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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
e-mail: doumesfi@ugf.br
MÁRCIA REGINA VIANA
“DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: UMA
QUESTÃO MORAL EM SIMONE DE BEAUVOIR”
Tese de Doutorado
Área de Concentração: Ética
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
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DOUTORADO EM FILOSOFIA
“DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA:
UMA QUESTÃO MORAL EM SIMONE DE
BEAUVOIR”
Por
MÁRCIA REGINA VIANA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, da Universidade Gama Filho,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Profa. Dra. Maria da Penha Felicio S.
Carvalho
Rio de Janeiro/07
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
e-mail: doumesfi@ugf.br
O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama
Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as
determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formato(s)
( ) Fotocópia ( ) Meio digital
Assinatura do autor: _________________________________________________
4
VIANA, Márcia Regina. Demissão ou assunção da
existência: uma questão moral em Simone de Beauvoir.
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Felício dos
Santos de Carvalho. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-Graduação em Filosofia. Rio de Janeiro,
Universidade Gama Filho, 2007/2. 207p.
RESUMO: O trabalho analisa o percurso da filosofia de
Simone de Beauvoir através de seus romances e ensaios
filosóficos, com o objetivo de compreender os conceitos de
assunção e demissão existencial na condição original do sexo
feminino. Foi escolhida esta condição original como principal
objeto de investigação por um interesse particular na questão
da diferenciação sexual e pela própria história da filósofa em
apresentar esta questão tamm como objeto central de
reflexão em sua obra. O trabalho também apresenta uma
análise sobre a validade da novela metafísica como fonte de
pesquisa filosófica, e procura identificar nessas novelas a
ocorrência da questão principal, que é a demissão ou assunção
da existência na condição feminina. A partir do estudo dos
conceitos de sujeito e de mundo beauvoireanos, objetivou-se
compreender a liberdade pensada por Simone de Beauvoir em
seus movimentos ontológicos, os quais fundamentam os
conceitos principais analisados, que são a demissão e a
assunção da existência.
Palavras-chave: existência, ontologia, subjetividade.
5
ABSTRACT
This dissertation analyses the philosophy of Simone de
Beauvoir through her novels and philosophical essays with
the purpose of understanding the concepts of existential
assumption or demission, in the original condition of the
feminine sex. The latter has been chosen as the main object
of our study due to a particular interest in the question of
sexual difference. The philosopher’s own background
serves to present this question as if her life were the point of
investigation of her work. This dissertation also addresses
the concern over the validity of using metaphysical novels as
the source of a philosophical study. In these novels, the
main question can be recognized as existential demission or
assumption in the feminine condition. By means of a portrait
of the Beauvoirean subject and its world, our purpose is to
understand the concept of freedom in its ontological
movement as thought by Simone de Beauvoir. We also
question what grounds the main concepts analyzed in our
study, namely that of the demission and assumption of
existence.
Keywords: existence, ontology, subjectivity.
6
RÉSU
Cette thèse a pour objectif l’analyse du parcours de la
philosophie de Simone de Beauvoir à travers ses romans et
ses essais philosophiques. Le but en est de comprendre les
concepts d’assomption et de démission existentielles dans la
condition originale du sexe féminin. Cette condition originale
a été choisie comme objet principal d’étude à cause d’un
intérêt particulier pour la question de la différence sexuelle.
L’histoire personnelle de Simone de Beauvoir est également
l’objet central des réflexions de son œuvre. Il s’agit dans
cette thèse d’aborder notre préoccupation pour la validité de
l’usage des romans métaphysiques comme source de la
recherche philosophique, et d’identifier la question principale
dans ses romans, à savoir la démission ou lassomption de
l’existence dans la condition féminine. Dans un premier
temps, nous avons élaboré l’esquisse du sujet et du monde
beauvoiriens. À partir de là, nous avons exposé la
compréhension de la liberté chez Simone de Beauvoir dans
son mouvement ontologique pour ensuite fonder les
concepts principaux de notre étude, ceux de la démission et
l’assomption de l’existence.
Mots-clés : existence ; subjectivité ; ontologie.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................9
CAPÍTULO I - LITERATURA OU FILOSOFIA: A AMBIGÜIDADE DA
EXPRESSÃO BEAUVOIREANA.
1.1 – O existencialismo como expressividade...................................22
1.2 - O percurso do existencialismo beauvoireano...........................26
1.3 – O existencialismo como berço da filosofia beauvoireana.........32
1.4 - A literatura como forma de expressão
nos romances metafísicos........................................................35
1.5 – Literatura e Metafísica...............................................................43
1.6 – A literatura filosófica de Simone de Beauvoir............................57
CAPÍTULO II - A AMBIIDADE DO SEGUNDO SEXO: VÍTIMA E CÚMPLICE
DE SUA SITUAÇÃO
2.1 - O Segundo Sexo na história da filosofia....................................74
2.2 - O conceito de segundo sexo.....................................................78
2.3 – A alteridade como situação existencial......................................82
2.4 - O sentido dado à existência........................................................87
2.4.1 –Entre a liberdade e a transcendência.............................92
2.5 - O conceito dado de eterno feminino..........................................101
2.6 - A biologia e o conceito de feminilidade......................................103
2.7 - Simone de Beauvoir frente à idéia de “eterno feminino”............108
CAPÍTULO III - MUNDO E SUJEITO: A AMBIIDADE DA EXISTÊNCIA
HUMANA ......................................................................................118
3.1 - A constituição do mundo do sujeito............................................119
3.2 - O sujeito beauvoireano...............................................................139
8
CAPÍTULO IV - DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: A AMBIGÜIDADE
MORAL DE SIMONE DE BEAUVOIR ............................................................158
4.1
- A noção beauvoireana de liberdade............................................159
4.2 – Os movimentos ontológicos do existente...................................162
4.3 – A escolha ontológica: má-fé ou liberdade autêntica...................164
4.4 – A falta de escolha e a opressão feminina...................................173
4.5 – A possibilidade ambígua da liberdade existencial:
Transcendência e Imanência......................................................180
4.6 – A existência como possibilidade ambígua:
A reciprocidade sujeito/objeto.....................................................188
CONCLUSÃO......................................................................................195
BIBLIOGRAFIA....................................................................................200
9
INTRODUÇÃO
O presente trabalho, situado no âmbito da filosofia existencial,
especificamente no existencialismo de Simone de Beauvoir, irá debruçar-se
sobre uma problemática há muito observada num dos sítios existenciais da
realização humana representado pela distinção dos sexos, que é a questão da
diferença de realização existencial observada entre homem e mulher.
O objetivo é demonstrar que a liberdade existencial pensada por
Simone de Beauvoir repousa na ambigüidade da escolha que o sujeito pode
realizar entre a demissão e a assunção da original condição humana de existir
em liberdade, e que esta ambigüidade da escolha está intimamente associada
com a questão da hierarquia entre os sexos, constatada como fato pela tradição
histórico-filosófica. Em virtude da amplitude que o problema desta escolha
subjetiva abrange (entre assumir sua liberdade ou demitir-se dela), a discussão
se situará na questão específica da diferenciação entre os sexos, onde será
possível observar in locu, a ocorrência do evento existencial de demissão ou
assunção da condição original de liberdade. Ao longo dos tempos, firmou-se
como costume perceber a existência masculina como mais “ampla” do que a
feminina, como se ao homem fosse reservada uma “parcela” maior de
liberdade. À mulher estabeleceram-se algumas funções menos “perigosas”.
No mundo contemporâneo a insistente recorrência desse tema é
observada porque tal diferença ainda é vista realmente como um problema.
Alison M. Jaggar, no Dicionário de Ética e Filosofia Moral
1
, aponta como alguns
dos preconceitos desfavoráveis às mulheres o seu rebaixamento explícito feito
por importantes filósofos ao longo de toda a tradição filosófica, como Aristóteles
e Rousseau, e a conseqüente desvalorização do feminino que esse
rebaixamento causou, inscrevendo através dos tempos, certa “hostilidade
cultural em relação às mulheres”
2
. Se estes preconceitos em relação a elas
foram constatados é porque a diferença de realização existencial entre os sexos
ainda existe e que se constitui em problema, no mínimo, para as próprias
mulheres.
1
JAGGAR, Alison M.. “Ética Feminista” in Dicionário de Ética e Filosofia Moral, pp. 623-9.
2
Idem.
10
Em meados do século XX, a sociedade ocidental sofreu um abalo em
suas idéias acerca dessa suposta “hierarquia natural” entre os sexos com a
publicação de Le deuxième sexe, obra de Simone de Beauvoir, que inaugura
um novo modo de pensar esta situação. Le deuxième sexe evidenciou o fato de
que a existência humana tem sido vista através de um único olhar, – o do
“universal” dominador masculino – em que se percebe a realização existencial
do humano ser tratada de modo equivalente à realização existencial do homem,
relegando a existência feminina à importância menor de estar subjugada ao
conceito de mundo feminino. Simone de Beauvoir denuncia um mundo “sub-
existencializado” pela mulher, ao verificar que sua realização existencial
perpassava pela realização masculina. Era atribuída ao sexo condição
essencial para legitimar a plena realização do humano. Privilegiava-se, e até
hoje ainda vigora esse privilégio, uma realização universal e dominante – a
masculina - como a única que atendia aos interesses da espécie.
Dentre as diferentes vertentes que o pensamento filosófico apresenta, a
filosofia da existência se destaca por tratar a existência em si mesma como
problema, considerando problema a necessidade que o indiduo tem de
compreender tanto a si mesmo como a realidade que o envolve. Esta
necessidade é tomada pelo existencialista como a única forma autêntica de dar
sentido à sua existência individual e à inserção dela na existência comum. A
filosofia existencial caracteriza-se, principalmente, por centrar no indivíduo a
responsabilidade de sua realização, não aceitando conceitos como essência
humana, absoluto e universal, cujas noções pressupõem uma anterioridade à
existência individual, como fundadores de seus preceitos básicos de busca à
resolução de seus problemas.
O existencialismo de Simone de Beauvoir não reconheceu a distião
sexual como elemento definidor de uma trajetória existencial, cuja essência
fosse doadora de sentido à existência subjetiva. A filósofa pensa o humano
enquanto existente sem discriminar-lhe o sexo; este será elemento
discriminador quando o singularizarmos em sua situação individual.
A questão da diferenciação entre os sexos, tal como vem sendo vivida
ao longo da história, suscitou tanto na mulher quanto no homem, a atitude
confortável de acomodar-se no comportamento definido inicialmente pelos
conceitos estabelecidos de “homem” e de “mulher”, cujas trajetórias se mostram
11
balizadas por estas noções. Entretanto, sob a ótica existencialista
beauvoireana, ambos se iludem quando buscam sua realização numa forma
conceitual anterior à existência. Tal forma conceitual estabelecida esconde a
pretensão de se constituir em modelo de “desvelamento” de indivíduos que
surgem no mundo na condição de serem livres. Os estereótipos do
comportamento de homens e mulheres, constituído ao longo dos tempos,
podem aprisionar o indivíduo livre, se este não assumir sua original condição
existencial de liberdade, levando-o a demitir-se da existência.
Tanto o homem quanto a mulher são existentes que buscam sua
realização a partir da condição original de liberdade e que, a partir desta
condição, escolhem assumir ou demitir-se de sua liberdade existencial. Não é
a diferença sexual o elemento que define a realização desta liberdade ao longo
da trajetória de cada um. É fato a humanidade ser composta de homens e
mulheres e de hoje existir vasta discussão em torno do conceito de gênero
3
,
mas mesmo assim, a distião sexual em si mesma não deveria representar
limites para a realização existencial. O sexo como fator de diferenciação
existencial que distingue a existência masculina da feminina é um elemento da
condição humana, mas que se desvela ao ser enquanto existindo em situação,
isto é, enquanto o ser é existente entre outros existentes. Por isso, conceder
alguma anterioridade a situação que se desvelará ao longo de um devenir
existencial compromete precocemente a liberdade ontológica necessária aos
desvelamentos, tanto do ser quanto do mundo dado, como este trabalho
pretende mostrar em momento apropriado. A liberdade existencial é um
problema vivido subjetivamente e que muitas vezes mostra-se revestida por
uma “dissimulação” da verdadeira responsabilidade do indivíduo, que é
constituir-se livre e soberano. Atribuir ao outro (sexo) funções que dizem
respeito à própria conquista da liberdade de existir é não assumi-las como
desvelamento de sua liberdade, enquanto existente imerso no mundo dado.
Falar de mundo dado é retomar a memória uma tradição de filósofos
existencialistas que se destacaram neste terreno do pensamento filosófico, cujo
fundamento é a existência do existente. Sören Kierkegard, Heidegger, Gabriel
3
A categoria de gênero foi introduzida no século passado, a partir dos anos 80, especialmente pelas
feministas da área anglo-saxã, como um avanço sobre as discussões anteriores que se firmavam sobre a
diferença entre os sexos e os prinpios masculino/feminino.
12
Marcel, Karl Jaspers, Jean-Paul Sartre são alguns pensadores que nortearam
sua reflexão filosófica no primado da existência, contribuindo para a
consistência atual desta vertente do pensamento. Entretanto, o fermento
original deste modo de focar a realidade humana está em Edmund Husserl,
considerado pela tradição filosófica como fundador da fenomenologia. A
fenomenologia husserliana, consistia na reflexão sobre o fenômeno percebido
por um sujeito pensante e, como que dando seqüência à lógica do pensamento,
o existencialismo estendeu sua reflexão à realidade que envolvia esse sujeito
pensante. Mundo dado, portanto, é o mundo da existência comum, o toujours
déjà là.
Para os filósofos da existência, é no mundo dado que estão
repousadas as possibilidades existenciais que se realizam em cada indivíduo,
no momento em que ambos, tanto o indivíduo quanto o mundo dado –
considerado o berço da existência - são revelados em suas particularidades.
Assim como existe no indivíduo a vontade primitiva de querer ser, de querer
realizar-se como sujeito livre, é encontrado no mundo dado as possibilidades de
realização, as quais urgem revelar-se por algum projeto humano, já que estas
possibilidades de realização só ganham sentido quando impregnadas de
significação humana.
A filosofia da existência pensa o ser como possibilidade de existir.
Nesta possibilidade já está implícita a noção de liberdade, pois o ser para existir
precisa antes ser livre para constituir-se, uma vez que, para o existencialismo, é
o sujeito livre que constitui seu projeto existencial. Simone de Beauvoir é uma
filósofa que pensa a existência centrando sua discussão no problema da
liberdade. Liberdade que se impõe ao ser, uma vez que ele surge sob a
condição humana de sujeito livre, mas que nem por isso, o desobriga de
constituir-se.
Mas, que liberdade seria essa que impõe e obriga o ser? E ainda, se
impõe e obriga é porque está implicado nesta liberdade algum objetivo, um “ser
livre para”. E existindo esse objetivo ou um “algo esperado”, é possível que
haja o fracasso desse objetivo, dessa espera; logo, o fracasso seria o “não-ser
da espera”. E se não “esperarmos” nada, haveria alguma condenação?
Continuaríamos livres? Haveria o fracasso? A tradição da filosofia da existência
13
aponta nesta última direção. Mas o que significa, em si mesmo, um fracasso
ontológico?
Simone de Beauvoir sinaliza para uma ontologia em que a “espera”
subjetiva coincide com o desvelamento subjetivo. Sendo assim, a filósofa não
classifica como fracasso o insucesso dessa “espera, uma vez que o ser não
“esperaria”, mas desvelaria a si e ao mundo.
Em sua filosofia, são observados dois pilares fundamentais de
sustentação: um positivo, que é a assunção da liberdade e um negativo, que é a
demissão desta condição de ser livre. A trajetória humana constitui-se como
resultado da dialética íntima entre estas duas escolhas que o ser pode realizar:
constituir-se um sujeito livre ou demitir-se dessa liberdade. O ser é quando é
livre para ser; porém, quando escolhe não ser, demite-se da existência, mas
continua sendo alguma coisa.
O ser humano se completa na sua relação com o mundo no momento
em que o desvela, portanto pensá-lo inserido numa situação existencial é tentar
pensá-lo em uma amplitude mais próxima de sua realidade; é pensá-lo em sua
ambígua situação de subjetividade soberana e solitária em meio ao mundo
dado. Simone de Beauvoir assinala a constante presença desta ambígua
realidade do indivíduo logo no início de seu ensaio Pour une morale de
l’ambigüité publicado em 1947, dois anos antes da publicação de Le deuxième
sexe: “ele (o ser) afirma-se como pura interioridade, contra a qual nenhuma
potência externa poderia ter domínio, e experimenta-se tamm como uma
coisa esmagada pelo peso obscuro das outras coisas
4
.
Se houvesse a pretensão de se criar uma frase, aproveitando a
nomenclatura existencialista, que tentasse resumir a filosofia de Simone de
Beauvoir, poderia se dizer que, para ela “o ser humano é condenado à
ambigüidade”. Em sua condição de liberdade em que surge no mundo, na qual
o ser margeia sua constituição nos limites das possibilidades oferecidas por ele
(o mundo), sua escolha sempre se fundará no ambíguo traço existente entre o
dado e o constituído por si, entre a possibilidade de demitir-se ou assumir sua
condição de sujeito livre. A ambigüidade beauvoireana assenta na situação
existencial que todo sujeito experimenta, que é a de estar entre todos os
4
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp.9. Paris: Gallimard, 1974.
14
existentes que constituem sua realidade e ao mesmo tempo ser um existente
solitário. Nesta situação, ele deve escolher entre seguir as escolhas já
realizadas por outros ou... realizar a sua própria.
Fica claro a partir de seus escritos que a filosofia de Simone de
Beauvoir acredita que a liberdade ontológica é desejada pelo sujeito, e que por
vezes, essa liberdade é preterida por requerer um trabalho ontológico do sujeito
em confirmá-la. A filósofa evidencia que, entre os sexos, subsiste uma
marcante diferença de realização ontológica e que, nessa diferença, é possível
observar a opressão, seguida da demissão de existir, escolhida por este sujeito
livre. Compreende-se com Beauvoir, que toda escolha realizada pelo sujeito, é
movida pela vontade primitiva do ser de querer realizar-se. É esta vontade
5
que o constitui como sujeito livre.
Este estudo empenhou-se em entender o sujeito beauvoireano
investigando sua constituição ontológica sustentada por sua situação ôntica. A
expressão constituição ontológica faz referência ao processo de desvelamento
do ser enquanto revelando o mundo dado e, através das possibilidades
encontradas no mundo, constituir a si mesmo. A situação ôntica é a própria
situação da realidade do indivíduo, constituída por sua facticidade. Se tanto sua
constituição ontológica quanto sua situação ôntica são fundadas nos alicerces
da liberdade, a intenção é compreendê-las nas diferenças de realização entre
os sexos, lembrando que, como colocado, a diferença sexual é um elemento da
condição humana que se revela ao indivíduo enquanto sujeito em situação.
Este tema apresenta-se, entretanto, como o centralizador das
discussões, já que além desta questão maior, uma preocupação se manteve
constante durante todo o trabalho de leitura e análise da obra de Simone de
Beauvoir. Trata-se da reflexão sobre o modo como a filósofa expressa sua
filosofia. Estudar a filosofia de Simone de Beauvoir implica necessariamente
em tomar seus romances como material indispensável para o conhecimento de
seu pensamento. Este foi um fato que se impôs como uma evidência nesse
estudo, pois seus romances representam o esqueleto de sustentação de toda a
sua obra. Mas, desde o início da decisão de estudar Simone de Beauvoir, uma
5
Em alguns momentos a filósofa usa o termo “vontade” fazendo alguma diferenciação com o uso da
racionalidade; em outros momentos o termo “querer” se mostra desvinculado dessa razão. Trataremos
desta distinção em momento oportuno, quando estudaremos a importância da vontade ou desejo como
impulsionador do projeto existencial.
15
dúvida era flagrante: é possível empreender um estudo sistemático de filosofia
utilizando romances como vitrines de conceitos filosóficos? Serão esses
romances filosofia ou literatura?
O impasse surgiu imediatamente, no momento em que se constatou a
vastidão e densidade da obra de Simone de Beauvoir, a qual se apresenta
basicamente na forma romanceada. A filósofa encontrou no romance, a melhor
forma de apresentar sua filosofia.
Estas dúvidas persistiram até o momento em que se encontrou uma
estratégia que parecia dar solução a este impasse: utilizar a própria
investigação sobre a validade dos romances se constituírem fonte de reflexão
filosófica como metodologia de trabalho. Assim, os romances beauvoireanos
poderiam ser usados como via de acesso à sua filosofia. E somente depois foi
percebido que não poderia ter sido de outra forma, uma vez que a filosofia
beauvoireana é desvelada enquanto ela – a filósofa - desvela-se na criação de
situações que repetem a realidade. Aliás, o modo beauvoireano de filosofar é
bastante sedutor para aquele que se sente atraído pela filosofia existencial.
Simone de Beauvoir filosofa em romances. Ela tanto apresenta os problemas
existenciais que quer trabalhar como se coloca como parte do problema. Por
isso, impôs-se a idéia da necessidade de estudar seu modo de fazer filosofia,
que são os seus romances, tecnicamente denominados romances metafísicos.
Uma característica que marcou o empreendimento a este estudo foi
alguma relutância em direcionar esse trabalho para a questão específica da
diferença de realização entre os sexos. A princípio, pensava em trabalhar
aspectos da liberdade humana, sem considerá-los na especificidade da
diferenciação sexual. Porém, ao começar a sistematizar o estudo, tornou-se
evidente o fato de que, apesar desta diferença surgir no âmbito da condição
humana, ela se revela como uma expressão situacional, uma vez que o sujeito
moral é resultado da dialética instituída entre o mundo dado e a razão subjetiva.
Sendo assim, na perspectiva de estudar o sujeito em situação, a topologia da
diferença entre os sexos erigiu-se por si só, como uma situação especial que se
impôs como pujante e necessária de ser abordada. Verificou-se que o
comentário que a própria Simone de Beauvoir faz em seu ensaio filosófico Le
deuxième sexe é muito pertinente: “creio que para elucidar a situação da mulher
16
são ainda certas mulheres as mais indicadas "
6
. Não colocar a categoria da
diferença sexual como tema específico de reflexão sobre a existência seria mais
uma vez excluí-la e, conseqüentemente, relevar apenas um aspecto dela – o
masculino, relegando o feminino a segundo plano, como é comum
observarmos. A distinção sexual constitui uma das resoluções do ser, uma vez
que é um elemento da condição humana – o humano surge como homem ou
como mulher. Entretanto, é na situação existencial que tal distinção se desvela
para o ser, e é por isso que constitui parte de suas escolhas, de suas
resoluções existenciais, e justamente por este motivo, penso que não pode
estar ausente em uma investigação que trate especificamente da realização
existencial humana.
Num ponto de vista particular, uma das expressões que representam o
legado negativo reservado ao feminino é perceber que, até hoje, ainda é
encontrada alguma resistência em reconhecer Simone de Beauvoir como
filósofa. Pode haver aqueles que argumentem que tal resistência não é mais
observada, que se trata de fato passado, uma vez que já é comum encontrar
seu nome elencado entre os dicionários especializados em obras de filosofia
7
.
Entretanto, não é fato isolado ou surpreendente encontrar posições de
resistência em reconhecê-la como filósofa. Como exemplo desta resistência, o
trabalho de Sara Heinämaa
8
é citado, onde ela faz a seguinte observação:
“De modo geral Simone de Beauvoir não é
considerada uma fenomenóloga, e seu
trabalho, incluindo Pour une morale de
l’ambigüité (1947) e Le deuxième sexe
(1949), não são estudados como filosóficos”
9
.
Esta observação de Heinämaa mostra que aqueles que estudam
Simone de Beauvoir ainda se deparam com a dificuldade inicial de afirmações
que se insinuam contra a legitimidade de um estudo filosófico de seu legado.
No caso particular deste trabalho, não foram poucos os questionamentos sobre
6
BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe, vol. 1, pp. 29. Paris : Gallimard, 1949.
7
Como exemplo é citado HUISMAN, Denis. Dicionário do Filósofos. SP: Martins Fontes, 2001, pp. 129-
131.
8
Sara Heinämaa. Professora de Filosofia da Universidade de Helsinki e da Universidade de Oslo.
9
HEIMAA, Sara. “Simone de Beauvoirs phenomenology of sexual difference”, in The Philosophy of
Simone de Beauvoir, pp. 20, editado por Margaret A. Simons. Bloomington: Hypatia, 2006.
17
a validade de se fazer uma tese de filosofia fundamentada nos escritos de
Simone de Beauvoir e, além disso, havia a indagação sobre o motivo de
escolher ela e não Jean-Paul Sartre para apoiar o estudo acerca das relações
ôntico-ontológicas da trajetória existencial. O argumento apresentado contra
Beauvoir era o de que ela não tinha uma filosofia própria que sustentasse tal
investida, e ainda que seus escritos não passavam de uma extensão da filosofia
sartreana, que ela apenas a repetia como modo de promover-se, tema de
romances, etc. Lembramos mais uma vez o trabalho de Sara Heinämaa:
“Eu defendo o argumento de que Simone de
Beauvoir é filósofa e que ela mesma
considerava seu trabalho filosófico. [...] Meu
ponto de vista é de que o contexto filosófico
no qual Beauvoir trabalhou é a
fenomenologia do corpo que Edmund Husserl
iniciou e que Maurice Merleau-Ponty
desenvolveu mais tarde. Por isso sou contra
a tradicional compreensão de que as noções
filosóficas de Beauvoir originaram-se do
trabalho de Jean-Paul Sartre, mas também
questiono o mais recente argumento de que
Beauvoir baseou seu ponto de vista no
trabalho de Martin Heidegger”
10
.
Como mostrado, o “normal” é encontrarmos o nome de Beauvoir
atrelado a um grande nome da filosofia, não apenas por compartilhar suas
idéias, mas como repetidora de tais idéias, como se a ela não fosse
reconhecida alguma capacidade de inovação conceitual que fugisse ao jargão
de “mulher avançada” e “feminista”.
Entretanto, é possível levantar a hipótese de que justamente o fato de
se tratar de filosofia desenvolvida por uma mulher seja suficiente para, no
mínimo, enriquecer as discussões acerca dos conceitos explorados, uma vez
que o vislumbre feminino, por si só, já traz uma novidade nas discussões sobre
a realização humana considerando sua diferença entre os sexos. Tantas foram
as vezes em que os homens discutiram e discutem estas diferenças, por isso
mesmo, se atrelaram a questões por demais vinculadas a uma tradição de
10
HEIMAA, Sara. “Simone de Beauvoirs phenomenology of sexual difference”, in The Philosophy
of Simone de Beauvoir, pp. 20, editado por Margaret A. Simons. Bloomington: Hypatia, 2006.
18
dominação masculina. Convém lembrar a afirmação de Michèlle Le Doeuff
acerca desse estado de dominação, apresentado em seu artigo Engaging with
Simone de Beauvoir,
11
“nossa sociedade tem preferências ideológicas
que nós podemos esquematizar dessa
maneira: ‘As mulheres não são como os
homens; toda mulher é potencialmente uma
mãe; e isso não nos permite falar em igualdade
dos sexos’. Julgar o trabalho de Beauvoir
pelos modelos da ideologia dominante seria
fazer dela a projeção de um mito – uma
imagem de mãe imperfeita, uma mãe porém
imperfeita – uma vez que ela deveria ter
mantido os seios tão doces a ponto de serem
esquecidos de que existem por si só”.
Esta autora, neste comentário, evidencia a marca que conceitos
estabelecidos podem impingir à fala, não só de um filósofo, mas de qualquer
pessoa pública. Para a ideologia dominante, Simone de Beauvoir, por ser
mulher, é uma mãe em potencial e, portanto, deveria manter-se nos limites
desse espaço existencial idealizado para uma mãe, que seria “manter os seios
doces, a ponto de serem esquecidos de que existem.
Numa escrita feminina reside a possibilidade de se encontrar uma
discussão do conceito de realização da diferença sexual à luz do novo, do
arrebatador, do ousado, do controverso. É possível encontrar o mesmo
conceito discutido por alguns homens de modo excessivamente tradicional,
representando apenas mais um eco desta longa e exaustiva história do
pensamento masculino, escrita por homens que desconhecem alguns nichos
existenciais bem singulares, como foi e continua sendo, o fato de as mulheres
serem consideradas o segundo sexo.
Por último, outro item percebido durante a pesquisa foi a observação de
que, entre os estudiosos brasileiros encontra-se a idéia de “estar fora de moda”
estudar a questão da diferença entre os sexos(!), “pois a queima dos soutiens” e
a guerra dos sexos já fazem parte de um passado histórico. Parece que este
tema já está esgotado e sua problemática superada. Porém, vivemos num país
11
LE DOEUFF, Michèlle. “Engaging with simone de Beauvoir”, trad. Nancy Bauer in The Simone de
Beauvoir philosophy, pp. 13, editado por Margareth A. Simons. Bloomington: Hypatia, 2006.
19
em que é comum vermos mulheres serem surradas por seus maridos,
profissionais-mulheres receberem salários inferiores aos mesmos profissionais-
homens, mulheres consumidas pela difícil escolha de atender ao apelo da
maternidade ou realizar-se profissionalmente, entre outras situações em que
estão refletidos os aspectos da dominação masculina. Será que dizer que a
diferença entre os sexos é coisa do passado não seria mais uma maneira de
escamotear uma pretensa manutenção do status quo?
O capítulo I se deterá principalmente na questão da ambiidade do
ponto de vista da expressão literária de Simone de Beauvoir. Por não ser
incomum nos surpreendermos com assertivas de que Beauvoir está inscrita
apenas no cenário dos grandes escritores, não se tratando de filósofa, foi
reservado um capítulo para tratar a forma de expressão que Simone de
Beauvoir utilizou para fundar sua filosofia. Será mostrado o contexto histórico-
cultural em que floresce o existencialismo beauvoireano e de que vertentes da
tradição da filosofia seu pensamento se origina. Será abordado o modo como a
filósofa escreveu seus romances, apresentando o termo romance metafísico.
Já há algum tempo este estilo de literatura é utilizado, tanto por escritores como
por filósofos, para reconstituir a existência sob a forma de contos que
problematizem um tema de seu interesse, introduzindo os problemas
existenciais para discussão e procedendo, dessa forma, uma especulão
metafísica dos valores existenciais. O respaldo teórico para o entendimento do
romance metafísico como obra filosófica será fornecido pelos estudos de
pensadores que trataram este aspecto da escrita filosófica, que são os trabalhos
de Mikhail Bakhtin, Terry Eagleton, Roberto Machado, Franklin Leopoldo e
Márcia Tiburi. Como já evidenciado anteriormente, um estudo da filosofia
beauvoireana não poderia prescindir dos romances como fonte de pesquisa,
uma vez que a filósofa consegue retratar com impressionante autenticidade, as
situações existenciais em que pretende direcionar sua reflexão.
O segundo capítulo tratará especificamente da trajetória existencial do
chamado segundo sexo, quando apresentaremos um breve relato histórico
seguido da discussão da filósofa acerca do conceito de eterno feminino. Será
traçado um perfil da evolão da condição feminina ao longo dos tempos, em
que será mostrado o pensamento de alguns filósofos importantes que
20
determinaram, em sua época, uma vio social considerável, no que diz
respeito à condição feminina, e a conseqüente evolão da mulher como ser
existente. Será examinado o estado da questão feminina que Simone de
Beauvoir focalizou na época da publicação de Le deuxième sexe.
Evidenciaremos alguns aspectos da condição humana que influenciam e
acabam, às vezes, por determinar a diferença de realização dos sexos. Será
discutida a crítica de Simone de Beauvoir ao conceito filosófico de “eterno
feminino”, onde serão apresentados seus argumentos contrários à convicção,
fabricada historicamente, de sua pertinência. Em um de seus desdobramentos,
o capítulo pretende mostrar que a tentativa de fundamentar este conceito nos
dados da biologia fracassa. Conforme Beauvoir, este conceito é somente uma
cogitação metafísica que serviu para a opressão feminina desde a Antiguidade.
O Capítulo III irá expor as noções de mundo e de sujeito em Simone de
Beauvoir. Será seguido o pensamento da filósofa sobre a situação humana e o
que a idéia de liberdade representa in loco como possibilidade de realização do
projeto ontológico. Beauvoir acredita que o ser humano é constituído a partir
de sua experiência existencial e este capítulo aprofundará sua reflexão sobre o
que e como se constitui o mundo que o sujeito encontra diante de si, o mundo
dado, como espaço situacional. Esta reflexão conduzirá à noção de que o
existente precisa confirmar-se livre constantemente para sustentar sua condição
de liberdade. O existente resolve sua existência como sujeito soberano
somente em sua condição original de surgimento no mundo dado, que é a
liberdade. Veremos que esta liberdade é constituída de movimentos
ontológicos que o sujeito empreende para revelar-se e que estes movimentos
desvelam diante de si sua possibilidade existencial.
No quarto e último capítulo, será tratado especificamente a iia
beauvoireana de demissão e assunção existencial. Será investigada a noção
de liberdade existencial e os percalços que levam um sujeito livre a demitir-se
de sua original condição de existente livre. A questão da escolha ontológica
será tema recorrente nesta discussão, uma vez que a realização do existente se
alicerça nessas duas situações que escolhe para si – a assunção de sua
liberdade existencial de realizar-se transcendendo o dado do mundo para
realizar-se a partir de sua reelaboração ética, ou eximir-se desse trabalho
ontológico de constituir-se a partir deste mundo dado. Nesse dilema existencial
21
será analisada a diferença entre os sexos como um grande desafio à liberdade
subjetiva no que tange a realizar sua trajetória além das conceituações que a
diferença sexual impõe.
Na conclusão será retomada a questão original, que é investigar se o
problema da submissão feminina é uma questão apenas de exclusão histórica
da mulher como sujeito existencial ou se é uma questão de escolha ontológica
de ambos os sexos que, como apresentado ao longo do texto, acomodaram-se
na facilidade da demissão existencial. É evidente que existe uma forte
conjuntura de valores estabelecidos que confirmam a hierarquia entre os sexos,
mas tamm está evidente que estes valores estão se renovando e
favorecendo a mulher a conquistar sua soberania subjetiva. No entanto,
percebe-se ainda alguma resistência silenciosa que conspira a favor da
manutenção do status quo. Seria uma questão de falta de engajamento
existencial da mulher? Seria algum excesso na soberania masculina, que
acaba por aprisioná-la numa suposta “imanência” repetitiva? É intenção ver
essas questões um pouco mais esclarecidas ao final deste estudo.
Por último, chamamos a atenção para a fonte bibliográfica utilizada. No
que se refere às obras de Simone de Beauvoir, privilegiamos na medida do
possível, as edições originais em francês. Entretanto, não foi possível adquirir
todos os títulos que constituem sua obra em sua versão original, por se tratarem
de títulos esgotados e não mais reeditados. Por isso, faremos referência a
alguns títulos em sua versão inglesa e outros em sua versão em português,
como discriminado em nota de rodapé. Para os comentadores da obra de
Simone de Beauvoir, procuramos seus títulos originais em seus respectivos
idiomas.
22
CAPÍTULO I
LITERATURA OU FILOSOFIA: A AMBIGÜIDADE DA EXPRESSÃO
BEAUVOIREANA
1.1 – O existencialismo como expressividade
Durante séculos a filosofia viu-se às voltas com sistematizações do
pensamento que, ora elevava a razão como senhora do conhecimento, ora
percebia a importância do conjunto da realidade como imprescindível para dar
sentido a este conhecimento. Percebendo a insuficiência que estes sistemas
emprestavam à observação dos fatos da realidade – objeto da reflexão filosófica
– a própria filosofia ressentiu-se dessa distância e procurou aproximar estas
noções da realidade existencial: de um lado estava a realidade tomada como
singular e subjetiva, resultado da constituição racional do sujeito, e de outro a
realidade considerada dada, constituída na e pela existência comum dos
existentes.
O existencialismo partiu da noção de que a realidade é constituída pelo
sujeito existente e pelos existentes que estão à sua volta, cujas existências em
comum constituem a situação ôntica de cada um deles. Dentro desta situação
ôntica, o sujeito escolhe-se ontologicamente, ou seja, escolhe ser o projeto que
elabora para revelar suas possibilidades existenciais. O existencialismo
beauvoireano tomou o fenômeno de existir como o instante de desvelamento do
ser que, ao mesmo tempo em que se descobre, revela o dado do mundo como
sua possibilidade de ser. A noção de fenômeno surge como um elo existencial
situado entre o mundo percebido pelo indivíduo e o mundo da existência
comum.
No empreendimento de tornar clara a configuração da existência como
problemática central de sua obra, filósofos da existência e alguns escritores
considerados existencialistas a tomaram como objeto de reflexão.
Dostoïewsky, Rousseau, Albert Camus, Sartre e, evidentemente, Simone de
Beauvoir, são alguns nomes que se destacaram nessa empresa. Esses
23
pensadores/escritores se valeram de histórias que reproduziam a existência
como esta se apresenta, com o intuito de problematizá-la de modo mais
fidedigno. Surgiram dessa forma os romances metafísicos, como assim os
denominou Simone de Beauvoir. Entretanto, como observado anteriormente,
não foi privilégio desta filósofa a utilização de histórias narradas para elucidação
de teorias filosóficas.
Antes de examinar esta peculiaridade de expressão da filosofia
existencial, o presente trabalho se deterá no fato de o questionamento
existencialista ser a origem do pensamento beauvoireano. Primeiramente, é
imprescindível considerar que a linha de pensamento que desencadeou o
movimento existencialista francês, surgiu num momento em que o continente
europeu experimentava uma crise própria de um período pós-guerra. Era um
momento em que estas sociedades ansiavam superar a barbárie vivida, tanto
nos fronts quanto nas cidades, pela constante ameaça de prisões, ataques
inimigos, repressão social. As sociedades amargavam o sentimento de
impotência diante das atrocidades causadas pela guerra. O senso que se
instalou nos povos envolvidos no conflito, ao invés de oferecer aos indivíduos
projetos existenciais com melhores perspectivas, evidenciou as limitações que
os sistemas político-governamentais traziam em si, uma vez que foram eles os
responsáveis pelo desmoronamento das estruturas sociais que garantiam a
existência dos cidadãos. As sociedades transpiravam a angústia característica
de um período de decadência e sofrimento, de sentirem-se nada em meio
àqueles acontecimentos que devastavam cidades inteiras, famílias, vidas
inocentes. Tais circunstâncias fizeram com que alguns intelectuais
percebessem que a existência comum pode ser influenciada por indivíduos,
como assim observou-se através do desempenho de ditadores que se firmaram
na história. Em meio a este sentimento coletivo, surge a mentalidade de que a
ação de indivíduos em particular pode criar uma forma de consciência social.
Na França de 1930 em diante, Sartre e Simone de Beauvoir inscrevem-
se na vida acadêmica e intelectual. Num clima de desesperança social aparece
a figura do intelectual engajado, de pensadores imbuídos da responsabilidade
de transformar a realidade caótica de indivíduos comandados em sujeitos livres.
Surgem pensadores como Simone de Beauvoir, Sartre, Merleau-Ponty,
Raymond Aron, Albert Camus, entre muitos outros que, movidos por esse
24
sentimento de restauração da liberdade, fundam um movimento intelectual, que
logo pulula como estilo de vida. Sartre, Simone de Beauvoir, Merleau-Ponty,
Raymond Aron, Michel Leiris e outros, fundam em 1945 “Les Temps Modernes”
– revista que representava este sentimento. O nome faz menção ao filme de
Charles Chaplin, cujo título provocativo chamava a atenção para a automação
dos tempos modernos.
Em meio a este momento social especial, surge a filosofia de Simone de
Beauvoir, que logo se identifica com um existencialismo que vê no movimento
existencial do sujeito livre a única possibilidade de realização. Juntamente a
esta idéia de constituição da liberdade subjetiva, há a constatação de uma
notada diferença na realização entre homem e mulher, o que incitou Beauvoir a
investigar esta problemática e se transformar num ícone, não apenas do
feminismo, mas do estudo da condição original de todo ser humano que é a
liberdade de constituir-se sujeito livre.
Simone de Beauvoir foi uma figura atípica no contexto intelectual de sua
época. Era uma mulher de fala incisiva e ao mesmo tempo de agradável
convívio, como relatado em suas biografias
12
. Manteve um relacionamento
amoroso incomum com Jean-Paul Sartre, que ia muito além do convívio físico.
Eram parceiros literários um do outro, pois eram os primeiros revisores mútuos
de seus escritos. Poderia se afirmar que eram parceiros existenciais, pois
faziam questão de relatar um ao outro a menor impressão que lhes ocorressem,
e isso incluía discordâncias intelectuais, como ressaltado na seguinte passagem:
“quando uma idéia de Sartre me desagradava
eu procurava o ‘sofisma de base’; mais de
uma vez achei-o. Assim foi que desmantelei
certa ‘teoria do cômico’ a que, de resto,
Sartre pouco ligava. Noutros casos ele se
encarniçava, a ponto de não hesitar em
perder o bom senso quando eu o acuava
13
.
Tanto Beauvoir quanto Sartre exerciam um fascínio natural entre os
jovens, o que os tornavam professores muito admirados por seus alunos, muitos
dos quais se tornavam amigos por longos anos. Por outro lado, a extremada
12
te-a-tête, de Hazel Rowley; caps. 3 e 4, Simone de Beauvoir, de Francis e Gontier, caps 5 e 6.
13
BEAUVOIR, Simone de. A força da idade, pp. 45. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
25
convicção filosófica de Simone de Beauvoir acerca da liberdade do sujeito, lhe
proporcionou alguns desafetos demonstrados principalmente após a publicação
de Le deuxième sexe.
Como é de se esperar, a filosofia de Simone de Beauvoir sofreu
influência de outros pensadores, sobretudo de Husserl, Hegel, Sartre e Merleau-
Ponty. Mas neste ponto convém reforçar a idéia de que Beauvoir desenvolve
sua própria filosofia, sem deixar de reconhecer a influência da tradição, como ela
mesma admite em um dos volumes de sua biografia, A força da idade (La force
de l’age, 1960):
“Sartre afirmava que eu compreendia as
doutrinas filosóficas, a de Husserl entre
outras mais depressa e mais exatamente do
que ele. Ele, com efeito conseguia raramente
esquecer-se e adotar sem reticência um
ponto de vista estranho. Eu não tinha
resistência a quebrar, meu pensamento
moldava-se de imediato ao que eu tentava
apreender; não o acolhia passivamente. Na
medida em que a ele aderia, percebia-lhe as
lacunas, as incoerências, como também lhe
pressentia os possíveis desenvolvimentos;
quando uma teoria me convencia, não
permanecia exterior. Mudava minha relação
com o mundo, coloria minha experncia. Em
suma, eu tinha sólidas faculdades de
assimilação, um senso crítico desenvolvido e
a filosofia era, para mim, uma realidade
viva”
14
.
Simone de Beauvoir é influenciada, evidentemente, pelo momento
cultural em que está mergulhada a Europa, em que as idéias de subjetividade e
fenômeno já ocupavam as mentes pensantes e que o advento dos conflitos de
guerra exacerba ao questionamento existencial. Sua obra é marcada tamm
pela angústia humana de perceber que o ser humano é e está independente de
qualquer divindade, que sua trajetória existencial depende acima de tudo, de sua
escolha em constituir-se soberano em meio ao mundo dado.
No item a seguir, será traçado um percurso do pensamento de Simone
de Beauvoir através de sua produção intelectual. Por meio de uma breve
14
BEAUVOIR, Simone de. A força da idade, pp. 45. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
26
apresentação de seus escritos em ordem cronológica, será formulada uma
caracterização de suas obras com o intuito de esboçar uma noção da taxonomia
de seus conceitos.
1.2 – O percurso do existencialismo beauvoireano
O primeiro romance de Simone de Beauvoir foi publicado em 1943 -
L’Invitée. Mesmo se tratando de um romance, seu enredo acomoda conceitos
filosóficos importantes que fundamentam toda a problemática existencial da obra
da filósofa. Atem-se principalmente à reflexão sobre a constituição e
reconhecimento da liberdade subjetiva. É dado um enfoque privilegiado à
problemática do sujeito inserido em sua trajetória existencial, cuja investida
ontológica precisa suportar as exigências de sua liberdade desejada. Além de
analisar o sujeito, Beauvoir trata das relações intersubjetivas, como a epígrafe
hegeliana do romance sugere – cada consciência persegue a morte da outra.
Edward Fullbrook
15
, estudioso da obra de Beauvoir, encontra em
L’Invitée, os argumentos filosóficos presentes em L’Être et le néant (1943), de
Sartre. Em seu trabalho intitulado She came to stay and Being and
Nothingless
16
se ocupa em comprovar o crédito à Simone de Beauvoir quanto à
origem dos argumentos filosóficos desse romance e ressalta a influência que
este possa ter exercido em L’être et le Néant. Em seu livro (com Kate
Fullbrook) Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre: The remaking of a
twentieth-century legend
17
, Fullbrook mostra que
“Beauvoir escreveu a maior parte de L’Invitée
antes de Sartre ter começado a escrever
L’être et le néant; várias idéias creditadas
como originadas no L’être et le néanto
apareceram nos diários de Sartre e outros
15
Edward Fullbrook, da Universidade do Oeste da Inglaterra. Autor (com Kate Fullbrook) de Simone de
Beauvoir and Jean-Paul Sartre: The remakingof a 20th century legend e Simone de Beauvoir: a critical
introduction.
16
Capítulo do livro editado por SIMONS, Margareth. The philosophy of Simone de Beauvoir.
Bloomington,2006.
17
Obra citada pelo próprio autor no texto em que são encontradas essas referências.
27
escritos até ele ter lido o segundo rascunho
de L’Invitée
18
.
Além de Fullbrook argumentar que L’Invitée pode ter influenciado Sartre
em L’Être et le néant, seu trabalho reúne outros pontos de vista de estudiosos
da obra de Beauvoir, que analisam a proximidade de sua argumentação com a
de Sartre. Cita o trabalho de Hazel Barnes
19
que pensa as duas obras como
colaboradoras entre si para o entendimento do conceito de má-fé. Barnes
chega a conclusão de que para se estudar a má-fé nas relações humanas, a
análise formal de Sartre em L’être et le néant e a novela L’Invitée de Beauvoir,
são complementos mútuos
20
.
Para Fulbrook, L’Invitraz a reflexão de várias questões que envolvem
a problemática existencial, como o surgimento do ser, a temporalidade,
personificação do sujeito, a divisão da realidade entre imanência e
transcendência, a problemática da intersubjetividade compatibilizando uma
solução para o problema do Outro, a conceituação do Terceiro e o Olhar, como
Sartre assim denomina seu estudo na terceira parte de L’être et le néant, e ainda
uma tipologia de relações concretas baseada na polaridade sujeito/objeto.
Segundo Fulbrook, Beauvoir identifica três procedimentos fundamentais que,
cada um por sua vez, visam a objetivação da subjetividade ou consciência do
Outro. O primeiro deles seria a atitude que o sujeito toma em se fazer objeto do
Outro. O segundo consiste em fazer do Outro o objeto e o terceiro consiste na
reciprocidade das situações em que tanto o Um e o Outro são sujeito e objeto,
tomando a igualdade das liberdades como fonte de valor. Em Pour une morale
de l’ambigüiBeauvoir irá retomar essas situações quando tipifica
comportamentos originados na má-fé.
Mais tarde, em Pyrrhus et Cinéas (1944), obra que já não se trata de
um romance, mas sim de um ensaio filosófico, Beauvoir aprofunda o estudo da
ontologia subjetiva e sua intrínseca conquista da liberdade existencial. Mergulha
na idéia de uma existência absurda, cuja ontologia é revelada ao existente
18
FULLBROOK, Edward. “She came to stay and Being and Nothingless” in The philosophy of Simone
de Beauvoir, ed. Margaret A. Simons. Bloomington: Hypatia, 2006.
19
BARNES, Hazel. The literature of possibility: a study in humanistic existencialism. London: Tavistock,
1961.
20
Idem.
28
através de seu duplo movimento de desvelar a si e ao mundo. Nesse ensaio
Simone de Beauvoir dialoga com L’être et Néant de Sartre, publicado em 1943.
Após 1944, seguem-se algumas publicações cujo tema principal diz
respeito aos efeitos da guerra sobre as nações e seus cidadãos. Apesar de, em
alguns momentos, Beauvoir focalizar sua atenção para situações distintas, como
a guerra por exemplo, é notório que a filósofa nunca abandonou a abordagem
de sustentação de sua filosofia, que é a moral existencialista. Em 1945 escreve
Les bouches inutiles, sua única peça de teatro que, além de chamar a atenção
para o fato político da dominação dos fortes (poderosos) sobre os fracos
(destituídos de qualquer poder social), Simone de Beauvoir já reconhece a
situação das mulheres como dominadas pelos fortes. Neste ano outras
publicações de seus escritos são feitas em: Les Temps modernes, Combat, Les
lettres Françaises. Ainda em 1945 é publicado Le sang des autres, onde o
engajamento político-partidário é o tema central.
Em 1946 Beauvoir inicia um estudo que dará seqüência à discussão
iniciada em Pyhrrus et Cinéas, que é o ensaio Pour une morale de l’ambigüi.
Segundo Heinämaa, em estudo citado
21
, este ensaio mostra a profunda
compreensão dos pontos principais e dos métodos da fenomenologia de
Husserl. Neste ano há também a publicação em Les Temps Modernes de
Littérature et métaphysique”, artigo que trata da característica do
existencialismo em se expressar através de romances. Este artigo será muito
utilizado no presente estudo acerca do modo de expressão do existencialismo
beauvoireano, num dos itens que dará seqüência a este capítulo. Tous les
hommes sont mortels, também de 1946, é o único romance surrealista da
autora, em que são tratadas tanto a historicidade quanto a impotente limitação
humanas. Se o ser humano pensa que a imortalidade ou a sua divinização
resolveria sua existência, Beauvoir demonstra na criação de um homem imortal,
que isso tudo não passa de um ledo engano. Amerique au jour le jour, de 1948
irá considerar o “american way of life” e a relação amorosa de Simone de
Beauvoir com Nelson Algren, escritor norte-americano. Ainda em 1948, há a
publicação em Les Temps Modernes de “L’Existencialisme et la sagesse des
nations.
21
HEIMAA, Sara. “Simone de Beauvoirs phenomenology of sexual difference” in The Philosophy of
Simone de Beauvoir, pp. 23, editado por Margaret A. Simons, Bloomington: Hypatia, 2006.
29
1949 é o ano em que será publicado Le deuxième sexe, obra que abala
as mentalidades conservadoras e coloca Simone de Beauvoir na classe de
autores proibidos em alguns países. Este estudo se mostrará, como
insistentemente afirmado ao longo desta tese, num dos mais importantes
tratados de ontologia existencialista. Alguns estudiosos
22
também encontram em
Le deuxième sexe um grande comprometimento da filósofa com a
fenomenologia. Neste estudo, Beauvoir apresenta conceitos básicos de seu
trabalho – os conceitos de corpo e sexualidade – que são tomados da tradição
fenomenológica do pensamento. Simone de Beauvoir conhecia muito bem o
trabalho de Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, publicado em
1945, onde é desenvolvida sua noção de corpo. Na ocasião da publicação da
Phénoménologie de la perception, Beauvoir publicou em Les Temps Modernes
um estudo sobre esse trabalho, por isso conhecia tão profundamente seu
conteúdo, a ponto de explorar tão bem sua problemática. Nessa crítica ela
mostra como vê a diferença de interpretação entre Sartre e Merleau-Ponty a
respeito dos trabalhos de Husserl.
Tratar o conceito de eterno feminino e abordar a condição de
submissão reservada à mulher, desencadeou uma série de reações na
sociedade e fez com que Beauvoir participasse de entrevistas em jornais,
revistas, rádio e televisão e publicasse vários artigos relacionados ao tema,
alguns deles depois colecionados em formato de livro, que hoje compõe um
exemplar de sua obra, como é o caso de Les Écrits de Simone de Beauvoir,
editado por Claude Francis e Fernande Gontier. Em 1951 é publicado Faut-il
brûler Sade? que é um ensaio sobre a liberdade ontológica, problematizando a
escolha do sujeito em constituir-se segundo os padrões da sociedade ou realizar
um projeto descomprometido com estes padrões, como foi o caso do Marques
de Sade, principalmente em relação a seus envolvimentos amorosos. Este
ensaio foi colecionado no livro Priviléges, juntamente com La Pensée de droite
aujourdh’hui e Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme. Em 1954 Simone de
Beauvoir recebe o Prêmio Goncourt de Literatura com Les Mandarins, romance
extenso que reúne tanto a problemática existencial da sociedade do pós-guerra,
quanto à questão da existência em si mesma como possibilidade de vir-a-ser.
22
Sara Heinämaa, por exemplo.
30
Neste romance é possível observar a incidência de vários elementos
autobiográficos, tanto de seu relacionamento com Nelson Algren quanto com
Sartre. Como já comentado, é comum vermos a própria existência da filósofa
como um dos objetos que compõem a problemática do romance. La longue
marche, de 1956 relata sua viagem à China e suas impressões sobre aquela
sociedade. Em 1958 Beauvoir inicia sua autobiografia com Mémoires d’une
jeune fille rangée, seguida de La Force de l’âge (1960). Mais uma vez, Simone
de Beauvoir coloca a si própria como objeto de suas reflexões, e sendo assim,
será fácil encontrar nesses relatos autobiográficos suas próprias situações
vividas sendo tratadas como problema.
Em 1960 Sartre e Simone de Beauvoir visitam o Brasil e esta visita está
registrada no livro de Luís Antonio C. Romano, A passagem de Sartre e Simone
de Beauvoir pelo Brasil em 1960. Nesta ocasião, a filósofa pronunciou duas
conferências, uma no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Filosofia e outra
em São Paulo, na Fundação Armando Álvares Penteado. Nestas conferências, a
filósofa “concentrou sua fala no problema da integração da mulher em todos os
planos da sociedade e no (problema) da necessária ruptura com os preconceitos
que, historicamente, a situam em posição de inferioridade em relação ao
homem”
23
.
No final do ano de 1960, e nos anos de 1961 e 1962 suas publicações
foram feitas somente através de revistas.
Em 1963 surge a continuidade de sua autobiografia com a publicação
de La Force des choses. Em 1964 Beauvoir traz para a literatura o tema da
morte. Une mort très douce é o relato dos últimos meses de vida da sua mãe e
tamm uma reflexão de como mãe e filha experimentaram a situação. Mais
uma vez, Beauvoir deixa suas próprias experiências transbordarem como objeto
de reflexão. Em 1966 ocorre a publicação de Les Belle Images, coleção de
contos sobre situações femininas. Mais tarde ela retoma a problemática
feminina em La femme rompue, de 1969. Em 1970 Beauvoir toma a velhice
como problemática e publica um extenso e profundo estudo sobre esta fase da
vida dos humanos, em que ela evidencia que, assim como as mulheres foram
relegadas ao segundo sexo, os velhos são relegados quase à inexistência. La
23
ROMANO, Luis Antonio Contatori. A passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil, pp. 143.
31
Vieillesse representa um dos mais completos estudos sobre a condição de vida
dos velhos e sua situação na sociedade.
Tout compte fait é o último volume de sua autobiografia e ali ela retoma
certos posicionamentos importantes que teve durante alguns momentos de sua
reflexão. Quand prime le spirituel é publicado em 1979; trata-se de uma
coleção de contos escritos enquanto estudante. Na verdade seriam os primeiros
escritos de Beauvoir, mas a filósofa só resolve publicá-los na maturidade. La
Cérémonie des adieux é publicado em 1981 e é o último livro de Simone de
Beauvoir em vida; neste livro ela comenta os derradeiros anos de Jean-Paul
Sartre.
Após a morte de Simone de Beauvoir ocorrida em 1986, sua filha
adotiva Sylvie le Bon de Beauvoir organiza a edição de algumas obras
póstumas, as quais tratam basicamente de correspondências trocadas com
Sartre, Claude Lanzmman e Nelson Algren. São os seguintes títulos: Lettres à
Sartre, Correspondance Croisée e Lettres a Nelson Algren: un amour
transatlantique.
Os escritos de Beauvoir comprometem-se principalmente com a
existência e com a particular condição do humano de querer constituir-se sujeito
soberano. Em toda a sua obra e, principalmente nos romances, é possível
observar o desenrolar do conflito intersubjetivo de conquista da liberdade. O
termo conflito é aqui usado lado a lado à noção de possibilidade existencial que
cada sujeito oferece ao outro, como parcela da conquista da liberdade, e que faz
desse conflito muito mais uma relação do que uma simples batalha que requeira
um vencedor. O conflito estende-se por toda e qualquer existência, já que é por
ele que o sujeito define-se como soberano ou não, a partir de sua escolha, que é
o que propriamente constitui a sua existência. Beauvoir alimenta sua obra (e a
si mesma) desse conflito, ou dessa relação que é, em última instancia, a
existência mesma.
32
1.3- O existencialismo como berço da filosofia beauvoireana
O termo existencialismo surgiu de um neologismo derivado do
substantivo “existência”, de onde derivou o adjetivo “existencial” e então, a
adição do sufixo ismo completou seu significado. Este sufixo em geral indica o
reconhecimento de algum primado. O existencialismo aparece como um
pensamento que tem como primado a existência humana; é a partir da
existência humana que as coisas do mundo ganham sentido. Este privilégio de
um primado da existência aparece como seqüência à filosofia clássica que, até o
século XIX, concedia primazia à essência das coisas
24
.
O movimento existencialista se constituiu como reação à idéia de
essência humana instituída ao longo da tradição filosófica, cuja noção
estabelece que cada indivíduo deva representar a atualização desta essência.
Em lugar disso, a filosofia existencial pensa cada indivíduo como constituidor de
sua essência singular, como é traduzido na clássica afirmação sartreana de que
a existência precede a essência.
A origem desta noção de que a existência das coisas é definida por sua
essência apareceu com a dualidade dos mundos criada por Platão, cuja
sistematização do pensamento instaurou o Mundo das Idéias e o Mundo
Sensível. Platão instituiu um essencialismo que perdurou ao longo da tradição
filosófica, em que as coisas do mundo deveriam corresponder à sua essência,
definida no Mundo das Idéias. Este modo de pensar a realidade adquiriu
diferentes matizes ao longo da história da filosofia, encontrando eco de seu
fundamento tanto na filosofia cristã como na filosofia laica. Acomodada ao
pensamento cristão, a noção de essência confundia-se com a inteligência divina,
que representava a fonte de toda a realidade. Até o Renascimento, a teologia
era a rainha dos saberes e tinha como serva a filosofia, que englobava todos os
ramos do conhecimento. Nos países católicos, entretanto, esta situação
perdurou até o Iluminismo. A filosofia então, apresentava-se impregnada de
espírito teológico.
24
Encontramos este privilégio da existência sobre a essência marcadamente na filosofia de Heidegger, em
sua série de conferencias proferidas após a publicação de O Ser e o tempo, mas nesse caso, me reporto
especialmente à conferência intitulada O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”.
33
As controvérsias sobre a existência de um mundo material em oposição
a um mundo interior, da vida psíquica, sugerida pela noção de corpo e alma
assimilada da teologia, conduziram Edmund Husserl (1859-1938) à atitude de
apreciação do fenômeno como modo de atingir a verdade. O fenômeno,
pensado por Husserl, é tomado como a unidade da existência, o ponto de
convergência que une o indivíduo às coisas do mundo. A fenomenologia
husserliana consistia numa reflexão sobre este sujeito pensante e apreendia-o
como “sujeito puro”, independentemente das determinações vindas do objeto.
Através de atividades da consciência como a percepção, a memória imediata, ou
a designação simbólica, é possível ao sujeito pensante entrar em relação com
as coisas. Por isso a consciência que se tem das coisas é intencional, ou seja,
dirige-se aos objetos
25
. A consciência pode visar algo – o objeto – de diversas
maneiras: como presente, passado ou futuro, como real ou possível, mas visa
sempre um objeto, algo que não é ela, que lhe é exterior.
Martin Heidegger (1889-1975) retoma esta idéia, mas não promove a
redução do ser das coisas ao fenômeno como o caminho para se chegar às
suas essências fenomenológicas. Heidegger pensa que é através do homem
que o ser do fenômeno surge do caos, mas reciprocamente este surgimento do
fenômeno constitui o ser do homem (o Dasein). Ele aceita a assertiva de
Husserl de que a consciência é consciência de algo; a consciência é
condicionada pela aparição da coisa, entretanto, o seu ser não tem mais
consistência do que o ser do fenômeno que lhe deve a existência. Heidegger
em Ser e Tempo caracteriza esta idéia quando afirma que o “ser é sempre o ser
de um ente”
26
; e o ente é o que existe e que, segundo ele, apresenta
existencialidade
27
. O ser é viabilizado em sua “aparição” pelo ente. Nesta obra
Heidegger apresenta sua extensa investigação sobre a questão do ser, e em
sua metodologia usa o termo ontologia como o questionamento que esclarece o
sentido do ser. Como ele mesmo define, “apreender o ser dos entes e explicar o
25
Segundo Husserl, a consciência é sempre a conscncia de algo. De acordo com sua própria descrição, sua obra
“provém de uma pesquisa que se dirige efetivamente para as próprias coisas, que se orienta puramente segundo a
maneira como elas são dadas intuitivamente e, além disso, de uma pesquisa da consciência pura, na atitude
eidético-fenomenológica, a única que pode ser frutífera para uma teoria da razão” (HUSSERL, Edmund. Prefácio
das Investigações Lógicas, p. 11. Col. Os Pensadores). Com a expressão eidético-fenomenológica, Husserl vincula
a percepção do fenômeno a um sujeito pensante, como a única possibilidade de uma teoria da razão.
26
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, parte I, pp. 35.
27
Existencialidade, segundo Heidegger, é a constituição ontogica de um ente que existe. In Ser e
Tempo, parte I, pp. 39.
34
próprio ser é tarefa da ontologia”
28
. O termo ôntico está vinculado à presença
do ente, ainda sem implicação com o seu sentido, mas atendo-se à sua “raiz
existenciária”, como referenciado em Ser e Tempo
29
.
A reflexão sobre a existência, posterior aos estudos de Husserl e
Heidegger, foi favorecida pelo estabelecimento de noções fundamentais para a
compreensão de sua problemática. A noção de consciência intencional de um
sujeito que se volta para o mundo, desencadeia a percepção de que esse voltar-
se para o mundo com a intenção de desvelá-lo, cria as possibilidades de
desvelamento do próprio sujeito.
A filosofia existencialista, especificamente o existencialismo de Sartre e
Simone de Beauvoir, atribuiu ao termo “ontologia” a reflexão que se detém no
movimento do ser em constituir-se sujeito de sua existência e ao movimento do
sujeito em revelar-se através do desvelamento do mundo dado. Para
Heidegger, ontologia “designa o questionamento teórico explícito do sentido do
ser”
30
e, completando este pensamento com o modo de pensar de Simone de
Beauvoir, o sentido do ser surge no movimento de desvelamento de si e do
mundo. A situação ôntica se refere ao ponto de inserção do sujeito no mundo
dado, ou tamm, parafraseando Heidegger, sua raiz existenciária, ou ainda,
conforme Sartre e Beauvoir, sua situação existencial.
Na obra de Simone de Beauvoir especificamente, não se encontra a
definição do termo ontologia. A filósofa não faz uma nova definição do conceito,
ela adere à noção já estabelecida de ontologia desenvolvida pela tradição
existencialista. Encontra-se equivalência de seu significado principalmente na
filosofia de Heidegger. O uso deste termo pela filósofa sugere o entendimento
já estabelecido, porém cada pensador, ao apropriar-se de um conceito para
expor seu pensamento, o coloca como parte de seu conjunto de idéias, que é o
que compõe a sistematização de seu pensamento. Portanto, por ontologia em
Simone de Beauvoir entendemos que seja o movimento existencial que o sujeito
realiza para executar sua trajetória existencial. Este movimento é composto de
uma dupla realização, que é a revelação do sujeito e do desvelamento de uma
possibilidade encontrada no mundo dado, no mundo da existência comum.
28
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, parte I, pp. 56.
29
Idem, pp. 40.
30
Idem, pp. 38.
35
Assim como ontologia, o termo ôntico não encontra definição em Beauvoir, mas
do mesmo modo, seu entendimento é efetuado através da conceituação já
estabelecida. Portanto, ôntico refere-se à situação do existente, à sua inserção
no mundo dado, sem considerar seu movimento existencial.
Como já mostrado, o existencialismo é o modo de filosofar que se
caracteriza por tomar a existência como problema original. Grande parte dos
filósofos existencialistas expressou seu pensamento através da representação
da existência em romances – os chamados romances metafísicos. Dessa
maneira, estes filósofos se sentiam com maiores recursos para colocar o
problema que lhes ocupava o espírito - a própria existência -, já que a história
narrada se prevalece da empatia
31
possivelmente encontrada no leitor,
principalmente por se tratar de narrativas de situações constituintes da condição
original que qualquer indiduo compartilha, que é a de ser um existente livre.
1.4 - A literatura como forma de expressão nos romances
metafísicos
Simone de Beauvoir é reconhecidamente um talento em reproduzir
situações da existência em seus romances, cuja característica os eleva à ordem
de obra filosófica, em virtude da autenticidade que essas situações existenciais
trazem em si e da insistente preocupação em questionar seus personagens
acerca do fundamento de suas ações. Sem dúvida, sua excelência em criar
romances que acomodam radicais questionamentos acerca da existência dos
personagens envolvidos na trama, vem da proposta original da filósofa em
pensar a existência humana como problema. Assim, determinada por esta
preocupação original, a filósofa dedicou grande parte de sua obra aos
chamados romances metafísicos.
A peculiaridade de alguns filósofos em produzir escritos filosóficos
através de romances naturalmente se distingue das outras formas de
31
A empatia é definida por Bakhtin como “o princípio conteúdo-forma que sedimenta a relação do autor-
contemplador com o objeto em sentido geral e com a personagem (in Estética da criação verbal, pp. 10)”.
Estamos emprestando este sentido ao termo.
36
abordagens filosóficas mais clássicas, mais convencionais, comumente
observadas nos tratados e manuais, as quais correspondem aos modos
sistemáticos utilizados pelos pensadores na apresentação de suas teses.
É salientado, entretanto, que alguns pensadores existencialistas,
elegem o estilo literário do romance como o melhor modo de tratar seus
conceitos. À primeira vista, numa análise prévia, prevalece a impressão de que
a reflexão filosófica expandiu-se para um outro ramo do saber – a literatura –
que estes pensadores utilizam a narrativa como instrumento fundamental de
exposição de seu contexto argumentativo-filosófico, utilizando-a como suporte
para apresentação de seus conceitos. Nas obras afiliadas a essa vertente
filosófica não é incomum nos depararmos com narrativas existenciais
funcionando como suporte literário para exposição de sua problemática, onde
em seu cerne estão discutidos alguns conceitos filosóficos importantes.
Por essas razões, ao considerar a obra dos filósofos existencialistas é
freqüente encontrar a noção de forma de expressão
32
.
Bakhtin em sua obra Estética da criação verbal usa uma terminologia
diferente para classificar os romances que veiculam a problemática
transcendente ao tema da obra em si. Em Bakhtin são encontradas as
denominações romance de educação, romance de viagem, romance de
provação da personagem, romance autobiográfico
33
, todas se referindo à idéia
de uma história que trate de temas e/ou problemas que o autor pretende
abordar através dela, ou seja, a história em si mesma não é o objeto principal
da narrativa. Nesse particular, convém ressaltar alguns comentários que
Bakhtin teceu acerca destes romances:
“Uma vez que todos os elementos se
determinam mutuamente, um determinado
princípio de enformação da personagem es
vinculado a um determinado tipo de enredo, a
uma concepção de mundo, a uma
determinada composição do romance”
34
.
32
Esta terminologia é encontrada no livro de Franklin Leopoldo e Silva, obra citada. O autor caracteriza
como formas de expressão as duas formas encontradas em autores existencialistas que escreveram tanto
obras de filosofia como romances, como é o caso de Sartre, filósofo estudado por esse autor.
33
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal, pp. 205-6.
34
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal, pp. 205-6.
37
De acordo com suas palavras, a “enformação” da personagem vai
atender à concepção de mundo de seu criador. Transportando esta iia aos
romances beauvoireanos, percebe-se que este conceito coincide com o
tratamento que Beauvoir dá às personagens de suas histórias, ao construir
ambientes existenciais que favorecem o questionamento de suas escolhas
ontológicas. Trabalhando dessa forma, a autora atribui a estas histórias o
status de romances metafísicos, já que se trata de romances elaborados sobre a
concepção existencialista de mundo, cuja idéia central é a metafísica existencial.
Os ambientes existenciais, nesse caso, apresentam os conceitos que serão
investigados. Tomemos como exemplo a passagem a seguir do romance
beauvoireano L’Invitée:
“Encontrara finalmente o obstáculo
intransponível que pressentira sob diversas
formas, desde a infância; através do prazer
maníaco demonstrado por Xavière, através
do seu ódio, do seu ciúme, surgia qualquer
coisa que a chocava, tão monstruosa e
definitiva como a morte. Em frente de
Françoise e, apesar disso, sem a sua
participação, despontava algo que
constituía uma condenação sem recurso;
levanta-se uma consciência estranha, livre,
absoluta, irredutível. Era como a morte:
uma negação total, uma ausência eterna e,
no entanto, por uma contradição
perturbadora, esse abismo do nada podia
tornar-se presente a si próprio e começar a
existir, por si, em toda a plenitude. O
universo inteiro era absorvido por ele.
Françoise, afastada para sempre do
mundo, dissolvia-se neste vácuo, cujo
contorno infinito não podia ser determinado
por nenhuma palavra, nenhuma imagem
35
”.
Nesta passagem, ocorre a “enformação” da personagem (neste caso
específico, personagens) citada por Bakhtin, utilizada para dar contornos tanto
ônticos quanto ontológicos ao conceito que se pretende trabalhar. Aqui as
personagens se deparam com a hostilidade original de consciências que se
pretendem soberanas no mesmo espaço existencial. Françoise é empurrada ao
35
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 362-3.
38
abismo do nada em que Xavière quer lhe lançar. O leitor é conduzido a este
clímax através da enformação das personagens que se revestem dos elementos
que desvelam essa intenção.
Outra idéia pertinente à esta reflexão sobre romances metafísicos
encontrada no trabalho de Mikhail Baktin é seu comentário acerca dos
chamados romances de provação. Sobre tais romances o autor faz a seguinte
afirmação: “Em linhas gerais, essa modalidade de romance de provação (há
mais de uma) se caracteriza pela fusão da natureza aventuresca com a
problematicidade e a psicologia”
36
. Nessa citação, parece que a intenção do
autor é evidenciar aspectos transcendentes à própria história do romance, que
são neste caso, a problematicidade e a psicologia. A trama do romance serve
como um veículo de abordagem dos conceitos que o autor deseja colocar em
discussão, assim como é observado nos romances beauvoireanos. Nessas
modalidades de romances tratadas por Bakhtin, existem outros elementos
característicos de um estudo literário, que não dizem respeito especificamente à
questão da reflexão intrínseca à história, portanto, não sendo necessário
abordar neste momento. Por agora é interessante apenas demonstrar que os
romances metafísicos, para usar a nomenclatura beauvoireana, são um
importante elemento para o estudo da filosofia da existência e, além disso, são
reconhecidamente utilizados como veículo de idéias, e por fim, que este tipo de
literatura faz parte de um gênero literário que se consagrou como um modo de
refletir idéias.
Entretanto, a preocupação em legitimar o uso destes romances como
fonte de pesquisa insiste em se manter. Como um modo de esclarecer este
problema, se poderia perguntar sobre a diferença existente entre os conceitos
“filosofia” e “literatura” ou em que se constitui um e outro ramo do saber. Para
filosofia é fácil encontrar várias definições, a maior parte girando em torno da
idéia de ser a constatação da realidade histórico-social e a conseqüente reflexão
sobre os possíveis problemas que a percepção da realidade pode apresentar
para o indivíduo. E, de um modo geral, para a literatura, é possível considerar a
idéia de que seja um dos modos de como a linguagem se apresenta, e este
modo seria o texto escrito. Mas então há que se classificar uma diversidade de
36
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal, pp. 209.
39
textos, tais como histórias em quadrinhos entre outros modos de apresentação
da linguagem escrita, como obras de literatura. A dúvida que poderá surgir é a
de que esta literatura seja considerada Literatura.
Sendo assunto tão controverso, é de se esperar que surjam
especialistas no tema, na tentativa de resolver ou, no mínimo, esclarecer as
dúvidas que insistam em se manter em torno do problema. A teoria da literatura
aparece com o objetivo de elucidar o que é considerado literatura ou não. Com
esta intenção, o formalismo literário russo surge em 1917, como um movimento
de críticos que rejeitaram simbolismos, cujos significados influenciavam a crítica
literária até então e, imbuídos de um espírito prático e científico, transferiram a
atenção para a realidade material do texto literário em si
37
. Para o formalismo
literário “o essencial não está na relação da literatura com outras entidades – o
mundo, ou o autor, ou os leitores -, mas na relação de seus próprios elementos
constitutivos entre si
38
. Em sua essência, o formalismo literário foi a aplicação
da lingüística ao estudo da literatura.
Esta consideração acerca do conceito de literatura e da teoria literária
leva ao fundamento do problema acerca da legitimidade em tomar os romances
beauvoireanos como obras filosóficas. O estudo em torno deste assunto em
particular pode conduzir à concordância com o pensamento de Terry Eagleton
em seu livro Teoria da Literatura- uma introdução, onde ele sustenta a iia de
que a
“definição de literatura fica dependendo da
maneira pela qual alguém resolve ler, e não da
natureza daquilo que é lido. [...] Um segmento
de texto pode começar sua existência como
história ou filosofia, e depois passar a ser
classificado como literatura; [...] O que importa
pode não ser a origem do texto, mas o modo
pelo qual as pessoas o consideram”
39
.
Como complemento a esta idéia de Eagleton, é interessante
introduzirmos um comentário de Roberto Machado feito em seu livro Foucault, a
filosofia e a literatura, em que o autor afirma o seguinte:
37
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura. Uma introdução, pp. 3-4.
38
Definição dada por Tzvetan Todorov, no precio do livro citado de Mikhail Bakhtin.
39
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura. Uma introdução, pp. 12-3.
40
“Parece-me que a literatura, se interrogarmos o
seu próprio ser, só poderia responder uma
coisa: não há ser da literatura,
simplesmente um simulacro que é todo o ser
da literatura”
40
.
Este comentário assemelha-se em essência ao comentário citado
anteriormente de Eagleton, no trecho em que ele deixa a cargo do leitor a
escolha de classificar um texto como literatura pois, como Roberto Machado
comenta, não há um ser da literatura, pois seu ser surge no sujeito que lê.
Assim, é possível encontrar esta proposta silenciosa na obra de Simone
de Beauvoir, especificamente nos romances metafísicos: fazer surgir no leitor o
sujeito-objeto de sua obra e que é, em última instância, o desvelamento do
sujeito-leitor. Tal desvelamento acontece na possibilidade oferecida pelo
romance de refletir sobre a existência que está representada nele, uma vez que
estes romances se prodigalizam em representar a existência comum e possível,
mesmo se tratando de ficção.
O estilo literário de Simone de Beauvoir não corresponde à definição
formalista comentada anteriormente, pois sua narrativa, ao invés de concentrar-
se em sua estrutura interna, tem como principal e mais importante objetivo
envolver o leitor na história e relacioná-lo com o seu conteúdo. O romance
beauvoireano descreve a facticidade da existência em sua narrativa,
tencionando levar o leitor a refletir sobre a problemática tratada. A autora não só
relaciona-se com sua história, emprestando conteúdos éticos
41
à narrativa, como
incita o leitor a reagir eticamente a essa história. Contrariamente ao formalismo
literário, essa narrativa não tem a preocupação de apresentar uma organização
de discurso de modo sistemático, com descrições conceituais da existência.
O modo de expressão que a filósofa utiliza apresenta implicitamente a
intenção de ver-se acabada somente na subjetividade do leitor. Na definição de
formalismo literário citada anteriormente, foi mostrado que este formalismo não
toma o seu conteúdo como ponto de convergência entre mundo e sujeitos
autor e leitor. O mundo que existe é aquele intrínseco à sua criação. Se existir
alguma interatividade, esta só acontece internamente, entre os próprios
40
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, pp. 147.
41
Mikhail Baktin, em seu livro Estética da criação verbal sugere que a ética de um personagem pode
estar acabada na própria obra, apesar de encontrarem seu fundamento no autor.
41
elementos de seu discurso. Assim, esta conclusão pode ser usada como um
argumento a favor da idéia de que a expressão literária de Simone de Beauvoir
é considerada um legítimo discurso filosófico-existencialista. Suas histórias
necessitam da subjetividade do leitor para se tornarem acabadas, e como é de
amplo conhecimento, a filosofia é considerada uma reflexão histórico-social da
realidade, e por isso, só se torna completa no âmago do sujeito-leitor onde
efetivamente acontece esta reflexão.
Mikhail Baktin em um de seus livros afirma que “a vontade discursiva do
falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso
42
.
Transpondo este pensamento para o gênero literário beauvoireano,
perceberemos que a autora escolhe introduzir a reflexão filosófica na narrativa
existencial como tamm escolhe servir-se da narrativa existencial para analisar
um conceito filosófico no contexto existencial. Simone de Beauvoir é uma
filósofa que descreve a existência, e sua escolha em expressar-se em narrativas
reflete sua vontade de discursar sobre a existência.
Jeanne Marie Gagnebin, em seu artigo As formas literárias da
Filosofia
43
, afirma que “a auto-reflexão da filosofia sobre sua literalidade não traz
só proveitos metodológicos ou hermenêuticos”
44
. Para ela, esta reflexão trata
de questões referentes aquela filosofia “que se mostra como um gênero
discursivo diferente de outros gêneros discursivos em vigor”
45
, como é este o
caso que este trabalho se detém. Gagnebin em seu estudo, faz referência ao
modo de apresentação do discurso filosófico desde a época de Platão, onde ela
observa já haver uma preocupação em distinguir tal discurso em dois tipos
principais: primeiro, a forma poética e trágica, representada por Homero e
Hesíodo, e segundo, a retórica e a sofística, práticas discursivas ligadas mais à
atividade política. Gagnebin tamm sustenta a idéia de que uma reflexão
acerca da forma literária da filosofia significa também refletir sobre sua
“historicidade como gênero específico de discurso e de saber
46
. Dessa forma a
42
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal, pp. 282, grifos do autor.
43
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “As formas literárias da Filosofiain Filosofia e Literatura. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
44
Idem, pp. 15.
45
Idem, pp. 15.
46
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “As formas literárias da Filosofiain Filosofia e Literatura, pp. 16. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004.
42
autora relaciona três conjuntos de questões que esta reflexão aponta, como
citado a seguir:
“Há, primeiro, o fato de que, em filosofia, não
se trata somente de analisar uma linguagem,
mas mais precisamente, de analisar textos
escritos. Em segundo lugar, a diversidade
das formas literárias de textos filosóficos
também indica uma separação entre dois
tipos de exercício da filosofia: uma filosofia
ligada especificamente ao ensino e uma
filosofia como exercício de meditação ou de
reflexão sem relação obrigatória com práticas
pedagógicas institucionais. Enfim, em
terceiro lugar, a multiplicidade destas formas
também indica que há várias maneiras
possíveis de tentar abordar, em filosofia,
aquilo que excede a linguagem discursiva
(logos), linguagem por excelência da
filosofia”
47
.
Assim vemos ser reafirmada a iia de que a linguagem literária é
cúmplice, por assim dizer, do discurso filosófico, na intenção de transbordar sua
problemática para o romance. Esta afirmação endossa a intenção do presente
trabalho que, ao lado do objetivo principal que é analisar a questão da liberdade
subjetiva no movimento ontológico de demissão e assunção existencial no
desempenho do sexo feminino, tamm se preocupou em legitimar o uso dos
romances metafísicos como fonte de pesquisa filosófica. No item a seguir será
analisado mais detalhadamente o pensamento beauvoireano acerca dessa
ambigüidade de discursos: o literário e o filosófico.
1.5 - Literatura e Metafísica
Este item tem a intenção de introduzir a noção de Simone de Beauvoir
acerca da controvérsia surgida em torno da prática de filósofos, incluindo a si
mesma, de utilizar romances como enredo de conceitos filosóficos que
47
Idem, pp. 16-17.
43
pretendem discutir. A expressão romance metafísico é tratada por Simone de
Beauvoir pela primeira vez em seu artigo Littérature et Métaphsique
48
, onde a
filósofa discute a ambiidade encontrada entre literatura e filosofia. Franklin
Leopoldo e Silva, estudioso de nosso tempo que se dedicou a pensar este estilo
de literatura filosófica, em seu livro Ética e Literatura em Sartre
49
utiliza a
expressão novela metafísica para designar o mesmo estilo.
No artigo citado, Beauvoir considerou profundamente a relação
existente entre literatura e filosofia, e suas observações acabam por reforçar a
expectativa inicial do presente trabalho em utilizar os romances metafísicos
como fonte de pesquisa em filosofia. Em seu texto, Littérature et Métaphsique,
Beauvoir comenta que
“O romance se justifica por se tratar de um
modo de comunicação irredutível. Enquanto
o filósofo, o ensaísta oferece ao leitor uma
reconstrução intelectual de sua experiência,
o romance é essa experiência tal qual se
apresenta antes de qualquer elucidação que
o romancista pretenda restituir sobre um
plano imaginário. No mundo real o sentido de
um objeto não é um conceito amarrado ao
entendimento puro; seu sentido é o objeto
enquanto se revela a nós na relação global
que sustentamos com ele e que é ação,
emoção, sentimento”.
50
Nesta citação está evidente o pensamento da autora em considerar o
romance como fundamental para facilitar o entendimento de questões
existenciais que movimentam o espírito humano. Isso acontece porque a forma
de expressão do romance é uma escrita preocupada em refletir as angústias
existenciais do sujeito, já que reproduz esta experiência angustiante, amarrando
o sentido de um objeto do mundo a um sentido subjetivo. E é exatamente isso
que faz do romance metafísico um modo mais fidedigno de problematizar a
existência – a idéia de emprestar ao objeto do mundo um sentido subjetivo,
diferente das abordagens filosóficas convencionais que tratam os objetos em
48
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et Métaphysique in Les Temps Modernes, no. 7, avril, 1946.
49
SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: UNESP, 2005.
50
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et métaphysique, pp. 1154.
44
seu sentido intelectual puro, desvinculado de sua situação singular na existência
subjetiva.
Com o objetivo, tanto de sustentar como de fundamentar suas
hipóteses de trabalho, o estudo filosófico busca, sempre que possível, um
alicerce de embasamento representado pela tradição. Com este objetivo, é
utilizado tamm o estudo de Gagnebin, As formas literárias da Filosofia
51
, onde
esta autora chama atenção para a importância de um olhar histórico, conforme
citação a seguir:
“Tratar da filosofia como gênero discursivo
distinto e analisar suas diversas formas
literárias, seus diversos modos de
apresentação, restringe, pois, a pesquisa a
um corpus de textos, isto é ao território da
escrita. Esta restrição pode nos parecer
evidente porque somos acostumados a ela,
em particular no contexto do ensino da
história da filosofia que, no mais das fases,
se confunde com o estudo de textos de
‘grandes filósofos’, ensino e estudo
baseados, portanto, na transmissão escrita.
Mas se pensarmos na constituição da filosofia
em Platão, autor de diálogos escritos, copiados
e transmitidos por escrito até nós, e,
simultaneamente, autor de cticas con-
tundentes às pretenes de verdade da
escritura, defensor da transmissão oral através
da discussão viva, se lembrarmos disso, então
perceberemos que esta relação entre filosofia,
texto e escritura advém de uma partilha anterior
entre tradição oral, mítica ou poética,
transmissão oral da sabedoria, e transmissão
escrita, no seio de instituições socioculturais
diversas, de saberes”.
Com este olhar investigativo, voltado para a história da filosofia, alguns
exemplos de formas de expressão literária são resgatados, como é o caso da
narrativa, o que faz da expressão literária exímia colaboradora na discussão de
conceitos filosóficos. É com esse cuidado que o presente estudo se reporta a
Platão, tal como o fez Gagnebin, como um desses exemplos acima
mencionados.
51
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “As formas literárias da Filosofia in Filosofia e literatura, pp. 17.
45
Como é conhecido, Platão escrevia em forma de diálogos elaborados
com o objetivo de construir um embasamento literário para suas discussões
filosóficas, cujo teor reflexivo representa atualmente, uma das mais importantes
fontes de investigação conceitual para o estudante de filosofia. Os Diálogos de
Platão eram construídos a partir de situações vividas entre aqueles
personagens e constavam de discussões e reflexões narradas pelo filósofo.
Obviamente temos que levar em conta que a existência grega era composta de
outros elementos que ocupavam o espírito do homem, diferentes dos elementos
atuais. Não se deve de modo algum perder de vista essa evidência. Mas ainda
assim é possível aproveitar a iia da narrativa que certamente está presente
nesses diálogos.
Tomemos um deles como exemplo – “A República”. O diálogo se inicia
com um relato existencial: Sócrates está narrando um trajeto efetuado no dia
anterior em que observou um fato e algo lhe aconteceu, conforme o excerto a
seguir:
SÓCRATES: Dirigi-me ontem ao Pireu em
companhia de Glauco, filho de Ariston, com a
intenção de elevar preces à Deusa e também
para ver como decorriam os festivais que ali
iriam celebrar-se pela primeira vez. Agradou-
me sobremaneira a procissão dos nativos de
Atenas embora não se me afigurasse menos
brilhante a dos trácios. Tínhamos encerrado
nossas preces e satisfeito nossa curiosidade
quando, ao regressar para a cidade,
Polemarco, filho de Céfalo, nos avistou à
distância no trajeto de casa e ordenou ao
criado que corresse adiante a fim de
convidar-nos para esperá-lo. O servo
obedeceu-lhe, segurou-me pela manta e
disse:
– Polemarco pede-vos que o espere
52
.
O diálogo prossegue entre os amigos que, recebendo o convite de
Polemarco para ficar na cidade, aceitam e dirigem-se todos para sua casa. A
seguir, já na casa de Polemarco, inicia-se um diálogo entre Sócrates e Céfalo,
pai de Polemarco, sobre a velhice e, mais adiante, sobre a riqueza.
52
PLATÃO, A república, Livro I, pp. 9. Trad. Eduardo Menezes.o Paulo: Livaria Exposição do Livro.
46
O que se pretende mostrar ao utilizar esse texto de Platão como
exemplo é que algumas de suas observações são circunstanciais, surgem de
fatos que estão presentes no cotidiano de suas existências. No trecho exposto
se pode identificar a presença de vários elementos que constituíam a existência
dos indivíduos: o hábito de caminhar, fazer preces a uma deusa, costumes
festivos, criados (o que nos dá o conhecimento de se tratarem de cidadãos
gregos).
Na narrativa de Platão percebemos a ocorrência da representação de
uma cena da realidade que enleva os amigos e os motiva a dialogar. O filósofo
interessa-se em envolver o leitor no cenário que cria, descrevendo alguns
detalhes que motivam a imaginação de quem os lê para representá-los
mentalmente, remontando o ambiente em que acontece a narrativa. É
interessante observar que, durante todo o diálogo, persiste o convite do filósofo
para que o leitor participe daquele banquete de idéias, com explanações
situacionais tão bem elaboradas que inscrevem no espírito do leitor a
objetividade ali apresentada, como Beauvoir comenta em seu texto citado:
“envolvidos pela história que lhe é narrada, o leitor reage como se estivesse
diante dos acontecimentos vividos”.
53
Estes elementos da narrativa são o que nos leva a apreciar a idéia de
que a expressividade da situação existencial é um ponto de partida muito
importante para o entendimento de conceitos filosóficos. O que está em
evidência é o fato de que esta prática pode ser encontrada tamm em textos
não chamados convencionalmente de romances metafísicos.
É importante mencionar neste momento, que não há a intenção, com
essa alusão a Platão, de querer arrolá-lo como filósofo da existência por conta
dessas breves considerações. O único objetivo dessa discussão é colocar em
evidência que os conceitos filosóficos estão vinculados à existência humana,
cuja realização lhes dá sentido. Vimos que Platão, através de Sócrates, dava
um sentido próprio às iias de velhice e de riqueza, que são os valores
discutidos na seqüência da pequena passagem do diálogo escolhido como
exemplo. Outros valores são tamm considerados naquele diálogo, que não
53
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et Métaphysique”, pp. 1154.
47
convém agora nos deter. O importante é perceber que os valores discutidos
nos diálogos tinham sentido por estarem vinculados àquelas existências.
Voltando à idéia das formas de expressão, observa-se um Platão que
gosta de criar e se favorecer de estórias para ilustrar seus conceitos. Neste
mesmo texto, A República, existe uma alegoria repleta de seus conceitos no
Mito da Caverna. Ora, o fato de ser uma narrativa ficcional não diminui em nada
seu mérito, ao contrário, facilita o entendimento dos conceitos por meio de
situações criadas para esse fim. Por outro lado, a seriedade e profundidade
necessárias à elaboração de conceitos filosóficos, não ficam em nada
comprometida.
Como tamm citado por Gagnebin
54
, ainda na época pré-filosófica,
nos relatos homéricos e tamm nos de Hesíodo, temos o próprio mito como
objeto de reflexão nesses autores. E o mito, como sabemos, reúne criação
alegórica e projeto subjetivo de investida ao conhecimento. Essas
representações míticas se compunham tamm de relatos existenciais
daqueles indiduos, que buscavam através daquele relato compreender o que
se sucedia naquele contexto situacional.
Atualmente, a filosofia existencial instituiu o termo romance ou novela
metafísica como modo de conferir aos romances existencialistas uma fonte de
pesquisa filosófica. E por que iria a filosofia arriscar-se em cometer um equívoco
aventurando-se nesta prática, por vezes considerada como falta de um
chamado purismo intelectual? Beauvoir deu uma primeira pista ao afirmar que
tanto a ficção como o pensamento filosófico, não são a realidade em si. É no
seio do mundo que o sujeito pensa o mundo, e para isso é preciso recriar esta
realidade para que a discussão sobre a existência se dê em cena própria, e a
habilidade criativa do autor, enlevando o leitor na trama existencial confirmará a
legitimidade da argumentação teórica que a problematização da situação
realística suscita.
Recentemente, Márcia Tiburi considerou essa questão em seu artigo
Descartes e Beckett ou sobre a escuridão da certeza e aponta um possível
modo de como tratá-la, quando afirma que “o sujeito filosófico pode ser o sujeito
literário, o narrador vestido como personagem. Idéia afim à de que todo filósofo
54
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “As formas literárias da Filosofia”, pp. 15
48
é, por princípio e definição, tamm um escritor”
55
. Para Tiburi a existência do
sujeito narrador é afirmada e confirmada no texto que produz, é como ela
mesma define, “prova de si mesmo”
56
.
É sob essa ótica que Tiburi atribui ao Discurso do Método de
Descartes, em seu artigo citado, a característica de ser tamm uma narrativa,
como mostrado nesta citação:
“Talvez não seja novidade dizer que o texto
do Discurso do Método de Descartes seja,
em grande medida, uma narrativa: que seja
um texto contado em primeira pessoa e
dirigido a um leitor que, portanto, deve lê-lo,
julgá-lo e apreciá-lo, que Descartes o defina
como uma história ou fábula, que ele queira
contar como chegou até os raciocínios que
expõe e assim expor sua vida como "num
quadro" e o faça desde o início do texto,
dizendo de suas leituras como conversas
com pessoas de outros tempos que seriam
como viagens, que ele queira dar um relato
de suas "experncias", inclusive como
experimento de si mesmo, que ele se esforce
por contar da busca empreendida por "des-
cobrir a falsidade e incerteza das proposições
que examinava, não por fracas conjecturas,
mas por raciocínios claros e seguros" e neste
texto apenas conte - e não demonstre -
define que o Discurso do Método é escrito
para narrar em síntese, como que testemu-
nhar, no sentido de demonstrar a experiência
pessoal e subjetiva, o que ele conseguia
alcançar. Há um estatuto da verdade da
narração, que se coloca no lugar da
demonstração por afirmar a experiência do
narrador
57
.
Esses trabalhos citados reforçam o ponto de vista aqui afirmado de que
é legítimo sustentar a idéia de que o discurso filosófico não se resume somente
aos tratados analíticos, em que é encontrada uma forma de focar o objeto de
investigação filosófica muitas vezes de modo totalmente desvinculado com a
sua forma de ocorrência na existência. Foi mostrado que desde a Antigüidade
55
TIBURI, Márcia. “Descartes e Beckett ou sobre a escuridão da certeza”, pp. 38, in Filosofia e
Literatura. Porto Alegre: EDUPUCRS, 2004.
56
Idem, pp. 43.
57
Idem, pp. 43.
49
aos tempos modernos pode-se atribuir à narrativa uma importante participação
na reflexão filosófica.
Nas novelas metafísicas inevitavelmente surge uma ambiidade entre
campos do saber – literatura e filosofia, exatamente por se tratarem de duas
formas de expressão diferentes e que tradicionalmente se contestam, e é
justamente por essa ambiidade que o romance metafísico pode revelar-se
como o mais capaz de inserir o leitor na discussão filosófica que cria, uma vez
que transporta para a ficção objetos reais, e elabora o ambiente imagirio
necessário para provocar no leitor a mesma catarse intelectual que uma
discussão filosófica pode provocar. Simone de Beauvoir assim traduz essa
característica:
“É isso que constitui o valor de um bom
romance. Ele permite efetuar experiências
imaginárias tão completas, tão inquietantes
quanto as experncias vividas. O leitor se
interroga, tem dúvidas, toma partido e essa
elaboração hesitante de seu pensamento é
para ele um enriquecimento, como nenhum
ensinamento doutrinal poderia
proporcionar”.
58
Se tratássemos da ocorrência de apenas uma forma de expressão, não
existiria esse problema ambíguo de discernir entre quais áreas do saber uma
especulação acadêmica se propõe a adentrar, se na filosofia ou na literatura.
Este se trataria de um (falso) problema, que não aparece apenas no momento
em que é estudado o pensamento de Simone de Beauvoir, como também de
outros pensadores. Mas tal fato se constituiria realmente como um problema de
difícil solução se este estudo fosse guiado somente pela visão tradicional. Esta
última, por vezes, só admite chamar de discurso filosófico àquelas
apresentações sistematizadas do pensamento, geralmente em forma de
tratados filosóficos. O falso problema é não considerar que o romance
metafísico possa ser visto como fundamentação de uma discussão filosófica.
Para Simone de Beauvoir, problema seria considerar ou só a filosofia ou só a
literatura como individualmente suficientes para dar conta de uma reflexão séria
58
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et Métaphysique”, pp. 1154-5.
50
que envolva a existência, quando é esta que se mostra como objeto de reflexão,
como exposto na citação a seguir:
“Honestamente lido, honestamente escrito,
um romance metafísico traz em si um
desvelamento da existência que nenhum
outro modo de expressão saberia fornecer
equivalente. Longe de ser, como por vezes
pretendemos, um perigoso desvio do gênero
romântico, ele me parece ao contrário, na
medida em que é bem sucedido, a realização
mais completa, uma vez que só pode ser
bem sucedido se fracassar como pura
literatura ou como pura filosofia”
59
Como já assinalado anteriormente, o romance metafísico como forma
de expressão filosófica tamm é encontrada em outros pensadores, não só em
Simone de Beauvoir. Há quem se aventure a citar Dostoïewski como
existencialista. Não na categoria de filósofo, mas de escritor existencialista. A
própria Simone de Beauvoir cita Dostoïewski em seu artigo ao comentar sua
capacidade (a de Dostoïewski) de ser um observador de seus próprios projetos,
enquanto criador de seus romances. Talvez a principal diferença seja o fato de
que, no caso de Dostoïewski, não existir nenhuma obra dedicada à explicitação
didática de termos filosóficos, como encontrado nos outros autores
reconhecidos como filósofos, inclusive por força da formação acadêmica.
Dostoïewski, ao que se saiba, não tem nenhuma obra em que trate
especificamente de conceitos filosóficos, nem possui em seu currículo essa
formação, mas seu relato poderia ser enquadrado como uma novela metafísica.
Franklin Leopoldo e Silva tamm acredita que existam algumas
motivações para a criação dos romances metafísicos, todas elas objetivando
facilitar o entendimento da ordem humana dos acontecimentos que é, segundo
este autor, “a compreensão da existência como condição e da contingência
como o seu horizonte-limite
60
. Para ele, “uma filosofia se determina, a partir de
si mesma, a encontrar o modo de exprimir a correspondência entre a
59
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et Métaphysique”, pp.1163.
60
SILVA, Franklin Leopoldo e. Obra citada, p. 12, grifos do autor.
51
representação e a realidade”
61
, podendo-se pensar, a partir disso, numa relação
de complementaridade entre filosofia e literatura. Nesse caso, a filosofia da
existência seria um campo privilegiado onde se observa ocorrer esta
complementaridade, uma vez que, por tratar a existência enquanto problema, a
narrativa mostrar-se-á como um excelente modo de apresentá-lo. Tomando a
problemática existencial como obra filosófica, é por meio da narrativa que o
problema é colocado; a narrativa faz o papel de exposição e conseqüente
discussão do problema.
Analogamente, da mesma maneira que em pesquisas científicas
62
,
alguns aspectos da vida são recriados em laboratório para que possam ser
apreciados e estudados, a narrativa funciona como uma espécie de laboratório
das situações existenciais, permitindo-nos desse jeito recriá-las in vitro, isto é,
numa situação realística não real para análise. Assim como o cientista tem o
triunfo de sua tese na comprovação laboratorial, um romance metafísico se
confirma como um autêntico modo reflexivo-filosófico de contemplar a realidade,
quando elabora no leitor um estar metafísico, isto é, “realizar em si a atitude
metafísica que consiste em colocar-se dentro de sua totalidade em face da
totalidade do mundo”.
63
As filosofias que não tratam a existência subjetiva como a gênese de
seus problemas pensam esses problemas existindo fora do contexto existencial
do sujeito. Encontramos então, o conceito trabalhado universalmente, isto é,
desvinculado de sua realização no mundo físico, e por isso, não requerendo a
necessidade de se recriar a sua natureza primitiva. Mas para a filosofia da
existência, a narrativa transformou-se quase em uma exigência para sua
realização, já que apresenta e reflete sobre um existir subjetivo, vivido por um
ser humano, cujo sentido existencial está impregnado de seu projeto, doando-
lhe um sentido singular e por isso embebido de sua natureza peculiar,
individual.
61
Idem, pp. 12.
62
Reconho que a pesquisa científica é envolvida por um ambiente muito mais elaborado do que esse
que apresento. Minha intenção é somente tomar o trabalho de pesquisa laboratorial, ou seja, o
laboratório como exemplo de um ambiente fora do mundo dado, e compará-lo com a elaboração de um
romance, que por analogia representaria o laboratório do cientista, onde há a formulação de hipóteses, a
experimentação de fórmulas cuja suposição pode estar fundada nos objetos do mundo dado, assim como a
trama do romance é fundada no mundo dado.
63
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et Métaphysique”, pp. 1158.
52
Franklin Leopoldo reconhece a maior clareza que a novela metafísica
promove na compreensão de teses filosóficas quando afirma que
“a compreensão das vivências individuais
pela via da ficção só atinge o plano da
existência concreta porque insere o drama
existencial particular na estrutura universal
do ser da consciência”
64
Para este autor, Sartre favorece-se da facilidade que a narrativa
proporciona para elucidar as questões da ética que as novelas veiculam.
Franklin Leopoldo defende o ponto de vista de que a narrativa favorece de
modo inigualável a demonstração das questões dessa natureza. Com a
situação apresentada minuciosamente através da narrativa, o problema ético
fica bem mais fácil de ser identificado e tratado, já que é propositadamente
criado para ser analisado, mostrando-se acessível a uma razão
descomprometida com a responsabilidade de constituir-se a partir desse
julgamento. A situação ou as situações que requeiram uma reflexão ética são
mostradas de modo íntegro e detalhado, possibilitando que todos os lados da
questão sejam contemplados pela razão de forma isenta, sem o envolvimento
original do sujeito com o problema, já que é uma situação que, apesar de
realística, está distante da emergência da existência real do mundo dado, em
que várias possibilidades se apresentam, e o sujeito tem que escolher-se em
meio às opções que o mundo da existência comum lhe oferece.
Em Simone de Beauvoir, além de a narrativa ser usada pela filósofa
como instrumento de sua investigação filosófica, em vários momentos de seus
romances percebe-se que ela tamm pensa a narrativa como um modo do
existente revelar-se enquanto sujeito moral, que escolhe exercer sua liberdade
em situação. É quando o sujeito - o filósofo, o escritor – representado pelo
personagem, lança mão da narrativa para desvelar-se e desvelar o mundo
dado, viabilizando este desvelamento pela comunicação intersubjetiva presente
na trama do romance. Trata-se da narrativa como trabalho ontológico de
desvelamento de si e do outro que, como o termo trabalho sugere, requer
64
SILVA, Franklin Leopoldo e. Obra citada, pp. 13.
53
empenho subjetivo, um querer desvelar-se, pois como mostrado em Les
Mandarins, “falar auxilia a se compreenderem
65
.
Para a filósofa, a narrativa representa um modo de inserção do
indivíduo no mundo da vida, confirmando o existente em seu ethos - seu espaço
situacional. Com respeito a esse pensamento de Beauvoir, nota-se a intenção
de atribuir à atitude de falar como uma forma do sujeito lançar-se além do
instante dado. A fala pretende ser um empenho ontológico que visa transcender
o mesmo, e a fala intersubjetiva se constituirá em uma narração tanto do sujeito
como tamm do mundo dado. Nesse momento pode ser citado, mais uma
vez, o trabalho de Márcia Tiburi:
“Posso supor que tenho existência empírica
desde o momento não em que penso, mas do
momento em que escrevo, pois escrevo e a
prova de minha existência é material, pois
este texto existe e carrega em seu corpo um
eu (o meu) que agora se auto-expõe como
sujeito de uma narrativa”
66
.
Para Tiburi o sujeito escritor está sendo ou se realizando na trama
existencial que cria e não se qualifica apenas como espectador de um filme
projetado em sua mente. Tiburi vai mais longe quando faz a seguinte
proposição:
“Uma de minhas questões inevitáveis é,
então, a distinção entre filosofia e literatura e
a análise das consequências teóricas e
ideológicas que dela advém. A essência
linguística do texto filosófico pode ser a prova
material e ontológica da existência e instaurar
um novo cogito: escrevo, logo existo. Todo
texto é matéria concreta, o eu nele não é uma
substância, mas o personagem de um texto
e, como sujeito (aquele que lhe serve de
eixo) de um texto filosófico, o seu momento,
que em literatura poderia ser ficcional, torna-
65
BEAUVOIR, Simone de. Les Mandarins, pp. 474.
66
TIBURI, Márcia. “Descartes e Beckett ou sobre a escurio da certeza” in Filosofia e Literatura, pp.
42. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
54
se em filosofia, sustentáculo de sentido, e,
antes, prova de si mesmo”
67
.
Com este pensamento de Márcia Tiburi, vê-se ainda mais endossada a
idéia de ser a novela metafísica um excelente modo de inserir a subjetividade
do filósofo e do leitor na reflexão filosófica, uma vez que o existencialismo é
uma filosofia em que a subjetividade e a historicidade são fundamentos
principais de sua discussão, e por isso a narrativa conserva a característica de
organizar historicamente a existência subjetiva. Observa-se isso nas
passagens que se seguem, de I’Invitée:
“E eu, pensou, espectadora. Mas este jazz,
este gosto desque, esta luz alaranjada,
tudo isso não é apenas um espetáculo. É
preciso transformar tudo em qualquer coisa.
Em quê! Dentro da alma rude e tensa de
Elizabeth a música transforma-se
suavemente em esperança. Xavière, por sua
vez, converte-a numa expectativa
apaixonada. “Só eu nada encontro em mim
própria que afine com a voz comovedora do
saxofone”. Procurou lembrar-se de um
desejo, de qualquer coisa que lamentasse ter
perdido. (...) Deixara de conhecer o risco, a
esperança, o receio: só possuía esta
felicidade sobre a qual, aliás, nem podia
exercer qualquer influência. (...) Não, na
verdade nada encontrava, além duma pena
abstrata por nada ter a lamentar”
68
.
E ainda:
“Perante a sua solidão, fora do espaço e do
tempo, existia aquela presença inimiga que
há tanto tempo a esmagava com a sua
sombra cega. estava ela, existindo
apenas para si, refletindo-se completamente
em si própria, reduzindo ao nada tudo aquilo
que excluía. Na sua solidão triunfante, esta
presença continha o mundo inteiro, estendia-
se sem limites; infinita, única. Tudo o que a
constituía, ela tirava-o de si próprio,
67
TIBURI, Márcia. “Descartes e Beckett ou sobre a escuridão da certeza” in Filosofia e Literatura, pp.
43. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
68
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 31.
55
recusando-se a sofrer qualquer domínio: era
a separação absoluta”
69
.
Nestas duas citações é colocado em evidência que os fatos procuram
retratar a história de suas personagens. Em ambas, a angústia existencial do
sujeito é a problemática que rege a narrativa.
Este modo de pensar a narrativa como sendo também um modo de
expressão subjetiva, levou a associar a narrativa dos romances beauvoireanos
com o modo de a filósofa revelar-se. Em algumas vezes, Beauvoir narra-se
através de seus personagens, desvelando a si e ao dado (o conceito-objeto) no
mesmo instante existencial. Em Pour une Morale de l’ambigüi, Beauvoir
comenta a atividade do artista (plástico) e do escritor, encontrando certa
semelhança entre eles, quanto ao modo de existirem:
“O artista e o escritor esforçam-se por
superar a existência. Tentam realizá-la como
um absoluto. O que concede autenticidade
ao seu esforço é o fato de que não se
propõem atingir o ser. [...] É a existência que
eles procuram fixar e passar à eternidade”
70
.
Este modo de escrever filosofia se mostra como uma relação
ambígua, pois ao mesmo tempo em que apresenta e discute problemas
existenciais, a filósofa, enquanto sujeito existencial resolve-se na sua existência.
Por isso, esse modo de fazer filosofia tem um caráter especial, que é o fato de
desvelar-se enquanto desvela o dado (o mundo dado). Ao mesmo tempo em
que a filósofa apresenta um problema existencial ela desvela-se nesse
problema enquanto existente, como é mostrado resumidamente em sua
afirmação de que o sujeito quer desvelar-se desvelando o dado do mundo.
A novela ou romance metafísico mostra-se como a existência contada,
narrada ficticiamente, mas de modo realístico. Trata-se de ficção não inventiva,
que não ultrapassa os limites da realidade e que traz consigo um caráter
69
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 422.
70
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 99.
56
metafísico porque lida com valores
71
que transcendem a existência enquanto
fenômeno. Assistimos as personagens abordarem suas angústias, darem
sentido às suas vidas, engajarem-se em projetos, manterem relações
intersubjetivas. E todos esses elementos são utilizados como o cenário de
discussão da filosofia existencial.
Nesses romances, Simone de Beauvoir recria a ambiência situacional,
remontando a relação sujeito-objeto. A ambiência é proporcionada pela
repetição da realidade que a situação do romance oferece. No relato, é
reencontrado um sujeito que, por sua vez, está inserido em uma existência
povoada de outros sujeitos e coisas do mundo da vida, assim como na
realidade mesma.
Figurando como ilustração da realidade do sujeito escritor, o romance é
uma ficção de fatos realizáveis e totalmente possíveis, espelhada em situações
que podem estar intrinsecamente vinculadas ao momento em que ocorre sua
escrita. Tal fenômeno acontece porque, para o escritor, o fato recriado no
romance é um problema que no momento de sua escrita está sendo objeto de
reflexão. E esta característica se repete no leitor quando lê o romance. O
parecer e o ser fundem-se no momento de apresentação da estória do
romance. Este aspecto ambíguo é bem evidenciado por Beauvoir, no seguinte
excerto:
“Não é por acaso que o pensamento
existencialista tenta se expressar hoje, ora
através de tratados teóricos, ora através de
ficção. Isso tudo é um esfoo para conciliar
o objetivo e o subjetivo, o absoluto e o
relativo, o atemporal e o histórico. Ele
pretende amarrar o sentido ao coração da
existência, e se a descrição da essência
ressalta a filosofia propriamente dita, apenas
o romance permitirá evocar em sua verdade
completa, singular, temporal, o jorro original
da existência. Não se trata aqui de explorar
sobre um plano literário, verdades
previamente estabelecidas sobre o plano
filosófico, mas sim manifestar um aspecto da
experiência metafísica que não pode se
71
Admitimos que, a prinpio, fica confuso usarmos o termo valor com um sentido de noção absoluta de
alguma coisa. Porém, a idéia que Simone de Beauvoir tem de valor é de que não existe valoração prévia,
visto que os valoreso elaborados quando incide determinado momento existencial do sujeito. Esse seria
o valor; o não-estabelecimento de um juízo anterior à situação vivida.
57
manifestar de outro modo. Seu caráter
subjetivo, singular, dramático, e também sua
ambigüidade, uma vez que a realidade não é
definida como amarrada apenas pela
inteligência, nenhuma descrição intelectual
saberia dar uma expressão adequada. É
preciso tentar apresentá-la em sua
integridade, tal qual se revela numa relação
viva que é ação e sentimento antes de se
fazer pensamento”.
72
1.6 - A literatura filosófica de Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir cria, em seus livros, estórias complexas,
minuciosamente elaboradas, onde percebe-se o intuito esclarecido de retratar a
realidade fenomênica dos comprometimentos reflexivo-filosóficos que ela
própria concebe para que aconteça esta proximidade entre o ser e o parecer.
Além do fato de seu estilo literário esbanjar sensível primazia nas
descrições factuais, e ainda apresentar análises privilegiadas das diversas
situações em que a autora ambienta seus personagens, somos guiados
tamm pela perspicácia da filósofa em aliar à contingência crua do mundo da
vida, a presença constante da contemplão racional, embutida na apreciação
desses fatos, o que conduz gentilmente qualquer leitor a sentir-se refém, a
princípio incólume, de sua teia de palavras, mas que ao longo da leitura, ver-se-
á tamm vítima e cúmplice de questões que lhe põem em xeque-mate diante
da existência, diante de questões em que inevitavelmente está colocada a
escolha subjetiva: devo ser ou quero ser?
Isto se verifica porque em Simone de Beauvoir, tanto se observa uma
genialidade literária em produzir romances best-sellers que seduzem o leitor
pela originalidade e envolvimento, quanto é encontrada a radicalidade obstinada
da filósofa, presente em sua constante disposição de trazer à luz do romance e,
em presença de si mesma enquanto escritora e do outro enquanto leitor, as
questões fundamentais que assolam a existência.
Estas estórias que povoam os romances de Simone de Beauvoir, estão
assentadas em situações que imitam a realidade, onde sujeitos realizam suas
existências de um modo racional “ideal”. O enredo do romance repete
72
BEAUVOIR, Simone de. “Littérature et métaphysique”, pp. 1160-1.
58
situações que retratam a condição natural do ser humano em ser um sujeito
livre, cuja atuação existencial requer dele, a todo momento, colocar
apriorísticamente esta sua condição de liberdade como o propósito primordial
fundador das escolhas existenciais constitutivas de seu projeto ontológico.
A expressão modo racional “ideal é aqui utilizada com o propósito de
enfatizar a soberania da razão que Simone de Beauvoir atribui à atividade
ontológica de seus sujeitos. As escolhas dos sujeitos-personagens de seus
romances sempre passam pelo crivo de sua racionalidade, uma vez que a
autora, enquanto filósofa, não admite ao existente manter-se refém da
facticidade pura, já que o sujeito possui a liberdade de escolher-se. Se é dado
ao existente esta prerrogativa de escolher-se, como aceitar a facticidade como
imposição? Ganhar a oportunidade de escolher-se significa apenas que o
sujeito não consegue não escolher. (Não existe a situação de anescolha, assim
como não existe esta palavra).
Talvez o termo dado (partipio passado do verbo dar) não seja muito
apropriado neste caso. Mais certo é afirmar que o indivíduo deve escolher-se
enquanto existente. É imperativo no existencialismo tanto a necessidade do
agir, quanto a manifestação de algum movimento próprio do sujeito em
benefício de sua existência, criando e assumindo responsavelmente suas
atitudes como escolhas, todas elas imbuídas do sentido que define seu projeto
ontológico.
Nas novelas metafísicas, é relevante o fato de que, muitas vezes, as
histórias apresentadas nos romances são relatos autobiográficos
73
, nas quais a
autora oferece como problemática filosófica a sua vida mesma, com os seus
próprios dilemas existenciais, o que torna estas reflexões mais pujantes e
calorosas, pois estão impregnadas da legitimidade do real.
Nestes romances, Beauvoir serve-se das personagens para discutir
conceitos fundamentais que lhe habitam o ser, com a forte e transparente
intenção de transformar sua narrativa em problematização filosófica, cujos
objetos contemplados são aqueles vividos por ela e seus companheiros
existenciais, transformando seus dramas em narrativa.
73
ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête:Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, pp. 9.
59
Simone de Beauvoir existia centralizada na atividade de escrever. Sua
maior preocupação era conseguir transpor para o ato de escrever o sentido que
dava ao mundo: queria reproduzir a existência no papel, uma vez que era
através dessa reprodução do real que ela, não só pensava, como sentia a
existência.
Por considerar a existência o berço original de qualquer sentido que
pudesse surgir na consciência humana, é essa existência que Simone de
Beauvoir observa e problematiza, considerando-a a única inspiração autêntica
que pudesse ser tomada como a responsável por uma investida subjetiva.
Por estas caracterísiticas tão singulares encontradas em sua obra,
mais tarde seus romances converteram-se em importante material de estudo
filosófico, pois é notório encontrar neles a existência narrada e problematizada
com o rigor observado nos tratados de filosofia, uma vez que a racionalidade
exigida por Beauvoir na existência fictícia, que muitas vezes reproduz a
existência real, é extremamente rigorosa.
Por isso, constitui-se tarefa difícil separar o aspecto literário do
filosófico pois, apesar de Simone de Beauvoir não ter a intenção principal de
elaborar um tratado de filosofia aos moldes da tradição acadêmica, é evidente
que não está velada a intenção da autora em problematizar a existência e fazer
dessa intenção o sentido radical de sua obra. E é principalmente por esse
motivo que, sempre que for conveniente, será utilizada a imagem literária que
ela cria para proceder uma análise conceitual.
Assim, esse trabalho se servirá de recortes de seus romances como
exemplificação in vitro das conceituações.
Como exemplo de um destes recortes, tomemos o seguinte trecho de
sua obra:
“Que importavam os sacrifícios do presente;
o universo estava no fato do futuro. Que
importavam as fogueiras, as chacinas? O
universo estava alhures, sempre alhures. E
não está em nenhum lugar; há sempre
homens, homens divididos para todo o
sempre. _É o pecado que os divide. _O
pecado? Pecado ou loucura? Ou outra
coisa? ... Havia neles uma força que burlava
60
as previsões de minha razão e os defendia
contra minha vontade.
74
Este excerto está em seu livro Tous les hommes sont mortels, romance
que trata da historicidade humana, apresentando o personagem Fosca como
um homem imortal. No trecho citado, vislumbra-se a imagem do problema
vivido por Fosca, que se questiona acerca de alguns valores fundamentais para
a existência humana normal (de homens mortais), que seriam o sentido do
projeto humano, eternamente voltado para um vir-a-ser e que logo se
transformará num passado sem sentido. E Fosca percebe isso por ser imortal.
Ainda com Fosca, aprecia-se uma preocupação de Beauvoir em trazer
à baila a questão da moralidade da ação. Durante sua vida imortal e por força
dessa circunstância, Fosca travou conhecimento com um sem-número de
pessoas e as gerações que se seguiram a elas. Uma delas em especial
colabora para o desmonte de seu entendimento sobre sua ação quando afirma
que:
“... agir contra a própria consciência não é
nem certo nem honesto. Tremi; essas
palavras haviam-me atingido como um
desafio; era a inflexão que o monge as
pronunciara. Aquele homem ousava
pretender que sua conscncia sozinha
pesava mais que o interesse do Império e do
mundo. Eu queria ter o universo nas mãos;
ele declarava que, sozinho, era o universo.”
75
Fosca queria ser Deus e resolver todos os problemas da humanidade
conforme à sua razão; nesse diálogo ele se percebe como apenas mais um
sujeito condicionado à humanidade e que assumi-la integralmente é querer que
os outros tamm assumam as suas próprias liberdades. É flagrante a intenção
da filósofa em querer evidenciar a idéia de que o homem é o único e total
responsável por sua investida existencial em tornar-se um sujeito livre. Não
levar em conta esta premissa de sua condição humana é não reconhecer em
74
BEAUVOIR, Simone de. Tous les hommes sont mortels, pp. 313.
75
Idem, pp. 255.
61
sua consciência a soberania de sua existência, e a conseqüente assunção de
sua capacidade de escolher e ser.
Esta discussão estará presente em toda a fundamentação da ontologia
de Simone de Beauvoir. Seja no discurso fictício, como no caso desta obra
citada, quanto nas memórias, assim como nas novelas metafísicas e nos
ensaios. Veremos sempre essa construção sobre a atribuição fundamental do
sujeito em constituir sua liberdade existencial.
Após chamar a atenção para esse aspecto da expressão literário-
filosófica da obra de Simone de Beauvoir, convém agora expor uma estratégia
que foi utilizada nas citações das obras da filósofa, com o intuito de melhorar a
compreensão acerca de sua obra.
Durante a leitura dos romances de Simone de Beauvoir, é notado
algum cuidado ou mesmo certa intenção da autora em organizar sua discussão,
de modo a tratar cada conceito como objeto-tema de um determinado romance.
Percebe-se que a filósofa elege um conceito-chave para trabalhar num livro e
aprofunda sua análise no enredo. Isso não quer dizer que ela não trate outros
pontos naquele romance, mas sim que nesse texto um conceito é demonstrado
preferencialmente.
Assim sendo, para melhor caracterizar esses conceitos, chamamos de
hermenêutica beauvoireana o modo de expor a idéia principal em um romance.
Por exemplo, no romance L’Invitée, Simone de Beauvoir coloca em foco os
conceitos de sujeito, intersubjetividade e alteridade. Estes conceitos constituem
no referido romance, o alvo da hermenêutica beauvoireana. Entretanto, no
desenrolar da cotidianeidade de sua estória, algumas personagens incitam
discussão sobre um valor. Como exemplo, é citado a seguir, a idéia de moral
que aparece contextualizada na seguinte passagem de L’Invitée:
“Xavière tem uma atitude bem definida
perante a vida, com a qual não transige. É
isso que eu chamo uma moral. Ela procura a
plenitude. Ora, nós sempre aprovamos esse
gênero de exigências. _Masuma certa
frouxidão no seu caso. _Afinal, o que é essa
frouxidão? É uma maneira de se encerrar no
presente, pois só ali encontra a plenitude. Se
o presente nada lhe oferece, Xavière
esconde-se no seu canto, como um animal
doente. Sabes o que penso? Quando se leva
62
a inércia até esse ponto, já não podemos
chamá-la frouxidão; a coisa assume um ar
de força.”
76
Neste ponto do romance surge um diálogo em que os envolvidos na
questão discutem entre si os valores presentes na situação que vivenciam.
Este momento – o que as personagens discutem entre si um conceito – é
chamado de semântica beauvoireana.
Outro exemplo dessas distinções de análise conceitual em que existiu a
preocupação de se organizar é encontrado no primeiro conto de Quand prime le
spirituel, no qual já se pode apreciar a temática da diferenciação sexual
caracterizada como uma problemática de cunho ontológico. Isto acontece por
que Simone de Beauvoir já mostra o sexo feminino não sendo considerado
como uma singularidade subjetiva escolhida, mas sim como um conceito
elaborado por uma essência absoluta, superior à própria existência das
mulheres. Este conto é centralizado na personagem Marcelle, mulher idealista
que sublima o sofrimento como forma de alcançar a felicidade, e pensa que este
sofrimento é natural da mulher. Está implícita a iia de cuidado a outrem como
característica feminina, que resume, além disso, a idéia de sofrer por esse
outrem como modo de merecer a felicidade de ser amada.
Nesse conto, Simone de Beauvoir mostra a existência feminina como
um serviço a uma causa suprema norteada por um ideal absoluto, e essa
existência não pode ser desvirtuada de seu objetivo pelo fato contingente.
Evidentemente que essa não é uma característica que Simone de Beauvoir
acredita ser exclusivamente feminina, e já aparece nesse conto um evidente
incômodo da filósofa envolvendo essa temática, que encarcera a fêmea humana
num conceito de feminino eterno.
Nesta coletânea de contos escritos em torno de 1938, mas que só
foram publicados em 1979, Simone de Beauvoir discute a questão da diferença
de realização ontológica observada entre homens e mulheres. Essa obra
apresenta um esboço da crítica do conceito de eterno feminino que mais tarde
será aprofundada em Le deuxième Sexe. Assim, nesses escritos, Simone de
Beauvoir já critica a idéia de natureza feminina estabelecida ao longo do tempo.
76
BEAUVOIR, Simone de. L’Invie, pp. 163.
63
Neste conceito – natureza feminina - está embutido o reconhecimento da
transcendência masculina, como tamm o conceito de abnegação feminina em
favor da realização masculina. Dessa forma, a partir do conceito de natureza
feminina estabelece-se um outro – natureza masculina – que são totalmente
diferentes entre si, principalmente no que se refere à realização ontológica.
Além desse aspecto do feminino, em Quand prime le spirituel, a
hermenêutica beauvoireana tratará também do projeto ontológico de cada
personagem, do idealismo subjetivista que norteia a existência de cada um
deles. O livro conclui com a proposta de que esse projeto ontológico deve ser
realizado no mundo. O ideal ontológico tem que ser buscado e superado pela
existência real, para que esta existência tenha a chance de encontrar o seu
sentido.
Em L’invitée, como repetição da realidade vivenciada por Beauvoir,
Sartre e uma amiga em comum, há a proposta de um triângulo amoroso. Nesse
livro, somos guiados na trama por Pierre, Françoise e Xavière, como mostrado a
seguir: “Olhou para Xavière e depois para Pierre. Ela os ama, eles se amam,
eles a amam; depois de semanas, os três viviam um feliz encantamento”
77
.
Imediatamente aparece a questão da não convencionalidade das
relações. O desafio de rejeitar o convencionalismo da existência em sociedade
provoca nos sujeitos alguma convulsão interna, o que é de se esperar, inclusive
por eles mesmos. E eles querem essa prova, desejam-na como mais um
elemento que aguçará sua criatividade subjetiva e a legitimidade da liberdade
que acreditam ser necessária à existência autêntica, aquela em que o sujeito
assume sua liberdade de escolher constituir-se.
Neste livro, os diálogos mostram uma semântica direcionada ao
desvelamento do ser, adentrando nos movimentos ontológicos orientados pela
procura incessante do sujeito em realizar-se. Predomina uma insistente
discussão do jeito de ser de Xavière. Duas personagens – Pierre e Françoise –
discutem sobre Xavière, e nessas discussões eles elaboram conceitos sobre o
ser.
77
BEAUVOIR, Simone de. L’Invie, pp. 289.
64
No trecho a seguir é transposta uma elaboração semântica que foca a
questão da consciência. Françoise divaga acerca do relacionamente entre as
consciências:
“Sei bem que todos nós sentimos a própria
consciência como um absoluto. Assim,
como seria possível a compatibilidade entre
vários absolutos? Há aqui um mistério tão
grande como o do nascimento e da morte.
(...) O que me surpreende é que tu sejas
atingida duma maneira tão concreta por uma
situação metafísica. _ Mas trata-se de uma
coisa bem concreta. Todo o sentido da
minha vida se encontra em jogo. (...)
Apesar de tudo é excepcional esse poder de
viver uma idéia de corpo e alma. _ Para
mim, uma idéia não é uma coisa teórica:
sinto-a! Se é teórica, para mim não conta.
Se não fosse assim não teria esperado por
Xavière para me avisar de que a minha
consciência não era única neste mundo.”
78
A questão da liberdade é tamm tratada em L’Invitée, e este tema é
muito recorrente em toda a obra de Simone de Beauvoir. Como exemplo,
extraímos um trecho em que a personagem Françoise angustia-se quando se
percebe ameaçada ou invadida por outra presença:
“Perante a sua solidão, fora do espaço e do
tempo, existia aquela presença inimiga que
há tanto tempo a esmagava com a sua
sombra cega. Lá estava ela, existindo
apenas para si, refletindo-se completamente
em si própria, reduzindo ao nada tudo aquilo
que excluía. Na sua solidão triunfante, esta
presença continha o mundo inteiro, estendia-
se sem limites; infinita, única. Tudo o que a
constituía, ela tirava-o de si próprio,
recusando-se a sofrer qualquer domínio: era
a separação absoluta”
79
.
78
BEAUVOIR, Simone de. L’Invie, pp. 375-6.
79
Idem, pp. 462-3.
65
Nessa passagem, Françoise depara-se com outra consciência que se
ergue frente a ela, afirmando-se como presença e pondo à prova a liberdade de,
ela mesma, constituir-se tamm como consciência livre.
No contexto da obra de Simone de Beauvoir, a liberdade do sujeito é a
única possibilidade de existência autêntica, porque só a um sujeito livre é
possível a transcendência em projetos. E por não ser a liberdade questão
simples de tratar, o relato literário se fundamenta na problematização filosófica e
na criação ficcional da narrativa para expor o drama existencial como a
responsabilidade do sujeito em fazer-se livre. A escolha de constituir-se a si
mesmo como viabilizador de seu projeto lhe põe à prova, mergulhando-o no
drama de ter que ser porque quer ser.
Em sua incursão literária, Simone de Beauvoir elabora não somente
uma narrativa objetiva que reflita a vida, como também compõe personagens
cujas existências estão engajadas em situações realizáveis, em que a
consciência do sujeito ficcional pode relacionar-se com o sujeito real, que está
lendo a novela, de forma que pode acontecer um reconhecimento dessas
situações justamente por se tratarem de situações possíveis de acontecer na
vida de qualquer sujeito. Beauvoir empresta à narrativa o caráter de
problematização existencial, pois sintetiza situações que reproduzem a imagem
da existência real. Como observado anteriormente, o parecer da personagem
funde-se com o ser do leitor, criando uma imagem reconhecida como possível,
e por isso mesmo viável para o sujeito leitor.
Através da narração do cotidiano, a escritora elabora uma situação em
que um conceito filosófico experimentado por uma ou mais personagens é
apresentado e, a partir disso, as personagens envolvidas na trama iniciam a
discussão e a fundamentação do conceito apresentado. Como exemplo desse
uso da semântica beauvoireana, tomemos uma passagem do romance
L’Invitée, em que duas personagens põem em evidência a questão do ser, do
sujeito enquanto constituidor de si mesmo. Eis o excerto: “Mas você não
compreende que o que fazemos e o que somos são uma e a mesma coisa?
80
80
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 294.
66
Esta observação, além de constituir um modo de abordar o conceito,
faz parte da vivência pessoal de Beauvoir, que ela transporta para seu romance,
colocando assim sua própria existência num formato de reflexão filosófica.
Escrever, como escolha de realização ontológica, é uma presença
fundamental na obra de Simone de Beauvoir. Sob esse ponto de vista, não há
como falar de sua filosofia se não relevar essa sua qualidade. Em um dos
tomos de sua autobiografia, Beauvoir demonstra essa característica de abordar
o conceito através da própria vivência, e a necessidade de escrever sobre o
conceito, problematizando-o. Nessa ocasião, ela comenta sobre a decisão de
escrever Le deuxième Sexe,
“Disse como esse livro (Le deuxiéme Sexe)
foi concebido: quase fortuitamente.
Querendo falar de mim, compreendi que era
preciso descrever a condição feminina.”
81
Na medida em que consegue instituir uma relação de complementação
entre a criação (o parecer) da situação existencial que acomoda um conceito
filosófico a ser discutido e o prórpio conceito, Simone de Beauvoir desempenha
ao mesmo tempo o papel de escritora com o de filósofa da existência. Assim, a
escritora cria as características ônticas próprias para a filósofa discutir
ontologicamente o conceito.
Seguindo esse raciocínio, a novela metafísica se mostra como forma
tanto possível quanto necessária de filosofia. Possível porque a metafísica, aqui
considerada como especulão e conseqüente problematização da existência,
investiga essa existência enquanto objeto concreto do relato literário. E, sendo
esse relato o próprio discurso filosófico, é necessário que a filosofia esteja
presente, permeando o discurso de forma a orientar e organizar a discussão. O
questionamento metafísico não se mostra como especulação oca, desprendida
da existência, e por isso desprovida de sentido para ela, mas sim como a
atitude que consiste em situar o ser em sua totalidade, confrontando-o com a
totalidade do mundo.
81
BEAUVOIR, Simone de. Sob o Signo da História (Les forces des choses) , vol 1, pp. 190.
67
Um dos preceitos da filosofia existencialista é que a existência é
humana, portanto seu sentido é constituído pelo ser humano. A existência é a
situação singular oferecida ao indivíduo para exercer sua condição de sujeito
livre. Em Les Mandarins, por exemplo, Beauvoir aproxima o fato de poder se
expressar ao fato de existir, quando escreve que “... se não pudesse dizer
absolutamente nada. É como se eu não existisse”
82
.
É possível inferir que, para um existencialista, o romance metafísico
possa ser visto como a mais alta forma de filosofia porque é a filosofia fundada
na e pela experiência vivida do sujeito concreto. Nessa perspectiva, um
conjunto de iias muito bem acomodado em um romance metafísico é uma
forma de discurso filosófico. Mais uma vez o exemplo de L’Invitée pode ser
lembrado. Neste romance, a intenção filosófica é focar o sujeito e sua
existência. Na semântica da trama é característico deparar-se com conduções
prosaicas da escritora à reflexão filosófica e conceitual, como no excerto a
seguir: “Os gestos de Xavière, a sua figura, a sua vida mesmo, necessitavam de
Françoise para existirem.
83
Nesta citação a preocupação é vincular a existência
ao sujeito, introduzindo a noção de que é o sujeito mesmo quem constitui seu
mundo. Nesse caso, Françoise é seduzida pela existência de Xavière, e
naquele momento em que estavam juntas, a existência de cada uma delas
dependia da outra para se constituir.
Na maior parte dos romances de Simone de Beauvoir existe a figura de
um crítico que desempenha a função de analisar a própria vida e a dos outros, a
figura de um pensador que mantém em suspensão os diversos valores que
sacodem aquelas existências em foco. Isso acontece na figura de uma
jornalista, em Le sang des autres, e na figura de autor de teatro, em L’Invitée.
Em Les Mandarins encontra-se até o requinte de termos uma psicanalista
exercendo essa função.
O romance metafísico revela uma importante característica da obra de
Simone de Beauvoir, que é a grande relevância que a filósofa atribui ao sujeito
como empreendedor de sua trajetória, enfatizando o trabalho subjetivo de
elaborar e criar resoluções existenciais. Não há dúvida de que esta
característica é peculiar da filosofia existencial, uma vez que, para este ramo da
82
BEAUVOIR, Simone de. Les Mandarins, pp. 152.
83
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 23.
68
reflexão filosófica, o sujeito é o responsável por seu projeto existencial. Porém,
Simone de Beauvoir utilizava o escrever como a expressão de seu trabalho
ontológico, atribuindo a essa atividade a idéia de empenho subjetivo. É preciso
haver um empenho, uma mobilização do indivíduo querendo realizar seu
projeto, explorando todas as possibilidades que o mundo apresenta para
realizar-se. Simone de Beauvoir acredita que o sujeito é motivado em sua
existência para conquistar o que ainda não é, e isso o impulsiona sempre a
transcender-se, tomando cada momento como ponto de partida para o seguinte.
Isso sugere que o encontro final do sujeito com sua realização estará sempre
adiante de si mesmo, pois as suas possibilidades de realização desvelam-se
através de seu movimento em superar-se infinitamente. Sendo assim, a
realização subjetiva é o movimento subjetivo de fazer, de superar-se, num
trabalho ontológico visando o ultrapassamento do mesmo para que a nova
possibilidade de ser se desvele. Beauvoir escrevia tomando o escrever como
uma possibilidade de desvelar-se. Ela criava em seus romances as
possibilidades que poderiam surgir para que o ser realizasse sua existência.
Sua escrita não era apenas ficção descomprometida, mas aliava-se à idéia de
investida ontológica de realização, do querer realizar-se. Seus personagens
revelavam as características necessárias para as resolões existenciais, que
eram resultado de seu trabalho ontológico em revelar-se naquelas
características. Castor, como Sartre chamava Simone de Beauvoir, é um
animal trabalhador incansável, que após a resolução de seu objetivo imediato,
empenha-se no seguinte. Para ele, Simone de Beauvoir encarnava o espírito
construtivo do Castor, que nunca descansa
84
.
Nas novelas metafísicas, é transposto para o papel, em forma de
contos, o empenho criador do sujeito: tanto os projetos, como os valores e os
desejos acalentados em seu âmago são representados em situações
realísticas. A existência é vista como depositária das possibilidades de ser e
criar, e o sujeito é o artífice, o constituidor de si mesmo, cujo trabalho de
escolher ser viabiliza seu projeto.
Assim, Simone de Beauvoir apropria-se desse gênero de escrita como
forma de expressão de si mesmo, como modo de colocar-se em ação. Para a
84
BEAUVOIR, Simone de. A Idade da razão, pp.22.
69
filósofa, é por meio da escrita literária que a existência subjetiva encontra a
forma: a escrita parece doar forma ao sujeito. É possível encontrar essa
evidência de seu pensamento numa passagem de Les Mandarins, quando
Beauvoir afirma, através de sua personagem Anne, que “para isso é que serve
a literatura: mostrar o mundo aos outros como a gente o vê”
85
.
Na trama do referido romance, escrever resolvia a existência de
algumas de suas personagens. Beauvoir acreditava que, ao escrever sob a pele
das personagens, sentia-se instalada na eternidade. É através de sua
personagem Anne que Beauvoir expressa esse pensamento quando afirma que
“o que conseguia pôr nas palavras lhe parecia salvaguardado absolutamente”
86
.
Essa forma de expressão doava-lhe sentido à existência, assim como acontece
em relação a um projeto em que o sujeito se engaja. Mais adiante, é ainda
através de Anne que a autora reitera essa posição declarando que “se apiedava
quase com angústia de todas essas vidas que nem sequer procuravam
exprimir-se”
87
. Os outros não escreviam, não se expressavam, não davam às
vistas do mundo o sentido de suas existências.
Nos romances metafísicos, Simone de Beauvoir enfatiza a iia de
que deve estar presente numa realização autêntica a preocupação em tomar a
reflexão filosófica como ponto de partida para efetivar essas escolhas
ontológicas, pois sendo um sujeito livre em situação, o sujeito tanto escolhe
para si como para o outro. E este é o trabalho que o sujeito deve realizar. A
existência autêntica requer do sujeito seu engajamento sincero para desvelar
suas possibilidades de realização. Este engajamento ontológico é fundado na
liberdade subjetiva de escolher ser, uma vez que o sujeito pode escolher entre
realizar o trabalho de constituir-se ou não. Por isso, o sujeito é moralmente
responsável por sua escolha ontológica, pois a sua realização é a confirmação
de si mesmo escolhendo constituir-se, e desse modo, escolhendo situações que
valorizou como melhor ou pior para desvelar sua existência. Escolher ser, com a
responsabilidade de se constituir um sujeito livre em situação, isto é, em meio a
outros sujeitos, que possuem em si a mesma liberdade soberana de querer
confirmar-se.
85
BEAUVOIR, Simone de. Les Mandarins, pp. 425.
86
BEAUVOIR, Simone de. Les Mandarins, pp.152.
87
Idem, pp. 152.
70
Para a filósofa, o ser quer ser, deseja desvelar-se, quer empenhar-se
em realizar-se como sujeito soberano em meio ao mundo da vida. É este o
sentimento de felicidade de que nos mostra sua filosofia, a situação de
resolução ontológica em meio ao mundo da vida, em que o sujeito se confirma
em seu projeto constantemente.
Sendo assim, a intenção de escrever sobre o homem e seu existir
reveste a questão essencial da filosofia beauvoireana, cujo fundamento é
centrado no trabalho subjetivo de buscar a realização existencial enquanto
sujeito que está mergulhado no mundo da vida. No existencialismo
beauvoireano, existir implica reconhecer-se Um entre outros, o que requer do
sujeito o trabalho de constituir-se soberano. E além do mais, o sujeito é livre
para escolher entre demitir-se dessa investida ou assumi-la. Estas escolhas
subjetivas são fundadas na liberdade de constituir-se, e esse constituir-se é a
existência mesma.
Simone de Beauvoir pensa a existência como um processo ambíguo de
desvelamento entre o ser e a existência; enquanto desvela as possibilidades de
realização encontradas no mundo, o sujeito revela-se como consciência
soberana e livre. É um processo ambíguo porque o sujeito só se revela em
meio ao desvelamento da existência, só se constitui soberano em meio a outros
sujeitos que o reconhecem como alteridade.
Simone de Beauvoir empreendeu todo o seu trabalho em estudar o
ser e sua resolução existencial, analisando diferentes situações que foram
recriadas em seus romances. Sua expressão literária apresenta-se
excepcionalmente (ou até intencionalmente) como obra filosófica. Todo o seu
empenho era de compreender a existência humana e observá-la nos diferentes
nichos que a situação vivida cria e estudá-la em sua intimidade, daí o uso da
história como subterfúgio de reelaboração da situação vivida.
Mas era a nudez da realidade tomada como a evidência do mundo
dado que sensibilizava a filósofa e era sobre essa realidade que ela fundava
sua problemática. Simone de Beauvoir era existencialista e por isso pensava a
existência como o berço das realizações humanas, e qualquer situação que se
mostrava contrária à idéia de realização subjetiva foi tema de sua obra. Uma
vez que tomou o trabalho escrito como o seu modo de resolão existencial,
Beauvoir escrevia sobre os vários problemas que percebia na existência
71
humana. A revista Les Temps Modernes, fundada por ela juntamente com
Sartre e outros intelectuais, foi e é até hoje, o canal que estes e muitos outros
pensadores utilizaram, tanto para apontar os problemas que vislumbravam
como para convidar os leitores a refletir sobre eles.
Em seus ensaios filosóficos, a filósofa discute estes problemas sem o
recurso da criação ficcional, empreendendo estudos sistemáticos da realidade
observada como fato histórico, apoiando-se em diversas pesquisas já realizadas
sobre o problema em questão, com o propósito de aumentar sua compreensão
e promover sua discussão.
Assim, Beauvoir escreveu Le longue marche, que é um estudo sobre a
China, L’Amerique au jour le jour, que trata a sociedade norte-americana, e um
dos mais importantes trabalhos de sua obra - Le deuxième sexe, que toma
como tema principal, a realização ontológica da mulher, mas que é na verdade,
um dos mais destacados trabalhos sobre ontologia existencial, uma vez que
discute a realização humana de modo geral, não evidenciando somente a
formação de um dos sexos, mas seguramente de ambos, pois quando um deles
é objeto de estudo, o outro acaba sendo focalizado no rebote.
Neste estudo, Simone de Beauvoir inaugura, no panorama da filosofia
existencial, uma original argumentação sobre o surgimento do ser feminino. A
filósofa expõe o problema da realização ontológica deste sexo, enfatizando que
à mulher não é confirmada uma situação de soberania subjetiva, uma vez que
sua existência está submissa à noção de eterno feminino – um conceito que
aprisiona em sua definição a liberdade de vir-a-ser do sujeito feminino.
O conceito de eterno feminino nos remete à noção de essência
feminina, já que o surgimento do conceito acontece como definição de um ser, o
da essência feminina ou da feminilidade, seja como for a forma que se
apresente, cuja significação está norteando uma existência, e não como o
existencialismo pressupõe, tal essência surgindo no desenrolar de sua
existência.
Com este trabalho da filósofa – Le deuxième sexe - é a primeira vez
que a questão da diferenciação sexual é tratada no âmbito da reflexão filosófica,
com profundas investigações dos conceitos de macho e fêmea humanos,
denunciando a ausência de legitimidade para as atuais discriminações de
ordem ontológica na trajetória existencial dos dois sexos. Estas discriminações
72
não são naturais, isto é, são elementos constituintes de uma “suposta” natureza
feminina; são conceitos formulados a partir de uma idéia anterior à existência
subjetiva feminina, e por isto, não são situações criadas como resultado da
escolha desse sujeito. Mas apesar disso, relegaram à mulher a condição de
segundo sexo, e é esta problemática – a idéia de uma natureza feminina em
oposição ao conceito de sujeito livre defendida pela filosofia existencial - que
Simone de Beauvoir trabalha neste estudo. Simone de Beauvoir não aceita a
idéia de um feminino eterno vinculado à trajetória feminina, conforme desabafa
em Balanço Final:
... não acredito que existam valores, modos
de vida especificamente femininos: isso seria
admitir a existência de uma natureza
feminina, isto é, aderir a um mito inventado
pelos homens para aprisionar as mulheres
em sua condição de oprimidas. Para as
mulheres, não se trata de afirmarem-se
como mulheres, mas de tornarem-se seres
humanos com todos os seus direitos”
88
.
Le deuxième sexe vai de encontro ao pensamento misógino
estabelecido historicamente de inferioridade da fêmea humana, transformando-
se em um marco na fundamentação ontológica do ser feminino. Com esta nova
reflexão acerca da realização humana que Simone de Beauvoir introduz no
estudo da filosofia da existência, será possível avançar na superação do
primado machista que embasa a opressão ontológica da mulher. Além de
querer fundamentar uma suposta “natureza feminina inferior”, os interesses
dominantes querem legitimar a opressão da mulher pela afirmação da
inferioridade feminina. Esta atitude do opressor contraria a noção de sujeito
livre que necessita ver sua liberdade confirmada pelo outro em sua original
condição humana de surgimento no mundo dado, que é a liberdade.
Este capítulo procurou introduzir o leitor no contexto literário-filosófico
em que se situa Simone de Beauvoir. Intelectual francamente engajada no
processo existencial, a filósofa usou sua vocação original de escritora e
88
BEAUVOIR, Simone de. Balanço Final, pp. 497.
73
pensadora para colocar no centro do universo o objeto que acreditava ser o
único que merecia um estudo aprofundado, que é o homem e sua existência.
O capítulo a seguir fará um reconhecimento do problema da realização
feminina e sua trajetória ao longo dos tempos. Chamaremos a atenção para a
real dimensão do problema, verificando se há autenticidade em suas questões
ou se não se trata apenas de uma querela feminina. Lotam-se prateleiras de
livros sobre o drama da mulher e suas reivindicações feministas, onde vemos o
assunto ser tratado muitas vezes como uma simples competição entre os sexos.
Entretanto sustenta-se o argumento de que a realização ontológica não se trata
de um capricho, nem feminino e nem masculino, mas um fato natural; é a
questão mais fundamental que o homem investiga e persegue – ser um
existente livre e realizado, onde exerça efetivamente sua liberdade de escolher
ser, entre as diversas possibilidades que surgem no mundo dado.
74
CAPÍTULO II
A AMBIGÜIDADE DO SEGUNDO SEXO: VÍTIMA E CÚMPLICE DE
SUA SITUAÇÃO
O capítulo que se inicia tratará da questão da diferença dos sexos
conforme o pensamento que Simone de Beauvoir expõe sobre esta
problemática em Le deuxième sexe. Antes de mergulhar diretamente nesta
discussão, é interessante mostrar, ainda que brevemente, um pouco do
desenrolar histórico que o problema apresentou. Como mencionado na
Introdução, o sexo feminino sofreu, ao longo da história, um rebaixamento
explícito feito por importantes filósofos e essa conseqüente desvalorização do
feminino inscreveu através dos tempos certa hostilidade cultural em relação às
mulheres.
2.1 – O segundo sexo na história da filosofia
Na tradição filosófica, poucos foram os pensadores que se ocuparam
de modo sistemático do tema da relão dos sexos e da situação de
inferioridade da mulher; entretanto, a grande maioria se empenhou em justificar
o estado de inferioridade feminina. Aristóteles em seus estudos biológicos,
afirma que “a fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”
89
, o
que já denota a idéia de inferioridade feminina. Este filósofo está convicto da
existência de desigualdades naturais entre os seres humanos, encontrando-se
perfeitamente à vontade para defender que relações de
dominação\subordinação, quando determinadas pela natureza, são justas.
Aristóteles sustenta que “a fêmea é um macho mutilado”
90
e de acordo com ele,
a secreção feminina é desprovida de alma; a alma ou princípio vital é
89
ARISTOTE. De la génération des animaux.
90
Ibidem, II3, 737,a.
75
transmitido ao embrião exclusivamente pelo sêmen masculino. Assim, a fêmea
é apenas um recipiente, quem gera a vida é o macho.
As características de inferioridade atribuídas à mulher por Aristóteles,
constituem, a bem da verdade, uma investida masculina de ver assegurada ao
homem a conveniência de uma condição superior.
Em Le deuxième sexe, Simone de Beauvoir retoma alguns pensadores
que, com sua posição sobre a situação da mulher, marcaram a evolução da
idéia de eterno feminino
91
. Tomás de Aquino observava que a mulher era um
ser incompleto. Para Michelet, “a mulher era o ser relativo” e em Benda há a
reflexão de que “o homem é pensável sem a mulher; a mulher não sem ele”.
Freud, por sua vez, asseverou que a libido humana é originariamente
masculina, sendo a libido feminina um complexo desvio da libido humana.
Dessa maneira, a sexualidade feminina seria derivada da do homem, e o criador
da psicanálise utilizava a expressão “inveja do pênis” pressupondo que a mulher
se sentia um homem mutilado
92
.
O primeiro pensamento filosófico que apresentou argumentos em favor
da igualdade dos sexos foi elaborado pelo filósofo suíço de origem francesa,
Poullain de la Barre, no século XVII
93
. Poullain de la Barre afirmava não existir
nenhuma essência diferente ou inferior na mulher, acusando os homens de
serem suspeitos no que escrevem sobre as mulheres, por tendência ao
favorecimento do próprio sexo. Este filósofo considera que a situação de
inferioridade da mulher se origina historicamente e foi legitimada por uma
concepção inventada de essências diferenciadas para os dois sexos.
Por representar um marco na questão da abordagem filosófica sobre a
problemática feminina, Simone de Beauvoir cita em epígrafe de Le deuxième
sexe uma passagem do livro De l’ égalité des deux sexes, de Poullain de La
Barre, publicado em 1673: “Tudo o que os homens escreveram sobre as
mulheres deve ser suspeito, pois eles são, ao mesmo tempo, juiz e parte”.
91
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxme Sexe, vol 1, pp. 15.
92
Idem, pp. 15 e 81.
93
POULLAIN DE LA BARRE, François - Filósofo suíço de origem francesa (Paris 1647-Genebra 1723) -
Marcado pelo cartesianismo, revelou-se um dos primeiros teóricos da emancipação feminina. Escreveu
dois livros sobre essa questão. O primeiro, De l’égalité des deux sexes, foi publicado em 1673 e o segundo,
intitulado De l’éducation des dames pour la conduite de l’esprit dans les sciences et dans les moeurs, foi
publicado em 1674.
76
No século XVIII, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, apesar de ardoroso
defensor da igualdade entre os homens, não só aceita como justifica a idéia de
desigualdade na espécie humana, em “certas” situações. Com o apoio desta
idéia, a justificativa da noção de hierarquia entre os seres humanos é favorecida,
inclusive, fortalecendo entre os sexos esta tendência de categorização de
melhor e pior.
Ainda no século XVIII, notam-se filósofos que se mantiveram imparciais
com respeito ao problema da diferenciação sexual. Diderot e, mais tarde Stuart
Mill, no século XIX, colocaram-se em defesa dos direitos (humanos) a serem
concedidos às mulheres. Este último foi, sem dúvida, um empenhado defensor
da causa feminina, e tal empenho ele justifica em sua obra L’asservissement des
femme: o princípio que regula a dominação de um sexo sobre outro é errôneo
em si mesmo e constitui um dos principais obstáculos para o progresso da
humanidade
94
.
A partir do século XIX, em conseqüência da Revolução Industrial,
observa-se a participação cada vez maior da mulher no mercado produtor,
surgindo as primeiras reivindicações econômicas, para além dos argumentos
feministas já existentes. Em contrapartida, a ideologia das classes burguesas
defendia a solidez da família como garantia da propriedade privada,
aconselhando a submissão da mulher ao lar e o adiamento de sua
emancipação.
As classes operárias, por seu turno, temerosas da inserção feminina no
mercado de trabalho, não protestavam contra a iia de encerrar as mulheres
no plano doméstico nem contra as desigualdades em seus salários, bem
menores que os dos homens. Logicamente, o que os interesses vigentes de
dominação objetivavam é, sem dúvida, preservar o status quo que favorece
unicamente a pretensão de quem domina.
Através desse breve foco na história do segundo sexo, procurou-se
mostrar que a mulher tem sido uma “presença-ausência”, uma presença real
ausente na história que, que como é sabido, é uma história escrita e feita pelo
sexo masculino. Em uma ampla excursão através da história, Beauvoir resgata
94
MILL, Stuart. 1975, pp. 57.
77
em Le deuxième sexe essa característica da situação feminina desde a pré-
história até o feminismo do século XX.
Le deuxième sexe foi um marco na discussão sobre a diferenciação
sexual. Foi a primeira discussão que reuniu tantos elementos da situação
feminina e apresentou um estudo de cunho científico sobre essa problemática.
Foi escrito com a acuidade do pesquisador que se dispõe a investigar as várias
formas de se apresentar um problema. Algumas posições assumidas em Le
deuxième sexe são depois retomadas pela filósofa em Balanço Final (Tout
compt fait), sobretudo em virtude ao modo de como a filósofa via a situação das
mulheres. A princípio Beauvoir acreditava que se travava de uma luta de
categorias – homem e mulher – que poderia ser resolvida com a evolução das
sociedades. Entretanto, nesses escritos posteriores ela reconsidera a questão
e se coloca acreditando que a diferença entre os sexos está intimamente ligada
à luta de classes. A filósofa assim o coloca em Balanço Final:
Le deuxième sexe pode ser útil a militantes,
mas não é um livro militante. Acreditava que
a condição feminina evoluiria junto com a
sociedade. Escrevi: ‘Em linhas gerais,
ganhamos a partida. Muitos problemas nos
parecem mais essenciais do que os que nos
concernem singularmente’. E em La force des
choses, disse, referindo-me à condição
feminina: ‘Ela depende do futuro do trabalho
no mundo, só mudará seriamente ao preço
de uma reviravolta na produção’. [..] Agora
entendo por feminismo o fato de lutar por
reivindicações propriamente femininas,
paralelamente à luta de classes. [...] Em
resumo, no passado achava que a luta de
classes devia ter prioridade sobre a luta dos
sexos. Hoje considero que as duas devem
ser travadas ao mesmo tempo”
95
.
95
BEAUVOIR, Simone de. Balanço Final, pp. 493.
78
2.2 – O conceito de Segundo Sexo
Falar do segundo sexo como conceito significa, primeiramente, admitir
haver um segundo sexo e que entre os dois sexos, em algum momento um
deles – o primeiro - adquiriu algum tipo de superioridade sobre o outro. Este foi
o grande propósito de Simone de Beauvoir em Le deuxième sexe: o de
demarcar onde e quando a mulher ganhou o status de ser o segundo sexo.
Nos dias de hoje esta diferença hierarquizada não é mais vista com tanta
evidência, pois é inegável a participação feminina em quase todo o âmbito da
sociedade. Afinal de contas, a mulher obteve muitas conquistas neste último
século.
Como é observado ao longo da história, a mulher precisou conquistar,
quase sempre a duras penas, algo que de outra forma não lhe foi reconhecido
como condição natural, que é o mesmo reconhecimento que um homem tem de
ser visto como um sujeito soberano de sua existência. Desde há muito tempo
ficou “estabelecido” uma predominação do sucesso masculino, no que se refere
à realização existencial; à mulher sempre foi mais comum vê-la como
companheira de seu parceiro bem sucedido.
Mas a mulher acabou por conquistar o espaço e esse processo de
conquista de seu espaço existencial ainda continua. Tal conquista muito se
deve à reflexão sustentada pela argumentação proporcionada por Le deuxième
sexe.
Nesse estudo, Beauvoir reconhece a mulher na condição de tima e
cúmplice de sua situação. Isto ocorre principalmente pelo fato de a mulher
experimentar o papel de companheira passiva de uma trajetória em que o
desempenho existencial “positivo” não é seu, mas de seu companheiro, quando
o possui. A ela está reservado o papel de ser o seu contraponto, isto é, a
alteridade absoluta e negativa que revela esta existência “principal”. O
desempenho “positivo” mencionado refere-se ao fato de o homem apresentar,
com muito mais freqüência, uma resolução maior de sua existência, suas
realizações coincidem com o seu empenho em revelar-se desvelando o dado do
mundo. Por outro lado, a mulher é observada realizando-se através dessa
realização masculina, sua realização não é a de um sujeito que se lança em
79
projeto, mas de um sujeito que não se realiza e que atribui à realização do
companheiro um valor realizacional de si mesmo, o que poderia chamar de
desempenho existencialnegativo”. Desse modo, ser vítima e cúmplice de sua
situação, significa dizer que a mulher tanto sofre a limitação em realizar-se
quanto escolhe tal situação
96
.
Não é sem a intenção de marcar esta ambigüidade existencial que no
segundo volume de Le Deuxième Sexe, Beauvoir cita, em epígrafe, a frase de J.
- P. Sartre, sobre a mulher: “Metade vítimas, metade cúmplices, como todo
mundo”. Esta frase sintetiza a expectativa de uma moral existencialista que,
tanto Beauvoir quanto Sartre partilham e que, como Sartre deixa claro, deve ser
vista como uma característica inerente a qualquer ser humano, não específica
da condição feminina. Não é somente a mulher que sofre a angústia de
escolher ser ou permitir-se ser, mas notoriamente, é na mulher que esta escolha
precisa contradizer a situação estabelecida de um mundo masculino.
Uma vez que a história da humanidade é uma história de feitos
masculinos, a mulher esteve presente nesse mundo como acompanhante, sem
experimentar os riscos de uma liberdade subjetiva que engendra suas próprias
situações. Logo nas primeiras páginas de Le deuxième sexe, Simone de
Beauvoir denuncia este estado de coisas onde se observa a ausência da
subjetividade feminina como consciência livre:
“A humanidade é masculina e o homem
define a mulher não em si, mas relativamente
a ele; ela não é considerada um ser
autônomo (...) Ela não é senão o que o
homem decide que seja; daí dizer-se o ‘sexo’
para dizer que ela se apresenta diante do
macho como um ser sexuado: para ele, a
fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A
mulher determina-se e diferencia-se em
relação ao homem e não este em relação a
ela; a fêmea é o inessencial perante o
essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto;
ela é o Outro”
97
.
96
Esta questão sobre a realização existencial e sobre o fato de a mulher constituir-se como alteridade
negativa e/ou absoluta está intimamente relacionada à liberdade existencial, que será tratado num capítulo
adiante. Por ora, é enfatizada apenas a situação como ela se apresenta.
97
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 15.
80
O mundo masculino é o mundo representado pela razão soberana da
natureza, onde a cisão que ocorreu entre natureza e cultura concedeu ao
homem o estatuto de ser racional, enquanto que a mulher foi atirada à natureza.
Em inúmeros momentos da obra de Simone de Beauvoir, observa-se
sua tendência em olhar o ser existente como realidade no mundo e para o
mundo, sem a necessidade de que um Absoluto norteie suas decisões. O
Absoluto está dissolvido na historicidade do ser humano, não se verificando a
presença de um ser além de sua própria história que lhe justifique e legitime
pensamentos e atitudes. A seguir, algumas citações mostram como a filósofa
expõe essa idéia:
“se o ser aceita não ser a fim de existir
autenticamente, abandonará o sonho de uma
objetividade inumana, compreendendo que
não se trata para ele de ter razão aos olhos
de um deus, mas ter razão aos seus próprios
olhos
98
.
E ainda:
“Quando estamos na mão de Deus, não
temos que cuidar sobre o que devemos fazer
e não temos remorsos do que fazemos”
99
.
Suas colocações parecem demonstrar que para ela não há a
superioridade de algo sobre o ser, como meta que lhe guie as decisões, ou
ainda lhe alivie a responsabilidade para consigo e para com os outros. O
projeto humano do ser está na realidade mundana, que comporta outros seres e
sendo assim, a ação de um refletir-se-á nos outros. Desse modo, o ser existe
em situação, sendo o único responsável por suas escolhas, não havendo como
se livrar da necessidade de escolher, mesmo que essa escolha seja a de não
escolher ser, que caracteriza a demissão da existência, objeto central desse
estudo. Na realidade humana, não existe um ser superior que justifique ou
legitime as conseqüências das escolhas subjetivas. A conseqüência de
98
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 20.
99
BEAUVOIR, “Pyhrrus e Cinéas” in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 269.
81
qualquer escolha é humana, resultado de ação humana: “não existe para o
homem nenhuma forma de evadir-se deste mundo; é neste mundo que ele deve
[...] realizar-se moralmente”
100
.
Desse modo, percebemos que o existente está imerso em um meio
comum a outros sujeitos, e ainda, que cabe a ele constituir-se livre nesse
mundo já dado. É sua responsabilidade moral constituir-se a partir de escolhas
surgidas entre as possibilidades desta realidade mundana, que é constituída por
si mesmo e pela alteridade. Conforme Beauvoir explica,
“Não se pode revelar o mundo senão sobre
um fundo de mundo revelado pelos outros
homens. Nenhum projeto se define senão
por sua interferência com outros projetos.
Fazer com que haja ser é comunicar através
do ser com o outro”
101
.
A idéia de coexistência intersubjetiva é um dos alicerces da filosofia
existencial, já que para este modo de pensar a existência do ser, esta é
garantida a partir da existência do outro, e que ambos – o ser e o outro –
revelam-se em um meio comum - a realidade mundana, que recebe o sujeito
quando surge.
No entanto, vimos erigir-se em torno da existência feminina uma
“natureza absoluta” projetada tanto aquém como além de sua existência vivida
como subjetividade. A idéia de uma natureza específica, anterior a realização
existencial da mulher, estabeleceu-se entre a constituição do existente feminino
em sujeito livre e a sua realização existencial, ou seja, entre a assunção de sua
liberdade existencial e sua trajetória ontológica no mundo dado. Antes mesmo
de a mulher erigir-se como consciência livre e soberana, pairava já a noção de
uma essência vinculada à sua trajetória.
Como estudaremos no item a seguir, não há nenhum fundamento
racional ou moral que legitime o estabelecimento de uma pretensa
superioridade masculina, que dirá então de outra pretensa submissão feminina?
100
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüi, pp. 100.
101
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüi, pp. 102.
82
Os seres humanos existem, e só a partir desta contingência pode ser legítimo e
verdadeiro estabelecer diferenças em suas realizações existenciais.
2.3 - A alteridade como situação existencial
Ao invocar a história do desenvolvimento da humanidade para iniciar o
estudo acerca da diferença ontológica dos sexos, evidentemente é atribuído ao
processo histórico o surgimento desta diferença; é nele – processo histórico,
que surgem os subterfúgios e artimanhas que o poder dominante de cada
época utiliza para justificar uma ambicionada inferioridade feminina. Através da
história, os antifeministas tentavam fundamentar os seus argumentos em
supostas noções científicas e religiosas, objetivando “provar” a inferioridade da
mulher. O interesse masculino era caracterizar a mulher como “Outro”, isto é,
explicar seu “pretendido” estado de inferioridade por uma diferença apresentada
como desvantagem.
A mulher ficou relegada à inessencialidade, passando a ser o Outro
Absoluto
102
na sua relação com o homem. Tal dualidade, Mesmo e Outro, não
se constitui em novidade, sendo tão original quanto a consciência humana de si
mesmo. No reconhecimento de si como consciência, o homem constituiu todo o
resto como alteridade. Em sua inserção social, o homem considera o grupo a
que não pertence como “o Outro”. Mesmo em um mesmo país, habitantes de
estados diferentes parecem estranhos entre si e nativos de uma comunidade
são estrangeiros, quando fora de sua origem.
A consciência humana guarda, em si mesma, certa hostilidade em
relação a qualquer outra consciência, pretendendo afirmar-se como essencial e
fazer da outra, inessencial. Tal pretensão é rebatida pela outra consciência,
que tamm quer se impor como essencial. Simone de Beauvoir chama a
atenção para a singularidade da relação mesmo-outro no caso do homem e da
mulher. A mulher é o outro absoluto.
102
Esta questão da alteridade absoluta da mulher será desenvolvida adiante, quando estudaremos
Alteridade e Imanência.
83
Uma das questões mais importantes pertinentes à problematização
filosófica é a questão da alteridade. Na história da humanidade o
questionamento do ser buscando identificar a si e ao outro é presente nas
reflexões filosóficas de todos os tempos.
O existencialismo é o segmento da filosofia que se ocupa incisivamente
da problemática existencial na relação ôntico-ontológica do ser consigo mesmo
e deste com o outro, e considera estas relações como fundadoras de sua
inserção no mundo da vida.
Em meio a este cenário situacional, é fácil reconhecermos que um dos
maiores embates ontológicos das relações do ser no mundo é a relão
homem\mulher. Este relacionamento turbulento pode ser melhor compreendido
quando for analisada a tensão produzida entre as duas realidades em que o ser
se depara: aquela em que o ser se constitui e aquela realidade constituída pelo
ideal social.
Simone de Beauvoir reconhece esta ambigüidade fundamental do ser.
Ele é um ser para si e um ser para outro. Para esta filósofa não há como não
admitir estas duas categorias de realidades: uma realidade dada, que é o
mundo dado, tal como é e uma realidade subjetiva, onde o sujeito percebe-se
como ser consciente, e que entre essas realidades, descobre-se existindo. O
ser é um sujeito em situação.
Frente a isso percebemos que nascemos em meio a uma situação
dada. Algumas variantes da nossa condição humana são estabelecidas antes
do surgimento do ser, que são aquelas responsáveis por nossa designação
social, localização geográfica,... e de sexo.
Surgimos no mundo definidos biologicamente como homem e como
mulher. E é neste desenrolar existencial que percebemos que a situação dada
enfrenta o sujeito singular ou vice-versa. O mundo estabeleceu-se diante da
diferença constituída entre homem e mulher.
O simples fato de a humanidade ser diferenciada entre homem e
mulher por si só já gerou um grande problema para ela mesma. Entre esses
dois, quem demonstraria ser o melhor representante da espécie? Porém, entre
os existentes percebe-se que a peleja não se concentra somente na
diferenciação sexual. Alheios a essa questão, os indivíduos sempre se
84
confrontam e quem dispõe de maior vantagem, seja de força física, atração
física, simpatia, status social, comumente conquista posição de líder. Sem
dúvida, o ser quer se impor como soberano sobre qualquer outra consciência.
A categoria do outro é fundamental para estudarmos a relação
homem\mulher, uma vez que essa relação estabelece privilegiadamente a
tendência original do ser humano de querer ser soberano sobre outra
consciência, alienando-a como propriedade e tornando-a objeto. Todo ser
deseja sobrepor-se ao outro, mas no caso da mulher o sujeito feminino não
reagiu a este confronto. Uma longa discussão trata de investigar porque esta
diferença ontológica se instalou entre os sujeitos masculino e feminino.
Suspeita-se de um pacto social que favoreça o patriarcado, fala-se de
condicionamento feminino à situação de dependência econômica e emocional
do sexo masculino, enfim, existem várias hiteses. Mas o fato é que é
encontrada essa diferença e, por isso mesmo, surgiu a idéia de refletir sobre
sua realização dentro da experiência existencial de cada sexo.
A condição de sujeito livre é imprescindível para o reconhecimento do
sujeito como consciência livre e o conseqüente reconhecimento do outro como
alteridade. A alteridade é a possibilidade que garante ao sujeito transcender-se
em algo que não ele mesmo. O sujeito livre é aquele que transcende a própria
consciência lançando-se em projeto para um futuro desconhecido.
Não é exclusivamente a condição de alteridade que faz com que a
mulher participe da idéia de alteridade negativa
103
. Alteridade pode ser tudo o
que não é o sujeito. Quando o sujeito se afirma como superior, ele transforma
ou submete ao caráter de alteridade tudo o que ele não é. Nesse sentido, a
mulher deveria ser o outro para o homem assim como outro homem o é. Só que
esta alteridade feminina tornou-se negativa. Ela passou a ser o que o homem
não é.
Simone de Beauvoir reclama para a mulher esta condição de sujeito
livre, e aponta que, ao longo dos tempos, a relação entre os sexos não se
constituiu numa relação entre sujeitos livres, quando ocorre o estabelecimento
de uma intersubjetividade autêntica em que um sujeito se afirma quando o outro
103
É importante evidenciar que o conceito de alteridade negativa difere do conceito de alteridade
absoluta. A mulher é o outro absoluto no sentido de que na relação homem\mulher não existe
reciprocidade da condição de sujeito, enquanto que, como alteridade negativa a mulher é definida por
exclusão; ela é o que o homem não é .
85
lhe confronta. Desse modo há o reconhecimento de duas liberdades
conscientes. Para Beauvoir, o outro em que a mulher se constituiu foi um outro
negativo, impossibilitado de, nele mesmo, constituir-se como objeto com
qualidades formuladas por si mesmo. A mulher é um outro constituído pelo Um,
ela é o segundo sexo! A mulher tornou-se o outro supremo em relação ao qual
o homem se afirma como sujeito. Ela é o Outro Absoluto, não existindo relação
de reciprocidade, pois a situação de reciprocidade implicaria que o homem, por
sua vez, fosse objeto para a mulher-sujeito.
A alteridade é a condição natural em que um sujeito se depara com o
que não é ele mesmo. O reconhecimento de um outro sujeito embasa as
relações de intersubjetividade entre os existentes.
A condição de alteridade absoluta sofrida pela mulher em sua relão
com o homem caracteriza-se pelo fato de que à mulher não é reconhecida a
condição de sujeito. Nesse caso, o ser feminino não ocupa nem mesmo a
categoria de sujeito, de um para-si, porque alteridade absoluta é aquela dada a
qualquer objeto que não seja o sujeito. Na situação de alteridade absoluta, é
subentendido que existe um sujeito soberano, e que, todo o resto constitui-se
em objeto deste sujeito e que, encerrado em si-mesmo, não transcende a
condição de objeto.
A alteridade negativa se refere à situação em que ao sujeito feminino
não é reconhecida a condição de consciência livre, afirmada em sua existência.
O sujeito feminino não é tomado como uma liberdade significativa para o
desenrolar da existência, no que diz respeito às decies do universo
existencial onde co-existem homens e mulheres.
Apesar de até admitir um sujeito feminino, este sujeito não é visto como
capaz de transcender-se tal qual o ser humano masculino e, por este motivo,
conserva uma atitude passiva, imanente, de objeto.
Nessas duas situações, tanto a de alteridade absoluta em que a mulher
jamais é vista como um sujeito, e na de alteridade negativa, em que a mulher é
vista como um sujeito incapaz de transcender-se, está forjada à mulher uma
situação de não transcendência e em conseqüência uma não realização
existencial. Para a filosofia existencial, a existência só se realiza enquanto
projeto de um ser transcendente que em todo momento se escolhe e se
constitui.
86
A mulher não encontrou espaço para transcender-se, já que não lhe foi
permitida a condição de sujeito. No entanto, a sociedade acomodou-se a partir
desta carência feminina de afirmação. Conforme Simone de Beauvoir, desde os
primeiros tempos de patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de
dependência; os códigos dos homens estabeleceram-se contra a mulher, e foi
assim que ela se constituiu como Outro. Beauvoir não enfatizou esta diferença
de situação existencial entre alteridade absoluta e alteridade negativa, mas é
através de sua reflexão que foi possível erigir essa distinção. Em seu estudo
específico sobre a mulher, Le déuxieme sexe, a filósofa não aponta estas
diferenças entre as situações de alteridade feminina, mas faz-se imprescindível
reconhecê-las, uma vez que são aspectos diferentes da opressão vivenciada
pela mulher, advindas de sua imposta condição de ser o Outro; ela é alteridade
negativa e alteridade absoluta.
A qualidade que um objeto possui de ser imanente, ou seja, de ter o
seu significado em si mesmo sem transcender-se, nos leva a pensar na
categoria de utilidade dada a determinados objetos quando analisados. Por
exemplo, uma lapiseira usada para escrever tem seu fim em si mesmo. Ela é
útil porque com ela é possível escrever um texto. Fora isso, não há outro fim
para a existência da lapiseira senão sua utilidade. Se fosse tamm
considerada sua beleza, sendo reconhecida como um objeto de arte,
certamente não estaria sendo usada para escrever e sua função se destinaria à
contemplação e não à utilidade.
Em alguns momentos, percebemos que a existência feminina tem seu
sentido evanecido na noção de utilidade. Uma vez que foi dado à existência da
mulher um sentido, percebe-se uma tendência a acreditar que melhor seria que
tal sentido acomodasse em si alguma conveniência. Esta conveniência seria a
própria iia de utilidade, já que esta noção pode favorecer aquele de quem
dela se beneficia.
A seguir será abordada esta temática do sentido da existência feminina,
que pode ser o fundamento original da idéia de feminino eterno.
87
2.4 - O sentido dado à existência feminina
De certa forma, a mulher está encerrada num aspecto utilitário de sua
existência. A vida da mulher em certas situações, mais especificamente a de
dona-de-casa não é dirigida para fins próprios; sua vida absorve-se em produzir
ou manter coisas que nunca passam de meios: alimento, roupas, resincia
104
.
A dona-de-casa só se vangloria de ser útil aos seus parentes. Segundo estas
perspectivas, a mulher se aliena em objeto quando é imposta à sua existência a
condição de repetição da espécie ou de manutenção da vida, sem a
possibilidade real de transcendência inerente a todo sujeito livre.
Simone de Beauvoir assinala que as condições de opressão,
geralmente consagradas às minorias, não são bem explicadas em relação às
mulheres. Isto por diversas razões: (1) elas não representam uma minoria; (2)
não formam classes separadas das dos homens; e (3) não existe
completamente definida uma casta de homens e outra, de mulheres, em que se
exercitasse algum tipo de reivindicação própria de cada sexo, como se um não
estivesse continuamente envolvido com o outro, nem compartilhando, inclusive
os mesmos interesses.
É a caracterização de sujeito livre que Simone de Beauvoir reclama
para a condição feminina. Dentro desta problemática há que se reconhecer ser
legítimo reservar à mulher esta condição de sujeito livre, não subjugado à
essência conceitual anterior ao seu surgimento, como assim se propõe a
conceituação de eterno feminino. Para Beauvoir, ainda não havia a plena
convicção de que a mulher é um sujeito livre, que transcende a própria
consciência lançando-se em projeto para um futuro desconhecido.
Assim, embasada nesta fundamentação existencialista dos conceitos
de sujeito e transcendência, Simone de Beauvoir procura assegurar à mulher a
condição primordial de sujeito, reconhecendo-se desta forma a não diferença
104
O conceito de utilidade parece estar relacionado a uma função já atribuída por outrem a algum dado do
mundo. Ao sujeito não é solicitado criar-lhe um sentido e, mesmo que seja, este sentido deve estar
atrelado a alguma necessidade do mundo. Assim a função feminina (e a atividade de dona-de-casa ainda
era a mais predominante na ocasião do estudo de Simone de Beauvoir), implícita nesta denúncia da
filósofa, ficaria muito mais atrelada à necessidade imanente do que à transcendência da criação. Tal
necessidade é aqui relacionada às atividades de repetição e manutenção da vida, características da função
de dona-de-casa.
88
entre homem e mulher enquanto seres humanos. Antes da diferenciação
sexual, homem e mulher são seres existenciais, claro que em situação, ou seja,
inseridos em contextos singulares que os diferenciam, mas tais diferenças não
anulam a caracterização original de serem sujeitos livres, e mais ainda,
condenados a serem livres, como o afirma Sartre. Esta afirmação pode se
reverter para a idéia beauvoireana de sujeitos condenados à ambigüidade, já
que ao ser é atribuída a responsabilidade de escolher-se entre as possibilidades
existenciais do mundo dado.
Isto não significa deixar de reconhecer as diferenças que há entre
homem e mulher, mas antes, admitir diferenças tanto entre indivíduos de
mesmo sexo quanto de outro, pois o ser humano é um projeto que se vive
subjetivamente.
Beauvoir participa com sua obra do conjunto que compõe o arsenal
teórico do pensamento filosófico existencialista da filosofia contemporânea. Em
seus escritos podemos encontrar inúmeras afirmações imputando ao sujeito a
responsabilidade em fazer-se. Para a filósofa, a existência humana é subjetiva:
dela (da existência), dependendo o projeto e realização do ser humano, sem a
intermediação de um ser transcendente. Simone de Beauvoir afirma essa
concepção em seu romance autobiográfico Memoires d’une jeune fille rangée,
quando escreve que:
“O idealismo subjetivista a que me filiava
privava o mundo de sua espessura e de sua
singularidade: nada há de espantoso em
que, mesmo pela imaginação, não tenha
encontrado algo sólido a que me apegar”
105
.
Em virtude de sua posição a respeito da subjetividade, Beauvoir não
atribui a nenhuma noção superior ao ser a responsabilidade de escolha de seu
devir. O ser existe em situação e, dessa forma – em situação, procede a
escolha de si mesmo. A passagem a seguir ilustra a afirmação da soberania do
sujeito, a não aceitação de um absoluto, tão marcante no pensamento da
filósofa:
105
BEAUVOIR, Simone de. Mémoires d’une jeune fille rangée, pp. 318.
89
“Fiquei sabendo com estupor, lendo uma
notícia de jornal, que o aborto era um delito:
o que acontecia em meu corpo só a mim
dizia respeito. Não houve argumento que me
fizesse mudar de opinião”
106
.
Ao longo de sua obra, Simone de Beauvoir afirma que a existência
individual do sujeito é o que determina seu projeto. Contudo Beauvoir evidencia
a idéia de que o mundo dado é indispensável para a constituição do sujeito livre.
Através das personagens de seus romances, Beauvoir mostra que a
realidade que acontece no sujeito apresenta uma relação intrínseca com o
mundo dado. Os valores encontrados no mundo dado são reelaborados no
âmago de cada um; nenhuma realidade é reconhecida como pronta e acabada,
como comenta Simone de Beauvoir em seu romance autobiográfico: “Percebi
que eu via as pessoas como elas se davam; não suspeitava que tivessem uma
verdade diversa de sua verdade oficial
107
. Utilizando as palavras de sua
personagem, a expressão do sujeito é tanto a verdade diversa, ou relativa como
poderia arriscar chamar, como a verdade oficial ou dada, presente no mundo
dado.
Essa idéia de que a existência é percebida pelo sujeito só acontecendo
através dele, é também manifestada na seguinte passagem:
“’Quando não estava presente, este cheiro
de poeira, esta penumbra, esta solidão
desolada, nada existia absolutamente.’
...Françoise possuía portanto este poder:
arrancar, graças à sua presença, as coisas
ao estado de inconsciência, dar-lhes uma cor
própria, um cheiro”
108
.
A afirmação do sujeito como existindo em situação passa pelo
problema original do ser que é a categoria do Outro. Além de abordar esse
tema em Le deuxième sexe, como mostrado anteriormente, Beauvoir evidencia
esse problema tamm em seus romances. Em L’Invitée, pode ser constatado
106
Idem, pp. 263.
107
BEAUVOIR, Simone de. Mémoires d’une jeune fille rangée, pp.391-2.
108
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp.12.
90
uma alusão a esta natural tensão entre as consciências, resultante da dualidade
essencial mesmo\outro.
... Nunca podemos pensar que os outros
são consciências que têm um sentimento de
si próprios, como nós temos. Quando
descobrimos isso é terrível. Temos a
impressão de que passamos a ser apenas
uma imagem refletida no cérebro de alguém
109
.
A categoria do outro é fundamental para estudar a relação
homem\mulher, tendo em vista que nessa relação se estabelece
privilegiadamente a tendência original do ser humano de querer ser soberano
sobre outra consciência, alienando-a como propriedade e tornando-a objeto.
Assenhorando-se de outra consciência, o homem constrói uma tensão recíproca
que se alimenta do fato de que ao colocar o Outro em desvantagem, ele se
sobressai. Ao conseguir dominar a natureza e transformar o mundo, o homem
afirma o seu sujeito transcendente sobre as coisas circundantes e a mulher
passou tamm a ser presa fácil dessa soberania, uma vez que apresenta
ainda a desvantagem biológica relacionada à menor força física e encargos
maternais.
Ao tratar da questão da alteridade, verifica-se que Beauvoir se reporta
ao embate de consciências no estudo de Hegel:
... segundo Hegel, descobre-se na própria
consciência uma hostilidade fundamental em
relação a qualquer outra consciência: o
sujeito só se põe em se opondo: ele
pretende afirmar-se como essencial e fazer
do outro inessencial, o objeto”
110
.
Enquanto não se reconhece a possibilidade de uma outra consciência
ser tamm soberana, vivencia-se a experiência de ser a única a usufruir essa
condição. Tal situação unilateral cai por terra quando se verifica (ou se
reconhece) ser, da mesma forma, um objeto para a consciência de outrem. “No
109
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp.18.
110
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp.17.
91
momento em que o homem se afirma como sujeito e liberdade, a idéia de Outro
se mediatiza. A partir desse dia a relação com o Outro é um drama: a existência
do Outro é uma ameaça, um perigo”
111
.
A categoria do Outro constitui para o ser a própria possibilidade de ver-
se constituído numa outra coisa que não ele mesmo. Enquanto sozinho, o ser
tem apenas a sua consciência como referência existencial. Com a mediação do
outro, o ser humano encontra condições de formular sobre si próprio um juízo
qualquer, como feito a um objeto qualquer, uma vez que é assim - como um
objeto - que o ser humano aparece ao outro. Assim, o outro, além de revelar ao
ser o que ele é, possibilita-lhe constituir-se como novo para si mesmo.
Beauvoir se ocupa do ser existente enquanto sujeito em situação, e
identifica a liberdade como um atributo inerente ao fato de ser sujeito. A mulher
seria apenas potencialmente livre, já que nem sempre a sua condição de sujeito
é afirmada, ao contrário, na maior parte das vezes ela aparece aos outros e a si
próprio como alteridade absoluta.
Sacralizar a essência feminina, como assim pretende a idéia de eterno
feminino, significa acreditar num fetiche histórico, adquirido e inscrito numa
sociedade patriarcal cuja ideologia cumpre ultrapassar. Tal ideologia condiciona
a mulher a “escolher” entre a liberdade de negar sua transcendência ou alienar-
se como objeto, o que vem a ser a mesma coisa.
Uma vez constituído um conceito ideal de comportamento, como o faz
a noção de essência feminina, uma conduta que se distancie desse ideal pode
ser marginalizada pela sociedade, por não se mostrar “conforme” ao modelo.
Assim como qualquer ser humano, a mulher tem que escolher-se, entre viver
exercitando a todo momento sua liberdade existencial ou condicionar-se a
corresponder às expectativas que a tirania social lhe impõe.
111
Idem, pp. 131.
92
2.4.1 - Entre a liberdade e a transcendência
A ausência de escolha experimentada por certas mulheres encobre um
grave equívoco: o entendimento tácito de que a mulher deve aceitar uma
limitação para as suas possibilidades, o que é plenamente refutado por Simone
de Beauvoir, como demonstrado na citação a seguir:
“A mulher não é uma realidade imóvel, e sim
um vir-a-ser, é no seu vir-a-ser que se
deveria confrontá-la com o homem, isto é,
que se deveria definir suas possibilidades. O
que falseia tantas discussões é querer
reduzí-la ao que ela foi, ao que é hoje,
quando se aventa a questão de suas
capacidades; o fato é que as capacidades
se manifestam com evidência quando
realizadas; mas o fato é também que,
quando se considera um ser que é
transcendência e superação, não se pode
nunca encerrar as contas
112
.
E aqui, Beauvoir está falando de ser humano, tanto homem quanto
mulher.
Para Simone de Beauvoir, é interessante que a mulher tenha uma visão
política de sua situação peculiar. Não se pode, por exemplo, equiparar a
gestação com o serviço militar, como às vezes é proposto, com o intuito de
justificar um ônus distintamente masculino de igual valor à gestação. O serviço
militar é prestado em muitos países em sua maioria pelos homens, com a
característica de ser resolvido em um ano
113
.
A vida da mulher, por sua vez, é invadida pela prole, já que dela é
exigida a perpetuação da espécie, muito mais intensamente do que o simples
controle e rigorosa disciplina norteando as ocupações do indivíduo, no caso de
um serviço prestado às forças armadas. É exigida da mulher, além de tempo
112
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp. 72.
113
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp.102.
93
integral de dedicação unido ao desempenho físico, a consolidação de valores
essenciais constituintes da função de mãe.
Simone de Beauvoir atribui à valorização da existência a resposta para
os dilemas da mulher. Cada instante deve estar pleno de ser, de existência, e o
imanente, o “ser-em-si-mesmo”, passaria à categoria de não existente, por não
representar o movimento próprio do seu engajamento à vida. Encerrada em si
mesma, a mulher também não existe em sentido pleno, como projeto e
realização, transferindo ao homem o poder de transcendência. A imanência,
como característica do ser encerrado em seu corpo em oposição à idéia de
subjetividade transcendente, é comentada por Beauvoir na seguinte passagem:
“O ideal da beleza feminina é variável; mas
certas exigências permanecem constantes.
Entre outras, exige-se que seu corpo ofereça
as qualidades inertes e passivas de um
objeto, porquanto a mulher se destina a ser
possuída. A beleza viril é a adaptação do
corpo a funções ativas, é a força, a agilidade,
a flexibilidade, a manifestação de uma
transcendência a animar uma carne que não
deve nunca recair sobre si própria. (...) Mas,
quando a mulher é entregue ao homem
como um bem, o que ele reclama é que nela
a carne esteja presente em sua pura
facticidade. Seu corpo não é tomado como a
irradiação de uma subjetividade, mas sim
como uma coisa empastelada em sua
imanência; esse corpo não deve lembrar o
resto do mundo, não deve ser promessa de
outra coisa senão de si mesmo; precisa deter
o desejo
114
.
A análise existencialista da condição da mulher caracteriza a imanência
feminina como a do ser que permanece em si mesmo, fechado, sem expressão,
sem afirmar o para-si, sem transcendência, como assinala Rachel Gutierrez
115
:
“... o em-si da mulher passa a ser, isto é,
passa a transcender-se não como para-si,
mas como um ser para o outro. À imanência
acrescenta-se a alteridade. Esse ser
114
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp. 256-7.
115
Rachel Gutierrez, feminista brasileira de nossa atualidade, escreveu o livro O feminismo é um
Humanismo. Rio de Janeiro: Antares-Nobel, 1985.
94
imanente, que só se afirma pelo outro e para
o outro, constitui-se a si mesmo como Outro,
um ser secundário, inferior, inessencial. Sua
essência consiste em não ser essencial”
116
.
A ideologia sexista pretende encerrar a mulher na Imanência, que é a
qualidade de um ser que, encerrado em si mesmo, não se coloca como sujeito
em situação. Esta condição inerente a qualquer ser humano de sujeito em
situação, conduz o ser à liberdade de escolher-se a todo o momento e de
lançar-se em sua escolha como um projeto, exercendo a livre responsabilidade
de transcender-se para além de si mesmo.
Como se vê, a imanência é uma condição totalmente contrária àquela
usada para definir o sujeito. Na conclusão de Le déuxieme sexe, é encontrado
de forma resumida o que pode ser considerado o eixo central do que Beauvoir
pensa sobre as idéias de imanência e alteridade: “Pôr a mulher é pôr o Outro
absoluto, sem reciprocidade, recusando contra a experiência que ela seja um
sujeito, um semelhante”
117
.
Na verdade, para Beauvoir a imanência não deveria ser encarada como
característica exclusivamente feminina. Todo sujeito é imanência e
transcendência, como ela assinala em Le deuxième sexe:
“... o paternalismo, que reclama a mulher no
lar, define-a como sentimento, interioridade e
imanência; na realidade, todo existente é, ao
mesmo tempo, imanência e transcendência;
quando não lhe propõem um objetivo,
quando o impedem de atingir algum, quando
o frustram em sua vitória, sua
transcendência cai inutilmente no passado,
isto é, recai na imanência; é o destino da
mulher no patriarcado”
118
.
Nessa citação, Beauvoir deixa claro que a falta de projeto próprio é o
que condiciona o ser à imanência. O não constituir-se e ainda, seguir os
116
GUTIERREZ, Rachel. O Feminismo é um Humanismo, pp.18.
117
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp. 384.
118
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp. 385.
95
caminhos de uma essência alheia a si próprio é o fator desnorteante da mulher
que a impede de constituir-se como consciência livre.
Simone de Beauvoir chama a atenção para o fato de que, ao contrário
do homem, a mulher não se constituiu como sujeito. Beauvoir mostra em Le
déuxime sexe que a inferioridade da condição feminina é um fato observado
historicamente, quando escreve que:
“... desde os primeiros tempos do
patriarcado, julgaram útil manter a mulher em
estado de dependência; seus códigos (dos
homens) estabeleceram-se contra ela; e
assim foi que ela se constituiu
concretamente como Outro”
119
.
A sociedade organizou-se a partir desta carência feminina de
afirmação. Como Beauvoir observa: “É a existência dos outros homens que tira
o homem de sua imanência e lhe permite realizar a verdade de seu ser, realizar-
se como transcendência, como fuga para o objeto, como projeto”
120
.
Simone de Beauvoir assim caracteriza a situação da mulher:
“Ela (a mulher) deve assegurar a monótona
repetição da vida em sua contingência e
facticidade: é natural que ela própria repita,
recomece, sem jamais inventar, que o
tempo lhe pareça girar sobre si mesmo
sem conduzir a nenhum lugar; ocupa-se
sem nunca fazer
nada; aliena-se, pois no
que tem
; essa dependência em relação às
coisas, conseqüências da dependência em
relação aos homens, explica sua prudente
economia, sua avareza. Sua vida não é
mais dirigida para fins; absorve-se em
produzir ou manter coisas que nunca
passam de meios: alimento, roupas,
residência; são intermediários inessenciais
entre a vida animal e a livre existência; o
único valor ligado ao meio inessencial é a
utilidade; é no nível do útil que vive a dona
de casa e ela só se vangloria de ser útil a
seus parentes”
121
.
119
Idem, pp. 231.
120
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 1, pp. 231.
121
BEAUVOIR, Simone de. Le déuxieme sexe, vol 2, pp. 430.
96
O estado de imanência é caracterizado como um fechar-se em si
mesmo. No caso da mulher, não houve espaço nem permissão para que ela se
expandisse em projeto. O homem conquistou este espaço. A mulher não.
Nos termos de Simone de Beauvoir, a mulher “chafurda”, “encerra-se
na imanência”, ficando sua existência restrita à facticidade, naufragando o
desejo de realizações em flutuações de uma interioridade não pronunciada, não
colocada, e assim, a mulher fica submetida ao papel inessencial de Outro.
Qual seria o sentido que Simone de Beauvoir atribui à existência
feminina, quando utiliza a expressão “chafurda na imanência” tantas vezes?
Ao utilizar tal expressão, o que a incomodava tanto que a levou a extremar sua
crítica com tamanha força em sua expressividade? Beauvoir percebia que algo
acontecia com a mulher que a fazia chafurdar na imanência.
Se formos buscar no dicionário o significado de chafurdar, entre outros
sentidos, encontraremos o de atolar-se. Imanente tem a descrição de ser a
qualidade de algo que tem em seu agente o seu próprio fim. Portanto, se
quiser desdobrar esta frase, diria que a mulher atola-se em si mesma.
Para muitos, a atitude crítico-reflexiva de Simone de Beauvoir sobre a
condição feminina não faz sentido, uma vez que a mulher vem cumprindo,
através dos tempos, a “sua função”, quer dizer a função que a ela está
reservada no equilíbrio e bem-estar do cotidiano social. Em nossos dias é
freqüente ouvirmos notórias afirmações de que homens e mulheres têm
determinados papéis; esses papéis seriam específicos e exclusivos de cada
sexo. Segundo essa perspectiva, existiriam, portanto, essências pairando no ar,
tanto de um sexo quanto de outro.
Com efeito, o pressuposto da realidade dessas essências não se
constituiria motivo para questionamentos se não estivéssemos situando nosso
estudo dentro de uma área do conhecimento que tem por princípio a existência
radicalizada em problema. “Todo ser humano concreto sempre se situa de um
modo singular”
122
. E já vimos também que a situação vivida pela mulher,
enquanto sujeito social, não está possibilitando a sua plena realização como ser
existente. Logo nas primeiras páginas de Le deuxième sexe, Beauvoir lança a
122
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 12.
97
assertiva: “A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação
lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade”
123
.
Não é fácil, à primeira vista, assimilarmos de maneira clara a completa
significação dos termos que Beauvoir utiliza em suas definições. Ao que ela
estaria se referindo quando usa o termo negativo? Uma das definições
contidas num dicionário da língua portuguesa, negativo tem como significação
algo de resultado contrário ao que se espera, resultado contraproducente. Se
substituísse o termo na frase de Beauvoir obteria a expressão “a mulher
aparece como um resultado contraproducente”. Se por ventura, preferir
pesquisar o termo negação, em busca de um sentido original, obtem-se no
mesmo dicionário a definição de que é a proposição em que se considera
inexistente a relação entre os termos. Dessa breve divagação sobre os termos,
pode-se pensar que Beauvoir observa que a mulher está inexistente no universo
do ser.
Mas, obviamente sabemos que não é essa idéia que marca a posição
da filósofa. Beauvoir denuncia este estado de coisas na existência feminina e
pretende ver atribuída à mulher, como já observado, a qualidade inerente a
qualquer ser humano, que é a de sujeito em situação.
A designação de ser imanente e ainda a expressão chafurda na
imanência são exaustivamente utilizadas pela autora para caracterizar a
situação mesma a que se opõe, que é aquela de não liberdade da mulher em
existir plenamente, não vendo asseguradas as suas potencialidades
existenciais. Em Le deuxième sexe, extraímos um trecho em que a filósofa
afirma que:
“Todo indivíduo que se preocupa em
justificar sua existência, sente-a como uma
necessidade indefinida de se transcender.
Ora, o que define de maneira singular a
situação da mulher é que, sendo, como todo
ser humano, uma liberdade autônoma,
descobre-se e escolhe-se num mundo em
que os homens lhe impõem a condição de
Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à
imanência, porquanto sua transcendência
123
Idem, pp. 14.
98
será perpetuamente transcendida por outra
consciência essencial e soberana”
124
.
Nessa citação há vários pontos a serem considerados, e para melhor
nos aproximarmos do sentido beauvoireano do termo imanência, nos
serviremos da análise desse excerto.
A princípio, a primeira afirmação “todo indiduo que se preocupa em
justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se
transcender”, já caracteriza o indivíduo como sujeito em situação que se lança
em projeto com o intuito de transcender-se e constituir-se. A seguir, a filósofa
formula a assertiva de que “os homens lhe impõem a condição de Outro”, [...]
“torná-la objeto, votá-la à imanência”. Esta condição de Outro é de um Outro
não sujeito, não havendo, portanto, nenhuma relação de intersubjetividade.
Este Outro tem a função apenas de constituir a alteridade (oposição) ao Um,
para que este se afirme como Absoluto.
O ser humano é consciência absoluta de si, acreditando-se soberano
entre os outros seres. Esta crença de soberania acontece no momento em que
o homem se percebe no mundo, em situação. Quando a facticidade lhe aponta
outros seres soberanos, outras consciências absolutas, é então que o ser se
constitui como o Um soberano. Se não fosse assim, não haveria a
necessidade, sendo tal necessidade um apelo em constituir-se, diferenciar-se,
originando no Outro a alteridade que lhe opõe em complementação. O ser
viveria mergulhado na natureza, misturando-se a ela. Mas o que faz com que o
homem radicalize seu ser na existência é a presença do Outro. O embate das
consciências exige que cada uma delas reafirme seu projeto, lançando-se em
antagonismos que fomenta entre elas as infinitas constituições de suas
consciências posicionais. Esta percepção da existência como um contínuo
movimento do ser em vir-a-ser, reservando ao devenir o único projeto autêntico
de realização possível, constitui todos os seres como sujeitos livres,
responsáveis únicos de si mesmos, fazendo-se a todo instante em oposição ao
mesmo, que é em que se define o ser outro. Como podemos notar, a
discussão que gira em torno da problemática existencial é realizada sem nem
124
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 31.
99
percebermos que existem sexos diferentes. A categoria do ser humano é
única, quando vista sem tendências conceitualistas. Quando muito, a título de
facilitar a setorização de um estudo, poderemos nomear o ser existencial em ser
humano fêmea e ser humano macho. Assim como é feito com os bebês ainda
na sala cirúrgica, que no breve momento de seu nascimento, a definição de seu
sexo não implica maiores considerações, a não ser uma definição técnica.
Observa-se na existência da mulher um paradigma: o ser mulher.
Claro está que esta situação paradigmática é beneficiada pela acomodação
social em que vive oprimida. Vivendo a opressão, aprende a oprimir, e sua
história paradigmática se observará em sua descendência. A mulher não
espera a realização singular do seu ser, mas a todo custo busca a realização de
sua história paradigmática, constituída pela cultura a que pertence.
Na verdade, homens e mulheres dividem o mesmo espaço situacional:
profissão, classe social, ideais políticos e econômicos, associações, etc., não se
explicando as segregações por valores morais e\ou econômicos. Não há como
proceder à separação entre homens e mulheres, que buscam entre si a
satisfação original de seus desejos e se casam, formando as células
fundamentais da sociedade, que são as famílias.
Tentando fazer no plano histórico o mesmo movimento que os homens
viveram tempos atrás, na luta pela transcendência em relação ao mundo, a
mulher busca ainda hoje a conquista da própria liberdade e da estruturação de
seus direitos, tentando assumir todos os riscos que implicam em não renunciar
à sua liberdade e transformar-se em coisa, oprimida e subjugada, pelo ser
masculino, em seus projetos e possibilidades.
A problematização da questão feminina, no mundo contemporâneo, foi
um dos objetivos da obra de Simone de Beauvoir, cujo perfil filosófico embasa a
presente tese. Tal vertente filosófica compreende a existência como problema,
radicalizando o seu significado, enfatizando o empenho do ser em engajar-se
num projeto de vida, capaz de buscar sentido, apesar de e pela angústia
envolvida no processo de busca de sentido para a própria existência. A partir
dos fundamentos existenciais de Simone de Beauvoir, a questão da mulher
toma o caráter de estudo filosófico, pois até então, a mulher não era estudada
como um ser autônomo, com o potencial de transformação inerente a qualquer
ser humano. Beauvoir aplica a terminologia filosófica na problemática da
100
diferenciação sexual, inaugurando o pensamento filosófico contemporâneo
acerca do surgimento da mulher no mundo da vida, conforme a citação que
abre o segundo volume de Le deuxième sexe: “Ninguém nasce mulher, torna-se
mulher”
125
.
Esta afirmação de Simone de Beauvoir desmonta de início a idéia de
que cada mulher é o resultado da essência original que abarca o conceito de
eterno feminino. A propensão de isolar-se num conceito - o de eterno feminino
– a caracterização do ser feminino, atribui ao conceito uma essência, lhe
insuflando o bojo da existência. Porém, devemos observar que a existência
conceitual, neste caso está precedendo a existência do ser mesmo a que tal
atribuição é feita, que é a mulher! Conceituada pelo eterno feminino, a mulher
está existindo antes mesmo de seu surgimento no mundo. É exatamente a esta
condição de submissão ao conceito que o existencialismo beauvoriano se opõe!
O ser humano é necessariamente livre para constituir-se a todo o momento, não
podendo limitar-se a um sistema fechado de conceituação, que determine de
alguma forma a realização de suas possibilidades infinitas. Infinitas porque
surgidas a cada instante, a todo instante. O máximo que poderia admitir como
anterior ao surgimento do ser seria a realidade humana - a condição humana de
existência.
2.5 – O conceito dado de feminino eterno
Na esteira do pensamento que fecha a discussão anterior, é possível
concluir que a partir do ponto de vista da filosofia existencialista, o ser humano
deve ser visto como um projeto que se engaja na realização de seus possíveis e
tenta resolver-se entre angústias e desejos. A realidade humana seria anterior
ao surgimento do ser e, por conseguinte, o que precede a existência é o nada,
assim como o projeto é o movimento em que o existente se lança ao mundo,
sem nenhum prenúncio de anterioridade ontológica. Ora, se for levado em
conta que a idéia de eterno feminino está apoiada na noção de essência, é
125
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp.13.
101
evidente que essa idéia é incompatível com a visão existencialista de Simone
de Beauvoir.
Simone de Beauvoir inscreve-se no quadro da filosofia existencialista
contemporânea, cujo objeto é o ser humano como existente, compreendendo tal
existência como problema radical. No seio deste problema, o ser empenha-se
em buscar um sentido e um projeto para sua vida. A filosofia existencial toma
como objeto de estudo a problemática humana de busca de sentido à própria
existência, sendo este sentido caracterizado como um mergulho do ser num
projeto que, a despeito de gerar angústia, sempre o empurra adiante na
conquista de sua realização. Sendo assim, pensamos que um estudo sobre a
realização da mulher como ser existente não poderia se dar em outro campo.
Pensar a mulher significa, em primeiro lugar, segundo a filósofa, refletir
sobre a singularidade de sua situação, a de ser mulher: “Se quero definir-me,
sou obrigada inicialmente a declarar: sou uma mulher. Essa verdade constitui o
fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação”
126
.
Aparentemente óbvia, essa afirmação sugere que, ao contrário do que
é necessário para uma mulher, o homem não precisa declarar que é um
indivíduo de determinado sexo, porque ser homem é uma condição natural e
que, de resto, nomeia e define toda a espécie humana, como tamm o gênero
masculino. Porém, para o sexo feminino é necessária a distinção, como se
fosse imputada à mulher uma limitação aparentemente negativa
127
.
Beauvoir argumentou em sua obra que dentro do mundo social existem
aqueles que ocupam a posição não específica do “essencial”, do universal, do
humano, e aqueles que são definidos, reduzidos e marcados por sua diferença
(sexual, racial, religiosa) em relação à norma. As realizações dos que são
assim definidos - como o Outro - nem sempre podem ser menosprezadas;
frequentemente elas são até apreciadas, mas sempre em seu lugar periférico: o
lugar de sua diferença. Assim, há “história” e “história das mulheres”, e a
história das mulheres - à diferença da história militar, por exemplo - é localizada
fora do que é considerado história de fato.
Observada dentro do contexto maior que compõe a história da
humanidade, a história das mulheres toma o aspecto de curiosidade, de fatos
126
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp.13-14.
127
Idem, pp. 13-14.
102
distintos não conectados ao conjunto maior, e que conta a história de um
gênero cujo movimento próprio não abala nem interfere no progresso do
homem.
A apreciação dessas considerações remete à iia inicial de pensar a
diferença de realização ontológica verificada entre homem e mulher. É
perfeitamente claro que diferenças entre os sexos existem, porém, alicerçando
essa discussão nos fundamentos da filosofia existencialista, o objetivo maior é
afirmar que tais diferenças de modo algum deveriam influenciar a dimensão da
realização ontológica de cada sexo.
O conceito de eterno feminino por vezes quer valer-se das diferenças
biológicas encontradas entre os sexos para tentar legitimar sua existência, no
sentido de se fundamentar na necessidade de definir uma categoria de ser
vulnerável biologicamente (a mulher).
A discussão que se segue apresentará os argumentos da biologia que
foram utilizados na tentativa de sustentar a eternização do conceito de
“feminino”. Será mostrado que os caracteres sexuais femininos são
identificados como “fardos existenciais”, uma vez que suas irregularidades
funcionais obrigam a mulher a lembrar constantemente de seu corpo, sendo
esta particularidade apontada como constituinte de inferioridade feminina ou
ainda de sua negatividade.
2.6 - A biologia e o conceito de feminilidade
A noção de essência feminina distingue o ser feminino do ser
masculino, atribuindo ao corpo feminino papel preponderante na constituição
desta diferença. A mulher não é um homem. Sua negatividade instalar-se-ia,
por ironia, no útero, nos ovários e nas glândulas, que lhe influenciariam o
pensamento e o comportamento de forma negativa, fato que obviamente não se
repetia por efeito da anatomia masculina, com seus hormônios e testículos. A
objetividade do mundo seria, pois, uma prerrogativa da compreensão
masculina, enquanto a mulher estaria inelutavelmente condenada à
103
subjetividade, a uma incompletude. Beauvoir expõe tal pensamento no excerto
a seguir:
“... obviamente existem difereas genéticas,
endócrinas, anatômicas entre a fêmea
humana e o macho: mas não bastam para
definir a feminilidade: esta é uma construção
cultural e não um dado natural...; ... ninguém
nasce mulher, as pessoas se tornam
mulher...; ninguém nasce homem, as
pessoas se tornam homem. Também a
virilidade não é dada desde o início. Todas
as ideologias masculinas visam justificar a
opressão da mulher; esta é condicionada
pela sociedade de maneira a consentir”
128
.
Em sua contestação à idéia de eterno feminino, Simone de Beauvoir
recorre aos dados da biologia, por se tratar da disciplina encarregada da tarefa
de caracterizar cada sexo.
Porém, é muito difícil definir-se exatamente o que é ser fêmea, já que a
relação que cada organismo tem com o próprio aparelho sexual é bastante
variável. Nem mesmo a diferenciação das células gametas afeta diretamente o
organismo como um todo. Gametas e gônadas não nos fornecem subsídios
suficientes para que estudemos a singularidade do organismo que representam
e há, também, outros fatores a serem considerados no que se refere à
constituição da função de fêmea, assim como da função de macho. É no
organismo como um todo, por conseguinte, que devemos procurar a expressão
de cada uma dessas funções.
A reprodução, considerada em organismos complexos, apresenta uma
dupla atividade: a de perpetuar a espécie e a de criar novos indivíduos. É aqui
que começa a erigirem-se as diferenças entre os sexos, porque manter e criar
se manifesta como os dois momentos marcantes da diferenciação sexual. No
desempenho dessas atividades, verificam-se as mudanças que ocorrem nas
fêmeas - e somente nelas - cujo organismo se adapta totalmente às funções de
procriar e criar. Fica, pois, reservada à fêmea a tarefa de servir à espécie, na
geração e renovação dos indivíduos.
128
BEAUVOIR, Simone de. Balao Final, pp. 486.
104
No momento referente à manutenção da espécie, os dois sexos
coordenam-se na atividade e passividade dos movimentos biológicos. Quando
um se mostra mais ativo, é porque no outro encontrará a passividade
correspondente e vice-versa. Em conjunto, os dois sexos representam
aspectos diversos da vida da espécie. Sua oposição não se encerra
simplesmente na atividade e passividade, porém é no ato de criar o novo
indivíduo que os sexos se dividem em funções, como já dito anteriormente.
Tanto na espécie humana quanto em outras espécies, nasce quase o
mesmo número de machos e fêmeas. Seu desenvolvimento também é
semelhante e as diferenças que determinam secundariamente um e outro sexo,
isto é, diferenças que se estabelecem na puberdade, derivam dos mesmos
compostos hormonais. No entanto, não são essas fórmulas químicas, nem
tampouco as propriedades anatômicas, que definem a mulher como fêmea.
Simone de Beauvoir procura desnudar as velhas idéias de precedência
e superioridade em relação aos dois sexos, demonstrando que essas iias não
encontram eco na biologia, que constitui a divisão dos sexos sem qualquer
noção discriminatória pré-concebida. Escreve a filósofa:
“A biologia constata a divisão dos sexos,
mas embora imbuída de finalismo, não
consegue deduzí-la da estrutura da célula,
nem das leis da multiplicação celular, nem de
nenhum fenômeno elementar. (...) A
reprodução efetua-se então ou por auto
fecundação ou por fecundação cruzada. (...)
Como quer que seja, essas noções de
superioridade de um sistema sobre outro
implicam, no que concerne à evolução,
teorias das mais contestáveis. Tudo o que se
pode afirmar com certeza é que esses dois
modos de reprodução coexistem na
Natureza, que realiza um e outro a
perpetuação das espécies e que, tal qual a
heterogeneidade dos gametas, a dos
organismos portadores de gônadas se
apresenta como acidental. A separação dos
indivíduos em machos e fêmeas surge, pois,
como um fato irredutível e contingente”
129
.
129
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 37-8.
105
Macho e fêmea humanos não podem ser analisados por
comportamentos que não levem em conta a sua vincia no mundo, que é o
que os capacita a desenvolver e usar suas possibilidades. O ser humano, tanto
homem quanto mulher, caracteriza-se com um vir-a-ser, não passível de
definição por atitudes essenciais, cristalizadas por preconceitos através dos
tempos.
A aventura existencial da mulher não deve ser influenciada ou mesmo
traduzida por seu sexo, funções biológica ou social ou passado histórico
distinto. Como o homem, ela conserva a característica original do ser humano
que possui a liberdade de transcender-se, embora a filosofia não se recuse a
aceitar os fatos que, em definitivo, diferenciam os sexos:
“A mulher é mais fraca do que o homem; ela
possui menos força muscular, menos
glóbulos vermelhos, menor capacidade
respiratória; corre menos depressa, erguem
pesos menos pesados; não há quase
nenhum esporte em que possa competir com
ele; não pode enfrentar o macho na luta. A
essa fraqueza acrescentam-se a
instabilidade, a falta de controle e a
fragilidade de que falamos: são fatos”
130
.
Mesmo diante de tais asserções, Simone de Beauvoir considera que
tais fatos não têm sentido em si, acrescentando:
“Desde que aceitamos uma perspectiva
humana, definindo o corpo a partir da
existência, a biologia torna-se uma ciência
abstrata, no momento em que o dado
fisiológico (inferioridade muscular) assume
uma significação, esta surge como
dependente de todo um contexto; a fraqueza
só se revela como tal à luz dos fins que o
homem se propõe, dos instrumentos de que
dispõe, das leis que se impõe. [...] é preciso
que haja referências existenciais,
econômicas e morais para que a noção de
fraqueza possa ser concretamente definida”
131
.
130
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 72-3.
131
Idem, pp. 73.
106
As possibilidades existenciais de cada sexo não devem ser medidas
segundo os padrões impostos pela representação social. Isto significa que não
são os padrões sociais que definem e determinam a situação específica de
cada existente. Ao contrário, as possibilidades da espécie humana (homem ou
mulher) são infinitas. Portanto, é no seio da convivência humana que ocorre a
realização ontológica do ser humano, não apenas como ser vivo,
biologicamente ativo. O corpo da mulher marca decisivamente sua situação,
entretanto, segundo a filósofa, isso não pode ser considerado uma questão
fechada.
A mulher é o corpo, mas não apenas ele; é tudo o mais que através de
seu corpo ela pode alcançar, pelo seu constante movimento de lançar-se num
futuro indefinido e encontrar possibilidades que seu corpo lhe condiciona, corpo
enquanto coisa, mas cujas possibilidades não se podem restringir puramente ao
corpo.
O corpo, abrigando um sujeito com realidade ontológica, traça a
compreensão da trajetória individual do ser, até mesmo porque pode resumir
fatos que não dizem respeito diretamente a esta trajetória individual (como é o
caso do ciclo menstrual na mulher, por exemplo).
Existem atividades físico-químicas do organismo feminino que visam,
única e exclusivamente, à manutenção da espécie, que em nada contribuem
para a vida do indivíduo. É claro que no homem tamm se verifica o
movimento biológico de perpetuação da espécie. Na mulher, todavia, pela
atividade hormonal de tal movimento, aquele não ocorre sem submeter o
indivíduo a estas constantes transformações constitutivas do ciclo de
reprodução. São conhecidos os transtornos ocasionados pelo ciclo menstrual
na mulher. É na mulher que ocorre a gestação e é a mulher que amamenta.
Conseqüentemente, é a mulher que se submete à procriação.
No período conhecido como pré-menstrual, no entanto, é que a mulher
percebe seu corpo como algo alheio a si mesma, em razão das perturbações
que vivencia. A mulher tende a ver o próprio corpo como um fardo que tem de
suportar, que mensalmente lhe aprisiona com dores e desconfortos, cuja origem
e cujo objetivo, não controla por sua conta.
Em torno dos cinqüenta anos ocorre a menopausa, acompanhada de
transtornos fisiológicos e psicológicos. Esse é o período no qual a mulher se vê
107
finalmente livre da função de fêmea, sem deixar de ser feminina. Segundo
Beauvoir, é quando a mulher coincide consigo mesma
132
.
Simone de Beauvoir esclarece ser importante o estudo desses fatores
fisiológicos da diferenciação sexual, já que, de acordo com suas teorias, o corpo
é o instrumento de percepção e domínio do mundo. Nesse sentido, concorda
com a posição de Sartre quando ele escreve que “o corpo é a forma contingente
que a necessidade de minha contingência assume
133
. O corpo abriga a
consciência do ser, sua percepção em estar no mundo (consciência pré-
reflexiva de si) e ainda os modos sensíveis de apreensão do mundo. Uma vez
que o corpo abriga a consciência como capacidade de perceber-se como
realidade humana, é através do corpo - da percepção de si como realidade
humana - que o ser percebe o mundo. Por conseguinte, a apreensão que o
sujeito faz do mundo depende do modo como o seu corpo se expressa, isto é,
como esta forma contingente está assumindo a facticidade da situação com que
surgiu no mundo.
Ainda assim, entretanto, a filósofa ressalta que tal modo de apreensão
não deve significar um limite ou, ainda, uma definição que justifique a hierarquia
dos sexos e que explique a condição da mulher como “Outro”
134
. O ximo
que se pode admitir é que a mulher vive o corpo muito mais intensamente do
que o homem. A mulher leva muito mais tempo discutindo suas preocupações
físicas. Ela não conhece o esquecimento inconseqüente do corpo, uma vez que
todos os meses precisa administrar as mudanças hormonais de seu ciclo
biológico.
A atribuição de uma suposta natureza intrínseca, essencial, de
fraqueza e incapacidade, denominada “natureza feminina” ou “eterno feminino”
não é, portanto, comprovada através dos dados oferecidos pela biologia. Aliás,
Simone de Beauvoir rejeita veementemente qualquer tipo de argumentação
sobre a condição da mulher que parta da premissa da existência da idéia de
“eterno feminino”: “é pois tão absurdo falar da mulher em geral como do homem
eterno”
135
.Essa organização estabelecida de idéias dificulta de início, a
expectativa de pensar o problema da mulher segundo a moral existencialista,
132
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 68.
133
SARTRE, Jean-Paul. El ser y la Nada, pp. 393.
134
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp.76.
135
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 454.
108
que pressupõe que o sujeito (inclusive a mulher) se coloca no mundo como um
projeto, realçando a liberdade de transcender-se e não de viver a simples
contingência mundana, muitas vezes determinada por interesses que não são
os seus próprios.
2.7 - Simone de Beauvoir frente à idéia de “eterno feminino”
Nas discussões anteriores foram evidenciadas as considerações
acerca da perspectiva existencialista sobre a realização humana, especialmente
em se tratando da condição feminina de realização e tamm as considerações
que a biologia remete à diferenciação sexual. Foi mostrado que ao longo da
história, a mulher foi caracterizada como ser diferente e inferior, inclusive
recebendo uma definição alusiva a sua condição peculiar de mulher, que é o
conceito de eterno feminino.
Esta idéia de conceituação estanque, sugerindo uma determinação
prévia da existência feminina é exatamente o que Simone de Beauvoir refuta
em Le deuxième sexe. De acordo com a linha filosófica que foi seguida nesta
análise da situação feminina, parece que o que pretende a idéia de “eterno
feminino” é enclausurar a mulher num conceito que nega a angústia do nada,
como precedente à angústia do ser. Veremos agora o porquê desta afirmação.
Uma vez constituída a idéia de eterno feminino, podemos partir do
princípio de que já está existindo um ser, aquele já definido pelo conceito (o de
eterno feminino). Dessa forma, não haveria o espaço vazio (o nada) entre o
sujeito e a escolha desse sujeito em constituir-se. Não havendo a possibilidade
de escolher-se não há a angústia da escolha. Dessa forma o sujeito poderia
“deslizar” suavemente (sem escolhas angustiantes) para a assunção de uma
“escolha”. Entretanto, esta “escolha” não foi constituída por seu projeto, como
resultado do seu engajamento, e sim de algo que já existia – o conceito de
eterno feminino. Aceitando esta pré-definição conceitual, o ser está agindo de
109
-fé
136
, pois está negando a si mesmo a responsabilidade de constituir-se e
realizar o movimento de desvelamento do mundo como resultado de seu próprio
engajamento, como conseqüência natural de seu empreendimento em existir.
Em outras palavras, ocorre a demissão ontológica, que implica na recusa da
liberdade de escolher ser.
Para Simone de Beauvoir, a existência torna-se a única possibilidade
de viver e tal existir implica em estar inserido no mundo dado. Esta vivência
existencial tem para ela a dimensão de responsabilidade de atos em que o
sujeito precisa agir sem o descomprometimento de suas potencialidades; “A
meu ver, não bastava pensar somente, nem viver somente; eu só estimava
inteiramente as pessoas que pensavam a sua vida”
137
.
Para Beauvoir, viver não se resume em representar papéis já definidos
pela situação existencial do indivíduo, mas sua expectativa vai além da simples
repetição, realizando-se no empreendimento de pensar o existir. Nesse existir,
o projeto existencial de cada indivíduo deve estar envolto em possibilidades de
realização que, por sua vez, devem ser livremente escolhidas.
A adoção do olhar existencialista infunde no pensamento de Beauvoir a
plena consciência de um futuro em liberdade:
“A perspectiva que adotamos é a da moral
existencialista. Todo sujeito coloca-se
concretamente através de projetos como
uma transcendência; realiza sua liberdade
pela sua constante superação em direção a
outras liberdades; não há outra justificativa
da existência presente senão sua expansão
em direção de um futuro indefinidamente
aberto”
138
.
A mulher representa para a filósofa possibilidades tão amplas quanto
as do homem, e nada justifica, ao seu entender, que tais possibilidades
136
Má-fé, segundo a conceituação existencialista, caracteriza a situação em que o sujeito não assume a liberdade de
escolher-se e constituir-se, preferindo a condição passiva de objeto. Este conceito será objeto de estudo do capítulo
IV, quando serão tratados os conceitos de liberdade e escolha ontológica.
137
BEAUVOIR, Simone de. Memoires d’une jeune fille rangée, pp. 309.
138
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 31.
110
diminuam pelo simples fato de ser mulher: “... a meus olhos, homens e
mulheres eram igualmente pessoas e eu exigia exata reciprocidade”
139
.
Não se trata apenas de defender uma questão feminista, de
reivindicação de igualdade entre os sexos, mas Simone de Beauvoir postula o
reconhecimento da mulher como ser, como sujeito afirmado em sua existência,
e não apenas como um complemento do homem e da sociedade. A questão da
diferenciação sexual para Beauvoir é considerada como sendo posterior à
própria condição do ser como sujeito livre (homem ou mulher). A
diferenciação deve ser constituída por escolha, no desdobramento de sua
existência. É mais legítimo observar no sujeito a integridade de seu ser como
existente possível, caracterizado, principalmente pela inediticidade de seu vir-a-
ser, evitando estereótipos sociais que limitam suas realizações.
Beauvoir desenvolve esse pensamento em Balanço Final, conforme
citação a seguir:
“Ora, desde o berço, e mais ainda daí em
diante, os pais esperam coisas diferentes da
menina e do menino. É claro que tal
expectativa não é um estado de alma:
traduz-se em comportamentos”
140
.
Beauvoir prossegue sua observação utilizando-se do estudo de Robert
J. Staller, que analisou especificamente o transsexualismo masculino.
“Ele afasta decididamente a idéia
desacreditada de que a masculinidade e a
feminilidade são desde o início produzidas
biologicamente nos seres humanos; as
inúmeras experiências naturais
demonstraram que os efeitos da
aprendizagem, que começa com o
nascimento, determinam a maior parte da
identidade do sexo”.
Beauvoir conclui ainda que a diferenciação dos sexos é estimulada
pelos pais a cada momento e nas mais diversas situações, pois “um de seus
139
BEAUVOIR, Simone de. Memoires d’une jeune fille rangée pp. 263.
140
BEAUVOIR, Simone de. Balanço Final, pp. 489.
111
maiores medos é ter um homossexual como filho ou uma filha masculinizada”
141
.
A existência implica para o indivíduo o pleno exercício da liberdade de
responsabilizar-se por suas escolhas, sem “pendurar-se”, por assim dizer, em
uma idéia que o livre de tal liberdade de ser.
Na verdade, todo indiduo aspira colocar-se no mundo como
transcendência, inclusive a mulher. O problema de cada um, entretanto,
consiste em ver que sua situação perde o caráter fundamental de liberdade
quando se lhe impõe a condição de Outro, pretendendo torná-lo um objeto, em
que outra consciência será soberana. No caso específico da mulher, esta
situação é agravada: a mulher conflita-se entre a sua reivindicação original de
sujeito e as exigências de uma situação que a coloca como inessencial, como
afirma Beauvoir:
“O drama da mulher é esse conflito entre a
reivindicação fundamental de todo sujeito
que se põe sempre como o essencial e as
exigências de uma situação que a constitui
como inessencial. Como pode realizar-se um
ser humano dentro da condição feminina?
Que caminhos lhe são abertos? Quais
conduzem a um beco sem saída? Como
encontrar a independência no seio da
dependência? Que circunstâncias restringem
a liberdade da mulher e quais ela pode
superar? São essas algumas questões
fundamentais que desejaríamos elucidar.
Isso quer dizer que, interessando-nos pelas
oportunidades dos indivíduos, não as
definiremos em termos de felicidade e sim
em termos de liberdade”
142
.
A proposta do existencialismo beauvoireano neste caso é de investigar
as possibilidades de realização feminina, dentro desta contextualização em que
se encontra, argumentando sobre as suas reais possibilidades nesse seu
“destino” de ser mulher.
O estereótipo misterioso de “essência feminina” ainda paira no ar, e
ainda é arrematado pela idéia de que nem todas as mulheres conseguem
141
BEAUVOIR, Simone de. Balanço Final, pp. 489.
142
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 31.
112
participar de tal definição, não correspondendo, desta forma, ao que se exige de
seu desempenho existencial. Mas em que se constitui tal essência, não existe
nenhuma definição coerente.
Conforme Beauvoir, não há mais sustentação para os argumentos
essencialistas, que definem a mulher segundo tal essência ou de acordo com
definições estritamente nominalistas, esvaziadas de conteúdo que descrevem a
mulher apenas como sendo “a fêmea do homem”, sem levar em conta as
peculiaridades situacionais que vão além das funções reprodutoras.
Assim, todo ser humano concreto situa-se de modo singular, levando
em conta as características próprias da condição em que veio ao mundo, tal
como o sexo e/ou a perfeição física, entre outras, a formação do caráter
tamm depende dessa situação vivida. Portanto, assegurar que uma noção de
feminilidade bastaria para definir a mulher em sua trajetória, é não levar em
consideração tais singularidades.
Na verdade, as mulheres seriam as melhores indicadas para esclarecer
a questão do eterno feminino, já que a sua situação as predispõe mais a buscar
tal esclarecimento. Ainda assim, nem todas detêm o privilégio de refletir sobre o
seu lugar no mundo, somente “certas mulheres” preocupam-se realmente em
provar o que são, em não apresentar a própria feminilidade de maneira objetal.
Todavia, o que significa, na verdade, a noção de eterno feminino, que
parece estar subentendida como uma idéia-força, tal como um axioma que não
precisa ser verificado, como nas matemáticas? Em princípio, não podemos
recorrer à tautologia de dizer que eterno feminino é ele próprio, o eterno
feminino. Tamm não é suficiente apreender essa noção através de sua
serventia histórica, de seu conteúdo pragmático e ideológico, como sugere
Rachel Gutierrez:
“A idéia de uma essência feminina eterna,
igual a si mesma, imutável através dos
séculos, interessa à sociedade patriarcal, cujo
discurso dominante é o discurso do sexo
dominante. É, portanto, do ponto de vista
masculino, que tal essência é definida e
estabelecida como modelo, ou estereótipo, ao
113
qual as mulheres, mais ou menos
conscientemente, procuram adaptar-se”
143
.
Tal modelo, de acordo com Beauvoir, não é determinado pela biologia
nem inerente à natureza feminina, mas sim fruto da educação e da sistemática
inferioridade imposta pelo patriarcado, como um modelo ideológico criado pelo
homem e dele decorrente, como aduz Gutierrez:
“O papel sexual, o temperamento e o
estatuto da mulher são determinados pela
ideologia que, para perpetuar o sistema
patriarcal, utilizando todos os meios ao seu
alcance - mitos, publicidade, educação,
legislação, etc. - faz crer que o status quo da
dominação masculina não é histórico, mas
natural”
144
.
A asserção de Beauvoir em Balanço Final completa esta idéia, quando
escreve, referindo-se ao Movimento de Libertação das Mulheres, que: “O que
essas mulheres reivindicam não é uma emancipação superficial, mas a
‘descolonização’ da mulher, porque se consideram ‘internamente colonizadas’”
145
.
O “eterno feminino” como fato natural é, segundo Beauvoir, a questão
que deve ser desconstruída. Tal idéia ainda é observada como sendo definida
por um conceito metafísico, preconceituoso e ilegítimo, que imputa à mulher
uma natureza universal e a-histórica, desvinculada de sua singularidade
pessoal, histórica, de sentido e de projeto de vida. Uma noção de imanência
para a natureza feminina é completamente injustificável; essa noção se
relaciona com a dominação histórica masculina. Seria como uma idéia
pertencente ao platônico Mundo das Idéias, em que a mulher tem que participar
de tal idéia no mundo sensível, submetendo-se à aceitação de um conceito
pronto, acabado, do que seja a existência - a Idéia
146
.
143
GUTIERREZ, Rachel. O Feminismo é um Humanismo, pp. 22.
144
GUTIERREZ, Rachel. O Feminismo é um Humanismo, pp. 26.
145
BEAUVOIR, Simone de. Balanço Final, pp. 492.
146
A filosofia platônica apresenta a dualidade entre o Mundo Sensível e o Mundo das Idéias, cuja correspondência
entre um e outro se apresenta através do preceito platônico de participação, em que um conceito observado no Mundo
Senvel deve participar em essência do conceito ideal correspondente no Mundo das Idéias.
114
Para ser “feminina”, a mulher deve corresponder (participar) à tal idéia,
senão, ela seria vista como uma corruptora das regras; “que tipo de mulher é
essa que não se comporta como tal?
Enfim, uma limitação de possibilidades para a mulher, determinada pelo
modelo patriarcal, que a quer sempre inferior e doméstica. Como resume
Simone de Beauvoir: o “eterno feminino” é o homólogo da “alma negra” e do
“caráter judeu”
147
.
Se observarmos que a inferiorização da mulher foi gerada pelo
pensamento masculino e que os homens sempre representaram a situação de
dominação, veremos que, não por coincidência, os homens sempre ocuparam
posições de controle social, como é o caso dos legisladores, políticos, sempre
reproduzindo desta forma o modelo de soberania social.
O eterno feminino é, por conseguinte, um estereótipo, gerando um
dualismo artificial que caracterizou as clivagens macho-fêmea, homem-mulher,
masculino-feminino no decorrer da História. Este estereótipo foi consolidado ao
longo das gerações por sua própria conta.
A diferença hierárquica entre homem e mulher, freqüentemente
considerada como natural, é na verdade, artificial porque não se funda em
provas científicas decorrentes da biologia nem tampouco se apóia em
convincentes justificativas históricas. Ao contrário, desde a Antiguidade, a
noção de “eterno feminino” encontra-se presente, implícita ou explicitamente,
justificando as situações concretas de dominação da mulher.
Decorre da velha noção de eterno feminino, da opressão infligida
historicamente à mulher, o comportamento feminino estereotipado de proteção
contra os riscos oferecidos pela existência. Assim, por essa mentalidade, a
mulher preferiria viver sob condições passivas e cômodas, em que garantisse o
seu bem-estar econômico, como além da constituição de uma família propícia à
reprodução e à manutenção de bens e de papéis sociais. Com efeito, a mulher
pode escolher ver o mundo através das sombras projetadas na caverna
148
. Não
magoa os olhos, como tamm não lhe revela a realidade.
147
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol. 1, pp. 24.
148
Referência ao Mito da Caverna, de Platão. As pessoas viam o mundo através de sua sombra projetada na parede da
caverna.
115
O que fica pleno de sentido é a percepção de que o “eterno feminino”
não pode estabelecer uma simetria de sentido com a “superioridade viril”,
travando-se uma batalha “entre estas essências incertas: o Eterno feminino, o
Eterno masculino”
149
. Na verdade, a mulher deve - porque tem as mesmas
possibilidades que o homem - afirmar-se como sujeito livre, descerrando para
sempre a camisa-de-força que escondia o verdadeiro significado de “ser
mulher”, senhora do corpo e do seu destino, bem como sujeito da História,
como observa Rachel Gutierrez:
“A indagação sobre o ‘ser feminino’, ou sobre
o conjunto de qualidades que caracterizam a
‘feminilidade’, conduz à verificação de que
tais características não decorrem de uma
‘essência metafísica’, nem correspondem a
tendências determinadas pela ‘natureza’. Na
cultura de dominação masculina, as
‘qualidades femininas’ são adquiridas ao
longo de um processo de aprendizado, que a
ideologia do sistema patriarcal impõe ao
estabelecer padrõesgidos de
‘masculinidade’ e ‘feminilidade’, de acordo
com os quais cabem ao ‘segundo sexo’ a
alteridade, a inferioridade, a passividade e a
submissão”
150
.
Ser um sujeito significa estar-no-mundo, lançado por um projeto próprio
em que se escolhe entre as infinitas possibilidades de ser. Este sujeito, em sua
trajetória, tem como única destinação exercer sua liberdade em facticidade
151
.
Tal liberdade é a determinação em ser consciente de si mesmo como ser sem
anterioridade, ou seja, livre para a todo o momento se constituir, exercendo a
escolha de seu projeto existencial, determinando e garantindo a constituição de
um espaço situacional, no qual percebemos o sujeito se realizando em seu agir.
Daí a caracterização da liberdade em facticidade, isto é, em presença de
149
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 561.
150
GUTIERREZ, Rachel. O Feminismo é um Humanismo, pp. 37.
151
Gostaria de fazer aqui a distinção de sentido do termo facticidade. Na primeira ocorrência, trata-se do emprego
sartreano do termo facticidade enquanto presença de existentes, como coisas em bruto (tal referência se encontra em El Ser
y la Nada, p. 595). Enquanto que na citação de Beauvoir que virá a seguir, o termo é empregado com o sentido de
continncia factual, determinismo.
116
existentes, engajado em sua própria perspectiva de existir. Tal pensamento é
expresso por Simone de Beauvoir nos seguintes termos:
“Todo sujeito coloca-se concretamente
através dos projetos como uma
transcendência; só realça sua liberdade pelo
seu constante ultrapassamento em direção
de outras liberdades; não há outra
justificativa da existência presente senão sua
expansão em direção de um futuro
indefinidamente aberto. Cada vez que a
transcendência recai em imanência há a
degradação da existência em em-si, da
liberdade em facticidade”
152
.
A mulher mantida na condição de inferioridade, de fato torna-se inferior.
Mas a questão é saber se este fato é absoluto, ou seja, se não há condição de
reversão. O movimento do ser não é compatível com a estagnação do conceito,
já que ser é ter-se tornado, tem o sentido de movimento anunciado desde
Heráclito, já na Grécia Antiga. Beauvoir questiona a validade desta condição de
inferioridade da mulher. O fato é que tudo leva às mulheres esta convicção,
porém isto é uma idéia que surge a partir de fatos submetidos a um “pré-
conceito” e não a partir da realização da liberdade subjetiva, inerente a todo ser.
A liberdade subjetiva é a própria existência em que homem e mulher estão
empenhados em constituir-se a todo o momento. O ser está presente em sua
liberdade de constituir-se em cada ato, não no fato constituído por uma idéia
transcendente às suas existências, cuja validade não legitima tais existências.
Durante esta reflexão sobre a situação feminina, foi focado o problema
original que sustenta o questionamento filosófico existencial de todo indivíduo,
que é a necessidade de afirmar-se em si mesmo como existente e frente a
outras consciências fazer-se essencial. Como foi dito por Beauvoir, a alteridade
é um problema original do ser humano, e o empenho constante do ser em
conquistar-se enquanto consciência de si e ainda, conquistar a singularidade do
seu ser em relação ao outro, é o que proporciona ao existente seu surgimento
em projeção e constante afirmação de sua liberdade. Para o existencialista, a
radicalização do conceito de ser supera a percepção solipsista do sujeito e
152
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 31.
117
encontra sua realização fundada na alteridade. Logo, não haveria procedência
num estudo sobre a conseqüência da diferenciação sexual na trajetória
existencial se não estiver fundamentada na discussão do sujeito inserido em um
mundo dado, em sua condição humana de existência.
Até agora foi possível identificar que a existência humana pensada por
Beauvoir realiza-se incondicionalmente sob a égide das iias de mundo,
intersubjetividade, alteridade e sujeito livre; procurou-se mostrar que estes
conceitos se relacionam entre si. Os capítulos a seguir serão dedicados à
análise da relão entre esses conceitos, começando com a idéia de mundo e
de sujeito no capítulo III.
118
CAPÍTULO III
MUNDO E SUJEITO: A AMBIGÜIDADE DA EXISTÊNCIA HUMANA
O ser humano é um ser no mundo, um existente envolvido pelo
contexto situacional que lhe confere a caracterização de sujeito em situação. O
mundo ao seu redor (o mundo dado), tanto define quanto é definido pela
existência do sujeito. Como Beauvoir enfatiza, “ele (o homem) não poderia
surgir no mundo na pura ipseidade de seu ser sem que o mundo surgisse diante
dele.”
153
O mundo é percebido como um imenso objeto diante do existente e
essa experiência pode mostrar que esse existente tamm não passa de outro
objeto imerso nesta imensidão. O existente se erguerá como objeto ou como
um sujeito soberano, se assim se afirmar e tomar um espaço situacional para
abarcá-lo como seu mundo. Como Beauvoir afirma, “o homem está presente
no mundo de duas maneiras; sendo um objeto, um dado que supera as
transcendências estranhas e é também uma transcendência que se lança em
direção ao vir-a-ser (um sujeito)”
154
.
Desse modo, o mundo constitui-se para o sujeito como um invólucro de
suas ações. No espaço situado entre a infinitude das coisas concretas e o
sujeito, encontramos o espaço viável de realização de sua existência. O
indivíduo surge e com esse surgimento, surge tudo o mais que o envolve; lar,
pessoas, coisas que já estão aí, entre outros objetos que dividem o mesmo
espaço existencial. Esse conjunto de elementos significativos encontrados no
momento do surgimento do ser denomina-se o dado, ou ainda, o mundo dado.
Neste conjunto de dados, além dos elementos materiais, encontra-se
tamm tudo o que compõe a condição de surgimento do ser – raça, sexo,
deficiências físicas, sanidade ou insanidade mental; em outros termos, trata-se
de elementos que constituem a condição humana de existência.
153
BEAUVOIR, Simone de. “Pyrrhus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 257.
154
BEAUVOIR, Simone de. “Pyrrhus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 290-1.
119
3.1 - A constituição do mundo do sujeito
O homem surge no mundo sob sua condição humana de existência e é
nesta condição que realiza sua situação existencial, noção que envolve
elementos de caráter sócio-econômico-cultural, como classe social, grau de
instrução da família de que faz parte, país em que vive e consequentemente o
idioma falado, cujo estado inicial desta situação pode ser transcendido. A
situação existencial do indivíduo é definida por estes elementos, mas estes em
si mesmos, não representam um sistema fechado que não possa ser superado.
Surgir no seio de uma família de analfabetos não determina que a trajetória do
indivíduo não possa ser a de um grande mestre da ciência, ou ainda de que o
destino de um menino de rua seja necessariamente o de ser um delinqüente.
Por outro lado, nascer no Brasil não impede que se possa ter domínio de outro
idioma ou de outra cultura. A situação existencial do indivíduo, vista aqui como
o espaço de realização existencial do sujeito, está implicada com o projeto
existencial que este escolhe para realizar, legitimado pelo estado de liberdade
conferido por sua condição humana de existente. O ser surge no mundo livre
para constituir-se sujeito soberano: “Todos os homens são livres e desde que os
constituímos com nosso olhar experimentamos sua liberdade”
155
.
Sobre situação e liberdade, Michel Kail
156
comenta que a liberdade
beauvoireana é contemporânea à situação ontológica, portanto, ser, existir e
escolher em Simone de Beauvoir traduzem o mesmo sentido, que é aquele que
diz respeito à realização do ser em projeto, escolhendo ser entre as diversas
possibilidades que se apresentam em sua situação de existência. O ser é
aquele que existe, evidentemente; o ser é aquele que é, ou seja, aquele que
realiza sua existência. A realização existencial acontece quando o ser escolhe
realizar alguma das infinitas possibilidades de ações presentes no mundo dado.
É assim que o ser conquista seu status de sujeito soberano, quando assume
sua liberdade existencial e escolhe realizar seu projeto.
É fato conhecido que estes dois conceitos – condição e situação
existenciais, muitas vezes são confundidos entre si, não sendo raro serem
155
BEAUVOIR, Simone de. “Pyrrhus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 349
156
KAIL, Michel. Simone de Beauvoir philosophe. Paris: PUF, 2006.
120
tomados um pelo outro. Acontece ainda de ambos serem utilizados para
significar a mesma idéia de anterioridade ontológica ou estado das coisas
anteriores ao surgimento do ser.
Mas o existencialismo beauvoireano possibilita perceber uma clara
distinção entre esses conceitos. A condição humana de existência está
relacionada com a forma com que o indivíduo surge no mundo, enquanto
espécime: homem ou mulher, negro, branco, amarelo, são ou insano
mentalmente, com a plenitude de suas funções motoras ou não, entre outras
particularidades que podem acompanhar o indivíduo. A situação existencial
relaciona o indivíduo surgido com o espaço de inserção deste no mundo dado;
família, cidade, classe social, entre outros dados. Ela focaliza a inserção do
indivíduo entre outros indivíduos, o que estabelece entre eles uma relação de
co-existência.
Em L’Invitée, Beauvoir ilustra numa cena do romance, seu
entendimento sobre o conceito de situação, com a seguinte passagem:
“qualquer desses homens, qualquer destas
mulheres, estão totalmente absorvidos,
vivendo um momento da sua pequena
história individual. Xavière dança, Elizabeth
abandona-se à cólera e ao desespero. No
centro do dancing, impessoal e livre, estou
eu, contemplando ao mesmo tempo, todas
estas vidas, todas estas faces. Se me afastar
deles, desfar-se-ão imediatamente, como
uma paisagem abandonada.
157
Simone de Beauvoir aponta a situação que se apresenta diante do
sujeito descortinando-se a ele através da intersubjetividade. A situação
existencial é vivenciada pelo sujeito na e pela trama intersubjetiva em que está
inserida sua existência. Evidentemente que, apesar desta situação mostrar-se
comum a vários sujeitos, como é o que acontece com as aglomerações sociais,
é esta situação comum que permite a cada sujeito revelar-se livre. Não é a
mesma situação para todos os sujeitos; cada um inscreve com seu próprio
cunho ontológico seu espaço situacional. Cabe a cada sujeito singular a
escolha do objeto no qual projetará sua consciência. Então este objeto surgirá
157
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 34.
121
para o sujeito, na medida em que foi pinçado da existência comum para compor
a situação de um sujeito. Françoise relata uma situação que, apesar de ser a
mesma de Elizabeth e Xavière, e de todas as outras pessoas do dancing, é
singular, única, subjetiva; é constituinte do seu mundo.
A uma primeira vista, os elementos constituintes da condição humana
são imutáveis, pois são considerados características definitivas, como raça,
sexo, certos traços físicos peculiares. Mas, numa reflexão mais cuidadosa,
percebe-se não ser bem assim. A princípio, pode-se julgar não ser possível
uma mudança na raça, no sexo, e mesmo em uma das características tomadas
como deficiência de um indivíduo. Mas, levando este questionamento à
radicalidade de seu fundamento, percebe-se que estas distinções são
estabelecidas, ou melhor, evidenciadas, em última instância, a partir da
constatação da existência da alteridade. Há as diferenciações entre as raças
porque existem várias delas, uma e outras. O mesmo ocorrendo entre os sexos
e tamm entre as disposições anatomo-fisiológicas que acompanham o
indivíduo desde seu surgimento. A imposição de padrões e, consequentemente
de desvios, ocasiona o estabelecimento de uma hierarquia entre essas
diferenças, não sendo tais hierarquias, constituídas naturalmente.
O fato de a condição humana dizer respeito sempre a aspectos
aparentemente imutáveis do indivíduo favoreceu o aparecimento da idéia de
que estes aspectos estivessem realmente vinculados a uma natureza humana.
E, uma vez existindo hierarquia entre estes aspectos, consequentemente,
estabeleceu-se uma hierarquia desta natureza. Assim, ouvimos falar de
natureza feminina e alma negra.
Certos elementos da condição existencial do indivíduo, por conta dessa
hierarquização de sua expressão, transformaram-se num verdadeiro entrave
para sua realização existencial, como assim figura até os dias de hoje, a
questão do racismo e a problemática da diferenciação sexual. O nivelamento
hierárquico das condições subjetivas de surgimento no mundo foi a maior das
armadilhas que enclausurou tanto o negro quanto a mulher, já que raça e sexo
figuram entre os aspectos hierarquizados.
Na verdade, o que se pretende questionar é até que ponto esta
manipulação ontológica exercida como justificativa de consciências que se
acreditam mais soberanas, a ponto de julgar natural submeter outras
122
consciências, foi ou é suficiente para determinar uma trajetória ontológica de um
sexo ou mesmo de uma categoria de pessoas, como os negros.
O que é possível observar é que a situação existencial, considerada
inclusive como nicho existencial do sujeito, é o palco onde se realizam estas
diferenças, e é também neste espaço situacional que o sujeito vai exercer sua
liberdade de ser, superando o fato dado com o seu projeto de constituir-se além
do dado. A situação existencial, onde desfilam os valores hierárquicos acima
mencionados, pode aparecer como uma tatuagem hierárquica do sujeito, mas é
esta situação que Simone de Beauvoir aponta como possível de ser
transcendida.
Não só a transcendência é possível como necessária, se o sujeito quer
ser livre. A condição humana aqui surge como contingência de uma situação
passível e inevitável de ser transcendida, para que seja possível tornar-se
soberano e livre, e assim escolher uma ação não ditada pela situação, mas
criada pela razão de um sujeito que se revelou sendo livre para escolher ser. A
situação existencial e a condição são apresentadas por Beauvoir na passagem
de Pour une morale de l’ambigüi:
“Se inicialmente considerávamos o mundo
como um objeto a ser manifestado, se
pensávamos que estava salvo por essa
destinação, de maneira que tudo nele nos
parecesse já justificado e que nada mais
houvesse dele a ser recusado, então não
haveria mais nada a dizer, pois nenhuma
forma nele se desenharia; ele só se desvela
através da recusa, do desejo, do ódio, do
amor. Para que o artista tenha um mundo a
expressar, é preciso primeiro que ele esteja
situado nesse mundo a expressar, é preciso
primeiro que ele esteja situado nesse mundo,
oprimido ou opressor, resignado ou
revoltado, homem entre os homens.”
158
Não transcender, viver essa inércia situacional é não assumir a
condição tamm humana de escolher ser, além e apesar da situação. É
158
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambiguïté, pp. 112-3.
123
demitir-se, escolhendo a condição passiva de não criar, não se revelando como
consciência soberana, permitindo dessa forma constituir-se pelo outro.
Como comentado anteriormente, a situação é contemporânea ao
sujeito, e o que determina a efetividade da situação é a liberdade subjetiva de
escolher e agir. Isto significa que a ação subjetiva não pode estar subordinada
à situação, pois a liberdade se encontra no sujeito. Assim, não importa qual
seja a situação vivida, o sujeito continua livre.
Por sua vez, a condição humana é tanto contemporânea do sujeito
singular, quanto eterna em relação ao ser humano, ela é inscrita na
temporalidade. “Realizando seu destino histórico e singular, cada homem pode
então encontrar seu lugar no seio do universal.
159
O tempo todo o sujeito vai
viver o confronto da sua história singular com a história universal. É isso que
caracteriza sua ambiidade existencial: perceber-se o mesmo e o outro dentro
de uma história comum a todos e ao mesmo tempo singular a cada existente. O
homem vive sua situação, através de sua condição humana, e esta só encontra
sustentação enquanto situada na existência. Não teria sentido afirmarmos que
a condição humana guarda alguma anterioridade ao indivíduo; seria assim se o
sujeito fosse eterno, como Fosca em Tous les hommes sont mortels
160
, que vive
várias situações na mesma condição de humanidade.
Simone de Beauvoir não considera o mundo como uma organização
pronta em cujo bojo o indivíduo se acomoda naturalmente em seu devir. A
filósofa pensa um mundo em que o sujeito é o resultado de sua investida em
realizar-se como soberano em meio a uma infinitude de possibilidades
concretas. Não existe nenhuma definição ontológica anterior ao projeto
subjetivo, nenhuma natureza humana que sirva de modelo ou molde para as
realizações do sujeito. Tal modelo ou molde quando presente, é constituído
pelo próprio sujeito, através da sua escolha em constituir ou aceitar um ideal
para nortear sua trajetória, quando engendra modelos de ação para suas
realizações.
A realização existencial autêntica requer do sujeito um constante
trabalho ontológico em constituir-se, mas conforme a filósofa afirma, “ao lado da
autêntica reivindicação do sujeito que quer para si liberdade soberana, há no
159
BEAUVOIR, Simone de. “Pyrrhus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 290.
160
Obra citada.
124
existente um desejo inautêntico de demissão e de fuga”
161
. Em Pour une
morale de l’ambigüité, Simone de Beauvoir analisa alguns modelos de ação que
o sujeito escolhe como estratégia para demitir-se de sua liberdade de existir.
Entre outras situações, a filósofa analisa a atitude do “homem sério”, qualidade
que a filósofa atribui àquele que foge de sua liberdade de constituir-se, doando
valor existencial ao dado do mundo, o objeto, e não ao fato de existir, de ser um
sujeito livre para escolher. Para o homem sério, o absoluto de sua existência
está no reconhecimento de um objeto do mundo dado como ideal e, por isso
transfere para este objeto a resolução de sua existência, se eximindo de ser
livre para escolher suas ações. Agindo assim, sua realização existencial é
definida pelo objeto ideal e não o resultado de seu empenho subjetivo em
constituir-se. Sua ação não é o desvelamento de si mesmo quando engajado
em revelar os objetos do mundo como possibilidades de vir-a-ser. Para ele, o
objeto está dado e acabado, não havendo mais o que criar, e assim se
acomoda na passividade da contemplação deste objeto, se eximindo de sua
responsabilidade original de sujeito que é a de dar um sentido ao mundo, ou
seja, desvelar o dado do mundo enquanto desvela a si mesmo. Esta atitude
caracteriza fuga da liberdade de escolher constituir-se, em outras palavras,
demissão de uma existência autêntica.
A estratégia ontológica da demissão existencial é tamm estudada
por Simone de Beauvoir em seu ensaio filosófico intitulado Pyrrhus et Cinéas.
Nesta obra ela mostra a idéia de vinculação da ação do sujeito com a
constituição de si mesmo, enquanto liberdade que se lança ao futuro com a
intenção de transcender-se, superar o que está dado, ser de novo. Neste
estudo a filósofa afirma que “o que constitui o meu ser é, primeiramente, o que
faço. Mas desde que já o fiz, eis que o objeto se separa de mim, me escapa
162
.
No romance L’Invitée a escritora compatibiliza-se com sua reflexão
filosófica supracitada quando coloca no diálogo das personagens este mesmo
questionamento; “Mas você não compreende que o que fazemos e o que somos
são uma e a mesma coisa? [...] Isso depende de quem se trata. [...] A verdade é
que ela não faz nada e é Xavière, é-o de uma forma indestrutível”
163
. Na
161
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 47.
162
BEAUVOIR, “Pyhrrus et Cinéas” in Pour une morale de lambigüi, pp. 246 .
163
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp.294.
125
hermenêutica deste romance veremos que o que está acontecendo com
Xavière é que tanto Françoise quanto Pierre querem que ela represente um
ideal que eles projetaram. Então, a expressão “ela não faz nada e é Xavière”
diz respeito a essa pretensão dos outros personagens. Xavière não está sendo
o que eles querem que ela seja. A relação ser e agir exemplificam a relação
que Beauvoir faz da ação subjetiva com sua constituição ontológica. Neste
caso específico, o que se vê é uma tentativa de domínio ontológico de
Françoise e Pierre sobre Xavière. Como já mencionado, L’Invitée é uma trama
metafísica que se arvora na idéia de estudar o sujeito. Françoise e Pierre
querem “ter” Xavière, e querem que ela aja como sua presa, que sua atitude
reflita esta condição; mas ela não se deixa dominar, mantendo-se soberana e
escolhendo ser sua liberdade de constituir-se.
A idéia de natureza humana já mencionada, é um conceito bastante
presente na filosofia beauvoireana mas, como veremos, trata-se de uma
presença negativa, isto é, o objetivo da filosofia existencial, não só de Beauvoir
quando o cita, é o de desconstituí-lo enquanto idéia que contenha a noção de
destinação do existente.
Michel Kail em seu estudo sobre Beauvoir
164
aponta a divergência
entre o existente humano e uma suposta natureza humana como problemática
utilizada pela filósofa em Le deuxième sexe, e comenta que Simone de
Beauvoir não aceita esse estado de coisas em que se concebe uma natureza
humana norteadora da trajetória existencial do indivíduo. Michel Kail comenta
que “ela (Beauvoir) não pode aceitar o pressuposto segundo o qual existiria um
dado natural que o ser humano seguiria.”
165
Toda proposta que apresenta a intenção de discutir a realização
ontológica do sujeito assentada na diferenciação dos sexos, se encontra situada
neste confronto observado entre natureza humana e situação existencial.
Simone de Beauvoir sempre excluiu de sua filosofia o conceito de natureza
humana; não só esta pensadora, mas a filosofia da existência como vertente do
pensamento filosófico não aceita a presença de uma natureza humana anterior
ao surgimento do ser, muito menos a idéia de que um dado natural, constituinte
desta natureza seja um ponto de partida para a realização ontológica do sujeito;
164
KAIL, Michel. Simone de Beauvoir philosophe.
165
Idem, pp. 7.
126
tal fato seria totalmente contrário aos seus pressupostos que afirmam que o
ponto de partida da ação humana está no sujeito em situação, desvelando-se
através da alteridade que lhe possibilita constituir um projeto para lançar-se em
transcendência. Logo, os resultados alcançados pelo sujeito independem dos
dados naturais; Beauvoir demonstra seu pensamento em Le deuxième sexe:
“‘Você pensa assim porque é uma mulher’.
Mas eu sabia que minha única defesa era
responder:penso-o porquê é verdadeiro’,
eliminando assim minha subjetividade. Não
se tratava, em hipótese alguma, de replicar:
‘E você pensa o contrário porque é um
homem’, pois está subentendido que o fato
de ser um homem não é uma
singularidade”.
166
Ser mulher, por ser um dado natural, não é definidor de uma trajetória.
Esta trajetória é humana, cuja conceituação inclui homens e mulheres.
É muito importante nunca desconsiderar que, para o existencialismo, a
condição de surgimento do ser, cuja realização envolve dados biológicos como
é assim caracterizada a diferenciação sexual, tamm poderá ser transcendida,
uma vez que ainda que pareça impossível, a superação de seu status original
pode constituir-se numa escolha ontológica. Esse é o cerne do pensamento de
Simone de Beauvoir no tocante à realização ontológica dos sexos, presente em
sua afirmação de que ninguém nasce mulher, torna-se.
Esta frase representa um importante avanço no que diz respeito às
discussões sobre a questão da diferença na realização ontológica entre os
sexos. Foi a partir dela que se passou a perceber que a chamada “querela
feminina” não era um problema isolado, de “natureza feminina”. É um problema
cujo âmbito da questão envolve o ser humano e não apenas a mulher. Foi a
partir desta histórica afirmação que se elaborou o conceito de gênero
167
. A
partir de então, a questão estendeu-se à sua real extensão, que é a
166
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 14.
167
O termo gênero foi intencionalmente evitado durante toda a elaborão deste trabalho por se constituir
em um conceito cuja complexidade de descrição e análise mereceria um tratamento bem mais
aprofundado do que nos propusemos a dispensar na presente tese. Entendemos que o trabalho de Simone
de Beauvoir foi fundamental para o surgimento deste conceito, mas sua discussão sobre a diferenciação
sexual ainda é anterior à reflexão originária do conceito de gênero. É preciso tomar outros eixos dessa
discussão para seja que legítimo tratá-la; de outro modo seria leviano utilizar este conceito sem considerar
estas discussões.
127
problemática de realização do ser humano – homens e mulheres, como
Beauvoir afirma,
“É pois tão absurdo falar da ‘mulher em
geral” como do ‘homem eterno’ [...] todas as
comparações com que se esforçam por
decidir se a mulher é superior, inferior ou
igual ao homem são inúteis: as situações são
profundamente diferentes
168
.
Antes dessa afirmação beauvoireana de que ninguém nasce mulher,
torna-se, o conceito de mulher vinculava-se inevitavelmente a uma natureza
feminina, eterna e imutável, que o sexo lhe impunha para lhe forjar sua
representatividade social. Mas em decorrência de sua reflexão sobre realização
existencial, presente em Le Deuxième sexe, foi possível pensar a diferenciação
sexual desvinculando-a de uma natureza estanque; dessa forma, é possível
distinguir pelo menos, dois sentidos para o sexo humano, que seria a expressão
humana (escolhida) da sexualidade e a diferenciação sexual biológica, ligada à
anatomia, que não necessita estar vinculada à situação ontológica como única
forma representativa da expressão da sexualidade de cada um. Beauvoir
acredita que sexualidade e realização ontológica não são a mesma expressão,
mas aspectos diferentes de uma situação que o sujeito escolhe:
“A consciência que a mulher adquire de si
mesma não é definida unicamente pela
sexualidade. Ela reflete uma situação que
depende da estrutura econômica da
sociedade, estrutura que traduz o grau de
evolução técnica a que chegou a
humanidade.”
169
Discutir qualquer questão inerente às representações, como é o caso
da diferença na realização ontológica dos sexos é, sem dúvida, centrar estas
reflexões no mundo das resoluções da existência, onde o ser vagueia em busca
do desvelamento de si, para engajar-se em um projeto cujo sentido promoverá
sua realização ontológica.
168
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 454.
169
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 95.
128
A escolha entre demitir-se ou assumir sua liberdade de existir estará
sempre vinculada ao engajamento do sujeito ao projeto de existir. A adesão
subjetiva se revelará na investida ontológica que o sujeito terá que empreender
para revelar-se enquanto escolhendo um projeto. Cumpre ressaltar que aqui se
afirma que o sujeito teque fazer, pois como já observamos, há apenas duas
opções para este sujeito: ou assume ou demite-se de existir enquanto
consciência livre. E o sujeito percebe-se livre situado num mundo dado, em
situação, rodeado de seres em igual condição de existir.
Em alguns momentos da tradição filosófica encontra-se o postulado de
que o homem possui uma essência e uma aparência. Tais momentos são
clássicos: aparece claramente em alguns autores a supremacia da razão e em
outros, a soberania da experiência e ainda o estatuto do fenômeno como
pressuposto básico. E apesar da filosofia da existência não se limitar em tratá-
la através de conceitos prontos, duas noções insistem em erigir-se frente à
existência que são as noções de mundo do sujeito e mundo dado.
O mundo dado é a terminologia utilizada para definição de mundo que
está aí, o toujours dejá là, onde estão presentes todas as coisas vinculadas aos
sujeitos e que envolvem todos os existentes. Mas, apesar de as coisas do
mundo dado envolverem todos os existentes, não estão vinculadas a todos os
sujeitos da mesma forma. A partir do mundo dado, cada sujeito escolherá quais
objetos se tornarão elementos de seu mundo subjetivo, e então, estes objetos
passam a intermediar sua relação com o mundo dado. A partir das
construções que Simone de Beauvoir elabora acerca da noção de mundo, pode-
se concluir que a idéia de mundo dado e mundo subjetivo não é marcada por
uma cisão de realidades, a ponto de sustentar a noção de mundos separados
um do outro, como às vezes parece estar sugerido. Mundo é o que o sujeito
percebe. A realidade do mundo dado e as elaborações subjetivas são
elementos interdependentes. O mundo dado surge para o sujeito no momento
que este o percebe, e suas construções intelectuais e emocionais são feitas a
partir do dado. Em L’Invitée, Beauvoir exemplifica esta iia através da
reflexão de Françoise, que coloca no mundo dado a origem da felicidade que já
viveu em seu mundo subjetivo, e aponta a idéia de que os objetos que existem
são aqueles que naquele momento ela os está percebendo:
129
“Para além dos vidros, a pequena praça
dormia calmamente sob o céu negro. No
meio dos campos desertos rolava um trem.
‘Eu estou aqui’, pensou. ‘Para mim, que
estou aqui, a praça existe, assim como o
trem que corre e Paris e toda a terra, contida
na penumbra rósea deste escritório. No
minuto presente estão contidos todos os
anos de felicidade. E eu estou aqui, no
coração de minha vida.”.
170
A vivência da diferenciação sexual constitui um dos aspectos da
condição humana de existência que determina a situação existencial do sujeito,
definindo seu mundo subjetivo. Primeiramente, o sexo humano é formado pelas
diferenças corporais dos indivíduos, cujas manifestações inscrevem diferenças
comportamentais na lida com o mundo e com o outro, ao longo da existência de
cada indivíduo. Ele surge para o indivíduo em sua condição de fato: um
humano macho ou um humano fêmea, e mesmo que essas diferenças surjam
como condição, isto é, de modo supostamente definitivo, é na situação
ontológica que estas diferenças constituem fator definidor da realização
existencial do sujeito. É enquanto mulher e enquanto homem, entre outros
elementos que podem constituir a condição humana, que a situação ôntica se
delineia para o sujeito. Os dados físicos não são escolhidos pelo sujeito; surgem
como parte de sua condição. Mas é por eles que se descortina para o sujeito
um leque de opções.
As características herdadas pelo genótipo representam, ou deveriam
representar simplesmente um modo do aparecer ôntico, que em si mesmas não
trariam a definição ou limitação da trajetória ontológica. Isto quer dizer que a
forma com que o corpo do indivíduo surge no mundo, pode representar que tipo
de situação o indivíduo irá experimentar, mas não o seu limite. A título de
exemplo, tomemos o caso do indivíduo que surge no mundo sem a faculdade
da visão – o cego. Para si mesmo, este homem não é deficiente. Nada lhe
falta para existir enquanto sujeito livre. A singularidade do fato de não enxergar
não determina, por si só, uma deficiência, mas uma diferença de condição. Se
haverá deficiência, esta será advinda da escolha individual deste sujeito, em
presença desta facticidade.
170
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 15.
130
Estas considerações levam a pensar a categoria da diferença surgida
em uma situação de domínio intersubjetivo: o diferente é o que é percebido
como tal. A partir daí, pode ser construída uma relação pautada pela visão do
diferente como solitário e frágil, mostrando-se assim presa fácil de dominação.
Na existência comum, o sujeito livre anseia sempre e avidamente por afirmar
sua soberania, e uma alteridade diferente e vacilante em manter-se soberana
pode ser um alvo fácil de sua dominação: toda consciência aspira a colocar-se
como sujeito soberano. Toda consciência tenta realizar-se reduzindo a outra à
escravidão, como Beauvoir afirma em Le deuxième sexe.
Assim, pode-se encontrar cegos demitidos de sua liberdade ou, pelo
contrário, exercendo sua vontade de existir.
O sujeito, para manter-se livre, precisa afirmar-se a todo o momento.
Através de sua diferença, que na verdade representa sua singularidade, quer
ver instalado no mundo o seu modo de existir como uma possibilidade. Todo
indivíduo surge no mundo de um modo singular, e por ser assim, os indivíduos
são estranhos entre si. Cada sujeito traz em si sua história e seu projeto
ontológico, portanto, não seriam apenas as diferenças de constituição física que
definiriam a singularidade de um indivíduo. Por serem livres e responsáveis por
constituírem a si mesmos como sujeitos, cada indivíduo é, por sua vez, uma
singularidade em meio à alteridade presente no mundo. “Eis minha situação
diante do outro. Os homens são livres e eu sou lançado no mundo entre estas
liberdades estranhas”
171
.
Desde seu surgimento no mundo, o indivíduo percebe-se estrangeiro,
uma vez que, como afirmado, ele é uma singularidade em meio à alteridade.
Sendo estranho a esse meio que o circunda, sente-se mergulhado numa massa
diferente de si mesmo, cuja expressão traduz-se de modo amorfo e multiforme,
isto é, o mundo apresenta-se ao indivíduo como uma alteridade única, que aos
poucos vai se desvelando em formas distintas e independentes.
Em sua trajetória existencial, o indivíduo é separado do mundo e ao
mesmo tempo realiza-se nele, cavando em seu bojo seu espaço ontológico.
Mas esse espaço é sempre transcendido, pois o indivíduo elabora
constantemente, a partir do mundo dado, novas possibilidades de realização. A
171
BEAUVOIR, Simone. “Pyhrrus et Cinéas” in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 355.
131
realização ontológica não admite que o sujeito relaxe sua investida em desvelar-
se e se acomode em um espaço situacional estabelecido e pronto, cuja
permanência lhe aprisionaria na repetição segura do mesmo.
Todo empreendimento ontológico, se assumido pelo sujeito, apresenta
o aspecto de risco existencial que é a idéia de investida existencial cega em que
o sujeito tem que empenhar para constituir-se livre. O projeto subjetivo é
chamado de investida cega porque o sujeito nunca tem a garantia prévia de
realização desses projetos. Ele lança-se no mundo porque só através desse
movimento próprio de superação do dado realiza sua existência, uma vez que o
ser surge no mundo na condição inexorável de liberdade em situação e que,
exatamente por ser livre, constitui-se a si mesmo. “Constitutivamente, o homem
é orientado a lançar-se em outra coisa além dele mesmo. Ele não é senão a
relação dele com outro ser. [...] Qualquer pensamento, qualquer olhar, qualquer
tensão é transcendência
172
.
O mundo faz parte de sua existência, mas o sujeito o percebe como
alteridade; uma alteridade que o confirma por reconhecer nele a soberania de
sujeito livre e que, ao mesmo tempo, o nega como sujeito soberano, uma vez
que toda consciência livre tenta realizar-se reduzindo a outra à escravio,
como já colocado em citação anterior.
O caráter de estranheza que o sujeito experimenta, é proporcionado
pelo constante apelo de seu movimento de superação. Uma vez que o sujeito
busca superar-se, transcender o dado, sua realização acontecerá sempre no
âmbito do novo, do desvelado, que por sua vez, exigirá do sujeito a confirmação
de sua soberania, lançando-o em novo movimento de superação.
Cada indivíduo surge no mundo como singularidade e dependendo da
alteridade para realizar-se, já que é o outro que confirma a existência do sujeito;
“é preciso que eu me coloque na vez de objeto e como liberdade, que eu
reconheça minha situação como fundada por outro (sempre) e afirmando meu
ser para além da situação”
173
.
Em sua investida para transcender o dado, o indivíduo lança-se ao
encontro da alteridade. Nessa sua superação, o sujeito tanto exerce a sua
liberdade de ser existindo para si, como reconhece no outro a liberdade dele. É
172
Idem, pp. 256.
173
BEAUVOIR, Simone. “Pyhrrus et Cinéas” in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 324.
132
o outro como finalidade e ponto de partida de uma nova ação que confirma no
sujeito a sua própria existência;
“esta é precisamente a ambigüidade de sua
condição: em sua superação rumo aos
outros, cada um existe absolutamente como
para si; cada um está interessado na
libertação de todos, mas enquanto existência
separada, engajada em seus projetos
singulares. De tal maneira que os termos: útil
para o Homem, útil para este homem, não se
recobrem. O Homem universal, absoluto, não
existe em parte alguma”
174
.
O movimento que o sujeito faz em transcender o dado para constituir
uma nova possibilidade de realizar-se, encontra no outro o seu ponto de partida.
A alteridade oferece ao sujeito uma nova possibilidade pelo simples fato de ser
o outro, diferente do si mesmo, exigindo desse sujeito sair de sua ipseidade. É
esta relação necessária existente entre os sujeitos que Simone de Beauvoir
apontou como ambigüidade. O sujeito realiza-se como singularidade, mas
visando sempre a superação do dado, cuja transcendência é possibilitada pelo
outro, quando presente em sua situação existencial. É sempre na situação
existencial que o dado surge e expressa sua aplicabilidade para o sujeito.
Conforme nos mostra a citação acima, o útil para o Homem enquanto
universalidade não encontra suporte na situação vivida, uma vez que, o que é
útil, é para o sujeito em situação, e não de modo universal, “para todos os
sujeitos em qualquer situação”.
A universalidade do Humano não se sobrepõe ao sujeito, o que leva a
concluir que a situação é absoluta, ou seja, é no mundo dado, visto enquanto
berço da situação existencial do sujeito, onde se abrem as possibilidades
existenciais do sujeito, as quais não são determinadas por uma natureza
universal.
Com relação a esta idéia de mundo dado, é encontrada na
hermenêutica do romance Quand prime le spirituel, uma alusão que apóia a
compreensão da idéia de mundo que a filósofa elabora:
174
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 162.
133
“O mundo estava coberto de lepra, não se
podia contemplá-lo sem horror; e todavia era
preciso roçá-lo, ouvir sua respiração. Essa
enorme massa confusa e monstruosa me
fascinava”
175
.
Além da iia de massa amorfa já apresentada, este trecho funda a
noção da necessidade do mundo para o sujeito. Apesar de o mundo se mostrar
sujo e perigoso, o sujeito não prescinde dele e o toma compulsoriamente como
objeto de sua realização existencial.
O sujeito beauvoireano fascina-se pelo mundo porque é nele que
viabiliza sua intenção de viver. O mundo é dado ao sujeito como única
possibilidade de realização. No referido romance, a personagem endossa essa
idéia no seguinte trecho: “caminhava a passos largos pelas ruas sombrias,
sentia à minha volta a presença indistinta do mundo, e isso me entusiasmava”
176
. O mundo seduz o sujeito, pois é mergulhado nele que criará suas
possibilidades de consumar-se enquanto consciência livre. Somente o mundo
pode fazê-lo livre, pois é o único lugar em que o sujeito encontra escolhas que o
confirmará nesta situação.
Por outro lado, a condição de estrangeiro é verificada porque o mundo,
tal qual surge ao sujeito, não é fruto de sua criação individual; ao contrário, o
mundo dado é constantemente constituído pelas subjetividades que o habitam.
Portanto, a princípio, o sujeito surge em um mundo já existente, constituído por
outros sujeitos que o tomam, cada um por si, como seu nicho existencial.
Vislumbrando o mundo num primeiro momento, o sujeito o percebe
amorfo, enquanto que, se for deter-se em seus detalhes, perceberá muitas
formas. O paradoxo contido neste binômio amorfo-multiforme traz em si a
intenção de mostrar a possível multiplicidade da unidade encontrada na
percepção do mundo. O mundo é uno e dentro desta unidade é encontrada
uma infinidade de existentes. É a original ambigüidade inscrita na humanidade
do ser.
175
BEAUVOIR, Simone de. Quando o espiritual domina, pp.181.
176
Idem, pp.181.
134
Esta é a forma original da natureza
177
deste mundo que surge ao
indivíduo – um bloco constituído por várias representações que seriam, cada
qual por sua vez, as possibilidades ontológicas que constituem a alteridade,
esse estranho limite que nega e afirma o ser ao mesmo tempo.
No livro L’Invitée, a personagem Xavière, que é a personagem-título
deste romance, pivô de toda a trama articulada nele, tece o seguinte
comentário: “... cheguei à conclusão de que, vá para onde for, o resto do mundo
desloca-se comigo
178
”. Através desse comentário é possível reconhecer aqui a
construção conceitual que a filósofa faz em torno da noção de mundo. Se o
mundo desloca-se com o sujeito, conforme Xavière comenta, é porque este
mundo faz parte da sua constituição de mundo
179
. Aos poucos se alcança a
compreensão de que a rigor, para Simone de Beauvoir, não há um mundo aí,
que comporte a idéia de descontinuidade entre o sujeito e sua existência. Há
um mundo dado que surge simultaneamente ao surgimento do ser. Com efeito,
onde quer que o sujeito vá, sua elaboração a respeito do que é o mundo o
acompanhará.
Sendo assim, esta noção de mundo dado nos leva a concluir que,
quando o sujeito se reconhece inserido, dentro de um determinado lugar – o
mundo – é porque ele tamm o está constituindo. Neste caso, não há
fenômeno intermediário entre a percepção de si mesmo e a percepção do
mundo, porque é percebendo-se existindo que o sujeito percebe o mundo, e só
percebe o mundo porque existe. O sujeito se percebe percebendo-o. São dois
fenômenos que acontecem em um mesmo momento. O fenômeno é a
percepção de algo, sendo que este algo é, ao mesmo tempo, o percebedor e o
percebido. E é por isso mesmo que se percebe; porque lhe surge um alter que
se lhe opõe, definindo-lhe limites substanciais. E além do mais, este alter surge-
lhe repleto de outros. O mundo aparece povoado por outros sujeitos que dele
se apoderam, cada um com a sua própria percepção.
177
O termo natureza aqui está se referindo à idéia de coisa ainda não racionalizada; objeto selvagem, no
estado em que é. É o mundo aí percebido pelo homem enquanto seu alter, que ainda lhe é primitivo,
selvagem, inacessível ao entendimento.
178
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 16-7
179
No decorrer deste trabalho, sempre encontraremos essa referência dupla: alguma personagem conclui
algo que é objeto de investigação da filósofa. Neste caso, empregamos o possessivo sua se aplicando
tanto para a personagem quanto para a filósofa.
135
Portanto, o mundo não é somente dado, é constituído por cada sujeito
que insistentemente quererá constituir o mundo do outro, não para aniquilá-lo
apenas, mas sim na tentativa de querer aumentar-se.
Numa avidez de espaço para espalhar-se, o sujeito tentará tomar o
espaço livre que encontrar. Não se constrói aqui somente a hipótese de que o
sujeito queira tomar o espaço do outro, pelo desejo menor de subtrair-lhe
alguma coisa ou alguma possibilidade. Mas que se esse outro não constituir-se
espacialmente, aquele que reclama para si maior amplitude situacional,
expandir-se-á, independente da vontade do primeiro. Nem sempre é
preferencialmente um adversário, pode não haver apenas esse sentido de luta,
de confronto, mas há a vontade de cada sujeito em querer aumentar-se, querer
projetar-se, querer expandir-se nesse mundo que, como dito, é constituído por
cada sujeito e somente por ele. “O indivíduo que é sujeito, que é ele mesmo,
tendo o gosto generoso da transcendência, esforça-se por ampliar seu domínio
sobre o mundo: é ambicioso, age”
180
. A liberdade ontológica é legitimada pelo
trabalho ontológico do sujeito em constituir-se a todo o momento, em querer ser,
realizar seu projeto.
Se no sujeito estiver presente a vontade de querer ser, o sujeito
assume-se como existente soberano de sua situação. Se não, provavelmente
ocorrerá a sua demissão existencial de diferentes formas. Por vezes o ser nem
se percebe demitindo-se, mas até a ingenuidade da preguiça pode lhe fazer
perder espaço situacional. A demissão da existência é observada tamm
quando o sujeito abdica de sua escolha e permite que outrem tenha a liberdade
de constituí-lo. Esta situação pode ser verificada nos envolvimentos passionais,
em que o sujeito tem o outro como objeto de paixão, projetando-se nele a ponto
de doar-lhe sua escolha. Em L’Invitée, Beauvoir demonstra essa situação, na
passagem:
“Durante muito tempo, Xavière foi apenas um
fragmento da vida de Françoise.
Subitamente tornara-se a única realidade
soberana; Françoise, perante ela, tinha
apenas a pálida consistência de uma
imagem. ‘Por que razão será ela em vez de
mim?’ Bastaria dizer duas palavras: sou eu.
180
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 478.
136
Mas para isso seria preciso acreditar nessas
palavras, seria preciso ter capacidade para
se escolher a si próprio. [...] Livremente,
através das resistências e revoltas, ela
empenhara-se em destruir-se a si própria;
assistia à sua história como uma testemunha
indiferente, sem nunca ousar afirmar-se,
enquanto Xavière, dos pés à cabeça, era
uma afirmação viva da própria
personalidade. Esta existência tinha uma
forçao segura que Françoise fascinada
deixara-se levar ao ponto de preferi-la à sua,
auto-suprimindo-se. Começara a ver com os
olhos de Xavière os lugares, as pessoas, os
sorrisos de Pierre: acabara finalmente por
se reconhecer através dos sentimentos que
Xavière lhe atribuía. Agora, procurava
confundir-se com ela. Neste esforço
impossível porém, acentuava cada vez mais
a sua auto-eliminação.”
181
Logo que o sujeito apreende sua condição de existente, emerge a
necessidade de assegurar alguma distância dessa estranheza que é o mundo,
numa tentativa de resguardar a própria consciência, já que é iminente o perigo
de ver-se misturado nesse mundo que constantemente o solicita a confirmar
sua existência subjetiva enquanto indivíduo singular. Misturando-se ao mundo,
o sujeito tende a perder-se nele. E a condição para “existir autenticamente não
é negar o movimento espontâneo de minha transcendência, mas somente
recusar perder-me nele”
182
.
O processo de perder-se pode começar com o de não encontrar-se,
isto é, não constituir-se sujeito por não se possuir como singularidade. O que
marca a conquista de uma subjetividade plena é a condição de constituir-se
como liberdade possível, criando e realizando sua existência através de um
processo íntimo de decisão, obrigando-se a estar desvinculado de qualquer
solicitação de um absoluto estranho a si. Só conseguirá constituir-se em sujeito
existente aquele que mantiver constante a tensão da vontade de constituir-se
contra esta massa que o quer indiferenciado em seu bojo anônimo. Todo
sujeito que se deseja soberano de sua existência não quer se deixar perder na
inconsistência do mundo dado. O sujeito se deseja livre para, a todo o
181
BEAUVOIR, Simone de. L’Invie, pp. 364-5.
182
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 19.
137
momento, escolher seu projeto. Ou pode escolher não escolher ser um sujeito
livre e fazer-se um objeto, conforme Beauvoir comenta em Pour une morale de
l’ambigüité: “Para evitar a angústia dessa escolha permanente, pode-se tentar
fugir no próprio objeto, nele abismar sua própria presença”
183
.
A existência do sujeito é o ponto de partida para tudo o mais existir.
Beauvoir é bastante incisiva nesta afirmação: é sempre a partir de um sujeito
em situação que o mundo se revela, e enquanto revela uma possibilidade
existencial, revela o sujeito que está empreendendo o desvelamento desta
possibilidade, através de um engajamento escolhido por ele. Em seu ensaio
filosófico Pyhrrus et Cinéas, Beauvoir expõe claramente sua noção de
existência: “Em um certo sentido, um homem é sempre tudo o que ele tem para
ser, já que [...] é sua existência que define sua essência
184
”. Diferentemente da
afirmação sartreana
185
de que a existência precede a essência, Beauvoir afirma
que estão na existência em situação todas as possibilidades de projeto que o
sujeito possa escolher, não soçobrando nenhum resquício de anterioridade do
sujeito ao fenômeno da situação; o mundo desvela-se ao sujeito que está
desvelando-se no mundo, no mesmo fenômeno, ao mesmo tempo.
Este fenômeno que desvela o ser ao mesmo tempo em que desvela o
mundo ao ser, faz surgir entre o sujeito e o mundo uma relação de
ambigüidade. O sujeito existe no mundo como singularidade e soberano em
sua liberdade, mas só se desvela em situação. Somente a si mesmo é possível
constituir-se como liberdade soberana, mas esta liberdade só se legitima em
presença da alteridade. O existente surge no mundo dado como mais um dado
do mundo e enquanto constitui-se sujeito diante do outro estabelece com ele o
reconhecimento da liberdade de ambos. Enquanto o ser não se eleva de entre
os dados do mundo e se faz sujeito entre outras liberdades, ele também não
183
Idem, pp. 37.
184
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus et Cinéas in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 322.
185
Nos valemos das idéias de Sartre para auxiliar na compreensão deste primado existencialista de que a
existência tem alguma anterioridade à essência. Sartre afirma em L’existencialisme est um humanisme
que a existência precede a essência, e mesmo que estejamos concordando com a idéia sartreana de
privilegiar a aparência como fenômeno totalizante do existir, sentimos algum desconforto com esta noção
de anterioridade que o termo “precede” sugere. o sendo a intenção deste trabalho investigar a filosofia
sartreana, nos limitamos a encontrar em Simone de Beauvoir maior segurança na compreensão da idéia de
inexistência de essência humana, idéia que sustenta o aparecimento de uma filosofia da existência.
Beauvoir afirma na citação anterior que é a existência humana que define sua essência, logo, existindo
esncia humana, esta surge simultaneamente ao seu existir, no desvelamento mútuo do sujeito e de sua
possibilidade de vir-a-ser. À diferença da afirmação sartreana, Beauvoir não dá margem à suspeita de uma
esncia humana anterior ao fenômeno, diferente do sujeito do fenômeno.
138
reconhece nos outros indivíduos o status de sujeito. A liberdade ontológica é a
única possibilidade de o sujeito constituir a si e ao outro, indivíduos soberanos,
livres para cavar no mundo dado seu mundo subjetivo, e isto acontece ao
mesmo tempo em que escolhe entre esses dados do mundo aqueles que irão
compor seu espaço ontológico, sua situação existencial.
Somente um ser em sua condição original de liberdade, será livre para
reconhecer a alteridade como um ponto de partida que o lançará em
transcendência. O indivíduo que não se confirma como liberdade, tamm não
reconhecerá no outro esta condição.
Esta reflexão remete diretamente à questão principal, que é pensar a
situação existencial da mulher e sua conseqüente diferença de realização
ontológica. Este é um tema que, apesar de estar em evidência, nem sempre
encontra espaço entre as discussões filosóficas, mas não temos dúvida de que
deva ser a ontologia filosófica existencial seu berço original, o único lugar
autêntico para acomodar esta problemática.
A investida masculina em querer subjugar o ser feminino, observada
tanto em tempos idos quanto na atualidade, mostra-se como um sintoma de
demissão da existência de ambos os sexos. O fato de o homem querer subjugar
a mulher significa que ele próprio não está reconhecendo nela a liberdade de
constituir-se, porque anteriormente ele mesmo não se sente livre para permitir
que o outro seja. Segundo Beauvoir, para que os humanos sejam realmente
livres, primeiramente devem reconhecer no outro essa liberdade, pois é pelo
reconhecimento do outro que o ser se constitui; se o outro não for livre para
escolher, o sujeito tamm não o será. Simone de Beauvoir assim o expõe em
Le deuxième sexe:
“_toda consciência aspira a colocar-se como
sujeito soberano. Toda consciência tenta
realizar-se reduzindo a outra à escravidão.
[...] O drama pode ser resolvido pelo livre
reconhecimento de cada indiduo no outro,
cada qual pondo a um tempo, a si e ao outro
como objeto e como sujeito a um tempo
recíproco. Mas a amizade e a generosidade
que realizam concretamente esse
reconhecimento das liberdades não são
virtudes fáceis; são seguramente a mais alta
realização do homem e, desse modo, é que
139
ele se encontra em sua verdade: mas essa
verdade é a de uma luta incessantemente
esboçada e abolida.”
186
Nesta citação percebe-se a presença imperiosa da intersubjetividade
na constituição do sujeito como liberdade.
Neste item procurou-se estabelecer a idéia de que o sujeito surge num
mundo dado, e a partir disso constitui o seu próprio mundo, e o que o fará
assumir ou demitir-se de sua realização ontológica é o fato de constituir-se
como liberdade soberana. Esse estado de liberdade soberano é o que legitima
o existente a constituir-se sujeito, que é o que o próximo item irá evidenciar.
3.2 – O sujeito beauvoireano
O ser humano busca realizar-se no mundo dado, tomando como ponto
de partida o dado do mundo, ou seja, o objeto, num espaço situacional que
criou em torno de si para se constituir como sujeito entre tantos outros. Este
espaço situacional dilata-se ou contrai-se de acordo com a intensidade do
movimento ontológico em assumir-se ou demitir-se da existência. Esta é a
questão central que será discutida neste item.
Ao pensar a subjetividade humana é comum pensá-la ocorrendo em
um mundo dado, situada em uma instância que sugere a percepção do sujeito
existindo dentro de uma realidade dada, anterior ao seu surgimento. A idéia de
um sujeito instalado dentro de um mundo, remete à noção de ambigüidade, por
revelar uma relação dual entre o sujeito surgido e o mundo dado. A realização
do existente estará sempre pautada tanto sobre sua percepção singular do
mundo subjetivo, quanto sobre a presença incontestável do mundo dado, e sua
ambigüidade está assentada justamente sobre esta idéia de ao existente ser
possível perceber-se tanto como singularidade subjetiva quanto como mais um
objeto dentre a multiplicidade objetiva do mundo dado.
186
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 231-2.
140
A noção de ambigüidade do ser pode ser tomada como o cerne da obra
de Simone de Beauvoir. Neste momento, voltamo-nos para esse aspecto da
ambigüidade em que a filósofa tem a intenção de evidenciar a idéia de que a
existência é percebida pelo sujeito enquanto singularidade, em contraste com
sua situação de existente mergulhado num mundo dado. Este mundo dado, ao
ir de encontro a esta subjetividade singular, constitui-se como alteridade.
Encontra-se na hermenêutica de L’Invitée um exemplo deste confronto entre
sujeito e alteridade na passagem a seguir:
“Françoise sentiu-se ferida. Ela escolhera a
felicidade; essa escolha, que lhe parecia
impor-se com tanta evidência, havia alguém
que se permitia rechaçá-la com desprezo?
Com verdade ou sem ela, não podia
continuar a tomar as palavras de Xavière
como simples gracejos. Tratava-se de um
sistema de valores que se opunha ao seu.
Por mais que evitasse reconhecê-lo a
verdade é que existia e a incomodava”
187
.
Nesta passagem, nota-se o desconforto da personagem Françoise em
uma situação que se mostrava divergindo de seus valores e da felicidade que
escolhera para si, ou seja, de seu mundo subjetivo, criado por ela mesma.
Neste caso, este mundo subjetivo está sendo rechaçado por Xavière, alteridade
que se lhe opõe e que não o aceita, obviamente, como referencial indiscutível.
É flagrante, em Simone de Beauvoir, a tendência de pensar a
existência singular situando-se dentro de um conjunto maior, comum a outras
singularidades, o que não contradiz a experiência existencial de qualquer
indivíduo. O homem é um ser histórico, pois é no tempo e em presença da
alteridade que ele se realiza. Seus projetos encontram sentido quando inscritos
em uma realidade com seqüência de momentos, cuja liberdade escolhe no
presente seu objetivo futuro. Como exemplos desta noção de historicidade
humana, são citados a seguir dois momentos em que Simone de Beauvoir
afirma esta característica em Pour une morale de l’ambigüité:
“É preciso primeiramente observar que essa
vontade (de ser livre) se desenvolve ao longo
187
BEAUVOIR, Simone de. L’Invie, pp. 122-3.
141
do tempo; é ao longo do tempo que o fim é
visado e que a liberdade se confirma a si
própria, e isso supõe que ela se realiza como
unidade através do fracionamento do tempo.”
188
;
E ainda,
“É à luz do futuro, que é o sentido e a própria
substância da ação, que uma escolha se
tornará possível. [...] o presente aparece
como a facticidade que é preciso transcender
rumo à liberdade”.
189
Para Beauvoir, o sujeito humano é ambíguo. Sua ambigüidade é
revelada na afirmação de si como consciência soberana e no reconhecimento
de se ver constituído apenas como um dado para a alteridade. No mundo dado
o sujeito é para o outro uma alteridade dada, surgida no mundo dado. Do
mesmo modo, a alteridade surge para o sujeito como mais um dado do mundo.
É no mundo que o ser encontra o fundamento de sua existência,
apesar de ser dele a responsabilidade de constituir-se; são seus projetos,
oriundos da sua criação livre, que inscreve sua existência nesse mundo dado, e
essa ação livre é a todo o momento, solicitada para criar e levar o ser ao
momento seguinte, para que não se congele na imanência do mesmo. “É
quando eu transcendo meu próprio projeto que ele pode me parecer num
momento passado como melhor ou pior.
190
Apenas quando ultrapassa o que já
realizou, o sujeito pode avaliar esse momento passado e se lançar em novo
projeto, com o intuito de buscar nova realização, tomando esse passado como
ponto de partida. Esse movimento de constante ultrapassamento de si mesmo
rumo ao novo é o movimento subjetivo denominado transcendência, que por
sua vez é legitimado pela condição de sujeito livre. Somente um indivíduo que
confirmou sua condição de liberdade é capaz de realizar esse movimento, pois
é a sua decio em querer constituir-se por escolha própria que tanto o constitui
como o mantém livre.
Ao mesmo tempo em que o sujeito se reconhece livre em sua
singularidade, as diversas subjetividades encontradas no mundo dado querem
188
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp.37.
189
Idem, pp. 166.
190
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus e Cineas” in Pour une morale de l’ambigüité pp. 334 .
142
negar sua liberdade soberana, tentando impor-lhe um movimento dado. Este
movimento dado trata-se de transcendência já acontecida, isto é, já realizada
por essas outras subjetividades que, por vontade de dominação, querem impor
ao sujeito o movimento que elas próprias já realizaram e que, por isso, trata-se
já de uma coisa dada. Em L’Invitée existe um claro exemplo para ilustrar essa
vontade de dominação, no trecho a seguir;
“É irritante sentir ao nosso lado um
pensamento hostil e teimoso. Tenho que
persuadi-la a aceitar! (...) a resistência de
Xavière era autêntica e Françoise queria
vencê-la. Era irritante: sentia que dominava
Xavière, que a possuía, mesmo no seu
passado e nas voltas mais imprevisíveis do
futuro e, de repente, surgia aquela vontade
teimosa, contra a qual o seu próprio desejo
se quebrava”
191
.
Neste caso, Françoise quer se assenhorar de Xavière, quer resolver-lhe
a existência. Nesse exemplo a personagem Françoise oferece resolão
existencial até mesmo ao dado futuro, quando diz que dominava Xavière [...]
nas voltas mais imprevisíveis do futuro. Ao agir dessa forma, Françoise deseja
manter Xavière na passividade do dado, negando-lhe o movimento de
transcendê-lo, que é o que caracteriza o trabalho ontológico de desvelamento
de si e do mundo dado. Em outro romance – Quand prime le spirituel, é
encontrado semelhante exemplo de domínio intersubjetivo:
“O casamento com Pascal era necessário
pelo menos como primeira etapa – para que
Anne se desvencilhasse das crenças e da
moral que a sufocavam. [...] Chantal decidira
há muito tempo que o rapaz tinha seu lugar
reservado no destino da amiga”
192
.
Do mesmo modo que Françoise, Chantal resolve a existência de
Anne quando “decide” que o casamento com Pascal era necessário e que ela,
Chantal, há muito já “decidira” que o rapaz tinha lugar reservado no destino de
Anne. Mais uma vez é observado um sujeito resolvendo a existência do outro,
191
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 40-1.
192
BEAUVOIR, Simone de. Quando o espiritual domina, pp. 140.
143
negando a esse outro a possibilidade de transcender o dado pelo seu
movimento próprio de transcendência.
Como mencionado anteriormente, a transcendência se refere ao
movimento de superação que todo sujeito empreende para superar o dado. O
sujeito livre não se realiza de outra forma senão através de seu movimento de
desvelar a si e ao mundo dado. Logo, a expressão “transcendência já
realizada” refere-se a um movimento que não é próprio do sujeito, mas trata-se
de movimento advindo de outrem e que é observado em toda subjetividade que
se quer soberana e que, com este fim, deseja submeter outra a seu domínio.
Como resposta para a não aceitação do movimento dado, o sujeito
lança-se para além deste dado, que é como lhe surge a alteridade, e nega a si
mesmo como projeto acabado. Para realizar-se como sujeito livre, ele não pode
encerrar o movimento de desvelar a si e ao mundo; este trabalho ontológico de
projetar-se adiante superando o dado requer o movimento subjetivo constante
de constituir-se, evitando tomar-se como projeto acabado. Em Pyrrhus et
Cinéas aparece claramente esta noção de incompletude do sujeito, na
passagem a seguir.
“Não se pode completar um homem, [...] sua
condição é a de superar o que é dado. [...]
qualquer objeto reduzido a sua presença
imediata, em qualquer momento é ínfimo
para um homem. O próprio homem é pouco
para si mesmo, uma vez que ele pode
sempre ser infinitamente maior do que ele
simplesmente é. [...] Uma vez que o homem
é projeto, a felicidade de seus prazeres não
poderia ser outra coisa senão projetos
193
”.
Ao negar-se como projeto acabado, o sujeito considera a alteridade que
lhe nega a liberdade, ou seja, a negação de si por outrem e por isso um
obstáculo à sua transcendência, como ponto de partida para superar-se rumo
ao novo. O sujeito afirma-se como soberano quando reivindica para si o
movimento de superar-se e repudia o domínio do outro sobre sua existência,
mesmo que este domínio esteja visando “facilitar-lhe as coisas”. Como
Beauvoir coloca em Pour une morale de l’ambigüité,
193
BEAUVOIR, Simone de. “Pyrrhus et Cinéas” in Pour une morale de lambigüité, pp. 257-8
144
“O homem não cria o mundo e não consegue
desvendá-lo senão através das resistências
que esse mundo lhe opõe; a vontade não se
define senão suscitando obstáculos”
194
.
O sujeito sempre corre o risco de ver negado pelo outro o seu
movimento próprio de transcendência. E, além de ter que assumir e superar
esse risco, o sujeito tem que negar a si próprio como projeto pronto e acabado,
para que possa continuar o movimento de constituir-se no novo. Essa
autonegação subjetiva não traz em si o sentido de aniquilação, mas sim de
renúncia à identificação com o dado, o objeto, uma vez que o sujeito não pára
de desvelar-se. A não identificação com o dado ou com o objeto do mundo, é a
recusa em paralisar o movimento de desvelar a si e ao dado do mundo,
movimento esse que caracteriza a liberdade do sujeito. Dito de outro modo,
aceitar-se pronto é recusar continuar o movimento do vir-a-ser e acomodar-se
no dado já desvelado, ou seja, demitir-se de constituir-se e de desvelar-se.
Esta constante elaboração do novo, isto é, esse movimento sempre em
direção do desvelamento, tanto de si mesmo quanto do mundo, é o que
constitui a liberdade existencial do sujeito, o que define seu movimento próprio
como projeto infindável de superação do mesmo;
“se é verdade que todo projeto emana de
uma subjetividade, é verdade também que
esse movimento subjetivo põe por si mesmo
uma superação da subjetividade. É apenas
na existência de outros homens que o
homem pode encontrar uma justificação para
sua própria existência. [...] a relação
eu/outrem é tão indissolúvel quanto a relação
sujeito/objeto.
195
No primeiro capítulo foi tratada a forma de expressão que Simone de
Beauvoir utiliza para expor sua reflexão filosófica, que são as estórias realísticas
com que a autora compõe seus romances metafísicos, muitas vezes se
inspirando na própria existência para ilustrar a problemática que irá trabalhar.
Naquela discussão foi mostrado que a filósofa reproduz nesses romances as
194
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 39.
195
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 103-4.
145
situações existenciais características de conceitos que pretende investigar.
Nesse momento, o romance Quand prime le spirituel é tomado como exemplo
para buscar em sua hermenêutica, importantes considerações sobre o
pensamento beauvoireano acerca do sujeito.
Primeiramente, Simone de Beauvoir expõe o pensamento de sua
personagem que divaga sobre sua situação: “no lugar que Denis tinha deixado
vazio, agora eu via a mim mesma”
196
. Este comentário servirá como um
excelente ponto de partida para empreender importantes análises sobre o
conceito de sujeito. É preciso retomar agora o conteúdo a que esta citação se
refere. Denis é o homem que Marguerite amava e que sai de sua vida
repentinamente, sem que tenha havido um rompimento formal de seu
envolvimento. Quando ocorre o rompimento, Marguerite recai literalmente em
sua existência, pois enquanto se sentia preenchida pela paixão por Denis, vivia
um amor ideal, distante de sua realidade. Enquanto apaixonada, Marguerite
desviou sua afirmação subjetiva para o objeto da paixão; “no apaixonado, a
subjetividade fracassa em confirmar-se”
197
, já que o sujeito suspende o trabalho
de confirmar-se em meio aos outros, “pois somente o objeto de sua paixão lhe
parece real e pleno”
198
. A paixão povoa o sujeito com objetos que nem sempre
estão presentes no mundo dado, mas parecem habitar apenas o mundo do
sujeito apaixonado, o que o distancia da existência intersubjetiva,
comprometendo a liberdade de constituir-se a si e ao outro. A existência livre
necessita da alteridade: “nenhuma existência pode se realizar validamente se
se limitar a si mesma”
199
.
Situações que levam o sujeito a evadir-se do mundo dado refugiando-
se em sua ipseidade, constituem situações que o afastam de sua condição de
existente livre, que precisa engajar-se em projetos para desvelar-se na ação.
Tais situações tendem a afastar o sujeito das possibilidades que se encontram
no mundo dado, entre outros sujeitos, e são essas situações que fundam a
condição de liberdade do sujeito, que por sua vez será a garantia para a plena
realização do existente. A idéia de um elemento que norteie a existência
subjetiva e que não tenha surgido do próprio discernimento subjetivo em
196
BEAUVOIR, Simone de. Quando o espiritual domina, pp. 220.
197
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 91.
198
Idem, pp. 94.
199
Idem, pp. 97.
146
promover sua realização como consciência livre e soberana deve ser encarada
como um obstáculo ao seu processo de desvelamento.
Para o pensamento beauvoireano, a subjetividade humana é pensada
como sendo, ao mesmo tempo, criatura e criadora das possibilidades
existenciais presentes no mundo dado. É usada esta expressão – criatura e
criadora, porque se entende que a subjetividade humana, tanto elabora suas
possibilidades ontológicas, por conta de sua liberdade de escolha, quanto é
resultado de escolhas efetuadas pelas alteridades que dividem o espaço
existencial do indiduo.
No mundo co-existem sujeitos que buscam, cada um por si, sua
soberania existencial através da afirmação de sua liberdade em realizar suas
escolhas ontológicas, e é através dessas escolhas que criam as situações em
que realizam seu projeto ontológico.
As situações existenciais tanto realizam o projeto daquele que o
idealiza, como podem servir como ponto de partida para a realização de outrem.
O sujeito constitui-se e é constituído na situação vivida, segundo o projeto que
escolhe para si, cujo propósito define aliados ou inimigos. Conforme afirmado
em Pyrrhus et Cinéas, “é pelo próprio projeto que, definindo os objetos que eu
fundo, eu me defino a mim mesmo. E defino o público a quem endereço o meu
chamado”
200
.
A constituição do sujeito beauvoireano impõe necessariamente que ele
reconheça a sua liberdade de constituir-se. Não há como o sujeito fazer-se
soberano se não assumir sua condição humana de existente livre. A liberdade
é a fundadora do mundo do sujeito; através dela ele fará suas escolhas dentro
de seu espaço situacional, onde erigirá seu projeto existencial. Dizer que o
sujeito é livre, é afirmar sua condição humana que não depende de nenhum
outro para constituir seu projeto, de onde sobrevêm suas escolhas.
O ser humano surge no mundo dotado de razão e autonomia e, uma
vez que surge num mundo dado, vivencia a ambígua condição de liberdade.
Isto acontece porque ao mesmo tempo em que sua liberdade é soberana, é
tamm submetida à facticidade do imprevisível mundo dado, abrigo de
múltiplas subjetividades que também trazem consigo o desejo de afirmarem-se
200
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus e Cinéas” in Pour une morale de lambigüité pp. 352
147
soberanas. Este fato, o de estar submetido à facticidade do mundo dado, é o
que simultaneamente nega e afirma sua condição de sujeito livre. Isto porque,
como já discutido, a escolha imperativa que o sujeito realiza em face às
possibilidades do mundo dado é o que legitima sua condição de liberdade; por
outro lado, as diversas possibilidades de realização de outras subjetividades lhe
impõem limites existenciais, por dois motivos diferentes. Primeiro porque o
outro não permite ao sujeito que este exerça domínio sobre aquele (o outro), o
que já impõe ao sujeito limites à transcendência. Transcender uma
subjetividade e submetê-la à qualidade de objeto dado é, como sabemos,
desejo de toda consciência, que tende a querer dominar o outro, submetendo-o
a sua soberania. A assunção da liberdade soberana por parte do outro sujeito,
por si já se impõe como limite para o primeiro sujeito. Logo, qualquer projeto
subjetivo que desconsidere a flagrante liberdade de outrem, estará fadado à
inautenticidade, já que a liberdade subjetiva é sustentada, em parte, pela
liberdade do outro. Portanto não reconhecer o outro como subjetividade livre é,
tamm, não assumir em si mesmo essa condição de sujeito livre; é um modo
de demitir-se da liberdade ontológica
201
.
Em segundo lugar, o sujeito livre toma a alteridade como ponto de
partida para a sua própria realização. A realização subjetiva só tem sentido
quando dotada de significação humana, isto é, quando inserida dentro de uma
situação vivida entre sujeitos; nenhum projeto autêntico tem validade quando
não está vinculado a algum sentido humano. Conforme Beauvoir coloca, em
Pirrhus et Cinéas:
“é uma necessidade que surgiu a partir de
sua existência, ou mais exatamente, que os
homens têm criado livremente a partir dessa
existência. Essa plenitude nova que nós
fazemos surgir no mundo cabe à liberdade
humana definir-lhe um lugar. Este lugar a
princípio não existe. Tal lugar não é feito por
nós; o que fizemos foi o objeto que o
preenche. Somente o outro pode criar uma
necessidade disso que nós lhe damos. Todo
chamado, toda exigência vem de sua
201
A liberdade setema específico do último capítulo; no momento gostaríamos de reforçar o
entendimento de que, em Simone de Beauvoir, e genericamente para o existencialismo, a noção de sujeito
é vinculada à idéia de liberdade, uma vez que para esta filósofa, é no exercício de sua liberdade que o
sujeito se constitui.
148
liberdade. Para que o objeto que eu fundei
apareça como um bem, é preciso que o outro
o constitua como seu bem. Então me
parecerá justificado tê-lo criado”
202
.
O sujeito elabora suas projeções enquanto existente em situação,
tomando o outro como ponto de partida para sua criação. Logo, todo sujeito
depende do outro para realizar-se. Eis que se ergue para o sujeito sua
condição ambígua: ele é livre para realizar-se, mas sua realização depende de
uma situação existencial para acontecer. Como Simone de Beauvoir afirma em
Pyrrhus et Cinéas, “um homem é por sua vez, liberdade e facticidade. Ele é
livre, mas não se trata dessa liberdade abstrata de que falavam os estóicos; ele
é livre em situação
203
”.
Em algumas ocasiões, Simone de Beauvoir infere que a escolha
ontológica é o uso ontológico da razão. A ação que a razão desencadeia é o
trabalho que o sujeito empreende em escolher ser; enquanto o sujeito escolhe
realizar uma determinada ação, está valorizando positivamente esta ação, logo
está elaborando em si, através de sua condição humana de racionalidade
autônoma, um juízo de valor, conforme ela afirma em Pour une morale de
l’ambigüité, “a liberdade é a fonte de que surgem todas as significações e todos
os valores”
204
. É importante notar que esta liberdade de que fala Simone de
Beauvoir não é a liberdade objetiva, ligada às noções de permissão e posse,
referentes aos diferentes papéis sociais que os sujeitos representam. Simone
de Beauvoir pensa uma liberdade original do sujeito, vinculada às possibilidades
de realização subjetivas que o sujeito empreende, apesar de existir em situação
e representar seus papéis socialmente. Beauvoir pensa a liberdade do sujeito
que, mesmo existindo em situação, conserva a autonomia de sua razão, não
abrindo mão do estatuto de soberania da consciência que tem de si mesmo e
do mundo dado. Assim, o sujeito livre não se permite tomar consciência de si e
do mundo senão através de seu próprio discernimento.
Por outro lado, o indivíduo que admite que outros resolvam sua
existência é porque não tomou para si sua condição de existente livre, não
202
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus e Cinéas” in Pour une morale de lambigüité , pp. 338.
203
BEAUVOIR, Simone de. “Pihrrus et Cinéas” in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 326.
204
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 33.
149
sofrendo assim o risco de escolher constituir-se a todo o momento. Sua
existência está resolvida por outrem. Mas, segundo Beauvoir, mesmo nesta
condição de passividade, este indivíduo também está exercendo sua liberdade,
já que aquele que se retrai na condição de objeto mantido por um sujeito,
escolheu ser passivo, exerceu sua liberdade de sujeito soberano fazendo-se
não-livre:
“... posso evitar essa escolha; havíamos dito
que seria contraditório querer-se
deliberadamente não livre: mas é possível
não querer-se livre: na preguiça, no
entorpecimento, no capricho, na covardia, na
impaciência, contesta-se o sentido do projeto
no próprio momento em que se define”
205
.
O indivíduo depende apenas de sua vontade para fazer-se livre, mas
apesar do homem não depender de outrem para constituir-se, ele precisa que o
outro o reconheça, e por isso o constitua, como liberdade que se faz. Por sua
vez, este outro se constitui como liberdade, quando reconhece no outro a
mesma condição. “Somente a liberdade do outro é capaz de necessitar do meu
ser. Minha necessidade é, portanto, ter os homens livres diante de mim
206
.
Nota-se assim, que a constituição de sujeitos soberanos é uma atitude
intersubjetiva, necessitando tanto da assunção subjetiva desta liberdade para
constituir-se como tamm da admissão dessa liberdade no outro, para que ele
possa ser livre para constituir, tanto o sujeito que o vê como liberdade, como a
si mesmo. Observa-se essa relação discutida em Pyrrhus et Cinéas:
“Para que os homens possam me dar um
lugar no mundo, é preciso primeiro que eu
faça surgir ao meu redor um mundo onde os
homens tenham seu lugar. É somente meu
livre movimento em direção ao meu ser que
eu posso confirmar no ser daqueles de quem
eu encontro um fundamento necessário para
o meu ser. É necessário amar, desejar,
fazer. É minha ação mesma que deve definir
o público do qual eu a proponho. [...] Os
homens existem como aliados ou como
205
Idem, pp. 36.
206
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus e Cinéas” in Pour une morale de l’ambigüité pp. 338.
150
inimigos segundo meu projeto que concorde
com ele ou o contradiga”
207
.
É através das possibilidades existenciais insurgentes no mundo da vida
que a liberdade encontra forma de se realizar; realiza-se tanto como sujeito que
faz a escolha como enquanto sujeito que se faz objeto e sofre a escolha. A
escolha de ser surge diante do sujeito de modo decisivo: ele é sempre livre, seja
para escolher realizar sua existência ou para demitir-se dessa autonomia,
transformando-se em passividade inerte, objeto de outro sujeito, consciência
submissa a outrem.
Dessa forma, a realização representa um jogo dialético que o sujeito
exerce entre sua liberdade e a liberdade do outro, quando um e outro se
revezam na situação de soberania ou de passividade. A realização subjetiva é
condicionada pela presença da alteridade, isto é, encontra sentido em função da
alteridade. É pelo outro que a liberdade do sujeito é confirmada. Além disso, a
presença do outro diante do sujeito livre representa o ponto de partida para ele
transcender o dado da situação em que co-existem.
A consciência subjetiva só é soberana quando está em situação. É
sempre em meio ao mundo dado que o sujeito deve afirmar-se. Ora, qualquer
consciência será sempre soberana quando isolada em sua ipseidade. A
validade de sua soberania está em constantemente afirmar-se frente à
alteridade como constituidora de si mesmo, sem jamais demitir-se do trabalho
ontológico de seu projeto e assumir-se sempre livre para criar um novo projeto.
O sujeito elabora suas construções intelectuais a partir dos dados do
mundo, e constitui seu projeto existencial a partir da situação dada. Se o sujeito
não se assumir como constituidor de sua trajetória existencial, ele se demite de
sua condição de sujeito livre, dando a outrem o status de fundador de sua
existência.
Existem diversas situações no mundo da vida que, desde seu
surgimento, oferecem ao sujeito a satisfação passiva da facilidade. O não fazer,
o deixar-se levar pela situação já criada pela alteridade promete ser mais fácil
207
Idem, pp. 353-4
151
do que empreender um projeto próprio, cujo empenho requer trabalho
ontológico.
Em diferentes situações, Beauvoir mostra a tendência humana de
querer entregar-se à comodidade do não-fazer. Esta foi a armadilha que
seduziu a mulher e continua seduzindo, dificultando a afirmação de sua
subjetividade, conforme aponta em Le deuxième sexe:
“É natural que não procure criar por si
mesma seu lugar neste mundo, [...]
Enquanto não houver uma perfeita igualdade
econômica na sociedade e enquanto os
costumes autorizarem a mulher, como
esposa ou amante, a aproveitar-se do
privilégio de certos homens, o sonho de um
êxito passivo continuará e ela freará suas
próprias realizações”
208
.
Cumpre notar que antes de a filósofa apontar o privilégio feminino, ela
aponta o que induziu o estabelecimento deste privilégio, que é o fato de não
haver igualdade econômica na sociedade e a mulher ser colocada na situação
de mantida pelo homem, tanto enquanto esposa, quanto nos diferentes papéis
sociais que a mulher representa, como irmã, filha, mãe, amante, cujas
subsistências são garantidas por um mantenedor masculino, inclusive sendo
este fato salvaguardado por lei.
Em seu livro Quand prime le spirituel, Simone de Beauvoir esboça,
ainda de maneira indireta, sua reprovação a uma moralidade estabelecida
socialmente, cuja regra acomoda a noção de dependência feminina a uma
figura masculina que se encarrega de resolver-lhe a existência. Neste livro, ela
mostra como as atitudes provenientes de uma consagração da mulher como
dependente economicamente podem significar a limitação à liberdade
existencial feminina de responsabilizar-se por si mesma como sujeito livre,
principalmente por não se fazer responsável por sua subsistência. A filósofa
aponta uma acomodação do sujeito à renúncia dessa liberdade, quando se
instala na comodidade da dependência econômica e emocional. Na sátira
presente em sua hermenêutica, o livro mostra os conflitos existenciais de
personagens moralizadas pela situação em que vivem, e não pelas escolhas de
208
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp.128
152
valores que tenham sido realizadas por suas subjetividades, e por isso limitadas
aos conteúdos de suas circunstâncias, sem perceberem-se livres e
suficientemente capazes de constituírem-se de modo diferente, transcendendo
esta situação dada.
Quando o espiritual domina? Quando a existência é conduzida pelo
ideal moral que nos impregna, assimilado de um valor dado, não sendo um
resultado da elaboração subjetiva. Conforme Simone de Beauvoir afirma, o
único absoluto autêntico é a situação do existente, e a característica
fundamental desta situação é a liberdade do vir-a-ser, do constituir-se a partir do
dado presente, e não de um absoluto eterno, consolidado por outras
consciências que mantêm interesses de dominação. Este caso é observado no
estado de moralidade social, cuja proposta de comportamentos aliena o sujeito
de sua responsabilidade de fazer-se, oferecendo comodidades existenciais em
troca de sua soberania.
Além desta situação de submissão ontológica, Simone de Beauvoir
aponta um problema ético presente no fato do sujeito acomodar-se na
passividade. Conforme já discutido, o sujeito é livre e responsável por
constituir-se, e isto implica em escolhas que precisa fazer. Estas escolhas
estão assentadas sobre valores que o sujeito reelabora para constituir-se. Mais
uma vez aqui se verifica o trabalho ontológico como o fundamento para a
resolução existencial do sujeito. Fazendo-se e assumindo-se livre, o sujeito
escolhe ser em situação, realizando os juízos pertinentes a essas escolhas.
Sua ação, que resulta de seu trabalho ontológico, faz com que não atribua a
outrem os resultados de sua investida existencial ou, o que é pior, atribuir a
outrem a falta de resultados de sua existência. Simone de Beauvoir mostra
estas armadilhas da passividade em Le deuxième sexe:
“O indivíduo que age reconhece-se
responsável do mesmo modo que os outros
pelo mal e pelo bem. Sabe que lhe cabe
definir os fins e fazer com que triunfem;
sente na ação a ambigüidade de toda
solução.[...] Mas quem é passivo coloca-se
fora do jogo e recusa-se a colocar, ainda que
em pensamento, os problemas éticos: o
bem deve ser realizado, e se não o é, há
uma falta cujos culpados devem ser punidos.
153
[...] o maniqueísmo tranqüiliza o espírito,
suprimindo a angústia da escolha”
209
.
Nesta citação, Beauvoir aponta a passividade admitida do sujeito, que
esconde nesta passividade sua escolha de não exercer sua responsabilidade de
escolher agir, atribuindo a outrem o trabalho ontológico de constituir um valor.
Esta é uma atitude muito encontrada na mulher que, pela situação de mantida
financeiramente, acomoda-se na situação de mantida existencialmente tamm,
fazendo-se coisa para não ter que assumir sua condição de sujeito livre e
responsável por um projeto ontológico, que requer empenho em elaborar
valores e sustentá-los em suas escolhas existenciais.
Por outro lado, o homem tamm se aliena na situação de provedor
existencial, pois assim sua escolha já estará feita, não necessitando do trabalho
ontológico indispensável para dar sentido à sua existência. O sujeito masculino
aliena-se no papel de provedor, atribuindo a ele todos os entraves existenciais
que venha sofrer, conforme Beauvoir destaca, em Le deuxième sexe:
“Ele espera realizar-se como ser possuindo
carnalmente um ser e ao mesmo tempo em
que consegue confirmar-se em sua liberdade
através de uma liberdade dócil (...)
Aparecendo como outro, a mulher aparece
ao mesmo tempo como uma plenitude de ser
em oposição a essa existência cujo vazio o
homem sente em si”
210
.
E ainda,
“Não é somente para possuí-lo que o homem
sonha com um Outro, é também para ser
confirmado por ele; fazer-se confirmar por
homens, que são seus semelhantes, exige
dele uma tensão constante”
211
.
Para Simone de Beauvoir, a iia de um absoluto não contemporâneo
ao sujeito aniquila a sua liberdade, uma vez que o sujeito terá que acomodar-se
a esse absoluto. Como já visto, absoluta só é a situação, que é o momento
209
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 433.
210
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 234.
211
Idem, pp. 290.
154
presente em que co-existem o sujeito e a alteridade, num mundo dado, mas que
é reelaborado por cada sujeito a partir de seu projeto.
Por meio dessas considerações percebe-se que Simone de Beauvoir
apresenta uma idéia de sujeito que depende tanto de suas construções quanto
das do outro para constituir seu mundo, historicamente, a cada instante. Como
encontrado em Pour une morale de l’ambigüité,
“a cada instante o homem apreende a
verdade intemporal de sua existência; mas
entre o passado que não é mais e o futuro
que ainda não é, esse instante em que ele
existe não é nada”
212
.
O homem é um ser histórico. Ele é fundado no passado e faz-se
existente projetando-se para um futuro. No presente, o ser é sustentado pela
expectativa de vir-a-ser.
E sendo o ser histórico, a situação do sujeito feminino encontra
fundamentação e endosso nesse aspecto da historicidade humana. Se o ser
constitui-se, fundando seus valores a partir dos valores que estão aí, no mundo
dado, a situação provocada de inferiorização do ser feminino é resultante de
uma colocação de valores interesseiros em fazer dessa situação uma condição.
É possível verificar que, ao longo da história, a mulher foi caracterizada como
ser diferente e inferior, inclusive recebendo uma definição alusiva a sua
condição peculiar de mulher, que é o conceito de eterno feminino. Vemos uma
tentativa de confundir os conceitos situação e condição. A condição humana é
um fato dado, não mutável, enquanto que a situação pode ser transcendida pelo
sujeito. O sexo humano, apesar de fazer parte da condição humana, é
situacional, portanto não pode definir o sujeito em essência.
Ao longo dessa exposição a respeito do conceito de sujeito, foi
encontrado um aspecto fundamental para o entendimento de uma discussão
importante em torno da noção de fracasso, que Simone de Beauvoir apresenta
em seu ensaio filosófico Pour une morale de l’ambigüi. No início desta obra, a
filósofa cita seu companheiro de trabalho e de vida Jean-Paul Sartre, quando
analisa o fundamento da liberdade ontológica de realização que, para este
212
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 9-10.
155
pensador, dá gênese à idéia de fracasso. O fracasso sartreano seria a não
coincidência da realização do ser com o seu projeto inicial, já que, conforme
Beauvoir descreve, Sartre define o homem como “o ser cujo ser reside em não
ser”
213
. Nesta afirmação sartreana, estaria assentada a idéia de um possível
fracasso ontológico, já que o ser nunca se alcançaria, pois ser, segundo Sartre,
é negar ser, conforme consta nesta citação. Em L’être et le néant, o próprio
Sartre afirma que o “não-ser surge sempre nos limites de uma espera humana;
[...] a negação aparece sobre o fundo primitivo de uma relação entre o homem e
o mundo”
214
. O não-ser surge como possibilidade ontológica do ser. Se há a
crença na realização de um projeto é porque tamm há a possibilidade da não
realização. Sartre adianta a noção de que existindo o ser, necessariamente
existirá o não-ser deste ser. O não-ser é o fracasso do ser, logo se o ser reside
em não ser, poderia dizer que o ser é fracasso.
Ainda neste ensaio, Pour une morale de l’ambigüi, a filósofa retoma
esta idéia, ao afirmar que para a ontologia existencialista “a paixão do homem é
inútil, não há para ele nenhum meio de tornar-se este ser que ele não é”
215
.
Em face do fracasso ontológico, a paixão humana é classificada como
inútil, porque ela é para nada, segundo o próprio Sartre, já que o ser é fracasso.
Mas é ainda Sartre quem salva o ser do abismo existencial quando diz que o
ser é intenção de ser; “o homem se faz falta de ser afim de que haja ser”. Não é
vã a nadificação do ser, é intencional. O homem quer desvelar e ser desvelado
no movimento de desvelar. Mas, antes de desvelar-se, ele é nada, e angustia-
se com o nada que é.
Diferentemente de Sartre, Simone de Beauvoir não encontra no ser o
não-ser. O ser co-existe no mundo dado com outros sujeitos, a filósofa não
define um momento em que o ser é o não-ser, para possibilitar o ser, conforme
visto em Sartre. O ser beauvoireano desvela-se no mundo dado, desvelando o
mundo segundo seu projeto ontológico. A idéia de falta de ser que pode surgir
nesse movimento subjetivo de desvelar-se é somente a não coincidência do ser
do sujeito com o ser do dado do mundo, não existindo um vazio ontológico entre
o sujeito e o mundo dado, que seria o não-ser sartreano.
213
Idem, pp. 13.
214
SARTRE, Jean-Paul. El ser y la nada, pp. 45.
215
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 15.
156
É neste suposto espaço que existe entre o ser e o não-ser que parece
surgir a idéia de fracasso, já que o ser está sempre distante de sua realização.
Diferentemente de fracasso, Simone de Beauvoir chama de sucesso a investida
subjetiva em constituir-se: “este fim que o homem se propõe ao se fazer falta de
ser, se realiza, com efeito, através dele
216
.
A distância que em Sartre é vista como fracasso, pois o ser “aja como
lhe aprouver, nunca se realiza”, em Simone de Beauvoir é o próprio sucesso
existencial. É a distância que existe entre o ser e o mundo que faz surgir, ao
mesmo tempo, ele mesmo e este mundo: “arrancando-se do mundo, o homem
se torna presente para o mundo e torna o mundo presente para si
217
.
Segundo Beauvoir, para Sartre o homem quer ser Deus e fracassa.
Ela, ao contrário, pensa que, em sua vã tentativa de ser Deus, o homem se faz
existir como homem e se satisfaz com essa existência, pois assim ele coincide
exatamente consigo: “seu ser é falta de ser, mas há uma maneira de ser dessa
falta que é precisamente a existência”
218
. O nada angustiante visto por Sartre,
em Simone de Beauvoir é visto como a existência que é, em última instância, o
constituir-se frente ao dado do mundo, frente à alteridade que se lhe opõe. O
sujeito beavoireano constitui-se a partir do dado, reelaborando os valores
encontrados no mundo, e não simplesmente intencionando ser, elaborando uma
situação a partir de seu projeto. E por isso mesmo, antes desta reelaboração
subjetiva do mundo dado assinalada pelo pensamento beauvoireano, nada é útil
ou inútil. Se o sentido da existência é dado na e pela realização subjetiva, que
comporta o movimento de desvelar-se e desvelar o mundo, a utilidade e/ou
inutilidade do dado se desvelará no momento de sua aparição ao sujeito.
Beauvoir supera a idéia de fracasso existencial, superando a negação do ser,
porque o ser não é mais falta de ser, ele é manifestação da existência
219
.
Beauvoir assim o afirma, em Pour une morale de l’ambiguité: “o fracasso não é
superado, mas assumido; a existência se afirma como um absoluto que deve
buscar em si sua justificação e não se suprimir, ainda que se conservando”
220
.
Essa assunção do fracasso é chamada por Beauvoir de conversão existencial,
216
Idem, pp. 16.
217
Idem, pp.16-7.
218
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 17.
219
Idem, pp.18.
220
Idem, pp.18
157
que é a transformação do fracasso em sucesso existencial. Para a filósofa, a
paixão do homem justifica-se em si mesma. O tipo original de ser é a paixão
em querer desvelar o ser, sem a intenção de atingir um dever-ser. Esta
conversão existencialista não suprime os instintos, os desejos, os projetos;
apenas previne qualquer possibilidade de fracasso ao se recusar a pôr como
absolutos os fins, rumo aos quais se lança a transcendência subjetiva. Esta é a
primeira implicação da conversão existencial de fracasso em sucesso, apontada
por Beauvoir: não aceitar valores do mundo dado como absolutos, não pensar
um dever-ser como projeto humano.
A liberdade, para Beauvoir, é inerente ao sujeito, faz parte de sua
condição humana. O homem não poderia querer-se livre uma vez que ele já é
livre. Mas esse querer-se livre acontece porque existe a possibilidade do ser
ver-se aprisionado no dado do mundo. O ser se constitui a partir do dado, mas
ele pode alienar-se nesse dado, acomodando-se numa situação resolvida,
escolhendo a situação de sujeito não-livre. E por isso Beauvoir afirma que o
tipo original de ser é o querer ser livre porque, como será mostrado no capítulo
a seguir, dedicado a analisar a liberdade deste sujeito beauvoireano, o dado do
mundo pode reter o existente em sua objetividade, grudar o existente em sua
imanência; é preciso que o existente queira transcender o dado, exercendo sua
condição humana de sujeito livre.
O último capítulo se deterá nos movimentos do sujeito em querer ser
livre, em querer constituir-se segundo suas escolhas. Nas próximas páginas,
esse movimento será desdobrado para que seja facilitada a compreensão do
sentido de se dizer que o ser quer desvelar a si e ao dado do mundo, que é o
que constitui, segundo Simone de Beauvoir, a liberdade humana.
158
CAPÍTULO IV
DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: A AMBIGÜIDADE MORAL DE
SIMONE DE BEAUVOIR
Este capítulo apresenta a discussão principal deste trabalho, que é
a análise dos conceitos de demissão e assunção da existência no
pensamento de Simone de Beauvoir e que são, em última instância, as
atitudes existenciais que o sujeito toma em face de sua condição original de
liberdade e que acabam por definir sua realização ontológica. Como
anunciado na Introdução, a realização feminina não acontece em sua
plenitude porque a mulher foi submetida a um estado de inferioridade em
que sua liberdade de escolha foi limitada pela pré-definição de sua essência.
Será estudada agora a constituição dessa escolha ontológica e o porquê
dessa escolha fundamentar a liberdade subjetiva.
A noção de liberdade em Simone de Beauvoir está vinculada à
noção de existência, porque o termo existir traz em si a significação de que o
sujeito existe em meio a um mundo dado. No existencialismo beauvoireano
a existência subjetiva é a atividade do sujeito em constituir-se, cuja atividade
é composta por movimentos que o sujeito realiza para atingir sua meta
existencial. O sujeito movimenta-se em um mundo já dado, meio onde se
encontram as possibilidades de realização existencial. Por esse motivo, seu
projeto existencial toma como ponto de partida o mundo dado.
Ao surgir no mundo, o ser humano é originariamente livre. Com o seu
surgimento, detém a condição de constituir-se sujeito soberano. A liberdade
é o fundamento de suas escolhas. Quando o sujeito não exerce sua
escolha, seja por assim o escolher, seja por opressão de outrem, não está
sendo soberano de sua situação porque o está escolhendo seus próprios
projetos, não está realizando por si mesmo o sentido de sua existência. Diz-
se nesse caso que o indivíduo está demitido de sua liberdade de escolha, e
que por isso, transforma-se em objeto de outras subjetividades.
159
Simone de Beauvoir estudou os movimentos que o sujeito realiza para
constiuir-se soberano de sua existência. São movimentos oriundos de sua
intenção de ser, que definem seu projeto e que por isso são chamados de
movimentos ontológicos. Através de seu estudo vê-se que o sujeito realiza-
se como transcendência de si, que é o movimento de superação do estado
inicial, verificado quando o ser assume seu estado original de liberdade e
realiza o ultrapassamento do mesmo. A situação de imanência é aquela
onde não se observa esta superação do estado inicial, e então se verifica a
passividade ontológica, o não exercício da liberdade de constituir-se. A
imanência pode ser resultado da opressão ou pode ser realizada como
escolha, e acontece quando o ser demite-se de sua condição de sujeito
soberano.
4.1 - A noção beauvoireana de liberdade
O sujeito se torna livre existindo em um mundo dado, cujas escolhas
ôntico-ontológicas, constituirão seu mundo de realizações subjetivas. Mas o
que leva o indivíduo a realizar algum projeto? Se o indivíduo já surgiu e já é
livre, o que o motiva a resolver-se em uma existência, desvelando a si
mesmo e ao mundo que o cerca? Para Beauvoir, o indivíduo quer desvelar-
se e revelar o sentido de sua existência, e é isto o que o lança sempre
adiante superando o dado do mundo.
Em Pour une morale de l’ambigüité, Simone de Beauvoir afirma ainda
que “querer a liberdade, querer desvelar o ser, é uma única e mesma
escolha”
221
. Afirmar que o ser quer desvelar-se equivale a dizer que o ser
deseja ser livre. O ser tem o desejo de querer desvelar a si e ao mundo
porque esta é a única consistência real do ser, o querer ser. O ser em si
mesmo não apresenta nenhuma consistência, a não ser através de seus
projetos de querer-ser. Em Le deuxiéme sexe, Beauvoir afirma que “um
existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a essência
221
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp.114.
160
não precede a existência; em sua pura subjetividade o ser humano não é
nada; Medem-no pelos seus atos”
222
.
A existência subjetiva é constituída de movimentos ontológicos em
direção à superação de si. Sem o constante movimento de superar-se
através da possibilidade encontrada no mundo dado, o ser não encontra a
possibilidade de desvelar-se enquanto desvela o dado do mundo (o objeto).
Se não houver o desvelamento ontológico no dado do mundo, o desejo
original do ser de querer ser não encontra sustentação, e acaba por lançar o
indivíduo sobre si mesmo, em um vazio ontológico.
O ser almeja a superação do mesmo, que é a situação de não
desvelamento, originado pelo não movimento ontológico. É o mesmo
porque já está desvelado, já fez parte de um projeto do sujeito, e por isso,
não guarda mais a possibilidade de desvelamento. O mesmo levará o
sujeito ao abismo do não-ser, que é o não-movimento, e por isso, o não-
sentido de sua existência. O mesmo, ou seja, aquele dado do mundo já
revelado pelo sujeito e que por isso, esgotou sua possibilidade de
desvelamento, não contém mais as possibilidades ontológicas que desvelam
o ser, que é o que doa sentido à existência do sujeito. Por isso o ser quer
superar-se, para não se perceber coincidindo consigo mesmo no instante
além do instante atual.
O fato de ser livre dá ao sujeito a única possibilidade de superação do
mesmo. O novo constantemente lhe seduz, porque sempre lhe apresenta
novas possibilidades de sentido, uma vez que o passado não fica retido em
seu instante atual. O instante passado é superado porque é o mesmo, não é
novo e por isso, é dissolvido pela inconsistência do nada. Em Pyhrrus et
Cinéas, Beauvoir afirma esta iia de inconsistência do instante passado da
seguinte forma: “O que constitui o meu ser é, primeiramente, o que faço.
Mas desde que já o fiz, eis que o objeto se separa de mim, me escapa”
223
.
Estar livre impele o sujeito a querer um projeto novo, a desejar este
projeto por ver nele sempre uma possibilidade de felicidade, que para
Beauvoir, é o mesmo que realização ontológica. Segundo a filósofa,
nenhuma posse é dada, mas a indiferença pelo mundo tamm não é dada.
222
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 388.
223
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 246.
161
Antes de ser uma coisa, o indivíduo é espontaneidade que deseja, que ama,
que quer, que age. O impulso da ação humana é o desejo de desvelar o ser
que está contido na possibilidade oferecida no dado do mundo. Para
Simone de Beauvoir, o desejo original de desvelar-se está impregnado de
um natural estado de alegria. Originalmente, o ser quer desvelar-se e se
compraz disso. Ela afirma esse estado de alegria original do ser em Pour
une morale de l’ambigüiquando afirma:
“Todo homem se lança no mundo fazendo-se
falta de ser; assim ele contribui para revesti-lo
de significação humana, ele o desvela; e o
mais deserdado experimenta às vezes nesse
movimento a alegria de existir: ele manifesta
então a existência como uma felicidade e o
mundo como uma fonte de alegria”
224
.
A ação humana é motivada pelo desejo do ser em desvelar-se, em
lançar-se ao mundo e revelar-se na possibilidade de ser que o mundo dado
oferece. Este desvelamento do ser, que acaba por defini-lo enquanto
existente é, portanto, um movimento, cuja amplitude propicia as escolhas
ontológicas, uma vez que tal movimento mostra as possibilidades de
realização.
No item a seguir será esclarecida esta idéia de movimento ontológico
que o existente realiza impulsionado por sua intenção original de desvelar a
si e ao mundo, através de seu lançamento em projeto para um futuro aberto,
cujas possibilidades lhe acenam como um convite para novos
empreendimentos existenciais.
224
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ ambigüité, pp. 60.
162
4.2 – Os movimentos ontológicos do existente
Como mostrado anteriormente, em sua reflexão, Beauvoir trata o
existente como um ser originariamente livre, que surge em meio à sua
humana condição de liberdade. Entretanto, ao lado do fato de esta liberdade
ser uma realidade, um dado existencial do humano, ela tamm precisa ser
confirmada, o que significa que o sujeito só se mantém livre pelo movimento
próprio em confirmar-se livre. A confirmão da liberdade é o movimento
ontológico que o sujeito empreende e que é constituído por dois momentos:
o de desvelar-se e o de desvelar o dado do mundo, e em várias passagens
Simone de Beauvoir afirma que o ser quer desvelar o ser. Dizer que o ser
quer desvelar o ser e que isto equivale a dizer que o ser quer ser livre é falar
de intencionalidade ontológica.
Debra Berghofen, em seu livro The philosophy of Simone de
Beauvoir, estuda este tema mostrando algumas peculiaridades do
pensamento de Beauvoir sobre este conceito. Primeiramente, Berghoffen
situa o pensamento de Beauvoir entre as noções de intencionalidade
existentes a partir de Husserl, e pensa encontrar em The Ethics of Ambiguity
(versão norte-americana de Pour une morale de l’ambigüi), o encontro das
vozes de Husserl e Hegel e uma negociação entre as diferenças entre
Merleau-Ponty e Sartre no que diz respeito a estas noções.
Debra Berghoffen assinala que a definição de intencionalidade em
Simone de Beauvoir acontece como expressão da compressão de dois
momentos distintos: um momento que desvela o ser e um momento que
identifica o “eu desvelado” com o “dado desvelado”. No primeiro momento,
o sujeito desvela o sentido do ser, experimentando a si mesmo como
liberdade de revelação. Percebe-se consciente da intersubjetividade do
mundo dado como fundadora do sentido de sua existência. No segundo
momento, o sujeito se apropria do sentido desvelado do ser, identificando-se
com o (ser) dado e querendo ser o dado que revela
225
.
225
Debra Berghoffen observa que, no relato beauvoireano do primeiro momento intencional é posvel
encontrar ecos do pensamento de Husserl e Merleau-Ponty. O primeiro momento intencional é o
desvelar-se ontológico motivado pelo desejo de desvelar-se, idéia que está relacionada tanto à
163
Sempre que Simone de Beauvoir se refere à intencionalidade do ser,
ela utiliza a afirmação de que o ser quer desvelar o dado e que o ser deseja
revelar-se no dado do mundo. É sempre esta compressão de dois
momentos, e ao descrever essa intencionalidade, Beauvoir acaba por
realizar uma caracterização destes momentos. O primeiro momento é
quando o ser desvela-se no dado do mundo, revelando sua espontaneidade.
Esse momento é mostrado por Beauvoir como desejado e por isso envolvido
por uma alegria original, uma vez que é a única possibilidade de realização
ontológica. No segundo momento, o ser quer ser o dado desvelado e por
isso, é um momento marcado pela angústia do fracasso de não atingir essa
realização, e tamm da tensão em afirmar-se como existente, mesmo ao
perceber que não é o dado revelado.
A própria percepção da impossibilidade de ser o que não é, afirma o
ser como soberano em si mesmo, convertendo o fracasso de não ser o dado
desvelado, em sucesso pela confirmação de perceber-se um ser desvelado.
E é neste lapso de tempo entre um momento e outro que ocorre a escolha
ontológica entre afirmar-se ou alienar-se no dado. Mas, em seguida, o ser
precisa retomar seu movimento de superação, uma vez que é quando se
lança na empresa de desvelar a si e ao mundo que realiza sua existência.
Em Pour une morale de l’ambigüité, Beauvoir o afirma:
“minha liberdade não deve buscar captar o
ser, mas desvelá-lo; o desvelamento é a
passagem do ser à existência; a meta visada
por minha liberdade é conquistar a existência
através da espessura sempre faltosa do
ser”
226
.
Segundo a perspectiva de Berghoffen, esses momentos intencionais,
apesar de e por se confrontarem, são ligados e dependentes entre si.
Contudo, uma leitura mais cuidadosa de Simone de Beauvoir pode revelar
que a filósofa privilegia o primeiro momento intencional, que é o momento
em que o ser é tomado pelo desejo de revelar-se. Nesse primeiro momento,
intencionalidade husserliana quanto à fenomenologia de Merleau-Ponty. O segundo momento, que é a
constatão da impossibilidade de ser o dado do mundo com a posterior confirmação de si mesmo, remete
à idéia de consciência soberana, de Hegel e Sartre.
226
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus et Cinéas in Pour une morale de lambigüité, pp. 42-3.
164
o ser descobre-se existente querendo desvelar-se; é o que Beauvoir chama
de um tipo original de ser que é o querer ser. Mas, além deste ser desejar
ser e assim desvelar-se, e ele precisa desse desejo alegre que o atira ao
novo, é preciso que ele confirme a si mesmo como existente para não se
perder no desejo de ser o que não é, o que é feito no segundo momento de
intencionalidade. Quando percebe o fracasso de não ser o dado, esse
mesmo fracasso o remete à sua soberania ontológica ao confirmar sua
existência, justamente por não ser o dado do mundo.
Assim, percebemos que discutir os movimentos do ser, nos leva
inevitavelmente ao conceito de liberdade. Isto acontece porque este
conceito em Simone de Beauvoir é completamente revestido pela idéia de
movimento ontológico. Falar em ser livre para Beauvoir é falar de um ser
que realiza o movimento intencional de desvelamento de si e do dado do
mundo, o qual é composto de dois momentos intencionais.
Para Beauvoir, constituir-se sujeito livre, ou seja, realizar a escolha
ontológica que desvela a si e ao mundo, só é possível num original estado
de liberdade, que por sua vez só acontece mediante o movimento do ser em
querer desvelar a si e ao dado do mundo.
4.3 - A escolha ontogica: má-fé ou liberdade autêntica
A existência traduzida pelo pensamento beauvoireano é um
empreendimento ontológico dinâmico, e por isso requer constantemente do
existente o movimento que possibilite desvelar a si e ao mundo. Sendo
assim, de acordo com a noção de existência, é possível concluir que, se a
atividade do ser não estiver implicada com algum movimento, estará
contrariando à noção de liberdade. A má-fé, sob o ponto de vista
beauvoireano, é originada de movimentos ontológicos contraditórios à noção
de liberdade, uma vez que ela é a própria interrupção do movimento de
desvelamento do ser e do dado do mundo, porque o não-movimento do ser,
o aprisiona em um dos momentos de sua intencionalidade.
165
A má-fé surge da interrupção do movimento no segundo momento
intencional. Como visto, neste segundo momento, o ser deseja ser o dado
do mundo e, quando percebe esta impossibilidade, afirma-se em sua própria
existência, e com a alegria de desvelar-se (do primeiro momento), compraz-
se em desvelar o dado. A má-fé seria a não confirmação da existência de si
mesmo, e a insistência do ser em desejar ser o dado, isto é, identificar-se
com o dado e, em conseqüência, interromper seu movimento de
desvelamento de si e do mundo.
A partir do momento que o ser identificar-se com algum dado do
mundo, ele perderá a principal condição de realização ontológica, que é o
querer ser. Quando o ser se identifica com o dado do mundo, ele passa a
ser esse dado, e isso paralisará seu movimento de constituir-se a partir do
desvelamento de si e do dado e, como observado anteriormente, é nesse
momento que ocorre a escolha ontológica entre confirmar-se soberano ou
perder-se no dado do mundo. Em resumo, agir de má-fé é interromper o
livre movimento de desvelamento de si e do mundo dado, que constitui a
intencionalidade do sujeito. A intencionalidade por sua vez, é constituída por
dois momentos intencionais: o querer desvelar-se e o querer desvelar o
dado do mundo.
Ao desvelar a si, o indivíduo se encontra no mundo dado, e volta-se a
este mundo para lhe desvelar o dado e, ao desvelar o dado, o ser encontra-
se num momento de escolha: confirmar sua soberania de sujeito livre e
retornar ao nada original, isto é, à condição inicial (de liberdade), quando
ainda não foi feita a escolha, quando há apenas a intenção de querer ser.
Essa condição original, esse nada, lhe possibilita o desvelamento de sua
intencionalidade. Ou o sujeito escolhe ser o dado do mundo e identifica-se
com ele, paralisando desta forma, o movimento de desvelamento de si e do
dado, uma vez que seu ser já estará preenchido por essa identificação com
o objeto (o dado), não acontecendo o citado retorno ao nada original.
Retornar ao nada original é o movimento que lhe possibilita reiniciar o
movimento ontológico de constituir-se.
Simone de Beauvoir cria em seus romances situações que mostram
de modo realístico, os movimentos ontológicos que os indivíduos realizam
para existir. Estes movimentos podem ser autênticos, aqueles em que os
166
sujeitos se empenham em se constituírem livres, ou movimentos ontológicos
originados de uma atitude em que a autenticidade dos momentos
intencionais é comprometida, e a completude do movimento ontológico que
institui a soberania do sujeito é frustrada. Quando isso acontece observa-se
a atitude de má-fé.
No primeiro capítulo, ao apresentar a obra de Beauvoir e comentar o
romance L’Invitée, observou-se que, neste romance, Beauvoir apresenta três
movimentos fundamentais, cuja tipologia representa as relações
intersubjetivas concretas baseadas na polaridade sujeito/objeto. Ela
identifica nessa tipologia três procedimentos fundamentais. O primeiro deles
seria a atitude que o sujeito toma em se fazer objeto do Outro. O segundo
consiste em fazer do Outro o objeto e o terceiro consiste na reciprocidade
das situações em que tanto o Um como o Outro ocupam, intercaladamente,
a posição de sujeito e objeto, tomando a igualdade das liberdades como
fonte de valor. O último movimento, sustentado pela reciprocidade das
situações, implica o contínuo movimento do sujeito em desvelar os dados
situacionais que lhe surgem na constante troca de papéis, enquanto que os
outros dois sugerem a interrupção desse movimento. Assim, vê-se que
somente a reciprocidade não constitui uma investida subjetiva em agir de
-fé.
Retomando a idéia de que a má-fé é a interrupção do movimento
ontológico de constituir-se sujeito soberano, serão examinados à luz dessa
noção de má-fé esses três movimentos fundamentais presentes nas
relações intersubjetivas, citados no parágrafo anterior. Como lembrado,
esses três movimentos foram primeiramente assinalados no romance
L’Invitée.
Esse romance é analisado por Edward Fulbrook
227
que procura, como
comentado no primeiro capítulo, afinidades entre o romance beauvoireano e
L’être et néant, de Sartre. Em seu trabalho, Fullbrook mostra que para
aquela relação que Simone de Beauvoir aponta como o movimento do
sujeito em se fazer objeto, Sartre descreve, na parte de seu livro que trata a
intersubjetividade, duas categorias de relações concretas: amor e
227
FULLBROOK, Edward. “She came to stay and Being and Nothinless” in The philosophy of Simone de
Beauvoir, ed. por Margareth A. Simons.
167
masoquismo. Para a segunda atitude - fazer do outro o objeto – descreve
quatro categorias: indiferença, desejo, ódio e sadismo. A reciprocidade não
é tratada por Sartre nessa obra, e ele encerra seu estudo a respeito da
intersubjetividade considerando que a introdução de uma terceira pessoa (O
Terceiro na formação de relações triangulares) afeta a relão sujeito/objeto.
O romance L’Invitée apresenta cinco personagens chaves, que
Beauvoir utiliza para ilustrar os conceitos aqui discutidos acerca das
relações intersubjetivas: Françoise, uma escritora através da qual a estória
é contada; Pierre, um jovem diretor e ator de teatro, que mantém um longo
relacionamento com Françoise; Xavière, jovem que causa uma série de
transtornos na relação de Françoise e Pierre, Elizabeth, irmã de Pierre, uma
mulher infeliz, a despeito de ser uma pintora de sucesso, e Gerbert, um
jovem assistente de Françoise. Com esses personagens, Beauvoir cria o
enredo que irá sustentar a formação de relões triangulares que se movem
entre si, através do princípio do Terceiro, elemento que irá estruturar esse
romance. Na passagem a seguir está clara essa intenção:
“Nós pretendíamos construir um verdadeiro
trio, uma vida de três pessoas, bem
equilibrada, onde ninguém se sacrificasse.
Talvez fosse uma coisa difícil de
conseguirmos, pelo menos, valia a pena
tentá-lo. Xavière porém, porta-se como uma
rameira ciumenta. Ora, se tu, ficas sendo a
vítima de tudo isso, enquanto eu banco o
apaixonado, então a nossa história torna-se
ignóbil”
228
.
Xavière é o ápice do primeiro triângulo, que inclui Françoise e Pierre.
No início, as relações entre eles permanecem no plano da indiferença, mas
segundo Barnes, citado por Fullbrook em seu trabalho
229
, tanto para Sartre
como para Beauvoir, isto significa que a terceira pessoa do triângulo é vista
somente como um objeto. É assim que Françoise vê Xavière, ela assim o
afirma nesta passagem:
228
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 368.
229
Obra citada.
168
“O que a encantava, porém, era
principalmente o fato de ter anexado à sua
vida a existência pequenina e triste de
Xavière. Agora esta, tal como Canzetti,
Gerbert ou Inès, pertencia-lhe. E esta posse
dava à Françoise alegrias mais fortes do que
todo o resto”
230
.
Ela não vê Xavière como sujeito determinado ou como um Outro que
poderia afetar sua vida de qualquer modo. Xavière não passa de um objeto
para o qual Françoise se projeta, até mesmo quando sua intenção é afetar os
sentimentos de Pierre. Entre Pierre e Françoise, Xavière é o Terceiro
através do qual, os primeiros “modulam” suas intenções. A passagem a
seguir mostra essa situação: “Percebia hoje que Pierre vivia por sua própria
conta. (...) A única maneira de aproximar-se de Pierre era procurar Xavière
e tentar vê-la como ele a via”
231
.
Entretanto, como nota Fallaize em The novels of Simone de
Beauvoir
232
, “Xavière é simplesmente uma representação do desafio implícito
que toda consciência estranha constitui para nós”
233
. Françoise quer fazer
de Xavière seu objeto; e esta por sua vez, em diversas situações coloca-se
como objeto. Entre Pierre e Françoise observa-se uma relação de
reciprocidade, pois entre eles ocorre a troca das situações de sujeito e
objeto, como é mostrado na seguinte passagem:
“Entre nós há reciprocidade. (...) _ Tu
reconheces que tenho uma consciência, não
é verdade? Ora, sabes que procedo da
mesma forma em relação a ti. (...) A amizade
é exatamente isso. A renúncia de cada uma
à sua própria preponderância. Mas se um de
nós recusasse a renunciar, o que
aconteceria? (...) a amizade seria impossível.
(...)Xavière nunca renunciava; por mais alto
que colocasse uma pessoa, por mais que a
adorasse, ela continuava a ser um objeto”
234
.
230
BEAUVOIR. Simone de. L’Invitée, pp. 23.
231
Idem, pp.374.
232
Obra citada por Edward Fullbrook em She came to Stay and Being and Nothingless.
233
FALLAIZE, Elizabeth. The novels of simone de Beauvoir. London: Routledge, 1988.
234
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 376.
169
Em Pour une morale de l’ambigüité, Beauvoir descreve alguns perfis
de movimento ontológico em que o sujeito desenvolve a atitude de má-fé em
sua relação com o conjunto de alteridade representada pelo mundo dado. À
diferença do que acontece em L’Invitée, onde é visto a transposição de
situações entre sujeito e objeto acontecer em relações intersubjetivas, em
Pour une morale de l’ambigüi essa transposição de situações acontece no
próprio sujeito, ou melhor, o sujeito não completa seu movimento de
confirmação da liberdade.
Nesse estudo, Beauvoir aponta cinco modos de expressão da atitude
de má-fé, e em cada qual procurará mostrar a relação dessa atitude com a
interrupção do movimento ontológico existencial. Beauvoir comenta a
atitude do sub-homem, do homem sério, do niilista, do aventureiro e do
apaixonado. Apesar de considerar o sub-homem como uma das maneiras
de o ser agir de má-fé, a filósofa parece sugerir também que a má-fé é uma
atitude de sub-homem, ao fazer a reflexão a seguir:
“existir é fazer-se falta de ser, é lançar-se no
mundo: podemos considerar como sub-
homens aqueles que se aplicam a reter esse
movimento original; eles têm olhos e ouvidos,
mas se fazem desde a infância cegos e
surdos, sem amor, sem desejo. Essa apatia
manifesta um medo fundamental diante da
existência, diante dos riscos e tensões que
ela implica; o sub-homem
recusa essa
‘paixão’ que é a sua condição de homem
[...]”
235
.
Fazer-se falta de ser, como descrito nesta citação, é o retorno da
intencionalidade subjetiva ao primeiro momento, no qual sua soberania é
confirmada. Com o objetivo de confirmar-se livre, o ser nega identificar-se
com o dado do mundo para continuar livre e querer desvelar o ser.
Mas esse retorno é temido pelo sub-homem. O sub-homem é assim
chamado porque não completa seu movimento de constituição de sujeito
livre, que é o movimento de retorno da negatividade do ser para a
positividade que lhe confirma sua liberdade ontológica. “Tanto quanto o
235
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 61-2.
170
engajamento em um projeto, ele teme uma disponibilidade que o deixaria em
perigo diante do futuro, em meio às suas possibilidades”
236
. Relembrando a
constituição da intencionalidade subjetiva, no primeiro momento o ser
desvela-se em meio ao mundo dado e quer desvelar esse mundo.
Entretanto, nesse querer desvelar o dado do mundo, o ser deseja ser esse
dado; para continuar o livre movimento de desvelar-se, ele precisa negar ser
o dado do mundo e confirmar sua existência retornando ao primeiro
momento intencional que o fará querer desvelar o ser.
Por temer o risco do desvelamento, o sub-homem se apega a valores
já desvelados do mundo dado. Esconde-se em conceitos prontos como
fuga garantida, e por esses conceitos não se tratarem de nenhum
desvelamento de si mesmo, entrega-se em sua defesa com voluntariedade.
Entretanto, sua voluntariedade é uma força cega, uma vez que não visa
constituir-se, mas adere a qualquer ímpeto que povoe sua indiferença de ser
com algum objetivo, ainda que este se trate de um projeto vazio de sentido
para sua existência. Conforme Beauvoir chama atenção, apesar de o sub-
homem ser definido como recusa e fuga de si, ele não é inofensivo. Por não
constituir-se soberana, sua liberdade faz-se mercê de outras consciências
que a submetem aos seus projetos: “é entre os sub-homens que se recruta a
mão-de-obra em todos os grandes movimentos sangrentos”
237
.
Outro tipo de constituição ontológica fundamentada na má-fé é a
atitude do homem sério. À diferença do sub-homem que se apega a
qualquer ideal, o homem sério
agarra-se a conceitos já pré-aprovados pelo
grupo em que está inserido. “Perde-se no objeto a fim de aniquilar sua
subjetividade. [...] O homem sério se desembaraça de sua liberdade
pretendendo subordiná-la a valores que seriam incondicionados”
238
. No
segundo momento intencional, quando teria que negar ser o dado do mundo,
o homem sério não o faz e, além disso, atribui a esse dado um valor
absoluto, submetendo a própria existência, antes livre, a esse valor. Ele
paralisa seu movimento libertador ao reverenciar um valor dado, revestindo-
se de uma armadura de direitos que emanam do universo ético por ele
236
Idem, pp. 64.
237
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 64
238
Idem, pp. 66.
171
reconhecido; não é mais um homem, mas um pai, um chefe, um membro da
igreja cristã ou de um partido de esquerda. Sua atitude tamm é perigosa,
já que o homem sério não põe nada em questão e como existe através do
ídolo que elegeu para doar-lhe sentido à vida, é natural que se faça tirano
em defesa desse sentido alienado. Logo, o inquisidor não hesitará em
sacrificar vidas em nome do credo, o colonizador massacrará indígenas em
nome da estrada, o pai déspota expulsará a filha do lar em nome da honra.
A atitude niilista é outra representação de má-fé que tem como origem
o “fracasso” do ser quando, no segundo momento intencional, percebe que
não pode ser o dado do mundo que desvela. “Consciente de não poder ser
nada, o homem decide não ser nada”
239
. Ao invés de retornar da
negatividade de não ser o dado revelado para a positividade da assunção de
sua liberdade de desvelar, o niilista acredita-se como não-ser e toma a
atitude de recusa do mundo dado. Não encontrando em si-mesmo a
liberdade de constituir-se, também não reconhece nos outros essa liberdade.
O niilista é, portanto, recusa sistemática do mundo e do homem.
O aventureiro tem uma atitude semelhante à do niilista, mas, apesar
de não retornar à positividade de sua liberdade, conserva a alegria original
de existir. Na verdade, o aventureiro não procura desvelar-se no dado do
mundo. Sua intencionalidade não se desdobra espontaneamente, nos dois
momentos intencionais. No primeiro momento, quando o ser quer desvelar-
se na possibilidade do dado do mundo, desvelando-o, ele não se desvela,
apesar de mostrar o sentimento original de alegria. Ele se lança com ardor a
empreendimentos: exploração, conquista, guerra, especulação, amor,
política, mas não se apega ao fim visado, apenas à sua conquista. Por não
pretender desvelar-se ao mundo, sua liberdade se fundamenta apenas em
desvelar o dado do mundo, sem implicá-lo com qualquer sentido existencial.
“O aventureiro não se propõe a ser; ele se faz deliberadamente falta de
ser”
240
. Por não desvelar-se espontaneamente, o aventureiro pode
esconder em sua intencionalidade algum fim secreto. Assim Beauvoir define
sua atitude:
239
Idem, pp. 75.
240
Idem, pp. 84.
172
“Indiferentes ao fim a que se propõem, eles
são ainda mais indiferentes aos meios de
atingi-lo; eles só se preocupam com seu
prazer ou com sua glória [...] acreditam poder
afirmar sua própria existência sem levar em
conta a de outrem
241
.
Outro modo de má-fé nas atitudes é o comportamento do apaixonado.
Sua característica é colocar o dado do mundo como absoluto, em detrimento
de seu próprio ser. À diferença do homem sério, que toma o objeto de
adoração como além de si mesmo, o apaixonado funde-se ao objeto
adorado, desvelando sua subjetividade através dele. “O apaixonado se faz
falta de ser não para que haja ser, mas para ser”
242
.
A má-fé, assim como a liberdade, é uma possibilidade sempre
constante na investida humana em existir. O ser é negatividade, isto é,
constitui-se na falta de qualquer anterioridade ontológica que não seja a sua
escolha em desvelar o mundo, e por isso pode escolher os movimentos
ontológicos para se realizar. O ser é negatividade porque em seu empenho
em querer ser e querer desvelar o ser, precisa negar identificar-se com o
dado do mundo, senão seu movimento ontológico-existencial corre o risco
de interromper-se. Beauvoir pensa o indiduo como uma transcendência
aberta ao mundo, e o que define sua atitude é a sua escolha ontológica,
como mostra a seguir, na afirmação:
“o homem não nos aparece como sendo
essencialmente uma vontade positiva: [...]
define-se previamente como negatividade,
está inicialmente à distancia de si mesmo,
não pode coincidir consigo senão aceitando o
fato de jamais poder integrar-se. [...] Há no
interior de si um perpétuo jogo do negativo; e
por aí ele foge, escapa à sua liberdade. [...]
faz parte da própria condição humana o fato
de poder não realizar esta condição. [...] O
jogo da má-fé permite parar em qualquer
momento: pode-se hesitar em fazer-se
carência de ser, recuar diante da existência;
ou então afirmar-se mentirosamente como
ser, ou afirmar-se como nada, etc.[...] Todos
241
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 88.
242
Idem, pp. 93.
173
os ‘erros’ são possíveis, já que o homem é
negatividade; e são motivados pela angústia
que o homem experimenta diante de sua
liberdade”
243
Aparentemente paradoxal, a negatividade apresenta-se como o
modo do indivíduo confirmar-se como subjetividade livre. Se o sujeito não
negar ser o dado do mundo, seu movimento ontológico paralisará na
identificação de si com o dado, comprometendo o retorno de sua
intencionalidade para o ser desvelado e assim o ser acaba por identificar-se
com o dado. Quando isso acontece, o movimento ontológico é
interrompido e consequentemente, as escolhas de ser resumem-se na
presumida escolha já realizada de identificar-se com o dado.
4.4 - A falta de escolha e a opressão feminina
Voltando a atenção agora para a situação feminina, objeto principal
desse estudo, é possível verificar na situação vivida pela mulher que a
negatividade ontológica necessária para dar continuidade ao movimento de
desvelar-se nem sempre se realiza. Beauvoir afirma em Le deuxième sexe
que “é negando a mulher que se pode ajudar as mulheres a se
considerarem seres humanos”
244
. Isto quer dizer que negar a mulher é
negar a idéia de uma essência do ser mulher anterior ao seu surgimento no
mundo dado.
O ser (feminino ou não) surge no mundo dado originalmente livre e
querendo desvelar a si e ao mundo. O ser feminino encontrará nesse
mundo o conceito de feminino eterno, e ele precisa negar esse dado para
continuar livre. É negando o conceito estabelecido de um feminino eterno
que será possível observar na situação vivida pela mulher os dois
243
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 47.
244
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, pp. 315.
174
momentos intencionais que completam seu movimento ontológico de
desvelar-se.
Mas o que se observa é que, desde a tenra idade, a mulher foi
levada a acreditar que deve identificar-se com o dado: “Jogos e sonhos
orientam a menina para a passividade; mas ela é um ser humano antes de
se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a si mesma como mulher é
demitir-se e mutilar-se”
245
.
Para entender melhor a problemática específica da situação vivida
pela mulher e a negação da negatividade
246
como impossibilidade de
completar o movimento ontológico de constituir-se sujeito livre, é preciso
deter-se nesse peculiar modo beauvoireano de pensar a liberdade
existencial possibilitada pela negatividade. Negar o ser dado significa dizer
que não pode haver para o sujeito livre qualquer possibilidade existencial,
cuja origem não tenha sido fundada por ele mesmo, lembrando que este
ser que precisa ser negado é o dado do mundo. Negar o ser para afirmar-
se livre está na raiz de seu retorno ao primeiro momento intencional.
Somente se negar ser o dado do mundo, o sujeito continuará seu processo
de desvelamento, que é justamente o que lhe garante a liberdade de
constituir-se. Portanto, a negação da negatividade do ser é uma atitude de
má-fé, pois é o mesmo que negar a liberdade do ser. Se for negada a
negação do ser em identificar-se com o dado, este será obrigado a ser este
dado, pois está sendo impedido de desvelar-se em seu próprio movimento
ontológico de vir-a-ser.
A maneira como a negação da negatividade impôs-se à situação
vivida da mulher foi sutilmente estabelecida pela sustentação de uma
mentalidade que contraria a constituição de sua atitude de liberdade.
Beauvoir chama a atenção para a criação do conceito de eterno feminino
em diversos momentos de Le deuxième sexe, como mostrado a seguir:
“Desde a infância, e ao longo da vida,
mimam-na, corrompem-na, designando-lhes
245
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 43.
246
Para explicar a ocorrência da opressão no modo de negar ao ser a alternativa de não identificação com
o dado do mundo e assim completar seu movimento ontológico de realização, utilizamos a expressão
negação da negatividade. Mais adiante, quando for tratada a questão da opressão por internalização de
um conceito, veremos que ocorre a negatividade (ou negação)do próprio ser.
175
como vocação essa demissão que tenta todo
existente sedento de sua liberdade; se se
incita uma criança à preguiça, divertindo-a
durante o dia inteiro, sem lhe dar a
oportunidade de estudar, sem lhe mostrar a
utilidade disso, não se lhe dirá na idade
adulta que escolheu ser incapaz e ignorante:
assim que é educada a mulher, sem nunca
ensinarem-lhe a necessidade de assumir ela
própria a sua existência”
247
.
E mais,
“a passividade que caracterizará
essencialmente a mulherfeminina’ é um
traço que desenvolve ... mas é um erro,
pretender que se trate de um dado biológico;
na verdade, é um destino que lhe é imposto
por seus educadores e pela sociedade”
248
.
Na situação vivida pela menina, como bem mostra a primeira
citação, é oferecido a ela um dado pronto, ou seja, uma situação em que é
convencida da realidade dada, no caso a vocação de demitir-se de
constituir-se. As informações que a menina recebe, são passadas por meio
dos costumes sociais, dos mimos que lhe oferecem, que lhe “convencem
de que não precisa empenhar-se em ser ou transcender o que já é. O que
ela é, já suscita “mimos”, sua existência não precisa engajar-se no
desvelamento do ser. Desse modo, o ser da menina já está dado; antes
de surgir no mundo, é estabelecido que a menina deva receber mimos e
que não precisa engajar-se seriamente em sua trajetória existencial, seu
destino está dado e não requer tal investida.
Para Beauvoir, o grande objetivo da criação e da perpetuidade desta
mentalidade social é fazer a mulher acreditar que o casamento é seu
destino;
“O destino que a sociedade propõe
tradicionalmente à mulher é o casamento.
Em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são
casadas, ou o foram, ou se preparam para
247
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 565-6.
248
Idem, pp. 26.
176
sê-lo, ou sofrem por não o ser. [...] O
casamento é seu ganha-pão e a única
justificação social de sua existência. [...] Para
as jovens, o casamento é o único meio de se
integrarem na coletividade, e se ficam
solteiras tornam-se socialmente resíduos“
249
.
Está claro que na atualidade, ao menos em algumas sociedades, o
casamento não se mostra mais como o único destino da mulher. É
inegável o fato de que houve uma mudança significativa, mas chamamos a
atenção aqui para o aspecto de elaboração de costumes e padrões sociais
que se estigmatizaram através dos tempos. Se hoje tornou-se possível a
escolha feminina (e masculina tamm) de casar-se ou não, deve-se isso a
discussões sobre a validade de imposições que se cristalizaram ao longo
dos tempos e que decorreram de convenções arbitrárias acerca de
comportamentos.
O simples fato de existir a iia de destino para qualquer atitude
humana agride fundamentalmente o conceito de realização existencial, cujo
significado está solidamente assentado no conceito de liberdade. A
realização existencial é o resultado da resolução de um sujeito que escolhe
ser através das possibilidades oferecidas pelo mundo dado e buscadas
pelo sujeito que quer realizar-se. O impedimento da liberdade de escolha
do sujeito, como é a idéia de destino, paralisa o movimento ontológico de
constituir-se sujeito soberano de sua liberdade, já que não permitirá ao ser
o movimento de desvelar-se e, além disso, impõe ao ser a identificação de
si com o dado do mundo – o destino. Se o destino mostrar-se como a
característica de ser a imposição da identificação do ser com o dado do
mundo, ou seja, o destino como uma idealização de um ser concebida
anteriormente ao seu desvelamento, é possível concluirmos que a
existência vivida sob essa iia de destinação é uma existência oprimida,
em cujo bojo o indivíduo não encontrará espaço livre para desvelar a si e
ao dado do mundo. É esta situação de opressão vivida pela mulher que
Beauvoir denuncia em Le deuxième sexe.
249
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 195-197.
177
Shannon M. Mussett em seu artigo Conditions of Servitude:
woman’s peculiar role in the master-slave dialetic in Beauvoir’s The second
sex
250
, estuda o modo como se instala a opressão na existência feminina.
Entendida como situação impingida por outrem, a opressão é a degradação
da liberdade em uma estagnação do ser como resultado a um projeto de
outrem. Por isso, esta autora considera Le deuxième sexe como um
estudo de modos específicos de opressão que a mulher sofre ou tem
sofrido em sua trajetória.
Para Musset, a opressão tratada em Le deuxième sexe é uma
versão beauvoireana da dialética senhor-escravo de Hegel, muito embora
não queira dizer com isso que a mulher se encontre na situação de escravo
em relação ao homem ou que este seja o senhor na relação que vivenciam.
Musset toma alguns cuidados ao fazer a analogia entre a opressão
feminina e a dialética hegeliana, porque esta analogia pode conduzir à
consideração de perceber-se a mulher como escrava, pelo fato de a mulher
estar exclda na batalha pelo reconhecimento
251
.
O ponto que Musset deseja ressaltar com essa analogia é que
Beauvoir, em Le deuxième sexe, caracteriza a mulher como um tipo de
consciência submissa em dois importantes aspectos, como Hegel tamm
assinala em sua dialética: 1) a mulher serve de instrumento de mediação
para o homem; e 2) apesar de ela não sustentar uma luta de vida-e-morte
com o homem, como é observado na situação senhor-escravo, ela aprende
a mesma lição de absoluta negatividade
252
aprendida pelo escravo
hegeliano.
Nesse estudo, Beauvoir mostra que a mulher tem sido definida como
Outro para o homem, cuja significação em “ser o outro” aponta para a
categoria ontológica que define o ser como indivíduo: “Ele é o Sujeito, ele
250
MUSSET, Shannon M.. “Conditions of Servitude” in The philosophy of Simone de Beauvoir. Ed. por
Margareth Simons.
251
Como mostrado em capíttulo anterior, a mulher é o Outro Absoluto, e por isso não participa na luta
pelo reconhecimento de si como sujeito soberano
252
Há que se fazer neste momento, uma explicação do uso do termo negatividade. Há pouco foi
utilizado esse termo para expressar o sentido de que o ser precisa negar o dado do mundo e afirmar a si
mesmo como liberdade soberana, e que nesse caso é importante que esta negatividade prevaleça.
Entretanto, a negatividade de que nos fala o artigo de Musset, é aquela em que é negado ao ser existir
como escolha ontológica.
178
é o Absoluto – ela é o Outro
253
. Como Musset deixa claro em seu artigo,
para ambos, Hegel e Beauvoir, a consciência do ser pretende reduzir o
outro a um objeto. Uma das razões que leva Beauvoir a pensar a mulher
como alteridade negativa é que sua consciência é transformada em objeto
e por isso negativa, e essa negatividade é aquela que não admite que o
sujeito exista como liberdade, pois oprime sua possibilidade de escolha
ontológica. Tal fato acontece porque, segundo Beauvoir, o homem precisa
da mulher para mediá-lo, assim como para defini-lo. Para que este desejo
de mediação se realize, o homem define a mulher sendo tudo o que não é
o homem (o Outro) e assim ele se sente com mais espaço para definir a si
mesmo
254
.
Beauvoir escreve ao longo de seu texto, Le deuxième sexe, que a
mulher é definida como o negativo do homem, isto é, tudo o que o homem
não é. A negatividade da mulher é absoluta para Beauvoir porque o
homem a coloca como o “Outro Absoluto” e não simplesmente como um
outro. “O preciso nível em que a mulher se encontra é do Outro Absoluto...
é impossível considerá-la como outro sujeito”
255
. A mulher nunca é
considerada um sujeito, porque ela é definida com a essência da alteridade
absoluta.
A mulher é vista como Outro e esta iia de ser o Outro está
intimamente vinculada à compreensão da mulher como o absoluto negativo
da afirmação do ser masculino. Isto acontece porque sua alteridade nunca
retorna para si mesma, se mantém na alteridade absoluta.
Apesar de sustentar o argumento de que para Beauvoir, a mulher
nunca fez uma escolha para aceitar sua definição de Outro absoluto, há
passagens onde a mulher encontra-se aceitando ou internalizando esta
definição. Por exemplo, Beauvoir escreve em Le deuxième sexe:
“Não é o Outro que, definindo a si mesmo
como o Outro, estabelece o Um. O Outro é
253
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 239.
254
O modo de observar a negatividade como opressão, conforme discutido no segundo capítulo, é aquele
que surge ao se colocar a mulher na categoria de alteridade negativa. A mulher é o que o homem não é.
Se já existe a mentalidade vigente da constante afirmação e confirmação da supremacia masculina sobre
a mulher, dizer que a mulher é o que o homem não é seria o mesmo que dizer que a mulher não é.
255
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 123.
179
posto como Outro pela definição do Um como
Um. Mas se o Outro não recupera o status de
Um, ele terá que ser submetido também a
aceitar seu ponto de vista alienado”
256
.
Esta passagem ilustra não apenas a imposição masculina de absoluta
alteridade da mulher, mas a conseqüente internalização que a mulher faz
dessa alteridade. Beauvoir mais tarde escreve que “com a mulher, a
dependência é internalizada; ela é um escravo até quando se comporta
com uma liberdade aparente”
257
.
A mulher então se transforma, ironicamente, em mais prisioneira do
que o escravo de Hegel porque ela internaliza a definição dada de fora, de
que ela é o Outro sem nunca ter realmente escolhido sê-lo. E
precisamente porque o Outro é a negação de si, a mulher internalizou a
mesma lição, como o escravo. O problema da mulher consiste, sobretudo,
no fato de que a mencionada lição de negatividade foi imposta. Para o
escravo de Hegel, antes de ser aprisionado em sua escravidão, lhe foi dado
duas escolhas cruciais: ele escolhe entrar na batalha e talvez morrer, ou
escolhe preservar sua vida na servidão ao invés de perdê-la.
Mas para Simone de Beauvoir, a mulher nunca teve uma escolha e
nunca entrou numa batalha. Mas a experiência de negatividade como o
cerne de sua consciência permanece o mesmo, isto é, é através de sua
definição de Outro que ela irá aprender a “verdade” de sua própria
consciência ou liberdade. Musset apresenta a idéia de que a mulher
beauvoireana é um “tipo de consciência escrava” segundo o entendimento
hegeliano, não a exata manifestação disso. A mulher experimentou a
absoluta negatividade em sua situação como o “Outro absoluto sem
reciprocidade”. Esta alteridade imposta externamente não permanece
externa, mas aos poucos é internalizada pela mulher em sua própria auto-
definição e auto-entendimento.
Outro ponto importante a considerar é que a situação de opressão
vivida pela mulher, cujo movimento ontológico de constituir-se é paralisado
pela negação da negatividade que a faria retornar ao primeiro movimento
256
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 17.
257
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 18.
180
ontológico de desvelar-se, é tamm proporcionada pela demissão
ontológica masculina de tamm negar a própria negatividade do seu
movimento ontológico e identificar-se com o dado do mundo.
Anteriormente, procurou-se mostrar que quando o sujeito paralisa um de
seus momentos ontológicos, ele interrompe sua performance de
transcendência ao dado do mundo e permite-se dessa forma, identificar-se
a um objeto.
A motivação masculina em limitar a transcendência feminina é o fato
de que, sendo ela uma transcendência, sua liberdade o obrigaria a também
transcender o que está dado e por fim constituir-se, o que requer um
trabalho ontológico que nem sempre é desejado pelo sujeito. A “liberdade
para coisificar” que o homem exerce sobre a mulher é uma tentativa de
escapar de sua própria liberdade. O homem quer a mulher-outro como um
objeto, a partir do fato de que ele mesmo deseja ser um objeto, assim
escapando de sua própria liberdade existencial. Desse modo, quando o
homem “coisifica” a mulher, não a confunde com uma coisa, mas a coloca
na categoria de Outro, cuja essência fica sendo simultaneamente objeto e
sujeito.
A idéia que se pretende enfatizar, nesse momento, pode ser
sintetizada nos seguintes termos: assim como o ser move-se pelo desejo
de superar-se através da transcendência do dado do mundo, ele tamm é
seduzido pela apatia do mesmo que o leva a continuar encerrado na
imanência do dado em si, e assim escolhe demitir-se de sua liberdade de
fazer-se e assume a situação dada como possibilidade de ser.
4.5 – A possibilidade ambígua da liberdade existencial:
transcendência e imanência
Procurou-se mostrar, nos itens anteriores, que a liberdade
individual, apesar de ser uma condição dada ao indivíduo pelo fato de
existir, não é dotada de estrutura própria que a faça ser por si só,
independente de um trabalho de manutenção desta condição, por parte do
181
indivíduo. É necessária a investida subjetiva para conservar seu estado
natural e original de liberdade. A liberdade é, portanto, um movimento
ontológico; ela é o constante movimento do ser em constituir-se, e somente
dessa forma o sujeito se manterá livre.
No movimento ontológico que constitui a liberdade existencial
do sujeito, Beauvoir observa os aspectos denominados transcendência e
imanência, já abordados anteriormente, mas que agora serão tratados com
maior profundidade. Os termos transcendência e imanência são utilizados
por Simone de Beauvoir, tanto em Le deuxième sexe como em outros
escritos filosóficos (Pour une morale de l’ambigüité e Pyhrrus et Cinéas
especificamente). Tais conceitos identificam o sentido dado às escolhas
ontológicas do sujeito, que definem uma atitude transcendente ou
imanente, de acordo com sua atividade de constituição de projeto próprio,
ou da repetição de um projeto dado, respectivamente.
Esta caracterização de atitudes está relacionada ao modo de
como o sujeito realiza sua liberdade existencial que, por se tratar de um
movimento ontológico, é constituído de momentos de intencionalidade.
Segundo o sentido dado por Beauvoir, a transcendência está vinculada ao
contínuo movimento subjetivo de superação do dado do mundo e
lançamento da consciência ao novo, enquanto que a imanência é atribuída
à ausência do movimento, à não realização do lançamento do ser em
direção ao não constituído ainda, e então o ser continua a ser o que já está
dado.
Principalmente em Le deuxième sexe é possível observar os
termos transcendência e imanência adquirirem este sentido agora descrito,
conforme ilustram as citações a seguir: “Para grande número de mulheres
os caminhos da transcendência estão barrados: como não fazem nada, não
se podem fazer ser, o que as leva a interrogar o que são
258
. E ainda: “ele
(o homem) é quem encarna a transcendência. A mulher está votada à
perpetuação da espécie e à manutenção do lar, isto é, à imanência”
259
.
Apesar de esses conceitos traduzirem as atitudes ontológicas
mencionadas anteriormente, em Le deuxième sexe os termos
258
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 1, pp. 390.
259
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 200.
182
transcendência e imanência trazem a idéia de antagonismo entre si, cujo
significado do primeiro é a iia de atividade ontológica (fazer-se, constituir-
se), enquanto que o sentido de imanência é atribuído à iia de repetição,
manutenção, ou seja, atividade não criativa, inatividade ontológica. Mas
em Pyhrrus et Cinéas, a noção do termo transcendência parece ser mais
ampla do que esta apresentada em Le deuxième sexe, referindo-se mais a
atividades construtivas que situam e engajam o indivíduo com outras
liberdades humanas. Já o termo imanência aparece atrelado à noção de
trabalho para manutenção da vida humana.
Vejamos uma passagem desse ensaio para comparar os
sentidos: “É em direção aos outros homens que minha transcendência se
prolonga sempre mais longe que o projeto que formo do presente, e eu não
saberia nunca superá-la”
260
. Aqui, a transcendência é traduzida como o
movimento ontológico de fazer-se, não somente como oposição à
imanência.
Em Pour une morale de l’ambigüité, o sentido do termo
transcendência tamm se refere à idéia do trabalho ontológico do sujeito
em constituir-se livre. Verifica-se este fato na seguinte passagem deste
ensaio, onde é apontada a incidência do conceito: "apartado de sua
transcendência, reduzido a facticidade de sua presença, um indivíduo não é
nada; é através de seu próprio projeto que ele se realiza, através do fim
visado que ele se justifica"
261
.
Andrea Veltman, em seu estudo Transcendence and
Immanence in the ethics of Simone de Beauvoir
262
, analisa os conceitos de
imanência e transcendência e identifica algumas diferenças de sentido que
Beauvoir lhes atribui. Veltman nesse estudo tamm chama a atenção
para o fato de existirem críticas dirigidas a Beauvoir em relação ao uso
desses termos, especificamente por se tratarem de eixos do pensamento
sartreano. Ela assim expressa seu ponto de vista:
260
BEAUVOIR, Simone de. “Pyhrrus et Cinéas in Pour une morale de l’ambigüité, pp. 355.
261
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 166.
262
VELTMAN, Andréa. “Transcendence and Immanence in the ethics of Simone de Beauvoir in The
philosophy of Simone de Beauvoir, ed. por Margareth A. Simons.
183
“Estas críticas feministas tem afirmado que a
dicotomia beauvoireana entre transcendência
e imanência é um pedaço da metafísica
sartreana, e argumenta que os elementos
masculinos do sistema filosófico de Sartre
o inadequados para analisar a condição
feminina”.
263
O tratamento dado por Simone de Beauvoir às noções de
transcendência e imanência suscitou grandes discussões tanto no âmbito
da problemática da existência em si, como especificamente na questão da
diferenciação sexual. Estes conceitos encerram iias que ajudaram a
formular o estado da questão sobre a diferença da realização existencial
entre homem e mulher porque trazem em seu sentido, a idéia de realização
existencial subjetiva. Como mostrado anteriormente, a liberdade de existir
comporta movimentos intencionais que podem evoluir para o estado de
transcendência ou para o estado de imanência, conforme a escolha do
indivíduo em superar o dado do mundo. A situação da mulher é
caracterizada muitas vezes como um estado de imanência por ser-lhe
atribuído a não superação do dado do mundo.
Para Veltman, em todo o desenvolvimento da dicotomia entre
transcendência/imanência encontrada em Le deuxième sexe, a
transcendência engloba atividades que capacitam o ser a se expressar
livremente e que dizem respeito a ocupações que inscrevem o sujeito em
uma situação existencial que confirma sua soberania. Atividades
consideradas imanentes são aquelas requeridas para a simples perpetuação
da existência, como tamm atividades consideradas fúteis - insuficientes
para fundamentar a justificação da existência.
Pyhrrus et Cinéas mostra-se como o trabalho que introduz a
noção especificamente beauvoireana de que a transcendência é uma
atividade construtiva, muito mais do que simplesmente um movimento de
uma consciência intencional. É a partir desta noção da transcendência como
atividade construtiva que se pode chegar à noção de liberdade como trabalho
ontológico de constiuir-se, em superação ao dado do mundo. A origem da
transcendência é atividade e movimento, um constante ultrapassamento, um
263
Idem, pp. 114.
184
“lançar-se além do dado do mundo”. É dessa maneira que a
transcendência
264
é alcançada, e não na quietude da passividade. Realiza-
se sempre em algum projeto que move o indivíduo para além da situação, em
direção a um futuro aberto.
Em Pyhrrus et Cinéas, Beauvoir utiliza o conceito de
transcendência para referir-se não somente ao lançamento do sujeito no
mundo através da atividade consciente, mas também para significar um
modo ativo de existir preenchido por realizações e um contínuo
ultrapassamento do estado dado das coisas. Transcendência não pode ser
referente apenas ao movimento subjetivo da consciência, circunscrito no
sítio das ações humanas, mas ao movimento que realiza, produz e que
afasta as fronteiras do presente.
É em Le deuxième sexe que Beauvoir caracteriza com maior
clareza a dicotomia que ela sugere existir entre os conceitos de
transcendência e imanência. Pareado com imanência nesse estudo,
transcendência se refere ao trabalho construtivo e mais especificamente,
para um modo ativo de existência que tem o intuito de superar o presente e
permanecer livre do fato biológico. Imanência, em contraste, designa o
ciclo de superficialidade e tarefas não criativas necessárias para sustentar
a vida, um modo de existir marcado pela passividade, simplicidade e
submissão ao fato biológico.
Esta dicotomia é bem marcada na seguinte passagem de Le
deuxième sexe:
“Ela (a mulher) deve assegurar a monótona
repetição da vida em sua contingência e sua
facticidade: é natural que ela própria repita,
recomece, sem jamais inventar, que o tempo
lhe pareça girar sobre si mesmo sem
conduzir a nenhum lugar; ocupa-se sem
nunca fazer
nada; aliena-se, pois no que
264
Segundo Veltman, o sentido beauvoireano de transcendência como atividade construtiva toma
emprestado a noção heideggeriana e sartreana de projeto, mas a distinção desenvolvida em Pyhrrus et
Cinéas entre ação construtiva e satisfação passiva é ausente em Heidegger em sua noção de projeto e
também na concepção sartreana do conceito de transcendência. Esta última, ao identificar
transcenncia como o movimento do para-si, não permite fazer distinção entre uma atividade construtiva
de transcendência e um repouso passivo, uma vez que movimentos intencionais do para-si ocorrem, de
modo geral, num momento de introspecção subjetiva, quando o sujeito racionaliza o dado do mundo, e
por isso afasta a consciência do fenômeno.
185
tem; essa dependência em relação às coisas,
conseqüências da dependência em relação
aos homens, explica sua prudente economia,
sua avareza. Sua vida não é mais dirigida
para fins; absorve-se em produzir ou manter
coisas que nunca passam de meios:
alimento, roupas, residência; são
intermediários inessenciais entre a vida
animal e a livre existência; o único valor
ligado ao meio inessencial é a utilidade; [...] a
utilidade reina no céu da dona-de-casa mais
alto do que a verdade, a beleza, a liberdade e
é nessa perspectiva, que é a sua, que ela
encara todo o universo. E é porque adota a
moral aristotélica do justo meio-termo da
mediocridade. Como encontraria em si
audácia, ardor, desapego, grandeza? Tais
qualidades só aparecem no caso em que
uma liberdade se lança através de um futuro
aberto, emergindo além de todo o dado”
265
.
A caracterização da opressão que Beauvoir apresenta tanto em
Pour une morale de l’ambigüi como em Le deuxième sexe, fundamenta-
se em parte na definição e diferenciação das atividades de simples
manutenção da existência daquelas atividades que requeiram do sujeito a
superação do fato dado. A filósofa enfatiza a idéia de que uma existência
vivida autenticamente requer que se estabeleça uma razão de ser através
de atividades transcendentes. Atividades de transcendência incluem
precisamente aquelas atividades de progresso, criação e descoberta que
são opostas à manutenção da existência, enquanto as tarefas mecânicas
que regulam o processo existencial tomado apenas como fato biológico são
atividades de imanência.
Ao longo da discussão de Le deuxième sexe, percebe-se a
intenção de Beauvoir em apresentar a transcendência e a imanência
primeiramente como uma tipologia de atividades. Transcendência e
imanência são contrastadas não somente em sua relação com o tempo
(transcendência expande o horizonte presente para o futuro, enquanto
imanência perpetua o presente), mas também em relação ao que um e
outro termo significam no que diz respeito à ação humana. Sendo trabalho
265
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe, vol 2, pp. 430-1.
186
e ação, a transcendência engaja o indivíduo no mundo e o situa entre
outras liberdades estabelecendo uma base para um futuro novo, criando e
acomodando as produções humanas, permitindo a expressão individual,
transformando o mundo, ou de algum outro modo, contribuindo
positivamente para a construção de projetos da espécie humana.
Atividades transcendentes permitem superar o presente para a totalidade
do universo e a infinitude do futuro. A imanência, por outro lado, não produz
nada durável através do qual o sujeito possa se projetar, mas aparece
apenas com a função de perpetuar a vida ou manter o estado das coisas.
As atividades de imanência incluem não somente o trabalho diário que
sustenta e repara o corpo e a mente, como cozinhar, limpar e presumíveis
atividades de lazer, como jogos, filmes e etc., mas tamm todo o serviço
burocrático envolvido, como arrumar a correspondência, pagar contas,
fazer compras e ainda funções que satisfaçam as necessidades biológicas
de ser vivo.
Beauvoir caracteriza a imanência como repetitiva e não criativa,
muito embora a imanência não seja diferenciada da transcendência em
função apenas de sua repetição ou não-criatividade, já que atividades de
imanência podem envolver criatividade ou expressão própria, da mesma
maneira que as atividades de transcendência podem envolver repetição.
Uma dona-de-casa pode ser muito criativa na consecução de suas tarefas,
empenhando um grande investimento intelectual para elaborar cardápios e
planejar compras, entretanto, tais tarefas não transcendem o fato dado.
Atividades de imanência são caracteristicamente superficiais – imanência
consome tempo e trabalho para produzir nada – e a combinação de
necessidade e superficialidade encontrada no trabalho de manutenção, faz
com que as formas de imanência sejam entediantes. O trabalho requerido
para cozinhar, limpar, lavar, ou varrer, por exemplo, é necessário para a
manutenção da vida, mas pode ser negligenciado sem grandes prejuízos
para a realização subjetiva, justamente por se tratarem de atividades que
meramente sustentam a vida e não podem por elas mesmas justificarem a
própria existência. Por outro lado, o trabalho de um escritor ou de um
187
artista pode ser repetitivo, mas mesmo na repetição daquela atividade há a
superação do fato dado e esta atividade tem sentido em si mesma.
Le deuxième sexe emprega um contraste entre vida e existência
ao propor o contraste entre imanência e transcendência. A vida não se
justifica em si mesma ao passo que a existência é sustentada pela vida.
Esta dicotomia reflete o ponto de vista elaborado em Pour une morale de
l’ambigüité quando Beauvoir estabelece a inabilidade de atividades de
manutenção como doadoras de sentido à existência humana, conforme
ilustrado na citação a seguir:
“Cabe ao homem fazer com que seja
importante ser um homem, e apenas ele pode
experimentar seu êxito ou seu fracasso.[...]
uma vida que não busque fundar-se será
pura contingência. Mas a ela (a liberdade) é
permitido querer dar a si um sentido e uma
verdade, e ela encontra então no cerne de si
mesma rigorosas exigências”
266
.
As funções biológicas como dar a luz e amamentar não são, por
definição, atividades transcendentes, pois essas funções só requerem que as
mulheres sejam instrumentos passivos das forças da natureza, e não que
elas criem alguma coisa, à maneira de como um artesão fabrica um objeto.
Este modo exclusivo de pensar a existência feminina construiu, ao longo dos
tempos, o argumento de equiparação da função biológica da mulher com
uma essência que definisse sua trajetória. Tal mentalidade sustentou a
opressão da mulher por querer impor a crença de que o conceito de
existência feminina se resumiria em sua imanente responsabilidade biológica
de repetição e conservação da espécie. Obviamente, esta posição só
contempla o aspecto objetivo da vida feminina sem levar em conta sua
existência subjetiva.
Pensar a mulher apenas em sua função biológica é reduzí-la à sua
função objetiva e “esquecer” de sua subjetividade. Mas a mulher, assim
como o homem, é sujeito e objeto de sua existência, e esta situação especial
266
BEAUVOIR, Simone de. Pour une morale de l’ambigüité, pp. 22-3.
188
de reciprocidade entre seus papéis é o que os capacita a existir plenamente,
experimentando a plena amplitude de seus movimentos ontológicos. Discutir
essa questão será a tarefa do próximo item.
4.6 - A existência como possibilidade ambígua: a reciprocidade
sujeito-objeto
O conceito que figura como um ideal e que permeia toda a obra de
Beauvoir, principalmente os escritos filosóficos dedicados à questão ética, é
o conceito que veicula a idéia de reciprocidade. Para a filósofa, a relação
de reciprocidade, resultado da relação sujeito-objeto não paralisada em seu
movimento ontológico, é a relação que melhor resultado emprestaria à
existência humana. Evidencia-se o fato de se tratar de uma relação não
paralisada, isto é, aquela relação onde se observa um livre movimento
ontológico da subjetividade entre escolher ser e/ou identificar-se com o
dado.
A tradição filosófica deixou como maior exemplo da relação sujeito-
objeto, a dialética entre senhor e escravo descrita na obra de Hegel, a qual
é muito utilizada por Beauvoir em sua obra. Este é o maior exemplo que se
tem de relação fundada no engessamento dos movimentos ontológicos dos
sujeitos envolvidos em uma relação. Se houvesse o reconhecimento de
cada um deles como sujeitos soberanos, em momentos alternados, tal
“engessamento” não se verificaria e poderia se observar uma relação de
reciprocidade. Toda relação que não atender ao ritmo do movimento
ontológico existencial, ou seja, aquele em sujeito e objeto se alternam
nestas posições, resultará em sobreposição de um sujeito sobre o outro e
submeterá o último à situação de objeto.
O conceito de reciprocidade representa o ideal de relacionamento
que Beauvoir se empenha em buscar desde seu primeiro romance,
L’Invitée, como mostrado nesta passagem:
189
“Entre nós há reciprocidade. [...] _ Tu
reconheces que tenho uma consciência, não
é verdade? Ora, sabes que procedo da
mesma forma em relação a ti. [...] A amizade
é exatamente isso. A renúncia de cada uma
à sua própria preponderância. Mas se um de
nós recusasse a renunciar, o que
aconteceria? [...] a amizade seria impossível.
[...]Xavière nunca renunciava; por mais alto
que colocasse uma pessoa, por mais que a
adorasse, ela continuava a ser um objeto”
267
.
Julie Ward, em seu artigo Reciprocity and Friendship in Beauvoir’s
thought
268
, refletiu sobre este ideal beauvoireano de reciprocidade e
constatou que a filósofa já fazia referência a este conceito desde um de
seus primeiros escritos, ainda em forma de diário, datado de 1927 e,
portanto, bem anterior a sua primeira novela L’Invitée, que data de 1943.
Segundo Ward os temas do outro, o reconhecimento entre sujeitos e a
noção de reciprocidade aparecem de modo bastante enfático já nestes
escritos, mas a análise filosófica canônica dessa problemática só será
cuidadosamente tratada em Le deuxième sexe. Porém, esse diário de
Beauvoir já apresenta as primeiras idéias que formam o corolário
psicológico que embasará a discussão filosófica. Foram naqueles
desabafos íntimos que Beauvoir percebeu o conflito que reconhecia existir
entre o um e o outro: “Tenho que tornar claras minhas idéias
filosóficas...aprofundar os problemas com que tenho me confrontado. O
tema é quase sempre a oposição de um e outro que eu sinto desde o início
de minha vida”
269
. Nesse diário, Beauvoir descreve a si mesma como
“esperando impacientemente pelo dia em que não existirá distância entre o
outro e eu, mas que existirá somente e definitivamente nós”
270
.
Ward mostra em seu artigo que Beauvoir faz menção a dois tipos de
resposta subjetiva ao relacionamento intersubjetivo. Apesar de a filósofa
acreditar que a relação ideal entre sujeitos é a reciprocidade proporcionada
267
BEAUVOIR, Simone de. L’Invitée, pp. 376.
268
WARD, Julie K. “Reciprocity and Friendship in Beauvoir’s thought” in The philosophy of Simone de
Beauvoir, ed. por Margareth A. Simons.
269
BEAUVOIR, Simone de, 1927, 4d Cahier, p. 95. Holograph manuscript. Paris: Bibliothèque
Nationale. Transcription by Barbara Klaw, Sylvie le Bon de Beauvoir e Margaret Simons. Trad. Em
inglês por Simons (1999) e em francês por Simons (1997).
270
Idem, p. 7.
190
pelo reconhecimento mútuo, conseqüência de seus movimentos
ontológicos de ir e vir entre as situações de sujeito e objeto, Beauvoir
tamm acreditava que essa condição de relacionamento intersubjetivo era
uma das conquistas mais difíceis dos humanos.
Essa dificuldade suscitou na filósofa uma flutuação de posições entre
duas respostas possíveis do sujeito aos relacionamentos que travava.
Num primeiro momento, logo no início de seu diário, Beauvoir afirma que o
dilema de como sustentar uma relação estável entre um e outro não
encontra solução possível. O modo como o sujeito realiza sua oposição
ao outro pode acontecer no isolamento da auto-suficiência à indiferenciada
fusão com o outro.
Beauvoir pensava em um modo ideal de os sujeitos se relacionarem
a reciprocidade. Este é o modo de relacionamento em que os sujeitos
experimentam a possibilidade de desvelarem-se no objeto do mundo dado,
o dado do mundo como é chamado aqui, revelando esse dado como
possibilidade de ser e em cuja possibilidade de ser o outro estaria incluído,
porque o outro representaria para o sujeito muito mais uma possibilidade
do que uma limitação. É importante enfatizar a idéia de que, nesta situação
de reciprocidade, os sujeitos não perdem sua liberdade, mas alternam seus
momentos ontológicos entre sujeito e objeto. Porém, em que situações e
quais sujeitos podem tornar possível esta situação de reciprocidade? Não
é qualquer situação e nem mesmo qualquer sujeito que oferece esta
situação facilitadora da liberdade existencial ontológica, e é por isso que
Beauvoir fala que a reciprocidade é uma das conquistas mais difíceis do
ser humano.
Em sua autobiografia, Beauvoir aponta três sujeitos em que ela
reconheceu ter vivenciado esta situação de reciprocidade. Um deles é
Sartre, companheiro de toda a vida, e os outros dois são sua amiga Zaza,
que morreu precocemente, e sua irmã Hélène. É em L’A force de l’âge que
Beauvoir afirma ter encontrado esta reciprocidade em Sartre, mas mesmo
que seus escritos indiquem que encontrou reconhecimento e reciprocidade,
a filósofa afirma que tais características são muito difíceis de serem
encontradas, talvez até mesmo inalcançáveis. As lembranças de Beauvoir
de sua relação com Zaza nos auxiliam a constituir uma noção do que
191
Beauvoir pensava que devia ser procurado em uma relação de
reciprocidade:
“encontrar um entendimento básico com
alguém é um raro privilégio em qualquer
circunstância; para mim isso teve um infinito
valor, literalmente. Em minha mais antiga
memória sinto o arrebatamento de uma
incomparável doçura, de todos aquelas horas
que Zaza e eu passamos, escondidas no
escritório de Mr. Mabille, conversando”
271
.
Através das recordações desse primeiro diário, a descrição de seus
sentimentos e interações com sua amiga e sua irmã, mostram um tipo de
relação que Beauvoir experimenta e que mais tarde irá descrever em seus
trabalhos filosóficos, como o mútuo reconhecimento de sujeitos ou relação
de reciprocidade. Para Beauvoir, é precisamente com Zaza e Hélène que o
ser com o outro é um conforto e não um conflito, que promove a
continuidade e não a interrupção do fato de ser um sujeito.
O enredo de L’Invitée mostra que entre as personagens Françoise e
Xavière ocorre justamente o oposto dessa conquista de reciprocidade entre
sujeitos. No final da novela, o que se vê é a destruição de uma das
personagens. A ação violenta de Françoise em matar Xavière na última
cena do romance, nos dá o paralelo literário para a rejeição beauvoireana
do modo de dominação nas relações. A soberania de Um sobre o Outro
aniquila a liberdade do outro por não permitir-lhe sair da alteridade
absoluta.
Ward sustenta, em seu artigo citado, que no presente, nenhum
estado de reciprocidade pode ser observado entre o homem e a mulher: as
mulheres se tornaram separadas deles através da representação
masculina que fazem delas o outro, o inessencial, o objeto.
Consequentemente, a situação ontológica da mulher é de alienação, uma
vez que a mulher, por apresentar a mesma característica masculina de ser
transcendente, pretende colocar-se como igual ao homem. Porém, a
despeito de seu movimento, não goza de igualdade e reciprocidade com
271
BEAUVOIR, Simone. The Prime of life. Trad. P. Green, pp. 27. Cleveland, Ohio: World
Publishing,1962.
192
ele. As sociedades atuais, com suas muitas situações privilegiando o
homem, apresentam obstáculos para a normatização das relações entre os
sexos e para oferecer reciprocidade entre homem e mulher.
Le deuxième sexe propõe que um modelo alternativo de relações
entre homens e mulheres seria aquele caracterizado pela igualdade e
respeito, e que os envolva em um estado de “amizade baseada na
solidariedade e cordialidade”. Afirma ainda que, mesmo sendo difícil, duas
consciências são capazes de alcançar o estado de reconhecimento mútuo,
ao invés de se fecharem em um conflito. Este pensamento é evidenciado
em seu reconhecimento de que a relação senhor-escravo de Hegel pode
ser superada. Na seguinte passagem, ela expressa essa idéia:
“É possível superar o conflito (aquele do
senhor-escravo) se cada indivíduo livremente
reconheça o outro, cada um veja o outro
simultaneamente tanto como objeto e
também como sujeito de uma maneira
recíproca. Mas amizade e generosidade, que
sozinhas permitem esse reconhecimento do
ser livre, não são virtudes fáceis; são
seguramente a maior realização da
humanidade”
272
.
Na citação acima, Beauvoir caracteriza a reciprocidade no modo
de relação em que os sujeitos se reconheçam cada qual igualmente, tanto
como objeto quanto como sujeito, o que implica que a oposição
fundamental ao outro como objeto é superada por um paralelo
reconhecimento do outro como sujeito. Uma referência mais distante a
esse modo de relação é oferecida no último capítulo do Le deuxième sexe,
onde Beauvoir caracteriza a relão entre homem e mulher como “a direta,
natural e necessária relação das criaturas humanas”. Além disso, Beauvoir
tamm afirma que:
“Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas
relações que mantém com o homem, mas
não negá-las. Ainda que a mulher tenha sua
existência independente, ela continuará
272
BEAUVOIR, Simone. The second sex, vol 1, pp. 140. Trad. H.M. New York: Parshley Vintage, 1989.
193
sendo também para ele: mutuamente
reconhecidos como sujeitos, cada um se
mostrará para o outro, também um outro”
273
.
Mas, segundo Beauvoir, dois fatos podem aparecer para bloquear
a obtenção desse reconhecimento recíproco. Primeiro, a reciprocidade não
é possível sem uma prévia igualdade entre os sujeitos, situação em que os
indivíduos reconheçam um e outro como sujeito, em momentos alternados.
Esta situação é denominada por Beauvoir “amizade e generosidade” e
afirma que não são “virtudes fáceis”, já que toda consciência aspira a
colocar-se como sujeito soberano. Segundo, as mulheres estão em
desvantagem porque ainda não estão engajadas na demanda por
reconhecimento, como os homens estão. As mulheres estão em
desvantagem por causa de sua história peculiar, pela dificuldade que
encontraram e encontram em afirmarem-se sujeitos em uma sociedade
masculinizada. Procuramos mostrar esta dificuldade no primeiro capítulo
quando apresentamos a idéia de eterno feminino. Naquela discussão
vimos firmar-se a persistente alteridade da mulher em relação ao homem
através de mitos, costumes, e da filosofia da cultura ocidental. De
Aristóteles a Tomás de Aquino, e desde Hegel até pensadores
contemporâneos, a categoria da mulher permaneceu para o homem como
o outro. Por esta razão, a tão procurada relação de mútuo reconhecimento
da mulher não é identificada com o objetivo que as mulheres atualmente
experimentam em relação ao homem, em cuja relação elas são tomadas
como “o outro inessencial”.
Para Beauvoir a reciprocidade permite uma resolução para a
dialética da oposição das consciências. Mais importante, somente o mútuo
reconhecimento dos sujeitos permite o tipo de liberdade apropriada para
nossa humanidade. E ainda, o objetivo da reciprocidade é, como a filósofa
sempre enfatiza, trabalhoso, e não pode ser substituído por uma
universalidade defeituosa, em que sujeitos desejam a soberania para eles
individualmente, uma inadequada posição, como aquela em que Xavière
demonstra em L’Invitée; Xavière fala de amizade, mas na verdade deseja a
273
BEAUVOIR, Simone. Le deuxième sexe, vol 2, p. 576, grifo nosso.
194
soberania sobre Françoise. Isto mostra a falência da reciprocidade, que é o
que acontece quando a relação sujeito/objeto se deteriora e se transforma
em puro egoísmo.
Mas mesmo assim, Beauvoir acredita que um genuíno
reconhecimento entre sujeitos pode acontecer. Seu estudo em Le
deuxième sexe acerca da relação feminina em ser para outrem, supera
seus primeiros escritos sobre o tema em seu diário e em L’Invitée. Nesse
aspecto, Le deuxième sexe acaba por revelar-se um estudo ontológico do
ser humano em geral, não se restringindo apenas à causa feminista.
Beauvoir expõe o pensamento de que o sujeito se constitui no dado do
mundo e querendo desvelar a si e ao dado do mundo. Isolar-se
egoisticamente na opressão não permitirá ao sujeito desvelar a si e ao
dado. Por outro lado, amalgamar-se ao outro, na passividade da
imanência, tamm não lhe possibilitará tal desvelamento.
195
CONCLUSÃO
A proposta original deste estudo foi focar a realização ontológica
do humano, direcionando a reflexão para uma questão sensível na
atualidade, que é pensar a notada diferença de realização das liberdades
existenciais observada na diferenciação sexual. A motivação deste
empreendimento teve sua gênese na constatação de existir uma hierarquia
entre os sexos, que parece estar muito bem disfarçada na sutileza da
moderna emancipação feminina. Já na Introdução, procura-se evidenciar a
existência dessa hierarquia, e apresenta-se a hipótese beauvoireana de
que a mulher realiza-se ontologicamente menos do que o homem. Nosso
objetivo concentrou-se nessa questão: investigar se esta hipótese não se
trataria apenas de especulação feminista, ou de uma sensata constatação
de haver, entre os sexos, sensível diferença na experimentação da
liberdade de que o sujeito precisa para constituir-se soberano.
Simone de Beauvoir não reconheceu a hierarquia entre os sexos
como sendo natural, que se trate de um elemento que acompanhe e
determine a trajetória feminina por fazer parte de sua condição humana.
Para Beauvoir, o único fator constituinte da condição humana é a liberdade
de existir, cuja característica principal é a possibilidade de constituir-se a
partir do dado do mundo. E como procuramos mostrar, não é legítimo
pensar que a mulher é naturalmente inferior ou menos importante do que o
homem. Ser mulher é uma modalidade existencial, e essa modalidade
originalmente não surge a partir de uma hierarquia de valores. Logo,
supor que ser mulher é não ser homem, e por isso, de algum modo é ser
menos humano, é construir uma crença ilegítima e inautêntica.
O questionamento que contorna a existencialidade humana em
torno da problemática da diferenciação sexual está ligado à vinculação que
o existente faz de si com a conceituação que a ele é dada. É mostrado que
a liberdade ontológica, segundo Beauvoir, é dependente de dois
movimentos intencionais que são, em primeiro lugar, a alegria original do
ser que o lança no movimento de desvelamento de si e do dado do mundo
e, em segundo lugar, a negação do ser em se identificar com o dado. Este
196
primeiro momento intencional tira o ser da inércia de ser nada e o projeta
em direção ao mundo dado. No segundo momento o ser tem que resistir a
tentação de querer ser o dado do mundo; o ser precisa negá-lo,
possibilitando assim, retornar à sua individualidade e confirmar sua
soberania subjetiva. É entre esses dois momentos intencionais que reside
a escolha ontológica do indiduo em constituir-se livre para criar ou apenas
repetir o dado. A escolha de constituir-se livre implica um amplo
envolvimento com a existência, incluindo principalmente o reconhecimento
da liberdade do outro. Constituir-se livre implica em escolher não ser
opressor, já que a opressão é um dos resultados do condicionamento do
ser em não fazer-se liberdade que escolhe desvelar o dado do mundo. Ser
um sujeito livre implica em reconhecer no outro um outro sujeito livre. É
esta reciprocidade ontológica que Beauvoir acredita ser a melhor forma de
relação entre os sujeitos, onde o Um reconhece no Outro a categoria de
sujeito soberano também, e em sua relação suas situações de soberania
de sujeito e a passividade de ser objeto se intercalam, permitindo a Um e a
Outro, constituírem seus momentos de intencionalidade, onde a liberdade
de escolha em transcender o dado do mundo é a base de seu movimento
ontológico.
O ser humano acostumou-se a identificar os diversos dados do
mundo em conceitos. Esta prática é inerente à atividade da razão. A
racionalidade procura submeter os objetos do mundo ao seu entendimento,
organizando-os em conceitos que possibilitem seu pronto reconhecimento
pelo indivíduo. Por um lado, esta prática só tende a favorecer o indivíduo
em organizar sua existência. Por outro, as formas conceituais não
guardam em si o movimento próprio da existência e por este motivo,
tendem a cristalizar suas formas em essências.
Desse modo foi elaborado o conceito de mulher, cuja cristalização
determinou o surgimento de uma essência. É o conceito de essência
feminina que a reflexão existencialista denuncia ser ilegítimo para definir a
trajetória das mulheres, e propõe ainda que deva ser desconstruído para
ser reelaborado na medida em que é existencializado. Aliás, não só o
conceito de mulher como tamm o conceito de homem deveria sofrer esta
reelaboração. A problemática da diferenciação sexual é um
197
questionamento cujo âmbito da questão envolve o ser humano e não
apenas a mulher.
Trata-se, portanto, de um problema conceitual, porque a
problemática surge quando se percebe que o conceito (pré)estabelecido de
mulher limita sua liberdade de realização e evidencia, obviamente, o
confronto entre “essência” e existência. A limitação da realização da
mulher ocorre tanto em uma forma positiva, isto é, a trajetória da mulher
não corresponde à idéia de mulher, quanto negativamente, ou seja, a
mulher real não é aquela preconizada pela idéia, sendo as duas formas
responsáveis por uma sensação de fracasso existencial, já que houve
alguma “espera ontológica” não correspondida pela trajetória do existente.
Este fracasso ontológico é resultado da idéia de uma filosofia da existência
que já antecipa alguma moralidade a ser realizada, o que vai de encontro
ao preceito primordial do existencialismo beauvoireano de que o existente
constitui-se no momento em que escolhe desvelar a si e ao dado do
mundo. Portanto, é contraditório estabelecer-se para uma categoria de
seres humanos um modo de existir, uma trajetória estabelecida por valores
anteriores à sua escolha, como ainda assim é vista a definição do sexo
humano.
Esse trabalho tamm levanta a hipótese de que o próprio fato de
existir uma moralidade estabelecida pode favorecer a atitude subjetiva de
evitar o trabalho ontológico de constituir-se a partir do novo. A demissão
da liberdade de fazer-se pode ser sugerida pela idéia de um conceito
pronto a ser seguido, favorecendo o ser a abster-se da escolha. Entenda-
se que o termo escolha, na filosofia de Simone de Beauvoir sempre se
reporta à idéia de trabalho ontológico; a escolha de ser nunca é
descomprometida, sem importância para a realização subjetiva, como se
fosse escolher entre chupar bala ou pirulito.
A demissão da existência é uma conseqüência do
descomprometimento do existente com o envolvimento dado pela
facticidade da existência, e que a aparente setorização por conceituação
sugestiona o indivíduo a não responsabilizar-se por suas escolhas.
Exemplificando esta idéia, a situação feminina é um exemplo de demissão
existencial de ambos os sexos; isto porque através da conceituação dos
198
sexos em masculino e feminino, ao se atribuir a cada conceito uma
essência, acaba por oferecer a cada um desses conceitos um acervo de
“escolhas” pré-estabelecidas, favorecendo de algum modo o
desenvolvimento de certa acomodação por parte do sujeito em realizar a
sua própria escolha. No prefácio de um livro de Jacob Needleman, O
coração da Filosofia, existe uma definição de filosofia que agora é
lembrado para ilustrar esse pensamento: filosofia é o amor ao significado.
Por analogia e ousando transportar esta afirmativa para o existencialismo
beauvoireano, diria que filosofia (ou dar sentido à existência) é o amor ao
desvelamento do significado. Se o significado já for dado pelo conceito, a
intenção subjetiva em desvelar o mundo e a si é desmotivado, e o amor em
desvelar a si e ao mundo não encontra sustentação. Como a própria
Beauvoir afirma, a intencionalidade original do ser é uma alegria que ele
experimenta em querer desvelar o ser, e essa experiência se refere aquela
que comporta uma existência compreendida nos movimentos ontológicos
da liberdade.
Demitir-se de existir seria a atitude que o indivíduo toma em
“aceitar a vida como ela é”, parodiando a máxima popular, e como a própria
máxima sugere, acomodar-se em algum nicho existencial “pronto”. Por
outro lado, assumir a liberdade é comportar-se de acordo com a idéia de
que uma situação existencial estabelecida e acabada não é autêntica, uma
vez que o humano é originalmente motivado pela intenção de desvelar e de
superar o já desvelado.
O presente trabalho centrou sua fundamentação na problemática
observada do indivíduo feminino que não se realiza plenamente, ou seja,
apresenta algum grau de demissão de sua existencialidade. Mas seria
essa demissão aceita ou imposta pelo homem? Toda discussão se
instalou nos arredores dessa questão, mas esta questão deveria ser
ampliada, de modo a envolver em sua temática aqueles que explicitamente
são tomados como os vilões da situação. A demissão masculina, expressa
na opressão que os homens exercem ou exerceram sobre a mulher, não
seria a única causa da demissão feminina. Procurou-se mostrar que a
opressão é um tipo de demissão, já que não permite ao outro a situação de
sujeito, logo não será reconhecido pelo outro como sujeito tamm, sendo
199
a opressão vista como um modo do sujeito não assumir sua liberdade de
escolha. Ao lado deste ser opressor, há o ser que não se realiza porque o
opressor não lhe permite. Entretanto, há tamm por parte do sujeito a
acomodação ao fato dado, a possibilidade de escolher não fazer, e moldar-
se às determinações de uma “opressão”. Poderia se concluir que a
demissão da existência acontece nos dois tipos de atitude subjetiva, tanto
naquela em que o sujeito exerce o não reconhecimento do outro como
liberdade soberana, e daí a opressão, quanto na atitude de não assumir a
si mesmo como liberdade soberana e por isso, não realizar sua
transcendência do dado, não distinguindo a si mesmo como sujeito.
Em tempos em que se fala tanto em “globalização”, “mundo virtual
e etc., é até compreensível que se diga estar fora de moda pensar-se em
diferenciação entre seres humanos. No mundo virtual às vezes não é
necessário se conhecer a realidade de cada indivíduo, muito menos discutir
possíveis diferenças de realização. Para aqueles que podem dispor do
mundo cibernético, pode ser que não seja necessário discutir diferenças, já
que suas realidades podem se igualar nas possibilidades que um teclado e
uma tela lhe oferecem. Mas mesmo em face dos adventos da
modernidade e sem querer tirar-lhes o mérito, afinal é inegável o
favorecimento da qualidade de vida oferecida por eles, a existência ainda é
constituída pela resolução existencial de sujeitos em grupos e tamm da
resolução existencial de cada sujeito singularmente que, como mostrado,
tem o desejo original de desvelar a si e ao dado do mundo. Entre estes
sujeitos, existem diferentes modos de existir, e entre esses modos está a
realização sexual. Para os sexos foi convencionado, não se sabe quando
nem por que e muito menos como, uma hierarquia, onde se percebe que as
mulheres apresentam um menor grau de realização existencial.
200
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208
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
e-mail: doumesfi@ugf.br
“DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: UMA
QUESTÃO MORAL EM SIMONE DE BEAUVOIR”
Tese de
Doutorado em Filosofia apresentada por MÁRCIA REGINA VIANA em
07 de novembro de 2007 ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da UGF-RJ, e aprovada pela Comissão Julgadora formada
pelos seguintes Professores Doutores:
Profa. Dra. Maria da Penha Felicio S. Carvalho
(Orientadora)
Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr. Norman Madarasz
Universidade Gama Filho- PPGF/UGF
Prof. Dr José Nicolao Julião
(UFRRJ)
Profa. Dra. Cecília Maria Pinto Pires
(UNISINOS)
Profa. Dra. Creusa Capalbo
(UERJ)
Rio de Janeiro, 07 de novembro de 2007
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia
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