711
14 de fevereiro de 1886
Eu conhecia o Hudson há doze anos. Foi o grande Fagundes Varela quem mo
apresentou uma noite, no Café da América, o mais obscuro – e o mais escuro –
botequim da rua do Ouvidor.
O ilustre poeta do Evangelho nas selvas andava nesse tempo muito ligado ao
Hudson, e escrevia aos poucos, aqui e ali, a lápis, o prefácio das Peregrinas. Era o
Hudson quem aturava as divinas moafas do Varela. Acompanhava enternecido a
progressão fatal da embriaguez, que em vão tentava evitar, e só deixava o companheiro
quando o via dormir, a bom dormir, o sono da “nocência”, para não dizer inocência, o
que seria injusto.
Nessas ocasiões, Fagundes Varela tornava-se um marialva temível; gostava até
de rosser le gust, como os valdevinos do tempo da regência. Era realmente precisa a
paciência evangélica de um Hudson para conter o ilustre e desequilibrado amigo.
Sempre afetuoso e condescendente, o homem que ontem morreu desculpava os
desvarios de Varela, não só em atenção àquele grande talento, como a uma série de
desgostos, que, aliás, nunca me pareceram atenuante suficiente para tão desregrado
modo de vida. E lá iam os dois de braço dado, fora de horas, caindo aqui, erguendo-se
acolá... O Hudson, que era a sobriedade em pessoa, sujeitava-se aos caprichos das
pernas trôpegas e da cabeça pesada do mavioso poeta, sacrificando assim ao seu afeto e
à sua admiração a própria dignidade pessoal, pois quem os via, ziguezagueando ambos,
dificilmente perceberia que o ébrio era um só.
Como um deles fosse louro e o outro moreno, mas usassem ambos o cabelo à
nazarena e a barba crescida e pontiaguda, dir-se-iam dois Cristos, pintados por diversos
artistas, mas desertados juntos daquelas truculentas bodas do Veronezo.
***
Quando, em 1875, Fagundes Varela morreu em Niterói, o Hudson foi o único
homem de letras que acompanhou ao cemitério de Maruí aqueles preciosos despojos.
Por muito tempo andou inconsolável da perda do amigo; perda que talvez influísse para
a completa transformação do seu caráter.
Eu confesso que não morria de amores pelo Hudson n. 1, porque decididamente
conheci dois Hudsons. O primeiro era um demagogo hirsuto, metido num casacão
antidiluviano, a dar por paus e por pedras, a pretender construir barricadas e demolir
instituições com a pólvora seca do Atalaia, um periódico pequenino, que ele mesmo
impingia por um tostão, na rua do Ouvidor, a conhecidos e estranhos. O segundo, o
Hudson n. 2, era um Hudson de cabelo aparado, meigo, terno, sensível, tendo sempre
nos lábios descorados um sorriso de piedade para aqueles que o ridicularizavam, e
faziam dele o alvo das apupadas impressas.
***
Nesta segunda fase da vida acidentada do Hudson, fase que ele iniciou
empregando-se na casa Farani, e depois no Jornal do Comércio, a sublime preocupação
do bem invadiu-lhe o espírito, desalojando todas as caraminholas políticas que lá se
achavam dentro. Quem não se lembra de o ver todos os dias abrindo subscrições para
mitigar este sofrimento, para aliviar aquela miséria, – pedindo sapatos para as crianças,
pão para as mesas dos asilos, lençóis para os leitos dos hospitais, livros para esta aula
gratuita, remédios para aquela associação benemérita, – sempre nessa faina inspirada de
praticar o bem, de distribuir indistintamente esmolas e consolações?
A esta nobre mania, que fez de Otaviano Hudson uma “fisionomia fluminense”,
sacrificou ele até a sua própria intolerância política. Quando lhe disseram que em S.
Cristóvão e na rua do Ipiranga havia dinheiro para os necessitados, ele, o sans cullote, o
escalda favais, o devora-reis, – mandou ao diabo as suas barricadas imaginárias, atirou o