor sublinha que as contradições do espaço surgem como
conseqüência do seu conteúdo “prático e social e, especificamente, do conteúdo
capitalista”, segue então afirmando que “o espaço é simultaneamente global e
pulverizado, onde a burguesia dispõe de um duplo poder sobre o espaço”
(LEFEBVRE, 2008, p. 57), o qual ele aponta sendo de um lado a propriedade
privada do solo, e de outro a globalidade, o conhecimento, a estratégia, a ação do
Estado. Sendo assim, ficam evidentes os conflitos existentes entre o espaço
abstrato, relativo ao que Léfèbvre denomina de espaço concebido e o espaço
imediato, aqui entendido como o espaço percebido, vivido.
Para melhor entender essa relação retomamos uma relevante contribuição de
Léfèbvre (1994) quando da sua análise da dimensão subjetiva da produção do
espaço, na qual o autor aponta para a existência de uma tríade conceitual. Para
Léfèbvre o espaço possui uma dimensão determinada pelo espaço percebido, na
qual se insere a realidade cotidiana, a (re)produção do espaço e da sociedade, uma
outra dimensão do espaço concebido, relativo ao conhecimento e ao poder, que
diz respeito às relações de produção a ordem que o impõe e por fim o espaço
vivido, englobando os símbolos e os códigos, também ligados ao lado clandestino
e subterrâneo da vida social, onde de desenvolvem os espaços de resistência.
Para nós essa visão multidimensional do espaço se faz relevante quando
observamos que o espaço concebido pelo Estado, e neste caso legitimado pelos
projetos de desenvolvimento utilizados pelas ONGs, muitas vezes se chocam não
só com o espaço vivido das coletividades como também pelo seu espaço
13
As significações imaginárias sociais, na concepção de Castoriadis, estruturam as representações
do mundo em geral, designam as finalidades da ação, impondo o que deve ser feito e estabelecem
os tipos de afetos particulares a cada sociedade (CASTORIADIS, 1991).
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concebido. Se observarmos o caso da ONG Instituto Sete Capitães, podemos
perceber que esta, em parceria com a prefeitura de Quissamã promoveu na
coletividade de Barra do Furado uma verdadeira propaganda de convencimento
dos “benefícios” que a aceitação por parte desta coletividade ao projeto de
construção dos estaleiros nesta localidade traria para o desenvolvimento local. O
subsecretário de desenvolvimento econômico e turismo de Quissamã, Saulo
Ramos, aponta que “explicamos para eles que o progresso é inexorável e
mostramos então que eles serão beneficiados”
14
.
Contudo, por se tratar de uma coletividade pesqueira, se torna extremamente
difícil crer nos resultados favoráveis. A população que mantinha até então uma
tradição de pesca artesanal, terá necessariamente que se deixar incorporar pela
modernização da atividade, mesmo sabendo das dificuldades que enfrentarão para
tal. Em conversas com moradores de Barra do Furado pudemos perceber que a
coletividade envolvida não desejava seguir este caminho, pois segundo Luciana da
Silva, uma das moradoras,a gente tem projetos próprios, não queremos deixar a
pesca, é dela que sempre vivemos”, logo entendemos que seus anseios
caminhavam em sentido completamente oposto à transformação de suas
atividades. Mesmo tendo um compromisso do Estado, aqui representado pela
prefeitura, de que a coletividade envolvida receberia todo o apoio econômico e
tecnológico, ainda assim a proposta não foi bem recebida pelos moradores.
Diante deste quadro podemos mais uma vez sublinhar as contradições
existentes, neste caso entre o espaço concebido pelo Estado, do desenvolvimento
econômico do município, em detrimento dos interesses da coletividade de Barra
do Furado, e o espaço vivido e concebido por esta, no qual desenvolvem suas
práticas espaciais, produzindo territorialidades e território próprios. Fica clara
portando a importância do domínio e da produção do espaço social, da
subjetividade que este incorpora na produção de símbolos, no cotidiano
vivenciado pelas coletividades e que influenciam as praticas espaciais e a
reprodução social.
14
Entrevista concedida em 28/10/2009 pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo
e pela Secretaria de Obras e Urbanismo de Quissamã para e equipe do NEGEF, da qual fazemos
parte e que nos acompanhou neste trabalho de campo.
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73
A maneira pela qual encontramos caminhos possíveis para que cada
coletividade possa ter do controle de seu espaço, que possa assim produzir seu
território, suas territorialidades é a idéia de autonomia que tomamos de Cornelius
Castoriadis (1992a, 1992b, 1992c, 2002). Segundo o autor o princípio da
autonomia permite que cada coletividade se crie, se (re)produza segundo suas
próprias leis, construídas coletivamente através de discussões públicas e
transparentes, nas quais todo indivíduo tenha a oportunidade de participar e de
influir em assuntos coletivos, que digam respeito aos caminhos e fins que
busquem para sua qualidade de vida. Partiremos então em busca dessa autonomia.
3.3.
Do desenvolvimento pelas ONGs ao desenvolvimento numa
perspectiva autonomista
A heteronomia contida nas relações sociais que se territorializam através das
práticas espaciais de uma dada sociedade, tendem a reduzir as margens de
manobra para o desenvolvimento de perspectivas autônomas e libertárias, sob as
quais poderíamos tomar as rédeas dos caminhos a serem seguidos e os fins a que
se destinam as ações coletivas e individuais. Por outro lado, nos parece relevante
apontar que as ações empreendidas no sentido de redução, ou mais ainda, de
destruição das assimetrias estruturais de poder, abrem caminhos para que a
participação popular deixe de ser apenas consentida, passando a assumir o papel
de transformação para um caminho não só da participação, mas enfim com a
culminância em uma perspectiva autonomista. Neste momento, a participação sai
da sombra tutelar do Estado, deixando a cada indivíduo a possibilidade de tomar
parte efetivamente do processo decisório. Mas para que essas assimetrias sejam
postas abaixo é preciso dar alguns passos, mesmo que pequenos, e isso significa
identificar possibilidades e movimentos de resistências, valorizando até mesmo
pequenas conquistas, desde que estas representem algum ganho político.
Caminhar em direção a uma sociedade autônoma certamente não se trata de
uma tarefa simples de ser realizada, e para que consigamos dar alguns passos é
necessário ampliar a consciência crítica e a mobilização social a fim de que a
maioria da população encontre o desejo de uma mudança social profunda, capaz
de construir resistências à heteronomia existente na sociedade. É aqui mais uma
vez que retomamos a afirmação de Marcelo Souza quando nos atenta para a
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“importância de valorizarem também pequenas conquistas, que funcionam como
momentos de aglutinação e aprendizado, desde que essas conquistas modestas e
vitórias táticas possuam um potencial político-pedagógico que as torne capazes de
facilitar, e não dificultar, experiências ulteriores mais arrojadas e profundas”
(SOUZA, 2006, p. 54).
Se pudemos até aqui esboçar caminhos para uma mudança social tendo
como norte uma perspectiva autonomista, mas passando por momentos de
disputas de poder, de ampliação da margem de manobra para mudanças via
participação popular, valorizando sempre a formação política dos indivíduos,
podemos e devemos também, apontar qual perspectiva que temos de mudança, ou
em outras palavras, onde pretendemos chegar com esse caminhar. O que seria
então para nós uma sociedade autônoma, como construí-la e o que se espera desse
projeto?
A liberdade, a criação e a autonomia de cada individuo e de cada
coletividade são desejos antigos no imaginário social, contudo jamais realizados
plenamente sob uma sociedade heterônoma como a que vivenciamos no modelo
civilizatório capitalista. Desta forma buscamos apoio nos estudos de Castoriadis
(1992a, 1992b, 1992c) e Marcelo Souza (19995, 1996, 1997, 2000, 2003, 2006)
para que possamos construir caminhos possíveis em direção a uma sociedade
autônoma tendo o princípio da autonomia castoriadiana como nossa base.
Uma das mais importantes contribuições de Castoriadis foi o seu principio
da autonomia social e individual. O autor parte de uma crítica à heteronomia
contida nas relações sociais da sociedade moderna e avança propondo mudanças
no sentido de que a sociedade possa atingir uma maior liberdade de pensamento e
ação. Para ele, “a autonomia é o agir reflexivo de uma razão, que se cria num
movimento sem fim, como ao mesmo tempo individual e social”
(CASTORIADIS, 1992b, p. 140).
Ao analisar sua dimensão individual Castoriadis resalta que, para o
indívíduo a autonomia consiste em “refletir sobre ele mesmo, sobre as razões de
seus pensamentos e os motivos de seus atos, guiado pela intenção do certo e
elucidação de seu desejo” (CASTORIADIS, loc. cit.) ou seja, permitir que cada
indivíduo tenha liberdade de escolha e conhecimento e educação política para tal.
Por outro lado, Castoriadis nos lembra que não há possibilidade de um indivíduo
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tornar-se autônomo numa sociedade heterônoma e que, portanto, a autonomia
individual implica a existência de uma autonomia social. Ao enfatizar a dimensão
social da autonomia ele afirma que
não podemos desejar a autonomia sem desejá-la para todos e sua realização só
pode conceber-se como empreitada coletiva. Se não se trata mais de entender por
esse termo nem a liberdade inalienável de um sujeito abstrato, nem o domínio de
uma pura consciência sobre um material indiferençado para todos (...); se o
problema da autonomia é que o sujeito encontra em si próprio um sentido que não
é o seu e que tem que transformá-lo utilizando-o; se a autonomia é essa relação na
qual os outros estão sempre presentes como alteridade (...), então a autonomia só é
concebível, já filosoficamente, como um problema e uma relação social
(CASTORIADIS, 1991, p. 130).
Castoriadis sublinha ainda que para que consigamos construir essa
autonomia social e individual, é preciso que já se tenha surgido um germe de
autonomia nos marcos da sociedade heterônoma, ou, nas palavras do autor, “para
investir a liberdade e a verdade, é preciso que elas já tenham aparecido como
significações imaginárias sociais. Para que os indivíduos visando a autonomia
possam surgir, é preciso que já se tenha auto-alterado de maneira a abrir um
espaço de interrogação sem limites” (CASTORIADIS, 1992b, p.142). A formação
de instituições que tornem essa reflexidade coletiva possível é algo
imprescindível, assim como a necessidade de conferir aos indivíduos a
“possibilidade efetiva máxima de participação em todo poder explícito, mas
também a esfera mais extensa possivel da vida individual autônoma” (ibid., p.
147). E mesmo essas instituições tendo a validade de momento de reflexão
coletiva, adquirindo portanto legitimidade diante das significações imaginárias
sociais, ainda assim é preciso a todo instante questioná-las. Conforme aponta
Castoriadis,
uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas para sempre. Uma
sociedade justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece
constantemente aberta, ou seja, onde existe sempre a possibilidade socialmente
efetiva de interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei. Eis aí uma outra
maneira de dizer que ela está constantemente no movimento de sua auto-instituição
explícita. (CASTORIADIS, 1983 apud SOUZA, 2000, p. 77)
O caminho encontrado por Castoriadis que permita essa transformação é a
política, que segundo o autor constitui-se no projeto da autonomia. A política
consiste, na sua visão em uma “atividade coletiva, reflexiva e lúcida, que surge a
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partir do momento em que é colocada a questão da validade de direito das
instituições (...) [e se] ela é concebida dessa maneira, o homem põe em questão e,
segundo o caso, altera seu modo de ser e seu ser enquanto homem social”
(CASTORIADIS, 1992c, p. 97).
A autonomia de que Castoriadis fala consiste, portanto, em um projeto no
qual uma coletividade teria por princípio a autodeterminação de suas leis com
base na reflexão coletiva e individual. Uma sociedade na qual se possa ter como
garantia o poder de gerir livremente seu território e seu desenvolvimento.
Uma vez que tenhamos apreendido o significado da autonomia
castoriadiana, devemos refletir sobre os caminhos possíveis para que possamos
construí-la.
Num primeiro momento devemos nos debruçar sobre a articulação de
diversas escalas para que possamos ampliar a visão do problema, entendendo a
complexidade da tarefa e não apenas reduzindo a discussão da autonomia a uma
visão localista, da qual a solução para o incomodo que vivenciamos sob uma
sociedade heterônoma pudesse ser resolvido apenas tomando como força os focos
de resistência locais. Sublinhamos então, como dito anteriormente, que as relações
transescalares são fundamentais para que consigamos romper com o reducionismo
contido na visão localista, e perceber que as realidades encontradas em cada lugar
são profundamente influenciadas pela sua relação com outros espaços, com outras
escalas, e principalmente determinadas pelas assimetrias de poder que as
diferentes classes sociais empreendem no espaço.
Quando observamos a busca pelo desenvolvimento de uma dada
coletividade, não nos basta perceber suas fragilidades e a partir daí implementar
projetos de desenvolvimento local, quando esses na maior parte das vezes são
elaborados somente sobre as determinações externas à realidade local. Tomar as
variáveis externas como parte da existência do lugar é elemento fundamental do
entendimento de sua realidade, contudo, desconsiderar as condições internas é
indefensável. E é através da elaboração de Milton Santos (1997, p. 96 et. seq.)
sobre o local que podemos perceber esse conflito quando o autor afirma que
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o interno é tudo que, num momento dado, está já presente num lugar determinado.
No interno, as variáveis têm a mesma dimensão do lugar, as dimensões se
superpõem delimitadas pelo lugar. O interno é aquilo que, num momento dado
aparece como local (...). Mas as variáveis que formam uma situação são
frequentemente extralocais, portanto mais amplas que o lugar (o país, o mundo). O
externo é tudo isso cuja sede é fora do lugar, muito embora incida sobre ele. Cada
lugar tem, pois, variáveis internas e externas. A organização da vida em qualquer
parte do território depende da imbricação desses fatores.
É preciso entender as relações nas quais essa coletividade se cria e se
reproduz e entender que o desenvolvimento necessita ser apreendido para muito
além da pura satisfação econômica, pois a dinâmica social na qual está inserido se
encontra necessariamente permeado de um conjunto de outras relações, materiais
e imateriais, de conflitos e de racionalidades que caracterizam a complexidade
social que vivemos. O desenvolvimento adquire então um status de transformação
da sociedade, na qual possamos reproduzir os princípios da autonomia.
O papel que as ONGs vêm cumprindo ao longo das ultimas décadas deixa
transparecer a sua proximidade com a idéia de desenvolvimento unicamente como
forma de crescimento. Ao perceberem a fragilidade e carência na qual as
coletividades se encontravam com o surgimento do neoliberalismo e a
conseqüente diminuição do Estado, essas organizações tentam ocupar esse vazio
tomando para si a responsabilidade em atender as demandas locais e buscando
alternativas de satisfação dos desejos das coletividades atendidas. Por outro lado,
sua ação deixa escapar a questão central nesse embate, que não basta suprir
carências de uma ou outra coletividade, em qualquer que seja a escala de atuação
quando na verdade essas carências são reflexo de uma crise estrutural, de um
modelo societário que não se propõe solucionar ou ao menos equilibrar o
desequilíbrio de forças na sociedade. Basta observar como tem sido direcionadas
as suas práticas e ao lado de que instituições comumente aparecem, como no caso
do Instituto Sete Capitães.
A própria organização se coloca como interlocutora entre a coletividade de
Barra do Furado e o Estado, aqui representado pela prefeitura de Quissamã,
atendendo às expectativas de crescimento e desenvolvimento na visão destas
instituições. Na defesa de seu posicionamento, membros desta ONG enfatizam a
importância de se buscar uma cooperação entre a população e o Estado, pois
somente através desta parceria que poderiam alcançar uma melhoria significativa
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para o município e consequentemente seu desenvolvimento. Para eles, ao
conquistar um crescimento econômico, a população do município como um todo,
bem como a coletividade da Barra do Furado, seriam beneficiados
15
.
Não é difícil perceber que esse desejo de cooperação também parte da
prefeitura quando o subsecretário de desenvolvimento e turismo, afirma que o
“Instituto Sete Capitães teve um papel muito importante ao ajudar a mostrar pra
população de Barra do Furado que este projeto também seria bom para eles”
16
.
Saulo Ramos defende ainda que a vantagem neste processo todo é que, ao se tratar
de uma coletividade que vive da pesca artesanal, eles teriam a oportunidade de
deixar essa forma de trabalho, passando para uma pesca “profissional” (se utiliza
desse termo para classificar a forma pela qual estes pescadores estariam mais
inseridos e competitivos no mercado pesqueiro).
Nesta mesma entrevista, o subsecretário enaltece o papel que o Instituto Sete
Capitães teve no convencimento da população, lembrando que durante muito
tempo esta coletividade rejeitou o projeto, em nossa opinião por não atender aos
seus reais anseios, mas através da ação da ONG em questão “a população hoje
está aceitando melhor”. Mais adiante, deixa escapar a contradição contida no
discurso da prefeitura ao ressaltar que, a despensa do que havia propagandeado
àquela coletividade, de melhoria de infra-estrutura e toda sorte de benefícios que
fossem necessários para sua manutenção na atividade pesqueira, a realidade era
outra.
De acordo com o projeto, está prevista naquela localidade a construção de
uma rede hoteleira, de escolas, e todo tipo de serviços que sirvam de base à nova
atividade. Na prática, segundo o próprio subsecretário, “a tendência é que as
gerações futuras deixem a pesca”, uma vez que no nosso entendimento serão cada
vez mais oprimidas, resultando na perda da tradição e de seu poder frente às
determinações provenientes de outras escalas. Mais ainda, na sua fala transparece
o futuro duvidoso que aguarda essa coletividade à medida que nos afirma que “as
empresas que vêm [estaleiros], já tem seus prestadores de serviços, que serão
enviados para Quissamã”, diante disso fica a questão: se por um lado essa
coletividade pode se vir compelida a deixar a pesca, buscando outras formas de
15
Entrevista realizada em 15/04/2010.
16
Entrevista realizada em 28/10/2009.
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sobrevivência diante da nova realidade, por outro, seu espaço para tal será
bastante reduzido uma vez que seus indivíduos terão de competir – numa disputa
desleal – com profissionais qualificados vindos dos mais diversos pontos do país.
O que se desenha para o futuro próximo é algo parecido ao que se aconteceu em
municípios próximos como Macaé e Teresópolis.
Trazendo o exemplo de Macaé podemos observar que desde a década de
1970 o município passou por profundas transformações tanto materiais quanto
imateriais. O desenvolvimento da atividade petrolífera trouxe uma série de
determinações, de projetos e de projeções de realidades distantes, combinando ali
a concretização de relações forjadas nas mais variadas escalas. Sendo o petróleo
um produto de importância mundial, os efeitos no modo de vida daquela
coletividade foram marcados por intencionalidades muitas vezes determinadas por
realidades completamente conflitantes com a preexistente. Aqui não fica explicita
a relação tão direta entre a escala nacional - o Estado - e a escala local, até porque
como dito agora pouco, são escalas muito diversas que participam neste processo,
mas ainda assim mediadas pela ação do Estado.
O que queremos mostrar é que devido a essas transformações, a coletividade
se viu muito mais submetida à uma ordem distante, sem mecanismos próprios de
participação e excluídas da “divisão do bolo” após seu crescimento. O que
observamos num primeiro momento foi a incorporação da mão-de-obra local nos
postos de trabalho que surgiram a partir do desenvolvimento da atividade
petrolífera no município. Contudo, num segundo momento houve o aumento da
demanda por serviços com padrão mais elevado que atendessem a uma clientela
de profissionais altamente qualificados que passaram a trabalhar naquele
município, resultando na exclusão de boa parte dessa população para dar lugar a
mão-de-obra vinda de outros municípios e muitas vezes de outros estados, porém
mais qualificada
17
.
Já em Teresópolis, essa relação do local com outras escalas se vê mais
desprendida da limitação político-administrativa como vimos em Macaé. Aqui
pudemos perceber que nos últimos anos, o incentivo ao crescimento do turismo
tem sido o agente transformador daquele espaço. O apelo ao turismo aparece aqui
17
Informações obtidas através de entrevistas com funcionários da prefeitura de Macaé e outros
moradores do município ao longo do segundo semestre de 2009.
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como um momento de fuga da realidade sufocante da cidade e de procura pela paz
e tranqüilidade que a natureza, agora feita mercadoria, pode oferecer aos
citadinos. Neste caso, coletividades que antes viviam quase que exclusivamente
da produção agrícola familiar, tiveram seus modos de vida marcados pelo
aumento da atividade turística influenciada por políticas públicas. Um exemplo
desse fenômeno ocorre nas proximidades do Hotel Le Canton, situado no eixo
Teresópolis-Friburgo e que possui uma classificação elevada atendendo a uma
clientela de classe alta proveniente de todo o estado do Rio de Janeiro e até
mesmo de outros estados.
A transformação se deu a partir do momento em que as coletividades do
entorno do hotel viram no turismo uma oportunidade de complementação de sua
renda e partiram para a diversificação do seu trabalho, ocupando postos de
trabalho muitas vezes no próprio hotel. Passaram a dividir seu tempo e trabalhar
em tempo parcial na produção agrícola e no turismo. Contudo, o crescimento da
demanda local influenciado por determinantes externas, requisitavam mão-de-
obra mais qualificada do que os trabalhadores do campo. Esta coletividade então
foi sendo excluída do processo de crescimento, ficando a margem e tendo muitas
vezes que buscar outras formas de sobrevivência, muitas vezes fora do local onde
vivem.
Não pretendíamos nos alongar com esses exemplos e nem podemos
esmiuçar as questões que foram aqui superficialmente apresentadas uma vez que
foge um pouco da temática que estudamos, da atuação das ONGs, contudo
entendemos que esse breve relato nos serve como demonstração das possíveis
transformações que a coletividade de Barra do Furado pode vir a enfrentar. Fica
claro nos exemplos apresentados que houve uma redução significativa do poder
das coletividades em questão, uma vez que o poder hegemônico, muito mais
incisivo e dominador, termina obtendo o controle sobre as relações sociais
naqueles espaços.
Tomamos ainda o cuidado em atentar que essas são apenas projeções das
possibilidades futuras, mas que nem de longe pretendemos afirmar que se tornem
concretas uma vez que para nós a dinâmica e o movimento do todo social, se
modificam a cada instante, criando novas determinações, novas possibilidades que
antes não estavam dadas, criando novos caminhos possíveis.
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Que fazer então diante de uma realidade mundial hegemônica que nos
empurra cada vez mais para a “globalização da economia e da cultura”, onde as
possibilidades de transformação e de disputa de poder por parte das classes
dominadas são cada vez mais restritas e controladas? A resposta se encontra na
própria questão, pois é exatamente através da compreensão desses limites de
liberdade, de justiça e desenvolvimento social e espacial em uma sociedade
heterônoma, que podemos construir resistências e traçar alternativas radicais a
esta sociedade. Por outro lado, o que a princípio pode parecer resolvido está longe
de o ser efetivamente, pois se ao se compreender as limitações do status quo essa
dimensão utópica cair num horizonte do “tudo ou nada”, ou seja, negligenciar a
importância que pequenos ativismos podem ter na disputa de poder, terminamos
não entrando efetivamente na luta por espaço, por território, sempre a espera do
momento de transformação total.
Como enfatiza Souza, “se é certo que as forças de mudança devem contar,
cedo ou tarde, com a reação, inclusive violenta, da ordem vigente, autênticos
movimentos sociais [...] podem, de toda sorte, a longo prazo e por efeito
cumulativo complexo, provocar alterações dignas de nota, rupturas” (SOUZA,
2003, p. 109). Portanto, uma luta pontual como a defesa de seu projeto, de seus
anseios, e de sua cultura pelos pescadores de Barra do Furado, poderia servir de
exemplo para outras coletividades, para outras lutas, permitindo um aumento da
margem de manobra para que os grupos dominados na sociedade consigam um
pouco mais de poder e de consciência crítica.
Retornamos então ao ponto em que sublinhávamos a relevância da escala
local sob perspectiva multiescalar/transescalar para que consigamos avançar num
projeto de transformação social rumo a uma sociedade autônoma. Para tal
precisamos definir, como aponta Vainer, objetivos ambiciosos rejeitando assim
“os pressupostos de que não há o que fazer” e sendo ainda realistas a medida que
reconheçamos “que a escala local não encerra em si senão parte dos desafios a
serem enfrentados pela resistência ao projeto neoliberal de reconfiguração
escalar” (VAINER, 2002, p. 149).
E ao analisar o desenvolvimento numa perspectiva multiescalar, fica
explicito a necessidade de se incorporar a multidimensionalidade presente nesta
realidade. Não se trata, portanto, de uma visão econômica do desenvolvimento,
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mas como apontamos no inicio desse estudo, de um desenvolvimento político,
social, cultural, enfim, de um desenvolvimento pleno, de melhoria qualitativa da
vida social. E o local se mostra suficientemente rico neste aspecto, pois é no local
onde se realizam as intencionalidades geradas nas mais variadas escalas, é no
local onde se dão as relações sociais, as disputas de poder e onde as práticas
espaciais de uma dada coletividade se territorializam. Portanto podemos dizer que
o espaço, feito território, deve ser percebido como político e pleno de relações de
poder/saber que se expressam em discursos de dominação e resistência, fazendo-
nos integrar, para sua análise, os autores referidos anteriormente. Que
representações do espaço são projetadas pelas potências hegemônicas para as
nações ou culturas dominadas? Como a concepção capitalista de espaço se
combina ou se antagoniza com outras concepções de espaço? Como espaços de
representação podem ser criados se opondo às representações do espaço
hegemônicas? Como as resistências e conflitos, ao provocarem reterritorializações,
promovem o desenvolvimento, sempre integrado à lógica territorial? (RUA, 2007,
p. 161).
Ao se territorializarem, as práticas espaciais levam consigo as
diferenciações, conflitos e contradições entre as diferentes classes sociais e nos
fornecem a evidencia de uma multiterritorialidade no espaço. É dessa relação
entre a dimensão espacial e as relações de poder que configuram os territórios que
podemos construir um olhar crítico sobre o desenvolvimento.
Ao analisar os territórios não podemos perder de vista que antes de qualquer
coisa, estamos tratando da “junção dos conceitos de espaço e poder” (SOUZA
1995, p.78), ou seja, espaço territorializado como instrumento de exercício de
poder. E sendo o espaço um híbrido entre as múltiplas dimensões do real,
entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade
e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a
pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre
movimento e (relativa) mobilidade – recebam estes os nomes de fixos e fluxos,
circulação e “iconografias”, ou o que melhor nos aprouver. (...) o território pode ser
concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais
material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de
ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2004, p. 79).
Para nós o território adquire, portanto, uma dimensão que abrange desde os
processos de apropriação simbólica na qual identificamos o papel da cultura e das
identidades criadas pelas coletividades no processo de territorialização através de
suas práticas espaciais, ou seja, o espaço vivido de cada coletividade, até uma
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dimensão mais concreta de dominação, onde predomina a apropriação e
ordenação do espaço como forma de controle e de diminuição da possibilidade de
construção de resistências (LEFEBVRE, 1991). Diante disso reiteramos o cuidado
que Marcelo Souza tem ao destacar que “a questão primordial é ‘quem domina,
governa ou influencia e como domina, governa e influencia esse espaço?’” e
apontamos que combinado ao domínio do espaço há o consentimento por parte
dos grupos dominados, que se por um lado legitima esse poder, nem por isso
significa a inexistência de conflitos e contestações (SOUZA, op. cit., p.78 et seq.).
Outra contribuição importante para nossa apreensão dos territórios
construídos a partir das disputas de poder na sociedade - no nosso caso entre o
poder hegemônico aqui representado pelo Estado e a maioria das ONGs e o
contra-poder hegemônico nas mãos de movimentos de resistência - vem de Marco
Aurélio Saquet quando este nos aponta que
[...] as forças econômicas, políticas e culturais, reciprocamente relacionadas,
efetivam um território, um processo social, no (e com o) espaço geográfico,
centrado e emanado na e da territorialidade cotidiana dos indivíduos, em diferentes
centralidades/temporalidades/territorialidades. A apropriação é econômica, política
e cultural, formando territórios heterogêneos e sobrepostos fundados nas
contradições sociais. (SAQUET, 2004, p.28; ver também SAQUET, 2007).
Percebemos então que é da hibridez do território e também dessa
multiterritorialidade
18
que podemos retirar algumas possibilidades de construção
de caminhos alternativos. Quando partimos desta compreensão do espaço e do
território, o local mais uma vez emerge como lugar privilegiado de análise a
medida que é nele onde se concretizam as relações de poder, de apropriação de
dominação, é nele onde o espaço vivido e percebido de cada coletividade se
(re)produz, carregando consigo significados, símbolos e assimetrias de poder, que
fazem deste espaço um lugar de disputa, materializando-se também nas suas
18
Entendemos a multiterritorialidade na acepção que Haesbaert nos oferece quando explicita ser
“uma mudança não apenas quantitativa – pela maior diversidade de territórios que se colocam ao
nosso dispor (ou pelo menos das classes mais privilegiadas) – mas também qualitativa, na medida
em que temos hoje a possibilidade de combinar de uma forma inédita a intervenção e, de certa
forma, a vivência, concomitante, de uma enorme gama de diferentes territórios” o autor aponta
ainda que esta multiterritorialidade é resultado do domínio do território-rede na sociedade
contemporânea onde “a perspectiva euclidiana de um espaço-superfície contínuo praticamente
sucumbe à descontinuidade, à fragmentação e à simultaneidade de territórios que não podemos
mais distinguir claramente onde começam e onde terminam ou, ainda, onde irão “eclodir”, pois
formações rizomáticas também são possíveis (HAESBAERT, 2005, p. 6786; ver também
HAESBAERT, 2004).
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formas espaciais (SOUZA, 2006, p. 317). Podemos dizer então que da
heteronomia contida nas relações sociais hodiernas, resultam territórios
heterônomos.
Léfèbvre também nos aponta esta relação quando, ao analisar a cidade
moderna, afirma que há “um verdadeiro consumo produtivo do espaço” (...) e “o
consumo do espaço histórico corresponde à produção do espaço capitalista”
(LEFEBVRE, 2008, p.155, grifo do autor). Mais a frente o autor segue seu
raciocínio afirmando que “quanto ao desenvolvimento, a experiência e a história
nos ensinam que não há criação de formas sociais e de relações sociais sem
criação de um espaço apropriado” (LEFEBVRE, 2008, p. 161). Esse pensamento
explicita a forma pela qual o espaço tem sido manipulado de forma deliberada,
tornando-se um espaço instrumental, através do qual são traçadas estratégias
políticas e onde elas se enfrentam e se desdobram
19
.
Como já apontamos anteriormente,
como se trata do modelo societário (não apenas econômico) capitalista –
contraditório por natureza – capaz de, simultaneamente, criar, recriar ou destruir
relações sociais e suas espacialidades/territorialidades e, ao mesmo tempo, não
prescindindo da manutenção de relações não-capitalistas de produção e de suas
práticas espaciais, o movimento do todo social torna-se extremamente complexo.
Integrador, mas não homogeneizador; hegemoneizador, mas contendo o diferente;
integrado às crescentes desigualdades, reforçando-as e/ou adaptando-as a sua
lógica. As práticas espaciais alternativas ao modelo dominante podem ser
destruídas, integradas ou transformadas de acordo com o “jogo de forças” de cada
momento histórico que, com isso, define sua(s) espacialidades/territorialidades
específicas (ACIOLI, et al, 2009, p. 12).
Portanto, daqui em diante podemos acrescentar outra condicionante para a
construção do desenvolvimento autônomo. Este necessitaria não somente da
valorização da participação como mecanismo de ganho político-educacional, da
construção de mobilizações e resistências e da superação dos obstáculos como da
cooptação dos movimentos, dos problemas de implementação dessa participação e
das desigualdades encontradas na sociedade que dificultam o acesso à espaços
participativos, como apresentamos anteriormente. Agora esbarramos nas
dificuldades materiais, operacionais e de ordem organizativa, pois e podemos
19
Embora Léfèbvre não utilize aqui o conceito de território, tão somente espaço, é possível
perceber uma aproximação com a nossa apreensão de território a partir da consideração das
relações de poder que o envolvem.
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afirmar que “o capitalismo sobrevive como sistema ao produzir seu próprio
espaço” (RUA, 2007, p. 170), resultando na conformação de territórios
hegemonicamente heterônomos e que atendem às necessidades e ao controle de
grupos dominantes, precisamos buscar superpor uma nova organização territorial
à preexistente numa busca por uma territorialidade autônoma.
Um primeiro passo está na contraposição ao poder centralizador do Estado e
suas instituições, sem que isso signifique a defesa de uma ausência total de poder,
mas propondo uma transferência às mãos da sociedade do papel de “gerir
livremente seu território” (SOUZA, 2003, p. 106), conferindo liberdade de criação
e de manifestação de suas escolhas. É indispensável que se busque a construção
coletiva de territórios que representem legitimamente os indivíduos nele inseridos,
considerando para tal “as identidades territoriais e os sentimentos/senso de lugar,
valorizando-se os espaços vividos da população em meio a um processo de
diálogo e negociação” (SOUZA, 2006, p. 354) e não apenas critérios técnicos ou
político-administrativos.
As ONGs, na busca por levar o desenvolvimento às coletividades que
sofrem com a ausência do Estado, não se limitam às delimitações político-
administrativas para a implementação de seus projetos, buscando interferir em
espaços nas mais variadas escalas, por meio de suas parcerias e das redes de
relações que estabelecem. Contudo, não conseguem ou não pretendem avançar no
sentido de conferir à essas coletividades autonomia no processo decisório do seu
desenvolvimento.
É o caso do Instituto Sete Capitães, que possui um alcance regional,
parcerias com o Estado e com inúmeras instituições por todo o Brasil, o que
teoricamente a permitiria ganhos reais na construção de redes de resistências à
hegemonia liberal, mas que ao identificar as carências existentes em Barra do
Furado, propõe um desenvolvimento através de um olhar externo àquela
coletividade. A parceria dessa organização e sua defesa do projeto de
desenvolvimento apresentado pelo Estado, pela construção dos estaleiros e
transformação da pesca artesanal em “profissional”, legitima o espaço concebido
pelo poder hegemônico, confrontando o espaço vivido pelos moradores e ainda o
espaço concebido por estes.
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Desse conflito entre o externo e o interno, entre o espaço concebido pelo
poder hegemônico e o espaço vivido e concebido pelas coletividades, é que temos
a arena de luta e de disputa pela manutenção do status quo ou por uma
radicalização da democracia na busca por uma sociedade mais equitativa e por um
desenvolvimento mais humano, liberto de dominação. E se vemos o
desenvolvimento como base para uma perspectiva concreta de mudança social,
como demonstramos ao longo deste estudo, devemos avaliar com um pouco mais
de cuidado o conteúdo de nossa defesa.
Quando atribuímos ao projeto desenvolvimentista na modernidade uma
relação direta com capitalismo, não podemos mais uma vez deixar de atentar para
o fato de que
essa situação não ocorre sem a emergência de (diversos) conflitos sócio-espaciais
de rejeição/reação. Dessa forma, mais do que nunca, o cenário atual é (en)coberto
pelos discursos da globalização econômica, cultural etc. em que explodem, com
cada vez maior relevância, os movimentos de (contra)cultura e/ou
(contra)econômicos (ACIOLI, et. al., 2009, p. 2).
Os movimentos de resistência que surgem neste processo se apresentam tão
diversos quanto a realidade cultural da qual emergem. E uma vez entendida essa
diversidade, podemos partir em busca da construção do desenvolvimento
exatamente a partir da valorização dessas diferenças geográficas. Conforme nos
mostra Souza (1997, p. 19) “o conteúdo do desenvolvimento (...) deve ser
entendido como atrelado a cada universo cultural e social particular, sendo logo,
em um nível de detalhe que se preste à operacionalização, variável, plural”. E é
ainda com base nessa multiplicidade de possibilidades que afirmamos não ser
possível aplicar um mesmo modelo de desenvolvimento para todos os diferentes
lugares, as diversas realidades encontradas. Que fazer diante deste quadro?
Retomamos então o principio da autonomia individual e coletiva para tentar
delinear os caminhos possíveis.
Compartilhamos do pensamento de Rua (2007, p. 186) quando afirma que
“só pode haver a construção de uma história própria se existir a possibilidade de
construir escolhas próprias, isto é, exercitar autonomia. O homem novo, para um
[Gramsci], e o indivíduo autônomo [Castoriadis], para outro, são capazes de
refletir e atuar na transformação da sociedade em que vivem”. O desenvolvimento
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então assume a busca pela autodeterminação das coletividades quando da escolha
de seus projetos próprios, enfatizando “as demandas locais, resgatando a força do
lugar, mas integradas ao global (multiescalaridade), reduzindo ao mínimo, ou
eliminando, as assimetrias que marcam tal integração” (ibid., p. 184). A partir
desse momento, temos a perspectiva da construção de “desenvolvimentos”
20
capazes de libertar, saindo da prisão da heteronomia, mas considerando a
existência do múltiplo.
A esses desenvolvimentos autônomos, correspondem territorialidades
autônomas, nas quais teremos a expressão espacial de cada conquista de liberdade
individual e coletiva. Se antes tínhamos espacialidades e territorialidades
moldadas pelo processo histórico de desenvolvimento sob a ótica da modernidade,
e por isso mesmo excludentes, agora teremos a possibilidade de construção de um
novo arranjo territorial. Ainda que renovado por práticas espaciais que se
distanciam cada vez mais daquela de dominação do capitalismo, este novo arranjo
ainda conserva as diferenciações e contradições internas. Com isso queremos
chamar atenção para o fato de que a autonomia “não é uma utopia idealista, a
exigir como premissa uma sociedade uniforme e sem conflitos, mas,
simplesmente, um horizonte de pensamento e ação” (SOUZA, 1996, p. 10 et seq.).
Qual seria então o papel que as ONGs assumiriam neste processo? Para
desenvolver esta questão nos apoiamos nas sugestões de encaminhamento para
estratégias de ação e intervenção esboçadas por Marcelo Souza (2000). Quando o
autor aborda “O planejamento e a Gestão das Cidades em uma Perspectiva
Autonomista”, ressalta que para a elaboração de estratégias de ação devemos
iniciar respondendo a três questões: “que problemas precisam ser superados?
Com quem se pode contar para essa empreitada, e sob quais condições? Quais
são os obstáculos e as dificuldades previsíveis?” (SOUZA, 2000, p. 86, grifos do
autor).
Ao tratar dos problemas enfrentados Souza traz mais uma vez a defesa da
autonomia de cada coletividade na escolha e determinação de seus projetos e
aponta que não podemos “permitir que pesquisadores ou técnicos decidam as
20
Rua fala de “desenvolvimentos” para sublinhar a contraposição à um modelo único de
desenvolvimento, um desenvolvimento heterônomo, propondo entao que seja incorporada na ideia
de desenvolvimento a “existência do múltiplo, isto é, do direito de cada sociedade de definir seus
próprios modelos de desenvolvimento”. (2007, 169)
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prioridades e as metas de cada coletividade”. Para nós, essa mesma ressalva pode
ser feita às ONGs.
Trazendo para o campo de atuação das ONGs, podemos entender que seu
papel deve ser limitado à contribuição para uma discussão crítica e ao apoio
técnico quando da escolha dos meios utilizados para a mudança social desejada. Já
os fins, “dizem respeito a valores e expectativas que, sob um ângulo radicalmente
democrático, não podem ser definidos por uma instância técnica ou política
separada do restante da sociedade. Os fins têm de ser estabelecidos pelos próprios
envolvidos” (ibid., p. 87).
Outro elemento primordial está nas parcerias que podem ser efetivadas pelas
ONGs como forma de ampliação de forças. Sabemos que boa parte dessas ONGs
busca parcerias em todos os campos possíveis, sua vivência transescalar permite
que tracem alianças com o Estado, com a iniciativa privada, com movimentos
sociais, sendo essas organizações de escala local como também de alcance
mundial. É, por exemplo, o caso do Instituto Sete Capitães que como dissemos,
possui uma vinculação com uma multinacional privada, com as prefeituras dos
municípios do norte fluminense e com movimentos locais. Fica difícil identificar
qual a filosofia política de atuação da organização, uma vez que suas parcerias
parecem ter interesses conflitantes e, portanto, o resultado de sua atuação numa
dada coletividade não se faz sem a determinação implícita desses interesses. Seria
necessária uma busca por parcerias que apresentem convergências de pensamento,
na busca por auxiliar as coletividades na construção de seus desenvolvimentos.
Certamente essas novas alianças também não seriam isentas de conflitos, contudo
a premissa de conferir às coletividades um horizonte de liberdade de decisão e de
ação seria um indicativo que as qualificaria positivamente.
Tratar dos obstáculos e das dificuldades previsíveis pressupõe que sejam
avaliados tanto os recursos disponíveis, para que possam ser adequados a cada
projeto, como também as resistências que possam ser enfrentadas a medida que
implementem “medidas redistributivas” e de “ampliação da democracia”
(SOUZA, 2000, p. 87). No conflito existente entre o espaço vivido e concebido
pela coletividade de Barra do Furado e o espaço concebido pela prefeitura,
podemos perceber que não houve um movimento no sentido de conferir liberdade
às escolhas da coletividade. Este obstáculo se deu não só pela falta de recursos
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materiais e imateriais para tal, como também pelo poder assimétrico da prefeitura,
reforçado pela atuação do Instituto Sete Capitães.
Sublinhamos que deva haver uma mudança nessa correlação de forças, na
qual as ONGs, ou outras instâncias de planejamento, não sejam elementos
limitadores da participação popular e não atuem de forma a determinar quais são
as necessidades de uma dada coletividade, para, a partir, daí buscar os meios à sua
resolução. Se buscamos daqui em diante ter como horizonte de pensamento a
perspectiva autonomista, devemos entender que nosso papel como pesquisador, e
também o papel das ONGs e outras instituições, seja o de valorizar as conquistas
empreendidas sob os marcos da sociedade hetenoma e auxiliar às coletividades
na concretização de seus projetos. Como nos aponta Souza (ibid., p. 95) nosso
papel deve se “restringir a uma colaboração mais indireta, sobretudo contribuindo
para o aprimoramento e a requalificação dos quadros locais, em vez de atuar como
consultores que elaboram planos acabados e como que saídos de uma linha de
montagem”. O papel de protagonista cabe à própria coletividade, que através de
debates e discussões públicas consigam gerir seu espaço, criando uma
territorialidade autônoma e consequentemente construindo seus próprios
desenvolvimentos.
Diante das críticas empreendidas ao modelo de desenvolvimento moderno e
da tentativa de encontrar caminhos possíveis para sua superação, entendemos não
ser possível criar um novo modelo de desenvolvimento capaz uma justiça social e
qualidade de vida, sob pena de estarmos reproduzindo a lógica de dominação,
uma vez que ao se tentar exportar de forma indiscriminada o mesmo modelo para
todas as coletividades terminamos desconsiderando todas as suas idiossincrasias,
sua cultura, sua história, sua organização social. A possibilidade de transformação
da idéia e da práxis do desenvolvimento se encontra, no nosso entendimento, na
tentativa de deixar “aos habitantes de cada lugar (em sua heterogeneidade social,
econômica, cultural), em uma integração multiescalar que alcance o Estado
nacional, o direito de decidir sobre as formas de vivenciar as suas territorialidades
(...) escolhendo, assim, o seu modelo de desenvolvimento” (RUA, 2007, p. 171).
Trata-se, desta forma, da construção de uma “teoria aberta” do
desenvolvimento que conforme Souza (1996, p. 9) “ao invés de definir de uma
vez por todas (...) o que seja desenvolvimento, cabe tão-somente (o que, porém,
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não é tão pouco) extrair um princípio norteador”. Os desenvolvimentos possíveis
e desejados trazem consigo a autonomia individual e coletiva, numa busca sempre
incompleta - porque sempre se refazendo - pela liberdade, justiça social e
qualidade de vida das coletividades.
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4.
Caminhando para fazer o caminho
Quando anos atrás nos deparamos com o desafio de tentar compreender as
transformações no espaço decorrentes da atuação das ONGs, não poderíamos
supor o tanto de possibilidades e de questoes que surgem cada vez que nos
aproximamos mais do nosso objeto. Hoje, mesmo tendo explorado algumas dessas
possibilidades, podemos dizer que muito ainda pode e deve ser analisado.
Percebemos que através da sua atuação as ONGs constroem territórios próprios
onde possuem o poder de controlar ou influenciar as relações que se estabelecem,
levando à transformação dos espaços preexistentes. Partimos entao em busca do
que servia de base para essa atuação e qual a intencionalidade escondida por tras
dos seus discursos.
Ao tentar ultrapassar a superficialidade dos discursos observamos que suas
ações e projetos são contruídos a partir de diagnósticos das carencias enfretadas
pelas coletividades. Tomamos para isso o surgimento do neoliberalismo como um
marco na mudança das relações socias e que tiveram, consequentemente,
repercussao no direcionamento político das ONGs. Portanto, podemos entender
que essas carencias podem ser identificadas, entre outros fatores, como resultado
de um Estado neoliberal que como representante da correlação de forças na
sociedade não se ocupa em atender as necessidades da maioria da populaçao. As
ONGs partem entao dessa perspectiva e avançam no sentido de tentar suprir essas
necessidades e o fazem através de seus projetos de desenvolvimento local. Foi
com base nessa observação que saimos em busca de identificar se esses projetos
de desenvolvimento, da maneira como costumam ser implementados, são capazes
de atender as reais necessidades dessas coletividades. Mais ainda, podemos
afirmar que a participação da população no processo de aplicação dos projetos é
capaz de dissolver as diferenças de concepções de desenvolvimento entre as
ONGs e as coletividades atendidas? Como fazer para que essas coletividades
consigam ter mais autonomia neste processo?
Para que possamos analisar estas questões devemos retomar de forma
resumida algumas considerações que ao longo de todo o percurso guiaram nosso
olhar e que serviram como base para as apreensões que obtivemos a partir deste
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estudo. Sem essas observações não poderíamos compreender a complexidade do
fenomeno ONG na sociedade atual.
Inicialmente procuramos entender como surgiram essas organizações, de
que maneira se inseriam na sociedade e quais as relações que estabeleciam nas
mais variadas escalas. Desse movimento inicial trouxemos a dimensão da
sociedade civil para nosso debate. Se no nosso entendimento a sociedade civil é
um conjunto heterogeneo constituido por organizações privadas que estão fora do
escopo do Estado, mas que auxiliam na tarefa de dominação de classe, podemos
dizer que as ONGs estão inseridas neste universo. E a diversidade de formas de
pensamento e ação que engloba a sociedade civil, está também presente na
construção das ONGs, o que nos impede de tentar contruir qualquer tipo de
generalização sobre esse objeto. Mas ao analisar o conteúdo e as suas ações para o
desenvolvimento local, entendemos que mesmo as ONGs que se colocam como
alternativas à racionalidade dominante, aproximando suas propostas das visões do
pensamento crítico comtemporaneo, terminam reproduzindo a racionalidade
hegemonica do desenvolvimento como crescimento. Temos aqui um dos
primeiros pontos de encontro entre os nossos estudos anteriores e o presente
ensaio.
Seguindo por esse caminho encontramos o problema do distanciamento e
da separação que contuma-se fazer entre as diversas escalas existentes no todo
social. A defesa das ONGs tem como um dos principais argumentos a sua
proximidade de ação com a escala local, o que na sua visão permitiria construir
projetos mais eficazes e mais proximos da realidade e das necessidades
encontradas nesta escala. Contudo, ao negligenciar as relações entre o local, o
interno, e as escalas com as quais se relaciona, o externo, caem no reducionismo
da dimensão dos problemas a serem resolvidos. Fruto desse processo pode ser
entendido como a ineficácia que os projetos de desenvolvimento tem tido quando
da busca de melhoria qualitativa da vida das coletividades e da sociedade como
um todo.
Retomaremos agora as críticas enunciadas por Brandão (2003) nas
considerações iniciais, com as quais temos acordo mas que tentamos dialogar no
decorrer de nossa análise. Brandão afirma que existe atualmente um conjunto de
pesquisadores crentes da possibilidade de que a consolidação de um novo padrão
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de desenvolvimento pode ser construído totalmente no âmbito local. O autor
aponta que
esta “endogenia exagerada” das localidades crê piamente na capacidade das
vontades e iniciativas dos autores de uma comunidade empreendedora e solídária,
que tem auto-controle sobre o seu destino, e procura promover sua governança
virtuosa lugageira. Classes sociais, ação pública, hegemonia, etc seriam
componentes, forças e caracteristicas de um passado totalmente superado, ou a ser
superado (BRANDÃO, 2003, p. 1).
Entendemos a preocupação de Brandão e sabemos que muitas vezes esse é
exatamente isso que acontece quando as ONGs implementam seus projetos de
desenvolvimento local. Contudo, ainda vemos no local um lugar de importancia
significativa para a criação de germes de resistencia e de projetos alternativos à
essa sociedade. Recentemente o que temos visto no debate sobre caminhos
possiveis para a transformação social é a oposição do que Brandão classifica
como “localistas” e os que, diversamente, acreditam que somente pode-se contruir
uma alternativa se partirmos ao ataque à estrutura como uma todo, tomando todos
os campos da vida social, considerados “globalistas”.
Para nós não se trata de buscar uma polaridade local x global, na qual de um
lado temos os “globalistas” e de outro os “localistas”. Conferir predominância à
escala global como esfera de ação política, considerando para isso a globalidade
social contemporânea e retirando a importância do Estado frente à realidade
política, econômica, social e cultural, parece resultar numa negligencia para com o
papel preponderante que o Estado assume ainda hoje diante da sociedade,
administrando conflitos e mantendo a correlação de forças existente. E por mais
que os pesquisadores que partilham dessa visão não ignorem completamente o
papel do local na análise social, ainda assim a idéia de uma “cidadania global”
deixa escapar a pluralidade de interesses sociais e identidades culturais existentes
nesta escala. Por outro lado, focar a ação política na escala local também deixa
algumas lacunas. Entendemos o clamor daqueles que reivindicam novas formas de
agir político, mas este não se pode reduzir a uma visão romântica do local
indepedente e autosuficeinte e o de completo abandono ou mesmo irrelevância da
dimensão do Estado, tomando como foco somente a ação política local,
incorporada ou se opondo ao movimento do capital global (VAINER, 2002).
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Decerto a essa altura pode parecer que pregamos uma defesa da centralidade
da escala nacional como espaço político estratégico, contudo não é esse nosso
objetivo. O que pretendemos nesta breve análise é enfatizar a necessidade de se
pensar em uma simultaneidade de escalas, entendendo-as como “resultado de
embates”, pois “qualquer projeto (estratégia?) de transformação envolve, engaja e
exige táticas em cada uma das escalas em que hoje se configuram os processos
sociais, econômicos e políticos estratégicos” (VAINER, 2002, p. 147). Pensar o
local como lugar tático de resistência, de combate às determinações das escalas
mais amplas, não significa ver no local o momento único, o espaço privilegiado de
luta por transformação social. O local precisa ser visto mediante as assimetrias de
poder que exitem entre as mais variadas escalas. Mas, se é no local que
vivenciamos os conflitos sociais, onde participamos da produção do espaço, onde
lutamos, é também aqui onde podemos traçar projetos mais audaciosos.
Ao querer abordar uma perspectiva de transformação social que considere a
multiescalaridade dos processos sociais, devemos compreender as limitações que
qualquer conquista empreendida pelos movimentos populares de lutas possuem,
uma vez que não existe a possibilidade de que qualquer coletividade ou indivíduo
alcance autonomia no seio de uma sociedade heterônoma. O local portanto, não
pode representar um espaço alternativo de sociedade, mas pode e deve, ser
entendido como espaço onde as relações sociais, econômicas, culturais e políticas
se concretizam, daí nossa defesa do local como arena de luta. Reconhecer no local
uma possibilidade de construção de projetos alternativos significa poder
ultrapassar o consentimento no qual as participações populares, os movimentos de
luta e resistências se vêem muitas vezes submetidos por parte dos agentes
dominantes. Realizar-se-á essa tarefa buscando melhorias tanto materiais quanto
imateriais para as condições de vida de cada coletividade, criando espaços de
educação política, de luta, e resistências que possam disputar o poder em jogo na
sociedade e dar condições para diminuição do poder hegemônico.
Optamos por trazer essas críticas de Brandão somente agora, por entender
que esse debate entre a relevancia das escalas é um terreno de dificil caminho.
Principalmente quando visualizamos a nessecidade de considerar nossos estudos
sob a perspectiva da transescalaridade/multiescalaridade, pois trata-se de um
enorme desafio e que pretendemos desenvolver com mais profundidade
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futuramente. Não é incomum encontrar análises que partem desse pessuposto e
terminam se concretizando num processo monoescalar, apontando caminhos mais
faceis de serem desdobrados. Tentamos não cair nesse erro, esperamos tê-lo
conseguido.
Decorre também da visão localista que as ONGs geralmente apresentam,
uma fragilidade em reconhecer outras dimensões essenciais para a satisfaçao dos
desejos das coletividades, que não somente a dimensao economica. Acreditar que
garantir ganhos materiais possa efetivamente trazer qualidade de vida é não
dedicar importancia alguma à cultura, ao modo de vida dessas coletividades. Até
porque nem sempre suas carências estao ligadas essencialmente à perdas
econômicas. Esse é outro ponto que provoca um empobrecimento e diminuição
considerável das possibilidades de contrução de projetos alternativos. É
imprescindível que tenhamos uma visão multidimensional da realidade social,
para que consigamos romper com as limitações que os projetos de
desenvolvimento puramente economicos tem apresentado.
Tendo aplainado o terreno com as considerações apresentadas, podemos
seguir tentando esclarecer nossas questoes iniciais. Será que esses projetos de
desenvolvimento, da maneira como costumam ser implementados, são capazes de
atender as reais necessidades dessas coletividades. Já podemos perceber que
nossa primeira questao não apresentou como resultado uma promessa de futuro
muito diversa do presente em que vivemos. Podemos dizer que o simples
dignóstico das necessidades e carencias de uma coletividade e, a partir daí, a
contrução e implementação de projetos de desenvolvimento local que ignoram
quase que completamente as relações com outras escalar de poder e outras
dimensoes da realidade social, não dá conta de uma tranformação real da sua
realidade. Uma possivel saída para esse problema nos é oferecido por aqueles que
defendem a participação popular como elemento tranformador das relaçoes
sociais. Nos questionamos entao se: a participação da população no processo de
aplicação dos projetos é capaz de dissolver as diferenças deconcepções de
desenvolvimento entre as ONGs e a coletividade atendida?
Existe uma aura de excitação e contentamento em torno do termo
“participação popular” que tem provocado a utilização deste para fins mais
imagináveis possiveis. As ONGs são um exemplo, pois costumam recorrer à
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defesa da ‘participação popular’ como forma de garantir que os indivíduos se
sintam parte do projeto e que por isso mesmo, tenham seus desejos ouvidos e
atendidos. Mas a história nos mostra que a realidade não é tão simples.
Consentir ou até mesmo incentivar a participação da população na
construção dos projetos, não necessariamente significa ampliar o poder desses
indivíduos na gestão de seu território. No caso das ONGs, o que geralmente
acontece é o desenvolvimento de formas de abrandar os conflitos sociais uma vez
que os indivíduos sentem fazer parte do processo, são envolvidos neste enredo e
acreditam muitas vezes estar no comando das decisões, guiando os passos por
onde cada projeto deve seguir. Não podemos afirmar que os atores por tras das
ONGs tomem essa atitude deliberadamente como forma de manter o poder
hegemonico ou de ampliar a ofensiva neoliberal, mas é inegável que os resultados
geralmente levem a esse quadro.
Por outro lado, descartar o processo de participação totalmente não nos
parece razoável. É através da participação que os indivíduos se constroem
enquanto sujeitos, atingem maturidade política para argumentar e conquistar mais
espaço e poder, que mais adiante pode auxiliar na tomada coletiva por projetos
próprios. Mas para que essa participação seja um elemento diferenciador na
relação com o poder hegemonico, é preciso ultrapassar algumas barreiras como a
questao da cooptação dos movimentos e organizaões para o desenvolvimento, as
questões econômicas, da falta de acesso à informação e à formação política. Às
ONGs poderiam cumprir esse papel de auxiliar na formação dos indivíduos e de
incentivar sua organização.
Diante disso podemos entender a participação popular como possibilidade
de diminuição das assimetrias de poder na sociedade, conferindo maior margem
de manobra para construção de projetos alternativos ao modelo social vigente. E o
espaço adquire status central nessa discussao uma vez que é através dele que
contruimos nossas ações e a ele modificamos dando origem a novas significações.
Considerar a necessidade da construção de territorialidades de resistencia via
participação popular se torna entao imsprescindível. Mas qualquer participação
que busque o desenvolvimento de coletividades construida nos marcos de uma
sociedade heteronoma apresenta limitações. Dessa forma, como fazer para que
essas coletividades consigam ter mais autonomia neste processo?
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Esse é finalmente o desafio que tomamos e ao qual procuramos contribuir.
Acreditamos que algo precisa ser mudado para que a sociedade saia desse abismo
que se abriu diante de seus pés e que deixou poucos caminhos para a satisfação
dos desejos e sentimentos dos indivíduos e coletividades pelo mundo todo. Mas
como fazê-lo? Não sabemos. Mas tentamos, como muitos autores vêm fazendo,
dar alguns passos.
Se para os críticos do desenvolvimento como perspectiva de mudança
parece óbvio que devemos buscar alternativas, esse caminho não parece de tão
fácil entendimento para a maioria da população, que durante décadas teve sua
liberdade e capacidade de criação cerceadas. Essa realidade nos impoem num
primeiro momento que tenhamos a preocupação em extrapolar os muros da
academia, levando às coletividades a compreensão dos limites de liberdade, de
justiça e desenvolvimento social e espacial em uma sociedade heterônoma.
Somente dessa forma podemos retirar a sociedade do “conformismo generalizado”
e construir movimentos de resistencia e de contestação ao status quo. Uma
organização coletivamente contruida para essa luta se torna importante uma vez
que, lembrando Castoriadis, não há possibilidade de um indivíduo tornar-se
autônomo numa sociedade heterônoma e que, portanto, a autonomia individual
implica a existência de uma autonomia social. Alguns esforços já são visto nesse
sentido, tendo expressoes de resistencia surgindo em todo o mundo e nem sempre
saídos das universidade, mas muitas vezes das próprias classes dominadas que
sentem na pele toda a exploração e adversidade.
Tendo empreendido esse movimento, surge entao a necessidade de lutar
coletivamente para que as assimetrias de poder sejam postas abaixo, valorizando
até mesmo pequenas conquistas, desde que estas representem algum ganho
concreto de margem de manobra. E a política se mostra um dos caminhos para
essa transformação, pois através dela é que podemos contituir o projeto da
autonomia, mediante a reflexão lúcida dos indivíduos.
Reafirmamos, portanto, a necessidade de se compreender as relações nas
quais as coletividades se criam e se reproduzem e entender que o desenvolvimento
necessita ser apreendido para muito além da pura satisfação econômica, pois a
dinâmica social na qual está inserido se encontra necessariamente permeado de
um conjunto de outras relações, materiais e imateriais, de conflitos e de
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racionalidades que caracterizam a complexidade social que vivemos. O
desenvolvimento adquire então um status de transformação da sociedade, na qual
possamos reproduzir os princípios da autonomia.
Outro ponto de fundamental importancia para essa contrução são as disputas
de poder que tem sua expressão espacial a conformação de territórios. Se o poder
hegemonico se apropria do espaço, domina as relações nele estabelecidas e
conforma territórios heterônomos, para combatê-los é preciso se opor à esse
poder. Precisamos, pois, buscar a construção de uma nova expressão espacial que
permita a conquista de novos direitos e liberdades para o maior numero possível
de pessoas, facilitando a mobilidade, questionando e eliminando símbolos que
induzam ao preconceito e extinguindo fronteiras e barreiras ilegitimamente
excludentes.
O papel das ONGs neste processo precisa levar como premissa a liberdade e
autonomia de cada coletividade quando da construção de seus projetos de
desenvolvimento. Com isso, sua atuação precisa ser limitada à contribuição para
uma discussão crítica e ao apoio técnico quando da escolha dos meios utilizados
para a mudança social desejada. Cabe a cada coletividade conduzir de forma
amplamente democrática os caminhos e os fins a que se destinam cada decisão,
considerando para tal suas demandas, seus desejos e suas afetividades. Podemos
dizer entao que a partir desse momento teremos dado alguns passos importantes
no caminho para os desenvolvimentos das coletividades, que possibilitarão mais
adiante uma mudança estrutural na sociedade como um todo.
Estamos, portanto, diante de um desafio no qual não podemos apontar
soluções prontas e fechadas. Não tivemos a pretensão – e nem poderíamos – de
propor um novo modelo de desenvolvimento. Nosso objetivo era tão somente a
tentativa de buscar caminhos possiveis para uma mudança no conteúdo do
desenvolvimento, para um desenvolvimento libertador, como autodeterminação da
sociedade e das relações que estabeleçam. Um desenvolvimento capaz de
transformar o mundo em que vivemos para um outro no qual, apesar dos conflitos
que certamente existirão, haja mais garantias de igualdade, justiça social e
qualidade de vida. Acreditamos ser esse um caminho possível!
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