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que se havia passado, mas acrescentou que Hades era um
excelente partido para a jovem, e que possuía um belo e vasto reino.
Deméter ficou tão desesperada com a notícia do rapto de Perséfone
que assolou a terra com a seca e a fome. Desceu do Olimpo e vagou
através do mundo até que Zeus, inquieto ao ver a terra tornar-se
pouco a pouco estéril, compreendeu que se nada viesse apaziguar
sua cólera, a raça dos homens não tardaria a desaparecer, e os
deuses não mais receberiam suas oferendas. Enviou Íris até ela,
para suplicar-lhe que voltasse a integrar a assembléia dos deuses do
Olimpo. Mas esta se recusou a isso, enquanto Perséfone não lhe
fosse devolvida. Zeus consentiu sob uma única condição: Perséfone
não deveria ter comido nada durante sua permanência no inferno,
pois o que quer que comesse ou bebesse, enquanto estivesse no
reino de Hades, ficaria prisioneiro deste último para sempre. Zeus
mandou Hermes buscar a jovem, e Hades aceitou separar-se dela.
Mas, antes de sua partida, ofereceu-lhe uma romã. Ao voltar para o
lado de sua mãe, esta lhe perguntou se havia comido alguma coisa
em casa de Hades. Perséfone, a princípio, negou haver comido o
que quer que fosse, mas teve de reconhecer, em seguida, haver
comido algumas sementes de romã. Assim, Zeus decidiu que ela
deveria passar a metade
1
de cada ano no reino de Hades, com seu
marido. Enquanto as sementes estivessem enterradas no chão,
brotando e amadurecendo (logo, do outono até as colheitas),
Perséfone viveria junto à mãe. Mas uma vez que os grãos fossem
colhidos e armazenados, iria reunir-se ao marido, e o solo ficaria
árido e estéril (BIDAUD, 1998, p. 79).
2
A mitologia e a tragédia grega são fontes, desde Freud, de interesse para a
psicanálise na compreensão dos processos inconscientes. É significativo o fato de
essas histórias chegarem até nós, tendo percorrido por volta de 4.000 anos ou mais:
“Ligada diretamente à fertilidade da terra cultivada, Deméter é uma antiquíssima
deusa-mãe, cuja origem deve remontar, no mínimo, ao Neolítico”
3
A antiguidade e
paradoxal atualidade do mito é indicativo de sua pertinência ao humano. Deméter e
Perséfone instigam a refletir sobre a paixão mãe-filha, e suas repercussões na
transformação de menina em mulher. O mito está relacionado com a fertilidade, a
fecundidade, a periodicidade, a virgindade e sua perda; e a sexualidade pertinente a
essas questões. O objetivo deste item é compreender o mito como metáfora de
processos constitutivos da feminilidade nas mulheres pelo acesso à sexualidade
adulta, dependendo tanto do afastamento da mãe, quanto da proximidade
1
Existem várias versões do mito com algumas variações, dentre elas, o período de permanência de Perséfone
com Hades, que é relatado também como de apenas um terço do ano, ou seja, apenas durante o inverno.
2
Bidaud, Eric. “Um certo destino de ligação com a mãe”. In: Anorexia mental, ascese, mística, 1998. Uso a
descrição que Éric Bidaud faz do mito como reconhecimento do crédito do meu interesse despertado pela leitura
deste texto.
3
Ribeiro, Wilson. Mitologia. Os deuses olímpicos. Deméter. <http://greciantiga.org/mit>. Acesso em: 17 de
junho de 2005.