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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC / SP
SUHAILA ANDERE MAHASEN
Desenraizamento Cultural e Religioso e suas repercussões
psíquicas em drusos inseridos na cultura brasileira.
Mestrado em Psicologia
São Paulo
2009
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1
SUHAILA ANDERE MAHASEN
Desenraizamento Cultural e Religioso e suas repercussões
psíquicas em drusos inseridos na cultura brasileira
Dissertação apresentada como exigência
parcial para a obtenção do título de mestre
em Psicologia sob a orientação do Prof.
Dr. Gilberto Safra.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo
2009
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Dedicatória
Dedico este trabalho ao meu orientador,Gilberto Safra, que acompanhou
todos os meus passos na formulação desta dissertação, iluminando meu caminho
com sua sabedoria, sua compreensão e dedicação que é peculiar a seres
grandes e iluminados como é o Professor Gilberto! Obrigada, Gilberto!
Independentemente do percurso ou rumo que suas vidas possam ter tomado,
independentemente do sucesso ou vitórias alcançadas, faço essa dedicação àquele
momento da história de suas vidas em que foram atravessados pelo sofrimento
silencioso e enlouquecedor do impedimento dos seus gestos, o impedimento da sua
própria ação, o impedimento do poder “Ser”. Souberam o significado do
desenraizamento, sentiram a dor, da imposição, da opressão, do impedimento.
Assim como eu! Dedico este trabalho à minha querida irmã Muna e ao meu querido
irmão Walid.
Dedico este trabalho também à minha querida filha Dunia, que sempre me
acompanhou com muito carinho, amor, atenção e dedicação; sempre esteve
presente na minha vida, em todos os momentos:felizes,difíceis,alegres,tristes..enfim
durante todo a nossa trajetória pela vida,principalmente quando passamos a viver
entre Brasil e Líbano! Dunia, (significa “Mundo” em português) foi grande exemplo
de decisão, de coragem, merece a minha admiração e respeito, ao enfrentar as
imposições de uma sociedade tão rígida em sua religiosidade, em seus padrões,
costumes, tradições, enfim enfrentar a dualidade cultural-religiosa. Foi “Donna”
como é carinhosamente chamada, da própria ação,do seu gesto criador,da sua
vontade. “Foi Gente”.
3
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos e minha eterna gratidão ao Prof. Dr. Gilberto Safra que,
através da sua sensibilidade, sabedoria e riquíssima teoria, abriu meu horizonte,
minha visão no percurso deste trabalho, surgindo como um alvorecer ao encontro da
minha sobórnost.
Agradeço à Dra. Ida Kublikowski que, com seu jeitinho peculiar de ser, meigo,
a sua sensibilidade para com os alunos e firmeza nos conhecimentos, me
proporcionou controle, segurança e confiança para o percurso deste meu trabalho.
Agradeço à Professora Marlise Bassani pela mão amiga, pelo positivismo e
astral contagiante, agradeço a contribuição ao me oferecer uma abertura e nova
visão através da psicologia ambiental, principalmente no que se refere ao apego ao
lugar e à apropriação de espaço. Enfim.... Foi uma excelente abertura!! Obrigada,
Marlise!!
Agradeço à Mestra em português, Prof. Ana Lúcia Machado da silva, uma
mão amiga que me acompanhou neste trabalho.
Meu especial agradecimento aos meus queridos pais Najm e Mouhab que me
apoiaram em todos os sentidos no percurso desta minha dissertação, principalmente
com o apoio material sem o qual não poderia hoje estar aqui. Obrigado a vocês dois!
Que Deus os Proteja.
Fica aqui meu agradecimento à minha irmã Mégida que esteve presente em
um dos momentos mais difíceis que atravessei, Obrigada, Mégida!
Acrescento meu especial agradecimento à minha Filha Dunia que sempre
apoiou os meus passos, encorajando, confiando! Enfim... Minha filha, uma pessoa
verdadeiramente autêntica, fiel ao que pensa ,sente e age!! Obrigada, Filha!
Meu carinhoso agradecimento à minha querida irmã Ragda,que mesmo
fisicamente longe de mim,me envolveu com seu carinho,afeto e atenção, sempre
presente em todos momentos da minha vida. Obrigada Ragda!
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo a investigação das repercussões psíquicas
de drusos em situação de desenraizamento cultural e religioso. Pessoas que
passaram por tal experiência nos mostram que o desenraizamento promove um
adoecimento do self. Para a realização desse trabalho entrevistei cinco drusos em
situações de desenraizamento. A análise das entrevistas foi feita por meio do
referencial psicanalítico. Esta dissertação pretende contribuir para a discussão da
questão do desenraizamento, problema bastante frequente no mundo
contemporâneo, a fim de melhor compreender esse tipo de problemática para
posterior manejo clínico desse tipo de situação.
Palavras–chave: desenraizamento cultural, desenraizamento religioso, imigrantes,
drusos.
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ABSTRACT
Cultural and religious rootlessness and its psychological repercussion on druzes in
the Brazilian culture.
This work aims to research the psychological effects on a person placed in a
situation of cultural-religious rootlessness. People who had this type of experience,
have a kind of an illness of self that was promoted by the situation of rootless. For the
realization of this work I interviewed five druzes in situations of rootlessness. The
analysis of the interviews was done through the psychoanalytical references. This
thesis aims to contribute to the discussion of the issue of rootlessness, a very
common problem in the contemporary world, to better understand this type of
problem for subsequent clinical management of this type of situation.
Keywords: cultural roots, religious roots, immigrants, Druze,
6
SUMÁRIO
Introdução...............................................................................
07
CAPÍTULO I. A QUESTÃO DRUSA: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS: O IMIGRANTE................
16
CAPÍTULO II -
REFERENCIAIS TEÓRICOS: O
DESENRAIZAMENTO.............................................................
28
CAPÍTULO III ENTREVISTAS.................................................
41
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................
63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................
67
Anexo I: Imagens da Cultura, dos Costumes, das
Tradições Drusas...................................................................
71
7
INTRODUÇÃO
Vieram jovens para jovens terras, dos velhos montes para o novo
chão, olhos brilhando, brilho de esperança, e um velho cedro em cada
coração.
Plantaram frutos na terra bendita, deram seus filhos gratidão, são
brasileiros com brilho nos olhos, e um velho cedro em cada coração.
Riskalla Tuma. São Paulo: In: Zaidan. As raízes Libanesas no Pará.
2003, p.95.
O interesse pelo tema sobre o sofrimento da pessoa em situações de
dualidade cultural-religiosa é decorrente da vivência em conflito do imigrante árabe
no Brasil, uma vez que culturas, religiões e o meio social são completamente
diferentes.
Tal diferença causa conflito nas relações interpessoais. Por exemplo, na
infância, os amigos não podem ser diferentes do meio árabe, sendo proibido o
envolvimento com o outro de outra comunidade. Quanto ao casamento, prevalece a
imposição social do grupo árabe, uma vez que é permitido o casamento de
pessoas pertencentes à mesma comunidade e religião. Os tabus, as regras, as
comunidades e a religião não podem ser violados ou quebrados
O lema é: “não se misturem!”. Assim, o druso não se casa com um católico ou
com um mulçumano. o catolicismo, religião mais liberal quanto a essa questão,
aceita com mais tranquilidade quando ocorre um casamento com alguém
pertencente a outra religião.
8
Para os drusos, quando a tradição vigente é quebrada, a pessoa que não
segue os padrões estabelecidos pela comunidade é banida do grupo, renegada por
todos e essa decisão torna-se irrevogável. Quanto aos filhos, estes não são
considerados drusos se forem de uma mulher drusa cujo esposo não pertence a
este grupo religioso. Ao contrário, os filhos de um homem druso, casado com
alguém não druso, são considerados drusos, porém são rejeitados por muitos dessa
comunidade, pois não terão permissão para se casar com filhos de outros drusos.
Apesar da diferenciação sociocultural e religiosa, o árabe sai de seu país de
origem por motivos políticos e econômicos. No caso do Líbano, as divergências
socioculturais, religiosas e políticas causam sofrimento ao país em todos os sentidos
e impedem o equilíbrio existencial por causar conflitos gravíssimos, tal como a
guerra ocorrida em 2006
1
. O perigo de uma nova guerra continua possível e
provável, dessa vez pela oposição dos mulçumanos à união política entre católicos e
drusos, além de envolver outros interesses.
A sociedade vive um estresse cada vez mais intenso. Além disso, o
desemprego é crescente, que o país não é industrial, mas vive do turismo. Muitos
libaneses resolvem sair do país e tentar novos rumos em busca de maior
estabilidade financeira, psíquica e e de paz de espírito. Buscam criar em outro país
seu mínimundo, estabelecendo uma comunidade com regras, padrões, costumes,
como se estivessem ainda na sua terra de origem.
Na nova “terra”, os libaneses vivem o dia-a-dia sem se entrosar aos costumes
locais; criam um mini Líbano dentro de outro país, fato muito difícil e complicado
principalmente para os seus filhos, pois estes se sentem estrangeiros em seu
próprio pais de nascimento, falam árabe antes mesmo de falar a língua deste país,
vão para a escola, porém não podem se envolver, seguindo de forma rígida a
tradição e os costumes impostos. Essa nova vida acontece de modo conflitante e
sofrida, pois nessa nova “realidade” estes imigrantes tentam implantar a sua cultura
1
Guerra de 2006 devido a um seqüestro de soldados árabes por parte dos mulçumanos foi condição
suficiente para Israel declarar guerra e foi uma guerra entre o lado mulçumano do Líbano e
Israel,guerra que teve duração de quase um ano,na qual e milhares de libaneses saíram do Libano
em direção a diferentes países.
9
em um meio completamente divergente. Estes jovens passam por um sofrimento
muito grande mesmo estando em seu país natal, pois o fato de “saírem” de sua
comunidade através de um casamento com pessoa de outra religião (druso com
mulçumano ou druso com católico),ocorre uma ruptura com as leis de seus
antepassados, com os seus tabus, as suas regras, os seus costumes, os seus
mitos..
Esse sofrimento que atravessa a pessoa em situação de conflito cultural pode
ser abordado por meio dos estudos de Safra (2001). Esse autor situa a importância
do registro psíquico na prática clínica relacionado ao o campo sóciocultural,
ressaltando a importância de se contemplar as necessidades de pertencimento em
uma situação que contemple as necessidades éticas do ser humano. Essa
perspectiva enfatiza a importância de se levar em conta o processo de enraizamento
do ser humano na terra e no espaço sóciocultural.
Nessa perspectiva, o processo analítico poderá vir a contemplar essas
necessidades fundamentais. Para Safra (2004), a ruptura do ethos humano, ethos
compreendido como morada, demanda que no processo psicanalítico ocorra um
encontro ético, que possibilite ao analisando apropriar-se de seu percurso para vir a
encontrar experiências que sejam significativas e enraizadoras. Para esse autor
cada ser humano é a singularização da história de uma comunidade. Compreender
o ser humano como singularização da vida de muitos implica dizer que cada ser
humano é a singularização da vida de seus ancestrais e é o pressentimento
daqueles que virão. O ser humano, de acordo com Safra, é a singularização da
história da humanidade. É a aparição dos seus ancestrais e é clareira do futuro.
O acontecer humano, assinala o autor, é um acontecimento que ocorre em
meio à comunidade humana, como um fenômeno transgeracional, enraizado nos
solos do mundo cultural humano e do mundo natural, uma vez que o homem não
existe sem a natureza e sem a cultura. A questão das origens é, então, fundamental,
pois é a raiz do ser humano que lhe dá parâmetros e perspectivas de vida.
Enfim, a questão psíquica de descendentes de libaneses e o seu sofrimento
por pertencer a duas culturas diferentes tornam-se um problema a ser investigado
10
pela Psicanálise, tendo em vista a importância de se ajudar clinicamente pacientes
que se encontram nesta situação de desenraizamento, tão freqüente na atualidade.
Safra (2004) ao situar a importância do registro psíquico na prática clínica,
ressalta o processo de busca à conquista da verdade do self, à integração psíquica.
O acontecer humano é reconhecido como uma experiência estética: a
impossibilidade do acontecer humano leva a um sofrimento, que é fruto da ruptura
do ethos humano, pensar no ser humano é pensar no enraizamento na terra, na
história de um povo.
Ele apresenta a concepção de sobórnost, cuja significação abrange a idéia de
unidade, conciliação, sentido comunitário, em registro ontológico. Compreender o
ser humano como singularização da vida de muitos implica dizer que cada ser
humano é a singularização da vida de seus ancestrais e é o pressentimento
daqueles que virão. (Safra, 2004, p.43).
A questão das origens é, então, questão clínica fundamental, pois é a raiz do
ser humano que o dá parâmetros e perspectivas de vida.
Enfim, a questão psíquica de filhos de libaneses e o seu sofrimento,
decorrente de seu desenraizamento,por estarem relacionados a duas culturas
diferentes, torna-se um problema para a área da Psicanálise. Este trabalho tem
como objetivo a investigação do estudo do desenraizamento cultural e
religioso e suas repercussões psíquicas em drusos inseridos na cultura
brasileira. Eu mesma tenho vivido as decorrências deste tipo de questão, pois sou
descendente de libaneses e sou drusa, vivi no Líbano durante 20 anos, atendendo,
em minha profissão como psicóloga, pessoas que também viveram os confrontos
entre a cultura drusa e a cultura brasileira. A questão que busco abordar nesse
trabalho tem sido, portanto, uma questão central de minhas reflexões e de minhas
investigações clínicas durante esses anos.
11
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para a condução deste trabalho utilizarei os referenciais teóricos
psicanalíticos, principalmente aqueles decorrentes dos trabalhos de Safra
(1999/2005).
Este autor assinala a questão do desenraizamento decorrente da imigração e
estuda as repercussões desse fenômeno no sofrimento psíquico da pessoa. A
imigração pode deixar feridas profundas no sentimento de si mesmo. Trata-se de um
tipo de desenraizamento que torna, às vezes, difícil para o imigrante e para seus
descendentes reconhecerem-se em suas referências culturais, no novo ambiente
que os recebe. É freqüente ouvir dessas pessoas, na situação clínica, a queixa de
sentirem uma ruptura no sentido de si e a perda da continuidade de ser,
anteriormente, proporcionada pelas suas inserções nos costumes de vida de seus
ancestrais. São feridas que as isolam das formas estéticas-sensoriais peculiares aos
seus países de origem. Esses indivíduos, ao restabelecer o contato com as formas
estéticas de sua origem, sentem que elas os revigoram e os curam. Se estivermos
atentos a essas questões, poderemos perceber que cada região da terra tem um
tipo de luminosidade, de cheiros, de sonoridade, de estética, que caracteriza aquela
comunidade. O imigrante é profundamente sensível a esses elementos. (Safra,
G.1999).
O acontecer humano, segundo Safra (2004), é um acontecimento que ocorre
em meio à comunidade humana, como fenômeno transgeracional, enraizado nos
solos do mundo cultural humano e do mundo natural. Segundo o autor, o homem
não existe sem a natureza e sem a cultura (1999). O ser humano é afetado pelos
acontecimentos no mundo, pelas transformações sócio-culturais e seus efeitos na
12
estética, na ética e nas relações entre os homens e que acarretam novas formas de
subjetivação e novas modalidades de sofrimento.
Nesse sentido, compreender as raízes, a origem, a cultura e a religião dos
drusos, bem como acessar a essência filosófica cultural-religiosa desta comunidade,
é auxiliar o descendente a se re-posicionar no mundo. Trata-se de ajudá-lo a se
enraizar e a se colocar em uma posição de reconhecimento de sua situação.
Retomar a origem é recuperar a memória do ethos
Outros autores estudaram amplamente esse assunto. Entre eles gostaria de
destacar: Weil (2001), Zaidan (2001), Makarem (2003), Assrauy (1967), entre outros.
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METODOLOGIA
Nesse trabalho realizei uma investigação (pesquisa qualitativa) orientada pelo
vértice psicanalítico. A Investigação é intrínseca ao método psicanalítico. Safra
(1993) afirma que o psicanalista é essencialmente um pesquisador do psiquismo e
que, à medida que investiga, auxilia o analisando na integração de si mesmo e no
descobrimento e reencontro de sua verdade. Sem essa atividade de pesquisa, o
analista se arriscaria a se transformar em um técnico, que repetirá fórmulas
conhecidas. Para esse autor, é a contínua busca da verdade, da realidade psíquica,
que fundamenta o trabalho e a ética do analista e o leva a usar sua experiência
clínica para investigar, conceituar, publicar e se manter em contínua evolução
profissional. Neste trabalho, embora eu não tenha usado o processo psicanalítico
como metodologia de investigação, empreguei a Psicanálise como referência teórica
para compreender o que os meus entrevistados me disseram. Creio que esse tipo
de investigação é também uma contribuição para o campo psicanalítico, por auxiliar
na compreensão de um fenômeno tão fundamental no mundo contemporâneo: os
efeitos psíquicos da experiência de desenraizamento.
Busquei compreender por meio desta pesquisa de que modo cinco drusos, de
diferentes idades, inseridos na sociedade brasileira, foram psiquicamente afetados
pela experiência de desenraizamento. Utilizei como procedimento de investigação a
entrevista não-diretiva na qual procurei ofertar ao entrevistado a possibilidade de
comunicar as suas experiências sem constrangimento. A entrevista é um
procedimento freqüentemente utilizado em pesquisas qualitativas e acontece em um
encontro interpessoal para a obtenção de informações verbais e/ou escritas, porém
de uma maneira o-dirigida, consistindo em um instrumento de pesquisa científica
a fim de gerar conhecimentos novos sobre vivências humanas. A entrevista não-
diretiva é um instrumento que possibilita a fluência do discurso, assim como
espontaneidade do entrevistado segundo suas particularidades. Conforme Bleger
(1989) assinala, quem comanda a entrevista não-diretiva é o pesquisador, mas
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quem a dirige é o entrevistado, possibilitando assim que o pesquisador possa
perceber as nuances da comunicação e expressão do entrevistado, assim como a
seqüência e organização de suas falas. Em nosso caso, as entrevistas fornecem um
conjunto de dados que podem ser analisados e interpretados pelo vértice
psicanalítico. Assim sendo, farei uma análise do conteúdo dos enunciados dos
discursos dos entrevistados buscando o sentido e o significado de suas falas.
Na entrevista a pessoa apresenta sua situação de vida por meio da
linguagem. A fala de alguém acontece com função indicativa, comunicativa,
expressiva e conotativa. Em sua função conotativa, exprime pensamentos,
sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão
(Chauí, 1997). Para Bourdieu (1989), a linguagem é um enorme depósito de pré-
construções naturalizadas, portanto ignoradas como tal, que funcionam como
instrumentos inconscientes de construção de conceitos. O depoimento dos
entrevistados possibilita conhecer aspectos de sua condição existencial, bem como
facetas de sua inserção em suas comunidades étnicas e sociais. Apreender a
riqueza desses depoimentos é um desafio e seus resultados poderão ser
importantes para se pensar a condição de vida de pessoas em situações
semelhantes.
Sendo eu filha de imigrantes e também drusa, vivo nessa comunidade, com
todas as possibilidades e dificuldades que essa situação apresenta. Ao longo dos
anos, conheci várias pessoas que viviam a situação de desenraizamento e eu
conhecia os entrevistados nessa pesquisa antes de convidá-los a participar da
mesma. Eu os convidei, pois sabia que viviam situações paradigmáticas decorrentes
do desenraizamento vivido por drusos vivendo na cultura brasileira.
Debiex Rosa e Albino Pacheco Filho (2002) afirmam que os estrangeiros
fazem parte da história do nosso país. No entanto, as pesquisas sobre migrações no
Brasil ainda são escassas e têm como autores os próprios imigrantes e seus
descendentes sempre preocupados com a adaptação, a integração e os conflitos
provocados tanto pelo esforço de preservação como pela perda de cultura trazida
dos países de origem. Esses estudos acompanham os picos abalados pelas crises
de identidade ou pela emergência de graves sintomas psíquicos e sociais. São
15
estudos setorizados e abordam as respectivas formações étnicas dos
pesquisadores, mas também se inscrevem no âmbito geral de interesse das ciências
humanas à medida que esse movimento migratório dos séculos XIX e XX e início
deste milênio não deixa de assinalar os impactos causados no desenvolvimento
econômico na produção cultural e na constituição da identidade brasileira.
Reconheço que minha investigação está alinhada com a descrição do campo
feita pelos autores acima Citados.
Este trabalho irá se constituir dos seguintes capítulos:
No primeiro capítulo irei apresentar um resumo da história drusa e da
comunidade druza.
No segundo capítulo abordarei as considerações teóricas sobre o
desenraizamento.
O capítulo três apresentará as entrevistas com cinco drusos que viveram a
experiência de desenraizamento.
No capítulo quatro apresento as considerações finais sobre a pesquisa
realizada.
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CAPITULO I
A QUESTÃO DRUSA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS: O
DESCENDENTE E O IMIGRANTE
Das montanhas da Síria e do bano eles desceram com seu agudo
perfil, sua capacidade de trabalho e de sonho, sua ânsia de viver,
sua áspera coragem. Atravessaram o mar oceano e desembarcaram
no Brasil. No dia seguinte todos eles eram brasileiros dos mais
autênticos, dos mais característicos, nacionalíssimos. Em nossa
democracia racial - nossa contribuição à cultura universal, ao
humanismo - o sangue árabe desempenha um papel da maior
importância. Jorge Amado. In: Zaidan,A. As Raízes Libanesas no
Pará,2001, p.135
A Imigração é uma vida sacrificada, porém afasta a gente da
humilhação. Comemos o que caçamos, e bebemos às vezes onde
os animais bebem, e onde às vezes recusam beber. Suportar esse
sofrimento é uma tragédia, mas tragédia maior é suportar a
humilhação dos outros. Elias Farhat. In:Zaidan,A. As raízes
libanesas no Pará. 2001, p.63
Até 1914, começo da I Guerra Mundial, desembarcaram no porto de Belém de
15 a 25 mil imigrantes sírio - libaneses, que se espalharam pelo Acre, Amazonas,
Rondônia, Roraima e Belém do Pará.
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A Odisséia dos primeiros imigrantes que aqui chegaram
Os primeiros imigrantes que chegaram ao porto de Belém passaram por
dificuldades e sofrimento. Para a imigração árabe não houve um censo, por isso não
é citada na História do Brasil. Isto se deve ao fato de que os sírio-libaneses,quando
chegavam aqui, não traziam seus passaportes que indicavam sua nacionalidade,
mas documentos turcos pela ocupação pelo Império Otomano da Síria e do Líbano.
Eram então erroneamente chamados de “turcos”. Devem ter vindo durante quase
um século para o Brasil, de 1890 a 1970, 500 mil libaneses. Hoje o Brasil tem,
aproximadamente, entre libaneses e seus descendentes, 5 a 6 milhões de pessoas.
Zaidan,A.(2001 cita o escritor e jornalista Tufic Doun, libanês nascido 1880
que emigrou para São Paulo, falecendo 1965. Doun nos legou “Memórias da
Imigração, , que traz um relato dramático desde movimento migratório em direção à
América.
O drama do emigrante libanês começava no porto de Beirut, com a
polícia das autoridades turcas que dominavam o país, pois o sultanato
otomano não permitia a emigração, especialmente dos homens de 18
a 30 anos, que eram obrigados ao alistamento no exército; assim, a
saída dos imigrantes era ilegal.Quando chegavam navios no porto, os
agentes de viagens Samssar
2
anunciavam a hora desta chegada e
,quando ouviam essa notícia ,as pessoas aflitas para emigrar
imediatamente penhoravam ou vendiam seu pertences e corriam para
o porto. Começava então o trabalho de contrabandear as pessoas
para dentro dos navios. Estas pessoas eram exploradas pelo
samssar que recebia gorjeta dos emigrantes e dividia com o policial
que o levava por trás da aduaneira e o jogava no porão de onde não
saía até que o navio partisse do porto. Às vezes usavam o emigrante
como carregador e lhe arrancavam até o último tostão,quando os
marinheiros não os obrigavam a descer em lugares que não era o país
de destino desejado. ocorria outro tipo de sofrimento do
emigrante,pois descia em um lugar onde não conhecia ninguém ,
nem a língua local, se fosse feliz, encontraria algum”patrício” como
2
Samssar: tradução no português de corretor
18
assim eram chamados., O infeliz passava dias nas ruas faminto e
desamparado.
Conta o Sr.Mohamad da cidade de Ras El Matn, que veio para Belém
do Pará, que no terceiro dia na nova terra seu parente o levava para
conhecer a cidade e aí, debaixo de uma árvore numa praça, depara
com um companheiro de navio que ia para o México O comandante
do navio disse que Belém era o México, e este coitado apelou a nós
como se fôssemos a salvação de seu naufrágio,pois estava três
dias dormindo pelas ruas e não havia se alimentado. Assim foi o
começo da imigração
3
.(P.67)
Esse autor afirma que os imigrantes libaneses são um povo de raízes
humanas e pacíficas que vieram de um Oriente oprimido pelos mandantes otomanos
autoritários e pelos latifundiários - religiosos temporais políticos locais; um Líbano
sacrificado por países militarizados, colonialistas e monopolizadores, que impediam
seu progresso. Assim, quando vieram para o Brasil, foram acolhidos com respeito e
dignidade, propiciando um novo ambiente para iniciar uma vida pacífica.
3
Zaidan.A. As Raizes Libanesas no Pará.Belém,Pará:2003.Editoração Eletrônica Márcia
Valéria M.Batista.
19
O Líbano na idade Média!
Segundo Zaidan (2001), antes da conquista árabe islâmica, no ano de 632, o
Líbano ainda era governado pelos bizantinos. Entretanto, muitas tribos árabes do sul
da Península Arábica haviam se radicado na Síria e no Líbano em sua parte central
(Vale do Bekaá), nos anos anteriores, enquanto que no litoral a população era
formada por descendentes dos antigos fenícios, dos romanos e dos gregos. Os
árabes conquistaram o Líbano. Desde estes dias o Líbano tornou-se um território
árabe. Os companheiros do Profeta Maomé vieram a fim de combater os bizantinos
romanos pelos mesmos portos libaneses nos quais os apóstolos de Cristo viajavam
para pregar sua missão.
com o domínio árabe instaurado,quando o califado passou para
Damasco,após a sectarização do Islã entre sunitas e xiitas, o primeiro califa da
dinastia amauíta, Mauwiat Bem Abi Sufian, trouxe muitas tribos árabes e persas
para as cidades do litoral sul da região de Baálback, no Líbano.As cidades costeiras
abandonadas pelos antecessores romanos e bizantinos foram ocupadas por estas
tribos que em sua maioria eram de formação xiita e que, nos dias atuais, constituem
50% da população do país.
Este califado aliou-se aos libaneses, concedendo-lhes tratamento especial,
pois tinham propósito de concretizar seus projetos expansionistas, necessitando
conhecimentos e experiência dos habitantes locais, na formação de uma
poderosíssima força naval para fortalecer seu combate contra romanos e bizantinos
que dominavam o Mediterrâneo na época. Venceram assim as batalhas contra seu
adversário.
O segundo califa da dinastia abassiata, Abu Jaffar El Mansour,no século X,
defendeu heroicamente o Líbano contra os invasores bizantinos. Iniciou-se um
processo de declínio em vista da grande extensão territorial deste califado, o que
gerou uma divisão em sultanatos locais. A Espanha, denominada Andaluzia,
desligou-se do califado de Bagdá e fundou uma dinastia amauíta própria pois se
diziam descendentes daquela mesma dinastia de Damasco. No Egito e no Norte da
África surgiram os fatimistas, no Norte da Síria, os handanitas. Outras divisões
20
também ocorreram. Com essa divisão, o Líbano ficou sob domínio dos fatimitas do
Egito, ocasião em que seus governantes, pertencentes à tribo tanoukh, obtiveram
maiores benefícios do que sob domínio dos abassitas. Nesse período, haviam
aderido à seita religiosa drusa, uma seita ismaelita da facção xiita islâmica fundada
pelo sexto califa fatimita xiita,”El Hákem Bi Amr Alá”(“Governador por Ordem de
Deus”-996ª 1012).
Para melhor visualização e compreensão do aparecimento da religião drusa e
do lugar que ocupa ao lado de outras religiões, irei dialogar com diferentes autores:
Valter Kuchenbercke (2004), Antonio Vergote, (2001), Safra (1999,2001), Marília
Ancona Lopes (1999).
Kuchenbercker (2004) nos diz que o fenômeno religioso faz parte da história
da Humanidade, desde tempos remotos até a modernidade. É um fenômeno
universal, individual, cultural e social. Temos diversas formas religiosas na
Humanidade: Judaísmo, islamismo, Budismo, Cristianismo, Xintoísmo,
Confucionismo, Taoísmo, consideradas as grandes religiões do mundo em
diferentes modalidades: seitas, filosofias, doutrinas, heresias e suas ramificações.
Etimologicamente, o termo religião teria relação com a palavra re-legere, que
significaria reler, religar (re- ligare), ou ainda, re-eligere, que significa reeleger.
Ambos conceitos nos dão idéia de volta a uma situação anterior, ou seja, ligar-se
novamente ao Criador, através de crenças, normas, ritos, ou costumes. A
pluralidade religiosa é em parte resultado das diferentes formas de entender e
perceber o mundo e o próprio Homem.
A religião sempre fez parte da cultura dos povos. Em todos os tempos,
épocas, povos, civilizações e culturas, a preocupação com o eterno está presente na
vida do homem. A religião é parte do sistema de um povo. Enquanto cultura envolve
não as crenças, mas também as condutas. Entende-se por cultura o conjunto de
modos de fazer interagir e representar, desenvolvido pelos homens como uma
solução ou resposta para as necessidades de sua vida em comum, como forma de
comportamento humano. A religião é uma destas formas. Assim, todo homem
estaria inserido culturalmente em um horizonte religioso. Por esta razão,
21
reconhecemos na religião um processo social de construção de concepções de
Deus. A religião é algo intrínseco a um povo e como tal deve ser estudada.
Enquanto fenômeno cultural, a religião está presente em todas as sociedades e em
todos que de alguma maneira lidam com ela. É, pois, um fenômeno universal e
particular, que em última instância é tido como um ato de fé, porque a razão não
compreende plenamente as afirmações da religião. A religião, assim com a ciência,
possui um caráter investigador e questionador, ou seja, busca responder às
perguntas intrigantes do ser humano. Neste sentido, a religião sempre foi e será
objeto de estudo da ciência, especialmente das ciências sociais, como a
antropologia, a sociologia e outras ciências que estudam os costumes e formas de
vida do Homem.
Segundo Kuchenbercker (2004), as religiões podem ser classificadas quanto ao
conteúdo:
- Primitivas: primeira forma de expressão religiosa. São religiões nas quais o culto
aos deuses é realizado de forma acrítica e pré- reflexiva com adoração de alto teor
mágico e mistério. Ex: animismo, magismo.
-Sapienciais: fundamentam-se na sabedoria, na busca pelo conhecimento.
Destacam-se pela meditação, busca da sabedoria, sentido da vida e pela
contemplação. Ex: Budismo, Hinduísmo, Confucionismo e Xintoísmo.
-Proféticas ou reveladoras: são religiões que surgem a partir de uma profecia ou
revelação. Partem do pressuposto de que o ser superior revela sua mensagem ao
seu povo, através de profetas. Exemplo: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.
- Espiritualistas: admitem a influência de forças espirituais que agem tanto sobre as
pessoas como sobre a natureza, tais como a umbanda e o espiritismo.
-Místicas ou filosofias de vida: são religiões, seitas ou grupos que não seguem
uma estrutura rígida, buscam a fraternidade entre os homens, através de
ensinamentos éticos - morais. Ex: Maçonaria, Seicho-no-iê, teosofia.
Vergote (2001) afirma que nas civilizações antigas a necessidade da religião seria
uma necessidade religiosa e humana, os homens pensavam o sentido da vida, do
22
mundo e da religião, a partir do interior da visão religiosa do todo. Dessa maneira,
tudo estava penetrado da idéia da necessidade de religião. É ainda essa concepção
que gostariam de restaurar judeus ortodoxos em Israel, islamitas fundamentalistas e
cristãos integristas. Acrescenta que a modernidade se caracteriza pela progressiva
dissociação entre a religião e os domínios que compõem a vida terrestre dos
homens.
Safra (2005) assinala que no mundo pós-moderno, em que tantos aspectos
do ethos humano encontram-se fragmentados, torna-se importante enfocarmos por
quais maneiras o direcionar-se ao transcendente ocorre na clínica contemporânea
Tendo em vista essas contribuições, de que modo poderíamos compreender
a religião drusa?
O DRUSISMO
A religião Drusa
Dentre os tipos de religiões acima explicadas, o drusismo se enquadraria no
tipo de religião profética ou reveladora. A religião drusa é uma novidade em toda a
literatura mundial, pois inexiste qualquer obra sobre o assunto que possa servir de
ponto de partida para o pesquisador que tenha querido penetrar no âmago da seita
drusa.
O drusismo é uma filosofia mística de cunho religioso. A seita drusa é um dos
mais impenetráveis mistérios que o Oriente guarda até os dias atuais. Poucos são
os autores que tratam de sua história, como Assrauy (1967), Mustafa Makarem,
(2003) que trazem à luz um pouco do que é o Unitarismo druso.
Nagib Assrauy (1967) nos esclarece que os adeptos da nova seita foram
extremamente perseguidos por seus contemporâneos, pois tiveram de se fechar
para preservar e guardar os seus livros sagrados e poderem guardar os depósitos
da que lhes legaram os cinco fundadores da seita, representados pelas cinco
pontas da estrela, símbolo e emblema da nação drusa. Foi preservado o segredo, de
23
geração para geração, por quase dez séculos, mesmo para muitos dos próprios
professantes do drusismo. Poucos entre eles possuem o conhecimento da sua
religião, que ficou restrito unicamente e exclusivamente para iniciados, que têm de
se sujeitar às condições rígidas e plenas de austeridade.
A doutrina unitarista drusa teve seu início no século X da Era Cristã, no Cairo,
Egito, e a revelação foi feita no governo do sexto Califa Fatimita,”El Hakem Bi Amr
Allá
4
, descendente de Fátima, filha do Profeta Maomé, que em árabe é Muhamad, o
fundador do Islamismo.
Em 996 d.c, Al Hakem Bi Amr Allá assume o poder, com apenas 11 anos de
idade. Os fatimitas eram Muçulmanos Xiitas, em um tempo de muitas divergências
político-religiosas entre os Sunitas e os Xiitas. Muito jovem, criou um dos maiores
centros religiosos, Al Azhaar, 1005 d.c., local de encontro de filósofos, religiosos e
estudantes, visando aberturas para novos conhecimentos e culturas.
Em novembro de 1016, atendendo ao pedido de Al-Hakem Bi Amr Alaa, foram
feitas reuniões sucessivas com os missionários Luminares
5
, nomeados pelo próprio
Al Hakem Bi Amr Alaa. Após um ano de estudos, foi anunciada, revelada a nova
doutrina “Al Tawhid
6
” que em português é “Unitarismo”, juntamente com o livro
sagrado que eles denominaram “Al Hikmat
7
”,Iniciou-se o envio de missionários para
diversos lugares, anunciando e comunicando a chegada de uma nova fé, de uma
nova doutrina, e os seus seguidores foram chamados de ”Muahidin
8
que em
4
“El Hakem Bi Amr Alaa”, tradução em português : “ governador por Deus”
5
Luminares são seres divinos enviados por Deus
6
Al Tawhid que significa: Unitarismo, que é a unificação de Deus, ,que não gera e não é gerado, não tem
semelhança,é único
7
Al Hikmat : o Livro sagrado druzo,que significa o conhecimento,a verdade
8
Muahidin: São os seguidores do Al Tawihid,os druzos.
24
português significa “Unitaristas drusos”,e que prestavam um juramento de fidelidade
assinalado no livro “Al Mithak
9
”.
Nesta doutrina “Al Tawhid” acredita-se em um único Deus, que não gera e
nem é gerado, Deus criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, e basta dizer
as palavras: “Que assim seja”, para que a coisa seja. “Al Tawhid diz que a
consciência é a primeira criação de Deus, é a Luz Divina em nós, é a nossa
“Presença”, é o “Eu Sou”. Através desta Luz Divina, conhece-se e sente-se Deus, o
Criador, e pode-se unir a ele através da oração e práticas do bem, pois o espírito é
uma centelha divina imortal, que passa de um corpo para outro, até purificar-se e
retornar ao todo de onde proveio; além dessa conscientização, os drusos acreditam
na reencarnação. Crêem no Juízo Divino, na Lei do Carma, que sentencia a
recompensa ou a condenação. Seu Paradigma na vida consiste em sinceridade,
direito e justiça.
Ainda “Al Hikmat” o livro sagrado druso, diz que no núcleo central do Universo
surgiu a Terra e sucessivamente os minerais, as plantas e os animais, depois os
humanos em cujos corações residem as almas racionais. Com a criação do ser
Humano completo, corpo e alma, emerge a habilidade para escolher entre o certo e
o errado e a possibilidade de conhecer a sua origem divina. O Ser Humano é a
finalidade da Criação, foi criado para servir a Deus e professar sua singularidade. Os
Luminares bem como os seres humanos repetidamente passam de uma vida para
outra, o que é chamado de Reencarnação, ou seja, o renascer da alma em novos
corpos sucessivamente. Para os unitaristas as almas humanas foram criadas de
uma vez; seu mero é fixo e o está submetido a aumentos ou diminuições. O
corpo serve como um envoltório ou vestidura da alma e, após a morte, a Alma
renasce imediatamente em outro corpo. A alma em suas repetidas reencarnações
experimenta todas as condições de vida, de sorte e de infortúnio, de riquezas e
pobreza, saúde e doença, etc. Assim as almas têm repetidas possibilidades de se
redimir, purificar e alcançar a sua divindade originária.
9
Al Mithak,é o livro sagrado que contem os nomes das pessoas que prestaram juramento de fidelidade à
religião druza.
25
A receptividade à nova Doutrina foi tão grande que chefes de outras seitas
religiosas, temerosos de que a crença drusa fosse uma ação política e que viessem
a perder suas posições de líderes religiosos e consequentemente os seus cargos
políticos, após a morte de Al Hakem Bi Amr Allá, que foi assassinado, perseguiram
seus seguidores de forma cruel, assassinando-os, na mais cruel e sanguinária
campanha que se promoveu contra um ideal, o que levou os responsáveis a
fechar as portas a novas adesões, o que é mantido até os dias de hoje,
permanecendo apenas aqueles que entraram durante os 26 anos em que esteve
aberta a novos fieis.
Todavia a perseguição aos drusos não cessou aí, mas prosseguiu com
martírios incontáveis impostos àqueles que por ventura tivessem aderido aos
ensinamentos de Al Hakem. Foram caçados como feras e a perseguição aos
unitaristas drusos continuou por muitos anos. Para sobreviverem, os adeptos
tiveram de manter o maior segredo em torno das Escrituras Sagradas, o que perdura
até os dias de hoje.
Contudo, tal procedimento, se àquela época atendia às necessidades de
sobrevivência dos adeptos, e hoje prejudicial a esta comunidade. Existem
atualmente fora do mundo árabe cerca de 200.000 drusos, e quase a totalidade
desconhece os textos e fundamentos dos Escritos Sagrados e da filosofia do credo
de seus pais, ainda que esse credo esteja profundamente enraizado em
fundamentos os mais férreos e numa organização social e familiar das mais sólidas,
além de alicerçar-se em virtudes as mais apuradas e, finalmente, buscar ser a
síntese de todas as filosofias religiosas existentes. Os Unitaristas se mantêm fiéis
até os dias de hoje aos seus costumes, pois desde o início se opuseram a qualquer
aliança com outras tribos, preservando o inalterado sangue primitivo, considerado
como sagrado.
Essa perspectiva se mantém, causando males e prejuízos aos drusos, por
desconhecerem sua crença, quer historicamente quer socialmente. Entendemos não
haver, pois, nenhuma razão nos dias de hoje para que o mistério perdure, mas que
se deveria transmitir aos filhos o conhecimento de sua religião, que os drusos
crescem e se multiplicam na imigração sem conhecer absolutamente nada do credo
26
de seus pais. Este costume, na verdade, até mesmo impede que os drusos possam
ostentar a honra e o orgulho de serem descendentes de famílias que se mantiveram
altaneiramente, honrosamente, patrioticamente por quase mil anos, lutando com
bravura contra as vicissitudes que se antepuseram aos seus ancestrais. Esta
comunidade não pôde celebrar a honra de descender de antepassados que
enxergaram sempre muito além de seus contemporâneos e que tiveram a coragem
de empunhar, contra a ignorância de seu tempo e a ira dos governantes,a bandeira
do livre pensamento e das conquistas filosóficas que os mestres legaram à
humanidade.
A crença, a ou sentimento religioso é algo de profundamente particular no
homem e, como tal, é absolutamente intransferível e imutável, pois adere
inconscientemente à personalidade de cada um. A mulher drusa se libertou da
situação de submissão do passado, hoje concorre no campo cultural, artístico e
político. Muitos são os drusos que se destacaram ao longo da história como Sultan
Al Atrach, o Grande, herói nacional nas artes marciais; Chakib Arrislan, príncipe das
letras, no século XIX e XX, o Poeta Amir Nassereddine,”Principe das Poesias”; e
ainda o famoso poeta Khalil Gibran, a Família Jumblat que foi a maior moradia do
mundo árabe, onde o forno e o moinho funcionavam dia e noite para alimentar
inúmeras famílias que trabalhavam e hóspedes que a eles recorriam em busca de
ajuda.
Em quase todos os países do mundo encontram-se drusos, principalmente na
Europa, na Austrália e nas Américas, sempre voltados para o seu trabalho, cuidando
de conseguir um lugar na coletividade local, de construir algo de duradouro e útil a
todos.
A emigração trouxe porém um problema que existia a proibição à mulher
drusa de emigrar. Esta proibição se constituiu em um problema para os homens
drusos, pelo fato de que suas mulheres não podiam sair do país, o que os levava a
contrair núpcias com mulheres de outro credo religioso com a quaisl construiram
família. No entanto, esses homens sempre foram incentivados a guardar fidelidade
às tradições paternas e criaram, na comunidade estrangeira, templos, cemitérios,
27
constituindo uma sociedade e cultivando os hábitos de sua tria-mãe, das suas
raízes, das suas origens. (Assrauy,1967) Sheik Mustafa F. Moukarim , (2003) .
28
CAPÍTULO II
REFERENCIAIS TEÓRICOS: O DESENRAIZAMENTO
Para a condução deste trabalho os referenciais teóricos e metodológicos
sustentam-se principalmente na teoria psicanalítica, com base nas contribuições de
Simone Weil (1940), Safra (1995/2005), Maalouf (2005).
Korosec (1976) e Proshansky (1976) nos falam do simbolismo do espaço, que
parece estar ligado a sentimentos de pertencer, de fazer, de estar conectado e a
construção de identidade social. Os processos psicossociais compreendem os
processos cognitivos e afetivos, simbólicos e estéticos que dependem da relação do
indivíduo do grupo com situações ligadas aos modos de apropriação do espaço. Os
processos de formação do simbolismo do espaço o fundamentais para a
manutenção da identidade do indivíduo. O espaço simbólico gera dependência do
lugar entendida como vínculos que se estabelecem entre o indivíduo e o lugar.
Quando esse vínculo é aceito pelo coletivo, passa a ser um componente do sistema
de suporte social da comunidade. Chombart de Lauwe (1976), em relação à
apropriação de espaço, nos diz que o modo de apropriação do espaço de cada
grupo, de cada família e de cada indivíduo, depende dos modelos culturais, sociais,
de formas e estilos de vida. O ser humano se projeta entre e sobre o espaço do qual
se apropria produzindo uma identificação entre o indivíduo e o espaço. O espaço
reflete o modo de vida daqueles que o habitam, o que se dará de acordo com as
diferentes culturas. As intervenções urbanas dotam espaços com simbolismo a
priori, questões fundamentais para o estudo do desenraizamento.
O desenraizamento envolve a questão de tempo, espaço, cultura e religião.
Elementos fundantes da experiência estética. A palavra estética designa a ciência
do sentido, da sensação.
29
O sensorial, o estético, são, segundo Safra (2005), ingredientes básicos dos
processos de constituição do self e do enraizamento. Esse autor utiliza o termo
estético para abordar o fenômeno pelo qual o indivíduo “cria” uma forma imagética,
sensorial, que veicula a sensação de agrado, temor, terror, etc. Estas formas quando
atualizadas na presença do outro (analista) permitem que a pessoa constitua os
fundamentos ou os aspectos de seu self. As articulações do espaço, do tempo, do
movimento, da poesia e das imagens utilizadas pelo paciente guardam entre si uma
coerência interna, apresentando um mesmo estilo de ser, uma maneira peculiar de
estar na vida e no mundo, que reflete sua singularidade.
O self, segundo Safra (2005), é uma organização dinâmica que possibilita a
um indivíduo ser uma pessoa, ser ele mesmo. Trata-se de organizações que
ocorrem dentro do processo maturacional com a facilitação do meio ambiente. A
cada etapa deste processo uma integração cada vez mais ampla decorrente das
novas experiências de vida. O “eu” acontece em um registro representacional que
possibilita a um indivíduo uma identidade nas dimensões de espaço e de tempo. É
importante ressaltar que nem o self e nem o “eu” se confundem. Para esse autor o
ego é uma das instâncias intrapsíquicas de caráter funcional, articulador das
demandas do id, do superego e da realidade.
Segundo Safra (2005), o estilo de ser compõe-se das características da
manifestação na forma expressiva utilizada pelo indivíduo. O estilo apresenta a
singularidade da pessoa. Ele é estabelecido pelo campo sensorial mais importante
na organização do self do indivíduo, da biografia e dos enigmas de vida
característicos de seu grupo familiar. Esses enigmas são transmitidos de uma
geração a outra, em uma história familiar, de maneira tal que os diferentes membros
de um grupo familiar procuram dar solução àquela questão por meio de seu
percurso de vida pessoal.
O encontro estético possibilita que as formas sensoriais, que se organizam de
uma maneira privilegiada na relação mãe- bebê, constituem o ponto focal do
desenvolvimento da vida imaginativa. Por meio deste fenômeno, o
estabelecimento de uma ética do ser. Nela, o indivíduo passa a reconhecer o que é
bom para o seu vir-a-ser e para seu alojamento no mundo.
30
As formas estéticas têm sua origem nas configurações do corpo da criança
em contato como o corpo da mãe. As experiências estéticas estão vivas desde o
início da vida. Elas dão as condições para que o homem se constitua no mundo. É
um acontecer que se abre no corpo encontrado e transfigurado pela presença de um
outro significativo em estado de amor e devoção. A corporeidade materna traz
maneiras de se colocar no tempo, no espaço, no mundo, para que sejam
descobertas pelo bebê: trata-se de organizações étnico-culturais que permitem que
a mãe possa cuidar de um bebê humano. O encontro estético entre mãe e bebê
início ao processo de elaboração imaginativa do corpo, em que cada função é
presença de outro humano.
Safra (2005) nos ensina que ao estarmos diante de alguém, estaríamos em
presença da maneira como essa pessoa organiza o espaço, o tempo, a relação com
o outro. Os sons, os cheiros, enfim, tudo contribui para que se possa apreender o
jeito do outro, seus sentimentos, seus sofrimentos, pois todas essas organizações
plásticas afetam a nossa corporeidade. Perspectivas importantes para que
possamos compreender como cada pessoa encontra-se enraizada em sua
comunidade pelas formas estéticas que participaram de sua constituição no seio de
seu povo.
Safra (2004) assinala que um acontecimento que rompe a possibilidade do se
habitar um mundo humano acarreta uma modalidade de adoecimento que se
caracteriza pela impossibilidade da pessoa poder emprestar sentido e significado a
sua existência e a sua vida. Situação que ocorre no desenraizamento.
Maalouf (2005) nos diz que nas situações de desenraizamento pode vir a
acontecer uma fragmentação dos aspectos imaginativos que retira da pessoa um
modo de ser vivo. Ao observamos pessoas nessas condições teríamos a sensação
de que elas não estão realmente presentes. Esse autor assinala que muitas vezes,
na situação de emigração, a pessoa vive uma experiência de exclusão. Em suas
observações Maalouf relata que, na medida em que a presença do imigrante é vista
como estrangeira, ele experimenta uma situação de ser uma presença provisória,
mesmo que permaneça muito tempo no país estrangeiro.
31
Os desenraizados perdem sua conexão com as suas origens e tentam
recuperá-las em meio à comunidade que procura se reorganizar no país estrangeiro.
Ás vezes, segundo Maalouf, eles se fecham em suas comunidades por um
ressentimento nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões.
O fato da comunidade e da tradição possibilitarem à pessoa sentir-se
existindo é muito importante, pois ela como que a coloca em um lugar de
enraizamento. Para Maalouf, a tradição é fundamental, pois ela seria um fator
curativo.
Winnicott (1960a) traz contribuições importantes para esta discussão pois,
segundo ele, há inicialmente um self central, que é o potencial herdado da criação, o
qual com o favorecimento do meio ambiente estará experimentando um senso de
continuidade de ser e adquirindo gradualmente a sua maneira e seu próprio
ritmo,uma realidade psíquica e um corpo próprio. Com o desenvolvimento do
processo maturacional, o aparecimento dos fenômenos transicionais quando se
iniciará a capacidade da criança de “usar” símbolos, a capacidade de brincar com os
símbolos, atividades que são fruto de sua atividade criativa. É a função simbolizante
que permitirá ao indivíduo seu atravessamento nas diferentes modalidades de estar
no mundo: do estado subjetivo à realidade compartilhada. Seriam nesses estágios
iniciais que aspectos fundamentais do estabelecimento das raízes étnicas culturais
estariam sendo constituídas. Seria nesse registro que as imagens estéticas,
costumes e normas estariam se configurando na corporeidade mesmo da criança.
Esses elementos estariam acontecendo como elementos imagéticos fundamentais
do psiquismo da pessoa. Estas imagens podem, em outro momento de vida, serem
evocadas, como apresentação do si mesmo e das facetas culturais pertencentes à
comunidade na qual a pessoa nasceu e se constituiu.
De acordo com Safra (2005) uma imagem criada pelo paciente pode mostrar
a possibilidade de simbolização de potencialidades de self. Este fenômeno
aconteceria no espaço potencial, no campo intersubjetivo entre analista e paciente.
Os símbolos do self articulam-se em imagens, em objetos recortados na
32
materialidade, apresentando os enigmas da vida do indivíduo e também seu estilo
de ser. Toda a questão da constituição do self e da subjetividade centra-se no uso
da imagem, da forma sensorial, que apresenta aspectos étnicos culturais e também
o estilo de ser do indivíduo, em gesto criador do outro e do mundo.
Este autor alerta para o fato de que encontramos, na atualidade,
organizações de tempo e organizações de espaço que nem sempre apresentam a
medida humana. Os indivíduos o mais encontram na continuidade da sua história,
na continuidade da história da sua família, na continuidade da sua posição respostas
para os enigmas humanos, o que os levam a não encontrarem na sua cultura
elementos que poderiam possibilitar uma constituição ou um enraizamento de si
mesmo dentro daquela comunidade.
Safra refere que é no espaço potencial que o paciente pode continuar o
processo de constituição e devir de seu self e também vir a reencontrar aspectos
fundamentais de sua origem. Ao longo do tempo, essa possibilidade é também
encontrada na relação com os objetos culturais. O indivíduo pode então interagir
com o que existe no campo cultural, encontrando aí não apenas a coisa mas,
fundamentalmente, a presença humana.
Winnicott (1976) afirma que essas experiências culturais fornecem área da
realidade, no espaço potencial existente entre o individuo e o meio ambiente. O
espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre o indivíduo e o mundo, depende da
experiência que conduz à confiança. A experiência cultural é fruto da constituição da
transicionalidade, tendo uma importância peculiar esta forma de abordar e
compreender a cultura, a tradição, condição necessária para a originalidade.
Winnicott(1971) diz que uma evolução direta dos fenômenos transicionais para
o brincar, do brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais.
Safra (2004) amplia a perspectiva da constituição do self nas suas facetas
étnicas, estéticas e éticas. O self é constituído numa determinada comunidade, com
um ethos, em uma história transgeracional de uma família. Para ele o Ethos é
compreendido como as condições fundamentais que possibilitam o ser humano
morar, estar e constituir-se como habitante no mundo humano. Safra recoloca a
33
questão da constituição do self, levando em consideração a comunidade, o ethos, a
história da família e das gerações que a precedem. Estabelece uma ponte que
enraíza o ser e seus diversos registros naquilo que atravessa um dos aspectos
fundantes do ser humano, que é de ser um e vários ao mesmo tempo, pois sua
constituição é necessariamente atravessada pelas múltiplas raízes de seus
ancestrais. A natureza e a cultura são fundamentais para o homem, há uma
preocupação do ser humano conectado com a comunidade de que o sentido e a
participação no mundo se dê pelo nós e não pelo indivíduo. Com o termo Sobórnost,
Safra assinala que cada ser humano é a singularização da vida de muitos.
Compreender o ser humano como a singularização da vida de muitos implica dizer
que cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais e é o
pressentimento daqueles que virão. Isso equivale afirmar que o sentido de si é um
fenômeno ontológico comunitário, que ocorre em meio à comunidade e como
comunidade. Evento transgeracional vindo da história em direção ao futuro.
O mundo atual apresenta problemas e situações que levam o ser humano a
adoecer em sua possibilidade de ser. O ser humano vive fragmentado, descentrado
de si mesmo, impossibilitado de encontrar, na cultura, os elementos e o amparo
necessários para conseguir a superação de suas dificuldades psíquicas. Nas
situações de desenraizamento podemos perceber uma alteração em elementos
fundamentais da organização do self.
Na cultura drusa, como em outras culturas, tais como Islamismo, Judaísmo,
temos os dois diferentes registros, o do singular e o do coletivo, como aspectos na
realização do si mesmo. Na ausência de um dos pólos, um sofrimento e uma
vivência de não-existência e de não-realização do self.
O desenraizamento cultural e religioso apresenta problemas e situações que
levam a pessoa a adoecer em suas possibilidades de ser. A pessoa vive
fragmentada, os elementos e o amparo necessários para conseguir a superação de
suas dificuldades psíquicas como que desaparecem.
.A possibilidade de cura deste tipo de adoecimento está na memória do ethos.
A fratura do ethos provoca o desenraizamento no registro étnico, ético, estético.
34
Safra (2004) coloca o desenraizamento como modo de sofrimento e adoecimento
contemporâneo. Observa se que é possível a cura através da memória do ethos.
Portanto é fundamental para a clínica tratar o desenraizamento como um
acontecimento que rompe as possibilidades do ser habitar eticamente o mundo. O
desenraizamento étnico se pela perda dos elementos sensoriais e culturais que
remetem o ser humano à memória de origem.
Maalouf (2005) nos diz que o estrangeiro está na posição de exclusão e o
imigrante pode viver isto de forma radical quando chega a um país em que a língua,
os hábitos, os costumes, os valores são muitos diferentes. Maalouf nos alerta para o
fato de que nessas situações a possibilidade de enraizamento fica mais difícil,
levando a pessoa a se sentir não pertencendo a lugar algum.
Safra (2005) acrescenta que é importante na clínica não tratar da exclusão e
do desenraizamento apenas como fenômeno social, mas como acontecimento que
rompe a possibilidade do ser humano habitar eticamente o mundo humano.
Um aspecto importante vivido na imigração é a solidão que se dá sem
sustentação. Esse sofrimento para Safra (2004) ocorre e pode afetar diretamente o
self, surgindo uma angústia e sofrimento que é uma queda no abismo, sem um
acolhimento, parte das agonias impensáveis, decorrentes da queda do indivíduo no
não-ser.
O aspecto transgeracional é muito importante para compreendermos as
questões de uma pessoa e de sua família. Safra (2004) nos diz que a maneira como
uma família, ao longo das gerações, interage com a cultura em que está enraizada,
afeta o modo como seus membros lidam com as questões do destino humano. Cada
família organiza-se de maneira peculiar ao redor de determinadas questões do
destino humano, que marcam a vida de seus membros mais significativamente
Essas questões e a maneira peculiar como a família as maneja são transmitidas ao
longo de gerações. Perspectiva fundamental no estudo do desenraizamento.
O sentido de continuidade muitas vezes é quebrado numa família que
experiencia o desenraizamento. Na situação de imigração, na qual a família perde o
sentido de continuidade, ocorre uma quebra no sentido de tempo. A ruptura é vivida
35
como eterna, um acontecimento que rompe a possibilidade do ser habitar um mundo
humano.
Koltai (1997) nos diz que emigrar é sempre uma decisão difícil e dolorosa, a
perda da pátria corresponde à perda de um ente querido, exigindo assim um
trabalho de luto. Quando não são razões externas - econômicas, políticas ou
religiosas - que provocam esse afastamento, são razões internas em que um terror
subjetivo paira sobre a liberdade do sujeito. A verdade é que abandonar o próprio
país é uma viagem longa e difícil. Uma vez perdidas as referências habituais, o
imigrante se sente invadido por um sentimento de nostalgia e estranheza, mesmo
que a nova terra possa se transformar em terra de desejo.É mais ou menos isso que
afirma Todorov(1996):
...arrancado de seu meio, todo homem começa a sofrer, é mais
agradável viver entre os seus. Mas, em seguida, o expatriamento
pode se tornar uma experiência proveitosa. Permite que se pare de
confundir o real do ideal, cultura com natureza. O homem
desenraizado,caso consiga ultrapassar o ressentimento provocado
pelo desprezo ou hostilidade,descobrirá a curiosidade e praticará a
tolerância. (p.25)
Sandoval, ao discutir a questão da etnicidade, assinala que ela tem um papel
importante no modo como o indivíduo se apresenta na sociedade e como
interage com os diferentes grupos pertencentes à sociedade. Como fatores
fundamentais no estabelecimento do sentido étnico de uma pessoa, Sandoval
ressalta:
a) Língua, pois permite que os indivíduos se diferenciem e sejam
diferenciados de outros grupos da população.
b) Valores culturais característicos do grupo.
c) História, pois os grupos étnicos tendem a apresentar uma história
distinta da de outros grupos.
36
d) A religião é também muito importante na constituição da etnicidade,
pois representa visões cosmológicas muito diferenciadas.
Podemos reconhecer nos drusos a presença desses diferentes elementos
que levam a que cada druso se sinta parte desse grupo que comunga de um mesmo
sentido étnico.
Em toda imigração ocorrem certos problemas que vão se tornando menos
comuns à medida que os imigrantes vão constituindo uma comunidade étnica;
assim, os migrantes encontram filhas de outros membros do grupo para casar e ter
filhos, criam sua própria loja, suas próprias danças, suas próprias músicas; o que
identificamos como problemas psíquicos que derivam da migração diminuem
quando esse grupo se torna comunidade. É nessa perspectiva que vemos como o
grupo druso procura constituir no estrangeiro uma comunidade, como proteção
frente à imigração e como defesa pelo temor da perda da identidade étnica que
caracteriza o grupo.
À medida que essa comunidade permanece e se reproduz biologicamente ao
longo das gerações, ela vai também gradativamente se distinguindo da raiz de
origem. Entre os drusos, a proibição de casamento fora da comunidade visa também
a preservação da origem, vivida como divina e sagrada, que daria uma identidade ao
grupo. Casar com pessoas fora da comunidade seria então visto como tabu,
degradação do sagrado, a mais terrível das proibições.
Sandoval ensina que, quanto menos rígidas são as formas para se identificar
o imigrante , menos rigidamente se constitui o grupo étnico. Quanto menos
ameaçados os grupos éticos se sentem, quanto menos problemas de conquista e
dominação eles encontram, mais fáceis serão as relações com outros grupos.
37
Na mesma linha de argumentação, Truzzi ((1957) afirma:
Com o intuito de preencher o vazio do afastamento da terra de
origem, cada agrupamento foi fundando a sua entidade como forma
de aglomerar-se, reunir-se e organizar-se, tentando recuperar na
terra de imigração um pouco do que perdeu com o abandono da
terra natal. (p. 1009)
Mais adiante o mesmo autor afirma:
Os pais não não admitiam a miscigenação, mas entendiam
que seus filhos não poderiam achar melhor par senão entre os
seus, pois acreditavam que,desta forma,as famílias se
entenderiam melhor e viveriam em harmonia.(p.1992)
Para Truzzi, os casamentos no interior de algumas famílias significavam uma
garantia contra alianças conjugais de conseqüências imprevisíveis, fora do controle
do clã, tecidas sob uma lógica de manutenção da pureza do sangue, de constituição
de uma nobiliarquia transmigrada, que pudesse manter os mais jovens protegidos
dos perigos de uma sociedade em formação, prenhe de exóticos e nativos
suspeitos, antes que algum aventureiro deles lance mão. Perspectivas que
reconheço serem semelhantes àquelas encontradas entre os drusos imigrados.
Truzzi (1997) ensina que a penetração de imigrantes e descendentes sírio-
libaneses nas chamadas profissões liberais (advocacia, medicina e engenharia)
constituiu alternativa de ascensão sócioeconômica, trilhada com bastante êxito por
significantes parcelas da colônia. A formação dos seus filhos foi uma maneira de
ascensão social para uma parcela melhor posicionada das famílias de imigrantes
que se implantaram em São Paulo. Analisar as especificidades das inserções das
etnias em cada uma dessas escolas de elite seria importante, sobretudo porque elas
revelam a rede de relacionamentos muitas vezes definidores de carreiras futuras,
sejam relacionamentos internos ao próprio grupo, seja com colegas das famílias
38
bem posicionadas, externos à etnia, seja com professores ou com profissionais bem
estabelecidos no ramo.
Foram esses imigrantes, cada vez mais posicionados nas estruturas da
indústria e comércio (especializados em sua etnias), e posteriormente nas profissões
liberais, doutores , advogados, engenheiros que, no seu conjunto e a seu modo,
verdadeiramente revolucionaram a sociedade paulista,foram capazes de introduzir
nessa sociedade em grande desenvolvimento e ebulição uma gama extensa,
complexa e diferenciada de posições intermediárias na estrutura urbana.
Constituíram novos padrões e modalidades de inserção social, dando feição própria
e original ao atual tecido paulista.
Vemos por meio da contribuição desses autores que diversos foram os meio
que as comunidades de imigrantes utilizaram para se protegerem. Entre os drusos
encontramos grande ênfase posto na necessidade dos casamentos ocorrerem com
outros drusos para que a comunidade ficasse protegida do temor da perda de suas
raízes religiosas.
O casamento druso, os tabus, as regras e a religião o podem ser violados
ou quebrados; a pessoa que não segue os padrões estabelecidos pela comunidade
é banida do grupo, renegada por todos e essa decisão torna-se irrevogável, levando-
a a uma situação de maior desenraizamento.
Weil (1943) assinala que o desenraizamento é de longe a doença mais grave
da sociedade. O imigrante perde as referências que fundam a sua maneira de ser.
Weil (1940) afirma que cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa
receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio
dos meios dos quais faz parte naturalmente. A pessoa desenraizada perde a
característica de origem, pois é arrancada do seu meio, de seu país, da língua, da
cultura, da origem. O desenraizamento é a mais perigosa doença das sociedades
humanas. O desenraizado tem dois comportamentos possíveis: caem numa inércia
de alma equivalente à morte ou se lançam em uma atividade que perpetua o
desenraizamento, podendo originar situações de intensa violência.
39
Safra (2004) acrescenta que o desenraizamento promove o aparecimento de
intensas angústias. A cultura é um lugar onde se pode encontrar experiência sobre a
vida de outras gerações e onde também se pode inserir as próprias experiências,
como contribuição para outros. É fundamental para a clínica ter claro o fenômeno de
exclusão e o desenraizamento, que não são fenômenos sociais, mas também
acontecimentos ontológicos. Fenômenos que rompem a possibilidade de o ser
humano habitar eticamente o mundo humano. Existem fenômenos que têm origem
no social e que atingem o registro ético: aspecto decorrente da integração constante
entre os acontecimentos no mundo (ôntico) e o registro ontológico
Para Weil (1943) o ser humano tem uma raiz por participação real, ativa e
natural na existência de uma coletividade, que conserva vivos certos tesouros do
passado e certos pressentimentos do futuro. As variantes do desenraizamento
multiplicam-se em diversas direções, pela qualidade do trabalho realizado pelo
indivíduo, pelas características do campo social, pelo tipo de organização do espaço
urbano e rural, pela aceleração das formas de vida. É fundamental, portanto,
compreendermos a pessoa e o contexto sóciocultural na qual se insere.
Winnicott (1967b) acrescenta que, quando se fala de alguém, fala-se dessa
pessoa como a soma de suas experiências culturais. A cultura é para ele o campo
em que se podem encontrar experiências sobre a vida de outras gerações, como
contribuição para outros. Ele dá grande importância aos mitos, pois são o relato de
uma história que se dá junto com transmissão da tradição. É nela que a
singularidade da criatividade do indivíduo pode acontecer. Não é possível ser
original, exceto tendo por base a tradição.
Safra
10
(2005) considera que retomar à origem é recuperar a memória do
ethos, o aspecto enraizador por excelência. Considero fundamental que, para
melhor compreendermos a situação de desenraizamento na imigração e pensarmos
em possibilidades de enraizamento, haja integração da ciência e da religião, ou mais
significativamente com imigrantes.O ser humano precisa de enraizamento. O ser
humano tem necessidade do viver compartilhado, marcado pela ação na
10
SAFRA,G.A face estética do self- Aparecida,S.P. idéias & letras:São Paulo :Unimarco editora,2005
40
comunidade e por uma memória viva que guarde os tesouros do passado. Esta
necessidade de estar com o outro é primordial para os imigrantes.
Nessa prática clínica, Safra (1999) refere-se a um aspecto muito importante
das contribuições de Simone Weil para a clínica: a importância dos símbolos, das
parábolas, da cultura humana como elemento que devolve a sacralidade para vida
humana. Trata-se de um efeito curativo, não porque livra o homem de seu
sofrimento, mas porque o auxilia a poder se apropriar desse sofrimento.
Weil ensina que o desenraizamento leva à experiência de aflição. Pode-se
discriminar o conceito de aflição do conceito de sofrimento. O sofrimento é da ordem
do psíquico, do emocional. A aflição é uma fenda, no tempo e no espaço, que
atravessa a vida humana. A aflição faz sua aparição no registro corporal, físico e
social.
41
CAPÍTULO III
ENTREVISTAS
As pessoas entrevistadas foram selecionadas por mim por conhecê-las e por
frequentarmos a mesma sociedade. Possuem uma história de vida que era do
meu conhecimento e considerei que estas histórias seriam adequadas para a
investigação do tema pesquisado. Eu as informei sobre o trabalho que realizava e
lhes disse que as suas experiências de vida poderiam ser de grande valor para a
investigação que eu realizava. Elas aceitariam ser entrevistadas para contribuir com
este trabalho.
Primeiramente gostaria de trazer algumas contribuições de alguns autores a
respeito das informações e de experiências de vida, obtidas por meio de entrevistas,
e de como podem contribuir para uma pesquisa como a que procuro realizar.
Bosi (2004) afirma que a memória oral é um instrumento precioso se
desejamos constituir a crônica do cotidiano. Para ela, a memória ilustra o que
chamamos hoje a história das mentalidades, a história das sensibilidades. A
memória se enraíza no concreto, no espaço, gesto, imagem e objeto. Essa autora
levanta a seguinte questão: o movimento de recuperação da memória nas ciências
humanas será moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a necessidade
de enraizamento? (pg.27)
Do vínculo com o passado se extrai a força para a formação de identidade. O
esquecimento, omissões, os trechos desfiados na narrativa, são exemplos de como
se deu a incidência do fato histórico no cotidiano das pessoas. A memória parte do
presente ávido pelo passado, cuja percepção é a apropriação do que não nos
pertence mais.
Bosi ensina que o desenraizamento é uma condição desagregadora da
memória. A memória operaria com grande liberdade escolhendo acontecimentos no
42
espaço e no tempo, são configurações mais intensas quando sobre elas incide o
brilho de um significado coletivo. A memória, para a autora, é um trabalho sobre o
tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.
A primeira entrevista que escolhi foi o caso Sofia, a conheço através da
sociedade drusa, uma pessoa que pouco frequentava a sociedade,e quando
aparecia mostrava um ar de insatisfação e não muito à vontade, agia como que meio
deslocada. As entrevistas de Sofia foram realizadas em sua casa. Cada entrevista
não durou mais de uma hora a cada dia e foram realizadas três entrevistas. Realizei
anotações e apresento nesse trabalho os pontos que considerei mais relevantes
para a investigação do tema dessa pesquisa. Em todos os meus relatos apresento
trechos das falas dos entrevistados
Minha segunda escolha foi Yesmina, que imigrou para o Brasil mais de 37
anos. Ela é de origem libanesa e,ao imigrar para o Brasil, foi atravessada pela dor
do desenraizamento. Ela vive buscando a memória da sua pátria, dos seus
ancestrais, dos seus costumes, da sua tradição. Realizei a entrevista em sua casa,
onde ela me recebeu com grande satisfação e alegria. Sentamos no salão, onde
pudemos conversar e ela passou a me falar sobre a sua vida. Percebi que se
transportava às suas lembranças. Lágrimas surgiam nos seus olhos ao me falar da
sua vivência entre os dois países e de sua luta para conviver com a família no Brasil.
As entrevistas também tiveram duração de uma hora no máximo, e apresento aqui
parte dos relatos anotados.
A terceira entrevista foi com Laiál. Ela é descendente de libaneses e começou
a enfrentar em sua adolescência as primeiras consequências do desenraizamento
em sua adolescência. Foi retirada subitamente da escola e mandada para o Líbano
para casar. Esta senhora sofre até hoje as consequências destes eventos, pois
modificaram o rumo e percurso da sua vida. A entrevista também foi realizada em
sua casa e teve duração de uma hora. Apresento abaixo recortes de seu
depoimento.
A quarta entrevista foi realizada com Shedy, um descendente druso, 32 anos
de idade, frequentava a sociedade druza. Resolvi me aproximar dele pela tristeza
43
que observei em seu olhar. Buscava ser aceito pela sociedade drusa. Queria
mostrar para todos que, mesmo tendo se casado com uma mulher brasileira, ela era
uma pessoa boa, mesmo não sendo drusa. As duas entrevistas que realizei foram
em sua casa e tiveram a duração de uma hora.
A quinta entrevista se refere a Nadine, 30 anos de idade, descendente drusa
e que morava em uma das cidades das montanhas drusas, estudante universitária
da Faculdade de Contabilidade em Zahle, cidade católica. Frequentavam essa
universidade alunos de todos os tipos de cultura e religiões. Aqui começa o dilema
de Nadine quando conhece um jovem rapaz colega de classe, de descendência
mulçumana. Este caso foi um choque para todos os que habitam as montanhas
ainda hoje. Achei interessante trazer à luz este tipo de desenraizamento, ocorrido
dentro desta comunidade mesmo morando no Líbano. A entrevista teve a duração
de uma hora, foram realizadas na casa de Nadine, que não podia mais voltar às
montanhas drusas por ordem do pai, que a declarou morta para toda a sociedade.
1- O Caso Sofia:
Apresento a entrevista de uma senhora de 54 anos de idade, que
denominarei Sofia, descendente de drusos, nascida no Brasil; casada, com dois
filhos, um cursando medicina, o outro cursando faculdade de economia. Seu marido
é engenheiro, porém trabalha como comerciante. Ela me diz:
Sou brasileira, descendente de libaneses drusos, sempre vivi aqui no
Brasil, fui ao Líbano na época em que meu irmão ia se casar, fui
para assistir seu casamento e ao mesmo tempo quem sabe conhecer
algum pretendente druso.
44
Bom, então para que você possa entender o que acontece, é melhor
te contar desde o começo o que foi que aconteceu para mim tomar a
decisão de ir ao Líbano e de estar e chegar onde estou hoje.
na minha adolescência, muito jovem, entrei na medicina com
menos de vinte anos, e quando vinha algum colega estudar em casa o
papai logo ficava de cara virada e me dizia “Não pode estudar
sozinha? Por que tem que trazer esses amigos brasileiros para
estudar com você?” Na realidade não era os amigos brasileiros o
problema, mas sim a preocupação de me enamorar de alguém
brasileiro porque, na nossa cultura, só podemos nos casar com drusos
e nunca com outra religião. É uma comunidade muito fechada e
ninguém a não ser druso pode entrar. Então druso só casa com druso.
E assim foi minha vida, sempre cercada com os olhares dos meus
familiares, para ver com quem eu andava, e por mais que eles me
proibiam mais a minha revolta aumentava, mas não falava nada. Até
que um dia num dos bailinhos da faculdade conheço um rapaz de
origem espanhola, pais espanhóis vivendo aqui no Brasil, de boa
família. Parece que foi amor à primeira vista, começamos a namorar,
namoro este que durou sete anos, foram sete anos de sofrimento,
apesar de estar com a pessoa que amava, mas não tínhamos paz, era
como posso dizer não era briga, mas jogos indiretos, sempre meus
pais me diziam que devo pensar que não iria ser feliz, que éramos
pertencentes a culturas completamente diferente, enfim.....neste
ínterim me levaram para os Estados Unidos na Convenção de drusos,
na esperança de que eu encontrasse uma pessoa drusa ,o que não
ocorreu, e toda esta situação acabou balançando o meu noivado,e
levando ao rompimento da nossa relação.
Sofri que nem louca a separação, namorei depois disso, mas nada
mais me importava, até passei a beber socialmente falando, para
tentar ficar um pouco mais alegre e esquecer os problemas. Daí meus
pais resolveram que seria melhor me mandar para o Líbano, havia
terminado a faculdade e já trabalhava, resolvi aceitar a proposta deles
uma vez que não tinha muitas opções. E por ocasião do casamento
do meu irmão, que também havia acontecido o mesmo com ele, e
45
estava ele com os preparativos para seu casamento com uma drusa.
Bom.. Ele se casou e voltou para o Brasil, e eu fiquei para encontrar
um pretendente, o que não demorou nada, médica e muito bonita
naquele tempo. Encontrei o meu marido atual, engenheiro formado
nos Estados Unidos e druso. Me casei, foi uma maravilhosa festa, de
lua de mel. Meus pais me deram uma viajem para a Europa. De
voltei para o Líbano e fomos viver em Jeddah, uma cidade na Arábia
Saudita, país árabe, o que foi para mim uma prisão, um sofrimento
enorme, pois não podia dirigir, não estava trabalhando e não podia
sair nas ruas sem meu marido e, quando saía, tinha que usar “ABEIA”
aquela roupa toda preta, uma capa que se veste por cima das roupas
e com os olhos aparecendo, enfim para mim foi um pesadelo, e
resolvi que não aceitaria continuar vivendo e voltamos para o
Líbano, onde também sofri outro trauma da família do meu marido,
com uma terrível briga por terras, por fim voltei com ele para o Brasil.
Papai comprou uma pequena casa, onde fomos morar e eu ia
trabalhar na minha profissão e meu marido ia com meu pai para
aprender a língua. Tivemos dois filhos que hoje fazem faculdade, e
meu marido ficou mesmo no comércio.
Sofri muito, não porque não pude ficar com quem amei muito, mas
pelo próprio fato de não ter a minha vida.
A minha vida não era e não é minha, porque não posso ser eu
mesma, tenho sempre que estar seguindo o que a sociedade drusa
manda, é uma prisão mesmo casada, algum acontecimento druso...
temos que ir,e meus pais seguem os padrões e querem que façamos
o mesmo,você não sabe o que é isto. Mesmo sendo brasileira, a
minha vida está em outra dimensão.
Me sinto muito mal com tudo isto, essas obrigações, viver em
conjunto, com o tudo e todos, não uma vida individual, própria, as
decisões são tomadas em conjunto, a única hora em que me relaxava
é quando chegava em casa e bebia algo para me acalmar, pois tudo
isto me tornou uma pessoa impaciente, irritada, logo estouro com
qualquer coisa, falo aos gritos,sei que não estava bem.
46
Minha família começou a perceber que as minhas bebidas estavam
ficando a mais, e resolveram intervir no sentido de que estava me
prejudicando em todos os sentidos, e eu comecei a ter refluxo e para
piorar me tornei obesa.
Daí fiquei com medo e resolvi eu mesma procurar uma terapia, pelo
mal-estar que vivia passando, pela minha angústia desesperadora, de
não poder ser eu mesma, de não ter minha própria palavra, de não
pertencer a um mundo ou a outro, de estar totalmente desenraizada.
Queria me encontrar, não aguentava mais o sofrer.
Aproveitei para fazer tudo, e fui fazer um acompanhamento médico
com endócrino, pois precisava perder peso.
Estou até hoje em acompanhamento terapêutico e endocrinológico.
Hoje me sinto melhor nas minhas emoções e nos meus sentimentos,
me acalmei mais e a minha saúde também ficou melhor.
Já estou perdendo peso e a minha terapia tem sido de grande ajuda e
apoio para mim, começo a me situar e encontrar uma razão de viver e
de poder ser eu mesma.
Agradeço a minha terapia que me permitiu ver novos rumos e novos
horizontes e a terapia realmente ajuda pessoas que como eu que
sofreram muito, e tem o dom de amenizar a dor e possibilitar que a
gente se reencontre. Hoje me sinto melhor, minhas emoções e os
meus sentimentos bem tranquilos, me tornei uma pessoa mais calma
e mais tolerante com os outros, consigo valer a minha palavra, estou
devagarzinho me encontrando, até beber não tenho bebido mais, acho
que era uma fuga para esquecer o que eu não conseguia realizar,
enfim a minha saúde também está bem melhor. me situo neste
mundo, encontrei uma razão de viver, do meu ser.
47
Interpretação e Discussão:
Podemos verificar pelo depoimento de Sofia que ela foi atravessada por
sofrimento decorrente de impedimento de seu gesto e do desenraizamento que
sofreu. Na sua juventude não pode escolher os seus amigos, situação que se
agravou quando iniciou um namoro com um jovem pertencente a outra cultura,
diferente da sua. Ela era de cultura árabe e religião drusa, enquanto seu namorado
era espanhol e de religião católica. O seu namoro foi impedido por sua família,
acarretando uma ruptura em seu self. A sua situação psíquica piorou quando ela é
mandada ao Líbano para se casar com alguém da comunidade drusa, contra a sua
vontade. Casa-se com uma pessoa que ela descreve como boa. Sofia vive uma
experiência de desenraizamento que se agravou quando o casal imigrou para a
Arábia Saudita, onde os costumes religiosos são muito mais rígidos que na
comunidade drusa. O seu estado emocional piorou levando a uma depressão e a um
sofrimento maior que do que vinha passando. O seu estado psíquico era o de
alguém que se sentia cada vez mais longe de si, de sua comunidade, de seus
amigos e meio ambiente. A depressão decorrente do desenraizamento ocasiona um
estado de obesidade, com sintomas de refluxo, pois tudo que comia vomitava. Seria
esse um sintoma de um gesto de recusa de uma situação apenas vivido no registro
somático? Aparecem também outros sintomas como: insônia, nervosismo,
irritabilidade. Seus sintomas tornaram-se insuportáveis para os seus familiares. Esse
é outro aspecto que nos leva a indagar sobre o aparecimento de um quadro que
parece indicar um gesto de protesto ao seu meio que aparece de modo
sintomático. Seus familiares acharam que uma intervenção médica e psicanalítica
seria necessária tanto pelos sintomas orgânicos, que se agravavam a cada dia,
quanto pelos sintomas emocionais que também pioravam intensamente ao longo do
tempo. Como vimos, o seu quadro deflagrou uma situação de alcoolismo que
com a ajuda terapêutica pôde ser mitigado.
É digno de nota que uma multiplicidade de sintomas emerge em decorrência
do impedimento e desenraizamento sofridos por Sofia. Podemos reconhecer
aspectos depressivos importantes na sintomatologia de Sofia decorrentes de
cerceamento de seu self, o que lhe dificultou o escolher o seu destino, como
48
também se ver impossibilitada de fazer uso de sua agressividade de um modo
satisfatório. Pode-se reconhecer em seus sintomas perspectivas que nos auxiliam a
perceber recusas e modos de atormentar a sua família como efeitos secundários
desses sintomas. No entanto, percebe-se a importância de nesse tipo de caso
reconhecer a importância do desenraizamento e da dissonância cultural na etiologia
dos sintomas emocionais apresentados pelo paciente.
2- Caso Yesmina
Apresento agora o depoimento de uma senhora de 63 anos de idade, nascida
no Líbano. Esta senhora sempre viveu no Líbano em uma pequena cidade
chamada “Ain Dara”, na região do Shouf, montanhas libanesas, onde conheceu seu
marido druso, naturalizado brasileiro, com residência no Líbano na mesma cidade
onde ela morava. Ele havia emigrado para o Brasil muitos anos , buscando
melhores oportunidades de trabalho, bem posicionado socialmente, comercialmente
e financeiramente bem-sucedido e morando na Grande São Paulo. Resolve ir ao
Líbano para escolher uma moça drusa para se casar e voltar com a noiva para o
Brasil. E assim foi feito, ele a conheceu e se casaram e ela emigrou para o Brasil
com ele. Ela nos diz:
Sou libanesa, naturalizada brasileira, sempre vivi em Ain Dara nas
montanhas do Shouf, Líbano,adoro meu país , nunca pensei que um
dia moraria fora dele até que conheci meu marido, uma pessoa
muito boa. Para você entender melhor, te contarei o que ocorreu
comigo. Aceitar esse casamento teve dois lados, ser feliz por um
lado e não ser feliz por outro, pois tive que abrir mão da minha vida
aqui no Líbano, minha família, meus amigos e até mesmo a minha
formação, pois ainda estudava. Quando meu marido entrou em casa
procurando por uma noiva e me apontaram por isso que veio, no
Líbano se usa indicar a moça, por exemplo, dizer que a filha de
fulano é boa moça, bonita, educada etc...e o rapaz segue as
49
indicações, às vezes faz muitas visitas para encontrar a pretendente
onde tem alguma moça ”interessante” ele, vai para depois poder
escolher aquela com quem ele vai se casar. Então ele veio em casa
e a minha família gostou muito dele e comaram a me falar o
quanto ele é bom e é de boa família, bem posicionado e
financeiramente equilibrado ,isso logo os familiares da moça
mandam tomar conhecimento se é verdade ,fazem uma
investigação se não há nada ocorrido com ele ou com a família, se o
nome da família é bom,sem nenhuma história de comportamentos
inadequados, enfim querem ter certeza de que a filha está indo para
um lugar digno e de respeito. A família tem que aprovar
primeiramente o candidato, depois é autorizado eles se
conhecerem, mas nunca sozinhos, sempre alguém fica com eles, ou
a irmã mais nova ou o irmão mais novo, mas sozinhos nunca,
enquanto não escreverem o Livro Sagrado jamais poderá sair com
ela sozinho. Se a moça libanesa conhece rapaz na faculdade e
depois resolvem se casar, o esquema é o mesmo,há necessidade
de aprovação por parte dos pais;se os pais não aprovam,o que
acontece lá no Líbano é algo que se chama de KHATIFE
11
,ou seja o
rapaz rouba a moça e a leva para algum lugar às vezes combinado
com algum amigo e se a moça não voltar no mesmo dia, pronto,
eles consideram o casamento consumado ou seja, já não há mais a
certeza de que a moça esteja ainda virgem, daí eles escrevem o
livro, que o casamento; ficando este consumado .Nestes casos
alguém da família não aceita o casamento daí os jovens resolvem
fugir e se casam contra a vontade da família. No meu caso,.meus
pais gostaram do rapaz e me diziam que ele era bom partido e que
eu deveria aceitar o pedido dele de casamento e que sempre
poderei vir visitar a família todos os anos. Para mim....? me
assustava! Pois ir para um país totalmente estranho, onde nem
sequer conhecia a língua não conhecia ninguém, apenas ele. Te
digo foi uma decisão difícil a ser tomada, com a alegria da família
11
Khatife,é quando o rapaz “rouba” a moça da família,por ser estes contra o casamento,daí o raz rouba a moça
de comum acordo, e foge da família.
50
que sempre diziam que era um bom partido para mim e acabei
aceitando.Te digo foram dias de alegria mesclado de tristeza e
choro ao pensar que iria para um mundo completamente diferente e
tão longe do meu mundo, da minha família,me pintava uma
insegurança terrível,mas ao mesmo tempo gostei dele, era um bom
homem e me confortava que iria gostar do Brasil e que viria todos
os anos passear no Líbano,então aceitei e resolvi tentar minha sorte
e me casei. .Bom, me casei e viemos logo para o Brasil, pois ele não
podia ficar muito tempo longe do trabalho. Aqui chegando aconteceu
o que esperava, me senti uma estranha, pois não conseguia me
comunicar,não conhecia a língua e foram as irmãs do meu marido
que muito me ajudaram aprender a língua e a adquirir um pouco de
confiança em mim mesma e poder fazer as minhas coisas como
supermercado e outras compras,o que ajudou muito mas mesmo
entre a família do meu marido me sentia estranha; correspondia
cordialidade com a atenção que a família dele me prestava,mas
sempre me sentia pouco à vontade,em todos os sentido:nos
costumes, na alimentação, na maneira de se vestirem, enfim foi um
começo que não foi nada fácil. Aprender a ngua, para poder me
relacionar com as pessoas, poder fazer um supermercado ou fazer
uma compra. Ele no começo sempre me acompanhava, pois não
havia outro jeito. Me sentia muito mal com toda aquela situação, e
assim foi por um tempo e logo engravidei, tive três filhos; atualmente
dois dos meus filhos vivem no Brasil e a filha a mais velha no
Líbano;o que contribuiu para piorar meu estado emocional. Tive
dificuldades na minha adaptação aqui no país no começo e quando
comecei a me adaptar aos costumes e saber lidar com a vida aqui, a
minha filha mais velha já estava por volta dos 16 a 17 anos e
tivemos que levá-la para o Líbano, antes que conhecesse alguém
aqui na escola que não fosse da mesma religião drusa; e fui eu
ficar com ela até que um pretendente aparecesse Deixando meus
dois filhos com o pai aqui no Brasil. Sempre me separando de
alguém querido,sempre entre dois países.Essa é dor que carrego
comigo,não saber lidar com essas diferenciações, me sentir uma
visitante lá e uma visitante aqui.
51
Hoje me sinto uma estranha nos dois lugares, aqui no Brasil não me
encontrei de uma maneira satisfatória, sempre na esperança de
voltar para minha terra de origem definitivamente, o que nunca
ocorreu ,indo só a passeio o que me faz sentir bem,gosto,mas
depois de 16 anos imigrada sou tratada como se não mais
pertencesse ao meu próprio país,como uma visitante e me sinto
assim.Aqui também sou a que veio de fora, mesmo hoje sendo
naturalizada brasileira, não tem jeito tenho o pesado sotaque árabe.
Então como sinto que não pertenço nem e nem aqui. É como
que arrancar uma árvore do lugar! Te digo é triste esse sentimento
de não pertencer a um lugar comum, é como se fosse estar
pairando no espaço sem se fixar nem aqui e nem lá . Vivendo entre
dois países e não vivendo em nenhum, se a pessoa não tiver uma
boa estrutura para aguentar uma vida assim, acredite, a pessoa
sofrerá muito em uma situação como esta sinceramente falando e
essa foi a razão por que resolvi buscar ajuda na psicanálise por
viver essa eterna insatisfação de não pertencer nem a um mundo
nem a outro,totalmente desenraizada vindo e agravando ainda mais
com o falecimento do meu marido.Nem os meus próprios filhos
conseguiam me deixar feliz, estava realmente entrando cada dia
mais em intensa depressão,daí eles os meus filhos me sugeriram a
busca de ajuda e aceitei pela insistência deles e eles mesmos que
arranjaram a terapia e comecei a ir nas sessões terapêuticas e
desde que comecei a análise sinto que encontrei alguém que
compreende meu sofrimento e isso me grande conforto e que a
cada dia me encontro em um estado emocional pouco melhor do
que vinha vivendo,mas faz pouco tempo que estou em análise,
pretendo continuar,pois consigo ver com melhor clareza o que vinha
acontecendo comigo,pretendo continuar,pois estou me sentido
melhor comigo mesma.
52
Interpretação e discussão:
Pelo depoimento da Yesmina podemos perceber aspectos depressivos
devido ao seu sofrimento decorrente do desenraizamento que sofreu tendo em vista
que Yesmina viveu em culturas, religiões e meios sociais completamente diferentes
uns dos outros, e essa diferença cultural acarretou, entre outros fenômenos, conflito
nas suas relações interpessoais. O desenraizamento que sofreu em relação à
emigração afetou os seus sentimentos e levou a entrevistada a não se reconhecer
em sua especificidade étnica no novo ambiente que a recebeu. A imigração deixou
feridas profundas no sentimento de si. Yesmina diz que sentia uma ruptura de si
mesma, um desalojamento. Um sofrimento que a isolava das formas sensoriais
peculiares aos seus países de origem; e que em contato com essas formas de
origem, quando ia visitar o Líbano, sentia que isso a revigorava e a curava,o estar
em contato com sua região, sua terra, sentir sua luminosidade, sentir seus cheiros,
ouvir a música árabe, dançar o “dabke”, enfim a estética que caracteriza aquela
comunidade.
Nesse caso ocorreu uma ruptura do self da entrevistada, uma ruptura da
continuidade do ser, o que criou fendas no self de Yesmina, gerando depressão e
sentimentos de estranhamento, vivia em luto pela perda da pátria amada, pela perda
do marido . A busca pela terapia foi um momento importante em sua vida, através
desta pode resgatar aspectos importantes da sua origem, recuperando algo de suas
raízes e percebendo a necessidade de ser reconhecida, fatores facilitadores do
enraizamento. A ação terapêutica teve efeito restaurador, de criação, de
reposicionamento no mundo e nas suas origens. Recuperar a tradição teve um efeito
curativo por ser um elemento sustentador. No encontro com o outro, o terapeuta,
pode compreender a sua situação e apropriar-se de sua história, de suas raízes,
origem, cultura e religião.
53
3- Caso Laiál
Laial é uma senhora casada de 56 anos de idade, viúva, depois casou com
um rapaz também druso e vieram para o Brasil, mas esse casamento não deu certo,
divorciaram-se alguns anos depois. Teve dois filhos, um do primeiro casamento e
outro do segundo casamento; o filho do primeiro casamento terminou Computer
Science (computação) e viajou para trabalhar no Kuait com parentes do falecido
marido, que lhe ofertaram uma excelente oportunidade de trabalho no Kuwait. O
segundo filho terminou Banking e trabalha na Arábia Saudita com seu ex-marido, e
às vezes ele vem para o Brasil nas férias, outra vezes ele vai para a casa dos avós
no Líbano. Hoje ela vive só, pois os dois filhos estão fora do país e ela ficou na sua
casa aqui no Brasil
Ela nos diz:
Sou brasileira, formada em administração de empresas, hoje
trabalho em empresas de âmbito internacional por falar mais de um
língua. Sempre vivi aqui e fui viajar aos meus 18 anos,quando
meu pai resolveu me mandar para o Líbano,por ser descendente de
libaneses drusos e por ele ter visto que já estava na idade de
casamento e que os rapazes da minha classe e os amigos de um
dos meus irmãos já me rodeavam querendo me namorar, nesta
época me enamorei de um dos amigos do meu irmão mais velho,
que passou a vir com mais frequência à nossa casa e isso para o
papai foi inaceitável por ser drusa. E assim ficou decidido que
iríamos para o Líbano. Me tirou bem no meio do meu colégio e lá fui
eu. Não havia argumentos,a decisão era dele. Não importava para
ele se iria perder o ano ou não, mas o que importava para ele era
que eu me deveria casar com um druso.
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Bom, assim que cheguei ao Líbano, o meu primo, filho da minha tia,
irmã do papai, veio nos encontrar no aeroporto e começou com
gracinhas para meu lado, e me perguntando se o traria para o Brasil,
percebi que havia algo planejado entre papai e a irmã dele. Daí
subimos as montanhas e chegamos à casa que havíamos alugado
para passar os dois meses de verão.E assim começou o verão que
mudou a minha vida completamente. Por mais que eu não quisesse
me comprometer com meu primo, tudo era arrumado para tal, uma
trama familiar inacreditável, a minha vida não me pertencia, tudo era
decisão deles. E assim fui levada ao noivado; porém para a minha
surpresa eles fizeram tudo como manda o figurino, me disseram
para escrever um tal de livro de compromisso no noivado,e que
aqui no Brasil vim a saber que escrever esse livro era um
casamento de fato, e que após o dia da festa do casamento
(vestido de noiva e tudo mais...),este casamento estaria
consumado.
Voltamos para o Brasil, continuei meus estudos, porém meu pai
insistia na consumação do casamento, ou seja, fazer a festa do
casamento e assumir o casamento; assim foi feito. Continuei na
faculdade que faltava pouco para terminar. Quanto à minha vida
conjugal? Digo-te. foi brigas e desacordos, e ocorreu algo que
imaginava que poderia ocorrer por não termos um relacionamento e
uma vida sexual das melhores. Durante o período em que estava na
faculdade ,uma colega de classe começa a ir estudar em casa
comigo e não deu outra, eles se envolveram, ela e meu marido
passam a ter um relacionamento muito íntimo e longo. Aproveitei a
oportunidade para falar com meu pai e pedir o divórcio, porém nada
feito,meu pai me diz:”Que não tem filha que divorcia na família” que
deveria tentar ter um filho, que provavelmente tudo mudaria,e fui
eu novamente tentar para ver se algo realmente mudaria e na
realidade o que ocorreu foi que peguei meu marido e minha colega
de classe no meu quarto,na minha casa. Para agravar ainda mais a
situação, ele (meu marido) estava com câncer e piorava seu quadro
clínico a cada dia que passava vindo a falecer muito jovem aos
seus 33 anos de idade e eu ainda uma adolescente. Voltei a morar
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na casa dos meus pais, e continuar os meus estudos; foi quando
conheci um rapaz brasileiro que foi o grande amor da minha vida; e
como era de se esperar, a família consegue de uma maneira ou de
outra interferir mais uma vez na minha vida, me levando novamente
para o Líbano, e lá como era de se esperar, acabei me casando com
o filho da minha outra tia por parte de mãe, e viemos para o Brasil;
porém esse casamento não durou muito, tive um filho deste
casamento, e meu ex- marido voltou ao Líbano e começou a
trabalhar em um dos países árabes, e como é de costume dos
drusos, quando há divórcio o filho quem leva é o pai. Assim o
menino vem de vez em quando para o Brasil, e quando vou também
o vejo lá. Todos esses acontecimentos pioraram o meu estado
emocional, muitas perdas, amor, os filhos....enfim ficou um vazio
muito grande; queria dormir para não pensar,não tinha ânimo
para nada, não queria sair de casa para nada, ficava na frente de
uma televisão comendo, passei a comer muito, o que me causou
problemas tais como de coluna,a pressão arterial ,e obesa,....enfim
fui procurar ajuda.Resolvi fazer uma terapia e foi a melhor coisa que
fiz na vida,pois consegui enxergar um pouco melhor as coisas e dar
conta do que ocorria comigo,e dar um pouco de sentido e equilíbrio
para a minha vida,pois havia perdido todo interesse em cuidar de
mim e me tornava cada dia mais gorda,enfim na terapia encontrei
novos rumos para minha vida, hoje perdi 25 kg e voltei a
trabalhar; hoje trabalho em uma multinacional, porque falo bem o
inglês, o que me ajudou bastante. Faço academia, já possuo novos
amigos, enfim caminhando.. Graças a Deus.
Interpretação e discussão:
Podemos verificar pelo depoimento da Laiál que ela foi atravessada por
sofrimento decorrente de impedimento de seu gesto e do desenraizamento que
sofreu. Não pôde fazer suas próprias escolhas nem na sua juventude nem mesmo
depois de casada; tinha que estar sempre em contato com a comunidade nas festas
ou eventos que ocorriam, não podendo nem decidir se queria ou não comparecer.
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”Tinha” que estar presente para os “bons olhares da sociedade”. Nunca pôde
escolher os seus amigos, situação que se agravou quando, depois de viúva, iniciou
um namoro com um jovem pertencente a outra cultura, diferente da sua. Ela era de
cultura árabe e religião drusa, enquanto seu namorado era brasileiro e de religião
católica. O seu namoro foi impedido por sua família, acarretando uma ruptura em
seu self. A sua situação psíquica piorou quando ela é mandada novamente ao
Líbano para se casar com alguém da comunidade drusa, contra a sua vontade.
Teve que se casar com seu primo, filho da irmã do pai. Laiál vive uma
experiência de desenraizamento que se agravou quando enfrenta a situação de
adultério por parte do marido com uma colega da faculdade.Tenta o divórcio mas os
costumes religiosos são muito rígidos na comunidade drusa; uma mulher divorciada
é malvista, por isso seu pai não permite o divórcio; então seu estado emocional
piorou levando-a a uma depressão e a um sofrimento maior que do que vinha
passando, tendo que se submeter à vontade paterna de engravidar e ter um filho
com um homem que não a respeitava, para manter uma máscara” frente à
sociedade
O seu estado psíquico era o de alguém que se sentia cada vez mais
deprimida. Seus sintomas tornaram-se insuportáveis para ela mesma. Aspecto que
nos leva a indagar sobre o aparecimento de um quadro sintomático que parece
indicar um gesto de desânimo , possivelmente fruto de um protesto ao seu meio que
aparece de modo sintomático, pois não conseguia demonstrar sua agressividade
frente à imposição familiar, se tornando submissa e melancólica. Percebe que
necessidade de uma intervenção médica e psicanalítica. Percebe que precisava de
ajuda, pois não conseguia se ajudar e piorava a cada dia, por mais que tivesse
consciência do que estava ocorrendo. Os sintomas emocionais também pioravam
intensamente ao longo do tempo e seu estado emocional agravou-se, chorava por
tudo, muito emotiva, não queria ir mais trabalhar, ficar em casa, se sentiu
enfraquecida, sem forças para enfrentar o mundo.
Laiál falava de uma tristeza e solidão, pois se sentia uma estrangeira dentro
de seu próprio país e meio social, Não sentia pertencer a nenhum dos dois grupos,
nem o árabe e nem o brasileiro, a ruptura cultural vivida pela família comprometia
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ainda mais seus sentimentos de pertencer ou não àquela cultura. Não dispunha do
senso de continuidade cultural. Pode-se perceber que há rupturas culturais vividas
por sua família e por ela, desde pequena percebe essa “diferenciação” na sua vida.
Quando começa a namorar com um rapaz brasileiro e esse namoro é impedido pela
família, o rompimento vivido por Laiál foi uma experiência de ruptura no próprio self;
uma experiência que ameaçava com dispersão de si mesma, uma ruptura no senso
de continuidade. Ela vivia um sofrimento enlouquecedor que assinalava rupturas
ocorridas em outras épocas de sua vida. Laiál apresentava fendas em seu self, que
pareciam ser não uma ruptura por causa do desalojamento experimentado por
ela mas decorrente do desenraizamento experienciado por viver entre dois países e
não pertencer a nenhum. Por conta do desenraizamento, podemos notar que uma
multiplicidade de sintomas emergiu em decorrência do impedimento e
desenraizamento sofridos. Através da Psicanálise pode trabalhar o seu estado
emocional depressivo, que foi um dos aspectos importantes na sintomatologia de
Laiál, decorrente de cerceamento de seu self. Viu-se impossibilitada de fazer suas
escolhas, o que acarretou dificuldades na realização de sua vida afetiva e
profissional. Pode-se reconhecer em seus sintomas perspectivas que nos auxiliam a
perceber recusas em aceitar a imposição colocada pelo grupo ou mesmo pela
comunidade drusa. Foi fundamental que ela tenha sentido que seu terapeuta
pudesse reconhecer a questão do desenraizamento e decorrente sofrimento vividos
por ela.
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4-Caso Shedy.
Jovem descendente druso, filho de uma família imigrante que já vivia no
Brasil muitos anos. Shedy formado em Medicina conheceu sua esposa na
faculdade de Medicina. Decidiram viver juntos, durante todos os anos em que
frequentavam a universidade. Durante esses anos sua mãe, desesperada, o levava
ao Líbano com o intuito de fazê-lo conhecer alguma moça drusa. O que não ocorreu.
Shedy nos diz:
Foi uma loucura, a minha mãe não se conformava que eu poderia
estar amando uma moça brasileira, não importava se a moça era uma
doutora de excelente nível cultural e de uma família bem posicionada
aqui na sociedade brasileira, nada à interessava, tinha que ser uma
moça drusa. E todas as vezes que viajava, sofria por estar deixando
quem eu realmente amava, mas não queria desgostar a minha mãe e
ia,mas por mais que ela e minhas irmãs fizessem para que eu
conhecesse diferentes moças de diferentes famílias drusas ,nada me
prendia, pois tinha claro o que queria e quem queria.E assim foi por
alguns anos até que a moça com quem vivia e amava
engravidou,não tive vidas,resolvi me casar contra toda a família e
assim o fiz.Foi a pior coisa que poderia ter acontecido aos meus pais.
Me renegaram por algum tempo,não queriam me ver nem a mim e
nem a minha esposa;quando o nenê nasceu,não tomaram
conhecimento , não foram me visitar me abandonando
completamente.Meu sofrimento e minha dor foram muito grandes, pois
amava minha família,amava meu pai,mãe e meus irmãos.Por muitos
anos fui arrancado do meio familiar,convivendo com minha
esposa,filho e a família dela.Até que um dia meu pai adoece e em seu
leito pede para me ver juntamente com minha família,esposa e filho.
Que posso te dizer,quando entrei na porta do quarto com minha
esposa e filho no colo....,foi um choro só.Nos abraçamos e ele queria
carregar a criança,que até ficou assustada com o que ocorria.
Enfim... Hoje voltamos a ser uma família unida novamente, mas
mesmo assim enfrento a alienação da sociedade quando tem alguma
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festa, sinto o olhar de todos como uma condenação ao meu ato de ter
me casado com uma pessoa não pertencente à sociedade drusa, mas
fazer o quê, né? Afinal de contas, esta é a minha vida e eu é que a
viverei.Tive que escolher entre a sociedade drusa e a pessoa que
amo,escolhi quem eu amo e viverei. Um sofrimento que carregarei
para o resto da vida,sim! Porém minha escolha!!!
Interpretação e discussão:
Nessa situação, o rapaz fez prevalecer sua vontade e suas escolhas. Porém
sofre a dor de ser abandonado e renegado pela família de origem e pela sociedade.
Ele é atravessado pela dor da exclusão da família paterna e da sociedade drusa,
pois sempre gostou da tradição e dos costumes drusos Tentou aos poucos superar
esta situação, mas não conseguiu. Amenizou esta situação quando fez a
reconciliação com a sua família de origem, mas a sociedade jamais aprovou o seu
ato. Hoje vive uma profunda tristeza em seu coração, de não ser reconhecido na sua
própria sociedade. Mesmo ocupando uma brilhante posição de médico, é relegado
pela sociedade. A sua assertividade parece lhe dar condições de suportar a pressão
social, para sustentar a sua escolha.
O processo de inserção da família de Shedy no meio social druso,
acompanhado de sua recusa em aceitar as imposições de sua família e pela
comunidade drusa, fizeram com que Shedy vivesse uma experiência de
desenraizamento, que se agravou quando ele enfrentou a situação de abandono e
de renegação da família de origem e da sociedade drusa. O homem sofre sem as
suas raízes culturais e religiosas. Isto afetou Shedy profundamente, pois perdeu o
sentimento de pertencer à sociedade cujas tradições ele gostava e valorizava, vive
uma ruptura,uma grande perda,um eterno luto .
60
Caso Nadine:
Nadine fazia faculdade de contabilidade na cidade de Zahle, uma cidade
católica. Essa faculdade recebia alunos de todas as religiões, drusos,católicos e
mulçumanos.Ela nos diz:
Foi na minha vida universitária durante o meu primeiro ano na
faculdade que conheci o meu atual marido, Ahmad, mulçumano de
uma nobre família. No começo foi algo assim como uma bela
amizade, mas que aos poucos foi se transformando em um grande
amor. Tentava falar indiretamente com meu pai e com minha mãe,
mas sempre obtinha que se a minha escolha fosse qualquer pessoa
fora da religião druza, e que se saísse da religião, jamais poderia
voltar e que seria considerada morta, e que não receberia a minha
parte na herança, a perderia completamente e jamais poderia voltar
para a minha família de origem ou para a comunidade, não importa
qual a situação futura, não teria retorno.
Bom, para mim era como se mundo desabasse na minha cabeça,
pois amava os dois, à minha família e ao meu namorado, não sabia
que escolha fazer, sofria com a perda de qualquer um deles, minha
família ou meu namorado, mas não tinha jeito tinha que optar por
um deles, era uma situação insuportável, não sabia o que fazer,
chorava dias e noites e não conseguia tomar uma decisão, tentei
desmanchar o namoro, mas nosso amor era muito forte, que tudo
que ocorria em nossa volta, quanto mais sentíamos que íamos nos
perder por causa de uma cultura, um racismo impiedoso,muito mais
nos apegávamos um ao outro e muito mais se solidificava nosso
amor e nosso relacionamento, não demorava e logo acabávamos
voltando um para o outro. Até que resolvi tomar uma atitude, fui
conversar com minha família; resolvi contar a verdade para eles que
estava amando uma pessoa mulçumana, se eles abençoariam o
casamento,mas não foi o que obtive,fui expulsa de casa pelo meu
pai, que me considerou uma desnaturada que não ouvia a palavra
dos pais e que se casaria contra a vontade dos pais. Apesar de toda
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a pressão que minha família fazia em mim, para que eu não ficasse
com ele, não conseguiram me separar dele e mais me apeguei a ele
e foi a hora que resolvi me casar,era a minha vida que estava em
jogo e não adiantava ficar sem assumir, esperando por uma
solução milagrosa, tinha que decidir o que faria da minha vida.
Ahmad, bem situado financeiramente no mercado de comércio, logo
me acalmou e me tranquilizou,de que nada me faltaria. Amor
familiar,todos me amavam e monetariamente uma família bem
situada .Resolvi assumir meu casamento definitivamente. E assim
foi. Tive dois filhos deste casamento, mas nunca mais vi meus pais
novamente, uma dor que carrego comigo até os dias de hoje,
mesmo tendo a felicidade com minha nova família, mas sinto que
algo está faltando , não está completo. A minha irmã Sakina sempre
veio me visitar às escondidas, ela ficou tão chocada com a atitude
do papai que passou a viver sozinha em Beirute, sempre com a
desculpa de que seu trabalho a obrigava a morar perto. Não
conseguiu ter um relacionamento com ninguém até os dias de hoje.
neste ano, após quase dez anos, e após muito conversarmos,
conseguiu se relacionar com um rapaz druso, americano,que não
vive no Líbano, veio para as férias e numa festa o conheceu,o que
ajudou bastante no relacionamento e agora estão noivos.
Nunca mais me atrevi voltar a Khalouet onde morava, mesmo para
rever os meus amigos, pois meu pai me ameaçou de morte se me
visse passar na região. Então nem foi mesmo pelo medo dele atirar
em mim, mas pelo amor que tenho por ele não quis causar maiores
problemas na vida dele ,e resolvi me afastar definitivamente da
sociedade e comunidade drusa. Um eterno luto que carregarei
eternamente no meu coração.
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Interpretação e discussão:
A entrevistada recusou aceitar as imposições de sua família, pois o medo de
perder o seu grande amor era intenso. Estava proibida de escolher por si mesma a
pessoa com quem iria se casar. A situação se agravou quando iniciou um namoro
com um jovem pertencente à cultura mulçumana, diferente da sua cultura drusa. A
situação se agravou quando ela resolveu assumir o seu casamento. Foi expulsa,
renegada e abandonada pela família e pela sociedade drusa. Sofreu uma ruptura de
sua cultura de origem.
O seu estado psíquico era o de alguém que se sentia cada vez mais longe de
si, de sua família e de sua comunidade. Afastou-se de seus amigos e de seu
ambiente, o que a levou a uma experiência de desenraizamento, A depressão
decorrente do desenraizamento ocasionou um estado de tristeza e de luto infindável.
O desenraizamento ocorrido com Nadine comprometeu os seus sentimentos
de pertencer ou não à sua cultura de origem. A ruptura com sua família implicaram
ruptura com as suas raízes. Ela não dispõe do senso de continuidade cultural.
Nadine não pôde escolher os seus próprios amigos, seus familiares sempre a
acompanhavam a fim de verificar quem eram os seus amigos e a qual religião
pertenciam. Essa situação se agravou quando iniciou um namoro com um jovem
pertencente a outra cultura, diferente da sua. Ela era de cultura árabe e religião
drusa, enquanto seu namorado era da religião mulçumana. O seu namoro foi
impedido por sua família, mesmo sofrendo e sabendo que estava por vir, que sentiu
que sua vida ali mudaria. Mesmo pressentindo que a sua decisão de manter o seu
namoro acarretaria eventos que poderiam levar a uma ruptura com sua família e
tradição, decidiu por suas escolhas pessoais e não permitiu a interferência da família
em seu projeto de vida. No entanto, segundo as suas palavras, passou a viver um
eterno luto, pois perdeu sua família, sua comunidade, seus amigos. Nesse caso,
observamos que a afirmação de suas escolhas e a companhia de seu marido a
ajudam a tolerar um luto que está sempre presente no cerne de seu self.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa procurou investigar os efeitos psíquicos decorrentes do
desenraizamento de cinco drusos. Emerge nessas pessoas um conflito decorrente
do desejo do encontro com pessoas de outras culturas, confrontado com as
proibições da comunidade drusa.
A experiência de impedimento nessas situações é aguda, levando a pessoa a
uma experiência de impossibilidade de projetar um futuro pessoal. Nos casos em
que isso aconteceu, emergiu uma profunda dor pelo fato de que a pessoa, ao perder
o seu projeto pessoal, sente também ter perdido a realização de si mesmo e
também o sentido de sua existência. Essas pessoas vivem uma experiência de
existência vazia e sem vitalidade. Sintomaticamente, aparecem quadros de cunho
depressivo, algumas vezes acompanhados de alcoolismo, obesidade etc.
Ao lado da experiência de impedimento, observamos também experiências de
desenraizamento, o que levou as pessoas que viveram esse tipo de experiência a
um sentimento de estar longe da sua comunidade, dos seus costumes, das suas
tradições. Nesses casos, parece emergir profunda tristeza, e alguma vez apareceu
um tipo de luto descrito como eterno.
Relatos de sentimento de não pertencer a nenhum lugar, o “estar entre”, de
ser um eterno viajante e de ser sempre estrangeiro, foram comuns, mesmo em
pessoas que se encontravam em sua pátria de origem. As origens culturais
parecem, nesses casos, prevalecer sobre o fato de terem nascido no país.
Pelas entrevistas, podemos perceber que o druso possui um orgulho em ser
druso. um apreço pelos costumes. Os drusos têm o costume de serem cordiais,
hospitaleiros, desde que isso não envolva o risco de um possível namoro ou
casamento intercultural.
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Essa comunidade oferece aos seus convidados as suas casas, as suas
danças, o dabke
12
, compartilham os seus costumes, as suas festas, a fartura da sua
mesa,sendo ao mesmo tempo uma sociedade rígida nas suas tradições e nos seus
costumes.
Quem nasce druso tem a obrigação de cumprir as regras, respeitar as leis
vigentes da comunidade e do grupo; “Nunca violar as leis vigentes” é regra para
todos. Principalmente, quando elas se referem ao casamento, que pode
acontecer com outro druso. Se assim é feito ninguém sofre ou vive problema, pois
tudo permanece de acordo com as normas e com os dogmas religiosos.
O conflito é intenso quando alguém se casa com um não druso. A
comunidade drusa considera que, por ser um povo religioso e descendente dos
cinco santos, teria em sua etnia a presença do sagrado. Se alguém se casa com
pessoa de outra religião, teria sido rompida a conexão com o sagrado. Assim sendo,
o druso transgressor teria cometido um sacrilégio, podendo, portanto ser expulso
sem que haja possibilidade de perdão, ou de retorno.
Vimos que em alguns casos trabalhar a questão do desenraizamento em
terapia pôde ajudar a amenizar a dor decorrente da ruptura sofrida. Nesses casos,
pode haver a possibilidade de inserção da pessoa em outra sociedade, e ela poderá
talvez encontrar um novo horizonte e tentar um recomeço.
pessoas que precisam restabelecer sua ligação com o mundo, recuperar
sua relação com sua origem, se enraizar, restabelecendo um novo sentido para o
seu viver. Como por exemplo, nos casos em que houve a possibilidade de viver um
amor pessoal, o que deu fôlego à pessoa para suportar as conseqüências do
desenraizamento. Assim sendo, haverá a possibilidade do reencontro em um novo
meio social, mesmo que o luto permaneça. Poderá encontrar novos horizontes, um
novo porvir, posicionar-se no mundo como um ser que possa ter opções e realizar
suas próprias escolhas.
12
Dabke,é uma dança,o folclore árabe
65
É muito difícil mudar a mentalidade dos antigos religiosos drusos, a
concepção religiosa parece ser inalterável. Quando estive no Líbano no começo de
2009, fiz uma visita ao nosso Sheik Akl, a autoridade religiosa máxima dos drusos.
Havia na ocasião outras pessoas presentes, vindas de outros países, tais como
Canadá, Austrália, além do Brasil. Foi apresentada na reunião a questão do
casamento intercultural, problemática que todos enfrentam atualmente em seus
países de origem. Diziam que não conseguiam mais controlar os jovens, e não
conseguiam impor aos filhos a exigência do casamento dentro da comunidade.
Afirmavam que o mais comum era os jovens terem opinião própria, pois eram
rebeldes. O clima de indignação por esse estado de coisas era intenso. Na reunião
pensei como o tema de minha pesquisa era fundamental para a comunidade drusa e
para outras comunidades que vivem situações semelhantes. Sheik Akl dizia que a
mudança das tradições é algo muito difícil de ocorrer, se não impossível, intocável!.
Espero que esta pesquisa contribua aos profissionais da área com uma
compreensão da problemática do desenraizamento pela imigração e pela imposição
de dogmas religiosos. Nesses casos, parece-me que o profissional precisará não
testemunhar o impedimento vivido pela pessoa, mas também auxiliá-la a apropriar-
se de suas raízes culturais e religiosas de modo pessoal.
A terapia, como vimos pelas entrevistas, foi de grande ajuda, pois contribuiu
para que essas pessoas retomassem as suas origens, em um ambiente que lhes
proporcionou condições de amparo ao sofrimento que as atravessava. Elas não
estavam mais sós naquela situação, mas outro ser humano as compreendia a as
sustentava em seus projetos pessoais. O desenraizamento cultural religioso foi
substituído pelo enraizamento ético proporcionado pelo olhar solidário e
compreensivo do outro. Elas puderam, então, reposicionarem-se no mundo,
encontrar novos horizontes, poder tentar viver em paz de espírito.
Acredito que não será cil apresentar algo novo para a comunidade drusa.
Será muito difícil e complicado conseguir que algo mude em relação à questão do
casamento nesta comunidade., Porém não perco as esperanças de que uma
conscientização dos responsáveis religiosos, assinalando o que vem ocorrendo com
o descendente druso, com a questão do imigrante, com a questão do
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desenraizamento, possa vir a sensibilizá-los. Estamos em épocas diferentes, e algo
precisa ser feito em prol dos jovens drusos.
Dedico este trabalho a todos os descendentes druso-brasileiros
Percebi ser uma atitude sábia dos dirigentes e comitê dos religiosos drusos,
acompanhar os descendentes drusos de acordo com a demanda da modernidade,
reformular alguns princípios, sem perder o conteúdo e a originalidade da doutrina,
principalmente prevalecendo as Escrituras Sagradas, intocáveis e imaculadas, uma
conscientização, o poder acompanhar o mundo sem perder o valor, o sagrado, a
preciosidade dos ensinamentos que a seita oferece;onde teríamos a participação,a
compreensão e o entendimento do significado do que é a Doutrina Drusa para
todos,principalmente para os jovens, sendo todos leigos com relação à própria
religião. Tentar questionar e encontrar uma solução plausível para esta situação de
imposição e de racismo religioso., em prol da união dos jovens, da preservação da
comunidade e continuidade da seita drusa.
As leis, por si mesmas, não conseguem assegurar liberdade de
expressão. Para que cada homem exponha seus pontos de vista
sem sofrer penalidade deve haver espírito de tolerância em toda a
população. Albert Einstein (1879 - 1955)
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Campinas, S.P. Papirus. No texto: Epiritualidade e Religiosidade na Clínica
contemporânea.
Sandoval Os Sintomas da migração, a historia e a cultura na clínica do
migrante. São Paulo:s.n.2004.
Todorov(1996): In:Maalouf Jorge Fouad. O Sofrimento de imigrantes: um
estudo clínico sobre os efeitos no self.São Paulo:s.n,2005.
70
TRUZZI, Oswaldo (1957). Patrícios: sírios e libaneses em São Paulo.São
Paulo: HUCITEC,1997.
TRUZZI, Oswaldo (1957). De mascotes a doutores: sírios e libaneses em São
Paulo. São Paulo: IDESP, 1992.
VERGOTE, Antonio. Entre Necessidade e Desejo, Edição Loyola, São Paulo:
2001.
WEIL, Simone (1949). O Enraizamento; tradução Maria Leonor Loureiro. Bauru,
S P : EDUSC, 2001.
WEIL, Simone (1909-1943). Opressão e liberdade. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
WINNICOTT, Donald Woods (1896-1971).Os bebês e suas mães.São
Paulo,Martins Fontes, 2006.
WINNICOTT, Donald (1986-1971). A família e o desenvolvimento individual.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
WINNICOTT, Donald. (1896-1971). O brincar &a realidade. Rio de Janeiro:
Imago,1975.
ZAIDAN, Assad. Raízes libanesas no Pará. Pará: Cultura Semear, 2001.
71
ANEXO 1
Algumas imagens da cultura-Religião, tradições e costumes
Druzos:
Típico Sheik Druzo, vestimenta e o turbante na cabeça demonstram o grau de
evolução espiritual alcançada dentro da seita druza.
72
Reunião dos Masheikhes nas quintas feiras, onde estudam e meditam.
Após a reza é sempre oferecido frutas, doces, café árabe.
73
Sheika fazendo pão árabe, “Kibzz Saaj”, um tipo de pão árabe
Sheika.típica vestimenta da mulher religiosa,druza.
74
Uma família Druza,os homens na sua loja de artigos árabes
Estrela de cinco pontas, o símbolo do druzizmo: cada ponta representando os
cinco santos druzos.
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