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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
DEPRESSÃO: RESISTÊNCIA OU DESISTÊNCIA EXISTENCIAL?
JOSÉ ANTÔNIO SPENCER HARTMANN JÚNIOR
RECIFE/2006
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JOSÉ ANTÔNIO SPENCER HARTMANN JÚNIOR
DEPRESSÃO: RESISTÊNCIA OU DESISTÊNCIA EXISTENCIAL?
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Universidade Católica de
Pernambuco, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Clínica.
Orientador : Prof. Dr. Marcus Túlio Caldas
RECIFE/2006
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JOSÉ ANTÔNIO SPENCER HARTMANN JÚNIOR
DEPRESSÃO: RESISTÊNCIA OU DESISTÊNCIA EXISTENCIAL?
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Universidade Católica de
Pernambuco, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Clínica.
Data de aprovação:
BANCA EXAMINADORA
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À minha mãe, meus irmãos e minhas filhas.
Aos professores Marcus Túlio Caldas, Ana Lúcia Francisco e Vincenzo Di Matteo.
Então, perguntou o filho:
Pai, Deus fala?
E o pai com o braço em riste, disse:
Vês, no céu aquelas nuvens como se fossem lírios, com suas asas brancas, apontando
para as estrelas, como se fossem pássaros lumíferos sobrevoando o cosmo?
Sim, vejo, respondeu a criança, com angelical expectativa.
Pois é, - continuou solícito o amável genitor – Deus está nos falando algo. A diferença é
que ele fala em versos através do poema de sua criação.
Então, pai, Deus é poeta?
Não, filho. Deus é a própria poesia viva, a oscular as pétalas de nossos corações com o
orvalho de sua suprema bondade.
O homem vive a ruptura do encantamento com o mundo. A poética é a instância
antropológica que mais dignifica o humano por lhe remeter à experiência direta com a
natureza.
A humanidade atual precisa ser recriada, transcendendo a robótica social sem deixar de
usufruir as benesses da ciência e da tecnologia, ao mesmo tempo voltando a se fundar como
indivíduos autênticos na vivência do afeto consigo, com os outros, com o mundo.
Spencer Júnior
RESUMO
O presente estudo realiza um aprofundamento da depressão,
convocando as questões existenciais do indivíduo e sua relação com o mundo como uma
possibilidade de melhor compreender o seu sofrimento psíquico e suas imbricações com o
social hodierno.
Inspirando-me na abordagem fenomenológica existencial que muito
contribuiu para minha reflexão sobre a depressão, - entendida como um sintoma de crise de
sentido da vida - realizei um cruzamento com o trânsito social deste sujeito - como ser-no-
mundo. A questão se levanta em saber como o homem responde às atuais condições ônticas
de seu existir, marcadas por aspectos sociológicos que trazem traços bem delineados no
trabalho e que foram nomeados de mecanismos depressivizadores. O modo de afetação deste
indivíduo aos aspectos psicossociais da contemporaneidade pode ser entendido como uma
resposta à forma como o mundo se lhe apresenta. Desta forma, pode se caracterizar como um
modo de desistência - quando o deprimido nega a vida, negando a si mesmo, condicionado a
sentimentos de fracasso, insuficiência pessoal, culpa e frustração ou de resistência, quando o
deprimido responde ao mundo como um ato de protesto - vivendo em auto-punição, não
obstante, estéril, porque paralisa o sujeito diante de outras possibilidades de seu existir.
O estudo faz uma peregrinação perquiridora na problematização da
depressão que pode ser compreendida, como comentado acima, a partir de uma resistência ou
de uma desistência de viver.
Finalmente, o estudo desemboca na clínica psicológica como um lugar
onde esse indivíduo pode ressignificar seu sentido de vida, ao mesmo tempo em que propõe
uma reflexão da clínica da depressão na atualidade. Acredito na importância de uma
abordagem fenomenológica existencial deste sujeito, que deve inserir, em sua analítica, um
olhar mais acurado, não somente quanto às questões ontológicas do homem, mas, como este
indivíduo – sendo ser-no-mundo – passa a ser atravessado pelos aspectos histórico, cultural e
social em seu modo de subjetivação.
Palavras-chave: Fenomenologia existencial; mecanismos depressivizadores; clínica
psicológica.
ABSTRACT
The present work make deeper of the depression, summon the existence
questions of the individual and your world relation, how the possibility for the better to
comprehend your psychic pain and yours report with the modern social.
With inspiration in the existential phenomenologic approach, what help
me too much in my depression reflection, - how the crise of life sense symptom – to did
realize a intersections with the social transit this individual – how being-in the-world. The
questions rise in to know how the man in actuality answer a the actuals ontics conditions of
your exist marked for the social what bring mark well delineated in the work and what did
nominated depressivist mechanism. The mode of affectation this individual for the
contemporary psychological-social aspects it may be understanding how a answer for the
mode how the world appear to him; may to characterize how a desistance manner – when the
depressed deny the life, negating yourself, condition at miscarriage sentiment, personal
insufficience, guilt and frustration; or the resistance, when the depressed answer for the world
how the protest act – living in self-punishment. In despite of, this a sterile protest because
paralyze the individual in front of another possibility in your exist.
The work travelling about in the problematic of the depression what
may be comprise how a resistance or desistance of live.
At last, the work disembogue in the psychological clinic how a place
where this individual may be change your life sense, at the same time, propose a reflection for
the depression clinic in the actuality how much the importance at a existential
phenomenologic approach this individual what insert in your analytical a look more accurate
not other than individual ontological questions, but how this individual – being-in the-world –
pass by historical-cultural-social in your subjectivation mode.
Keywords: Existential phenomenology, depressivist mechanism, psychological clinic.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 12
1. ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA DEPRESSÃO........................................................................... 16
1.1 Esboço cartográfico do indivíduo contemporâneo....................................................... 16
1.2 Processo de Personalização como uma nova lógica social.......................................... 17
1.3 Surgimento de novos fenômenos psicossociais:
Narcisismo e Hedonismo............................................................................................. 19
1.4 Os impactos do hiperinvestimento no narcisismo social:
Sentimento de perdição do indivíduo contemporâneo................................................. 22
1.5 Os revérberos pós-modernos nos novos modos de subjetivação................................. 27
1.6 Outros aspectos da pós-modernidade que incidem sobre o indivíduo contemporâneo............ 29
2. O HOMEM CONTEMPORÂNEO E O SEU PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO............................. 41
2.1 A interpretação histórica de Ser na construção do pensar metafísico.......................... 43
2.2 Conseqüências existenciais no homem atual sob o domínio da técnica moderna....... 48
2.3 O culto ao corpo e seus reflexos na formação identitária dos indivíduos.................... 58
3. ANONIMIDADE E OUTROS MECANISMOS DEPRESSIVIZADORES........................................... 68
3.1 O espetáculo do “eu” virtualizado e sua encarnação corporal..................................... 74
3.2 A crise identitária do deprimido................................................................................... 77
4. DEPRESSÃO: RESISTÊNCIA OU DESISTÊNCIA EXISTENCIAL?............................................... 85
4.1 A depressão como uma possibilidade de privação do sentido
de vida do homem interpretado como “Dasein” ............................................................... 92
4.2 Constitutivos existenciais do ser-doente...................................................................... 97
5. COMPREENDENDO O ACOLHIMENTO DA CLÍNICA PSICOLÓGICA AO DEPRIMIDO............. 102
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................... 118
7. REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 121
12
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, procuro avaliar o atual quadro de apresentação dos
transtornos depressivos realizando uma topologia sócio-cultural-histórica complexa e
desafiadora, com foco no campo vivencial do seu portador e como este reage aos atuais
paradigmas que ensejam modos de vida que nem sempre se coadunam com os seus anseios
fundamentais.
Neste levantamento dos modelos sustentatórios dos perfis subjetivos
hodiernos, faço uma reflexão sobre como a clínica da depressão se apresenta na atualidade,
sugerindo a perspectiva fenomenológica existencial como uma das possibilidades mais
coerentes para o encontro do sujeito deprimido consigo mesmo, mediante as reflexões que
este locus clínico pode proporcionar por se inclinar sobre as questões existenciais do
indivíduo, fazendo-o ter uma compreensão mais apropriada de sua realidade, onde a
depressão pode ser entendida como um sintoma perpetrado pela privação ou restrição de sua
liberdade de existir. Este indivíduo pode se caracterizar por dois aspectos: o de desistência da
vida – quando nega o seu existir, negando a si mesmo, preso a sentimentos de fracasso,
insuficiência pessoal, culpa e frustração por não conseguir responder ao mundo e o outro
aspecto que tem um efeito especular, seria o da resistência existencial - quando assume uma
postura de protesto à vida (vivendo em auto-punição), mas, tratando-se de um protesto de
ordem estéril porque o torna paralisado diante de outras possibilidades de seu existir.
A abordagem fenomenológica existencial me facilitou compreender
melhor a relação do deprimido com o mundo, das condições originárias de sua constituição
assinalando a angústia e o vazio existencial, sendo este, marcado por sua historicidade como
ser-no-mundo, ao mesmo tempo em que é afetado pelos aspectos psicossociais da
13
contemporaneidade. Estes aspectos, chamei-os de mecanismos depressivizadores por julgá-los
achatadores da subjetividade e os mensurei nos três primeiros capítulos. Obviamente, não os
avaliei como negativos em si mesmos, pois se trata de conquistas histórico-sociais
importantes para o bem-estar do homem. O estudo se debruça sobre o valor desproporcional
que é dado a estes mecanismos em sua aplicação à vida dos indivíduos; quando atropela os
anseios humanos em suas singularidades fomenta verdadeiras alienações que afetam o estado
de ânimo das pessoas, que passam a ter como conseqüência uma vida de relativa
inautenticidade existencial.
A importância deste trabalho deveu-se ao fato de, após uma exaustiva
pesquisa bibliográfica, haver percebido a escassez de informações em relação a uma leitura
fenomenológica existencial sobre a depressão à frente de uma problemática de alta relevância
social, uma vez que, segundo a Organização Mundial de Saúde ( OMS,1998) , a depressão até
o ano 2020 constituirá a segunda maior causa de afastamento do trabalho e incapacitação
social no mundo. Portanto, o meu objetivo está em apresentar reflexões mais amplas para a
clínica psicológica sobre esta doença, tentando resgatar do seu portador a sua
existencialidade, suas questões fundamentais e sua relação com a sociedade, destacando-os
como instrumentos importantes na avaliação diagnóstica. Com isto, não quero afirmar que
não houve evoluções importantes na compreensão da depressão por parte de outras
perspectivas dentre estas as psicofarmacológicas. Ao contrário, é incontestável a contribuição
que as neurociências, junto com as pesquisas da Indústria Farmacêutica, têm realizado em
benefício da humanidade. Desta forma, não é a minha intenção confrontar com as atuais
conquistas concretizadas ,seja, no campo da farmacopéia como nas mais variadas expressões
psicoterapêuticas. Portanto, o foco da minha pesquisa tenta açambarcar uma outra dimensão
ainda não contemplada pelas comunidades científicas que é a dimensão existencial e
14
psicossocial, e que esta, na minha experiência clínica, tem se mostrado de valor inestimável
para um exame mais apropriado da realidade do sujeito deprimido.
Para tanto, tomei como objetivo geral problematizar se a depressão na
contemporaneidade pode ser compreendida, numa perspectiva fenomenológica existencial,
como resistência ou desistência de viver. E como objetivos específicos, inicialmente, procurei
investigar como os modos de subjetivação na contemporaneidade se articulam com afetos
depressivos, averiguar como a depressão pode ser um modo de existir do sujeito na
contemporaneidade, construir uma compreensão da depressão na atualidade como resistência
ou desistência existencial e, finalmente, propor a clínica psicológica como um lugar de
ressignificação do sentido existencial.
A minha opção metodológica foi por uma pesquisa teórica devido ao
fato de julgar relevante fazer uma releitura do lugar que a depressão ocupa na clínica
psicológica, uma vez que abundam trabalhos sobre esse tema na atualidade. Entretanto, a
escassez de textos que situam a depressão em uma perspectiva fenomenológica existencial
chamou a minha atenção.
Assim, associei diferentes trabalhos teóricos com a minha experiência
clínica que sinaliza outros elementos constitutivos da depressão, além dos tradicionalmente
apontados pelas clínicas psicológica e psiquiátrica, que por sua vez já estão bem estudados e
determinados.
Para tanto, a seleção dos autores que guiou o meu trabalho: Lipovetsky
que traz à lume os conceitos de processo de personalização e depressividade generalizada;
Heidegger com a reflexão sobre a analítica existencial; Boss que perspectivou uma
compreensão existencial das psicopatologias como, por exemplo, a sua teoria sobre a Neurose
de Tédio e outros, baseou-se na ênfase que estes dão aos aspectos psicossociais e existenciais
15
como de importância capital na reflexão do homem no contexto histórico-cultural na
atualidade.
Partindo dos pressupostos, acima descritos, sobre a sintomatologia
depressiva, pretendo proporcionar novas contribuições sobre a clínica psicológica na busca de
novos significados (e compreensões) sobre os aspectos subjacentes, mas de não somenos
importância, como os que nomeei de mecanismos depressivizadores e que dão visibilidade
quanto às imbricações entre o psíquico e o social, e como esta avaliação mais abrangente
poderá contribuir para uma avaliação mais condizente com a realidade existencial do
deprimido, ajudando-o a melhor compreender a natureza de seu sofrimento, seja como um
desistente ou resistente à sua existência como ser-no-mundo.
16
1. ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA DEPRESSÃO
1.1 – Esboço cartográfico do indivíduo contemporâneo
A atual geografia social, marcada por paradigmas que privilegiam mais
a matéria bruta do eu, ou seja, as necessidades imediatistas e, por conseqüência, mais
superficiais do homem, originadas de uma cultura racionalista, traduziu uma compreensão
reducionista do ser humano, a qual foi endossada pela concepção tradicionalista da metafísica
como um simples ente objetificado. O homem como sujeito-objeto foi miniaturizado pelo
método acadêmico e pela epistême científica a apenas um aspecto de seu todo. Desta forma,
desenha-se uma subjetividade condicionada à técnica pura que usurpa a autenticidade do si e,
portanto, encapsuladora do eu, fazendo inaugurar uma nova sociedade, uma sociedade de
massificação, de uniformização, de entendimento tecnológico e, no entanto, de desilusão
profunda como quase tudo o que se apresenta de um modelo que limita as dimensões
humanas. Por conseqüência, surge uma nova forma de interpretar o indivíduo com o sinete da
época de consumo de massa que faculta a emergência de um novo modo de socialização em
ruptura com o instituído nos séculos passados. Jamais, em tempo algum, o homem liberado do
jugo do estado, dos usos e costumes, das imposições moralistas da igreja, da moral
heterônoma, conseguiu ter francas possibilidades de encontrar a sua felicidade,
independentemente de padrões rígidos e de repressões. Entretanto, paradoxalmente, este
homem estertora, agoniza à frente de uma liberdade irrefreada. Este homem é nutrido por uma
nova ideologia que reforça a vida privada em detrimento do obscurecimento da esfera pública
que se vê solapada de suas crenças e papéis sociais mais bem definidos. Floresce um novo
conceito do individualismo ocidental tingido da erosão das identidades sociais e da
17
volatilidade ideológica e política. O indivíduo contemporâneo cartografa um novo território
social com o ineditismo da centralidade do sujeito alçado acima das instituições públicas. Para
Gilles Lipovetsky, a sua hipótese para a atual topologia social seria a seguinte:
Trata-se de uma mutação sociológica global em curso, de
uma criação histórica..., combinação sinérgica de organizações e significações, de
ações e valores, que se esboça a partir dos anos vinte – apenas as esferas artísticas e
psicanalíticas a anteciparam em alguns decênios – e, cujos efeitos não pararam de se
amplificar a partir da Segunda Guerra Mundial. (L
IPOVETSKY, 1983, p.031)
A atual sociedade, portanto, carreia consigo um padrão marcante que
perfura a concepção de indivíduo com uma nova percepção histórico-cultural e que insere
uma espacialidade social nunca dantes conferida nas civilizações transatas. O individualismo
contemporâneo sofre o registro reforçador de outros processos que o precederam, conforme
veremos a seguir.
1.2 – Processo de Personalização como uma nova lógica social.
Como se pode inferir, um desses processos a que Lipovetsky chamou
de “Processo de Personalização” teria o aspecto negativo com a fratura da socialização
disciplinar (ordem linear e crenças organizadas que norteavam mais rigidamente o destino das
pessoas), no que impactuaria na evaporação das referências históricas e das tradições,
reverberando no indivíduo contemporâneo uma certa dessubstancialização de seu eu. Por
outro lado, teria o aspecto positivo, permitindo uma sociedade com maior liberdade de
expressão e acesso à informação como ele coloca:
Negativamente, o Processo de Personalização remete para
a fratura da socialização disciplinar; positivamente, corresponde à instalação de uma
sociedade flexível assente na informação e na estimulação das necessidades, no sexo e
no levar em conta os <fatores humanos>, no culto da naturalidade, da cordialidade e
18
do humor. (LIPOVETSKY, 1983, p. 047, grifo do autor)
As sociedades democráticas protegem o indivíduo e enfatizam um novo
processo de (ascese) do sujeito que é o processo de personalização. Este processo advém de
uma perspectiva comparativa e histórica e determina uma nova organização social,
arrancando o sujeito da ordem disciplinar-revolucionária-convencional que foi soberana até os
anos cinqüenta do século XX e que regulamentava a vida do homem através de convenções e
normativas sociais que partiam das instituições publicas para o privado, ou seja, o
determinismo público se sobrepunha em poder e controle ao liberalismo privatista . Este novo
processo que então se desenha, ao contrário, valoriza as motivações e desejos pessoais, escuta
mais o privado e menos o público. Desafoga o sujeito das regras universalizantes e
homogêneas e respeita mais as particularidades idiossincráticas em detrimento das
regulamentações fixas e estandardizadas. A prioridade, no novo modelo instituído pelo
processo de personalização, é no da realização pessoal e na singularidade subjetiva. Como
coloca Lipovetsky (1983, p. 9):
É este imaginário rigorista da liberdade que desaparece,
dando lugar a novos valores que visam permitir o livre desenvolvimento da
personalidade íntima, legitimar a fruição, reconhecer os pedidos singulares, modular
as instituições de acordo com as aspirações dos indivíduos.
A ruptura com a socialização disciplinar diluiu o senso de uma
liberdade mais rigorista e abre espaço para o nascimento de novos valores que visam o
desenvolvimento da personalidade íntima, reconhecendo as súplicas singulares, topografando
o território individual em detrimento do coletivo, onde as próprias instituições são
manipuladas a serviço do desejo individualista. Há uma pulverização dos ideais modernos
adstritos ao estatuto do coletivo a favor da realização pessoal; o Processo de Personalização,
tatuado pelo irrestrito respeito pela singularidade subjetiva, institui novas formas de controle
19
do comportamento social. O indivíduo, mais do que nunca para ele próprio, desfralda a
bandeira do individualismo puro, cujo lema é o fruir máximo da vida que encontra no
mercado movido pelo consumo irrefreado, seu combustível mais eficaz. Para Lipovetsky
(1983, p. 62) isto é evidente quando diz:
Viver livre e sem coação, escolher sem restrições o seu
modo de existência: não há outro fato social e cultural mais significativo quanto ao
nosso tempo; não há aspiração nem desejo mais legítimo aos olhos dos nossos
contemporâneos.
O processo de Personalização, portanto, garantiu uma posição de
privilégio do individualismo na hierarquia social com delimitações mais amplas na
permissividade de liberdade e ênfase nas singularidades subjetivas com maior desprendimento
do público. Com estas concessões surgiram outros processos que engordariam o
individualismo contemporâneo.
1.3 Surgimento de novos fenômenos psicossociais: Narcisismo e Hedonismo.
É transparente a lógica de que a esfera social cede lugar ao
individualismo cujos passos gigantes fossilizam, no chão dos novos valores, marcas
indeléveis quanto a novos modos de vida.
Este fenômeno, já sacralizado pela mídia e pela cultura contemporânea,
demarca a sociedade pós-moderna onde o hedonismo e o narcisismo são legitimados,
conforme cita o mesmo autor:
Foi a anexação cada vez mais patente das esferas da vida
social pelo processo de Personalização e o recuo concomitante do processo disciplinar
que nos levou a ficar de sociedade pós-moderna, ou seja, de uma sociedade que
generaliza uma das tendências, inicialmente monetárias, da modernidade. Sociedade
20
pós-moderna, maneira de dizer que o individualismo hedonista e personalizado se
tornou legítimo e já não depara com oposição... A sociedade pós-moderna e a
sociedade em que reina a indiferença de massa, em que domina o sentimento de
saciedade e de estagnação, em que o novo é acolhido do mesmo modo que o antigo,
em que a inovação se banalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado a um
processo inelutável. (L
IPOVETSKY, 1983, p. 65)
A busca insaciável, a realização imediata dos prazeres (Hedonismo),
fabricados muitas vezes pelo mercado de consumo, instilando uma patológica compulsão do
desejo de ter mais e mais, movido pela moda que sobrevive do novo, dessacraliza a relação
com os ideais sociais onde o econômico subjuga o político e o ser é sombreado pelo ter. Há
uma certa anemia ideológica que desvitaliza o organismo do pensamento humano, entregue ao
descaso de um modo de viver que afeta seu estado de humor, por não manter seu espaço
próprio de crescimento pessoal e humanizador. O homem parece mergulhar em um vazio
existencial quando sua ênfase de viver é o cultivo de um individualismo que extingue um dos
grandes sentidos para uma vida mental saudável que é o adubamento do terreno das relações
interpessoais. Este seria um dos traços da nova fisionomia de nossa sociedade, como postula
Lipovetsky (1983, p.68):
A sociedade moderna era conquistadora, ciente no futuro, na
ciência e na técnica; instituiu-se em ruptura com as hierarquias de sangue e a
soberania socializada, com as tradições e os particularismos, em nome do universal,
da razão, da revolução. Esse tempo desfaz-se diante de nossos olhos; é, em parte,
contra tais princípios futuristas que as nossas sociedades se estabelecem, nesta medida
pós-moderna, ávidos de identidade, de diferença, de conservação, de descontração, de
realização pessoal imediata; a confiança e a fé no futuro dissolvem-se nos amanhãs
radiosos da revolução e do progresso. Já ninguém acredita, doravante o que se quer é
viver já, aqui e agora, ser-se jovem em vez de forjar o homem novo. Sociedade pós-
moderna significa, deste sentido, retração do tempo social e individual, precisamente
quando se impõe cada vez mais a necessidade de prever e organizar o tempo coletivo,
exaustão do impulso modernista dirigido para o futuro, desencanto e monotonia do
que é novo, esgotamento de uma sociedade que conseguiu neutralizar na apatia que a
fundamenta: a mudança. Os grandes eixos modernos, a revolução, as disciplinas, o
laicismo, a vanguarda foram desafectadas à força de personalização hedonista; o
otimismo tecnológico e científico desmoronou-se enquanto inúmeras descobertas
eram acompanhadas pelo envelhecimento dos blocos, pela degradação de meio-
ambiente, pelo apagamento progressivo dos indivíduos; já nenhuma ideologia política
é capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós-moderna já não tem ídolos nem
tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou projeto histórico
mobilizador; doravante é o vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem
apocalipse.
21
Como já foi mencionado, a cultura Pós-moderna vem reforçar o
individualismo, o culto descomunal ao “eu”, liqüefazendo os marcos de referência e
enfurnando a aparente estrutura indivisível da modernidade e atomizando a cultura
contemporânea, cujo sopro de vida é a inflação do personalismo. Tal característica sócio-
cultural possivelmente vem gerando uma nova forma de subjetivação que parece não atender
ainda e de fato aos anseios do afeto humano, no que altera o seu estado de humor com
sintomas depressivos que probabilisticamente sinalizam o atual descompasso do indivíduo em
relação a sua destinação social.
Por outro lado, é mister aventar a possibilidade de que, se há a ruptura
com a cadeia burocrática-disciplinar das estruturas rígidas da modernidade, é lícito que se dê
relevo aos seus benefícios na esfera democrática-individualista. O trânsito descompensado de
um pólo ao outro é que fez uma homeostasia confusa e, por conseguinte, prejudicial. Marca
um novo perfil psicológico e comportamental do individualismo que é o narcisismo.
Entretanto, sendo a cultura pós-moderna uma dobradura do
individualismo, modela uma cultura personalizada, emancipando o átomo social das esferas
disciplinar-revolucionárias. De um lado, temos a descontinuidade histórica perpetrada pelo
processo de personalização ,e por outro, temos uma continuidade na modernidade
democrática-individualista. Neste movimento de fricção entre ruptura e continuidade, surge o
fenômeno do narcisismo como criogenização do individualismo e designado pelos sociólogos
americanos. Mais uma vez é Lipovetsky que respalda esta reflexão:
O narcisismo, conseqüência e manifestação miniaturizada do
processo de personalização, símbolo da passagem do individualismo <<limitado>> ao
individualismo <<total>>, símbolo da Segunda revolução individualista. Que outra
imagem pode significar tão bem a emergência desta forma de individualidade com a
sua sensibilidade psicológica, desestabilizada e tolerante, centrada sobre a realização
emocional de si próprio, ávida de juventude, de desportos, de ritmo, menos
empenhada em triunfar na vida do que em realizar-se de modo contínuo na esfera
íntima? Que outra imagem é capaz de sugerir com a mesma força o formidável surto
individualista induzido pelo processo de personalização? Que outra imagem permite
ilustrar melhor a nossa situação presente em que o fenômeno social decisivo já não é a
22
pertença e o antagonismo de classe, mas a disseminação do social? Os desejos
individualistas esclarecem-nos atualmente mais do que os interesses de classe; a
privatização é mais reveladora do que as relações de produção, o hedonismo e o
psicologismo são mais pregnantes do que os programas e formas de ação coletivas,
ainda quando estes são novos (luta anti-nuclear, movimentos regionais, etc.); conceito
de narcisismo tem como objetivo refletir este culminar da esfera privada.
(L
IPOVETSKY, 1983, p. 13, grifos do autor)
1
Com a importância conferida ao indivíduo quando comparado ao
público, desencadeiam-se, então, novos aspectos de comportamento psicológico e social como
o hedonismo que, estimulado por uma sociedade de consumo, explora a zona sensorial e faz o
homem descobrir o prazer que pode usufruir através do consumismo que culmina numa
potencialização de sua atenção centrífuga, o que dispersa seu interesse no interpessoal.
Igualmente, manifesta-se o narcisismo social que centraliza no indivíduo um certo solipsismo,
uma subjugação do outro ou quase desconhecimento de sua existência em detrimento da
supervalorização intrapessoal. Logo a seguir, nos capítulos subseqüentes nos aprofundaremos
nestes conceitos e suas ressonâncias subjetivas.
1.4 Os impactos do hiperinvestimento no narcisismo social: Sentimento de
perdição do indivíduo contemporâneo.
No narcisismo há um maior desinvestimento na esfera política para um
maior aporte de energia ideológica e ocupacional com as questões subjetivas, como temos
enfatizado. Não há mais ancoragem emocional na res pública. No entanto, o narcisismo não
implica em um alojamento na obscuridade solipsista do eu e nem em uma desconexão total do
social. O que ocorre é maior inclinação às singularidades subjetivas em detrimento às
1
Vale destacar que o narcisismo aqui citado neste trabalho não se refere ao conceito específico dado pela
psicanálise. O narcisismo, no contexto da presente discussão, deve ser considerado como um desdobramento do
individualismo contemporâneo. Narcisismo em psicanálise é a condição mental indispensável à aquisição do
sentimento e da consciência da “identidade subjetiva”.
23
questões públicas. O privatismo se sobrepõe ao público. No coroamento das sociedades
democráticas e das políticas neo-liberais se hipertrofia o ego, ao mesmo tempo em que esse
sujeito não proclama uma independência soberana associal, mas se filia com coletivos de
interesses miniaturizados e hiperespecializados como os grupos de pais e filhos
homossexuais, alcoólicos anônimos, portadores de transtorno do pânico, clubes esportistas ou
de “hobby”, etc..
O que ocorre é uma retração do militantismo ideológico e político de
outrora com uma simultânea expansão do desejo de buscar grupos afins, com seres que
partilham as mesmas preocupações imediatas.
No narcisismo, as pessoas são estimuladas pelos veículos de
comunicação de massa aos espaços de exposição do eu – como as cenas publicitárias da
intimidade das pessoas em programas de televisão e de rádio – a falarem mais de si. No
entanto, quanto mais dizem de si, mais se esvaziam, mais entediante torna-se-lhes a vida,
porque no fundo parecem apenas falar das imagens encarnadas dos atuais mitos midíacos que
são as celebridades e não de si próprias, como se as imagens publicitárias ensombreassem o
seu eu real (neste contexto, abordaremos mais profundamente o assunto em capítulos
subseqüentes). O narcisismo abre o espaço exibicionista do micro-público para expor o
macro-privado do sujeito que, sem saber representar em palavras e ação o que se passa em sua
subjetividade, apenas reforça o seu devaneio subjetivo, matriciado pela dessubstancialização
pós-moderna que inaugura a era do vazio de sentidos consistentes do viver.
Na contemporaneidade não há mais um direcionamento coletivo para as
realizações pessoais. As unidades institucionais doadoras de identidades como família,
religião, estado, política, não oferecem o suporte de geração de sentido. Pesa, sobre o
indivíduo despaternalizado do social, a grande responsabilidade de ser o único que pode
conferir felicidade e sentido para a sua vida. Torna-se deveras angustiante quando, à frente de
24
tantas possibilidades, não conseguindo normalmente dar conta, se frustra. O social na pós-
modernidade perdeu a capacidade de trazer realizações no âmbito do pessoal. Encontrar o
sentido do mundo, dizer o que é a vida e qual o seu tempo, passou a ser uma tarefa de porte
individual. A pós-modernidade traz a marca da fragilização das instâncias informais de
controle social. O indivíduo não tem mais a quem responder, nem aos pais, aos mestres
escolares e nem mais aos líderes religiosos. É cada um por si. Já não mais há motivos para
inserção no coletivo em busca de sentidos para viver. O sentido é conquista meramente
individual. Tal comportamento superdimensionado no individualismo e inspirado no
narcisismo social leva as pessoas a uma vida inconsistente de valores, portanto, de sentidos
para vida. Ocorre, assim, um desencadeamento de fenômenos psicopatológicos, dentre estes, a
depressão que denuncia o vazio interior do homem contemporâneo que se angustia com a
responsabilidade de ser o único que pode gerar felicidade a si mesmo. Longe do coletivo, o
homem se isola e adoece. Há um sentimento de perdição, um mal-estar psíquico e existencial
de que a vida perdeu o seu sentido. Ocorre uma total desorientação com conseqüente perda de
identidade. Estimulado em viver para si no despertamento hedonista de todas as suas
ocupações, preocupa-se só consigo e se distancia de seu semelhante. Na busca sôfrega por
constante satisfação sensorial só faz alimentar mais ainda sua insatisfação existencial.
Assim, como se pode perceber, despatriado do estado e como eremita na
desertificação do ser social, devido à excessiva estimulação do gozo pessoal, torna-se ávido
em seu desejo de aprovação e reconhecimento, onde o outro é constante ameaça à realização
deste mesmo desejo de ser sempre soberano.
O narcisista contemporâneo rompe o laço social com o outro que pode
lhe constituir subjetivamente como ser-com e ser-no-mundo, desta forma, uma relação
promissora e saudável para, marcado por uma cultura de competitividade acirrada, buscar no
outro um possível elemento de destruição de seu eu, via interrupção do seu gozo. Assim,
25
passa a encontrar em grupos miniaturizados que venham a comungar da doença, do vício ou
transtorno psicológico ou psiquiátrico de que sofre, o seu seguro espaço gerador de sentido
social, onde o outro não é mais ameaça, mas um irmão que fala da sua mesma dor. Ou seja, o
indivíduo contemporâneo, tatuado pelo narcisismo, parece encontrar sua identidade mais nas
relações com os outros que falam de sua doença e não sugerem a competitividade selvagem,
do que aqueles que lhe prometem resgatar a sociabilidade parceira e disciplinada, pulverizada
de estereótipos da política do ganho sobre o outro à mercê da soberania do seu eu. Desta
forma, a ética da convivência saudável da relação natural e construtiva que deveria ser vivida
em todos os setores sociais, inclusive, no mundo do trabalho, passa a se constituir somente
nos grupos onde parece que a competitividade acirrada relaxa quando este se percebe no meio
daqueles que, por estarem doentes, ou por pertencerem a ideologias meta-mercadológicas,
suspendem a dolorosa lembrança de ver o outro como uma constante ameaça.
A perda do tempo histórico do sujeito narcísico é outra conseqüência na
contemporaneidade do reinado do individualismo. O narcisista não se preocupa com o futuro,
já que não tem quase nenhuma memória do passado. A desvalorização cultural do passado faz
iluminar a verdade sobre a pobreza das ideologias predominantes que não traduzem a
realidade como parece revelar também a pobreza da vida interior do narcisista.
O narcisista vive uma contradição existencial; não obstante suas ilusões
de onipotência, o mesmo precisa dos outros para validar sua auto-estima. A perda do sentido
histórico e a despreocupação com o futuro isolam-no em um tempo presente sem
presentificação e, na fumaça exaltadora de seu individualismo, vive as cinzas de sua
insegurança psicológica nutrida pela solidão. O seu poder-ser não se lhe abre mais o campo
infinito das possibilidades de encontrar pelas suas escolhas pessoais seus sentidos de viver.
Sentidos industrializados, no momento, pela máquina do consumismo, do culto exacerbado ao
eu que brutaliza o sujeito sem história e sem futuro, preso ao imediatismo hedonista que
26
diminui seu campo visual de novos horizontes filosóficos onde não é mais levado a pensar em
sua destinação ontológica, onde ser não é mais o seu tempo de viver. É o que Lasch (1983, p.
31), numa análise da sociedade americana, coloca:
Hoje em dia os americanos são dominados, não pelo senso
das infinitas possibilidades, mas pela banalidade da ordem social que erigiram contra
elas. Tendo interiorizado os freios sociais, com os quais, a princípio, procuraram
manter as possibilidades dentro dos limites civilizados, sentiram-se esmagados pelo
tédio aniquilador, como animais cujos instintos se definharam no cativeiro. Um
retorno ao estado selvagem ameaça-os tão pouco que anseiam precisamente por uma
existência instintiva mais vigorosa. Atualmente as pessoas queixam-se da
incapacidade de sentir. Cultivam experiências mais vívidas, procuram reanimar a
carne preguiçosa, tentam reavivar apetites enfraquecidos... As pessoas do século vinte
erigiram tantas barreiras psicológicas contra emoções fortes e investiram estas defesas
com tanta energia derivada de impulsos proibidos, que não mais conseguem sentir o
que é deixar-se inundar pelo desejo. Ao contrário, tendem a ser consumidas pelo ódio,
que se deriva das defesas contra o desejo e dão origem, por sua vez, a novas defesas
contra o próprio ódio. Suaves, submissas e sociáveis por fora, elas fervem em um ódio
interior para o qual uma sociedade densa, superpopulosa e burocrática pode divisar
poucas saídas legítimas.
Não com isto queira afirmar que o atual quadro psicossocial com as
configurações aqui, até então apresentadas, sejam as únicas responsáveis pelo estado de
humor da sociedade ou que respondam pelo alto índice de deprimidos ou ainda que o vazio
existencial decorra da constrição do exercício da interpessoalidade nas relações humanas. Não
é a isto de forma tão determinística e unidimensional que o presente estudo se destina. Pois, é
indiscutível, igualmente, que o individualismo e seus asseclas, narcisismo e hedonismo
trouxeram suas incomensuráveis contribuições para o bem-estar social. No entanto, o pêndulo
não apenas aponta para horizontes promissores. Portanto, também é inegável perceber os
vetores negativos que não podem deixar de ser contemplados como possibilidades
psicossociais no desencadeamento de quadros depressivos por não facultar o livre curso do
sujeito contemporâneo na identificação de seus projetos de vida que melhor se coadunem com
suas direções ontológicas.
27
1.5- Os revérberos pós-modernos nos novos modos de subjetivação.
Paradoxalmente, a liberdade conferida ao individual condena o próprio
homem a uma prisão sutil, armada por um social que impõe um modo de vida que faz o
sujeito se distanciar de suas questões fundamentais. O sujeito narcísico é um sujeito bruto,
que não se interroga sobre sua própria existência; que não introduz em sua vida, em sua forma
de pensar, uma dialética, uma oposição, uma reflexão. Não é mais um sujeito que carece da
“ek-sistence”, dessa exterioridade interna, que lhe dá um certo recuo, uma observação sobre
sua vida, sobre o mundo, suas relações e escolhas possíveis.
Nisto, parece o homem contemporâneo denunciar seu auto-flagelo, o
repúdio a si mesmo, uma vez que o modelo do narcisismo que se engendra é de um certo
isolamento social e trans-geracional do sujeito, tornando-o sem raízes, sem gravidade própria,
amedrontado, ansioso e deprimido. Vivendo no pântano da incerteza, frustração e
insegurança, o sujeito hodierno vive da auto-acusação inconsciente, onde o ódio de si é mais
forte que a admiração ao eu, visto que, neste modo de vida, o ser não se realiza. Há uma
dessubstancialização do tempo real do sujeito, das figuras de alteridade e do imaginário
condicionados à indústria da mídia – nova produtora de subjetividade – através da
sacralização impessoal das novas autoridades erigidas pelo vazio institucional e de referências
históricas que são as celebridades, assunto que discutiremos também nos capítulos
subseqüentes.
Então, como temos sempre enfatizado, é possível compreender como a
cultura pós-moderna configura um indivíduo centrado em si, voltado para seus interesses
pessoais, modelado e projetado para um modo de vida que fecha os seus olhos para o coletivo
e se encapsula em seu mundo de desejos, de contemplação de si mesmo no eterno espelho de
suas vaidades superexcitadas e alimentadas por uma sociedade que se tipifica e que tem, como
28
senha social, o consumismo.
A estátua do eu é erigida no meio de um deserto social onde o indivíduo,
virado a si mesmo e preocupado somente com o seu bem-estar, procura gerir o seu capital
estético, afetivo, físico e libidinal.
Esse seria um dos aspectos negativos do processo de Personalização no
impacto de gerar novos modos de subjetivação quando cartografa o território do
individualismo com quase total exclusão do outro em seu espaço interpessoal. Isto porque,
cuidando apenas de si e vivendo mais para si, as relações sociais são comprometidas pelo
processo de privatização individualista e, por conseguinte, podem, como uma possibilidade,
alterar o estado de humor do indivíduo, já que o jugulam a um vazio social.
Os padrões identitários não são mais marcados, as referências
se perderam e a depressão, tomada por muitos como sintoma maior de nosso tempo,
tem, sem dúvida, muito a ver com este vazio de identidade e de identificações.
Sociedade em que a comunidade que o abriga é o patrimônio cultural herdado.
Sociedade sem herança, indivíduos órfãos de ideais e de verdades simbólicas, que
correm simplesmente atrás da sedução das imagens que lhes são propostas de
inúmeros modos. (D
A POIAN, 2001, p. 08)
A este esvaziamento de sentido identitário talvez se possa aventar a
hipótese da depressão como um sintoma social que denuncia a falência, em parte, de alguns
regimes de vida que não atendem, em relativa suficiência, às necessidades mais fundamentais
da natureza humana. A descontinuidade histórica com conseqüente ruptura de instituições
agenciadoras de identidade e sentido social, a sobrecarga de responsabilidades sobre o
indivíduo que não tem a quem culpar por seus insucessos senão a si mesmo, uma sociedade
de consumo que exporta para as relações interpessoais o mesmo tratamento dado no mundo
da compra e da venda de mercadorias e a automática exclusão do outro em função da
centralização do eu, parecem remeter o homem atual a instâncias de frustração, insegurança e
incerteza, onde o sujeito parece, até certo ponto, estertorar diante do depauperamento de
29
ideais sociais e de uma constelação de verdades simbólicas que lhe nutram a vida de novos
sentidos. Um mundo de incerteza, uma sociedade fluida demais para que o indivíduo encontre
no plano social e nas relações humanas uma plataforma relativamente segura para a sua
jornada e o seu acolhimento quando se fizer necessário o seu amparo. Incerteza seria a
tatuagem mutante da hodierna epiderme social? Que outros aspectos ainda reverberam sobre a
atual subjetividade, mascarando sua real face?
1.6- Outros aspectos da pós-modernidade que incidem sobre o indivíduo
contemporâneo.
Os traços peculiares da pós-modernidade
2
seriam o do prazer e o da
liberdade individual onde se suprimem a ordem e a segurança. É a era da descartabilidade,
volatilidade; o mundo pós-moderno é o mundo da incerteza. Ser seguro, para o modelo
vigente, é viver no tédio. O indivíduo é conduzido a viver freneticamente, entregue ao
imediatismo. O capitalismo moderno, com o seu consumo ávido, coloca os indivíduos em
constante ansiedade, causando o que Baumam (1998, p.23) chama de “o grande mal-estar da
instabilidade da própria identidade”.
A respeito disso comenta Richard Sennet (1999, p.61, grifos do autor):
Como podemos decidir o que tem valor duradoura em nós,
em uma sociedade impaciente que se concentra no momento imediato? O que ocorre?
Um esvaziamento de sentidos, onde vive a descrença, fracasso, despersonalização,
loucura generalizada. Como diz Christopher Lash, um “lugar mínimo. É o que resta
para o ‘eu’”. Hannah Arendt (1999) escreve: “toda a nossa economia se tornou uma
economia de desperdício na qual todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas
quase tão rapidamente quanto surgem, a fim de que o processo não chegue a um fim
repentino e catastrófico”... O perigo é que tal sociedade, deslumbrada ante a
abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um
2
Para outros autores se tem preferência pelo termo hipermodernidade por entenderem que não houve uma
ultrapassagem histórica e paradigmática da modernidade e, sim que vivemos uma modernidade mais intensa.
30
processo interminável, não seja capaz de reconhecer a sua própria futilidade. A
futilidade de uma vida que não se fixa nem se realiza em coisa alguma que seja
permanente e que continua a existir após terminado o labor.
Assim, o eu se desintegra numa falta contínua de sentimento de pertença,
vivendo um desenraizamento à frente de uma sociedade falha que não oferece o suporte
inspirador indispensável como útero social para o desenvolvimento embrionário do indivíduo.
O indivíduo desconectado de referências mais sólidas permanece desvanecido, suscetível às
oscilações de humor, entregue ao tédio do existir, na apatia e sem sentido para viver. A
sociedade contemporânea é aquela que faz o indivíduo se definir através da genética, dos
psicofármacos, do sexo, da beleza, da velhice. A mídia exagera seu poder controlador sobre o
indivíduo reforçando seu desligamento de si mesmo, uma vez que o incita a consumir sempre,
cada vez mais, fazendo-o acreditar que sem o consumo contínuo não logrará a felicidade
prometida. Como diz Christopher Lash (1983, p. 17): “A propaganda fabrica seu próprio
produto que é o consumidor perpetuamente insatisfeito, ansioso e entediado”. O Estado,
igualmente, é subjugado pelo econômico e o ser-mercadoria, perfil psicológico do indivíduo
contemporâneo, emerge incólume aos apelos do seu afeto e sentido.
Os valores de reconhecimento social, centralizados no culto excessivo ao
eu, reforçam a pulverização das referências históricas. O narcisismo contemporâneo parece
constituir uma defesa ao modo de ser do indivíduo, flutuante em uma sociedade liqüefeita,
sem solidez ideológica e política, onde o que está em jogo é mais a sobrevivência do eu do
que a sua existência. A moeda e o mercado se sobrepõem aos valores da ética e da moral.
Nesses tempos de agonia, como não pensar em um indivíduo que não venha a sofrer os
impactos de uma cultura que fomenta o desmoronamento psíquico? Como não se deprimir à
frente de uma estrutura social que desumaniza o homem?
Sobre a depressão contemporânea considerada o câncer do
século XXI, poderíamos notar sobretudo a imobilidade que a caracteriza, estado
31
reativo perante a violência que ameaça o mundo interior e perante a incapacidade de
elaborar as perdas. Tal elaboração supõe a existência de meios de sustentação do ego,
suporte familiar e sócio-cultural, que são extremamente falhos no mundo atual. (D
A
POIAN, 2001, p. 8)
O homem , como ser-no-mundo, carece, no vigente modelo, de pontos de
conexão com este mesmo mundo que se lhe apresenta ameaçador e desamparador quando não
oferece o suporte da família e dos alicerces socioculturais. O que parece também ocorrer não
é apenas a depressão dos indivíduos, mas das instituições representativas da sociedade que,
logicamente, passam a refletir a temperatura ideológica de seus membros. Há uma depressão
institucional, o que se pode confirmar na percepção de Lipovetsky (1983) que chamou este
fenômeno de depressividade generalizada. Para o autor, esta depressividade não se detém às
anomalias psicológicas dos indivíduos nem mesmo às dificuldades da vida atual, mas sim à
“deserção da res pública”, que limpou o território social até a emergência do indivíduo puro.
Ou seja, as instituições e os veículos de socialização e doação de identidade aos indivíduos
parecem também que adoeceram de uma depressão ideológica e sociológica, abandonando o
homem a si mesmo, o que levou a estimular, em total permissividade social, o indivíduo a se
preocupar só consigo, e o que viria argamassar mais ainda um aspecto do individualismo
contemporâneo que é o ser social narcísico.
O que há é um narciso em busca insaciável a si próprio, obcecado por sua
própria imagem, vulnerabilizando-se em todo momento nos embates de seu cotidiano. As
cobranças socioculturais de reforçamento da auto-imagem narcísica jugulam o indivíduo a um
catre de dramatização e insuportável estresse. É proibido envelhecer, engordar e é legítimo
procurar a estética perfeita. O culto ao corpo e a política do consumismo desfocam o
indivíduo do seu sentido de existir, criando um artificialismo que o faz adoecer
psiquicamente, alijando-o a um tédio, a uma apatia, portanto, como conseqüência a um
deprimir existencial. A sociedade narcísica, no dizer de Lash (1983), caracteriza, como
possibilidade, o sujeito em depressão, onde existe a perda de continuidade histórica, na
32
dissolução das territorialidades com conseqüente erosão do tempo histórico que institui uma
sociedade sem base de ancoragem e acentuada opacidade.
Fica evidente, então, que este narcisismo que caracteriza as sociedades
pós-modernas rompe com a valorização da esfera pública e centraliza no eu, o alvo de todos
os investimentos. A suposta autonomização do eu, regada pelo narcisismo, desidentifica o
social e faculta a total absorção do eu a si mesmo. Essa nova tecnologia de viver o mundo,
enfocando o ego puro, promove o isolamento social, mesmo que, ideologicamente, a proposta
seja a estandardização do social, a prática mostra o contrário. Assim sendo, a solidão surge
como um outro fenômeno estranho numa sociedade dessocializada, onde os eus atomizados
perdem a noção de rede e se conectam somente a si próprios como os novos zumbis
cibernéticos, apresentando as relações naturais deste comportamento como, possivelmente,
dentre estas, esteja a depressão.
Como se não bastasse a neutralização do universo social que esvaziou as
instituições dos seus investimentos emocionais, o narcisismo implica em um esvaziamento
das auto-referências identitárias dos indivíduos, promovendo uma desterritorialização e uma
dessubstancialização do “eu” que perde seu diâmetro e espacialidade interpessoal. Voltado só
para si e independente dos critérios do outro, ocorre um encapsulamento do eu.
Há um arrefecimento na intersubjetividade pública e um
hiperinvestimento emocional nos espaços privados, enfraquecendo as fiações entre o
individual e o social, como temos visto. Mas o foco a ser dado é no efeito que este
insulamento confere e que é de ordem auto-destrutiva, pois parece levar o eu a um estado
existencial apático. Será que o que aparece na superfície do ser, pelo desejo narcísico, como
uma valorização do indivíduo, no fundo se constitui, pela ativação das ambições desmedidas,
no engendramento de um total egoísmo? Assim, a sociedade hedonista (princípio axial da
pós-modernidade) fabrica, na verdade, a ansiedade e a depressão, por alimentar a máquina da
33
incerteza e a da frustração? É possível, desta forma, dizer que há um culto exagerado à
personalização com concomitante dessubstancialização das figuras de alteridade e do
imaginário e uma conseqüente salubrização do real, desencadeando estados depressivos?
Outra ocorrência do narcisismo é que o ambiente é modificado para
atender ao novo estilo de vida. Não só o ambiente geológico, mas, o tecnológico, o urbano,
todos se encontram climatizados para a era da velocidade, da transitoriedade, para o
desenraizamento, portanto, para a pulverização da sociedade como coloca Lipovetsky (1983,
p. 71): “Circulação, informação, iluminação trabalham para uma mesma pulverização do real,
o que por sua vez reforça o investimento narcísico: uma vez tornado inabitável o real, resta a
retração sobre si próprio, o refúgio autárquico...” .
Como situar o indivíduo em meio a uma geografia social tão difusa e
mutante que é esta a que cartografa a cultura pós-moderna? Onde as oposições rígidas se
esbatem e as preponderâncias se tornam frouxas; onde a descontinuidade histórica vertiginiza
a subjetividade humana deixando-a sem órbita própria, pluralizando a noção de “eu” que se
fragmenta da quebra do espelho de narciso e se reflete em mil pedaços sem conexões
inteligentes e lógicas, gerando tanto mal-estar e instabilidade emocional no espírito do
indivíduo (aquele que, no sentido etimológico, não se dividiria, preservando uma identidade
fixa e definida) que se divide no espaço das referências identitárias da contemporaneidade, tão
volátil como se nos apresenta.
Pensamos que o vazio de nossos tempos, marca indelével da depressão
cultural, tem seu reinado não apenas no espírito do individual, mas na cultura e também na
arte. Os artistas pós-modernos sofrem de uma apatia inspirativa. Já não se consegue, com
tanta originalidade e beleza, produzir grandes obras artísticas. A música, a pintura, a literatura
refletem o esgotamento dos arroubos da inspiração e da intuição de uma cultura chamada pós-
modernista que surgiu estandardizando o lema da geração ininterrupta do absolutamente
34
outro, de partejar o novo; parece apenas produzir o idêntico, o estereótipo, numa taciturna
repetição mimética.
Esgotamento da vanguarda que não se explica nem a partir do
<<ofício perdido>> nem a partir da <<sociedade técnica>>: a cultura do sem-sentido,
do grito, do ruído... o impasse da vanguarda liga-se ao modernismo, a uma cultura
radicalmente individualista e extremista, no fundo suicidária, que afirma a inovação
como único valor. O marasmo pós-moderno resulta da hipertrofia de uma cultura
finalizada pela negação de toda ordem estável.” (L
IPOVETSKY, 1983, p. 78, grifos do
autor)
O modernismo que brota de uma insurreição das normas e valores
perpetrados pela sociedade burguesa, iniciada no século XIX, se argamassa nos valores
assentes na exaltação do “eu”, na autenticidade e no prazer, valores que se antagonizam com
os preconizados pelos costumes da burguesia, centrados, estes, no trabalho, na ordem, na
moderação e no puritanismo.
O modernismo tem a expressão na arte de criticar o espírito burguês,
desprezando o seu culto ao dinheiro e ao trabalho, o seu ascetismo e o seu racionalismo
estreito; os artistas desfraldam a bandeira do viver ao máximo, com toda intensidade,
desregramento de todos os sentidos, seguir os impulsos e a imaginação, abrir o campo das
próprias experiências. O “eu” é o centro da cultura modernista diz Lipovetsky (1983, p. 78):
“Mas a partir da segunda metade do século XIX, o processo adquire uma feição agônica, as
normas da vida burguesa tornam-se objeto de ataques cada vez mais virulentos por parte de
uma boemia revoltada. Assim surge um individualismo ilimitado e hedonista...”
Este pequeno segmento de ideologia do individualismo e do hedonismo,
encetado por um grupo de artistas e pensadores, ganha a sua dimensão colossal com o
aparecimento do consumo de massa nos Estados Unidos da América (EUA), marcando a
grande revolução cultural das sociedades modernas, onde o capitalismo, e não mais o
modernismo, é que se encarregará da cultura hedonista.
35
Como efeito do modernismo e do consumo de massa, surge uma cultura
centrada na realização do eu, onde o hedonismo é força vital. Não obstante o desenvolvimento
do capitalismo sob a égide da ética protestante com fomentação à acumulação do capital, do
progresso, da ordem social, o hedonismo se impõe legitimando o capitalismo destituído de
seu caráter de totalidade orgânica.
O formato da sociedade que se desenha emancipada da submissão aos
deuses, das hierarquias hereditárias e das tradições, estatui uma cultura livre, cinética e plural
que finca o código do novo, banindo o repetitivo, a unidade e fidelização cega aos mestres e a
si próprio, enfocando o individual.
Dá-se a ruptura sociológica com as fiações do pensamento que ainda se
estendiam sobre a sociedade da época, onde a interpretação do universo versava sobre um
certo fixismo, onde o universo era imutável e geométrico. Ao contrário da concepção
moderna onde a tela congelada dos fenômenos da natureza não se mostrava compatível com o
valor da mônada individual.
O individual precisaria do seu espaço de ação para a recriação de uma
sociedade nova, sem amarras. Ocorre uma fratura na organização holista do passado, havendo
uma inversão na relação do indivíduo com o conjunto social, em benefício do ser individual
apreendido como livre e semelhante a outros. A ideologia individualista desvaloriza a tradição
e as formas da heteronímia. A cultura modernista traz o selo do processo de personalização
cujo escopo é tornar fluida a rigidez e em afirmar a idiossincrasia do indivíduo. O indivíduo
torna-se indefinido e indeterminado, móvel e multiforme, espectral. É aqui, na oficialização
do hedonismo, que ocorre o primado do instinto sobre a ordem, abre-se espaço à imaginação,
à sensibilidade desenfreada; o impulso é instituído como modo de comportamento, onde o
prazer e a estimulação dos sentidos se tornam os valores maiores da vida coerente.
No pós-modernismo ocorrem a afirmação do hedonismo e a consagração
36
do novo, como coloca Lipovetsky (1983, p. 99):
É no decurso dos anos sessenta que o pós-modernismo revela
as suas características maiores com o seu radicalismo cultural e político, o seu
hedonismo exacerbado; revolta estudantil, contracultura, voga de marijuana e do LSD,
libertação sexual, mas também filmes e publicações porno-pop, exasperação da
vivência e da crueldade nos espetáculos: a cultura comum atualiza-se em termos de
libertação, de prazer e de sexo.
Como se pode inferir, o pós-modernismo inicia a fase de sacralização da
lógica hedonista primando pelo embevecimento das inclinações mais baixas em detrimento
dos valores mais nobres. Hedonismo e consumismo seriam o epicentro do modernismo e do
pós-modernismo.
Tais práticas sociais introduzidas como modelo de comportamento fazem
florescer novos modos de subjetivação, alternando estados psicológicos e emocionais auto-
referentes e, devido à pulverização das referências históricas e do sumiço gradativo dos
satélites dos costumes e das tradições, o indivíduo se dessubstancializa, adoece
psiquicamente, deprime-se, angustia-se; por rompimento das relações sociais, acontece o
encaramujamento egóico, em virtude de arrancar o indivíduo do seu local, à sua estabilidade
da vida cotidiana, coisificando sua relação não só com a sociedade, mas com os objetos, com
o seu corpo e consigo próprio.
Absorvendo o indivíduo na corrida pelo nível de vida,
legitimando a sua busca de auto-realização, assediando-o de imagens, de
informações, de cultura, a sociedade do bem-estar gerou uma atomização e uma
dessocialização radical, sem medida comum com a acionada pela escolarização
obrigatória, o recrutamento militar, a urbanização e a industrialização do século
XIX. (Lipovetsky, 1983, p. 100)
Desta forma a era do consumo, ao mesmo tempo em que faculta a
homeostasia da liberdade do indivíduo, realiza um controle regulatório e microscópico do
social. Ocorre uma constituição da esfera privada cada vez mais personalizada, paralelamente
a uma sociedade que perde a sua espessura autônoma, subjugada sutilmente por uma
37
inteligente burocracia mercadológica. Mas, o consumo é uma estrutura aberta e dinâmica.
Tem o lado positivo como herdeiro do modernismo que, de um lado, tem sua fisionomia
rígida, nascente de um movimento histórico e complexo, mas é um rosto uniforme, suas
linhas fisionômicas não se descontraem; mas este rosto tem dupla face.
Se de um lado apresenta uma carantonha de uma lógica disciplinar e
hierárquica, por outro, faculta uma fisionomia mais suave. Esta outra face traz a tatuagem do
consumo que liberta o sorriso do gozo, da emancipação do individual, pois é regido por
sistemas mais flexíveis, plurais e personalizados. É na pós-modernidade que se dá esta virada
deste rosto que se desorienta com o modernismo e tende para a modernização da sociedade,
um desenvolvimento de estruturas fluidas moduladas em função do indivíduo e de seus
desejos, com a neutralização dos conflitos de classe, a dissipação do imaginário
revolucionário e a dessubstancialização narcísica.
O pós-moderno é o processo, é o momento histórico em
que se opera esta viragem de tendência em proveito do Processo de
Personalização, o qual não pára de anexar novas esferas, como já hoje se verifica
em matéria de educação, de ensino, de tempos livres, de desporto, moda,
relações humanas e sexuais, informações, horários, trabalho (Lipovetsky, 1983,
p. 105)
Ou seja, há uma ambigüidade, simultaneamente, existe uma padronização
de comportamentos comprometendo a consolidação das singularidades e, por outro lado,
ocorre um superdimensionamento das subjetividades. A era do consumo concorre para uma
superdiferenciação dos comportamentos individuais livres, na atualidade, dos papéis e das
convenções rígidas. Enfatiza-se como fenômeno de relevo a obscuridade progressiva das
iluminadas entidades e identidades sociais em benefício não da homogeneidade dos seres, mas
de uma diversificação atomística.
38
O masculino e o feminino confundem-se, perdem as
suas nítidas características de outrora, a homossexualidade de massa de hoje
começa a já não ser considerada como uma perversão, todas as sexualidades, ou
perto disso, são admitidas e formam combinações inéditas. (L
IPOVETSKY, 1983,
p. 102)
Destarte, os valores hedonistas reforçam a diluição dos ideais sociais e
suas respectivas referências históricas, legitimando todos os modos de vida;
institucionalizando tal permissividade, consente mais livremente a conquista da identidade
pessoal, o direito do indivíduo a ser absolutamente ele próprio, culminando com o desfecho
narcísico. Mas, o indivíduo não é só estimulado em suas necessidades. O consumo permite o
exercício da escolha, reforça a singularidade, possibilita a responsabilização do indivíduo
quanto à sua destinação de ser feliz e viver no espetáculo contínuo do bem-estar, enquanto
consome o que atende aos seus desejos, como o cuidar constante com a saúde, a luta contra o
envelhecimento, a busca pelo corpo perfeito. O indivíduo é levado a se informar sempre,
manter-se ligado na moda, prisioneiro do novo que mantém a velocidade do consumo. Esta
outra face do rosto social traz uma singularização, uma responsabilização pessoal, mas
insuficiente para a sua verdadeira liberdade, pelo menos é o que sinalizam os comportamentos
psicopatológicos que eclodem nos tempos atuais.
A era do consumo ,é fato, é ambígua, pois, enquanto dessocializa os
indivíduos, os ressocializa pela lógica das necessidades e da informação, constituindo uma
socialização fluida, opaca.
Há uma falta de organização existencial que se reflete nos laços frágeis
que unem os indivíduos com a coisa pública. Como exemplo, cita Lipovetsky (1983, p. 134):
“Descontração das relações interindividuais, culto do natural, uniões livres, aumento dos
divórcios, aceleração das transformações dos gostos, valores e aspirações, ética tolerante e
permissiva.”
A questão a se colocar é: Como um indivíduo que exercita melhor esta
39
liberdade social, responsável pelo seu destino e dotado do poder de escolha com a cinética do
consumo que faz fruir a constante satisfação dos desejos, apresenta alarmante estado
depressivo? A vida social, em alguns de seus aspectos, quando supervalorizados, e no seu
atual formato, parece levar as pessoas a um tédio existencial, pois tudo está pronto; pelo poder
do consumo tudo é mais facilmente conquistável no plano das coisas. Embora seja o
indivíduo narcísico livre da culpabilidade moral, parece ele tão propenso à angústia e à
ansiedade. A ruptura com os grandes ideais, vivendo mais para si e vazio de sentidos que
expressem melhor sua real ontologia conduzem o indivíduo a viver os tempos do grande
tédio, o que o deprime por furtar-lhe a conexão com o outro, expurgando-lhe o sentido
comunitário e consigo mesmo, obnubilando-lhe o sentido antropológico.
O indivíduo no contexto da contemporaneidade é marcado pelo pós-
moderno que é um prolongamento do modernismo com os trunfos e as sombras hereditárias
das sociedades democráticas em que afirma o processo de personalização em detrimento do
processo disciplinar, cartografando um novo modo de vida e de subjetivação onde
predominam o individual sobre o universal, o psicológico sobre o ideológico, a comunicação
sobre a politização, diversidade sobre a homogeneidade e o permissivo sobre o coercivo; onde
o ideal de autonomia individual é o novo paladino da condição pós-moderna que inaugura a
liberdade pessoal como a nova grande realização do sentido social e converte o hedonismo
cultural em necessidade psi.
Este é o indivíduo contemporâneo que, quando cegamente contaminado
por alguns destes vetores aqui abordados (pois com isto não negamos as irrefutáveis
conquistas do pós-modernismo e o caráter saudável do homem atual), desprendido dos seus
laços de dependência social, flutuante e cinético, desenraizado de sentidos sociológicos,
confina-se em seus desejos narcísicos. Da mesma forma, o indivíduo subjugado pelo novo
“bezerro de ouro” – a técnica moderna – destituído de religiosidade (o processo de
40
personalização tem invadido até o sagrado) e de emoções que se aqueçam no calor das
relações sociais, desvitalizado pelo virtualismo tecnológico, clama em seu tédio existencial
por um novo terreno sociocultural para o seu desenvolvimento pessoal. A depressão se lhe
apresenta como um possível sintoma psicológico e social que denuncia o seu processo de
desumanização perante os atuais paradigmas diretores da vida humana como veremos daqui
pra frente e que são confirmados pelos mecanismos depressivizadores
3
que ,igualmente,
averiguaremos mais adiante, destacando-se de início o consumismo que popularizou o
conceito de felicidade pessoal através do consumo.
3
Esta denominação procura compreender os mecanismos sociológicos, formadores de personalidade que, na
atualidade, organizam modos de subjetivação e refletem os paradigmas da contemporaneidade.
41
2. O HOMEM CONTEMPORÂNEO E O SEU PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO
O ponto axial de nossa sociedade parece ser o vazio. As tradições, agora
emurchecidas, e o progresso, assim como a cultura inconsistente, já não mais oferecem o
suporte para o asseguramento do indivíduo que vive em busca de novas ancoragens.
Passada a euforia cientificista do século XIX, estribada no positivismo
que levou ao rechaçamento antipatizante as reflexões filosóficas, aportamos nos tempos atuais
sob os efeitos desencadeadores da verdade científica que assegurava a certeza e um rumo
seguro para a felicidade humana através da técnica. Agora damos conta de nossa orfandade
ontológica, desprovidos de um conhecimento que complemente o conhecimento das coisas,
isto é, com o conhecimento de nós mesmos.
A subjetividade excluída pela mítica da objetividade da ciência emerge
entre os pólos do individualismo e do coletivismo, facultando uma cidadania regularizadora e
estatizante, rebelando-se e pedindo espaço para germinar dialogicamente entre estes territórios
e fazer sua demarcação no campo da articulação entre os anseios ontológicos e as condições
do social contemporâneo. É nesse movimento plural e polifônico, inventivo e criativo, que a
subjetividade hodierna procura se ressignificar como ser-no-mundo. O homem como ser-no-
mundo estertora e agoniza em seu vazio de sentidos. É esta subjetividade na
contemporaneidade que sofre o delírio de autonomia e põe o sujeito alienado na presunção de
achar que não precisa prestar contas a ninguém a respeito de suas escolhas, nem pagar
qualquer preço por elas. Uma subjetividade que, sob o “status” narcísico, reduz o cidadão ao
estatuto de consumidor.
42
Com a hipertrofia da economia capitalista, as esferas de vida social,
como a política, a religião e a família são volatilizadas em benefício de um novo modo de
vida que se norteia no consumismo hedonista e narcisista cuja base está no culto ao corpo e na
concessão de irrefreada liberdade individual, conforme temos defendido ao longo do trabalho.
Com o desenvolvimento do consumo e dos meios de comunicação de massa que veiculam as
propagandas e publicidades dos produtos, ocorre uma preconização ao bem-estar individual, o
direito ao prazer e à felicidade cotidiana. As propagandas que destacavam o uso de produtos
cosméticos e os cuidados gerais com a forma física incentivaram a preocupação concentrada
com o corpo, a idéia de se voltar a si e cuidar excessivamente do corpo como referência
maior, que se respalda numa identidade biológica, marca do Individualismo. A sociedade de
consumo popularizou o ideal de felicidade pessoal e se fortalece como instituição ditadora e
normativa da conduta e do destino humano, sobrepondo-se às instituições tradicionais, como
as já mencionadas acima, dentre estas, a família. Assim sendo, ocorre uma metamorfose do
cidadão em consumidor, instaurando uma cidadania que estatiza a subjetividade, ou seja,
confere recursos legitimados pela lei de mercado para um modo de existir onde o ter se
sobreleva em relação ao ser.
Não necessariamente, o narcisismo social vem destruir os valores da
sociedade atual. O que ocorre é uma re-hierarquização dos valores tradicionais sob a chancela
da moda e da mitologia científica. Os valores são adaptados à nova tônica que se centraliza no
sujeito, a sociedade-moda, como motora da economia capitalista por perpetrar a idéia do novo
que abomina a obsolescência e motiva o consumo incessante e à ciência como a nova porta-
voz da verdade que dita, com a sua autoridade institucional autorizada pela razão e pela
técnica, quais os caminhos seguros para a felicidade, o que reforça o foco no individual.
43
Desta forma, a ênfase no sujeito e o recuo sobre o social são
determinados pelo individualismo remanescente da burguesia onde o sentido de vida está no
consumo que, junto à lei de mercado, incentivou condutas emocionais predatórias.
Neste reordenamento da ordem social, onde a moda e o mito científico
se destacariam, ressalvaríamos o mito da ciência como via de acesso ao verdadeiro "sentido
da vida" que não baniu os antigos valores, mas, como já foi dito, cria uma nova hierarquia. De
maneira que podemos aventar a hipótese de que todos os segmentos do pensamento
institucionalizado e da vida humana estão sob o dossel da ciência. Com isto, o sentido da
vida, antes tópico central das tertúlias religiosas, éticas ou políticas, passa ao domínio da
epistême científica.
Veremos, então, como se deveu a supremacia da ciência no comando da
vida humana através de uma forma de se compreender o homem. Esta forma brota de uma
interpretação de Ser como ente e que neste estudo nos baseamos em Heidegger que percebe a
contemporaneidade como a última etapa do que ele chamou de pensamento metafísico.
Faremos uma breve retrospectiva histórica de como o ser foi sendo concebido através dos
séculos na ordem metafísica. Este tipo de pensamento responde por esse modo peculiar de se
entender Ser e que fundamentou toda a ciência, criando modos de vida que refletem este
paradigma.
2.1- A interpretação histórica de Ser na construção do pensar metafísico.
O que era mensurado por critérios pertencentes à esfera dos ideais
morais passou a ser avaliado e validado por métodos de controle e de experimentação
laboratorial. A cultura é batizada e matizada pela interpretação de ser que o ocidente
44
metafísico instaura e desenvolve em sua historicidade. Ser é definido como sem mistérios que
a razão calcula, prevê e controla. O caráter de ser é configurado como "razão do ser", onde o
homem vê decifrado o seu destino.
Desta forma, o homem se distancia de seu próprio ser, resguardado,
agora, pela razão, na qual o próprio homem é convertido a uma impessoalidade e
anonimidade. A tarefa de ser si mesmo é tomada pela razão científica quase configurada como
esse estranho anônimo que na razão são todos e ninguém em especial.
A interpretação de ser em sua historicidade remonta à época platônica.
Para a metafísica, o pensamento sempre foi contemplado como uma espécie de visão
observada e distante do real. A distância ajudava na apreensão da essência: o ser das coisas.
Essa história começa com a indagação dos primeiros pensadores gregos
(século VI a.C.), sobre o que constituía o ser do real, o ser das coisas. O ser do real, então, era
nomeado de “Physis”. Para os pensadores da época, “Physis” era a força que fazia brotar
(irrupção - botão da rosa), conservar (permanência - rosa plena) e desaparecer (declínio - rosa
murcha). A presença de “Physis” era vista em todos os setores do real, ou seja, na natureza e
no pensamento, revés e sentimento humanos. O real, portanto, era ambíguo, impermanente e
tenso. O movimento de impermanência do real era, então, visto como algo que brotava,
permanecia - durante um tempo - e declinava, o que gerava acentuada tensão (pólemos).
Existir era lidar com o impermanente e o transitório. No entanto, o pensamento que apreende
o desassossego do real, igualmente, ficava tenso, pois também se encontrava impermanente e
transitório. Assim a “physis” estava presente em tudo que cercava os filósofos gregos, ou seja,
nas plantas, no nascimento dos animais, no homem, inclusive. “Physis” era para esses
pensadores o nome do ser. “Physis” seria a unidade originária que abrigaria tanto aquilo que
saía e brotava (movimento) quanto o que se retinha e permanecia (repouso). O real ainda não
havia sido separado em dois blocos. Em Platão, a unidade originária da “Physis” é rompida e
45
se transforma em dois campos – o do sensível e o do supra-sensível – no escopo de resolver o
enigma da impermanência do real.
No entanto, a questão da impermanência do real continua a incomodar
uma nova casta de influentes pensadores, alcançando, lentamente, todos os homens e as
gerações futuras. Saber lidar com pólemos (tensão), gerada pela impermanência, passa a ser
insuportável, pois esta questão recordava aos homens a idéia de finitude da vida. A
consciência de finitude e transitoriedade do real se constitui na fonte última da nossa angústia
originária. Heidegger (1971) localiza a mudança desta perspectiva mais originária da
compreensão do ser no final do período pré-socrático (final do século V a.C.). “Physis” passa
a se restringir na interpretação dos filósofos daquele tempo a um determinado setor do real, ou
seja, para aquele que possui uma grande visibilidade dentro do real, que são os
acontecimentos da natureza, as ações humanas, os feitos sociais, etc..
Na era platônica, o ser é interpretado por 'idéa', isto é, o aspecto, o que é
visto, aquilo que é visto nas coisas quando elas se apresentam. 'Idéa' é uma particularidade do
real, o que pode ser contemplado, o que aparece. A partir deste período, a 'idéa' passa a ser a
interpretação normativa do ser das coisas para toda a história do ocidente. A crença é a de que
o pensamento pode reter o ser das coisas. Desta forma, o pensamento ocidental inicia uma
compreensão "substancialista" do ser - pois substância é o permanente -, ou seja, aquilo que
sempre é igual a si mesmo no tempo. Ser passa a ter um caráter de presenteidade eterna,
fixado no modo do tempo presente. É neste contexto que Heidegger (1971) faz sua análise
dizendo que isto não é mais uma compreensão do ser e, sim, um entendimento derivado,
decaído, ou seja, o ente.
Esta interpretação do ser, tomado como ente, sofre algumas variações
ao longo dos séculos, durante a época antiga, medieval e contemporânea, tomando algumas
características. Como explica Michelazzo (1999, p. 139, grifos do autor):
46
a) Época antiga: onde o ser interpretado como idéia (Platão)
e substância (Aristóteles) domina todo o período de nosso pensamento;
b) Época medieval: onde o ser é interpretado como ‘ens’
‘creator’ (Deus) e ‘creatum’ (criatura) – estrutura a teologia e o cristianismo
medievais;
c) Época moderna: onde o ser é interpretado como ‘sub-
jectum’ – o homem como sujeito pensante, como fundamento do real e de si mesmo –
que estabelece as bases do pensamento moderno nas suas variações internas: sujeito
transcendental (Kant), sujeito absoluto (Hegel) e sujeito da vontade (Nietzsche).
Assim, em todas as épocas, a concepção originária de ser é tomada
como ente, mesmo com as variações idiossincráticas, com o subseqüente desenvolvimento de
um pensamento que se afirma por meio de um domínio cada vez mais crescente sobre todo o
real.
A partir da modernidade tudo o que é real está condicionado à feição de
objeto, onde o sujeito procura determiná-lo por meio de uma representação que busca a
certeza e o cálculo e, deste modo, onde o pensamento ganha descomunal poder de dominação
no controle dos entes, propiciando o surgimento da técnica. Assim, o objeto representado e
calculado pelo sujeito impulsiona o desenvolvimento técnico e industrial e surgem as
máquinas e a automação dos serviços. Mas, cada ser, antes representado como objeto, em
nossa época, tempos de técnica e consumo – ser-objeto – transforma-se em ser-mercadoria,
subjugado pela hipertrofia da economia capitalista. O homem ocidental vem a ser o produtor
de um mundo que impede de ser si mesmo propriamente. O mundo na contemplação do ente
humano como ser-objeto que passa a ser-mercadoria, gera uma modalização mundana que
garante ao homem a sua permanência em sua “impropriedade”, ou seja, viver
inautenticamente. Antes, historicamente, ser devém um ente para a razão, conseguinte, um
mero objeto. Daí, como ser-objeto, devém como mercadoria, a partir do momento em que o
homem cede ao advento da interpretação da economia capitalista. Assim, o ser interpretado na
tradição do ocidente, o ente é reduzido a um ente, doravante, o ente se reduz a um mero objeto
e, subseqüentemente, ente se limita a uma mercadoria, o contexto ôntico da
47
contemporaneidade. A existência humana fica em significativo desfalque quanto às suas
necessidades ontológicas. O âmbito da sociedade de-pressão que configura o atual laço social
depressivizador não atende ao apelo de ser que não apenas vem da objetividade, mas também,
da mercadoria. Teleologicamente, o homem contemporâneo se percebe subjugado pela
objetividade e mercadoria. Seu ser si mesmo é concebido como objeto e mercadoria. Cuidar
da existência passa a ser contaminado pelos mecanismos depressivizadores que se fundam no
sistema objético e mercantilista.
Para Heidegger (1971), o pensamento que se autorizou no seu poder de
reter e de controlar o ser das coisas foi determinado por um modo de ver, um jeito de
entender; é um ponto de vista, uma forma de se relacionar com a realidade e que faz fundar
toda uma civilização, como também, a sua atual morada.
Com a hipertrofia da economia capitalista reforçadora da cultura
narcísica, hedonista e individualista, associada à extraordinária força da tecnologia, dá-se
origem a um homem apático, sobrecarregado de responsabilidades e destituído de seu sentido
ontológico.
Em 1927 em “Ser e Tempo”, o mesmo autor destaca o “impróprio”, o
“impessoal” (Das man) – ou seja, o fato de o homem não ser, primordialmente, ele mesmo,
mas a impessoalidade dos outros – para Heidegger, um traço constitutivo do existir humano.
Já nos anos 50, este traço se superlativiza, o ser é mais que impessoal,
ele agora é “massa”, alienado de si mesmo, obrigado a expressar as mesmas opiniões, ter os
mesmos gestos, fazer as mesmas coisas que os outros, hipnotizados pelos encantos da
propaganda e do consumo, o que leva Heidegger (1971) à conclusão que a atividade humana,
seja a política, a social, econômica ou cultural, encontra-se em consonância por um único
diapasão totalitário: a razão tecnológica.
O mesmo autor destaca com sutileza: “a essência da técnica não é
48
absolutamente nada de técnico” (HEIDEGGER, 1971, p. 9). O homem enceguecido por um uso
equivocado da técnica inverte seu caráter de desvelamento para o de provocação, usando de
forma ambiciosa e descontrolada a sua instrumentalidade com fins meramente exploratórios.
A ciência, portanto, marcada pelo pensamento metafísico concebe uma
filosofia de vida que se estrutura em um modo de perceber o homem como centro do universo
(Antropocentrismo) e exclusivo proprietário da natureza que passa a dominá-la através do uso
irrestrito da técnica como meio de exploração. Como ser-mercadoria, assim se percebendo em
sua missão ontológica, o homem se relaciona com a natureza e com os outros homens de
forma exploratória, em aquiescência com a política capitalista e do consumismo. Veremos,
então, quais as conseqüências deste modelo sócio-cultural, amparado pela ciência de entender
a vida, nas esferas psicológicas.
2.2 – Conseqüências existenciais no homem atual sob o domínio da técnica
moderna.
Sob uma égide objética e mercantilista da existência, como situar o
indivíduo contemporâneo num contexto de pressão social, chancelado por um modo de existir
que distancia o homem de si mesmo e sob o rígido controle da técnica moderna?
Na sua sensibilidade autocrítica, vejamos como Boss responde a esta
questão:
Por isso o tédio que reina na existência dos atuais
neuróticos, freqüentemente encobre seu próprio sentido utilizando-se do ruído
dominante das atividades ininterruptas, diurnas e noturnas ou do embotamento das
diversas drogas e tranqüilizantes. (B
OSS, 1977, p. 17)
O dizer de si mesmo através dos traços existenciários, como a angústia,
49
passa a ser obnubilado sob a teia cultural e social da contemporaneidade que se arma para o
aprisionamento do homem em seu vir-a-ser. O tédio parece mascarar a real possibilidade de
ser, que é aquela que pode lhe dar sentido à vida, na convocação da apropriação de seu poder-
ser.
A atual ossatura social parece colaborar com o homem na fuga de
tornar-se si mesmo “Próprio”. Modo de vida que não deixa de embotar os reais fenômenos do
espírito humano os quais são obnubilados por um vazio existencial. Como vaticinava Boss,
sob a eclosão, no futuro, de neuroses existenciais advindas das pressões e exigências sociais,
frutos da prepotência tecnológica:
Hoje, todavia, angústia e culpa ameaçam se esconder mais e
mais sob a fachada fria e lisa de um tédio vazio e por trás da muralha gélida de
sentimentos desolados de completa insensatez da vida. Em todo caso, o número
crescente daqueles doentes que só sabem se queixar da insensatez vazia e tediosa de
sua existência, não deixa mais dúvida em nenhum médico psiquiatra de que o quadro
patológico que poderia ser chamado de neurose do tédio ou neurose do vazio é a
forma de neurose do futuro. Nela se abrange um tédio que necessita encobrir angústias
e sentimentos particularmente sinistros. (B
OSS, 1977, p.17)
Segundo o mesmo autor, o estilo de vida atual, que tem como seu
“bezerro de ouro” a tecnologia, que leva à velocidade e à transitoriedade nas relações
humanas e a um engajamento total às tarefas ocupacionais, estimula o indivíduo a esquecer
suas questões mais profundas, obscurecendo-as com o uso excessivo dos psicofármacos, do
consumismo e do narcisismo social. É esta a geografia deste território sem fronteiras, em que
as hodiernas anatomias sociológicas passam a ser marcadas pela interpretação de ser, e que o
ocidente metafísico inaugura e desenvolve em sua historicidade. Ser é reduzido a um ente na
condição de objeto que agora pode ser calculado, previsto e controlado pela razão. A razão dá
berço a um “eu anônimo”, uma vez que Ser metamorfoseado no campo de idéia, de conceito e
de noção pode ser regulado e manipulado conforme aprouver aos ditames da ciência.
Ao homem foi tirado o seu brasão ontológico, onde um estranho
50
esculpido pela razão surge petrificado sob o olhar de medusa da objetividade científica. O
campo das possibilidades onde o ser pode se projetar para realizar-se foi determinado já na
história do ocidente metafísico, eleito que foi em sua “impropriedade”. Como diz Critelli
(1988, p. 69): “no mundo urbano, elegeu-se a vida objética, planejada e controlada
anonimamente e tendo que permanecer anônima e controlável.”
A anonimidade parece ser o principal distintivo social de nossos tempos
onde, sob uma cultura de pressão, sob os rigores sociais da sobrevivência, em uma sociedade
que prima o lucro, leva a um comportamento de tédio, regulado pelo magnetismo opressor
dos satélites do narcisismo social que depressiviza o modo de ser do homem. Há um
enlatamento do ser onde o “mundo urbano”, como coloca Critelli (1988), se planeja para
assegurar a “impropriedade”.
O processo de personalização, o narcisismo social e a conseqüente
desumanização com a depressividade generalizada marcam esta constelação de fenômenos
que afeta o homem atual e que se inicia na história do pensamento ocidental com a
interpretação de Ser que passa a ser tomado como ente desde Aristóteles e Platão, e a ser
categorizado como objeto na contemplação cartesiana.
Esse movimento, que chamaremos de desumanização, faz apelo à
“impropriedade” absoluta que lança a identidade do anônimo, mas que, sutilmente, se
apresenta como inócua, uma vez que propõe uma operacionalização pragmática de
subserviência, conferindo segurança ao existir do homem, sob o preço de ditar uma escolha ao
seu existir. Existir não é mais se projetar nas possibilidades e eleger o que melhor lhe
aprouver. Mais sofisticadamente sob a égide ouriversareira da liberdade o homem é que é
eleito pela “impropriedade” ilustrada na significatividade caprichosa dos modos ônticos do
mundo contemporâneo. Tal postura da razão objética retira do homem as oportunidades de
reflexão e decisão autônomas.
51
O domínio da técnica se traduziu em novos usos e costumes, hábitos
desenvolvidos no cotidiano, as leis impostas pela Razão. A forma de operacionalizar a
existência, como se introduz em nossas casas, moldando nossos hábitos, determinando como
fazer nossas tarefas, fala deste paradigma que chamamos de movimento de desumanização e
que herda o pensar metafísico da história do ocidente.
A desumanização afeta o nosso modo de cuidar e de gerenciar o nosso
tempo existencial, ao mesmo tempo em que parece querer padronizar a “impropriedade” do
nosso cotidiano. Este terreno, preparado pelos fertilizantes da desumanização, faculta a
germinação de um indivíduo que se afasta de sua responsabilidade ontológica de ser-próprio.
Este globo da desumanização que compreende o processo de personalização, o
individualismo, o narcisismo social e o consumismo, planifica as condições ônticas de forma
ponderável e bem materializada de o homem se desenraizar, não obstante, saiba-se que o
desencarregar-se de seu “poder-ser” seja uma característica existenciária de cada homem,
onde ser si-mesmo “impropriamente” é ontologicamente um movimento regular. É o que
Heidegger (1971) se refere a estado de queda do estar-aí (dasein)
4
. Ou seja, há sempre uma
disposição do homem a se manter no esquecimento de ser. Encontrando os meios sociais
apropriados para ratificação desta disposição existenciária se corre o risco de uma
cronificação da queda do “dasein”.
A questão que emerge é que a nossa época parece reforçar uma
tendência constitutiva do homem que é a de fugir da responsabilidade de ser si-mesmo, do
cuidar de seu existir e de seu poder-ser, portanto, da queda. Subjugado a um pensamento que
se limita à Razão técnica e instrumental, o homem já tem o seu destino determinado pela
ciência que encampa o sentido de sua vida e o leva a distanciar-se de seu modo mais original
de ser.
4
Dasein – Termo re-cunhado por Heidegger, dotado de uma significação ontológica que quer dizer que o
homem é um ente que habita aí, na abertura (da) onde ele compreende o ser das coisas (sein). (Castro, 2002 )
52
A inalienável e intransferível tarefa de cuidar de seu ser parece não
mais pertencer ao homem, o que torna prioritariamente a sua vida “imprópria”. Seduzido pelo
maquinismo impessoal – que são todos e ao mesmo tempo, ninguém – o homem se
depressiviza, ou seja, por ser dispensado da responsabilidade de seu existir, passa a sofrer de
uma crise de identidade, é um homem despolpado – sem a polpa da reflexão autocrítica – e
vive na casca apodrecida de seu desencantamento com o mundo, vítima de si mesmo e sem
bússola.
Desta forma, o caráter fundamental do homem, que é projetar-se sobre
possibilidades, se encontra ameaçado, pois já lhe foi dada a única possibilidade de viver
impropriamente que é representada pela ciência, a nova ditadora da verdade e do destino
humano.
Um dos veículos massificadores do mito científico que trabalha junto à
moda no cultivo da obsolescência é a publicidade. A publicidade parteja os novos modos de
subjetivação da contemporaneidade e convoca os homens a apostarem em sua onipotência.
Ao homem foi dado, sob a égide da cultura do narcisismo, uma espécie
de direito natural ao desfrute de todos os bens que a publicidade oferece e condiciona, o que,
entretanto, é ainda mais grave, o dever de ter de gozar de todos estes bens, a todo custo. O ser-
ente agora é o ser-mercadoria. O ente é focado no gozo como única possibilidade de cuidar de
seu existir. O ser-no-mundo passa a ser determinado pela mídia; sua história e seu tempo são
recriados no imaginário publicitário e reencarnados nas celebridades que parecem perpetuar o
“ninguém” que anonimiza o homem e o depressiviza, ou seja, torna-o vazio de sentidos de
vida por estar distante de ser ele próprio.
A nova dimensão alienadora do ser-mercadoria é ele ser levado a gozar
plenamente, sem que se dê conta disto. Sob o fascínio das sociedades industriais que se
sustentam em uma produção de tecnologia tudo parece que “caiu do céu”. O que é produzido
53
é para ser consumido a todo preço, pois, no consumo há felicidade; felicidade que se confunde
com o prazer propiciado pelo culto hedonista. Assim, o campo das possibilidades do existir é
determinado pelo consumo e pela mercadoria. O sujeito consumidor é desenraizado, não tem
história e nem lei. Vive o presente continuado na ânsia de perpetuar o gozo. Mas como podem
as sociedades modernas produzir depressão se há um apelo para que as pessoas gozem sem
culpa e sejam felizes?
Acontece que o perfil determinado por esta mesma sociedade é de
sujeito e não mais de ator social. A passagem do sujeito religioso e filosófico, substituído
posteriormente pelo cidadão e trabalhador, agora se transveste de sujeito consumidor. Há uma
superlativa moral individual em detrimento da moral universal. O sujeito é levado a traçar seu
caminho individual, participando, no mundo planetário das técnicas, dos mercados e do
consumo com a preservação de sua espacialidade social. O sujeito, hoje, é menos etéreo e sua
concretude é definida na liberdade que lhe foi dada. Com o desenvolvimento capitalista e a
revolução industrial, retirou-se da política o papel central na organização da vida social e a
deram à economia ocorrendo uma metamorfose na ordem do pensamento da sociedade; passa-
se a falar mais sobre progresso do que de ordem; a ênfase é dada na diferenciação e não mais
na integração. No planetário das mercadorias o ser escolhe seu modo de vida que, na verdade,
lhe é dado como única possibilidade, enquanto pensa que sua escolha é livre. Seu modo de
vida é o do consumo, é o do esquecimento do coletivo e do longínquo, do passado e do futuro;
o que deve ser buscado é o próximo e o individual; o prazer e o imaginário são sua bússola.
Outrora, nas sociedades arcaicas, as estruturas simbólicas enraizadas no social determinavam
os destinos dos sujeitos. Laços de parentesco, a posição dentro da família, origem de classe,
Estado, igreja, decidiam o que os sujeitos deveriam fazer. Ou seja, existia por trás do sujeito
uma rede social que o sustentava em seu trânsito e em sua destinação. A normativa do destino
humano era oferecida pelo social. Normativa que fazia fiação com a história e a tradição,
54
portanto, com uma lógica de tempo e espaço que conferia subsídios idealísticos para a luta e
para a conquista do sujeito amparado pela rede social. Havia uma paternidade universal
representada nos signos institucionais dos valores morais e costumes construídos por estas
hierarquias que eram majoritárias.
Com a desterritorialização das normas e das condutas, o sujeito perde
sua segurança de ator social e se projeta na liberdade individual: desprotegido das garantias
sociais de antes, agora, se percebe como senhor de si. Entregue a si mesmo, o sujeito está
exposto a um vazio interior que o ronda se ele não se mantiver atento e que o faça escapar
cada vez mais desta ação anônima e insidiosa. Igualmente, exposto a sistemas de consumo e
de comunicação que se ocupam de seu ser e o alienam sub-repticiamente. Os novos
mecanismos de dominação não mais possuem a transparência dos tempos idos.
A sofisticação tecnológica e os discursos despolitizados ilustrados com
a retórica do encantamento da vida feliz, através das práticas narcísicas e hedonistas,
confundem mais ainda a percepção do sujeito em seu ameaçado poder de autocrítica.
O ator social se desfigura sob o primado da esfera privada que se
sobrepõe à pública. Com a carga excessiva que a sua liberdade individual lhe confere, o
sujeito que não consegue dar conta da moratória frenética de buscar a sua felicidade pelo viés
da liberdade privatista, tende a se culpabilizar, caso não imprima o ritmo alucinante que a sua
aparente conquista civilizatória lhe promete, sob o dossel da ciência. O sujeito moderno é
deprimido porque se acredita soberano, ou melhor, pensa que a soberania é condição de sua
liberdade.
Ser livre e soberano são condições básicas para poder tudo desejar e
tudo consumir. Como se ser livre para viver suas escolhas, como sendo soberano às custas dos
outros, rompe com os laços sociais que o sustentam mais originalmente. Como ser-no-mundo,
a coexistência é condição originária e constitutiva do dasein. Apartado do outro, a realização
55
de ser se oblitera e o sujeito passa a se depauperar em seu isolacionismo, destituído de
sentidos de viver. Sob a regência ôntica de um modo de vida que impõe o gozo em todo
momento e identificado com o mercado consumidor, o homem vê seu destino subordinado ao
objeto e à mercadoria. O homem é aquele ente que, ontologicamente, ao cuidar do ser dos
entes, é de seu ser mesmo que o homem cuida. Assim, cuidando das mercadorias e das
imagens que o consomem, o homem configura suas possibilidades, a partir das alternativas
que se anunciam através do objeto e da mercadoria, disponíveis onticamente.
Sem articulação da experiência privada com a pública, lendo o público
a partir das referências concretas do privado que lhe sobram e resgatando seu modo de vida
autêntico, incluindo o outro anônimo, o homem não poderá emergir da condição aprisionante
de uma liberdade fantasmagórica que parteja identificações ônticas incompatíveis com seus
movimentos ontológicos.
No entanto, esta coincidência que ocorre entre a disposição ontológica,
que é a da permanência no esquecimento de ser, com a plataforma ôntica, sustentada de forma
superdimensionada pelo processo de desumanização, encontrada sócio-culturalmente na
contemporaneidade, parece reforçar a impropriedade em perpetuidade existencial.
Não é apenas através do esquema de “utensílios” de que faz uso o
homem que pode se desocupar/ocupando-se das tarefas do seu cotidiano. Igualmente com o
ser-com, nas relações sociais há um incremento desta “impropriedade”, uma vez que, com os
outros, com os quais é-com, há uma transferência de interpretar e orientar seu destino como
homem, através da corroboração da “opinião pública”. Como coloca Critelli:
O homem se entrega em seu ser si mesmo aos outros e,
como nos lembra Heidegger, esses outros a quem o homem se abandona não se
constituem como outros distanciados. Esses outros são assim nominados para encobrir
a pertença de cada homem a eles. Não são outros em distinção a um eu mas o eu é
sempre já esses outros, por sua constituição existenciária de coexistente e por sua
primordial fuga da responsabilidade de suas possibilidades mais próprias de ser.
(C
RITELLI, 1988, p. 73)
56
Esta anonimidade que caracteriza o homem contemporâneo não é feita
somente da matéria-prima do sistema sócio-cultural. Aqui há apenas uma plataforma que
sustenta um modo de anonimato que foi construído historicamente pela tradição metafísica.
O que ocorreu foi a interpretação de ser “si-mesmo” onde ser foi
atingido pela noção de conceito e de idéia. Ser visto como ente pela Razão passa a ser objeto
na medida em que ocorre o desenvolvimento da economia capitalista. Ser-objeto toma a
feição de ser-mercadoria. A equação ser-ente, ser-objeto, ser-mercadoria, marca a
interpretação que se modulou no percurso das gerações passadas, configurando-se numa
tradição histórica.
No atual processo de desumanização que traz o sinete da depressividade
generalizada, o objeto e a mercadoria são os entes “úteis” reconhecidos como reais. Assim o
modo-de-ser do homem é determinado pelo modo-de-ser dos entes dos quais cuida. Como
passa a cuidar do ser dos entes que são disponíveis, o homem cuida de seu próprio ser que é
identificado ontológica e onticamente a partir das alternativas que se anunciam, através do
objeto e da mercadoria. Ideologicamente o homem se vê identificado como objeto e
mercadoria, como já foi mencionado.
Capturado por este paradigma de interpretação de ser “si-mesmo”, o
indivíduo contemporâneo parece perder seu sentido de viver, onde o tédio se lhe apresenta
como um encobridor de seu apelo ontológico e decorrente da obliteração autocrítica fascinado
pela técnica moderna.
O foco no ser entificado como mercadoria desincumbe o homem de
cuidar “propriamente” de seu ser si mesmo. Ou seja, o homem passa a identificar seu ser
como objeto e mercadoria no seu envolvimento no cuidar destes, os quais são amparados pela
tecnologia e pela burocracia. Estes pilares da sociedade contemporânea e que mal
57
instrumentalizados se convertem em reforçadores do processo de desumanização, têm a
suposta missão de desencarregar o homem de suas tarefas cotidianas, enquanto proporcionam-
lhe conforto e segurança. Vejamos como cita Critelli:
Para encobrir que o homem faz, uma vez que é sua tarefa
desencarregar o homem de ter que cuidar existencial e existenciariamente de seu ser si
mesmo, a urbanização se doa sob a aparência de uma mediação superpotente e
autônoma entre o homem e seu fazer. Mas, tal mediação, embora possa criar no
homem a ilusão de uma isenção frente às suas tarefas – alimentando-a sem poder
formar essa ilusão numa realidade –, à medida que se torna mais sofisticada e
complexa, vai requerendo para si todo cuidado e o tempo do homem. (C
RITELLI, 1988,
p. 75)
Paradoxalmente ao que a autora chama de “equipamentos do mundo
urbano”, os quais se destinam a mediar a relação entre o homem e seu fazer, culmina-se em
absorver o próprio homem, exigindo-lhe cuidados gerais e especiais. Sob os tentáculos
opressores de um modo de vida de pressão, o indivíduo parece se definir imerso num vazio de
sentidos de vida e vítima de um modo de existir entediante.
Longe de questionar a técnica moderna e a ciência como instrumentos
de progresso para o homem e para a sua própria felicidade, nosso intento mais uma vez foi a
de discutir as gorduras que se concentram nas artérias sociais e que podem, quando
manipuladas equivocadamente, proporcionar os prejuízos, aqui supramencionados, como
hipóteses.
Iremos nos deter em outro aspecto de suma importância decorrente da
evolução da ciência em combinação com uma sociedade mercantilista que interpreta o homem
e o faz funcionar como um ser-mercadoria e que o faz confundir sua identidade psicológica
com sua identidade biológica. Ou seja, como o corpo, no atual contexto, assumiu proporções
de relevo no seio social.
2.3 - O culto ao corpo e seus reflexos na formação identitária dos indivíduos.
58
Como efeito paroxístico deste cuidar excessivo do “si maquinal” como
privilégio da técnica, o si próprio vai sendo esquecido, importando, inclusive, a uma relação
estranha com seu “equipamento natural” – que é o seu corpo.
Sob a óptica da objetividade o ente – convertido num mero objeto – vai
perdendo o seu caráter essencial. O existir convertido em “ob-jetum” é definível, controlável e
previsível, tornando-se presa fácil numa sociedade permeada pelo processo de desumanização
que batiza o homem neste modelo objético e explorador e que não abre nenhum envolvimento
apropriador de si mesmo.
Nesta época tingida pelos matizes do tecnicismo e da objetividade
decretado pelo cientificismo, o corpo assume integralmente a identidade existencial.
Com o depauperamento das instâncias tradicionais, doadoras de
identidade, como a família, o trabalho, a religião, a política e o estado, o indivíduo
contemporâneo viu-se na necessidade de direcionar o sentimento de identidade para duas
dimensões, a do narcisismo e a do hedonismo, concentrando-as no corpo.
Da perspectiva do narcisismo há um movimento unicamente centrífugo,
onde o eu é senhor absoluto do mundo onde transita, concentrando a atenção e os cuidados
somente em si. Todos os satélites institucionais como família, pátria, Deus e sociedade devem
ser usados para servir a si em seu processo constante de auto-realização. Este narcisismo
faculta o alvo de satisfação sensorial como único meio de se poder ser feliz; é aqui que se
acopla à perspectiva hedonista como revérbero da expressão identitária narcísica. O
imediatismo – compulsivo e obsessivo do meio manipulador da temporalidade – subverte a
lógica do aprofundamento afetivo e bóia na superfície inconsciente do prazer rápido, embora
facilmente repetitivo – é uma marca indelével da noção do tempo para o existir na cultura
narcísica que irrompe na desqualificação das relações interpessoais. Ou seja, o sentido da vida
59
na realização de projetos a médio e ao longo prazo, que exigem comportamento de paciência
e compenetração, é incompatível com a dinâmica de realização identitária no modelo do
narcisismo. Não obstante o corpo de nossa sociedade esteja talhado com as gravuras cinéticas,
vivas e mutantes do narcisismo e do hedonismo, não perspectivamos um desenraizamento do
homem contemporâneo de suas tradições. Quiçá, não se concentre tanta energia nas religiões,
trabalho, política ou família, como fontes exclusivas de auto-realização.
Mas estas não deixaram de agir institucionalmente por meio de regras
impessoais e universais, sendo ativadas em suas particularidades. O que ocorre é que surge
uma outra faceta na condução moral da vida humana na contemporaneidade em sua esfera
universal. Esta poderosa instituição de presença mitológica que, junto à mídia, reveste-se da
autoridade de ditar a verdade, seria a ciência. Como coloca Jurandir Freire Costa:
Entre os fabricantes de opinião, em especial a mídia, o mito
científico encampou o direito intelectual de falar do lugar da verdade, provocando
uma reviravolta no terreno dos valores. As formas de vida, antes referenciadas por
valores religiosos, éticos ou políticos, passaram a se legitimar no plano do debate
científico. O que era medido por critérios pertencentes à esfera dos ideais morais
passou a ser avaliado por métodos de controle e validação experimentais. A virtude
moral deixou de ser o único padrão de vida reta e justa. Agora, o bom ou o bem
também são definidos pela distância ou proximidade da 'qualidade de vida', que tem
como referentes privilegiados o corpo e a espécie. (C
OSTA, 2004, p. 190)
O mito científico, respaldado na epistême objética da tradição ocidental
metafísica, controla o ser entificando-o nos instrumentos experimentais e, conseqüentemente,
na existência, fabricando-o como uma “impropriedade" sem brechas. Ou seja, como sendo
outro aspecto do processo de desumanização, o homem se vê através do corpo e sua
identidade psicológica se degrada a uma razão biológica, preconizada e alimentada pela
ciência que estatui um modo-de-ser voltado exclusivamente para o cuidar de si. Um cuidar de
si, outrora, verossímil para o desenvolvimento da alma, das virtudes morais e da busca
espiritual, é deslocado agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma.
Tal estrutura sociológica, esqueleto principal do atual paradigma
60
científico, que é a da ênfase no corpo, onde ser jovem, longevo e atento à forma física se fixa
como a regra áurea para a concepção da felicidade, marca o caráter do ser que foi objetificado
pela ciência, apresentando-se radicalmente como um novo modo-de-ser, que é o da
mercadoria. Este modo de ver o ser ganha alianças com os interesses liberais da
supervalorização e expansão do capital privado que é o da exploração e o do lucro. Como
mercadoria, o ser se submete à comercialização. Com o advento da economia capitalista, o ser
fica sob a chancela do capital privado, enquanto, em sua cotidianeidade, se firma sob o jugo
do lucro. Ser se reduz a uma perspectiva traçada e entendida como sendo a verdadeira que é
aquela ditada pelo mito científico e que, na atualidade, se encarna no axioma: “qualidade de
vida”. Jurandir Freire Costa cita:
Inventou-se um novo modelo de identidade, a
bioidentidade, e uma nova forma de preocupação consigo, a bioascese, nos quais a
fitness é a suprema virtude. Tudo agora gira em torno do ideal da boa saúde ; o cuidar
com o ambiente físico da espécie natural ; onde as noções de justiça social são
substituídas pela idéia da saúde perfeita e da boa forma física. As crenças religiosas
psicológicas e sociais precisam estar em sintonia com o novo determinismo
paradigmático que rege a nossa sociedade que são os dogmas da ‘qualidade de vida’.
(C
OSTA, 2004, p. 190, grifo do autor)
Para Lipovetsky (1983), o Processo de Personalização dissolve as
hierarquias anteriormente sólidas, desestabilizando os elos de referência e as identidades
estabelecidas. O próprio corpo, lentamente, perde seu caráter de materialidade pura,
ingressando na mesma linha de quase total abstração para a consciência. Há uma
fluidificação da percepção corporal onde se valorizam nuances subjetivas do corpo. É como o
autor cita:
O corpo psicológico substituiu-se ao corpo objetivo e a
tomada de consciência do corpo por si próprio tornou-se uma finalidade característica
do narcisismo: fazer existir o corpo para si próprio, estimular a sua auto-reflexividade,
reconquistar a interioridade do corpo, tal é a obra do narcisismo. (L
IPOVETSKY, 1983,
61
p. 59)
O corpo é alçado a uma importância nunca antes alcançada e, sob a
chancela do mito da ciência, o corpo ganha um novo estatuto, mais competitivo com a
consciência, passando a ser alvo de constante preocupação no viver do sujeito. Ocorre uma
superidentificação bioidentitária, como denuncia Costa (2004). A descoberta da
“subjetividade corporal”, como menciona Lipovetsky (1983), é fruto das técnicas
contemporâneas de expressão, concentração e relaxação.
O corpo, portanto, passa a assumir uma personalidade própria,
independente e multi, protegido pela nova normativa social, estética, dietética e sedentária. O
corpo é a nova invenção de sujeito no modelo da sociedade hodierna sob a direção do
narcisismo. O corpo, então, sofre uma nova representação no imaginário social com um
nivelamento identificatório com o ser-sujeito. Como coloca Lipovetsky (1983, p. 58): “o
corpo já não designa uma abjeção ou uma máquina, designa a nossa identidade profunda da
qual não há motivo para ter vergonha e que pode, portanto, exibir-se nua nas praias ou nos
espetáculos, na sua verdade natural”.
Não com isto se queira dizer dos incontestes benefícios sociais e
particulares na vida do homem advindos da ciência. O enfoque está em sua excessiva ênfase
nos atuais paradigmas e traduz uma forma muito específica de se interpretar o ser, o que
termina por limitar as possibilidades humanas no âmbito das congruências de seu existir como
ente que busca decifrar o ser, no uso de seu poder-ser. É possível que sob a óptica
reducionista que a razão científica concebe de ser e que se reflete hoje quase obsessivamente
como o ente humano cuida de seu corpo, que tal conduta neste fazer de sua dimensão
biológica o aparte de suas questões originárias, impactuando em seu estado de humor, que é o
modo de sentir o seu existir.
Existir que supervaloriza o corpo em detrimento de outras
62
possibilidades de realização de seu si mesmo e que se abrem sempre em seu cotidiano. A
unidirecionalidade de seu existir na busca da afirmação de sua identidade corpórea extirpa sua
condição originária de “dasein” – ser abertura para múltiplas possibilidades de realização,
através de suas escolhas como ser-no-mundo. Como peregrino de sentidos, “dasein”, não pode
se fixar em um só modo-de-ser e de interpretar ser como o que é instituído pelos atuais
cânones científicos. Parece que este afunilamento de ser como objeto e mercadoria, produzido
na ciência e no capitalismo, fomenta uma vida de inautenticidade do existir humano
desencadeando um quadro de apatia, vazio existencial e tédio; todos esses fenômenos
parecem bem presentes nos novos quadros depressivos.
Assim sendo, a renaturalização do comportamento humano não se
desvencilha dos antigos valores, apenas reformata-os com a sintaxe científica, consagrando a
ciência como a nova Roma dos destinos humanos. O sentido da existência, a ética e o “modus
vivendi” estão adstritos ao novo sujeito moral que tem suas fundações identitárias no ideal
natural de qualidade de vida.
As concepções de valores morais, então, outrora contempladas nas virtudes
públicas e privadas, agora são hegemônicas no reinado do corpo e da saúde perfeita, sob o
beneplácito da ideologia cientificista. Como coloca Costa (2004, p. 192), “ O corpo deixou
de ser um meio de agir sobre o mundo ou de enobrecer sentimentos para voltar-se para as
finalidades de sua própria autoconservação e reprodução.” O corpo no entendimento de
antanho, presta-se como veículo de comunicação e vivência dos bons sentimentos. Na
tradição judaico-cristã é vista como o “habitat” da alma a serviço do crescimento espiritual do
homem. Ter saúde ou longevidade era para cumprir o desiderato do espírito no mundo, mas,
nunca para conferir uma espécie de cidadania moral, concedendo ao indivíduo uma senha
social que autentica “status” e lhe permite ser acolhido e admirado pela sociedade.
No contexto atual sob a canóplia do hedonismo e do narcisismo a
63
sensorialidade é superdimensionada à frente do intenso interesse pelo corpo, que disputa o
espaço de importância com o aperfeiçoamento sentimental e os misteres cívicos. A exploração
maciça da experiência corporal vem causando inúmeros efeitos nas esferas mentais, físicas e
socioculturais.
Sob um domínio paradigmático incentivador do sensorial, dando-lhe
relevância em detrimento ao sentimental, os interesse sociais e a busca do bem comum se
tornam obliterados em grande parte, isto no plano da ação pública. As sensações privadas são
secundarizadas, primando-se pelas experiências individuais a favor do bem-estar coletivo.
No terreno do romantismo amoroso, o campo das sensações é apenas
alicerce para a satisfação da relação, enquanto o foco maior é na ternura, no carinho e na
atenção para com a pessoa amada. O aspecto sensual apenas consubstancia o sentimento. A
cultura sentimental, vigente no passado, sempre foi o valor moral de maior peso em
comparação à dimensão das sensações, exceto os casos de transgressão e de caráter
patológico, vitimizados pela sanha dos sentidos grosseiros e das consciências egoístas. Mas,
no todo, o comportamento cívico-sentimental era predominante e fincava a supremacia do
sentimento sobre a dimensão da sensação que instaura a cultura somática. Como coloca
Costa:
O cultivo dos sentimentos, de forma similar, usa as
sensações privadas como meio de refinar a satisfação que podemos ter com a memória
das interações emocionais vividas com o outro próximo. O romantismo amoroso é um
exemplar típico desta ordem de satisfação. A realização romântica tem no gozo das
sensações um trampolim para o reforço dos sentimentos de apego, ternura,
preocupação, devoção ou deleite com a posse ou o monopólio do desejo erótico do
parceiro. No amor romântico a sensação física permanece subordinada a algo que lhe
é exterior. A satisfação sensual é um instante que abrevia a história da relação entre
sujeitos, a competência para distinguir entre a pura satisfação sensual e a satisfação
com a rememoração da satisfação sensual e sentimental que se pode ter com o outro.
(C
OSTA, 2004, p. 193)
Como se pode inferir, no atual contexto da moralidade pública ou da
privacidade sentimental, esta lógica sofreu uma significativa mudança. Hoje o interesse é pelo
64
imediato prazer, viver sensorialmente, não há mais a paciência da conquista que exige
investimento afetivo. O que importa é a função do gozo sensorial. A cultura somática seduz o
indivíduo a crer que o seu servilismo e adoração do corpo são sempre vantajosos. Há
processos mirabolantes na felicidade sensorial que empanam quaisquer possibilidades de
conjecturar os aspectos desvantajosos desta conduta, sancionada pela norma moral da
disciplina corporal.
Acredito, como possibilidade, que a cultura somática também, de certa
forma, pode fomentar estados depressivos por desviar o poder-ser do “dasein” de suas
múltiplas possibilidades de realização, uma vez que se fixa em uma só modalidade de busca
de sentido de viver.
O forte apelo da cultura somática furta a percepção de ente homem de
compreender seu si mesmo, isto porque ser entificado em corpo, um corpo que se atomiza do
imaginário da mídia e da ciência que impõem estereótipos estéticos faz concentrar um cuidar
de si numa dimensão só, que é a biológica. Igualmente, o ser-com fica em obtusa relação com
o outro. Outrossim, enxerga o outro como uma possibilidade única de proposta de sensação,
no que acredita no superficialismo relacional, portanto, em um processo depressor em
comunhão com o outro e consigo mesmo. Como vejo o outro como sensação, percebo-o como
mercadoria à minha disposição auto-referente; sob esta dominância paradigmática me
constituo como auto-referente, como igual mercadoria e corpo de sensações para o outro. Esta
limitação de me compreender e veicular meu corpo com o ser-no-mundo pode levar a um
esvaziamento de sentidos, uma vez que no raso das experiências sentimentais há
inconsistência identitária que remete, possivelmente, a um estado depressivo e de tédio
existencial.
O excessivo cuidado de si ramificado na forma corpórea e no gozo das
sensações vem alterando a importância emocional do outro humano. Costa (2004, p.197) cita
65
em sua obra: “Aqueles que, de fato, têm responsabilidade para conosco não conseguem se
sobrepor aos modelos impessoais das celebridades ou das figuras de outrora veiculados pela
publicidade”.
O que parece ocorrer é uma moda instituída por uma cultura do
mimetismo que viceja na mídia. Com a perda do sentimento de pertença, da desvinculação
das tradições, da descontinuidade histórica as figuras de autoridade, mormente as encarnadas
na dinâmica da família nas pessoas de pai e mãe, têm se volatilizado. Para ocupar esse
vulcânico vazio, surgem os personagens fabricados pela instituição midíaca, onde as pessoas
são seduzidas a imitarem os papéis novos, declarados como os substitutos da autoridade
legítima perdida.
A mídia se constitui, então, como formadora de personalidade. Este
comportamento institucionalizado pela mídia, no seio social, incrementa o descompromisso
emocional com o outro humano, reforçando a anonimidade. Isto porque não há por parte da
cultura midíaca, uma focalização na história pessoal de cada indivíduo. O eu existencial não é
contemplado, e sim o eu virtual, aquele que reverbera o holograma definido opacamente pela
impessoalidade das celebridades eleitas ou inventadas como as novas referências de
autoridade. Referências que impõem um modo-de-ser que não traz apenas a influência de uma
forma de se vestir, como a moda do vestuário. O que ocorre é uma influência mais complexa e
poderosa que é a moda emocional. Há uma institucionalização de um estilo de vida, formas de
comportamento, uma moral do espetáculo e da aparência que são veículos
dessubstancializadores do eu existencial que compromete a percepção do ente humano quanto
ao seu destino de ser. A impessoalidade estandardizada pelo jogo virtual e industrializada pela
mídia, por fabricar modelos de referência, sacraliza o mimetismo. O mimetismo no modo-de-
ser castra a possibilidade de um existir autêntico e reforça, com as atuais estruturas
sociológicas, a queda do “dasein” em sua permanente angústia. No que obnubila a
66
compreensão do “dasein” em seu poder-ser e o estanca em seu fluxo existencial de vislumbrar
a corrente viva das múltiplas possibilidades de realização de seu si mesmo, uma vez que
permanece no congelamento interpretativo de ser que é mantido pela entificação do impessoal
produzido pela mídia e que apenas leva a uma conduta de imitar e seguir as celebridades
reinantes no palco dos noticiários da fofoca. Vejamos Costa (2004, p. 197) como se refere,
sucintamente, a este fenômeno da mídia na produção de modos-de-ser: “O corpo da
publicidade, entretanto, não se dirige diretamente a nenhum de nós ou considera as
publicidades de nossas histórias de vida ao provocar o nosso desejo de imitá-lo”.
Esse seria um dos traços marcantes da cultura narcísica que inspira os
indivíduos a um hiperinvestimento afetivo na imagem corporal e, quando não podem se
atualizar existencialmente aos novos padrões do corpo ideal, se vêem lançados em um vazio
interior. A idéia de sentido de vida parece se condicionar à manutenção apolínea do corpo. O
imaginário da beleza física é alimentado pelos estereótipos definidos pela mídia, pela
indústria cosmética e pela medicina, que atomizam um esteticismo universal. Os que não
conseguem seguir o ritmo do anti-entropismo, institucionalizados nas cadeias sociais de alta
hierarquia, são afetados em seu poder-ser de se manterem na abertura de outras possibilidades
de realizar o seu si mesmo em respeito às suas singularidades corporais e psicológicas.
Os muitos deprimidos na atualidade parecem concentrar muita energia
de frustração quando ficam como retardatários na corrida da “fitness”: os sedentários, os
obesos, os não malhados, os que não podem ser abençoados com a graça do silicone, da
lipoaspiração e cirurgias plásticas.
Indubitavelmente, essas imposições da cultura somática geram um
sentimento de culpabilização no indivíduo que é sustentado pela indústria dos interesses
comerciais e de controle social exercidos pela mídia para a firmação da alienação do eu. Ser
entificado como corpo através da ciência conduz, sob os auspícios da economia capitalista, o
67
homem a se perceber na circunscrição de uma identidade biológica, ao mesmo tempo em que
o faz tratar o seu corpo como mercadoria de sensações na criação de um eu moral e
psicológico, norteado pela experiência pura da sensualidade corpórea. Ou seja, limita seu
campo de possibilidades de existir, enquanto centraliza o sentido do viver em perspectivas
horizontais que embrutecem a sensibilidade humana de metaforizar a existência de forma
mais inteligente, através de sentimentos ricos de criatividade e de reflexão crítica que lancem
o “dasein” no terreno fértil da realização do seu ser si mesmo.
A depressão pode ser concebida como um estado reativo diante dos
mecanismos sociais que não oferecem mais a sustentação psicológica necessária ao sujeito
para uma formação identitária mais bem consolidada, como também, uma certa
incompetência na elaboração das perdas que surgem em seu trânsito no mundo. O indivíduo
contemporâneo vive sob uma sociedade de-pressão tingida por processos desumanizadores e
que ameaça constantemente a sua integridade psíquica.
Além destes processos, outras facetas na questão de certa anonimidade
do indivíduo com o culto ao corpo sob influência de padrões estéticos e comportamentais
instituídos pela média foram se apresentando ao longo da pesquisa e que esboçaremos logo a
seguir.
68
3. ANONIMIDADE E OUTROS MECANISMOS DEPRESSIVIZADORES
O excessivo cuidado de si, com ênfase no semblante corporal, minou,
de um lado, a relação emocional do outro humano, mas, com isto, não deixamos de encontrar
no outro o seu papel de ancoragem e constituição de ser-no-mundo. No entanto, enquanto o
outro diminui a sua força avalista do que somos, fomos levados a idealizar um outro anônimo.
Este outro anônimo é um espelho do que sentimos por ele, ou seja, tédio. É hoje o modelo de
impessoalidade encarnados nas celebridades veiculadas na publicidade.
A publicidade vem regular a interpretação do mundo e do "dasein", não
porque permita ao "dasein" ser visto em sua singularidade. Pelo contrário, por não permitir o
mergulho em qualquer assunto, por não respeitar a alteridade, não demarcar o território das
diferenças em nível e intensidade, a publicidade tece um véu negro e dá o encoberto por
sabido e acessível a todos. A publicidade revela como verdade o que ela obscurece como uma
não-verdade.
O homem inautêntico é o homem cotidiano onde a sua individualidade
é de "gente mesma" e que se confunde nas coisas nas quais “a gente" se absorve. O resultado
é uma interpretação do ser como coisa, coisa absorvida nas outras coisas. Como diz
Heidegger:
Todos são o outro e ninguém é ele mesmo. No uso dos
meios de transporte, na leitura dos jornais, o homem cotidiano comporta-se como
qualquer outro. Jogamos e alegramo-nos como 'a gente' faz; lemos, olhamos e
julgamos como 'a gente' lê, vê e julga; achamos chocante o que 'a gente' acha
chocante. 'A gente' não permite exceções, não tem segredos e suas possibilidades
seguem caminhos bem fixos. 'A gente' pode responder por tudo, porque ninguém é
responsável por qualquer coisa. (H
EIDEGGER, 1977, p. 143-144, grifos do autor)
O homem entrega o seu ser si mesmo aos outros. Não são os outros
69
distantes ou virtuais. São outros reais, mas, ao mesmo tempo, assume um caráter de
anonimidade, em função do depauperamento do compromisso emocional com este outro. A
anemia afetiva de relação com o outro humano é plenificada na cultura narcísica que abre o
processo de desumanização já assente sociologicamente como normativa comportamental.
Esses outros são nominados para encobrir a pertença de cada homem a eles. O eu é esse outro,
embora seja um outro distinto deste eu.
Esse eu é o outro, na sua condição existenciária de coexistente e por sua
fuga primacial da responsabilidade de suas possibilidades mais próprias de ser. Assim, na
perspectiva heideggeriana os outros são anônimos, no que constitui o caráter de anonimidade
de cada ente humano e a que Heidegger chama de 'alguém'. Para Critelli (1988, p.173, grifo
do autor): "Alguém é o sujeito ou o quem da 'opinião pública' que, imediata e regularmente,
no cotidiano, são todos e simultaneamente ninguém."
Em "Amor líquido", Bauman (2004) menciona que o indivíduo
contemporâneo vive um dilema sociocultural que o tem levado a superlativos conflitos
afetivos. De um lado, reconhece a importância vital do outro em sua vida emocional e, por
outro lado, tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos que o imobilizem num
mundo em constante movimento.
O sentimento de não pertencimento ao outro, embora intencionalmente
se pressinta sua importância, pois o ser se constitui na coexistência do ser-com, parece ter sido
cimentado na cultura somática, que esvazia a moral dos sentimentos enquanto privilegia a
moral do corpo e das sensações. É dado maior relevo à aparência física em detrimento do
envolvimento e aprofundamento emocional. Para Costa (2004, p.198): “Com isto, veio a
privar o sujeito de um potente mecanismo estabilizador do sentimento da identidade, qual
seja, a capacidade de olhar o outro.”
O caráter de exibição de nossos "segredos íntimos" expurgou do
70
indivíduo sua privacidade maior, expondo-o ao julgamento do outro que obedece aos padrões
da normativa decretada pela cultura somática, ou seja, o corpo passa a ser o espelho da alma.
Eu sou julgado pelo meu corpo, naquilo que exponho nele, naquilo que aparento ser. O corpo
é o grande revelador de meus vícios e virtudes. Minha identidade psicológica se reduz à
minha aparência física. E 'eu' passo a ser visto por mim através do olhar do outro, que é
subjugado pelas leis da cultura somática. É um olhar deformado, contaminado pela forma
entificadora como avalio ser, pela óptica reducionista da aparência física, o ente humano que
se constitui na coexistência de um outro que tem um olhar dominado ou enfeitiçado por uma
cultura que entifica o ser. O outro humano é um anônimo que reforça a minha anonimidade.
Ambos nos ignoramos porque nos desconhecemos a nós mesmos. Parece que tal condição
humana esvazia o ente humano de ter sentido existencial que é realizar seu si mesmo. Suas
referências de constituição ôntica não facilitam sua realização ontológica. Pois, no mundo das
aparências dos anônimos do ser-com, ser não tem como se espelhar. A superfície social é
deveras líquida pra que o semblante de ser possa ser contemplado.
Outrora, no romantismo, a cultura do intimismo sentimental permitia
ao indivíduo o direito sacralizado a quem sua identidade deveria ser revelada. Na cultura
narcísica da exibição publicitária, o indivíduo é invadido em seus segredos sexuais e
emocionais, para atender ao comércio midíaco que busca audiência de pico com a vendagem
exploratória dos dramas humanos. É possível que o desmanche do território da privacidade
emocional, escancarada ao olhar público, tenha conferido maior anonimidade, tanto no sujeito
observado quanto aos sujeitos observadores. Por efetivar um automatismo perceptual de
confusão identitária, o outro é visto como alguém com quem não temos elo emocional, mas
que nos invade acessivelmente pelas aberturas das confissões públicas, autenticadas pelos
veículos de comunicação de massa.
Vejamos a contribuição de Costa:
71
Dado que a identidade é exposta, de pronto, na superfície
corporal, o outro se tornou um observador incômodo e invasivo de nossos possíveis
desvios bioidentitários e não um parceiro de ideais comuns. Se nos sentimos bem com
a forma física, tememos que o outro nos inveje por não ter alcançado o que
alcançamos; se nos sentimos mal, ele é um suposto acusador, que nos humilha pelo
simples fato de encarnar a norma somática que cultuamos para corporificar. (C
OSTA,
2004, p. 199)
A constituição do si fica subjugada pelo olhar do outro que, por sua vez,
é normatizada pelos valores vigentes na cultura somática. Nosso modo de vida passa a ser
regulado pelos ditames do culto ao corpo e passamos a nos assujeitar ao seu determinismo
comportamental. Diz Costa:
Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por
exemplo, desencadeia, em geral, uma tagarela bizarra e infantilizada competição sobre
quem faz mais exercícios, quem come menos gordura, quem é capaz de perder mais
quilos em menos tempo. Quem deixou de fumar há mais tempo, quem ingere mais
vegetais, alimentos e fármacos naturais, etc.. (C
OSTA, 2004, p. 199)
Como se pode constatar, quem não ingressa nessa dialética do cotidiano
das pessoas, ou se sente alienígena, ou fará de tudo para se adequar à nova ditadura do culto
ao corpo. Aqueles que não conseguem acompanhar o ritmo frenético destas exigências
pressionantes, possivelmente – pelo alheamento que gera – se depressivizam pelo fator da
exclusão social ou da própria auto-exclusão. Há uma possibilidade de viver um tédio
existencial de forma neurótica como fuga à falta de sentido que realiza ser em sua condição
originária de "dasein". Vejamos como Costa se expressa quanto ao que ele chama de
problemáticos:
Em paralelo a isto, todo consumo de comidas com alto teor
calórico é precedida de verdadeiros atos de contrição e rituais preventivos de expiação
da falta a ser cometida. Os que não aceitam jogar o jogo são vistos como
problemáticos, do ponto de vista emocional, já que se entregam, sem escrúpulos, à
autodestruição física e moral. Afinal, pensamos, sem a boa forma não teremos
oportunidade alguma de ser vencedores. O mal do século é o mal do corpo. (C
OSTA,
2004, p. 199-200)
72
Outro fenômeno que decorre do processo de desumanização além do
individualismo, narcisismo e hedonismo que dão sustentação à cultura somática é o que
Costa (2004) chamou de superficialidade e uniformidade compulsivas. É possível que este
aspecto reforce o caráter de anonimidade que patologiza o ente humano por não lhe abrir para
o seu poder-ser o campo das possibilidades de existir, uma vez que impõe como efeito da
entificação de ser interpretado de forma equivocada a uma padronização de comportamento.
Não tendo como preservar sua privacidade, prospectado pelo olhar
público, o indivíduo é levado a adotar o comportamento vigente da superexposição para não
ser reconhecido. “Dasein” lançado ao mundo no seu processo de singularização como “ser-
no-mundo” procura sair da notoriedade se fazendo como “ser como todo mundo”. Sendo o
que todo mundo é, eu deixo de ser diferente, ou seja, aquele que sai do olhar crítico do outro.
Assim, deixando de realizar, como “ser-no-mundo”, de forma autêntica, as minhas
possibilidades reais de existir, passo a copiar o modelo-padrão legitimado como o ideal. Tal
modo-de-ser – por deixar de facilitar o que preciso ser no exercício de minha compreensão –
emula-me a uma anonimidade. Ou seja, desconheço a mim próprio por querer ser igual aos
outros. Há um paradoxo: enquanto há nas aparências corpóreas o seu veículo de
singularização, ao mesmo tempo, ocorre, pela limitação de seu poder-ser, a vigência de um só
padrão de realizar seu si mesmo, que seria a aparência quando se busca apagá-la com receio
de sofrer a observação crítica do outro humano.
Ser-com – como constitutivo originário na realização ontológica –
torna-se, em efeito contrário, agente de inibição na busca de sentidos para viver. O outro é um
anônimo que inspira a mimetização do anônimo em que me torno para livrar-me da
vitimização de um processo que desumaniza. Desumaniza porque, sob o olhar de pressão do
outro, me revisto do que o outro quer que eu me torne para poder ser aceito por ele e me
constituir na coexistência como ser singular. Tudo para que eu possa desaparecer do campo
73
do olhar do outro, o que me anonimiza. Como coloca Costa (2004, p. 200): “O preço do
reconhecimento imaginário é a invisibilidade cultural pela massificação. Sem isto, o indivíduo
jamais consegue estar tranqüilo consigo, isto é, livre da invasão persecutória do ideal da
‘fitness’.”
Anonimiza mais ainda porque gera uma superdependência ao idealizado
que é o corpo virtual desenhado pela “fitness”. Superdependência que, não apenas afunila o
campo do poder-ser do “dasein”, mas que leva o indivíduo a um sentimento de nulidade e
tédio existencial. Ao sofrer a pressão imposta pelas exigências sociais da “fitness”, o
indivíduo azorragado pelas privações a que tem de se submeter, mergulha em um vazio
interior, pois se volta a compreender a si mesmo como uma entidade biológica que precisa ser
singularizada nos moldes determinados pela cultura somática.
Como explica Costa:
O resultado dessa identificação pessoal pela banalização do
eu corporal é o sentimento de que o gigantesco esforço despendido na prática da
bioascese é inútil, pois sempre passa ao lado do alvo. Todas as privações sofridas em
nome da boa forma, em última instância, redundam na experiência de irrelevância e
futilidade do eu. (C
OSTA, 2004, p. 200)
A anonimidade perfura o eu, que se volatiliza e deixa escoar, em sua
porosidade identitária, os sentidos que pavimentariam seu existir no logro da realização de seu
si mesmo.
Veremos, mais adiante, como se processa com sofisticação a
fluidificação do sujeito, quando este se encontra em acentuado grau de alienação. Como, de
certo modo, a mídia pode, inspirada na espetacularização da imagem, clonar virtualmente
certas identidades que se anexam ao sujeito concreto e passa, em alguns casos, a desnorteá-lo
quanto a sua real identidade, ainda aderindo sua imagem psicológica ao seu semblante
corporal através dos veículos midíacos.
74
3.1- O espetáculo do “eu” virtualizado e sua encarnação corporal.
A sociedade, movida pelos meios de comunicação de massa, parece
reforçar a fluidez identitária do indivíduo quando o dissocia da realidade por ele produzida,
reeditando um elo entre o particular e o social pelos moldes da “moral do espetáculo”. O
indivíduo é enfeitiçado pelo jogo das aparências, perpetrado por uma realidade que é erigida
no ideal de felicidade alimentada no usufruto imediatista e corriqueiro das sensações e do
entretenimento. Esta moralidade é discutida por Guy Debord ( 1982 ) em “Sociedade do
Espetáculo”.
Para Costa, comentando Anselm Jappe in Debord:
Segundo Anselm Jappe, Debord, à maneira de
Marx, define o espetáculo como o último estágio da separação do sujeito do produto
de seu trabalho. Neste estágio, não apenas os objetos e o dinheiro se transfiguram na
abstração coisificada da mercadoria; todo aparecer social é fetichizado... O espetáculo,
diz Jappe, citando Debord, embora não se resuma ao que os meios de comunicação de
massa oferecem ao público, tem nesses meios sua manifestação superficial mais
esmagadora. A mídia, ao mesmo tempo em que restaura a vaidade ilusória do
indivíduo com o mundo, reforça a cisão real, impedindo-o de reconhecer que ele e os
outros indivíduos são os artífices do que existe. (C
OSTA, 2004, p. 227 e 228)
O espetáculo encontra na mídia sua principal plataforma de sustentação,
embora se saiba que a ela não se restringe. A mídia vitaliza a unidade ilusória do sujeito
desidentificando-o do seu eu real, agora modelado pelo virtual da mídia e causando no
indivíduo a ruptura de sua responsabilidade pessoal quanto ao seu poder-ser. A existência é
borrada pelas tintas da ilusão midíaca, jogando o ente humano a uma vida inautêntica, onde o
sentido do existir é reinventado pelo espetáculo. O ser-no-mundo se transmuta em um ser-no-
espetáculo, cujo mundo, redesenhado por uma moral que consagra imaginariamente uma
75
unidade identitária só é encontrado no virtual. Virtual que transfere do indivíduo concreto que
se constitui na coexistência com outros no plano do mesmo concreto identitário para uma
coexistência teatral, inconsistente e fluida, concentrada nas figuras que encarnam o poder-ser
do indivíduo concreto, condicionado a uma existência de tédio e vazio interior.
Vejamos o que Jappe diz:
Tudo que falta à vida se encontra nesse conjunto de
representações independentes que é o espetáculo. Podem-se criar, como exemplo, as
celebridades, atores ou políticos que estão encarregados de representar esse conjunto
de realidades humanas e de alegria de viver que está ausente da vida efetiva de todos
os outros indivíduos, aprisionados em papéis miseráveis. [...] os indivíduos só
encontram sua unidade no espetáculo, onde as margens que se afastaram de cada
aspecto da vida fundem-se num curso comum, [...] mas encontram-se reunidos nele
apenas como separados, porque o espetáculo açambarca para si toda comunicação [...]
e sua justificativa é uma só: a justificação da sociedade existente, isto é, do próprio
espetáculo e do modo de produção de que é originário. (J
APPE, 1999, p. 20)
Como se pode inferir, o espetáculo reinventa um mundo determinando
as prioridades sociais a serem seguidas e que atrações de seu jogo de imagens definem o
modo-de-ser dos entes humanos. Através da mídia, o espetáculo tem uma ação invasiva e sutil
reforçando a cisão real/virtual que afeta a percepção do sujeito na busca da realização de seu
si mesmo. A referência da coexistência como ser-com e meio de se constituir em seu processo
de singularização sofre as deformações perpetradas pelo sistema do espetáculo que confunde
o ente humano que não encontra consistência nas figuras célebres nomeadas pela mídia como
estereótipo de conduta.
A mídia modela o real a seu bel-prazer, ditando ora uma vez qual o
padrão estético a ser seguido, ora outra vez qual a nova orientação de beleza física. A vida do
sujeito é subordinada ao que dizem os jornais, revistas, filmes e programas de rádio ou de
televisão, afastando-o de sua realidade diluída nas representações imagéticas borrifadas pelos
meios de comunicação de massa. Ou seja, o indivíduo é sacado de seu mundo para ser
admitido numa realidade virtual onde ser eu é aparência.
76
Condicionado à realidade semblante e distanciado da experiência no
mundo de forma auto-referente e concreta, o ente humano encontra na sociedade ser-no-
mundo uma mera tela de cinema, onde se projetam imagens desconcatenadas de um sentido
de enredo, onde a cada término de filme ficcionista a realidade subjacente se lhe revela, que é
a tela vazia. Ou seja, vazio é o seu existir, seus sentidos autodiretores que foram capturados e
reformatados sob nosso cego consentimento, pelo novo grande autor da vida dos sujeitos que
é o espetáculo. A vida vira uma ficção.
A encarnação dos modelos midíacos movidos pelo mimetismo ditatorial
da moda e dos meios de comunicação de massa é algo frustrante. Não podendo viver como
vivem os “famosos” em suas realidades fantasmagóricas, os indivíduos passam a se identificar
com o que há de mais acessível nas celebridades que é a aparência corporal. Não conseguindo
viver o “conto de fadas” das celebridades para diminuir o efeito de decepção consigo mesmo,
os indivíduos contemporâneos passam até a atropelar suas particularidades físicas no escopo
desesperador de tornar o corpo um signo imaginário de um modo-de-ser que margeia a vida
desejada e, ao mesmo tempo, distante dos famosos. Como pura miragem no deserto de
sentidos de vida dos indivíduos, o corpo é o elo que une o real ao virtual e procura diminuir as
distâncias quando os indivíduos buscam modelá-los a todo custo em verdadeiros martírios de
academias de ginástica, clínica de estética e consultórios médicos, na maratona pelo físico
ideal: o físico midíaco. O caráter de anonimidade se adere ao semblante corporal: ou se tem
um corpo impecável, siliconizado, com próteses apolíneas ou curvas de musas ou o sujeito
perde sua identidade pessoal.
Não se reconhecendo mais como figura de singularização e de
autoconhecimento, imerge no fundo pantanoso das bioidentidades sacralizadas pelo
espetáculo da mídia, desfigurando a fisionomia do sentido de ser. A voz do eco da mídia
reforça a ilusão de narciso e o faz soçobrar lentamente no culto suicidário das imagens
77
vagueantes e dissociativas de seu eu, já que promete a felicidade como apanágio das
sensações. Além de desencadear os mais susceptíveis emocionalmente, comportamentos
compulsivos como a vigorexia, as bulimias e as anorexias, é possível, igualmente, que se gere
depressão naqueles que não conseguem manter o ritmo aquiescente aos ditames da sociedade
que se move na órbita do espetáculo. Portanto, a corpolatria seria um outro mecanismo
depressivizador que argamassa a anonimidade do sujeito contemporâneo, perdido em sua real
destinação e deprimido por desconhecer sua identidade psicológica, enquanto supervaloriza
sua identidade biológica, modelada pela mídia que se encontra a serviço da sociedade do
espetáculo. O “eu” tem sua encarnação apenas no corpo físico em olvido às outras dimensões
de seu universo subjetivo, ao mesmo tempo em que o virtual se confunde com o real,
provocando vertigens na órbita perdida do “eu” contemporâneo.
Seria crível a existência de outros vetores que estivessem atravessando
ainda mais sofisticadamente a constituição identitária do sujeito atual! Vejamos
posteriormente.
3.2- A crise identitária do deprimido
Perspectivando que vetores sociológicos, inerentes ao cotidiano de
quase toda uma população, estejam formando novos modos de subjetivação e que estes modos
de subjetivação percorrem trajetos que, de certa forma, têm desumanizado as pessoas,
levando-as a um esvaziamento de sentidos de vida, com o comprometimento das relações
interpessoais como constitutivo do dasein em ser-com e com o afunilamento das múltiplas
possibilidades, veremos. Hoje estas possibilidades se encontram reduzidas pelo meio
científico e pela moda, com destinos já determinados; então é mister que nos aprofundemos
78
sobre as tecnologias de comunicação como as novas formadoras de subjetividade na
contemporaneidade.
Os atuais processos tecnológicos que surgiram com o universo da
computação, parteiras de uma realidade virtual (simulação), concitaram a uma reflexão teórica
a respeito de seus pressupostos.
Com o desenvolvimento das práticas interativas mediante o surgimento
de uma esfera pública virtual, as pessoas, usuárias deste sistema, passaram a ser integrantes
destas redes abertas e sem centro, nas quais “os sujeitos se tornam cada vez mais instáveis,
múltiplos e difusos.” (FOSTER, 1996, p. 32-33).
Ora, parece que com o contato com as máquinas não apenas o “eu”
parece se dessubstancializar, tornando-se opaco, múltiplo e aberto, sem um centro próprio,
mas que lentamente vai se constituindo uma nova identidade, ou seja, uma nova sociedade
cibernetizada, que consagra a refração da personalidade e legitima a ficcionalização do eu, a
partir do momento onde as pessoas livremente podem trocar de sexo, modificar a idade,
assumir novos papéis e novas identidades, usando a tecla do computador. A cibernética
permite um novo batismo, com nome e apresentação social soltos e desconectados com a
realidade.
É possível ser virtualmente como se imagina ser, do jeito que se quer e
se relacionar com outros usuários que, igualmente, se permitam a mesma clonagem virtual. É
como se, para suportar o vazio interior de nossos tempos, fosse necessário gerar outros “eus”
que substituíssem o eu real. A tecnologia cibernética facilita este recurso de auto-proteção do
eu real que se esconde do mundo e de si mesmo, enquanto inventa os “eus” virtuais e os toma
para si, vivendo-os com a máxima realidade possível.
Um dos veículos mais potentes e que vem ocupando, desde meados do
século passado, o lugar de um deus, como agenciadora de discursos que falam de um saber
79
sobre o mundo, a vida social e as particularidades dos sujeitos é: a televisão. Da tribuna
eletrônica da televisão se emitem novas normativas sociais e a nova ordem de pensamentos
que ficcionam a vida dos indivíduos como uma re-hierarquização de valores que robotizam os
comportamentos humanos sob os encantos da publicidade. A televisão coloniza o poder-ser
do ente humano e determina para ele, manipuladamente, qual a possibilidade real do seu
existir: consumir. Consumir o que é dado pela inteligência midíaca que instaura uma outra
realidade, que é a do espetáculo, com um poder de mitologizar essa realidade com os sentidos
que lhe são de interesse.
O caráter do mito é o seu recorte da realidade social com o sinete de
significados advindos da fonte produtora. No caso da televisão, a imagem é esse recorte que
está grávido de sentidos fecundados pela indústria publicitária que a sustenta. O mito midíaco
passa a canalizar os significados a eles conferidos e maquiados com um estatuto de linguagem
que lhes permite a fácil assimilação dos consumidores/telespectadores, onde a verdade
enunciada é tomada como sendo a própria enunciação da realidade total que o mito procura
representar.
O mito midíaco, portanto, expurga toda a diversidade, as fiações
históricas e as heteronímias preexistentes à dissecação sofrida pelo recorte da realidade e
reduzida a uma simples linguagem imagética. O mito ganha a força que a mídia investe com
intentos específicos de seduzir o olhar do público, mas ao preço de se esvaziar de sua conexão
com a história, com a tradição e com a realidade social que a engendraram. É como coloca
Maria Rita Khell (2005, p. 250, grifo do autor):
Para que tal efeito seja possível, é preciso que o significante
do mito seja pleno e vazio ao mesmo tempo. Pleno de sentido socialmente atribuído –
como o coração vermelho emprestado a tantas mensagens publicitárias – e vazio de
especificidade, de história, de experiência social. Por isso, ele se presta a condensar
quaisquer significações, emprestando-lhe sempre o mesmo sentido, um sentido
“universal” (o amor, a emoção), vago – tornando indiscutível, porém, pelo efeito das
identificações que é capaz de promover.
80
A engenhosidade da indústria cultural contemporânea está em capturar
os sentidos emergentes dos sujeitos antes mesmo que estes possam, no exercício do seu
poder-ser, identificar a melhor possibilidade de realização de ser e repassá-los como códigos
para outro lugar que é a do mito midíaco, que passa a ser tomado como o representante total
do real de cada sujeito. Assim, a responsabilidade de existir do ente humano passa a ser dada
pelo mito midíaco que absorve as expressões emergentes do sujeito que, se identificando com
tais conteúdos, os toma como se fossem seus. Dispensando a mediação da linguagem, a
imagem ocorre com um poder bem maior que o das palavras e assume um efeito maior de
encobrimento do real onde a realidade é apresentada univocadamente, sem contradições e
frestas dialetizantes. Desta forma, como coloca Guy Debord (1982, p. 28), o espetáculo é
“uma visão de mundo que se objetiva”.
Ao contrário dos mitos do passado, que ditavam a origem dos tempos e
da destinação humana, ou seja, tinham um valor conotativo de historicidade, vínculo ao
passado e sentido para o futuro, o mito midíaco rompe os laços com o passado e se afirma na
presenteidade, obnubilando a história das significações. O caráter de presenteidade é a marca
da obsolescência contida nas representações dadas pelo mito atual. Ou seja, a produção
contínua do presente, a neofilia (gosto pelo novo), as modas repercutem uma idéia de que
todas as coisas são a mesma coisa. Assim, nossas ações e pensamentos são inspirados na
lógica da circulação das mercadorias, onde o dinheiro é medido pelo mesmo equivalente
simbólico que passam a ter também nossas particularidades.
Destarte, a noção de diferença subjetiva se perde no consumo de
imagens que falam de novidades tecnológicas e estéticas trazidas pela indústria do
entretenimento e que são dadas de forma pronta e objetiva. As trocas sociais no subjetivo têm
a mesma medida da lógica da circulação das mercadorias. Tudo é passageiro, tudo é igual,
tudo é linear.
81
Nos últimos anos, a agressividade virtual na vida particular dos sujeitos,
por meio das máquinas criadas do espaço cibernético, tem aumentado significativamente.
Medra a interação sujeito e virtual, numa convocação que migra de mero espectador para ator.
O circo romano e o teatro grego se convertem na espetacularização da imagem, onde o efeito
deixa de ser catártico, com intuito de delimitação do eu em sua relação com o social e se
torna, na prática do abandono do si, para viver a vida do personagem ou da celebridade,
desfilante na passarela eletrônica.
Para Marc Guillaume, tais conseqüências no processo de ficcionalizar o
social é: “promover uma espécie de elisão do sujeito, o seu desvanecimento parcial em um
jogo indefinido de identidades flutuantes” (GUILLAUME, 1989, p. 81). Devido a tais
acontecimentos, percebe-se que “a posição do sujeito individual, essa invenção recente,
parece destinada a ter um fim muito próximo” (GUILLAUME, 1989, p. 82).
A noção de um eu organizado com gravidade própria parece remota
com a variedade de imagens e estilos de vida decretados pelas tecnologias emergentes que
culminam em enforcar a “impropriedade” do homem. É como coloca Kenneth Gergen: “A
credibilidade no mundo interior é colocada sob suspeita; a existência de um centro subjetivo
no ser é problemática, e as instituições que se justificam por essas premissas são sujeitas a
uma análise crítica.” (G
ERGEN, 1991, p. 135)
Em suma, o eu é cimentado vivendo inautenticamente suas
possibilidades do vir-a-ser, confuso dentre os vários rostos virtuais com que busca, através do
cristal líquido de uma tela de computador, espelhar a sua verdadeira fisionomia, desfigurada
no múltiplo do cibernético. É como se a singularidade ficasse tingida das cores do plural
virtual, desgastando a face real encoberta pela poeira dos jogos identitários que o ciberespaço
proporciona.
82
Não obstante, a existência de convincentes autores que defendam a tese
de que o acesso às tecnologias de comunicação, que pôs em exercício a criação de uma
multiplicidade de “eus”, não tenha prejudicado a noção singular do eu, ao contrário, a internet
ajudou na sedimentação identitária, colaborando para uma maior auto-percepção do si mesmo.
É como defende Sherry Turkle (1996, p. 235): “A internet contribuiu para nos fazer pensar a
identidade em termos de multiplicidade [...] As pessoas são capazes de construir um eu ao
flertar com muitos eus”.
Não discordo, “in totum”, de sua observação, no entanto, consideramos
que careça de determinação histórica. É possível que, para pessoas com melhores estruturas
psicológicas, as práticas virtuais não a depressivizem por não fazerem perder suas
centralidades subjetivantes. Mas, isto talvez seja uma pequena parcela da população
consumidora das imagens virtuais. É possível perspectivar que os atuais constructos de
afirmação do eu, inseridos na matrix do imaginário midíaco e computacional, tiram do
homem sua possibilidade mais nobre de existir que é a apreensão de sentidos de vida em
conexão com a sua realidade sujeito-mundo concreto e não sujeito-mundo virtual.
Parece ser um efeito da interpretação que a metafísica ocidental fez do
real e que batiza a nossa civilização do ser como ente e, no contexto da contemporaneidade, o
ser como mercadoria, desde a hipertrofia do mercado capitalista.
Os revérberos da espetacularização da imagem seriam cindidos no
deslocamento do sujeito de seu real reforçando a separação ente-ser. Expor-se no fabrico do
virtual é viver a ilusão de um eu encarnado nas celebridades ou, recriado no mundo da
internet com uma identidade de brincadeira que me sirva de manipulação ao meu gozo de
viver outra vida, é o mesmo que me batizar como uma simples mercadoria de troca em
circulação cibernética. A ilusão engendrada pelas tecnologias computacionais e conferidas ou
manipuladas por seus usuários, é a ilusão anti-realidade, a da fuga de um mundo real que se
83
tornou entediante e depressivizador por não permitir as necessidades reais de realização de
ser-no-mundo.
Há uma indiferença pelo real como diz Lasch:
A superexposição a ilusões fabricadas logo destrói seu
poder de representação. A ilusão de realidade se dissolve, não em uma sensação
exacerbada da realidade, como poderíamos esperar, mas em uma notável indiferença
pela realidade, em nosso desejo de ser envolvido pela ilusão representada da realidade.
(L
ASCH, 1983, p. 119)
Sob o escrutínio da indústria da publicidade que incentiva os sujeitos a
fazer da criação do eu a mais alta conquista de sua criatividade, homens e mulheres vivem sob
regras deformadas pelo mercado publicitário tudo que lhes falta e que são a espontaneidade e
a autenticidade. O eu-ator engendra uma identidade com material cedido pela publicidade e
pela cultura de massa, advindo dos espectros culturais da contemporaneidade modelando, sob
o amparo do narcisismo social, a sua personalidade. Todo o comportamento, adstrito ao culto
da aparência, é controlado e, portanto, artificializado.
Na artificialização de sua conduta que serve ao jogo das aparências, o
eu-teatral se distancia de si e sofre de um terrível vazio interior, vítima que é de um eu
fragmentado, sem centro de gravidade. Depressivizado, não parece mais nem reconhecer suas
próprias emoções; não tem segurança em seus sentimentos e não tem como usufruir de seu
universo subjetivo. Como explica Lasch:
Preso em sua autoconsciência, o homem moderno sonha
com a inocência perdida do sentimento espontâneo. Incapaz de exprimir emoções sem
calcular seus efeitos sobre os outros, ele duvida da autenticidade de suas expressões
sobre os outros e, conseqüentemente, extrai pouco conforto das reações da audiência,
quanto a seu próprio desempenho, ainda que aquela afirme estar profundamente
emocionada. (L
ASCH, 1983, p. 125)
Todo esse processo de perda do sentimento espontâneo e, nós
acrescentaríamos, de noção identitária, surge e é reforçado a partir dos anos de 1980 a 1990
84
com a globalização. Ela faz imprimir um novo ritmo ao tempo. Há uma alteração na
percepção cronológica que passa a ser condicionada a uma velocidade vertiginosa,
sobrecarregada de informação e imagens.
O tempo de hoje na globalização é o da produção e o do lucro; a de
identidade ocorre somente no futuro. É na globalização que o mundo virtual se fortalece na
internet e em outros veículos do ciberespaço, o que coloca o fator tempo em curto-circuito.
Aumenta a simultaneidade de eventos; como conseqüência, o espaço desaparece com esta
abrupta mudança, o sentido de espacialidade é confundido: onde estou? A quem pertenço?
Quem me ampara? A que destino devo seguir?
A lógica da sociedade entra em crise. A formação identitária que se
solidificava nos enraizamentos definidos por um tempo e espaço mais precisos, corporificados
nas relações sociais e institucionais mais duradouras e seguras, se volatiliza. O deprimido,
seja o resistente ou o desistente, parece viver o drama da própria identidade que não encontra
fluidez à frente das mudanças rápidas e desenraizadoras do solo social, levando o homem
contemporâneo a uma constante sensação de caminhar num mundo sem gravidade. Inseguro,
mas “livre”, o sujeito em depressão resiste aos modelos vigentes ou desiste de viver por
frustrar-se na irrealização de tantas possibilidades abertas pelo destino social, no entanto, sem
amparo institucional ou pessoal que lhe forneça o mínimo de suporte à frente dos óbices
naturais de sua peregrinação de identificação psicológica. Como melhor compreender, de
forma existencial numa perspectiva heideggeriana e com base nas contribuições de Medard
Boss, o perfil psicodinâmico do deprimido! Vejamos no próximo capítulo.
85
4. DEPRESSÃO: RESISTÊNCIA OU DESISTÊNCIA EXISTENCIAL?
A sociedade contemporânea, exposta à arbitrariedade dos poderes
públicos e despolitizada, liberta de obrigações e reconhecendo os seus indivíduos como crias
de si mesma, avança a um céu sem limites, seduzida pela promessa de uma autonomia plena,
mas, no fundo, sem direção e sem destino. A conquista da aparente liberdade lhe fez perder a
segurança. Como senhor de si, o indivíduo exerce um poder pessoal nunca dantes usufruído.
Todas as noções de bem viver são extraídas de seu desejo e de seu poder pessoal.
No entanto, a consagração do indivíduo sobre a sociedade traz um peso
deveras cruel. Agora, o homem moderno como um novo ícaro, depende unicamente de suas
asas e de senso de direção e escolha para assegurar o seu vôo na vida. Ele é o único
responsável por si, desamparado da família, do social, das instituições públicas, da religião e
da política que o protegiam, ele é o seu condutor, aquele que não escuta o outro, mas, somente
os seus impulsos derivados do seu encantamento por uma “liberdade” oferecida para a
realização dos seus desejos e manutenção contínua de seu gozo pessoal.
Paradoxalmente, o excessivo poder que lhe foi outorgado parece lhe
deixar atônito, senão, perplexo, ante as paisagens subjetivas que se lhe apresentam no seu
trânsito de executar uma multiplicidade de papéis exigidos pelo contexto de sua liberdade
social. Papéis heterogêneos e disformes, sem unidade concreta.
As asas de Ícaro pesam mais que o seu corpo e a gravidade da terra, sua
origem e seu destino, representantes da fisicalidade do seu real, parecem acenar a fatalidade
que lhe aguarda ao preço de qualquer manobra menos hábil e prudente. Este é o traço maior
dos tempos do individualismo: a centralização no particular em detrimento do contexto social,
86
como temos estudado. Particular que sofre quanto mais alto voa, pois, quanto mais distante
fica dos outros, mais em isolamento se perpetua; mais sem referência se firma; sem âncoras
emocionais com os outros é mera bolha de sabão suspensa no ar que, embora reflita por
alguns segundos o brilho do sol e lhe faça sentir-se poderoso, ao menor sopro das dificuldades
que lhe exigem sacrifício pessoal, força interior e vontade forte, se desfaz em estouros de
depressão (pressão interna e externa) e angústia. A sua dissipação sob o açoite de ser-no-
mundo exibe o conteúdo de sua forma desalinhada com a sua percepção de si mesmo: o vazio
de si, o vazio de bolha de sabão que flutua sobranceira no ar e depois se desfaz em partículas
que são absorvidas no chão, concreto da realidade.
O principal efeito colateral, quando o homem percebe que a condução
de sua vida depende unicamente dele, é que não terá a que ou a quem culpar. Recairá somente
sobre ele próprio a culpabilidade, o que o infelicita por dois aspectos:
1. Não podendo realizar sempre o que erigiu para si como usufruto de
sua liberdade na realização do culto ao eu, na busca do corpo
perfeito, na vida de consumidor inveterado e sempre insatisfeito,
vive em frustração.
2. Subjugado pelas inúmeras exigências sociais, alimentado pelos
meios de comunicação de massa – estudados nos capítulos
anteriores – vive uma vida desconectada de seus sentimentos,
deslocado de si.
No narcisismo social se cuida de um eu que é mais uma projeção criada
pelas exterioridades midíacas que um eu subjetivo, autêntico, ancorado na interioridade do ser
que pensa e sente. Vive-se um eu que não é seu, mas um eu engendrado pelas tecnologias de
87
comunicação. A depressão parece ser um sintoma de uma desordem narcísica originária deste
contexto.
Outrora, as neuroses brotavam dos desejos reprimidos, na atualidade
parece ter havido uma reconfiguração das psicopatologias: a depressão parece surgir como
uma doença não do proibido, mas, do que é permitido. A maior pressão que se exerce hoje
sobre o homem é que ele deve escolher seu modo de vida. A ele é dado o dever de esculpir
suas próprias asas e isto parece estar lhe causando vertiginosas responsabilidades e medos. A
liberdade não é mais um veículo de inserção do indivíduo nos costumes de uma sociedade, é
uma categoria de normas nas relações entre sujeito e sociedade. Essa liberdade social
contextualizada seria outro engenho dos mecanismos depressivizadores da
contemporaneidade.
Se ao homem tudo é possível, quem não consegue realizar, sentir-se-á
frustrado ou culpado. À margem dos padrões que delinearam o sujeito vitorioso, alçado ao
céu sem limites pelos próprios méritos de suas asas poderosas, essa liberdade não é aquela de
facilitar o ser ser ele mesmo; de buscar a sua real identidade, mas aquela que confere um agir
por si próprio modelado pelo mito midíaco e da poderosa indústria cultural que sugere que o
indivíduo deve crer nas suas divinas possibilidades e que tudo pode fazer e ser feliz, desde
que siga as regras de consumo impostas pelo Olimpo publicitário. Há uma ênfase na ação
individual e narcísica e quem não conseguir é anormal.
Se o homem não lutar para conseguir a sua auto-realização na frenética
maratona do “ser melhor que todos” é condenado, ontologicamente, ou melhor, o sujeito já se
auto-recrimina em culpa e frustração quando percebe que a cera do seu esforço pessoal é
insuficiente para segurar as asas de sua vitória sobre o mundo. O novo Ícaro, não suportando
o peso de sua liberdade, imerge no mar de sua desilusão. A depressão que vem da pressão
externa – normativa social do contemporâneo e sua liberdade (mecanismos depressivizadores)
88
- impõe uma pressão interna – culpa e frustração – por não conseguir o sujeito se manter em
vôos altaneiros em seu céu sem limites.
A liberdade consentida neste contexto, como mais um mecanismo
depressivizador, desloca o sujeito da condição de ser-no-mundo para um ser-sobre-mundo, ou
seja, fora de contato com sua realidade subjetiva e objetiva.
Partindo do pressuposto da perspectiva heideggeriana da compreensão
do existir humano como “dasein”, é mister que antes desdobremos melhor o bojo do “dasein”
e possamos esclarecer melhor a natureza específica da depressão à luz da compreensão de
Medard Boss (1977) quando se refere à neurose do tédio ou do vazio; trata-se de uma análise
de como as perturbações do existir, que fomentam estados psicopatológicos, revelam como
ocorre a relação do doente consigo mesmo com as outras pessoas e com tudo o que aparece
em seu mundo.
Heidegger se notabiliza pela sua extraordinária contribuição à filosofia
por sua pesquisa original voltada ao esclarecimento do sentido de ser como tal. Conforme o
próprio Heidegger, que transcende a ontologia tradicional em suas investigações sobre o ser,
diz:
(...) em Ser e Tempo, ao contrário do pensamento usual da metafísica, é colocada uma
questão inteiramente diferente. Até agora se questionava o ente com referência a ser
ser. Em Ser e Tempo a pergunta não é mais pelo ente como tal, mas pelo ser como tal,
pelo sentido do ser em geral, pela abertura [opfen barkeit] de ser possível.
(H
EIDEGGER, 2001, p.145, grifo do autor).
Sendo o homem um ente que tem acesso especial a ser, a análise de
Heidegger segue a explicitação prévia do ser do ser humano. Tal ente é chamado por
Heidegger de “dasein”. Ou seja, o ser é um acontecer (“sein”) que ocorre no aí (“da”), lançado
no mundo, existindo no movimento para fora, como ek-sistere.
89
O “da” do “dasein” não é um atributo do “dasein”, o “da” significa que
a condição do “da” do “dasein” é estar aberto ou clareira que possibilita perceber,
compreender, entender e conhecer na totalidade dos significados de tudo o que se lhe
apresenta neste mundo onde ele é projetado: “(...) o que o existir como ‘da-sein’ significa é
um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e
que se lhe fala a partir de sua clareira.”(HEIDEGGER, 2001, p. 33)
Então, “da” do “dasein” é a própria abertura que não implica em um
lugar, mas, numa abertura onde os entes marcam as suas presenças como tais para o ser
humano, conforme diz o filósofo: “(...) o aí (‘da’) em ser e tempo não significa uma definição
de lugar para um ente, mas indica a abertura na qual o ente pode estar presente para o homem,
inclusive ele mesmo para si mesmo. O aí a ser significa o ser-homem.” (Ibidem, p. 146)
O foco da originalidade do pensamento heideggeriano está também na
afirmação de que a essência do “dasein” é a própria existência. Existir no cuidar de si, das
coisas, e na relação com os outros entes humanos. A explicitação da constituição básica do
“dasein” é chamada de “existenciária” ou “existencial”. Dentre as que são citadas pelo
filósofo estão: a temporalidade, a espacialidade (o ser-em), o ser-com-o-outro, a afinação, a
compreensão, o cuidado, a queda, o ser-mortal.
Heidegger faz uma distinção entre a esfera ôntica e a ontológica. A
ôntica diz respeito à questão de ser e de existir do próprio “dasein”; a ontológica se refere à
apresentação das estruturas existenciais do ser do “dasein”.
Ao nosso interesse caberá compreender mais o “dasein” em sua
condição originária ser-no-mundo. Mundo aqui como a totalidade das relações referentes e
significativas, é o “da” (aí) em que o “dasein” faticamente se encontra lançado. O mundo é o
horizonte das possibilidades abertas para o homem. É no mundo onde tudo existe, as coisas, o
sentido e o ser que são expostos. Existência é o manifesto, o que salta às vistas do ente
90
humano no horizonte das possibilidades. Ser-no-mundo é uma condição de intrinsecalidade.
Ser (homem) e mundo não são dois entes que se opõem entre si. Não estão separados. É um
continuum que se desdobra em possibilidades para o homem. Como “dasein”, ser-no-mundo é
clareira, como cita Heidegger:
O ‘dasein’ deve ser visto sempre como ser-no-mundo, como
ocupar-se com coisas e cuidar de outros, como ser-com as pessoas que vêm ao
encontro, nunca como um sujeito existente para si. Além disso, o ‘dasein’ deve ser
visto sempre como um estar dentro da clareira, como estada junto ao que vem ao
encontro, isto é, como desvelamento pra aquilo que vem ao encontro dela. Estado
(‘aufenthalt’) é sempre ao mesmo tempo um relacionar com... o ‘se’ em relacionar-se
e o ‘meu’, em ‘meu dasein’ nunca devem ser compreendidos como um ser referido a
um sujeito ou a uma substância. O ‘se’ deve ser visto como de modo puramente
fenomenal, isto é, assim como eu me relaciono agora. O quem, esgota-se em cada caso
justamente nos modos de relacionamento em que me encontro justamente agora.
(H
EIDEGGER, 2001, p. 182, grifos do autor).
É na cotidianeidade que “dasein” se mostra “em si mesmo e por si
mesmo”, como coloca Heidegger em sua obra Ser e Tempo. É o modo como ele se exibe
encoberto para si mesmo. O existir do “dasein” é fenomenológico como ensina Heidegger
remontando às origens da palavra fenomenologia que vem de “phanesthai” que significa
mostrar-se, emergir da obscuridade para a claridade, vir ao aberto e se exibir. Este seria o
modo fenomenológico de acesso à explicitação das estruturas ontológicas, ou seja, a
contemplação do fenômeno no âmbito onde ele é, anteriormente, aquilo que se oculta.
Nosso estudo se orienta no pensamento de Boss que, por sua vez, se
inspira na análise heideggeriana. Para Boss, a compreensão das patologias deve se originar da
compreensão do existir humano. O foco está no homem, não se trata do entendimento das
doenças em si, mas do ser-doente se concentrando na experiência do “dasein” em sua relação
consigo mesmo e com o mundo. Boss considera que a compreensão do ser-doente só é
possível com a compreensão do ser-sadio:
91
Uma psiquiatria futura não escapará de repensar inicialmente suas
concepções sobre a constituição fundamental do modo-de-ser do homem. Antes de
mais nada isto diz respeito ao modo-de-ser do homem não perturbado, do homem
sadio, pois a existência perturbada é sempre uma forma deficiente do modo-de-ser
sadio e, por isso, segundo sua essência, somente pode ser compreendida a partir do
modo-de-ser sadio. (B
OSS, 1977, p. 9)
Conhecendo os modos de existir humano sob a explicitação do
“dasein”, seria possível uma melhor compreensão da doença. Para Boss, através da noção de
“dasein”, onde a compreensão do existir humano é orientada segundo as características
fundamentais da existência, a doença é entendida como privação das possibilidades
existenciais constitutivas dos modos de ser do existir humano.
No caso específico da depressão é possível que o seu portador viva essa
privação de suas possibilidades do existir, seja como uma resistência ou como uma
desistência aos mecanismos depressivizadores ou, em outras palavras, à realidade ôntica como
se lhe apresenta. Ou melhor, re-existência quando percebe o modo ôntico incompatível com
suas disposições ontológicas e nega as possibilidades de existir que lhe são abertas como um
protesto. De-existência quando nega a si mesmo como ser existente. Vejamos como
Heidegger elucida a questão da privação com um tipo de relação, retendo o que falta, sem
expurgação:
Quando negamos algo de forma que não o excluímos
simplesmente, mas o retemos justamente no sentido de que algo falta, esta negação
chama-se privação. O notável é que toda a profissão médica dos senhores se move no
âmbito de uma negação, no sentido de privação. Pois os senhores lidam com a doença.
O médico pergunta a alguém que o procura: Qual é o problema? O doente não é sadio.
O ser sadio, o estar bem, o encontrar-se, não estão simplesmente ausentes, estão
perturbados. A doença não é simples negação da condição psicossomática. A doença é
um fenômeno de privação. Em toda privação está a co-pertinência essencial, aquilo a
quem falta algo, de que algo foi suprimido. [...] na medida em que os senhores lidam
com a doença, na verdade os senhores lidam com a saúde, no sentido de saúde que
falta e deve ser novamente recuperada. O caráter de privação tampouco é reconhecido
na ciência. [...] assim também o não-estar-são é uma forma privativa do existir. Por
92
isso também não se pode conceber adequadamente a essência do estar doente sem
uma definição suficiente do estar são.” (H
EIDEGGER, 2001, p. 73)
Na condição heideggeriana e admitida por Boss quanto à doença é que
o ser sadio não está ausente, mas perturbado. As características existenciais estão presentes
como possibilidades no estar doente, mas de forma desagregadora. Quando o ser se percebe
coarctado no usufruto de suas possibilidades tende a adoecer.No entanto, é necessário que
segmentemos o rumo que iremos tomar nesta abordagem fenomelógica-existencial da
depressão. Destarte, vejamos a seguir, quais os aspectos mais peculiares desta miniaturização
das reais capacidades de o ser se realizar.
4.1- A depressão como uma possibilidade de privação do sentido de vida do
homem interpretado como “Dasein”.
A liberdade do ser humano lançado ao mundo e na condição de
“dasein” é a realização das infinitas possibilidades de seu existir, no entanto, quando esta
destinação fica obstaculizada, advém a doença. Essa é a nossa afirmação como uma das várias
maneiras de se compreender o fenômeno depressivo, em reduto existencial, com uma análise
mais lata. Desta forma, fundamentamos nosso estudo no universo da psicopatologia à luz da
fenomenologia-existencial. Então, entendamos como Boss analisa a doença: “O que é
realmente prejudicado numa dada doença é a habilidade da pessoa de se engajar num levar
adiante essas potencialidades particulares como comportamento livre diante daquilo que
encontra em seu mundo.” (BOSS, 1977, p. 199)
93
A ênfase é dada na habilidade do homem em poder se realizar e ser
livre, comportando-se com maior liberdade diante do que encontra. Enquanto na saúde a
realização das possibilidades do existir é maior, na doença ocorre uma privação, um
cerceamento desta liberdade. Boss igualmente destaca que o homem saudável se caracteriza
pelo poder dispor, ao mesmo tempo, poder realizar mais livremente o conjunto de
possibilidades que estão enquadradas em três pilares:
1. Como está a liberdade da pessoa para realizar suas possibilidades;
2. Quais possibilidades estão prejudicadas;
3. Em relação a quais aspectos do mundo da pessoa este prejuízo ocorre. (B
OSS,
1977
a, p. 200)
Colocando a depressão como uma possibilidade de privação da
realização do sentido de ser com o que se apresenta ao homem na abertura livre de seu
mundo, mencionamos Boss, que inclui outros existenciais, igualmente importantes, em nossa
perspectiva, para uma maior compreensão do fenômeno depressivo, tais como: a condição da
abertura e os desdobramentos da liberdade existencial, o caráter espaço-temporal do ser-aí, a
afinação, a corporeidade e a coexistência num mundo compartilhado. Qualquer perturbação
em um desses existenciais e se desencadeia o sintoma depressivo ou a própria depressão.
A depressão reforça as limitações de liberdade na realização das
possibilidades concretas e específicas do existir do ser doente que, anteriormente, já vinha
sofrendo estas privações por não encontrar sentido de vida em sua totalidade existencial. Para
Boss, as diferentes patologias, como as físicas e as psíquicas, são caracterizadas como
maneiras de realizar o existir, e cada qual revela alguma perturbação nesta realização.
O esforço do presente estudo é compreender a depressão como um
modo de vida do homem contemporâneo que ora se apresenta como uma resistência aos
apelos do mundo e ora como uma desistência a esses apelos. Este modo de vida, dado ou
94
construído pela ou na sociedade, solapa os anseios humanos, como que estes anseios não mais
encontrassem ou fossem insuficientes perante os mecanismos sociológicos, ou as condições
ônticas do existir humano se mantivessem, no atual contexto da contemporaneidade,
incompatíveis com as suas questões ontológicas. Em ambas as situações do deprimido
desistente ou resistente ocorre uma ignorância quanto a determinados âmbitos do seu existir,
restringindo-se a realizar apenas algumas dimensões de sua vida. Não há suficiente percepção
do que é revelado na cotidianeidade, havendo uma redução na liberdade pessoal para realizar
suas concretas possibilidades de relacionar-se com aquilo que encontra, no que gera um
isolamento social – sintoma freqüente em quadros depressivos.
Para Boss, as experiências de vida da pessoa são constitutivos que
favorecem ou inibem as possibilidades de existir, sejam elas calcadas no macro-social onde
predominam mecanismos depressivizadores, estudados em capítulos anteriores, e, mormente,
no micro-social: a família, mas especificamente a relação com os pais. A habilidade de uma
criança de dispor-se para aproximar-se ou afastar-se das coisas, emocionalmente, ou seja, a
restrição da liberdade e abertura pode advir do modo de relação feito neste contato entre os
pais e a criança. Os pais não seriam agentes facilitadores para o desenvolvimento dos
existenciais e possibilidades próprias da criança, no que afetaria uma inibição ou ignorância
na percepção da criança e em seu modo de relacionar com ela mesma, com as outras pessoas e
com tudo o que se apresenta em seu mundo. Como o próprio Boss coloca:
Um ‘dasein’ humano cuja abertura foi substancialmente
restringida através de algum obstáculo inerente à maturação ou através de erro paterno
na vida precoce. Tal ‘dasein’ pode persistir na idade adulta, sendo incapaz de perceber
ou responder a outros adultos a não ser através de poucos modos restritos que adultos
patogênicos permitiram-lhe durante a infância. Uma pessoa cuja existência tenha sido
tão restringida desde a infância, se ela não tiver a ajuda de um psicoterapeuta seguirá,
por toda a vida, vendo em outros adultos somente aquelas características que
moldaram sua percepção limitada, o que lhe foi permitido na infância. (B
OSS, 1977 ,
pp. 268-269).
95
Não com isto se queira afirmar que os acontecimentos na vida de uma
pessoa sejam matrizes definitivas na eclosão de sintomas depressivos. Como explica Boss
quando faz menção aos neuróticos:
Mas, estritamente falando, nenhum acontecimento na história de
vida de uma pessoa pode ser a ‘causa’ de sintomas neuróticos. Experiências pessoais
apenas originam inibições que impossibilitam o cumprimento pleno de todas as
possíveis relações interpessoais e intramundanas. (B
OSS, 1977, p. 248)
Não necessariamente o deprimido deixou de desenvolver uma relação
consigo mesmo reunindo as próprias possibilidades, permitindo assim que o mundo possa se
apresentar em sua diversidade. O deprimido, possivelmente, está mais restrito quanto à
amplitude da realização de suas próprias possibilidades, em manutenção de um si-mesmo
autônomo e independente.
A depressão é, possivelmente, um sintoma encobridor de um
sentimento de fracasso, que o deprimido percebe e passa a se culpar já que, desamparado das
instituições formadoras de identidades como família, escola, política e religião, encontra
somente em si a razão de não poder dar conta à liberdade irrestrita que o mundo lhe abre. No
entanto, não se trata da liberdade que vem concordante com as suas questões ontológicas, mas
aquelas dadas pela urbanização que traz em seu bojo os mecanismos depressivizadores e que
sustentam onticamente possibilidades que desumanizam o homem quando buscadas e quando
não são atendidas.
Paradoxalmente, essa liberdade depressivizadora leva o homem a se
deprimir não pela restrição de realização de suas possibilidades, mas, pela ampliação dessas
mesmas possibilidades, no entanto, uma ampliação que é geradora de uma incompatibilidade
entre o ontológico e o ôntico. O homem contemporâneo imerge num sentimento de fracasso
96
por perceber a insuficiência de seu poder-ser que não consegue corresponder, em grande
parte, a todas as possibilidades que a excessiva liberdade, conferida pelo contexto social atual,
pode lhe oferecer. A liberdade, à qual referimo-nos, é a que se configura na
contemporaneidade como a de permitir ao sujeito, desvinculado das instituições, acima
mencionadas, vinculadas à esfera pública, viver na busca de sua realização pessoal com a
responsabilidade integral no plano individual. Ao sujeito lhe é dada esta possibilidade de não
mais obedecer ao público, vivendo em sintonia com as suas emoções onde, baseado nestas
condições, passa a usufruir as múltiplas escolhas que lhe são abertas em seu lançamento no
social.
Tanto no desistente quanto no resistente existe a restrição ou a
ampliação depressivizadora da liberdade, implicando em uma de-pressão. Pressão interna,
onde há restrição da liberdade por dificuldades do indivíduo de se relacionar com o mundo e
precipitado pela condição externa originária da ampliação de uma liberdade depressivizadora
como também há uma pressão externa, frente à insuficiência de realização que o indivíduo
percebe diante de infinitas possibilidades. Possibilidades que são dadas pelos processos
sociológicos depressivizadores que, por serem dissonantes com as questões ontológicas,
levam o indivíduo à de-pressão, seja como de-existência ou como re-existência. É possível
que a depressão se torne um modo de existir sob efeito de pressão interna (culpa, sentimento
de fracasso e insuficiência), pressão externa (incompatibilidade entre o ôntico e o ontológico)
num mundo que não precipita sentido de vida originado na autenticidade de o homem ser ele
mesmo.
97
4.2 – Constitutivos existenciais do ser-doente.
Para Cardinalli (2004), Boss se utiliza de quatro existenciais
(corporeidade, espacialidade, temporalidade e afinação) para compreender a doença como
privação da realização das possibilidades humanas. Segundo a autora:
Para esclarecer a natureza das diferentes patologias, o autor
5
considera a privação no âmbito de realização das possibilidades do existir humano que
se apresenta mais prejudicado. Para isso ele procura responder às questões indicadas
anteriormente. Quais possibilidades estão prejudicadas, como está a liberdade para a
sua realização e qual o âmbito de relacionamento com o mundo que está
prioritariamente prejudicado? (C
ARDINALLI, 2004, p. 119)
Procurando nos conduzir pela leitura das patologias que Boss realiza,
citaremos, inicialmente, a questão da corporeidade. Para Boss, a corporeidade não faz menção
à habitual concepção de corpo físico – corpo ontológico. Ele pensa a corporeidade como um
existencial. O ser corpóreo é compreendido como um constituinte do existir humano, sendo
assim, um fundamento do “dasein” que faz as fiações com o mundo, como Heidegger, nos
seminários de Zollikon, menciona:
Em toda a experiência corporal na visão ‘dasein’ analítica, deve-se
partir sempre da constituição fundamental do existir, isto é, o ser-homem como ‘da-
sein’, como o existir – no sentido o corpo é puramente existencial, é o aí que
corporalmente absorve o mudo. A corporeidade é uma condição do ser-no-mundo em
seu existir e qualquer comportamento nesta relação pode afetar o ‘dasein’. (
Heidegger, 2001, p. 34 )
Para Boss e Condrau:
5
A autora se refere a Medard Boss.
98
Qualquer modo de corporeidade faz parte a tal ponto e tão
diretamente do ser-no-mundo, isto é, de sua existência, que qualquer redução toca
sempre e imediatamente este ser-no-mundo e, por isso mesmo, todas as possibilidades
de relação com o mundo. (B
OSS & CONDRAU, 1976, p. 15)
É possível que, à frente dos mecanismos depressivizadores que
artificializam modos de existir distando o homem de si mesmo e dificultando a realização de
ser a existência do deprimido, seja a do resistente ou do desistente, fiquem reduzidas à
dimensão corporal.
Talvez seja mister, excetuando os casos de ordem genética ou
hereditária, contemplar a rede invisível da historicidade e o modo de existir do indivíduo,
prospectando a forma como este se relaciona consigo mesmo e com o mundo na constatação e
compreensão do fenômeno depressivo.
A melancolia, a mania, a psicose maníaco-depressiva
6
e a neurose de
tédio são analisadas por Boss como privação no âmbito da realização da afirmação
existencial. A afinação faz menção ao humor. No deprimido, onde o transtorno é localizado
em seu estado de humor, a afinação, que se caracteriza como um existencial heideggeriano
que dita o sentido ôntico e cotidiano da pessoa, constitui-se como um modo de ser-no-mundo.
O deprimido na resistência ou na desistência vive num protesto e numa
negação das suas possibilidades de existir, respectivamente; é subjugado pelos mecanismos
depressivizadores que onticamente reforçam “o viver a vida do outro”, o drama da
culpabilidade se torna elemento fundante da existência do deprimido. Não conseguindo dar
conta das possibilidades inúmeras engendradas pelas condições ônticas numa sociedade de
estruturas depressivizadoras, o indivíduo se frustra e, não tendo a quem culpar pela maratona
6
Segundo a nova classificação do CID – 10 (Código Internacional de Doenças – edição 10°) a Psicose Maníaco-
depressiva (PMD) é denominada como transtorno afetivo bipolar.
99
que realiza, através da irrestrita permissividade que a liberdade social lhe é dada, o indivíduo
percebe a sua inutilidade e insuficiência.
Cardinalli, citando Boss sobre o existencial da afinação e usando o
termo melancolia que pode ser inferido como depressão, comenta:
Para Boss, a melancolia é, igualmente, um modo de realizar a
afinação existencial, que envolve a redução na abertura perceptiva e na responsividade
para receber o que é encontrado. No entanto, o melancólico, diferentemente do
maníaco, só vê nele mesmo ‘vacuidade, inferioridade, inutilidade e culpabilidade’
(ibidem). Os melancólicos, segundo o autor, negam a si mesmos o desdobrar de suas
próprias possibilidades e permitem uma auto-aniquilação, ao ficarem à mercê das
solicitações, dos desejos e das expectativas dos outros.” (C
ARDINALLI, 2004, p. 125,
grifo do autor)
Vivendo uma vida que não é a sua, voltado para corresponder às
expectativas alheias, no intento de não se distanciar da aprovação dos que o cercam, o
deprimido não desenvolve um modo mais assepsiado de se relacionar consigo mesmo, com os
outros e com o mundo.
No que tange às questões da espacialidade e temporalidade, o
deprimido parece sofrer, igualmente, restrição em sua percepção de liberdade de existir. A
abertura espaço-temporal é reduzida mediante a estreiteza de relação que o deprimido tem
com o mundo e a captura que faz de seus significados.
Como um dos reflexos dos mecanismos depressivizadores é a perda de
continuidade histórica com conseqüente diluição dos sentimentos de pertença geracional e
institucional, o deprimido fica sem uma dimensão temporal mais ampla, onde passado e
futuro se volatilizam. Há apenas presente, um presente sem presente. Para Cardinalli, citando
Boss: [...] Boss não entende a interpretação habitual de que eles estão vivendo no passado, diz
que não estão vivendo no passado como passado [...], mas que eles vivem no presente
relações com as pessoas e as coisas de sua infância. (1979 , p. 213-214 in 2004, p. 123)
100
O deprimido em sua habilidade mais estreita em perceber o que
encontra no mundo, caracteriza o seu modo específico de ser. É como se ele cavasse nos
subterrâneos de sua percepção reduzida temporal-espacial o lugar onde irá se proteger do
mundo, escolhendo a depressão resistente ou desistente como um modo de ser. O seu “dasein”
se confina no espaço e tempo delimitados por sua percepção e habilidade de se relacionar com
o mundo a que ficou reduzido.
A tendência depressiva é reforçada pelas condições ônticas encontradas
no mundo e sofisticadamente produzidas pelos mecanismos depressivizadores. Essa vivência
de suas possibilidades não vem de si, na fidelização de seus anseios ontológicos, mas
manipulada e dada pela sociedade, como coloca Boss, onde se pode entender melancólico
como deprimido:
Melancólicos não descobrem mais ‘que valha a pena’ a sua
existência, porque seus modos de relação com o mundo são próprios deles. [...] a
razão pela qual nada mais funciona é que, para eles, o tempo parou. [...] pois o ser
humano somente pode acontecer, vivendo no seu tempo, se realizar suas
possibilidades. (B
OSS, 1977 , p. 213, grifo do autor)
A culpabilidade aqui referida é a que emerge da transferência do
sentimento de cuidar de si para o outro. Fica evidente o caráter de anonimidade que o
deprimido, neste perfil, sofre, subjugado por pressões advindas de um meio social conduzido
por um processo de desumanização e agenciador dos mecanismos depressivizadores. Como
conseqüência, o deprimido vive entediado e preso a um presente sem sentido, descontinuado
do passado e sem vislumbrar um futuro onde sua temporalidade é reduzida e onde a sua
espacialidade como o homem flutuante e desbussolado marca o sujeito da contemporaneidade
que Boss anteviu sob a denominação patológica de “neurose do tédio ou neurose da falta de
101
sentido”, ou seja, a vida fica enfadada porque a totalidade do existir humano ficou
comprometida em sua abertura e liberdade.
A depressão, sendo uma resistência à vida ou desistência da vida,
parece caracterizar uma obliteração do que se mostra na abertura do existir do seu portador, o
qual se encontra sem poder responder aos apelos do que se apresenta no mundo,assim
passando, apenas, a se submeter às coisas da sociedade e às pessoas somente para se sentir
amado e aceito.
Mas, de nada adiantaria expormos alguns vetores psicossociais que
possivelmente alteram o estado de humor do indivíduo na atualidade se não pudermos
conjecturar o lugar de reflexão e refazimento deste sujeito. A clínica piscológica se nos
apresenta como uma das possibilidades para ajudar o ser humano em seu mal-estar na
contemporaneidade. É a que nos aprofundaremos no próximo capítulo.
102
5. COMPREENDENDO O ACOLHIMENTO DA CLÍNICA PSICOLÓGICA AO
DEPRIMIDO
Nos capítulos anteriores, como foi possível ter percebido, o presente
estudo aponta para a possibilidade de os mecanismos depressivizadores afetarem o estado de
humor dos indivíduos, desfigurando a fisionomia da estética, da ética e das relações sociais,
desdobrando novos modos de subjetivação e novos modelos de sofrimento. Dentre estas
modalidades psicopatológicas se encontra a depressão como um modo de existir em
desistência ou resistência ao mundo que se apresenta ao homem.
O sujeito deprimido sob uma sociedade de-pressão parece sentir-se
sufocado sob o efeito de excessivas cobranças e exigências de toda parte, desde um corpo
perfeito à busca incessante para manter um padrão de vida que lhe dê cidadania de
consumidor bem realizado, onde a felicidade e o sucesso de existir dependem do poder de
consumir e adquirir “status” social através da estatura financeira e econômica que deve
alcançar, chegando até à manutenção enlouquecedora do emprego cada vez mais instável,
onde o avanço da idade é ameaça concreta a sustentar uma empregabilidade razoável num
mercado de trabalho que enaltece a juventude e abomina a experiência da maturidade física.
Estas pressões sociais, advindas do mundo, desencadeiam injunções na
interioridade subjetiva do indivíduo despertando angústia, medo, insegurança, baixa auto-
estima, percepção de fracasso e insuficiência de competências pessoais e culpa, muita culpa,
por não conseguir dar conta das inúmeras possibilidades que as atuais condições ônticas lhe
ofertam no usufruto de uma irrestrita liberdade.
103
Bem, este foi, resumidamente, o traçado que realizamos até o momento
na tentativa de melhor compreender a depressão como um modo de existir diante de uma
sociedade depressivizadora. Agora, investigaremos como este indivíduo pode resgatar a sua
percepção lucidamente em meio ao nevoeiro social com seus raios, trovões e relâmpagos
depressivizantes que, incessantemente, lançam tempestades desumanizadoras sobre a
subjetividade contemporânea.
Iremos tentar compreender o humano como uma singularização da
história, do tempo, do espaço, da cultura e dos laços transgeracionais e geracionais que
esculpem sua subjetividade desde o seu nascimento. Ou seja, todas as influências que a
ambiência social pode compor à subjetividade, mas, com uma interpretação peculiar que
delineia o território particular do sujeito sob as bordas do meio sociológico no qual está
inserido. Destarte, este indivíduo é a percepção singular da história que ocorre e o refaz a cada
instante; uma biografia trans-histórica, ao mesmo tempo em que é uma vida subjetiva que
interpreta o mundo objetivo do tempo e espaço em que circula. Este é um feito que, na nossa
perspectiva, possibilitaria um melhor acolhimento do sujeito deprimido na esfera clínica, onde
se pudesse resgatar a sua unidade existencial. Refiro-me à unidade existencial como sendo o
lugar de re-criação de sentido de vida, advindo do conhecimento de seu existir. É um lugar
incomunicável, mas de onde brotam o falar criativo e o gosto da transformação. É o campo do
não-dito que vem da angústia, angústia ontológica.
Gilberto Safra, tentando descrever este conhecimento do existir,
destaca:
Pacientes de diferentes idades desvelam, frente a seu analista, um
conhecimento a respeito de si que parece brotar da angústia mesma. Ela, a angústia,
revela as dimensões do sofrimento e da fragilidade humana. Não é um conhecimento
que vem de uma aprendizagem ou pedagogia, mas sim do próprio fato de o ser
humano ser lançado em meio à existência na busca de condições que possibilitem seu
alojamento, mesmo que precário, no mundo com os outros. (S
AFRA, 2004, p. 24).
104
Este conhecimento de si está no que chamamos de unidade existencial
como sendo um complexo que revive também os afetos experimentados pelo homem desde o
seu nascimento e em tudo da sua história. Sobre unidade existencial não nos referimos a uma
instância de uno, de concretude; algo definido ou fechado; com uma fisicalidade própria.
Unidade existencial como uma congregação de experiências adquiridas na história do
indivíduo, ao mesmo tempo, uma história de vir-a-ser, sempre auto-referente no contato com
o meio social. É uma perspectiva aberta que fala de um âmbito no ser que toca e é tocado pelo
mundo. É o campo de afetabilidade da relação homem e mundo; uma zona de alta
plasticidade; uma espécie de membrana do eu, porosa e permeável onde a subjetividade faz a
sua homeostasia com os elementos trocados com a cultura. A unidade existencial é uma
história com historicidade; trata-se de um sistema aberto, com uma topologia fluida, embora
com uma coluna vertebral identitária que preserva sua cartilagem ou sua pele que é sempre
mutante, o que constitui o ser como ser-no-mundo.
O homem estaria no entre de sua unidade existencial e o mundo que o
cerca. Ou seja, apropriando-se do que circula em seus sentimentos, daquilo que diz respeito ao
conhecimento de si. Compete ao homem ser o intérprete de sua unidade existencial e o
mundo, conjugando o verbo existir da forma mais harmônica possível. A fala criativa é
alethéia
7
: é um dizer que permite o não-dito ser parcialmente iluminado; a fala criativa brota
da unidade existencial como uma expressão do sentir autêntico; o homem se encontra na
penumbra, entre o dito e o não-dito; a palavra é uma abertura para o não-dito, mas, que não
consegue apreender totalmente o viver humano. Safra, com propriedade, menciona:
7
Para os gregos, alethéia se refere à verdade que enquanto s e mostra também se oculta.
105
O homem se encontra na fragilidade do entre: entre o dito e o
indizível. Entre o desvelar e o ocultar, entre o singular e o múltiplo, entre o encontro e
a solidão, entre o claro e o escuro, entre o finito e o infinito, entre o viver e morrer.
[...] refiro-me ao dizer como a possibilidade de o ser humano, por meio da fala,
desvelar quem é e o que vive. O dizer, ao revelar, também vela. O viver humano não
pode ser plenamente dito; entre o dizer e o indizível emerge o falar poético. No fluir
da situação clínica testemunha-se o aparecimento da possibilidade desse falar poético,
em que a palavra não se fecha, mas se abre para o não-dito. (S
AFRA, 2004, p. 24).
Preferimos o termo “falar criativo” porque nos sugere melhor a fala que
cria e re-cria o “ethos”
8
e comunica melhor desse “ethos” humano o sentido de morada
legítima que doa poder ao indivíduo de re-visar a si e de re-ver o mundo, criativamente. Ou
seja, transformando-se, enquanto ser-no-mundo, mas, em sintonia com o sentido de ser. O
aniquilamento do “ethos” tira do sujeito seu lugar no mundo, perturba sua identidade e o alija
a uma dura alienação, ocasionando instabilidade de humor de ordem existencial no âmbito
ontológico onde a depressão é possível sintoma deste sujeito sem rosto (referimo-nos ao
sujeito sem rosto como aquele que perdeu sua noção de identidade), subjugado pelos
mecanismos depressivizadores. Safra, inteligentemente, percebe esta questão ao colocar:
O percurso do indivíduo por meio das condições necessárias ao acontecer humano
permite-lhe apropriar-se de uma ética. [...] decorre que a fragmentação do “ethos-
morada” leva a um tipo de sofrimento que, apesar de alcançar o registro psíquico, não
tem sua origem no psíquico. São os sofrimentos que acontecem em registro
ontológico! (S
AFRA, 2004, p.26 e 27)
Mais uma vez é importante lembrar que a depressão aqui estudada não
é a de caráter reativo, advinda de uma perda afetiva ou por uma situação financeira de
significativo prejuízo, por exemplo. É a depressão que, como coloca Safra acima, tem seu
registro no psíquico com alterações neuroquímicas, mas, sua origem é no ontológico ao
mesmo tempo, como foi estudado nos capítulos anteriores sobre os mecanismos
depressivizadores que não são causas, mas podem ser fatores de precipitação por não
106
oferecerem condições ônticas para que se articule o ontológico com o teleológico (aqui
referimo-nos a teleológico a busca de sentido de vida como vir-a-ser); ou outros fatores de
desencadeamento quando existem predisposições, no indivíduo, de ordem genética.
Sugerimos a palavra clinética, relevando a função da clínica através do
cuidado com o outro como o espaço de refletir para a pessoa o seu “ethos”. Igualmente, não
nos referimos ao cuidado clínico como um inclinar-se ao outro, apenas. Clinética como
percepção do social na clínica, levando o indivíduo a pensar sobre sua peregrinação na
sociedade e, como na contemporaneidade, ele reflete o atravessamento dos mecanismos
depressivizadores pelo arco de sua subjetividade. A clinética busca visualizar quais os pontos
intersecutórios da cultura e a sua identidade que possivelmente engendram novos modos de
subjetivação com correspondentes ressonâncias no estado de humor. A clinética busca
resgatar o “ethos” fraturado do indivíduo pelos mecanismos depressivizadores. Re-habitar seu
“ethos” é voltar à sua unidade existencial de onde o indivíduo pode se re-visar e re-ver o
mundo, sua relação consigo e com os outros, na sua apreensão dos significados circulantes
neste trânsito. Visitando e conhecendo o seu “ethos”, o sujeito pode lançar-se no batismo
existencial; dar nascimento a si; descobrir seu próprio encanto, seu mistério e sua beleza.
Difere da clínica como espaço de instrumentalização técnica e se aplica, no nosso entender,
melhor, à questão da ética.
Com suficiente clareza coloca Safra:
[...] nesta perspectiva, cai por terra toda concepção que busca definir a situação clínica
a partir de procedimentos técnicos. A técnica, assim compreendida, joga o paciente
em direção ao conceituável, roubando-lhe o indizível e os mistérios de seu ser. Este é
o homem-coisa e não mais ser, não mais presença. (S
AFRA, 2004, p. 30)
8
Etimologicamente “ethos” tem dois sentidos: como εθος, práxis, costume e ηθος, como morada e pátria.
107
Na atualidade, os psicoterapeutas precisam se habilitar na percepção da
questão ético-ontológica dos seus pacientes. Os revérberos de um “ethos” humano
fragmentado pelos mecanismos depressivizadores se apresentam, indiscutivelmente, no
âmbito psíquico, mas o seu nascimento advém do ontológico. A falta de percepção de sua
disposição ontológica de ser si mesmo, ou seja, viver autenticamente, buscando realizar as
possibilidades de realização de ser que o mundo oferece, gera uma instância de flutuação do
eu, com respectivo atordoamento em sua identidade, o que o deixa vulnerável para viver
virtualmente. A distância do real, desligando o homem do seu sentido ontológico,
possivelmente pode desencadear alterações em seu estado de humor. Assim sendo, o
indivíduo passa a viver uma realidade que não é a sua, apenas perpetrada pelos mecanismos
depressivizadores. O homem contemporâneo perdeu seu lugar no mundo e sofre o simulacro
do viver, na criação de falsas realidades (BAUDRILLARD, 1981) que irrompem no
desenraizamento do “ethos” humano. A depressão, possivelmente, não dita só uma
perturbação procedente da dinâmica psíquica, vem de uma constituição do si humano em
desalinho quando o sujeito não faz a conexão do eu com a realidade. Antes, inaugura hiper-
realidades. O conceito de hiper-realidades fala da criação de falsas realidades ou simulacros,
que passam a determinar e organizar o existir humano e que no nosso entendimento são
financiados pelos mecanismos depressivizadores. Epstein, comentando sobre hiper-realidades,
afirma:
A inteira vida da sociedade torna-se uma auto-apresentação vazia.
Nem partidos políticos ou empresas são realmente criados, mas sim conceitos de
partidos e empresas. Incidentalmente, a área mais real, a econômica, é até mais
simulada do que todas as outras. (E
PSTEIN, 1995, p. 196)
A realidade é levada a tamanha abstração que o estatuto originário
humano é refratado. A concentração das realidades engendradas por conceitos que tentam
108
falar destas realidades gera uma desconexão da própria realidade apresentada pela abstração.
Igualmente, o foco passa a ser o da realidade carbono, onde a pintura vale mais que a
paisagem que tenta representar. Ou seja, ocorre uma desassociação com o viver humano,
destituído de sentidos e sem o vigor necessário que substancializa a experiência com a
realidade. A vida vira uma encenação da própria vida, conduzindo o indivíduo a viver um
vazio interior, porque se tornou um ser distante de seu próprio vivido.
A proliferação das hiper-realidades gera eus-simulacros, textos virtuais
de um real substituído pelo vácuo da abstração ébria de emotividade. A máscara passa a ser o
novo rosto social, onde o mistério, o sagrado, pertencentes ao real, são trocados pela
objetificação do “ethos” humano, coisificado pela técnica que oblitera a ética.
O deprimido é alguém que não se reconhece mais em sua real
fisionomia, asfixiada por máscaras dadas pelas atuais condições ônticas do existir, solapadas
por mecanismos depressivizadores. É a crise de identidade, de encontrar o rosto em si,
desfigurado pelas imagens desconexas que se desenham no espelho do social como os
reflexos-simulacros de uma imagem real perdida. São pessoas que muitas vezes vivem uma
agonia sem sentido; pois a agonia que legitima o sentido do sofrimento é aquela que fala da
ordem do “ethos” humano. Mas, se este “ethos” está em desorganização, que construção
propulsora de desenvolvimento pessoal pode emergir? Para que o psicoterapeuta possa
transcender as hiper-realidades trazidas por seus pacientes, é mister que avance além das
hiper-realidades teóricas da técnica e ir além, ou seja, ao ouvido do ontológico. Não que com
isso, queira se afirmar a obsolência da técnica. De forma alguma, mas é necessário não se
limitar à técnica e buscar a ética; a ética é a linfa pura que corre debaixo da rispidez do atual
solo ôntico da sociedade. Ou seja, é preciso visitar as questões fundamentais do destino
humano. Realizar, clinicamente, a articulação entre o ontológico e o teleológico, sensível ao
109
inaudível e ao invisível que a técnica não captura; é preciso ir ao falar criativo do paciente
com a estética da poética. Diz Heidegger:
Poetas são mortais que seguem os vestígios dos deuses fugitivos,
permanecem nesses vestígios e, assim, retraçam o curso do retorno para seus irmãos
mortais... Ser poeta em um tempo destituído significa: cantando, inspirar-se no
vestígio dos deuses fugitivos. Eis porque, na noite do mundo, o poeta canta o sagrado.
(H
EIDEGGER, 1971, p. 94)
O perfil de deprimido que estamos desenhando - que não abrange o
universo complexo das particularidades depressivas de cada pessoa em depressão - vive a
agonia do seu não existir. É como se sua fala criativa estivesse presa na garganta de sua alma
ou de suas questões ontológicas.
O clínico precisa se debruçar sobre este corpo (o soma ontológico)
inerte do paciente que dorme em seu sono sem sonhos. O clínico que abre seus ouvidos ao
ontológico do paciente, respeitando a sua fala, se aproxima mais de sua unidade existencial.
Permite reflexões ruptoras das hiper-realidades e prepara melhor o solo para o mergulho no
real que emerge na relação terapêutica, calcada na abertura do indivíduo como “dasein”,
facultando, assim, a busca pelo originário. A clínica possibilitaria, então, a reflexão de certas
fraturas que o deprimido vive em seu “ethos”, no mundo contemporâneo. Esta clínica é a do
cuidado e é a mesma que vem proporcionar a reflexão do indivíduo quanto ao seu trânsito no
social e como pode lhe ajudar no manejo perceptual de sua realidade.
Este ato fundante do eu vem, frente a si, reverberar sua real ontologia,
quando surge no momento de sua fala criativa. No deprimido, parece não haver a liberação da
fala criativa, mas uma possível produção de palavras que não dá conta do não-dito de suas
experiências com o mundo. Ocorre uma certa dificuldade de simbolizar o seu vivido, no que
implica em falta de sentido para o seu existir.
110
A fala criativa arrasta consigo o sentido de viver e recaptura a pessoa
para o mundo de modo mais congruente e para um viver mais autêntico, sem tanta subjugação
pelos mecanismos depressivizadores que engendram as hiper-realidades.
A fala criativa, então, brota da ruptura do sujeito com um mundo hiper-
realizado e batiza-o em sua unidade existencial como abertura de si, para a realização de
possibilidades mais próximas ao seu real ontológico. Em outras palavras, o sujeito fica mais
próximo de seus sentimentos, interpreta-os melhor. Nesta liberdade verdadeira de ser, as
questões originárias saltam às vistas do indivíduo, diminuindo as pressões internas e
preparando-o melhor para suportar as pressões externas (mecanismos depressivizadores).
Esta fala criativa advém do fato de como a pessoa passaria a
compreender a sua relação consigo mesma, com os outros e com o mundo. O deprimido
parece ser a pessoa que deixou de realizar melhor esta compreensão, distanciando-se da
possibilidade de ser o que é, e o que só acontece quando o singular em si é resgatado perante
o outro e o mundo numa relação que permita ser. O deprimido, na configuração que
esboçamos, como a pessoa que não tem a fala criativa emergente e que deixou de realizar
melhor essa compreensão de sua relação consigo mesmo e com o mundo, vive a agonia de seu
não existir. O não existir é o drama do nada e o nada é o rosto do não-ser, que ameaça o
deprimido com a possibilidade de não vir-a-ser com a ausência de sentido. A depressão é um
meio de escapar desse nada e, como um ponto de refúgio para a agonia de não conseguir, está
existindo congruentemente com os seus sentimentos. Este, possivelmente, seria o
comportamento do deprimido de-existente (desistente), enquanto que, o deprimido re-
existente (resistente) se abraçaria desesperadamente ao nada em conduta niilista, protestando
contra os mecanismos depressivizadores, mas, paradoxalmente, vivendo-os como meio de
autopunição por não encontrar sentido no mundo.
111
A percepção do nada traça a geografia do não-ser e lança o sujeito na
angústia e na culpa. Estar no não-ser é situar-se distante do real ontológico, vivendo a vida
que não é sua, mas aquela, virtualizada pelos mecanismos depressivizadores, dentre estes, os
engenhos cibernéticos que fomentam espaços para invenção de eus falsos, orquestrados pelas
tecnologias de comunicação ou a mídia que dita novos modos de subjetivação, desviando a
atenção do indivíduo de seu foco existencial para viver no âmbito do simulacro em fascínio
pelas hiper-realidades.
O não-ser traz o vazio existencial, funda o tédio e inaugura o
desapontamento com o seu existir por faltar sintonia com as possibilidades que lhe são abertas
e, ao mesmo tempo, obliteradas em sua excursão como ser-no-mundo. A clínica proporciona
o espelhamento de como o deprimido está existindo, enquanto abre-lhe a percepção sobre seu
envolvimento com os mecanismos depressivizantes. A emersão da condição do ser está no
não-ser através da liberação de sua fala criativa permitindo sua peregrinação mais legítima
como um buscador de sentidos. Sentidos de viver que brotem de sua captura como “dasein”
em sua unidade existencial. De lá, na abertura de si, enraizados em seu “ethos”, os sentidos
são refrigerados e passam a aromatizar a vida de forma cri-ativa. Criar é dinamizar, dar
movimento, poder de re-criação que instaura o humor com a lapidação da cri-ação. Criar que
flui como uma cascata de renovação e de ânimo de viver. O sentido vem do “ethos” re-
organizado pela re-visão que a clinética pode facultar e voltar a partejar no deprimido a
esperança e a motivação. Cri-ação é re-inventar a vida, tirando o deprimido de sua inércia
existencial e lançando-o como um buscador de sentidos, em vir-a-ser; em movimento, a vida
se refaz e o singular em si é devolvido. A clínica deve funcionar como a oficina dos “ethos”
humanos fraturados por mecanismos de depressivização, recalcificando sua ossatura para um
viver mais fortalecido à frente de uma sociedade de-pressão. O homem no mundo
contemporâneo é contaminado pelas idéias tecnológicas, tendo como escopo o domínio da
112
existência ou até mesmo do sentido de si. Para sair do não-ser e re-habitar o “ethos” em
organização no processo terapêutico é preciso transcender o domínio verbal e tecnológico.
O singular em si pode ser reconsiderado através da hospitalidade do
terapeuta. O clínico, em co-existência com o paciente, deve resgatar para este sua cri-
atividade originária, permitindo-lhe o contato consigo mesmo. Emergindo da anonimidade e
do mimetismo comportamental, fabricados pelos mecanismos depressivizadores como
modelos de se chegar à realização pessoal, o paciente deve agir autenticamente na realização
de ser, preenchendo sua vida de sentidos novos.
O psicoterapeuta seria o “outro” para o espelhamento da realização
identitária que ao deprimido está restringida em sua percepção de ser-no-mundo em
subjugação às hiper-realidades instituídas pelos agentes de depressivização. O clínico, numa
perspectiva fenomenológica-existencial, tira o deprimido de sua condição de isolamento no
mundo com os outros porque está distante de si para remetê-lo a uma possibilidade de,
estando junto a si, em sintonia com o seu singular, em cri-ação existencial, perceber-se como
ser-com os outros, outros humanos mediante o humano descoberto em si mesmo. O homem
que está em cri-ação vive na abertura de si e sua projeção no mundo é de ordem constitutiva
onde o singular se presentifica no plural. A criatividade originária no deprimido está
possivelmente obliterada e ao clínico compete identificar como o seu singular se posiciona
melhor na sua relação consigo e com o mundo, ampliando sua liberdade de escolhas
consoantes aos seus sentimentos. Na situação clínica, a co-existência com o deprimido é
fundamental para que, compartilhando de suas dores e protestos, possam as grandes questões
ser interpretadas pelo paciente de forma mais bem elaborada. O deprimido, possivelmente, é
aquele que esquece seu “ethos” e que anseia apelativamente por viver uma liberdade que seja
a originária e não a que é dada pelo meio social que reforça o ego no culto ao eu, através de
mecanismos depressivizadores como o individualismo, o narcisismo e a prática hedonista.
113
A depressão é uma agonia da falta da fala criativa onde a situação
clínica pode recapturar esta fala quando o psicoterapeuta espelha para o paciente a
possibilidade de alcançar o registro simbólico de suas experiências e que, assim realizando,
estará tendo maior domínio de sua unidade existencial e dos aspectos paradoxais de seu ser. A
clínica é o espaço e o tempo sem fim que re-visa o ser humano no seu trânsito no mundo e o
faz como ser de cri-ação; o re-inventor de sua vida no fabrico de novos sentidos. Como coloca
Safra (2004, p. 62) com muita propriedade: “O homem tem como sua obra fundamental o
sentido de sua própria existência”.
No fundo, cada ser humano é movido por uma questão primordial. O
sentido de sua vida está no movimento que o homem faz para responder a esta fundamental
questão. Esta seria a função clínica: dar visibilidade a esta questão que não é uma pergunta,
mas deve ser elaborada como tal. A questão fundamental é o sentido maior que parteja todos
os outros sentidos. Articular a questão originária que está no âmbito do ontológico com a
pesquisa existencial que o homem deve realizar em sua peregrinação é se colocar em trânsito
para a emersão de novos sentidos para a sua vida. Origem e destino precisam dialogar como
costureiros do longo tecido de sentido de vidas, aquele que cobre a nudez do vazio interior e
devolve a elegância do existir.
Esta teleologia (vir-a-ser) muitas vezes é orientada pela teologia que
marca o seu tempo existencial com compreensão fundante de uma interpretação mais voltada
ao inexplicável. Aceitar o inevitável e superar com fé as adversidades da vida ajuda na
articulação do ontológico com o teleológico. O deprimido vive na inarticulação destes pólos.
Nos subterrâneos destes territórios agoniza em sua escuridão por não ter razão de viver.
A clínica é uma escultura que deve brotar do mármore bruto da questão
fundamental, para o homem que vive na subjugação dos mecanismos depressivizadores e,
portanto, distante de si mesmo, como um alienado às suas hiper-realidades.
114
Uma vez iluminada a ontologia do paciente e entrando em processo de
construção com as fiações, formadas com os seus anseios teleológicos, é possível cartografar
o singular em si do paciente e se sintonizar, psicoterapeuticamente, com o que Safra chama de
idioma pessoal.
Vejamos como o mesmo autor se expressa em seu livro (SAFRA, 2004,
p. 68):
Tendo como referência fundamental a ontologia que a pessoa
estabelece e seus anseios teleológicos, temos acesso a sua semântica existencial. Suas
palavras, seus gestos, suas metáforas, as suas organizações de espaço e de tempo,
revelam-se em seus significados peculiares, colocando-nos em meio a seu idioma
pessoal. Isso nos permite compreendê-la em seu modo de ser e conversar com ela no
registro semântico de seu idioma pessoal.
Permitir este “status” de relação com o paciente, em especial com o
deprimido, é facultar a possibilidade de colocá-lo em devir.
Compreendendo as fraturas de seu “ethos” macerado pelos
equipamentos depressivizadores que permeiam o social, o deprimido pode ser melhor
acolhido na possibilidade de o mesmo re-ver sua unidade existencial e se relançar no mundo
com poder de articulação entre o seu ontológico e o seu teleológico. Cada ser é singular e a
sua situação originária é que o batiza como tal; re-ver as grades que sustentam o seu “ethos” é
repô-lo em devir; é voltar a perspectivar as suas possibilidades de existir com uma liberdade
que dialoga com a sua questão fundamental. Todo ser humano nasce com esta questão que
passa a ser encoberta quando o homem existe no mundo, mormente em um mundo cujas
condições ônticas estão atravessadas por esquemas achatadores do eu, ou seja, situações de
vida que reforçam o esquecimento do singular em si. Essa pode ser uma das possibilidades de
compreender a depressão, em suas múltiplas dimensões, como um sintoma da desistência ou
resistência do viver humano à frente de uma sociedade depressivizadora. Referimo-nos à
115
sociedade depressivizadora não como um todo, como temos deixado claro neste estudo.
Apenas nomeamos depressivizador os mecanismos que em si são conquistas civilizatórias,
mas que, quando passam a ser superlativas na vida do homem, colocando-o a serviço destes
mecanismos e não os mecanismos a seu serviço é que, no nosso entendimento, estes agentes
do progresso passam a ter efeitos deletérios na identidade subjetiva do indivíduo, podendo a
depressão nestas situações ser um sintoma de tal evento assimétrico entre o social e a
subjetividade.
Na clínica, o encontro originário é possível de ser resgatado e o “ethos”
resplandecido, se o deprimido voltar a ser habitante de seu mundo. Sabendo articular os
processos civilizatórios com o seu bem-estar subjetivo o sujeito emerge de sua escuridão
interior.
A luz que reverbera sobre suas costas, ou melhor, de sua posição de
desistência ou resistência diante do mundo, deve tirá-lo da alienação da sombra (mecanismos
depressivizadores) e despertá-lo para o mundo da existência que acontece fora da caverna
9
de
sua depressão. O deprimido vive na escuridão de um mundo sem “ethos”, com o olhar fixo
nas suas hiper-realidades (sombras na parede) alienado em si, distante de seu singular,
vivendo um falso eu, contemplado como a única realidade, mas que não passa da projeção de
sua unidade existencial imersa em si e súplice no seu silêncio doloroso a ser redescoberto. É
na clinica que se pode estabelecer a articulação ontologia/teleologia. Ou seja, na situação
clínica se deve permitir que a fala criativa, que é o dizer do não-dito, aconteça; e como a
proximidade do distante, onde o alto se debruça sobre o baixo sem perder sua imponente
estatura, é que o deprimido deve se levantar, desassombrado com as hiper-realidades e ser seu
devir, como peregrino de sentidos, sair da escuridão e se dirigir a de seu ser como clareira,
9
Analogia ao mito da caverna no livro “A República” de Platão.
116
onde mora sua questão fundamental e se movimentar para o lado de fora de seu esconderijo
existencial que é a depressão.
O deprimido resistente, então, seria aquele que tem uma postura de
protesto contra os mecanismos depressivizadores e se castiga por isto, permanecendo
acorrentado em seu sofrimento auto-punitivo e sem se permitir ir à luz da existência aceitando
suas condições ônticas na busca articulativa de suas questões ontológicas que são
pressupostos existenciais de inauguração de sua teleologia. Ou seja, origem e destino
articulados como ser-no-mundo é abertura de possibilidades para um viver multiplicativo de
sentidos. Assim sendo, a proposta do resistente passa a ser de um protesto estéril porque
inoperaliza o seu existir, o seu viver num mundo como ele é, e não como se gostaria que fosse
onde se protesta, culpando sua realidade depressivizadora como motivo de sua infelicidade.
Enquanto o deprimido desistente seria aquele que tem postura de negação da vida, nega o
mundo (o sol da existência que brilha do lado de fora da caverna) e nega a si mesmo, preso a
sentimentos de fracasso, insuficiência pessoal, culpa e frustração, trata-se de uma negação
ingênua. Em ambos os casos não acontece a sintonia da origem com o destino que se abre no
horizonte de suas possibilidades.
A depressão é uma caverna onde o homem procura se proteger de um
mundo caótico, sem saber que o caótico é a própria fuga. A saída para o mundo é o seu
relançamento ao teleológico mediante o processual descobrimento de seu ontológico. É dar
luz a si e assumir sua liberdade de existir sem as correntes do medo, do desespero, do
desânimo e da desesperança.
A função da clínica é a de possibilitar um espaço de reflexão para o
deprimido onde ele possa dar conta do laço social que o sustenta, dando, ao mesmo tempo,
visibilidade aos mecanismos depressivizadores que atravessam os jogos sociais e como é
117
possível construir uma nova experiência cultural mediante a re-invenção criativa de seu
modo-de-ser no mundo, enquanto descobre novos caminhos para a construção de seu “ethos”.
118
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi comentado anteriormente, a proposta do
meu trabalho foi feita a partir de uma compreensão fenomenológica existencial e psicossocial
da depressão na contemporaneidade.
Lembro, aqui, que não tive como objetivo confrontar outras maneiras de
compreender a depressão.
O meu trabalho como psicólogo clínico, apoiando-me nos
conhecimentos que adquiri juntamente com uma formação tecnicamente rigorosa em sintonia
com as epistemologias psicológicas e psiquiátricas clássicas, mostrou-se insuficiente.Não que
estes conhecimentos não tenham me ajudado a melhor compreender os meus pacientes em
depressão. Inclusive, não desconheço a importância das neurociências e da psicofarmacologia
no tratamento do deprimido. Aliás, recorro sistematicamente a estas fontes de saber como
referências para a minha conduta terapêutica, ao mesmo tempo, quando necessário, chego a
encaminhar meus pacientes aos profissionais médicos especializados para uma avaliação
clínica psiquiátrica que justifique o uso de medicação antidepressiva.
Destarte, é inegável para mim o valor que estas ferramentas teóricas e
farmacológicas representam no meu trabalho clínico-psicológico. No entanto, aprofundando-
me na problemática depressiva dos meus pacientes, passei a perceber outros aspectos que
atravessavam as suas subjetividades e que os atuais dispositivos psicoterapêuticos e
psicofarmacológicos não eram suficientes para a total remissão dos seus sintomas
depressivos.
Portanto, contatando outra área de saber, como foi a Fenomenologia
Existencial, pude identificar conexões que responderam melhor às minhas questões. Partindo
deste ponto, mergulhei no pensamento de Heidegger com a sua analítica existencial que me
119
fez refletir sobre o homem como ser-no-mundo e como eu poderia melhor acolher este sujeito
deprimido como um ente humano, subjugado por uma sociedade tecnicizada. Pude meditar
sobre o risco da técnica moderna que desumaniza o indivíduo e o remete a uma vida
destituída de significados, pois se distancia de suas questões fundamentais. Estudando Boss,
construí uma compreensão mais elástica da Psicopatologia, passando a interpretá-la como
uma privação da liberdade de viver do ser humano como alguém perdido num mundo ligado à
robotização dos indivíduos e do embotamento dos valores morais, éticos e religiosos postos a
serviço da técnica. Com este mesmo autor, igualmente, percebi melhor como a depressão
pode ser entendida como um sintoma de crise de sentido da vida, quando apresenta seu
conceito de Neurose de Tédio. Com Lipovetsky, aprofundei-me nos aspectos sócio-histórico-
culturais visualizando a ossatura social hodierna e como os atuais paradigmas afetam as
singularidades subjetivas. Através dos conceitos desenvolvidos por este autor como
individualismo contemporâneo, processo de personalização e depressividade generalizada,
consegui me aproximar mais das questões fundamentais subjazidas no comportamento
depressivo dos meus pacientes.
Desta forma, encontrei respostas mais adequadas para as minhas
observações e que têm se refletido positivamente no meu cuidado clínico para com os meus
pacientes. Cuidado clínico esse que se aprimorou, ou melhor, humanizou-se, pois não mais se
limitaria à técnica e nem mesmo às teorias mais tradicionalistas do acolhimento psicológico.
Adentrei a dimensão existencial e psicossocial dos meus pacientes e passei a compreendê-los
melhor.
Ao mesmo tempo em que a pesquisa teórica que fui construindo ia se
refinando, pude aos poucos confirmar a sua aproximação com a realidade dos meus pacientes
deprimidos em minha clínica, e ainda mais, a melhora que passaram a ter no espelhamento
que eu realizava quanto às suas questões fundamentais.
120
Detendo-me mais especialmente no estudo e na escuta clínica da
depressão como ela se mostrava em meus pacientes identifiquei, também, que se
apresentaram, até o presente momento da realização desta pesquisa, duas formas de responder
aos aspectos psicossociais que cruzavam seu modo de existir. Um, era de resistência a estes
mecanismos aos quais chamei de depressivizadores. O sujeito resistente se caracterizava
como um ato de protesto à vida, vivendo em auto-punição, não obstante estéril porque o
paralisava diante de outras possibilidades de seu existir. A outra forma seria a de desistência
quando passava a negar a vida, negando a si mesmo, vivendo sentimentos de fracasso,
insuficiência pessoal, culpa e frustração.
Por fim, a odisséia teórica com respaldo em minha experiência clínica
me fez refletir muito sobre os atuais modelos de tratamento da clínica da depressão. Inferi,
então, que é necessário revisar as modalidades terapêuticas vigentes no escopo de ampliá-las à
dimensão existencial do indivíduo, compreendendo o contexto psicossocial em que vive o
deprimido.
Penso que somente incluindo um olhar mais aberto, que não somente se
limite à técnica ou às maneiras tradicionais de se cuidar do deprimido, mas que se estenda ao
mundo em que ele vive, concorra para se entender como ele vive este mundo e como se
relaciona consigo mesmo. Ou seja, cuidando de sua questão existencial é que poderemos
melhor ajudar o homem contemporâneo que agoniza em seu vazio de sentidos de vida e onde
a depressão passa a ser um sintoma de crise existencial.
121
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