Download PDF
ads:
UNIVERSIDADEFEDERALDEUBERLÂNDIA
WEINYCÉSARFREITASPINTO
DESCARTESEAPRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:Danaturezada
mentehumanaoudeumasupostaequivocidadedo
cogito
?
UBERLÂNDIA
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
WEINYCÉSARFREITASPINTO
DESCARTESEAPRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:Danaturezada
mentehumanaoudeumasupostaequivocidadedo
cogito
?
DissertaçãodemestradoapresentadaaoPrograma
de Pósgraduação em Filosofia da Universidade
FederaldeUberlândiacomo requisitoparcialpar a
obtençãodotítulodeMestreemFilosofia.
Área de concentração:
Filosofia Moder na e
Contemporânea.
LinhadePesquisa:
ÉticaeConhecimento
.
Orientado r:ProfessorDr.MarcioChavesTannús
UBERLÂNDIA
2009
ads:
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)
P659d Pinto,WeinyCésarFreitas,1983
Descarteseaprimeirapartedameditação segunda:Danaturezada
mentehumanaoudeumasupostaequivocidadedocogito?/WeinyCésar
FreitasPin to. 2009.
159f.
Orientador:MarcioChavesTannús.
Dissertação(mestrado) Univer sidadeFederaldeUberlândia,Programa
dePósgraduaçãoemFilosofia.
Incluibibliografia.
1.Descartes,René,15961650CríticaeinterpretaçãoTeses.2.
FilosofiafrancesaSéc.XVII Teses.3.MetafísicaTeses. I.Chaves
Tannús,Marcio,1949 II.UniversidadeFederaldeUberlândia.Programa
dePósgraduaçãoemFilosofia.III.Título.
CDU:1(4/ 9)
ElaboradopeloSistemadeBibliotecasdaUFU/SetordeCat alogaçãoeClassificação
WEINYCÉSARFREITASPINTO
DESCARTESEAPRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:Danaturezada
mentehumanaoudeumasupostaequivocidadedo
cogito
?
DissertaçãodemestradoapresentadaaoPrograma
de Pósgraduação em Filosofia da Universidade
FederaldeUberlândiacomo requisitoparcialpar a
obtençãodotítulodeMestreemFilosofia.
Área de concentração:
Filosofia Moder na e
Contemporânea.
LinhadePesquisa:
ÉticaeConhecimento
.
Uberlândia,13demarçode2009.
BancaExaminadora:
__________________________________________________________________
Prof.Dr.MarcioChavesTannús–UFU Prof.Dr.FranklinLeopoldoeSilva–US P
(Orientador)
_____________________________________________
Prof.Dr.Alexandre GuimarãesTadeudeSoares UFU
À Beatriz, minha esposa e à Maria Clara,
minhafilha:asminhasduasgrand esrazões.
AGRADECIMENTOS
ADeus,substânciadivinasemaqualnenhumaoutraépossível.
Àminhafamília:esposa efilha,po rpermitirosilêncioeasolidãodapesquisaeportodosos
diasressignificarminhahistória.
Àminhafamília:mãe,avó,irmãsepadrasto,pelosestímuloseapoiosrecebidos.
ÀProfª.doInstitutodePsicologiadaUFU,AnaciaRibeirodeOliveira,pelasorientações
iniciaisnaelaboraçãodo meuProjetodePesquisa.
Ao amigo Pe. Gera ldo Magela, por permitir que sua Secretaria Paroquial se t ornasse um 
espaçodeconhecimentoeportodooincentivo.
ÀPâmela,pelaenormededicaçãoe mmefazeraprenderoinglêsquefaltava.
ÀFaculdadeCalicadeUberlândia,emespecialaoProf.MárioAlves,peloprivilégiodesua
amizadeestimulante.
Ao Programa de Pósgraduação em Filosofia da UFU, por propor cionar a realização desta
pesquisaeporcontribuirenormementecomela.
ÀFAPEMIG–Fundaçãod eAmparoàPesquisadeMinasGerais– , peloapoiofinanceiro.
Aos professores Humb erto Guido, Alcino Bonela e Luiz Felip e, pelas aulas de altíssim a
qualidade.
AoProf.Guido,peloatendimentoincentivador.
AocolegaWisley,ofilósofodeUberlândia, porquepermitiuserincomodadofrequentemente
pormimnasquestõestécnicasdeformataçãodestetrabalho.
Ao Prof. Márcio ChavesTannús meu maior reconhecimento por, mesmo em situação tão
adversa,teraceitadoaorientaçãodestapesquisa.
Ao prof. Alexandre Guimarães de Tadeu Soares por, mesmo distante, não nos negar sua
atençãoeaosprofessoresFranklinLeo poldoergiodeSiqueiraque,juntamentecomele,
aceitaramcomporaBancadedefesadestaDissertação.
E,finalmente, atodososamigosque,delongeedeperto,acompanharamostortuosospassos
destapesquisasuavizandoacaminhada.
Quodvitaesectaboriter?
1
1
“Qualcaminhodevereiseguirnavida?”.OdedopoetaAusoniusqueprotagonizaumdosepisódiosdosuposto
sonhodeDescartessegundooqualofilósofoteriaconcebidooseuMétodo.Cf.BAILLET,A.OsSonh osde
Descartes.In:COTTINGHAM,J.
Afilo sofiadeDescartes
,1989,pp.213217.
RESUMO
A presente Dissertação reflete uma pesquisa sobre o
cogito
cartesiano. Seu
pressuposto  básico encontrase na constatação de qu e esse princípio de Descartes, embora
notavelmente conhecido  por todo o universo filosófico, é, não poucas vezes, mal
compreendido;sobr etudo, porqueparecehaverumatendênciamuitodifundidaemrelegáloà
exclusividadedeumaúnicaeredutoradimensãodefiniria,qualseja,aquelaqueoconcebe
exclusivamente sob o signo da razão. Em objeção a essa tendência, defendese, aqui, a
hipótese de uma suposta equivocidade desse princípio cartesiano; em termos precisos: o
cogito
é um dado, mas também é umfato; é uma certeza lógica, mas também intuitiva; é
metafísica, mastambémépsicologia, éentendimento,masétambém vontade; emsuma,o
cogito
éindiscutivelmenterazão,mas,definitivamente,tambémédesejo.Parasustentaressa
posição,aanálisedestetrabalhosedivideemduaspartesprincipais.Naprimeira,destacamse
algunsaspectossegundoosquaiso
cogito
seconstituinopensamentodeDescartesemgerale
discutese o estatuto mesmo desse princípio no
Discurso do Método
, obra na qual ele foi
anunciado pela pr imeira vez. Depois, na parte seguinte, tratase, propriamente, da
fundamentação precisa da hitese inicial da pesquisa: estabelecese a caracterização
equí voca da certeza que o
cogito
representa –  uma certeza de duas ordens: metafísica e
psicológica;eainterpretaçãoq uefizemo sdasduasdefiniçõesdesseprincípioqueopróprio
Descartesnosoferecenaprimeirapart edesu a
MeditaçãoSegunda
:
Danaturezadoespírito
hu mano
.Daí,aoponderartodooconteúdodareflexãopropostaeconsiderar,minimamente,a
teoria cartesian a da substância, conc luise que é inteiramente justificável uma suposta
equivocidadedo
cogito
.
Palavraschave:Descartes.Metafísica.MeditaçãoSegunda.Cogito.Equivocidade.
RÉSUMÉ
Ce mémoire réfléchit une recherche sur le
cogito
cartésien. Sa présupposition
fondamentale se trouve dans la constatation que ce principe de Descartes, quoique
notablementconnupartoutl’universphilosophique,estsouventmal compris;surtoutparce
qu’ilsembleavoirunetendancetrèsdiffuséeàlemettreàl’écartdel’exclusivitéd’uneseule
etductricedimensiondéfinisseuse,c’estàdire,cellequileconço itexclusivementsousle
signedelaraiso n.Enobjectionàcettetendance,onsoutienticil’hypothèsedunesupposée
équivocitédeceprincipecartésien;entermesprécis:le
cogito
estundonné, maisaussiun
fait; c’est une certitude logique, mais aussi intuitive; c’est métaphysique, mais aussi
psychologie, c’est comprenance, mais aussi volonté; enfin, le
cogito
est indiscutablement
raison,mais,définitivement,ilestaussidésir.Afindesoutenircetteposition,l’analysedece
travailsed iviseendeuxpartiesfondamentales.Danslapremière,onrelèvequelquesaspects
selonlesqu elsle
cogito
seconstituedanslapenséedeDescartesengénéral;etondiscutele
statutluimêmedeceprincipedansle
DiscoursdelaMéthode
,oeuvredanslaquelleilaété
annoncépourlapremièrefois.Ensuite,dansladeuxièmepartie,ondiscourt,p roprement,sur
lafondamentationp récisedel’hypothèseinitialedelarecherche:onétablitlacaractérisation
équivoque de la certitude que le
cogito
représente – une certitude de deux ordres:
métaphysiqueetpsychologique–etl’interprétationq uel’onafaitedes deuxdéfinitionsdece
principequeDescartesluimêmenousoffredanslapremièrepartiedesa
MéditationSeconde
:
Delanaturedel’esprithumain
.Decefait,enréfléchissantsurtoutlecontenude laflexion
proposéeetenconsidérant,minimalement,lathéo riecartésiennedelasubstance,onconclut
qu’ilestentièrementjustifiableuneéquivocitésupposéedu
cogito
.
Motsclés:Descartes.Métaphysique.MéditationSeconde.Cogito.Équivocité.
LISTADESIGLASEABREVIATURAS
1. A sigla: A. T., que aparece nas notas de referências designa Adam e Tannery da
ediçãofrancesadasobrasdeDescartes.
2. Optamos por incluir nas notas de referências, não somente o(s) autor(es), data e
página(s),mastambém,onomedaobraàqualserefereacitaçãoreferenciada.Ex.:
BUZON,F.;KAMBOUCHNER,D.
Levocabu lairedeDescartes
,2002,p.12.
3. Nocorpodotexto,designamosasobrasdeDescartessempre emportuguêse,demodo
geral,comopr imeironomedotítulo:
Discurso DiscoursdelaMethode
Meditações Medit ationsMetaphysiqves/MeditationesdePrimaPhilofophia
Prin cípios LesPrincipesdelaPhilosohie/PrincipiorumPhilosophiae
Regras RegulaeadDirectionemIngenii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12
PRIMEIRAPARTE:NOTASSOBREACONSTITUIÇÃODO
COGITO
1.D O
COGITO
EMGERAL .................... ....... ............................................................... 21
1.1 – “Jepense,doncjesuis”/Egosum,egoexisto”/“Egoco gito,erg osum
........... 21
1.1.1 –Sobre“OCogito
.... ............................... ........................................................... 27
1.2 – Sob re a Filosofia de Descartes em geral e os antecedentes cartesianos
constituti vosdocogito:ograndelivrodomundo,oprincípiodarazãoprópriae
oMétodo
..... ....................................................................................................................30
1.2.1 –Ograndelivrodomundo”eoprincípiodarazãoprópria
...................... ........... 37
1.2.2 –OMétodo
............................................................................................................ 42
1.2.2.1–UmaorigemmísticadoMétodo?
...................................................................... 43
1.2.2.2–AcaracterizaçãodoMétodo:LógicaeMatemática/evidênciaecerteza
.......... 45
1.2.2.3–A“MathesisUniversalis”cartesiana
................................................................ 48
2.D O
COGITO
NO
DISCURSO
.....................................................................................52
2.1 Sobreo“cogitono“Discu rso”
............................................................................ 52
2.1.1
O“cogitono“Discurso”comoMetafísicadoMétodo
........... ........................... 52
2.1.2–Ocogito”no“Discursosobopontodevistadesuacontemporaneidade:um
cogito” breveeimpreciso”
..... ................................................................................... 5 6
2.1.3 –  O cogito” no Discurso” sob o ponto de vista de sua posteridade: um
cogito”cindido?
..... ....... ............................................................................................... 5 9
2.1.3.1–AlquiéeametafísicaincompletadoDiscurso”...............................................
59
2.1.3.2–Porum“cogitocindido? ....................................................... .........................
61
2.2 SobrealgunsaspectosdasMeditações”
..... ............. ............................................. 65
2.2.1 –Dasuaespecificidade:anaturezadesuasdificuldades
..... .................................. 66
2.2.2–Dosseusobjetivoserazões:asquestõesde Deus,damentehumanaeosinícios
detodaafilosofiap rimeira
....................... ....... ............................................................... 71
SEGUNDAPARTE:NOTASOBREUMASUPOSTAEQUIVOC IDADE DO
COGITO
1.D O
COGITO
ENQUANTOCERTEZADAEXISTÊNCIADAMENTE ................... 80
1.1–Sobreamentehumana:dacertezadesuaexistênciaedacaracterizaçãodessa
certeza
........... ................................................................................................................. 80
1.2 Sobreo“cogito enquantocertezadaexistênciadamente
.....................................82
1.2.1 –Darealidade
....................................................................................................... 85
1.3 Sobreacaracterizaçãodacertezarepresentadapelo“cogito”
..... ......................... 9 5
1.3.1 –Do“cogito”enquantoumacertezaintuitiva
........... ............................................. 96
1.3.2 –Do“cogito”enquantoumacertezadeduasordens
..... ........................................ 100
1.3.2.1–Dacertezado“cogitoentre Guéroultenós
.................................................... 103
2.D O
COGITO
ENQUANTONATUREZADAMENTE.............................................. 105
2.1 Sobreanaturezadamente:umacoisapensante
..................................................... 1 05
2.1.1 –Dacoisapensante:uma“coisaque”pensaouoprópriopensamento?
........... .... 110
2.2 Sobreateoriacartesianadasubstância
........... ...................................................... 1 18
2.2.1 –Daquerela:essênciaemodosdasubstância
.......................................................119
2.2.2 –Doatributo
........... ............................................................................................... 120
2.2.3 –Dasubstância
......................................................................................................122
2.3 Sobreanoçãodepensamento
................................................................................. 125
2.3.1 –Dadefiniçãocartesianadepensamento
..... ............. ............................................. 127
2.4 Sobreumasupostaequivo cidadedo“cogito”
........... ............................................. 130
2.4.1 –Dosfundamento sdessaequivocidade
..... ....... ...................................................... 1 31
2.4.2 –Daequivocidadeprópriadocogito ”
........... ...................................................... 1 33
CONSIDERAÇÕESFINAIS ....................... ............. ...................................................... 135
REFERÊNCIAS............................................................................................................. 141
ANEXO:TRADUÇÃODAPRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:
Dela
naturedel’Efprithumain
Apresentação
..................................................................................................................148
Primeira parte da Meditação Segunda: De la nature de l’Efprit humain
/
Da
naturezadoespíritohumano”
..... .................................................................................... 149
INTRODUÇÃO
[...]parecemesmoqueaquisejaaobscuridadeea
complexidade do cogito que o tornam princípio:
po is as contradões que ele contém engendram
algum movimento dialético, fonte de um
aprofundamento em direção ao Ser e de um
perpétuoultrapassamentodesi
.
2
.
RenéDescartes(15961650)eoseucélebre
cogito
,aprincípio,dispensamq ualquer
apresentação;oquenãosignifica,entretanto,queosepossaoumesmosedeva,cadavez
mais,melhorapresentálos.Éporissoqueo
cogito
éotemacentraldapresentedissertação
3
;
eéporisso,também,queaceitamosoriscodeconcebêlo,aqui,atravésdeumaleiturade
Descartes bem pouco comum entre a maioria de seus intérpretes, que, digase, semp re
parecemmaiscartesianos,nosentidogeraldotermo,queoprópriofilósofo.
A nossa opção é, enfim, por um
cogito
“equ ívoco”. Assumimos de tal forma a
complexidade desse princípio que acabamos por concluirque há a pred ominânc iade certa
“equivocidade”emseubojo.Emtese,oóbvio:o
cogito
deDescarteséaafirmação,tantode
umespírito,umentendimentoouumarazão,quantodeumacoisaqueduvida,queconcebe,
queafirma,quenega,quequer,quenãoquer,queima ginatambém,eque sente
4
.
Nessesentido,nossadiscussãoseinsere,demodoger al,naapresentaçãode“umoutro
Descartes”
5
; talvez, “um Descartes segundo a ordem das dificuldades”
6
; ou ainda mais
radicalmente:“umDescartesnãocartesiano”
7
.
2
“[...] semble même qu’ici ce soit l’obscurité et la complexité du
cogito
qui le rendent princi pe: car les
contradictions qu’il contient engendrent quelque movement dialectique, source d’un approfondissement vers
l’Être et d’un perpétuel dépassement de soi.” (ALQUIÉ, F.
La découverte métaphysique de l’homme chez
Descartes
,1996,p.181,traduçãonossa).
3
Toda anossa pesquisa se concentra na metafísica cartesiana; dentre ostemas metafísicosdeDescartesnos
detemos,exclusivamente,no
cogit o
.
4
Essas são as duas definições do
cogito
que Descartes nos oferece em sua
Medit ação Segunda
. Cf.
DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.1922.
5
Cf. CAHNÉ, P.A.
Un autre Descartes: le philosophe et son langage
, 1980. Apropriamonos somente da
eloqüência da expressão: nossa reflexão não se liga, diretamente, aos termos da análise do autor. Essa
advertênciaéválidatambémpar aasnotas6e7.
13
Nos termos próprios d e nossa análise, nos opomos, frontalmente, à disseminada
tendência em co nceber o
cogito
como mero mecanismo intelectual, como se fosse,
exclusivamente, uma peça de determinada engrenag em mecânica ou um simples cálculo
matemático.
Semnegarafundamentalimportânciadecadaumadessassuascaracter ísticas,onosso
objetivoémostrarqueoprincípiocartesiano,talcomoformuladopelopróprioDescartese
não por certa tradição interpretativa posterior a ele
8
, não se reduz às noções matemáticas,
mecânicasepuramenteintelectuaisfrequentementeaeleatribuídas,masafirmasetambém,
comovontade,liberdade,etc.;emumapalavra,o
cogito
nãoé,somente,umdado;é,também,
umfato
9
.
É, então, sobretudo, o aspecto factual do
cogito
que pretendemos, nesses termos,
salientar nesta pesquisa. Não se trata, portanto, como já dissemos e importa ressaltar
novamente, de ignorar, minimizar ou, sequer, questionar o alto valor do aspecto
epistemológicodesseprincípio;nossopropósitoé,antesdetudo,somenteestabelecerumavia
abertasobreaqual,depois,possamos,talvez,oferecer,comomáximodefidelidadepossível
aoprópr ioDescartes,umadefinição menosredutoradeseu
cogito
.
Sabemos que a tarefa que nos propomos não é nada simples. Ainda mais porque
Descartes,quandoto mado,assim , deperto,não éumautortãofácilquanto,geralmente,se
supõe; e o mesmo vale para seu  princípio, o
cogito
: embora claro e evidente, é também
sinuosoe,mesmo,imprevivel.
E,nessestermos,paracompreendermos,então,Descarteseasuafilosofiaéurgente,
rompermoscomcertosensocomumacadêmico
10
.Équeodidatismoprofessoraleatémesmo
algumas fórmulas da historiografia filosófica em geral podem muito facilmente levar à
6
Cf.LOPARIC, Z.
Descartesheurístico
,1997,p.17.
7
SOARES,A.G.T.de.
PorumDescartesnãocartesiano
,2008.
8
Soares faz saber, p or exemplo, que o processo de intelectualização e mecanicização do
cogito
está menos
presente no próprio Descartes que, respectivamente, nos fil ósofos Baruch Espinoza (16321677) e Nicolas
Malebranche(16381715).Ibid.
9
Situandonos, apropriada mente, no interior da linha de pesquisa à qual essa dissertação se insere:
Ética e
Con hecimento
,poderíamos mesmoafirmar:o
cogito
nãoé,somente,umprincípiod aciência,é,também,um
princípioético.
10
SOARES,A.G.T.de.op.cit.
14
confusão,quandonão,aerros,natransmissãodoensinodeFilosofia;equandosetratadeum
filósofocomoDescartes,célebre,comfrequênciaesseserroseconfusõesnãosãopoucos.
Dessemo do,aomenos,repensemososjargões:asimplesexpressão
cogito
nuncafoi
usadaporDescartesparadesignarseuprincípio;ofilósofonuncautilizouap alavrasistema”
paradesignarsuafilosofiaejamaisseaproprioudotermo“dualismo”parafazerreferênciaà
distinçãoentrea
rescogitans
ea
resextensa
.
11
.Porisso,tivemoserecomendamoscuidados
com asofisticaçãoretóricadaacademia;nofinal,elapodenãopassardeumsensocomum
bem elaborado.
Além disso, o próprio Descartes, quase no final do
Discurso
, deixanos uma
passagemquepode,nessemesmosentido,sertomadacomoumaadvertênciaam eaçadora:
[...]emboratenhamuitasvezesexplicadoalgumasdasminhasopiniõesapessoasde
muito bom espírito, que pareciam compreendêlas muito distintamente enquanto
lhasexpunha,todavia,quandoasrepetiram,noteiquequasesempreasalteraram de
tal maneiraquenãoaspodiaaceitarcomominhas.E,apropósitodisto,desejopedir
aqui aos vindourosquenuncaaceitem como minhasascousasquelhes disserem,
senãoquando eupróprioastiverdivulgado.
12
.
Pedido extremamente difícil esse que o  filósofo nos faz. Se já entre seus
contemporâneos “algumas de suasopiniões”eram, radicalmente, deturpadas, será que nós,
quat rocento sanosdepois,poderíamosmesmorogarfidelidadeparaasnossaspesquisas?Será
que,hoje,teríamosverd adeiroacessoàs“coisasdivulgadaspropriamenteporele”?
Sejacomo for,sejaqualforotam anho doriscoquesecorra,qualquerpesquisador
acredita,namelhor dashipóteses,estaromaispróximoposveldeseuobjetodepesquisa;e,
enessecaso,aadvertênciadeDescarteséútilporquerequerdenós,leitoresmodernosde sua
filosofia, uma p ostura permanentemente vigilante e atualizador a de sua obra, o que, entre 
outrascoisas,nospermiteeestimulaaumcontínuomovimentoderupturacomojáinstituído,
mantendo,assim,o origináriopo tencialrevolucionáriodessafilosofia.
11
Sobre a inadequação do termo
cogit o
”, ver, neste tr abalho, fls. 2730 . Sobre os termos sistema” e
“dualismo”;cf.SOARES,A.G. T.de.
PorumDescartesnãocartesiano
,2008.
12
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.55.[...]bienquei’ayefouuentexpliquéquelquesvnesde
mesopinionsadesperfonnesdetresbonefprit,&qui,pendantqueieleurparlois,fembloientlesentendrefort
diftinctement,toutefois,lorfqu’ilslesontredites,i’ayremarquéqu’ilslesontchangéespref|quetoufioursen
tellefortequeienelespouuoisplusauouërpourmines.Al’occafiondequoyiefuisbienayfedepriericynos
neueux,denecroireiamaisq ueleschofesqu’onleurdira vienentde mo y,lor fqueienelesauray pointmoy
mefmediuulguées.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.6970).
15
Aquestãoépolêmicae,c ertamente,requerdebates;maspodemosirnosacostumando:
polêmicas e debates são dois traços marcantes da filosofia cartesiana em geral. E, nesses
termos, poderíamos mesmo invocar com razão, um Descartes segundo a ordem das
controvérsias,po isoparecehaverumponto,sequer,queofilósofotenhatr atadoquenão
tenhagerado,sejaaseutempo,sejahojeemdia,um ariedediscussõeseembates;afinal, o
que são as
Objeções e Respostas
se não a síntese de controvérsias, por  excelência, do
cartesianismo?
13
.
Nessesentido,afirmamos,categoricamente,comNudler:
Seapermanênciadeumpensadordeveser medidapelovolumedecontrovérsiaque
seupensamento provocamuito tempodepois desuamorte, não hávidade que
Descartesénãoapenasumgrandepensadordopassadomastambémumapresença
vivaemnossaprópriaépoca.
14
.
E é tão certa esta “presença viva” de Descartes que Kenny chega a falar de um
reavivamento “surpreendente” do cartesianismo nas últimas décadas
15
; e ainda sobre essa
notoriedadeatualdofiló sofoedesuafilosofia,RodisLewiscomentaaincrívelpopularidade
do
DiscursodoMétodo
quefezDescartesseroú nico autoraterumaobrahomenage adano
mundointeiropelo tricentenáriodesuapublicação,em1937,eaindacinqüentaanosdepois,
em 1987, du as sériesdeconferências em Paris seguidasdeoutras na Itália, noJap ão, nos
Estado sUnidos,enfim
16
.
Aessepropósito,particularmentenoBrasil,opodemosdeixardemencionaroano
de 1996:ano de comemoraçãodo quarto centenário de nascimento d o filósofo, outrad ata
celebrada em grande parte das Universidades do mundo inteiro, dentre as quais USP
(Universid ade de São Paulo) e UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que,
associadasàANPOF(AssociaçãoNacionaldePó sgradu açãoemFilosofia)realizaramdois
13
Cf.DESCARTES,R.
Objectionseréponses
,A.T.,IX,I,pp.73253.Entendase“cartesianismo”aquicomoa
recepçãocríticadafi losofiadeDescartes.
14
NUDLER,O.Descarteseoc ampoepistemológicomoderno.In:FUCKS,S.
Descartes400anosumlegado
científicoefilosófico
,1998,p.171.
15
KENNY,A.apud,Ibid.
16
Cf.RODISLEWIS,G.
Descartes–umabiografia
,1996,p.9.
16
colóqu ios internacionais sobr e Descartes:
Descartes 400 ano s: os Princípios da Filosofia
Mo derna
e
Descartes– umLegadoCientíficode400anos
17
.
Portudoisso,aatualidadeenotoriedadedeDescartesesuafilosofiaseapresentamde
maneiraincontestá velao públicofilosóficogeral;e,denossaparte,concentradosnatemática
do
cogito
, esperamos, mesmo que minimamente, contribuir para o alargamento do debate
cartesianono Brasil,tornando, enfim,maisesclarecidaainda essa atualidadee notoriedade
concedidaspornósaofilósofofrancêsdequatroséculosatrás.
Nos termospróprios de nossapesquisa,aperguntafundamentalque fazemos ése a
primeiraparteda
MeditaçãoSegunda
deDescartes:
Danaturezadamentehumana
18
podeser
entendidacomoaafirmaçãodecerta “equivocidade”do
cogito
.Éjustamenteesseoproblema
que trazemosem nossotítulo:
Descartes e a p rimeira p arte da Meditação Segunda:da
natureza da mente humana ou de uma suposta equivocidade do cog ito?
; porque é
justamenteesseoproblemaquenospropomosafundamentar.
Porisso,éprecisoterbemclaro,desdejá,que, emboranão tenhamosomitidonossa
opçãoquantoa umapossívelsoluçãodaperguntainquirida,todo estetrabalhoé dedicado,
prioritariamente, mais à fundamentação dessa pergunta que à obtenção própria de sua
resposta.
Nesse sentido, nosso esforço maior é dar conta de tornar legítima a interrogação
proposta. Se conseguirmos isso, teremos, pois, uma via aberta para mostrar, em outra
oportunidade,talvez,atotalfecundidadedaqu estão,ta lcomoacompreendemos.
Porhora,então,interessanos,sobretudo,terestabelecidaaquestão;e,paratanto,este
trabalho se divide em duas partes, quatro capítu los e um anexo: P arte I:
Notas sobre a
constituição do cogito”
, Parte II:
Notas sobre uma suposta equivocidade do cogito
19
.
Cadapartecompreendedoiscapítulos:
Docogitoemgeral
e
Docogito”noDiscurso”
oosdoiscapítulosdaParte
Docogito ”enquantocertezadaexistênciadamente
e
Do
cogito”enquantonaturezadamente
oosdoiscapítulosdaParteII.OAnexoéatradução 
donossoreferencialteóricobásico:aprimeiraparteda
MeditaçãoSegunda
.
17
Osdoiseventosproduzirampublicações:oprimeiroseencontraemduasediçõesdaRevistaAnalytica, ver
em:ANALYTICA,v.2,n.1,1997;Id.,v.3,n.2,1998;osegundo,publicadoemlivro,podeserencontradoem:
FUCKS,S.
Descartes400anos umlegadocientíficoefilosófico
,1998.
18
Cf. DESCARTES, R.
Meditationes de prima philofophia
, A. T., VII, I, pp. 23 et seq.; Id.,
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.18etseq.
19
Aopçãopelotermo“
Notas...
éparanãodeixardúvidasquantoaocaráterintrodutóriodenossapesquisa.
17
NaPart eI,aintençãoé,demodogeral,apresentaralgunsa spectosdo processopelo
qualo
cogito
seconstitui,sejacomomerojargã o filo sóficoformuladopelatradição crítica
contemporânea, seja como princípio próprio da filosofia cartesiana (Cap. I); e ainda
investigar,apartirdeumatesedeAlquié,asaber,adistinção do
cogito
entreo
Discurso
eas
Meditações
20
,arealposiçãoqueo
cogito
ocupano
Discurso
(Cap.II).
Os resultados maisimediatos, quanto a essa partedo trabalho, apontam para certa
inadequaçãodasimplesexpressão
cogito
”comodesignaçãodoprincípiocartesianoeparaa
necessidade e importância de conceber o caráter constituinte do
cog ito
(Cap . I). Apontam
também paraoestabelecimentodatesedequeo
cogito
é,totalmente,constituídono
Discurso
,
contraria ndoaqui,aomenosde formainicia l, aposição deAlquié.E,finalmente, apontam
ainda,paradeterminadasdificuldadesquealgunspequenosdetalhesdas
Meditações
operam
nasualeitura(Cap.II).
AParteII,porsuavez,seocupadiretamentedotemadestapesquisa:ahipótesede
umaequivocidadeprópriad o
cogito
.Naverdade,elaéumadescriçãodetalhadadaprimeira
parteda
MeditaçãoSegunda
deDescartestextobasedenossotrabalho–esuapretensãoé,
sobr etudo,mostrarcomoépossível,apartirdasduasdefiniçõesqueofilósofonosapresenta
do
cogito
21
nessetexto,interrogálosobreaidentidademesmadeseuprincípio.
Uma dascaracterísticasseminais do
cogito
équeeleé umacerteza;mascertezade
quê?Oque,exatamente,o
cogito
afirmaexistente?Qualacaracterizaçãodessacertezaqueo
cogito
representa?Éumacertezalógicaouintuitiva?O
cogito
representaumacertezaunívoca
ou há certa equivocidade na certeza representada pelo
cogito
?Essas são as perguntas das
quaisseencarregaoCap.I,ParteIIdenossotrabalhoequeservemco moestabelecimento
específico da problemática central da pesquisa tratada sob estrita medida no capítulo
imediatamente seguinte.
Especialmente significativo, pois, o Cap. II, Parte II trata
do
cogito
enquanto
naturezadamente
.Estecapítulo,oúltimodadissertação,temoobjetivod e,apartirdetodos
oscapítulosqueoantecederam,sumarizaranossadiscussãoec olocar,deformaapropriada,a
questãoprincipaldapesquisa:aequivocidadeprópriado
cogito
.Tratasemesmodediscutir
sobr e a definição última do princípio cartesiano: O
cogito
é uma “co isa que pensa” ou o
20
Cf.ALQUIÉ,F.
Ladécouvertemétaphysiquedel’hommechezDescartes
,1996,p.153;emaisprecisamente,
Id.AMetafísica.In:
AfilosofiadeDescartes
,1993,pp.7283.
21
Sobrequaissãoessasduasdefiniçõesver,nestetrabalho,fl.12, nota4.
18
própriopensamento?Osdoiselementosseequivalemoudevesepostulardefiniçõesdistintas
paraoqueé“acoisapensante”eoqueéopensamento?
Quanto ao Anexo, tratase de uma tradução, de nossa autoria, do  texto frans da
primeira parteda
Med itação  Segunda: De la nature de l’Efprit humain
22
. É exatamente a
traduçãoqueutilizamosemtodasas citaçõesquesereferemaessetexto.
Tivemos o cuidado de cotejar o texto francês com as três, se não únicas, mais
popularestraduçõesbrasileiras;sãoelas:adeEnricoCorvisieri
23
,adeJ.GuinsburgeBento
PradoJúnior
24
eadeMariaErmantinaGalvãoeHomeroSantiago
25
.Alémdisso,colo camosà
disposição dos leitores a versão francesa do texto traduzido, paralelamente à tradução que
apresentamos,tornando,assim ,maisfacilmentepossível suaapreciaçãogeral.
Resultado,portanto,deumtrabalho minucioso,esperamos,mesmoqueminimamente,
contribuirparaadifícilartedecompreensãodorigordostermos,quenosparecetãocaraà
filosofiaemgerale,particularmente,aDescartes
26
.
Por fim, a título de elucidações diversas, duas palavras sobre a metodologia geral
emp regadanestapesquisa.
Como  se sabe,  a tradição crítica cartesiana compreende desd e filósofos muito
renomado s pela historiografia filosófica a filósofos de não tanto renome. O fato é que é
imensurável o volume de pesquisas que a filosofiade Descartes e seu
cog ito
suscitaram e
suscitam, ainda hoje, nos vários centros de filosofia do mundo inteiro, compondo e
sustentando,assim,essatradição.Nessestermos,importadizerquenossotrabalhoseredu zà
referênc ia nima de u ma parcela muito p equena do s grandes estudiosos dessa f ilosofia;
dentreospesquisadoresquemarcaramtendências,citamosGilsonediscutimosalgunspontos
com GuéroulteAlquié.Nãopassamosdisso,quejáfoi,paranós,umárduotrabalho.
22
DESCARTES, R.
Meditations metap hysiqves
, A. T., IX, I, pp. 1823. Como já dissemos acima, esse é o
referencial teórico de nossa pesquisa; dada nossa insuficiência no conhecimento dolatim não foi possível a
utilizaçãodooriginallatino.
23
Cf.Id.
Meditações
,2004,pp.257263.Olivronãotrazinformações sobreonúmerodeedição.
24
Cf.Id.
Meditações
,1973,pp.99103.Primeiraediç ão.
25
Cf.Id.
Meditaçõesmetafísicas
,2005,pp.4149.Segundaedição.
26
Nossatraduçãocontoucomovaliosoauxíli odarevisãofeitapeloProf.Dr.,orientadordestapesquisa,rcio
ChavesTann ús;se mele,certamentenãoatornaríamospúblicaemformadeAnexo.
19
Sobread isposiçãot écnicadascitaçõesereferências,pro curamo s,omáximopossível,
não nos distanciarmos da normalização proposta pela ABNT (Associação Brasileira de
Normascnicas);co ntudo,nãonosimpedimosderecusálaquandoelanospareceupouco
eficiente.Nessestermos,fazemosasseguintesobservações:
1. Todasascitaçõesde Descartes, sejamasquesmesmostraduzimos,sejam ou tras
traduçõesq ueutilizamos,referemseàedãofrancesadaobradofilósofopublicada
porCharlesAdamePaulTannery,excetoatraduçãodos
PrincípiosdaFilosofia
feita
pelo
Seminário Filosofia da Linguagem
UFRJ; nesse caso, a referência é feita à
reproduçãodaediçãoitalianadeJ.R.ArmogatheeG.BelgioiosodaeditoraConte.
2. Demodo geral,dadanossainsuficiêncianaleituradolatim,optamospelostextosem
francês.As
Correspondências
,aprimeiraparteda
MeditaçãoSegunda
eas
Objeçõese
Respostas
,exceto as
QuintasRespostas
,sãotextostraduzidospornósmesmos;quanto
ao
Discurso do Método
, utilizamos a tradução de Newton de Macedo da editora
portuguesa Sá da Costa; no caso das outras partes das
Meditações Metafísicas
,
recorremosà ediçãodaMartinsFontes,cujatraduçãoédeMariaErmantinaGalvão;e,
quanto aos
PrincípiosdaFilosofia
,trabalhamos comatraduçãodeAlbertoFerreira
editadapelaGuimarãeseCia.Editores.
3. Quandofoioc asodenosapropriarmosdostextoslatinos,oqueocorreusomentecom
o
Prefácioaoleitor
das
MeditaçõesMetafísicas
ecomalgunsp ouquíssimostrechos
dos
PrinpiosdaFilosofia
,usamos,parao
Prefácioaoleitor
,astraduçõesdeFausto
Castilho da editora Unicamp e de Homero Santiago da Martins Fontes; e, para os
PrincípiosdaFilosofia
,atraduçãod o
SemináriodeFilosofiadaLinguagem
–UFRJ
editadapelaRevistaAnalytica.
4. Todas as citações que fizemos o imediatamente seguidas do original a que
corresponde.
PARTEI
NOTASSOBREACONSTITUIÇÃODO
COGITO
CAPÍTULOI
DO
COGITO
EMGERAL
Nopresentecapítulo,aoiniciaraprimeirapartedenossapesquisa,cumpreapresentar 
algunsaspectosdaconstitu iç ão do
cogito
em geral na filosofia de Descartes. O objetivo é
mostrar certa inadequação d o simples termo
cogito
” par a a designação do princípio
cartesiano;digase:umtermoque oprópriofilósofonuncautilizou;e,ainda,tornarevidenteo
caráterconstituintedo
cogito
mostrando alguns de seus elem ento sconstitutivos. Emoutra s
palavras:r essaltarseuaspectofactual;emtese:o
cogito
deDescartesnãoé,simple smente,
umdadopu rodointelecto,masé,também,umfatovivodahistóriade seuautor.
1.1 – “Jepense,doncjesuis”/Egosum,egoexisto” /Egocogito,ergosum
Anunciado pela primeira vez em francês, o princípio cartesiano que a tradição
contemporânea consagrou, simplesmente, como
cogito
, surge com o
Discurso
de 1637
27
,
aparece,sobnovafórmula,nolatimdas
Meditações
28
de1641ereaparece,denovoemlatim,
nos
Prin cípios
29
de 1644
30
. Ele é um dosepisódios mais conhecidos de toda a históriada
Filosofiae,semdúvid anenhuma,osignomaiseloentedetodaafilosofiacartesiana.
27
“Enotandoqueestaverdade
eu penso,logoeuexisto
eratãofirmeetãocertaquetodasasextravagantes
suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para
primeiro princípio da filosofia que procurava.” (DESCARTES, R.
Discurso  do método
, 1984, p. 28). Et
remarquantqueceteverité:
iepenfe,donciefuis
,eftoitfiferme&fiaffurée,quetouteslesplusextrauagantes
fuppofitions des Sceptiques n’eftoient pas ca pables de l’efbranfler, ie iu gay que ie puuois la receuoir, fans
fcrupule,pourlepremierprincipedelaPhilofophie,queiecherchois.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.
32).
28
Aqui,aformulaçãonãoé,exatamente,
Eupenso,logoeuexisto
esim
Eusou,euexisto
:“Desorteque,de pois
deponderar[...]éprecisoestabelecer,finalmente,queesteenunciado[.. .] (
Eusou,euexisto
)énecessariamente
verdadeiro, todas as vezes que é por mim proferido ou concebidona mente.” (Id.
Meditações so brefilosofia
primeira
,2008,p.45).Adeout,omnibusfatisfuperquepenfitatis,deniqueftatuendumfithoc pronuntiatum,
Egofun,egoexifto
,quotiesameprofertur,velmenteconcipitur,neceffarioeffeverum.”(Id.
Meditationesde
primaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.25).
29
“[...]esteconhecimento:eupenso,logoexistoé,detodos,oprimeiroeomaiscertoaocorreraquemquerque
filosofecomordem.(Id.
DosPrincípiosdafilosofia
,1997,p.49).“[...]haeccognitio,
egocogito,ergosum
,est
22
Listar as inúmeras discussões que o célebre
cogito
cartesiano suscitou na tradição
filosóficaparecenãosernecessárioparacomprovarasuaimportânciacapital,sobretudo,na
filosofiadeDescartes.
Para atestarmos o caráter nuclear da descoberta do pensamento como garantia
indubitável da existência de um “Eu ”, o é preciso ir além do conteúdo mesmo das
afirmaçõessobreo
cogito
queoppriofilósofo,demaneiratão explícita, nos oferece em
cadauma desuasprincipaisobras:em1637,quandoafirma,naquartapartedeseu
Discurso
,
sero
cogito
oprimeiroprincípiodesuafilosofia,umaverdadetãocertaeseguraquepode,
semnenhumareserva,sertotalmenteaceita
31
;em1641,nassuas
Meditações
,quando,então,
o
cogito
aparececomoumaproposiçãonecessariamenteverdadeiratodasasvezesemqueé
pronunciadaouconcebidanamentedomeditador
32
;e,porúltimo,quandodaocasiãodeseus
Princípios
,em1644,ondeo
cogito
étomadocomooprimeiroemaiscertoconhecimentoque
se apresenta à quem quer que filosofe com ordem
33
. Ou seja, o fato de o
cogito
ser
tomado: (1) como o primeiro princípio da Filosofia, (2 ) como uma proposição
necessariamenteverdadeira– cumpridasdeterminadascondições–e(3)comooprimeiroe
maiscertoconhecimentofilosófico jáésuficienteparajustificaroseualtovalornointeriorda
filosofiacartesia na.
É,portanto,maisporessastrêsrazõesque porqualquerjargãofilosóficoqueahistória
da Filosofia tenha proposto que se deve compreender a real importância do princípio
cartesiano;querdizer,nãoépormeiodanotoriedadeeeloqüênciado
cogito
quesechegará
aoverdadeiroconhecimentodeseuconteúdo,mesmoporque,tantaeloênciaenotoriedade,
definitivamente, não significam precisão quanto àquilo que, realmente, ele representa na
filosofiacartesia na.
Nesse sentido, é preciso entender que, embora fundamental, o
cogito
é, talvez, o
princípiomaiscontroversoqu eDescartestenhaanunciado;é,sabidamente,motivodegrandes
omnium prima & certissima, quae cuilibet ordine philosophanti occurant.” (DESCARTE S, R.
Principiorum
philosophiae
,1997,p.48).
30
Sobreadistinçãoteórica, ouo,daes peci ficidadedoprincípioemcadaobra,ver,nestetrabalho,próximo
capítulo.
31
Cf.,nestecapítulo,nota27.
32
Cf.Ibid.,nota28.
33
Cf.Ibid.,nota29.
23
polêmicas entre os interlocutores e estudiosos de sua filoso fia. Em tese, a constituição,
significação e naturezado
cogito
,d esde Descartes,permanecem co mo estigmasabertosno
interiordo cartesianismo
34
.
A esse respeito, Buzon e Kambouchner chegam mesmo ao ponto de supor certa
“pobrezadeconteúdo”do
cogito
cartesiano.Elesdizem:“Afunçãoeminentedaproposição:
cogito, ergo sum
contrasta com a pobreza de seu conteúdo.”
35
. E, ainda, segundo esses
auto res, Descartes não teria, de modo algum, dissimulado esse contraste; sabia que a sua
formulaçãoera, já,uma“banalidade”,um“velhoditado”daFilosofia
36
.
A“pobrezadeconteúdo”do
cogito
àqualessescomentador essereferemestáligada
ao problema da originalidade da fórmulacartesiana:o
cogito
de Descartes seriapobre em
conteúdo “uma banalidade”, um “velho ditado” filosófico –, sobretudo, porque sua
constituiçãoprecederia,historicamente,asuafilosofia
37
.
Tratase, de fato, de um antigo problema do cartesianismo cuja discussão suscitou
inúmeras interpretações e interrogat ivas. O próprio Descartes tomou parte nesse debate
quandooPe.Mersennelhefezobservarasemelhançadeseu
cogito
comateseagostinianado
Sifallor,sum
” “Seerro, sou”
38
.Umautor,hojedesconhecido,tambémteriaadvertidoo
filósofoquantoàmesmaquestão
39
eArnauld,naelaboraçãodas
Quartasobjeções
,maisde
34
Sobre a problematicidade geral do
cogito
– sua constituição, definição e natureza – no interior do
cartesianismo,conferir,alémdas
Objeçõeserespostas
.In:DESCARTES,R.
Medit ationsmetaphysiqves
,A.T.,
IX,I,pp.73253eofervorosodebateentreGuéroulteAlquiéem
CAHIERSDEROYAUMONT
,II,1957.Ver
ainda:RODISLEWIS,G.
Descartes:textesetdébats
,1984;e,LANDIMFILHO,R.
PodeoCogitoserposto
emQuestão?
, 1994.
35
“La fonction éminente de la proposition:
cogito, ergo sum
contraste avec la pauvreté de son contenu.”
(BUZON,F.;KAMBOUCHNER,D.
LevocabulairedeDescartes
,2002,p.12,traduçãonossa).
36
Cf.Ibid.,pp.1213.
37
Motivodedivergênciasentre osestudiosos,oargumentodaantecedênciahistóricado
cogito
põeàprova a
originalidadedoprincípiocartesianonamedidaemquesugeresuaorigememfontesanterioresaDescartes.A
seutempo,foitemadedebateentreoautoreseusinterlocutoresqueremetia maorigemdeseuprincípio aSanto
Agostinho;atualmente,comoindicaFerraterMora,chegasemesmoaafirmarumacertaorigemaristotélicado
cogit o
:“[...]ÉmileBréhier,EgonBraun,RodolfoMondolfoePierreMaximeSchuhlreferiramseaváriostextos
deAristóteles(porexemplo:
Desensu
,VII488a25,e
Phys
.,VIII3,254a22)emqueoEstagiritaafirmaquea
autopercepçãoéacompanhadad oconhecimentodaprópriaexistência[...]”(FERRATERMORA,J.
Dicionário
defilosofia
,2000,tomoI,p.485).Comosepodever,aquestãosepõeaberta.As,bastanos,apenasacenar
paraoepisódionointeriordodebateentreoautoreseusprimeirosinterlocutoresondeaorigemdo
cogito
,ver
detalhadamenteadiante,é,predominantemente,atribuídaàAgosti nho.
38
Cf.DESCARTES,R.
Correspondance
,A.T.,III,pp.261.
39
Cf.Ibid.,pp.247248.
24
uma vez chama a atenção de Descartes quanto à antecedência histórica daquilo que é o
“fundamentoeprimeiroprincípio” desuafilosofia.Diz:
A primeira coisa que eu encontro aqui digna de observar é ver que o senhor
Descartesestabeleceporfundamentoeprimeiroprincípiodetodaasuafilosofiao
que,antesdele,SantoAgostinho[...]játinhatomadoporbaseesuportedasua.
40
.
A posição do filósofo em relação a essas q ueses parecenos um tanto tímida e
evasiva;sedeumlado,elenãonegaradicalmentecertaproximidadedeseuprincíp iocomo
princípio agostiniano, de outro, também não reconhece, de forma explícita, qualquer
influênciadofilósofoantigo.
Emrespostaaotema,Descartesdiz,primeiramente, que:“[...](O
cogito
)éumacoisa
que,porsi,étãosimplesetãonaturaldeinferir[...]queelateriamesmopodidocairsoba
penadequemquerqueseja.”
41
.Depois,eleapontaparaofatodequeaoriginalidadedeseu
cogito
estarianousoespecíficoqueeleprópriofazdessaverdade:enquantoSantoAgostinho
seserviriadelaparaprovaracertezadenossosere,emseguida,parafazerverqueháemnós
algumaimagemdaTrindade,naqualnóssomos,nóssabemosoquenóssomosenósamamos
essesereessaciênciaqueestáemnós,ele–Descartes– servir seiado
cogito
paraconhecer
queo“euquepensa”éuma“substânciaimaterial”;oque,segundoofilósofo,odistanciaria
do
cogito
agostiniano,poistratarseiade“duascoisasmuitodiferentes.”
42
.Definitivamente,
afirmaDescartes:“SantoAgostinho[...]oparecefazer(doprincípio)omesmousoqueeu
faço.”
43
.E,porfim,quaseemtomdeironia,ofilósofochegaafalardecerta“alegria”emse
vercoincidircomSantoAgo stinho–umagrandeautoridade–,oqueserve,inclusive,para
“calaraboca”dealguns“pequenosespíritos”qu e procuram“pôrreparosaesseprincípio”–o
cogito
44
.
40
Lapremierechofequeietrouueicydignederemarque,eftdevoirqueMonfieurDesCart eseftabliffepour
fondementepremierprincipedetoutefaphilofo phiecequ’auantluySaintAuguftin
[...]
auoitprispourlabazee
lefoutiendelafienne.
”(DESCARTES,R.
Objectionsetrépon ses
,A.T.,IX,I,p.154,traduçãonossa).
41
“(O
cogito
)c’eftvnechofequidefoyeftfifimple&fi naturelleàinferir[...]qu’elleauroitpûtomberfousla
plumedequiquecefoit[...]”(Id.
Correspon dance
,A.T.,III,p.248,traduçãonossa).
42
Cf.Ibid.,pp.247248.
43
“[...]il(SantoAgostinho)nemefemblepass’enferuiràmefmevfagequeiefais.”(Id.
Correspondance
,A.
T.,I,p.376,traduçãonossa).
44
Cf.Id.
Correspon dance
,A.T.,III,p.248.Vertambém:Id.
Objectionseréponses
,A.T.,IX,I,p.170.
25
Em nosso entend er, respostas tão evasivas e mesmo, aparentemente, contraditórias
justificam,emcertamedida,algumasindagaçõesemtornodosuposto
cogito
moderno”de
Descartes: Será queofilósofo nãoestudou os textos de Santo Agostinho em
La Flèche
e,
agora,seapropriava,indiscriminadamente,dasidéiasdoautor?Seráqueadistinçãode“uso
doprincípio”àqualofisofosereferiubastariaparadaroriginalidadeaoseuprincípio?Em
suma,noquedizrespeitoao
cogito
,Descartesé,naverdade,umagostinianoconvictoouo
cogito
deAgostinhoé,defato,diferentedo
cogito
propostoporDescartes?
Assoluçõesdessasquestõesdividemasop iniõesdosestudiosos:háosquedefendem 
umDescartesagostiniano –aomenosnoquedizrespeitoao
cogito
–,osquedizemnãohaver
nenhumarelaçãoconsiderávelentreo sprincípiosdeAgostinhoeDescartese,ainda,osque
tomam uma posição mais intermediária, não negando a importância dos argumentos
agostinianosparaaconstituiçãodo
cogito
em Descartes,sem, noentanto,reduzíloàmera
coincidênciaourepetição
45
.
Buzon e Kambouchner, quando afirmam que Descartes o teria dissimulado a
“pobrezadeconteúdo”doseu
cogito
sabendosetratardeuma“banalidade”,oumesmo,de
um“velhoditado ”daFilosofia,parecem,portanto,estardeacordocomaquelesquefazemde
Descartesum“discípulo”deAgostinho.
Em todo caso, a “pobreza de conteúdo” que esses autores atribuem ao princípio
cartesiano não parece se restringir somente ao fato de sua originalidade; outro ponto
controversoqueBuzo ne Kambouchner levantamdizrespeitoàquiloque confereao
cogito
sua“singularidadeecertezaplena”.Dizem:
[...] muito se tem interrogado sobre o que confere ao
Cogito
sua singularid ade e
certezaplena–certezasuscetíveldesefazerdeleum‘pontofixo’aoqualsejuntam
todasasoutrasverdadesdafiloso fiaprimeira’.Osproblemaslevantadosconcernem
notadamente(a)aquestãodesaberseaatitudedo
Cogito
éintuitivaou discursiva;
(b) se o
Cogito
constitui ou implica um raciocínio ou uma dedução; e, qual a
naturezadessadedução;(c)ain fluênciaprecisadapremissa(‘jepense’)nacerteza
daconclusão(‘jesuis’);(d)aescolhadaprimeirapessoaealegitimidadefilosófica
daproposição‘jepense’preferidaatodafórmulamaisimpessoal.
46
.
45
Entreosprimeiros, estariaopróprioArnauld,citadoacima;e,deacordocomFerraterMora,tambémBlan chet
e,emcertamedida,Gilson;aindadeacordocomessecomentador,PascaleOrte gaeGassetfigurariamentreos
segundos e, novamente, Gilson representaria, também, aqueles de posição intermediári a. Cf. FERRATER
MORA,J.
Dicionáriodefilosofia
,2000,tomoI, p.486.Sobreotemageraldaprecedênciahistóricado
cogito
,
ver:BLANCHET,L.
Lesantécédentshistoriquesdu“ Jepense,doncjesuis”
,1920eGILSON,E.
Étudessurle
roledelapenséemédiévaledanslaformationdusystèmecartésien
,1984.
46
“On s’est beaucoup interrogé sur ce qu i confère au
Cogit o
sa singulière et entière certitude certitude
susceptibled’enfaireunpointfixe”auquelarrimertouteslesautresvéritésdelaphilosophiepremière”.Les
problèmessoulevésontconcernénotamment(a)laquestiondesavoirsiladémarchedu
Cogito
estintuitiveou
26
Essepequenoinventárioabre,apropriadamente,umaextensalistadeproblemassobre
aconsistênciadoconteúdodo
cogito
talcomoapresentadaporDescartes;problemassobre os
quaisoprópriofilósofosedebruçou
47
eaindaosestudiososdesuaobra,incansavelmente,se
debruçam.
Mesmo Buzon e Kambouchner reconhecem que Descartes respondeu, “seja
explicitamenteouporantecipação”,acertonúmerodessasdificuldadesequesuasrespostas
“emprestam”acertoslógicosmodernos“diferentesensaiosderedução”–notadamentepara
auxiliarumcertomodelo“performativo”quefazdo“Jepense”oudo“Jesuis”oobjetode
um“atodelinguagem”
48
.
Como querqueseja,saber asingularidadedo
cogito
cartesianoparecemesmosera
mola propulsora de uma série de problemas, desde sempre, recorrentes no interior do
cartesianismo;e,portanto,nãohádúvidasdapertinênciadessesproblemasedesua stantas
soluções,que são, em suma, a chave de leitura dos intérpretes de Descartes para as mais
variadastesesacercada constituição,signif icação enatureza deseu
cogito
.
Dessemodo,paraalémdetodaeloqüênciaenotoried ade–ou,porquenão,detoda
“clareza e evidência”? como é comumente caracterizado, o
cogito
cartesiano, quando
interrogadomaisdeperto
49
,poderevelaralgunsaspectosnãotãoeloqüentesenotório s,mas
quetambémoconstituem,fundamentalmente.Emtese,parecehaver indíciosdequeo
cogito
possaser,aocontráriodoquedifusamentesepropaga,umprincípio m arcadamenteobscuro,
uma simples rmula moderna de certo arcaísmo filosófico ou, ainda, uma proposição
extremamentetênueecomplexa.
discursive;(b)pourautantqueo
Cogito
constitueouimpliqueunraisonnementouunedéduction,lanaturede
cettedéduction;(c)lerôleprécis delaprémisse(“jepense”)danslacertitudedelac onclusion(“jesuis”);(d)le
choixdelapre mièrepersonne,etlalégitimitéphilosophi quedelaproposition“jepense”,depréférenceàtoute
formuleplusimpersonnelle.”(BUZON,F.;KAMBOUCHNER,D.
LevocabulairedeDescartes
,2002,pp.13
14,traduçãonossa).
47
Cf.,porexemplo,TerceirasObjeçõ eseRespostas,em:DESCARTES,R.
Objectionseréponses
,A.T.,IX,I,
pp.133etseq.
48
Cf. BUZON , F.; KAMBOUCHNER, D. op. cit., pp. 1415. A referência aos“lógicos modernos” é feita a
HINTIKKA,J.CogitoErgoSum:InferenceorPerfomance.In:
Philosophicalreview
,71,1962, pp.332.
49
Porexemplo,apartirdatemáticadeseusantecedenteshistóricosoudaconsistênciadeseuconteúdo,talcomo
aexpusemosnessaseção.
27
1.1.1 –Sobre“OCogito
Uma significativa demonstração da complexidade do princípio cartesiano pode ser
obtida através da expressão o propriamente cartesiana, porém, muito difundida entre os
com entador esdeDescartes:“
OCogito
”.
Embor aseja consenso quaseabsoluto entreosestudiososdeDescartes queotermo
cogito
”–notadamente,resumodafórmulacontidanos
Princípio s
:“Egocogito,ergosum –
servedeformaadequadaparadesignar aproposiçãocartesiana“Jepense,doncjesuis”e/ou
“Egosum,egoexisto”.Importadizerqu eofilósofo,jamais,emtodaasuaobra,sereferea
qualqu er elaboração resumida de seu princípio: Descartes nunca usou a simples expressão
cogito
”paraapresentarouexplicarasuaproposição.
Étarefadifícilrastrear,historicamente,aor igemdessaexpressãonatradiçãofilosófica
ouentreosintérpretescartesianos.Em1946, Financepublicavaumlivroquetra ziaosegu inte
título:
CogitocartésienetRéflexionThomiste
50
.Talveztenhasidoeleopr imeiroaformular
talexpressãoou,aomenos,atornála,oficialmente,pública.Depoisdele,Alquié,em1950no
seu
La Découverte Métaphysique de l’Homme chez Descartes
, já tratava o princípio
cartesianoutilizandoasimplesexpressão “
cogito
”
51
.Mas,semdúvida,foiGuéroult,trêsanos
maistarde,emseuclássico
DescartesSelonl’O rdredesRaisons
52
quempopularizouotermo
disseminado, ap artirdaí, na literatura cartesiana edefinitivamente estabelecido como uma
espéciedeemblemadafilosofiadeDescartes.
O fato é que o
cogito
”, textualmente descrito, não passa de um elemento
interpretativo e,comotal, certamenteimplica algu masdificuldades,porexemplo:Quaisas
reais necessidades e intenções de se propor determinado conceito sobre determinado
princípio? Questão de técnica retórica ou  ideológica? Qual é “o problema” das rmulas
apresentadas por Descartes que justifica a elaboração de um conceito que as resuma?
50
Cf.DEFINANCE,J.
Cogitocartésieneréflexionthomiste
,1946.
51
Cf.ALQUIÉ,F.ExistenceduMoi.In:
Ladécouvertemétaphysiquedel’ho mmechezD escarte s
,1996, pp.
180200.
52
Guéroultdedicadoiscapítulosdotomoprimeirodaobraaumaanáliseminuciosadoprincípiocartesiano.Os
capítulosIII eIVsão,igual mente, intitulados:Le
Cogito
. Cf.GUÉR OULT,M.
Descartesselonl’ordredes
raisons
,1999,pp.50151.
28
Ademais, por que, exatamente, a proposição é resumida em
cogito
” e não em
sum
”?
53
.
Quaisprecedentesteóricosestariamimplícitosnaformulaçãodoscritériosdeesco lhadeum
termoenãodeoutro?Enfim,oempregodotermo
cogito
”paradesignar,resumidamente,o
princípiocartesianorevelase comosendoumasutilinterpretaçãodeDescartesoudistorce,
tambémsutilmente,asinte nçõesdofisofo?
Como querqueseja,surpreendenotarcomograndepartedoscríticoscontemporâneos
tenha aceitado, tão abertamente, a substituição da fórmula original pela expressão
interpretativa.Basicame nte,quasetodaaliteratura críticacartesianapósGuéroultseapropria,
indiscriminadamente, da simples expressão
cogito
” para fazer referência ao “ponto
arquimediano”deDescartes.
Aindaquesejapossívelargumentarafavordeuma fe lizadequaçãodote rmo“
cogito
”,
ouqueelesejaum“[...]conceitocomclarabasetextualco rrespondente.”
54
eque, portanto,
além de não ser indevido é razoávelutilizálo, o que parece inadm issível, no entanto, é o
modoinadvertidocomoissofrequentementeocorre
55
.
Cot tingham,senãooúnico,éumdospouquíssimoscom entador esdeDescartesque
atentam,minimamente,paraasupostagravidadedessasitu ação.Em nota,eleafirma:
53
Algunscomentadoresconcordamqueaprincipalquestãodafilosofiacartesianaseexpressamaisemtermos
deexistência(
sum
)quedepensamento(
cogito
).Sãooscasos,porexemplo,deAlquiéquandoafirma:Oser
pensante,antesatédecompreenderquen ãoestácertodesersenãocomopensamento,apreendesepuramente
comser,eseuprimeiroconhecimentoformuladoé,o‘eupenso’,maseusou,euexisto’.Estoucertodeser
antes de saber que sou.” (ALQUIÉ, F.
A filosofia de Descartes
, 1993, p. 79); e, do comentador e tradutor
portuguêsdeDescartes,NewtondeMacedo:“Oproblemacentraldesuafilosofia(deDescartes),problemaque,
mercê da maneira como o pôs e das soluções que lhe deu, ficou sendo o problema dominante da filosofia
moderna,emcontrasteco mosdafilosofiaantigaemedie val,éodalegitimidadedosjuízosdeexistênciaou,por
outraspalavras,odapassagemdopensamentoaoser.(ouseja,penso,logosou”)”(MACEDO,N.de.Prefácio.
In:DESCARTES,R.
Discursodométodo/Aspaixõesdaalma
,1984,p.XXI) eainda:“QuantoàFilosofia,a
afirmaçãoidealistadoprimadoexistencialdoPensamento(istoé,“eupenso”)ficousendo,naopiniãodosseus
historiadoresmaisautorizados,ogérmenvivo,dondeporumadialéticaimanentederivar amtodosossistemas
posteriores.” (Ibid.,p.XXIII).Essesargumentosnãojustificariam,talvezcommaiorpropriedade,queoresumo
dafórmulacartesianafosse
sum
enão
cogit o
?
54
SOARES,A.G.T.de.
cogito
[mensagempessoal].mctannus@ufu.brem08jul.2008.
55
Aquestãodalegitimidadedotermo“
cogito
”paradesignaroprincípiocartesianoéjulgada,pornós,degrande
importância;porém,dada a suacomplexidade, admitimos queela requeira uma pesquisa maisaprofundada e
argumentosmaisprecisos;então,porhora,interessaapenasnotarque,tomadospelaprudência,nossoargumento
geralnãocontraria(1)nemalegitimidadeprópriadotermo
cogito
enquantoreferenteàrmulacartesiana,(2)
nemoseuuso.Aquestãosec oloca,portanto,estritamenteemtornodomodoinad vertido”comoessetermoé
frequentementeempregado.Emtese,diríamos:C onsiderandoquesejarazoavelmentepossívelasubstituiçãoda
fórmulaoriginalcartesianapelasimplesexpressão“
cogito
”,issojamaisdeveráserf eitosemaadvertênciaprévia
relativaa,nomínimo,doisaspectos:a)seuestatuto deelementointerpretativoeb)sua“[...]duplaimplicação:a
dedescobrimentodeumexistenteea deexplicitaçãodasuaessência(pensamento)”(Ibid.).
29
Considerando que Descartes nem sempr e aplica a formulação
cogito ergo sum
, e
uma vez que existe uma disputa entre o s críticos sobre como se construir
exactamente oraciocíniodeDescartes,por exemplo,estaráeleainferiratravésdo
pensamentoaexistênciaouestarásimplesmenteareconhece rasuaexistênciacomo
autoevidente?,éconvenientepôrseorótulode‘nãofazerperguntas’aoprocesso
peloqualDescartesestabeleceacertezadesuaprópriaexistência.Orótuloumtanto
inábil ‘O Cogito’ preenche esta necessidade e provavelmente veio para ficar.
(Estremece, porém, ao pensarcomo teria Des cartesreagido a respeitode algumas
formas arbit rárias da expressão
le cogito
’ que têm sido utilizadas pelos seus
compatriotasdehoje.CompareGuéroult:“OCogitoécomou masubstância”no
sentidoepistemológico–segundoaterminologia Cartesiana,algo“concreto”ealgo
“completo” [...]. Neste caso, “O Cogito” significa algo como o “eu ”; no entanto,
nunspa ssosmaisàfrente,Guéroultutilizaocomoetiq uetaparaumaafirmação[a
“afirmaçãodanossaprópriaexistência”]
56
.
Daí, seo critério de Guéroult é a “conveniência”, como quer Cottingham, o termo
cogito
” tornase, de fato, uma farsa, um mero “rótulo” ideológico: ele tem a finalidade
precisadediminuiracomplexidadeeesconderafragilidadedoprincípiocartesiano–“não
fazerperguntas”,tornandoo,nãocomopr etendiaDescartes:“um averdadetãofirmeebem
assegurada”, masumsofisticadoegrandiosojargãofilosófico.Restasaber,porém,atéonde
vão,realmente,asrazõesdeCottinghame quaissãoasverdadeirasintençõesdeGuéroult.
Num casoou noutro, entretanto, o problemasempre se imporá: Se, deu m lado, as
razõesdeCottinghamalcançassemlegitimidade,constatarseiaquesuacríticaestariavoltada
menosaoestatutoprópriodotermo
cogito
”queaoseu emprego;deoutrolado,mesmose
fossem reveladas as mais sinceras intenções de Guéroult para com o modo pelo qual ele
emp rega esse mesmo termo, isso não bastaria, ainda, para amenizar a impropriedad e e
inadequação da expressão
cogito
”ante a formulação originária doprincípio representado.
Emtese,“o
cogito
”,qualquer qu esejaosubter fúgioadotado,jama isc onstaránaterminologia
própriacartesiana.
Emtodocaso,devesereconhecerque,emboraasimplicidadeeinautent icidadedesse
termorevelemsua inad equaçãodianted afó rmulaoriginal usadaporDescartes;“o
cogito
”,tal
como forjadopor seuautor, seja simplesmentedidática outeoricamente,parece não impor
problemasaoqueé, paranós,acaracterísticafundamentaldaformulaçãooriginalcartesiana:
asuaequivocidad e
57
.
56
COTTINGHAN,J.
AfilosofiadeDescartes
,1989,p.60.Areferênciaa Guér oultdizrespeitoa:GUÉROULT,
M.Le
Cogito
.In:
Descartesselonlordredesraisons
,1999,pp.5354.
57
Otemadaequivocidadedo
cogito
éopropósitogeralde nossadissertaçãoe serátratado,especificamente,
nestetrabalho,naParteII,Cap.II.
30
De nossa parte, portanto, b astanos deter o teo r, a princípio, problemático dessa
questão.Suporosimbricamentosdacondiçãoorigináriadaexpressão
cogito
”,istoé,deseu
estatutodeelementointerpretativoedanecessidadedecolocaremrelevoaduplaimplicação
queessaexpressãoprecisasignificarpara,finalmente,condizercomoprincípiocartesiano,o
qualpretenderepresentar,parecesersuficienteparanosfornecer,deformaclaraeconcisa,
umamínima noçãodo grau defragilidadee complexidade queenvolve nãosóoemblema
cartesianocomo,talvez,aprópriaformulaçãooriginal deDescartes.
1.2 – SobreaFilosofiadeDescartesemgeraleosanteced entescartesianosconstitutivosdo
cogito”:o“grandelivrodo mundo”, oprincípiodarazãoprópriae oMétodo
58
Supor,qualqu erqueseja,umestatutoparao
cogito
requer,antesdetudo, pensarasua
precedênciaconstitutiva no interior mesmodafilo sofia deDescartes. Naturalmente, não se
trata,aqui,deminimizaraimportânciaouoalcancedoprincípiocartesiano ;apenas,talvez,de
desmistificálo para devolvêlo ao lugar que lhe parece mais adequado: um contexto
extremamente amplo de uma filosofia bastante diversificada qu e, definitivame nte, não se
isolavadas demaisciências.
Essa unidade do saber que caracteriza e pretende a filosofia cartesia na pode ser
evocada, exemplarmente, atravésda clássica analogiada árvoredo conhecimento feita por
Descartes na
CartaPrefácio
dos
Prinpios
:as ciências se dividem no corpo de um saber
unificado,
Assim, toda a filosofia é como uma ár vore, cujas raízes são formadas pela
metafísica,otroncopelafísica,eosramosquesaemdestetroncoconstituemtodas
asoutrasciênciasque,aocabo,seredu zematrêsprincipais:amedicina,amecânica
e a moral, entendendo eu por moral a mais elevada e a mais perf eita, a que,
pressupondointeiroconhecimentodas outrasciências, vem aseroúltimograuda
sajeza.
59
.
58
Entendase
cogito
,apartirdaqui,tomadosemprecomasdevidasprecauçõesrequeridaspelacomplexidadedo
termo,talcomoaexpusemosacima.Emboradiversadafórmulaoriginal,decidimos,pondoemriscoavalidade
dos nossos próprios argumentos, continuar utilizando o termo. Isso ocorre por dois motivos principais: a)
Prudência: reconhecemos a insuficiência dos nossos argumentos para fundamentar uma tese mais segura a
respeito do assunto; b) Bom senso: o ignoramos a importância e a condição estabelecida do conceito na
tradiçãocríticacontemporânea.Portanto,dadaaincipiênciadoproblemaquelevantamos:aqu estão,aosnossos
olhos,definitivamente,sepõeaberta.Cf.,nestecapítulo,nota55.
59
DESCARTES,R.
Princípiosdafilosofia
,1984,p.42.“AinfitoutelaPhilofophieeftcommevnarbre,dontles
racinesfontlaMetaphyfique,letronceftlaPhyfique,&lesbranchesquifortentdecetroncfonttouteslesaut res
31
Desse modo, antesmesmo de, apressadamente, tomarmos essa analogia como uma
apresentaçãoexplícitadaordemlógicadosistemacartesiano,devemosconcebêla,sobretudo,
como expressão exata da unidade, amplitude e diversidade do universo filosófico de
Descartes,trêscaracterísticasque,emborafrequentementeignoradasoupouconotadas,são
fundamentaisparaquemdesejachegarcommaispropriedadeàq uiloquerealmenteestabelece
o
cogito
comoprimeiroprincípiodafilosofiacartesiana.
Deoutromodo,corresesempreorisco deapresentarofilósofoesuafilosofia sob
umaformacaricatural.Talvezaprópriagrandezateóricaquecaracterizaessafilosofiafacilite,
em certo sentido, algumas interpretações de tons mais simplistas. Em todo caso, é
recomendávelatenção,u mavezque:
[...]asimplificaçãoabusivalevaagravesincompreensões,sejavendosenafilosofia
deDescar tesapenasumracionalismoestreito,austerooudogmático,sejafazendose
deleumhomeminteiramentevoltadoparaametafísica,oquesórevelaumaspecto
parcialdafilosofiacartesiana.
60
.
Poressasr azões,
A Filosofia de Descartes não pode ser reduzida, como às vezes foi feito, à
metodologia(sejaelacientíficaoumetafísica).Essafilosofiaéumconjuntomuito
complexo de diversos elementos: método, metafísica, antropologia filosófica,
desenvolvimentoscientíficos(especialmentematemáticos),preocupaçõesreligiosas
eteológicasetc.
61
.
Assim, a tendência muito difundida em conceber a filosofia cartesiana como um
sistemadotadodeumalógicaextremamenterigorosaecompletamentedistanciadodavidaé
fciences,quifereduifentàtroisprincipales,àfçauoirlaMedecine,LaMechanique&laMorale,j’entenslaplus
haute&laplusparfaiteMorale,qui,prefupponfantvneentiereconnoiffancedesau tresfciences,eftledernier
degrédelaSageffe.”(DESCARTES,R.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,p.14).
60
HUISMAN,D.
Dicion áriodosfilósofos
,2004,p.269.
61
FERRATERMORA,J.
Dicionáriodefilosofia
,2000,tomoI,p.671.
32
legitimamentequestionável
62
. Alquié,a esserespeito,garanteque “[...]aordem lógica dos
seuspensamentos(deDescartes)nãoé tãoconstantecomoseimagina[.. .]”
63
.
Então,quandodeixadeserconsiderada,exclusivamente,comoumaoperaçãológica
de determinada razão m atematicamente  mecanicizada, a filosofia cartesia na começa a se
aproximarcada vezmais da vidae commais justiça se ad equaao conjunto daobraque a
originou e a compreende; o que não significa, seja dito , tomála, toda inteira, como uma
metafísica,istoé,semocuidadodeconsideraraspectosqu elhesãotambémfundamentais:a
matemática,afísica,amecânica,etc.Emsuma,nãosetrata,emabsoluto,deignorartodoo
rigorlógicocientíficodafilosofiadeDescartes;tratasesomentedenão reduzilaaisso.
Na verdade, em nossa opinião, a distinção entre ordem lógica”
64
e “ordem
metafísica”nafilosofiadeDescartespareceser,sobretudo,umanecessidadesentidapornós,
leitores modernosque,marcadosde formaprofundaporumIluminismo” exageradamente
racionalista, substituímos a “árvore do saber” por um conhecimento excessivamente
especializado
65
.
Comefeito,aindaemnossaopinião,presumiroveldetensãodalinhaquedivide
ciência
66
e metafísica, vida e teoria na filosofia cartesiana pode, sim, ser uma exigência
legítima e mesmo satisfeita, desde qu e atenda, porém, exclusivamente a uma questão de
62
Koyrépodesercitadocomoumdosrepresentant esdessa tendência.Segundoele,“[...]aidéiadevida,o
sendoclaraedistinta,nãotemlugarna ciênciaeaprópria vidanãotem, porconseqüência,lugarprópriono
universo cartesiano. Entre o pensamento e a extensão não há nada.” (KOYRÉ, A.
Considerações sobre
Descartes
,1986,p.78).Vert ambém:LOPARIC,Z.
Descartesheurístico
,1997.Oautordefendeatesegeralde
queafilosofiacartesianaé,fundamentalmente,ummero“operadormatemático”.
63
ALQUIÉ, F.
A filosofia de Descartes,
1993, p. 09. Nesse sentido, Alquié afirma, ainda, que muitos
comentadoresdeDescartespensamqueofilósofoforneceunaquelaanalogiadaárvorearaiz,ametafísica; o
tronco, a física; osgalhos, amedicina,a mecânicaeamoral;essaúltima, o maisalto graudaSabed oria o
“segredodesuaordem”;daíelesconsideraremocartesianismo“comoumsistemaquesedesenvolvedeacordo
comumalógicarigorosa:ametafísicaéofundamentodequederivaafísicae,dafísica,porsuavez,retiramse
dedutivamente aplicações”. No entanto,  enfatiza o comentador que Descartes não pretendeu, na sua famosa
imagem d a árvore, apresentar “a ordemde dependência gicadas diversas partes de sua filosofia”, pois tal
ordemsemostracompletamenteinconstanteemoutr asexposições:sãooscasos,porexemplo,“dométodo,que,
nacartaqueprecedeas
Meditações
,parececomandarametafísic aeque,na
ProcuradaVerdade
,éapresentado
comoseguindoseaela”edo
Discurso
,que,narrado,predominantemente,soboplanodeumaordemhistórica,
parecerelativizarqualquerrigordeordemlógica.Cf.Ibid.,pp.78.
64
Entendase“ordemgica”comoumaexpressãoquereúneopensamentofísico,matemáticoemecânicode
Descartes.
65
Certamenteseriaumafecundapautadepesquisa,emoutraoportunidade,identificar,pormenorizadamente,a
posiçãodeDescartesentreo“Renascimento”eoIluminismo”.Talvezpudéssemosconcluir,daí,quefilósofo
nãosejatãoracionalistacomo,comdemasiadoexagero,frequente menteotomamos.
66
O termo“ciência”,aqui,comomesmosignifi cadode“ordemlógic a”.Cf.,nestecapítulo,nota64.
33
ordem metodológica; po is, além disso, estender tal distinção ao nível doutrinário, por
exemplo,seriaimputaràobracartesianaumasériededivisõesque,talvez,nãocorrespondam
aoseuprojetoorigináriodeunidade dosaber.
Emtodocaso,devemosdizerquedeterminarounão,naobracartesiana,aimportância
metodológicaoudoutrináriadasdistinçõesentreciênciaemetafísica,vidaeteoria,mecânica
emedicina,etc., pareceser,desdesempre, umaquestão preponderantementeinterpretativa;ou
seja,Descartes,pessoalmente,nãonosparece,emdefinitivo,terse ocupadodessatarefa.
Nessesentido,afimdemostraraorigemteóricadecadainterpr etação,FerraterMora
indica,aomenos,trêsgruposprincipaisdeaspectoseintérpretesdaobra deDescartes:
[...] um desses grupos [...] se refere ao aspecto sociológicohistórico: tratase de
saberseéprecisointerpretarsempredemodomaisoumenosliteraloqueDescartes
escreveuouseéprecisoconsiderarDescartesum“filósofomascarado,q ueoculta
seu verdadeiro pensamento por medo das conseqüências que sua manifestação
poderiaacarretar.[...]Ainterpretaçãod eDescartescomofilósofomascarado”foi
propostaporM.Leroy.Outrodessesgruposdizrespeitoa ointeressepredominante
de Descartes. Paraalguns o único interesse do filósofo consistiu em fundamentar
filosoficamenteanovaciêncianatural,oumesmodesenvolverpuraesimplesmente
estaúltima.Paraoutros(comoLéonBlan chet),Descartespretend eufazer omesmo 
queaIgrejaCatólicatentoufrequentemente:estabelecerumequilíbrioentreteologia
e filoso fia, e entre revelação e razão. Para outros (Cassirer), Descartes se
interessava,comofilósofoteórico,pelafundamentaçãofilosóficadan ovaciência,e,
comocrente,pelaobtençãoda
paxfidei
.Paraoutros( H.Gouhier),podesefazera
distinçãoentreDescarteseocartesianismoeat ribuiracadaumdelesnãointeresses
opostos,masumacertaacentuaçãodessesinteressesemumsentidoououtro.Outro 
dessesgrupos,porfim,dizrespeitoàestruturadaobrafilosóficadeDescarteseà
funçãodesempenhadanelapor certasafirmações(comoo
Cogito ergo sum
). Para
alguns(M.Guéroul t),Descartesfoisobretudoumraciocinador,cujafilosofiaseguiu
umaestritaordemdasrazões”;paraoutros(F. Alquié),eleconcebeuas verdades
como“experiênciasontológic as”.
67
.
Desse modo, tomando opartido daqueles qu e se interessam pela “estrutura daobra
filosóficadeDescartes”,entresesses, maisprecisamente,deAlquié,reafirmamosaunidade
doutrináriadafilosofiacartesianae,daí,elegemosumoutrofatordegrand eimportânciapara
asuacompreensão,bemcomodocontextogeralnoqualelasurgiu:appriavidadoautor
emrelaçãoàsuaobra.
Essateseencontrarespaldo,porexemplo,noscomentárioscategóricosdeAbbagnano:
OproblemaquedominatodaaespeculaçãodeDescarteséodo
homem
Descartes.
[...] Descartes não procurou senão resolver o seu
p róprio
problema; porém, a
67
FERRATERMORA,J.
Dicionáriodefilosofia
,2000,tomoI,pp.673674.
34
verdadeéqueasoluçãoencontradaporelenãovalea penasparasi,masparatodos
oshomens[...] ”
68
.
Saberqueafilo sofiacartesiananãoadvém,somente,dao bjetividadecientíficaouda
força metafísica de determinad a razão humanaconduzida metodicamente, mas também de
“problemaspessoais”deseuautor,deumárduoelongoitinerár iovividointensamentepor
ele:da busca incansáveld e segurança e verdade nas ciências – o Método– a um a dúvida
radicalmente generalizada – a vida metafísica –; do estado geral de dúvida à auto
descobertado pensamentoedaexistência–o
cogito
–;do
cogito
àexistênciaclara,distintae
necessária de Deus, e daí à possibilidade, então, de fundamentar uma ciência natural
humana–deidéiasclarasedistintas;tu doissopermitenos,entreoutrascoisas,resguardara
coerência inter na do
corpus
teórico de Descartes na medida mesma em que atestamos a
unidade doutrináriadesuafilosofiacomsuavida.
É,portanto,olhandoaprópriahistóriadeDescartesquesedevelerasuaobra,porque:
[...] desde logo o itinerário cartesiano, seu m odo de vida, suas viagens o
submetidos a um único projeto, uma única preocupação: o projeto científico e
filosófico.MaséopróprioDescartesque,atravésdesuasobras,nosincitaanunca
dissociarumtrajetoindividual,umahistóriaparticular,dainvestigaçãocientífica e
metafísica. Portanto, que ninguém se engane: a desist ência de uma apresentação
dogmática ou didática da filosofia não poderia ser considerada simples efeito de
retórica,masrealmenteuma reviravoltafilosófica.
69
.
Alémdisso,segundoAlquié,
[...]Descartessenteanecessidadeconstantedenosfalardahistóriadesuavidaede
recordarqueaordemqueseguiudefatooéaquededireitonosapresentacomo
únicalegítima.[...]enuncaadescobertadefato,aconstituiçãohistóricadosistema
são negadas [...] em proveito do próprio sistema; nunca elas desaparecem neste:
permanecemconstantementerecordadaseretomadas.
70
.
O que nos leva à conclusão da importânciadenão ignorar a “ordem histórica” dos
pensamentos de Descartes na constituição de sua filosofia. O próprio
Discurso
, todo
construído sobr e um plano histórico em que Descartes apresenta a sua vida ‘como um
68
ABBAGNANO,N.Descartes.In:
Históriadafilosofia
,1992,V.6,pp.4041.
69
HUISMAN,D.
Dicion áriodosfilósofos
,2004,p.269.
70
ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,p.08.
35
quadro’
71
, e até as
Meditações
, em  que “[...] Descartes não consente em expo rnos a sua
filosofia na friezasistemáticadosseusconceitos;oferecenolanocalortemporaldeuma
med itação.”
72
, atestam essa importância que, certamente, deve trazer implicações
consideráveis par a a formulação e compreensão dos conceitos que estruturam a obra
cartesiana
73
.
Comefeito,importaressaltarmaisumavez
74
quesenãosedeverestringirafilosofia
deDescartesàsua“ordemlógica”ou“ordem dasrazões”,nostermosdeGuéroult; tampouco
eladeve,apartirdisso,serreduzidaàsua“ordemhistórica”.Nãoéoq uepr etendeAlquiée
daísuaproposiçãode “duasordenscartesianas:o TempoeoSistema”.Diz:
Algunsautores,efetivamente,tentamcompreendero sistemapelacausafinal. o
vêemnocartesianismomaisdoqueumconjuntodeidéiasqueapr eciamdopontode
vista exclusivo do seu valor objetivo. Coordenam textos segundo o critério da
coerência. Outros, pelo contrário, o desdenham explicar o pensamento de
Descartespelasuahistória.Paraesses,aordem verdadeiradocartesianismonão é
aquelaporqueseencadeiamlogicamenteidéi as,masaordemtemporalemqueum
pensamentovivosedesenvolveu.
75
.
Queninguémseapresseemconcluirqueserásuficiente,talcomoexposto,escolher
umadasordensparaam elhorcompreensãodafilosofiacartesiana.OqueAlqu ié,realmente
pretend e,émostrarque ocartesianismo,efetivamente,nãosegueumaordemúnica:oTempo
e o Sistema não devem, simplesmente, ser substituídos, um pelo outro; eles se conju gam 
numamesmafilosofiaenãoreclamamescolhas;ouseja,
[...] énos impossível, n o que toca a Desc artes, contrapor a ordem filosófica e a
ordemhistórica comouma ordemdedireito e uma ordem defato, considerarque
71
Cf.ALQUIÉ,F.
Afiloso fiadeDesca rtes
,1993,p.08.
72
Ibid.,pp.1112.
73
Alquié,precavidosobrea conclusãoaquesechegariaapartirdeseuscomentários,seantecipaaduasdas
inúmerasobjeçõesquepoderiamserlevantadasaesserespeito:a)Aidéiadequeconsideraraordemhistóricana
constituiçãodafilosofiadeDescartesseriaesquecerqueoprojetodofilósofoéodeselibertardahistória,dea
julgaremvezdeasuportar;b)Aconsideraçãodaordemhistóricaseriamotivaçãopsicológicaeofilosófica.
Quantoa essaúltima, o fatodeopróprioDescartesinsistir–recordar”eretomar”aconsideraçãodesua
históriaquandodaexposiçãodesuasidéiasé,segundoAlquié,aprovadequeé“[...]opróprioDescarteseo
um preceito psicológicoquenosleva aexaminar a ordem históricaporquenasceramosseus pensamentos.”
(Ibid.,p.08).Quantoàprimeira,respondeocomentad orque[...]resituarosistemadeDescartesnarealidade
concretaemquenasceunãoequivaleporcertoàrecusad eouvilonemexplicáloporumacausalidadeexternae
mecânica (isto é, encerrálo ou submetêlo à história), visto que Descartes julga necessário falarnos de sua
história.Desdenharestaseriapretendersermai scartesianodoqueele.”(Ibid.,p.10).
74
Cf.,nestecapítulo,nota63.
75
ALQUIÉ,F.op.cit.,p.09.
36
elas emanam de dois pontos de vista diferentes e inconciliáveis de uma mesma
realidade.
76
.
Portanto, segundo Alquié, para seguir fielmente as lições de Descartes, precisamos
recorrer a esse “dup loprimado” tempo/sistema – e reco locar  a ordem sistemática a que
tende o pensamento cartesiano na ordem tempor al em que ele se desenvolve
77
porque,
definitivamente, além das “ordens da razão”, sua filosofia comporta também as ordens da
vivência temporal e, sem dúvida, também essas são de fundamental importância para a
constituiçãodopensamento cartesiano;pois,emtese:
AfilosofiadeDescartesapresentasesimultaneamentecomo umaordemderazõese
comoumitinerárioespiritual.DesdenharumdestesaspectosseriamutilarDescartes,
reduzirasverdadesinsubstituíveisqueelenosensina,queràcoerênciaseminteresse
deumsistemaentreossistemas,queràparticularidade anedóticadeumapsicologia.
AliçãodeDescarteséoutra[...]:no
Discurso
escrevea[históriadeseuespírito]e
nas
Meditações
revela que ela é a hi stória do próprio Esp írito e, p ortanto, que a
descoberta temporal e vivida da verdade é, para o homem, a última palavra da
metafísica.
78
.
Assim,finalmente,
AliçãodeDescarteséqueopodemosse pararacompreensãodasuafilosofiada
atenção aos itinerários pelos quais ele se tornou filósofo, e isto, parecenos, na
medidaemqueafilosofianãoéumaciência,umacoletâneadeverdadesobjetivas,
masumitinerárioontológic oevivido,ummovimentoparaoSer,umdiscursosobre
ainsuficiênciadetodoodiscurso.AfilosofianãoéparaDescartesumconjuntode
idéias, é um pensamento: a sua ordem verdadeira não se pode c onfundir com o
sistema,devecompreenderohomem,aprópriafilos ofiaque,segundoaetimologia
da palavra, ama a sa bedoria sem a possuir completamente, e não pode, pois,
transmitilasobaformadeumcorpoconstituídodedoutrina,masapenaspedindoa
cada um que medite com ele, medite longamente, medite no tempo, reviva
sucessivamente os diversos momentos de umahistória que, a esse nível, se torna
razão, sem,contudo,perderasuatemporalidade.
79
.
Portanto,noquedizrespeitoàfilosofiadeDesc artes,emgeral,é,sobretudo,apartir
da noção de unidade do saber, conjunta ao r esgate da temporalidade da r azão vivida – a
históriadeseuautor–queparecesurgirma isseguramenteocontextonoqualéconstituídoo
estatutogeraldessafilosofia,bemcomoseusprincipaiselementos;dentreosquaiso
cogito
,
76
ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,p.10.
77
Cf.Ibid.
78
Ibid.,p.13.
79
Ibid.,pp.1011.
37
queaíinseridoaparecemaisadequadamenteemseulugarpróprio,temporaledesmistificado;
sem,noentanto, perdersuarelevânc iafilo sóficaprimordial.
A partir desse contexto, restanos, então, apontar quais são, sistematicamente, os
antecedentescartesianosconstitutivosdo
cogito
:oprincípiodarazãoprópria,“ograndelivro
domundo” eoMétodo.
80
1.2.1 –“Ograndelivrodomundo”eo p rinpiodarazãopróp ria
Tomar o
cogito
em sua forma context ualizada é, pois, antes de tudo, conforme
expusemos e temos insistido até aqui, tomálo não como mera abstração lógica de um
pensamentoexclusivamentematematizadooumetafísicoqueseofereceaqualquerintelecto
quetenhaseapropriadodedeter minadoMétodo“paraconduzirappriarazãoeprocurara
verdade nas ciências”, mas como resultado de um longo, árduo e até dramático itinerár io
percorridoporDescartes;eleé,naverdade,a manifestaçãoexplícitade,comosedisseacima,
“um ahistóriaquesetransformaemrazãosemperdersuatemporalidade”.Nessesentido,em
tese, podemosafirmarque Descartesnão chega ao
cogito
com indiferençapessoal;em seu 
espírito, as descobertas que faz se confundem, frequentemente, com  os ensinamentos da
Escolaecomaânsiaprópriadeseutempo.
Desse mo do, não alheio a si mesmo, à sua formação e ao estado de ânimo que
dominasuaépoca,nossofilósofosevêimpulsionadopelodesejointensodeumanovaordem
de conhecimento da realidade; e é bem certo que os novos ventos que sopram do
Renascimentoeabalamasbasesjá“envelhecidas”dosabermedievaloajudamaperceber,
emseuespírito,ascausasdessedesejo.Emtomdedecepção,lamenta:
Nutrimedeletrasdesde a minhainfância,e,porquemetinhampersuadidodeque
pormeiodelassepodeadquirirumconhecimentoclaroesegurodetudooq ueéútil
àvida,tinhaumenormedesejodeasaprender.Mas,logoqu etermineiesteciclode
80
Umarápidaadvertência:seconsiderarmosagrandezadaquestão“osantecedentescartesianosconstitutivos
do
cogito
”,nãosedeveesperarmuitodotrat amentoque,aqui,dispens amosaela.Noss oobjetivoésomente
apresentar,deformarápida,algunselementoscartesianosqueantecedemeconstituemo
cogito
coma finalidade
estrita de, tal como su gerido aci ma por Alquié, enfatizar, de modo geral, o caráter temporal do princípio
cartesiano.Ébemcertoqueostrêselementosqueelegemos–oprincípiodarazãoprópria,ograndelivrodo
mundo”eoMétodo – nãoesgotamoassunto;entretanto,porteremcert anotoriedadeereconhecidaimportância,
permitem,maisfacil mente,ocumprimentod enossoobjetivo.Umestudoapr ofundadosobreo tema,emgeral,
foirealizadopor:MARION,J.L.
Surl’ontologiegrisedeDescartes
,1993.
38
estudos,notermodoqualécostumeserseacolhidonacategori adosdoutos,mudei
inteiramente de opino: porque me encontrava embara çado com tantas vidas e
errosquemepareciaotertiradooutroproveito,aoprocurarinstruirme,senãoo
deterdescobertocadavezmaisaminhaignorância.
81
.
Descartes, nesse ponto bem distante do princípio  socrático da ignorância co mo
certeza do saber, se encontra profundamente desapontado ao termo de seu curso escolar;
mesmoaFilosofianãoescapaaoseudesapontamento,quandoafirmanelanãoseenco ntrar
nadaquenãosejadiscutívele,portanto,duvidoso
82
.
Com efeito, d evese dizer que o descrédito do filósofo não é para com uma única
disciplina;suadecepçãoéparacom todasasciênciasemgeral
83
;pois:“[...]namedidaemque
derivamosseusprincípiosdafilosofia( Descartes)julgavaquenadasepodeterconstruídode
sólidosobrefundamentostãopoucofirmes.”
84
.
Assim,mesmo“nutridonasletras”
85
etendoestudadonumadasmaiscélebresescolas
daEuropa
86
,aúnicacoisaquepar eceter restadoaDescartesfoiadecepçãocomofatode não
teradquiridopormeiodeseusestudos,como,veementemente,acreditara,“umconhecimento
claroesegurodetudoqueéútilàvida”.
Todavia,háquesedizerqueadecepçãocartesiananãoéestéril;elatemumaenorme
força ativa. Ao revelar a inconsistência das ciências, ela questiona a tradição – aqui
representada pela formação r ecebida ese torna o pontode partida para acriação deum
81
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.7.Iay efténourriauxlettresdésmonenfance,&pource
qu’onmeperfuadoitque,parleurmoyen,onpuuoitacquerirvn econnoifanceclaire&affuréedetoutcequieft
vtilealavie,i’auoisvnextremedefirdelesapprendre.Maisfitoftquei’euachetoutcecoursd’eftudes,au
bout duquel on a couftu me d’eftre receu au rang des doctes, ie changeay entierement d’opinion. Car ie me
trouuois embarafé de tant de doutes & d’erreurs, qu’il me fembloit n’auoir fait autre profit, en tafchant de
m’inftruire,finonquei’uoiscouuertdeplusenplusmonignorance.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,
p.5).
82
Cf.Ibid.,p.8.
83
Cf.PrimeiraPartedo
Discurso
qu eédedicadainteiramenteàs“diversasconsideraçõesatinentesàsciências”.
Ver:Ibid.,pp.111.
84
DESCARTES,R.
Discursod ométodo
,1984,p. 1 0.“[...]d’autantqu’ellesempruntentleursprincipesdela
Philofophie,ieiugeoisqu’onnepouuoitauoirrienbafti,quifuftfolide,furdesfondemensfipeufermes.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.89).
85
Compreendiaasdisciplinas:Gramática,História,PoesiaeRetórica.
86
Cf.DESCARTES,R.
Discoursd elamethode
,A.T.,VI,pp.45.AEscolados Jesuítas em
La Flèche
.Aí
Descartesteveaoportunidadedeseded icaraumaformaçãoexcelente:alémdoestudodasLetras,estudouas
Matemáticas,Moral,Teologia,Filosofiaereceb eunoçõ esdeJurisprudência,M edicinaeoutrasciências,dentre
asquais,asmaisfalsas”:alquimia,astrologiaemagia.Notarqueascríticasdofiló sofoaoensinodesuaépoca
sãomenos,propriamente,àEscoladosJesuítas–“umadasmaiscélebresdaEuropa”–queàcu lturaemgeral.
39
ousadoprojeto,aomesmotempo,científicoe filosófico:Descartes,decepcionado,masnão
conformado, decide resolutamente: “[...]  não procurar mais outra ciência a não ser a que
pudessedescobriremm impróprio,ouentãonograndelivrodomundo[...]”
87
.
Huismanconfirmanosefor necedetalhesprecisossobreo alcanceeas implicações
dessadecepçãoativa deDescartes.Defato, d izele:
Ocaráterheteróclitoein conseqüentedoensinodeLaFlèchedecepcionaDescartes.
Acerteza”ea“evidênciadasrazões”restringemseapena sàmatemática.Arazão
funciona de maneira estanque. É nesse sentido qu e, como sugere H. Gouhier, se
podeconsiderarouniversoescolardeDescartesumescândalo.“Escândalo”porque
‘umaciênciaéapresentadacomtodasas característicasquerevelamapresençaativa
da razão, e ninguém pensa em pedirlhe que eduque a razão. Assim, nasce a
primeira preocupação de Descartes, ao mesmo tempo filosófica e científica [...]:
alargar ocampo da eficácia darazão e, paraisso,construir uma física segundo o
método rigoroso da matemática. Projeto filosófico, pois contém e m si a idéia de
unificaçãodosaber.
88
.
Ofatoéqueofilósofo,conve ncido,portanto,dainsuficiênciadesuaformação– da
tradição–,resolvequeo“mimmesmo”eo“grandelivrodomundo”serão,ago ra,asduas
únicasfontesdeondepodesurgira verdadeiraciência; istoé,emdetrimentodasrazõesda
tradição, ensinadas por seus mestres e associadas à cultura livresca dos doutos
89
, se
estabelecem,agora,oprincípiodarazãoprópria–o“mimmesmo”–eaimportânciadetodo
oconhecimentoquenãoadvémdaEscolae,sim,do “grandelivrodomundo”.
Essas,então,oasconseqüênciasmaisimediatasdaativadecepçãocartesianaque,ao
mesmotempo,constituem osprimeirosrequisitosdeseuousadoprojeto.
Oqueficagarantido,afinal,comofonteseguradebuscadaverdadeequedeveagora
ser consultado é,pois, oua razão própria, ouqualquer espécie de conhecimento que o “o
gra ndelivrodomundo”,enãoaEscolapossaensinar.
Dessemodo,tomadoporessescritérios,Descartesiniciasuatrajetória.Noprimeiro
momentoéo mundo quelheinteres sa,elesepõeaexperimentálo,a:
87
DESCARTES,R.
Discursod ométodo
,1984,p.10.“ [...]nechercherplusd ’autrefcience,quecellequi fe
pourroittrouueremmoymefme,oubiendanslegrandliuredumonde[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,
VI,p.9).
88
HUISMAN,D.
Dicion áriodosfilósofos
,2004,p.270.
89
Cf.DESCARTES,R.
Discoursde lamethode
,A.T.,VI,pp.1011.
40
[...] viajar, a ver cortes e exércitos, a freqüentar pessoas de diversos feitios e
condições, arecolherd iversas experiências,aexperi mentarmeamim próprionos
encontrosaque afortunamepropusesse,eportodaaparte areflectirdetalmaneira
sobreascousasqueseapresentassemquedelaspudessetirarqualquerproveito.
90
.
Pois, no fundo, “[...] em mim era sempr e grande o desejo de aprender a distinguir o
verdadeirodofalso,paraverclaronasminhasaçõesecaminharcomsegurançanavida.”
91
.
Nesse sentido, a experiência do mundo, resultado do distanciamento da Escola, é
responsável por certa auto análise do filósofo, que o faz revelar um antigo desejo seu: a
distinçãodaverdadeedofalsop araobterclarezanasaçõese segurançana vida;eserve a
Descartes, sobretudo, na medida em que faz d escortinar diante de suas observações uma
maiorverdadeeutilidadenosraciocíniosdequalquerhomemdoque“[...]naquelesque,no
seu gabinete, formula um homem de letras [...]”
92
e lhe mostra uma diversidade tal de
costumes que o leva a concluir, pessoalmente, qu e o deveria ser “[...] excessivamente
crédulosob re(aquiloquelhe)tinhasidoinculcadosópeloexemploepelocostume[...]”
93
,
estimulando,assimeaindamaisfortemente,oseudesejopor“clarezanasaçõesesegurança
nestavida. ”.
Aprend idaaliçãodo“grandelivro domundo”,échegadaahor adeconsultararazão
própria:
[...] depois de ter assim empregado alguns an os a estudar o livro do mundo e a
procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de me estudar
tambémamimpróprio,edeempregartodasasforçasdomeuespíritoaescolheros
caminhosquedeviaseguir.Oquemepareceterdadomuitomelhorresultadodoque
senãometivesseafastadonuncanemdomeupaís,nemdos meuslivros.
94
.
90
DESCARTES, R.
Discurso do método
, 1984, p. 10. “[...] à voyfger, a voir des cours & des armées, a
frenquenter des gens de diuerfes humeurs & conditions, a recueillir diuerfes ex periences, a m’efprouuer
moymefmedans lesrencontresquelafortunemepropofoit,&partoutafairetellerefle xionfurleschofesquife
prefentoient, quei’enpûffetirerquelqueprofit.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.9).
91
Id.
Discursodométodo
,1984,p.11.“[...]i’auoistou fioursvnextremedefird’apprendreadiftinguerlevray
d’auecle faux, pour voir clair en mes actions, | & marcher auec affurance en cete vie.” (Id.
Discours de la
methode
,A.T.,VI,p.10).
92
Id.
Discursodométodo
,1984,p.11.[...]dansceuxquefaitvnhommed elettresdansfoncabinet[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.10).
93
Id.
Discursodométodo
,1984,p.11.“[...]neriencroyretropfermementdecequinem’auoiteftéperfuadé
queparl’example&parlacouftume[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.10).
94
Id.
Discursodométodo
,1984,p.11.“[...]aprésquei’eu employéquelquesannéesaeftudier ainfidansleliure
dumonde,&atafcherd’acquerirquelqu eexperience,ieprisvniourrefolutiond’ftu dierauffyenmoymefme,&
d’employertouteslesforcesdemone fpritachoyfirlescheminsqueiedeuoisfuiure.Cequimereuffitbeaucoup
mieux,cemefemble,quifiienemefuffeiamaisefloingé,nydemonpaïs,nymesliures.”(Id.
Discoursdela
methode
,A.T.,VI,pp.1011).
41
Agora,portanto,livres“[.. .]demuitoserros,quepodemofuscaranossaluznaturale
tornarnosmenoscapazesdeouvirarazão.”
95
;isto é,distantesdaautoridadeescolaredesua
culturalivrescaemgeral,reclamemos,todos,odireitode “exercícioindependentedarazão”
96
naconstruçãodosaber.
Essepar eceser,semdúvida,ograndebradocartesianosexperiê nciamundoanteas
possibilidadesdarazãod efornecersegurançaeclarezaparaa“escolhadoscaminhos”quese
deveseguirnavida.Naverdade,tratasemesmodarupturaoficialcomaEscolaecomsua
cultura, para a instauração de uma nova ordem filosófica: a ordem do princípio da razão
própria
97
.
Emsuma,dacríticaàtradição–suaformaçãoedecepçãocomaEscolaeaobservação
pessoal da variedade de costumes,bem como o que esta pode ensinar à experiência do
mundo; e da experiênc ia domundo a si próprio – o estabelecimento de uma nova ordem
filosófica:oprincípiodarazãoprópria
98
comopossibilidadedesegur ançanavida.Sãoesses,
enfim,osprimeirospassosconcretos deDescartesrumoàexecuçãodeseuprojeto.
Desse modo, nos termos de nossa análise
99
, temos o “grande livro domundo” e o
princípio da razão própria, não somente como os primeiros antecedentes cartesianos
constitutivos do
cogito
, mas também como os indicadores precisos que estabelecem o
95
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.11.“[...]debeaucoupd’erreurs,quipeuuentoffufquern oftre
lumierenaturelle,&nousrendremoinscapablesd’entendreraifon.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.
10).
96
Cf.SILVA,F.L.e.
Descarteseametafísicadamodernidade
,1996,p.15.
97
Entendemosporesse princípioaresolução cartesianaque estabelece o mim próprio”,ao lado do grande
livrodomundo”comonovafontedebuscadaverdade.Cf.,nestecapítulo,fl.anterior.Atentosàad vertênciade
SilvaparaofatodequeacríticadeDescartesàculturadeseutempodemodogeral,àEsc ola,“meupaíse
meuslivros”– nãodeve ser entendidacomo um abandono radicaldoslivros ouda tradição, mas, sobretudo,
comoumapeloporparticipação”naconstruçãodosaber,contrariando,assim,certodogmatismoqueofazia
depender da autoridade, optamos pela expressão “oficial” para caracterizar a ruptura do filósofo com o seu
tempo. Nesses termos, garantimos o anúncio da nova ordem filosófica” sem precisarmos, ao menos
inicialmente,determonosnotemacontroversosobreemqualmedidaelasedá.Sobreaadvertên ciadeSilva,
ver:SILVA,F.L.e.op.cit.,1996,p.15.
98
Seincluirmosnadefiniçãodesseprincípioacríticaimplícita queelerepresenta, podemos concebêlo mais
precisamente,alémdaresoluçãocartesianadeestabelecero“mimpróprio”comofontedebuscadave rdade
Cf., neste catulo, nota anterior como também uma exigência crítica pela “participação independente da
razão”noprocessodeconstruçãodosaber.
99
Cf.,nestecapítulo,nota58.
42
contexto no qual foi possível a elaboraçãodeum outro fundamental elemento constitutivo
daquele:oMétodo.
1.2.2 –OMétodo
100
Adecisãodenãomaisprocuraroutraciência,alémdaquelaquesepoder iaencontrar
em si mesmo ou, então, no “grande livro do mundo” traria, para Descartes, implicações
imediatas:Seoob jetivoerasaber“d istinguiroverdadeirodofalso”parasetermaisclareza
nas ações e segur ança na escolha dos caminhos que se deve seguir na vida, somente
estabelecerumanovaordemorigináriadaverdadenãobastariaparatanto;serianecessário,
ainda,aexplicitaç ãodequaiscritériosgarantiriamessanovaordem”,sobpena,inclusive,de
umobjetivotãopretensiosonãopassardeumaousadiainconseqüente.
É,pois,nointeriormesmo dessa“novaordemoriginária”–o“grandelivrodomundo”
eoprincípiodarazãoprópria–queDescartesencontraráaquiloqueseráogrande
criterium
de toda a sua argumentação filosófica: a aplicação de determinado Mé todo para bem
conduzirarazãoeprocuraraverdadenasciências”.Afinal,oprincípiodarazãopróprianãoé
anômalo, requer “normasparaa su aorientação”;eo “grande livro domundo”nos lembra
sempre que não devemos ser “excessivamente crédulos quanto às coisas que nos foram
inculcadas só pelo exemplo e pelo costume”; que é preciso, portanto, fundamentar nossa
convicçãonumoutroregistro, maisexatamente,noregistrodoMétodo.
Alémdisso,seconcordarmos quea[...]buscaedescobertado métod o(e de suas
regras),oprocessometódicodadúvida,aevidênciado
cogito
eademonstraçãodaexistência
100
Apresentado por Descartes, sobretud o, na public ação de 1637 intitulada, comu mente, sob a abreviação:
Discursodotodo
,aquestãodo“Métodocartesiano”seimpõenafil osofiadeseuautor.Aabreviaçãoquase
absolutade seu título pode ser problemática, tanto porque nãoesclarece o propósito da obra, quanto porque
reduzseu conteúdo.É necessário, portanto, nãoesquecermosdo fatodeque o
Discurso do Método
, como é
chamado,ésomenteaintroduçãodeumaobramuito maior quesepropõeaodifícilobjetivode“bemconduzira
própriarazãoeprocuraraverdadenasciências”;e,ofaz,apartirdetrêsensaiosque,originalmente,lheseguem:
OsMeteoros
,
aDióptrica
e
aGeometria
–formandoassimasuatotalidade.Nessestermos,oquech amamos de
Discursodotodo
nãopassadeumprefácio”que,comoafirmaLebrun,perdemuitodeseusentidoquando
dissociadodostrêsensaiosprefaciados.Cf.LEBRUN,G.In:DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1973,p.
33, nota 1. De nossa parte, nos deteremos, exclusivamente, ao prefácio da obra; digase: somente porque
pretendemosumaabordage mintrodutória”doassunto,oque,certamente,seriainsuficientesenossapretensão
seestendesseparaalé mdisso.
43
de Deus são os quatro elementos fundamentais da filosofia cartesiana.”
101
, teremos
necessariamente que admitir o caráter antecedente constitutivo do
cogito
que o todo
representa no inter ior da doutrina de Descartes; pois, dentre outras coisas, seria possível
chegarmosao
cogito
semoMétodo?
1.2.2.1–UmaorigemmísticadoMétodo?
Ele (Descartes) diznos que no dia 10  de Novembro de 1 619 (após u m dia de
meditação filosófica, no seu quarto aquecido por u m fogãodesala, que o deixou
num estado de grande agitação mental) deitouse ‘completamente cheio desta
excitão mental’ e preocupado com o p ensamento de q ue ‘nesse dia h avia
descobertoasbasesdeummaravilhososistemadoconhecimento’.Teveentãotrês
sonhosconsecutivosnumanoite,osquaisimaginousóterempodidoprovirdoalto.
[...]
102
.
O relato édeAdrien Baillet, autordaprimeira biografiado filósofo
103
. É, talvez, a
descrição mais remota da origem do Método cartesiano; e, certamente, é também, a mais
controversa.Atrib uiseseu exóticoconteúdoaos
PrimeirosEscritos
104
deDescartes.Neles,
ele teria, entre outras coisas, exposto detalhadamente o conteúdo dos três sonhos daquela
noitede10denovembrode1619econcluídoqueseuMétodoteriaaísereveladosobaforma
deumamensagemdivina
105
.
101
FERRATERMORA, J.
Dicionáriodefilosofia
,2000,tomoI,p.672.
102
BAILLET,A.“OsSonhosdeDescartes”.In:COTTINGHAM,J.
AfilosofiadeDescartes
,1989,pp.213217.
103
Cf.BAILLET,A.
ViedemonsieurDescartes
,2002.Obrapublicadaem1691.
104
Cottingham informa tratarse de um caderno, hoje perdi do, mencionado em um inventário dos textos de
Descartes, feito emEstocolmoapós sua morte. Esse cadernoserviriaao fisofopararegist rar suasreflexões
filoficasemgeral. Leibnizteria feito umapia,também, hoje, perdida, queem1859 foi publicada com o
título
Cogitationesprivatae
.DeacordocomBaillet,queteriavistoocadernooriginal,tratavasedeumtrabalho
dividido em rias seções, incluindo
Preambula
,
Experimenta
e
Olympica
, e q ue continha uma detalhada
explicação da noite em que Descartes teve os sonhos perturbadores, e m n ovembro de 1619, quando se
convenceria que sua missão era  fundar um novo sistema científico e filosófico. Mais detalhes, ver:
COTTINGHAM,J.
Dicion áriodeDescartes
,1995,p.135.
105
Coot ingham nos oferece um breve resumo dos sonhos d e Descartes, tal c omo relatados por Baillet: No
primeiro sonho, Descartes sentiuseassaltado porfantasmasedepois porumredemoinhode vento que ofe z
giraremvoltaimpedindoodesemanterempé.Refu giandosenumcolégio,tentouchegaràcapela,masovento
impossibilitouo.Seguidamente,foicumprimentadoporumamigoquelhetransmitiuumamensagemsobreuma
ofertaqueelepresumiuser‘ummelãotrazidod eumqualquerpaísestrangeiro’. Aoacordar,sentiuumafortedor
que,aparentemente, ofezrecearser osonhoobradealgumdemônioperversoqueapostavaemoenganar.O
medo e a consternação provocados pelo sonho, relata Baillet, mantiveram Descartes acordado durante duas
horas. Quando, finalmente, voltou a adormecer de novo, pareceulhe ouvirimediatamente oribombar de um
44
A excentricidade da questão parece intimidar grande parte dos comentadores de
Descartesquepreferemdisp ensarquasenenhumaatençãoaoepisódio.Todavia,“esterelato
(alémdeser)suficientementebiz arroparapossuirumcertovalordecuriosidadepordireito
próprio.”
106
, é importante na medida emque indica uma hipóteseque,certamente,implica
relevânciaaoestudodoMétodo:ahipótesedesuaorigemmística.
Nessesentido,Silvafaznotarque:
Ocaráterimaginativoemesmo místicodess eepisódionosalertaparaumaspectoda
personalidadedo fisofoque oracionalismod esuaobranosleva muitas vezes a
esquecer:areligiosidadee,d emaneiramaisampla,aprofundidadedoEu,deonde
provémoimpulsoqueolevaráareconstitu irtodaaciênciaapartirdofundodesi
mesmo,desuaalma[...]
107
.
E,namesmalinha,Fragaadverte :
[...]esquecesecomfreqüênciaotraçomísticodaordemdivinaqueofilósofose
sentecompelidoacumprir.Descartespensa,comefeito,queporessessonhos,o
‘Espíritod aVerdade’entendeuinvestilonamissãodeunificarasciênciasede
reconciliarafilosofiacomasageza.
108
.
Porfim,Cottinghamconclui :
Sejaqualforainterpretaçãodadaaestescuriosospormenores,osresultadosdasua
meditaçãoeossonhosvívidosqueselheseguiramconvenceramDescartesdeque
tinhaamissãod ivinadefundarumnovosistemafilosófico;esemperdadetempo,
fezumvoto(que possivelmentecumpriunoanoseguinte) deirà Itáliafazeruma
peregrin açã oaosantuáriodaVirgemde Loreto.
109
.
trovãoevoltounovamente aac ordarnum estadodeterror,comaimpressãodequeoquartoestavacheiode
faíscasbrilhantescomoofogo.Noterceiroeúltimosonho,que,aocontráriodosdoisanteriores,foiagradável,
encontrouumlivrosobreamesa,quenotouserumdicionário;foi‘comesperançaquelheocorreuqueaquil olhe
poderiavirasermuitoútil’.Aseguir,numoutrolivro,umaantologiadepoesia,d escobriuaodedeAusonius
quecomeçava
Quodvitaesectaboriter?
(Qualocaminhoquedevereiseguirnavida?);apósoqueumhom em
apareceuefalouso breoutropoemaq uecomeçavaem
Estetnon
enãoé).Deac ordocomBaillet,Descartes
começouaterconsciência,mesmoduranteosono,deque sonhava,ecomeçouaespecularsobreainterpretação
do sonh o. O dicionário, supôs, representava todas as ciências, enq uanto a antologia de poemas significa a
filosofiaeasabedori a’.Depoisdeacordar,continuouainterpret artodosostrêssonhos:opoemaquecomeçava
com
Estetnon
–o“simenão”dePitágoras–representavaoverdadeiroeofalsonasciências.Aode
Quodvitae
sctabor iter?
Relacionavasecoma sua vida futura. O melãodo primeirosonho significava, segundoele, os
‘encantosdasolidão.”(COTTINGHAM,J.
AfilosofiadeDescartes
,1989,pp.2425).
106
Ibid.,p.213.Deacordo,ainda,comCottingham,esterelatotambémtemalgumarelevânciafilosóficaparao
“argumentodossonhos”desenvolvidona
MeditaçãoPrimeira
deDescartes.
107
SILVA,F.L.e.
Descarteseametafísicadamodernid ade
,1996,p.16.
108
FRAGA,G.de.
Logos enciclopédialusobrasileira defilosofia
,1992,V.4,p.1332.
109
COTTINGHAM,J.op.cit.,p.2 5.
45
1.2.2.2–AcaracterizaçãodoMétodo:LógicaeMatemática/evidênciaecerteza
Adespeitodasdivergênciasinterpretativassobreaorigemmística,ounão,doMétodo
cartesiano,oquemaisnosinteressasabertra tadesuacaracterização mais precisa,que,aliás,
digase, distanciase, consideravelmente, de qualquer espécie de mistério: a evidência
matemáticaeacertezalógica.
O fato é que Descartes propõ enos um Mé todo eminentemente lógicomatemático,
forjado,então,apartirdosprocessosdalógicaedasmatemáticasque,segundoBeyssade,é
“[...]destinadoantesdequalquerbuscametafísicaafazernascerumamatemáticauniversal
queseaplicariaatodoobjetoquecomportaordemoumedida[...]”
110
.
Oprópriofilósofocontaque,entreaspartesdaFilosofia
111
,pôdeestudarumpoucoa
“Lógica” e, entre as Matemáticas, estudou a “Análise dos Geômetras” e a “Álgebra”
112
.
Segundoele:“[...]trêsartesouciênciasquepareciamdevercontribuiralgumacousaparao
meu desígnio.”
113
.
Entretanto, ao analisar mais cuidadosamente os preceitos e silogismos da Lógica,
Descartes conclui que: “[...] ainda que ela contenha, efectivamente, preceitos muito
verdadeirosebons,encontramsemisturadoscomelestantosoutrosquesãoou nocivosou
inúteis [...]”
114
; e no que respeita à “Análise dos antigos/geômetras” e à “Álgebra dos
modernos”,diz:
110
BEYSSADE,J.M.Descartes.In:CHATELÊT,F.
Históriadafilosofia–idéiasedoutrinas
,1974,V.3 ,p.
93.
111
Macedo notaque Descartes mantêm adivisãotradicional daFilosofiaemLógica,Metafísica e F ísica. Cf.
MACEDO,N.de.In:DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.186,nota23.
112
Emnota,MacedoesclarecequeaÁlgebraera,aomesmotempo,umaciênciaciênciadosnú meros–eum
métodométodoanalítico–;esseeraaplicadoaoestudodasquantidadesesimplificadopelasubstituiçãodas
grandezasconcretasporsin aisabstratos.QuantoàAnálisedosGeômetras,nossocoment adorchamaaatenção 
paraoduplosentidodotermo“análise”:capítulodageometriaporumlado,métododedescobertaporoutro.Cf.
Ibid.,p.186,notas2627.
113
DESCARTES, R.
Discurso do método
, 1984, p. 16. [...] trois ars ou ficiences qui fembloient deuoir
contribuërquelquechofeamondeffein.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.17).
114
Id.
Discursodométodo
,1984,p.16.“[...]bienqueellecontiene,eneffect,beaucoupdepreceptestresvrais
&tresbons,ilyenatoutefoistantd’autres,meflez parmi,quifontounuifiblesoufuper flus[...]”(Id.
Discours
delamethode
,A.T.,VI,p.17).
46
[...]alémdequesóseocupamdematériasmuitoabstractasequeoparecemde
nenhumuso,aprimeiraestásempretãosujeitaàconsideraçãodasfigurasquenão
podeexercitar oentendimentosemfatigarmuitoaimaginação;enase gunda,estáse
detal modosujeito a certasregraseacertos algarismosquese faz delaumaarte
confusaeobscuraqueembaraçaoespírito,emvezdumaciênciaqu eocultive.”
115
.
É,então,aquiqueDescartesd ecideprocuraralgum“outrotodo”. Suaconstituição
sedaráapartirdajunçãodasvantagensedaisençãodosdefeitosdostrêsmétodosporele
analisad os:o métodológico, ométodo geométrico eométodoalgébrico
116
. Como sepode
notar,aLógicaeasMatemáticas
117
o,pois,ogeneabsolutodesse“novoMétodo”proposto
por Descartes.
Daí o todo propriamente cartesiano, dessa forma calcado no modelo lógico
matemáticodeconhecimento
118
,seexpr essar,formalmente,apartirdasnoçõesde
evidência
e
certeza
;aprimeira,característicaclássicadopensamentoMatemático;asegunda,pretensão
daLógicaparacomopensamentocorreto
119
.
Evidência e certeza seapresentam, portanto,como a caracter ização maisprecisada
naturezae pretenesdo Método de Descartes; e o
Discurso
não esconderia asexigências
dessas duas noções, que ali aparecem claramente onde se lê, resumidos em qu atro, os
preceitosquecompõem talMétodo:
O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira qualquer cousa sem a
conhecerevidentementecomotal[...];nãoincluirnosmeusjuízosnadaqu esenão
apresentasse tãoclaraetãodistintamenteaomeuespíritoquenãotivessenenhuma
ocasião para o pôr emdúvida. O segundo,dividir cada uma das dificuldades que
tivesse de a bordar no maior mero possível de parcelas que fossem nec essárias
para melhor as resolver. O terceiro, conduzir por ordem os meus pensamentos,
115
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.17.“[...]outrequ’ellesneseftendentqu’adesmatieresfort
abftractes,&quinefemblentd’aucunvfage,lapremiereefttoufioursfiaftraintealaconfiderationdesfigures,
qu’ellenepeutexercerl’entendementfansfatiguerbeaucoupl’imagination;etons’efttellementaffuieti,enla
derniere,acertainesreigles&acertainschiffres,qu’onenafaitvnartconfus&obfcur,quiembarrraffel’efprit,
aulieud’vnefciencequilecultiue.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.1718).
116
Cf.Ibid.,p.18.
117
A Análise dos Geômetras e a Álgebra são consideradas partes das Matemáticas. Notar, desde já, que é
exatamenteessa“junçãode vantagens eisençãodosd efeitos”daLógicaedasMatemáticasqueconstituirá a
célebre
mathesisuniversalis
cartesiana,assunto tratadoadiante.
118
Aexpressão“lógicomatemático”quersignificar,aquie emtodososlugarese mqueforutilizada,exatamente
aquilo que podemos chamar propriamente de Método cartesiano; isto é, um Método constituído a partir das
“vantagens”e“isençãodedefeitos”daLógicaeMatemáticas.
119
Cf.SILVA,F.L.e.
Descarteseametafísicadamodernidade
,1996,p.30.
47
começandopelosobjetosmaissimplesemaisceisdeconhecerparasubirpoucoa
pouco,gradualmente,atéaoconhecimentodosmaiscompostos,eadmitindomesmo
certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns aos outros. E o
último,fazersempre enumeraçõestãocompletaserevisõestãogeraisquetivesse a
certezadenadaomitir.
120
.
Segundo Gilson
121
, Descartes, depois de tentar, em suas
Regrasparaa Direçãodo
Espírito
122
, reunir todos os preceitos aplicados pelos matemáticos em seus raciocínios,
resolveu, no
Discurso
, reduzilosaessesquatroque,por setrataremderegrastão geraise
puramente abstratas, não têm aí a finalidadedeensinar o Método, mas, somente, fixarlhe
suascaracterísticasdistintivasevidênciaecerteza–,afimdequeoespíritopossatreinarse
em resolver, por si próprio, problemas matemáticos e habituarse, assim, a pensar 
matematicam ente
123
.
Aessepropósito,opróprioDescartes,na
CartaPrefácio
dos
Princípios
recomendaao
homemquebuscaaverdadeiraSabedoriadedicarse,antes,aoestudodaLógica;masnãoada
Escola,esimaquelaqueajudaabemconduziraprópriarazãonasverdadesdesconhecidas;e,
porqueessadependemuitodouso,“[...]bomé(que)seexerciteoestudioso,durantealgum
tempo, a praticar  as regras referentes a queses ceis e simples, como as das
matemáticas.”
124
.
120
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,pp.1718.| Lepremier eftoitdenereceuoiriamaisaucune
chofepour vraye,queienela connuffeeuidemmenteftre telle[...]&denecomprendreriendeplus enmes
iugemens,quecequifeprefenteroitficlairement&fidiftinctementamonefprit,queien’euffeaucuneoccafion
de le mettre en doute. Le fecond, de diuifer chafcune qu’il fe pourroit, & qu’il feroit requis pourles mieux
refoudre.Letroifiefme,deconduireparordremespenfées,encommeantparlesobietslesplusfimple&les
plusayfezaconnoiftre,pourmonterpeuapeu,commepardegrez,iufquesalaconnoiffancedespluscompofez;
efuppofantmefmedel’ordreen treceuxqu inefepreced entpointnaturellementlesvnslesautres.Etledernier,
deefairepartoutdesdenombremensfient iers,&desreueuësfigenerales,queiefuffeaffurédenerienomettre.”
(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.1819).
121
Cf.GILSON,E.Introduction.In:DESCARTES,R.
Disco ursdelaméthode,
1992,p.12.
122
Considerada a primeira obra significativa de De scartes. Escrita em lat im, entre 16251628, o texto das
Regulaeaddirectionemingenii
,ficouinacabadoesófoipublicadodepoisdamortedofilósofo.Maisdetalhes
ver:COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1995,p.139.
123
Na verdade, Descartes jáhaviaanunciado na primeira parte de seu
Discurso
queseu objetivo, aí, nãoera
ensinaroMétodoe,sim,mostrarasuaeficáciaCf.DESCARTES,R.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.4.A
essepropósito,deacordocomBréhier,a
Geometria
umdostrêsEnsaiosdosquaiso
DiscursodoMétodo
é
prefácio–éo lugarporexcelênciaondeaeficáciadoMétodoédemonstrada.Cf.BRÉHIER,E.Descarteseo
Cartesianismo.In:Id.,
Históriadafilosofia
,1977,to mosegundo,livroprimeiro,pp.5463.SobreoMétodode
Descartesemgeral,verainda:RODISLEWIS,G.
Descarteseoracionalismo
,s/d,pp.1523.
124
DESCARTES,R.
Princípiosdafilosofia
,1984,p.42.“[...]eftbonqu’ils’exercelongtempsàenpratiquer
lesreglestouchantdesqueftionsfaciles&fimples,c ommefontcellesdesMathematiques.”(Id.
Principesdela
philosophie
,A.T.,IX,II,p.14).
48
Ou seja, novamente, o filósofo se põe a exigir a gica e as Matemáticas para a
compreensãode seu Método. Mas,dessavez,aadvertênciaémaisprecisa:nãosetratade
qualqu erlógica,ma sdaquelaqueasquestõesmatemáticasajudamacompreenderpara“bem
conduziraprópriarazãonasverdadesdesconhecidas”;istoé,tratase,enfim,dopensamento
lógicomatemáticoaplicadoàapropriaçãodaevidênciaecerteza.
Éporissoque,emDescartes,aquelequebuscaa“verdadeiraSabedoria”jásabeque
buscaporumaverdadecertaeevidente:éporqueoMétodopeloqualarazãoéconduzidatem
comopontodepartida opensamentológicomatemático e pretende,comopontodechegada,a
certezaeevidência.
É nesse sentido que se configura o terceiro e, talvez, mais elementar preceito do
Método cartesiano: “conduzir por ordem os meu s pensamentos”. Ora, o que, exatamente,
ordena a razão se não o modelo gicomat emático de conhecimento? E o que justifica,
finalmente, o modelo lógicomatemático de conhecimento se não a pret ensão de certeza e
evidência?
Por tudo isso, concluímos que o Método de Descartes, lógicomatemático por
excelê ncia, encontra nas noções de certeza e evidência seus aspectos mais elementares,os
traço smaisdistintivosdesuacaracterização.Restanos,ago ra,saberasimplicaçõesqueessa
caracterizaçãoimpõeaoMétodoe,apartirdaí,qualoseureala lcanceque,segundoseuautor,
chega,comonenhumoutrométodocientífico,aomáximousod arazão:“[...]oquemaisme
satisfazianessemétodoeraoteracertezadecomeleusaremtudodaminharazão,senão
perfeitamente,pelomenosomelhorquepodia[...]”
125
.
1.2.2.3–A“MathesisUniversalis”cartesiana
Detalmodocaracterizadopelabu scadecertezaeevidência,oMétodocartesianonão
ficaria,por muitotempo,restritoaousoexclusivo deseuautoredasciênciasparticulares–
Lógica e Matemáticas. Uma das mais consideráveis implicações de sua caracterização e,
125
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.19.“[...]cequimecontentoileplusdeceteMethode,eftoit
que,parelle,i’eftoisaffuréd’vferentoutdemaraifon,finonparfaitement,aumoinslemieuxquifu ftenmon
pouuoir[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.21).
49
talvez, sua maior fraqueza seja a sua pretensão de universalizar as ciências, ou melhor, o
conhecimentocienfico
126
.
NaspalavrasdeGilson:
Afilosofiacartesianaseráentão,antesdetudo,umesforçoparaestenderaocorpo
inteirodasciênciashumanas ométodo matemático,quenãoéele mesmosenão o
uso normaldarazão;asregras dométodomporobjetivodescreveramaneiraque
oespíritopensaquandopensamatematicamente.
127
.
Surgeassim,propriamentedita,a
MathesisUniversalis
cartesiana:oousadoprojetode
Descartes para a universalização das ciências
128
. Convencido e estimulado pelo grau de
evidência ec ertezaqueseutodopermitiulhe,Descartespretendeuaplicálo,alémdeseus
meandrospróprios,atodasasciências.
Otrajeto estavaainda adefinir e, segundo o fisofo , umprojeto tãoaudacioso só
encontraria na Filosofia o respald o necessário para cumprir seu desígnio. Nesse caso, a
universalizaçãodasciênciasorequeririao empreendimentodoexameparticulardetodasas
ciênciasemgeral,masbastariaaaplicaçãodospreceitosdoMétodoaopensamentofilosófico,
umavezquetodasasoutrasciênciastomavamdeleseusprincípios
129
.
126
Aessepropósito,Lebrun,emnota,informaqueoprimeirotítuloqueDescartespensouparaaapresentaçãode
seuMétodo,quesedáno
Discurso
,traziacom clareza auniversalizaçãopretendida:
ProjetodeumaCiência
universalquepossaelevaranossanaturezaaoseumaisaltograudeperfeição.MaisosMeteoros,aDióptrica
eaGeometria,ondeasmaiscuriosasmatériasqueoauto rpôdeescolherparadarprovadaciênciauniversal
que ele propõe o tratadas de tal modo que mesmo aqueles que o estudaram podem entendêlas
. Cf.
LEBRUN, G. In:
Discurso do método
,1973, p. 33, nota1.Também Silva comentaquea associaçãode três
ensaios científicos:
Dióptrica
,
Meteoros
e
Geometria
com um texto sobre o Método – o prefáci o – se deu,
justamente,paramostrarqueoMétodoseadequavaadiferentesobjetos.Comisso,diz:“[...]Descartespretendia
manifestar a universalidadedo método e a unidadedo saber.” (SILVA, F. L. e.
Descartes e amet afísica da
modernidade
, 1996, p. 19). Além disso, o próprio Descartes, comentando seu Método em carta a Mersenne,
afirmaterinserido“certasdoses”demetafísica,física emedicinaemseu
Discurso
deabertura,comafinalidade
demostrarqueeleseestendeatópicosdetodasorte.Cf.DESCAR TES,R.
Correspondance
,A.T.,I,p.349.
127
“Laphilosophiecartésienneseradonc,avanttout,uneffortpouréten dreaucorpsentierdesconnaissances
humaines la méthode mathématique, qui n’est ellemême que l’usage normal de la raison; les règles de la
méthodeontpourobjetdedécrirelamanièredontpensel’espritlorsqu’ilpensemathématiquement.”(GILSON,
E.Introduction.In:DESCARTES,R.
Discoursdelaméthode
,1992,p.12,traduçãonossa).
128
Cottingha mmo straqueopretensiosoprojetodeuniversalização deDescarteséantigo:jáestavanotadamente
presenteemsuas
Regras
.Esselivroambicioso,dizCottingha m,“[...]revelamuitosobreoponto devistainicial
deDescartessobreoprojeto,aolongodasuavida,deestabelecerummétodoun iversalparachegaràverdade.
Desdeoinícioqueen contramosapreocupaçãocomumsistemadeinvestigaçãounificadoecomopropósitode
atingira‘sabedoriauniversal’.Oconhecimentoécaracterizadoc omo‘cogniçãocertaeevidente’;devemos,diz
nosDescartes,rejeitaroqu eapenasépro vávele‘decidiracreditarapenasnoqueéc onheci doperfeitamentee
impossíveldesepôre mdúvida’.”(COTTINGHAM,J.
AfilosofiadeDescartes
,1989,p.26).
129
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,pp.2122.
50
A
Mathesis Universalis
cartesiana, desse modo, deveria concentrarse, então,
sobr etudo,naFilosofia.Noentanto,Descartessentiase,ainda,desprepar adoparaassumiro
riscototal deseuprojeto;suaspretenestiveramqueseradiadas
130
.
Possivelmente,ofilósofopresumia,deformaimplícitanosargumentosqueelencou,
que a aplicação de seu Método à Filosofia lhe traria, de fato, sérias dificuldades: talvez já
soubesseque ela lheexigiria, nos termosprópriosdospreceitosm etódicos,ocumprimento
radicaldoemp regodadúvidaemseuespírito“cheiodemásopiniões”e,aomesmotempo,a
eleiçãodeuma“moralproviria”paranãoseperdernabusca;talveztambémjásoubesse
que,paraalcançarseuobjetivo,precisariaestabelecer,primeiro,umaverdadecertaeevident e
daqualpartiria :o
cogito
;e,talvezjásoubesse,enfim, que,paradarcontad esustentaressa
verdade e a universalidade pretendida, precisaria, irrecusavelmente, demonstrar a sua
garantia:aexistê nciadeDeus.Definitivamente,émuitoprovávelqu eograudetodasessas
dificuldadeso lhe passoudespercebido; emumapalavra:faltavaaoMétodo cartesiano a
apresentaçãodesuametafísica.
Entendemosqueé,principalmente,poressarazã oque,emboraestivessequasetudo
pronto oMétodo,játivesse,apóssuaorigem,místicaounão,estabelecidodeformabastante
clara e bem definida seus objetivos e meios: encontrar a verdade nas ciências através da
LógicaedasMatemáticase,apartirdelas,exigirevidênciaecertezadarealidadeemgeral
implicando assim, não sem dificuldades, a universalização do saber –, Descartes resolveu,
recuarnaaplicaçãoimediatadeseutodoàFilosofia:preferiuamadurecêlopormaisum
tempo.
Nestaaltura,diantedesserecuo,em certosentido,inusitadodeDescartesparacoma
constituiçãodesua
MathesisUniversalis
equando,nostermosdenossaanálise
131
,tomamoso
Método como o último dos “antecedentes cartesianos constitutivos do
cogito
”
132
, somo s
levadosaperguntarsenãoseriaele,o
cogito
,ou, maisprecisamente,asuaausênciaomotivo
últimodoadiamentodoprojeto?Istoé,emúltimainstância,nãoseriajustamenteaausência
do
cogito
que teriaintimidado Descartesnaaplicação imediatadeseuMétodo àFiloso fia?
Nãoéo
cogito
oprimeiroprincípiodametafísicadoMétodo?Querdizer,seráqueotempo
130
O filósofo argumenta que a imaturidade de s eus vinte e três anos de idade, o seu espírito cheio de más
opiniões, afaltade experiênciase anecessidadedeexercitarseemseuMétodoparacadavez maisfirmarse
neleoimpediamderealizarseuprojetoimediatamente.Cf.DESCARTES,R.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,
p.22.
131
Cf.,nestecapítulo,nota80.
132
Osprimeirosforam:“Ograndelivrodomundo”eoprincípiodarazãoprópria.Cf.,nestecapítulo,fl.30.
51
pedido porDescartespara“exercitarsemaisemseuMétodo”antesdeaplicá loàFilosofia
nãofoi,exatamente,paraafor mulaçãodesseprincípio?Enfim,sefaltavaainda,aofilósofoe
aoseuMétodo, umnúcleoorigináriod einterlocuçãoentreesseeaFilosofia,estenúcleonão
seria,exatamente,o
cogito
?
133
.
133
Porhora,notar,sobretudo,ocaráterconstituint edo
cogito
.Sobreo
cogito
comoaMetafísicadoMétodo”,
ver,nestetrabalho,próximocapítulo.
CAPÍTULOII
DO
COGITO
NO
DICURSO
Este capítulo encerra a primeira parte de nossa pesquisaproblematizando aposição
própria do
cog ito
no
Discurso
. Em debate com Alquié, defendemos, contrariamente à sua
opinião, que o
cogito
é completamente constituído no
Discurso
e que, nesse caso, as
Meditações
são,sobretudo,talcomoafirmaopróprioDescartes,apenasumaexplicão mais
precisadametafísicade1637.Corroboramosessatese,apresentandou maanáliseacercada
especific idadegeraldas
Meditações
:analisamosassuasreaisdificuldades, razõeseobjetivos.
2.1 Sobreo“cogitono“Discu rso”
O
cogito
foianunciadopublicamentedeforma oficial,pelaprimeir avez,no
Discurso
doMétodo
,obrade 1637.Aí, naquartaparte,ondeoautorapresentasuasrazõesparaaprova
da existên cia de Deus e da alma humana, que são os fundamentos metafísicos de seu
Método
134
, Descartes, mesmo inseguro quanto ao grau de dificuldades que elas
representariam, resolve falarnos das primeiras meditações que realizou por conta da
preparaçãopesso alaqualsesubmeteupara,commaisfirmeza,emseuMétodorealizarseu
projeto
135
;efalanos,ainda,dos“fundamentosbastantefirmes”quedescobriu,dentreosquais
o
cogito
.
2.1.1 –O“cogitono“Discurso”comoMetafísicadoMétodo
136
134
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,p.1.
135
Possivelmente,foramessasmeditações”qued eramorigemàsfuturas:
MeditationesdePrimaPhiloshophia
de1641,sumametafísicadofilósofo,naqual,atravésdesua
MeditaçãoSegunda
elenoslegará,parasempre,
seu
cogito
.
136
Absolutamente não ignoramosqueaquestãode Deus compreende a metafísicadoMétodo tant oquanto a
questãodo
cogito
aalmahumana–; portanto, não pretendemoscom essesubtítulo reduzira metafísica do
53
Nove anos se passaram da cautelosa desistência de Descartes em concretizar seu
projeto de universalização das ciências unindo seu  Método à Filosofia
137
. Nesse tempo, o
filósofonoscontaquenãofezoutracoisa,anãoser:
[...]vaguearnomundodaquiparaali,procurandosermaisespectadordoqueactor
emtodasascomédiasquenelesedesenrolam;e,reflectindosobretudoapropósito
decadacousa,sobreoquepodiatornálasuspeitaeserocasiãode nosenganarmos,
eudesenraizava,aomesmotempo,domeuespíritotodososerrosqueneleatéentão
seti nham podidoinsinuar.
138
.
E,ainda,
[...]faziadiversasobser vaçõesecoligiamuitasexperiências,quemeserviriam para
estabeleceroutras maiscertas.Alémd isso,continuavaatreinarmenométodoque
tinha adoptado; porque o só tinha o cuidado de conduzir geralmente todos os
meus pensamentos segundo as suas regras, como r eservava de vez em quando
algumashorasparaoaplicar,emespecial,àsdificuldadesdamatemáticaoumes mo
também a algumas outras que podia tornar quase semelhantesàs da matemáticas,
separandoas de todos os princípios das outras ciências, que não julgava
suficientementefirmes[...]
139
.
ÉvaliosaaobservaçãodeMacedo,quevênessapassagemumDescartesdesejosoe
convictodepoderverdadeiramentechegaraumaexplicaçãototaldarealidadesemqueessa
explicaçãototalizanteestejaconfinadaaodomínioparticulardasmatemáticas.Diz:
Seestas(asmatemáticas)foram,pelaclarezadassuasdemonstrações,umfermento
para a descoberta do método e, pela simplicidade do seu objecto, um primeiro
campo onde pôde julgar da sua fecundidade, todavia, a intenção profunda de
Método ao problema da existência da alma; só o dispomos dessa forma: aparentemente, com demasiada
restrição,pararessaltarareduçãodenossa análise,queseconcentra,exclusivamente,no
cogito
.
137
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,p.28.
138
Id.
Discursodométodo
,1984,p.25.“[...]roulerçà&làdanslemonde,tafchantd’yeftrefpectateurplutoft
qu’acteurentouteslesComediesquis’yiouent;etfaifantp articulierementreflexion,enchafquematiere,furce
quilapuuoitrendrefufpecte,&nousdonneroccafiondenousmefprendre,iedéracinoiscependantdemonefprit
toutesleserreursquis’yeftoientpûglifferauparauant.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.2829).
139
Id.
Discurso do método
, 1984, pp. 2526. “[...] faifois diuerfes obferuations, & acquerois plufieurs
experiences,qui,m’ontferuidepuisaeneftablirdepluscer taines.Etdeplus,iecontinuoisam’exercerenla
Methodequeie m’eftois prefcrite; car,outre que penfées felonfes reigles, ie |mereferuois detems entems
qulquesheures,quei’employoisparticulierementalaprattiquerendesdifficultezdeMathematique,oumefme
auffyenquelquesautresqueiepouuoisrendrequafifemblablesacellesdesMathematiques,enlesdétachantde
touslesprincipesdesautresfciences,quei enetrouuoispasaffezfermes[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.
T.,VI,p.29).
54
Descartes foi chegar, usando dele, a essa explicação global. Às matemáticas,
segundoestepasso,passouadedicarapenasalgumashorasdevezemquando.
140
.
Em todo caso, mesmo fielà suaobstinação de levaracabo autilizaçãodoMétodo
parauniversalizarasciências,aofinaldestesnoveanos,Descartesaindanão haviatomado
parte dasquestõesque,de fato,olevariamàrealizaçãodeseuobjetivo:
[...]essesnoveanos passaramsemquetivessetomadonenhumpartido ac erca das
dificuldadesquecostumamserdiscutidasentreo sdoutos,nem começadoaprocurar
osfundamentosdequalquerfilosofiamaiscertadoqueavulgar.
141
.
Entretanto,aindaquesesentissedespreparadoparaaconsumaçãodoempreendimento
quesepropôs,ofilósofo,unicamentesoboargumentodequeteriamsurgidorumoresdeque
elehaviaempreendidoseuprojeto,decidiu,finalmente,iniciá lo:
[...] o exe mplo de muitos espíritos excelen tes, que, tendo tido já esse mesmo
projecto,nãotinhamsido,naminhaopinião,bemsucedidos,levavameaimaginar
tantasdificuldadespara asuarealizaçãoquenãoteriatalvezousadoempreendêlo
tãocedosenãosoubessequejáconstavaqueeuotinharealizado.
142
.
A despeito das razões que levaram Descartes, de fato, a iniciar a aplicação de seu
MétodoàFilosofia, ofatoéqueessaaplicaçãosósedeunoveanosapósoanúnciodesua
pretensãogeral.Oquenosparecemaisevidente,nessecaso,équeforamnoveanosnosquais
o todo pôde ser repetidamente comprovado em sua aplicação particular – Lógica e
Matemáticase,nosquais,seuautor,certamente,pôde“firmarsem aisnele”,comoeraseu
propósito.
Portanto,comoquerquetenhasido,ofatoéqueDescartes,somenteagora,noveanos
depois,teriasedecididoresolutamenteaaplicarseuMétodoàFiloso fia;valenotar,então,que
setratadeumadecisãodepeso;afinal,elaresultadoamad urecimentodequaseumadécada
detrabalhosdofilósofo.
140
MACEDO,N.de.In:DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.188,nota40.
141
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.26.“[...]cesneufanss’efcoulerentauantquei’euffeencore
pris aucun parti, touchant les difficultés qui ont couftume d’eftre difputées entre les doctes, ny commencé a
chercherlesfondemensd’aucunePhilofophiepluscertainequelavulgaire.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,
VI,p.30).
142
Id.
Discursod ométodo
,1984,p.26.“[...]l ’exempledeplufieursexcelensefpris,qui, enayanteucydeuantle
deffein,mefembloi entn’yauoirpasreuffi, m’y faifoitimaginertantdedifficulté,queien’euffepeuteftrepas
encorefitoftofél’entreprendre,fiien’euffevûquequelquesvnsfaifoientdefiacourrelebruitquei’eneftois
venuabout.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.30).
55
Nessesentid o,nosreportamosaumdadopeculiarquemerece,aqui,serdestacado:a
redaçãodo
Discurso
sedáoitoanosapósessadecisãodeDescartes
143
;oqu equerdizerque,
senoveanossepassaramda“descoberta”dotodogicaeMatemáticasaoiníciode
suaaplicaçãomaisgeral– àFilosofia;esetalaplicaçãorequereudeseuautormaisoito
anospara,enfim,serpublicada,issosignificaqueofilósofotrilhouumtrajetodedezessete
anos entre a “descoberta” e o estabelecimento do Método à sua aplicação explícita na
Filosofia.
Em outros termos, estamos dizendo que, se em 1619 o Método foi “d escoberto”,
somentenoveanosapós,maisprecisamenteporvoltade1628comapublicaçãodas
Regras
,é
queelecomeçaainteragirpropriamenteco maFilosofia,tornandose,finalmente,explícito
emsuaformafilosófica,porvoltadeoitoanosmaistardecomapublicaçãodo
Discurso
em
1637.
Épo ssível,então,dessemodo,supordesdeaorigemdoMétodo,em1619,umalinha
do tempoquemarcaprecisamenteoprocesso deuniversalização das ciênciaspropostopor
Descartes atravésd eumalentae gradualaproximaçãodeseuMétodoàFilosofiaat é1637.
Assim, na medida em que as dificuldades iniciais que o Método supunha eram de ordem
predomina ntementepessoal
144
,em1628,comas
Regras
,predominamdificuldadesdeordem
maismetod ológica
145
;superadasessasdificuldades,estabelecese,fi nalmente,em1637como
Discurso
,quaseduasdécadasdepoisdesua“descoberta”,aordempropriamentefilosó ficado
Método: a metafísica de uma verdade “[...] tão firme e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos cépticosseriam impotentespara a abalar [...]”
146
:“Eu penso,
logoexisto”;o
cogito
como expressãomáximada pacienteaplicaçãodoMétodoàFilosofia.
Seguindo, então, fielme nte o trajeto cartesiano de 1619 a 1637, somos obrigados a
reconhecer queo
cogito
, nessestermos, é opontodechegada,por excelência, dessalonga
143
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,p.31.
144
Aimatu ridadedeseusvinteetrêsanosdeidade,anecessidadededesenraizardeseuespíritoasopiniõesque
recebera,acumul armuitasexperiênciaseexercitarsefirmementenoMétodoqueconceberaafimde,cadavez
mais,firmarsenele.Cf.finaldasegundapartedo
Di scurso
em:Ibid.,p.22.
145
Tratase,sobretudo,decultivaraquiloquenospermitachegaràverdad e,dentreoutrascoisas,avida,ede
educaran ossafaculdadeinventiva.“Taléosentidodas21regraspropostasporDescartes[...]regrasdecisivas
porqueafirmamaidentidaded enaturezadetodoconhecimento(RegraI)eanecessidadedeummétodo(Regra
IV)quepossafundamentaracert eza.”(HUISMAN,D.
Dicionáriosdosfilósofos
,2004,p.270).
146
DESCARTES, R.
Discurso do método
, 1984, p. 28. “[. ..] fi ferme & fi affurée, que toutes les plus
extrauagantes fuppofitions des Sceptiques n’eftoient pas capables de l’efbr anfler [...]” (Id.
Discours de la
methode
,A.T.,VI,p.32).
56
trajetóriasegundoaqualoMétodo,definitivamente,seestabeleceu;e,nessecaso,paraalém
daLógicaedasMatemáticasquejáocaracterizavam,tambémaMetafísicapassaria, agora,
aoestadodefundamentodoseuestatuto.Em umapalavra,oprojetodeuniversalizaçãodas
ciênciaspropostoporDescartesencontrouseuprimeiroresultadono
cogito
,ametafísicado
Método.
Entendemos,portanto,queo
cogito
inauguraacaracterizaçãopropriamentemetafísica
doMétodo eque,somentecom essepasso,digase:passodadono
Discurso
,se podefalar
apropriadamentedeumaaplicaçãodosprincípiosmetódicosàFilosofia;denossaparte,issoé
o suficiente. Saber o destino concreto que to mou o projeto cartesiano sintetizado em sua
Mathesis Universalis
é, certamente, um bom tema para ou tra oportunidade. Nossas
consideraçõesseconcentrarão,apartirdaqui,naanáliseprópriado
cogito
.
2.1.2 O cogito no Discurso sob o pon to de vista de sua contemporaneidade: um
cogito” breveeimpreciso”
Éconsensoabsolutoentreosestudiososque,no
Discurso,
adescriçãoqueDescartes
nosapresentasob reo
cogito
éextremamenterápidaesemomínimodedetalhes;ta lvez,em
razão mesmo da ppria característica estilística da obra: um relato marcadamente
autobiográfico, narrado, corajosamente, em primeira pessoa e todo estruturado em uma
linguagemcompletamenteinformal.
Como  quer que seja, após a advertência de estar dedicado mais à pesquisa da
verdade
147
que propriamente dos costumes, a primeira resolução que Descartes toma, no
Discurso
, paraseapropriardo
cogito
refereseàretomadadap rimeiraregrade seuMétodo:
[...]rejeitarcomoabsolu tamentefalsotudoaquiloemquepudessei maginaramenor
dúvida,afimdeverseapósissoacasoficariaqualquercousanasminhasopiniões
quefosseinteiramenteindubitá vel.
148
.
147
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,p.31.
148
Id.
Discursodométo do
,1984,p.27.“[...]reiettaffe,commeabfolument faux,toutceenquoyie pourrois
imaginerlemoindredoute,affind evoirs’ilnerefteroitpoint,aprescela,quelquechofeenmacreance,quifuft
entierementindubitable.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.31).
57
Tratase,sobretudo,doabandono,nãoso mentedoqueéfalso,mastambémdoqueé,
provavelmente, falso para a conquista def initiva do que é, indubitavelmente, certo e
verdadeiro.
Nesses termos, a crítica recai, inicialmente, sobre os sentidos qu e, por às vezes
enganarem,ofornecemgarantiaa lgumad equetudooqueapartirdeless eimaginaseja,de
fato,comoseapresenta.Emseguida,oalvodainvestidacríticadeDescartesseencontranos
possíveis erros gerado s pelosraciocínios humanos, que, justamente por seremp assíveis de
erros,comprometemtambém,aomenosemcertosentido,asquestõesm atemáticas.
Nesse caso,dadoasverdadesmaisevidentes– as verdadesmatemáticas– serem, a
princípio, rejeitadas pelo filósofo na m edida em que, ainda que elas sejam verdadeiras, o
conhecimentoqueoshomensdelaspodemtertalveznãooseja,essacríticaparecesereferir,
naverdade,atodasasrazõ esdemonstrativas
149
.
É bem possível que Descartes te nhaelaboradoesse trajeto cr ítico – do engano dos
sentidos aos erros dos raciocínios e, consequentemente, ao comprometimento, em certa
med ida,dasverdadesmatemáticas–parachegar,enfim,comomáxim odeprecisãopossível,
àcríticadopensamentoemsimesmoque,pornãosedistinguirdospensamentosquepodem
ocorrerdur anteossonhoseque,portanto,nãosãoverdadeiros,masmerasilusõesoníricas,
nãosegaranteenquantorealidadenavigília.
Concluise,dessemodo,no
Discurso
,oprimeiroinventáriocar tesianodafragilidade
doentãoprocessode aquisiçãodeconhecimento.Ainstabilidadedossentidos,apossibilidade
doerronosraciocínioshumanose,porconseqüência,aincerteza,emcertosentido,quantoàs
razões mais evidentes demonstrativas/matemáticas ; e, finalmente, a indistinção dos
pensamentosdossonhoscomodavigíliasão,já,argumentossuficientesparajustificarema
rejeiçãoquelhesadvémdeDescartes.
Entretanto, apossibilidadedaverdadenãoestavaainda,completamente,extinguida.
Logoemseguida,dizofilósofo:
[...] enquanto assim queria pensar que tu do era falso, eu , que assim o pensava,
necessariamente era alguma cousa. E not ando que esta verdade
eu penso, logo
existo
,eratãofirmeeocerta[...]julgueiqueapodiaaceitar,semescrúpulo,para
primeiroprincípiodafilosofiaqueprocurava.
150
.
149
Geometria,LógicaeMatemática.
150
DESCARTES,R.
DiscursodoMétodo
,1984,p.28.“[...]pendantqueievouloisainfipenferquetoute ftoit
faux, ilfalloitneceffairement que moy, qui le penfois, fuffe quelquechofe. Etremarquant quecete verité:
ie
58
Istoé,enquantoaaplicãodoprimeiropreceitometódico–adúvidasobretodasas
coisas–porumlado,atestavaaDescartes,emcertamed ida,anecessidadedesuspensãodo
jzoadvindosejadossentidos,dosraciocíniosoudasrazõesdemo nstrativasemgeral;por 
outro, ele certifica vase, com ela, da realidade ex istencial de um “Eu”; ou seja, o ato de
consciência da dúvida, implícito na sua aplicação metódica, revela, necessariamente, um
existente–o“Eu”–queaprecedeeadetermina;talexistente,sujeitodavida,portanto,
aparece,desdejá,comoumaverdadeinquestionável,tantoporqueéeleacausaprimeirada
dúvida,quantoporque,nessacondição,elajamaispoderánelo.
Énesse sentidoqueLebrunobservaqu e“[...]Descartesnãodiz:“duvido,logosou”.A
dúvidanãoimportacomoato,mascomoconhecimentodofatodequeeuduvido.”
151
;pois,no
primeiromomento,éoatodeconsciênciadadúvida,enãoadúvidaemsim esma,queafirm a
o
cogito
comoumaverdadeindubitável;nessestermos,aprincípio,o“Eu”existe nãopo rque
duvida,masporquepensa.
Essa primazia do “eu que pensa” é explicada pelo  filósofo na medida em que ele,
depoisd e examinar, mais atentamente,quecoisaeraesse “Eu” existente, descobreque, ao
supor,apartirdavida,quenãotinhacorpo,quenãohaviamu ndoouqualquerlugaronde
essemesmo“Eu”pudessepropriamenteexistireque,nemporisso,eledeixavadeser;istoé,
que sua existência não depende de lugar algum; nada mais lhe r estava como garantia de
existênc ia, anão seroprópriopensamento;em suma:“[...]bastavaquetivessedeixadode
pensarp aranãoterjánenhumarazãoparacrerqueexistia[...]”
152
.
Daí,aconclusãocategóricaàqualchegaofisofo:
[...](este“Eu”é)umasubstância,cujaessênciaounaturezaéapenasopensamento,
que para existir n ãotemnecessidadedenenhum lugar nem d epende de nenhuma
cousa material.Demaneiraqu eesseeu,istoé,a almapelaqualsouoquesou, é
inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer qu e este, o qual,
emboranãoexistisse,nãoimpediriaqueelafosseoqueé.
153
.
penfe,donciefuis
eftoitfiferme&fiaffurée[...]iugayqueiepouuoislareceuoir,fansfcrupule,pourlepremier
principedelaPhilofophie,queiecherchois.”(DESCARTES,R.
Discoursd elaMet hode
,A.T.,VI,p.32).
151
LEBRUN,G.In:DESCARTES,R.
Discursod ométodo
,1973,p.54,nota53.
152
DESCARTES,R.
Discursodométodo
,1984,p.28.“[...]fii’euffefeule mentceffédepenfer[...]ien’auois
raifondecroirequei’euffeefté[...]”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.3233).
153
Id.
Discursodométodo
,1984,p.28.vnefubftancedonttoutel’effenceoulanaturen’eftquedepenfer,&
qui,pour eftre, n’abefoin d’aucun lieu, ny nedepend d’ aucune chofe materielle. En  fortequece Moy, c’eft
59
Descartesencerraassimasuadescriçãosobreo
cogito
no
Discurso
.Emborabastante
clara,tratase, defato,deumadescriçãoligeiramentebreveeimprecisa.Dopontodevistade
sua contemporaneid ade, essa maneira tão apressada deexposição do
cogito
pareceo ter
sidotãoproblemáticanaobr ade1637;aomenos,écerto,nãotantoquantodopontodevista
de sua posteridade, sobretudo quando partimos da exposição de 1641 que a
Meditação
Segunda
das
Meditações
nosoferece.
2.1.3 O cogito no Discurso sob o ponto d e vista de sua posteridade: um cogito
cindido?
O fato de, quatro anos depois do
Discurso
, Descartes oferecer, com as
Med itações
Metafísicas
, uma exposição mais detalhada e complexa do
cogito
, fez seus interlocutores
questionarcommaisintensid adeoestatutodesseprincípio.Assim,comas
Meditações
,seja
porpartedopróprioDescartes,sejaporpartedeseusinterlocutores,o
cogito
recebeumaior
destaquequequandodesuapublicaçãono
Discurso
.Delápracá,identificaranatureza,as
diferenças e semelhanças de ambas as exposições, tornouse, em certa medida, tema
privilegiadodeestudosentreospesquisadoresdafilosofiacartesiana.
ChamanosatençãoocasodeAlquié,quesededica,enfaticamente, àdefesadeuma
distinçãoradicalentreo
cogito
do
Discurso
eodas
Meditações
.
2.1.3.1–AlquiéeametafísicaincompletadoDiscurso”
SegundoAlquié,as
Meditações
representam,demodogeral,nãosomenteaexposição
propriamentemetafísicado
cogito
,mas,ummarcoteóricoemtodaafilosofiacartesiana:atéo
Discurso
viriaoDescartesfísico,lógico,cientista;nas
Meditações
,chegaria,definitivamente,
oDescartesfilósofoem etafísico .
entierementdiftincteducors,&qu’elleeftplusaiféeaconnnoiftrequeluy,&qu’encorequ’ilnefuftpoint,elle
nelairroitpasd’eftret outcequ’elleeft.”(DESCARTES,R.
Discoursd elamethode
,A.T.,VI,p.33).
60
Tendo estabelecidoque afilosofiacartesiana contempla, paraalémdas“ordensdas
razões” o que ele chama de “ordem sistemática” –, também a ordem “temporal ou
histórica”
154
,nossocomentadorvênas
Meditações
oú nicopontonoqualessasduasordensse
conciliam“claraeequilibradamente”;o
Discurso
,segundoele,selimitariaamisturálasde
formaconfusaeestranha,“[...]reintroduzindo,nasuaquartaparte,osistemáticonoseiodo
histórico.”
155
.
Por isso, conclui: “[...] o nexo essencial entre as duas ordens de modo nenhum se
descobre a não ser nas
Meditações
, onde a história de umespírito, talcomo o
Discurso
a
apresenta,éverdadeiramenteerguidaatéàessência.”
156
;istoé, enquantoo
Discurso
apresenta
umahistóriaindividualdeumhomemqualquer quetemseudestinodirecionadoaoObjeto,as
Meditações
,aocontrário, trazemumahistóriauniversa lquerequersercontinuadaporcada
umde nós,umahistóriaque,livremente,seeacaminho emdireçãoaoencontrodoSer.
É d esse modo que Alquié vai construindo sua tese em torno de certa primazia
metafísicadas
Meditações
emrelaçãoao
Discurso
,quenessecasodeveservisto,sobretudo,
comoumespelhodapluralidade dasatitudesdeconsciênciadeDescartesdiantedarealidade,
dado,emc adaumadasseispartesqueocompõem,ohomemserpercebidodiferentemente
157
.
Assim,nostermosprópriosdenossocomentador,o
Discurso
,naverdade,não passa
deumprolongamento,emcertosentido,do:
[...]sonhocartesianodeumsistematotaldomundo,trad uzindoassimosfracassos
que tal sonho encontrou e manifestando o aparecimento da dimensão metafísica,
impossível de compreendernosistema, masqueDescartes seesforça, no entanto,
porfazêlaingressarnele[...]
158
.
Alquiéchegamesmoaopontodeafirmarqueaquartapartedo
Discurso
nemétão
metafísica quanto geralmente se sue; segundo ele, embo ra ela contenha uma metafísica
154
Cf.,capítuloanterior,fls.3237.
155
ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,p.11.
156
Ibid.
157
Cf.ALQUIÉ,F.
Ladécouvertemétaphysiquede l’hommechezDescartes
,1996,p.135.
158
“[...] rêve cartésien d’un système total du Monde, traduit aussi les échecs que ce ve a recontrés, et
manifestel’apparitiondeladimensionmétaphysique,impossibleàcomprendredanslesystème,etqueDescartes
s’efforcecependantencored’yfai reentrer [...]”(Ibid.,p.135,traduçãonossa).
61
perfeitamente elaborada no qu e concerne às provas da existência de Deus, não há, aí,
nenhuma exposiçãopropriamentemetafísicadadúvidaemesmodo
cogito
159
.
Nesse sentido, apoiado por seus próprios argumentos de que o que constitui o
Discurso
nãorevelaumaunidadediscu rsiva,sejaporqueeletraz,emseubojo,resquíciosde
certa pretensão e “fracassos” científicos, seja porque ele acomode “forçadamente” uma
dimensão metafísica em seu corpo, ou ainda porque não haja aí uma exposição
“propriame nte”metafísicanoqueserefereàvidaeao
cogi to
,aconclusãodeAlquiéé,em
tese, que há uma metafísica incompleta no
Discurso
. Em sua opinião, as
Meditações
representamapo rçãoontológicaqu efaltavaàexposiçãometafísicade1637.
Asnoçõesdeincompletudeefaltaparadesignarametafísicado
Discurso
expressam
uma unanimidade quase absoluta nos manuais da filosofia de Descartes; neles,
frequentementeo
Discurso
étomadocomoummerocomentáriometafísicodofiló sofo que,
somentedepois,desenvolveria,emtodaasuaamplitude,ametafísicadesuafilosofia.
Saber se Alquié é, precisamente, o responsável maior por essa interpretação tão
difundidadametafísicano
Discurso
,interpretaçãoàq ualnosposicionamoscontrariamente,
exigedenósmaistempoeespaçodoque temosaq ui;em  todocaso, nossocomentador é,
certamente,umgranderepresentantedessatendência.
Como querqueseja,ateseda metafísicaincompletado
Discurso
pareceser,emnossa
opinião, o principal mote de Alq uié na fundamentação de sua análise sobre uma suposta
distinçãodo
cogito
entr eo
Discurso
eas
Meditações
.
2.1.3.2–Porum“cogitocindido?
De acordo  co m Alquié, a maioria dos com entador esdeDescartes não  foi capaz de
perceber:
159
De acordo com as próprias palavras  do autor: Sobre a quarta parte do
Discurso
, se ela contém uma
metafísicaperfeitamenteela bor adanoq ueconcerneàsprovasdaexistênciadeDeus[...]nãoabrangenenhuma
exposiçãopropriamentemetafísicadadúvidaemesmodo
cogito
.”.“Orlaquatrièmepartiedu
Discours
,sielle
contientunemétaphysiqueparfaitementélaboréeencequi concernelespreuvesdel’existencedeDieu[...]ne
renfermeau cunexposé proprement métaphysiqued u doute, etmêmedu
cogito
.”(ALQUIÉ,F.
Ladécouverte
métaphysiquedelhommechezDescartes
,1996,p.147,traduçãonossa).
62
[...]aconfusão,cometidarepetidamente,entreastrêsexposiçõesqueDescartesfaz
de sua metafísica:
Discurso
,
Meditações
e
Princípios
. Em cada uma dessas
exposições a ordem dos temas metafísicos (a vida, o
cogito
, Deus) é
sensivelmenteamesma.PorqueametafísicadeDescartesnãoéfeitadeafirmações
quepossamserapresentadassegundoumplanoqualquer:elaéconstituídaporuma
seqüência de momentos intelectu ais que se exigem uns aos outros, cada um dos
quaissupõeoqueoantecedeegeraoquelhesegue.Masquediferençaexis tena
ordemdosargumentosevocados,esobretudo,notom, quenãoé,comosejulgou,
ornamento literário, mas, nas
Meditações
, o sinal mais autêntico do itinerário
realizado!
160
.
É, pois, nas diferenças da “ordem dos argumentos evocado s” e do “tom” das três
principais exposições de Descartes que nosso comentador se apóia para sustentar certa
primaziametafísicadas
Meditações
emdeclaradopreterimentoao
Discurso
eaos
Princípios
.
No caso específico do
Discurso
, a análise de Alquié se volta para as respectivas
diferençasdecadatemametafísico–avida,o
cogito
eDeustalcomoaparecem,ounão,
neleenas
Meditações
.
Especialmenteem relação ao
cogito
,nossocomentador afirmaser ele, no
Discurso
,
umamerapreocupaçãoessencia lmentemetodológicaecientífica;aí“ele(o
cogito
)nãotem o
caráterdeeulivreseparandosed oSereopodendomaissereconciliarcomele,anãoser
pelaveracidadedivina.”
161
.Emumapalavra,paraAlquié,enquantonas
Meditações
o
cogito
representaumaexperiênciadopensamentocomoSer ,no
Discurso,
restaaele,apenas,u ma
experiênciacomoobjeto
162
.
A própria rmula do
Discurso
: “Eu penso, logo existo”, atestaria, segundo nosso
com entador, o caráter simplesmenteobjetivo queo
cogito
aírecebe:otermo “logo”que a
permeiaseriaaprovamaiscabaldequeo
cogito
no
Discurso
osereferetantoumproblema
ontológicocomoàprocuradeumcritériodeverdadecientífica:
Ora, o que é próprio da fórmula ‘eu penso, logo, existo’ é precisamente que,
enunciandoumfato,fazsurgir,noseiodessefato, umaligaçãonecessária.Passamos
aqui da necessidade particular de um acontecimento que desafia a dúvida à
necessidad euniversaldeumaverdadededireito,edeumprincípio.Porquenãoéda
mesma maneira que é indubitável que eu penso, que existo, e que para pensar é
preciso existir. É claro que penso e exist o, mas nã o p enso, nem existo
necessariamente;podiaacontecerqueeunãopensasse,quenãoexistisseeque,por
exemplo,nuncativessenascido.Masoprincípioparapensaréprecisoexistir’éde
160
ALQUIÉ,F.1993,p.62.
161
“Iln’apaslecactèred’unmoilibreseparantdel’Être,etnepouvantêtreréconciliéa vecluiqueparla
véracitédivine.”(Id.
Ladécouvertemétaphysiquedel’hommechezDescartes
,1996,p.153).
162
Cf.Id.
AfilosofiadeDescartes
,p.60.
63
uma n ecessidade propriamente racional: devo necessariamente existir se, de fato,
penso. Ora, no momento do
Discurso
, o que interessa mais a Descartes não é o
‘existo’,ou até o‘penso’;éacompreensãodessaverdade universal, dessaligação
necessária segundo a qual não se pode pensar sem existir. O
Discurso
é obra de
lógicoedesábio.
163
.
Nesses termos, a conclusão de Alquié sobre o
cogito
, tal com o apresentado no
Discurso
,parecenãosedistanciaremnadadaquelavelhaconclusãotãodifundidadequeesse
princípio cartesiano seja, na verd ade, um mero dado cienfico: uma simples eq uação
formulada segundo os processosdeterminantes de uma sofisticada mecânica metódica; e m
suma, nada além de um raciocínio lógicomatemático, muito distante, segundo nosso
com entador, daquela intuição primeira das
Meditações
; pois ali, afirma ele, o problema é
completamentediferente:
Éontológico: Descartes procura, comofilósofo, atingir umser. Jánãose trata de
distinguiroverdadeirodofalson o prolongamentonãocriticadodamatemáticao u
dafísica, masdepôremcausaaprópriaciência,interrogandosesobresealgode
real e de existente corresponde às suas noções. [...] o primado em Descartes
pertencerásempre aoSer,enãoaumespíritoqueinformaoSeroudáàscoisasum
sentidodeser.[...]porissoéque,naordemontológica,o
cogito
eo
sum
podeme
devemserprimeiroafirmados[...]oquenaordemdo
Di scurso
,nãosejustificavad e
modo nenhum [...] E as
Meditações
, em vez de utilizarem uma aparência de
raciocínio e de partirem, como no
Discurso
, do
cogito
para o
sum
, suprimem o
‘logo’,eaté,naorige m,oeu penso;àquestãoontológicaquepõem,ologoà
partidaarespostaontológica:‘existo’.
164
.
Embor a,demodogeral,nãodiscordemosdeAlquiéquantoàsuaanáliseppriado
conteúdodas
Meditações
edaformasegundoaqualo
cogito
aíseapresenta,nãopodemos
deixar de notar certo exa gero desse comentador em estabelecer de forma tão gida as
diferenças existentes entre os dois modos de exposição metafísica representados pelo
Discurso
eas
Meditações
.
Além disso, no que se refere, especificamente, ao
cogito
, não podemos crer com
Alquiéque:
O
cogito
das
Meditações
difere, pois, profundamente do
cogito
do
Discurso do
Método
.No
Discurso
,comonas
Regulae
,o
cogito
éumaidéiamaisevidentedoque
asoutras,equeportantolhesservedemodelo.Nas
Meditações
,o
cogito
,ouanteso
sum
,éosujeitoe oserdetodasasidéias.
165
.
163
ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,pp.7475.
164
Ibid.,pp.7677.
165
Ibid.,p.82.
64
Emnossaopinião,umadistinçãotãoradicaldo
cogito
parecenãoencontrarrespaldo
na metafísica cartesiana. O que, realmente pretende Alqu: uma distinção ontológica do
cogito
? Um
cogito
cindido? Há, por acaso, dois
cogitos
: um do
Discurso
e outro das
Meditações
?Até quepontoa tesedeAlquiécorresponde aopensamento deDescartesque
nunca mencionou a mínima distinção de seu princípio em qualquer um a de suas
exposições?
166
. Afinal, em quais termos se dá a distinção existente entre a metafísica do
Discurso
eametafísicadas
Meditações
?
O que nos parece mais evidente diante de todas es sas indagações é que é melhor
mantermososproblemas,quedarlhessoluçõesdemasiadamenteapressadas;po is,parafazer
justiça,nãosedeveesquecerquetodaaanálisefeitaporAlquparasustentarsua teseparte
dametafísicacartesianasobopontodevistadesuaposteridade;isto é,nossocomentadorse
apóia,sobretudo,emumestudocomparadodametafísicad o
Discurso
emrelaçãoàmetafísica
das
Meditações
.Suaanáliseparece,então,anteseprioritariamente,tratarmenosdametafísica
mesmade1637quesituálanocontextodametafísicadas
Meditações
de1641.
Nessestermos,embora,deumlado,nosintimidemosem admitirqueoscomentários
de Alquié visem d eclaradamente a certa desqualificação da metafísica do
Discurso
em si
mesma, de outro, não nos parece razoável negar que haja, de fato, na tese de nosso
com entador  uma primazia metafísica dada às
Meditações
que o deve passar aos nossos
olhossemumacríticabemacentuada.
Sejacomofor,oproblemase impõe.Alquiéparece,naverdade,proporumadistinção
ontológica do
cogito
entre o
Discurso
e as
Me ditações
; o que seria, em nossa opinião,
inadmissível;pois,para nós, o
cogito
de Descartes ésempre idêntico a si mesmo, seja no
Discurso,
nas
Meditações
ounos
Princípios
.Asdiferençasquecaracterizamcadaobrasão,
simplesmente, diferenças de finalidade e jamais constitutivas; e, embora, o
Discurso
não
expresse sua dimensão metafísica nos termos das
Meditações
ou dos
Princípios
, isso não
significa,arigor,queo
cogito
,aí,sejaumameraequaçãomatemáticaouumsimplesdado
cienfico comoparece querer Alquié.Afinal, vale lembrarqu e, entreoutrascoisas, para o
166
Aliás,aocontrário;asduasformasdiferenci adasdo
cogito
–nos
Princípios
eno
Discu rso
:Eupenso,logo
existo”; e, nas
Meditações
: Eu sou, eu existo” , o tomadas por Descartes indiscriminadamente. Como
observaForlin:Nas
Segu ndasrespostas
,Descartesusaafórmulado
Discu rso
paraexplicarqueo
cogito
nas
Meditações
oéaconclusão de umsilogismo.E le chega mesmoaenumeraruma fórmula aoladoda outra
(
Secondes réponses
, AT, IX, p, 110) [...] Na
Carta às instâncias
, ele responde a Gassendi utilizandose
novamentedafórmulado
Discurso
nolugardaqueladas
Meditações
(
Lettresurlesinstances
,AT,IX,p.205).”.
(FORLIN,E.
Ateoriacartesianadaverdade
,2005,p.119,not a2).
65
Discurso
, o
cogito
é, exatamente, aquele ponto fulcral de encontro  do Método co m a
Metafísica;ouseja,éjustamenteo
cogito
no
Discurso
,comojádissemosacima,queinaugura
ametafísicadoMétodo;nessesentido,questionaroestatutometafísicod aposiçãodo
cogito
no
Discurso
,talcomofazAlquié,nosparece,aomenosinicialmente,improcedente.
Emtodocaso,ficapostaaquestão;eseoquemaisnosinteressanessapartedenosso
trabalho,especificamentenestecapítuloe,maisainda,nessaseção,émostraralgunsaspectos
daconstituiçãodo
cogito
,asuaverdadeiraposiçãono
Discurso
equeeleésempreomesmo
cogito
emqualquerquesejaaobranaq ualestejaexposto,parecenospropícioanteciparaqui
aconclusãodeque,definitivamente,o
cogito
,defato,alcaaotermodesuaconstituiçãono
Discurso
. Em tese, independente do modo com o qual Descartes tenha, aí, anunciado seu
princípio,sejademaneirabreveoumesmoimprecisa,oqueanóspareceevidenteéqueelejá
estáinteiramenteestabelecidonaobra de1637.
Portanto,aocontráriodeAlqu,entendemosquenafilosofiacartesiana,o
cogito
no
Discurso
, expressa sua total constituição. Quanto às
Meditações
: nesse sentido, elas não
trazem,emabsoluto,umanovametafísicaemenosaindaumnovo
cogito
;oapenas,como
dirá o próprio Descartes:“[...] uma explicação mais precisa [...]”
167
daquilo que já está
presentenametafísica
Discurso
.
2.2 Sobrealgunsaspectos das“ Meditaçõ es”
As
Meditações
representamumaespéciedesumametafísicadafilosofiacartesiana;o
que, em nenhum sentido significa qualquer desq ualificação da metafísica exposta no
Discurso
.Atravésd elas,Descartes,emnossaopinião,aomenosnoquedizrespeitoao
cogito
,
retomacompletamente ametafísicapresente na quartaparte de seu
Discurso
eoferecenos
como que um considerável aprofundamento daquela, apresentandonos, assim, a total
sistematicidadedesua
primaphilosophia
168
.
167
DESCARTES,R.
Meditaçõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.209.[...]accur atioremexplicati onem[...]”
(Id.
Meditationesd eprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.7).
168
Notar que o fato de as
Meditações
representarem, para nós, uma “suma” ou a “total sistematicidade da
metafísica cartesiana” não quer dizer, a rigor, que a metafísica presente no
Discurso
seja incompleta ou
insuficiente,comoquerAlquiée,comele,grandepartedoscomentadoresdeDescartes.
66
Alguns a spectos arespeitodessa obra, as
Med itações
, nos parecemde fundamental
importânciapara acompreensão de seu conteúdo. Saber de sua especificidade, objetivos e
razões, pode, nesse caso, contribuir amplamente para o entendimento geral das questões
metafísicasdiscutidasporDescartes,dentreasquaisadenossomaiorinteresse:o
cogito
.
2.2.1 –Dasuaespecificidade:anaturezadesuasdificuldades
Descartesp ublicoua s
Meditações
pelaprimeiravezemParisnoanode1641.Otexto,
escrito em latim, apareceu sob o título:
Meditaçõessobre a filosofia primeira em que são
demonstradas a existência de Deus e a imortalidade da alma
169
e se dizia aprovado pela
Sorbonne em resposta a uma
Epístola Dedicaria
170
à Faculdade de Teologia de Paris
seguidadeum
PrefácioaoLeitor
171
,que,porsuavez,erasegu idoporuma
Sinopsedasseis
meditaçõesseguintes
172
,àsquais,apósseutermo,seguiaseainda,quasecomoemformatode
anexo,umconjuntodeseis
ObjeçõeseRespostas
173
que,talcomootítuloindica,setratavade
umtextoco mformulaçõesinterrogativassobreaobra,acompanhadasdasrespostasdoautor.
Na sua segunda edição, distante da primeira pelo espaço apenas de um ano,  as
Meditações
de1642,apareceram,já,comsuasprimeirasmudanças:AaprovaçãodaSorbonne
simplesmentedesapareceu,o local d e publicaçãoda obratransferiusedeParis, naFrança,
para Amsterdã, Holanda; o novo título suprimia o trecho final da primeira edição:
... a
imortalidade da alma
”, substituindoo por
... a distinção entre a alma e o corpo
”
174
e
acrescentouse às
Objeções e Respostas
uma nova série de interrogações, as
Sétimas
Objeções
175
,comasrespectivassoluçõesdoautor.
169
Cf.DESCARTES,R.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,capas.
170
Ibid.,pp.16.Arespostaseencontraem:Ibid.,p.248.
171
Ibid.,pp.711.
172
Ibid.,pp.1216.
173
Ibid.,pp.91447.
174
Cf.Ibid.,capas.
175
Ibid.,pp.449561.
67
Outrastransformaçõessurgiramnaterceira ediçãodaob ra.Ocorridacincoanosapósa
segunda edição, em 1647, as
Meditações
mantiveram, para sempr e, o títulodesta edição e
voltaram a ser publicadas em Paris, na França. Dessa vez, receberam sua primeira versão
francesa,revistaeautorizada,pessoalmente,porDescartes
176
e,estranhamente,tiveramoseu
importante
PrefácioaoLeitor
,presentenaprimeiraesegundaediçõeslatinas,substituídopor
umasimplesnotad’
OLivreiroaoLeitor
177
.
Semnosatermos,demasiadamente,apormenoresirrelevantes,mas,sem,noentanto,
ignorarmosdetalhesimportantes,cabemaquialgumasindagações:Po rquaisrazõesDescartes
dedicariasuaobraàFaculdadedeTeologiadeParis–Sorbonne?Easupostaaprovaçãodetal
Faculd ade,queaparecesomentenaprimeiraedição,aconteceuounão?Porquedesapareceu?
Oquejustificariaumasegundaediçãodaobraemtãopoucoespaçodetempo
178
eporquea
mudançad olocaldeedição:deParisparaAmsterdã?Oqueexplicariaamudançanotítuloda
segundaediçãosemqualqueralteraçãonoconteúdodaobra?Porque,afinal,Descartes,após
terpublicadoseu
Discurso
noanode1637emfrancês
179
,resolveupublicarsuas
Meditações
em latim? Qual é, exatamente, a explicação para o fato de Descartes ter autor izado a
substituição de seu próprio
PrefácioaoLeitor
porumanotad’
OLivreiroao leitor
?Quem
seriaesselivreiro?
É certoque,porhora, nãodamoscontadetodasessasinterrogações;e, talvez,isso
nem seja tão necessário, poisalgumasdelas já são bem conhecidasentre os estudiososde
Descartes; outras, nem tanto. Para a nossa reflexão, bastanos apontarmos alguns aspectos
geraisqueessasquestõeslevantam.
Quando as
Meditações
receberamsuaprimeiraedição, em 1641, Descartes,embora
houvesseadmitido no
Discurso
,quatro anosantes,queobomsenso era acoisadomundo
melhorrepartidaentreoshomens
180
,advertiaagoraqueoescritod eentão–as
Meditações
–
176
Sobreessaafirmação,ver:SANTIAGO,H.Introdução.In:
Meditaçõesmetafísicas
,2005,p.XXXII.
177
Cf.DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.13.
178
O
Discurso
,porexemplo,te vesuasegundaediçãorealizadasomenteseteanosapóssuapri meirapublicação;
e digase, a única modificação diz respeito à versão da obra: foi traduzida do original francês para a versão
latina;istoé,semqualqueralteraçãodenenhumadesuaspartesouconteúdo.
179
Uma atit ude totalmente incomum em seu tempo. De modo geral, as publicações eram sempre escritas e
editadasemlatim.
180
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,pp.12.
68
nãoeraparaserlidoportodos,indiscriminadamente;segundoofilósofo,aosespíritosmais
fracosnãocaberiaingressarnesse debate
181
.
As
Meditações
, portanto, ao contrário do
Discurso
, parecem, desde o primeiro
momento, exigir um grupo seleto de leitores. Por  um lado, enquanto este atestava a
universalidadedoentendimentohumanoesedirigia,simplesmente,atodososhomensque
quisessem “bem conduzir a razão”, fato pelo qual foi publicado em francês
182
; por outro,
aquelas,embora não negassem, emnada,as convicçõesdo
Discurso
, somente pelofatode
teremsidopub licadas emlatim
183
anunciavam jáquesereservavama finsmais restritose
complexosqueaquele.
Na verdade, Descartes recomendava as suas
Meditações
estritamente ao círculo de
“mestresedoutores”deseutempo; oquepodeseratestado,alémdepelofatodea publicação
tersidoemlatim,tantopelopedidodofilósofoaoseuamigoMersenneparaque, antesda
publicãodaobra,enviassepiasdeseumanuscritoaalgunshomensdoutos”paraque
essespudessemjulgarseuvaloreadiantarvidasediscordânciasàsquaisoautorpudesse
dar respo stas e juntálas ao texto inicial
184
; quanto pelo fato de o próprio Descartes ter
dedicado essa mesma obra, o a todos os homens em gera l, mas, explicitamente, aos
“decanosedoutoresdaSorbonne”–amaisprestigiadaUniversidadecatólicadeentão
185
.
Do primeiro pedido, resultou o que conhecemos co mo
Objeções e Respostas
, uma
riedeseisconjuntosdeobjeçõesformuladaspor filósofos,lógicos,teólogosematemáticos,
181
Cf.DESCARTES,R.
Meditaçõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.209.
182
RodisLewis observa que o
Discurso
foiescrito em francês, justamente, porque seendereçava atodos os
homens,incluindoaquelesqued esconheciamolati m:“[...]emoutraspalavras,amaioriadasmulheres,assim
comoa spessoassimpl es,q uenãoestudaramemescolas[...]”(RODISLEWIS,G.
Descartes–umabiografia
,
1996,p.9).
183
SeolatimeraalínguaoficialdaEscolaeDescartespreferiuaa ofrancês,línguamaispopular;aprimeirae
segundaediçõesdas
Meditações
,definitivamente,nãoestavamendereçadasaosincultos.
184
Cf.DESCARTES,R.
Correspondance
.A.T.,III,p.17.
185
No entanto,  é curiosonotarque, embora a dis cussãosedê, estritamente, entre os doutos, o própriotermo
“meditações”,n ãodeixadesercertaprovocaçãoàterminologiacientíficadaépoca;aomesmotempo emque
mostrava proximidade com os “exercícios espirituais” de Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas seus ex
mestres–confrontavaovelhoh ábitoescolardasdisputas”teóricasdosescolásticos.Maisdetalhessobreisso,
ver:COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1993,pp.110111.
69
seguida das respostas do autor e pub licadas juntamente com as
Meditações
de 1641; e
acrescidas,em1642,porocasiãod esuasegundaedição, porumnovoconjunto
186
.
Sobreaimportânciadesseanexodas
Meditações
,Descartesconsideraessaobjeções
umasíntesedetodasaspossíveisdificuldadesquepodemserextraíd asdesuaobrae,porisso,
pede aos seus leitores que o a julguem sem, ante s, terem lido cada uma delas, por ele
respondidas:
[...] muitas e variadas coisas objetaram eles (os autores das
Objeções
), que ouso
esperarosejafácilque,o quequerqueseja,aomenos, dealgumaimportância,
venha à mente de outros de que eles o tenham tratado. Eis por que rogo
insistentementeaosleitoresquenãoformemumjuízosobreas
Meditações
antesde
sedignaremleratéofimtodasessa sobjeçõesesuassoluções.
187
.
Quanto à dedicação da obra aos decanos da Sorbonne, de fato, em todas as suas
edições,as
Meditações
trazem,emsuasprimeirasfolhas,uma
EpístolaDedicatória
quetra ta
de um breve plano geral do conteúdo ali presente e do pedido de aprovação da “Sagrada
Faculd adedeTeologiade Paris”
188
.
O fato de somente a primeira publicação das
Meditações
trazer em sua capa o
imprimatur
dosdecanos da Sorbonnefezacreditar durantemuito tempoqueDescartesnão
186
Cottingha moferecenosumbreveresumodoteorquecaracterizaassete
ObjeçõeseRespostas
:“AsPrimeiras
[...]vemdeJohannesCaterus[...]umpadredeAlkmaar;contêmumasériedecríticasdasprovasoferecidaspor
Descartes para a existência de Deus. As Segundas Objeções, reunidas pelo próprio Mersenne, [ou autores
desconhecidos] levantam uma série de dificuldades, incluindo o problema d o RCULO CARTESIANO; as
respostas de Descartes incluem uma apresentação axiomática de seus argumentos para a existência de Deus,
‘dispostosàmaneira geométrica’[...].AsTerceirasObjeções foramfeitaspelofilósofo[ematemático]in glês
ThomasHobbes,quefugiraparaaFrançapormotivospolíticosem1640;Hobbescritica,entreoutrascoisas,a
teoriada mente apresentada porDescartese suaexplicação para aidéiade Deus. As QuartasObjeções do
pontodevistafilosófico,asmaissofisticadas–foramfeitaspeloteólogoelógicoAntoin eArnauld,quenaépoca
nãocontavaaindatrintaanosdeidade.Alémdelevantarumasériedepontosquepodemcausardificuldad es
aos teólogos’ (entre eles o modo como a explicação cartesiana da matéria talvez represente uma ameaça à
doutrina da transubstanciação [...]), Arnauld apresenta também uma eloqüente crítica sobre a explicação
cartesianaparaadistinçãoentrementeecorpo.OQuintoemaislongoconjuntodeObjeçõesvemdofilósofo
neoepicuristaPierre Gassendi, quelevantaum semnúmero de dificuldades, algumas de grande importância,
outras presas a minudências, relativas a quase todas as etapas de argumentação nas
Meditações
. As Sextas
Objeções compõemse de uma série de pontos d íspares, mais uma vez reunidas por Mersenne [ou autores
desconhecidos]; entre as respostas de De scartes encontramos uma discussão interessante sobre os elementos
fisiológi cos e cognitivos envolvidos na visão [...]. [As Sétimas Objeções foram] feitas pelo jesuíta Pierre
Bourdin, objeções vazadas, na maioria d as vezes, em um tom hostil e, com freqüência, deliberadamente
malicioso.”(COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1993,p.129).
187
DESCARTES, R.
Meditações sobre filosofia primeira
, 2008, p. 215. “[...] multa & varia ab alii s, faltem
alicujusmomenti,veturuminmentem,quodiinondumattigerint.IdeoquerogoetiamatqueetiamLectores,ut
non prius de Meditationibus judicium ferant, quàm o bjec tiones iftas earumque folutiones o mnes perlegere
dignatifi nt.”(Id.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.10).
188
Cf.,porexemplo:Ibid.,pp.1113;ou:DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.48.
70
teriarecebidoaaprovaçãoquepediraequetantoadedicatóriaquantoopedidoerammenosa
sinceridadedeumfilósofoprofundamentereligiosoqueumaarticulaçãosagazdequemsabe
oteoreimpactosquepodemcausarcertasinovaçõesfilosóficas.
Ultimamente, porém, tornouse possívelafirmar, pelo menos no quediz respeito à
aprovação,ounão,daSorbonne
189
,queDescartesnãosóarecebeu,
[...]comohaviainteiracoerênciaentreaobraeasolicitaçãoàuniversidade,poisq ue
as
Meditações
verdadeiramenteintentavamlançarasbasesdeumnovosistemade
saberparatodo o mundocristianizadoe, paratanto,eraincontornávelotratocom
temas contíguos aos da teologia, ciência em que a Universidade de Paris tinha
máximaautoridade.
190
.
Porfim,sobreasubstituição,naediçãofrancesade1647,do
PrefácioaoLeitor
pela
nota
d’OLivreiroaoLeitor
,essaéumaquestãoqu emuitonosintriga;pois,aprincípio,éno
mínimomuitoestranhoqueDescartestenhapreferidoeautorizadoasubstitu içãodeumtexto
seu por um texto de uma segunda pessoa; para não dizer do importante conteúdo desse
Prefácio
:tratasedeumaapresentaçãogeraldasjustificativaspelasquaisofilósoforesolveu
escreveraobrapr efaciada.Partindodebrevesrespostasaalgumascríticasfeitasao
Discurso
,
ali, os objetivos das
Med itações
aparecem com uma clareza sem igual em qualquer ou tra
parte.
No que diz respeito propriamente à nota
d’O Livreiro ao  Leitor
, mesmo que seja
possívelafirmar,comofazS antiago
191
partindodassemelhançasdasobservaçõescartesianas
com  as q ue aparecem nessa nota, que Descartes certamente teria, ao menos, indicado ao
livreiro,q ueAdam
192
identificacomosendoPierreLePetit,oquedeveriaserditoaoleitor,
aindaassim,permanecemintrigantes,anós,asverdadeiras razõespelasquaisofilósofoteria
consentidoemtalsubstituição.
189
Cf.AMORGATHE, J.R. L’approbation des
Meditationes
parl a Facultéde théolo gie de Paris (1641). In:
BulletincartésienneXXI
,Archivesdephilosophie,57,1,1994.
190
SANTIAGO,H. Introdu ção. In:
Meditaçõesmetafísicas
,2005, p.X.Emnota,Santiago aindaafirma:Em
primeirode agostode1640aassembléiauniversitáriarecebeuaobradeDescartes edesignouumacomissão
paraavaliála;nas essãoseguintedamesmaassembléia,todasasdispo siçõesdasessãoanteriorsãoditas‘lidase
aprovadas’, o quedá a entender que a página de rostoda primeira edição das
Meditações
estava correta ao
afirmareanunci araobra
cum...approbationeDoctorum
,ouseja,otextocontavacomaaprovaçãodosd outores
daFaculdadedeTeologiadeP aris.”.(Ibid.,nota1).
191
Ibid.,p.17,nota20.
192
ADAM,C.In:DESCARTE S,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.1,notaa.
71
Como querquetenhasido,oquenosparecerazoávelconcluir,nessesentido,é queas
Meditações
compõemumaobradeabordagemdifícil.Se,dosimplespontodevistadealguns
de seus aspectos mais gerais, pudemos já perceber algumas dificuldades quase
intranspo níveis,oquenosreservariaseuconteúdopropriamentemed itativo?
Não falamos, portanto, de uma dificuldade, aceita consensualmente, nos termos
própriosdaFilosofia em geralouda filosofia,especificamente, cartesiana;definitivamente,
nãosetratadasdificuldadescomasquaisos“doutos”estãoacostumadosalidar.Falamosde
uma dificuldade sutil, inerente a um ato, propriamente, m editativo: solid ão, atenção,
dedicação, paciência, envolvimento pessoal, despojamento dos sentidos e de opiniões já
solidamenteestabelecidasetc.
É, certamente, por dificuld ades dessa natur eza e não por meras disputas” ou
conjecturas teóricas que Descartes, tão insistentemente, restringe o blico ao qual estão
destinadasassuas
Meditações
;aosleitoresdessaobra,seuautorexigemaisqueumaerudição
vaidosae,nessesentido,afirma:
[...] não espero nenhumaplauso do vulgoenenhumafreqüência deleitores.Mais
ainda,nãoinstoningmaquemeleia,anãosersomenteosq uepossamequeiram
meditarseriamentecomigo,afastarsuamentedossentidose,aomesmotempo,de
todos ospreconceitos, osquais, bem osei, seencontram emumpequeníssimo
número.
193
.
2.2.2Dosseusobjetivoserazões:asq uestõesdeDeus,damentehumanaeosiníciosde
todaafilo sofiaprimeira
Precavido s, pois, sobreasreaisdificuldades e exigência s das
Med itações
, restanos
indagarsobreosseusobjetivoserazões.Or a,seo
Discurso
de1637jácontém,nasuaquarta
parte,talcomoafirmaopróprioDescartes,osfundamentosdesuametafísica,quaissejam,as
193
DESCARTES,R.
Meditaçõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.213.[...]feditautnullumvul|giplaufum,
nullamqueLectorumfrequentiamexpectem:quinetiamnullisauthorfumuthaeclegant,nifitantùmi isquiferiò
mecum meditari, mentemquea fefibus, fimulqueab omnibus praejuciciis, abducerepoterunt ac volent quales
nonnifiadmodumpaucosreperirifatisfcio.”(Id.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.9).Num a
outra tradução: [...] sou autor para ser lido apenas por aqueles que possam e queiram meditar seriamente
comigo e afastar a mentedos sentidos e simultaneamente detodos o s prejuízos,e bem sei que esseso se
encontramsenão empequeno número.”. (Id. Prefácio aoleitor.In:
Meditaçõesmetafísicas
, 200 5, pp. 1516).
Admitindose, então, que a meditão não é um ato estritamente intelectual resta, saber o que, exatamente,
Descartesexigedeseuleitorparaqueestepossameditarseriamente”;emoutras palavras,aperguntaquese
impõe:oqueéafinalparaDescartes“meditarseriamente”?
72
questõesdeDeusedaalmahumana
194
,oqu e,exatamente,justificaria,q uatroanosmaistarde,
em 1641, a publicação de um pequeno tratado de Metafísica”?
195
. O que pretenderia,
realmente, esse tratado: corrigir algum fundamento metafísico já proposto no
Discurso
,
aprofundarasuaexposiçãometafísicaouacrescentarlhealgunselemento sque,porventura,
tenhamsidoignorados?
Embor a essas q ueses não mereçam rápid as soluções e despertem respostas
diferenciadasentreosestudiososdeDescartes
196
,oquenosparece,aprincípio,maisevident e
éque, emnen hummomento,comojávimos,as
Meditações
representam, metafisicamente,
qualqu erespéciedecorreçãoouacréscimotemáticoao
Discurso
;emnossaopinião,elassão,
sobr etudo e ap enas, um  aprofundamento das questões metafísicas tratadas na quartaparte
daquele.
Nãosetrata,emabsoluto,dem inimizaraquiaimportânciadas
Meditações
ou super
qualificar a posição do
Discurso
, ignorando assim certas diferenças entre ambas as obras;
tratase,somente,denegarcertainterpretaçãofrequentementeaceitadequeametafísicado
Discurso
seja incompleta ou insuficiente, sobretudo quando posta em relação à exposição
metafísicadas
Meditações
197
.Emtese,asdiferençasexistentesentreametafísicado
Discurso
edas
Meditações
,definitivamente,nãosed ãoemtermo s,propriamente,metafísicos.
Em nossa opinião, só se pode falar, razoavelmente, d e uma diferea considerável
entreambasasobrasseadmitirmos,antes,quetaldiferençaéestritame ntefuncional;deoutro
modo,cer tamente,seestar iaaplicandoàmetafísicacartesianaumadistinçãoquenãoencontra
omínimodecorrespondênciaemtodaafilosofiaque acompreende.
194
Cf.DESCARTES,R.
Discoursdel amethode
,A.T.,VI,p.1.
195
Designação feita por Descartes às
Meditações
, por ocasião de seu pedido a Mersenne para fazer a obra
circular,antesdesuapublicaçã o,nasmãosdealgun spossíveisobjetores.Cf.Id.
Correspondan ce
,A.T.,III,p.
17.
196
Seretomarmosaseção2 .1destecapítulo,porexemplo,perceberemosclaramenteaposiçãodeAlquiéaesse
respeito.Segundoesseautor,Descartes,nas
Meditações
,nãosóaprofundaasqu estõesmet afísicasdo
Discurso
,
comotambémlheacrescentaalgunselementosaíignorados,taiscomo:avidaeo
cogito
qu e,emboraestejam
presentesno
Discurso
,segundoAlquié,nãooestão,metafisicamente.Cf.,nestecapítulo,fls.5265.
197
Jáidentificamos,acima,essainterpretãoemAlquié.Nossocomentadorchegaaopont odeafirmarque,para
compreendermosaoriginalidadedametafísicadeDescartes,énosprecisopartirdopressupostobá sicodeque
ela se rele va plenamente à altura das
Meditações
e a compararmos com a quartaparte do
Discurso
para,
enfim,avaliarmosoprogressorealizadoentre1637e1641.Cf.ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,p.
273.Em nossaopinião,anoçãod e“progresso”paradesignaraposiçãometafísicadas
Medit ações
emrelaçãoao
Discurso
,semostracompletamentei nadequada.Sobreisso,verimediatamenteadiante.
73
E,aindaassim,valearessalvadequemesmoessadiferençaemtermosfuncionaisnão
devesertomadadefor mamuitorígida,vistoqueachavedeleituraqueDescartespareceter
nosfornecidoparaadevidacompreensãodaespecificidadedesua sexposiçõesmetafísicas,
nessecasoemparticular,o
Discurso
eas
Meditações
,étãoelementarecomumàmetodologia
geral cartesiana que se torna facilmente questionável o próprio termo “diferença” para
designaraparticularidadedecadaexposição;istoé, seconsiderarmososimplesfatodeque
cadaexposição metafísicadeDescartesé,comumente,precedidaporumresumo,prefácioou
dedicatóriaqueseencarregadeapresentarnos,ordenadamente,seusobjetivos–diversosde
acordocomcadaexposição
198
–veremos,semdificuldades,queeles,essesobjetivos,seriam,
sozinhos,suficientesparadarcontadejustificarcomclarezaaespe cificidadedecadaumade
suasexposições.
Nesse caso, então, importanos menos investigar sobre essas supostas “diferenças”
metafísicas existentes entre o
Discurso
e as
Meditações
, que saber quais são os seus
respectivosobjetivos.
De modo bastante generalizado, enquanto o
Discurso
objetiva não ensinar, mas
somente discutir o conteúdo que ele apresenta
199
, as
Meditações
, ao contrário, pretendem
evitar discussõessobre seuconteúdo paraensinálo àqueles que saibam e queiram meditá
lo
200
; por isso, se, de um lado, o
Discurso
, para realizar seu objetivo, apresenta os
fundamentosmetafísicosdeseuautoremfor made“certasdosesdemetafísica”
201
e,deoutro,
as
Meditações
, pelo mesmo motivo, apresentam esses fundamentos em formato de “um
pequeno tratado de Metafísica”
202
, é somente porque o objetivo do
Discurso
está voltado
diretamenteainterlocutoresquenãotenhammaisquecertasnoçõesmetafísicas;aopassoque
odas
Meditações
nãoadmiteaquelesquenãosejamverdadeirosmeditadoresdessavia.Desse
modo,sãodiferençasdeobjetivoseodeconteúdosqueparecemvigor arnessecaso.
198
O
Discurso
éprecedido,nooriginal,porumbreveresumonãotitulado.Cf.DESCARTES,R.
Discoursdela
methode
,A.T.,VI,p.1.Jáas
Meditações
,poruma
EpístolaDedicatória
,um
PrefácioaoLeitor
e/ouumnotad’
OlivreiroaoLeito r
,juntamentecomuma
Sinop se dasSeisMeditaçõesseguintes
.Cf.,nestecapítulo,iníciodesta
seção,fls.6667;ouainda:DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.112.Os
Princípios
,
porsuavez,tambéméprecedidoporuma
EpistolaDedicatória
e/ouuma
Cartad oautoràquelequetraduziuo
livro
.Cf.Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,pp.123.
199
Cf.Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.1.
200
Cf.,nestecapítulo,finaldasubseçãoanterior,fl.71.
201
Cf.DESCARTES,R.
Correspondance
,A.T.,I,p.349.
202
Cf.Id.
Correspondance
,A.T.,III,p.17.
74
Desse modo, explicase, para nós, grande parte da especificidade que caracteriza a
metafísica do
Discurso
e a metafísica das
Meditações
. No tese que se há a passagem do
conteúdo apresentado para ser discutido
Discurso
– ao conteúdo apresentado para ser
ensinado
Meditações
–;bemcomoapassagemde“certasdosesdemetafísica”–o
Discurso
–paraum“p equenotratadodemetafísica”–as
Meditações
e,ainda,aclaradefiniçãodos
leitoresdecadaobra:deumlado,interlocutores,e,deoutro,meditadores.
Tudoisso  ressaltaapenasqueas“diferenças”entreumaexposiçãoeoutrasãonada
maisque determinaçõesdeseusdiferentesobjetivos;ouseja,nãohá,aí,exatamente,qualquer
indício de que haja “progresso” entre uma obra e outra; isto é, não há, definitivame nte,
diferençaspropriamentemetafísicasentreambasasobras.
Portanto,insistimos:aespecificidadedecadaexposiçãometafísicaqueDescartesnos
ofereceuéresultadomaisdasdiferençasnaordemdosobjetivosdecadaobraquenaordem 
de seus respectivos conteúdos; logo,
Discurso
e
Meditações
representam, cada qual,
indiscriminadamente, a única e mesma metafísica cartesiana. Se, ainda assim, haja quem
insistaemmantercertadistinçãonointeriordessametafísica,que,aomenos,nãoseengane
porcompleto:taldistinçãodefatoexiste,masémeramentefuncional.
Todavia, não nos é dado negar uma séria dificuldade que essa tese nos traz: Se
afirmamosqueametafísicadas
Meditaçõ es
é,estritamente,umaprofundamentodaquelado
Discurso
enegamos, categoricamente,que ela lhesejaum acréscimo e, menosainda, uma
correção;eaindadissemosqueassupostas“diferenças”queháentreambas são,somente,da
ordemdeseusobjetivos;quaisseriam,exatamente,então,asrazõespelasquaisosobjetivos
das
Meditações
se sustentam? Em outras palavras, se a metafísica das
Meditações
não
representa“progresso”algum emrelação àmetafísicado
Discurso
,que, nesse caso,então,
não é incomp leta e, tampouco, requer correção, o que, afinal, justifica a metafísica das
Meditações
?Ouainda,em tommaisradical:Seo
Discurso
jácontempla,aomenosnoquese
refere ao nosso objeto de estudo, o
cogito
, a totalidade da metafísica cartesiana, por que,
afinal,as
MeditaçõesMetafísicas
?
203
.
A questão é, sem vida, muito d ifícil e, certamente, extrapolaos termos de nossa
análise;porém,oimportante
PrefácioaoLeitor
queap arecenaprimeiraesegundaediçãodas
Meditações
,respectivamenteem1641e1642,eque,estranhamente,jádissemos,nãoaparece
203
Aquestãoésaberp orque,aoinsdeto marmosametafísicadas
Meditações
comouma“outrametafísica
possível”,insistimosemligála à metafísica do
Discurso
comosendoumaprofundamentoseu.Senão é para
acrescentaroucorrigir,qualosentidoexatodesseaprofundamento?
75
naediçãofrancesade1647,parececumprir,deformabastantefácil,opapeldesolucionador
desseproblema.
Aí, Descartes apresentanos, claramente, as três principais razões de seus objetivos
com  as
Meditações
; e, dessa forma, acreditamos justificar, perfeitamente, o caráter de
aprofundamentoqueconcluímospertenceràmetafísicadessaobra.
Asduasprimeirasrazõesqueofilósofonoso ferecetratamdasquestõesdeDeuseda
mente humana. Descartes justifica ter tocado nessas questões, em seu
Discurso
, de for ma
muitoabreviadaenãomuito precisa,paraqueapr endessedepois,comojuízodeseu sleitores,
comodeveriamelhortratálasemoutraocasião.Diz:
De modo breve, já tratei anteriormente das questões sobre Deus e sobre a mente
humana,n o
Discursosobreométodoparadirigirretamentearazãoeinvestigara
verdadenasciências
,editadoemfrancês,em1637,não,abemdizer,paraofazer
emtermosprecisos,masparadelasoferecerumaprelibaçãoeparaaprender,apartir
dojuízodosleitores,omodocomoteriadeemseguidadelastratar.
204
.
Aterceirarazãoqueofilósofonosapresent a dizrespeitoaosiníciosdetodaafilosofia
primeira:Agora,dizele,
[...]depoisdetertidoumavezaexperiênciadojuízodoshomens,tentotrataraqui
denovodasmesmasquestõessobreDeuseamentehumanae,ao mesmotempo,
dosiníciosdetodaaFilosofiaPrimeira.
205
.
Em carta ao amigo Mersenne, Descartesre força eesclarece ainda mais essa última
razão.Eledizq ue:“[...]adiscussão[das
Meditações
]nãoseconfinaaDeuseàmente,mas
tratadetodasascoisasprimeirasaseremdescobertaspelafilosofia.”
206
.
As questões de Deus, da mente humana e dos inícios de toda a filosofia primeira
constituem, pois, as razões principais pelas quais se fundamentam todos os objetivos das
Meditações
.
204
DESCARTES,R.
Medit açõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.209.“QuaeftionesdeDeo&mentehumanâ
jamantepaucisattigiin
DiffertationedeMethodorecteregendaerationiseveritatisinfcientiisinveftigandae
,
galliceeditâannode1637,nonquidemutipfasibiaccuratetractarem,fedtanmutdelibarem,&exl ectorum
judiciisaddifceremquârationepofteaeffenttractandae.”(Id.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.
7).
205
Id.
Medit açõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.213.[...]poftquamhominiumjudiciafemelutcunquefum
expertus,iterumhîcaggredioreafdemdeDeo&mentehumanâquaeftiones,fimulquetotiusprimaePhilofophiae
initiatractare[... ]”(Id.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.9).
206
Id.
Correspon dance
,A. T.,III, p.235.
76
Notese que é na metafísica do
Discurso
, e não “noutra” metafísica possível, que
Descartesvaibuscarcadaumadessasquestões
207
;ouseja,nãoset ratadaintroduçãodenovos
elementos metafísicos, mas, ao contrário, de uma retomada de temas já conhecidos e
trabalhados,anteriormente,pelofilósofo.
OutroaspectoquedeveserressaltadodizrespeitoàjustificativadadaporDescartesao
fatodeessasqu estõesteremsidotra tadas,no
Discurso
,deformatãobreveeimprecisa
208
:o
filósofodeixatranspar ecerumtompremeditado,quaseduvidoso,querendofazerentenderque
abrevidadeeimprecisãodametafísicado
Discurso
seriam,nãosomente,recursosestilísticos
eestratégicosdaobra,masqueconteriampropósitosbemdefinidos:cumpririamod esígnio
bastantemodestodeapenasadiantaralgosobreaquelasquestõesparaque,apartirdojuízo
dosleitores,pudesseaprenderdequemododeveriatratálasdepois,emoutraocasião
209
.
Adespeitodavalidadedessajustificativa,podemosnotar,maisumavez,quenenhum
dessesargumentosfaz,sequer,amínimareferênciaaofatodequeas
Meditações
representam,
quaisquer que sejam, ou “progresso”, acréscimos, correções ou mesmo mod ificações na
metafísica do
Discurso
; ao contrário, tudo isso, levanos a perceber, com exatidão, os
verdadeiros motivos pelos quais tomamos a metafísica das
Meditações
, em termos
específicos, como umsimples“aprofundamento” da metafísicapresenteno
Discurso
. São,
portanto,osprópriosargumentosdeDescar tes,quenosco nvencemdessatese.
E,nessesentido,dadoqueperguntarp elasrazões,atravésdasquaisametafísicadas
Meditações
éestabelecidaco moumaprofundamentodasquestõestratadasnametafísicado
Discurso
é o mesmo que perguntar pelo significado específico desse aprofundamento no
interior das
Meditações
, afirmamosque, do sentidomaisorigináriodesseaprofundamento,
sobr essaem,aomenos,doisimportantesaspectosquepodem,certamente,nomínimo,clarear
aquestão:eleé tanto arealização de umaexpectativa que Descartes, supostamente, trazia
desdeametafísicado
Discurso
,quantoumnovo“caminho”deexplicaçãodasquestõesali
tratadas.
207
Notarostermos:
trateianteriormente
dasquestõessobreDeusesobrea mentehumana”etentotratar
aqui
denovo
das
mesmasquestões
”.Grifosnossos.
208
Notarostermos:“
Demodobreve
,játrateianteriormentedasquestõessobreDeusesobreamentehumana”e
“não,abemdizer,paraofazer
emtermosprecisos
”.Grifosnossos.
209
Nas
Meditações
.
77
Quantoaoprimeiroaspecto,bastanosretomarajustificativadeDescartesaoexplicar
porqueo
Discurso
eratãoconcisonotratamentodasquestõesmetafísicas,ondeeledizque
suapretensão,ali,erasomenteadiantaralgodessasquestõesparaque,apósojuízodeseus
leitores, aprendesse de que modo haveria de tratálas depois. Essa suposta expectativa do
jzodeseusleitoresafimdeaprenderummodoparatratarasquestõesmetafísicasencontra
sua completasatisfação, então, na mesmamedida em que esse aprofundamento metafísico
operadopelas
Meditações
representanãoumprogresso,mas,justamente,esseoutromodode
tratamento daquelasquestõesmetafísicas.
E,quantoaosegundoaspecto,naverdade,indicativodoprimeiro,opróprioDescartes
declara que as questões metafísicas tratadasno
Discurso
lhe pareciam tão importantes que
deveriamsertratadasmaisumavezsobumanovo“caminho”deexplicação.Diz:
Pois,  (as questões metafísicas tratadas no
Discurso
) pareceramme de uma
importância tal que julguei necessário agendálas mais de uma vez. E, para as
explicar,sigoumcaminhotãopoucopraticad oetãodistantedousocomumquenão
estimeifosseútilensinálomaisamplamente[...]
210
.
Desse mo do, o significado mais eleme ntar desse aprofundamento metafísico
representado pelas
Meditações
dizrespeito,precisamente,  ao estabelecimento deumanova
ordemdeabordagemmetafísicae não,exatamente,deuma“novametafísica”comoparece
sugerirAlqu;tratase,enfim,comoqueropróprioDescartesenãonoscansamosderepetir:
simplesmente de “[...] uma explicação mais precisa [...]”
211
acerca de sua met afísica do
Discurso
.
Em termosmaisprecisos, tratasedoestabelecimentodeumaabordagemmetafísica
que é propriamente med itativa e que, certamente, não deve ser confundida com aquela
abordagem dissertativa própria do
Discurso
e nem ser tomada, a r igor, como um novo
conteúdometafísicopropostoporDescartes
212
.
210
DESCARTES,R.
Meditaçõessobrefilosofiaprimeira
,2008,p.209.“Tantienimmomentimihivifaefunt,ut
plusunâvicedeipfisadndumeffejudicarem;viamquefequoradmunitamremotamutnonutileputarimipfam
ingallico[...]”(Id.
Meditationesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII,I,p.7).
211
Id.
Meditações sobre filosofia primeira
, 20 08, p. 209. “[...] accuratiorem explicationem [...]” (Id.
Meditationesdeprimaphilofoph ia
,A.T.,VII,I,p.7).
212
Para esclarecer, enfim, que as diferenças entre a metafísica do
Discurso
e das
Meditações
são,
exclusivamente, da ordem de seus objetivos, poderíamos mesmo nos apropriar da expressão “abordagem
meditativa da metafísica” para fazer referência às
Meditações
e propor uma abordagem dissertativa da
metafísica” para designar o
Discurso
. Comparar esses dois gêneros de exposição facilitaria a análise da
78
Em suma, as
Meditações Metafísicas
não seriam, em ú ltima análise, ju stamente a
metafísicado
Discurso
med itada?
especificidadede cadauma dessas obras e, certa mente, nessecaso, estaríamoslivres do riscode incorrer em
errostãosutis,pom,tãogravementecomprometedores.
PARTEII
NOTASSOBREUMASUPOSTAEQUIVOCIDADEDO
COGITO
CAPÍTULOI
DO
COGITO
ENQUANTOCERTEZADAEXISTÊNCIADAMENTE
O presente capí tulo inaugura a segunda parte de nossa pesquisa; colocanos em
contato direto com o início da primeira parte da
Meditação Segunda
, referencial teórico
básico de todo o nosso trabalho; e, apresentanos uma reflexão  geral acerca do
cogito
enquantocertezadaexistênciadamente.Emtermosmaisprecisos,defendemosqueo
cogito
é,sobr etudo,umacertezadarealidadeequeessacerteza,emborasejapossivelmentelógica,
é,antes,intuitivaeequívoca.
1.1 Sobreamentehumana:dacertezadesuaexistênciaedacaracterizaçãodessacerteza
Parece unanimidade entre os estudiosos de Descartes que a metafísica cartesiana
caracterizase, fundamentalmente, por três conceitos principais: a dúvida, o
cog ito
e Deus.
Aliás, esses três conceitos indicariam não somente o núcleo fundamental da filosofia
metafísica de Descartes como também o itinerário cronológico pelo qual o filósofo teria
desenvolvidotodaasua
primaphilosophia
.
Nessesentido,Bréhierafirma:
NastrêsexposiçõesacercadametafísicaqueDescartesdeuaopúblico(
Disco urs,
IV
parte;
Méditations
e
Principes
, livro I), seguiu sempre a mesma ordem: a vida
sobreaexistênciadascoisasmateriaisesobreacertezadasmatemáticas,averd ade
inabaláveldo
Penso,logoexisto
,ademonst raçãodaexistênciad eDeus,agarantia
que essa existênci a dá a nossos juízos, fundados em idéias claras e distintas, as
certezas que daí resultam, acerca da essênci a da alma, que é o pensamento, da
essênciadocorpo,qu eéaext ensão,edaexistênciadascoisasmateriais.
213
.
Namesmad ireçãodeBréhierestáAlquiéquandodiz:ora,
213
BRÉHIER,E.
Históriadafilosofia
,tomosegundo,livroprimeiro,1977,p.66.
81
[...]todosconhecemaordemcartesiana,quesevaiencontrando,igualasiprópria,
no
Discurso
, nas
Meditações
, nos
Princípios
: duvido, sei que duvido e, por
conseqüência, penso e existo, sei que Deus é, e que o pode enganar, e que
portanto posso fundament ar uma ciência do mundo nas idéias claras e, p or fim,
retirardessaciênciaasaplicaçõ estécnicasquemetornarãosenhordaNatureza.
214
.
E também Beyssade concorda com Alquié e Bréhier: em Descartes, diz ele, A
filosofiapr imeiraoumetafísicaéumahistóriaemtrêsepisód ios:Duvido;penso,logoexisto;
Deusexiste.”
215
.
De acordo com essescomentadores, portanto, o tríplice m ovimentode Descartes: o
estabelecimentodavidametódica,adescobertado
cogito
eafundamentaçãodaexistência
deDeus,constitu iporexcelênciaacaracterizaçãodametafísicacartesiana.
Aomenosnoquedizrespeitoao
cogito
eaDeus,essaposição,é,emnossoentender,
dificilmentecontestável;pois,nosmesmostermos,oprópriofilósofohavia,no
Discurso
e
no
Prefácio ao Leitor
das
Med itações
,indicado de forma extremamenteclara e precisa os
fundamentosmaisevidentesdesuametafísica
216
.
Adespeitodamedidaexataquecadaumdesseselementosrepresentanacomposição
da metafísica cartesiana, nós, que não pretendemos uma leitura propriamente constitutiva
dessametafís ica,massomenteaanálisedeumde seustermos,o
cogito
,restringimos,apartir
daqui, toda a nossa discussão: cuidaremos, exclusivamente,  da questão da mente humana.
Concentrarnosemos,sobretudo,na
MeditaçãoSegunda
:
DaNaturezado EspíritohumanE
qu eeleémaisfácildeconhecerqu eoCorpo
217
,especificamenteemsuaprimeiraparte:
Da
NaturezadoEspíritoHumano
,onde,emnossaopinião,seencontra,em ntese,aexposição
214
ALQUIÉ,F.
AfilosofiadeDescartes
,1993,p.07.
215
BEYSSADE,J.M.In:CHATELÊT,F.
Históriadafilosofia– idéiasedoutrinas
,1974,V.3,p.94.
216
No
Discurso
,DescartesdizqueosfundamentosmetafísicosdeseuMétodosãoDeuseaalmahumana.Cf.
DESCARTES, R.
Discours delamethode
, A. T., VI,p.1. No
Prefácio ao  Leitor
das
Meditações
o filósofo
afirmaqueseuobjetivo aíétratar,novamente,dasquestõesdeDeusedamentehumana,bemcomo,a omesmo
tempo,dosiníciosdetodafilosofiaprimeira.Cf.Id.
Meditatio nesdeprimaphilofophia
,A.T.,VII, I,p.9.Os
termos “alma humana” do
Discurso
e mente humana” das
Meditações
m aqui, ao menos inicialmente, o
mesmosignificado.
217
Cf.Id.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.18.Otermofrancês
Espirit
equivaleaotermolatino
Mens
.
De modo geral, em Descartes, os termos espírito”, “eu”, “ alma” e “ mente” se equivalem.  Sobre isso, cf.
COTTINGHAM,J.
Afiloso fiadeDesca rtes
,1989,p.151.
82
mais aprofundada acerca daquilo que Descartes nos deixou a respeito de seu
cogito
: esse
princípioenquantocertezaenaturezadamentehumana
218
.
1.2 Sobreo“cogitoenquantocertezadaexistênciadamente
Ao iniciar sua
Meditação Segunda
, Descartes, ainda tomado pela radicalidade
angustiantedadúvidainstauradapelameditaçãoanterior
219
,revelanosabertamenteo estado
geral de drama no qual se encontra sua alma: “[...] e, como se, subitamente, tivesse caído
numaáguamu itoprofunda,estoudetalfor masurpreso,quenãopossonemfixarmeuspésno
fundo,nemnadarparamesustentaracima.”
220
.
A despeito do tom, demasiadamente psicologizante,  não parece, entretanto, um
despropósito total sugerir que a aplicação metódica da dúvida tenha, de fato, condu zido
Descartesaumasituaçãoespecialmentedramática;pois,comosenãobastassee starco mo 
espírito cheio de dúvidas, o fisofo diz, antes do auxílio da metáfora, sentirse
completamenteincapazdeesquecêlasoumesmosanálas
221
.Emúltimaanálise,aimpressão
queficafortepara oleitoréquesetratadeumverdadeirotormentovividopeloautor.
Todavia, mesmo envolvido por esse impasse perturbador, Descartes mantém,
resolut amente,o objetivopeloqualadúvida foioostensivamenteempregadana
Meditação
Primeira
,asaber:“[...]desfazermedetodasasopiniõesaqueatéagoraaceitaraemminha
crençaecomeçartudod enovodesdeosfundamentos[...]”
222
.
O drama vivenciado pelo meditador, portanto, não se mostra maior que a sua
deter minação em encontrar a certeza quebusca;ele não se deixa abater e, por isso, segue
218
Aanálisedo
cogito
enquantonaturezadamentefoireservadaparaopróximocapítulo.
219
MeditaçãoPrimeira
.Essameditação temafunçãodeestabelecereestimularadúvid a.Seutítulodefine,com
precisão, seu propósito:
Das coisas que se podem colocar em dúvida
. Cf. DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.1318.
220
“[...]&commefi|toutàcoupi’eftoistombédansvneeautresprofond e,iefistellementfurpris,queiene
puisnyaffeurermespiedsdanslefond,nynagerpourmefouteniraudeffus.”(Ibid.,p.18,traduçãonossa).
221
Cf.Ibid.
222
DESCARTES, R.
Meditaçõesmetafísicas
,2005, p. 29.“[...]mede fairedetoutes les opinionsquei’auois
receüesiufquesalorsenmacreance,& commencertoutdenouueaudésles fondemens[...]”(Id.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.13).
83
convicto e predisposto a u tilizar o recursodadúvida, levandoa, se necessário, às últim as
conseqüências:ouatéencontraralgoquesejaindiscutivelmenteindubitável,ou ,pelom enos,
dizele:“[...] senãopuderoutracoisa,atéquetenhaaprendidocertamentequenãohánadano
mundodecerto.”
223
.
Inicialmente,aspretensõesdomeditadorsãobemotimistas.Pois,se:
Arquimedes, para tirar o Globo terrestre de sua posição e transportálo para um
outrolugar,nã opedianadamaisqueumpontoquefossefixoeestável.Assim,terei
direitodeconceberaltasesperanças,seeuforbastantefelizparaencontrarsomente
umacoisaquesejacertaeindubitável.
224
.
Dessemodo,enquanto,deumlado,omeditadorsevêtomadoporumaimplacáve le
angustiante dúvida, de outro, certa dose de otimismo e confiança parece servirlhe de
incentivoparaarealizaçãodeseupropósito:aconquistadeumacerteza.
Em meio aessadivisãointeriorq ueperpassatodoo  inícioda
MeditaçãoSegunda
,
Descartesparecesentiranecessidadedemanterfortementepresenteo nexodesuasrazões;
poressemotivo,oferecenosumarápidaredescriçãoda
MeditaçãoPrimeira
atravésdeuma
retomada,emsíntese,dasconcluesàsquais,ali,chegou:
[...]todasascoisasqueeuvejosãofalsas;eumepersuadoquenadajamaisexistiu
de tudo o que minha memória repleta de mentiras me representa; penso não ter
nenhumdossentidos;eucreioqueocorpo, afi gura,aextensão,omovimentoe o
lugarnãosãomaisqueficçõesdomeuespírito.
225
.
Esseinventáriocéticodo filósofo,nãocabeanós,aqui,questionálo,poisasrazões
segundoasquaisDescarteschegouacadaumadessasconclusõesencontramseencerradase
detalhadamente desenvolvidas na
Meditação  Primeira
. A nós, que concentramos nosso
interesse, exclusivamente, na
Meditação Segunda
, importa menos saber sobre o processo
lógico de formulação geral d oqualessas conclusões derivam que, simplesmente, tomálas
comopressupostosjá definitivamenteestabelecid os.
223
“[...]fiienepuisautrechofe,iufqu’àcequei’ayeapriscertainement,q u’iln’yarienaumondedecertain.”
(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
224
“Archimedes, pourtirerleGlobe terreftre defaplace&letranfporterenvnautre lieu,nedemandoitrien
qu’vnpointquifuftfixe&affuré.Ainfyi’auraydroitdeconceuoirdehautesefperances,fiiefuisaffezheureux
pourtrouuerfeulementvnechofequifoitcertaine&indubitable.”(Ibid.).
225
“[...]toutesleschofesqueie voy fontfauffes;iemeperfuadequerienn’aiamais eftéde tou t ceque ma
memoire remplie de menfonges me reprefente; ie penfe n’auoir aucun fens; ie croy que le cor ps, la figure,
l’étenduë,lemouuement&lelieunefontq uedesfictionsdemonefprit.”(Ibid.).
84
Nesses termos, a interrogação do  filósofo qu e segue imediatamente essa descrição
conclusiva parece imporse com maior relevância: “O que, então, poderá ser considerado
verdadeiro?”
226
.
EssaindagaçãodeDescartesrepresenta,emnossaopinião,ummomentodecisivono
desenvolvimento da
MeditaçãoSegunda
:alémde pôrumtermodefinitivoàargumentação
própria da meditação anterior , queparece ter se arrastado por todoo início da
Med itação 
Segunda
,éelaque,comisso,inaugura,p articularmente,ostermosprópriosdessameditação.
“Oquepoderáserconsideradoverdadeiro?”é,portanto,omarcodivisordeumameditaçãoe
outra:aofinaldaprimeira,nãorestou,absolutamente,nadaanãoseradúvida:algumacoisa
poderáserverdad eira?;noiníciodasegunda,oanúnciodeseugrandeproblema,aafirmação
dabusca:haveráalgumacoisaverdadeira?
De um lado, enquanto “dúvida”, a respectiva indagação  nos permite, entre outra s
coisas,mensurar,dointeriorda
MeditaçãoSegunda
,oníveldealcancequeavidaatingiu
na
MeditaçãoPrimeira
.Aprincípio,perguntar,portanto,sobreoquepoderáserco nsiderado
verdadeiroatestaqueomeditadorempregouadúvidadetalmodoquenãolherestououtra
coisa,anãoseravidaemsimesma;emoutraspalavras,adúvidaalcançouu mníveltal sob
oqualtodaarealidadesucumbiu.
Deoutrolado,enquanto“busca”,aindagaçãodeDescartesaponta,sobretudo,paraa
necessidade eminente do meditador de encontrar, mesmo que, a princípio, som ente no
horizontedopossível,umacertezaquepossa, namedidaemquer esistaatodoseaqu aisquer
assaltosdadúvida,tornarlhepossívelaapropriaçãodeumarealidadeindubitável;emoutras
palavras,umacertezatalsobaqualarealidadesemantenha.
Juntando os casos, o que queremos mostrar é que,  enquanto o primeiro caso trata,
sobr etudo,deexcessoedenegação,osegundodizrespeito,diretamente,àfaltaeàafirmação.
Em termos mais precisos: enquanto, na
Meditação Primeira
, se vê de forma clara a
exuberânciadadúvida–seuexcesso–esuaapropriaçãocomojustificativaparaanegaçãoda
realidade, na
Meditação Segunda
, onde o problema é, antes de tudo, superar a realidade
negada,istoé,afirmar umarealidadepossível,omeditadorexpressasuab uscanostermosde
umafalta–anecessidadedecerteza.
226
“Qu’eftcedoncquipouraeftreeftiméveri table?”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiq ves
,A.T.,IX,I,
p.19,traduçãonossa).
85
Excesso e negação, falta e afirmação parecem ser, portanto, em última anál ise,
elementosqueparticipam,fundamentalmente,doprocessodeconstituiçãodaquelaindagação
deDescartesso breseháa lgoqueseja,defato,verdadeiro.Embora,num casoououtroea
despeitodetodaambivalênciaprópriaàtemáticadavidacartesiana,aquestãomaisradical
daindagaçãodeDescartessejamenossobr eesseselementosquesobreaprópriarealidadeem
simesma,nãonosparecerazoável,porém,ignorarmosaspecto stãoeloqüentes.
Seja como for, de fato, a indagação cartesiana parece girar em torno de um único
problema:a realidade.Isto é, negadapela dúvida e implícita na necessidadede certezado
med itador, ela, a realidade, é, indiscutivelmente, o problema centr al da pergunta: “O que
poderáserconsideradoverdadeiro?”.
1.2.1 –Darealidade
Éhora,pois,deperguntarmonossobreanaturezadarealidadeàqualserefereeque
buscaomeditador.Querealidade,afinal,énegadapeladúvidana
MeditaçãoPrimeira?
Que
realidadepretendeafirmaracertezadomeditadorna
MeditaçãoSegunda
?
Sabemosqueanegaçãodarealidadena
MeditaçãoPrimeira
étotal;aí,Descartesnega
todoo conhecimentoadquiridopelos sentidos,aexistênciatotaldomundo exterioreatéa
certeza das verdades m ais evidentes: as verdades matemáticas. Co ntudo, uma pequena
observação, do próprio filósofo, nos adverte acerca de um dado importante: a
Meditação
Primeira
temoobjetivodeapresentar“[...]asrazõespelasquaispodemosduvidaremgeral
detodasascoisas,eemparticulardascoisasmateriais[...]”
227
.
Éparaessesegundoobjetivoda
MeditaçãoPrimeira
qu equeremoschamaraatenção.
Strictusensu
,oob jetivodessa
Meditação
éapresentarasrazõ espelasquaispodemosduvidar
dascoisasmateriais.Certamente,nãodevesersempropósitoqueDescartesespecificadesse
modo o objetivo da
Meditação Primeira
: as coisas materiais, definitivamente, devem
inquietálomaisque“todasascoisas”emgeral;querdizer,ascoisasnãomateriaisparecem
despertarlhemaisaaceitação.
227
DESCARTES,R.
Meditaçõesmetafísicas
,2005,p.2 3.[...]lesraifonspourlefquellesnousp ouuonsdouter
generalementdetouteschof es,eparticulierementdeschofesmaterielles[.. .]”(Id.
Meditationsmetaphysiqves
,A.
T.,IX,I,p.9).
86
Especificamente,nesse sentido,entendemos,demodogeral,queograndeméritoda
Meditação Primei ra
é, então, sobretudo, a negação de toda e qualquer realidade material.
Desse modo, pressupondo este fato como dado, tornase mais facilmente compreensível a
atitude do  meditador, quando, diante da interrogação: “O que poderá ser considerado
verdadeiro?”,eleparecequasecederàdúvidaaoafirmar,novamente,apossibilidadedequea
únicacoisacertanomundoseja,talvez,q uenãohajanadadecertonele
228
.
Ora, o fato de o filósofo insistir mais de uma vez nessa possibilidade não é, entre
outras coisas, uma forma de certificar e atestar que, de fato, a realidade material foi
completamentedizimadapeladúvida?
Como querqueseja,apossibilidadederestarsomenteincertezanomundomaisuma
vez nãoconvencecompletamenteomeditadorque,paraevitartaldestinopossível,logodá
inícioaumaargumentação,aindahesitante,porém decisiva,perguntandosesenãohá,talvez,
algumaoutracoisa diferenteaqualele nãotenha jáconsiderado; istoé, algumacoisa não
material,quepossaviraseconstituir, então,comosendooindubitáveltãoprocurado:“Mas,
queseieusenãoháalgumaoutracoisadiferentedaquelasqueeuacabodejulgarincertas,da
qualnãosepossateramenordúvida?”
229
.
A perguntaé embaraçosa. Inicialmente, Descartes não a responde fazendoa seguir
imediatamentedeumasegundainterrogação:“NãoalgumDeus,oualgumaoutrapotência
quemeponhanoespíritoessespensamentos?”
230
.
O momento no qual se encontra o meditador é tenso. Enquanto, de um lado, a
realidade material já foi totalmente eliminada pela vida, de outro, realidade de espécie
alguma ainda se impôs; restou, somente, um esforço de não convencimento com a
possibilidade de não haver nada certo no mundo, a argumentação que considera a
possibilidadedehaveralguma“coisadiferente”dasqueforamatéentãoconsideradas –coisas
materiais–eaesperançadequetalcoisaseja,finalmente,arealidad equesebusca.
Em resumo, o que está em questão é a comprovação da inexistência das coisas
materiaissemqueissoseja,noentanto,suficienteparaaconclusãodequ enadahajadecerto
no mundodadooanúnciodapossibilidadedequeoverdadeiramenteexistentesejadeordem
228
Cf.DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19.
229
“Maisquefça yies’ilnyapointquelqueautrechofedifferentedec ellesqueieviensdeiugerincertaines,de
laquelleonnepuiffeauoirlemoindredoute?”(Ibid.,traduçãonossa).
230
“N’yatilpointquelqueDieu,ouquelqueautrepuiffance,quimemetenl’efpritcespenfées?”(Ibid.).
87
nãomaterial;istoé,Descartes,aoconfirmarafalsi dadedarealidadematerialnãoestendeessa
falsidadeaoutrasrealidadespossíveis–realidadenãomaterial–;aocontrário,comisso,ele
se vêm aispróximo da certezaq uequerencontrar;emtese,aconfirmaçãodafalsidadeda
realidade material serve ao meditador não como critério de negaçãoabsoluta darealid ade,
mascomopo ntodepartidaparaadeterminaçãodoque,possivelmente, existedeformanão
material.
Esseé um aspecto importantedavidacartesiana:elasempre conduzo meditador
para além de si mesma. Envolvida num processo a partir do qual será gradativamente
radicalizada até alcançar seu ponto máximo de radicalização na suposição de um suposto
Malin Génie
enganador, a dúvida cumpre fielmente a sua função de oferecer a máxima
consistênciapossívelàsconclusõesdomeditador;isto é,nãovisaimpedilodealcaaroque
busca,aocontrário,objetivalhegarantirque,aoencontrálo,estejadetalmodoseguroque
não possa haver nenhuma possibil idade de engano. Tal como entende Santiago: a dúvida
cartesianasemprelevanosaoseuexatoreverso
231
;é,precisamenteumadúvidapositiva.
Notese que a confirmação da inexistência da realidade material poderia servir
perfeitamentecomopontodepartidaparaomeditadorfundamentarumapossíveldescoberta
deque“nãohá,defato,nadadecertonomundo”;noentanto,Descartes,positivamente,segue
em direção contrária: a inexistência da realidade material não se torna argumento para a
fundamentação de um estreito materialismo cético, mas, antes, co nvertese num primeiro
critérioparadeterminaçãodoquerealmenteexiste:arealidadenãomaterial.
Todavia,adúvidaaindasemantém:seráquetaispensamentos–apossibilidadedeo
existenteserdeordemnão material– não são p ostosemm eu espíritoporalgum Deusou
outrapotência qualquer? Isto é, será que, após ter comprovado a inexistência da realidade
material,eunãodeveriamesmoconcluirque,defato,nadaexiste?
Arespostaqueomeditadorofer ecereforçaoardildaquestãoe,definitivamente,nãoa
soluciona: “Isso não é necessário; pois, talvez eu seja capaz de produzilos por mim
mesmo.”
232
.
Se por um lado, a pergunta de Descartes recorre a um Deus, ou outra potência
qualqu er,atribuindolhesa responsabilidadeporseus pensamentosdetalmodoque,nesses
231
SANTIAGO,H.Introd ução.In:DESCARTES,R.
Meditaçõesmetafísicas
,2005,p.42,nota2.
232
“Celan’eftpasneceffaire;carpeuteftrequeiefuiscapabledelesproduiredemoymefme.”(DESCARTES,
R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
88
termos,nãosejapossívelaomeditadortercertezasobrequalquercoisaqueseja;poroutro,
suaresposta,aotomarparasiapossívelcapacidadedeproduzirseusprópriospensamentos
independenteme nte,emborarepresenteatentativadeformulaçãod eumcritériomaisobjetivo
paraaaquisiçãoevalidaçãodoconhecimento:o“mimmesmo”,arazãonatural;tudoisso,a
rigor,aindanãoégarantiadehaveralgocertonomundo;poisofatode,aprincípio,nãoser
necessário recorrer a nenhuma entidade metafísica para garantir a veracidade do 
conhecimentoporqueisso talvezsejapossível,simplesmente, apartirdarazãonatural,não
significa,aomenosinicialmente,oestabelecimentoc larodequalquercritérioparaaconquista
dacerteza.
Emtermosmaisprecisos,oquearespostadeDescartesassinalatratase,sobretudo,do
fato de que, se há, comoparece acreditaro meditador, alguma realidade não material, ela
talvez deva partir menos de Deus ou qu alqu er outra potência que da ppria mente do
med itador.
Nesse caso, o que realmente parece pautar a discussão é, então, uma exigência de
Descartesparaquesejaafirmadacertaautonomiadarazão;istoé,dadoser possível,aomenos
inicialmente,  não  precisar nem de Deus, nem de qualquer outra potência para adquirir o
conhecimento certo e seguro da realidade, o meditador aposta na possibilidade de que a
própriarazão,autônoma,independ ente,sejadissocapaz.Nessestermos,o“Eu”cartesianose
manifestaejustificasejuntamente comapropostainicialdoestabelecimentoprópriodeuma
auto nomiapararazão.
Éimportantenotar,noe ntanto,queestestrêsargumentos,quaissejam:1ºOexistente
serdeordemnãomateria l;2ºAlgumDeusoupotênciaserresponsávelpelospensamentos;
e, 3º  Eu mesmo ser capaz de produzilos, fazem parte de u ma cadeia de raciocínio
inteiramentetomadapelocarát erdepossibilidade.Descartes,naíntegra,diz:
Mas,queseieuseohá algumaoutracoisadiferen tedaquelasque eu  acabode
julgarincertas,daqualosepossateramenordúvida? Nãohá algumDeus,ou
alguma outra potência que me ponha no espírito esses pensamentos? Isso o é
necessário;pois,talvezeusejacap azdeproduzilospormimmesmo.
233
.
233
“Maisquefça yies’ilny apointquelqueautrechofedifferentedecellesqueieviensdeiugerincertaines,de
laquelleonnepuiffeauoirlemoindredoute?N’yatilpointquelqueDieu,ouquelqueautrepuiffance,quime
metenl’efpritcespenfées?Celan’eftpasneceffaire;carpeuteftrequeiefuiscapabledelesproduiredemoy
mefme.”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
89
É necessário ter presente, então, que o meditador, neste ponto , não possui em seu
espíritocertezaalguma.Oqueelesabeéqueadúvidadizimouarealidadematerial;tudoo
mais:aexistênciadarealidadenãomaterial,ar esponsabilidadedeDeussobreopensamentoe
apossibilidadedeo“Eu”produzilos,nãopassamdeconsideraçõessobrepossíveis.
Entretanto, Descartes parece não ter deixado outro caminho sobre oqual possamos
trilhar rumo àconquistada certeza;essa conquista,  depoisdadúvida,pareceserrealizável
somentepelavia inicialdo s possíveis;pois foijustamented o interiordessas considerações
queDescartesconcluiuqueo“Eu”poderiaser,defato,algumacoisa;istoé,o
cogito
surge,a
princípio, apartir dospossíveis e são justamente eles, nesses termos, que dão, portanto, à
MeditaçãoSegunda
avançoeprecisãoemseuconteúdo.
Emsuma,osentidodaargumentaçãoébempontual:
Arealidadematerialoexiste.
Talvezoqueexistasejadeordemnão material.
Comopossojustificaressahip ótese?
Ta lvez,pormimmesmo:possopensála.A hipó tesefo iproduzidaporum“Eu”e
nãoporumDeus.
Ora,“Eu,então,pelomenos, nãosoualgumacoisa?”
234
.
Primeiramente, notese que é possível chegar até essa interrogação mediante a
consideraçãodos possíveisque a pr ecedeu. E notese, ainda, quemesmo essa interrogação
aindaestánoregistrodopossível;istoé,“será”queeunãoseriaalgumacoisa?
O fato é que, a partir daí,  a meditação ganha um novo nível: a dúvida se volta
precisamenteparaaidentidadedomeditadoreaargumentaçãoencontraoiníciodeumanova
cadeiaderazões;ambasconvergemparaomesmonúcleo:o“Eu”.
Podese oferecer, até aqui, três momentos fundamentais pelos quais passou  a
med itação: 1º  A afirmação do que não existe: a negação  da realidade material;  A
consideraçãodeque o existenteé, possivelmente, uma“coisadiferente”daquilo que jáfoi
negado;e3ºEssa“coisadiferente”nãoserefere,primeiramente,aumDeus,masamim
mesmo:aum“Eu”.
234
“Moydoncàtoutlemoinsnefuisiepasquelquechofe?”(DES CARTES,R.
Medit ationsmetaphysi qves
,A.
T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
90
Apassagemdomomento1paraomomento2équecaracterizaoquechamamosde
“identidadedomeditador”: háumamudançadoobjetoduvidado:dascoisasmater iaisa“uma
coisadiferente”: o “Eu”; e a passagem do momento 2 para o momento3 se encarrega de
caracterizar o que chamamos de “u ma nova cadeia de razões”: da “coisa diferente” que
poderiaserengendradadeumDeusouumapotênciaqualquer,masque,omeditadoraposta
engendrarsedeum“mim mesmo ”:deum“Eu”,aoestadonoqualessemesmo“Eu”éposto,
imediatamente,emq uestão:“Euentãonãopoderiaseralgumacoisa?”.
Resultado, portanto, de consideraçõ es possíveis, o “Eu”, ainda também uma
possibilidade, surge como o ponto d e confluênc ia, portanto, de toda a problemática
estabelecida:dainexistênciadarealidadematerialàp ossibilidadenãomaterialdaexistência
segurad arealidade
235
.
Dessemo do,depoisdeinsinuarqueo“Eu”sejaentão,aquela“coisadiferente”–coisa
não material, daqual o se pode ter a menor vida –, Descartes, a fim de cumprir seu
propósito,precisa,antes,esclarecercomoseconjuga,nesse“Eu”, ocaráternãomat erialda
realidadequeelerepresenta.
Noentanto,essaconjugaçãorequer,antesdetudo,acomprovaçãodaexistênciareal
do “Eu”; isto é, ele precisa sair, definitivamente, do domínio da possibilidade para que, 
legitimamente,possaserconjugadoàcertezadarealidadeomaterial;emou traspalavras,
todo o trajeto percorrido por Descartes na
Meditação Primeira
que resulta na negação da
realidade m aterial deverá se repetir, nos termos próprios da
Meditação Segunda
, para a
comprovaçãodaexistêncianãomaterialdarealidade.
Nessestermos,épreciso,então,antesdequalquercoisa,explicitaroco nteúdopróprio
dainter rogação:“Euentão,pelomenos,nãosereialgumacoisa?”comafinalidadedeque,
dessemodo,seopereapassagemdo“Eupo ssível”parao“Eureal”.
Todavia, como se justifica a proposição de que o “Eu” possa ser real quando os
sentidoseatéoprópriocorpojáforamnegados peladúvida?
235
Lembremonosdoprimeiroiníciodaargumentação:nãohaveriaalguma coisadiferentedasquaisacabode
negar–ascoisasmateriaisequepoderiaser,então,oindubitávelqueeuprocuro?Cf.,nestecapítulo,fls.88
89.
91
Ora,arespostadomeditadoraessaquestão,dadaemformadeoutrainterrogativa,já
forneceoprimeiroindicativodoconteúdodaquelaindagação.DizDescartes:“Soueu,detal
forma,dependentedocorpoedossentidosqueeunãopossasersemeles?”
236
.
OEu”,nessecaso, independecompletamentedossentidosedo corpo:é imaterial.
Emtese,ofatodeocorpoeossentidosnãoexistiremnãocausamamenorinterferênciana
existênc iado“Eu”.Jáno
Discurso
,ofisofodiziaqu eesse“Eu”:“[...]paraexistirnãotem 
necessidadedenenhumlugarnemdependedenenhumacousamaterial.”
237
.
Entretanto, o argumento da independência e distinção do Eu” parece não ser
suficienteparagarantirlheexistênciareal;pois,emúltimaanálise,sab erseindependentee
mesmo distinto do corpo e dos sentidos não esclarece completamente quais são as reais
condiçõesnasquaiso“Eu”possaexistirrealmentedeformanãomaterial.
Daíomeditadorcontinuar,prudentemente,suainvestigaçãoaplicandolhe,cadavez
maisecomm aiorrigor,adúvida:“Maseumepersuadidequenãohaviaabsolutamentenada
nomundo,queohaviane nhumcéu,nenhumaterra,nenhumcorpo,nenhumespírito;então,
nãomepersuadi,também,dequeeunãoexistia?”
238
.
Aqu iai nsuficiênciado argumentoprecedente se mostrade formaaindamaisclara:
somente o fato de o “Eu” ser independente e distinto do corpo o o leva a comprovar
completamentesuaexistênciaporqueomeditadorsepersuadiudequeabsolutamentenada
existianomundo”;portanto,aprincípio,nemm esmoo“Eu”
239
.
Dessemodo,serásomenteapartirdarespostaqueomeditadorderaessaquestãoque
se poderá com eçar a falar mais apropriadamente de um “Eu” realmente existente ou da
afirmaçãoprecisadeumarealidade.Etalrespostanãodemora;éclaraedireta:“Certamente,
não[...]”
240
,dizomeditador.
236
“Suisie tellement dépendant du corps & des fens, que ie ne puiffeeftre | fans eux?” (DESCARTES, R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
237
DESCARTES,R.
Discursodotodo
,1984,p.28.“[...]poureftre,n’abefoind’aucunlieu,nynedepend
d’aucunechofematerielle.”(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,p.33).
238
“Maisiemefisperfuadéqu’iln’yauoitriendutoutdanslemonde,qu’iln’yauoitaucunciel, aucuneterre,
aucunsefprits,nyaucunscorps;nemefuisiedoncpasauffipefuadéqueien’eftoispoint?”(Id.,
Meditations
metaphysiqves
,p.19,traduçãonossa).
239
Atéaqui,valelembrar,o“Eu”ésomentemaisu mapossibilid adeentrevárias;e,enq uantotal,arigor,não
existerealmente.Cf.,nestecapítulo,fls.8990.
240
“Noncertes[...]” (DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
92
Embor a Descartes estivesse convencido metodicamente de que a realidade material
não existia e que,de r esto, havia a possibilidade das coisas, agora, revela ele: “[...] eu
existia semdúvida,seeumepersuadi,ousomenteseeupenseialgumacoisa.”
241
;emtese,
nemainexistênciadarealidadematerialenem mesmoaexistênciadascoisassomenteem
condiçãodepossibilidadeoimplicavam,definitivamente,ainexistênciarealdo“Eu”.
Contudo , mesmo qu e essa revelação do meditado r represente, inegavelmente, um
considerávelavançonameditaçãoemesmoqueessepassomarque,precisam ente,apassagem
do “Eupossível” ao “Eureal”, essa certeza se mostra, ainda, muitotênue. Os argumentos
usadospelomeditadorparagarantirsuaexistênciaseapresentamainda deformamuitotímida
eincipiente:O“Eu”existesob duascondiçõesmuitovagas:“seeumepersuadiousepensei
algumacoisa”.Ora, q ue,precisamente,q uerem dizeressascondições?
Na medida em que a passagem do “Eupossível” ao “Eureal” só ocorre, tal como
Descartesmesmopareceindicar,apartirdosatosde“autopersuasão”ou“pensamento”como
condições dessa operação, essas condições se revestem, nesse caso, de fundamental
importânciae,  por isso, o meditador não deve logo admitilas sem antes explicitálasmais
precisamente.
Nesses termos, de um lado, para cumprir as exigências do meditador: precisão da
certeza afirmada:o “Eu” existe realmente; e, de outro, para garantir oobjetivo dadúvida:
afastarqualquerpossibilidadedeenganofazendocomque acertezaafirmadasejaindubitável,
Descartesosecontentacomascircunstânciasatuaisdesuameditaçãoeresolveradicalizar
adúvida.
Dessemodo,diantedoEu”surgeum“Outro”:“[...]umeunãoseiqualenganador
muitopotenteemuitoastuto,que emp regatodaasuaindústriaemmeenganarsempr e.”
242
;e,
maisumavez,todaaargumentaçãodomeditado répostaàprovapelainsistentedúvidaque,
aqui,alcançaseunívelmáximo
243
.
ÉnessarespostaqueoEu”inicia,em nossaopinião,seu movimentodesaídada possibilidadeeinserçãona
realidade.
241
“[...]i’eftoisfansdoute,fiiemefuispefuadé,oufeulementfii’aypenféquelquechofe.”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
242
“[...] vn ie ne fçayquel trompeur trespuiffant&t resrufé, qui employetoute fon induftrie à metromper
toufiours.”(Ibid.).
243
Sobre a radicalização da vida e o que ela representa cf. SILVA, F. L. e.
Descartes e a metafísica da
modernidade
,1996,pp.3639.
93
Se, num breve exame, a partir do momento em que o “Eu” foi posto como
possibilidade de ser, considerarmos os argumentos lançados pela vida em vista da não
fundamentaçãodesuaexistênciareal,entenderemos,nostermosprópriosdenossaanálise,o
carátertãoradicalassum idopeladúvidacartesiananestaaltura.
No primeiro  argumento, a dú vida insiste no fato de que o “Eu” não pode existir,
simplesmente,p or ela havernegado qualquer sentidoouqualquer corpo”. Nosegundo,
surgeumaargumentaçãomaisabrange nte:nãosomenteporqueocorpoeossentidosforam
negados, mas, também, o u, a terra, os espíritos; em suma, por que “nada existia no
mundo”, também o “Eu” não poderia existir. Por fim, no terceiro e último argumento, a
impossibilidade da existência do “Eu” se dá na medida em que a dúvida radicalizase
completamentepormeiodasuposiçãode“umeunãoseiqualenganador”quandonãosóo
corpo,ossentidosetudoomaisnomundosãonegados,masoprópriomundoemsimesmo
sucumbe
244
.
É nesse sentido que surge, precisamente, um Deus mal ou o
Malin nie
, como é
frequentementechamado,que,porgarantirquemesmoarealidademaisevidente,emnosso s
termos,opróp riomundo,sejapostaemdúvida,inviabiliza,dessemodo,qualquerafirmação
realdeexistência:detudoquepodeserafirmado,nadaé,certamente,existente;poistodoo
conhecimento,nessecaso,nãopassademeraenganaç ão“divina”.
Atéaqui,portanto,arigor,adúvidasemantém;e,maisdoquenunca,comumaforça
talque,seomeditadornãosuperála,imediatamente,tododoseuprojetoteráfracassado;isto
é, ou a certeza cartesiana surge aqui, ou o ceticismo estará, para sempre, confirmado por
Descartes.
Entretanto,enquantoadúvidaseestendiagradativamenteatéoseupontomáximo,o
med itador, por sua vez, resistia veementemente. Par a cada argumentação da vida havia
sempre uma contraargumentação do meditador que, ao se deparar com a vida em seu
estado generalizado, tinha já argumentos suficientes para também, desse modo, resistir a
ela
245
;poisseháumDeusquemeenganaéporqueEusou;e,enquantoEupensarseralguma
coisa,pormaisqueelemeengane,jamaisconseguiráfazerqueeunadaseja.
244
Tratasedavidaestendidaatéaquiloqueémaisclaroeevidente.NostermosdeDescartes, as próprias
noçõesmatemáticas.
245
Os argumentos do meditador são respecti vamente os seguintes: 1º O “Eu” é independente e distinto do
corpoedossentidos;2ºOEu”existiasemdúvida,apartirdesuaautopersuasãoedesuacapacidadede
pensare,3º Veradiante:Seo
MalinGénie
meengana,nãohádúvidasdequeeusou.
94
NaspalavrasdopróprioDescartes:“Nãohá,então,nenhumadúvidadequeeu sou,se
elemeengana;equeelemeenganeoquantoquiser,elenãopoderá,jamais,fazerqueeunão
sejanada,enquantoeupensarseralgumacoisa.”
246
.
Portanto,diferentementedavagaargumentaçãoprecedente,asaber:“Eu existia sem
dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa”, agora o meditador
aprimora seus argumentos: a condição de “autopersuasão” é, su tilmente, substituída pela
condiçãodeserenganado,persuadidopelo
MalinGénie
eacondição:“pensaralgumacoisa”
équaseim perceptivelmentesubstituídapelacondição:“pensarseralgumacoisa”.
Embor a sejam diferenças pouco visíveis do ponto de vista de seus termos, não é
possível, em nossa opinião, negarlhes importância no que se refere ao seu conteúdo. Na
verdade,acreditamosqueessassub stitu içõesrepresentamummovimentoinversonointerior
da argumentação que as conduz; pois,de um lado, se vaideuma “autopersuasão”para a
persuasãodeumsegundo,um“Outro”;istoé,apersuasãooperadapelo
MalinGénie
;e,de
outro,sevaideumpensamentogeral:“pensaralgumacoisa”indiscriminadamente,paraum
pensamentopreciso:“pensarseralgumacoisa”.
“Persuasão”e “pensarseralguma coisa” são, portanto, em nossoentender, a forma
finaldosúnicoscr itériosatéentãoapresentadospelomeditadorparacomprovarsuaexistência
real.Paranós,ahipótesedeum“Outro”persuasivo–o
MalinGénie
–,semque,comisso,
sejanecessariamenteprecisoexcluirasimesmo–“pensarseralgumacoisa”–são,emtese,
os únicos argumentos que justificam precisamente, num só ato, a conversão  da vida
metafísicaemcertezaabsoluta.
Dessemodo,aexistênciarealdo“Eu”éassegurada,simultaneamente,poressesdois
argumento sprincipais:oprimeiro,“persuasão”,quechamaremosdeargumentopsicogico
porque se caracteriza, fundamentalmente, por ser uma hipótese imaginária que marca a
inserçãodeum “Outro”,umeunãoseiqual
MalinGénie
enganador”,que, namedidamesma
emquecumpreseupapelde enganaroupersuadir asseguraaomeditadorasuaexistência
247
;o
246
“Ilnyadoncpointdedoutequeiefuis,s’ilmetrompe;&qu’ilmetrompetantqu’ilvoudra,ilnefçauroit
iamais faire que ie ne fois rien, tant que ie penferay eftre quelque chofe.” (DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
247
Lebrun afirma que, embora a função do Deus Enganador seja a mesma que a do
Malin Génie
, este, na
verdade,nãopassadeumartifíci opsicológicoquetemo objetivomaiordeimpressionarminhaimaginaçãoe
levarme a tomar a vida mais a sério para inscrevêla melhor em minha memória. Cf. LEB RUN, G. In:
DESCARTES,R.
Meditações
,1973,p.96,nota,21.Forlintambémdizqueo
MalinGénie
éummeroartifício
psicológico. Cf. FORLIN, E.
A teoria cartesiana da verdade
, 20 05, p. 93, p. 17. Segundo Guéroult, o
responvel por essa tese de  que o
Malin Génie
é um artifício puramente metodológico é Gouhier. Cf.
95
segundo, “pensar ser alguma coisa”, que chamaremos de argumento metafísico, dado que,
nessecaso,o pprio“Eu”éosujeitoqueasseguraoseuser.
Em nossa opinião, po rtanto, somente estabelecidos os argumentos psicológico e
metafísico,conjuntamente,équepodemoscompreender,deformaprecisa, aexistênciareal
do“Eu”eoverdadeirosignificadodacertezat ãobuscadapelomeditador:aexistênciade uma
realidadenãomaterialà qu aldúvidanenhumapudesseresistir.
Agora,então,apergunta:“Oquepod erá,pois,serconsideradoverdadeiro?”alcança
suaresposta definitivaeomeditadornãoprecisamaisensaiaraameaçadequeaúnicacerteza
no mundoéquenadahádecertonele;porque,emtermos,mesmoquenãohouvessenadade
certo nomundoemesmoqueop rópriomundooexistisse,emabsoluto:“[...]
Eusou,eu
existo
[...]”
248
.
Se,demodogeral,avidana
MeditaçãoPrimeira
negouradicalmenteaomeditador
acertezaacercadaexistênciadequalquerrealidade,o
cogito
na
MeditaçãoSegunda
afirma,
psicológicaem etafisicamenteparasempre,acertezarealdesuaprópriaexistência.
1.3 Sobreacaracterizaçãodacertezarepresentadapelo“cogito”
Como  vimos, o
cog ito
é, sobretudo,uma certeza; a certeza de uma realidade; uma
realidade o material: o “Eu”, a mente. O
cogito
é a pr imeira certeza, propriamente,
adquiridapelomeditador;certezaque,comolembraLebrun,emboranãosejaamaisa ltaé,
certamente, em termos precisos, a mais importante, dado ser ela que inaugura,
definitivamente,acadeiadasrazões
249
.
GUÉROULT,M.
NouvellesréflexionssurlapreuveontologiquedeDescartes
,1955,pp.8182.Comosevê,o
temado
Malin Génie
junto aodil emadoDeusEnganador  são pontos altamente controvers os na filosofia de
Descartes. Absolutamente, não ent ramos aqui nesse debate. Chamamos o argumento da “Persuasão” de
“argumentopsicológico”porduasrazões:(1)porqueeleestáassociadoao
Mal inGénie
(artifíciopsicológico),
(2)porque estamosvoltados especificamenteparaasituaçãoimediatana qualseencontra omeditadordiante
dessaficção”edaquiloqueelarepresenta,emnossostermos,paraafirmaçãodaexistênciadoEu”.Portanto,
nossareflexãoestámuitodistantedostermosedaprofundidadedagrandediscussãoqueessetemarepresenta.
248
“[...]
Iefu is,i’exifte
[...]”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
249
Cf.LEBRUN,G.In:DESCARTES,R.
Meditações
,1973,p.99,nota24.
96
Antes, porém, de prosseguirmos no encad eamento dessas razões e tratarmos,
diretamente,sobrecomoeoque,exatamente,essacertezaafirma
250
,convém,deacordocom
aargumentaçãoquedesenvol vemosatéaqui,determonosmaisdetalhadamentesobreoque
ela – a certeza do
cogito
significa; isto é, a fim de compreendero que, realmente, essa
certezarepresentadapelo
cogito
pretendeafirmaréprecisoantes,mesmoqueminimamente,
entenderdeformaclaraalgunsaspectosdascondiçõesquetornaramo
cogito
propriamente
umacerteza.
Nessesentido,destacamosdoispontosimportantes:1ºOfatodeo
cogito
serum a
certezaintuitiva;2º Ofatode,comomostramos,o
cogito
serumacertezadedu asordens:
psicológicaem etafísica.
1.3.1 –Do cogito”enquantoumacertezaintuitiva
[...]após terpensado bemnisso,etercuidadosamenteexaminadotodasascoisas,
enfiméprecisoconcluir,eterporconstantequeestaproposi ção:
Eusou,euexisto
,é
necessariamenteverdadeira,todasasvezesqueeuapronuncio,ouqueeuaconcebo
nomeuespírito.
251
.
É clássica no cartesianismo a d iscussão que afirma a tese de o
cogito
ser um
silogismo
252
.“Eusou,euexisto”seria,nessecaso,nãopassariadeumainferênciasi logística
dapremissamaior: “aquelequepensa,existe”. 
No entanto, Descartes sempre evitou queo
cogito
fosse entendido, exc lusivamente,
com sendoumraciocínio lógico.Aesserespeito,nas
Segundasrespostas
,eleafirma:“[...]
quando alguém diz:
Penso, logo sou
,
ou existo
, ele não conclui a existênc ia de seu
250
Assuntodopróximocapítulo.
251
“[...]qu’apresyauoirbienpenfé,&auoirfoigneufementexaminetouteschofes,enfinilfaut conclure,&tenir
pourconftantquecettepropofition:
Iefuis,i’exifte
,eftneceffair ementvraye,touteslesfoisqueielaprononce,
ouqueielaconçoyenmone fprit.”(DESCARTES,R.
Medit ationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,tradução
nossa).
252
Sobreessetema,cf.,demaneiraespecial,
Segundas
e
QuintasObjeções
respect ivamenteem:Ibid.,p p.96
132 e 198217. Ainda a esse respeito, Abbagnano informanos que, não somente os contemporâneos de
Descartes o objetaram acercado
cogito
ser u m silogismo, mas, inclusive, estudiosos atuais do cartesianismo
sustentamaindaessatese:sãooscasosdeHAMELINeGALLI.Cf.ABBAGNANO,N.
Históri adafilosofia
,
1992,V.6,p.69,nota398.
97
pensamentocomopelaforçadealgumsilogismo,mascomoumacoisaconhecidaporsi;elea
vêporsimplesinspeçãodoespírito.”
253
.
Em todo caso, quaisquer que sejamos inúmerosargumentosque seapresentemem
defesadatesedo
cogito
silogísti co,oquenosparecemaisevidenteéqueopróprioDescartes
sempreseesfor çouparafazerentenderqueo
cogito
é,sobretudo,nãoumjuízogico,mas
umacertezaintuitiva;istoé,umconhecimento quesedáatravésdeuma“simplesinspeçãodo
espírito”comodisse.
Nessestermos, Cottinghamafirma:
[...]omaisimportanteparaDescartesnadescobertadacertezadesuaexistêncianão
éavalidadeformaldeumcertoraciocínioabstrato,massimum
ato
individualde
pensamento:énarealizaçãodesseatoporcadameditadorindividualquea certeza
desuaexistênciasetornaevidenteein dubitável.
254
.
E,namesmalinhadeCottingham,segueForlin,qu enoschamaaatençãoparaofato
dequenãosepodeesquecerqueo
cogito
:
[...]nãoéumameraproposição,maséantesdetudoapercepçãoqueopen samento
tem desi mesmo u maautopercepção, daqual a proposição é a suaexpressão
lingüística. A primeira verdade é a proposição ‘eu sou, eu existo’ (ou ‘eu penso,
logo existo’), mas ela só é verdadeira à medida que expressa uma percepção
verdadeira:aintuiçãointelectualqueopensamentotemdesuaexistência.
255
.
Portanto,entendemosquenãoép elosimplesfatodeo
cogito
serumconclusãoapós
terpensadobastantenissoedeterexaminadocuidadosamentetodasascoisas,cumpreenfim
concluir
eterporconstante”–quedevemostomálo,necessariamente,comoumraciocínio
lógico aos moldes de um  silogismo: Seu caráter conclusivo, de acordo com o queparece
pretend eropróprioDescartes,pod eserconcebidoporumoutroviés,qualseja,oviéspróprio
daintuição.
253
“[...]lorfque quelqu’vndit:
Ie penfe, doncie fuis, oui’exifte
, il neconclut pasfonexiftencede fa pene
comme par la forcede quelque fyllogifme, mais comme vnechofeconnuë de foy; il la void par vne fimple
infpctiondel’efprit.”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.110,traduçãonossa).
254
COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1995,p.38.
255
FORLIN,E.
Ateoriacartesianadaverdade
,2005,p.105.Esseautorinsiste,veementemente,nanecessidade
desedistinguirosconceitosde
juízo
e
percepção
paraacompreensãodafilosofiacartesiana.Segundoele,essa
distinção é fundamental para se compreender as
Meditações
e o pensamento de Descartes em geral:
“Acreditamos que mui tas leituras equivocadas sobre a filosofia de Descartes nascem precisamente desse
esquecimento de que as verdades da metafísica cartesian a não são meros conceitos ou juízos, mas o,
fundamentalmente,percepçõesderealidades.”(Ibid.,p.106).
98
Desse modo, a certeza que o
cogito
representa através de sua conclusão pautase,
fundamentalmente, por uma operação intuitiva; esta, por sua vez, se ampara, sobretudo,
menosemjuízoslógicossilogísticosqueemsimplespercepções,intuiçõesderealidades.
Afina l,quandoomeditadorafirma:Eusou, euexisto”,
[...]ascoisasosepassamcomose,aoperceberquepenso,euprecisasse voltar
meusolhos para anoçãocomumqueexpressaarelaçãonecessáriaeuniversalde
que para pensar é preciso ser, e então, voltando à percepção de qu e penso, eu
pudesse enfim concluir: puxa,então eu exi sto!”. O que ocorre de fato éque,ao 
perceber que penso, eu percebo simultaneamente que existo, a manifestação do
pensamentosendo,antesdetudo,umamanifestaçãodaexistência.
256
.
Ditodeoutromodo,ascoisasnãosepassam,primeiramente,peloviésdosilogismo;o
queocorre,defato,équeessasimultaneidadedapercepção –aafirmaçãodop ensamentoeda
existênc iacomoumaúnicarealidaded escobertapelo meditador–, emúltimaanálise, nada
mais é que a intuitividade mesma da certeza própria do
cogito
sobrepondose,
definitivamente, a qualquer esp écie de juízo lógico. Em tese: o
cogito
, antes de ser uma
certezasilogística, éumacerteza,propriamente,intuitiva.
É essa mesma tese que explica o motivo pelo qual Descartes impõe condições o
restritivasquantoàcertezaqueo
cogito
representa.Imediatamente seguidadaafirmação:“Eu
sou, existo”, o meditador faz a seguinte ressalva: essa proposição, diz ele: “[...] é
necessariamenteverdadeira,todasasvezesqueeuapronuncio,ouqueeuaconcebonomeu
espírito.”
257
.
Ora,essares salvaesclareceaindamaisocaráterintuitivodo
cogito
namedidaemque
elaapo nta,especificamente,paraofatodequeelenãoéumacerteza,simplesmente,porser
uma conclusão; afinal, nem toda conclusão é,  necessariame nte, u ma certeza; antesdisso , a
certeza do
cogito
é garantida, exatamente, menos p or sua dep endência de argumentos e
conclusãoque,comodizoprópriofilósofo,porsuasimplespronúnciaouconcepção.
Emoutraspalavras,éjustamenteofatodeo
cogito
seru macertezaintuitivaquelhe
permite,paragarantiressacert eza,somenteserpronunciadoouconcebido;deoutro modo,se
ele fosse, por exemplo, uma certeza propriamente silogística, certamente estes critério s de
atribuiçãodecertezafornecidospelomeditador–pronúnciaeconcepção,certamentenão
256
FORLIN,E.
Ateoriacartesian adaverdade
,2005,p.107.
257
“[...] eft neceffairement vraye, toutes les fois que ie la prononce, ou que ie la conçoy en mon efprit.”
(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
99
seriam aceitos; pois o silogismo tem seus próprios critérios para certificar suas próprias
certezas.
Aindaaessepropósito,ressaltandoaimportânciadequenãosejaco nfundidaacerteza
silogísticacomacertezaintuitiva,eevidenciando, assim,adistinçãoentreambas,Cottingham
nosforneceumasugestivaopinião.
Segundoesseautor,substituiro presentedoindicativo:“Eupenso”pelogerúndio:“Eu
estou pensando” atenu aria, consideravelmente, a discussão acerca da cert eza que o
cog ito
representa.Nessecaso,explicaele:
Oquemedáacertezademinhaexistênciaoéumfatoestáticoeintemporal(u m
fatológico)sobremimpróprio quesoualguémquepensa;éantesofato (intuitivo)
deeuestarnessemomentoocupadoemmeuspensamentos.Edesdequecontinuea
estarassimocupado,aminhaexistênciaestáassegurada.
258
.
Portodasessasrazões,defendemosqueo
cogito
é,sobretudo,umacertezaintuitiva.
Embor a não seja, a rigor, impossível que o
cogito
seja tomado, logicamente, como uma
inferênciasilogística,oqueDescartes,emnossaentender,verdadeiramente,eemquestão
naquela ressalva do meditador, nem  é tanto o caráter formal da certeza do
cogito,
mas,
principalmente,ascondiçõesprópriasdessacerteza;istoé,qualéopontomaisseguroondese
deveapoiaracertezaqueo
cogito
representa:aintuiçãoouosilogismo?Essaparecesera
perguntafundamentaldetodaaquestão;e,aoquetudoindica,comotemosinsistidoatéaqu i,
ofilósofopareceterescolhido,especialmente,aintuiçãoparaapoiarasuacerteza
259
.
Como querqueseja,emúltimaanálise,portanto,aressalvadomeditadordizresp eito,
sobr etudo, ao estatuto próprio da certeza que o
cogito
representa. Em r esumo: Descartes
buscava uma certeza tala que nem mesmo a vida no seu estado mais generalizado a
suposiçãodeum
MalinGénie
pudesseresistir;daí,preterindo,emtermos,alógica,nosso
filósofoestabeleceuofundamentoprópriodesuacerteza:aintuição.
258
COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1995,p.60.
259
Otemado
cogito
enquantocertezalógica ouintuitiva, certamente,nãoseresolvenaanáliseque fizemos.
Tratasedeumtema difícil,selevadoasério,equerequer,emnossaopinião,umarevisãosobrequalé,defato,
o papel da Lógica no pensamento de Descartes. De nossa parte, por hora, bastanos a con clusão que
apresentamos.Notarque,emboratenhamosdefendidoo
cogito
comoumacertezaintuitiva,nãonegamos,com
isso,apossibilidadelógicadequeeletambémrepresenteumacertezasilogísitca.
100
Nessesentido,afirmamosaprecedênciadaintuitividadedo
cogito
anteoseucaráter
silogísticoeconcluímosqueele,o
cogito
,definitivamente,nãoé umacertezalógica,semser,
antes,umacerteza,propriamente,intuitiva.
Nas palavras d e Cottingham, enfim: “A certeza de minha existência não é como a
certeza de alguma verdade atemporal e necessária da gica e da matemática [...]”
260
; é,
sobr etudo, umacertezaqueseatualiza,constantemente,viaintuição,notempoenaliberdade
própriadomeu espíritoemconcebêlaoupronunciála.
1.3.2 –Do“cogito”enquantoumacertezadeduasordens
Deacordo comnossaexposição, chegamo s ao
cogito
atravésde umaargumentação
quesustentaduasordensdecertezaparaoqueelerepresenta.Dissemosqueaexistênciado
“Eu” é assegurada por dois argumentos principais: um argumento psicológico e um
argumento metafísico
261
.
Entendemosqueessatese,alémdeserumimportanteaspectodascondiçõessegundo
asquaiso
cogito
seconstituiu,propriamente,umacerteza,étambémopontosegundooqual
apoiaremos,fundamentalmente,nossahipótesegeraldepesquisa:aequivocidadedo
cogito
262
.
Nessestermos,importainicialmenteenfatizar,aqui,ocaráterduplodaconstituiçãodo
cogito
.Primeiramente,como mostramosacima,elesópôdeserafirmadoenquantocertezada
realidade devido à “conciliação de dois argumentos principais levantados pelo meditador,
quais sejam: se o
Malin Génie
me engana, eu existo; se eu  penso ser alguma coisa, eu
existo
263
.No stermosprópriosdameditação:
260
COTTINGHAM,J.
DicionáriodeDescartes
,1995,p.38.
261
Ver,nestecapítulo,fls.9495.
262
Embora a discussão dessa hipótese esteja reservada, especial mente, para o próximo capítulo, já aqui
anunciamosnossa primeira razão:o
cogito
é equívocoporqueé constituí doporuma certeza deduas ordens:
psicológicaemetafísica.
263
Cf.,nestecapítulo,fl.94.
101
Nãohá,então,nenhuma dúvidadequeeusou,seele(o
MalinGénie
)meengana;e
que ele me engane oquantoquiser, elenãopoderá, jamais,fazerqueeuoseja
nada,en quantoeupensarseralgumacoisa.
264
.
Depois,aindadeacordocomoqueanalisamos,tomamosessesdoisargumentoscomo
oresultadofinaldetodooesforçodomeditadorparaaconquistadacertezaqueb uscava:a
existênc iadeumarealidadenãomaterial.Aoprimeiro,chamamosargumentopsicológicoe, 
aosegundo,argumentometafísico
265
.
Defendemos,enfim,que,paracompreender,precisamente,o
cogito
earealidadepor
eleafirmadanãopodíamos,emabsoluto, dissociaressesdoisargumentos:o
cogito
constituia
se, aí, fundamentalmente, como uma certeza,ao mesmo tempo, de ordem psicológica e
metafísica.
Dessem odo,vaiseconfigur andoassimatesedecertaequivocidadenacertezaqueo
cogito
representa.Arealidadeporeleafirmada:o“Eu”,nãoé,exclusivamente,umarealidade
metafísica, nos termos próp rios de nossa análise; ele é também uma realidade,
apropriadamente, psicológica; e, nesses termos, não nos parece justificável, em  nenhum
sentido, qualquersupervalorizaçãodealgumdessesaspecto semdetrimentodeoutro
266
.
Enfatizamos esse ponto, porque parece haver uma tendência muito difundida de
valorização exagerada do aspecto metafísico do
cogito
. Repetidas vezes, esse princípio
cartesiano é tomado como sendo um princípio, exclu sivamente, epistemológico: o
pensamentosignificandounicamenteo critério fundamentalsegundooqualaexistênciada
realidade pode ser afirmada
267
. Nesse caso, em nossa opinião, esquecese muito
frequentemente a fecundidade psicológica do
cogito
: o pensamento tomado o somente
264
“Ilnyadoncpointdedoutequeiefuis,s’ilmetrompe;&qu’ilmetrompetantqu’ilvoudra,ilnefçauroit
iamais faire que ie ne fois rien, tant que ie penferay eftre quelque chofe.” (DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
265
Asrazõessegundoasquaisassimosnomeamosseencontram,nestecapítulo,fls.9495enota247.
266
Emabsolutoneg amosqueo
cogito
seja,essencialmente,demodogeral,meta físico;etambémconcordamos
queapsicologiacartesiana, n essesentido, nãoé mais queparte deumprojetoprioritariamentemetafísicode
Descartes.Notar,portanto,aprecisãodenossostermos,que,aqui,nãofazemreferênciaàmetafísicacartesiana
emgeralene mtampoucoàsuapsicologiapropriamente.Talcomosemostrará,logonoparágrafoseguinte,a
delimitaçãoespecíficadostermossegundoosquaisnosapropriamosdametafísicaepsicologiacartesianastoma
aepistemologiadaprimeiraeoprópri o
cogit o
dasegunda.
267
Notar que o aspecto metafísico ao qual nos referimos, de acordo com a ordem de nossa análise, se dá,
estritamente,nostermosdaquiloquechamamosacimadeargumentometafísico:seeupensoseralgumacoisa,
então,euexisto.
102
comocritérioparaoestabelecimentodaexistênciadarealidade,mastambémcomop rincípio
deter minantedessarealidadeestabelecida
268
.
Em contrapartida,  porém, parece haver, do lado inverso, certo exagero quanto ao
aspecto  psicológico do
cogito
: “Se não fosse arrancado, extorquido ao Gênio Maligno
(argumentopsicológico),oCogitonãopassariadeumabanalidade.”
269
.
A afirmação de Lebrun nos parece muito perigosa: Será que o
cogito
seria mera
banalidadesemoargumentopsicológicodo
MalinGénie
?Definitivamente,nãoacreditamos.
Contudo, poderíamos com razão, parafraseando o próp rio Lebrun, indagar a interpretação
maiscorrente:Seráquesenãofossearr ancado,extorquidoao Eu”–argumentometafísico–,
o
cogito
nãoseria,apenas,meraabstração?
Como  se vê, é facilmente possível cairmos no exagero de um lado ou outro e é,
sobr etudo, por isso, que entendemos necessária a afirmação equívoca do
cog ito
; com ela,
certamente seria bem mais difícil cometer esses exageros que acabam por apresentar e
defender ou um Descartes debilmente psicólogo, ou um Descartes superficialmente
metafísico.
Denossap arte,nempsicólogodébil,nemmetafísicosuperficial.O
cogito
equívocoé
a nossa prova mais concreta de que Descartes soube, talvez como ninguém, aliar à
profundidademetafísicaumapsicologianadasuperficia l
270
.
Portanto,oqueparecemaisevidenteparanóséqueocaráterduplodaconstituiçãodo
cogito
deve ser insistentemente defendido ante certas interpret ações que, erroneamente,
acabampor reduzíloàexclusividad edeumdeseusaspectos.
Somentenessestermos,acreditamospoderseguramenteconceberemsuato talidadea
certezaqueo
cogito
,realmente,representa:umacertezadeduasordens.
268
Umacoisaéafirmaroestabelecimentodaexistênciadarealidade:funçãopropriamenteepistemológica;out ra
coisa é determinála: função psicológica. Notar que o que chamamos aqui de fecundidade psicol ógica do
cogit o
”refereseao quechamamos acima deargumentopsicológico:se o
Malin Génie
me engana, então, eu
existo.Nãoéexatamenteo
MalinGénie
quemdeterminafinalmentearealidadedo
cogit o
comocerteza?
269
LEBRUN,G.In:DESCARTES,R.
Meditações
,1973,p.100,nota26.
270
Certamente,umestudocompar adodasrecepçõesdo
cogit o
porGuéroulteAlquiéaju dariaa vercombastante
clarezaessasituação.Deumlado,enquanto Guéroultpareceencerraro
cogito
noslimitesdeuma metafísica
exageradamenteintelectualista;deoutro,Alquié,tentaveementementeresgataraprofundidadepsicológicadesse
princípio propriamente metafísicodeDescartes.Emnossa opinião,ainterpretação geraldeAlquiépareceser
maisfecundadoqueaquepropõeGuéroult;entretanto,somenteumestudodetalhadodoscasospoderia,defato,
confirmarnossaposição.Portanto,ficaemabertoumapromissorasugestãodepesquisa.
103
1.3.2.1–Dacertezado“cogitoentre Guéroultenós
Em
NovasReflexõessobreaProvaOntológicade Descartes
271
, Guéroult,aotomar
partenod ebate sobreadistinçãodo
MalinGénie
eoDeusEnganador,concluique:
A refutação de cada um desses dois conceitos: Deus enganador, Gênio Maligno,
permiteteracessoaduasordensdiferentesdecerteza:certezapsicológicainabalável
edefinitivadefato,certezametafísicadedireito.
272
.
AconclusãodeGuéroult,comosepodever,é,exatamente,amesmaconclusãoàqual
chegamosemnossaanáliseacercadacertezaqu eo
cogito
representa:umacertezadeduas
ordens: psicológica e metafísica, dizemos nós. Todavia, devese re ssaltar que a conclusão
desseau tor éformuladasobretermoseargumentoscompletamented iferentesdosnossos.
AafirmaçãofeitaporGuéroultdequeo
cogito
representaduasordensdiferentesde
certeza: psicológica e metafísica procede, diretamente, da distinção que esse comentador
adm iteentreoDeusEnganadoreoGênioMaligno;cadaumrepresentantedeumaordemda
certeza do
cogito
. Segundo ele, embor a o
Malin Génie
seja, de fato, um artifício
metodológico,eleéoúnicoaexercerumafunçãopropriamentemetafísica
273
;eéexatament e
porissoque:
O Deus enganador exerce somente uma funçã o psicológica. Ele assume sobre o
plano danaturezaum papel menor, paraleloao plano psicológico, ao papel maior
queoMalinnieassumesobreoplanomaiselevadodametafísica.
274
.
271
GUÉROULT,M.
Nouvellesréflexionssurlapreuveontologiqued eDescartes
,1955.
272
“Laréfut ationdechacundecesdeuxconcepts:Dieutrompeur,MalinGénie,permetd’accéderàdeuxordres
différentsdecertitude:certitudepsychologiqueinébranlabeetdéfinitiveenfat,certitudemétaphysiquededroit.”
(GUÉROULT,M.
Nouvéllesreflexionssurlapreuveont oligiquedeDescartes
,1955,pp.8283,traduçãonossa).
273
Cf.Ibid.,p.82.
274
“LeDieutrompeurn’exerce,lui,qu’unefonctionpsychologique.Ilassumesurleplandelanatureumrôle
mineur,parallèlesurleplanpsychologiqueaurôlemajeurqueleMalinGénieassumesurleplanplusélevédela
métaphysique.”(Ibid.).
104
Mostramos os passos de Guéroult p ara que fique clarame nte exp osto que, embora
nossas conclusões coincidam, não somente os nossos argumentos, mas também os termos
própriosqueutilizamossãodiametralmenteopostos.
Nossa argumentação, embora seja, em parte, apoiada pela noção do
Malin Génie
,
definitivamente não discutimos nela, como faz Guéroult, o estatuto próprio dessa hipótese
cartesiana; e, quanto aos termos, admitimos, inclusive, o contrário do que propõe esse
com entador,pois,enquantoeleconcluiqueo
MalinGénie
representaumacertezametafísica,
paranós,nostermosprópriosdenossaanálise,o
MalinGénie
é,justamente,orepresentante
fundamentaldeumargumentoquechamamosdepsicológico.
Desse mo do, embora Guéroult e nós tenhamos chegado à mesma conclusão, fica, 
assim, justificado e estabelecido  que, de nossa parte, não se trata, em última análise, de
reproduzirmosostermoseargumentosdeGuéroult;aocontrário,nossasconclusõessederam
porviascompletamentedistant esdequalquersemelhançacomaargumentaçãogueroultiana.
Contudo , não podemos deixar d e aproveitar o possível benefício de ver nossa
conclusãoassemelharsecomadeumdosmaioresintérpretescontemporâneosdafilosofia de
Descartes; e, nesse caso, afirmar com ele, mais uma vez: há, na certeza q ue o
cogito
representa,umaequivocidadequelheéprópria.
Portanto,sejacomGuéroult,sejaapartirdenossappriaexposição,oqueimporta
afirmar,emúltima análise,équeo
cogito
éumacertezaequívocada mente;enessecaso,
restanos,so mente,investigarm aisdetalhadamenteessaequivocidadeque lheéprópria.
CAPÍTULOII
DO
COGITO
ENQUANTONATUREZADAMENTE
Deacordocomaanálisedocapítuloanterior, defendemo squeo
cogito
representauma
certezaequívocadamenteeque,nostermosprópriosdessaequivocid ade,elesereve lauma
certeza,aomesmotempo,psicoló gicaemetafísica;associamos,precisamente,essaúltima,ao
aspectoepistemológicodo
cogito
,e,aprimeira,aoseuaspecto,propriamente,psicológico
275
.
Postoisso,estecapítulo,pretende,partindop rincipalmentededuasdefiniçõesdo
cogito
que
Descartes nos oferece na
Meditação Seg unda
, estab elecer, finalmente, uma suposta
equivocidadeparaesseprincípio cartesiano.
2.1 Sobreanaturezadamente:umacoisapensante
Deposse dacertezapsicológicaemetafísicadequeo“Eu”realmenteexiste,certeza
afirmadapeloestabelecimentomesmo do
cogito
, om editadorreclama,porém,nãosaber
ainda,claramente,oqueéeste“Eu”:“Mas,eunãoconheçoaindabastanteclarame nteoque
eusou,euqueestoucertodequeeusou[...]”
276
.
Paranãopôremriscoacertezajáadquirida;qualseja,doconhecimentodaexistência
psicológicaemetafísicado“Eu”;conhecimentoque “[...]eusustentosermaiscertoemai s
275
Especialmentesobreaepistemologiaepsicologiacomorepresentantesrespectivamentedacertezametafísica
e psicológica do
cogito
, ver, neste trabalho, capítulo anterior, fls. 100102. Aí aparecem de maneira
rigorosamented elimitadaostermosdenossaanálise:tomamosametafísicacartesianasobopontodevistade
suaepistemologiaeapsicologiadeDes cartessobopontodevistadopróprio
cogit o
.
276
“Mais ie ne connois pas encore affez clairement ce que ie fuis, moy qui fuis certain que ie fuis [...]”
(DESCARTES, R.
Meditations metaphysiqves
, A. T., IX, I, p. 1 9, tradução nossa). Isto é, não sei ainda
claramentequalosignificadodeconciliarpsicologiaemetafísicano
cogito
.Apartirdaqui,todareferênciaao
cogit o
é, di retamente, relacionada àquela pr oblemática da “certeza de duas ordens” estabelecida no capítulo
anterior.
106
evidente que todos aqueles que eu tive anteriormente.”
277
, Descartes decide buscar para si
umadefiniçãomaisprecisaacercadoqueé,exatamente,aquele“Eu”afirmadoexistente.Sua
perguntaéradicaleest ávoltadaimediatamenteàsuapróprianatur eza:Euexisto.Euexisto
comoumarealidadenãomaterial.Masqualofundamentoúltimod essarealidade?Oqueé,
precisamente,esseexistente?
Aquestão,portanto,serelaciona,d iretame nte,àidentidadeprópriado“Eu”.Nãose
trata tanto de interrogálo quanto à sua existência, m as,principalmente, quanto à natureza
mesmadessaexistênciaque,pornãoconter,imediatamente,aclarezaedistinçãodestaúltima,
requerumaprudenteecautelosarevisãodepercurso:umconfrontodaconsistênciadeseus
argumento sdeantesedepoisdasmeditaçõesfeitasatéesseponto.Emtermosmaisprecisos,a
radicalidadedaperguntaimpõeaomeditado rfazerumresumodetudooqueacreditavaser
antesdasmeditaçõeseporàprovatalco nvicçãodiantedetudooquejápôdedescobrirdepois
delas.
Essaestratégiavalelembrar,éempregadaporDescartes,sobretudo,paragarantirque
omeditadornãocomprometaoqueatéa goraéoconhecimentomaiscertoaoqualchegou:
queo“Eu”existepsicológicaemetafisicam ente;poisseriafatalao
cogito
se,nestaalturada
med itação, surgisse qualquer engano quanto ao que r ealmente é a n atureza mesma dessa
certeza,porisso:“[...]doravante,éprecisoqueeutometodocuidadoemeguardeparanão
tomarimprudentementealgumaoutracoisapormim[...]”
278
.
Descartes quer primeiramente certificarse de que a solução à questão – O que é,
precisamente,esse“Eu?–nãoincor reránosmesmoserrosgerado speloscritériosadotados
pelasantigasopiniões.Paratanto,afimdelivrarselogodesseriscoqueparecetãoiminente,
oelasmesmas,asantigasopiniõesou“[...]ospensamentosquenasciamatéagoraporsi
mesmosemmeuespírito,eq uemeeramsomenteinspirado sporminhanatureza[...]
279
,que
marcam o iníc io de sua investida. Interrogase: “O que, então, eu acreditava ser até
agora?”
280
.
277
“[...]iefoutienseftrepluscertaine&pluseuidentequetoutescellesquei’ayeuësauparauant.”(Ibid.,p.20).
278
“[...]deformaisil fautqueie prenn e foigneufement gardedeneprendrepas imprudemmentquelqueautre
chofepourmoy [...]”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.1920,traduçãonossa).
279
“[...]lespenféesquinaiffoientcydeuantd ’ellesmefmesenmonefprit, |&quinem’eftoientinfpiréesquede
ma feule nature [...]” (Ibid., p. 20). Notar a equivalênci a das “antigas opiniões” com o pensamento sem
Método”.
280
“Qu’eftcedoncquei’aycreueftrecydeuant?”(Ibid.).
107
A resposta imediata: “[...] eu pensei que era um homem.”
281
, quase passa em total
desconsideração; embora óbvia, é infrutífera e não responde apropriadamente a pergunta
porque implica uma série de perguntas posteriores – O que é o homem? É um animal
racional.Masoqueéumanimalracional?Etc.àsquaisDescartesnãoestádispostoaceder
seutempo.
Especialmenteaessep ropósito,Marquesdizque,
Naverdade,estamosdianted eumarecusadométododedefiniçãodalógic aformal,
segundooqualadefiniçãosefazporgênero próximoediferençaespecífica[...]O
antigo alu no da filosofia escolástica julga que o método de definição [da Escola]
pode produzir questões supérfluas. Estamos aqui diante do m omento em que
aparecerá não só uma nova imagem do mundo, como também do homem. E o
método a ser seguido preconiza ordem, clareza  e distinção. Se, aos olhos do
fundador deste momento primitivo, algo impede a empresa por ser questão sem
importância,de veserevitado.
282
.
Embor aessa interpretação nos pareçademasiadamente vaga namedidaemque não
especifica com detalhesaquilo que seria um método prop riamente cartesiano dedefinição;
todavia,atesedequ eDescartesseafastadométododedefiniçãodalógicaformalpareceser
procedente,sobretudo,dadoofatodequ eoprópriomeditadornãoaceitaanoção“homem”
paradefinirse.
Emnossaopinião,portanto,oquenosparecemaisr azoávelafirmar,aesserespeito,é
que,deumlado,Descartesparece,defato,rejeitarométododedefiniçãopreconizadopela
Escola;deoutro,noentanto,elenãosedetémemexplicitaro queseseriaumateoria própria
dadefinição;mesmoporquenão parecesersuapreocupaçãofundar,apartird,“umanova
imagemdomundoedohomem”,comoparecequererMarques.Ofato,textualmentedescrito,
équeofilósofo nãoaceitaa definição“homem”paraarespostadesuapergunta;e,semmais,
simplesmenteultrapassa a questão semr esolvêla;passa,então,a cons iderar outrasériede
antigasopiniões.
Consideraqueacreditavaterrosto,mãos,braços,umcorpomáquinadecarneeossos,
que se nutria, caminhava, sentia, que pensava e relacionava todas essas ações à alma.”
283
.
281
“[...]i’aypenféquei’eftoisvnhomme.”(Ibid.).
282
MARQUES,J.
Descartesesuaconcepçãodehomem
,199,pp.7778.
283
Cf.DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.20,traduçãonossa.
108
Consideraaindaque,naocasião,mesmopensandoerelacionandotodasestasaçõesàalma,
jamaissedetivera,precisamente,emconhecêla;ou,
[...]seeumedetinha,imaginavaqueelaeraalgumacoisaextremamenterarae sutil,
comoumvento,umachama,ouumarmuitolivrequeestavainsinuadoeespalhado
nasminhasmaisgrosseiraspartes.
284
.
Já quanto ao corpo, ao contrário, Descartes estava tão certo de sua natu reza que
pensavaconhecêlamuitodistintamente,podendo,inc lusive,explicála:
[...]Porcorpo,euentendotudooquepodeserdeterminadoporalgumafigura;que
pode sercompreendidoem algumlugar,epreencher um esp açodetal formaque
todo outro corpo seja dele excluído; que pode ser sentido, ou pelo tato, ou pela
visão, ou pela audição, ou pelo paladar, ou pelo olfato; que pode ser movido de
várias formas, não por si mesmo, mas por alguma coisa alheia pela qual ele seja
tocadoedaqualel erecebaaimpressão.Pois,deteremsiapotênciadesemover,de
sentiredepensar,eunãoacreditava,denenhummodo,quesedevesseatribuiressas
vantagens à natureza corporal; ao contrário, eu me espantava, antes, de ver que
semelhantesfaculdadesseencontravamemcertoscorpos.
285
.
Dessemodo,afigurasequeantesdasmeditações–comasantigasopinesecomo
pensamentosemtodo–ofuturomeditadorestavacertodeconhecermaisocorpoquea
alma: quanto ao primeiro, notese a enfática cer teza e segurança que ele demonstrava na
med idaemquesepropunha,inc lusive,explicálo;qu antoàsegunda,nãoaconhecia,somente
aimaginavacomoalgo“raroesutil,umvento,umaflamaouumar”.Emoutraspalavras,
antes das meditações, o corpo era mais fácil de conhecer que a alma; d epois delas, essa
posiçãomudaráradicalmente;poisumdosobjetivosfinaisdessasmeditaçõesé,justamente,
fazerverqueaalmaémaisfácildeconhecerqueo corpo
286
.
Emtodocaso,continuaomeditador :
284
“[...]fiiem’yarreftois,i’imaginoisqu’elleeftoitquelquechofeextremement rare&subtile,commevnvent,
vneflameouvnairtresdelié,quieftoitinfinué&repandudansmesplusgroffieresparties.”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.20,traduçãonossa).
285
“[...]Parlecor ps,i’entenstoutcequipeuteftreterminéparqu elquefigure;quipeuteftrecomprisenquelque
lieu, & remplir vn efpace en telle forte que tout autre corps en foit exclus; qui peut eft re fenty, ou par
l’attouchement,ouparla veuë,ouparl’ouye,ouparlegouft,ouparl’odorat;quipeuteftremeuenplufieurs
façons, non par luymefme, mais par quelque chofe détranger duquel il foit touché & dont il reçoiue
l’impreffion.Card’auoirenfoylapuiffancedefemouuoir,defentir&depenfer,ienecroyoisaucunementqu e
l’on deuft attribuer ces auantages à la nature corporelle; au contraire, ie m’eftonnois plutoft de voir que de
femblablesfacultezferencontroientencertainscorps.”(Ibid.,pp.2021,traduçãonossa).
286
Cf.Títuloda
MeditaçãoSegun da
em:Ibid.,p.1 8.
109
[...]eu,oquesoueu,agoraqueeusuponhoqueháumalgu émqueéextremamente
poderosoe,seousodi zêlo,maliciosoeastuto,queempregatodasassuasforçase
todasuaindústriaemmeen ganar?
287
.
Istoé,demodogeral,o quesoueudepoisdasmeditaçõesqu efiz?
Neste ponto, Descartes passa a confrontar o que acreditava com o que descobriu.
Aindaprecavidoquantoaosriscosdeenganarse,omeditadormantémapráticadadúvidae,
novamente,fazapareceroDeusmalignoparaquestionaravalidadedoconhecimentoquese
queradquirir;qualseja,conhecimentoagoranãomaissobreaexistênciarealdo“Eu”esim
sobr eoqueé,essencialme nte, este“Eu”dadocomoexistente.
Diz:“[...]po sso me assegurardeter  amenordetodasascoisasqueeu atribuíaqui
acimaànaturezacorporal?”
288
.
Noquer espeitaaocorpo:rosto,mãos,bro s,sentidos,movimento,nãohágar antia
algumadequeelesexistem,poisseoprópriocorponãor esistiuàdúvida,consequentemente,
nada que seja corpóreo resistiria a ela; portanto, dessas coisas, nenhuma pode ser,
essencialmente,encontradano“Eu”
289
.
Jánoquerespeitaàalma,umavezqueosseusatributos:caminhar ,senutriresentir
dependemdocorpo,elestambémnãom nenhumagarantiadenãoseremmerosenganos,
dadoque,estandoemsuspensãoanaturezacorporal,tambémnãosecomprovariaaexistência
de quaisquer atributos que viessem, de algum modo, a dela depender. E ainda que,
especificamente,oatributosentirfossepossível,porexemplo,atravésdosonho,tambémele
nãoestariagarantido,vistoqueavigíliatãologoocomprovariaser,talcomotodaa realidade
corpórea,nadaalémde ummeroengano
290
.
287
“[...]moy,quifuisie,maintenantqu eiefupofequ’ilyaquelq’vnquieftextremementpuiffant&,fi iel’ofe
dire,mailicieux&rufé,quiemployetoutesfesforces&toutefoninduftrieàmetromper?”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,traduçãonossa).
288
“Puisiem’affurerd’auoirlamoindredetouteslesch ofesquei’ayattibuécydeffusàlanaturecorporelle?”
(Ibid.).
289
“[...]passoerepassotodasascoisasemmeuespírito,eeunãoencontrolánenhumadaqualeupossadizer
estaremmim.”.[...]paffe&repaffetoutescesch ofesenmonefprit,&ien’enrencontreaucunequeiepuiffe
direeftreenmoy.”(Ibid.).
290
“Osprimeirossãoosdemenutriredecaminhar;masseéverdadequeeunã otenhocorpo,éverdadetambém
queeunãopossocaminharnemmenutrir.Umoutroéodesenti r;masosepodetambémsentirsemocorpo;
mesmoporqu e,outrorapenseisentirváriascoisasdurante osono,queaomeudespertar,reconhecin ãoter,de
fato,sentid o.”.Lespremiersfontdemenourir&demarcher ;maiss’ileftvrayqueien’aypointde|corps,il
eft vrayauffiqueienepuismarchernymenourir. Vnautreeftdefentir;maisonnepeutauffifentirfansle
corps:outrequei’aypenféfentirautrefoisplufieurschofespendantlefommeil, quei’ayreconnuàmonreueil
n’auoirpointemeffetfenties.”(Ibid.).
110
Resta,dessemodo,aanálisedeumúltimoatributodaalma:opensar.Quantoaesse,
dizDescartes:“[.. .]eujulgoaquiqueopensamentoéumatributoquemepertence:elenão
podeserseparado demim.”
291
;istoé,opensamento,atributodaalma,é,detodososatributos
mencionados,oúnicoqu etemagarantiadenãosetratardeu menganoe,porisso,pertencer,
essencialmente,ao“Eu”.
Mas, porque,exatamente, opensamento é o únicoatributoque tem essagarantia?
Ora,porquesomenteeleresisteaocrivodavida.Eporquesomenteeleresiste?Namedida
emqueopróprioatodadúvidaorequ ernecessariamente– paraduvidaréprecisopensar ; de
todososatributoslistados,o pensamentoéoúnicoobjetodadúvidaqueseafirmanopróprio
atodeduvidar;ouseja,porquesurgecomocondição
sinequanon
dadúvida,opensarnão
podeporelaserinvalidado;aocontrário,porqueavidanãoémaisqueumaexpressãodo
pensamento,opensarseafirmasempre,acadaatodadúvida.
Portanto, o “Eu”, ago ra de posse do seu único atributo: aquele “que não pode ser
separado de m im” o pensamento –, pode certamente retomar com mais propriedade e
precisãoa definiçãodesua natureza.Dizomeditador:
Eusou,euexisto
:issoécerto; masporquantotempo?Asaber,portodootempoem
queeupenso;pois,talvezpoderiaocorrerseeucessassedepensar,queeucessaria
ao mesmo tempo de ser ou de existir. Eu não admito agora nada que não seja
necessariamente verdadeiro: eu sou, então, precisamente falando, somente, uma
coisaquepensa,i stoé,umespírito,umentendimentoouuma razão,quesãotermos
cuja significação me era, anteriormente, desconhecida. Ora, eu sou uma coisa
verdadeira,everdadeiramenteexistente;masquecoisa?Euodisse:umacoisaque
pensa.
292
.
2.1.1 –Dacoisapensante:oprópriopensamentoouuma“coisaque”pensa?
291
“[...]ietrouueicyquelapenféeeftvnattributq uim’ap partient:ellefeulenepeuteftredétachéedemoy.”
(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,traduçãonossa).
292
Iefuis,i’exifte
:celaeftcertain;maiscombiendetemps?Afçauoir,autantdetempsqueiepenfe;carpeut
eftrefepouroitilfaire,fiieceffoisdepenfer,queiecefferoisenmefmetempsd’eftreoud’exifter.Ien’admets
maintenantrienquinefoitneceffairement vray:iene fuisdonc,precifement parl ant,qu’vnechofequipenfe,
c’eftàdirevnefprit,vnentendementouvnerai fon,quifontdestermesdontlasignificationm’eftoitaup arauant
inconnuë.Oriefuisvnechofevraye,&vraymentexiftante;maisquellechofe?Iel’aydit:vnechofequipenfe.”
(Ibid.).
111
A conquista dopensamento enquanto único atributo pertencente ao“Eu” como sua
próprianaturezaéummarcofundamentalnointeriorda
MeditaçãoSegunda
.Diferentemente
do momento da fundação do
cogito
em que, nos termos de nossa análise, o pensamento
aparecejuntamentecomapersuasãocomocondiçõesdep ossibilidadesparaaexistênciareal
do “Eu” – as d uas ordens de certeza d o
cogito
: psicológica e metafísica
293
–, aqui, o
pensamento aparece sozinho e não como condição de possibilidade,  mas, como o único
atributopertencente,essencialmente,ao“Eu”.
Por quenão apareceneste ponto aquela“ordempsicológica”do
cogito
?E qual é a
diferença para o pensame nto entre ser “condão de possibilidade” e único atributo
pertencente,essencialmente,ao“Eu””?
Àprimeiraperguntarespondeseque:Aordempsicológicado
cogito
surgiuquandoda
intervençãodo
MalinGénie
eserviuparacomprovar,psicologicamente,atravésdainserção
de um “Outro”, a confirmação da existência real do Eu”; daí em diante, ele foi tomado,
portanto, como condição de possibilidade de tal existência na medida mesma em que
estabeleceumacomprovaçãoradicaldamesma:adúvidaelevadaaoseum áximonívelpara
tornarabsolutamenteindubitávelaexistênciaquesequerprovada.
Nesse sent ido,ele–oar gumentopsicológico –oprecisamesmo apareceraqui.É
que,noquedizrespeitoàexistênciarealdo“Eu”,elejácumpriuoseupapel:essacertezajá
estáafirmadaeoqueestáemquestãonesteponto,comojádissemos,éanaturezaprópria
desseexistente,asuaessência,enãomaisasuaexistência.
Essefatojáindicaarespostadasegundaquestão;istoé,op ensamento,aquitomado
comoatributo,sedistinguedaqu ela“o rdempsicológicad o
cogito
”namedidamesmaemque,
enquantoatributo,eleestádiretamenteremetido,sobretudo,àquestãodanaturezaprópriado
“Eu” e nãoà composiçãode condições depossibilidadedesuaexistência.
Talvez seja o caso de estabelecermo s aqui uma distinção  funcional: de um lado,
enquantocondiçãodepossibilidade,opensamentoé,precisamente,umargumento;deoutro,
enquantoatributoúnicodo“Eu”,eleé,propriamente,umaentidade
294
.
293
Cf.,capítuloanterior,fls.9395.
294
Voltaremos adiante aessadistinção. Notar,desde já, quesetratade umadistinção puramentedidática, a
propomossomenteparaummelhoresclarecimentodostermosdenossaanálise.
112
Nesses termos, portanto, em um breve resumo, podemos destacar três momentos
cruciaispelosquaispassouomeditadoratéaqui:1 ºAsuposiçãodainexistênciadarealidade
materialjuntamentecomaconsideraçãodapossibilidadenãomateriald oexistente
295
;2 ºA
possibilidadedequetalrealidad enãomaterialpudessesero“Eu”
296
;3ºAcomprovaçãode
queo“Eu ”éessarealidade
297
.
Daí em diante, envolvido, então, com  as considerações acerca d a natureza mesma
dessacomprovadarealidadeomaterial–o Eu”,omeditadorconcluiu,depois,quetal
naturezaécaracterizadaunicamentepelopensamento;talcomoelemesmoafirmou:“eusou,
então,precisamente falando,somente,umacoisa quepensa”.
Masoqu eéuma“coisaquepensa”?
Umacoisaquepensa”,jánosdisseDescartes,é:“[...]umespírito,umentendimento
ouumarazão[...]”
298
.
Ora, essa definição nos coloca jádiante de um problemabastante difícil: Ser uma
“coisaquepensa”é,precisamente,ser“umespírito,umentendimentoouumarazão”;istoé, 
ser“oprópriopensamento”?Ou,seruma“coisaquepensa”éser,talcomoopróp rionome
indica:“u macoisaque”temapropriedadedepensar?
Querdizer:“Ser”e“pensar”seidentificamnumamesmarealidade–opensamento–,
ousãoduasrealidadesdistintas“ser”éasubstânciae“pensar”,oatributodessasubstância?
Porhora,importa,sobretudo,notaroquantoessadefiniçãocartesianadoqueéuma
“coisa que pensa” se apresenta, a princípio, confusa; pois, sabendo que, se tratando da
naturezado“Eu”,opensamentojáfoitomado,precisamente, como suapropriedade,istoé,o
atributoúnico desuanatureza,como seexplicaessa aparentesubstancialização do atributo
supostanessadefinição?Suporquea“coisaquepensa”éoprópriopensamento,istoé,“um
295
“Mas,queseieusenãoháalgu maoutracoisadiferentedaquelasqueeuacabodejulgarincertas,daqualnão
sep ossateramenorvida?”.“Mai squefçayies’iln’yapointquelqueautrechofedi fferentedecellesqueie
viens de iuger incertaines,  de laquelle on nepuiffe auoir le moindre doute?” (DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.19,traduçãonossa).
296
“Eu,então,pelomenos,nãosoualgumacoisa?”.Moydo ncàtoutlemoinsnefuisiepasquelquechofe?”
(Ibid.).
297
“Nãohá, então,nenhumavidadequeeusou,seelemeengana;equeelemeeng aneoquantoquiser,ele
nãopoderá,jamais,fazerqueeunãosejanada,enquantoeupensarseralgumacoisa.”.Iln’yadoncp ointde
doutequeiefuis,s’ilmetrompe;&qu’ilmetrompetantqu’ilvoudra,ilneauroitiamaisfairequ eienefois
rien,tantqueiepenferayeftrequelquechofe.”(Ibid.).
298
“[...]vnefprit,vnentendementouvneraifon[...]”(Ibid.,p.21,traduçãonossa).
113
espírito,umentendimentoouumarazão”nãoé,afinal, substancializaraquilo quefoitomado,
antes,comoatributo?Querd izer:seopensament oéumatributo,comopodeapareceraquia
suposiçãodequeeleseidentificacom asubstância–coisaquepensa”?EstariaDescartes,
agora, abandonando a tese dequeo pensamento é oúnico atributo da alma e tomandoo
como a própria alma? Em uma palavra, o que é, afinal, uma “coisa que pensa”: uma
substânciaq ueéoprópriopensamentoouumasubstânciaquetemcomoatributoopensar?
299
.
Embor aessasindagaçõesrepresentemumaproblemáticadealtíssima importância,elas
devem,noentanto,aomenosnestemomento,seremmantidasemaberto;pois,respeitandoa
ordem das razões do meditador, essas dificuldades não estão ainda em pauta noponto da
med itaçãonoqualnosencontramos.
Aí,antesdeprosseguir,nossomeditadorparecesentiranecessidadedecertificarse,
mais detalhadamente, daafirmaçãoquefez de seruma“coisaqu epensa”;e,por isso,está
concentrado, exclusivamente, em compreendêla da maneira mais aprofundada possível:
“Ora,eusouumacoisaverdadeira,everdadeiramenteexistente;masquecoisa?Euodisse:
umacoisaquepensa.“[...] Eoquêmais?”
300
.
Como  se vê, seu objetivo, na verdade, parece ser o de esgotar completamente a
questão;contudo,essapassagem,especialmenteemrazãodesuaúltimainterrogação,mostra
nosomeditadorumtanto apreensivonestepontodameditação;elapareceexigirdelemaisdo
que ele pode oferecer sobre o conteúdo afirmado
301
e talvez, por isso mesmo, seja ela a
299
Aessepropósito,GilsondefendeenfaticamentequeagrandemodificaçãometafísicadeDescartesemrelão
àmetafísicatradicionaléjustamenteofatodequeateoriacartesianaoperaumasubstancializaçãodoatributo;
isto é, a substância o é senão o atributo substancializado. Nesse caso, segundo Gilson, o cartesianismo,
diferentementedaescolástica,vênoconhecimentodaspropriedadesumconhecimentodasubstância,elamesma.
Cf.GILSON,E.
Étudessurlerôledelapenséemédiévaledanslaformationdusystèmecartésien
,1984,p.304.
Entretanto,essaposiçãodeGilsonencontracompletacontestaçãonaanálisedeAlquié.Segundoesseitérprete,o
substancialismodeDescartesé mais queorealismodopensamentopropostoporGilsonepelosidealistasem
geral;emtese,Alquiédefendequeo
cogito
nãosignificaofatodequeeusouresultadodoatodepensar,masao
contrário,oatodepensaréresultadodo fatodequeeusou.Dessemodo,essecomentadoradvertequeose
podeesquecerjamaisqueaalmaépropriamente
res cogitans
enãoexatamente
cogitatio
.Cf.ALQUIÉ,F.
La
découvertetaphysi quedel’hommechezDescartes
,1996,pp.181182.E,nessesentido,tambémBeyssade
concordacomAlquié:o
cogito
representa“umacoisaquepensasim.Umpensamentonão.”(BEYSSAD E,J.M.
A Teoria Cartesiana da Substância. Equivocidade ou Analogia? In:
Analytica
, v. 2, n. 2, p. 30, 1997).
Destacamosasp osiçõesdessesautoressomenteparaquetenhamosnoçãodograudedificuldadesdaquestãoque
aquiinvestigamos.
300
“Oriefuisvne chofevraye,&vraymentexiftante;maisquellechofe?Iel’aydit:vnechofequipenfe.[...]Et
quoydauantage?”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,traduçãonossa).
301
Se tamanha apreensão nesta altura da meditação pode parecer, a princípio, estranha na medida em que a
descoberta de ser uma coisa que pensa” já foi dada como uma certeza indubitavelmente est abel ecida; vale
anteciparqueaapreensãodomeditad oraquinãoestátantoemduvidardoafirmado,masemcompreen dêlo.A
estaaltura,aatenção r edobraseparaevitarconfusões.
114
principal responsável porum novo assalto dadúvida que o acomete:Eu existo e sou  uma
“coisa que pensa”, mas eu sou mesmo, somente, uma coisa pensante? Será que não me
enganei?Querdizer:seráqueagora,depossedacertezadequeo“Eu”existeeéuma“coisa
quepensa”,eunãodeveriarevisaralistadetodaarealidadematerialnegadaparacomprovar,
maisumavez,ascondiçõeseaprópriacertezaqueproferi?Seráquetodaareal idadematerial
negada,defatonãoexiste?Istoé,ohápo ssibilidadedeelatersidonegadajustamentepelo
fatodeo“Eu”desco nhecêla?
302
.
De modo geral, é como se, a princípio, a simples pergunta: “E o quê mais?”,
invalidassetodooitineráriomed itativopercorr idoatéesteponto,pois,comela,oqueparece
mais evidente éque acertezade existircomouma“coisaquepensa”parecenãobastarao
med itador;écomoseeleprecisassedeoutracertezaquenãoessa.
Noentanto,paraumacompreensãocorretadessaquestão,cumpr enotar,antesdetudo,
ascondõessegundoasquaissetornoupo ssívelesseassaltotãorepentinodadúvida.Éque
nestepontodameditação,omeditadortemumaúnicacertezaemseuesp írito:adeq ueo
“Eu” existe como u ma “coisa que pensa”. De resto, não sabe absolutamente nada
303
; se,
todavia,aindaassim,omeditadorsepõeaaventurarseemespeculaçõesso breou trascertezas
quenão,especificamente,aq uela,tudoissoo p assadeumabuscaimagináriadecertezas
possíveis
304
que,emúltimaanálise,sólevaaconfirmarmaisaindaapropriedadedacertezajá
302
“Mas também pode acontecer que essas mesmas coisas, que suponho não serem, porque elas me são
desconhecidas,nãosejam,c omefeito,diferentesdemim,queeuconheço?”:“Maisauffipeutilarriuerqueces
mefmes ch ofes, | que ie fuppofe n ’eftre point, parce qu’elles me font inconnuës, ne font point en effect
differentesdemoy,queieconnois?”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,tradução
nossa). Esse assalto da vida, com já assinalamos, em hipótese alguma significa qualquer insegurança de
Descartesquanto à certezappriado
co gito
;talestratégiavisacertificarqueadúvidacumpriuoseupapel e
que, portanto, não há nenhum outro atributo, além do pensamento, qu e possa ser atribuído ao Eu”. Os
parágrafosseguintesesclarecemmehorestasituaçã o.
303
Metodicamente,todaarealidadecorpóreacontinuainexistente.
304
E é exatamenteo que diz Descartes: Eu excitarei ainda minha imaginação, para procurar se eu não sou
algumacoisamais.Eunãosouessaconjunçãode membrosquesechamaocorpohumano;eunãosouumar
livreepenetrante,difundindoemtodosessesmembroeunãosouumvento,umsopr o,umvapor,nemnadade
tudo oque eupossosimulare imaginar,já que eusupus quetudo issonãoeranada, eque, semmud ar essa
suposição, eu acho que eu não deixo de estar certo de que eu sou alguma coisa.”. “I’exci teray encore mon
imagination,pourchercherfiienefuispointquelquechofedeplus.Ienefuispointcéta ffemblagedemembres,
quel’onappelelecorpshumain;ienefuis poi ntvnairdelié&penetrant,répandudanstouscesmembers;iene
fuispointvnvent,vnfouffle,vnevapeur,nyriendetoutcequeiepuisfeindre&imaginer,puifquei’ayfupofé
quetout celan’eftoitrien,&que,fanschangercettefupofiti on,ietrouuequeienelaiffepasd’eftrecertainque
iefuisquelquechofe.” (DESCARTES,R.op.cit.,p.21,traduçãonossa).
115
obtidpois,nofinal,nada,adverteomeditador:“[...]daquilodoqueeupossocompreender
pormeiodaimaginação ,pertenceaesseconhecimentoqueeutenhode mimmesmo[...]”
305
.
Nessestermos,portanto,inicialmente,interessaaomeditador,sobretudo,ascoisasque
lhesãoconhecidasenelaséqueeledevedet er,exclusivamente,asuaatenção;porisso,todos
osseusesforçosestãovoltadosu nicamenteparaaseguintetese:“[...]eureconheciqueeuera,
eeuprocurooqueeusou,euquereconheciser.”
306
.
Absolutamentenadapodedesviaromeditadordessereferencial eatualsituação;além
doque,nãohánenhumanecessidadedessedesvio,pois:“[...]émuitocertoqueessanoçãoe
conhecimento de mim mesmo, assim precisamente tomada, não dependa das coisas cuja
existênc ia não me é, ainda, conhecida [...]”
307
. Enfim, por tod as essas razõ es, saberse
existente enquanto uma “coisa que pensa” é, portanto, perfeitamente o bastante para o
med itador nestepontodameditação
308
.
Entretanto,setudoissoéverdade,porque,exatamente,diantedacertezad equeexiste
como uma “co isa que pensa”, o meditador recorreria a uma busca imaginária de certezas
possíveis,comodissemos?Qualéosentidodaimaginaçãoaquiseelaparecetãodispensável
e mesmo per igosa, como advertiu o meditador? Se esse mesmo meditador deveria estar
exclusivamenteconcentrado nacertezajáafirmada,oqueexplica,emúltimaanálise,ofatode
eleabertamente“excitarsuaimaginaçãop araprocurarsenãoéalgumacoisamais”?
305
“[...]riendetoutceq ueiepuiscom|prendreparlemoyendel’imagination,n’apartientàcetteconnoiffance
quei’aydemoymefme[...]”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.22,traduçãonoss a).
Assim,proporapergunta:“Porqueo“Eu”éuma“coisaquepensa”enadamais?”alémdereafirmaro
cogito
,
reafirma também a exclusividade do Método pelo qual ele foi alcançado; pois, a esta altura da meditação, é
necessário ter por certo que toda e qualquer outra coisaque não o pensamento foi, defi nitivamente, alvo d e
rejeiçãoabsolutapelavida;istoé,nãohánadamaisasuporalémdopróprio pensamento,sóelerestou.
306
“[...]i’ayreconnuquei’ftois,&iecherchequelliefuis,moyquei’ayreconnueftre.”(Ibid., p.21,tradu ção
nossa).
307
“[...]efttrescertainquecettenotion&connoiffancedemoymefme,ainfiprecifementprife,nedepen dpoint
deschofesdon’t|l’exiftencenem’eftpasencoreconnuë[...]”(Ibid.,pp.2122).
308
Nessestermos,essaquestãopareceestarpostaeresolvida:“O
Cogito
–quenãodeveserinterpretadocomo
ummeroatointelectual,mascomoum‘possuirnaconsciência’–afirmaque‘eusouumacoisapensante’com
completaindependênciadac oincidênciadopensar comasituaçãoobjetivaeatémesmoda própriaexistência
dessasituação.”(FERRATERMORA,J.
Dicioriodefilosofia
,2000,tomoI,p.672).Deacordocomisso,o
meditador não precisa, portanto, de nenhum recurso imaginário para estar certo de sua definição  inicial ; ao
menoséoque,inicialmente,parece.
116
Ora,definitivamente,Descartesnãoapresentariaaquiorecur sodaimaginaçãoseele
não tivesse significativa importância
309
. Em nosso entender, a inusitada inserção da
imaginaçãonessepontodam editaçãorepresentaummarcodecisivonadefiniçãodanatureza
própriada“coisaquepensa”;poisaexistênciadesuposiçõesimaginárias,especialmente,ade
queo“Eu ”pudesseseralgumacoisaalémdeser,somente,uma“coisaquepensa”,pressupõe,
inegavelmente, que este mesmo “Eucoisa que pensa”, completamente distinto e
independente,comovimos,étambém,um“Euqueimagina
310
,e,nessecaso,a“coisaque
pensa”é,portanto,igualmente,umacoisaqu eimagina
311
.
E é essa certeza, em nossa opinião, não menor que qualquer outra, que abre,
finalmente,ocaminhoparaumasegundadefiniçãoqueDescartesforneceacercadanatureza
própriada“coisaquepensa”:
Mas,o que é entãooque eusou? Umacoisa que pensa. Oque é umacoisa que
pensa?Istoé,umacoisaqueduvida,queconcebe,queafirma,quenega,quequer,
quenãoquer,queimaginatambém,equesente.
312
.
Nesses termos, embora, de um lado, o meditado r deva se manter distante da
imaginaçãoparaquepossareco nhecercom maisclarezasuanatureza,deoutro,nãoépossível
negarqueopoderdeimaginarnãoexistarealmentenele;co motambémoépossívelnegar
queestamesma“coisaquepensa”é,emtermosespecíficos,também“umacoisaqueduvida,
queco ncebe;queafirmaequenega;quedeseja equeoquer;queimaginaequesente”;
pois,emú ltimaalise,comodefendeopróprioDescartes:nãoháseparaçãoenemdistinção
entrenenhumdestesatributos eopensamento,atributodo “Eu”;ouseja,pensar também é
duvidar,conceber,negar,desejaretc.:
Nãohánadadetudoissoquesejatãoverdadeiroquantoécertoqueeusou,equeeu
existo,mesmoseeudormissesempre,equeaqueleque medeuoserse servissede
todas as suas forças para me enganar? Há, também, algum desses atri butos que
309
Nãohaverianenhumaaproximaçãodorecursopsicológicod o
Mal inGénie
,talcomooconcebemos,como
recursoimagináriopresentenesteponto?Nãoteriam,osdois,nostermosdenossaanálise,amesmafunção?
310
Arigor,negaroimaginadonãosignificanegaraima ginação.
311
Obviamente não se trata da imaginação aqui enquanto essência própria da coisa que pensa”, que é,
precisamente, o pensamento; tratase d ela enquanto participante dessa essência; isto é, pensar é também
imaginar.
312
“Maisqu’eftcedoncqueiefuis?Vnechofequepenfe.Qu’eftcequ’vnechofequipenfe?C’eftàdirevne
chofe qui doute, qui cooit, qui affirme, quinie, qui veut, qui ne veut pas, qui imagine au ffi, & qui fent.”
(DESCARTES,R.
MeditationsMetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.22,traduçãonossa).
117
possa ser distinguido de meu pensamento,ou que se possa dizer ser s eparado de
mimmesmo?Poisé porsitãoevidentequesoueuquem duvida,quementende e
quemdeseja,quenãoéaquinecessárionadaacrescentarparaexplicálo.
313
.
Posto isso, agora podemos, com essa segunda  definição da “coisa que pensa”
fornec idapor Descartes,retomaraqui,certamente sob umnovo nível,aquelas dificuldades
quemantemosemabertoacima.Emresumo,perguntávamos:“Ser”e“pensar”seriamuma
mesmarealidadeouduasrealidadesdistintas?
Enquanto aquela primeira definição da “coisa que pensa” como “um espírito, um
entendimento ouumarazão” semostrava confusaanós,na medidaemque a entendíamos
comoaafirmaçãodequea“coisaquepensa”seriaop rópriopensamentoenão,exatamente,
uma “coisa que” tivesse a propriedade essencial de pensar, essa segunda definição de
Descartes,nessestermos,parecenãodeixardúvidasdeque“coisaquepensa”é,defato,como
facilmenteseentende,nãooprópriopensamento, masum a“coisaque”–asubstânc ia– tem
apropriedadeessencialdepensar– oatributo.
Dessemo do,seconsiderarmosa“coisaquepensa”talcomodefinida,duasvezes,pelo
própriofilósofo,estaremosdiantedeumaequ ivocidadedefiniria;qualseja,quea“coisaque
pensa”pareceserdefinidadeduasmaneiras:ora,naprime iradefinição, comoumasubstância
queéoprópriopensamento;ora,nasegundadefinição,comoumasubstância–uma“coisa
que”–temcomoseua tributoopensar.E,nessecaso,jásabemos:“pensamento”aqu itomado
jáapartirdesuaequivocidadeprópria;istoé,nãocomoummeroatopuramenteintelectual,
mas,também,comoumatodavontadeemgeral:conceber,negar,afirmar,desejaretc.
Nessestermos,aqu estãodesaberse“ser”e“pensar”sãoumamesmarealidadeou
duasrealidadesdistintas pareceser,naverd ade,umfalsoproblemanamedidamesmaemque
elanãosesustentaanteaeq uivocidadedefinitóriadeDescartes,que,nessecasoespecífico,
parece defender a concepção da “coisa que pensa” de uma maneira divers pois, o que
decorre daí é que “ser” e “pensar”, como já dissemos, ora podem ser tomadoscomouma
mesma realidade – serépensar e pensar é ser –; orapodem ser tomadoscomorealidades
distintas–seréumasubstânciadaqualopensaréoatributo.
313
“Yatilriendetoutcelaquinefoitauffiveritablequ’ileftcertainqueiefuis,&quei’exifte,quandmefme|
iedormiroistoûjours,&que,celuyquim’adonnél’eftrefeferuiroitdetoutesfesforcespourm’abufer?Yatil
auffiaucundecesattributsquipuiffeeftrediftinguédemapenfée,ouqu’on puiffedireeftre feparédemoy
mefme?Carileftdefoyfieuidentquec’eftmoyquidoute,quientens,&quidefire,qu’iln’eftpasicybefoinde
rien adjoufter pour l’expliquer.” (DESCARTES, R.
Meditations Metaphysiqves
, A.  T., IX, I, p. 22, tradução
nossa).
118
Nessesentido,oquenosparecemaisimportantedeternestepontoé,sobretudo,essa
equivocidade definitória de Descartes;pois, afinal, definira “coisa que pensa” de maneira
diversanãoéestabelecerumaequivocidadeprópriaao
cogito
?
314
.
Investiguemosmaisdepertoaquestão.
2.2 Sobreateoriacartesianadasubstância
Sistematicamente, Descartes nos ofereceu duas definições do
cogito
na
Meditação
Segunda
:
Primeira:“[...]eusou,então,precisamentefalando,somenteumacoisaquepensa,isto
é,
umespírito,umentendimentoouuma
razão[...]”
315
.
Segunda:“Oqueéumacoisaquepensa?Istoé,umacoisaqueduvida,queconcebe,
queafirma,quenega,quequer,quenãoquer,queima ginatambém,eque sente.”
316
.
Em nossa opinião, essas duas definições que Descartes nos fornece do
cogito
representamsuaequivocidadeprópria.Naprimeira,sustentamosahipótesedequeofilósofo
identificaa“coisaquepensa”como própriopensamento:“umacoisaquepensaéumespírito,
um entendimento ou uma razão”; na segunda, por  sua vez, sustentamos que a “coisa que
pensa”aparececlaramentecomoalgoquetemapropriedaded ealgumaoutracoisa,nocaso:
pensar,duvidar,conceber,afirmar,negar,querer,nãoquerer,imaginaresentir.
Maisquediscutiro conteúdomesmodessashipóteses,entendemosqueo
cogito
foi
conceituado em duas definições, justamente, para que sua equivocidade ppria fosse
explicitamenteexpressa;e,nessecaso,quesetornasseimediatamenteevidentequeotermo
“pensamento”,nointeriormesmoda“coisaquepensa”, pode,ounão,distinguirsedela.
314
Cogito
,apartirdaqui,comosinônimode“coisaquepensa”.
315
“[...]ienefuisdonc,precifementparlant,qu’vnechofeq uipenfe,c’eftàdirevnefprit,
vnentendementou
vne raifon
[...]” ((DESCARTES, R.
Meditations metaphysiqves
, A. T., IX, I, p. 21, tradução nossa, grifos
nossos).
316
“Qu’eftcequ’vnechofequipenfe?
C’eftàdirevn echofequidoute,quiconçoit,quiaffirme,quinie,qui
veut,q uineveutpas,quii magineauffi,&quifent.
”(Ibid.,p.22,traduçãonossa,grifosnossos).
119
Emoutrostermos,acr editamosqu eDescartesnosforneceuduasdefiniçõesdo
cogito
paraquesemanifestasseemsuatotalequivocidadeorealalcanced eseuprincípio:o
cogito
conjugaems imesmoatotalidadedeumasubstânciaque,nomovimentoprópriodeafirmação
de sua natureza, não se encerra numa metafísica exclusivamente racionalista sem antes
reconheceroestatutopropriamenteontológicodavontadeemgeral.
2.2.1 –Daquerela:essênciaemodosdasubstância
Éimportantecontextualizar,mesmoquedemodobastantegeneralizado,asrelações
queessasduasdefiniçõesdo
cogito
fornecidasporDescartesestabelecementresinoconjunto
geraldametafísicacartesiana.
Lebrun,emnota,entendequeDescartesdistingueessasduasdefiniçõesentreessência
e modos da substância; nesse caso, o fisofo teria estabelecido que a definição primeira
deter minariaaessênciappriada“coisaquepensa”,enquantoasegunda,osseusmodos.
NaspalavrasdopróprioLebrun:“Aí(naprimeiradefinição)determinavaseaessência
da substância ‘coisa pen sante’;aqui(na segundadefinição) elaédescritarevestida de seus
diferentes modos.”
317
; e acrescenta: “Desse novo ponto de vista, reintegrase na ‘coisa
pensante o que fora excluído de sua essência.”
318
. Nos mesmos termos, ainda segundo
Lebrun, todos os modos d a substância, embora não pertençam à natureza do
cogito
, não
podem serpostosemdúvida,namedidaemquesebeneficiamdesuacerteza
319
.
Essao bservação de Lebrun, que reflete grande p arte da interpretação geral sobre o
tema, parece, em nossa opinião, simplificar, demasiadamente, a questão; po is, a rigor, a
distinção entre essênciae modosda substância não nos parece sed ar deuma maneira tão
rigidamenteestabelecida,comoparecedefenderLebrun;e,alémdisso, aassociaçãodasduas
definições do
cogito
com essa distinção entre essência e modos da substância, tal como
indicou esse comentador, embora possa ser percebida nos
Princípios
, a partir, mais
exatamente,dosseusartigos:09,32,52,53,56e57, devesedizer,noentanto,quenãoéuma
317
LEBRUN,G.In:DESCARTES,R.
Meditações
,1973,p.103,nota38.
318
Ibid.
319
Cf.Ibid.
120
posiçãotextualpropriamenteassumidap orDescartes;istoé,ofilósofo,quandocomentasu a
teoriadosmodosnãoaassocia,textualmente,àquelasduasdefiniçõesdo
cogito
.
Dessa forma, opomosnos à maneira simplista com  a qual Lebrun parece tratar a
questão;todavia,devemosreconhecerqueeleinseriuemnossadiscussão umelementosemo
qual, certamente, não podemo s prosseguir em nossa análise: a noção de “modo s” da
substância.
Porém,antesmesmodetomarmos,precisamente,essanoçãocomoobjetoespecífico
denossareflexão,somosporelaimediatamenteremetidosaumaoutranoçãoqueaprecede
em termos de análise; é que só entenderemos, apropriadamente, o que são os “modos da
substância se nos voltarmos antes àquilo mesmo que esses modos afirmam: a própria
substância.
Emoutrostermos,aoindicaradistinçãoentre“essência”e“modos”dasubstância,na
tentativadeexplicaraquelasduasdefiniçõesdo
cogito
,ainter pretaçãodeLebrunacaboupor
apresentarnosoestatutomesmonoqualtantoa“essê ncia”quantoos“modos”da“co isa que
pensa”encontram um
locus
comum:apróprianoçãodesubstância.
E,paraqueavancemosmaisaindanaanálisedasrelaçõesqueasduasdefiniçõesdo
cogito
estabelecementresino conjuntogeraldametafísicacartesiana,épreciso, na ordem
própria da análise, antes de tratarmos propriamente da noção de substância, determonos,
primeiro,nanoçãodeatributo.
2.2.2Doatributo
Quando Descartes conclui “[...] eu sou, então, precisamente falando, somente, uma
coisaquepensa[...]”
320
,essaconclusão,importalembraraqui,éoresultadomaisimediatode
umalongaargumentaçãoqueaantecede,naqual,p recisamente,opensamentofoidescoberto
e tomado como o único atributo que pertencia, essencialmente, ao “Eu”: “[...] só ele (o
pensamento) nãopodeserseparadodemim.”
321
;diziaDescartes.
320
“[...] ie ne fuis donc, precifement parlant, qu’vne chofe qui penfe [...]” (DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,traduçãonossa).
321
“[...]ellefeulenepeuteftre détachéedemoy.”(Ibid.).
121
Nesse sentido, a noção de “pensame nto” aparece como uma privilegiada chave de
leitura para a nossa investigação. Em tese, a “coisa” substância é uma“coisa que
pensa”–substânciapensante–,porque,justamente,o “pensamento”foi,entremuitos,oúnico
atributoconsideradoqueresistiusuficientementeao crivodavida. Nessestermos, temos
aqui,então, aprimeiradefiniçãodepensamento”queDescartesnosoferecena
Meditação
Segunda
:eleéumatributo.
Nascircunstânciasdaquelaconclusão,constatavaseaindaumoutrodado importante:
opensamento,aquelequetinhasidoconsideradooúnicoatributoessencialmenteexistente,
pertenciaoaocorpo,mas,àalma:
Passemos, então, aos atributos da Alma, e vejamos se há alguns que estejam em
mim.Osprimeirossãoosdemenutriredecaminhar[...]Umoutroéodesentir[...]
Um outro é odepensar; eeujulgoaquique o pensamento éum atributoque me
pertence:sóelenãopodeserseparadodemim.
322
.
Daí, opensamentoserdefinido,portanto,como“atributodaalma”
323
.
Masoqu eo,nessestermos,paraDescartes,almaeatributo?
NasrespostasaGasse ndiháumadefiniçãodaquiloqueofisofoentendeporalma;
diz:“[...]onomealma[...]paratomáloprecisamentecomoesseprimeiroatoouessaforma
principal do homem, ele deve ser somente entendido como aquele princípio pelo qual
pensamos[...]”
324
.
E,nos
Princípios
,Descartesdefineatributodaseguinteforma:
[...] porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natu reza que não podem
existir sem outras, distinguimolas daquelas que só tem necessidade do concurso
322
“Paffonsdoncauxattributs del’Ame,&voyonss’ilyenaquelquesvnsquifoi entenmoy.Lespremiersfont
demenourir&demarcher[...]Vnautreeftdefentir[...]Vnautreeftdepenfer;&ietrouueicyquelapenféeeft
vn attribut qui m’appartient: elle feule ne peut eftre dét achée de moy.” (DESCARTES, R.
Meditations
metaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.21,traduçãonossa).Dizersetratardeumatributodaalmaéomesmoquedizer
tratarse de um atributo do Eu: “alma”, espírito”, mente”, “eu” o, de m odo geral, termos sinônimos na
filosofiacartesiana.P or exemplo:“[...] esseeu,isto é,aalmapelaqual sou oquesou[...]”(Id.
Discursodo
método
,1984,p.28)“[...]ceMoy,c’e ftadire,l’Ameparlaquelleiefuiscequeiefuis[...]”(Id.
Discoursdela
methode
,A.T.,VI,p.33).
323
Primeiro:opensamentoéum“atributo”;segundo:opensamentoéumatribudo“daalma”.Notaraconstrução
dadefinição.
324
DESCARTES, R.
Quintae Responsiones
, A. T., VII, p. 356 apud FORLIN, E.
A teoria cartesiana da
verdade
,2005,pp.130131.
122
ordináriodeDeus, chamandoentão,aestas,substâncias,e, àquelas,qualidadesou
atributosdassubstâncias.
325
.
Noqueserefereàalma,adefiniçãod eDescartesé,t alcomoaquelasduasdefinições
do
cogito
,equívoca.Éque,naprimeirapartedadefinição,ofilósofop arececonceberaalma
comooprópriopensamento:“esseprimeiroatoouformaprincipaldohomem”;e,quando é
inferidonase gundapartedessadefiniçãoqueaalmasejanadamenosqueaqueleprincípio
pelo qualpensamos”,aí,Descartesparececonceberaalma,propriamente,comoasubstância;
pois,emúltimaanálise,nãoéaalmao princípiomesmoatravésdoquala“coisaquepensa”
pensa?
Jánoqueserefereàdefiniçãodeatributo,ofilósofo,nesteponto,nosap resentauma
definiçãobemespecífica:oatrib utoéumacoisacriadaco mnaturezatalquenão“podeexistir
semoutrascoisas”criadas.Todavia,decorredaíq ueéimpossívelconceberqualqueratributo
sem conceber, juntamente com ele, sua substância; e, nesse caso, embora a definição
cartesianadeatributoapresentadaaquitenhasidoestabelecidaesp ecificamente,nãosep ode
alegar, contudo, que essa definição não  confirme, ao menos de modo geral, aquela
equivocidade definitória do filósofo; pois, em última análise, o atributo, em r azão mesmo
dessacar acterísticaqueodefine– suadependênciaabsolutadeumasubstância,noscondu z
sempreaumaduplarealidade:àsuaprópriaeàdasubstânciamesmadaqualeledepende.
2.2.3 –Dasubstância
Se, conforme a definição acima, atributo é sempre uma realidade remetida
imediatamente a uma substância, é algo , p ortanto, fortemente marcado pelo caráter de
325
DESCARTES,R.
Princípiosdafilosofia
,1984,p.92.“[...]
pourceq’entreleschofescreéesquelquesvnes
fontdetellenaturequ’ellesnepeuuentexifterfansquelquesautres,no uslesdiftinguonsd’aueccellesquin’ont
befoinq ueduconcoursordinairedeDieu,ennommantcellescyd esfusbftances,ecelleslàdesqualitezoudes
atributsdecesfubftances
.”(Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,p.47).Essaéaprimeiradefiniçãode
atributoqueDescartesfornecenos
Princípios
.Sabemosquetaldefinição,talcomoapareceemnossacitação,se
mostraemcertos entidomuitosimplistadiantedosdesdobramentosconceituaisqueoautordaráaorespectivo
conceito.Ofatoéqu e,no pontodaar gumentaçãoemqueestamostaldefiniçãoassimnosbasta.Deacordocom
odesenvolvimentodenossaargumentaçãotrataremosorespectivoconceitoemsuagradualcomplexidade.
123
dependência, só existeenquanto talna medidaemque é,necessariamente,atribu ídoaum a
entidadesubstancial
326
.
Desse ponto de vista, ao considerar o pensamento como “atributo da alma”, o
med itador estava lhe concedendo, à alma, o
status
próp rio de substância. E, isso é
explicitamenteconfirmadoporDescartesquando,jáno
Discurso
em1637,d izia:
[...] examinando atentamente que cousa eu era, e vendo q uepodia suporque  o
tinha corpoequenãohaviaqualquer mundo ouqualquer lugarondeeu existisse;
masque,apesardisso,nãopodiaad mitirquenãoexistia;equeantes,pelocontrário,
por isso mesmo q ue pensava, ao duvidar da verdade das outras c ousas, tinha de
admitircomo muito evidente e muito certoque existia;ao passoque bastavaque
tivessedeixadodepensarparanãoterjánenhumarazã oparacrerqueexistia,ainda
quetudooquetin haimaginadofosseverdadeiro;porisso,compreendiqueerauma
substância
,cujaessênciaounaturezaéapenasopensamento,queparaexistiro
temnecessidadedenenh umlu garnemdependedenenhumacousamaterial.
327
.
Mascomosecaracteriza,precisamente,emDescartes,oconceitodesubstância?
Exposto de forma mais ordenada na primeira parte de seus
Princípios
, mais
exatamenteapartirdoartigo51,aprimeiradefiniçãoqueDescartesoferecedesubstância,éa
seguinte:“Quandoconcebemosasubstância,concebemossomenteumacoisaqueexistedetal
maneiraquesótemnecessidadedesiprópriaparaexistir.”
328
.
A rigor, portanto, o conceito de substância, assim definido, só pode ser atribuído a
Deus;poissom enteEleéumserqueparaexistirnãonecessitade,absolutamentenadaalém
326
ConvémlembraraspalavrasdeDescartesquandodaafirmaçãodopensamento enquantoatributo:[...]éum
atributoquemepertence:sóelenãopodeserseparadodemim.”.“[...]eftvnattributquimappartient:ellefeule
ne peut eftre détachée de moy.”(DESCARTES, R.
Meditations metaphysiqves
, A.  T., IX, I, p. 21 , tradução
nossa,grifosnossos).Notarainerênciadoatributoao “Eu.
327
Id.
Discurso dométodo
,1984,p.28.“[...]examinantauecattentioncequei’eftois,&voyantqueiepouuois
feindrequeien’auoisaucuncors,&qu’iln’yauoitaucunmonde,nyaucunlieuouiefuffe;| maisqueiene
pouuoispasfeindre,pourcela,queien’eftoispoint;&qu’aucontraire,decelamefmequeiepenfoisadouter
delaveritédeautreschofes,ilfuiuoittreseuidenment&trescertainementquei’eftois;aulieuque,fii’euffe
feulementceffédepenfer,encorequetoutlerefted ecequei’auoisiamaisimaginéeufteftévray, ien’auois
aucune raifon decroire que i’euffe efté: ieconnû delaquei’eftois vne
fubftance
dontotout e l’effence oula
naturen’eftquedepenfer,&q ui,poureftre,n’abefoind’aucun lieu,nyn edependd’aucunechofemater ielle.”
(Id.
Discoursdelamethode
,A.T.,VI,pp.3233,grifonosso).
328
Id.
Princípiosdafilosofia
, 1984,p.92.“Lorsquenousconceuonsla fubftance,nousconceuonsfeulement
vne chofe qui exifte en telle façon, qu’elle n’a befoin que de foymefme pour exifter.” (Id.
Principes de la
philosophie
,A.T.,IX,II,p.47).
124
de si próprio : “Porque, falando compropriedade, só Deus é isso, e não há nenhuma coisa
criadaquepossaexistir,umsómomento,semsersustentadaeconservadapeloseupoder.”
329
.
Nesse caso, a definição de substância em Descartes é unívoca? Isto é, devemos
concluirquesóDeusésubstância?Nãoexatamente.Ofilósofopermiteque,emsetratando
dascoisascriadas,tambémsepossadesignálascomoconceitode“substância”;porém,num
sentidorelativodotermo;pois,dadoquenenhumacriaturaexisteporsimesma:nãoéauto
suficiente, nenhumacriaturaé,em sentido preciso,uma“substância”.Todavia, dadohaver
entreascoisascriadasalgumasque,par aexistir,dependem,unicamente,deDeus,aessas
se pode, segundo Descartes, atribu ir, secundariamente, o termo “substância”. E como há
ainda, entre essas coisas criadas, aquelas que, para existir, além de dependerem,
primeiramente,deDeus, dep endemtambém deoutrascoisascriadas, quanto a essas, dizo
filósofo,devemserchamadasde“atributosdassubstâncias”,talcomoelemesmoexplica:
[...] porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natu reza que não podem
existir sem outras, distinguimolas daquelas que só tem necessidade do concurso
ordináriodeDeus, chamandoentão,aestas,substâncias,e, àquelas,qualidadesou
atributosdassubstâncias.
330
.
A esse respeito, Beyssade sintetiza aspectos importantes: Em primeiro lugar,  a
substânciaassumeumamaneirade e xistir; ou seja,toma o lu garda existência.O segundo
aspecto,deacordocomesseautor,équeestamodalidadedeexistência seencontraintrín seca
aumasuficiência
persi
;istoé, umaoindigênciaqueatingesuaplenitudenasubstância
divina.Deus,namedidaemqueexisteesubsisteporseuprópriopoder,Eleseautoconserva.
As demais substâncias, no entanto, dependem diretamente de Deus para existir e se auto
conservarem, subsistirem. Todos os seres, que, para existir, necessitam, apenas, de Deus,
sendo, consequentemente, independentes de qualquer criatura, recebem também a
denom inãode“substância”:sãoassubstânciascriadas
331
.
329
DESCARTES,R.
Princípiosdafilosofia
,1984,p.92.“[...]car,àproprementparler,i ln’y aqueD ieuquifoit
tel,&iln’ya aucunechofe creéequi puiffeexifter vnfeul momen t fanseftre fouftenuë& conferuée par fa
puiffance.”(Id.
Principesde laphilosophie
,A.T.,IX,II,p.47).
330
Id.
Princípios da filosofia
, 1 984,p. 92. “[...]
pource q’entreleschofes creées quelquesvnes font de telle
nat urequ’ellesnepeuuentexifterfansquelquesautres,nouslesdiftinguonsd’aueccellesquin’ontbefoinque
duconcoursordinairedeDieu,en nommantcellescydesfusbftances,ecelleslàdesqualitezoudesatributsde
cesfubftances
.”(Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,p.47).
331
Cf.BEYSSADE,J.M.ATeoriaCartesianadaSubstância.Eq uivocidadeouAnalogia?In:
Analytica
,v.2,n.
2,pp.2425,1997.
125
MasatesedeBeyssadenãosereduzaisso;oqueeledefende,precisamente,équehá
nateoriacartesianadasubstânciauma“analogiasubstancial”.Segundoesseautor,Descartes,
quandonosapresentaumadupladefiniçãodesubstânc ia,talcomoofeznos
Princípios
,na
verdade ele está a nos mostrar uma teoria “análoga” da substância; em outras palavras, a
definiçãodesubstânciaparaascoisascriadassedápor“analogia”àdefiniçãodesubstância
divina
332
.
Emtodocaso,portanto,talcomoapartirdaquelasduasdefiniçõesdo
cogito
333
,etal
comoentendemos,acima,asnoçõ esdealmaeatributo
334
,podemosconcluirtambémaqui,na
análiseprópriadanoçãodesubstância,queparecehaveremDescartes,defato,certoestímulo
recorrenteaumaequivocidade definitória;po is,aodefinirsubstância,oqueofilósofonosfaz
entender,emúltimaaná lise,équeháduasmaneirasdeconcebêla:aprimeira,quetomaDeus
como a “su bstância”, por excelência; e a segunda, que toma, secundariamente, como
“substâncias”“algumascoisascriadas”:aquelasquesódependemdeDeusparaexistir.
Nossopróximopasso,então,émostrarcomo,justamenteatravésdessaequivocidade
dasubstânciaemgeral,seestabeleceaequivocidadeprópriadeumasubstânciaespecífica
335
;
com  isso, acreditamos estar no cernedenossa análise: no estabelecimento preciso de uma
equivocidadeprópriado
cogito
.
2.3 SobreanoçãodePensamento
332
Cf.BEYSSADE,J.M.ATeoriaCartesianadaSubstância.Eq uivocidadeouAnalogia?In:
Analytica
,v.2,n.
2, pp. 1149,1997. A análise deBeyssade, na verdade, podeserrecebida por nós como umacrítica ànossa
posição;pois,comosu geremotítulode seutrabalhoe aconclusãoporeleassumida,hádesuaparteumarecusa
claraporumateoriadaequivocidadenoqueserefereàsubstânciacartesiana.E ntretanto,porduasrazõesbem
específicas,otemosmuitoadiscutirarespeitodessasupostacrítica:1ª)Oautornãoesclarece,aomenosno
trabalho que consultamos, como se distingue, exatamente, a teoria analógica da teoria da equivocidade; sua
reflexãoparecegirarmaisemtornodafundamentaçãodaprimeiraquedaexplicaçãodasegunda.2ª)Exatamente
porcontadaprimeirarazão,nãosabemosemqualmedida,oumesmoseoqueesseautorchamadeTeoriada
equivocidade”, s e referindo à substância, é o mesmo que entende mos sobre o que estamos chamando d e
“equivocidade”nosreferindoao
cogito
.Poressasrazões,reservamosparaoutr aoportunidad eumaanálisemais
cuidadosadotema.
333
Cf.,nestecapítulo,fl.118.
334
Cf.,nestecapítulo,fls.121122.
335
Substância,especificamente,pensante:umadaquelas“coisascriadasquesódependemdeDeusparaexistir”.
126
Apartir, então,detoda nossaargumentaçãosobreateoriacartesiana da substância,
podemosretomaragora,sobumnovonível,nossaproblemáticageral:Oque,exatamente,é
uma“coisaquepensa”?Comosedá,maisdetalhadamente,no
cogito
,arelação:essênciae
modos da substância? E, nessesmesmos termos, como entender, maisprecisamente, q ue a
almasejatomada,oracomoa“substânciacoisaquepensa”,oracomooprópriopensamento,
seu atributo? Como identificar na “coisa qu epensa”, substância específica, a equivocidade
definitóriadasub stânciaemgeral?
Sem ignorar mos o nível diverso de dificuldades expresso por essas indagações, e,
nesse caso, sem a pretensão de fornecer qualqu er solução definitiva a cada uma delas,
prosseguimosnossaanáliseacred itandoquesomenteanoçãodepensamentopodecontribuir
paraumesclarecimentomaisprecisoacercadatesequeestamosdefendendodeumasuposta
equivocidadedo
cogito
336
.
Aescolhadopensamentocomonoçãofundamentalparaanossaanálisesedá,tanto
porqueé,exatamente,elequemarcatodaanossaargumentaçãoemgeralnadefesadenossa
tese,quantoporquetambémparecetersidoeleoelementoco mumsegundooqualDescartes
assentou,basicamente,todaasuateoriadasubstância,talcomoaexpusemosacima.
Basta notar que, do interior m esmo de nossa argumentação acerca dessa teoria, é
possível inferir não menos que três diferentes maneiras através das quais Descartes teria
definidooconceitodepensamento.
Primeiramente, quando tratávamos da relação essência e modos da substância, o
filósofo estabelecia ali que o pensamento era a essência própria da sub stância “coisa que
pensa”
337
.
Depois, quando da conceitualização de alma, o termo “pensamento” foi definido
equivocamente, ora como atributo, ora como substância. Nesse sentido, Descart es afirmou
abertamentequeela–aalma –podiasertomadaoucomo“oprimeiroatoouformaprincipal
dohomem”–comoatributo;oucomo“somenteaqueleprincípiopeloqualpensamos”;istoé,
comoapróp riasubstância“coisaquepensa”
338
.
336
SobreanoçãodepensamentoemDescartes,ver,especialmente:LANDIMFILHO,R.
Evidênciaeverdade
nosistemacartesiano
,1992.
337
Cf.,nestecapítulo,fls.119120.
338
Cf.,nestecapítulo,fl.122.
127
EaterceiramaneirasegundoaqualDescartesdefiniu“pensamento”sedeuquandoda
conceitualização de substância, em que nosso filósofo admitiu que, em sentido geral, a
substânciapodesercompreendidadeduasmaneirasdistintas:substânciadivinaesubstâncias
criadas;dentre asquais,asubstânciapensante. Nesse caso,opensamento é tomado, então,
precisamenteenquantoatributodessasubstância
339
.
Temos, por tanto, de acordo com a análise que fizemos da teoria cartesiana da
substância,astrêsmaneirasseguintesparaadefiniçãode“pensamento”emDescartes:1ª)O
pensamento definido como essência, 2ª) O pensamento definido equivocamente, or a como
atributo, ora como substância e 3ª) O pensamento definido como atributo específico da
substânciap ensante
340
.
Senosvoltarmos,agora,paraumabreveretrospectivadetodanossaargumentaçãoem
geralemtornodaqualestamosdefendendoumaequivocidadeprópriado
cogito
,notaremos
semdificuldadesqueopensamentotambémpareceser oelementoprincipaldenossaanálise:
1º  O pensamento foi tomado como argumento paraa comprovação da existência real do
“Eu”:opensamentocomocondiçãodepossibilidadedeexistência
341
;2ºOpensamentofoi
tomado co mo uma entidade: ele é um “atributo da alma”
342
; 3º A noção de pensamento
enquantoentidadenoslevouàsduasdefiniçõesdo
cogito
343
;4ºTaisdefinições,por suavez,
nosfizeram,finalmente,considerarateoriacartesianadasubstância
344
.
Portudoisso,acreditamosqueanoçãodepensamentorepresenta,paraanossa análise,
o ponto fundamental para o  qual toda a nossa problemática se volta. Nesses termos, a
perguntaqueseimpõe,antesdequalqueroutra,é,portanto:oqueé,afinal,paraDescartes,o
pensamento?
2.3.1 –Dadefiniçãocartesianadepensamento
339
Cf.,nestecapítulo,fls.123124.
340
Saberemque medidaessestermosseidentificam, ounão,sóseriapossívelapartirdeuma an álise muito
cuidadosadecadaumdelesnocontextomesmoondeseencontram.
341
Cf.,capítuloanterior,fls.9092.
342
Cf.,nestecapítulo,fls.111112.
343
Cf.,nestecapítulo,fls.112116.
344
Cf.,nestecapítulo,fls.118125.
128
Por“pensamento”,entendeDescartesnas
SegundasRespostas
:
[...] eu compreendo tudo quanto está de tal maneira em nós que somos
imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do
entendimento,daimaginaçãoedossentidossãopensamentos.
345
.
Essadefiniçãoq uaseemnadased iferenciadaq uelaquesepodelernoartigo9do s
Princípios
:
Pela palavra pensar entendo eu tudo quanto ocorre em s de tal m aneira que o
notamos imediatamentepornóspprios.Éporissoq uenãosomentecompreender,
querer,imaginar,mastambémsentir,sãoaquiamesmacoisaquepensar.
346
.
Dadooaltíssimovalordessasduasdefinõesdepensamento,aquelasdu asdefinições
do
cogito
merecem,aqui,serretomadasemmençãoespecial:
[...]eusou,então,precisamentefalando,somente,umacoisaquepensa,istoé,um
espírito,umentendimentoouumarazão[...]Oqueéumacois aquepensa?Istoé,
umacoisaqueduvida,queconcebe,queafirma,quenega,quequer,quenãoquer,
queimaginata mbém,equesent e.
347
.
Relaciona ndo, pois, essas quatro definições, o que logo de início nos parece mai s
evidenteéqueconcebera“coisaquepensa”, talcomoparececonceber asegundadefinição
do
cogito
,como:“umacoisaqueduvida,queconcebe,queafirma,quenega,quequer,que
nãoquer,queimaginatambémequesente”,parecesermaisadequad oaoconceitogeralde
pensamento proposto por nosso filósofo, que concebêla como propõe aquela definição
segundoaqualo
cogito
étomadocomo:“umespírito,umentendimentoou umar azão”;isto
é,comoopróp riopensamentoemsimesmo,talcomointerpretamos.
345
“[...]iecomprenstoutcequiefttellementennous,quenousenfommesimmeditatementconnoiffans.Ainfi
toutes les operations de la volonté, de  l’entendement, de l’imagination & des  fens, font des penfeés.”
(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.124,traduçãonossa).
346
Id.
Princípiosdafilosofia
,1984,p.58.|Parlemotdepenfer,n’entendstoutcequifefaitennousdetelle
forte que nous l’apperceuons immediatement par nousmefmes...; c’eft pourquoy non feulement entendre,
vouloir,imaginer,maisauffifentir,eftlamefmechofeicyquepenfer.”(Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,
IX,II,p.28).
347
“[...]ienefuisdonc,precifementparlant,qu’vnechofeq uipenfe,c’eftàdirevnefprit,
vnentendementou
vneraifon
[...]Qu’eftcequ ’vnecho fequipenfe?
C’eftàdirevnechofequidoute,quiconçoit,quiaffirme,qui
nie,quiveut,quineveutpas,quiimagineauffi,&quifent.
”(Id.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,pp.21
22,traduçãonossa).
129
Todavia,aquestãonãose encerraemtermostãosimples.Precisamosadmitirquea
definiçãocartesianadepensamentovaiaindamaislongedoquepropõeespecificamenteessas
duas definições apresentadas agora p or Descartes. O filósofo reserva ainda dois outro s
paradigmassobosquaisessamesmaq uestãoseassenta:a “percepçãodoentendimento”ea
“açãodavontade”.
SegundoDescartes:
Todasasmaneirasdepensarqueexperimentamosemnóspodemred uzirseaduas
gerais. Consisteuma emapreender peloentendimentoe a outraemdeterminarse
pela vontade. Assim, sentir, imaginar e mesmo conceber coisas puramente
inteligíveis,oformasdiferentesdeapreender;masdesejar,teraversão,confirmar,
negar,duvidar,sãoformasdiferentesdequerer.
348
.
Em nossa opinião, o aspecto mais importante dessa definição está no fato de ela
estabelecerqueessasduasmaneirasgeraisdopensamento:a“percepçãodoentendimento”ea
“açãodavontade”sejustificam,sobretudo,porqueagrupam,cadaumadelas,diversamente,
certavariedadedeformasdepensar
349
.
Ou seja, a única razão  que justifica, realmente, uma distinção do pensamento em
“maneirasdepensar”é, justamente,asua equivocidadeprópria;istoé,seopensame ntonão
fosse, ele mesmo, equívoco, seria completamente d esnecessária e injustificável que se
operasseumadistinçãodessanaturezaemseuseio.
Nesse sentido, entendemos q ue a distinção operada por  Descartes do pensar em
“maneiras” é a prova mais clara que temos para ap oiar nossa tese de uma equivocidade
348
DESCARTES,R.
Princípio sdafilosofia
,1984,p.79.“Cartouteslesfaçonsdepenferquenousre|marquons
en nous, peuuent eftre rap portées à deux generales, dont l’vne confifte à apperceuoir par l’entendement, &
l’autre à fe determiner par la volonté. Ainfi fentir, imaginer, & me fmes conceuoir des chofes purement
intelligibles, ne font que des façons differentes d’apperceuoir; mais defirer, auoir de l’auerfion, affurer, nier,
douter,fontdesfaçonsdifferentesdevouloir.”(Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,p.39).
349
Essadistinçãodopensamentoem“duasmaneirasgerais”édealtíssimovalorparaaepistemologiacartesiana .
Nessecasoespecífico,porém,háumasuperestimaçãopelapercepçãodoentendimento”emrelaçãoà“açãoda
vontade”.Éque,enq uanto,nessestermos,aprimeiraéresponsável,atravésdesuasdiferentesformasdepensar,
pelaaquisiçãodasverdadesclarasedistintas”damente;asegunda,porsuavez,emboraatravésdosmesmos
critérios; isto é, através desuas  diferentes formas de pensar,é considerada comoa fonte dos c onhecimentos
“confusoseobscuros”quedificultamoprocessodeaquisiçãodeconhecimentoinstauradonamenteporaquela
primeira maneira. Portanto, nos termos próprios da epistemologia cartesiana, “a percepção do entendimento”
precedeemimportân ciaaaçãodavontade”.Denossaparte,queotratamos,propriamente,daepistemologia
de Descartes, interessa notar, sobretudo, que a distinção do pensamento em “duas maneiras gerais” importa,
somente, no sentido de estabelecer, exatamente como dissemos, dois novos paradigmas de análise para o
conceitodepensamentoeafirmar,apartirdaí,emcadaumdelescertavariedadeouequivocidadedeformasde
pensar.
130
própriaaopensame nto;pois,comodissemos:Seopensamentonãofosse equ ívoco,porque
distinguiloem“maneirasdepensar”?
Comefeito,essadistinçãoatribuídaaoconceitodepensamentonãodeveserente ndida
fora dos termos próprios da “redução/relação”
350
que ela rep resenta; isto é, a distinção:
“percepção do entendimento” e “ação da vontade” não é, em absoluto, uma distinção
ontológica do pensamento; esse, em hipótese alguma, deixa de ser, ontologicamente uma
realidadesempreidênticaasimesma;e,aquela,apenase xpressaoque,talvez,sejaosentido
mais profundo  de uma equivocidade que se dá nos termos próprios de uma determinada
relação “entendimento/vontade” no interior mesmo do próprio pensamento. Em última
análise,opensamento,semdeixardeserequívoco,continua,emsimesmo,ontologicamente
pensamento.
Portanto, quando defendemos uma equivocidade própria ao
cogito
, o fazemos
apoiados,fundamentalmente,nacertezamesmadequeé,exatamente,adefiniçãocartesiana
de pensamento, na medida em que ela se afirma num registro propriamente equívoco –
“entendimentoevontad e” ,que corroboraessanossaposição.
2.4 Sobreumasupostaequivo cidadedo“cogito”
Por todas as razões apresentadas até este ponto de nossa análise, sustentamos,
portanto,umasupostaequivocidadedo
cogi to
.Contudo,emboraacreditemosqueaanálisede
todas as noçõesque até aqui investigamos
351
pareça confirmar a viabilidade própria dessa
suposição,devemosreconhecer,porém,quecadaumadasnoçõespornósanalisadasinstaura
mesmo uma série de outras questões que, certamente, ou não pudemos ou, mesmo, não
sabemosaindaresponder.
Emtodocaso,direcionamosaquianossareflexãoparaopassofinaldenossaanálise;
pois,mesmoquehajaaindaperguntassemrespostas,estamoscertos,porém,deque,arigor,
issonãonosimpediude,aomenos,tersuposto,aqui,umaequivocidadeprópriado
cogito
.
350
Notarqueotextofrancêstraz:“rapporter”/“relacionar”enão“réduire/“reduzir”comoaparecen atradução.
351
Dasnoções:essênciaemodos,atributo,substânciaepensamento.
131
2.4.1 –Dosfundamento sdessaequivocidade
Umaúltimapalavra,então,sobreoque,emnossaopinião,fundamentaprecisamente
nossatese.
Quando analisávamos a definição cartesiana de pensamento, concluíamos ali que a
relação “ente ndimento/vontade” daqueladistinçãodopensamentoem “maneirasde pensar”
representava,talvez,osentidomaisprofundodaequivocidadepróp riado
cogito
352
.
Daíessasduasmaneirasdepensar:“entendimentoevontade”representarem,aqui,ao
menos,aprincípio,osfundamentosprecisosdenossatesedaequivocidad eprópriado
cogito
;
apoiada,desdesempre,naqu elasduasou trasdefiniçõesdesseprincípio.
Nessesentido,valedetermonos,poruminstante,noartigo56dos
Princípios
,onde
Descartesoferecenosdetalhesimportantessobreoqueestamoschamandodefundamentosde
nossatese.Diz:
Quando aqui digo maneira ou modo, apenas me refiro àquilo que já chamei de
atributo ou q ualidade. Quando considero, porém, que a substância é disposta de
outra maneira ou diversificada, sirvome particularmente do nome de modo ou
maneira. Quando, em virtude desta disposição ou transformação pode ser assim
chamada,douentãoonomedeq ualidadeàsdiversasmaneirasquefazemcomque
elasejaassimdenominada.Enfimquandopensomaisgeralmentequeessesmodos
ouqualidadesestãonasubstância,semosconsiderardeoutramaneiraquenãoseja
comodependênciasdestasubstância,designoosporatributos.
353
.
De modo geral, portanto, como explica o filósofo, “maneira ou modo” podem, a
princípio, sertomad oscomo equivalentesentre siedesignaremomesmoque“atributoou
qualidade”;que,porsuavez,inic ialmente,tambémsãotomadoscomoequivalentesentresi.
Ouseja,numprimeiromomento,oquefazDescarteséestabelecer,precisamente,umsentido
geralparao conceitode“maneira” queseequivale, a p rincípio, aode“atributo” eàquelas
352
Cf.,nestecapítulo,finaldaseçãoanterior,fl.130.
353
DESCARTES,R.
Princípiosdafilosofia
,1984,pp.9596.Lorsquejedisicy
façonou
mode,jen’entends
rienquecequej enommeailleursattributouqualité.Maislorsqu ejeconfiderequelafubftanceeneft
autrement
difpoféeoudiuerfifiée, jemefers
particulierement
du nomdemode
oufaçon
;&lorsque,decettedifpofitionou
changement, elle peut eftre appellée telle, je nomme qualitez
les diuerfes façons qu i font qu’elle eft ainfi
nommée
; enfin, lors que je penfeplus gener allement que ces
modesou qualitez
font en  lafubftance,
fans les
confidererautrementquecommelesdépendances decette
|
fubftance
,jelesnommeattributs.Etpourcequejene
doisconceuoirenDieuaucunevarieténychangement,jenedypasqu’ilyaitenluydesmodesoudesqualitez,
maispluftoftdesattributs[...]”(Id.
Principesdelaphilosophie
,A.T.,IX,II,p.49).
132
“maneiras de pensar”; que, por sua vez, podem, então, ser entendidas como “atributos do
pensar”.
Num segundomomento,porém,porhaver“disposiçõesdiversificadas”dasubstância;
quer dizer, quando a equivocidade da substância é considerad a; então, nesse caso,aquelas
“maneirasdepensar”passamasertomadas,nãocomoatributos,mas“modosdasubstância”
eaq uelas diversasformasquefazemcomqueelassejamassimdenominadas,são tomadas
como su as “qualidades”. Isto é, qu ando a substância é concebida, por exemplo, como
substância pensante:o
cogito
;nesse caso, então, “entendimento e vontade”– aquelas duas
“maneirasdepensar”,sãotomadasnãocomoatributosdasubstânciapensante,mascomo 
seus modos, e, nesse caso, por sua vez, aquela variedade de formas de cada maneira de
pensar: sentir, imaginar etc.; desejar, ter aversão etc., são tomadas como “qualidades” da
substânciap ensante.
Por fim, quando esses “modos da substância” – entendimento e vontade”
juntamentecomsuasqualidades:sentir,imaginar...,desejar,teraversão...,sãoconsiderados
comoestandonasubstânciadeforma,unicamentedeladependente,então,ambos,“modose
qualidades”,sãochamadospelonomede“atributos”.
Em resumo, o aspecto mais importante dessa explicação de Descartes é que ela
estabelece uma relativização de termos. Quer dizer: “maneiras”, modos”, “atributo”,
“qualidades”emesmo“substância”,emboradesignemrealidadesabsolutassão,precisamente,
termosrelativos;poisoquehá,defato, éumamaneiradiversadeseapropriardecadaum
dessestermos:1ª)apartirdeumpontodevistamaisgeral:“Quandoaquidigomaneiraou
modo,apenasmerefiro àquiloquejáchameid eatributoouqu alidade”e2ª)apartirdeum
ponto de vista mais específico: Qu ando considero, porém, qu e a substância é dispostade
outramaneiraoudiversificada”.
Nesses entido,se,deumlado,determinadadefiniçãodepensamento
354
partedeuma
consideraçãodasubstânciaemgeral–asubstânciadivina–,opensamentoserá,nessecaso,
tomado, precisamente, como um atributo dessa substância; em tese: a substância pensante
comoatributo dasubstânciadivina.
Se,deoutrolado,porém,determinadadefiniçãodepensamentopartedaconsideração
de umasubstância específica – a substância pensante,p or exemplo –; então, nessecaso, o
354
“Pensamento” aqui emequivalência imediata àquelas maneirasde pensar:entendimento e vontade”, que
estamossupondoserosfundamentosprecisosdenossatesedaequivocidadedo
cogito
.
133
pensamentoserátomadonãocomoatributo,m as,precisamente,comoummododasubstância
aqualseconsid era.
Dessemodo,é,então,exatamente,emrazãodessarelativizaçãomesmadetermos,que
todaequalquerdefiniçãodepensamento,ou,“maneirasdepensar”,sóseexplicaedepende,
primeiramente, do aspecto ou de qual “consideração da substância” parte a formulação
definitória. Nesse caso, é também essa mesma relativização que, em  últim a análise,
fundamenta,demodogeral,oquechamamos,pois,deequivocidadeprópriado
cogito
.
2.4.2 –Daequivocidadeprópriadocogito ”
[...]eusou,então,precisamentefalando,somente,umacoisaquepensa,istoé,um
espírito,umentendimentoouumarazão[...]Oqueéumacois aquepensa?Istoé,
umacoisaqueduvida,queconcebe,queafirma,quenega,quequer,quenãoquer,
queimaginata mbém,equesent e.
355
.
A tamanha clareza de Descartes dispensaria, a princípio,qualquer outra explicação
paraaequivocidadedo
cogito
quenãoessacontidaemsuasprópriaspalavras.Todavia,ofato
dehaver,porpartedemuitos,oquepareceserquaseumafixãoemreduziresseprincípioà
exclusividadedeseuaspectoepistemo lógico,nosfaz,osempôremriscoaevidênciados
fatos, multiplicar referências explicativas para justificar um d ado que parece ser, desde
sempre,muitoelementar:aprópriaequivocidade do
cogito
.
Nestaaltura,quefique,portanto,bemclaro:
O pensamento (
cogito
) compreende,  segundo Descartes, não o simples
entendimento,mastambémavontade,eatéaimaginaçãoe osentimento.Confunde
secomatotalidadedeminhaconsciênciapsicológica[...]
356
.
Pois,de acordo comopróprio filósofo na r esposta às
Terceiras Objeções
, feita por
Hobbes:
355
“[...]ienefuisdonc,precifementparlant,qu’vnechofeq uipenfe,c’eftàdirevnefprit,
vnentendementou
vneraifon
[...]Qu’eftcequ ’vnecho fequipenfe?
C’eftàdirevnechofequidoute,quiconçoit,quiaffirme,qui
nie,q uiveut,quineveutpas,quiimagineauffi, &quifent.
”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.
T.,IX,I,pp.2122,traduçãonossa).
356
ALQUIÉF.
AfilosofiadeDescartes
,1993,pp.8081.
134
Ondetenhodito:[...]
umespírito,umaalma,umentendimento,umarazão
,
etc
.,n ão
entendiporess esnomessimplesfaculdades,masascoisasdotadasdafaculdadede
pensar[...] opensamentoétomadoàs vezespelaão,àsvezes,pelafaculdade,e
outrasvezespelacoisanaq ualresideessafaculdade.Eeunãodigoqueaintelecção
eaquiloqueentend esejamumaemesmacoisa,nemmesmoac oisaqueentendeeo
entendimento[...]
357
.
Portanto, considerando todas essas razões, entendemos, finalmente, que o
cogito
,
totalizado naqueladefinição segundo aqualele se apresentacomo“umacoisa queduvida,
que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que
sente”
358
,parecetenderdecididamenteparaaafirmaçãomesmadeumaequivocidadeprópria
aoseuconteúdo.
Emtese,o
cogito
é,certamente,antesdetudo,“pensamento”,mas,queninguémse
engane: “pensamento” que “[...] se apreende todo inteiro (em sua equivocidade própria:
entendimentoevontade),antesmesmodesaberseexistemcorpos[...]”
359
.
357
“Oúi’aydit:[...]
vnefprit,vneame,vnentendement,vneraifon,&c.,
ien’aypointentenduparcesnomsles
feulesfacultez,maisleschofesdoüéesdelafacultédepenfer[...]l apenféefeprendquelquesfoispour|l’action,
quelquesfoispourlafaculté,&quelq uesfoispourlachofeenlaquellerefidecettefaculté.Etienedispasque
l’intellection&lachofequientendfoientvnemefmechofe,nonpasmefmelachofequientend&l’en tendement
[...]”(DESCARTES,R.
Meditationsmetaphysiqves
,A.T.,IX,I,p.135,tradu çãonossa).
358
Especialmentesobreessadefinição,seusentidoeimportância,algunsestudiososaconsiderammesmocomo
uma d efinição mais amadurecida e completa do
cogito
; como é o caso, por exemplo, de Scribano, quando
consideraqueessadefiniçãodeveserentendidade acordocomaordemdasrazões”interpretadaconformea
lógicada meditação.Nessesentido,segundoessaautora,asnõesmuda mcomo progressoda pesquisaque
avaa seguindo as etapas do caminho meditativo e, por isso, essa definição do
cogito
não repre senta uma
simplesampliaçãonodomíniodopensamento,masainstauraçãodeumanovadimensãodopensar.Elaconclui
queessadefini çãoéumresultadoirreversíveldoprogressomeditativoquesuplantaaprimeiraesec onstituia
noção propriamente cartesiana de pensamento. Cf. SCRIBANO, E. La Nature du Sujet. Le D out et la
Conscience.In:ONGVANCUNG,K.S.
Descartesetlaquestiondusujet
,1999.pp.5455.
359
“[...] se saisit tout entière, avant même de savoir s’il y a d es corps [...]” (ALQUIÉ, F.
La découverte
métaphysiquedelhommechezDescartes
,1996,p.301,traduçãonossa).
CONSIDERÕESFINAIS
Descarteséumh omemterrívelparasetomarcomo
mestre.Seuolhoparecedizer: maisumq ue vaise
enganar
.
360
.
...Maisumqueiráconcluirverdadesincertas...
Como se,quatroséculosdepois,aforçacríticadoolharseverodeDescartesainda
pairasobrenóse,porissomesmo,preferimosnãoescondereirdiretoaoponto :nossotemaé
difícil, a tese é incipiente e a reflexão que aqui apresentamos não passa de um a primeira
tentativa concreta de investigação. Supor uma equivocidade ao
cogito
, certamente, requer
mais do quepudemo s aqui oferecer:mais estu dos, maispropriedade no tratodas questões
metafísicas de Descartes, mais consistência nos argumentos, enfim, mais, muito  mais
Meditações
.
Essasexigências,quepreferimoschamardeprudência,quepode,aprincípio,parecer
exagerada,é,emnossaopinião,altamenterecomendávelaopesquisadorquesedediquecom
seriedade a qualquer estudo sobre o célebre filósofo francês;é que, talcomo acreditamos,
Descartes, a despeito de sua enorme notabilidade que o torna aparentemente de tão fácil
apreensão,é,naverdade,autordeumafilosofiasutilmentedifícil;sejaporqueasverdadeiras
intençõesdesuaobraparecemnãoserevelarsemumaobservaçãoextremamentecuidadosa,
sejapo rque,nessecaso,somenteumaleituramuitoatenta,emesmodemorada,podeperceber
arealgrandezadessafilosofia.
Nocasoespecíficodenossaanálise,emborasaibamosqueonossotrabalhonãotenha
atingidoorigorid ealex igidopelagrandezaprópriadafilosofiacartesia na:essatarefacustaria
anósmaistempoeestudosdoquedispomosaqui;estamoscertos,contudo,deque,aomenos,
nospusemosacaminho;o que,dadoo caráterdissertativode nossapesquisa,já  pod e ser,
suficientemente,aceitável.
360
ALAINapudRODISLEWIS,G.
Descartes
umabiografia
,1996,p.245.Acitação,segundoRodisLewis,
seencontraem:ALAIN,
LesArtsetlesdieux
,1958,p.181.(LaPléiade).
136
Desse modo, já munidos da prudência necessária, mas ainda não devidamente
preparados,oquequisemosapresentar nestadissertaçãofoi,sobretudo,umaanálisesobreo
cogito
cartesiano que superasse os vários preconceitos frequentemente a ele remetidos;
especialmente,aquelesqueinsistememreduziloàexclusividadedeserumameraoperação
mecânicaintelectualdoentendimento,negandolhe,assim,suajustacotadeparticipaçãoem
tantasoutrasatividadesfundamentaisdaalm a,comoporexemplo,aquelasdavontade:querer,
nãoquerer,imaginar,sentiretc.
Motivados por esse p ropósito, estab elecemos, então,desdeo início, a suposição de
umaequivocidadedesseprincípiodeDescartes.Defendemosqueo
cogito
cartesiano oé
unívoconosentidodesignificaropensamentosomenteenquantointelectopuro,masqueele
tambémosignifica enquantoumco mplexonúcleodemanifestaçõesdiversasdamente;istoé,
opensamentoenquanto,propriamente,equívoco.
Parasustentaressahipó tesebuscamosrespaldoteóriconaprimeiraparteda
Meditação
Segunda
, intitulada:
Da natureza da mente humana
. Apropriamonos, principalmente, das
duas definições que Descartes aí nos oferece do
cogito
e, apó s uma análise minuciosa,
segundoaqualpudemos,minimamente,compararecontextualizaressasduasdefiniçõescom
alguns conceitos fundamentais da teoria cartesiana da substância, concluímos que nossa
suposiçãodeumaequivocidadedo
cogito
pareceserrazoável.
Todavia, reconhecemos a incipiência de nossa posição e sabemos que, para
fundamentarprecisamenteessateseetornálamaisconsistenteeaceitável,teríamosmesmo
quedesenvolverumapesquisa,certamente,maisaprofundada
361
;poressarazão,opresente
trabalhodeveseracolhido,sobretudo,comoum aapresentaçãogeraldotema;e,nessecaso,
cadasoluçãoqueapresentamosparaasváriasdificuldadesquesurgiramnodeco rrerdenossa
análisenãodevesertomadaforadeseucontextoprovisório;pois,emúltimaanálise,demodo
geral,nossaprincipalintençãofo i,somente,identificar,delimitareestabelecercomomáximo
deprecisãopossívelumobjetoeumcampodepesquisabemdefinidosnointeriordafilosofia
de Descartes para, depois, em outra oportunidade talvez, dedicarmo nos com a devida
propriedadeaumaanálisemaisconsolidadadoconteúdopropriamenteaquiexposto.
Afinal,nãoésempropósitoqueotítulodenossadissertaçãoseapresentade for ma
interrogativa:
Descartes e aprimeiraparte da Meditação Segunda: Danatureza da mente
hu mana ou de uma suposta equivocidade do cogito”?
; pois, antes de tudo, o que
361
Talvezf osseocasodeumapesquisadeDoutorado.
137
defendemosaquifoioestabelecimentodeumaperguntaenão,exatamente,adefesadeuma
resposta.
Nesse sentido, nossa pesquisa se apóia, principalmente, na tentativa de tornar
justificávelaperguntaseépossível,naprimeira parted a
MeditaçãoSegunda
deDescartes,
inferir certa equivocidade do
cogito
. Portanto, nossas conclusões se expressam mais pela
força e qualidade de nossos argumentos que por qualquer resolução demasiadamente
apressadadoproblemainvestigado.
Nessestermos,seconsiderarmosaordemdaspartesecapítulosnaqualdispu semos
nossa d issertação, veremo s, já aí, que conduzimos toda a nossa análise de uma maneira
segundo a qual pudéssemos dar especial destaque, justamente, ao encadeamento claro e
gradualdenossasrazões.
Primeiro, dividimos nosso texto em duas partes:
Notas sobre a constituição  do
cogito”
e
Notassobreumasupostaequivo cidadedo“cog ito”
.
Quisemos,naprimeiraparte,enfatizarocaráterconstituintedoprincípiocartesianoe
mostrarquesuaconstituição,enquantotal,ocorredeformaintegralno
DiscursodoMétodo
tornando dispensáveis, nesses termos, as
Meditações Metafísicas
. Quanto à segunda parte,
reservam ola a uma análise detalhada do
cogito
tal como aparece nas
Meditações
,
especificamente,naprimeiraparteda
MeditaçãoSegunda
.Aqui,avaliamoscuidadosamenteo
trajeto meditativo de Descartes que o levou à apropriação do
cogito
enquanto certeza e
naturezadamente.
Num segundo momento, dividimos cada partede nossa pesquisaem dois capítulos
específicos:NaparteI:
Docogitoemgeral
(Cap.I)e(Cap.II)
Docogito
no
Discurso
;
na parte II:
Do cogito” enquanto certeza da existência da mente
(Cap. I)e (Cap. II)
Do
cogito”enquantonaturezadamente
.
No capítulo I da parte I:
Do cogito” em geral
, investigamos o processo geral de
constituição do
cogito
no pensamento de Descartes. Constatamos que esse princípio
cartesianor esultadeumlongoeá rduoitineráriovividopelofilósofo;itinerárioqueultrapassa
os limites de uma busca meramente intelectual e que se revela fortemente tamb ém nos
registrosdaexperiênciapessoaldevidadeseuautor.
A essepropósito, concluímos, inclusive, certa inadequaçãodopróprio termo
cogito
para designar o princípio cartesiano, na medida mesma em que esse termo r eduziria o
significado do princípio de Descartes a uma interpretação demasiadamente intelectualista
138
sobr e o seu verdadeiro conteúdo. E concluímos ainda, após analisar alguns antecedente s
propriamente cartesianos do
cogito
que alguns dos seus aspectos constitutivos são
frequentemente esquecidosou, simplesmente, preteridos pela tendência muito difundida de
ver nesse princípio de Descartes apenas um simples cálculo matemático afastandoo de
qualqu er experiência mais pessoal da vida de seu autor, como, por exemplo, do caso da
supostaorigemmísticadoMétodooumesmodaprofundabuscadeDescartespelaverdade,
quedigase,sedánãosomentenaciência,mas,tambémnavida.
No capítulo II, ainda da parte I:
Do cogito” no Discurso
, nossa preocupação se
deteveinteiramente comoproblemadaposição própria do
cogito
no
Discursodo Método
.
TravamosumsériodebatecomAlquié,quedefendeatesedequeametafísicado
Discurso
é
incompletaeque,porumasériedeoutrasrazões,o
cogito
sóseconstituicompletamentena
altura das
Meditações Metafísicas
. Ao contrário desse comentador, defendemos que o
Discurso
, nesses termos, não somente dispensa, em certo sentido, as
Meditações
, como
também não há em sua metafísica, ao m enos no que se refere à constituição do
cogito
,
qualqu er sinal co nsiderável de incompletude em relação à metafísica de 1641; em outras
palavras,conclu ímosqueasdiferençasdaexposiçãometafísicado
cogito
no
Discurso
enas
Meditações
são diferenças que se dão na ordem dos objetivos de cada obra e não,
propriamente,comoparecequererAlquié,noconteúdometafísicoquea mbasexpõem.
Contudo , não nos enganemos: a polêmica da posição própria do
cogito
entre o
Discurso do Método
e as
Meditaçõ es Metafísicas
é um debate difícil. Embora tenhamos,
decididamente, feito oposição à análise de Alquié sobre o tema, sentimos, no entanto, a
necessidadedeumapesquisamaisaprofundadaacercadainterpretaçãoquefizemossobrea
tesequeessecomentadordefende.Aprincípio,mantem os,em tudo,anossaposição,sabendo,
porém, que um estudo m ais detido do tema em geral contribuiria, sem dúvida, para o
aprimoramentooumesmo,seforocaso,acorreçãodenossaanálise.
Quanto ao capítulo I da parte II:
Do cogito” enquanto certeza da existência da
mente
,nossareflexãoobteveaímaiorprecisãoquantoàanálisedoobjetopróprioda pesquisa:
o
cogito
. Concentramonos, sobretudo, na investigação dos critérios segundo os quais
Descartesseapropria,definitivamente,deseuprincípio;tomamoso
cogito
prioritariamente
enquanto certeza e in vestigamos a caracterização geral que o filósofo, nesses termos, lhe
concedeu. Concluímos que Descartes concebe o
cogito
, sobretudo, como uma certeza
intuitiva, masqueisso nãoimpedeemnadasuap ossibilidadedecertezalógica; e,sobre a
caracterizaçãogeraldessacerteza,chegamosaumaconclusãoidênticaàdeGuéroult:deque
139
elasecaracterizacomosendoumacertezadeduasordens:metafísicaepsicológica;ou,de
acordocomnossosprópriostermos:umcert ezaequívocadamente.
Especialmentenoqueserefereàsemelhançadenossaconclusãoco madeGuéroult,
embora tenhamos ressaltado as diferenças dos termos e mesmo da argumentação geral
seguidaporambos,certamente,tratasedeumasituaçãoquerequer,denossaparte,emoutra
oportunidade,umaanálisemaisdetalhada.
E,q uantoaoúltimocapítulodenosso trabalho,ocapítuloIIdaparteII:
Do cogito”
enquantonaturezad amente
,aínossaanálise,enfim,alcançouotomfundamentaldetodaa
nossapesquisa:trabalhamosdiretamentecomasduasdefiniçõesdo
cogito
qu eDescartesnos
fornece no texto da
Meditação Segunda
; perguntamonos pela natureza mesma da “coisa
pensante” e, após analisarmos m inimamente a teoria cartesiana da substância e termos
constatado  que a noção de pensamento era a chave de leitura fundamental para a
problemáticanadafácilquepropu semos,concluímos,finalmente,nossotrabalhoassumindoa
hipótesecategóricadequeo
cogito
é,sim,aafirmaçãodopensamentoenquantoequivocidade
própria:entendimento,razão,vontade,sentimentoetc.
Seguindo,portanto,ostermosprópriosdenossaanálisegeral,talcomo elasedispõe
na presente dissertação, estamos convencidosde que, embora muitas de nossas conclu sões
sejam ainda, como já dissemos, muito prematuras, nosso o bjetivo geral parece ter sido
alcançado;acreditamosterconseguidojustificarnossaperguntainicialeconduziraumbom
termonossoproblemadepesquisa.
Em tese, concluímos: Parece perfeitamente possível sustentar uma argumentação
razoável para interrogar a primeira parte da
Meditação Segunda
sob re uma suposta
equivocidadedo
cogito
.
Com essa conclusão, acreditamos, particularmente, estar no interior de uma
perspectivadep esquisaemDescartesqueseanunciaprofundamentefecunda:considerandoa
equivocidade do
cog ito
é possível pensar u ma psicologia cartesiana sob o registro mesmo
dessa equivocidade; isto é, uma psicologia que assume o estudo da vontade, sem negar o
altíssimovalorerigordoentendimento.
140
Osaspectosdessaperspectivasãovárioseassuasimpl icaçõestambém
362
.Emresumo,
entendemosqueotemadapsicologiaemDescartessofreduasgrandesdificuldadesgerais:ou
seencerranumaposturadepesquisaextremament eintele ctualistaonderecebepouqu íssima
importância filosófica; ou é demasiadamente considerado, caso que lhe oferece uma
importânciafilosó ficaque,arigor,não seencontraemDescartes.Muitopossivelmente,uma
psicologiaquetenhasuaorigemnaordemdaequivocidadeprópr iado
cogito
podecontribuir
fundamentalmenteparaumanovaposiçãodesseproblema.
Seja como for, o que nos parece mais evidente é queo conteúdo dessadissertação
pode ser tomado como um esboço daquilo que poderá se tornar, um dia, uma teoria da
equivocidadedo
cogito
;e,nessecaso,seremosobrigadosar econhecerumDescartesqueé,e
sempre será, de fato, um fisofo profundamente racionalista; contudo, filósofo de um
racionalismotalque,certamente,nãoestará encerradonoslimitesdoentendimentosemantes
estarentregue aoinfinitoprópriodavontad e.
362
Conceber uma p sicologia do ponto de vista do
cogito
equívoco implica, primeir amente, uma postura de
pesquisa men os preconceituosa em relação ao
cogito
; uma re visão detalhada das noções de entendimento e
vontade emDescarteseimplica,enfim, oestabelecimento precisode umanovaordemdeanálisedafilosofia
cartesianaemgeral:aprópriaordemdaequivocidade.
REFERÊNCIAS
1 –REFERÊNCIALPRIMÁRIO
DESCARTES,R.Meditationsmetaphysiqves.Paris:Vrin,1996.v.IX,I. (Ouvresde
DescartespubliéesparCharlesADAM&PaulTANNERY).
______.Meditationesdeprimaphilofophia.Paris:Vrin,1996.v.VII,I.(Ouvresde
DescartespubliéesparCharlesADAM&PaulTANNERY).
______.Meditações.TraduçãodeJ.GuinsburgeBentoPrado Júnior.SãoPaulo:Abril
Cultural, 1973. v.XV,II.(ColeçãoOsPensadores).Originalfrancês.
______.Meditações.TraduçãodeEnricoCorvisieri.SãoPaulo:NovaCultural, 2004. v.X I,
III.(Co leção Os Pensadores).Originalfrancês.
______.Meditaçõesmetafísicas.Tr aduçãodeMariaErmantinaGalvãoeHomeroSantiago.
2.ed.SãoPaulo:MartinsFontes,2005.155p.(ColeçãoClássicos).Originaisfrancêselatino.
______.Meditaçõessobrefilosofiaprimeira.TraduçãodeFaustoCastilho.2.ed.o
Paulo:Unicamp,2008.231p.(ColeçãoMultilíngüesdeFilosofiadaUnicamp,SérieA,
CartesianaI).Originallatino.
______.Discoursdelamethode.Paris:Vrin,1996.v.VI.(OuvresdeDescartespubliéespar
CharlesADAM&PaulTANNERY).
______.Discursodométo do /Aspaixões daalma.Tradução deNewtondeMacedo.13.
ed. Lisboa:SádaCosta,1984.197p.(Coleção ClássicosSádaCo sta, Novasérie).Originais
franceses.
______.Principesdelaphilosophie.Paris:Vrin,1996.v.IX,II.(OuvresdeDescartes
publiéesparCharlesADAM&PaulTANNERY).
______.Principiorumphilosophiae.A nalytica,Riodejaneiro,v.2,n.1,p.4267,1997.
Artigos124dolivroI:
Depríncipííscognítíon íshumanae
.
142
DESCARTES,R.Principiorumphilosophiae.Analytica,Riodejaneiro,v.3,n.2,p.8099,
1997.Artigos2550dolivro I:
Depríncipííscognítíoníshumanae
.
______.Princípiosdafilosofia.Tradu çãodeA lbertoFerreira.3.ed.Lisboa:Guimarãese
C.ª,1984. 126p. (ColeçãoFilosofiaeEnsaio s).Originalfrancês.
______.Dosprincípiosdafilosofia.TraduçãodeSemináriodeFilosofiadaLinguagem –
UFRJ.Analytica,Riodejaneiro,v.2,n.1,p.4267,1997.Traduçãodeparte(§§124)do
primeirolivrodos
Principiorumphilosophiae
.Originallatino.
______.Dosprincípiosdafilosofia.TraduçãodeSemináriodeFilosofiadaLinguagem–
UFRJ.Analytica,Riodejaneiro,v.3,n.2,p.8099,1998.Traduçãodeparte(§§2550)do
primeirolivrodos
Principiorumphilosophiae
.Originallatino.
2 –REFERÊNCIALSECUNDÁRIO
ABBAGNANO,N.Descartes.In: ______.Históriadafilosofia. TraduçãodeAntónio
RamosRosa. 4.ed.Lisboa:Presença,1992.v.6,cap.I,p.37 70.Originalitaliano.
ADAM,C. Notas.In:DESCARTES,R.Meditationsmetaphysiqves.Paris:Vrin,1996.v.
IX,I,p.11. (OuvresdeDescartespubliéesparCharlesADAM&PaulTANNERY).
ALQUIÉ,F.AfilosofiadeDescartes.3.ed.Lisboa:Presença,1993.148p.(Coleção
BibliotecadeTextosUniversitários,42).Originalfrancês.
______.Ladécouvertemétaphysiquedel’hommechezDescartes.5.ed.Paris: PUF,
1996.384p.(CollectionÉpiméthée).
AMORGATHE,J.R.L’approbationdes
meditationes
parlafacultédethéologiedeParis
(1641). BulletincartésienneXXI. Archivesdephilosophie,Paris,v.57,n.1,s/p.1994.
ANALYTICA.RiodeJaneiro:UFRJ,v.2,n.1, 1997.254p.
ANALYTICA.RiodeJaneiro:UFRJ,v.3,n.2,1998.259p.
143
BAILLET,A.OssonhosdeDescartes.In:COTTINGHAM,J.AfilosofiadeDescartes.
TraduçãodeMariadoRo sárioSousaGuedes.Lisboa:Edições70,1989,p.213217.(Coleção
OSaberd aFilosofia).Originalinglês.
______.ViedemonsieurDescartes.Paris:TableRonde,2002.303p.
BEYSSADE,J.M.ATeoriacartesianadasubstância:equivocidadeouanalogia?.Analytica.
Descartes:Osprincí piosdafilosofiamoderna –quesesdafísicaedametafísicacartesiana,
RiodeJaneiro,v.2,n.2,p.1149,1997.
______.Descartes.In:CHATELÊT,F.Históriadafilosofia –idéiasedoutrinas.Riode
Janeiro:Zahar,1974.v.3,cap.IV,p.80114.Originalfrancês.
BLANCHET,L.Lesantécé dentshistoriquesdu“J epense,doncjesuis.Paris:Félix
Alcan,1920.325p.(CollectionHistoriquedesGrands Philosophes).
BRÉHIER,E. Descarteseocartesianismo.In:______. Históriadafilosofia.Traduçãode
EduardoSucupiraFilho.SãoPaulo:MestreJou,1977,tomosegundo,livroprimeiro,cap.III,
p.49117.Originalfrancês.
BUZON,F.;KAMBOUCHNER,D.LevocabulairedeDescartes.Paris:Ellipses,2002.80
p.(CollectionVocabulairede…).
CAHIERSDEROYAUMONT.Philosophie,II:Descartes.Paris:Minu it,1957.
CAHNÉ,P.A.Un autreDescartes:lephilosopheetsonlangage.Paris:Vrin,1980.346p.
(CollectionBibliothèqued’histoiredela Philosophie).
COGITO, ergosum.In:FERRATERMORA,J.Dicionáriodefilosofia.TraduçãodeMaria
Stela,eta l.SãoPaulo:Loyola,2000.TomoI.p.485 488.(ColeçãoDicionários).Original
espanhol.
COTTINGHAM,J. AfilosofiadeDescartes.TraduçãodeMariadoRosárioSousaGuedes.
Lisboa:Edições70,1989.221p.(ColeçãoOSaberd aFilosofia).O riginalinglês.
______.DicionáriodeDescartes.TraduçãodeHelenaMartins.RiodeJaneiro:Zahar,1995.
171p.(ColeçãoDicionáriosdeFilósofos).Originalinglês.
144
DESCARTES,R. Correspondance. Paris:Vrin,1996.v.I.(Ouvresde Descartespub liées
parCharlesADAM&PaulTANNERY).
______. Correspondance. Paris:Vrin,1996.v.III.(OuvresdeDescartespubliéespar
CharlesADAM&PaulTANNERY).
DESCARTES,René.In:FERRATERMORA,J. Dicionáriodefilosofia.TraduçãodeMaria
StelaGonçalves,etal.SãoPaulo:Loyola,2000.TomoI.p.485488.(ColeçãoDiciorios). 
Originalespanhol.
DEFINANCE,J.Cogitocartésienetréflexionthomiste.Paris:Beauchesne,1946.185p.
(ArchivesdePhilosophie,v.XVI,cahierII).
FORLIN,E. A teoriacartesianadaverdade.SãoPaulo:Humanitas;Ijuí:Unijuí,2005.350
p.(ColeçãoFilosofia,14).
FRAGA,G.de.DESCARTES,(René).In:LOGOS–enciclop édialusobrasileiradefilosofia.
Lisboa:Verbo,1992.v.4,p.13311344.
FUKS,S. (Org.). Descartes400anos umlegadocientíficoefilosófico.RiodeJaneiro:
RelumeDumará,1998. 246p.
GILSON,E.Étudessurle rôledelapenséemédiévaledanslaformationdu système
cartésien.5.ed.Par is:Vrin,1984.344p.(CollectionÉtud esdePhilosophieMédiévale).
______.Introduction.In:DESCARTES,R.Discoursdelaméthode.Paris:Vrin,1992.p.7
32.(CollectionBiblioothèquedeTextesPhilosophiques).
GUÉROULT,Martial.Descartesselonl’odredesraisons.2.ed.Paris:Aubier,1999.2v.
______.NouvellesréflexionssurlapreuveontologiquedeDescartes.Paris:Vrin,1955.
116p.(CollectionProbmesetControverses).
HINTIKKA,J.CogitoErgoSum:inferenceorperfomance.Philosophicalreview,71,p.3
32, 1962.
145
HUISMAN,D.Descartes,15961650.In:______.Dicionáriodosfilósofos.Traduçãode
ClaudiaBerliner,etal.SãoPaulo:MartinsFontes,2004.p.269277.Originalfrancês.
KOYRÉ,A. Consider açõessobreDescartes. 3.ed.Lisboa:Presença,1986.67p.(Coleção
TextosdeApoio).
LANDIMFILHO,R.Podeocogitoserpostoemquestão?.Discurso,SãoPaulo,24,p.930,
1994.
______.Evidênciaeverdadenosistemacartesiano.SãoPaulo:Loyola,1992.131p.
(ColeçãoFilosofia,23).
LEBRUN,G.Notas.In: DESCARTES,R.Meditações.TraduçãodeJ.GuinsburgeBento
PradoJúnior.SãoPaulo:AbrilCultural,1973.v.XV,II.(ColeçãoOsPensadores).Original
francês.
LOPARIC,Zeljko.Descartesheurístico. Campinas:Unicamp:IFCH,1997.177p.(Coleção
Trajeria5).
MACEDO,N.de.Prefácio.In:DESCARTES,R.Discursodométodo/Aspaixõesdaalma.
TraduçãodeNewtondeMacedo.13.ed.Lisboa:SádaCo sta,1984.197p.(Coleção
ClássicosSádaCosta,novasérie).Originaisfranceses.
______.Notas.In: DESCARTES,R.Discursodométodo/ Aspaixõesdaalma.Tradu ção
deNewtondeMacedo.13.ed. Lisbo a:SádaCosta,1984.197p.(ColeçãoClássicosSáda
Costa,novasérie).Originaisfranceses.
MARION,J.L.Surl’ontologiegrisedeDescartes: sciencecartesienneetsavoir
arist oteliciendanslesregulae. 2.ed.revueeaugm.Paris:Vrin,1993.220p.
MARQUES,J.Descartesesuaconcepçãodehomem.SãoPaulo:Loyola,1 993.223p.
(ColeçãoFilosofia,25).
NUDLER,O.Descartese ocampoepistemológicomoderno.In:FUKS,S. ( Org.). Descartes
400anos umlegadocientíficoefilosófico.RiodeJaneiro:RelumeDumará,1998. 246p.
ONGVANCUNG,KimSang(Org.).Descartesetlaquestiondesujet .Paris:PUF,1999.
167p.(CollectionDébatsPhilosophiques).
146
RODISLEWIS,G. Descarteseoracionalismo.TraduçãodeJo rgedeOliveiraBaptist a.
Porto:Rés,s/d.151p.Originalfrancês.
______.Descartes –umabiografia.TraduçãodeJoanaAngélicaD’avilaMelo.SãoPaulo:
Record,1996.291p.Originalfrancês.
______.Descartes:textesetdébats.Paris:LivredePoche,1984.672p.
SANTIAGO,H.Introdução.In:DESCARTES,R.Meditaçõesmetafísicas.Traduçãode
MariaErm antinaGalvãoeHomeroSantiago.2.ed.SãoPaulo:MartinsFontes,2005.155p.
(ColeçãoClássicos).Originaisfrancêselatino.
______.Notas.In: DESCARTES,R.Meditaçõesmetafísicas.Tradu çãodeMariaErmantina
GalvãoeHomeroSantiago.2.ed.SãoPaulo:MartinsFontes,2005.155p.(Coleção
Clássicos).Originaisfrancêselatino.
SCRIBANO,E.Lanaturedusujet:ledoutetlaconscience.In: ONGVANCUNG,Kim
Sang(Org.).Descartesetlaquestiondesujet.Paris:PUF,1999.167p.(CollectionDébats
Philosophiques).
SILVA,F.L.e.Descarteseametafísicadamodernidade.4.ed.SãoPaulo:Moderna,1996.
151p.(ColeçãoLogos).
SOARES,A.G.T.de.PorumDescartesnãocartesiano.2008.TrabalhoapresentadonoI
ColóquioDescartes,Uberlândia,2008.Nãopublicado.
______.Cogito [mensagempessoal].mctannus@ ufu.br em08jul.2008.
ANEXO
TRADUÇÃODAPRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:
Delanaturede
l’Efprithumain
APRESENTÃO
Atraduçãodaprimeiraparteda
MeditaçãoSegunda:Delanaturedel’Efprithumain
queapresentamosaquicorrespondeaotextodoséc.XVIItalcomose encontranaediçãodas
obrasdeDescartespublicadaporCharlesAdamePaulTannery.
É útil saberque esta tradução foi elaborada,única e exclusivamente, paraouso da
presentedissertação e que,portanto, nãovalorizaodid at ismo editorial; isto é, emnenhum
momentonospreocupamosemfacilitarouadequarost ermosfranceses,optando,assim,por
apresentarumatraduçãoquevalorizasseomáximoaliteralidade mesmadessestermos.
Fizemosumcotejamentocomtrêstraduçõesbrasileirasdomesmotexto
363
,dentreas
quais,apóscompararcadaumadelasentresiecomoppriotextofrancês,temoscondições
derecomendarespecialmenteadeMariaErmantinaGalvãoed itadapelaMartinsFontes.
Mais uma vez, registramos a altíssima contribuição do Prof. Dr. Marcio Chaves
Tannús, querev isoue propôsvaliosasalteraçõesaotextotrad uzido.
363
Cf.,nestetrabalho,
Introdução
,fl.18.
PRIMEIRAPARTEDA
MEDITAÇÃOSEGUNDA
:
DelanaturedelEfprit
humain/Danaturezadoespíritohumano
MeditãoSegunda.
Da natureza do Espírito humano; e que
ele é mais cil de conh ecer que o
Corpo .
AMeditaçãoquefizontemmeencheuo
espírito de tantas dúvidas que,
doravante,nãoestámaisemmeupoder
esquecêlas. E, contudo, não vejo de
que forma eu as poderei resolver; e,
como se, subitamente, tivesse caído
numaáguamuitoprofunda,estoudetal
formasurpreso,quenãopossonemfixar
meuspésnofundo,nemnadarparame
sustentar acima. Não obstante, me
esforçarei e seguirei novamente a
mesma via em que entrei ontem,
distanciandome de tudo o que poderia
imaginar a menor dúvida, tal como se
soubesse que aquilo fosse
absolutamente falso; e continuarei
semprenessecaminhoatéqueeutenha
encontradoalgodecerto,ouaomenos,
senãopuderoutracoisa,atéquete nha
aprendido certamente que não nada
|Meditationseconde.
Delanaturedel’Efprithumain;Equ’ileft
plusayféàconnoiftrequeleCorps.
La Meditation  que ie fis hier m’a remply
l’efprit de tant de doutes, qu’il n’eft plus
deformaisenmapuiffanc edelesoublier.
Et c ependant ie ne voy pas de quelle
façonielespurayrefoudre;&commefi|
tout à co up i’eftois tom dans vne eau
trespro fonde,iefistellementfurpris,que
ienepuisnyaffeurermespiedsdansle
fond, ny nager pour me fo utenir au
deffus. Ie mefforceray neantmoins, &
fuiurayderecheflamefmevoyeoùi’eftois
entré hier, en m’eloignant  de tout ce en
quoy ie pouray imaginer le moindre
doute,toutdemefmequefiieconnoiffois
que cela fuft abfolument faux; & ie
continuëray toufiours dans ce chemin, |
iufqu’à ce que i’ayre rencontré quelque
chofe de certain, ou du moins, fi ie ne
puis autre chofe, iufqu’à ce que i’aye
apr is certainement, qu’il n’y a rien au
150
nomundodecerto.
Arquimedes,paratiraroGloboterrestre
de sua posiçãoe transportálo para um
outrolugar,nãopedianadamaisqueum
ponto que fosse fixo  e esvel. Assim,
terei direito de conceber altas
esperanças,seeuforbastantefelizpara
encontrar somente uma coisa que seja
certaeindubitáv el.
Eu suponho então que todas as coisas
queeuvejosãofalsas;eumepersuado
que nada jamais existiu de tudo o que
minha memória repleta de mentiras me
representa; penso não ter nenhum dos
sentidos;eucreioqueo corpo,afigura,
a extensão, o movimento e o lugar não
omaisqueficçõesdomeu esp írito.O
que, então, poderá ser considerado
verdadeiro? Talvez, nenhuma outra
coisa, senão, que não nada no
mundodecerto.
Mas,queseieusenãoháalgumaoutra
coisa diferente  daquelas que eu acabo
dejulgarincertas,daqualnãosepossa
teramenordúvida?NãoháalgumDeus,
oua lgumaoutrapotê nciaquemeponha
no espírito esses pensamentos? Isso
não é necessário; pois, talvez eu seja
capaz de produzilos  por mim mesmo.
Eu,então,pelomenos,nãosoualguma
mondedecertain.
Archimedes, pour tirer le Globe terreftre
de fa place & le tran fporter en vn autre
lieu,nedemandoitrienqu’vnpointquifuft
fixe & affuré. Ainfy i’auray droit de
conceuoirdehautesefperances,fiiefuis
affezheureuxpourtrouuerfeulementvne
chofequifoitcertaine&indubitable.
Ie fuppofe donc que toutes les chofes
que ie voy font fauffes; ie me perfua de
que rien n’a iamais efté de tout ce que
ma memoire remplie de menfonges me
rep refente;iepenfen’auoiraucunfenie
croyquelecorps , lafigure,l’étenduë,le
mouuement & le lieu ne font que des
fictionsdemonefprit.Qu’eftcedoncqui
poura eftre eftimé v eritable? Peuteftre
rien autrechofe,finon qu’il n’yarienau
mondedecertain.
Mais que fç ayie s’il n’y a point quelque
autre chofe differente de celles que ie
viensdeiugerincertaines,delaquelleon
nepuiffeauoirlemoindredoute?N’yat
il point quelque Dieu, ou quelque autre
puiffance, qui me met en l’efprit ces
penfées? Cela n’eft pas neceffaire; car
peuteftre qu e ie fuis capable de les
pro duiredemoymefme.Moydoncàtout
151
coisa? Mas , neguei que e u tivesse
qualquer sentido ou qualquer corpo. Eu
hesito,nãoobstante,poisquesesegue
daí? Sou eu, de  tal forma, dependente
do corpo e dos sentidos que eu não
possa ser sem eles? Mas eu me
persuadi de que não havia
absolutamentenadanomundo,quenão
havia nenhum céu, n enhuma terra,
nenhum corpo, nenhum espírito; então,
não me persuadi, tamm, de que eu
nãoexistia?Certamente,não;euexistia
sem dúvida, se eu me persuadi, ou
somen te se eu pensei alguma coisa.
Mas, um eu não sei qualenganador
muito potente e muito astuto, que
emprega toda a sua indústria em me
enganar sempre. Não há, então,
nenhuma dúvida de que eusou,se ele
me engana; e que ele me enga ne o
quanto quiser, ele não poderá, jamais,
fazerqueeunãosejanada,enquantoeu
pensarseralgumacoisa.Demodoque,
após ter pensado bem nisso, e ter
cuidadosamente examinado todas as
coisas,enfimé precisoconcluir,eter por
constante que esta propos iç ão:
Eusou ,
euexisto
,énecessariamenteverdadeira,
todas as vezes que eu a pronuncio, ou
queeuaconcebonomeuespírito.
Mas, eu o conheço ainda bastante
cl aramente o que eu sou, eu que estou
le moins ne fuisie  pas quelque chofe?
Maisi’aydefjaniéquei’euffeaucunfens
nyaucuncorps.Iehefiteneantmoins,car
que s’enfuitil | de là? Suisie tellement
dépendantducorps&desfens,queiene
puiffe eftre | fans eux? Mais ie me fis
per fuadéqu’iln’yauoitriendutoutdans
le monde, qu’il n’y auoit aucun ciel,
aucune terre , aucuns efprits, ny aucuns
corps; ne me fuisie donc pas auffi
pefuaqueien’eftoispoint?Noncertes;
i’eftois fansdoute, fi ie me fu is pe fuadé,
oufeulementfii’aypenféquel quechofe.
Mais il y a vn ie ne ay quel trompeur
trespuiffant & tresrufé, qui employe
toutefoninduftrieàmetrompertoufiours.
Iln’yadoncpointdedoutequeiefuis,s’il
me trompe; & qu’il me trompe tant qu’il
voudra, il ne auroit iamais faire que ie
ne fois rien, tant que ie penferay eftre
quelquechofe.Defortequ’apresyauoir
bien penfé, & auoir foigneufement
examine toutes chofes, enfin il faut
conclure, &tenirpourconftantquecette
pro pofition:
Ie fuis, i’exifte
, eft
neceffairementvraye,touteslesfoisque
ie la prononce, ou que ie la conçoy en
monefprit.
Mais ie ne connois pas encore affez
clairement ce que  ie fuis, moy qui fuis
152
certo de que eu sou; de modo que,
doravante, é preciso que eu tome todo
cuidado e me guarde para não tomar
imprudentementealgumaoutracoisapor
mim, e assim para não me equivocar
nesteconhecimento,queeusustentoser
mais certo e mais evidente que todos
aquelesqueeutiveanteriormente.
É, por isso, que eu cons iderarei,
novamente, o que eu acreditava ser
antes que eu adentrass e esses últimos
pensamentos; e de minhas a ntigas
opiniões eu s ubtrairei tudo o que pode
ser combatido pelas razões que eu há
poucoaleguei,demodoquepermaneça,
precisamente, some nte o que é
inteiramente indubi tável. O que, então,
eu acreditava ser até agora? Sem
dificuldade, eu pensei que era  um
homem.Mas,oqueéumhomem?Direi
que é um ani mal r acional? Certamente,
não: pois seria necesrio, depois,
pesquisar o que é animal, e o que é
racional, e ass im, de uma só questão
nós cairíamos insensivelmente em uma
infinidade de outras mais d ifíceis e
embaraçosas, e eu não gostaria de
abusar do pouco de tempo e de lazer
que me resta, empregandoo em
esclarecer semelhantes sutilezas. Mas
eumedeterei,antes,emconsideraraqui
ospensamentosq uenasciamatéagora
certainqueiefuis;deforte quedeforma is 
ilfautqueieprennefoigneufeme ntgarde
de ne prendre pas imprudemment
quelqueautrechofepourmoy,&ainfide
ne me point méprendre dans cette
connoiffance, que ie foutiens eftre plus
certaine&pluseuid entequetoutescelles
quei’ayeuësauparauant.
C’eft pourquoy ie confidereray derechef
ce que ie croyois eftre auant q ue
i’entraffe dans ces dernieres penfées; &
de mes anciennes opinions ie
retrancheray tout ce qui peut eftre
combatuparlesraifons quei’ay| tantoft
alleguées, en forte qu’il ne demeure
precifement rien que ce qui eft
entierement indubitable. Qu’eftce  donc
que i’ay creu eftre c ydeuant? Sans
difficulté, i’ay penfé que i’efto is vn
homme. Mais qu’eftce qu’vn homme?
Dirayieque c’eftvn animal raifonnable?
Non certes: car il faudroit p ar apres
rechercher ce que c’eft qu’animal, & ce
que c’eft que rafonnable, & ainfi d’vne
feule queftion nous tomberions
infenfiblement en vne in finité d’autres
plus difficiles & embaraffées, & ie ne
voudrois pas abufer du peu de temps &
de loifir qui me r efte, en l’employant à
démefler de femblabesfubtilitez. Mais ie
m’arrefteray pluf toft à confiderer icy les
penfées qui naiffoient cydeuant d’elles
153
por si mesmos em meu espírito, e que
me eramsomente inspirados por minha
natureza, quando eu me aplicava à
consideração do meu ser. Eu me
considerava,primeiramente,comotendo
um rosto, mãos, braços, e toda esta
máquinacompostadeossosecarne,tal
como ela se mostra em um cadáver, à
qual eudesignavapelonomede corpo.
Euconsiderava,além disso, que eu me
nutria, que eu andava, que eu sentia e
queeupensava,eeurelacio navatodas
esta ões à alma; mas, eu não me
detinha jamais a pensar o que eraesta
alma, ou, se eu me detinha, imaginava
queelaeraalgumacoisaextremamente
raraesutil,comoumvento,umachama,
ou um ar muito livre que estava
insinuadoeespalhadonasminhasmais
grosseiras partes. Por aquilo que era o
corpo,eunãoduvidava,d emodoalgum,
de su a natureza; pois, eu pensava
conhecêlamuitodistintamente,e,seeu
tivesse querido explicála conforme as
noçõesqueeutinhadela,teriaadescrito
dessaforma:Porcorpo,euentendotudo
oquepodeserdeterminadopo ralguma
figura; que pode ser compreendido em
algumlugar,epreencherumespaçode
talformaquetodooutrocorposejadele
excluído;que podesersentido, oupelo
tato, ou pelavisão,oupelaaudição,ou
pelo paladar, ou pelo olfato; qu e pode
mefmes en mon e fprit, | & qui ne
m’eftoient infpirées que de ma feule
nature, lorfque ie mapliquois à la
confideration de mon eftre. Ie me
confiderois,premierement, comme ayant
vn vifage, des mains, des bras, & toute
cettemachinecompoféed’os&dechair,
telle qu’elle paroift en vn ca davre,
laquelleiedefignoisparlenomdecorps.
Ie confider ois, outre cela, que ie me
nouriffois,queiemarchois,queiefentois
&queiepenfois,&ieraportoistoutesces
actions à l’ame: mais ie ne m’arreftois
point à penfer ce que c’eftoit que cete
ame, ou bien, fi ie my arreftois,
i’imaginois qu’elle eftoit quelque chofe
extremement rare & subtile, comme vn
vent, vne flame ou  vn air tresdelié, qui
eftoit infinué & repandu dans mes plus
gro ffieres parties. Pour ce qui eftoit du
corps, ie ne doutois nullement de fa
nature;car | ie penfois la connoiftre fort
diftinctement, &, fi ie l’euffe voulu
expliquer fuiuant les notions  que i’en
auois,iel’euffecriteenc etteforte:Par
le corps , i’entens tout c e qui peut eftre
terminéparquelquefigure;quipeuteftre
compris en quelque lieu, & remplir vn
efpaceentellefortequetoutautrecorps
enfoitexclus;quipeuteftrefenty,oupar
l’attouchement, ou par la veuë, ou par
l’ouye,ouparlegouft,ouparl’odorat;qui
peut eftre meu en plufieurs façons, n on
154
sermovidodeváriasformas,nãoporsi
mesmo, mas por alguma coisa alheia
pela qual ele seja tocadoe da qual ele
recebaaimpressão.Pois,deteremsia
potência de se mover, de sentir e de
pensar, eu não acreditava, de nenhum
modo, que se devesse atribuir essas
vantagens à natureza corporal; ao
contrário, eu me espantava, antes, de
ver que semelhantes faculdades se
encontravamemcertoscorpos.
Mas eu, o que sou eu, agora que eu
suponho que há um alguém que é
extremamentepoderosoe,seousod izê
lo, malicioso e astuto, que emprega
todasassuasforçasetodasuaindústria
em me enganar? Eu posso me
assegurar de ter a menor de todas as
coisas que eu atribuí aqui acima à
natureza co rporal? Eu me detenho a
pensar nisso com atenção, eu passo e
repasso todas as coisas em meu
espírito, e eu não encontro lá nenhuma
da qual eu possa dizer estar em mim.
Nãoé necessárioqueeumedetenhaa
enumerálas. Passemos, então, aos
atributos da Alma, e vejamos se há
alguns que estejam em mim. Os
primeiros são os de me nutrir e de
caminhar;mass eéverdadequeeunão
tenhocorpo,é verdadetambémque eu
não possocaminharnemmenutrir.Um
par  luymefme, mais par quelque chofe
d’étranger duquelilfoittouché&don t il
reçoiuel’impreffion.Card’auoirenfoyla
puiffance de fe mouuoir, de fentir & de
penfer, ie ne croyois aucunement que
l’on deuft attribuer ces auantages à la
nature corporelle; au contra ire, ie
m’eftonnois plutoft d e voir que de
femblables facultez fe rencontroient en
certainscorps.
Mais moy, qui fuisie, maintenant que ie
fupofe qu’il y a quelq’vn qui eft
extremement puiffant &, fi ie l’ofe dire,
mailicieux&rufé,quiemployetoutesfes
forces&toutefoninduftrieàmetromper?
Puisie m’affurer d’auoir la moindre de
toutes les chofes que i’ay attibué cy
deffusàlanaturecorporelle?|Iem’arefte
à y penfer auec attention, ie paffe &
rep affetoutesceschofesenmonefprit,&
ie n’en rencontre aucune que ie puiffe
dire eftreen moy.Iln’eftpas befoinque
ie m’arrefte à les denombrer. Paffons
doncauxattributsdel’Ame,&voyonss’il
y en a  quelquesvns qui foient en moy.
Les premiers font de me nourir & de
marcher; mais s’il eft vray que ie  n’ay
pointde|corps,il eftvrayauffiqueiene
puis marcher ny me nourir. Vn autre eft
defentir;maisonnepeutauffifentirfa ns
le corps: outre que i’ay penfé fentir
155
outro é o de sentir; mas não se pode
tamm sentir sem o corpo; mesmo
porque, outrora pensei sentir rias
coisas durante o sono, que ao me u
despertar, reconheci não ter, de fato,
sentido. Um out ro é o de pensar; e eu
julgo aqui que o pensamento é um
atributo que me pertence: só ele não
pode serseparado de mim.
Eu sou, eu
existo
: isso  é certo; mas por quanto
tempo? A sa ber, por todo o tempo em
que eu penso; pois, talvez poderia
ocorrer se eu cessasse de pensar, que
eucessariaaomesmotempodeserou
deexistir.Eunãoadmitoagoranadaque
não seja necessariamente verdadeiro:
eu sou, então, precisamente falando,
somen te, uma coisa que pensa, isto é,
um espírito, um entendimento ou uma
razão, quesão termoscujasig nificação
me era, anteriormente, desconhecida.
Ora, eu sou uma coisa verdadeira, e
verdadeiramente existente; mas que
coisa?Euodisse:umacoisa quepensa.
Eoquêmais?Euexcitareiaindaminha
imaginação,paraprocurarseeunãosou
alguma coisa mais. Eu não sou essa
conjunçãodemembros quese chamao
corpohumano;eunãosouumarlivree
penetrante, difundindo em todos esses
membros; eu não sou um vento, um
sopro, um vapor, nem nada de tudo o
queeupossosimulareimaginar,jáque
autrefois plufieurs chofes pendant le
fommeil, que i’ay reconnu à mon reueil
n’auoirpointemeffetfenties.Vnautreeft
de penfer; & ietrouue icyque la penfée
eft vn attributquim’appartient: ellefeule
ne peut eftre détachée de moy.
Ie fuis,
i’exifte
:celaeftcertain;maiscombiende
temps?Afç auoir,autantdetempsqueie
penfe; c ar peuteftre fe pouroitil faire, fi
ie ceffois de p enfer, que ie cefferois en
mefme temps d’eftre ou d’exifter. Ie
n’admets maintenant rien qui ne foit
neceffairement vray: ie ne fuis donc,
precifement parlant, qu’vne chofe qui
penfe, c’eft à dire vn efprit, vn
entendement ou vne raifon, qui font des
termes dont la si gnification m’eftoit
auparauant inconnuë. Or ie fuis vne
chofe vraye, & vrayment exiftante; mais
quelle chofe? Ie l’ay dit: vne cho fe qui
penfe. Et quoy dauantage? I’exciteray
encoremonimagination,pourchercherfi
ienefuispointquelquechofedeplus.Ie
nefuispointcétaffe mblagedemembres,
que l’on appele le corps humain; ie ne
fuis point vn air delié & penetrant,
rép andu dans tous ces members; ie ne
fuispointvnvent,vnfouffle,vnevapeur,
ny rien de tout ce que ie puis feindre &
imaginer,puifquei’ayfupoféquetoutcela
n’eftoit rien, & que, fans changer cette
fupofition, ie trouue que ie ne laiffe pas
d’eftrecertainqueiefuisquelquechofe.
156
eusupusquetudoissooeranada,e
que, sem mudar essa supos ição, eu
achoqueeuodeixodeestarcertode
queeusoualgumacoisa.
Mastammpodeacontecerqueessas
mesmas coisas, que suponho não
serem, por que elas me são
desconhecidas, não sejam, com efeito,
diferentesdemim,queeuconheço?Eu
nãoseinadasobreisso;eunãod is puto
sobre isso agora, eu posso dar meu
julgamentosomentearespeitodecoisas
que me são conhecidas: eu reconheci
que euera,eeuprocurooqueeusou,
euquereconheciser.Oraémuitocerto
queessanoçãoeconhecimentodemim
mesmo, assim precisamente tomada,
não dependadascoisascujaexistência
não me é, ainda, conhecida; nem, por
conseguinte,ecommaisforterazão,de
nenhumadaquelasquesãosimuladase
inventadas pela imaginação. E mesmo
esses termos simular e imaginar
adverte mme de meu erro; pois, eu
si mularia , defato,seeu imagin asses er
alguma coisa, já que imagi nar não é
outracois asenãocontemplarafiguraou
imagemdeumacoisa corporal.Ora,eu
sei já certamente que eu sou, e que
tamm pode ocorrer que todas essas
imagens a qui, e geralmente todas as
coisasquerelacionamoscomanatureza
Maisauffipeutilarriuerquecesmefmes
chofes, | que ie fuppofe n’eftre point,
parcequ’ellesmefontinconnuës,nefont
pointeneffectdifferentesdemoy,queie
connois? Ie n’en fçay rien; ie ne difpute
pas maintenant de cela, ie ne puis
donnermoniugementquedeschofesqui
mefontconnuës:i’ayreconnuquei’ftois,
& ie cherc he quell ie fuis, moy que i’ay
reconnu eftre. Or il eft trescertain que
cette notion & connoiffance de moy
mefme,ainfiprecifementprife,nedepend
point des c hofes don’t | l’exiftence ne
m’eft pas encore connuë; ny par
confequent, & à plus forte raifon,
d’aucunes de celles qui font feintes &
inuentées par l’imagination. Et mefme
ces termes de feindre & d’imaginer
m’auertiffent de mon erreur; car ie
feindrois en e ffet, fi i’imaginois eftre
quelque chofe, puifque imaginer n’eft
autre chofe que contempler la figure ou
l’imaged’vnechofecorporelle.Orieay
desja certainement que ie fuis, & que
tout enfemble il fe peut fire que toutes
cesimages,&generalementtoutesles
chofes que l’on ra pporte à la nature du
corps, ne foient que des fonges ou des
157
do corpo, sejam somente sonhos ou
quimeras. Em decorrência disso, vejo
cl aramentequeeuteriatãopoucarazão
emdizer:euexcitareiminhaimaginação
paraconhecermaisdistintamenteoque
eu sou, que se eu dissesse: eu estou
agora acordado, e eu percebo alguma
coisa de real e de verdadeira; mas,
porqueeunã ooperceboaindabast ante
nitidamente, eu adormecerei de
propósito,afimdequemeussonhosme
representem isso mesmo como mais
verdade e evidência. E, assim, eu
reconhocertamentequenadadaquilo
doqueeupossocompreenderpormeio
da imaginaç ão, pertence a esse
conhecimento que eu tenho de mim
mesmo, e que é necessário lembrar e
desviar o espírito desse modo de
conceber, a fim de que ele possa ele
mesmo reconhecer bem distintamente
suanatureza.
Mas,oqueéentãooqueeuso u?Uma
coisaquepensa.Oqueéumacoisaque
pensa? Isto é, uma coisa que duvida,
queconcebe,queafirma,quenega,que
quer, que não quer, que imagina
tamm,equesente.Certa mentenãoé
poucosetodasessascoisaspertencem
àminhanatureza.Mas,porqueelasnão
pertenceriam? Não sou eu a inda o
mesmo quem duvida quase de tudo,
chimeres. En fuitte de quoy ie voy
clairementquei’auroisauffipeuderaifon
en difant: i’exciter ay mon imagination
pour connoi ftre plus diftinctement qui ie
fuis, que fi ie difois: ie fuis maintenant
éueillé,&i’aperçoyquelquechofedeel
& de veritable; mais, parce que ie ne
l’aperçoy pas encore affez nettement, ie
m’endormiray tout exprés, afin que mes
fongesmereprefententcelamefmeau ec
plus de verité & d’euidence. Et ainfi, ie
reconnois certainement que rien de tout
cequeiepuiscom|prendreparlemoyen
de l’imagination, n’apartient à cette
connoiffance que i’ ay de moymefme, &
qu’ileftbefoinderapeller&détournerfon
efprit de cette façon de conceuoir, afin
qu’il puiffe luymefme reconnoiftre bien
diftinctementfanature.
Mais qu’eftce donc que ie fuis? Vne
chofe que penfe. Qu’eftce qu’vne chofe
qui penfe? C’eft à dire vne chofe qui
doute,quiconçoit, quiaffirme,quinie,qui
veut,quineveutpas,quiimagineauffi,&
quifent.Certescen’eftpaspeufitoutes
ces chofes apartiennent à ma nature.
Mais pourquoy n’y apartiendroientelles
pas?Nefuisiepasencorecemefmequi
doute prefque de tout, qui neantmoins
158
quem,nãoobstante,entendeeconcebe
certas coisas, quem assegura e afirma
serem só elas verdadeiras, quem nega
todas as outras, quem quer e deseja
conhecêlas mas, quem o quer ser
enganado,quemi maginamuitascoisas,
mesmo às vezes a despeito de que eu
astenha,equeassintatantocomopor
intermédiodosórgãosdocorpo?Nãohá
nada de tudo isso que seja tão
verdadeiroquantoécertoqueeusou,e
que eu existo, mesmo se eu  dormisse
sempre,equeaquelequemedeuoser
seservissedetodasassuasforçaspara
me enganar? Há, também, algum
desses atributos que possa ser
distinguidodemeupensamento,ouque
se possa dizer ser separado de mim
mesmo? Pois é porsi tão evidente que
sou eu quem duvida, que m entende, e
quemdeseja,quenãoéaquinecessário
nada acrescentar para explicálo. E eu
tenho tamm certamente o poder de
imaginar; pois, ainda que possa
acontecer (como eu supus
anteriormente) que as coisas que
imagino não sejam verdadeiras, não
obstante, esse poder de imaginar não
deixadeestarrealmenteem mim,efaz
parte de meu pensamento.  Enfim, eu
souomesmoquemsente,isto é,quem
recebe e conhece as c oisas como qu e
pelos órgãos dos sentidos, já que, de
entens & conçoy ce rtaines chofes, qui
affure & affirme celleslà feules eftre
veritables, qui nie toutes les autres, qui
veux&defired’enconnoiftredauantage,
quineveuxpaseftretrompé,qui imagine
beaucoupdechofes, mefme quelquefois
endépitquei’enaye,&quienfensauffi
beaucoup, comme par l’entremife des
org anes du corps? Y atil rien de tout
cela qui ne foit  auffi veritable qu’il eft
certain que ie fuis, & que i’exifte, quand
mefme | ie dormirois toûjours, & que,
celuyquim’adonnél’eftrefeferuiroitde
toutes fes forces pour m’abufer? Y atil
auffi aucun de ces attributs qui puiffe
eftre diftingué de ma penfée, ou qu’on
puiffe dire eftre feparé de moymefme?
Car il eft de foy fieuident que c’eft moy
qui doute, qui entens, & qui defire, qu’il
n’eftpasicybefoinderienad joufterpour
l’expliquer. Et i’ay auffi certainement la
puiffance d’imaginer; car | encore  qu’il
puiffe arrieur (comme i’ay fupofé
auparauant)queleschofesquei’imagine
ne foient pas vrayes, neantmoins cette
puiffance d’imag iner ne laiffe pas d’eftre
rée llment e m moy, & fait partie de ma
penfée. Enfin ie fuis le mefme qui fens,
c’eftàdirequireçoy&connoisleschofes
comme par les organes des fens,
puifqu’en effet ie voy la lumiere, i’ou le
bru it, ie reffens la chaleur. Mais l’on me
dirá q ue ces apparences font fauffes &
159
fato, eu vejo a luz,eu ouço or uído, eu
si nto o calor. Mas, dirãome que essas
aparências são falsas e que eu durmo;
que seja assim; todavia, pelo menos, é
muitocertoquemeparecequeeuvejo,
que eu ouço,equeeu me aqueço; eé
propriamente o que em mim se chama
sentir, e isso, tomado ass im
precisamente, não é outra coisa senão
pensar.Donde,eucomeçoaconhecero
queeusou,comumpoucomaisdeluze
dedistinçãoqueatéagora.
que ie dors. Qu’il foit ainfi; toutesfois, à
tout le moins, il eft trescer tain q u’il me
femble que ie voy, que i’ou, & que ie
m’échauffe;&c’eftproprementcequien
moy s’appelle fentir, & cela, pris ainfi
precifement, n’eft rien a utre chofe que
penfer. D’où ie commece à connoiftre
queliefuis,auecvnpeuplusdelumiere
&dediftinctionquecydeuant.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo