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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Luciano Pereira
Depressão:
mobilização e sofrimento social
São Paulo
2010
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1
Luciano Pereira
Depressão:
mobilização e sofrimento social
Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação
em Filosofia do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes.
São Paulo
2010
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2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
3
Aprovada em:
Banca examinadora
Orientador: Prof. Dr. _________________ Instituição: ________________________
Assinatura: _________________________
Prof(a). Dr(a). ______________________ Instituição: _________________________
Assinatura: _________________________
Prof(a). Dr(a). ______________________ Instituição: _________________________
Assinatura: _________________________
Prof(a). Dr(a). ______________________ Instituição: _________________________
Assinatura: _________________________
Prof(a). Dr(a). ______________________ Instituição: _________________________
Assinatura: _________________________
4
Aos meus pais,
Reymundo e Tereza
5
Agradecimentos
depois, se dá conta de que o embaralhamento entre a vida pessoal e a
pesquisa é maior do que se imaginava: pessoas, lugares, acontecimentos, trabalhos
entram em questão, ao menos esse foi o meu caso.
Aqui, olhando lá para trás e à minha volta, agradeço,
Em primeiro lugar, aos meus pais, Reymundo e Tereza, dentre tantos motivos
porque, no final de tudo, me receberam e souberam conviver com alguém que 'está
terminando tese'.
Sem Adriana Capeto Barbosa, Maísa Almeida e Marcelo Leonardo, talvez não
teria nem começado, ou melhor, recomeçado. A cada um de vocês, minha gratidão é
infinita.
A Homero Santiago, amigo de longa data, pela leitura prévia e pela interlocução.
À Myrna Coelho que, durante um bom tempo, acompanhou de perto as alegrias
e dores disso tudo.
Henrique Parra e Nilton Ota, amigos, interlocutores e colegas da turbulenta fase
de conclusão de tese. Nilton apoiou a guinada no trajeto; Henrique, vizinho e parceiro,
amenizou as longas jornadas de trabalho na biblioteca da PUC, em Perdizes.
Aos colegas do Sintoma Social, Arthur Bueno, Daniel Andrade, Daniel Golovaty
Leandro Siqueira, Nahema Falleiros e Nilton Ota pelas nossas reuniões marcadas pela
camaradagem, quando nossas pesquisas ainda ganhavam contornos.
À Nilce Pereira que, depois de muito tempo, apareceu e colaborou no final.
A Robson Braga, e não apenas pelo ato de resisncia à FRM. Deu o que pensar!
Aos meus colegas professores, alunos e coordenadores do Colégio Nossa
Senhora do Rosário, onde me tornei professor e continuo a aprender as artes desse
ofício. Por conhecer o que se passa no mundo do trabalho, estimo a instituição.
Agradeço, especialmente, à coordenadora, Profa. Dra. Angela Moreira, que
compreendia quando as demandas do doutorado não se harmonizavam com as
demandas do trabalho.
À Profa. Dra. Helena Bicalho (Instituto de Psicologia), cuja participação neste
trabalho se deu de diversas formas, agradeço e agradeço imensamente!
Aos Prof. Dr. Franklin Leopoldo (Departamento de Filosofia) e à Profa. Dra.
Irene Cardoso (Departamento de Sociologia) pela participação no exame de
qualificação do mestrado, quando passei para o doutorado. Desde a minha graduação,
em Ciências Sociais, até o curso sobre Freud e cultura na pós-graduação, a professora
Irene sempre foi uma referência.
Pela rara e admirável prontidão em me auxiliar, agradeço aos dois professores
que participaram do exame de qualificação do doutorado, Prof. Dr. Laerte Idal
Sznelwar (Engenharia de Produção - POLI) e Profa. Dra. Edith Seligmann Silva
(Faculdade de Medicina), cujo envolvimento com a área de saúde psíquica e trabalho,
cada qual à sua maneira, eu passei a acompanhar com empolgação.
Realizei entrevistas com professores e outros profissionais, o que enriqueceu
em muito a pesquisa. São eles: Leda Leal Ferreira e Dorival Barreiros (Fundacentro),
Profa. Dra. Isleide Fontenelle (Faculdade de Administrão - FGV), Tales Ab’Saber
(psicanalista), Profa. Dra. Leny Sato (Instituto de Psicologia), Valdir Oliveira Rosa,
delegado titular (Delegacia de Pocia Metrô) e rsio Dutra, o Peninha, (DIESAT e
Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Processamento de Dados)
De forma muito especial, gostaria de agradecer, à Maria Helena Barboza, da
Secretaria de s-Graduação do Departamento de Filosofia, acima de tudo, por um
pequeno gesto indelével.
Por fim, sou muito grato ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes,
que não pôs obstáculos às mudanças de rumo até que esse trabalho adquirisse sua
estrutura definitiva e que, posteriormente, incentivou para que a pesquisa mantivesse
a dimensão que acabou por tomar. Além disso, por ele ter organizado o Seminário das
Quartas, a atmosfera acadêmica na qual respirei.
6
Por que Gregor Samsa estava condenado a servir numa firma
em que à mínima omissão se levantava logo a máxima suspeita?
Franz Kafka, A metamorfose
7
RESUMO
Pereira, L. Depressão: mobilização e sofrimento social. 2010. Tese de doutorado.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, São Paulo. Nº. p. 116.
O mundo pós-fordista pode ser caracterizado pela mobilização para o trabalho das
capacidades cognitivas, comunicacionais e afetivas. Além desse salto qualitativo, há,
nos últimos trinta anos, uma forte intensificação do labor. Essas mudaas resultam
em um aumento do controle da foa de trabalho, sendo que sua subsunção se dá,
agora, mais pela dominação potica do que pelas determinações econômicas.
Entendemos que o sofrimento social - particularmente quando se manifesta na forma
da depressão - é inerente a tal configuração do mundo do trabalho e afeta às mais
diversas ocupações profissionais, todas elas marcadas pela sobrecarga, pela
desfiliação e pelo permanente estado de mobilização. Paradoxalmente à época da
superestimação dos transtornos mentais e da medicalização da sociedade, o
sofrimento no trabalho é expulso do campo clínico, teórico e político.
Palavras-chave: depressão, sofrimento social, mobilização total, intensificação do
labor, medicalização da sociedade.
ABSTRACT
Pereira, L. Depression: mobilization and social suffering. 2010. Doctoral thesis
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, São Paulo. Nº. p. 116.
The post-Fordian world can be characterized by the mobilization of the cognitive,
communicational and affective capabilities to labour. In addition to this qualitative
leap, there has been a strong intensification of labour in the past thirty years. These
changes have resulted in an increase in the control of the labouring forces, as now
subsumption takes place more as a consequence of political than of economic factors.
This study is intended to show in which ways social suffering particularly when it
manifests as depression is inherent to the current configuration of the labour world
and is strictly related to the variety of occupations, all of which marked by work
overload, unaffiliation, and a permanent state of mobilization. It is a curious paradox
that, in a time of overestimation of mental disorders and the medicalization of society,
suffering at work is expelled from the clinical, theoretical and political fields.
Key words: depression, social suffering, total mobilization, intensification of labour,
medicalization of society.
8
Lista de Siglas
ACS: Agente Comunitário de Saúde
APA: Associação Americana de Psiquiatria
CID-10: Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Sde
Décima revisão
DELPOM-SP: Delegacia de Polícia do Metrô de São Paulo
DIESAT: Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos
Ambientes de Trabalho
DSM-IV: Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais – Quarta edição
FUNDACENTRO: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do
Trabalho
INSS: Instituto Nacional de Seguro Social
IRSS: Inibidores de recapitação seletiva de serotonina
LER-DORT: Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteo-musculares
Relacionados ao Trabalho
NTEP: Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário
OMS: Organização Mundial de Saúde
OIT: Organização Mundial do Trabalho
PAIR: Perda auditiva induzida por ruído
PDT: Psicodinâmica do Trabalho
PSF: Programa de Saúde da Família
SINDPD: Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Processamento de Dados
SINITOX: Sistema Nacional de Informações Toxicofarmacológicas
UBS: Unidade Básica de Saúde
9
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................. 10
Parte I Planeta sofrimento
1 Da superestimação dos transtornos mentais ao sofrimento social 19
1.1 A inflação da nosografia e da epidemiologia .............................. 21
1.2 A medicalização da sociedade ................................................. 25
1.3 Superestimação, invisibilidade e exploração do sofrimento social . 27
2 Sobre a epidemia depressiva ........................................................ 33
2.1 Depressão e sociedade ........................................................... 37
2.2 O trabalho em causa .............................................................. 47
Parte II A subjetividade na reprodução material
3 A mobilização total ....................................................................... 60
3.1 Criatividade e experiência - trabalho e consumo no pós-fordismo . 65
3.2 Reorganização do trabalho e intensificação do labor .................. 69
3.3 Desfiliados e empreendedores e o fim da sensibilidade igualitária 74
3.4 Responsabilidade e participação – ou submissão? ...................... 77
Parte III A sociedade vista pelo prisma do sofrimento
4 Mobilização do trabalhador e sofrimento depressivo .................... 84
4.1 Ocupações e sofrimento ......................................... 101
4.2 O lugar da depressão no mundo do trabalho ........................... 105
5 O mercado da cura do espírito .................................................... 105
Considerações finais ................................................................................. 110
Bibliografia ............................................................................................... 112
Filmografia ............................................................................................... 115
Introdução
O sofrimento psíquico ocupa, atualmente, um lugar inédito. Seja qual for o
ângulo pelo qual abordamos a queso, seu peso e alcance logo se mostram
evidentes. O universo da nosografia se expandiu de tal modo que seria
irreconhecível, trinta anos atrás. A psiquiatria, ela mesma antes confinada no
manicômio, agora está presente também nos serviços de saúde comunitários, na
cultura cotidiana e na mídia.
Apesar desse sucesso, a psiquiatria se viu obrigada a dividir seu campo
científico com as neurociências - verdadeira ruptura no campo das terapias da
mente - responsáveis pela descoberta da nova geração de medicamentos. Vale
ressaltar, no entanto, que no estágio atual das neurocncias muito dos avanços
propagandeados são, em boa parte, proselitismo, caso contrário, como explicar,
em meio a tanto avanço científico, o retorno do eletrochoque, da lobotomia e da
persistência do tio?
1
Talvez aqui, avanço e atraso se confundam, o que dizer,
por exemplo, da possibilidade aventada de uma neurotecnologia na forma de
droga para apagar memória e, assim, curar o estresse pós-traumático?
Não é, no entanto, apenas pelo viés patológico que essa expansão abre
seu caminho, pois como uma contrapartida necessária do sofrimento psíquico a
saúde mental também ocupa um maior espaço nas mentalidades, para as quais
não está apenas associada à cura, mas ao bem-estar e à qualidade de vida.
2
Para a compreensão completa dessa expansão em conjunto do mundo psi,
deve-se levar em consideração os aspectos econômicos do complexo médico-
industrial, visto que a patologização de comportamentos e afetos associada ao
consumo de psicotrópicos abriu uma “janela de oportunidades” para a
acumulação rentista por meio da criação de patentes.
3
Assim, para cada atividade e afeto humano, um tipo de droga
psiquiátrica: humor (antidepressivos), sono (tranquilizantes), vigília
(estimulantes), apetite (inibidores e estimulantes), temporalidade (ansiolíticos),
concentração e desempenho (seja a antiga ritalina, seja a recente modafinil, do
1
O empenho de Kay Jamison para conhecer os fatores neurológicos relacionados ao transtorno bi-
polar é ilustrativo. Ela própria diagnosticada como tal, espera que o desenvolvimento cienfico a
livre da doença e dos efeitos colaterais do lítio. Kay R. Jamison. Uma mente inquieta. São Paulo.
Martins Fontes, 2009.
2
Alain Ehrenberg. Les changementes de la relation normal pathologique - à propos de la
souffrance psychique et de la santé mentale. Paris: Esprit, Maio de 2004.
3
Jean Claude Salomon. Le complexe medico-industrial. Paris: ATTAC/Mille Et Une Nuits, 2005.
11
grupo dos eugeróicos em grego, bom despertar!), além das drogas não
psiquiátricas, mas que estão associadas a esse universo, como é o caso das
pílulas para a sexualidade, cujo nome mais conhecido é o viagra.
A medicalização da sociedade alcançou tamanha proporção que seria o
caso de cogitar se não se estaria produzindo hipocondríacos em massa por meio
do incentivo do uso de medicamentos. Além dos hipocondríacos, também os
intoxicados, que segundo o Sistema Nacional de Informações
Toxicofarmacológicas (SINITOX), os remédios - metade cura, metade veneno -
são os maiores responsáveis pelas intoxicações no Brasil, sendo que parte desses
casos se devem à automedicação; uma estranha confirmação do dito popular de
que de médico e louco, todo mundo tem um pouco.
4
De modo cada vez mais efetivo, a medicalização é uma forma de controle
social que incide sobre reações naturais e até mesmo positivas às situações e
ambientes estressantes, sobre ‘condutas desviantes’ e, por fim, sobre o conflito
social.
5
Entretanto esse controle não é apenas repressivo, que é um aspecto da
mobilização que não se satisfaz mais com o homem por inteiro; como diz André
Gorz, nesse mundo o homem aparece como um ser sobrepujado, antiquado,
desalojado. Para estar à altura do ambiente cnico, ele precisa de próteses
químicas”. Em outras palavras, esse controle medicamentoso além de produzir
adaptação, propicia - para usar a expressão de André Le Breton a produção
psicofarmacológica de si. Ele alça as potencialidades do sujeito a níveis pós-
humanos.
6
Na medida em que um medicamento pode potencializar as faculdades
cognitivas e a capacidade de concentração, a questão ética do dopping, para
4
No ano de 2007, houveram 34.028 casos de intoxicação medicamentosa. Disponível em
www.fiocruz.br/sinitox_novo/media/tab04_brasil_2007.pdf, acessado em junho de 2009. o SINTOX
alerta que a taxa de subnotificação é alta. Em e-mail enviado ao autor dessa tese, o Sindicato da
Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo afirma que embora seja um bito
arraigado, a automedicação (consumo de medicamentos sem orientação médica) não é um
problema grave no Brasil. Tampouco o brasileiro consome medicamentos em excesso, ao contrário
do que se pensa.” E, ignorando a subnotificação, aponta que do total (34.028 casos) 15.119 o
oriundos de tentativas de suicídio. Ora, dada a existência de uma farmácia em cada esquina e a
transformação de deu interior em algo que as aproxima dos supermercados, além da propaganda
de certos tipos de medicamentos, é plausível presumir que a subnotificação desses dados seja
muito alta.
5
Reginaldo Teixeira Mendonça. A medicalização dos conflitos: o consumo de ansiolíticos e
antidepressivos em grupos populares. Tese de doutorado. Faculdade de Saúde Pública USP,
2009.
6
André Gorz. O imaterial - conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005, p. 13;
David Le Breton. Adeus ao corpo - antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.
12
além dos esportes, passa a estar presente no mundo acadêmico, em concursos e
no desempenho escolar, no que tem sido chamado de dopping intelectual.
Em suma, a psiquiatria foi muito bem sucedida em sua reconversão
positivista, transformou inadequação em patologia e vulnerabilidades difusas em
entidades nosográficas específicas; como se fosse pouco, a psiquiatria passou a
cuidar também dos “normais”.
Muitas das pesquisas críticas a essa ordem de coisas m centrado foco,
com toda razão, na produção desse discurso, questionado sua cientificidade e
sua normatividade; agora em vigor em toda a sociedade e não nas
instituições totais. Mas seria pertinente inverter o problema e indagar pelas
demandas sociais que teriam colocado a psiquiatria e seus dispositivos num lugar
tão especial. Ao pensar a questão depressiva, prozac incluído, Alain Ehrenberg,
em seu La fatigue dêtre soi, pergunta:
“como é que um medicamento veio a encarnar a esperança
sem dúvida irracional, mas hoje compreensível, de se livrar do
sofrimento psíquico? Hoje eo ontem. Para que um remédio
possa encarnar tal fantasia, para que produza um tal encontro
entre uma medicação e aspiração social foi necessário que esse
sofrimento viesse a ocupar progressivamente um lugar central em
nossa sociedade.”
7
Ao nosso ver, o lugar central do sofrimento social em nossa sociedade,
que tem sido apontado por pesquisadores de diferentes matizes, está relacionado
com o trabalho. Por isso, faz-se necessário, novamente, levantar o u que
encobre esse mundo. Tomando como parâmetro os últimos trinta anos, Sadi Dal
Dal Rosso constatou que, em diversos setores, o trabalho es sob ritmo,
velocidade e pressão mais intensos. Apesar da diminuição da jornada, a carga de
trabalho aumentou, processo que o autor analisa por meio do conceito de
intensificação do labor.
8
Além de se trabalhar mais nos locais de trabalho, a telemática, por meio
do celular, do computador e gadgets eletrônicos, possibilita que o trabalho
7
Alain Ehrenberg. La fatigue d’être soi – depression et socie. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998, p.
83.
8
Sadi Dal Dal Rosso. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. o
Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
13
adentre o tempo livre, dentro e fora do espaço doméstico, inclusive o tempo
morto do trânsito.
Às mudanças quantitativas se somam as qualitativas. O trabalho lança
novas demandas à subjetividade, sejam elas cognitivas, relacionais,
comunicacionais ou afetivas. É o que chamamos de mobilização total. o se
vende apenas a força de trabalho sica ou intelectual, vende-se a alma. Ao passo
que no consumo, não se vende apenas produtos, mas “experiências”,
possibilidades de vida, compra-se almas. Nessas duas esferas sociais, o afeto
ocupa agora um lugar central.
A mobilização total é uma nova forma de controle social, cuja face
discursiva é caracteriza pela convocação do indivíduo, mas de uma forma que
apela por sua autonomia. Em outras palavras, as novas formas de controle social
conclamam os sujeitos à autonomia para obter, contudo, a mobilização total do
trabalhador e do consumidor.
No trabalho, a força anímica se transforma em fator de produção; no
consumo, é a noção de experiência que se converte em mercadoria. Não só a
mobilização dos afetos por essas duas esferas passou a ser central para a
acumulação, como elas tendem a ocupar todo o cotidiano e a resumir a vida a
duas atividades: trabalhar e consumir.
Mas se essas características do trabalho dito imaterial estão muito
presentes nos setores da educação, saúde e comunicação, não é possível
generalizá-las, que em setores recentes da economia, como nas centrais de
teleatendimento e nas cadeias de fast food, o trabalho taylorista repetitivo e
fragmentado é absolutamente hegemônico. Nesses casos em que a subjetividade
do trabalhador é até mesmo combatida, a mobilização se pela acentuada
intensificação do trabalho, ou seja, quando o aumento da produção não é
resultado do desenvolvimento tecnológico, mas sim de um maior dispêndio de
energia da força de trabalho. Muito embora, no caso das grandes marcas de fast
food, os “colaboradores” possam se identificar com a empresa, sendo então
subjetividade mobilizada na forma de uma servidão voluntária, que
intimamente não se é obrigado a aderir a discursos corporativos pueris.
A nova forma de subsunção da força de trabalho, isto é, a maneira pela
qual os processos econômicos se apropriam do conhecimento, das emoções e da
energia física de homens e mulheres, ensejo às psicopatologias no trabalho,
ao mesmo tempo em que surgem novas psicopatologias do trabalho: depressão,
14
ansiedade, estresse pós-traumático, de um lado, e patologias da sobrecarga, do
esgotamento, do assédio, de outro.
9
O caso da LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos e Disrbios Osteo-
musculares Relacionados ao Trabalho) é exemplar quanto a isso. Quando se
imaginava que fábricas limpas e produção robotizada poderiam livrar o homem
da penosidade do trabalho, novas doenças aparecem em proporções epidêmicas
avassaladoras. Não é possível descrever de outra maneira sua presença entre
trabalhadores de todo o mundo dessa doença que se manifesta no corpo, mas
que segundo Christophe Dejours, pode ser entendida como resultado de “uma
agressão que tem início nas funções psíquicas”.
Retomando as duas metades de nosso tema. Começamos por descrever a
tendência de patologização de afetos e comportamentos e, depois, nos voltamos
para as novas formas de sofrimento presentes no mundo do trabalho.
Ora, se os estudos da relação entre depressão e sociedade, como
veremos, têm uma visada culturalista ou mesmo de crítica a estilos de vida, seria
pertinente analisar essa relação tendo como baliza o trabalho, seja pela forma
em que ele é mobilizado, seja pelas resistências que os trabalhadores criam à
essa mobilização, umas bem sucedidas, outras que acabam por levar mais água
a esse moinho, outrora chamado de satânico, que está aí para quem quiser ver e
é bom esfregar os olhos.
Dentre as psicopatologias, iremos trabalhar mais detidamente a
depressão, em primeiro lugar, porque, ela aparece nas estatísticas dos órgãos de
seguridade social como a mais importante causa psíquica de afastamento e
invalidez; em segundo lugar, por ser considerada pelos estudos epidemiológicos
a de maior incidência.
A depressão enquanto forma de manifestação do sofrimento social é
resultado de um alto grau de mobilização subjetiva que agora está implicado na
reprodução material da sociedade. A dificuldade em satisfazer a todas as
exigências conm em si algum sofrimento; os sujeitos vivem num equilíbrio
precário na tentativa de dar conta das demandas do trabalho e do consumo; a
depressão está à espreita e aparece quando esse equilíbrio é quebrado.
9
Cf. Christophe Dejours. Alienação e clínica do trabalho. Laerte Sznelwar e Selma Lancman
(orgs.). Christophe Dejours - da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz; Brasília: Paralelo 15, 2008, p. 219 e segs.
15
O sofrimento depressivo não é apenas um efeito indesejado dessa
configuração social, muito pelo contrário, que ela também se alimenta do
sofrimento. Veremos que no mundo do trabalho, mecanismos coletivos de defesa
criados para apaziguar o sofrimento, são mobilizados pelas novas formas de
gestão baseadas na qualidade total e na avaliação individual de desempenho. Se
bem sucedidos - para o que precisam da contribuição de cada um - esses
mecanismos, à medida que funcionam, produzem a banalização da injustiça e da
violência, cujas consequências deletérias para saúde de todos é cada vez mais
patente.
10
O sofrimento depressivo guarda relações com a esfera do consumo, mas
como essa pesquisa assume o postulado da centralidade do trabalho, não nos
interessa aqui as inegáveis consequências subjetivas do mundo do consumo,
como por exemplo, a infantilização, em curso. Interessa-nos analisar como o
sofrimento que aparece na prodão propiciou um nicho de mercado: o
sofrimento é capturado e convertido em produtos e serviços terapêuticos. Trata-
se da formação de um mercado da cura do espírito e do bem-estar que abarca a
proliferação de spas e assessorias em gestão do estresse, profusão de terapias
alternativas e de academias de ginástica que passaram a oferecer modalidades,
mais relaxantes do que esportivas.
11
No entanto, além de ser produzida e ter se tornado funcional para a
reprodução social, a depressão pode ser também uma forma de distanciamento
crítico e é muito possível que, depois da crise, o depressivo analise de outra
forma seu trabalho, ou não se reconcilie com os valores que o fizeram sucumbir.
Mas a forma pela qual essa afecção tem sido tratada
12
reafirma o isolamento, a
frustração e a reificação que a gerou, e por isso ela já se tornou um elemento
estrutural de nossa sociedade.
Devido à posição ainda central do trabalho em nossa sociedade, o
sofrimento no trabalho comporta desdobramentos consideráveis que extrapolam
o seu campo. Por exemplo, como se organiza o cotidiano familiar, quando os pais
estão sofrendo as consequências psíquicas de serem inteiramente mobilizados
para o trabalho? Quais as consequências para os filhos quando o pai ou a mãe
10
Christophe Dejours . A loucura do trabalho – estudo sobre psicopatologia do trabalho. o Paulo:
Cortez: Oboré, 1992; Idem, A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
11
Isleide Fontenelle. Humanidade espetacular: emancipação ou auto-destruição virtual? Margem
Esquerda, v. 4, p. 163-174, 2004.
12
Robert Castel. A gestão dos riscos – da antipsiquiatria a pós-psicanálise. Rio de Janeiro.
Francisco Alves Editora, 1987.
16
estão deprimidos por conta do trabalho? Como a família se relaciona com o
trabalhador afastado por licença saúde ou ‘inválido’? Ou quando se perde um
emprego já insuportável? E quanto ao desemprego prolongado?
Tendo em conta as diversas reverberações do sofrimento, seria lido,
então, indagar a respeito da pertinência de se entender o social pelo prisma do
sofrimento? Segundo Emmanuel Renault, as análises que tomam o social a partir
do sofrimento têm sido criticadas ou mesmos evitadas por autores foucaultianos
que vêem no seu uso um risco de psicologizar a realidade social. Por sua vez,
autores marxistas vêem no sofrimento social um modo de dissimular o peso das
estruturas de dominação e de exploração.
13
E mesmo um teórico da psicopatologia do trabalho como Christophe
Dejours, trata de desfazer algumas armadilhas situadas na intersecção desse
objeto com a política. Para Dejours, há risco de:
- emaranhar o pensamento no miserabilismo e de fazer obstáculo
ao pensamento potico, que deve ser antes de tudo
desembaraçado de afetos,
- exaltar o derrotismo ao invés de celebrar as múltiplas formas de
resistências à injustiça, e de se comprazer com a nostalgia ao
invés de saudar a coragem daqueles que se em à altura dos
desafios da modernidade.
14
No entanto, faz-se necessário nomear o sofrimento, isto é, identificar as
condições e situações sob as quais ele surge, pois dependemos do trabalho uns
dos outros e se sofrimento generalizado no mundo do trabalho todos são
prejudicados. Por isso, as causas do sofrimento devem ser elucidadas para serem
enfrentadas com eficácia. Em outras palavras, a pesquisa é um dos elos da ação
política.
Se não boas condições de trabalho - e os trabalhadores sofrem sob a
pressão de trabalhar mal - o enfermeiro, o operário, o professor, o funcionário
público estão impossibilitados de executar suas tarefas com qualidade, o que
prejudica o paciente, o consumidor, o aluno, o cidadão. O que é patente no caso
do tele-atendimento, em que trabalhadores doentes e consumidores insatisfeitos
se encontram sob a realização do capital.
13
Emmanuel Renault. Souffrances sociales: philosophie, psychologie et politique. Paris: La
Decouverte, 2008.
14
Prefácio de Christophe Dejours In: Patrick Coupechoux. La déprime des opprimés enquête sur
la souffrance psychique em France. Paris: Éditions du Seuil, 2009, p. 13.
17
Nos trinta anos gloriosos, a teoria crítica acreditava que o bem-estar
crescente, possibilitado pela melhoria das condições de vida, resultaria numa
sociedade sem oposição. Hoje, quando a integração dos trabalhadores via
aumento da renda salarial é um passado distante, o mal-estar psíquico crescente
é uma dimensão que atravessa e paralisa o pensamento e a prática política.
Tomando o sofrimento social como categoria heurística, nosso trabalho se
estrutura a partir de dois conjuntos de questões. Em primeiro lugar, quando a
subjetividade passa a ser mobilizada com uma intensidade e de um modo
inéditos, tanto no trabalho, quanto no consumo, um aumento do sofrimento?
Qual seria a natureza desse sofrimento?
Em segundo lugar, a insistente presença contemporânea do sofrimento
psíquico e da saúde mental é reveladora de uma nova relação entre o normal e o
patológico? Se sim, há uma nova gestão dos riscos psíquicos?
Para responder a essas questões, optamos por fazer uma pesquisa teórica,
cuja argumentação fosse respaldada por pesquisas empíricas. A teoria é
imprescindível, mas não se deve tomar o mundo como seu espelho. Assim,
fazemos uso de textos clínicos baseados na psicodinâmica do trabalho, de
estudos de casos da sociologia do trabalho e do consumo e de pesquisas
epidemiológicas.
A tese es dividida em cinco capítulos, distribuídos em três partes. Na
primeira parte, buscamos compreender como sofrimentos que são
exponenciados pela ciência e pela mídia, enquanto outras formas do sofrer são
ocultadas (capítulo I). Em seguida, decantamos os possíveis significados
sociológicos contidos na expressão “epidemia depressiva” (capítulo II). Na
segunda parte, abordamos as mudanças no mundo do trabalho nas últimas três
décadas e postulamos que a subjetividade tem, atualmente, um peso maior na
reprodução material (capítulo III). Na terceira parte, trabalhamos as interações
do trabalho com o sofrimento em geral e, de forma mais detida, a depressão
(capítulo IV); depois voltamo-nos para as demandas que esse sofrimento,
oriundo do trabalho, dirige ao consumo (capítulo V).
E, last but not least, cabe lembrar dois postulados dessa pesquisa: não é
possível separar juízo de fato e juízo de valor, assim como o se deve separar
por completo, aquilo que existe daquilo que poderia ser. A explicitação de seus
juízos de valor era parte do método expositivo de Herbert Marcuse. Dois desses
julgamentos são bem adequados para o presente trabalho:
18
1) O julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou
melhor, pode ser ou deve ser tornada digna de se viver. Este
julgamento alicea todo esforço intelectual; é apriorístico para a
teoria social, e sua rejeição (que é perfeitamente lógica) rejeita a
própria teoria;
2) O julgamento de que, em determinada sociedade, existem
possibilidades específicas de melhorar a vida humana e modos e
meios específicos de realizar essas possibilidades. A análise crítica
tem de demonstrar a validez desses julgamentos, tendo a
demonstração de se processar em bases emricas.
15
15
Herbert Marcuse. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 14 e 15.
19
Parte I - Planeta sofrimento
Capítulo 1
Da superestimação dos transtornos mentais ao sofrimento social
Nos últimos trinta anos, a forma pela qual se compreende saúde mental e
sofrimento psíquico passa por uma mudança radical. Segundo Ehrenberg, a
novidade consiste nos “problemas de massa da subjetividade individual”,
novidade essa que pode ser compreendida a partir de três critérios: valor,
extensão, descrição e justificação da ação.
Quanto ao valor atribuído à questão, é possível afirmar que “o dano
psíquico é considerado hoje como um mal ao menos o grave quanto o dano
corporal e, freqüentemente, mais insidioso.” Quanto à extensão, o dano psíquico
concerne agora “a cada instituição (escola, família, empresa e justiça) e mobiliza
os mais diversos atores (clínicos de todos os neros, médicos e o médicos,
assistentes sociais, educadores, diretores de recursos humanos, novos
movimentos religiosos, a Igreja).” Por último, no que diz respeito a descrição e
justificação da ação, “não somente nenhuma doença, mas também nenhuma
situação social (a delinqüência adolescente, o desemprego, a atribuição do RMI
*
,
a relação entre empregados e clientes ou usrios etc.) deve hoje ser abordada
sem levar em consideração o sofrimento psíquico e sem visar a restauração da
saúde mental.”
16
A forma de se considerar o sofrimento psíquico, nas três últimas décadas
também se modifica. Horwitz, um veterano sociólogo da saúde, nos notícia
dessa transformação. O autor de Creating mental illness nos conta que ao voltar
a um centro comunitário de saúde para entrevistar os usuários, depois de 25
anos, é surpreendido pela alteração na maneira pela qual as pessoas explicam
seus padecimentos.
Na cada de 1970, os próprios usuários atribuíam seus mal-estares a
dificuldades financeiras, ao trabalho, ao relacionamento conjugal e familiar e a
intempéries da vida. Em meados da cada de 1990, esses padecimentos
passam a ser entendidos como manifestações de doenças mentais específicas:
*
Revenu Minimum d'Insertion é o programa de governo francês que instituiu a renda mínima.
16
Alain Ehrenberg. Les changementes de la relation normal pathologique - à propos de la
souffrance psychique et de la santé mentale. Paris: Esprit, Maio de 2004. p. 134
20
toda sorte de transtornos (humor, ansiedade) e suas divisões (bipolar,
transtorno obsessivo-compulsivo, pânico etc.) entram em cena
17
Assim, sentimentos difusos de vulnerabilidade fortemente vinculados às
situações sociais se transformaram em doenças específicas. E a “doença” se
tornou biológica, isto é, se reduziu a reações bio-químicas no cérebro e à
hereditariedade. Além dos fatores exteriores ao sujeito, isto é, o contexto social
e doméstico, nessa nova forma de autocompreensão é descartada tamm a
subjetividade e a história individual, tudo em prol de um determinismo biológico.
O estrago não é pequeno, que dadas as maiores responsabilidades que
pesam sobre os ombros dos indivíduos, a sensação de vulnerabilidade é
crescente - parte de uma mesma guinada antropológica radical que iremos
mapear. É quando o social sai de cena que o sofrimento é atribuído às moléculas.
Ora, se as condições sociais sob as quais esse sofrimento aparece deixam de ser
consideradas, o seu enfrentamento sai do “horizonte de expectativas” pessoal e
coletivo.
Quando os psiquiatras assumem a função pública de esclarecimento dos
males da mente, eles não deixam de prestar um serviço à população, pois por
conta de preconceitos antigos e enraizados tende-se a desconsiderar o
sofrimento psíquico e a enxergar nele um disfarce da preguiça, da má vontade,
da falta de fibra e retidão moral, do mesmo modo que as conversões histéricas
da era vitoriana eram atribuídas à simulação do sujeito. Ainda hoje, o senso
comum acredita que “depressão não é doea de pobre”. Nada mais equivocado
como veremos.
Por outro lado, esse empenho no esclarecimento parece ter resultado em
seu oposto. O discurso do especialista passa a ser o parâmetro para o
17
Cf. Allan Horvitz. Creating Mental Ilness. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. ix. O
autor divide o campo doenças mentais em três tipos. A doença mental [mental diseases] é definida
por uma doença, subjacente aos sintomas, invariável culturalmente, por exemplo, a loucura e a
depressão persistente. Os transtornos mentais [mental disorders] quando os sintomas revelam
uma vulnerabilidade difusa do sujeito sem que haja uma doença subjacente. Por último, mental
illness” pode ser entendida como um desvio a uma norma de um grupo social particular, não
podendo, por isso, ser validadas fora desse grupo. Apesar do louvável esforço do autor em
demonstrar que o DSM abre espaço para que condutas desviantes sejam classificadas como
transtornos mentais, nós não utilizamos aqui suas definições. Vejamos como Horwitz define
transtorno mental: “é válido falar em transtorno mental quando um sistema psicológico o é
capaz de funcionar tal como ele é designado para funcionar e quando esta disfunção é definida
como inapropriada em um contexto social particular.idem, p. 11. Ora, em primeiro lugar, afirmar
que a loucura é uma doença invariável culturalmente é algo absolutamente questionável. Em
segundo lugar, a definição de transtorno mental do autor exclui casos de ajustamento patológico
nos quais o “sistema psicológico” não funciona como suas respostas são consideradas como
apropriadas. Mas para fazê-lo, o autor teria que ter em vista a crítica da ordem social e não se
restringir a uma classificação psicológica.
21
comportamento; quanto maior for sua exposição na mídia, mais pessoas
voluntariamente se identificam com um difuso perfil depressivo, pois se apegam
cegamente à competência do especialista e vão à busca imediatista de
medicação.
Boa parte da tão propalada ‘epidemia depressiva’ não se deve a fatores
biológicos, nem psicológicos, mas a fatores sociais. Para lembrar Christopher
Lasch, o sofrimento depressivo é “falsamente experimentado como puramente
pessoal e privado.”
Nesse trabalho, não iremos formular uma definição estrita de depressão -
o que, aliás, o stablishment psiquiátrico, apesar de perseguir esse objetivo, ainda
não conseguiu. Qualquer esforço nesse sentido nos levaria para o mesmo
caminho dos autores que criticamos.
Antes de definirmos o sofrimento depressivo, é preciso passar em revista
ainda outras questões acerca do tema.
1.1 A inflação da nosografia e da epidemiologia
Visto de hoje, parece inimaginável que, durante a maior parte do século
XX, a psiquiatria tenha se deixado influenciar pela psicanálise. A corrente que
tomava a psicanálise como referência principal era chamada de psiquiatria
dinâmica e sua posição hegemônica se refletiu no Manual Diagnóstico e
Estatístico de Desordens Mentais (DSM), em suas primeira e segunda versões.
18
Uma grande inflexão, no entanto, ocorre no DSM III, publicado em 1980,
numa quadratura histórica em que um conjunto de respostas políticas de cunho
conservador está em curso, basta lembrar a eleição de Ronald Reagan no mesmo
ano. Mesmo Horwitz, que está mais próximo das concepções do DSM do que
imagina, atribui ao DSM III o sentido de uma contra-revolução.
19
18
Apesar de ser elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana, o DSM é adotado em todo o
mundo. Atualmente, o manual está em sua quarta edição, publicada em 1994, que foi revisada em
2000. Cf. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, edição, Texto Revisado.
Washington, DC: American Psychiatric Association, 2000. O DSM-IV, por sua vez, adota os critérios
do CID-10, Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde (OMS). A
décima atualização é de 1992. Atualmente, uma força tarefa internacional está encarregada de
preparar o DSM V, cujo lançamento está previsto para 2013.
19
Por certo, estamos diante de um exemplo do núcleo do estado de exceção que vigora
atualmente segundo uma certa teoria ctica, já que o poder reservado à Associação Psiquiátrica
Americana lembra que “o verdadeiro ponto misterioso da política ocidental, não é o Estado, não é a
Constituição, não é a Soberania, mas o Governo. Não o Governo, mas o Ministro. Não o Legislador,
mas o Funcionário.” Giorgio Agamben, apud, Paulo Arantes, Alarme de incêndio no gueto francês –
22
Por conta de sua herança psicanalítica, a psiquiatria dinâmica partia da
idéia de um continuum entre neurose e normalidade. Quando a psiquiatria
dinâmica perde a hegemonia para a psiquiatria diagnóstica, como Horwitz a
chama, o conceito de neurose desaparece, em seu lugar, entra em cena uma
concepção positivista de entidades nosográficas específicas que podem ser
constadas segundo os critérios do que é chamado de medicina das evidências.
No entanto, não se trata aqui de subscrever as duas primeiras versões do
DSM. A própria idéia de um “manual” a respeito do sofrimento é problemática.
Na origem do DSM, está uma insatisfação dos psiquiatras militares dos EUA que
ao voltarem da Segunda Guerra - e em sua grande maioria voltaram para uma
prática liberal, enquanto os descendentes de migrantes foram para os asilos -
ficaram insatisfeitos com as limitações das classificações nosográficas da época.
“Os insights e o entusiasmo gerados pela guerra, que levaram muitos europeus
para a psiquiatria social, levaram os psiquiatras norte-americanos, tais como Karl
e William Menninger, a expandir a psicanálise.”
20
O resultado é uma psicanálise
caricaturizada e naturalizada que será a base de um novo sistema nosográfico
representado no DSM I (1952) e no DSM II (1968).
Na cultura psiquiátrica do final dos anos 1960, a depressão era classificada
em três tipos. A depressão endógena era vinculada a fatores biológicos ao que
costumava denominar de melancolia. Além dela havia dois tipos de depressão
exógena, a neurótica e a depressão reacional desencadeada por algum evento
recente e podia acometer qualquer pessoa, não sendo originada por conflitos
inconscientes como a depressão neurótica.”
21
Até o DSM II, a depressão é compreendida como uma síndrome, isto é,
um conjunto de sintomas que aparece em estruturas psicóticas ou neuróticas,
embora o transtorno de personalidade depressiva apareça. Aqui, uma
preocupação com a causa seja interna (psíquica ou orgânica) ou externa (fatores
sociais).
No DSM III, não mais preocupação com a etiologia e a classificação se
pretende “descritiva” e a-teórica”. De fato, como não uma preocupação com
as causas; o DSM não defende abertamente um determinismo biológico,
uma introdução à era da emergência. Mimeo, p. 11. A associação em questão não é parte do
governo norte-americano, mas o poder desse corpo cnico em determinar o que é saúde e doença
mental, em todo o mundo, se encaixa na argumentação do filósofo italiano.
20
David Healy apud Maria Lopes Facó. Um mosaico da depressão dos sujeitos singulares aos
transtornos universais. São Paulo: Escuta, 2008, p. 31.
21
Facó, ibidem, p. 28.
23
“embora a psiquiatria diagnóstica seja oficialmente agnóstica a respeito dos
fatores que levam as pessoas a desenvolver doenças mentais, o sistema médico
de classificações costuma enfatizar as patologias orgânicas.
22
Ainda em 1981, Robert Castel diagnostica com muita clarividência uma
recomposição do campo psicotecnológico em três direções
um retorno forte do objetivismo dico que substitui a psiquiatria
no regaço da medicina geral; mutação das tecnologias preventivas
que subordina a atividade de tratar a uma gestão administrativa
das populações de risco; a promoção de um trabalho psicológico
sobre si mesmo que faz da mobilizão da pessoa a nova panacéia
para enfrentar os problemas da vida em sociedade.
23
Dado que as linhas de força descritas por Castel se confirmaram nas
últimas décadas faremos uso da tripartição proposta por ele para analisarmos a
configuração atual do mundo psi.
Nesse capítulo, abordamos o retorno e consolidação do objetivismo
médico. Ainda segundo Castel, ela leva à
laminação da especificidade da abordagem psiquiátrica permitindo
o retorno do forte objetivismo médico e do positivismo e operando
uma banalização das instituições e cnicas da medicina mental no
seio da medicina geral.
24
Uma das consequências mais importantes da perda da especificidade da
psiquiatria é a da morte de uma psicopatologia que não se limitava a uma leitura
dos sintomas e que cede lugar agora a uma nosografia positivista baseada em
evidências, ao invés de um trabalho de interpretação dos sintomas.
O termo disorder - que acaba por cumprir a mesma função que a neurose
nas duas primeiras versões - é comumente traduzido como transtorno em
português e trastorno em espanhol. Se, no entanto, for traduzido literalmente e
transposto para as ciências sociais fica logo evidente sua carga positivista:
desordem. Ademais, vale lembrar que, no DSM. disorder e illness [doença, mal-
estar] são termos intercambiáveis.
Da primeira versão do DSM à última, entre 1952 e 2000, o número de
doenças mentais quadruplicou. No DSM-IV TR há, aproximadamente, 400
22
Alain Horwitz, ibidem, p. 3. Vale lembrar que aqui como em outros campos do conhecimento,
realidade e pensamento começam a andar para trás, a psiquiatria volta a Emil Kraepelin, tal como
a economia retorna a Menger, Jevons e Walras.
23
Robert Castel. A gestão dos riscos – da antipsiquiatria a pós-psicanálise. Rio de Janeiro.
Francisco Alves Editora, 1987, p. 18.
24
Idem, ibidem, pp. 68-69.
24
entidades patológicas enquanto no DSM-I haviam 106 entidades. Além de
descrever propriamente as doenças, o DSM classifica nosograficamente uma
enorme diversidade de afetos, condutas e relações humanas.
25
Para além dessa virtualidade de patologização, essa nosografia teve um
impacto ainda maior nas pesquisas epidemiológicas, na medida em que estas
tendem a gerar dados estatísticos marcados pela superestimação do sofrimento:
ao menos um quinto da população dos EUA [segundo o National
co-Morbidity Survey] está sofrendo de um transtorno mental e
aproximadamente a metade dela terá ao menos um transtorno ao
longo da vida. O Surgeon General’s Report on Mental Health, por
exemplo, afirma que 15 mi de americanos desenvolvem
transtornos a cada ano.
26
Segundo Horvitz, essas estatísticas se devem a mudança da administração
pública americana na área de saúde que deixou de trabalhar fatores sociais para
se voltar sobre problemas dos indivíduos. Além disso, essas mesmas pesquisas
epidemiológicas se pautam no DSM, mas o fazem de forma ainda mais
simplificadora.
Do outro lado do atlântico,
‘um francês em cada quatro sofrerá de problema mental’ declara o
relatório Piel-Rælandt [...] Uma proporção que se reencontra em
escala européia: ‘Nos países europeus, em doze meses, 250
pessoas de cada mil, apresentará um transtorno mental.’ Anuncia
um relario sobre saúde mental na Europa. A Organização
Mundial de Saúde (OMS), que fez do ano de 2001 o ano da saúde
mental, tira a mesma porcentagem para o conjunto do planeta.
27
Nessa vertente epidemiológica, há outros problemas decorrentes da
aplicação do DSM, como por exemplo, a co-morbidade. Segundo Horwitz, o
segundo maior estudo nos EUA sobre a prevalência dos transtornos mentais na
população foi o National co-Morbidity Survey, de 1992. Com base numa amostra
de 8,1 mil entrevistados, o NCS conclui que 29% da população norte-amerciana
terá mais de um transtorno mental ao decorrer da vida.
28
25
Cf. Allan Horvitz. idem, p. 2.
26
Allan Horvitz. idem, p. 3.
27
Alain Ehrenberg. Les changementes de la relation normal pathologique - à propos de la
souffrance psychique et de la santé mentale. Paris: Esprit, Maio de 2004. p. 141. N’O Alienista,
Machado de Assis, já havia satirizado a psiquiatria positivista de sua época, talvez, o mundo esteja
se assemelhando a uma imensa Casa Verde, de Simão Bacamarte; como cá, querelas
diagnósticas e controle de população são duas pontas de um mesmo processo. Cf. Machado de
Assis. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. V. II.
28
Idem, p. 87. Ora, se boa margem de arbitrariedade está em jogo nas definições dos transtornos,
a co-morbidade é uma consequência natural da classificação. Cf. idem, ibidem, p.111.
25
Um desdobramento frequente dessas pesquisas é a afirmação de que a
porcentagem desse contingente que busca tratamento é bem menor que a
incidência, logo, é preciso incentivar as pessoas a buscar tratamento. Que
tratamento?
1.2 A medicalização da sociedade
A inflação da nosografia psiquiátrica é um fator determinante do
crescimento das ditas novas psicopatologias e, ao mesmo tempo, de sua
incidência.
Mas a inveão dos psicotrópicos também cumpre seu papel. Ardil da
dialética do iluminismo: a psicofarmacologia, que buscava a cura, passou a
inventar doenças. As formas variam, seja pela já descrita patologização de
qualquer desvio em relação à norma, com sua respectiva pílula, ou mesmo pela
criação de uma patologia para uma nova pílula recém-descoberta.
Por exemplo, transtorno de fobia social o medo de ficar mido
ou de ser humilhado em público era considerado um transtorno
raro até os dicos começarem a tratá-lo com Nardil (fenelzina),
a partir da metade da década de 1980, e depois com IRSSs
(Inibidores de Recapitação Seletiva de Serotonina) como o Paxil.
Hoje, a fobia social é freentemente descrita como o terceiro
transtorno mais comum nos Estados Unidos da América. Hisrias
similares podem ser contadas a respeito do transtorno obsessivo-
compulsivo e transtorno do pânico (...). Como David Healy
assinalou: a chave para vender drogas psicoativas é vender
transtornos mentais.
29
No velho mundo, depois da publicação, em 1988, na França do Guia dos
300 medicamentos para se superar física e intelectualmente, o governo e os
pesquisadores se voltaram para o problema da medicalização. Nesse mesmo
ano, se descobriu que o consumo de tranquilizantes e hipnóticos, nesse país, era
cinco vezes maior que nos Estados Unidos.
30
29
Carl Elliott e Tod Chambers (orgs.). Prozac as a way of life. Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2004., pág. 5. Além de suas pesquisas, David Healy tem se destacado como
publicista ao denunciar as relações escusas entre as corporações farmacêuticas e academia,
relação esta que chegou a ponto da criação de ghost writers, os quais elaboram textos e
pareceres para que conceituados psiquiatras assinem. Dono de uma extensa obra, se tornou mais
conhecido quando publicou um artigo correlacionando prozac e suicídio, o que lhe custou o cargo
de diretor em um hospital no Canadá.
30
Alain Ehrenberg. Le culte de la performance. Paris: Hachette, 2005. p. 140.
26
O uso generalizado de medicamentos é uma das manifestações da
medicalização enquanto forma de controle social.
Segundo Peter Conrad, a
“medicalização descreve um processo pelo qual problemas não relacionados à
medicina são definidos e tratados como problemas médicos, comumente como
transtornos.”
31
Embora o “imperialismo dos médicosseja um fator importante, a questão
chave para o autor é a definibilidade. Com efeito, a “medicalização consiste em
definir um problema em termos médicos, usar uma linguagem médica para
descrever um problema, usar um discurso dico para compreender um
problema ou usar uma intervenção médica para “tratá-lo”.
Desse modo, a medicalização não se atém a doenças, transtornos ou
desvios, mas engloba um amplo espectro que vai desde processos vitais,
sobretudo no que diz respeito à vida das mulheres e dos idosos, até à relação de
crianças e adolescentes com o aprendizado.
Ainda segundo Conrad, são inúmeros os problemas resultantes do controle
social crescente caracterizado pela medicalização: suposição da neutralidade
médica, domínio dos especialistas, despolitização do comportamento,
desresponsabilização, “exclusão do mal”, individualização dos problemas
sociais.
32
Como se nenhuma menção ao trabalho, o que não é nada incomum,
muito pelo contrário, essa ausência do trabalho nos mais diversos estudos, cujos
objetos guardam relações profundas com o trabalho daria por si mesmo uma
pesquisa à parte.
A respeito do caso em questão, não é difícil perceber que as relações entre
medicalização e trabalho são profundas, o que se constitui em um campo
profícuo para a teoria social.
A tulo de exemplo, basta lembrar uma observação de Dejours, numa
indústria de transformação do ramo petroquímico, sobre a ansiedade gerada
pelos riscos para a saúde e para a vida que a indústria representava. A “tensão
nervosa” vivenciada pelos trabalhadores resultava no consumo de medicamentos
31
Peter Conrad. Medicalization and social control. Annual Review of Sociology. Vol. 18 (1992), pp.
209 e segs.
32
Cf. idem. P. 223.
27
psicotrópicos frente ao perigo: trabalho com risco: “ansiolíticos durante o dia,
soníferos à noite e psicoestimulantes de manhã.”
33
1.3 Superestimação, invisibilidade e exploração do sofrimento
social
A questão do sofrimento social é um ponto de intersecção de muitas
disciplinas.
34
Com efeito, a questão comporta abordagens que levam a
conclusões tão discrepantes a ponto de aparentar que tais abordagens não
analisam a mesma realidade social. Aqui, vamos contrapor essas diferentes
perspectivas para tentar uma avaliação do conjunto.
Curiosamente, em determinadas casos, superestimação e
superexposição na mídia, enquanto outros casos são relegados à invisibilidade.
Nas situões de trabalho, esse sofrimento ora, é reprimido, ora é explorado de
modo que ele se torne mesmo funcional para a organização do trabalho. Quando
afinal ele é abertamente reconhecido, responsabiliza-se o trabalhador.
35
No caso da superestimação, além da inflação nosográfica, outras
novidades em jogo. Não faz muito que a saúde invadiu a moral, moral invadiu a
saúde e o que antes não era problematizado passou a ser. A alimentação, por
exemplo, que era vinculada apenas aos costumes, se confunde agora com a
saúde e o ato de comer se confunde com dieta. Como observou Bernard-Henri
vy, é como se houvesse ‘um médico em cada corpo’. Mais responsabilidades
recaem sobre os sujeitos. E além da saúde, a estética: uma barriga saliente, por
exemplo, é um sinal de incompetência em gerir sua própria alimentação e um
sinal de indolência na gestão do próprio corpo.
Nessa nova onda de moralização da saúde uma característica daqueles
anos 1930, na Alemanha - surgem campanhas mundiais permeadas de slogans
agressivos e um vocabulário bélico contra tabagismo, obesidade e sedentarismo.
33
Christophe Dejours . A loucura do trabalho – estudo sobre psicopatologia do trabalho. o Paulo:
Cortez: Oboré, 1992, p. 68.
34
Para um tratamento téorico e histórico do tema ver Emmanuel Renault. Souffrances sociales:
philosophie, psychologie et politique. Paris: La Decouverte, 2008.
35
Ver análise de Flach et al. sobre como a revista VoS.A. aborda o sofrimento decorrente do
trabalho. Via de regra, o sofrimento é atribuído à gestão dos recursos de cada um. Leonardo
Flach, Carmen Grisci, Franciele Silva, Vanessa Manfredini, V. Sofrimento psíquico no trabalho
contemporâneo: analisando uma revista de negócios. Psicologia & Sociedade; 21 (2): 193-202,
2009.
28
Algumas das novas patologias ganham tamanha superexposição que fica a
suspeita de que elas sejam, afinal, uma patologia da mídia, consideração que
não implica que estejamos negando a severidade de determinados casos.
Estamos pensando nos transtornos alimentares, isto é, anorexia e bulimia.
Embora casos dispersos de anorexia sejam conhecidos, há séculos,
a inanição auto-induzida foi historicamente rara e limitada a casos
isolados. Mas no o recente ano de 1978, Hilda Bruch, a
popularizadora da anorexia, chamaria a anorexia de uma ‘nova
doença’. Por volta de 1985, entretanto, era impossível encontrar
uma jovem de classe média que não conhecia a anorexia
nervosa.
36
Como foi dito acima, se certos tipos de sofrimentos são superestimados,
outros são negados e expulsos do campo clínico, teórico e político. E logo salta
aos olhos um descompasso entre a invisibilidade do sofrimento que é gerado no
trabalho e a superexposição das novas psicopatologias.
O que se passa, então, nas fábricas, nos escritórios, no comércio e no
serviço público? Em La déprime des opprimés, Coupechoux realizou uma
incursão sobre esse terreno que lhe permitiu constatar que o adoecimento
psíquico decorrente do trabalho é um fenômeno de massa.
37
Os números abaixo citados o medida do que se passa no mundo do
trabalho.
Uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicada
em 2003 aponta que, a cada ano, ocorrem, em todo o mundo, cerca de 270
miles de acidentes de trabalho, 160 milhões de casos de doenças ocupacionais
e mais de 1,5 milhão de mortes.
38
Número que supera em muito as mortes
resultantes de conflitos bélicos.
No Brasil, os dados mais recentes são relativos ao ano de 2007, quando
houve um total de 653.090 acidentes de trabalho, entre acidentes típicos, de
trajeto e doenças do trabalho. Nesse mesmo ano, da quantidade de acidentes
liquidados, isto é, juridicamente finalizados, 580.592 resultaram em incapacidade
36
Allan Horvitz, idem, p. 124
37
Patrick Coupechoux. La déprime des opprimés – enquête sur la souffrance psychique em France.
Paris: Éditions du Seuil, 2009, p. 18.
38
Vale lembrar que a expressão acidentes de trabalho é usada na literatura de modo a incluir
acidentes picos, acidentes de trajeto (acidentes de trânsito na ida ou na volta do trabalho) e
doenças ocupacionais. Os dados citados foram retirados de Vilma Sousa Santana et al. Acidentes
de trabalho: custos previdenciários e dias de trabalho perdidos. Revista Saúde Pública, o
Paulo, v. 40, n. 6, dez. 2006 .
29
temporária, 8.504 casos, em incapacidade permanente e 2.804 casos em
óbitos.
39
Em pesquisa feita pela Universidade de Brasília e Instituto Nacional de
Seguro Social (INSS), em 2007, coordenada pela Profa. Dra. Anadergh Barbosa
Branco, conclui-se que 48,8% dos trabalhadores brasileiros que se afastam por
mais de 15 dias o fazem por conta de sofrimento psíquico, com destaque para a
depressão. No entanto, segundo a mesma pesquisa, 99% desses casos para os
quais foram concedidos benefícios do INSS, foram classificados pelo próprio
órgão como problemas pessoais, sem nenhuma menção ao trabalho.
40
Paradoxalmente, numa época marcada pela superestimação dos
transtornos mentais e da medicalização da sociedade, o sofrimento no trabalho é
expulso do campo clínico, teórico e político.
Por que há sofrimentos que são superestimados enquanto outros são
ocultados?
Por que, apesar do trabalho passar a ocupar um espaço maior em nosso
cotidiano, ele desaparece da produção acadêmica sobre subjetividade e
sofrimento?
O conceito de invisibilidade é capaz de explicar tal operação de recalque do
trabalho e de seu sofrimento? Seria o sofrimento no trabalho invisível?
Acreditamos que embora seja pertinente, o conceito de invisibilidade não
abrange todas as situações nas quais o sofrimento está em jogo. Se há situações
de invisibilidade, também a, muito manifesta, exploração do sofrimento pela
organização do trabalho. Isto é, o sofrimento se tornou, por assim dizer,
funcional dentro da organização do trabalho. A psicodinâmica do trabalho (daqui
em diante, PDT) ainda está extraindo todos desdobramentos da formulação
segundo a qual as resistências ao sofrimento acabam por ser funcionais dentro
da organização do trabalho.
Talvez seja o caso de reformular nossa pergunta. Ao invés de buscar as
razões do ocultamento do trabalho, devêssemos perguntar sobre o alcance das
análises sobre a interação subjetividade e sociedade que não levam em conta o
39
Dados da DATAPREV, do Ministério da Previdência, organizados pelo Departamento Intersindical
de Saúde do Trabalhador (DIESAT) e publicados em Anuário estatístico de acidentes de trabalho de
2007. Disponível em www.diesat.org.br, acessado em 17/01/2010. Apesar dos números altíssimos,
o Anuário ressalta: “que ainda [há] no Brasil uma alta taxa de subnotificação de acidentes de
trabalho”, p. 2.
40
Cf. Sueli Teixeira. A depressão no meio ambiente do trabalho e sua caracterização como doença
do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho. Reg., Belo Horizonte, v.46, n.76, p.27-
44, jul./dez.2007.
30
trabalho. Vale lembrar que desde Freud, passando pelos frankfurtianos, o
trabalho nunca esteve ausente na crítica da cultura.
O que se ganha e o que se perde com o conceito de sintoma social quando
sua definição se distancia em demasia da reprodução material da sociedade?
41
O mesmo poderia ser dito a respeito de uma certa concepção de
“patologias do social” que aposta na indeterminação como único meio de evitar o
positivismo nosográfico e garantir o reconhecimento da individualidade.
Curiosamente, o resgate de um termo positivista, como “patologia”, é marcado
por uma leitura pós-moderna.
42
Não é nosso objetivo aqui entrar nas contendas do mundo psi. o se
trata de desmerecê-las, muito pelo contrário. O que nos interessa aqui é que a
transposição desses termos para o terreno social pode levar à impotência do
pensamento, o que por sua vez, inviabiliza a prática política.
O sofrimento no trabalho, pela simples razão da exisncia dos
constrangimentos da organização do trabalho, não deve e não pode ser tratado
por meio de conceitos que perdem de vista a dominação política e a exploração
econômica. Sem que estejamos com isso defendendo que o sofrimento seja
diretamente causado pelo trabalho, pois é preciso estabelecer as mediações da
subjetividade.
As chamadas ciências do trabalho ainda não estão consolidadas, pelo
contrário, muito a fazer. Mas, pode-se afirmar que a clínica do trabalho
demonstra que o conhecimento do trabalho é possível e que é ele está em jogo
no processo saúde-doença.
Segundo Renault, tal conhecimento não é possível como é necessário,
pois o sofrimento social decorrente do trabalho e da desfiliação pode ser um
tema com potencial para renovar a pauta política de sindicatos, de movimentos
sociais e da esquerda?
43
Talvez a dificuldade enfrentada pelo campo da saúde mental e trabalho
esteja relacionada com uma certa naturalização dos constrangimentos pelos
quais passam o próprio trabalho. Para esse caso vale também os dizeres de
41
Para dessa utilização de sintoma social ver Maria Rita Kehl. O tempo e o cão atualidade das
depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
42
LATESFIP. Patologias do social: a razão diagnóstica entre a psicanálise e a teoria social ctica.
Projeto de Pesquisa (2008). Nesse caso, a exclusão do trabalho em prol de uma nova “sociedade
do consumo” é uma opção claramente defendida pelo autores.
43
Emmanuel Renault. Lexperience de l’injustice – reconaissance et clinique de l’ injustice. Paris: La
Découverte, 2004.
31
Heiner Müller sobre a guerra: “Se ninguém estudar a guerra, ninguém vai
impedi-la. E se ninguém pode impedi-la, então ninguém vai querer saber sobre
isso.”
44
Deixando em suspenso por enquanto as questões teóricas. É possível
observar casos para os quais o diagnóstico é relativamente fácil de ser obtido.
Mas, a despeito dessa facilidade, o diagnóstico não é realizado. Aqui a tendência
é oposta à da superestimação do sofrimento. Vejamos alguns exemplos.
uma nova legislação sobre acidentes e doenças ocupacionais no Brasil
que representa um inegável avanço. Trata-se do Nexo cnico Epidemiológico
Previdenciário (NTEP) legislação do Ministério da Previdência aprovada, em 2006,
que vincula o CID-10 com a atividade econômica. Se, em determinada atividade,
maiores incidências de uma doea tem-se a comprovação do nexo. Além
disso, com a nova lei fica a cargo da empresa, e não mais do trabalhador, provar
que a queixa apresentada pelo trabalhador não seja decorrente de sua função no
trabalho.
Mas depois que o NTEP passou a vigorar, os médicos peritos do INSS
apresentaram certa resistência à referida legislação e o alta para funcionários
impossibilitados de retomar às suas atividades, o que aliás não deixa de ser
comemorado, pois os médicos se orgulham por não sobrecarregar a da
previdência. O que é voltar da licença saúde? É ser tima de assédio moral. No
entanto, o agravamento do quadro pode vir antes, na sala do INSS quando
trabalhador-paciente é humilhado.
45
Outro exemplo em que a superestimação cede espaço para seu contrário é
o caso de soldados norte-americanos que, recrutados entre o contingente sem
trabalho e recursos para o ingresso nas universidades, têm retornado do Iraque
e do Afeganistão com estresse pós-traumático, mas não são diagnosticados
como tal. O problema não é tão simples como parece, apesar de afrontar a mais
elementar técnica clinica, que talvez não haja nenhuma relação mais evidente
44
A tradução é de Douglas Anfra, que a utiliza em sua pesquisa de mestrado. Da guerra ao
trabalho. Departamento de Filosofia, 2009 (em preparo).
45
Trata-se de casos e não temos condições, no âmbito dessa pesquisa, de fazer generalizações
sobre a atuação dos peritos do INSS. Essas informações foram colhidas em entrevista realizada
com Pérsio Dutra, diretor do DIESAT e secrerio de saúde do Sindicato dos Trabalhadores em
Processamento de Dados e Empregados de Empresas de Processamento de Dados do Estado de
São Paulo, no dia 12 de março de 2010.
32
entre ocupação profissional e sofrimento do que aquela que se entre o ofício
da guerra e estresse pós-traumático.
46
Nesse caso, talvez, um simples diagnóstico extrapolaria o limite do
sistema. Por isso, os dicos peritos passam ao largo da evidência mais palmar
e, ao invés, de classificar o sofrimento psíquico dos veteranos de guerra como
estresse pós-traumático, o classificam como transtorno de personalidade, cuja
origem remonta à infância, sendo assim, nem as Forças Armadas, nem o
governo dos EUA têm alguma responsabilidade.
47
Aqui e alhures é preciso colocar o trabalho em causa, pois a epidemia
depressiva em curso é, em boa parte, criada pela organização do trabalho.
Inclusive, como vimos, mesmo o órgão blico brasileiro responsável pela sde
do trabalhador trata o sofrimento psíquico oriundo do trabalho como algo
pessoal.
46
Joshua Kors, Disposable Soldiers. The Nation, 8/04/2010. Segundo estudo da Universidade de
Harvard citado pelo autor, os militares estão economizando bilhões por dispensar soldados que
retornam do Iraque e Afeganistão com transtorno de personalidade.
www.thenation.com/article/disposable-soldiers. Acessado em 15/04/2010.
47
Os problemas resultantes do campo de batalha não se restringem ao estresse pós-trautico e
são de grandes proporções: “dezoito veteranos de guerra se suicidam a cada dia nos Estados
Unidos, mais que os soldados que morrem em combate.”
Cf. Texto para a IPS de Aaron Glantz,
autor de The War Comes Home: Washington's Battle Against America's Veterans.
http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=91029, acessado em 15/12/2009. De todo modo, isso não
se compara com o sofrimento dos homens e mulheres dos países ocupados pelas tropas estado-
unidense. Alías, foi exatamente nesses termos que Naomi Klein explicou, no calor da hora, o 11 de
setembro. A motivação dos atentados terroristas era corrigir a “assimetria do sofrimento”, ou seja,
fazer a balança pesar um pouco do outro lado, depois do imperialismo ocidental moderno. Naomi
Klein. Game Over: The End of Video Game Wars, Globe and mail, 14/9/2001.
www.naomiklein.org/articles/2001/09/game-over-end-video-game-wars, acessado em
12/03/2006.
33
Capítulo 2
Sobre a epidemia depressiva
Como dito, anteriormente, o transtorno de humor depressivo é uma
categoria psicopatológica que ainda não foi definida com clareza nos catálogos
nosográficos. Depressão pode abarcar afecções e estados de ânimo tão variados
quanto inibição, tristeza, fadiga, apatia, irritação, ansiedade, insônia ou excesso
de sono, perda de apetite, predisposição ao suicídio etc.
48
Isso, porém, é um dos motivos de seu sucesso psiquiátrico e sociológico.
Essa imprecisão encontra paralelo na medicamentação indiscriminada dos
antidepressivos, seja da antiga geração dos tricíclicos criados em 1957, seja da
mais recente fluoxetina, comercializada desde 1988 e mais conhecida como
prozac. Para além do transtorno psiquiátrico, tais medicamentos são receitados
para regimes, tensão pré-menstrual, menopausa, luto, ejaculação precoce etc.
Na psiquiatria, a despeito do uso e abuso desse transtorno de humor, não
nenhuma concordância a respeito de sua natureza e suas causas. No DSM IV
- TR, a sintomatologia é formada por um conjunto amplo de categorias de modo
a contemplar diferentes casos sob o diagnóstico de depressão.
A nova classificação é construída em torno de 5 eixos, dentre eles o que
nos interessa aqui é o dos transtornos, os quais são subdivididos em transtorno
de humor, de ansiedade etc. Os episódios depressivos e o transtorno depressivo
maior estão incluídos no grupos dos transtornos de humor [mood disorders].
Para a identificação de um episódio depressivo é necessário que o paciente
se enquadre em ao menos 5 sintomas dentre os 9 descritos pelo DSM IV – TR.
49
Além da imprecisão, há boa dose de arbitrariedade, pois segundo o
Manual, a principal característica do episódio depressivo é que a pessoa
apresente, em ao menos duas semanas, “humor depressivo (sic - a redundância
não é nossa) ou perda de interesse e prazer em quase todas as atividades.”
48
“Imprecisão e heterogeneidade, quarenta anos após a descoberta dos antidepressivos, a
psiquiatria pena em produzir uma teoria da depressão.” Alain Ehrenberg. La fatigue detre soi
depression et societé. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998, p. 83.
49
“The essential feature of a Major Depressive Episode is a period of at least 2 weeks during which
there is either depressed mood or the loss of interest or pleasure in nearly all activities. In children
and adolescents, the mood may be irritable rather than sad. The individual must also experience at
least four additional symptoms drawn from a list that includes changes in appetite or weight, sleep,
and psychomotor activity; decresed energy; feelings of worthlessness or guilt; difficulty thinking,
concentrating, or making decisions; or recurrent thoughts of death or suicidal ideation, plans, or
attempts.” APA. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, edição, Texto Revisado.
Washington, DC: American Psychiatric Association, 2000. p. 349.
34
Ora, é absolutamente possível que determinada pessoa apresente esses
sintomas por um tempo bem maior que duas semanas sem que esteja
deprimida. São inúmeros os possíveis contra-exemplos, mas para nossos
propósitos os que seguem são suficientes.
Durante um inverno longo e rigoroso é absolutamente normal que nosso
humor seja razoavelmente afetado por mais de duas semanas. Durante a
adolescência, além de normal, pode ser até positivo do ponto de vista do
desenvolvimento do indivíduo (sobretudo numa sociedade que estende a
adolescência) que o jovem fique por mais de duas semanas irritado e “de mal
com o mundo”.
Não se trata aqui de fazer o elogio do sofrimento, muito pelo contrário.
Trata-se de questionar sua superestimação, ou seja, a tendência de transformar
um afeto, por pouco “desvianteque seja, em sofrimento. Afinal, quem não se
adequaria a esses critérios do DSM, sem saber” que era um depressivo? Em
outra passagem, o Manual estabelece que situações de luto, transcorridos dois
meses da perda é um indício de depressão.
50
Não é preciso dizer que as manifestações de luto comportam enorme
variância individual e cultural. O que está subjacente no estabelecimento de tais
limites temporais para a dor é a mobilização permanente do estudante e do
trabalhador. Nesse contexto, valores como competitividade e produtividade
entram em choque com o tempo do sofrimento, ou mesmo do ócio e da produção
que não atende as finalidades da mobilização.
Além da via aberta pelo Manual, há outros fatores que levam à “promoção
da noção de depressão como um transtorno real’” e, com efeito, para o
surgimento e crescimento da epidemia depressiva.
As associações de psiquiatria representam profissionais com interesses
específicos. Esses profissionais buscam aumentar sua influência na sociedade e
perante outras ciências e outras áreas da medicina. Além disso, em relação aos
EUA, lobbies de pacientes e familiares formados para dentre outras coisas
pressionar os planos de saúde que relutam em aceitar plenamente os transtornos
mentais.
51
50
Cf. Facó, ibidem, p. 116.
51
um manifesto chamado The Consensus Statement encabeçado pela National Depressive and
Maniac-Depressive Asssociation que se baseia nos dados epidemiológicos notoriamente
superestimados, da National co-Morbity Survey. Cf. Horwitiz, idem, p. 76.
35
Setores da administração pública e pesquisadores também têm interesse
em transformar a depressão em uma doença para, assim, conseguir mais verbas
na encarniçada disputa dentro do orçamento federal norte-americano.
A despeito da imprecisão que leva à superestimação na epidemiologia e ao
abuso de psicotrópicos, seria equivocado ficar apenas na crítica a esses fatores.
Pois, se mudarmos o ângulo da análise, uma efetiva presença da epidemia
depressiva no mundo atual.
Não deixa de ser válido questionar que o sofrimento social bem
disseminado em nossa sociedade seja capturado pela psiquiatria. Horwitz, por
exemplo, entende que na vida cotidiana, há fatores estressores e as pessoas que
reagem normalmente a tais fatores e suas circunstâncias sociais, ao
responderem aos surveys, são classificadas como depressivas.
52
Nossa discordância com Horwitz é que ele toma os fatores estressantes
como se fossem uma invariável física. Seria necessário caracterizar esse fatores
ou, em outras palavras analisar as condições sociais do sofrimento, embora,
como foi dito, não possamos desconsiderar esse vetor, pois nos encontramos
num momento que o DSM - referência em todo o mundo - representa a
expressão máxima de uma biopolítica global.
Tendo isso em conta, usamos aqui o termo sofrimento depressivo e não
doença e transtorno. Pois acreditamos que há sim um sofrimento social
disseminado e que ele tem características depressivas, mas isso não nos permite
falar em depressão enquanto uma doença.
Mas separar superestimação e sofrimento social não é tarefa simples. Se
não vejamos os dados da OMS baseados em seu CID-10, cujas bases
epistemológicas não diferem muito do DSM IV.
Segundo a OMS, além de ser a doença psiquiátrica mais diagnosticada, a
depressão é a segunda causa de invalidez entre todas as doenças sicas e
psíquicas, perdendo apenas para as doenças cardiovasculares. Para Shekhar
Saxena, do Departamento de Saúde Mental da OMS, em 2030 a depressão será
a doea de maior incidência em todo o mundo. Será também a primeira em
termos de carga de doença [burden of disease], isto é, uma medida baseada em
anos perdidos por morte prematura, ou por incapacidade prolongada e invalidez.
Ainda segundo Saxena, uma relação diretamente proporcional entre pobreza
52
Horwitz, idem, p. 98.
36
e depressão, ou seja, sua incidência é maior em pses pobres, ou em bairros ou
regiões pobres de cidades e países ricos.
53
Biopolítica ou um mais que necessário alarme de emergência? Certamente,
os dois, e nessa intersecção há relevantes caminhos de pesquisa a serem
seguidos. Mas, daqui em diante, abandonaremos o vetor da biopolítica e
adotaremos a posição de que um sofrimento social em curso que pode ser
designado pela expressão epidemia depressiva, a qual abrange o centro e a
periferia mundial, as diferentes classes sociais e os gêneros.
É nos apoiando numa das mais graves consequências da depressão que
tomamos essa posição. As cifras de suicídios no mundo, contabilizadas pela OMS,
impressionam:
O suícidio está entre os mais trágicos resultados dos transtornos
mentais. A OMS estima que, em escala mundial, há
aproximadamente um milo de mortes por ano e um número 20
vezes maior de pessoas tentam de suicídio.
54
O número de morte de pessoas que, a cada ano, voluntariamente,
puseram um fim às suas próprias vidas, representa o dobro das mortes em
conflitos bélicos, se adotarmos, o ano de 1999 como comparação.
55
A mesma OMS estima que os casos de suicídio cresceram 60% nos últimos
45 anos, mas que entre 2002 e 2020, o aumento poderá ser de 74%, ou seja,
muito maior que o crescimento populacional.
56
53
Dados divulgados na Cúpula Global de Saúde Mental, em Atenas, em setembro de 2009 e
retirados de http://news.bbc.co.uk/2/hi/8230549.stm (acessado em 2 de dezembro). Preferimos
citar essa fonte, já que os dados do site da OMS-WHO, estão desatualizados.
54
Mutsuhiro Nakao e Takeaki Takeuchi. The suicide epidemic in Japan and strategies of prevention.
Bulletin of the World Health Organization v.84, n.6, Genebra, jun. de 2006, p. 1.
55
Estranha paz essa em que a morte voluntária representa o dobro das mortes em guerra.
Seguindo a intuição de Ernest Jünger, essa paz parece mesmo o representar a ausência de
guerra, uma época que talvez seja melhor descrita pelo conceito de mobilização total. Ora, não é
insignificante essa passagem ao ato de 20 milhões de pessoas, a cada ano. Para dimensionar
melhor basta imaginar toda a Grande São Paulo voluntariamente se dirigindo para o limiar entre a
vida e a morte, isso todos os anos. Mas comportamentos auto-destrutivos que dão vazão à pulsão
de morte estão em toda a parte. Depois da luta de classes perder espaço como força organizadora
do conflito político, isso na mesma hora em que a referência nacional deixa de imantar identidades
regionais ou étnicas, o que ocupa espaço é o individualismo negativo. No comentário de Arantes ao
texto de Rancière: “à sua maneira, graças às instituições do [Estado de bem-estar social],
alternadamente edificado e calibrado pelo peso específico dos parceiros sociais relevantes (Estado,
centrais sindicais e patronais), pacificaram um certo mero de pulsões de angústia, de ódio e de
morte’, perturbações enfim que hoje agitam indivíduos e grupos partir do sentimento da
identidade ameaçada e da autoridade ameaçadora”. Paulo Arantes, Alarme de incêndio no gueto
francês uma introdução à Era da Emerncia, mimeo, p.36, nota 22.
56
Cf. “Bairros mais ricos de São Paulo têm maior taxa de suicídio (sic)”. Folha de São Paulo, 18 de
março de 2010, Caderno Cotidiano, p.9. Embora traga dados inesperados como o Itaim Bibi,
Moema e Morumbi entre os doze bairros com maiores taxas, a matéria se equivoca em classificar
entre os bairros mais ricos Brás, Cambuci, Sé e Republica, nesses últimos a taxa também é alta.
37
Mesmo numa época apática que o ouvidos aos alarmes, depois do
desemprego estrutural, do aquecimento global e da irrelevância da democracia
representativa, é preciso chamar atenção para as conseqüências psíquicas da
civilização e de sua mobilização para o trabalho alienado, o que tornou a vida
medíocre ou mesmo insuportável, se considerarmos, com a merecida ateão, a
estatística mundial de suicídios.
2.1 Depressão e sociedade
Nós caímos todos doentes nessas consultas,
e s nos mantemos, no melhor dos casos, à beira da
imponcia crônica. (...) Os clínicos que se apóiam em
conceitos mais “light” estão certamente melhor que nós.
Marie Pezé
Na teoria psicanalítica, a depressão é considerada, na maioria das vezes,
apenas um sintoma que pode estar presente em estruturas psíquicas e mesmo
enquanto sintoma nunca foi teorizada sistematicamente pelos autores clássicos
da psicanálise. uma tendência no meio psicanalítico, ainda minoritária,
representada, por exemplo, por Kehl, que um maior estatuto a essa
psicopatologia.
57
se situam, também, teóricos que defendem a existência de
uma nova economia psíquica, da qual resultariam as novas psicopatologias.
58
É do conhecimento de todos a sentença geralmente tomada como síntese
dos escritos sobre cultura de Sigmund Freud, a saber, a civilização se funda na
renúncia pulsional e no adiamento da satisfação. Essa interpretação das forças
em jogo no interior da cultura estabeleceu um campo de pesquisa que percorreu
todo o século XX; ora foi entendida como conservadora que sua tese básica
contrariava as energias utópicas anti-capitalistas, ora foi acolhida pelo seu
potencial crítico, já que retirava o véu ideológico, marcante nas noções de
progresso e civilização. Herbert Marcuse, por exemplo, desde o título de seu Eros
e civilização, advoga, nos mesmos termos freudianos, a possibilidade de
conciliação entre vida civilizada e gratificação pulsional.
59
57
Maria Rita Kehl. O tempo e o cão – a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
58
Para uma posição bem clara a respeito ver Charles Melman. O Homem sem gravidade gozar a
qualquer preço (entrevistas com Jean-Pierre Lebrun). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
59
Herbert Marcuse. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
38
Em seu Mal-estar na cultura, Freud se propõe a investigar as
possibilidades de felicidade. Seguindo suas observações clínicas, trata com
desdém a concepção de felicidade enquanto um estado permanente. Ao seu ver
a felicidade é um fenômeno episódico ligado à satisfação pulsional. Mas,
a satisfação pulsional precisamente porque implica tal felicidade se
converte em causa de sofrimento quando o mundo exterior nos
priva dela, negando a satisfação de nossas desejos.
60
Por ‘mundo exterior pode-se entender preceitos morais e obrigações
cotidianas impostas pela civilização. Então, a relação entre a conduta requerida
pela civilização e as demandas pulsionais constitui o terreno para a formação de
neuroses.
No entanto, não são apenas as regras da civilização que podem causar
sofrimento. Algumas individualidades são mais suscetíveis às patologias por
conta de problemas em sua formação psíquica.
Aqui a compreensão e a terapêutica psicanalítica vão diferir de outras
formas de tratamento mental, pois a etiologia da doença não é orgânica e sua
cura não se baseia na medicamentação, mas se pela fala dos pacientes que,
com o auxílio do psicanalista, logrará o reordenamemto de seus componentes
libidinais.
Quem chegue ao mundo com uma constituição particularmente
desfavorável, dificilmente, acha a felicidade em sua situação
ambiental, sobretudo se encontra frente a tarefas difíceis, a menos
que haja efetuado a profunda transformação de seus componentes
libidinais, imprescindível para todo o rendimento futuro.
61
O conflito constitui o ser humano e o que uma análise pode fazer é retirá-
lo de um sofrimento intenso e colocá-lo diante das agruras e percalços comuns
da vida de qualquer um. Mas novas configurações sociais poderiam tornar a vida
mais prazerosa e possibilitar maior satisfação aos sujeitos ainda sob a
civilização?
Boa parte das lutas da humanidade se dá em torno do único fim de
estabelecer um equilíbrio adequado (isto é, que dê felicidade a
todos) entre a reivindicações individuais e coletivas; um dos
problemas do destino humano é saber se esse equilíbrio pode ser
60
Sigmund Freud. O mal-estar da cultura. In. Obras Completas: Buenos Aires: El Ateneo, 2003,
vol. III. p. 3026.
61
Mal-estar na cultura, Idem, pág. 3030.
39
alcançado em uma determinada cultura ou se o conflito é em si
inconciliável.
62
Apesar do expediente retórico usado no trecho supracitado, a posição do
fundador da psicanálise parece ser a mesma dada em relação à psique: ‘o
conflito é em si inconciliável.
No entanto, chama atenção os momentos da obra de Freud que, por força
dos acontecimentos, essa civilização que é tomada quase como um dado
antropológico, que nunca é qualificada nem de moderna, nem de burguesa, é
confrontada com fatos indeléveis.
Qual foi o impacto da Guerra Mundial na obra do fundador da
psicanálise?
A Grande Guerra terá amplas repercussões na obra de Freud. Mesmo que,
a rigor, os impulsos primitivos egoístas e cruéis tenham sido contemplados desde
o início na teoria psicanalítica, esse acontecimento representa uma espécie de
retorno do recalcado: “não extermínio do mal”! A agressividade nas
trincheiras e a morte em massa nos campos de batalha da Grande Guerra o
atestam.
63
Nem pela evolução da humanidade, nem pelo trabalho pedagógico da
civilização, não nenhuma supressão possível dos impulsos destrutivos e
portanto, anti-sociais e anti-culturais dos homens; “todo indivíduo é virtualmente
inimigo da civilização”, sendo assim, ela “tem que ser defendida contra o
indivíduo.”
64
Para além desse registro, o que nos interessa em Reflexões sobre a guerra
e a morte é a sua contemporaneidade com Luto e melancolia, as duas obras são
redigidas no ano de 1915, sendo que precedem em apenas quatro anos Além do
princípio do prazer. Quem nos chama nossa atenção para a proximidade
temporal e teórica desses textos é Jacques Hassoun em seu A Crueldade
Melancólica.
65
É o retorno do recalcado desencadeado pela Grande Guerra que colocará
os impulsos agressivos em primeiro plano, movimento esse que desembocará na
62
Op. cit. pág. 3037.
63
Sigmund Freud. Consideraciones de actualidad sobre la guerra y la muerte. In. Obras
Completas: Buenos Aires, El Ateneo, 2003, vol. II. g. 2015.
64
Cf. Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1997, pág. 17.
65
Jacques Hassoun. A crueldade melancólica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
40
elaboração de um segundo dualismo psíquico, que é exposto no Além do
princípio do prazer.
Assim, no início da teoria freudiana, temos o primeiro dualismo pulsional
no qual as pulsões de conservação e as pulsões sexuais se opõem. Distinção que
metaforicamente se traduz em fome e amor. Esse dualismo cai por terra em À
guisa de introdução ao narcisismo, pois “o Eu constituía o verdadeiro e original
reservatório da libido.”
Essa libido narcísica também era manifestação das pulsões sexuais e o
primeiro objeto a ser investido libidinalmente era o próprio eu. “Com isso, a
primeira oposição que haamos suposto existir entre as pulsões do Eu e as
pulsões sexuais tornou-se uma hipótese insatisfatória.”
66
Mas Freud, em seguida
relativiza essa afirmação, pois o primeiro dualismo pode ser conservado a partir
de uma perspectiva tópica, o que permite manter um dos pilares da psicanálise:
o conflito entre o Eu e o investimento libidinal de objeto.
O novo dualismo que se estabelece agora é entre pulsão de vida e pulsão
de morte. Sendo que a pulsão de vida na verdade é formada por um conjunto de
pulsões sexuais parciais, ou seja, são todas dotadas de libido. a pulsão de
morte é uma tenncia de retorno ao inorgânico, contrária à vida e se manifesta
pela ‘compulsão à repetição’.
Só depois de haver o enlaçamento da pulsão é que se estabelece o
domínio irrestrito do princípio de prazer e de sua modificação em princípio de
realidade. Enquanto isso o acontece, a excitação opera sem levar em conta o
princípio do prazer. Assim, ela assume o caráter demoníaco da compulsão à
repetão, que, por sua vez, pode ser observada nas adicções, na resistência em
transferência sob a forma de acting-out. A compulsão à repetição é mais arcaica,
mais elementar e mais pulsional que o princípio de prazer.
Freud acrescenta a esse dualismo básico uma outra polaridade: a
ambivalência encontrada no “amor objetal entre o amor (ternura) e o ódio
(agressão).” Esse componente agressivo é o que vai se manifestar no sadismo,
quando ele é dirigido para fora, e no masoquismo, quando ele se volta para
dentro. A violência na relação sexual é uma clara expressão do domínio da
66
Sigmund Freud. Além do princípio do prazer. In. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio
de Janeiro: Imago Ed., 2006, vol. II. pág. 173.
41
pulsão de morte sobre Eros, ela pode mesmo se “tornar independente e dominar
a totalidade do empenho sexual da pessoa.”
67
No entanto, é somente em O mal-estar na cultura que Freud vai radicalizar
a independência da pulsão de morte.
não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a
ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e
falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da
vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para dentro, de fato
foge grandemente à nossa percepção, a menos que esteja
revestido de erotismo.)
68
Voltemos agora para a afecção melancólica com uma questão em mente.
Qual seria a função da pulsão de morte no exacerbado sentimento de culpa e na
desvalorização de si tão característicos da melancolia, o pathos mais propício ao
suicídio?
Sigmund Freud tratou da depressão em seus primeiros escritos
psicanalíticos que, inclusive, não eram destinados à publicação e volta ao tema
uma única vez, vinte anos depois, quando prefere a expressão melancolia.
69
É sabido que em Luto e melancolia, Freud descreve a melancolia como
uma perturbação narcísica, já que o investimento libidinal se desliga do objeto e
retorna ao eu. Ou seja, em indivíduos que possuem uma predisposição, a
melancolia surge como uma resposta psíquica à perda de objeto e o luto, então,
assume um aspecto patológico. A sintomatologia da melancolia e do luto guarda
muitas semelhanças: perda de interesse, incapacidade de amar e de escolher um
novo objeto.
Contudo, as duas afecções se diferenciam num aspecto crucial, a saber, a
depreciação do sentimento-de-Si. Essa desvalorização do eu é marcante na
melancolia e está ausente no luto normal. Ao contrário daquele que padece no
luto, o melancólico “sabe quem ele perdeu, mas não sabe o que se perdeu com o
desaparecimento do objeto amado.”
70
Esse não saber é o indício de que a perda melancólica é inconsciente,
diferentemente do registro consciente da situação de luto. Presa dessa perda
inconsciente, o eu se empobrece e nisso parece haver mais do que uma
67
Op. cit. pág. 174.
68
Mal-estar na cultura, Idem, pág. 3051.
69
Luto e melancolia In. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2006, vol. II.
70
Sigmund Freud. Luto e melancolia. In. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 2006, vol. II, p. 105. Grifos do autor?
42
inibição – e anseia ser rejeitado e punido. A auto-depreciação o é apenas uma
consideração a respeito de si mesmo, pois ela é acompanhada de uma repetição
incessante de expressões e pensamentos de auto-desprezo e de culpa. Nessa
posição masoquista, “a pulsão que compele todo ser vivo a apegar-se à vida é
subjugada.”
71
Comumente, consideramos que o narcisista é aquele que possui uma
imagem excessivamente positiva a respeito de si mesmo. Se assim o fosse, o
melancólico seria avesso do narcisista, no entanto, de uma perspectiva
psicanalítica, nota-se uma convergência: em ambos os casos o Eu é focalizado,
em detrimento dos objetos.
Mas por que uma situação de perda do objeto implicaria na vitimização do
próprio eu? A sombra do objeto recai sobre o Eu porque a escolha de objeto
desde o início foi de tipo narcísica. Ao mesmo tempo em que investimento
libidinal, uma fraca resistência do objeto. Essa a “constelação psíquica da
rebelião”: o Eu se revolta contra o objeto, mas essa rebelião se transforma em
depressão melancólica, pois o Eu se identificou com o objeto abandonado. Assim,
quando o sujeito se censura, inconscientemente, está recriminando o objeto.
A desvalorização narcísica acaba por transbordar e contaminar todo o
entorno; se o Eu não é investido de libido nada mais o é; em outras palavras, na
melancolia toda a realidade é desinvestida. O sujeito abole qualquer possibilidade
de eleger um objeto e, “nessa repetição encarniçada do afastamento de todo o
investimento, torna-se patente a atividade da pulsão de morte, que o prazer
regressivo de negar só faz reforçar.”
72
Além da compreensão psicanalítica do problema, é preciso lembrar que a
figura do deprimido é historicamente retratada de diferentes formas.
Em O tempo e o cão, Maria Rita Kehl afirma que o deprimido é um herói
sem saber. Inconscientemente, ela nega a temporalidade acelerada sob a qual
todos vivem, ele sabe também que a temporalidade hegemônica é falsa,
desprovida de sentido e que o ritmo cotidiano acelerado é o ritmo de
experiências superficiais e de uma vida subjetiva pobre.
71
Op. cit. p. 106.
72
M.-C. Lambotte, verbete ‘melancolia. In. Pierre Kaufmann (org.). Dicionário enciclopédico de
psicanálise - o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 239.
43
Mas o deprimido também é visto como um tipo social apassivado. Outrora
era um rebelde e a agressividade presente em seu afeto não se voltada para si
mesmo, pelo contrário, mirava a ordem social.
73
Comparado com a melancolia romântica, o deprimido em tempos de
arrefecimento das energias utópicas é um sujeito muito polido em sua inibição:
constatando a catástrofe que representava habituar-se à idéia de
que não há mais saídas coletivas para os desastres de nosso
tempo, e que a atual epidemia depressiva dificilmente se explicaria
se esse impasse histórico fosse escamoteado, uma psicanalista
[Elisabeth Roudinesco] observou que hoje em dia os sujeitos
deprimidos o muito polidos.
74
Nessa mesma direção, vai uma pesquisa realizada por Carsten Wrosch e
Gregory Miller que acompanharam por 19 meses, 97 adolescentes do sexo
feminino no Canadá. Eles concluíram que um dos efeitos positivos de uma
depressão leve é uma espécie de reforço do princípio de realidade [na
terminologia dos pesquisadores: goal adjustment capacities”] Segundo os
psicólogos canadenses, as garotas que passaram por uma depressão leve [mild
depression] desistiam mais facilmente de objetivos inatingíveis e se engajavam
em projetos mais realistas. Além disso, as garotas com maiores capacidades de
regular os objetivos eram menos propensas a desenvolver uma depressão
severa.
75
A pesquisa pode estar correta em seus resultados. O problema é o que se
faz com tais resultados, ainda mais quando são divulgados em veículos de
circulação global. Ora, o problema é a valorização de um comportamento
adaptativo e a transformação, em mera veleidade de pensamentos e desejos
sobre as possibilidades perdidas ou futuras, sejam elas pessoais ou sociais. Mas
dada a atual configuração social, a depressão pode ter esse efeito adaptativo.
Ainda mais se está em jogo a infantilização em curso da sociedade do espetáculo
e seus sujeitos que se obrigam um vel de humor elevado e artificial - alto
astral, como se diz -, exibido 24 horas por dia.
76
Mas a pesquisa Wrosch e Miller não é estranha ao pressuposto de um
psicanalista de peso como Jacques Hassoun. Para Hassoun, o deprimido é aquele
73
Para uma análise da questão ver Michael Löwy e Robert Sayre. Revolta e Melancolia. O
romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis, Vozes, 1995.
74
Paulo Arantes. Zero à esquerda, São Paulo, Conrad, 2004. p. 231.
75
The Economist. Mild and Bitter - the evolucionary origin of depression, 27 de junho de 2009.
76
Muito embora, como veremos, os estudos cnicos do trabalho relatam que os adaptados também
sofrem, mas as pessoas que o mais comprometidas com o trabalho acabam por sofrer mais.
44
ser que deseja além do que a vida pode dar, não por infantilismo, mas por
constituição psíquica. Ele bem sabe vivenciar as felicidades do mundo, mas
sempre almeja por mais.
No mesmo Hassoun, encontramos um desdobramento do deprimido
apassivado, isto é, o melancólico cruel. A agressividade, comum no depressivo,
que toma a forma de culpabilização, se transforma num afeto proto-fascista
dirigido contra as massas, sobretudo, desfavorecidos e migrantes.
77
A transposição do plano psíquico para o social é uma passagem difícil de
ser operada. Uma importante referência bibliográfica a respeito da relação entre
fatores sociais e depressão é Alain Ehrenberg, notadamente, seu La fatigue
d´etrê soi. A obra é o último volume de uma trilogia iniciada com Le culte de la
perfomance, seguida de L´individu incertain.
78
A epidemia depressiva é explicada, em primeiro lugar, pelas mudanças nas
normas de conduta que não são mais pautadas pela disciplina e pela culpa e
passam a operar por meio das noções de responsabilidade e de iniciativa.
Embora a medicalização seja um fator da questão depressiva, para Ehrenberg, já
nos anos 1970, a depressão - acompanhada da drogadicção - se torna um
fenômeno de massa, ou seja, antes da invenção da fluoxetina e sem o
pessimismo marcante de nossos dias.
79
Uma segunda causa acerca do sucesso sociológico e psiquiátrico da
depressão é o declínio da referência ao conflito, tanto o conflito psíquico, quanto
o conflito social; por isso, Ehrenberg considera que Freud deixou de ser atual.
Para o sociólogo francês, a psicanálise é confrontada com um novo tipo de
paciente cuja característica é a perda de valor próprio. O que está em jogo é
uma necessidade de ser, uma “insegurança identitária crônica”, por isso se
destaca o termo personalidade depressiva, ou seja, a iia de que essa síndrome
77
“É difícil resistir à tentação – mas não mais do que isso – de identificar no homem do
subterrâneo, que afinal está emergindo nessa virada de século, a ‘posição depressiva’ cuja
onipotência inigualável vai deixando atrás de si um sombrio cortejo de vassalos, cidadãos
apassivados e apelos à tirania politicamente corretos. Jacques Hassoun - que estou citando -,
depois de considerar a possibilidade de regressão do estado de direito em nome do direito quer
dizer o estado de exceção rotinizado -, não hesita em incluir nessa galeria de melancólicos cruéis
“aquele que responde irrisoriamente ao massacre com efusão humanitária.[...] À reaparição na
cena social da multidão desorganizada e tetanizada pelo retorno funesto da garantia última da
‘consensualidade’, a esse ‘reino da estase, da inércia.Paulo Arantes. São Paulo: Boitempo, 2007.
p. 70.
78
Idem. Le culte de la performance. Paris: Hachette, 2005; idem, L’ individu incertain. Paris:
Hachette, 2005.
79
Cf. Alain Ehrenberg. La fatigue d’etre soi depression et societé. Paris: Éditions Odile Jacob,
1998, p. 19.
45
não revela mais uma neurose, mas uma patologia narcísica.
80
Assim, o sucesso
contemporâneo da depressão é revanche de Janet contra Freud, pois “a
insuficiência é para o homem contemporâneo o que o conflito era para o homem
da primeira metade do século XX.”
81
A questão do arrefecimento do conflito e da culpa, presente algum
tempo na teoria psicanalítica a respeito das novas psicopatologias, não é de
modo algum um consenso entre os psicanalistas. Em um extremo estão aqueles
que, por trás dos novos sintomas, encontram as patologias freudianas clássicas.
No lado oposto, estão aqueles que justamente para dar conta do mal-estar da
pós-modernidade, não relutam em repensar categorias psicanalíticas tão
fundamentais quanto o recalque.
Em vez dos dilemas referidos ao ‘recalque’ das pulsões sexuais
genitais ou pré-genitais, ou da agressividade sexualizada, outras
queixas se fazem ouvir: por que tenho tudo o que quero e nada
me contenta? (...) Por que, enfim, não encontro forças para mudar
e vencer a apatia existencial que parece me comandar?
82
Ao se contrapor à polarização simplificadora estabelecida pelo autor entre
sintomas, cuja causa estaria no recalque, e queixas de fundo existencial, Irene
Cardoso questiona se a identificação dessas novas formações subjetivas teria
como base uma teoria do psiquismo, cujo acento seria cultural, recusando,
portanto, uma perspectiva estrutural?
83
A partir de uma abordagem estrutural, a autora aponta nesta formulação
um sintoma do “desaparecimento cultural da psicanálise”. Parece ser o caso, pois
quando se abre mão do axioma do conflito intra-psíquico, o se trata mais de
psicanálise.
A análise de Ehrenberg não só se situa como se afirma a partir do
desaparecimento cultural da psicanálise de inspiração culturalista e opera com
um quadro comparativo de duas épocas. A partir dos anos 1950, se inicia uma
mudança normativa na qual se opera uma passagem do binômio permitido-
80
Cf. idem, ibidem, p. 138 e segs.
81
Idem, ibidem, p. 235. Janet a une conception statique de l´energie psychique: il appelle ‘force
psichologique la quantite de energie qu’une personne possedé, et ‘tension psichologique’ la
capacité à utiliser cette force – doú la centralité du theme de la fatigue. Dans la psychasthénie, ‘la
synthèse psychique” est déréglée (...) Cést l´insuffisance psychique qui empeche la synthése.
idem, ibidem, p. 47-48.
82
Jurandir Freire Costa. Playdoier pelos irmãos. in. Maria Rita Kehl. (org.) Função fraterna. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 13.
83
Idem. Subjetividade e cultura. Projeto de Pesquisa. Departamento de Sociologia FFLCH-USP,
2001, p. 11-12, grifo da autora.
46
proibido para o possível-impossível. Em outros termos, a mudança se dá, no
plano interior, da culpabilidade para a responsabilidade e, no plano exterior, da
disciplina para a iniciativa:
ontem as regras mentais demandavam conformismo, hoje, elas
exigem iniciativas e atitudes mentais. O indivíduo é confrontado a
uma patologia da insuficiência mais do que a patologia da falta, ao
universo da disfunção mais do que ao da lei, o deprimido é um
homem em pane.
84
Essa hipótese espresente em Le culte de la perfomance, no qual o
autor analisa a ampliação e o vazamento dos valores da concorrência econômica
e da competição esportiva para a conduta cotidiana dos indivíduos.
As conseqüências culturais e os custos psíquicos desse indivíduo
performático estão presentes em o L´individu incertain. A “pane da ação”
desse indivíduo que não dá conta da “trajetória” que estabeleceu para si mesmo,
requer novas “técnicas de ação sobre o eu”. Dentre essas cnicas, o autor situa
o uso de drogas lícitas e ilícitas e os programas televisivos de relacionamento.
Desde dos anos 1960, a psicanálise busca repensar o conceito de supereu
para adequá-lo às novas configurações familiares e sociais. Neste
empreendimento, tem se destacado a elaboração lacaniana do conceito de
supereu, com a ressalva de que também teria que ser, digamos, atualizado.
Em relão a Freud, Lacan opera uma completa inversão no conceito de
supereu, pois este deixa de estar associado à repressão, pelo contrário, o
conceito lacaniano está vinculado a um imperativo de gozo. O supereu lacaniano
“nada diz como gozar ou qual o objeto adequado ao gozo”, o que o torna
adequado a uma sociedade do consumo.
85
O supereu lacaniano representa um passo além de iias como,
por exemplo, as que animam a compreensão de Michel Foucault a
respeito da mudança nas táticas dos processos disciplinares a
partir, sobretudo, dos anos 60. Mudança retratada em afirmações
do tipo: “’Como resposta à revolta do corpo, encontramos um
novo investimento que não tem mais a forma de controle-
repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas, seja
magro, bonito, bronzeado!’Ou seja, apresente sua sexualidade,
mas no interior de formas socialmente fornecidas e codificadas
pelo mercado. Contudo, o que o conceito lacaniano de supereu nos
indica é a desvinculação geral entre imperativo de gozo e
conteúdos normativos privilegiados. Volto a insistir, a lei do
84
Idem, ibidem, p 15.
85
Cf. Valdimir Safatle. Cinismo e falência da crítica. Departamento de Filosofia. Universidade de
São Paulo, setembro de 2004. mimeo. s/pág.
47
supereu é vazia, sem determinações privilegiadas. Desta forma,
ela pode nos ajudar a compreender porque, na sociedade
contemponea de consumo: ‘Magro, bonito e bronzeado’ pode
facilmente ser trocado, por exemplo, por ‘doente, anoréxico e
mortífero’ sem prejuízos para sua capacidade momentânea de
mobilização de desejos.”
86
Como o único exemplo histórico de sociedade de consumo foi o éden e
tendo em conta que a humanidade ainda vive sob o reino da necessidade, é bom
lembrar que o consumo vem depois do trabalho, aliás, quando trabalho.
Ademais, o problema com essas observações a partir de peças publicitárias, no
caso, uma campanha do perfume Obsession, da Calvin Klein, não é propriamente
se elas estão certas ou erradas no que diz respeito ao seu objeto, isto é, o
consumo. O problema é sua extrapolação para toda a sociedade, justamente,
num momento em que algumas formas de organização do trabalho retomam o
controle disciplinar.
Voltemo-nos, então, para a clínica do trabalho.
2.2 O trabalho em causa
Se, como pensou Benjamin todo documento de cultura é um documento
de barbárie - formulação que radicaliza a relação freudiana entre civilização e
repressão -, aquele que lida com a relação entre trabalho e sofrimento tem um
ponto de vista privilegiado, conquanto minoritário e negativo, do reverso da
cultura ou da civilização.
87
Porém, os fenômenos desse reverso não são monopólio de especialistas, já
que são do conhecimento de todos, as mortes de escravos e trabalhadores nas
construções de grandes monumentos e de grandes obras de infra-estrutura, por
exemplo, nos canais de Suez e do Panamá, na muralha da China, nas pirâmides
do Egito, no Taj Mahal e das condições de trabalho durante a 1ª Revolução
Industrial.
86
Vladimir Safatle. Por uma ctica da economia libidinal. Ide (São Paulo), jun. 2008, vol.31, Nº 46,
p.23. Contra-exemplo a partir do trabalho: No OESP, pode-se ler: “A obsessão pela saúde
contamina todo o Grupo Pão de Açúcar. [...]Isso está no meu DNA e o meu DNA es na empresa.
Portanto, é natural’”, afirma o proprietário. A reportagem segue dizendo que Diniz nega que haja
qualquer imposição para que as pessoas que trabalham lá façam exercícios. Mas perguntado, se há
um diretor gordo, ele responde rápido. “Não, quer dizer, uma, mas está emagrecendo. Por
conta própria, não por imposição.Abílio Diniz se lança em novo projeto. OESP, Caderno B, p. 16.
7/08/09.
87
Embora os dois termos sejam de tradições distintas, Freud tomava os dois conceitos como
intercambáveis. Sigmund Freud. Mal estar na cultura
48
Quando nos voltamos para os fenômenos do mundo contemporâneo, no
entanto, faz-se necessário novas perguntas de um trabalhador que . Antes
disso, que fenômenos são esses? Suicídio nos locais de trabalho, morte súbita
(karôshi), acidentes de trabalho (com destaque para a mutilação das os e
dedos), fadiga, esgotamento profissional (burnout), assédio moral, estresse pós-
traumático, injustiças, sofrimento ético, perda de sentido do trabalho, ativismo
profissional, compulsão por trabalho (cujo tipo social foi apelidado de
workaholic), LER-DORT, fatores associados às condições físicas do trabalho,
como a “perda auditiva induzida por ruído” (PAIR), intoxicação por agentes
químicos (amianto, mercúrio etc.), contaminação por agentes biológicos que
afetam profissionais de saúde, coletores de lixo e limpadores de esgoto.
88
Frente a fenômenos tão novos como as mortes voluntárias nos próprios
locais de trabalho e o crescimento recente de fenômenos tão antigos como os
acidentes de trabalho, novas perguntas são mesmo urgentes.
Ao descrever a passagem da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa
devido à reação da sociedade contra as extensas jornadas de trabalho, Marx
afirma que essa reação emerge porque a sociedade estava atacada em seus
“fundamentos vitais”.
89
Em contexto bem diferente daquele, embora não seja possível ainda
discriminar as tendências atuais de uma nova reação, o mundo do trabalho é
novamente atacado em seus fundamentos vitais.
Como anunciado anteriormente, investigaremos como a epidemia
depressiva se relaciona com esse conjunto de dados do mundo do trabalho. O
sofrimento depressivo pode ser uma consequência direta da atividade no
trabalho ou aparece como decorrência dos fenômenos acima arrolados.
Analisaremos, detidamente, no capítulo 4, pesquisas da psicodinâmica do
trabalho sobre essas patologias, especificamente o sofrimento depressivo
presente no mundo do trabalho.
88
Nesse trabalho não iremos discutir o sofrimento decorrente das condições de trabalho (fatores
químicos, físicos e biológicos), nos restringimos as consequências da organização do trabalho. Mas
vale lembrar que o uso incorreto de componentes químicos como o mercúrio pode prejudicar os
sistema nervoso, sendo a depressão, uma consequência possível. Além disso, os acidentes de
trabalho que deixam seqüelas no trabalhador levam à percepção de perda da capacidade que,
geralmente são acompanhados de “sentimento de culpa, fracasso e auto-depreciação e isolamento
que irá conferir um caráter depressivo a muitos destes quadros. Edith Seligmann-Silva.
Psicopatologia e Saúde Mental no Trabalho. In: Mendes, R. (Org.). Patologia do Trabalho. Rio de
Janeiro: Ateneu, 2003 v. II, p. 1143.
89
Cf. Sadi Dal Rosso. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. o
Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 55.
49
Não acreditamos ser possível estabelecer uma relação monocausal entre
trabalho e depressão. Para nós, o sofrimento depressivo, em última instância,
está vinculado à mobilização sem precedentes do sujeito no trabalho. Essa
mobilização será analisada em seus aspectos quantitativos e qualitativos. Tais
aspectos serão analisados por meio do conceito de intensificação do labor e de
subsunção total da força de trabalho.
Embora possa parecer que o conceito de intensificação do labor se refira
apenas aos aspectos quantitativos, ele abarca também fenômenos qualitativos
da mobilização pois ele também é aplicado às atividades imateriais.
Para Dal Rosso,
À medida que numa sociedade cresce o contingente dos que
trabalham em atividades imateriais, aumentam também os
problemas de saúde decorrentes da forma imaterial de trabalho e
de sua intensificação. Esses elementos fundamentam a hipótese
de que o trabalho imaterial deverá gerar acidentes e doenças
totalmente distintas do trabalho material.
90
Sendo assim, “são duas condições que alteram a relação trabalho-saúde:
(I) mudança para trabalho imaterial e (II) onda [atual] de intensificação no
trabalho.”
91
Além do estado de mobilização permanente em que está submetido, o
trabalhador não encontra mais reconhecimento. Com isso, o trabalho perde seu
sentido e deixa de ser um mediador na relação entre o eu e o social. Sem essa
mediação e o reconhecimento a ela relacionado, um campo aberto para a
descompensação psíquica que na maioria das vezes se manifesta na forma de
um sofrimento depressivo.
Mas como se dá essa descompensação psíquica? Ela se deve à certa
identificação narcísica com o trabalho e quando este deixa de ser fonte de
gratificação, o sujeito se deprime?
Nos casos de servidão voluntária, ou seja, de adesão extrema à empresa,
faria sentido tal suposição. Mas ela não conta do que é o trabalho. O trabalho
não margens àquilo que Freud chamou de “fraca resistência do objeto” para
explicar a melancolia posterior a uma perda de objeto, cuja escolha se deu por
90
Idem, p. 36. Mais adiante, o sociólogo afirma que as mudaas no trabalho abarcam tanto o
trabalho material quanto o imaterial. Há “novos tipos de desgastes exigidos pelos trabalhadores de
qualquer esfera e o só naquelas tipicamente materiais.” p. 40
91
Dal Rosso, p. 136.
50
uma identificação narcísica. Pois segundo Dejours, o trabalho é definido pelo real
e o real é justamente aquilo que oferece resistência.
Nossa análise nos leva então para o conflito intra-psíquico, pois é ele que
está em jogo nas variadas formas de descompensação.
Para nós, portanto, o que se passa com os sujeitos, atualmente, não pode
ser descrito pelo arrefecimento da culpabilidade e da disciplina, como quer
Ehrenberg. Se o imaginário social contemporâneo é povoado e assombrado pelo
culto da performance, pelo discurso do capital humano e pela divisão entre losers
e vencedores, e de fato é, não quer dizer que isso seja o fator mais importante.
Para sabê-lo é preciso sair da superfície.
Vale lembrar que a análise de Ehrenberg está embasada na análise de três
magazines semanais de grande tiragem na França. O sociólogo pesquisou a
evolução das quatro últimas cadas dessas revistas. A distância entre o
cotidiano e o discurso midiático, a publicidade e as pseudo-teorias da
administração não deve ser apagada pela teoria. Caso contrário, poder-se-ia
concluir que todos são cínicos, perversos e performáticos mal-sucedidos.
Assim, o conflito, seja intra-psíquico, seja social, ao contrário do que
pensa Ehrenberg, é o que está por trás da epidemia depressiva. Mas não
descartamos inteiramente o argumento central do livro de Ehrenberg, antes, o
situamos noutra perspectiva.
se pode entender o que Ehrenberg chama de iniciativa e
responsabilidade, se atentarmos para o fato de que a disciplina e a culpabilidade
não perderam força como ele afirma; pelo contrário, situação de trabalho em
que elas se fortaleceram. Ao mesmo tempo, a iniciativa e a responsabilidade são
formas que a organização do trabalho e, a partir desta, a sociedade como um
todo, criaram para fazer com que os indivíduos se implicassem com metas
quantitativas e programas de qualidade total.
A iniciativa e a responsabilidade são novos elementos discursivos efetivos,
mas a origem deles está no fato de que as empresas terem imposto uma
competição generalizada entre tudo e todos. Assim, sem abandonar a disciplina,
as empresas lançam mão de novas estratégias.
Muito cético quanto a existência efetiva das mudanças toyotistas, Dejours
atribui boa parte do sofrimento no mundo do trabalho a dois novos elementos,
isto é, as avaliações individuais de desempenho e aos certificados de qualidade
51
total. Esses princípios de organização do trabalho trazem um rol de
consequências negativas,
de um lado, o crescimento extraordinário da produtividade e da
riqueza, mas, de outro, a erosão do lugar acordado à subjetividade
e à vida no trabalho. Disto resulta um agravamento das patologias
mentais decorrentes do trabalho em crescimento em todo o
mundo ocidental, o surgimento de novas patologias em particular
os suicídios nos próprios locais de trabalho o que o acontecia
jamais antes da virada neoliberal e o desenvolvimento da
violência no trabalho, a agravação das patologias da sobrecarga, a
explosão da patologia do assédio.
92
Aqui, adotamos os pressupostos teóricos da psicodinâmica do trabalho
(PDT) criada por Christophe Dejours, nos anos 1990, a partir de conceitos
oriundos da ergonomia e da psicanálise. Mas aproximamos as riquíssimas
observações da clínica do trabalho realizadas pela PDT da crítica da economia
política, notadamente, os autores que procuram entender o pós-fordismo a partir
de conceitos marxistas, a saber, André Gorz, Antonio Negri, Sadi Dal Dal Rosso e
Rodnei Nascimento (tese de doutorado).
Talvez, em seu louvável esforço de se distanciar do economicismo, a PDT
tenha se afastado em demasia da crítica da economia política. Essa aproximação
entre as duas teorias não deixa de apresentar suas ciladas, mas, se realizada
com cuidado, os ganhos resultantes são significativos.
O pressuposto teórico mais importante da PDT é o da centralidade do
trabalho. Ou seja, no que diz respeito à subjetividade, o trabalho é um
absolutamente fundamental. É por meio do trabalho que o sujeito constrói sua
narrativa, sua identidade pessoal. O trabalho é decisivo é por meio dele que o
sujeito obtém reconhecimento que, por sua vez, estrutura a identidade.
Esse pressuposto é retirado não de Marx, mas de Freud. Com base no
fundador da psicanálise, Dejours afirma que o trabalho e a vida erótica são
fundamentais para o sujeito.
Quanto a Marx, se é claro que é o fundador do “paradigma da produção”,
não podemos afirmar – o que é um lugar comum – que em sua teoria a
centralidade do trabalho se desdobra em uma definição de homem na qual o
trabalho é um atributo antropológico.
92
Christophe Dejours . Subjetividade, trabalho e ação. In: Revista produção, V. 14, n. 3,
Set./Dez., 2004. p.28.
52
O trabalho tal como o entendemos nasce na modernidade e deve ser
entendido em seu sentido histórico e não ontológico.
93
Tanto em Freud quanto em Marx, há a valorização do trabalho. Em Marx, o
homem se eleva quando realiza uma atividade não alienada pela qual pode se
reconhecer no fruto de seu trabalho. Em Freud, o trabalho pode proporcionar
uma solução satisfatória entre as demandas da civilização e as moções pulsionais
por meio da sublimação. Mas, como é do conhecimento de todos, em suas
respectivas obras, o tripalium da etimologia da palavra pesa sobremaneira.
Em certo momento de sua obra, Marx afirmou que se os trabalhadores
pudessem, fugiriam do trabalho como os ladrões fogem da prisão (e qual
trabalhador não o sabe?).
Em Freud, há algo semelhante; em O futuro de uma ilusão, ele afirma que
a humanidade sempre traz consigo a aversão ao trabalho.
Toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a rencia
pulsional, se quer parece certo se, caso cessasse a coerção, a
maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o
trabalho necesrio à aquisição de novas riquezas.
94
As conquistas materiais da civilização repousam na renúncia pulsional.
Decorre daí, no entanto, um conflito irreconciliável que se expressa no
sofrimento neurótico.
Sem desconsiderar esses elementos, os autores das diversas correntes da
saúde mental no trabalho tomam o trabalho como categoria central. Posição essa
fortemente presente em Robert Castel. Para este, “o trabalho permanece como
referência dominante não somente economicamente como também
psicologicamente, culturalmente e simbolicamente, fato que se comprova pelas
reações daqueles que não o tem.”
93
Acompanhamos aqui a análise de Nascimento, segundo a qual é falsa toda interpretação da obra
de Marx que a conceba “como representante do assim chamado ‘paradigma do trabalho. Essa
concepção é falsa tanto no sentido de que Marx teria reduzido a compreensão das diversas formas
de interação humana a um mero efeito das relações econômicas reificadas, como pretende
Habermas seguindo os passos de Hannah Arendt, como também no sentido de que Marx teria
analisado o desenvolvimento histórico e social da humanidade tomando o trabalho como modelo de
toda atividade humana, isto é, como pressuposto ontológico do homem e de toda forma de
sociedade, como quer o último Lukács. Rodnei A Nascimento. Formas da subsunção do trabalho no
capital: subsunção formal, real e intelectual. Tese de Doutorado. Departamento de Filosofia,
FFLCH-USP, 2006. p. 8.
94
Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pág. 12. Mas a questão
do trabalho também é vista por outras perspectivas. Em certos casos, tem um potencial
terapêutico: “nenhuma outra técnica de orientação da vida liga o indivíduo tão fortemente à
realidade como a dedicação ao trabalho, pelo menos o incorpora solidamente a uma parte da
realidade, ou seja, à comunidade humana.Mal-estar na cultura, idem, pág. 3027, nota 1693.
53
Segundo Dejours e Molinier, o trabalho pode ser definido como uma
atividade
coordenada de homens e mulheres para defrontar-se com o que
não poderia ser realizado pela simples execução prescrita de uma
tarefa de caráter utilirio com as recomendações estabelecidas
pela organização do trabalho.
95
Ou seja, tal atividade entendida como trabalho vivo é caracterizada pela
distância entre prescrição e execução. Se os trabalhadores seguissem à risca o
que lhes foi prescrito, a execução do trabalho seria prejudicada. É nisso que
consiste a operação-padrão, uma forma de resistência que se quando os
trabalhadores cumprem exatamente a prescrição da organização do trabalho.
O hiato entre prescrição e execução é o real do trabalho, ou seja, aquilo
que resiste ao domínio e ao entendimento. Então, diante do real, os
trabalhadores mobilizam a subjetividade, fazem uso da engenhosidade e da
cooperação.
A mobilização subjetiva é o processo pelo qual o “sujeito mobiliza sua
inteligência e sua personalidade em função de uma racionalidade subjetiva
particular.”
96
Nessa acepção de mobilização que sempre levar em conta a
individualidade e, se as técnicas de mobilização das subjetividades singulares
não faltam no mercado empresarial, as pesquisas permitem deduzir que
nenhuma delas pode outorgar-se o sucesso da mobilização.”
A engenhosidade é uma “forma de inteligência que convoca o corpo todo
inteligência do corpo e não apenas do funcionamento cognitivo.” Tal
mobilização do que essencialmente humano é “alheia a ordem do maquinal,
mesmo que, periodicamente, essas capacidades possam ser objeto de uma
“extração” de conhecimentos, o que permite padronizar e, eventualmente,
robotizar certas operações.”
Por fim, a cooperação é entendida não como um resultado mecânico da
organização do trabalho. Para que uma efetiva cooperação possa ocorrer, são
necessárias duas condições, a saber, a existência de relações intersubjetivas de
confiança e um “espaço de discussão” que garanta que os acordos feitos pelo
coletivo tenham eficiência reguladora.
95
Christophe Dejours e Pascale Molinier. O trabalho como enigma. In: Selma Lancman e Laerte
Sznelwar (orgs.). Christophe Dejours - da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz; Brasília: Paralelo 15, 2008, p. 137.
96
Idem, ibidem, p. 135-36.
54
Essas três características do trabalho vivo permitem aos autores da PDT
defenderem a centralidade do trabalho para a identidade do sujeito. A
mobilização da subjetividade, do corpo e da intersubjetividade é uma
contribuição individual para a organização real do trabalho que almeja
reconhecimento.
Quando perda de sentido do trabalho ou quando o sujeito não obtem
reconhecimento, abre-se um campo para a descompensação psicológica, cujas
consequências em termos de sofrimento serão aqui analisadas.
No entanto, como a conceituação da PDT a respeito do trabalho parece
tomá-lo como um atributo antropológico, acreditamos ser necessário historicizá-
la a partir de duas variáveis construídas por Danièle Linhart, socióloga do
trabalho francesa que tem o mérito de contribuir analiticamente nesse debate a
respeito da centralidade do trabalho, cujas posições são doutrinárias.
Segundo a autora, em primeiro lugar, é preciso levar em conta que a
relação com o trabalho varia, historicamente, mesmo em períodos relativamente
curtos. A partir de 1968, por exemplo, o trabalho passou a ser objeto de forte
contestação. Mas já nos anos 1980, num contexto de recessão econômica, o
trabalho passou a ser valorizado.
Em segundo lugar, é necessário pensar a vivência no trabalho e aqui é
preciso pensar a atividade e quem a exerce. Por exemplo, uma atividade que
confere prestígio e que é exercida por um profissional qualificado é portadora de
um maior envolvimento com o trabalho.
Mas a relação de todos com o trabalho é fortemente marcada pela
ambivalência, resumida nas duas frases que seguem:
o se pode viver sem trabalho: o trabalho sentido, valor ao
tempo livre e à vida.
O trabalho impede de viver, de aproveitar a vida; ele estraga a
vida; não se tem tempo suficiente para viver.
97
Talvez essa ambivalência possa ser traduzida em termos de prazer-
sofrimento. Para Dejours e Molinier, esse é um dos aspectos pelos quais o
trabalho afirma sua centralidade, pois essa é
percebida na construção da identidade, na realização de si mesmo
e na saúde mental ou mesmo na saúde somática. O trabalho é
97
Danièle Linhart. A desmedida do capital. Boitempo: São Paulo, 2007, p. 42.
55
gerador de saúde ou, ao contrário, um constrangimento
patogênico. O trabalho jamais é neutro, considerado deste ponto
de vista. Ou joga a favor da saúde ou pelo contrário, contribui
para sua desestabilização e empurra o sujeito para a
descompensação.
98
Se o trabalho leva à saúde ou traz consequências deletérias, seja o
sofrimento, seja a doença, é também verdade que, em certo sentido, o trabalho
sempre gera sofrimento. Quando o trabalhador se defronta com o real do
trabalho, ou seja, aquilo que resiste ao entendimento e ao domínio, o
trabalhador sofre.
Mas o sujeito não se porta de forma passiva em face desse sofrimento. É
quando entra em cena a mobilização subjetiva de que falamos, ou seja: o
trabalhador arregimenta sua subjetividade para enfrentar o desafio posto pelo
trabalho. Caso a empreitada seja bem sucedida, gratificação pulsional, ou
seja, “joga a favor da saúde”. Em caso de insucesso, aquele sofrimento inicial se
metamorfoseia em “sofrimento patogênico”.
Em suas primeiras pesquisas, o objeto de Dejours eram as psicopatologias
relacionadas ao trabalho. No entanto, ele passou a observar por meio de sua
clínica do trabalho situações de trabalho em que, apesar de comportarem
diversos fatores que poderiam desencadear sofrimento, o sofrimento não
acontecia, ao menos na intensidade que se poderia esperar. Por que não é todo
mundo que adoece?
Dejours constata que os sujeitos criavam estratégias defensivas individuais
ou coletivas para não sucumbir frente às possibilidades de descompensação
psíquicas.
99
As estratégias defensivas sofrem variação considerável em cada situação
de trabalho ou classe social. No caso do que Dejours chama de subproletariado,
hoje mais comumente denominados como trabalhadores precarizados, as
estratégias defensivas configuram o que o autor chama de ideologia da
vergonha.
Como a doença e o sofrimento são uma ameaça à sobrevivência no
sentido de que tais padecimentos representam gastos com remédios, ausência
98
Idem. Ibidem, p. 141.
99
A partir dessas observações, o foco mudou das psicopatologias para a para a “normalidade”
entendida como um “equilíbrio instável, fundamentalmente prerio, entre os sofrimento e as
defesas contra o sofrimentoaddendum da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Ibidem,
p. 53. Como o próprio tulo do texto citado esclarece, essa nova perspectiva leva Dejours a
fundar uma nova disciplina chamada psicodinâmica do trabalho.
56
no trabalho e maiores riscos de demissão, a manifestação do sofrimento é
associada à vagabundagem.
100
Quando fracassa, a ideologia da vergonha lugar ao “alcoolismo,
violência anti-social, loucura com todas as formas de descompensação,
psicóticas, caracteriais e depressivas.”
No entanto, a eficácia da ideologia da vergonha se deve ao fato dela ser
elaborada e alimentada coletivamente,que elas substituem os mecanismos de
defesas individuais. No caso do trabalho taylorizado, as defesas coletivas não
possuem a mesma força, que um dos objetivos da organização do trabalho
taylorista é justamente quebrar o coletivo.
101
Apesar de uma fábrica taylorista ser marcada pela uniformização,
justamente por conta da quebra do coletivo, o sofrimento o é o mesmo para
todo trabalhador, uma diferenciação do sofrimento de um trabalhador para
outro. Por isso, o autor critica certa apropriação pela psicopatologia de uma
interpretação sociológica da vivência psíquica “que atribui somente às condições
materiais e econômicas as causas do sofrimento e reduz a dor a um reflexo
simples da luta de classes.”
102
Se toda razão nessa crítica, como tem, aliás, a crítica à toda forma de
reducionismo, nós acreditamos que os achados da PDT não devem ficar restritos
apenas às ciências do campo psi.
Voltando a tais achados, Dejours aponta que na fala dos trabalhadores,
sobretudo aqueles que estão sob a organização de trabalho fordista, é possível
constatar um verdadeiro “refrão obsessivoa respeito da perda de sentido do
trabalho. O trabalho é visto como algo indigno, inútil, frustrante, desqualificado e
sem significado: “raros são aqueles que ainda crêem no mito do progresso social
ou na participação à uma obra útil.”
103
A perda de sentido do trabalho ainda mais exposta com tal força por um
teórico que defende a centralidade do trabalho para o sujeito é digna de uma
maior consideração. Trata-se de um curto-circuito. Os sujeitos precisam do
reconhecimento no trabalho para manter sua saúde psíquica, mas o trabalho
100
Christophe Dejours. A loucura do trabalho estudo sobre psicopatologia do trabalho.o Paulo:
Cortez: Oboré, 1992. p. 29 e segs.
101
“Mesmo se [os trabalhadores] partilham coletivamente da vivência do local de trabalho, do
barulho, da cadência e da disciplina, o fato é que, pela própria estrutura desta organização do
trabalho, os operários são confrontados um por um, individualmente e na solio, às vioncias da
produtividade.p. 39.
102
Idem, ibidem, p. 40.
103
Idem, ibidem, p. 49.
57
atual ao invés de possibilitar reconhecimento se torna uma afronta à dignidade
de homens e mulheres. A perda de sentido no trabalho é fonte de sofrimento na
forma de uma vivência depressiva que se torna muito comum.
A vivência depressiva marca o triunfo do condicionamento ao
comportamento produtivo.” Não são tanto as exigências mentais ou psíquicas do
trabalho que fazem surgir o sofrimento. A certeza de que o nível de insatisfação
não irá diminuir marca o começo do sofrimento.
Dejours retira tais conclusões a partir de suas pesquisas com o operariado
na linha de produção fordista. Mas não podemos levantar a hipótese, passados já
trinta anos da realização dessas pesquisas, de que a perda de sentido do
trabalho se universalizou?
É inegável que ao lado da questão da centralidade do trabalho, outra
tendência contrária se afigura, isto é, a da irrealidade do trabalho.
Uma vertente da crítica de economia política que defende a crise do valor
observa que atualmente situações de trabalho que podem ser caracterizadas
pela irrealidade, pois nelas nada se produz.
Os exemplos se multiplicam. São professores que são impedidos de
ensinar por conta da progressão continuada. A instituição privada de ensino
superior que, para satisfazer as normas do Ministério da Educação, aluga livros
quando dos funcionários do MEC.
Os acadêmicos que publicam um mesmo artigo em várias versões
diferentes para cumprir com os requisitos de produtividade bibliométrica. A
irrealidade do trabalho acaba pela valorização de “habilidades de auto-sugestão,
auto-representação e simulação de competência como as virtudes mais
importantes.
104
Aliás, o próprio Dejours afirma que a partir da instituição da avaliação
individualizada de desempenho e dos programas de certificação de qualidade
total, os funcionários passam a fazer uso extensivo da mentira, da fraude e da
dissimulação.
105
Entre necessidade do sujeito por reconhecimento e a perda de sentido e a
irrealidade do trabalho abre-se um campo para o sofrimento psíquico.
104
Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho. Labur, 1999, p. 21.
105
Vale lembrar que a Enron representou o outro lado dessa fraude sistêmica são os balanços,
projeções de lucro e empreendimentos fantasiosos e maquiados para alimentar a bolha financeira
da empresa a o dia em que a bolha estoura, não importa, os casos vão se sucedendo, as bolhas
estouram aqui, para ressurgirem lá.
58
Tendo como mote a questão da centralidade do trabalho para o sujeito,
Jaquelina Imbrizi elabora uma crítica contundente a Dejours. Ela o faz a partir do
referencial frankfurtiano, especificamente de três autores Adorno, Horkheimer e
Marcuse.
Uma passagem de Marcuse citada pela autora sintetiza bem o seu próprio
argumento:
Certamente pode haver também ‘prazer’ no trabalho alienado [...]
o alfaiate que apresenta um terno bem cortado, [...], o
trabalhador que preenche sua quota - todos poderão sentir prazer
num ‘trabalho bem feito’. Contudo, ou esse prazer é extrínseco
(previo de uma recompensa), ou é satisfação (em si mesma um
indício de repressão) de estar bem ocupado, no lugar certo, de
contribuir com sua parcela no funcionamento da engrenagem.
Num caso ou noutro, tal prazer nada tem a ver com a gratificação
pulsional primordial. Associar o desempenho em linhas de
montagem, em escritórios e lojas, com as necessidades pulsionais,
é glorificar a desumanização como prazer.”
106
Embora a crítica do trabalho alienado, tal como é feita na passagem a
cima, seja imprescindível, precisamos levar em conta outros movimentos.
João Bernardo, por exemplo, trabalha com os conceitos de hetero-
organização e auto-organização.
107
Os trabalhadores reagem frente aos aspectos
alienantes do trabalho é o que demonstra a luta secular pela redução da jornada
de trabalho.
Se adotarmos as determinações de modo exclusivo, a clínica do trabalho já
não é necessária, que toma como ponto de partida as situações de trabalho.
No entanto, o contrário também é verdadeiro, ou seja, o esforço da PDT de não
cair no economicismo, não pode fazer com que ela perca de vista a crítica da
economia política.
Vejamos como a PDT pode lidar com o conceito de trabalho alienado.
106
Marcuse apud Jaquelina Imbrizi. A formação do indivíduo no capitalismo tardio uma análise de
estudos que vinculam a esfera subjetiva ao mundo do trabalho. Hucitec/Fapesp: São Paulo, p. 242.
Na citação de Eros e civilização, substituímos duas vezes a palavra instintiva(s) por pulsional. A
origem da troca do conceito de pulsão (trieb) pelo conceito de instinto é a tradução inglesa das
obras de Freud. As necessidades instintivas são próprias do reino animal, portanto são biológicas,
as pulsões são próprias de homens e mulheres e se inscrevem na intersecção da biologia e da
cultura. Ou seja, no ser humano o ‘instinto é desejo e não desejo sem fantasia. Diante da
dificuldade de definir um conceito tão fundamental para a psicanálise quanto o de pulsão, o próprio
Freud ironizou, dizendo tratar-se de a “nossa mitologia.”
107
João Bernardo. Democracia totalitária teoria e prática da empresa soberana. São Paulo:
Cortez, 2004.
59
“A noção de alienação em Marx e nos pós-marxistas é aberta o
suficiente para que ousemos indagar se a clínica do trabalho não poderia
justamente contribuir para a elaboração de seu sentido”
108
O trabalho, “mesmo alienado, é freqüentemente menos deletério que a
privação de trabalho. E se examinarmos ainda mais minuciosamente a
contradição, encontraremos situações em que o trabalho, mesmo dominado,
aparece como meio de realização de si e como mediador da emancipação do
sujeito.”
Aqui a alienação não designa um dado em si, ela é um desfecho possível
se a ela não é anteposta a resisncia. Na falta dela surgem as patologias que
assolam o mundo do trabalho. Mas o sofrimento não é uma consequência direta
das situações alienantes de trabalho, que paradoxalmente, “essas patologias
são antes a trágica expressão de uma luta contra a alienação.”
A despeito da importância da análise de Imbrizi, ela peca por se prender
em demasia à sua inspiração frankfurtiana sem levar em conta que os
trabalhadores não vivenciam de modo passivo a alienação do trabalho.
Curiosamente, as posições parecem invertidas, a PDT é acusada de
reformista por constatar que o trabalho propicia prazer e os sujeitos
trabalhadores esperam por reconhecimento, mas a análise dos casos por meio de
sua clínica comporta um teor altamente crítico. Por meio dela, nos deparamos
com uma realidade do mundo do trabalho desconhecida pelos autores
contemporâneos filiados à teoria crítica e pelos movimentos políticos à esquerda.
Por outro lado, os autores da PDT não levam até às últimas consequências
os resultados de suas pesquisas.
Atualmente, no entanto, nenhuma proposta política emancipatória ou de
políticas blicas pode ignorar a contribuição da PDT, assim como das outras
teorizações a respeito da relação sofrimento e trabalho.
108
Christophe Dejours. Alienão e clínica do trabalho. Laerte Sznelwar e Selma Lancman (orgs.).
Christophe Dejours - da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz; Brasília: Paralelo 15, 2008, p. 220 e segs.
60
Parte II – A sociedade na reprodução material
Capítulo 3
A mobilização total
As interpretações do que ocorreu nas esferas do trabalho e do consumo
têm sido marcadas por um dualismo que impõe uma demarcação rígida entre a
configuração social do passado e a atual, por exemplo, entre sociedades
disciplinares e a do controle, ou ainda entre modo de regulação fordista–
keynesiano e a dita acumulação flexível. Mas não é possível apreender a
realidade social por meio de pares opostos. A análise dialética, por sua vez, tem
em conta que a modernização conservadora, como a própria formulação sugere,
também pode reabilitar formas do passado.
A passagem do fordismo para o toyotismo o é de modo algum tão
estanque como se supõe. Da mesma forma, a passagem da sociedade disciplinar
para a biopolítica não deve ser entendida pela sucessão de formas de controle.
Atualmente, predomina uma leitura um tanto quanto apressada do Post-
scriptum à sociedade de controle, de Gilles Deleuze, representada, por exemplo,
por A sociedade mundial de controle, de Michael Hardt.
109
Segundo Arantes,
“é preciso ressaltar que Foucault tomou cuidado de alertar
seus leitores ativistas a não pensar em termos de substituição
linear, uma sociedade de soberania substituída por uma ordem
disciplinar e esta, por um sistema gestionário das populações ou
sociedade de governo, mas a ter em mente uma estrutura
triangular no comando do processo de governamentalização do
Estado, um triângulo composto por soberania-disciplina-gestão
109
Gilles Deleuze. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In. idem Conversações: 1972-
1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226; Michael Hardt. A sociedade mundial de controle.
In: Éric Alliez. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 358. “A passagem
da sociedade disciplinar à sociedade de controle se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento
dos muros que definiam as instituições.” Idem, p. 357. Não discordamos inteiramente da
tendência, mas acreditamos ser problemático adotá-la como única, pois o encarceramento em
massa em curso lembra que os muros das instituições estão de pé. Aliás, vem bem ao caso
lembrar que o fim dos muros do símbolo maior das instituições totais, isto é, o manicômio, tem
seus sucedâneos. Thomas Szasz, lembra que, no caso dos EUA, realmente uma desinternação
do paciente psiquiátrico, na qual, a camisa de força mecânica é substituída pela camisa de força
química, mas ao lado desse movimento, corre em paralelo um processo de reinternação do
paciente não mais nos tradicionais manicômios, mas em “hospitais de veteranos, hospitais gerais e
da comunidade, hospitais mentais particulares, unidades psiquiátricas infantis, centro de
reabilitação de alcoólatras e drogados etc. Thomas Szasz. Cruel compaixão. Papirus: Campinas,
1994, p. 257.
61
governamental, tendo na população o seu alvo principal e nos
dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais.
110
Para melhor nos situarmos nessas questões do presente, um breve
percurso pela história recente faz-se necessário. No final dos anos 1960, o
capitalismo histórico apresenta para os proprietários condições alarmantes de
temperatura e pressão: queda da taxa de lucro, pressão por aumento salarial e
radicalização dos trabalhadores.
Enquanto isso, uma tendência mais profunda vinha há tempo acumulando
força para dar seu salto qualitativo. A interiorização da ciência no processo de
produção implodiu a grande indústria fordista e reconfigurou as constelações que
orbitavam em torno desse centro gravitacional.
111
A principal resposta política a esse quadro histórico foi uma revanche dos
proprietários composta por dois movimentos, em certa medida complementares.
Em primeiro lugar, a elaboração e imposição de uma agenda liberal:
desregulamentação da legislação trabalhista e dos mercados financeiros,
liberalização comercial e privatização.
A mundialização financeira e a desterritorialização das empresas
possibilitadas pela liberalização comercial enfraqueceram o Welfare-state e
tornaram porosas as fronteiras do Estado-nação (ainda que para isso tenha se
necessitado de um Estado forte).
A desregulamentação da legislação trabalhista desestruturou as
instituições do mundo do trabalho: associações, sindicatos e partidos. Além
disso, a desconstrução do modo de regulação fordista-keynesiano iniciou um
processo de longo alcance que, para além das instituições fordistas e do welfare-
110
Paulo Arantes. Alarme de incêndio no gueto francês uma introdução à Era da Emergência.
mimeo. p.32.
111
Sinais dessa crise estrutural não são de hoje. Ela começa pela periferia e caminha até os países
centrais. Nos anos 1970, a África, nos anos 1980, o desenvolvimentismo latino-americano, nos
anos 1990, o socialismo soviético. Enquanto isso, o Welfare State europeu vinha sendo atacado. A
crise do final de 2008 mais uma vez lembra que a dinâmica da crise atingiu o centro. A própria
ascensão e hegemonia do capital financeiro é um resultado da crise do valor. Há três décadas, a
economia capitalista vive sob a hegemonia de um capital financeiro maníaco-depressivo. As
finanças geram bolhas que incham até estourar, quando estouram vêm as crises, que jogam a
economia na recessão até que uma nova bolha, ou seja, um crescimento artificial, retire a
economia da crise. Segundo Kurz, a economia mundial pós-fordista (quando o valor entra em crise
por conta da terceira revolução tecnológica, visto que a produção o pode mais ser inteiramente
medida pelo tempo de trabalho) consiste em que o keynesianismo militar norte-americano
escorado num duplo ficit (fiscal e comercial), por sua vez, lastreado na emissão de títulos do
governo dos EUA. Essa emissão de títulos é parte do seguinte mecanismo: os EUA compram as
mercadorias do leste asiático e esses compram os tulos norte-americanos. O poderio militar dos
EUA garante, caso seja contestada, a supremacia do dólar como moeda internacional. Cf. Robert
Kurz. O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia
mundial. São Paulo: Paz e Terra. 1999.
62
state resultou num desmanche de instituições forjadas desde as revoluções
burguesas, nos países centrais, e dos processos de formação nacional, nas
periferias.
112
O segundo movimento da rebelião das elites é o estado de exceção
permanente, ou seja, o aumento de medidas extraconstitucionais e o
intervencionismo jurídico para manter a governabilidade visto que a normalidade
legal se tornou uma camisa-de-força para o sistema, dada sua incapacidade de
acomodar a dinâmica da pós-grande indústria, a saber, ficits internos e
externos, desemprego estrutural e a desconexão de regiões inteiras dos fluxos
de valorização econômica. Temos como contrapartida governos baseados em
medidas provisórias, precarização do trabalho, encarceramento em massa,
rotinização da tortura, guerras preventivas etc.
113
Talvez com exceção dos regimes totalitários e das mobilizações para a
guerra, nunca a subjetividade tenha sido arregimentada tão extensa e
intensamente como no mundo pós-fordista. Freud dizia que mais civilização
levaria, inevitavelmente, a mais repressão, ao que ele atribuía a causa das
doenças psíquicas. Dado o avanço da dinâmica social sobre os sujeitos, sua
fórmula ainda continua válida, embora, a torto e a direito, seja proclamado o
esgotamento de tal diagnóstico.
O estado subjetivo, tanto da força de trabalho quanto do consumidor,
requerido pelo capital é de mobilização total. O conceito de mobilização total foi
cunhado por Ernest Jünger para dar conta do mundo do “entre-guerras”, em
1930.
114
Paradoxalmente, a mobilização contemporânea se por meio de
processos político-econômicos, enquanto que as guerras não mobilizam mais.
115
112
Não deixa de ser irônico, nessa época de exceção permanente, observar que os “trinta anos
gloriosos”, período de estrondoso crescimento e de controle das forças naturalmente mortíferas do
‘moinho satânico, é uma verdadeira exceção na história do capitalismo histórico. A característica
fundamental do período keynesiano-fordista, outro nome para aqueles mesmos trinta anos, foi o
cumprimento de acordos entre as três peças chaves das nações ocidentais à época: o Estado, as
empresas e os sindicatos. Ver Giovanni Arrighi. O longo século XX – dinheiro, poder e as origens de
nosso tempo. São Paulo, Contraponto; São Paulo, EDUNESP, 1996.
113
“[Para Jean-Claude Paye], o estado de exceção surge como uma fase de transição destinada a
‘libertar’ a força de trabalho de suas conquistas sociais, e a fazê-lo suspendendo seus direitos
concretos. [Assegurando assim] as condições políticas e militares de uma gestão global da força de
trabalho.” Laymert Garcia dos Santos, Brasil contemporâneo: estado de exceção?. In. Francisco de
OLIVEIRA e Cibele S. RIZEK. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 202-203.
114
Ernest Junger. A mobilização total. Revista Natureza Humana 4(1): 189-216, jan.-jun. São
Paulo, 2002. Nas palavras de Heidegger, que atribui a Jünger a causa de uma verdadeira ruptura
em sua própria obra: Aquilo que Ernst Jünger pensa, nos conceitos de dominação e forma do
trabalhador, e que ele vê à luz desses pensamentos, é o domínio universal da vontade de poder no
interior da história vista planetariamente. É nessa realidade [Wirklichkeit] que hoje se encontra
tudo, quer se chame comunismo, fascismo ou democracia mundial. É a partir dessa realidade da
63
Poderíamos indagar, então, se se trata mesmo de mobilização total, dado
o imenso contingente da força de trabalho, na forma de um novo exército
industrial de reserva, cuja exploração não interessa ao capital?
Henri Acselrad nos dá uma resposta adequada ao problema.
O esforço de intensificação do trabalho pode incidir sobre um
subconjunto selecionado dos assalariados. Observa-se então uma
desmobilização produtiva de parte do coletivo de empregados e a
concomitante intensificação do trabalho dos empregados
remanescentes. Trata-se aqui de uma estratégia calcada no
discurso econômico de otimização da relação entre meios e fins.
Os meios economizados são, neste caso, os dispêndios com
salários e a relação a otimizar, aquela expressa no valor da
produção por unidade de custo salarial. O esforço de incremento
da produtividade não resulta, pois, de recurso específico ao
empenho político do trabalhador na batalha nacional pela
conquista de mercados. Instaura-se, isto sim, um duplo processo
em que a ameaça de desemprego combina-se ao incentivo
material, à produção: ao discurso da eficiência junta-se o poder
disciplinador do "enxugamento" da produção.
116
Um dos traços mais marcantes da presente mobilização total é seu apelo à
autonomia do sujeito. Embora tal característica não seja nova. Martins, por
exemplo, lembra que, em 1920, Ernest Junger, ao explicar “o sucesso dos
Aliados na Guerra contra o Império alemão, reconheceu que uma comunidade de
cidadãos que se julgavam livres se prestava melhor para a ‘mobilização total’ do
que o corpo dos súditos de Guilherme II."
117
Nos anos 1960, Herbert Marcuse observa que
em virtude do modo pelo qual organizou sua base tecnológica, a
sociedade industrial contemporânea tende a se tornar totalitária,
[sendo tal tendência] compatível com o ‘pluralismode partidos,
jornais, ‘poderes contrabalançados’ etc.
118
Hoje, o discurso de valorização de idéias como autonomia e pluralismo é
tanto maior, visto que a subjetividade passa a ocupar um lugar central na
reprodução material da sociedade. O indivíduo é valorizado, na medida em que
vontade de poder que eu comecei ver, nessa época, o que .” apud Zeljko Loparic. Breve nota
sobre Heidegger como leitor de Jünger. Natureza Humana 4(1), jan.-jun. 2002, p. 219. A citação
cumpre apenas a função de demonstrar a importância de Jünger, que aqui não fazemos nenhum
uso da vontade de poder nietzschena.
115
“Domesticamente, a guerra não é mais uma obsessão nacional, é um negócio que se encontra
hoje totalmente nas mãos de peritos.” Naomi Klein apud Paulo Arantes. Extinção. idem. p. 59.
116
Henri Acselrad. Trabalho, qualificão e competitividade. Em Aberto, Brasília, ano 15, n.65,
jan./mar. 1995, p. 53.
117
Moisés Martins. O Trágico na Modernidade. INTERACT Revista on-line de arte, cultura e
tecnologia, nº5, 2002, p. 4. www.interact.com.pt/interact5/default.htm acessado em 3/5/2009.
118
Herbert Marcuse. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 24-25.
64
ele é arregimentado por meio da mobilização da criatividade e da mercantilização
da experiência. Os meios de produção requisitam a força anímica do trabalhador,
enquanto forjam uma demanda por experiência do consumidor.
Os afetos do trabalhador se tornam um fator de produção, enquanto o
valor dos produtos e serviços, que o consumidor compra ou acessa, é atribuído
pela experiência que eles proporcionam.
No mundo do trabalho, a criação e mobilização da força anímica es
presente no desenvolvimento tecnológico, no setor de serviços e na criação do
entretenimento da indústria cultural. Embora esses aspectos qualitativos da
mobilização estejam concentrados na classe dos agentes inovadores ou
“manipuladores simbólicos, a mobilização das capacidades cognitivas, afetivas e
relacionais tende a ser um requerimento universal do mundo do trabalho.
Essa mobilização está presente de tal modo no cotidiano que ela leva a um
embaralhamento do que é trabalho e do que é consumo, em outras palavras, o
consumidor passa a trabalhar e o trabalhador passa a consumir tendo em vista
seu aperfeiçoamento profissional.
Em suma, na formulação de Marcuse,
o governo de sociedades industriais desenvolvidas e em fase de
desenvolvimento se pode manter e garantir quando mobiliza,
organiza e explora com êxito a produtividade técnica, científica e
mecânica da civilização industrial. E essa produtividade mobiliza a
sociedade em seu todo, acima e além de quaisquer interesses
individuais ou grupais.
119
Apesar da atmosfera soixante-huit a que nos remetem essas palavras,
esse estado de coisas parece ser muito mais efetivo hoje do que em sua época.
E o que nos interessa é entender o modo pelo qual se põem “corpo e mente em
estado de mobilização para a defesa desse universo.”
Em Formas de subsunção do trabalho ao capital: formal, real e intelectual,
Rodnei Nascimento, tendo como eixo o texto Fragmento sobre as máquinas dos
Grundrisse de Marx, acrescenta às formas de subsunção teorizadas pelo crítico
da economia política, a saber, subsunção formal e real, a subsunção relativa à
119
Idem, ibidem. p. 25. Nos anos 1980, Edward Thompson nos permite desconstruir um discurso
muito lembrado ainda hoje, dada a sua suposta confirmação. Em 1961, Eisenhower alerta para um
risco que corre a democracia, a saber, a pressão exercida sobre ela por uma elite tecno-científica
localizada nos postos de comando do complexo militar-industrial. Lembrando do lugar central do
Estado no complexo industrial militar, Thompson afirma que os EUA não têm um complexo
industrial-militar, eles o esse complexo. Cf. Edward Thompson, Notas sobre o exterminismo
estágio final da civilização. In Edward Thompson et al. Exterminismo e guerra fria. São Paulo
Brasiliense, 1985. p. 45.
65
fase atual que pode ser descrita pela crescente importância do intelecto geral na
acumulação capitalista.
120
Segundo o autor, o intelecto geral é:
um conjunto de capacidades cognitivas e intelectuais disponíveis
socialmente que o trabalho põe em prática durante o tempo de
trabalho[ou seja] “o processo de trabalho passa a contar mais
pelas qualidades intelectuais dos trabalhadores do que pelo tempo
de execução.
121
A atualização do conceito de ‘intelecto geral’ traz uma série de
desdobramentos. Nós os organizamos em três eixos: a mobilização da
subjetividade, novas formas de controle da força de trabalho e o fim da
sensibilidade igualitária.
3.1 Criatividade e experiência - trabalho e consumo no pós-
fordismo
A respeito da mobilização da subjetividade, são os seguintes
desdobramentos que Nascimento retira de sua análise da predominância do
intelecto geral:
O aspecto qualitativo do trabalho não pode ser reduzido a trabalho
abstrato simples, o que inaugura uma desproporção qualitativa
entre a força de trabalho e a produção capitalista.
O capitalista deve desenvolver novas estratégias de subsunção
total do trabalho, mas sem contar com a mesma eficácia das formas
anteriores, seja no sentido de contê-lo preso em sua forma, seja no
sentido de legitimar ideologicamente sua dominação.
Cai a ideologia do contrato entre formalmente iguais e de troca de
equivalentes e no lugar dela aparece o discurso do capital humano.
Retorna-se, de certo modo, a um princípio subjetivo da produção e a
uma maior importância do trabalho vivo.
Há novas formas de superexploração e intensificação do trabalho, na
medida em que o trabalhador deve colocar todo seu tempo de vida,
dentro e fora da empresa, em função dos interesses dos capitalistas
como se fossem seus próprios interesses. O tempo livre se torna
imediatamente produtivo.
O econômico se instala agora sobre o terreno da reprodução da vida
do indivíduo em todos os seus aspectos.
120
Rodnei Antônio do Nascimento. Formas da subsunção do trabalho no capital: subsunção formal,
real e intelectual. Tese de Doutorado. Departamento de Filosofia, FFLCH-USP, 2006.
121
Idem, ibidem, p 188.
66
“O trabalho imaterial passa então a exigir uma nova forma de
dominação que seja mais do que econômica, uma forma que possa
abarcar sua potencialidade infinita. Essa forma atende pelo nome de
biopolítica [pensada como dominação capitalista e na qual força de
trabalho equivale à vida]”
122
A dominação biopolítica descreve um aprofundamento da dominação
social e não o seu fim.
As novas formas de dominação que se assemelham à prestação de
serviço, pelo que o autor entende a transferência da
responsabilidade “aos próprios trabalhadores pelo desempenho de
sua atividade e pela contínua reprodução aperfeiçoada de sua força
de trabalho. É como se o trabalhador fosse uma empresa que presta
serviço e devesse agora explorar a si mesmo em benefícios de outra
empresa”.
A formulação de Nascimento descreve um processo de mobilização da
força de trabalho em seus aspectos qualitativo e quantitativo. No que diz
respeito às mudanças qualitativas, o controle da foa de trabalho recai agora
sobre as capacidades cognitivas, relacionais/comunicacionais e afetivas.
Na argumentação de Nascimento, a subsunção total é um fenômeno que
se espraiou para todas as ocupações e não se restringe aos agentes inovadores e
aos manipuladores simbólicos.
123
No entanto, não desconsideramos aqui outra tendência do mundo do
trabalho que aponta para a presença do taylorismo em novos setores da
economia, por exemplo, nas cadeias de fast food e nas centrais de
teleatendimento.
Por isso, acreditamos que a mobilização das capacidades cognitivas e
afetivas não se da mesma maneira em todos os setores. Nas centrais de
teleatendimento, no trabalho das enfermeiras, a subsunção total se por forte
repressão do afeto. Embora a repressão do afeto também seja uma exigência da
mobilização.
A esse respeito, Sznelwar aponta uma contradição. Enquanto na indústria
o taylorismo já era combatido, a implantação e expansão dos serviços de
teleatendimento se dava a partir de uma organização dita taylorista que era
baseada em
122
Idem, ibidem, p. 192
123
Na formulação de Sadi, “os serviços com base na imaterialidade marcam diferenças
significativas em relação ao trabalho industrial pelo fato de demandarem mais intensamente as
capacidades intelectuais, afetivas, os aprendizados culturais herdados e transmitidos, o cuidado
individual e coletivo. p. 33
67
processos de trabalho intensificados, sob forte controle e com
mecanismos de premião baseados na individualidade e na
concorrência entre os colegas. Os principais indicadores de
produção estavam voltados para o tempo de atendimento e para a
quantidade de pessoas atendidas.
124
Como veremos no capítulo 4, o “pensamento operatório” é mais frequente
do que afirmam os teóricos que focalizam apenas as mudanças e esquecem das
permanências ou reabilitações de formas do passado na organização do trabalho.
Por enquanto, vamos nos deter sobre as novas tendências. Para Pelbart, o
capital colonizou a subjetividade, inclusive suas forças inconscientes, ele agora
não só
penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas
também as mobiliza, ele as e para trabalhar, ele as explora e
amplia.
125
André Gorz salienta que “a produção de si é uma dimensão necessária de
todo trabalho imaterial, e que este tende a apelar às mesmas capacidades e às
mesmas disposições pessoais que possuem as atividades livres, fora do
trabalho.”
126
Embora acreditamos que o autor esteja apontando para uma tendência
efetiva, é um equívoco generalizar para todas as ocupações profissionais essa
tendência. Talvez ela seja válida para profissionais da publicidade e do marketing
que por sua própria inseão na indústria cultural, o seus valores e modo de vida
tem superexposição na mídia.
Para Dal Rosso,
os setores que fazem apelo mais à inteligência, à afetividade, à
capacidade de representação cultural, à capacidade de relacionar-
se são os serviços de educação e cultura, os de saúde, os serviços
sociais, os de comunicação e telefonia, os bancários e os de
finanças, importação e exportação e outros que surgiram com a
revolução informática.
127
Mas o autor diz que as indústrias, representantes do trabalho material,
também são atravessadas pela lógica do imaterial:
124
p. 44.
125
Cf. Peter l Pelbart. Vida Capital ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, pág.
20.
126
And Gorz. O imaterial - conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.
127
Op. cit. p. 33.
68
Mesmo tradicionais atividades industriais e pririas o
transformadas pela revolução tecnológica, incorporando nelas uma
grande fatia de trabalho imaterial. O método toyotista talvez seja
aquele que mais recorra à inteligência do trabalhador no trabalho
industrial, não enquanto promovendo sua autonomia e liberdade,
mas no sentido de usar a capacidade de controle de defeitos,
eliminação de perdas, controle de diversas máquinas por um
mesmo trabalhador em benefício da empresa, mediante a ativação
das dimensões da socialização e do relacionamento cooperativo
com os outros por meio do trabalho em equipes e dos círculos de
controle de qualidade.
128
A teoria do capital humano também enfatiza as habilidades cognitivas, a
ponto de postular que por meio delas, pode-se abolir a distinção entre capital e
trabalho. A figura do capitalista-sócio aparece aqui como aquele que mobiliza
seus recursos pessoais, fazendo uso das tecnologias do eu para atender as
exigências do mercado.
Tal como, as mudanças no mundo do trabalho mencionadas acima, o
crescimento da assim chamada sociedade de consumo também é uma resposta à
crise do fordismo.
129
Nessa esfera, os afetos são mobilizados pela oferta de experiências que
ensejo a um “capitalismo comportamental”. O consumo de experiências se torna
uma obrigatoriedade para todas as classes sociais; como não um outro da
modernização, todos querem ser modernos e ser moderno é buscar a experiência
prometida pela marca, possuir a última novidade eletrônica e estar atualizado a
respeito da produção da indústria cultural.
130
Entre os aspectos quantitativos dessa mobilização para o consumo está o
endividamento crônico de todas as classes sociais - apenas com as exceções de
sempre - seja porque o salário o é suficiente, seja porque os anseios
ultrapassam a renda.
131
Assim, trabalho e consumo vão tomando cada vez mais espaço no
cotidiano de homens e mulheres e, como resultado, os vínculos sociais vão se
128
Op. cit. p. 30.
129
David Harvey. A condição pós-moderna uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
São Paulo: Edições Loyola, 1996. Segundo Fredric Jameson, na pós-modernidade, a cultura ocupa
um lugar inteiramente novo na reprodução material da sociedade. A relação entre cultura e
economia não se restringe apenas ao crescimento da indústria cultural, visto que a cultura adquiriu
tamanha importância econômica que levou à desdiferenciação entre o econômico e o cultural, ou
seja, a cultura se torna econômica e a economia cultural. Os produtos culturais são, para usar sua
terminologia, tanto base como superestrutura, produzindo significados e gerando lucros. Cf. Fredric
Jameson. Pós-modernismo - a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2006.
130
Isleide Fontenelle. O nome da marca. McDonald´s, fetichismo e cultura descartável. São Paulo:
Boitempo, 2002.
131
Artur Bueno. As paixões do homo oeconomicus: racionalidade e afeto na ação econômica
cotidiana. Dissertação de mestrado. Departamento de sociologia, 2009.
69
restringindo às relações econômicas. Para o autor de Era do acesso, Jeremy
Rifkin, a venda de experiência na forma de serviços tende a transformar todas as
relações sociais e atividades culturais em transações econômicas.
132
Tudo somado, estamos no extremo oposto da Era do vazio. Por todos os
lados, o que se é mais trabalho, mais consumo, mais educação (aliás, esse é
o nome de um programa do Minisrio da Educação), mais ‘qualidade de vida’
etc. Então, a idéia jüngeriana de mobilização total vai perdendo seu teor
metafísico e militar e vai ganhando contornos reais.
Ao invés do vazio, nenhum silêncio, nenhuma escuridão, nenhum ar
natural, nenhum nada a fazer, nenhum lugar sem tela eletrônica, a não ser como
atração turística.
3.2 Reorganização do trabalho e intensificação do labor
A interiorização da ciência no processo de produção nega a lei do valor a
ponto do valor não ser mais, inteiramente, medido pelo tempo de trabalho.
Segundo Nascimento, “produz-se uma situação inusitada em que a lei do
valor continua vigorando, embora ela já tenha perdido sua base objetiva.”
133
Segundo Arantes, “a incomensurabilidade que as novas forças produtivas
arrastam consigo exige uma nova forma de dominação em que a dominação
econômica se tornou diretamente política.”
134
Como isso se relaciona com a organização do trabalho? Não é mais
possível organizar o processo produtivo pelos meios tradicionais de exploração
econômica, em outras palavras, a exploração não se dá apenas de forma
imanente ao processo econômico. Com efeito, uma dominação de ordem política
se sobrepõe à econômica.
Para conter os efeitos da perda de medida, os capitalistas aumentam o
controle em relação à força de trabalho. Por enquanto, apenas adiantamos a
hipótese: não seria essa a matriz estrutural dos fenômenos batizados de assédio
moral?
132
Jeremy Rifkin. A era do acesso. São Paulo: Makron Books, 2005. A mercantilizão da
experiência extrapolou o setor de serviços para abarcar a venda de bens de consumo duráveis e
não-duráveis. Para uma leitura da era do acesso, a partir da crise do valor e de seu corresponde
estado de exceção ver A volta redonda do capitalismo de acesso. In: Paulo Arantes. Extinção,
Boitempo, São Paulo, 2007.
133
Idem, ibidem, p. 190.
134
Paulo Arantes. Entrevista. Trans/Form/Ação, São Paulo, 31(2): 2008, p 12.
70
Outra consequência da explosão do valor é a obsessão pela medida que
atravessa o mundo do trabalho. Como a medida objetiva, dada pelo tempo de
trabalho socialmente necessário, se perdeu, um processo generalizado de
quantificação.
Os procedimentos em torno da “avaliação individualizada de desempenho”
e da “qualidade total” são as consequências do processo de quantificação que
mais nos interessam aqui. A depressão dos trabalhadores e a onda de suicídio
em empresas como a Renault e a France Telecon é, em última instância,
explicada pela adão desses procedimentos. Ao menos é assim que esse
fenômeno é analisado por Dejours.
135
No momento adequado, falaremos dele.
Por ora, voltemos a analisar a forma de subsunção atual.
A sucessão entre as três formas de subsunção podem ser pensadas pelo
prisma da organização do trabalho. Na passagem da produção artesanal para a
revolução industrial, a subsunção formal tratou de enquadrar os produtores livres
na forma capitalista. Aqui a subsunção é apenas formal, pois o trabalhador não
foi expropriado de seu saber, nem de seus instrumentos de trabalho.
Na subsunção real, o trabalhador já está inteiramente sob a disciplina da
fábrica, o seu savoir-faire não é requerido no processo produtivo, muito pelo
contrário, ele é negado e mesmo combatido. Essa subsunção tem seu auge na
organização científica do trabalho de Taylor, embora possa ser vista já n’A
riqueza das nações, de Adam Smith.
Por fim, na subsunção total contemporânea, o capital o se satisfaz
com a apropriação das capacidades físicas do homem, mas tem de intervir sobre
as capacidades espirituais dos indivíduos.
136
A mobilização das capacidades espirituais” está presente nas variantes
toyotistas, por meio do trabalho em equipe, da supressão de postos gerenciais
entre o capitalista e a força de trabalho, do trabalho por tarefas, da
temporalidade do just in time e da aquisição constante de novas habilidades.
Como já comentamos acima, Nascimento afirma que essa nova subsunção
tende a abarcar a totalidade dos trabalhadores envolvidos nos processos
135
Cf. Christophe Dejours; Florence Bègue. Suicide et travail - que faire? Paris: PUF, 2009.
136
Idem, ibidem, p. 198. No que diz respeito à denominação, cabe frisar que embora Nascimento,
cuja periodização estamos resumindo, utilize a expressão subsunção intelectual e, por vezes,
espiritual, optamos por subsunção total, já que as suas duas nomeações captam apenas os
aspectos cognitivos, deixando de fora os aspectos afetivos e relacionais de enorme importância na
subsunção contemporânea. Por outro lado, o estamos sugerindo com o termo total que não haja
algo que escape ao controle, pelo contrário, é justamente pelo fato do controle incidir em mais
aspectos que novas possibilidades de resistências são abertas.
71
produtivos e não apenas os setores onde as características da subsunção total se
apresentam de forma clara. A título de exemplo e acompanhando a formulação
de Haddad, descrevemos abaixo as características dos agentes inovadores.
137
Os agentes inovadores estão próximos dos trabalhadores qualificados,
mas se diferenciam deles. A teoria marxista resolve a diferenciação entre
trabalho manual e qualificado por redução. O trabalhador qualificado, digamos,
‘produz mais’ que o manual, mas eles não são qualitativamente diferentes, ou
seja, seus trabalhos são de mesma natureza.
No que diz respeito às diferenças entre trabalhadores qualificados e os
agentes inovadores, ainda segundo Haddad, elas se dão em três níveis
diferentes.
Em primeiro lugar, a atividade inovadora não tem relação com o tempo de
trabalho. Os problemas postos pelo seu trabalho acompanham o agente inovador
fora do ambiente e do tempo de trabalho.
No esquema de Haddad, se o trabalhador simples, regra geral, vende ao
capital força física, e o trabalhador qualificado, sua força mental, os agentes
inovadores vendem sua força anímica.”
A criatividade e a imaginação nunca são inteiramente controladas nem
pelo agente, nem pela organização do trabalho. Pode-se conceber um produto ou
solucionar um problema em casa, no feriado, nas rias ou no fim de semana,
pode-se inclusive sonhar com o trabalho.
Em segundo lugar, o processo de reprodução desta ‘foa de trabalho’
não é anônimo, “a rigor, o tipo ideal de agente inovador é o pós-graduado que se
submeteu à orientação pessoal de alguém que detém uma parcela de
conhecimento não totalmente socializado (saber de fronteira), seja por conta do
nível de profundidade, seja por conta do grau de especialização.
Em terceiro lugar, apesar de formalmente receber um salário, o que ele
ganha é “renda do saber”, que “é a contrapartida da posse (oligopolística) de
conhecimento relativamente exclusível (excludable).”
Esse conhecimento, ainda segundo Haddad, guarda semelhanças com a
renda da terra; por analogia, a patente que ao seu detentor direitos de uso
exclusivo é o correlato contemporâneo da cerca.
137
Fernando Haddad. Em defesa do socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998; “Trabalho e classes
sociais” in Tempo social. São Paulo, 9(2): 97-123, 1997.
72
Por último, “a atividade inovadora, ao contrário do trabalho qualificado,
não produz valor, [...] a ciência é fundamento da riqueza e o do valor.” Mas,
“o preço das novas mercadorias sofrem uma distorção na exata medida da
‘excludibilidade’ (sic) do saber que elas comportam.
138
Partindo de outra tradição, a teoria do capital humano e teorias da
administração baseadas no toyotismo também tentam mobilizar a força anímica
de sua força de trabalho. empresas que obrigam os trabalhadores a sempre
apresentar iias sobre produtos e sobre a organização do trabalho em
determinado período de tempo. O problema é que tais práticas visam mais a
adesão do trabalhador à “missão” da empresa do que abrir um espaço efetivo
para a criatividade do trabalhador.
Nenhuma dessas duas últimas teorias aponta para um outro elemento
muito presente no mundo do trabalho atual, a saber, a intensificação do
trabalho.
Vários autores apontam que nos últimos trinta anos houve uma
intensificação do trabalho, independente dos estratos e ocupações profissionais.
Na definição de Dal Rosso,
chamamos de intensificação são os processos que se de quaisquer
natureza que resultam de um maior dispêndio das capacidades
sicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de
elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os
resultados de trabalho.
139
A intensificação se diferencia de produtividade, que essa última não é
fruto de maior dispêndio de energia do trabalhador, mas sim no desenvolvimento
tecnológico ou de melhorias nas condições e na organização do trabalho.
Mas como poderia haver aumento de intensidade numa era em que o
desenvolvimento tecnológico se tornou rotineiro?
Ainda segundo Dal Rosso,
pelo menos duzentos anos prevalece a hipótese de que as
mudanças tecnológicas que acontecem de tempos em tempos,
além de substituir trabalho, que é sua implicação primeira,
também contribuem para aumentar o grau de intensidade.
140
138
Cf. Fernando Haddad. “Trabalho e classes sociais”, págs 110-12.
139
Sadi Dal Rosso. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 23.
140
Idem, ibidem, p. 23.
73
Para a compreensão dessa passagem, faz-se necessário acompanhar a
análise de Dal Rosso. Na fase em que vigora a mais valia absoluta, ou seja, nas
primeiras cadas da Revolução Industrial, o prolongamento da jornada era
acompanhado pela intensificação do trabalho.
Nas condições de trabalho insalubres e de jornada extenuante, a sociedade
se viu atacada em seus “fundamentos vitais”. Depois da pressão dos
trabalhadores e do Estado, houve redução da jornada e proibição do trabalho
infantil.
Por sua vez, os capitalistas respondem às perdas decorrentes da redução
da jornada com o maior uso de máquinas. No entanto, com o sistema de
máquinas, o tempo morto é drasticamente reduzido, em outras palavras, o
trabalho sofre uma nova intensificação na fase da mais valia relativa.
141
A análise de Dal Rosso da intensificação do labor consiste em que
o trabalho contemporâneo é herdeiro de uma jornada reduzida em
mero de horas trabalhadas, mas também de um grau de
intensidade muito maior do trabalho do que em épocas anteriores.
Os fatores de intensidade do trabalho são multiplicativos, não
substitutivos. Isso quer dizer que graus de intensidade obtidos em
uma práxis de trabalho [fordismo, por exemplo] podem e
freqüentemente o o - ser absorvidos pela práxis que a sucede
[toyotismo, por exemplo].
142
Am de passar em revista a literatura internacional sobre o tema,
sobretudo estudos franceses e norte-americanos, a análise de Dal Rosso também
141
Idem, ibidem, p. 50 e segs.
142
Idem, ibidem, p. 68. Cabe um pequeno excurso. Se a passagem da mais-valia absoluta para a
mais-valia relativa, no curso do século XIX, pode hoje ser bem discernida em seus contornos, as
tendências de hoje o se mostram com a mesma clareza. Ora, as sweat shops (fábricas do suor)
espalhadas por todo o mundo, o trabalho compulsório contemporâneo e a extensão da jornada no
trabalho precarizado são exemplos de uma tendência em andamento do retorno da mais-valia
absoluta e suas respectivas condições de trabalho.
142
As sweat shops dos grandes centros urbanos
do primeiro mundo com imigrantes clandestinos representam um retorno não ao início da
revolução industrial, quando asbricas eram semelhantes às cadeias, mas tamm às práticas de
trabalho compulsório. Luiz Felipe de Alencastro. A Servidão de Tom Cruise: metamorfoses do
trabalho compulsório, FSP, Caderno Mais! 13/08/2000, p. 4. . Nos países periféricos e suas “Zonas
de Processamento de Exportação”, as sweat shops estão em áreas de exceção policiadas por
milícias, onde o entram sindicatos, jornalistas e funcionários públicos. Cf. Naomi Klein. No Logo
a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, p. 226. Mas,
paradoxalmente, a mais-valia absoluta volta a ganhar força num contexto de inovação tecnológica
permanente. Portanto, muito diferente do culo XIX, quando o desenvolvimento tecnológico foi a
saída que o capital encontrou para as reivindicações dos trabalhadores pela redução de jornada de
trabalho. Do ponto de vista das leis ecomicas, qual seria hoje a necessidade lógica para o
retorno da mais-valia absoluta? Não estaríamos numa fase da economia capitalista na qual razões
de ordem política passaram a pesar mais do que as de ordem econômica? O fato de a China
controlar sua imensa mão-de-obra em condições de patente atraso tecnológico talvez seja o maior
exemplo atual dessa razão política? A crise do valor não teria como consequência o
recrudescimento da tirania da fábrica? Ou, numa palavra, seria a sweat shop o paradigma da
organização do trabalho contemporânea?
74
envolveu uma pesquisa empírica com diversos setores da economia de Brasília. A
pesquisa parte de 825 entrevistas com trabalhadores de diversos setores da
economia do Distrito Federal. Nada menos do que 43,2% dos trabalhadores
entrevistados avaliaram que há um processo em curso de intensificação do
trabalho.
143
Dal Rosso abre seu livro explorando os significados de uma expressão
proferida por uma gerente de supermercado, sua entrevistada: “as empresas
querem trabalhos, não mais empregos!”
Para a gerente, “trabalhos” significa que o empregado tem que agora
realizar inúmeras funções e “empregos” significa uma relação trabalhista pautada
por um contrato de trabalho em que são definidas função, carga horária e
salário.
Para o autor, a expressão partilha do imaginário social que está se
espraiando segundo o qual o funcionário deve servir a tudo. A esse imaginário
corresponde a real precarização do trabalho.
A atual intensificação do trabalho está relacionada com a precarização do
estatuto do assalariamento, o que se pode constatar em três aspectos básicos do
trabalho: remuneração, função e jornada.
As remunerações estão marcadas pelo pagamento por produtividade. No
que diz respeito às funções, hoje se exige polivalência e versatilidade, pelo que
pode se observar que a intensificação não se refere apenas a um fator
quantitativo. Por último, a jornada se tornou flexível pela implantação de
mecanismos como o banco de horas.
Esses mesmos mecanismos da precarização não deixam de estar
relacionados com a mobilização. Ainda segundo Dal Rosso, “a intensidade
desvela o engajamento dos trabalhadores significando que eles produzem mais
trabalho ou trabalho de qualidade superior.”
144
3.3 Fim da sensibilidade igualitária: desfiliados e empreendedores
Tanto o precarizado quanto o capitalista-sócio do discurso do capital
humano entram em cena a partir de uma re-individualização que é fruto da
143
P. 103.
144
Idem, ibidem, p. 29.
75
referida decomposição das instituições do modo de regulação fordista-
keynesiano.
A modernização conservadora foi capaz de se aproximar de sua afirmação
de que “isso a que chamamos sociedade não existe(Margareth Tatcher). Por
conseguinte, “assistimos ao advento de estratégias inéditas de tratamento dos
problemas sociais, a partir da gestão das particularidades do indivíduo.”
145
Osvaldo López-Ruiz afirma em sua tese que o ethos dos executivos das
transnacionais, cuja matriz teórica é o capital humano, se torna referência para
toda a sociedade, a partir dos anos 1990.
146
Esse novo ethos se dá a partir de uma
nova equação que parece orientar os valores [e que] hoje poderia
ser resumida como: ‘consumo-formação-permanência social’. O
‘consumo’, em lugar da poupança, assegura o acesso não aos
bens, mas também aos conceitos requeridos para manter a
posição social. A educação é substituída pela ‘formação’; formação
permanente pela qual cada indivíduo é responvel e que é
entendida crescentemente em termos de ‘treinamento’– o non
stop training exigido hoje pela corporação. A permanência social’,
como valor perseguido, não tem relação com a falta de aspiração a
ascender socialmente, mas com uma necessidade anterior, [...] a
de não ser desconectado.
147
Voltemo-nos para a noção de formação permanente.
148
Segundo López-
Ruiz, ela torna porosa as fronteiras entre tempo livre e trabalho e entre
investimento e consumo.
Dado que, segundo essa perspectiva, a formação permanente se
transforma numa necessidade, os gastos com ela não são mais computados
como consumo, pois se tornam parte dos investimentos numa carreira
profissional.
Como um curso de especialização agrega valor ao capital humano de cada
um “não se fala mais de ‘custos’, mas de ‘investimentos.’Mas não são apenas
145
Robert Castel. A gestão dos riscos – da antipsiquiatria a pós-psicanálise. Rio de Janeiro.
Francisco Alves Editora, 1987, p. 17.
146
Osvaldo Javier López-Ruiz. O ethos dos executivos das transnacionais e o espírito do
capitalismo. Tese de Doutorado, Unicamp, 2004.
147
Idem, ibidem, p. 21, grifos do autor. A iia de non stop training é muito propícia para
exemplificar a adequação ou a reprovação social de uma psicopatologia. É fácil perceber que,
numa sociedade competitiva, voltada para a produção e para o progresso científico e tecnológico, a
mania é uma condição mais adaptada, ou menos visivelmente patológica que a depressão, para a
qual serve até como antídoto.” Moacyr Scliar. Pequena história da melancolia e da mania. In. Paulo
Amarante (coord.) Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Nau Editora,
2003.
148
Idem, ibidem, p. 13. Vale lembrar que formação é um conceito clássico, totalmente,
descaracterizado nessa nova acepção, assim como foram sociedade civil, reforma etc.
76
os estudos que entram nesse calculo, a vida toda passa a ser gerenciada
segundo a noção de capital humano, de modo que o tempo livre passa a ser
pensado a partir da carreira profissional, “desde a assinatura de uma revista, o
convite para um seminário [até] uma sessão de terapia reikiana’.”
149
O empreendedorismo, paradoxalmente, reabilita o ethos protestante
descrito por Weber, ”contudo, dessa vez, não mais pregando deixar o ‘consumo’
em favor da ‘poupança’ mas em substituir o que era entendido como ‘consumo’
por ‘investimento’.”
150
Por isso, a idéia de poupança tendo em vista a educação, presente nos
planos da classe dia, perde sentido. Para esse trabalhador-investidor”, reter
dinheiro é uma opção completamente irracional.
Se, de fato, uma “perda do valor social da poupança” entre a classe
média, não se pode deixar de observar que a expansão do ethos dos executivos
se dá paralelamente ao movimento de precarização do trabalho o que torna a
poupança algo impossível.
Precarizados e empreendedores representam duas respostas aos mesmos
problemas: a dissolução das solidariedades de classe e dos arranjos republicanos
sustentados pela idéia de nação.
151
Sem espaço de atuação pública e de pertencimento a alguma coletividade,
esse sujeito desfiliado e não excluído’, para lembrar Robert Castel - não pode
enxergar senão um horizonte rebaixado, que as energias utópicas, por
enquanto, saíram de cena. Esse quadro que, por assim dizer, congela o presente,
seccionando-o de passado e de futuro, torna mais insuporvel o
descontentamento com o trabalho e as frustrações com as promessas do
consumo, dada a aparente impossibilidade de mu-los.
É nessa sociedade a um tempo privatizada e re-hierarquizada que
aparecem a questão da ausência de reconhecimento, da invisibilidade, do
desprezo e da humilhação social.
149
Idem, ibidem, p. 29.
150
Idem, ibidem, p. 32.
151
Arantes p. 36, nota 22,. Desorganização social é tamm desorganização psíquica: seja esse
social, uma nação, seja ele uma instituição: o retorno atual de fenômenos massivos de
desligamento e de exclusão sociais, de racismo e de guerra étnica nos ensina isto: as formas do
conflito político e da luta de classes foram formas civilizadoras e integradoras. Elas fizeram recuar
as alteridades irredutíveis, misturaram populações heterogêneas, integraram em comunidades
nacionais indivíduos e grupos vindos de diversos lados”, Jacques Rancière, “O dissenso”, in Adauto
Novaes (org.) A crise da razão, São Paulo: Minc-Funarte/Cia das Letras, 1996, pg.382.
77
À essa re-hierarquização corresponde, para cada instituição, formas
negativas de relações pessoais. Nas bricas, bancos e lojas, temos o assédio
moral; nas escolas, o bullyng; nas prisões, dentre o rol de barbaridades, temos
no extremo, a vida matável’.
Sob altos níveis de competitividade, rompem-se os vínculos entre os
trabalhadores, de modo que esses passam a tolerar o que antes era intolerável.
Nesse processo, vítimas e algozes passam a consentir o sofrimento padecido e o
infringido, nesse exercício cotidiano se a banalização do mal – mais um
conceito criado para designar o nazi-fascismo que é reativado tendo em vista a
contemporaneidade. O trabalho, então, tem se tornado um laboratório de
crueldade social que se espalha por toda a sociedade.
152
3.4 Responsabilidade e participação – ou submissão?
Sem negar os méritos da obra de Alain Ehrenberg, de suas intuições e dos
caminhos que ele abre à pesquisa, nossa pesquisa, como vimos, não dá a
mesma importância à responsabilidade.
Vale lembrar que sua caracterização do indivíduo contemporâneo es
ligada, mesmo que por uma filiação indireta, à teoria de capital humano, isto é,
aquilo que Michel Foucault considera como a vertente norte-americana do
neoliberalismo.
153
A teoria do capital humano surge nos EUA, na cada de 1950 - mesma
década em que Ehrenberg situa o início da mudança normativa que deixa de ser
marcada pelo par culpa-disciplina e passa para o par iniciativa-responsabilidade -
e, como vimos, nos anos 1990, sai do mundo corporativo e é adotada por quase
toda a sociedade.
O aumento da autonomia individual teria levado a novas psicopatologias.
Esse diagnóstico de época feito por Ehrenberg, também é compartilhado por Axel
Honneth.
154
Esse campo que chamaremos de patologias da autonomia es
152
Christophe Dejours. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
153
Michel Foucault. O nascimento da biopolitica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
154
Segundo o diretor do Instituto de Pesquisa Social, o diagnóstico hegeliano das patologias da
modernidade: “‘solidão’, ‘vacuidade ou ‘abatimento’, [...] podem ser colocados conjuntamente sob
o denominador comum de um ‘sofrimento de indeterminação.’” Axel Honneth. Sofrimento de
indeterminação uma re-atualização da filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Ed.
Singular/Esfera Pública, 2007, p. 73. Segundo o José A. Giannotti, em sua resenha, em Hegel se
passa, o oposto, a determinação do sofrimento está no movimento do “universal se
78
presente em teorias da administração que tem ressaltado que, ao invés de um
controle autoritário, hoje a gestão se daria pela sedução.
Ao lado dos valores do capital humano uma organização do trabalho
que se beneficia desses valores, mas que está fundada em novas práticas de
dominação fortemente marcadas pelo autoritarismo. Apesar de incorporar as
estratégias da sedução, a gestão comporta uma violência simbólica de um teor
inaudito que atinge todas as ocupações profissionais.
Em um mundo que passa por uma brutal re-hierarquização, salta aos
olhos que em Ehrenberg não referência à fratura social e à hierarquia na
organização do trabalho.
Mas a idéia de responsabilidade está muito arraigada na sociedade
atual, vejamos outro exemplo:
chegamos ao neoliberalismo, à queda do Muro de Berlim, e não
nos tornamos todos loucos, perversos, sem-família’ ou quaisquer
outros fantoches do pesadelo frankfurtiano da ‘sociedade
totalmente administrada’. Continuamos, com ou sem pai
freudiano, a nos sentir responsáveis pelos males que nos afligem e
a procurar resolver aquilo que está ao nosso alcance. Não estamos
no melhor dos mundos, mas não capitulamos diante do que ele
tem de pior. [grifos nossos]
155
Ao acordar do pesadelo frankfurtiano, Costa se depara com algo bem real:
a responsabilidade a respeito daquilo que está em nosso alcance. É isso mesmo,
mas com o sinal trocado. Aquilo que ele como positivo, nos vemos como a
matriz de nosso problema.
A questão da responsabilidade es presente em tantas esferas da vida
social que seria pertinente supor que estamos lidando com um novo sistema
ideológico. Os exemplos são os mais variados: protagonismo juvenil, empresas
responsáveis, consumo responsável, infrator responsável e, por fim, as parcerias
entre Estado, empresas, terceiro setor.
156
particularizando para informar-se como individual em si e para si. É nessa determinação que a dor
aparece. Idem. Sofrimento de indeterminação. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, 80, São
Paulo, mar. 2008. pp. 219-221.
155
Jurandir Freire Costa. Playdoier pelos irmãos. in. Maria Rita Kehl. (org.) Função fraterna. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 13.
156
Regina Magalhães de Souza. O discurso do protagonismo juvenil. Tese de doutorado.
Universidade de São Paulo, 2007; Maria Célia Paoli. Empresas e responsabilidade social: os
enredamentos da cidadania no Brasil. In: Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa (org) Boaventura de Sousa Santos; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, Isleide
Fontenelle. O fetiche do eu autônomo consumo responsável, excesso e redenção como mercadoria.
Mimeo, inédito, 2009; Klauss Günter. Crítica da pena I. Revista de Direito GV. V. 2 N. 2 , p. 187 -
204 , JUL-DEZ 2006; Klauss Günter. Crítica da pena II. Revista de Direito GV. V. 3 N. 1 , p. 137 -
150 , JAN-JUN 2007.
79
Além de responsabilização, um outro tema que lhe é correlato ganha foa,
a saber, participação.
O fato é que, hoje, [...] se faz (se insiste me fazer) a celebração
das virtudes democráticas dos chamados fóruns blicos de
participação popular, ao mesmo tempo que a assim chamada
sociedade civil organizada é conclamada (se insiste em conclamar)
para a renovação democrática da vida política.
157
Se ao trabalhador se demanda autonomia, do cidadão se demanda
responsabilidade, discurso que hoje é dominante.
Ao analisar a atuação do terceiro setor na área da infância e juventude,
Ota observa que depois da passagem por programas sociais, o jovem não muda
sua condição social. Tudo isso leva a nada, na maioria dos casos sua
inempregabilidade continua a mesma. Mas, ali um discurso da
responsabilização, muito presente no terceiro setor, cuja eficiência é
comprovada, sobretudo, em relação aos adolescentes que passaram pelas
instituições da justiça. Em outras palavras, trata-se de mais um exemplo de
apagamento das determinações sociais em nome da suposta autonomia
individual.
158
Se podemos facilmente identificar a idéia de responsabilidade e sua
presença inaudita em rios campos. Por outro, lado, as definições atuais da
organização do trabalho apontam para uma disciplina revigorada, a ponto de
Anne Fournier forjar o termo em “empresa sectária”.
não é de hoje que muitos autores rastream esses movimentos
contraditórios, por exemplo, o conceito de “autonomia controlada” de Max Pagès
cunhado na década de 1970 e retomado por Beatrice Appay, no fim dos anos
1990.
159
A referida servidão voluntária, reabilitada por vários estudiosos do
157
Vera da Silva Telles. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade (anotações
inconclusas de uma pesquisa) In. (Orgs.) Francisco de OLIVEIRA e Cibele S. RIZEK. A era da
indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 202-203.
158
Cf. Nilton Ken Ota. O Formalismo Normativo: Poder como linguagem e vida. Tese de doutorado,
Departamento de Sociologia, USP, 2010. A responsabilização é um efeito do que Ota chama de
formalismo normativo, isto é, um dispositivo que funciona a partir de práticas de discurso, cujo
modelo pode ser observado na linguagem de defesa de direitos, que leva a uma inflação de normas
em todas esferas da vida social. Quando tudo se submete ao discurso, o resultado é de irrealidade
do sentido. No que diz respeito ao trabalho, isso está representado nas avaliações e metas a partir
de critérios quantitativos. Por exemplo, quando a produção acadêmica se pauta por esses critérios,
a desenfreada produção de artigos beira à irrealidade do trabalho do pesquisador, pois são artigos
que não significam nada, além de números.
159
Béatrice Appay. La dictature du succès – le paradoxe de l’autonomie contrôlée et de la
precarisation. Paris: Harmattan, 2005.
80
trabalho, também lida com os opostos. também o mais direto “democracia
totalitária”, de João Bernardo.
Para Dejours, entram em questão, de um lado, novas formas de avaliação
que resultam numa competão generalizada e, de outro, um recrudescimento da
disciplina.
Dentre as formas de avaliação do trabalho, Dejours elege duas como
principais, isto é, avaliação individualizada e os programas de qualidade total.
A avaliação individualizada de desempenho leva à uma competição e sua
consequência mais importante é o enfraquecimento dos coletivos. Vale lembrar
que, para Dejours, as psicopatologias do mundo do trabalho são “patologias da
solidão”.
A qualidade total tem como consequência a prática generalizada da mentira, da
fraude e da dissimulação para atender aos requisitos de certificações tais como
as de tipo ISO.
160
A quantificação faz com que o trabalho perca sentido e deixe de ser um
mediador da relação do eu com os outros. Uma forma espécie de radicalização
da racionalidade instrumental, a quantificação de tudo é no fundo uma crise de
medida (valor). Como essa medida já não se dá de forma imanente, ou seja, por
meio do tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir algo, as
empresas passam a tudo medir. Mas o próprio conteúdo da produção,
contraditoriamente sempre ameaça a forma valor.
A crise do valor se relaciona com uma compulsão pela medida e a
quantificação de tudo é um ataque ao trabalho vivo. A quantificação leva à perda
de sentido do trabalho no que constitui mais um fator de perda de sentido do
trabalho, fazendo com que ele deixe de ser um mediador na construção da
identidade do sujeito.
As consequências desses princípios da organização do trabalho
são, de um lado, o crescimento extraordinário da produtividade e
da riqueza, mas, de outro, a erosão do lugar acordado à
subjetividade e à vida no trabalho. Disto resulta um agravamento
das patologias mentais decorrentes do trabalho em crescimento
em todo o mundo ocidental, o surgimento de novas patologias em
particular os suicídios nos próprios locais de trabalho o que não
160
A mentira e seus correlatos, ao nosso ver, estão relacionados com a irrealidade do trabalho.
Mas a mentira como prática do mundo do trabalho comporta diversas características desde a
fraude contábil, para as quais o caso Enron é o exemplo mais conhecido de algo muito
generalizado, até o sofrimento ético de quem é obrigado a mentir por conta dos constrangimentos
da organização do trabalho.
81
acontecia jamais antes da virada neoliberal e o desenvolvimento
da violência no trabalho, a agravação das patologias da
sobrecarga, a explosão de patologia do assédio.
161
O discurso da autonomia na organização do trabalho não deixa de ser
também uma forma do capital repassar adiante os efeitos negativos da crise do
valor, o que no caso significa colocá-los sobre os ombros dos indivíduos.
A respeito da autonomia, Dejours ironiza, “ora, essa é a autonomia?
Fraudar sem ser percebido, ou fazer o erro cair sobre as costas do colega?”
162
Além disso, o discurso da autonomia é arregimentado como forma da
empresa impor uma organização do trabalho que, de cima a baixo e de todos os
lados, é perpassada pela competição, entre filiais, entre setores, entre
trabalhadores e no topo da hierarquia que é (para lembrar Braudel) onde circula
os grandes predadores e vigora a lei da selva.
Mais adiante, veremos que, com o decorrer do tempo, a irrealidade do
trabalho e a quebra do coletivo passam a gerar uma descompensação psíquica
que abre caminho para a depressão e o suicídio.
A iniciativa e a responsabilidade termos pelos quais Ehrenberg caracteriza
o padrão normativo, pode resultar não em aumento de autonomia como afirma,
mas acaba por resultar em seu contrário: iniciativa para se sujeitar, para ser o
mais útil na prestação de serviços a outrem.
A relação de serviço é apontada por autores de tradições intelectuais
diferentes como um novo paradigma do mundo do trabalho.
Vejamos o que diz, por exemplo, André Gorz, a respeito da “relação de
serviço” numa empresa do setor industrial, precisamente, uma empresa
automobilística,
de imediato, o que impressiona é que não se trata aqui nem de
conhecimentos nem de qualificações profissionais. O que conta,
para esses `colaboradores´ de um dos maiores grupos industriais
do mundo, são as qualidades de comportamento, as qualidades
expressivas e imaginativas, o envolvimento pessoal na tarefa a
desenvolver e completar. Todas essas qualidades e essas
faculdades são habitualmente próprias dos prestadores de serviços
pessoais, dos fornecedores de um trabalho imaterial impossível de
quantificar, estocar, homologar, formalizar e até mesmo de
objetivar.
163
161
Christophe Dejours . Subjetividade, trabalho e ação. In: Revista produção, V. 14, n. 3, p. 27-
34, Set./Dez., 2004.
162
Christophe Dejours. La fatigue d´être soi: revers de l’emancipation ou signe d’alienation. Revue
Française de Psychosomatique. mero especial Vivre fatigué, Paris: PUF, 2004. XXX
163
Andre Gorz. O imaterial – conhecimento, valor e capital. SP: Annablume, 2003, p. 17.
82
Mais adiante, n’O imaterial, Gorz analisa, da perspectiva do valor, as
consequências desse novo trabalho,
A impossibilidade de mensurar o desempenho individual e de
prescrever os meios e os procedimentos para chegar a um
resultado conduz os dirigentes da empresa a recorrer à `gestão
por objetivos´: eles `fixam objetivos aos assalariados; cabendo a
eles desdobrar-se para cumprí-los. É o retorno ao trabalho como
prestação de serviços´, o retorno do servicium, obsequium devido
à pessoa do suserano na sociedade tradicional.
164
Como dito anteriormente, se a medida o é imanente ao processo
econômico, a acumulação tem que ser garantida pelo poder. Pelo mesmo motivo,
esse poder controla a força de trabalho por inteiro, seja no que diz respeito às
funções ou à jornada.
É nesse sentido, que se pode falar de uma mobilização total das
capacidades e das disposições, aí compreendidas afetivas (...).
Doravante,o nos é mais possível saber a partir de quando
estamos `do lado de fora´ do trabalho que somos chamados a
realizar.
165
A conclusão que podemos tirar é desalentadora, já que não é nada
novidadeira; é na fronteira da acumulação e nos postos elevados da
organização do trabalho que forças do passado aparecem redivivas. Gorz nos
lembra a boa observação de Combes e Aspe de que, “não se concebe como a
economia imaterial poderia funcionar sem submeter os indivíduos a uma nova
forma de servidão voluntária.”
166
Entre nós, essas formas nunca foram deixadas para trás, por isso nosso
presente ilumina o que tem acontecido no centro, ou seja, a:
passagem da sociedade industrial para a economia informacional
de serviços. na verdade] a ressurreição pós-moderna do
trabalho servil, o trabalho da multidão pauperizada, cujo métier
doravante é servir, e servir para que fique bem claro que o
inferiores e que as novas hierarquias estão para ficar e por isso
mesmo estão sendo monetizadas.
167
164
Idem; ibidem, p. 18. Grifos do autor.
165
M. Combes e B. Aspe “Revenu garanti et biopolitique” Apud. Idem; ibidem, p. 22. Grifos nossos.
A afirmação desses dois autores é tão certeira e rica em consequências que André Gorz sugere que
“o artigo mereceria uma nova e mais ampla difusão.”
166
Ibidem, Grifos nossos. A afirmação desses dois autores é tão certeira e rica em consequências
que André Gorz sugere que “o artigo mereceria uma nova e mais ampla difusão.
167
Paulo Arantes. “A fratura brasileira do mundoIn. Zero à esquerda. SP: Conrad Editora, 2004,
p. 77.
83
Como sabemos, no Brasil o mito de ps do futuro, segundo o qual
somos um país ainda novo e, quando chegar a hora, iremos ao encontro de
nosso destino. Hoje, no entanto, há, nos países centrais, um uso corrente do
termo brasilianização para se referir à nova pobreza que se instalou entre as
nações ricas. Por brasilianização, geralmente se entende uma estrutura social
que impossibilita a mobilidade social, de forma que as classes vão se enrijecendo
até se assemelharem com castas. De modo que, não pelo caminho pretendido
inicialmente, chegamos lá e o país do futuro é referência para as relações
trabalhistas nos países centrais.
O ‘nosso trabalho informal em metástase anuncia o futuro do
setor formal mundo afora, esaqui um dos grandes laboratórios
[da] Terceira Revolução Industrial [...] A melhor imagem deste
‘admirável mundo novo do trabalho’, como quer Ulrich Beck, é a
brasileiríssima empregada doméstica vivendo da mão para a boca,
sem registro e direitos quase nenhum, jornada de trabalho elástica
e indefinível, porém proprietária de um celular.
168
Mesmo aqui, o trabalho informal avança;
a tendência do crescimento do trabalho autônomo precário, de
remuneração incerta e baixa, se acentua. Multiplica-se o número
de camelôs, de vendedores ou pedintes situados nas esquinas das
ruas de maior movimento das metrópoles, do `trabalho´
associado à distribuição da droga e ao crime organizado. No
âmbito do desfrute dos endinheirados, cresce o ‘volume de
emprego´, seja com o surgimento de novas especializações, como
`passeador de cachorros´, o `personal trainer´, `personal
stylist´, seja pela expansão e complexificação de antigas (por
exemplo os novos seguranças que têm de saber manejar bem
armas muito sofisticadas, novas empresas de carros blindados).
169
Já no âmbito do desfrute dos fugazes barões do tráfico, a frase proferida in
off por um deles, no começo do documentário Dançando com o diabo, conecta as
duas pontas da sociedade por meio um discurso que se universalizou: - Quem
não nasce para servir, não serve para viver.
170
Se, no topo e na base da estratificação social e no centro e na periferia da
economia-mundo, as relações de serviços’ são crescentes mesmo dentro das
indústrias, caberia investigar então quais seriam as contrapartidas em termos de
sofrimento.
168
Paulo Arantes (entrevista), Folha deo Paulo, caderno Brasil, 18/07/2004.
169
João Manoel Cardoso e Mello e Fernando Novais. A que ponto chegamos. Revista Praga, n. 6.
1998, SP.
170
Dançando com o diabo. Inglaterra/Brasil, 2009
84
Parte III A sociedade vista pelo prisma do sofrimento
Capítulo 4
Mobilização do trabalhador e sofrimento depressivo
4.1 Ocupações profissionais e sofrimento
Essa pesquisa se construiu a partir de uma premissa sica, qual seja, a
de que, atualmente, só é possível compreender o sofrimento social relacionado
ao mundo do trabalho se descartarmos a idéia de normalidade capitalista.
Segundo a teoria do sistema-mundo, que se baseia em tendências de longa
duração”, a economia mundo passa por uma fase de transição entre dois
sistemas.
171
Desde já, duas tendências se configuram. A construção de um sistema
mais hierárquico que o “capitalismo histórico”, ou um sistema mais igualitário e
democrático. Muito antes do Império, de Negri e Hardt, os teóricos do sistema-
mundo apontavam para a tendência de que, durante a transição, o equilíbrio
inter-estatal se desestabilizaria, o que abria a possibilidade para a constituição
de um império no qual a economia de mercado não seria mais hegemônica.
Segundo Wallerstein, as ferramentas conceituais que a cncia social forjou
durante a fase madura do capitalismo histórico não são mais adequadas para se
pensar o presente, entendido como uma fase de transição.
172
Mas qual a relação entre as considerações de “longa duração” e o nosso
objeto? Ora, essa teoria muito bem fundamentada nos permite olhar para o
presente de outra forma. Não se pode pressupor qualquer idéia de normalidade,
por mais vaga que seja, ainda mais quando o assunto em pauta é o sofrimento
no trabalho. Em outras palavras, não se pode pensar em abstrato e tratar as
ocupações profissionais como que apartadas do mundo contemporâneo. Vale
dizer também que a teoria social o deve deixar de analisar aquilo que lhe
parece exceção quando se tornou norma.
173
171
Immanuel Wallerstein. Após o Liberalismo em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis:
Vozes, 2002.
172
Immanuel Wallerstein. Unthinking social science: the limits of nineteenth century paradigms.
Cambridge: Polity Press, 1991.
173
Vale lembrar que esse diagnóstico de época, que adeus à normalidade, não é de modo
algum restrito às teorias críticas. Longe disso, até o establishment já trilha por esse caminho. O
que dizer, por exemplo, da sociologia do risco e da virulência? Segundo Arantes, a partir dos anos
1990, expressões como estado de sítio, estado de exceção, estado de emergência passam a ser
85
O que é o trabalho sob as condições de um ataque decretado pelas elites
políticas e econômicas, ataque este que já dura trinta anos e que levou ao que a
literatura chama de precarização?
Seria possível analisar o trabalho do taxista sem pensar no
engarrafamento do tnsito das megalópolis? E o motorista de ônibus como
pensar seu ofício sem relacioná-lo com os assaltos freqüentes e o trauma
resultante, sem falar na estressante disputa por espaço no mesmo trânsito
engarrafado?
Pode se pensar no trabalho do professor sem levar que a própria educação,
em muitos dos seus aspectos, esem crise? Sabemos que, muitas vezes o que
a organização do trabalho determina, em faculdades e escolas é que o professor
não ensine de fato, mas apenas simule. Quais são as consequências psíquicas de
não poder, efeivamente, exercer o seu ofício?
O que é hoje trabalhar em um banco quando cada agência se tornou uma
“loja de comercializar produtos” (nas palavras de uma bancária pressionada para
atingir as metas estabelecidas pela instituição para a qual trabalhava.)?
Quais os impactos na psique de uma médica ou de um enfermeiro de
hospitais de emergência, na cidade do Rio de Janeiro, quando seus pacientes
chegam baleados por fuzis AK-47 e AR-15?
174
cada vez mais utilizadas por analistas de toda sorte, na forma de intervenções políticas que mais
parecem sinais de alarme. Curiosamente, a origem disso é um setor da saúde, a saber, os
hospitais e serviços de urgências e emergências. “A sirene [...] é de ambulância mesmo, pelo
menos o fato gerador da metáfora. Médica, no caso. Mais de um estudioso da aceleração
emergencial do curso do mundo da turbulenta dinâmica financeira da acumulação aos processos
judiciais derrogatórios , tem salientado a matriz originária da situação excepcional designada
pelo termo emergência: bem prosaicamente, os serviços de urgência própria do mundo hospitalar.
Ao se impor como categoria histórico-filosófica suprema, a urgência focalizou as sociedades
digamos pós-históricas, tomando ao da letra seus ideólogos pelo prisma não tão inverossímil
assim de um grande hospital convertido num único e gigantesco serviço de urgência submergido
por um afluxo excepcional de feridos graves o por acaso, mais uma vez, um hospital de
campanha em plena batalha. Através do emprego recorrente de uma analogia médica para
assinalar a visão do mundo como um descomunal teatro de patologias emergenciais, um termo
todavia específico das situações de crise, esse novo discurso da exceçãoo descalabro social que
corre paralelo aos efeitos colaterais da modernização tecnocientífica converteu afinal a instituição
do pronto socorro em sucedâneo do Estado Social, por sua vez em processo de desmanche
traumático confessa, admite e reclama, que ela, exceção, é agora a regra.” Paulo Arantes.
Alarme de incêndio no gueto francês – uma introdução à Era da Emergência. mimeo. p. 28.
174
Quando esses pacientes chegam, porque no mesmo movimento de uso crescente dessas armas,
muda a parte do corpo que ficou atingida, o alvo passou ser mais a cabeça. Cf. Suely Deslandes.
Frágeis Deuses – profissionais da emergência entre danos da violência e a recriação da vida. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. Em vários depoimentos de profissionais do hospital aparece a
queixa de que eles são sobrecarregados com demandas que não configuram casos de emergência.
A autora observa que a preferência da população pelos servos de emergência e não pelos
hospitais comuns é uma tendência mundial.
86
Uma reação muito natural face a tudo isso é recuarmos. E uma
racionalização muito comum disparada pelo problema é tomar como exceção o
que já se tornou norma. E não há razão para isso? Dada a gravidade de
determinadas situações, esse recuo é até mesmo salutar, mas deixa de sê-lo
quando se trata de submeter a realidade à análise crítica.
Por exemplo, frente a um acontecimento tão ansiógeno quanto um suicídio
no ambiente de trabalho, o recuo é generalizado e acomete tanto a direção da
empresa quanto os colegas de trabalho. Os sindicatos em geral o sabem como
proceder e os dicos do trabalho são energicamente dissuadidos de levar o
caso adiante pela empresa, a qual estão submetidos.
175
Isso posto, voltemos agora para nosso objeto de análise. Nesse trabalho,
elegemos analisar de acordo com a teorização até aqui elaborada as modalidades
do sofrimento social que têm sido discutidas pela literatura mais recente: as
consequências deletérias da servidão voluntária; a fadiga relacionada à
sobrecarga no trabalho; o esgotamento profissional (burnout), dadas as
demandas afetivas e relacionais do trabalho. Associamos, cada uma dessas
modalidades, mas não de forma exclusiva, a algumas profissões.
Segundo Seligmann-Silva, na maioria dos casos de depressão relacionada
ao trabalho, a síndrome aparece associada às patologias acima mencionadas, por
isso, em cada uma delas procuramos enfatizar o sofrimento depressivo, cuja
presença se , seja como a principal consequência, seja como parte da
sintomatologia.
176
O reverso do capital humano: o sofrimento na servidão voluntária
A servidão voluntária, conceito de Etienne de La Boétie, tem sido trazido à
baila por estudiosos do trabalho como um contra-ponto das teorias do capital
humano, especificamente seu conceito de “capitalista-sócio” e das versões de
toyotismo que caracterizam a empresa como uma família e outras versões
correlatas, tais como a de equipe.
177
175
Cf. Christophe Dejours e Florence Bègue: Suicide et travail: que faire? Paris. PUF, pp. 8-9.
176
Cf. ESS. p. 33. A autora relata que, em seu atendimento em um hospital da Grande São Paulo,
80% dos casos que lhe foram encaminhados por sindicatos e por setores desse hospital, tratava-se
de depressão, desde os “episódios depressivos de vários graus e intensidade, [até] as depressões
recorrentes”.
177
No filme, O grande chefe, Lars von Trier constrói seu argumento levando ao extremo a servio
voluntária. O chefe verdadeiro abre uma empresa com o capital dos próprios funcionários sem que
esses o saibam; contrata um ator nada promissor para se passar por chefe; o comportamento de
87
A servidão voluntária descreve um processo pelo qual o trabalhador adere
de forma incondicional ao discurso gerencial da empresa. Resultado de uma
estratégia da empresa que tem sido chamada de “geso por sedução”, a busca
pela adesão objetiva que o trabalhador, denominado agora pelo infame
“colaborador”, adote como seus os interesses e metas estabelecidas pela
empresa.
Nos casos em que esses discursos se mostram bem sucedidos, a conduta
do trabalhador é caracterizada por subserviência e bajulação.
A jogada consiste pois em manter boas relações com os colegas e
com os administrados da empresa, posto que a promoção e a
carreira se dão em função da cotação pessoal junto aos
administradores (...). Assim, o conformismo é rigorosamente
respeitado. (...) proponho, para caracterizar esse mundo social de
caractesticas bastante peculiares, o termo `convincia
estratégica´.”
178
As novas formas de servidão voluntária são muito comuns entre os
executivos, para os quais, como vimos, a teoria do capital humano foi criada.
Num artigo primoroso no qual analisa o caso de uma executiva de uma
grande empresa de consultoria, Dejours se depara com o sofrimento produzido
pelas as novas formas de servidão. No artigo em questão, o autor nos apresenta
algo inteiramente novo no que diz respeito ao sofrimento psíquico no trabalho: a
partir dos anos 1990, suicídios passam a ser cometidos no ambiente de trabalho.
A realidade por trás do discurso do capital humano é uma forma de
controle cuja exigência é a de submissão total.
no processo desencadeado pela empresa, o trabalho, a qualidade
do trabalho, é o que menos importa. A única razão das represálias
contra a senhora V. B. consiste no fato de ela não se mostrar
submissa o bastante. É esse o fator crucial que conduzi ao
inexovel. A servio é o elemento desencadeador do conflito que
culminará no suicídio. (...) O que essa história nos ensina, é que
as patologias da servidão antigamente reservadas a empregados
domésticos, do lacaio à criada, afetam agora os executivos,
inclusive os de alto escalão das empresas multinacionais. Eis o que
encobrem, na mais sombria obscuridade, os suicídios nos locais de
trabalho: o espectro de formas inteiramente novas de servio
que se alastram no mundo do trabalho e das quais nenhum des
hoje pode se sentir protegido.
179
alguns desses, aí sim, “capitalistas-sócios,” para com o suposto chefe é marcado ou pela bajulação
ou pelo medo. O grande chefe. Dinamarca, 2006.
178
Christophe Dejours. Novas formas de servidão e suicídio. In. Ana Mendes. Trabalho e saúde.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 33.
179
Idem; ibidem, p. 35 e segs.
88
O que essas mortes voluntárias nos revelam do cotidiano das fábricas, dos
escritórios, do comércio e do serviço público?
Certamente, o mundo corporativo passou a servir de espelho e ideal para
boa parte da sociedade, mas por outro lado há um movimento na direção
contrária, este muito mais desconhecido e silenciado: certos valores que antes
eram das camadas profissionais subalternas se tornaram parte da rotina no
topo da hierarquia. Assim, Dejours afirma que as práticas de servidão típicas dos
serviçais domésticos estão presentes entre os executivos de alto escalão das
empresas multinacionais.
Mas as reviravoltas não ficam por aí, nesse curso no qual todas as classes
sociais, excluídos os grandes proprietários, levam uma vida medíocre comparada
com outras épocas e civilizações.
180
Curiosamente, outro paralelo entre os executivos com as camadas
inferiores da estratificação social também é feito por Seiji Uchida.
181
Ao contrário do que se imagina, em sua pesquisa, Uchida encontrou em
pleno funcionamento o “pensamento operatório”. Ora, acontece que a literatura
costuma atribuir esse pensamento desencarnado entre os operários da linha de
produção de tipo fordista!
Nas palavras de Uchida, “esse tipo de resultado choca-nos, pois
observamos a mesma consequência que vemos nos operários de linha: repressão
do funcionamento psíquico que resulta em um funcionamento operante.”
182
Depois de lembrar que a metáfora das “máscaras” é frequente na
literatura sobre executivos, Ehrenreich observa que “os gerentes corporativos
enfatizam a necessidade de um autocontrole de aço e a capacidade de ocultar
180
São as duas classes que estão atacadas em seus “fundamentos vitais. A vida de um executivo
é a de um trabalhador” em estado permanente de mobilização - quando o almoço se reduz a um
hambúrguer digerido na frente de um computador, com o telefone tocando. É o que de uma
maneira impressionista, observa Mano Brown quando diz “se for olhar direito mesmo, o mundo
todo esem crise [...]. Você o felicidade no olho de ninguém, nem do pobre, nem do rico.”
Privilégio 2 (o tempo é Rei). Ver também Maria José Tonelli. À Beira de um Ataque de nervos: um
dia na vida de executivos em São Paulo. Fundação Getúlio Vargas. Relatório de pesquisa, 2005.
181
Seiji Uchida. Organização do trabalho: vivências de sofrimento e prazer. In. Ana Magnólia
Mendes, Suzana Canez da Cruz, Emílio Perez Facas (orgs.). Diálogos em psicodinâmica do trabalho.
Brasília: Paralelo 15, 2007. pág. 114.
182
Realmente, motivo para o choque, pois a rigor, os executivos nem fazem parte das classes
não-proprietárias, posto que participam das poticas de corte de funcionários e auferem ganhos
extraordinários na forma de bônus e gratificações, o que os coloca entre os proprietários
detentores dos meios de produção e renda. Cf. Fernando Haddad. Trabalho e classes sociais. In.
Tempo social. São Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.
89
todas as emoções e intenções por trás de faces públicas tranqüilas, sorridentes e
agradáveis.”
183
pouco não se poderia imaginar que uma droga ilícita como a cocaína
seria alçada para o topo da hierarquia do trabalho e seria usada como prótese
química para se manter os níveis de produtividade.
Segundo Uchida, o uso de cocaína entre os executivos se deve ao fato de
que a droga os possibilita, de um lado, que se mantenham atentos, produtivos,
acelerados, dispostos; de outro, esse estado de excitação e euforia produz um
estado de prazer que dá a falsa sensação da inexistência de problemas.”
184
Poderia-se imaginar que, por lidar com informações atualizadas, por ter
que se relacionar tanto com outras partes de empresa como com fornecedores e
clientes, os executivos sofreriam de novas psicopatologias devido ao excesso de
informações e à sobrecarga simbólica e afetiva própria da economia imaterial.
Vai nessa direção o diagnóstico de Franco Berardi acerca das novas formas de
sofrimento no “semio-capitalismo”, um dos exemplos seria a
hiperexpressividade.
185
A vida acelerada do executivo não pode ser explicada pelos excessos da
vida contemporânea, mas pelo contrário, ela é marcada pela falta de qualidade.
Vejamos, transcrição de um caso clínico de um executivo de alto escalão,
como um contraponto a essas leituras fantasiosas do mundo contemporâneo,
Eu fiquei pensando... Se eu morresse amanhã o que seria da
minha vida? o posso morrer, não assim, sem ter feito nada de
valor, nada que tenha valido a pena. Sinto as coisas sem nenhuma
graça. Me dediquei intensamente nos últimos 15 anos a ganhar
dinheiro e creio que não preciso mais de dinheiro, nem eu nem
meus filhos. Mas, eu paro agora e o que tenho: não consigo
183
Barbara Ehreinreich. Desemprego de colarinho branco - a inútil busca do sucesso profissional.
Rio de Janeiro: Record, 2006, p.61. A figura da máscara é uma manifestação do cinismo viril muito
presente no mundo do trabalho. No âmbito do registro literário, podemos encontrar a expressão
dessa figura em Kafka: “De outro modo, cara senhora disse o gerente -, também não sei como
explicar isso [o sofrimento de Samsa]. Esperemos que não seja nada grave. Embora por outro lado
eu tenha de dizer que nós homens do comércio, feliz ou infelizmente – como se quiser
precisamos muitas vezes, por considerações de ordem comercial, simplesmente superar um ligeiro
mal-estar.” Franz Kafka, A metamorfose. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p. 18.
184
Idem, ibidem, g, 114. Uma informação extraída da experiência clinica relatada por alguns
cardiologistas deve [...] suscitar iniciativas de estudos epidemiológicos acompanhados por pesquisa
qualitativa. A questão a investigar seria: existe relação entre uso abusivo de cocaína e o aumento
das pressões nas áreas da média e alta administração? Pois o que tem chamado a atenção dos
cardiologistas é o crescente número de casos de enfartos fulminantes ocasionados por over-dose
de cocaína. E as timas são muitas vezes executivos com menos de 40 anos. Edith Seligmann-
Silva. Precarização da saúde mental no trabalho precarizado. inédito, 2009, p. 36.
185
Franco Berardi. Patología de la hiperexpresividad. Disponível em
http://eipcp.net/transversal/1007/bifo/es acessado em 11/10/09.
90
dormir, meu sono é invadido por problemas, que eu tento resolver
em vão, não paro de pensar um segundo. Não conheço meu filho,
meu bebê. Não sei o que ele significa, quem ele é, não consigo
ficar com ele tempo algum. Fui fazer uma disciplina na pós-
graduação e o professor pediu que nós definíssemos a palavra
qualidade... E o que é qualidade? Eu pensei, semanas, e descobri
que não sabia o que queria dizer qualidade. As pessoas imaginam
que é ótimo você trabalhar entre São Paulo e Nova Iorque. Elas
não sabem o que é você deixar sua casa, abandonar tudo que
você não pode viver lá, pegar um avião viajar a noite inteira,
chegar numa cidade estranha, ir para uma reunião com pessoas
estranhas, totalmente diferentes de você, decidir o que já esta
decidido e que você no íntimo discorda, mas que eles querem que
você sustente, o que eles pensam sobre o seu país, pegar
novamente o avião, viajar mais oito horas, para então tentar
dormir... Dez dias depois tudo de novo... Não há qualidade alguma
nisto. No meu trabalho todos o iguais, todos querem ser iguais.
Eu penso diferente sobre os negócios que fazemos, acho que os
modelos financeiros vindos dos Estados Unidos para o Brasil não
são muito adequados, que deveríamos seguir outras estratégias...
Mas isto não importa, o que importa é o que está na cabeça do
dono: o banco tem muito dinheiro, não há necessidade de mudar
nada, as coisas andam por si mesmas, mesmo que a realidade
seja outra... Duvido que um senhor deste mundo, um dos donos
do dinheiro faça análise, fala sério, alguma vez você já viu um
destes em análise? Não, eles não vêm, eles não precisam, eles
compram a realidade que lhes interessa, tem dinheiro para isso,
não há porque parar para pensar... No meu trabalho as pessoas
querem ser iguais. Elas moram no mesmo local, m o mesmo
carro, vestem a mesma camisa, têm o mesmo relógio, usam a
mesma caneta. Em uma das minhas viagens eu comprei um filtro
para o ar condicionado, por causa da asma, e o instalei no
escririo. Aos poucos começou um mal estar no trabalho. Eu
sentia alguma coisa estranha, mas não sabia bem o que era, aí fui
entendendo... um dia um colega chegou para mim e disse que
talvez eu devesse tirar o filtro, por que os colegas estavam
achando que eu queria me destacar, que eu estava querendo
demonstrar um poder... Eu continuei com o meu filtro, afinal eu
queria poder respirar... Mas desde então passei a ser visto como
alguém inconfiável, que queria se destacar dos demais. A mínima
diferença já causa uma grande reação. Eu não quero um lugar
assim para mim, quero outra coisa... Quero trabalhar com pessoas
legais, pessoas com quem eu possa aprender algo, que tenham
qualidade. Eu quero encontrar as qualidades do mundo.
186
Na explicação de Uchida, a hiperatividade do executivo (tomada aqui não
tanto em seu sentido patológico) não se deve aos excessos da pós-modernidade,
que ela é um mecanismo de defesa muito semelhante ao mecanismo de
defesa do – aqui novamente – operário fordista, a saber, a aceleração.
Em A Loucura do Trabalho, Dejours afirma que a aceleração é um
mecanismo de defesa dos trabalhadores de linha de produção fordista. Dada a
186
Tales ASaber. Sete ensaios de dialética infantil. mimeo, pp. 12-13.
91
monotonia e a repetição dos mesmos gestos dia após dia, os trabalhadores
aceleram seus movimentos e executam mais rapidamente suas tarefas para
tornar mais suportável uma atividade que embrutece o trabalhador.
187
Calvinistas sem trabalho: a mobilização no desemprego de executivos
O tipo do executivo hiperativo, mobilizado e requisitado nos fins de
semana, feriado e férias, curiosamente, encontra sua versão no executivo
desempregado. A realidade que está se configurando segue um movimento
pendular: quem está fora do mundo do trabalho está desesperado para voltar,
mas quem está dentro está insatisfeito.
188
Em seu Desemprego de colarinho branco, Ehreinreich faz uma incursão no
mundo dos executivos desempregados nos EUA. O trabalho é resultado de uma
variante da observação participante, na qual a autora se faz passar por uma
executiva desemprega mais do que disposta em sua busca de recolocação
profissional.
Nessa busca ela entra em contato com especialistas em recolocação que
mais parecem gurus, participa de cursos com suas costumeiras dinâmicas,
realiza cotidianamente cadastros em websites e, por último, vai até a um
acampamento voltado para esse público. À medida que a autora narra sua
deriva, vai se afigurando um gigantesco setor econômico, cujo lucro é
proveniente do desemprego.
Miséria à americana, seu trabalho anterior, é também uma pesquisa
participante, porém com a fração precarizada da força de trabalho dos EUA que
possui dois ou três empregos em tempo parcial e cujo rendimento mal dá para a
sobrevivência. Em sua nova pesquisa, no entanto, “nada de esfregar, levantar
peso, nada de andar ou correr horas a fio. Em relação ao comportamento,
187
No filme A classe trabalhadora vai ao paraíso, o operário, personagem protagonista usa da
aceleração para suportar a labuta. Depois de certo limite, a aceleração sob um processo de
descompensação psíquica até ter seu dedo mutilado. A classe operária vai ao paraíso. Direção: Elio
Petri. Itália, 1971.
188
Nos acampamentos de recolocação profissional a autora constata com surpresa “a quantidade
de colegas de acampamento que estão empregados, pelo menos neste momento, que esperava
estar rodeada de gente à procura de emprego, como eu. Mas a força de trabalho dos colarinhos-
brancos parece ser formada por dois grupos: aqueles que não conseguem achar emprego de jeito
nenhum e aqueles que estão em empregos nos quais trabalham muito mais do que gostariam. No
meio um lugar assustador, em que vodedica longas horas a um trabalho que sente que está
preste a expelir você, no nimo porque expulsou tantos colegas seus. Li a respeito de um tipo
de depressão chamado ‘síndrome do sobrevivente’, que dizem grassar com exubencia em
empresas com tendência a demitir, e rios desses acampados parecem ser vítimas dela.” Idem,
ibidem, p. 81.
92
imaginei que estaria imune à constante subservncia e a obediência que se
exigem dos colarinhos azuis de baixos salários, e que seria muito mais livre para
me expressar e ser eu mesma.”
189
Ao final de sua pesquisa, como não conseguiu
nenhum emprego, depois de passar por toda sorte de palestras, dinâmicas, livros
pseudo-científicos a respeito da motivação e do “pensamento positivo”, sua
própria auto-estima é abalada nessa segunda experiência.
O que a autora observa nas agências de emprego é que a busca de
emprego não é entendida como um fator do desemprego. A própria busca é um
emprego e deve ser estruturada para parecer um, até nas características mais
lamentáveis do emprego, como ter de cumprir ordens, ordens que nesse caso
emanam da própria pessoa: “Levanto-me, faço a barba e me visto, exatamente
como se estivesse indo trabalhar,” sugere alguém numa dessas agências.
190
Quanto a isso, a autora cita um best-seller do momento: “se você es
empregado, pode desfrutar o luxo de trabalhar das 9 às 17 horas; se procura
trabalho, planeje uma jornada de 12 a 16 horas por dia”.
Por trás dessa mobilização no desemprego, por trás desse, na boa
expressão da autora, calvinismo sem trabalho, “como se a ocupação fosse um
estado desejável sem se levar em considerão a forma como é alcançada”,
um mecanismo de defesa em funcionamento.
Começo a perceber que a questão aqui é a administração
estruturada da dor e do luto. Se você foi cuspido pela grande
máquina corporativa e deixado a contemplar sua suposta
inadequação a ela, faz sentido preencher o tempo com micro-
tarefas, de preferência sob a supervisão de outra pessoa. Imaginar
sua própria busca como trabalho deve satisfazer o desejo
calvinista de fazer alguma coisa.”
191
Se a alternativa a esse emprego artificial é a depressão, é melhor seguir
as recomendações do agente: "devemos ir à academia e fazer contatos quando
estamos lá. Almoce com um amigo. Faça uma lista das coisas de que gosta.”
Obviamente, tais expedientes não funcionam a médio prazo “o colapso de
[alguns] reforça a impressão de que, o que quer que esteja acontecendo no
mundo corporativo de hoje, qualquer que seja o processo feroz que mastiga
189
Idem, ibidem, p. 19.
190
Idem, ibidem, p. 53 e segs.
191
Idem, ibidem, p. 54.
93
homens e mulheres e os cospe numa etapa tardia da vida, o dano causado é
irreversível.”
192
Nesse sentido, cabe uma última nota a respeito d’A corrosão do caráter,
de Richard Sennett, livro envolto numa verdadeira unanimidade.
Perante o mesmo problema com que se defrontou Ehrenreich, isto é,
funcionários de alto escalão demitidos de grandes empresas, Sennett, por um
lado, critica a servidão voluntária pela qual estavam tomados quando estavam
empregados e, por isso, o agiram diante de insistentes sinais de
reestruturação produtiva. Por outro, ele um peso excessivo à, novamente
aqui, idéia de responsabilidade, no caso em questão, de programadores recém-
demitidos da IBM. Na opinião de Sennett, eles deveriam, como os outros
fizeram, ter montado suas próprias empresas de tecnologia [o livro foi escrito
antes do estouro da bolha da nova economia].
Para Sennett, como é possível não cair da executive blues, para Sennett?
“O momento definidor ocorrem quando os programadores passam da
condição de vítima passiva para uma condição mais ativa. Agora suas próprias
ações contam para a história. Ser demitido não é mais o fato definidor [...] a
ação crucial é a que eles deviam ter empreendido em 1984 ou 1985. Esse
momento definidor torna-se responsabilidades deles. fazendo essa
passagem é que podem começar a enfrentar o fato de que fracassaram em suas
carreiras.”
193
192
Idem, ibidem, p. 51. Não é nosso objetivo aqui analisar as consequências psíquicas do
desemprego prolongado, seja de executivos, seja dos trabalhadores precarizados da periferia e
mesmo da juventude que sequer entrou no mercado de trabalho, o que ensejo a um sofrimento
social caracterizado por um uso espefico de drogas e por uma forte frustração que pode se
metamorfosear em uma depressão. Elementos esses presentes na crônica de Mano Brown: -
Lugar para encontrar gente frustrada que nem na Zona Sul, eu para ver, é neurose, é ali. Você
virou a esquina é três, quatro, andou mais uma cara, mais uns seis, na hora que eu encosto o
carro preto, juntou todo mundo, uns trinta. Todo mundo fumando um baseado para tirar a
neurose, todo mundo dando risada, mas na bolinha do olho, eu vejo tristeza no olhar de cada
mano. [...] Todo mundo tem sonho e não pra realizar, o que acontece? Tentando se esconder
de alguma forma, uns mano se esconde na cocaína, uns mano se esconde no álcool, outros mano
que quer ficar mais na bolinha de meia, fuma uns baseado, mas passou o efeito é só depressão.
a realidade não..., ela num..., ela te agarra. A realidade te agarra e não tem como você sair
dela, aí o cara bola mais um para tentar esquecer a realidade e os anos vão passando, os dias vão
passando, os moleques vão ficando homem.” Mano Brown, KL Jay e Silveira. Privilégio 2 (o
tempo é Rei) In. KL Jay na Batida – equilíbrio (a busca) vol. 3.
193
Richard Sennett. A corrosão do caráter as conseqüências pessoais do novo capitalismo. Rio
de Janeiro: Record, 2004, p. 158.
94
Patologias da sobrecarga decorrentes da intensificação do trabalho
Segundo Dejours, a sobrecarga psíquica gera fadiga e, se a atividade
intensificada se prolonga, a fadiga pode resultar em uma depressão, se o
trabalhador sobrecarregado apresentar uma estrutura neurótica.
194
Mas a depressão não é a consequência mais negativa da pressão a que
estão submetidos trabalhadores de diferentes qualificações.
Se, num mesmo momento histórico, engenheiros toyotistas com menos de
quarenta anos, de empresas japonesas intensivas em tecnologia, morrem
exauridos no próprio ambiente de trabalho - fenômeno esse batizado de karôshi,
também presente na Europa e Estados Unidos -, ao mesmo tempo em que, no
estado de São Paulo, jovens cortadores de cana, alguns com 18 e 19 anos,
pressionados pelo pagamento por produção, ceifam suas vidas para abastecer as
usinas, não resta dúvida de que, no mundo inteiro, o mundo do trabalho traz
consequências deletérias à saúde.
195
A morte súbita no trabalho representa a consequência extrema da
intensificação do trabalho. Os enfartos acontecem cada vez mais com
profissionais mais jovens. Inevitável não lembrar que no mundo dos esportes a
pressão por desempenho tem causado a morte de atletas em diversas
modalidades.
Quando se acreditava que, numa época em que a produção se
caracterizaria por empresas limpas e baseadas no uso intensivo de tecnologia, o
trabalho deixaria de ser penoso, surge uma nova relação entre trabalho e
doença.
O setor de serviços, especificamente, os bancos, empresas de cartão de
cdito, as centrais de teleatendimento e de processamento de dados “se
tornaram a fonte da talvez mais importante onda de absenteísmo por motivos de
saúde e por ‘inaptidões’ para o trabalho conhecidas até o presente.
196
194
Dejours. A carga psíquica do trabalho. p. 31. In.: C. Dejours, E. Abdoucheli, C. Jayet. Maria I.
S. Betiol. (coord.) Psicodinâmica do trabalho contribuição da escola dejouriana à análise da
relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 2009.
195
Christophe Dejours. Alienão e clínica no trabalho. In: Selma Lancman e Laerte Sznelwar
(orgs.). Christophe Dejours - da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz; Brasília: Paralelo 15, 2008, pág. 223; Francisco Alves. Trabalho intensivo e pagamento por
produção - o moedor de carne do complexo agroindustrial canavieiro. Trabalho apresentado no
seminário “O processo de intensificação do trabalho sob diferentes olhares. São Paulo,
FUNDACENTRO, 27 de maio de 2009.
196
Laerte Sznelwar e Morgana Massetti. Agressões ao corpo e/ou sofrimento psíquico? Um estudo
construído a partir da experiência de trabalhadores com LER/Dort. Travailler 2002/2, N° 8, p. 155.
95
A causa desse absenteísmo atende pelo nome de LER/DORT (Lesões por
Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteo-musculares Relacionados ao Trabalho)
que tem alta incidência entre caixas de banco, digitadores e teleatendentes.
Como foi dito, o tipo de organização do trabalho adotado nas centrais
de teleatendimento guarda muitas semelhanças com o taylorismo. Trata-se de
um trabalho fragmentado, repetitivo e que, se comparado com outros, é
marcado um “aumento substantivo dos constrangimentos de tempo, traduzidos
por cadências mais fortes, reduções nos tempos de pausa e de micro–pausas e,
sobretudo, um aumento significativo das possibilidades de controle sobre o que
fazem os assalariados.”
197
As empresas de teleatendimento são terceirizadas ou re-terceirizadas. É
sabido que o processo de terceirização caminha simultaneamente com a
precarização do trabalho. Dada a baixa remuneração e as consequências
deletérias para a saúde, a rotatividade é muita alta.
A LER entra em cena de forma muito rápida. A expansão das empresas de
teleatendimento e a expansão da LER forma um único processo.
Em um lapso de tempo muito curto, estes trabalhadores viveram
um ciclo completo, desde a contratação e a esperança, até a
doença, a ‘deficiência física’ e, em alguns casos, a a
aposentadoria por ‘invalidez’. Tradicionalmente as doenças
profissionais ou ligadas ao trabalho, à exceção dos acidentes e
intoxicações agudas, e suas conseqüências, aparecem a dio ou
longo prazo. Poderíamos mesmo afirmar que seria a primeira vez
na História que isso acontece, seria uma nova situação em termos
de relão de trabalho e de saúde dos trabalhadores.
198
Para Dejours, a LER/DORT só pode ser entendida como resultado de “uma
agressão que tem início nas funções psíquicas”. Para adestrar o corpo para o
processo produtivo, é preciso antes dobrar o espírito.
A comorbidade entre depressão e LER/DORT se tornou um fato
corriqueiro para os profissionais de saúde que atendem, nos serviços do SUS, os
trabalhadores adoecidos. Segundo Seligmann-Silva, tal comorbidade “é
plenamente compreensível, [dadas] as pressões psicológicas, a discriminação, as
limitações e as múltiplas perdas, inclusive de auto-estima e de perspectivas de
desenvolvimento profissional [a que estão submetidos os trabalhadores ].
199
197
Idem, ibidem, p. 154.
198
Sznelwar e Massetti, ibidem, p. 162.
199
Edith Seligmann-Silva. Precarização da saúde mental no trabalho precarizado. P. 10 In:
Nova edão de Desgaste mental no trabalho dominado, (em preparo).
96
Ao nosso ver, a descompensação psíquica na forma de depressão se deve
aos “constrangimentos que se exercem sobre o corpo, através de uma
sobrecarga das estimulações, da imposição de uma posição fixa, e de contrariar
as necessidades fisiológicas.”
Pesando a partir dos termos do criador da psicodinâmica, Sznelwar afirma
que a organização de trabalho de tipo taylorista no setor de serviços se configura
um sistema de dominação que leva à “expropriação da própria vontade”. Nessas
circunstâncias
o próprio desejo fica comprometido, onde estaria agredido não
apenas o pensamento, mas a subjetividade, o próprio fundamento
da afetividade, dos sentimentos, das emoções. [...] Esta ruptura
da continuidade entre a subjetividade e o pensamento, estariam
dadas as condições para que o corpo fosse atingido.
200
Frente às proporções epidêmicas e catastróficas da LER/DORT, seria
preciso perguntar pelas necessidades econômicas que teriam levado à
implantação desse tipo organização do trabalho.
Segundo Sznelwar,
o há evidências científicas que justificariam o modelo de
produção de serviços, encontrado nas empresas estudadas. Nos
parece que não se pode comparar um sistema onde se produz
objetos, como a indústria, com os problemas que os trabalhadores
enfrentam, com um sistema baseado no relacional, como o
setor de serviços. Transformar o relacional, se pensarmos nas
diferentes dimensões de sua complexidade, em objetal, seria uma
forma de violência, de tentativa de enquadramento da
variabilidade, [na qual] os resultados tangíveis seriam corpos
comprimidos e a LER/DORT.
201
[grifos nossos]
Mobilização do afeto e exaustão nas profissões do cuidado
O esgotamento profissional é um sofrimento típico das profissões em que
aspectos relacionais e afetivos do sujeito são requeridos no trabalho:
educadores, profissionais da saúde, assistentes sociais etc. Em geral, a literatura
atribui maior risco de esgotamento a todas atividades que eso sob a rubrica de
profissões do cuidado.
200
Sznelwar e Massetti, ibidem, p. 173.
201
Idem, ibidem, p. 175.
97
A categoria de esgotamento profissional tem sua origem na expressão
burnout [do inglês to burn out: queimar por completo] que foi usada pela
primeira vez por pelo psicanalista Herbert Freudenberger, em 1974. O conceito
de burnout é marcado por enorme indefinição. O termo pode designar depressão
por esgotamento, estafa, exaustão, fadiga, esgotamento etc. Por isso, ao nosso
ver, as pesquisas epidemiológicas que fazem uso do termo acabam por indicar
uma incidência muita alta da patologia.
De nossa parte, quando usamos o termo esgotamento profissional, o
fazemos em sentido alargado e independente de qualquer definição clínica. As
pesquisas que entendem esgotamento profissional como uma entidade
nosográfica acabam por superestimar sua incidência e, paradoxalmente, ao invés
de esclarecer o problema, acabam por obscurecer esse sofrimento social
decorrente do trabalho.
Seja como for, o fato é que a “síndrome de burnout” já é reconhecida
inclusive pelo INSS como doença do trabalho. Vejamos a definição dada pelo
órgão
O burnout pode ser definido como uma reação à tensão emocional
crônica gerada a partir do contato direto e excessivo com outros
seres humanos, particularmente quando estes estão preocupados
ou com problemas, em situações de exigem tensão emocional e
atenção constantes e grandes responsabilidades [...]
A síndrome de burnout envolve atitudes e condutas negativas com
relação aos usuários, clientes e organização do trabalho, sendo
uma experiência subjetiva que acarreta prejzos práticos e
emocionais para o trabalhador e a organização. O quadro
tradicional de stress não envolve tais condutas e atitudes.
202
Nosso interesse na questão se deve ao fato de que boa parte das
pesquisas que utilizam o termo toma como objeto uma ocupação profissional
como, principalmente, professores e enfermeiros.
Os profissionais acometidos por esgotamento profissional são em geral
funcionários públicos da educação, saúde e do serviço social. Depois das
reformas neoliberais esses profissionais têm enfrentado condições inadequadas
de trabalho.
Mas como o trabalho é notadamente marcado por aspectos vocacionais,
muitos profissionais se utilizam da “mobilização de si” para alcançar seus
202
Brasil. Resolução DC n. 10, de 23 de dezembro de 1999, INSS, apud Fernanda Moreira de
Abreu. Depressão como doença do trabalho e suas repercussões jurídicas, São Paulo: LTr, 2007, p.
56.
98
objetivos a despeito das adversidades, das longas jornadas e da baixa
remuneração.
Em certos casos, é difícil separar o que é trabalho e o que é engajamento
político, podendo, inclusive tal engajamento ser imbuído de convicções
revolucionárias. Interessa ao Estado e ao terceiro setor mobilizar a militância, a
vocação e o sentimento de missão” desses trabalhadores para conter os efeitos
negativos do desmantelamento das políticas sociais.
203
Nesse caso, não seguimos a argumentação de Dejours a respeito da
diferenciação da mobilização de si” do sujeito e as técnicas de mobilização da
administração da empresa. Como foi dito, Dejours faz questão de salientar
que por mais que as técnicas de mobilização da administração das empresas
tentem, a mobilização de si nunca é capturada por tais técnicas.
A nosso ver, nesse tipo de trabalho mobilização política e mobilização
subjetiva se entrecruzam. Certamente, esse embaralhamento o é total. O
esgotamento profissional é prova disso.
Para a compreensão do que foi dito até aqui, julgamos adequado citar um
pouco mais longamente a pesquisa de Sznelwar, baseada na psicodinâmica do
trabalho, sobre agentes comunitários de saúde (ACSs), da cidade de São
Paulo.
204
Talvez seja um dos casos de trabalhadores sociais em que a
mobilização se de forma mais intensa; metaforicamente, eles parecem
soldados da saúde permanentemente arregimentados por um trabalho sem fim.
A dificuldade de definir a função desses trabalhadores, indica que a
mobilização de seu trabalho extrapola quaisquer limites convencionais.
O que o os ACS? Representam o Estado e trazem tanto uma
mensagem de prevenção e promoção da saúde? Como atuam a
partir do serviço público? São da comunidade? Seus
203
Ver José C. de Magalhães Jr. O Mercado da dádiva - formas biopolíticas de um controle das
populações periféricas urbanas. Dissertação de mestrado. Departamento de Sociologia - USP, 2006.
204
Laerte Sznelwar. Ergonomia e psicodinâmica do trabalho: um diálogo possível e desejável. In.
Ana Magnólia Mendes, Suzana Canez da Cruz, Emílio Perez Facas (orgs.). Diálogos em
psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2007. p. 54.
Em outra pesquisa sobre os ASCs da cidade de São Paulo feita a partir de outro referencial teórico
e com métodos epidemiológicos se constatou que “a proporção de participantes classificados como
casos de transtornos mentais comuns com níveis de exaustão emocional alta (78,7%),
despersonalização alta (19,7%) e decepção alta (42,6%) foi maior que a de não-casos (20%, 2,5%
e 7,5%, respectivamente). [...] A prevalência da síndrome do esgotamento profissional do
presente estudo (24,1%) foi maior que a encontrada em oncologistas brasileiros (7,8%) e em
trabalhadores de enfermagem (16,2%), mas abaixo da média descrita para profissionais de saúde
em outros países (33,8%).Andréa T. da Silva; Paulo R. Menezes. Esgotamento profissional e
transtornos mentais comuns em agentes comunitários de saúde. Revista de Saúde Pública,
2008;42(5), p. 927. Trata-se de um claro exemplo do tipo de pesquisa que transforma o
sofrimento social em entidades nosográficas.
99
representantes? São um elo entre a comunidade e o sistema de
saúde? Portanto, não podem ser considerados como meros
integrantes da comunidade nem como agentes do Estado. O
agente tem uma profissão, ou sua atividade não pode ser
considerada como atividade profissional? Afinal o que são? Para
quem trabalham?
Acompanhamos a seguir, a análise de Sznelwar do cotidiano de trabalho
do ACSs. A extensa citação se justifica por retratar o quadro como um todo.
As atividades dos ACSs são desenvolvidas em contato contínuo
com os indivíduos e famílias; eles acompanham as famílias e
desenvolvem ões as mais variadas; são a linha de frente [todos
os grifos o nossos] do serviço junto aos usuários. Muito de seu
trabalho tem a ver com a troca de informações entre a população
e a Unidade Básica de Saúde (UBS), incluindo a orientão das
pessoas e a busca na identificação precoce dos problemas de
saúde que acometem a população.
Trata-se de um trabalho permanente de elaboração e
reelaboração, pois [trata-se] um processo contínuo de interação e
atualização. As suas atividades exigem muita memorização devido
ao grande volume de informações a tratar, como as orientões e
solicitações dos demais profissionais, o preenchimento de guias de
exame, os resultados de consultas, as receitas de medicamentos,
os exames a serem entregues, a liberão de vagas no sistema de
referência, a verificação de usuários que faltaram às consultas ou
os exames agendados, os mais variados conceitos sobre saúde,
dentre outras. Auxiliam na coleta de material para exames,
preparam kits para exames, etiquetam material utilizado na
unidade, fazem registros dos exames. Participam também dos
grupos educativos, preparando as informações a serem fornecidas,
baseadas no tema do grupo e no acompanhamento da evolução
dos usuários.
Os tempos de trabalho também são variáveis, as visitas às
residências podem ser mais ou menos longas, dependendo da
situação da saúde, sica e emocional das pessoas da família e da
necessidade de adotar diferentes cursos de ação para ouvir,
explicar, confrontar ou convencer os integrantes daquela família.
Então é necessário ajustar o tempo restante para as demais visitas
em uma permanente regulação da sua atividade. Nem sempre é
possível executar as visitas e as ações planejadas. Outras
variáveis interferem no tempo, como caractestica do relevo,
distâncias a percorrer e o adensamento populacional na localidade,
além de eventos os mais variados. Estes os obrigam a adotar
novas estratégias de ação como no acolhimento de usuários com
alteração do estado psíquico, portadores de transtornos mentais,
dependentes de substâncias qmicas ou ainda, pessoas que
necessitemdesabafar’. [...]
Os ACSs percorrem em média 5 km/dia em áreas de subidas e
descidas e, muitas vezes, em locais com infra-estrutura precária, o
que aumenta o seu esforço e o risco de acidentes. Muitas vezes
trabalham em áreas com alta incidência de violência, fato que os
obriga a desenvolver estratégias para não sofrerem agreso e
não serem envolvidos. Posto-rua-casa.
o um limite claro relativo ao espaço de trabalho. Além de
trabalharem na comunidade, é freqüente a realização de trabalho
100
no próprio domicílio dos ACS. Muitas vezes, também, fazem
entregas, pois os domicílios das famílias ficam no caminho de sua
casa.
A privacidade desses profissionais é constantemente invadida,
muitas vezes são interpelados em suas residências nos fins de
semana, à noite, durante suas atividades pessoais e familiares:
supermercado, feira, feitas.
Enfrentam sozinhos situações complicadas, como brigas familiares
e outros problemas urbanos que presenciam. o solicitados, à
noite e nos fins de semana, para casos de emerncia, sendo que,
nessas situações, não têm como recorrer aos demais profissionais
da equipe.
Muito de tudo isso não é contabilizado, o são considerados nos
cálculos de produtividade final. Só registro daquilo que é
previsto e passível de quantificação. [...]
’O Programa de Saúde da Família [PSF] trabalha o ciclo da vida’.
Isto requer que eles acompanhem as pessoas desde o nascimento
até a morte, ou ainda depois da morte, pois continuam a trabalhar
com as famílias. É por isso que afirmam que os atendimentos no
PSF nunca se concluem, que o usuário nunca tem alta. Além disso,
tem a sensação que as necessidades da populão o
infinitas.[...]
Se por um lado, trabalhar neste cenário gera satisfação diante da
possibilidade de ajudar outrem, por outro, o engajamento coloca-
os frente a inúmeras situações que ultrapassam as suas
capacidades e as do sistema de saúde para resolver as demandas
da populão. Constantemente constatam que os instrumentos de
ação que possuem são limitados diante das carências encontradas.
Isso deixa margem para a busca de soluções criativas, mas
colocam-nos frente à frente com a impotência.
É, sobretudo, um trabalho de compaixão que requer uma
aprendizagem contínua, até mesmo porque lidam com a
possibilidade de insucesso em alguma ação que vise o problema
das pessoas.
[...] uma constante contradição entre a criação de limites e o
envolvimento. Têm medo de se tornarem cínicos, mas, por outro
lado, acreditam que precisam limitar seu próprio sofrimento. [...]
Como não extrapolar nas ações consideradas como parte de suas
tarefas e partir para um ‘voluntarismo’ sem fim? Coletar
alimentos, comprar medicamentos com seu próprio dinheiro, levar
usuários para sua casa, ir a velórios e enterros, faz parte do
trabalho?
205
Embora o autor, não trate da questão em termos de esgotamento
profissional, é muito razoável supor que, dada a carga psíquica mobilizada pelo
trabalho do agente comunitário, um sofrimento decorrente do trabalho com as
caractesticas atribuídas ao burnout é um desfecho possível.
Nos casos dos professores da rede blica do Estado de o Paulo, o
esgotamento se deve à mobilização do professor e à irrealidade do trabalho sob
as políticas de progressão continuada.
205
Idem, ibidem, pp. 51-55.
101
Segundo Seligmann-Silva,
No caso dos professores e de outros que trabalham na prestação
de cuidados a crianças, a idosos e a doentes, o surgimento de
acusações injustas, os boicotes ou imposições que impedem o uso
da capacidade profissional e o cumprimento dos princípios éticos,
tem ocasionado não duras frustrações, mas esgotamento
profissional. Na atualidade, o mais freqüente é que esse
esgotamento sobrevenha em determinadas circunstâncias nas
quais a exacerbação de esforços colide com a decepção, como
pode acontecer em serviços de saúde.
206
4.2 O lugar da depressão no mundo do trabalho
A depressão em suas diversas manifestações é a modalidade de
sofrimento psíquico de maior incidência no mundo do trabalho. Aqui não
adotamos uma definição estrita da depressão. Já abordamos as dificuldades
enfrentadas por diferentes escolas das ciências psicológicas na definição da
depressão.
Acreditamos que, quando se trata de relacionar esse sofrimento psíquico
com a atividade laboral, uma definição rígida, ao invés de iluminar, acaba por
empobrecer a compreensão do problema.
Assim, não tomamos a depressão como entidade nosográfica, nem
adotamos as definições psicanalíticas, embora julgamos que quando se trata de
relacionar subjetividade e trabalho, os conceitos de Freud são imprescindíveis,
mas não são suficientes.
Aqui interessa nos mais a sintomatologia depressiva do que depressão, por
isso, preferimos utilizar o termo sofrimento depressivo. Vale lembrar que, salvo
as exceções, representadas pelas pesquisas epidemiológicas, a literatura, em
seus diversos matizes, não costuma trabalhar a partir de uma nosografia
rígida.
207
Nos estudos de psicodinâmica do trabalho, há preferências por termos que
designam um campo de problemas, por exemplo, patologias da solidão, da
sobrecarga, do esgotamento.
206
Edith Seligmann-Silva. Precarização da sde mental no trabalho precarizado. inédito, 2009, p.
36.
207
Edith Seligmann-Silva. Psicopatologia e Saúde Mental no Trabalho. In: Mendes, R. (Org.).
Patologia do Trabalho. Rio de Janeiro: Ateneu, 2003 v. II, p. 1142.
102
É difícil de isolar a depressão de outras manifestações, já que quase nunca
a depressão é encontrada em estado puro. Seligmann-Silva observa, por
exemplo, que um comportamento nada típico de um deprimido, isto é, a
hiperatividade, pode estar relacionado com a depressão.
208
O sofrimento depressivo quase sempre aparece associado a outros
fenômenos, tais como, alterações psicofisiológicas, comportamentos reativos e
abuso de drogas e de álcool.
Quando a depressão está relacionada ao trabalho, o que está em causa é,
principalmente, a organização do trabalho. Para dar conta do fenômeno,
Dominique Huez forja a expressão “depressão reacional profissional”, vejamos
como ela a define:
Por ″depressão reacional profissional se designa a aparição de
uma patologia depressiva vinculada aos constrangimentos
organizacionais e sociais do trabalho. Essa reação depressiva é
desencadeada por acontecimentos que exigem uma relação
subjetiva com o trabalho [mas que] permanecem em parte não
pensados, não podendo ser objeto de uma deliberação coletiva.
209
No caso do trabalho precarizado, a depressão está relacionada com
experiências vivenciadas pelos sujeitos em diferentes situações de trabalho. A
partir de sua experiência clínica, Seligmann-Silva aponta os seguintes elementos
presentes no desencadeamento do sofrimento depressivo
a) Expressões de menosprezo e mesmo de humilhação
utilizadas pelas chefias; avaliações percebidas como injustas e
ausência de reconhecimento pela dedicação e esforço de
desempenho correto, mesmo em situações de trabalho
inadequadas e nas que configuram penosidade.
b) Rompimento de equipes de trabalho, às vezes, existentes
muitos anos, nas quais haviam se estabelecidos vínculos de
confiança e cooperação -, estas rupturas ocorrem pela
reestruturação interna ou por demissões.
c) Trabalho esvaziado, em que o/a trabalhador/a não tem mais
oportunidade de realizar seus potenciais, nem aplicar
conhecimentos e habilidades desenvolvidos ao longo da formação
208
Idem, ibidem, p. 1166.
209
Como a definição da autora não prima pela clareza, transcrevemos, em seguida, a passagem no
original: “Par «dépression réactionnelle professionnelle», on signe l’apparition d’une pathologie
dépressive en lien avec les contraintes organisationnelles et sociales du travail. Cette réaction
dépressive est déclenchée par des évènements qui engagent le rapport subjectif au travail et
demeurent en partie impensables, n’ayant pu faire l’objet d’une libération collective. Dominique
Huez. Souffrances invisibles et pressions professionnelles. Mettre l’organisation du travail en
délibération, Travailler 2003/2, N° 10, p. 40.
103
e experiência profissional -, como disse um trabalhador: “Antes,
eu amava o meu trabalho. Agora, não consigo mais amar o que
faço, estão me mandado que eu faça coisas ridículas, que não tem
nada a ver com minha profissão”.
d) Violência psicológica de vários tipos foi relatada por muitos.
Em alguns casos, ataques à dignidade, - sistemáticos e que as
circunstâncias demonstravam que eram deliberados, configuravam
assédio moral. Nestes relatos, estavam presentes humilhações de
todo tipos.
210
Assim, não se trata de dizer que a depressão é explicada por uma causa. A
depressão no trabalho surge, levando em conta a individualidade do trabalhador,
a partir de situações marcadas pela injustiça, pela violência e pela alienação.
O trabalhador deprimido não sofre por conta de sua passividade, pelo
contrário, em primeiro lugar, seu sofrimento é fruto de sua resistência às
situações alienantes, resistência essa que, dada a atual correlação de forças
entre as classes e o desemprego estrutural, o encontra canais para se
expressar, então, essa passividade forçada se constitui num segundo fator do
sofrimento depressivo.
Ainda segundo Seligmann-Silva,
Tristeza e raiva foram os sentimentos mais encontrados nestes
trabalhadores adoecidos. As vincias eram de perda, de
impotência e, muitas vezes, de ressentimento. Face à ofensas e
[injustiças] no trabalho, sentiam-se tolhidos e impedidos de reagir
pelo medo de perder um emprego, cujo contrato era precário.
Assim, a dignidade ferida e a impotência eram vivenciadas,
conjuntamente, impactando negativamente na auto-estima.
211
Segundo Dejours, para quem o sofrimento é uma forma de reação à
alienação no trabalho.
O que faz as pessoas viverem é o desejo e não as satisfações.
O verdadeiro perigo é quando o desejo não é mais possível. Surge,
então, o espectro da depressão, isto é, da perda de tônus, da
pressão e do elã.”
212
Am disso, a passividade forçada que bloqueia a resisncia não apresenta
apenas consequências em termos de sofrimento depressivo, pelo contrário,
desdobramentos no corpo e nos ambientes e relações externas ao trabalho.
210
Edith Seligmann-Silva. Precarização da saúde mental no trabalho precarizado. inédito, 2009, p.
33.
211
Idem, ibidem, 34.
212
Fernanda Moreira de Abreu. Depressão como doença do trabalho e suas repercussões jurídicas,
São Paulo: LTr, 2007, p. 51.
104
A represo dos sentimentos suscitou muitas vezes uma
canalização das tensões para o corpo, resultando em repercussões
de ordem psicossomáticas, com desenvolvimento de rios tipos
de quadros clínicos. O deslocamento dos sentimentos de raiva, em
alguns casos, se fizera para o espaço familiar, dando ensejo a
conflitos e rupturas.
213
213
Edith Seligmann-Silva. Precarização da saúde mental no trabalho precarizado. inédito, 2009, p.
35.
105
Capítulo 5
O mercado da cura do espírito
A caracterização da subjetividade presente no mundo do consumo é, muita
vezes, identificada com um hedonismo que procura satisfação imediata.
Tomando essa caracterização subjetividade como um tipo ideal do homem
moderno, muitas análises se voltam para as consequências psicopatológicas da
sociedade midiática.
A ideologia do bem-estar seria própria de uma sociedade que se pauta por
valores hedonistas e busca gratificação rápida em todas esferas. Nessas
circunstâncias, os sujeitos se sentem compelidos a manter um nível socialmente
aceitável de humor. O consumo de psicotrópicos seria resultado da criação de
falsas necessidades pela publicidade. Após reduzir uma ampla gama de afecções
sob a rubrica depressão, a psiquiatria e a indústria farmacêutica acenariam com
a promessa de cura com os antidepressivos.
214
Aqui, no entanto, partiremos de outra perspectiva. A esfera do consumo
captura o sofrimento oriundo no mundo do trabalho e cria mercadorias e serviços
que supostamente aplacariam o mal-estar.
Segundo a excelente alise de Fontenelle que analisou o mundo do
consumo a partir da importância que a marca alcançou no mundo
contemporâneo. As marcas são símbolos cotidianamente imantados pela
sociedade midiática no sentido de que tais logotipos sejam associados à
experiências.
Os sujeitos se apegam às marcas na tentativa de aplacar o desamparo
provocado pela temporalidade do descartável própria da sociedade midiática.
A identificação com a marca representa uma tentativa do sujeito de buscar
estabilidade e permanência numa cultura do descartável.
Essa identificação do sujeito com a marca é um objetivo do capital, no
limite ele quer criar uma dependência no sujeito que, no limite, o aproxima do
viciado.
215
214
No seu Depressão e Doença Nervosa Moderna, Maria Silvia Bulguese, sem ignorar outros
aspectos do que ela chama lógica da depressão, baseia-se no conceito de indústria cultural, de
Adorno e Horkheimer, para analisar o material publicitário que as corporações farmacêuticas
distribuem para os psiquiatras, que, por sua vez, o repassam para a população. op. cit.,o Paulo:
Via Lettera/Fapesp, 2004.
215
Isleide Fontenelle. O nome da marca. McDonald´s, fetichismo e cultura descartável. São Paulo:
Boitempo, 2002.
106
Ao buscar a sensação de permanência em sua identificação com a marca o
sujeito contemporâneo não consegue se livrar do desamparo que é próprio do
espetáculo, pelo contrário, essa busca é malograda e a sensação de desampara
se intensifica.
Mas quais seriam as relações possíveis entre o sofrimento no trabalho e
consumo? Ao nosso ver, o consumo captura esse sofrimento e responde com a
oferta de mercadorias e serviços terapêuticos no que se constitui em um
poderoso setor econômico.
À medida que crescem as pressões no mundo do trabalho, há mais espaço
para a mercantilização da cura”. O sofrimento no mundo do trabalho que não
desperta a ateão da “opinião blica” ganha visibilidade na forma de um novo
nicho da acumulação: a “cura do estado de espírito”.
Não se trata de um diagnóstico necessariamente crítico. Fontenelle nos
lembra que:
Melinda Davis considerada uma das maiores pesquisadoras de
tendências de consumo do mundo – depois de uma extensa
pesquisa de seis anos, na qual procurou entender ‘a nova cultura
do desejo’ naquilo que ela chama de era imagética’ traduzindo:
o que ela chama de era imagética é a era do virtual - nos diz que o
marketing contemporâneo precisa estabelecer cada vez mais uma
relação emocional com o consumidor, que o que se busca hoje
são emoções, são satisfações intangíveis, que produzam reões
sensoriais. Segundo ela, nós estamos passando de uma cultura do
entretenimento para uma cultura ‘da cura do estado de espírito’, já
que a necessidade por benefícios ‘psicoespirituais não é apenas a
necessidade mais poderosa do consumidor no momento; ela é, de
fato, a última necessidade significativa que resta’.
216
Esse mercado da cura do espírito é formado por novas cnicas
terapêuticas, spas, academias, esoterismo, auto-ajuda, religiões sem
transcedência, gestão do estresse por coachings e a mencionada
medicalização.
A sobrecarga e o sofrimento resultantes da organização do trabalho deram
ensejo a um ramo chamado gestão do stress”. O coaching. Esse profissional,
geralmente identificado com a eufemística ‘recolocação profissional’, também lida
na profilaxia dos riscos à saúde de executivos.
216
Isleide Fontenelle. Humanidade espetacular: emanciapação ou auto-destruição virtual? mimeo.
107
As tecnologias psi não buscam só a adaptação da força de trabalho. O
controle não é apenas repressivo, também um “controle-estimulação”, para
usar a expressão de Foucault.
Sob veis de hipersolicitação no mundo do trabalho, os medicamentos
psicotrópicos se transformam em próteses químicas de pessoas “normais”.
217
Mas quais os impactos dos medicamentos em profissionais
caracterizados pelo pensamento operatório? Com o perdão da expressão,
uma sobre-dessubjetivação.
Salvo engano, o primeiro trabalho sobre o uso indiscriminado da nova
geração de antidepressivos, isto é, dos inibidores seletivos de recaptação de
serotonina (ISRS), é Listening the Prozac, de Peter Kramer, publicado em 1993,
ou seja, sete anos após a comercialização da droga nos EUA.
218
Percebendo que essas drogas eram mais usadas por pessoas que não
tinham depressão, Kramer cunhou a expressão psicofarmacologia cosmética,
pois seus pacientes que não apresentavam problemas clínicos se tornavam
“better than well”. Tais pacientes eram, na pior das hipóteses,
rígidos emocionalmente, isolados e infelizes e o Prozac não sedava
ou tranquilizava essas pessoas. Ao contrário, freqüentemente,
parecia energizá-las.
219
Segundo Samuel Barondes, a inovação científica está prestes a laar
medicamentos mais eficazes e dentre as tendências as “drogas psiquiátricas
personalizadas”, cuja descrição consta em seu Better than prozac creating the
next generation of psychiatric drugs.
220
Muitas das utopias negativas incluem em seus cenários regressivos as
drogas psiquiátricas. Assim, no Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, temos
o “soma”. Os exemplos poderiam-se multiplicar: Fahrenheit 451, de Ray
217
Uma pesquisa do Instituto de Psiquiatria da USP testa a hipótese segundo a qual os
medicamentos ingeridos por indivíduos saudáveis os tornam mais dispostos, menos irritados, face
aos atritos do dia-a-dia profissional.
217
Valentim Gentil et alli. Clomipramine Induced Mood and
Perceived Performance Changes in Selected Healthy Individuals. Departamento de Psiquiatria,
Universidade de São Paulo, 2007, mimeo.
218
Depois do Prozac, nome comercial da fluoxetina, foram lançados outros antidepressivos ISRSs:
Zoloft, Celera, Paxil. A mesma Eli Lilly, proprietária do Prozac, lançou o Sarafem, trata-se da
mesma droga, mas com outra campanha que, voltada para o público feminino, promete diminuir a
tensão pré-menstrual.
219
Cito as observações de Carl Elliott que acrescenta que o fenômeno não é novo, que, em
1955, nos EUA, foi lançado um tranqüilizante chamado Miltown que, rapidamente, se massificou
até ser desbancado pelo Valium em meados de 1960. Carl Elliott & Tod Chambers (orgs.) op. cit,
2004, p. 3.
220
Op. cit. New York: Oxford, 2003.
108
Bradburry, Alphaville, de Jean-Luc Godard etc. Seria o caso de cogitar se a era
antidepressiva é um pesadelo totalitário metamorfoseado em realidade
cotidiana?
221
Acreditamos que a busca de pelos remédios se deve à manutenção das
fronteiras do “mínimo eu” para usar a expressão de Lasch. Ainda, segundo ele, o
sujeito narcísico o pode ser descrito como egocêntrico ou hedonista, pois seu
ideal ético se limita à sobrevivência. O atual contexto histórico favorece não o
desenvolvimento do indivíduo mas uma “mentalidade sitiada”.
Podemos associar a escalada do consumo de medicamentos psicotrópicos,
com o crescimento paralelo do consumo de drogas ilícitas:
as convergências aqui são absolutas existindo apenas variações
secundárias entre os projetos do narcotráfico e o da indústria de
psicofármacos.
222
Am dos fármacos, produtos químicos em geral que também prometem
alguma alteração psico-física estão fortemente presentes. No grande varejo, os
exemplos abundam. Para combater a fadiga e as conseqüências da falta de
tempo para se alimentar corretamente, os polivitamínicos. Para preparar um
novo tipo de boêmio para a noite, os mais recentes energéticos.
223
Para o
sexo, o citado uso indiscriminado de Viagra, presente em todas as idades.
A droga, que surgiu para combater a impotência e que prometia uma ‘revolução’
comparada às pílulas anticoncepcionais, se tornou uma forma de inflar indivíduos
exauridos. Para o esportista amador, os isotônicos e anabolizantes. Para os
atletas profissionais o doping genético, de forma que a abolição do doping é
tratada como um sonho utópico.
Do sexo ao esporte, não nenhum aspecto da vida em que não haja
um remédio ou um auxílio químico envolvido.
No bom resumo de Ehrenberg,
Os debates sobre medicamentos psicotrópicos são reveladores da
pressão psíquica, [das] exigências de auto-controle que se
exercem sobre toda a sociedade, em qualquer um de nós, ainda
221
Em recente produção hollywodiana - uma ficção científica que faz um pastiche de Matrix - a
“resistênciaou os “terroristas”, além do poder central, visa destruir as fábricas de prozium (uma
clara alusão ao prozac), droga de uso obrigatório num mundo totalitário e lobotomizado. Trata-se
de Equilibrium, de Kurt Wimmer, 2002.
222
Cf. Joel Birman. O mal estar na atualidade a psicalise e as novas formas de subjetivação.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 243.
223
O hábito de ingerir cafeína remonta à Revolução Industrial e está, portanto, associada à
disciplina no trabalho, a novidade, portanto, está no uso de cafeína para suportar o o trabalho,
mas o tempo livre.
109
sobre o mais excluído, no momento em que as instituições que
eram encarregadas do mal-estar social estão em crise. Mesmo
sendo os medicamentos psicotrópicos uma droga, eles não se
encontram na periferia do social. Isto significa que [agora] a droga
se encontra em todas as partes, mas sem trazer consigo os medos
das drogas ilícitas. Droga mais socializada e menos perigosa que a
heroína, em absoluto acompanhada dos fenômenos de violência,
de deliquência e de inseguraa que a caracterizam. Prolongam de
alguma maneira na vida normal, por meio da temática do bem-
estar psicológico, o movimento de socialização da drogas induzidas
pela contra-cultura que havia tratado de legitimá-las [...]. Se a
maconha e o LSD estavam associados à negação do trabalho e à
dissidência política, os medicamentos psicotrópicos o meios
artificiais de aceitar as obrigações sociais para trabalhar e
administrar melhor as relões com o próximo.
224
224
Alain Ehrenberg. Los individuos bajo influencia drogas, alcoholes, medicamento psicotrópicos.
Buenos Aires: Nueva Visión, 2004. p. 19.
110
Considerações finais
O problema de fundo de toda nossa análise é a crise da medida. Mas não
apenas, já que as forças da modernização conservadora reagiram em várias
frentes para conter os efeitos da crise do valor e, assim, reestabelecer a medida.
Em relação ao mundo do trabalho, essas forças impuseram novas formas
de medida para o desempenho, a produtividade e a “qualidade”. O que
representa a avaliação individual de desempenho e a qualidade total se não uma
tentativa de impor uma medida?
O discurso do capital humano, da responsabilidade e da participação
constituem uma forma de implicar o indivíduo, esses termos se impõem e
substituem as solidariedades de classe e o sentimento de pertencimento à nação.
Em relação à vida humana, aquelas mesmas forças criaram métodos
voltados para a mensuração de afetos, comportamentos e relações humanas. O
que é a psiquiatria diagnóstica se não pura medida?
A criação da fluoxetina na década de 1980, veio bem a calhar, a relativa
eficiência da nova substância forneceu o instrumento que possibilitava o ajuste à
medida.
A simultaneidade dessas mudanças não deixa margens para a dúvida.
Esses processos, que atuam em esferas diferentes, seguem um mesmo princípio.
Enquanto o capitalismo ia se desorganizando, novas tendências se levantavam
para conter os efeitos. Simultaneamente, se configurava outra realidade, essa é
a contemporaneidade marcada, de um lado, pela crise e, de outro, pelo controle.
A servidão voluntária, o assédio moral, o esgotamento profissional, a
sobrecarga e o estresse pós-traumático não foram criados pelo presente. Essas
patologias não apresentam nenhuma especificidade que nos permita falar em
“novas psicopatologias”. Não são novas qualidades do presente que permitem,
depois de estabelecidos os vínculos entre o social e o psíquico, pensar em “novas
psicopatologias.”
Nossa análise foi pautada por um argumento oposto. Os vínculos sociais
perdidos deram vazão ao que já existia, mas em menor escala.
A explosão do valor levou consigo uma miríade de instituições, coletivos e
nacionalidades que durante o período keynesiano-fordista contiveram o as forças
destrutivas do sistema.
111
O assédio moral, por exemplo, não é nada novo, ele desde sempre foi uma
consequência daquilo que Marx chamou de “tirania da brica”. Quando Dejours,
de forma genérica, fala em “patologias da solidão” para se referir a sobrecarga,
assédio etc, ele está descrevendo um processo de perda e não de novidades
psicopatológicas. É a perda do viver junto que abre o terreno para as epidemias.
No caso do sofrimento depressivo, capturado pela noção de epidemia
depressiva, as razões de sua expansão se devem às características alienantes do
mundo do trabalho, dentre elas, a quantificação tem uma importância decisiva.
Como vimos, o sofrimento depressivo é uma reação à alienação no
trabalho. O sofrimento aparece quando não são garantidas ao sujeito as
condições mínimas para a sua autonomia.
Junto a isso, outras fatores, quando a dominação política se
sobrepõem à exploração econômica, o que se deve à mesma perda de medida,
temos como consequência direta o crescimento do assédio moral. Por meio de
práticas cotidianas de humilhação é a dignidade do sujeito que é afrontada.
Mas o sofrimento depressivo não pode ser entendido como uma
consequência direta da alienação e do assédio. O sofrimento só se instala por
completo quando não encontra espaço para ser elaborado e resignificado – outra
vez a patologia da solidão, quando não se vislumbra a saída.
Paradoxalmente, o sofrimento depressivo é uma forma de resistência do
sujeito face às características alienantes da organização do trabalho, quando não
se pode mais distinguir ao certo gerenciamento de ameaça. Foi o que observou
Kafka, há cem anos atrás.
Nossa análise do sofrimento depressivo enquanto um sofrimento social
relacionado ao trabalho é uma muita modesta contribuição para o debate entre
as classes não-proprietárias para que tenha fim tal estado de coisas.
112
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min.).
A CLASSE operária vai ao paraíso. Direção: Elio Petri. Itália, 1971 (126 min.).
CRONICAMENTE inviável. Direção: Sérgio Binachi. Brasil, 2000 (101 min.).
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DANÇANDO com o diabo. Direção: Jon Blair. Reino Unido, 2009 (101 min.).
O GRANDE chefe. Direção: Lars von Trier. Dinamarca, 2006 (99 min.).
J'AI (TRÈS) MAL au travail. Direção: Jean-Michel Carré. França, 2006 (90 min).
ILS NE MOURAIENT pas tous mais tous étaient frappés. Direção: Marc-Antoine
Roudil e Sophie Bruneau, França, 2005 (80 min.).
LA MISE à mort au travail. Direção: Jean-Robert Viallet. França, 2009 (68 min.).
A PONTE. Direção: Eric Steel, Inglaterra, 2006 (93 min.).
TEMPOS modernos. Direção: Charles Chaplin. EUA, 1936 (87 min.).
WORKINGMAN´S Death. Direção: Michael Glawogger, Áustria/Alemanha, 2005,
(122 min.).
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