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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
De mãe em filha:
a transmissão da feminilidade
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
De mãe em filha:
a transmissão da feminilidade
DOUTORADO EM ___________________________________
Tese apresentada à Banca
Examinadora do Programa de
Doutorado em Psicologia Clínica –
Núcleo de Método Psicanalítico e
Formações da Cultura – do Instituto de
Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica sob a
orientação do Prof. Dr. Luís Cláudio
Figueiredo.
SÃO PAULO
2009
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
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_______________________________
RESUMO
Autor: Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
Título: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade
O objetivo principal desta pesquisa é fundamentar e sustentar, pela literatura
psicanalítica, a existência de vicissitudes psíquicas específicas na trajetória bebê-
menina-mulher. Investigo e analiso as concepções levantadas por alguns
psicanalistas sobre tão intrincada relação, e seus efeitos no contínuo desafio de
tornar-se mulher, assim como na transmissão da feminilidade. Parto das
observações de Freud sobre o recalque inexorável que encobre os primórdios da
relação de uma mãe com sua filha. Busco explicitar as nuances dos vestígios dessa
relação arcaica com a mãe, que é, para a menina, tanto o objeto de identificação
primário quanto o secundário. É a mãe quem erotiza seu bebê menina, deixando
marcas sensuais para o futuro desfrutar adulto da sexualidade feminina. Há nessa
relação do mesmo que engendra o mesmo, um risco pontecializado para a cilada
narcísica e a ilusão simbiótica. A hostilidade entre mãe e filha é compreendida como
uma busca de diferenciação psíquica, sempre presente, em maior ou menor
intensidade. Apresento a paixão entre mãe e filha, primeiramente no mito de
Deméter e Perséfone; abordo a tragédia de Electra como a outra face da paixão – o
ódio. Investigo e articulo a trama conceitual que cerca a concepção da feminilidade
em psicanálise, e faço uma explanação da origem e desenvolvimento dos seguintes
conceitos: identificação feminina primária (Paulo de Carvalho Ribeiro)
homossexualidade primária (Jacqueline Godfrind), posição feminina primária ou fase
da feminilidade (Melanie Klein) e, o materno primário e o feminino primário (Florence
Guignard). Analiso o filme Sonata de Outono de Ingmar Bergman, sob o enfoque da
insustentável nostalgia do encontro com a mãe, sempre sonhado e jamais
alcançado. Na continuidade da reflexão a respeito do filme, coloco em evidência o
olhar masculino e sua indissociável e dialética articulação com o olhar feminino.
Essa aproximação – entre o feminino e o masculino – traz à tona o conceito de
bissexualidade psíquica. O estatuto diverso da mãe e do pai como objeto também é
discutido. Apresento duas construções clínicas: Zoe e Liz. Enfim, investigo o
precioso e o tanático ou a força e a vulnerabilidade da transmissão da feminilidade
de mãe em filha.
Palavras-chave: mãe e filha, feminilidade, identificações, transmissão, sexualidade
feminina, bissexualidade psíquica.
ABSTRACT
Author: Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
Title: From mother to daughter: transmission of feminineness
The main aim of this study was to find grounds and support from the
psychoanalytical literature for the existence of specific psychological vicissitudes
along the path from baby to girl to woman. The concepts put forward by certain
psychoanalysts regarding this very intricate relationship and their effects on the
continual challenge of becoming a woman and on the transmission of feminineness
were investigated and analyzed. Freud’s observations on the inexorable suppression
that covers up the primordial relationship between mothers and their daughters were
the starting point. Expressions for the nuances of the vestiges of this archaic
relationship with mothers were sought; for daughters, their mothers are both the
primary and the secondary objects of identification. Mothers eroticize their baby girls,
leaving sensual traces for future adult enjoyment of female sexuality. In this
relationship of like that engenders like, there is a potential risk of narcissistic
entrapment and symbiotic illusion. Hostility between mothers and daughters was
taken to be a search for psychological differentiation, which is always present to a
greater or lesser extent. The passion between mother and daughter was shown firstly
through the myth of Demeter and Persephone. The tragedy of Electra was dealt with
as the other face of passion: hate. The conceptual framework surrounding
feminineness in psychoanalysis was investigated and linked in, and the origin and
development of the following concepts was explained: primary female identification
(Paulo de Carvalho Ribeiro), primary homosexuality (Jacqueline Godfrind), primary
female position or phase of feminineness (Melanie Klein) and primary maternalism
and primary femaleness (Florence Guignard). The film Autumn Sonata by Ingmar
Bergman was analyzed, focusing on the unsustainable nostalgia of meeting the
mother, which was always dreamed of and never achieved. Continuing the reflections
on the film, the male viewpoint and its indissociable dialectic connection with the
female viewpoint is demonstrated. This coming together between female and male
viewpoints brings to the fore the concept of psychological bisexuality. The different
objective rules of mothers and fathers were also discussed. Two clinical
constructions were presented: Zoe and Liz. Finally, the preciousness and “tanatic”, or
the strength and vulnerability of the transmission of the feminineness from mothers to
daughters were investigated.
Key word: mother and daughter, feminineness, identifications, transmission, female
sexuality, psychological bisexuality.
Agradecimentos
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.
.
ÍNDICE
NOTAS INTRODUTÓRIAS ..................................................................................... 9
PARTE I ................................................................................................................ 18
PAIXÃO MÃE-FILHA NO MITO E NA TRAGÉDIA .............................................. 18
DEMÉTER E PERSÉFONE 18
O APEGO À MÃE: AMOR E ÓDIO 25
ELECTRA, UM ELOGIO AO ÓDIO 39
O IMPÉRIO DO MESMO: ILUSÃO SIMBIÓTICA E CILADA NARCÍSICA 50
PARTE - II ............................................................................................................. 57
A FEMINILIDADE NAS MULHERES, A TRAMA DOS CONCEITOS. ................. 57
A IDENTIFICAÇÃO FEMININA PRIMÁRIA: O PENSAMENTO DE PAULO DE CARVALHO RIBEIRO 59
HOMOSSEXUALIDADE PRIMÁRIA E SUA SECUNDARIZAÇÃO: O PENSAMENTO DE JACQUELINE
GODFRIND 74
A POSIÇÃO FEMININA PRIMÁRIA OU FASE DA FEMINILIDADE: O PENSAMENTO DE M.KLEIN 79
O MATERNO PRIMÁRIO E O FEMININO PRIMÁRIO: O PENSAMENTO DE FLORENCE GUIGNARD 82
A TRAMA, OU O QUE SE TRANÇA A PARTIR DOS CONCEITOS 85
PARTE - III ............................................................................................................ 97
O PRAZER (OU O DESPRAZER) DE MÃE EM FILHA ....................................... 97
A HOMOSSEXUALIDADE SECUNDÁRIA NAS MULHERES HETEROSSEXUAIS E SEUS AVATARES 97
A EXPERIÊNCIA COM UM CORPO FEMININO 99
SONATA DE OUTONO , A INSUSTENTÁVEL NOSTALGIA DA MÃE 103
PARTE – IV ......................................................................................................... 113
NO HORIZONTE DA DÍADE MÃE-FILHA: O TERCEIRO.................................. 113
SONATA DE OUTONO: UM OLHAR MASCULINO 113
BISSEXUALIDADE PSÍQUICA: CONCEITO À VISTA 118
O PAI NO OLHAR DA MÃE 130
PARTE - V ........................................................................................................... 137
CONSTRUÇÕES CLÍNICAS ............................................................................... 137
ZOE, ENTRE ABISMAR E EMERGIR 138
A TRAMA CONCEITUAL EM ZOE: O PACTO NEGRO E A MÃE MORTA 145
LIZ, ENTRE A ILHA E O CONTINENTE 154
A TRAMA CONCEITUAL EM LIZ: ILUSÃO SIMBIÓTICA E CILADA NARCÍSICA O IMPÉRIO DO
MESMO
160
ENTRE ZOE E LIZ 162
NO HORIZONTE SEM-FIM... .............................................................................. 165
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 174
A dimensão psicossexual da sexualidade humana, a bissexualidade psíquica, a
plurivocidade das identificações, tudo isso constitui, ao mesmo tempo, as descobertas da
psicanálise e as condições de possibilidade de seu exercício. É isso que permite a um
homem ser psicanalista de uma mulher (e vice-versa). Se não estamos encerrados em um
sexo biológico, porventura isso significa que o sexo do investigador, quando se trata de
teorizar a feminilidade
ou, dito de outra maneira, de penetrar seu segredo
, não tem
importância? É muito improvável. O jogo das identificações libera da atribuição anatômica,
mas não torna assexuado.
(Jacques André, 1996)
A identidade de uma filha é uma sutil combinação de partilhas e clivagens em relação à
mãe. E como sua mãe é igualmente uma filha, e a filha tornar-se-á igualmente mãe, essa
combinação é conduzida, constantemente, a rearranjos. Minha hipótese é que esses
rearranjos não podem se efetuar de outro modo que não seja o de uma báscula entre o
feminino e o maternal. É por essa razão que são tão instáveis, tão frágeis, e é por isso que
contêm tal potencialidade explosiva.
(Florence Guignard, 2002)
Para as mulheres que me antecederam,
e para aquelas que me sucedem...
9
Notas introdutórias
...Há muito tempo, afinal de contas, já abandonamos qualquer
expectativa quanto a um paralelismo nítido entre o desenvolvimento
sexual masculino e feminino.
Nossa compreensão interna dessa fase primitiva, pré-edipiana, nas
meninas, nos chega como uma surpresa, tal como a descoberta, em
outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da civilização
da Grécia.
Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão
difícil de apreender nas análises – tão esmaecido pelo tempo e tão
obscuro e quase impossível de revivificar – que era como se
houvesse sucumbido a uma repressão especialmente inexorável.
(FREUD, 1931, p. 260).
A arqueologia estuda e pesquisa culturas desaparecidas por meio de seus
resquícios. A partir da analogia arqueológica freudiana, proponho-me estudar a
trajetória bebê-menina-mulher, pelos resquícios inconscientes do intenso e
ambivalente vínculo entre mães e filhas; abordo a maneira como a feminilidade se
transmite ao longo da linha feminina de descendência.
O meu interesse pela trajetória da feminilidade nas mulheres foi um
desdobramento do trabalho como pesquisadora no mestrado
1
. Naquela época,
investiguei qual era a experiência psíquica de casais tidos como inférteis e que
utilizavam a tecnologia de reprodução humana. Constatei que o desejo de ter filhos
está intrinsecamente ligado à sexualidade e seus desdobramentos; data da primeira
infância e tem sua origem, tanto para os meninos, quanto para as meninas, na
relação primária com a mãe. Esse desejo segue destinos psíquicos diferentes para
1
Ribeiro, Marina F. R. (2003) Psicanálise e infertilidade: Desafios contemporâneos. Dissertação de Mestrado
publicada na coleção Clínica Psicanalítica: Infertilidade e reprodução assistida; desejando filhos na família
contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
10
homens e mulheres, tornando-se mais central no psiquismo feminino. A concepção –
gravidez e maternidade – parece consistir um grande desafio no processo de
construção da feminilidade nas mulheres
1
.
Pesquisando as possíveis vicissitudes do desejo de ter um filho no psiquismo
feminino, e a questão da constante construção da feminilidade implicada em tal
processo, constatei que a realização da maternidade, em sua corpórea
subjetividade, funciona como um momento de mutação na trama identificatória de
uma mulher. Considerando essa mutação como uma “mudança catastrófica”
2
,
implícita na maternidade primigesta, comecei a investigar, clinica e teoricamente, a
intimidade e os primórdios da relação entre mães e filhas.
A transmissão da feminilidade parece ocorrer mais intensamente ao longo da
linha feminina de descendência. A identificação entre mãe e filha permanece ao
longo de toda a vida e é constantemente reeditada. A cada desafio na trajetória
feminina, a menina, e mais tarde a mulher, é lançada novamente a uma identificação
com a mãe. O patrimônio da feminilidade percorre as gerações: avós, mães e filhas,
marcam e são marcadas, no corpo e no psiquismo por suas experiências de mulher
e de mãe.
Ainda que este trabalho parta de uma identidade supostamente estruturada –
mãe e filha –, pretende lançar uma sonda investigativa nas forças psíquicas em jogo
na constituição de um “eu feminino”. Essa averiguação inicia-se a partir da relação
com quem nos põe e nos recebe no mundo; para todos os bebês,
independentemente do sexo biológico, é sempre (salvo raras exceções) a mãe, e
uma mãe é (costuma ser) uma mulher. Sobre isso, André Green (2000, p. 45)
escreve:
As concepções anglo-saxónicas do desenvolvimento revelam, a um
olhar crítico, uma comunidade de recusa. Tal como a criança nos
seus primeiros tempos, elas ocultam o fato de que a mãe é mulher.
Será a força secular da Virgem Maria no Ocidente a responsável por
esta dessexualização muito extensiva da imago materna?
1
Segundo Assoun (1993 p. XVIII): “Tornar-se mãe certamente não é realizar sua ‘natureza’, mas sim
confrontar-se, de um só golpe, com o ‘lote’ de seus conflitos.”
2
Conceito de W. Bion (1970): toda mudança psíquica verdadeira é catastrófica.
11
Parto da idéia de que a mãe é uma mulher, e o componente erótico e terno da
relação entre o bebê e a mãe é constitutivo tanto de um “eu masculino”, quanto de
um “eu feminino”. Essas idéias já estão presentes nos textos freudianos: a mãe é a
primeira sedutora (FREUD, 1938); é o primeiro objeto sexual para os dois sexos
(FREUD, 1905); é quem libidiniza o bebê e marca no corpo do filho ou da filha uma
geografia de prazer/desprazer
1
(zonas erógenas, corpo erógeno).
O objetivo principal desta pesquisa é fundamentar e sustentar, pela literatura
psicanalítica, a existência de vicissitudes psíquicas específicas, por mais sutis que
sejam, na trajetória bebê-menina-mulher. Green (2000, p. 51) vem corroborar esse
objetivo: “A todas as adaptações à menina dos dados observados no rapaz, faltará a
especificidade feminina, que escapa, em larga medida, à conceptualização.” Assim,
o que caracteriza este trabalho é a articulação de conceitos que sustentem a
pertinência de uma especificidade na trajetória rumo à feminilidade nas mulheres, e
de que modo a relação entre mães e filhas compõe o que é próprio ao feminino, nas
mulheres.
Sustentar essa pertinência implica nomear uma complexa rede conceitual que
cerca o termo “feminilidade” em psicanálise e explicitar as escolhas teóricas feitas.
Discorro sobre o percurso bebê-menina-mulher, alicerçando teoricamente a
especificidade da trajetória feminina. Nossos protagonistas são tanto a mente da
mãe, quanto a mente incipiente do recém nato. Investigo a interação, continência e
intrusão desse encontro/desencontro e suas ressonâncias na feminilidade das
mulheres. É importante considerar que, sob o prisma do psiquismo da mãe, em suas
facetas conscientes e inconscientes, o sexo biológico de seu bebê toca em sua
trama identificatória, a qual passa a marcar de imponderáveis formas o psiquismo e
a sexualidade emergente do bebê. Tais marcas farão parte da feminilidade em
meninas e meninos
2
.
A individuação de uma filha ou filho é decorrência, sempre parcial, do infindo
trabalho de elaboração do complexo de Édipo. Nascemos precocemente em uma
“situação edípica”, como escreveu Klein (1928), e nunca deixamos de estar
1
Tema que será abordado no item O apego à mãe: amor e ódio.
2
A feminilidade, no seu sentido de passividade, receptividade e interioridade, não é patrimônio das mulheres. Os
homens partilham e compõem sua masculinidade a partir desse universo materno e feminino, porém de uma
maneira diversa. A mãe (ou o seio) é o objeto erótico primário; é o primeiro objeto de identificação dos bebês de
ambos os sexos. Obviamente, não é razoável abarcar a vastidão desse território. Dessa forma, a trajetória da
feminilidade do bebê do sexo masculino será apenas tangencial neste trabalho.
12
implicados nesse território tão característico do humano. A capacidade psíquica de
reconhecimento da diferença dos sexos e das gerações é fruto da sofisticada
elaboração depressiva do complexo de Édipo
1
. Mãe e pai serão sempre os dois
grandes carvalhos do nosso jardim
2
. Este trabalho não poderia deixar de abarcar,
também, essa questão, tendo como enfoque a trajetória bebê-menina-mulher.
Minha investigação tem como território o que está “entre” mãe e filha, em dois
âmbitos indissociáveis: corpóreo/erótico e psíquico. Considero que as qualidades
psíquicas ou sua ausência na mãe “real” fazem história na parceria entre mãe e filha.
Apenas para ressaltar, o holding materno (WINNICOTT, 1960) e a rêverie da mãe
(BION, 1962) são funções estruturantes para o psiquismo da criança
4
. Como, neste
trabalho, estamos no âmbito da sexualidade feminina, a qualidade da mãe – ser uma
“sedutora suficientemente boa”
5
– está em cena. Isso significa a capacidade
(enquanto qualidade psíquica) de a mãe erotizar o corpo de seu bebê, nem a mais,
nem a menos, na tensão única e específica a cada dupla mãe e filha
6
(ou filho).
Começo minha trajetória apresentando a paixão entre mãe e filha,
primeiramente no mito de Deméter e Perséfone; abordo a tragédia de Electra como
a outra face da paixão – o ódio. O amor e o ódio que suscitam tal paixão são
abordados, nessa parte do texto, a partir de Freud e Klein, mas não exclusivamente.
Os conceitos que são abordados na obra freudiana e na kleiniana, para a
compreensão dos avatares da feminilidade na trajetória feminina, têm
desenvolvimentos em autores contemporâneos que serão debatidos ao longo de
todo o trabalho.
1
Segal (1992, p. 8) escreve: “... algumas idéias centrais vislumbradas por Klein, tais como a ligação entre a
posição depressiva e o complexo de Édipo, e, naquele contexto, a importância central da aceitação final de um
casal parental genital criador e a diferenciação entre as duas gerações e os dois sexos.”
2
Faço uma analogia com o título do livro, As duas árvores do jardim, de CHASSEGUET-SMIRGEL (1986).
Título que parece ter sido inspirado no texto de Thomas Mann, As duas árvores do Éden (1930), citado na
epígrafe do livro.
4
Cintra & Figueiredo (2004, p. 15 e 16) descrevem bem a importância do objeto: “Os pacientes que geram o
sentimento de que o jogo pulsional não se joga sem a contrapartida dos objetos e de suas funções primordiais são
aqueles em que a parte desempenhada pelo objeto entra em jogo por efeitos incomuns, não-ordinários. É quando
os objetos fracassam ou produzem efeitos ‘extra-ordinários’ que mais somos obrigados a reconhecer seu papel
constitutivo”.
5
Godfrind, J., 2001.
6
A sexualidade, no seu aspecto terno e sensual, entre mães e filhas permeia este texto. Quando bem nascidos,
estamos em um berço (de um vínculo) sensual e terno, e parece que nunca deixamos de estar, por mais longe que
estejamos – nas construções teóricas, por exemplo. Para exemplificar a ternura sensual entre mãe e bebê, acho
prestimosa a descrição de Freud (1905) ao comparar a expressão facial do bebê após a mamada e o orgasmo na
vida adulta; são pólos sensuais de uma mesma questão – a sexualidade humana, que é sempre uma
psicossexualidade.
13
Na segunda parte, investigo e articulo a trama conceitual que cerca a
concepção da feminilidade em psicanálise, e faço uma explanação da origem e
desenvolvimento dos seguintes conceitos: identificação feminina primária (RIBEIRO,
P. C.) homossexualidade primária (GODFRIND), posição feminina primária ou fase
da feminilidade (KLEIN) e, o materno primário e o feminino primário (GUIGNARD).
Após ter sustentado esse alicerce teórico, parto para reflexões sobre o prazer
ou o desprazer entre mães e filhas – parte três. Para elucidar algumas questões
teóricas desenvolvidas, analiso o filme Sonata de Outono de Ingmar Bergman, sob o
enfoque da insustentável nostalgia do encontro com a mãe, sempre sonhado e
jamais alcançado.
A parte quatro é – No horizonte da díade mãe-filha: o terceiro. Na
continuidade da reflexão do filme Sonata de Outono, coloco em evidência o olhar
masculino e sua indissociável e dialética articulação com o olhar feminino. Essa
aproximação – entre o feminino e o masculino – traz à tona o conceito de
bissexualidade psíquica, que passa a ser mais detidamente refletido. Termino com o
pai no olhar da mãe, ou como Klein escreveu: o pênis dentro da mãe, ou o seio que
contém o pênis
1
.
Apresento, na quinta parte, duas construções clínicas – Zoe e Liz –, e faço
uma trama conceitual entre os casos. Fecho o trabalho com o item: No horizonte
sem-fim... .
A análise do mito, da tragédia, do filme e as apresentações clínicas, revelam
o meu anseio de elucidação da parte teórica, mas não somente. A trama do texto no
que se refere à teoria e à parte fenomenológica – mito, tragédia, filme e construções
clínicas – aconteceram de maneira entrelaçada, uma instigando e tornando mais
compreensível, a outra. Os textos foram buscados e articulados a partir desse
enredo teórico-fenomenológico, o que pode justificar certa diversidade de autores.
Como já percorri um vasto caminho por conceitos fundamentais no pensamento
psicanalítico, considero que o fio de Ariadne que tece o texto é a questão que me
incita e orienta.
Mas não apenas.
1
Antes de M.Klein, Freud (1910) escreveu sobre a relação seio e pênis em Leonardo da Vinci e uma lembrança
da sua infância.
14
Os psicanalistas contemporâneos, aqui citados, têm como filiação a
psicanálise francesa
1
. O psicanalista brasileiro, Paulo de Carvalho Ribeiro, fez seu
doutorado na França, sob orientação de J. Laplanche. Jacqueline Godfrind é belga,
e bebeu das águas laplancheanas e do pensamento de J.André. Florence Guignard
é uma das expoentes atuais da psicanálise francesa, sendo, também, uma leitora da
obra kleiniana e da obra de J. Laplanche
2
. Green é interlocutor de Laplanche, apesar
das discordâncias explícitas. McDougall é citada (e lida atentamente) por Green, no
que refere ao aspecto traumático da sexualidade humana, entre outros, de forma
elogiosa
3
. Green favoreceu várias compreensões teóricas e clínicas ao longo do
trabalho. Já, Freud e Klein são dois grandes referencias da psicanálise e estão
sempre presentes de maneira implícita ou explícita, pelo menos, assim considero.
Minha intenção não é discutir o pensamento de um autor, suas convergências
ou divergências com o de outros psicanalistas, ou discutir um conceito psicanalítico
específico, mas, sim, investigar um tema e conceituá-lo. E, diante desse
compromisso, faço esclarecimentos ao longo do trabalho, quanto a diferenças
conceituais entre os autores, somente quando forem significativas. Portanto, as
distinções teóricas são contextualizadas dentro da proposta desta tese. O recorte, no
pensamento de cada um dos autores escolhidos, foi feito em função de iluminar,
mesmo que no lusco-fusco dos conceitos
4
, o obscuro e o enigmático na trajetória
feminina, é isso que tece o texto.
Perante o propósito de investigar o tema – mãe e filha – fez-se necessário
considerar o significativo trabalho da psicanalista brasileira Malvine Zalcberg (2003)
A relação mãe e filha. Nossa questão se aproxima: – Qual é a especificidade do
vínculo entre mães e filhas? Por que para a menina é difícil separar-se da mãe,
sendo que a separação é sempre parcial? Algumas ideias também são semelhantes:
a ênfase no fato de que o primeiro objeto sexual para os dois sexos é a mãe
1
Psicanálise francesa não lacaniana; os motivos dessa escolha são explicitados ao longo desta nota introdutória.
2
Guignard F. La pensée de Jean Laplanche. Convergences et apories, 2006.
3
“As contribuições de J. McDougall para o problema que nos ocupa são esclarecedoras e significativas.
(GREEN, 2000, p. 145). Considero que várias articulações teóricas feitas por André Green, presentes neste texto,
foram esclarecedoras.
4
As ambiguidades e diferenças conceituais, na literatura psicanalítica, são uma constante. Considero que a
psicanálise é uma “obra aberta”, justamente por isso viva e interessante. Tendo em vista essa especificidade da
literatura psicanalítica, coloco em evidência, em alguns momentos, a complexidade dos termos no que se refere à
proposta deste texto. Não tenho a intenção de me ater a diferenciações conceituais que justificariam a feitura de
outros trabalhos de igual ou maior porte. Usufruo, então, a compreensão teórica de autores que já se debruçaram
sobre algumas dessas questões. Ao longo do texto os conceitos serão retomados e articulados com a temática
apresentada, principalmente no item A feminilidade nas mulheres: a trama dos conceitos.
15
(FREUD, 1905); a consideração de que a mãe é uma mulher; a feminilidade de uma
mulher se tece na relação mãe e filha; o aprisionamento da filha nos projetos
narcísicos da mãe; a nostalgia da filha em relação ao amor da mãe; e a ilusão da
semelhança de corpos e gozos.
Nossas semelhanças confirmam a suspeita: algo acontece entre uma mãe e
uma filha que parece ser determinante para a feminilidade de uma mulher. No
entanto, há uma encruzilhada que distingue o nosso pensamento, e que tem como
consequência a construção de concepções teóricas diversas. Malvine Zalcberg
(2003, p. 69) considera uma ideia, ao longo de todo o seu trabalho, que se inicia em
Freud e tem continuidade em Lacan:
Além da falta-a-ser que a constitui como sujeito, a mulher
deve fazer face à falta de um significante específico de seu sexo, o
feminino. Freud diz que o ‘sexo feminino parece nunca ser
descoberto’ e Lacan, mais dramático, responde que ‘A mulher não
existe’.
Sigo em direção diversa.
A mulher parece ter, sim, representações psíquicas para o seu sexo:
sensações vaginais precoces, a potencialidade de gerar filhos e posteriormente os
seios (KLEIN, 1932 e 1945). Melanie Klein também contribui para a compreensão da
angústia feminina: a de ter o interior do corpo destruído, sendo a angústia de
castração e a inveja do pênis, secundários na trajetória da menina. Vários dos
leitores franceses de M.Klein, mesmo tendo diferenças e evidentemente não filiados
à escola kleiniana – Chasseguet-Smirgel, J. Mcdougall, J. André
1
, Florence Guignard
– consideram a teoria freudiana do monismo sexual fálico de maneira diversa; não
sendo pertinente ao escopo desta introdução a exposição dessas diferenças
2
.
1
J. André (2003, p. 16) considera que a teoria falocentrica refere-se a uma lógica binária; é uma tentativa de
reduzir o outro, ao mesmo.
2
“Como poderemos supor, na verdade, que a menina ignore possuir uma vagina, quando Freud confere ao
sonho, no ‘Complemento matapsicológico à doutrina dos sonhos’ (1915), a capacidade de perceber
precocemente todas as modificações orgânicas? Por que os poderes do inconsciente para conhecer o que se passa
na nossa intimidade corporal não chegariam à vagina? Como não haveria, para o menino, uma presciência de um
órgão complementar ao seu, quando Freud postula, por outro lado, a existência de fantasmas inatos?”
(CHASSEGUET-SMIRGEL, 1988b, p. 31).
16
Esse divisor de águas na literatura psicanalítica, no que diz respeito à
sexualidade feminina, já tem um longo e sólido percurso – M. Klein
1
, Ernest Jones,
Karen Horney, para citar alguns precursores dessas idéias
2
.
A diversidade do pensamento é efeito do respeito à complexidade da questão.
Se Malvine dialoga principalmente com Freud e Lacan, trago para a minha
discussão, Freud, Klein e outros já referidos.
Malvine Zalcberg (2003, p. 194) conclui seu livro com a frase:
“Paradoxalmente é uma verdadeira separação de corpos e de sexualidade – duas
mulheres – o que mais genuinamente aproxima mãe e filha.”
No final, também chegamos a constatações próximas: o que separa – e
justamente por separar, une – a mãe da filha, é a sexualidade da mulher, único
território não partilhável.
Penso ser acerca deste lugar – entre mães e filhas – que abordo idéias
importantes no cenário psicanalítico, e fundamentais para a compreensão da
especificidade do feminino e de seus avatares. É seguindo essa direção – da
especificidade do vínculo entre mães e filhas, que muitas vezes permanece na vida
adulta ocupando espaços psíquicos consideráveis, jamais ocupados por outros
investimentos objetais –, que investigo e analiso as concepções levantadas por
alguns psicanalistas sobre tão intrincada relação e seus efeitos no contínuo desafio
de tornar-se mulher e na transmissão da feminilidade – de mãe em filha.
Freud (1933 [1932]) escreve uma frase citada por muitos psicanalistas: “As
pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade.”. Penso
que o texto afetivo da feminilidade apresenta-se cifrado, obscuro, intrincado. Levanto
a suspeita “arqueológica” de ser o enigmático da feminilidade nas mulheres, de
autoria, em parte, da relação mãe e filha e da transmissão da feminilidade.
1
As idéias de Melanie Klein sobre a sexualidade feminina tiveram, entre outros, a influência do pensamento de
K. Abraham.
2
Paulo de Carvalho Ribeiro (2000, p. 283), considerando que seu trabalho não faz parte dessa filiação, tem uma
interessante colocação sobre essa questão: “... a vagina é descoberta e libidinizada, tanto pelas meninas quanto
pelos meninos, uma vez que sua existência virtual já está inscrita na relação mimética com a mãe e não depende
de sensações localizadas, mas da penetração generalizada que caracteriza essa relação. No momento em que a
visibilidade penetrante do pênis adquire o status de zona erógena, a invisibilidade penetrável da vagina também
já o adquiriu.”
Também fora de uma filiação kleiniana, encontramos o texto de Regina Neri (2002, p. 31): “Dizer que a mulher
está ‘não toda na função fálica’ não abre a possibilidade de pensar o feminino como diferença, pois essa
proposição só existe como negativa. Em face de um universal masculino, a mulher não existe.... Lacan conduziu
o feminino ao mesmo impasse de subjetivação da teoria freudiana.”.
17
O grande desafio na constituição psicossexual da mulher parece ser o embate
entre mães e filhas, palco de grandes encontros e desencontros ao longo da vida.
Enfim, investigo o precioso e o tanático
1
ou a força e a vulnerabilidade
2
da
transmissão da feminilidade
3
entre mães e filhas.
Começo pela paixão entre Deméter e Perséfone...
1
O precioso e o tanático são termos de Czeresnia e Lobo, 2003.
2
Força e vulnerabilidade são termos de Florence Guignard (2002, p. 18).
3
Não há diferenciação entre os termos feminilidade e feminino em vários autores, começando com o próprio
Freud. Em seu texto intitulado Feminilidade (1933 [1932]) usa o termo feminino e feminilidade sem distinção,
textualmente: “Considera tais ocorrências como indicações de bissexualidade, como se um indivíduo não fosse
homem ou mulher, mas sempre fosse ambos — simplesmente um pouco mais de um, do que de outro. E então se
lhes pede familiarizarem-se com a idéia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam num
indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. De vez que, excetuando casos muitíssimos raros, apenas uma
espécie de produto sexual — óvulos ou sêmen — está presente numa pessoa, os senhores, contudo, não poderão
senão ter dúvidas quanto à importância decisiva desses elementos e devem concluir que aquilo que constitui a
masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.” Dessa
maneira, ao longo deste trabalho, acompanho Freud no uso dos termos feminilidade e feminino.
18
Parte I
PAIXÃO MÃE-FILHA NO MITO E NA TRAGÉDIA
Deméter e Perséfone
As identificações se apresentam, marcas de relações, marcas de paixões.
(NOSEK, L., 1997)
1
.
O mito relativo à Deméter concerne à perda de sua filha Perséfone, à
qual estava apaixonadamente ligada. Quando a moça era ainda
muito jovem, seu pai Zeus, sem consultar Deméter que teria
recusado , acedera ao desejo de Hades, deus dos mortos, de fazer
de Perséfone sua mulher. Para conseguir isso, Zeus fez brotar um
belo narciso num vale sombreado e florido onde Perséfone
passeava. Separando-se de suas companheiras, Perséfone avistou o
narciso e o colheu. Nesse instante, a terra se abriu e Hades
apareceu em seu carro puxado por ginetes azul-marinho. Ele se
apoderou da jovem e voltou para o reino das sombras. Perséfone
lançou um grito para chamar pela mãe, que não a ouviu; e quando
chegou ao reino de Hades, continuou a suspirar, recusando qualquer
alimento.
Quando Deméter soube do desaparecimento da filha partiu
imediatamente à sua procura. Munida de tochas acesas, errou pelo
mundo durante nove dias e nove noites, sem comer nem beber.
Acabou, então, por encontrar Hélios, o deussol que tudo vê, e pediu
a este que lhe contasse o que vira. Ele fez um relato detalhado do
1
A expressão de Nozek, L. (1997) coloca em evidência o caráter apaixonado, e, portanto, assim penso,
sensualizado das identificações.
19
que se havia passado, mas acrescentou que Hades era um
excelente partido para a jovem, e que possuía um belo e vasto reino.
Deméter ficou tão desesperada com a notícia do rapto de Perséfone
que assolou a terra com a seca e a fome. Desceu do Olimpo e vagou
através do mundo até que Zeus, inquieto ao ver a terra tornar-se
pouco a pouco estéril, compreendeu que se nada viesse apaziguar
sua cólera, a raça dos homens não tardaria a desaparecer, e os
deuses não mais receberiam suas oferendas. Enviou Íris até ela,
para suplicar-lhe que voltasse a integrar a assembléia dos deuses do
Olimpo. Mas esta se recusou a isso, enquanto Perséfone não lhe
fosse devolvida. Zeus consentiu sob uma única condição: Perséfone
não deveria ter comido nada durante sua permanência no inferno,
pois o que quer que comesse ou bebesse, enquanto estivesse no
reino de Hades, ficaria prisioneiro deste último para sempre. Zeus
mandou Hermes buscar a jovem, e Hades aceitou separar-se dela.
Mas, antes de sua partida, ofereceu-lhe uma romã. Ao voltar para o
lado de sua mãe, esta lhe perguntou se havia comido alguma coisa
em casa de Hades. Perséfone, a princípio, negou haver comido o
que quer que fosse, mas teve de reconhecer, em seguida, haver
comido algumas sementes de romã. Assim, Zeus decidiu que ela
deveria passar a metade
1
de cada ano no reino de Hades, com seu
marido. Enquanto as sementes estivessem enterradas no chão,
brotando e amadurecendo (logo, do outono até as colheitas),
Perséfone viveria junto à mãe. Mas uma vez que os grãos fossem
colhidos e armazenados, iria reunir-se ao marido, e o solo ficaria
árido e estéril (BIDAUD, 1998, p. 79).
2
A mitologia e a tragédia grega são fontes, desde Freud, de interesse para a
psicanálise na compreensão dos processos inconscientes. É significativo o fato de
essas histórias chegarem até nós, tendo percorrido por volta de 4.000 anos ou mais:
“Ligada diretamente à fertilidade da terra cultivada, Deméter é uma antiquíssima
deusa-mãe, cuja origem deve remontar, no mínimo, ao Neolítico”
3
A antiguidade e
paradoxal atualidade do mito é indicativo de sua pertinência ao humano. Deméter e
Perséfone instigam a refletir sobre a paixão mãe-filha, e suas repercussões na
transformação de menina em mulher. O mito está relacionado com a fertilidade, a
fecundidade, a periodicidade, a virgindade e sua perda; e a sexualidade pertinente a
essas questões. O objetivo deste item é compreender o mito como metáfora de
processos constitutivos da feminilidade nas mulheres pelo acesso à sexualidade
adulta, dependendo tanto do afastamento da mãe, quanto da proximidade
1
Existem várias versões do mito com algumas variações, dentre elas, o período de permanência de Perséfone
com Hades, que é relatado também como de apenas um terço do ano, ou seja, apenas durante o inverno.
2
Bidaud, Eric. “Um certo destino de ligação com a mãe”. In: Anorexia mental, ascese, mística, 1998. Uso a
descrição que Éric Bidaud faz do mito como reconhecimento do crédito do meu interesse despertado pela leitura
deste texto.
3
Ribeiro, Wilson. Mitologia. Os deuses olímpicos. Deméter. <http://greciantiga.org/mit>. Acesso em: 17 de
junho de 2005.
20
identificatória com ela. O mito neste trabalho é uma primeira aproximação dos
elementos em jogo na paixão entre mãe e filha.
Homero, século VII a.C., escreve o Hino II a Deméter, provavelmente o
primeiro registro gráfico do mito: ...“Descreve o rapto de Perséfone por Hades, a
tristeza de Deméter, a vingança contra os outros deuses, sua busca pela filha, a
volta de Perséfone e o estabelecimento dos mistérios de Elêusis.” (RIBEIRO, W.,
2005). Deméter e Perséfone, também chamadas “as duas deusas”, eram cultuadas
em Elêuses, lugar próximo a Atenas. O culto dos mistérios, de origem pré-helênica,
significava cerimônias e rituais, dos quais participavam apenas aqueles
denominados de iniciados. Os rituais secretos, nos quais se cultuava as duas
deusas, eram abertos apenas às mulheres; neles se agradeciam a fecundidade da
terra e as colheitas. Deméter é a grande deusa materna da terra, a divindade da
fertilidade; seu nome significa “Terra-Mãe” (BIDAUD, 1998). Perséfone, em
algumas versões do mito, é inicialmente chamada de Koré, que significa virgem em
grego. Seu novo nome, Perséfone, acompanha a mudança de virgem à esposa de
Hades, deus dos mortos, mas não a própria morte, que é Tânatos. Hades é um deus
fecundante, favorecia a colheita e a abundância (RIBEIRO, W., 2005).
Existem poucas referências de autores psicanalíticos ao mito, uma delas é
Éric Bidaud (1998). Esse autor, ao abordar a questão da anorexia mental, dedica um
capítulo de seu livro a compreender o laço entre mães e filhas por meio da análise
do mito. O que parece tê-lo motivado foi a compreensão da dinâmica psíquica da
relação mãe-filha na patologia. Bidaud (1998, p.81) descreve os riscos desta relação
na anorexia mental: ...“O par mãe-filha se cola, formando ‘uma união tissular’, ‘uma
cilada narcísica’.” O autor percorre, também, os possíveis caminhos da feminilidade
(não patológica) a partir desse laço inicial com a mãe; a trajetória de menina à
mulher e seus riscos.
Na análise desse autor, Deméter é o modelo da mãe inconsolável, que não
entende ceder seu rebento ao desejo de um homem, nem obedecer a uma lei que
não seja a sua. Perséfone é o modelo da jovem intacta, da virgem, fascinante e
terrificante, que dispensa o homem e permanece numa ligação original com a mãe;
porta a marca do incesto com a mãe. Pelo ato de comer as sementes de romã,
oferecidas por Hades, Perséfone rompe o estreito laço com Deméter. “Comer,
significando aqui o acesso ao desejo do homem, é ato de feminilidade da virgem...”
21
(BIDAUD, 1998, p.81). Na mitologia grega comer significa simbolicamente união
sexual
1
. Hades é o deflorador, o sedutor original.
É a fantasia de ser “violada” pelo pai que permite à menina separar-se da
mãe, escreve Bidaud
2
. O acesso ao próprio desejo na mulher dá-se por meio da
sedução, da violação devido a peculiaridades de seu destino sexual: “O fato de ter
sido sujeito/objeto do desejo do pai, ativo e passivo, leva Perséfone a desprender-se
do domínio da mãe e aceder ao amor edipiano” (BIDAUD, 1998, p. 81). É o pai de
Perséfone que cede ao desejo de Hades; o rapto é consentido pelo pai, e Perséfone
não parece oferecer resistência, apenas grita para chamar a mãe.
A título ilustrativo, apresento a seguir uma escultura
3
em vaso com a
expressão de Perséfone ao ser raptada por Hades a situação não lhe parece
desagradável:
Para Fairfield (1994), o mito refere-se a questões pré-edípicas no que diz
respeito à separaçãoindividuação. A sedução de Hades representaria a presença
do pai em uma triangulação precoce. A influência do pensamento kleiniano é
evidente nesse autor.
Kulish e Holtzman (1998), psicanalistas americanas, sustentam que o mito
representa o conflito edipiano nas mulheres, sendo uma resolução melhor e mais
característica do feminino do que o drama edipiano original
4
, o qual é modelado a
partir das referências masculinas. As autoras enfatizam três aspectos do mito:
1
Foley, H. P., 1994.
2
Essa formulação de Bidaud lembra as fantasias de sedução paterna relatadas pelas pacientes histéricas de
Freud, fantasias que são organizadoras do psiquismo feminino.
3
Retirada do site www.greciaantiga.org. Acesso em 17.06.2005.
4
A tragédia de Édipo.
22
primeiramente, é uma forte representação da perda da virgindade e da entrada na
vida adulta heterossexual; segundo, o mito pode ser compreendido como uma
formação de compromisso, resolvendo conflitos de amor e lealdade à mãe e ao pai;
terceiro, o mito pode ser um paradigma de valor para o complexo de Édipo feminino,
já que representa bem suas características fundamentais.
Considero que o mito ilumina questões pré-edípicas de difícil acesso, pouco
referidas na teoria e na clínica psicanalítica: a sedução materna e os desejos
incestuosos entre mãe e filha; temas abordados ao longo deste trabalho.
Kulish e Holtzman (1998) consideram que a resolução do mito seria, como já
dito, uma formação de compromisso: Perséfone mantém sua lealdade à mãe e ao
mesmo tempo conquista o acesso à sexualidade adulta. No entanto, mesmo estando
casada com Hades, Perséfone passa metade do ano com sua mãe, e em outras
versões do mito, Perséfone passa apenas o inverno com seu marido. Será que essa
temporalidade representa o espaço psíquico da relação mãe-filha ao longo da vida
de uma mulher? Talvez.
O mito catalisa a possibilidade de nos aproximarmos da intensidade dessa
paixão entre mães e filhas e seus riscos narcísicos, representados pela flor do
narciso que encanta Perséfone. A menina para ser mulher precisaria usufruir sua
sexualidade com um homem e consentir no rapto: primeiramente do pai e
posteriormente do marido
1
. Eles são os herdeiros da relação originária com a mãe;
são uma segunda chance, menos carregada de riscos fusionais. A situação edípica
para a menina pode ser um refúgio da relação especular com a mãe, se ali houver
abrigo, ou seja, se existir um pai seguro, um porto seguro. Um pai confiável é aquele
capaz de apreciar a feminilidade de sua filha, e também de reconhecer e aceitar a
interdição dessa relação. Tanto que no mito, Zeus acede ao desejo de Hades; é o
pai que entrega a mão da filha em casamento, como um bastão ao seu acordado
sucessor.
Deméter representa o desejo não civilizatório de uma mãe: jamais ceder seu
rebento ao desejo de um homem (do outro), mesmo que ele possua um belo e vasto
reino. Deméter vagou pelo mundo, tornando a terra pouco a pouco estéril; expressão
da sua frustração e ira. Ela acalma sua cólera apenas diante da declaração de
1
É cultural aos italianos raptar a noiva para a realização do casamento na calada da noite, situação que acontece
ainda hoje.
23
Perséfone: havia comido as sementes de romã, havia consentido, talvez
prazerosamente, ao desejo de Hades; aceitou a decisão proferida pelo pai – Zeus, a
lei civilizatória – de que passaria metade (ou um terço) do ano com o marido. A partir
desse momento, no qual há o reconhecimento do terceiro, do pai, da lei, a fertilidade
volta à terra dos homens.
The return of Persephone, de Frederic Leighton, 1890-1.
Perséfone passa a transitar em mundos distintos, a “terra-mãe” e o “mundo
subterrâneo”, que em parceria são férteis. Os cultos, apenas para mulheres
iniciadas, que aconteciam nos Mistérios dos Elêusis, eram dedicados “as duas
deusas”:
As cerimônias e rituais secretos eram dedicados à deusa Deméter e
sua filha Perséfone... Deméter era a deusa da agricultura; sua filha
Perséfone era esposa de Hades, o sombrio deus do mundo
subterrâneo que reinava sobre os mortos. Perséfone vivia seis
meses com o marido, sob a terra, e seis meses com a mãe, no
Olimpo, junto aos demais deuses. Esse ciclo aparente de morte
renascimento simboliza a agricultura: depois de plantada, a semente
fica ‘dormente’, durante meses produz uma nova planta, que no
tempo certo finalmente emerge do solo (‘renasce’) (RIBEIRO, W.,
2005).
A fertilidade da mulher, no sentido da sua capacidade criativa e orgástica,
está associada à possibilidade de transitar produtivamente entre mundos distintos –
mãe e pai. Para que exista uma relação fértil com um homem é necessário manter-
24
se em uma tensão dialética entre o afastamento e a proximidade identificatória com
a mãe.
Para usufruir sua heterossexualidade, uma mulher dependeria da capacidade
de transformação da sua erótica paixão inaugural com a mãe, objeto de análise ao
longo deste trabalho.
A seguir, para investigar teoricamente a paixão entre mãe e filha, percorrerei
sucintamente a obra de Freud e M. Klein, tendo como norte essa questão.
25
O apego à mãe: amor e ódio
O desenvolvimento sexual da criança está ligado de forma inextricável
às suas relações de objeto e a todas as emoções
que moldam desde o início sua atitude diante da mãe e do pai.
(Klein, 1945)
Considero contribuições significativas à temática da paixão entre mães e
filhas, articulações do pensamento freudiano e kleiniano, no que se refere à ligação
inicial da menina à mãe. Utilizo textos freudianos sobre a feminilidade, o complexo
de Édipo feminino e suas identificações heterossexuais e homossexuais, a
vinculação pré-edipiana à mãe, e o conceito de bissexualidade psíquica
1
. Trago para
discussão textos kleinianos sobre a fase da feminilidade, a relação com o corpo da
mãe, o complexo de Édipo feminino e seus componentes pré-genitais. O relato a
seguir é a leitura desses textos conduzida pelo tema que é o foco da minha
investigação. No entrelace feito com os conceitos, tanto freudianos, quanto
kleinianos, há a problematização das questões que acompanharam o diálogo com
eles.
O objetivo deste item também é explicitar a origem de alguns conceitos na
obra freudiana e kleiniana, que serão trabalhados por psicanalista contemporâneos
2
,
referidos nos itens posteriores para a compreensão da relação mãe e filha.
Comecemos pelo conceito de bissexualidade na obra freudiana. A
bissexualidade constitucional foi um termo sugerido a Freud por Wilhelm Fliess. Há
vários comentários, ao longo da obra, sobre a bissexualidade, descrita em 1905 no
texto Três ensaios sobre a sexualidade, com acréscimos de notas de rodapé em
1910, 1915 e 1920. Em 1923 (O ego e o id) ao discutir as identificações com os pais,
Freud escreve:
1
Será, também, objeto de reflexão no item Bissexualidade psíquica: conceito à vista.
2
O conceito de bissexualidade psíquica faz parte da argumentação teórica desenvolvida por J. McDougall
(1997), Ogden (1992) e Godfrind (1997).
26
... A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter
triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de
cada indivíduo. ...Um estudo mais aprofundado geralmente revela o
complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e
negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na
criança (FREUD, 1923, p. 46).
Apenas em 1938 (Esboço de Psicanálise), Freud usa o termo bissexualidade
psicológica e não mais constitucional. O conceito é compreendido neste trabalho no
que se refere à identificação com os pais (em especial com a mãe) e sua trama no
complexo de Édipo nas meninas. Essa articulação é importante para a reflexão a
respeito das identificações primárias na relação mãe-filha e suas marcas corporais
na feminilidade das mulheres. “O primeiro objeto erótico de uma criança é o seio da
mãe...,” Freud (1938, p. 216) escreve. Se ampliarmos a parte (o seio) para o todo o
corpo da mãe –, podemos inferir que há uma relação erótica entre a mãe e seu
bebê, menina ou menino.
Há aspectos interessantes a serem considerados para a temática aqui
levantada, quanto à questão da sedução materna. Em 1932 (Feminilidade) Freud
escreve que o sedutor é regularmente a mãe; em 1938 (Esboço de Psicanálise)
sustenta que:
...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu
primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados
corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma
mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro
e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações
amorosas posteriores para ambos os sexos (FREUD, 1938, p.
217).
Freud escreve, em 1933 [1932] que a criança nunca supera o sofrimento de
perder o seio materno e que essas primeiras catexias objetais são, habitualmente,
em grau elevado ambivalentes. Em 1931 diz sobre o temor da menina de ser morta
ou devorada por sua mãe, devido às frustrações inevitavelmente impostas por ela
(mãe), e, também, pela imaturidade do psiquismo infantil, favorecedora de
mecanismos projetivos. É evidente que Melanie Klein leu atentamente este Freud.
27
Percorrendo textos de 1915 a 1925, podemos observar como Freud construiu
suas hipóteses sobre a relação mãe-filha; presentes para o leitor atento às
entrelinhas do texto. Porém, apenas em 1931 e 1933 [1932] (Sexualidade feminina e
Feminilidade) formula explicitamente suas ideias
1
.
Em 1915, Freud faz um breve relato sobre Um caso de paranóia que contraria
a teoria psicanalítica da doença. Estava intrigado com o fato de que o delírio
paranóico tinha como protagonista uma pessoa do sexo oposto, já que “os pacientes
que sofrem de paranóia lutam contra uma intensificação de suas tendências
homossexuais...”. (FREUD, 1915, p. 299). No caso apresentado nesse artigo, a
moça, já com seus trinta anos, morava com a mãe e o pai falecera quando ela ainda
era menina. Freud esteve com essa mulher por dois encontros. No primeiro, ela fora
trazida pelo seu advogado que desconfiara das acusações que sua cliente fazia a
um colega de trabalho dela. Freud relata que a moça tentava desfazer-se de sua
ligação homossexual com a mãe aproximando-se de um homem, porém, eclode o
delírio paranóico, afastando-a do pretendente que se tornou seu perseguidor. Freud
descreve um superpoderoso e não dominado complexo materno formado pelas
relações infantis com a mãe, ou seja, a dificuldade de se diferenciar e se separar da
mãe. Destaco, para discussão posterior, os dois termos usados por Freud nesse
texto: a ligação homossexual da filha com a mãe e o superpoderoso complexo
materno.
Em 1919 (Uma criança é espancada) ao analisar a fantasia de ser
espancado, Freud propõe que essa teria como correspondente no inconsciente do
menino a fantasia de ser amado pelo pai, ou seja, por efeito da repressão, ser
amado pelo pai transforma-se na fantasia de ser espancado por este. Discorre que
em ambos os sexos... “a fantasia de espancamento tem sua origem numa ligação
incestuosa com o pai” (FREUD, 1919, p. 247). Pensando sobre essa fantasia – uma
criança é espancada –, levanto a seguinte questão: – Como aconteceria entre mãe e
filha? Seira essa fantasia também pertinente à ligação incestuosa com a mãe? Se
Freud considerou o complexo de Édipo dúplice (negativo e positivo), por que a
relação incestuosa da menina não foi considerada? A fantasia incestuosa da menina
com a mãe e sua consequente inversão – minha mãe está me
1
Kristeva (2002, p. 146) ao referir-se aos textos freudianos de 1931 e 1932, comenta que a mãe de Freud faleceu
em 1931, fato que provavelmente teve impacto em suas formulações.
28
maltratando/espancando – seria também uma hipótese viável? Seria essa uma via
de facilitação para o masoquismo feminino? Para a menina existiria um risco fusional
intensificado pela identificação narcísica entre mãe e filha, “o corpo e a psique com o
selo do idêntico” (ENRIQUEZ, M., 1999). Se o risco de fusão for proporcional à
reação de ódio, ou seja, quanto maior o risco de fusão, maior o ódio para,
paradoxalmente, desvincularem-se e manterem-se vinculadas, em um embate sem
fim?
1
E quanto maior o ódio, mais intensificado o masoquismo
2
; como a tragédia
grega de Electra tão bem exemplifica. Enigmas difíceis de serem desvendados, por
isso vamos um pouco mais adiante nos textos freudianos.
Em 1920, Freud faz o relato de um caso clínico: A psicogênese de um caso
de homossexualismo numa mulher. Aborda novamente a questão da bissexualidade:
Assim, sua última escolha correspondia não só ao ideal feminino,
como também ao masculino; combinava a satisfação da tendência
homossexual com a da tendência heterossexual. É bem sabido que a
análise de homossexuais masculinos em numerosos casos revelou a
mesma combinação, o que deveria nos alertar contra formarmos uma
concepção demasiado simples de natureza e gênese da inversão e
mantermos em mente a bissexualidade universal dos seres
humanos. Mais adiante no texto: Em todos nós, no decorrer da vida,
a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e femininos.
E,... uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou
inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais
(FREUD, 1920, p. 195, 196, 211 e 313).
Como se dá ou não, a elaboração, mesmo que parcial do vínculo
homossexual inconsciente na relação mãe-filha? Quais os possíveis destinos desse
intenso investimento?
Em 1925, no texto, Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica
entre os sexos, Freud escreve: “O complexo de Édipo tem uma longa pré-história e
constitui, sob certos aspectos, uma formação secundária” (FREUD, 1925, p. 313).
Essa formulação instiga a pensar na formação primária, originária do complexo de
Édipo. A tenacidade da ligação edípica com o pai, na menina, seu decorrente desejo
de ter um filho, é herdeira de uma tenacidade vincular primária com a mãe,
1
Tema que será discutido mais amplamente na análise da tragédia de Electra.
2
Halberstadt-Freud (1998), psicanalista holandesa, em um artigo intitulado Electra versus Oedipus; Femininity
reconsidered, no qual diz que o masoquismo feminino deriva do ódio à mãe e de impulsos matricidas.
29
articulação feita por Freud apenas em 1931, porém, germinada em textos anteriores
(como este de 1925).
No texto de 1931 Sexualidade feminina; e de 1932 (publicado em 1933)
Feminilidade, Freud manifestou inquietação no que diz respeito a esta delicada
relação entre mães e filhas. Em 1931, dois acontecimentos o impressionaram: “... o
fato de que onde a ligação da mulher com o pai era particularmente intensa, a
análise mostrava que essa ligação fora precedida por uma fase de ligação exclusiva
à mãe, igualmente intensa e apaixonada” (FREUD, 1931, 259), e que a duração
dessa ligação – que foi anteriormente subestimada estende-se até os cinco anos.
No mesmo texto relata: “... com muitas mulheres temos a impressão de que seus
anos de maturidade são ocupados por uma luta com os maridos, tal como suas
juventudes se dissiparam numa luta com suas mães.” (FREUD, 1931, 265).
Em 1933 (1932), Freud inicia sua conferência com a conhecida e citada
expressão: “... através da história as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma
da natureza da feminilidade” (FREUD, 1933, p. 140). A feminilidade reporta-se ao
cifrado, obscuro, enigmático. Na sequência do texto, retoma o conceito de
bissexualidade: “... a proporção em que masculino e feminino se misturam num
indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas..., aquilo que constitui a
masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do
alcance da anatomia” (FREUD, 1933, p. 141). Podemos pensar em um mais além e
um mais aquém da anatomia: “... a distinção anatômica [entre os sexos] deve
expressar-se em conseqüências psíquicas” (FREUD, 1933, p. 153). A experiência
psíquica com um corpo masculino ou com um corpo feminino teria destinos
psíquicos diversos, porém extremamente plásticos. Anatomia não é destino, mas é
parte da trajetória e marca a história psíquica
1
.
O complexo de castração, no texto Feminilidade (1933[1932]), é
compreendido como o que prepara a menina para sua entrada no complexo de
Édipo: “... a menina é forçada a abandonar a ligação com sua mãe através da
influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se esta fosse
um refúgio.” (FREUD, 1933, p. 159). O interesse da menina pelo pai parece não ser
apenas mobilizado pela desilusão e ofensa narcísica – o fato de a mãe não ter
1
Questão discutida no item A experiência com um corpo feminino.
30
equipado a filha com um pênis –, tema discutido detalhadamente no item O pai no
olhar da mãe.
Freud (1933 [1932])
escreve sobre o complexo de Édipo feminino: “... As
meninas permanecem nele por um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente
e, ainda assim, de modo incompleto.” (FREUD, 1933, p. 159). É interessante
pensarmos que a entrada na situação edipiana é um refúgio, a relação com o pai
pode ser um bálsamo diante das intensidades identificatórias conflitivas e fusionais
entre mães e filhas.
No mesmo texto, Freud (1933 [1932]) teoriza sobre as duas camadas de
identificação de uma mulher com sua mãe – a pré-edipiana e a do complexo de
Édipo: “... sem dúvida justifica-se dizermos que muita coisa de ambas subsiste no
futuro e que nenhuma é adequadamente superada no curso do desenvolvimento.”
(FREUD, 1933, p. 164). Essa é uma constatação que destaco: não há uma
superação, mas a coexistência de camadas diversas de identificação.
Freud considera que o desenvolvimento de uma menina seria mais difícil e
complexo que o dos meninos, pois a mulher tem duas tarefas extras: mudar de zona
erógena e de objeto: “... não há nada de equivalente no desenvolvimento de um
homem.” (FREUD, 1933, p. 159). A feminilidade e a masculinidade são árduas
conquistas psíquicas, com desafios próprios, específicos, com os quais não parece
ser pertinente fazer analogias, idéia compartilhada com Freud no texto de 1931: “...
Há muito tempo, afinal de contas, já abandonamos qualquer expectativa quanto a
um paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual masculino e feminino”
(FREUD, 1931, p. 260). Ao longo desta investigação, a tarefa feminina de mudar de
objeto – da mãe para o pai – é problematizada: haveria uma mudança, ou quais
outras possibilidades existiriam?
Freud constata, em 1933, que a menina se separa da mãe por meio de
sentimentos hostis:
O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de
hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa
espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida; pode ser
muito cuidadosamente supercompensado, posteriormente;
geralmente, uma parte dele é superada, ao passo que a parte
restante persiste.
(FREUD, 1933, p. 150).
31
Na tentativa de compreender a hostilidade das filhas dirigidas às mães, Freud
comenta que as meninas responsabilizam a mãe pela falta de um pênis. No texto de
1931, ele descreve uma lista de motivos, dentre os quais essa falta, que justificaria a
hostilidade da menina em relação à mãe, concluindo: “Alguns deles decorrem
inevitavelmente da natureza da sexualidade infantil; outros aparecem como
racionalizações imaginadas posteriormente, para explicar a mudança
incompreendida no sentimento” (FREUD, 1931, p. 269). Em 1933, retoma
novamente a questão das acusações e queixas contra a mãe: “muitas dentre elas
são evidentes racionalizações e as verdadeiras origens da hostilidade restam por ser
encontradas.” (FREUD, 1933, p. 150). As verdadeiras origens da hostilidade (da
menina) em relação à mãe ainda precisam ser compreendidas.
Posso, a partir da argumentação acima, alicerçar uma hipótese: a mudança
no sentimento de intensa paixão para hostilidade deve-se a tentativa de
diferenciação psíquica entre mães e filhas? Será preciso odiar a mãe para se apartar
e, fazendo uso da hostilidade, desidentificar-se? Tudo faz crer que a mútua
identificação entre mãe e filha, e o fato de ser uma relação sob o selo narcísico do
idêntico, exigiria um esforço maior no delineamento de um “eu feminino”. O
matricídio simbólico faz parte, como veremos, da constituição da feminilidade nas
mulheres.
Paradoxalmente, o uso da hostilidade, como recurso psíquico de
diferenciação, também pode aprisionar pelo ódio, transformando-se em uma
tentativa naufragada de separação entre mãe e filha. Exemplo trágico do ódio que
aprisiona é Electra, que viveu para odiar (amar) a mãe até a morte
1
. No entanto, a
relação de ódio à mãe, quando não é levada aos extremos de Electra, faz parte da
trajetória de menina à mulher, como observou Freud em 1931.
1
Tragédia apresentada no próximo item.
32
E o que pensava Melanie Klein sobre mães e filhas?
Seguindo o estilo das articulações feitas com textos freudianos, destaco
algumas contribuições do pensamento kleiniano para a compreensão da intimidade
da relação mãe-filha. Freud (1923) já havia postulado: “... o ego é, antes de qualquer
coisa, um ego corporal...”. No entanto, é Klein que explora clínica e teoricamente as
sensações corporais mais arcaicas e suas ligações com a fantasia inconsciente.
Cintra e Figueiredo (2004, p. 151) escrevem:
No pensamento kleiniano, as sensações corporais são muito
importantes na formação do tecido da fantasia: ela é a configuração
psíquica das mais arcaicas sensações e sentimentos, é o lugar no
qual se constitui a mais profunda imagem inconsciente do corpo. A
fantasia é o lugar de registro daquilo que Melanie Klein chamou de
‘memórias em sentimento’ (memory in feelings), mas que
poderíamos chamar, de maneira mais exata, de ‘memórias em
sensações.
As sensações corporais do bebê despertadas pelos cuidados maternos
denominada por Freud de sedução materna, e as memórias dessa interação
corporal excitada e fantasiosa – entre mãe e filha, tornaram-se, também, objeto de
estudo desta investigação.
A linguagem dos textos kleinianos coloca-nos em contato com a concretude, a
corporeidade da fantasia infantil, nem sempre fácil de acessarmos; além disso, há o
risco de uma compreensão precária, ou uma rejeição imediata do texto.
Particularmente, para lermos Klein, seria bom ter em mente observações pessoais e
clínicas das brincadeiras infantis e de bebês. Com Klein entramos no campo do
arcaico, do primitivo. Está aí o desafio de lê-la e de citá-la, de maneira mais
palatável, dentro do contexto da relação mãe-filha.
A teorização de Klein auxilia-nos na compreensão dos componentes orais e
anais das fantasias edipianas, devido ao entendimento que essa autora tem sobre a
origem precoce do complexo de Édipo entre o quarto e o sexto mês de vida,
concomitante à posição depressiva e ao desmame (KLEIN, 1957, p. 228). Para Klein
todas as posições libidinais (oral, anal e genital) estão sempre presentes desde os
33
primeiros meses de vida e inter-relacionadas. As sensações corporais geradas na
interação mãe e bebê são a matéria prima das fantasias inconscientes.
Podemos compreender melhor a precocidade da triangulação edípica, a partir
do texto de Cintra & Figueiredo (2004, p. 68):
Os personagens desse triângulo ou drama edípico precoce são a
criança cujo ego começa a constituir-se de forma mais nítida no
momento mesmo em que pode perceber a mãe como objeto total a
mãe que começa a ser reconhecida e o estranho cuja
existência é dolorosamente descoberta justamente porque vem
assinalar a ausência da mãe.
Partindo dessa perspectiva, o pai é o primeiro estranho/familiar, ou seja, para
bebês de ambos os sexos, o estranho é o gênero masculino. A mãe é o objeto
primário para meninos e meninas; o pai é quem, imediatamente após a precoce
percepção que o bebê tem da mãe como um outro (objeto total), surge no horizonte
afetivo da criança, o pai. Dizendo de maneira diversa, o pai é experenciado
primeiramente como um estranho – não é a mãe.
Sobre a presença psíquica do pai para uma filha, Klein escreve em 1930 e
publica, em 1932, o artigo Os efeitos das primeiras situações de angústia sobre o
desenvolvimento sexual da menina. No post-scriptum comenta o texto de Freud
(Feminilidade, 1933 [1932]), suas diferenças e aproximações com o pensamento
freudiano. Os artigos são contemporâneos, Klein explicita:
Freud acredita que o longo apego da menina à mãe é exclusivo e
ocorre antes de ela ter entrado na situação edipiana. Mas a minha
experiênica de análise de meninas pequenas convenceu-me de que
o apego prolongado e poderoso que elas têm à mãe não é nunca
exclusivo e está vinculado a impulsos edipianos. Além do mais, a
ansiedade e sentimento de culpa delas em relação à mãe afetam
também o curso daqueles impulsos edipianos; pois, na minha
maneira de ver, a defesa da menina contra a feminilidade provém
menos de suas tendências masculinas do que do medo que tem da
mãe (KLEIN, M., 1932-b, p. 256).
34
A precocidade da triangulação edípica, da presença do pai (ou terceiro) para
sua filha, marca e distingue o pensamento de Klein. O bebê do sexo feminino é
impelido, pela frustração oral imposta pela mãe, a voltar-se para o pai por volta dos
seis meses
1
.
Para Klein a triangulação edípica, ou melhor, a “situação edípica” é precoce.
Figueiredo (2006, p. 138) destaca: “a isto chamaremos de ‘situação edípica’,
aproveitando o termo usado por Melanie Klein em 1926 e desde o início associado
às experiências de impedimentos a uma gratificação plena, às privações.”
Essa diferenciação que se insinua precocemente na “célula narcísica” mãe e
bebê tem seu primeiro delineamento na posição depressiva, aos seis meses de vida,
concomitante ao que Klein denominou de fase feminina em meninos e meninas.
Klein (1928) postula a existência de uma fase da feminilidade: identificação
inicial com a mãe em ambos os sexos. Tanto meninos quanto meninas voltam-se –
de uma maneira feminina – do primeiro objeto, mãe, para o pai, isto é, os bebês de
ambos os sexos, identificados com a mãe, voltam-se para o pai. A relação primária
com a mãe deixa marcas tanto nas construções posteriores da feminilidade, quanto
na masculinidade, ou seja, na identidade sexual. Porém, a importância da fase da
feminilidade para Klein esmaeceu teoricamente após ela ter descrito a posição
depressiva (HINSHELWOOD, 1992, p. 105).
Considero uma perda a não continuidade da atenção de Klein para esse
conceito, pois ele é fundamental na compreensão de uma feminilidade primária em
bebês, anterior à constatação da diferença entre os sexos, que se dá por volta de
um ano e meio, com efeitos a posteriori nos tempos psíquicos da diferenciação
sexual
2
.
Klein relata a e ferocidade de ataques, em fantasia, ao corpo da mãe, em
ambos os sexos. Dizendo de outra forma: a profunda ambivalência da natureza
humana, que se caracteriza por intensos sentimentos de amor e ódio ao objeto. O
palco inaugural de todos os processos e desenvolvimentos sexuais e afetivos são o
1
Concomitante a posição depressiva, conceito que será articulado por Klein em 1935 e 1945.
2
A posição feminina será objeto de discussão no item “A feminilidade nas mulheres”. Florence Guignard (1997,
p.51) destaca a importância da “fase feminina primária” para suas reflexões; desenvolve seu conceito de espaço
psíquico do feminino primário a partir da conceitualização kleiniana.
35
corpo/psiquismo da mãe. Klein destaca a intrincada interação entre os complexos
positivos (heterossexuais) e negativos (homossexuais) do complexo de Édipo:
...em ambos os sexos, não importa quão divergentes seus
desenvolvimentos, o ciúme paranóide e a rivalidade na situação
edipiana direta e invertida são baseados na inveja excessiva em
relação ao objeto originário, a mãe, ou melhor, seu seio (KLEIN, M.,
1957, p. 233).
As noções precoces (inconscientes) da vagina e suas sensações são
importantes contribuições kleinianas para a compreensão da complexa interação
entre sensações corporais e fantasia: “... fui levada a concluir que uma noção
inconsciente da vagina, assim como sensações nesse órgão e no resto do aparelho
genital, são despertadas logo que surgem os impulsos edipianos.” (KLEIN, M.,1928,
p. 222). Klein ressalta a natureza interna e receptiva do órgão sexual feminino, o que
corrobora as angústias femininas a danos internos e as ansiedades da mulher a
respeito de seus atrativos físicos, e da integridade do interior de seu
corpo/psiquismo. Melanie Klein considera secundária, para a menina, as angústias
clássicas de castração e inveja do pênis:
Como sabemos, sob o predomínio dos desejos orais, o
pênis é equacionado com o seio (Abraham) e, em minha experiência,
a inveja do pênis na mulher pode ser remontada à inveja do seio da
mãe. Verifiquei que, se a inveja do pênis nas mulheres é analisada
desse ângulo, podemos ver que sua raiz está na relação mais
arcaica com a mãe, na inveja fundamental do seio materno e nos
sentimentos destrutivos a ela associados. (KLEIN, M. 1957, p. 231).
Klein dá ênfase ao que é interno ao corpo da mãe e interno ao próprio corpo.
As angústias femininas dizem respeito à destruição interna dos órgãos reprodutores
e dos bebês imaginários. Expressando de outro modo: a destruição da capacidade
criativa. A angústia feminina de destruição do interior do corpo é decorrente dos
ataques – fantasiados – ao corpo da mãe: a inveja
1
da capacidade criativa da mãe,
seus seios fartos de leite, seus bebês, seus atrativos que seduzem o pai. Em Inveja
1
“A inveja é, fundamentalmente, uma estratégia de desinvestimento libidinal.” (CINTRA E FIGUEIREDO,
2004, p. 163.)
36
e Gratidão (1957, p. 231) escreve: “... a relação invejosa com a mãe expressa-se
através de uma rivalidade edípica excessiva. ... Mais tarde na vida, cada sucesso em
sua relação com os homens torna-se, por conseguinte, uma vitória sobre uma outra
mulher.”. Isso parece significar que mesmo estando em relacionamentos com
homens, a sombra da mãe permanece.
Klein (1932-a, p. 309), ao definir a principal angústia
1
nas mulheres
2
, faz uma
importante contribuição para a compreensão da feminilidade:
Em minhas análises de pacientes femininas de todas as idades
constatei que o medo de serem devoradas, despedaçadas ou
destruídas pela mãe, brota da projeção de seus próprios impulsos de
idêntica natureza sádica contra a genitora, e que esses medos estão
na raiz de suas mais primitivas situações de angústia.
É plausível que a intensificação dessa angústia feminina de ter o interior do
corpo destruído, consequência do retorno das fantasias sádicas dirigidas à mãe,
seja devido à predominância do desencontro entre mães e filhas.
Considero um desencontro a dificuldade ou incapacidade de a mãe ser
continente às angústias de seu bebê
3
, especificamente, aqui, do sexo feminino. Para
Klein (1946), a realidade predominantemente insatisfatória e frustrante reforça as
fantasias sádicas, que por sua vez, reforça o medo da retaliação materna, fixando
uma trajetória de cisões extremamente defensivas e empobrecedoras do psiquismo.
Klein (1932) articula, como Freud, como já referido, que o apego ao pai é
profundamente afetado pelo apego inicial da menina a sua mãe, e que um é
edificado sobre o outro, tendo como decorrência, na idade adulta, o fato de que o
relacionamento das mulheres com seus maridos tende a repetir seus conflitos com a
mãe.
Freud considerou, de maneira diversa de Klein, que o apego exclusivo da
menina à mãe duraria até os cinco anos. No entanto, Klein (1932-a, p. 311)
1
Se considerarmos que a destrutividade, que pode se manifestar como inveja, é intensificada pela precariedade da
mente da mãe de dar sentido à experiência emocional do seu bebê – a rêverie de Bion –, é provável que a
intensificação da angústia feminina, de ter o interior do seu corpo destruído seja transmitida de geração a
geração, como aquilo que não foi “digerido mentalmente” entre mãe e filha.
2
Para Klein, a angústia de castração nas meninas é secundária.
3
Capacidade de rêverie materna.
37
acompanha Freud quando relata que o apego ao pai é fundamentalmente afetado
pelo apego da menina à mãe, escreve: “Freud, devo acrescentar, também assinala
que um é edificado sobre o outro, e que muitas mulheres repetem sua relação com a
mãe em sua relação com os homens”
1
. Ambos estavam ocupados com o tema entre
1930 e 1932. No entanto, Klein põe em evidência a precoce presença paterna – o
pênis no seio (objeto parcial), dizendo de outra maneira, o pai dentro da mente da
mãe; como objeto interno no psiquismo materno
2
. Ela considera a presença do pai
desde o início e refuta a idéia de um idílio inicial entre mãe e filha; pensa os
primórdios da relação mãe e filha, impregnados de ambiguidade e culpa.
Para Klein, o início da vida é uma experiência de caos infernal, momento do
predomínio do sadismo. No princípio é preciso morder a vida
3
, morder a mãe.
Projetar, introjetar, clivar e, por fim, entristecer, integrar, se identificar e reparar.
Retomo aqui as principais contribuições do pensamento kleiniano para o tema
proposto: a fantasia inconsciente (o phantasma) e suas memórias em sensações; a
precocidade da situação edípica; a primordial angústia feminina ligada a danos
internos (ao interior do corpo da mãe e da filha); a fase da feminilidade –
identificação precoce com a mãe nos dois sexos (a feminilidade nas meninas e nos
meninos); a fantasia inconsciente dos pais combinados e o fato de todas as
posições libidinais (oral, anal e genital) estarem presentes desde o início e em
interação.
Esses conceitos serão retomados ao longo do texto. Apenas para finalizar
esse item com Klein (1957, p. 233): “se a identificação com um objeto internalizado
bom e propiciador de vida puder ser mantida, ela se torna uma força propulsora para
a criatividade.”. Se a culpa levar à reparação, o interior do corpo e do psiquismo
estará preservado a capacidade de a mulher gerar orgasticamente bebês
imaginários poderá encontrar caminhos de realização. Dessa maneira, a fantasia
dos pais combinados passa a ser experienciada como fértil e propiciadora de vida.
No entanto, quando predominam as angústias esquizoparanóides, prevalece
a impossibilidade da integração depressiva, do reconhecimento da alteridade, do
1
Faço uso dessa tradução mais antiga (1969) porque, quanto a esse item, me pareceu mais clara. Na tradução de
1997, p. 257, está escrito assim: “Freud também assinala que uma se constrói sobre a outra e que muitas
mulheres repetem suas relações com a mãe nas suas relações com os homens.”.
2
Reflexão que é feita no item O pai no olhar da mãe.
3
Guignard, F. Intricação pulsional e funções do sadismo primário, 2005, p. 264.
38
ódio e da consequente retaliação, como exemplifica a tragédia grega de Electra,
comentada a seguir.
39
Electra, um elogio ao ódio
Assim pode-se traçar um paralelo entre a neo-realidade delirante do paranóico e, no mais
não havendo diferença, o relacionamento paranóide de uma filha com sua mãe. Este
relacionamento é uma mescla inextricável de amor e ódio. Toda vez que o amor é expresso,
o ódio é reprimido, e vice-versa.
(Green, 1988)
Considero de uma riqueza ímpar na tragédia grega a trajetória psíquica para a
qual somos inevitavelmente conduzidos quando assistimos a uma boa adaptação
teatral, ou quando lemos o texto. A tragédia tem o mérito de nos atingir em lugares
psíquicos de difícil acesso. A paixão mãe-filha e sua cara metade – o ódio –
pertencem a tal território, como Freud (1931, p. 260) escreveu
1
:
Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão
difícil de apreender nas análises – tão esmaecido pelo tempo e tão
obscuro e quase impossível de revivificar – que era como se
houvesse sucumbido a uma repressão especialmente inexorável.
O que abordo aqui talvez pertença a um terreno psíquico de aproximação
penosa – se considerarmos a idealização cultural contemporânea do amor dirigido à
mãe
2
: o ódio à mãe e seus componentes orais e anais. Para tal empreitada, trago a
teoria já exposta com alguns acréscimos: o conceito de “analidade primária” de
André Green (2004)
3
; a discussão feita por Halberstadt-Freud (1998 e 2001) sobre a
tragédia de Electra; a expressão usada por J.Godfrind (1994) “o pacto negro”; e o
“elogio do matricídio”, escrito por J. Kristeva (2002) a partir do texto de M.Klein sobre
a tragédia de Orestes, irmão de Electra. O intuito é compreender, em uma
microscopia afetiva, os possíveis caminhos e descaminhos na diferenciação psíquica
entre mães e filhas.
1
Já citado nas Notas introdutórias.
2
Exemplificado na mídia pelo fenômeno do dia das mães.
3
Introduzo o conceito de “analidade primária” pelo fato de Electra – assim compreendo – evidenciar as funções
estruturantes do ódio para o eu; que estão descritas com precisão fenomenológica por Green (2004).
40
A tragédia de Electra
Mas o culto à mãe e isso é essencial se inverte na visão de Klein em... matricídio. É da
perda da mãe – que equivale para o imaginário a uma morte da mãe – que se organiza a
capacidade simbólica do sujeito.
(Kristeva, 2002)
Electra é um personagem da tragédia grega. Chegaram até nós três versões:
a de Ésquilo, a de Sófocles e a de Eurípides. Em Ésquilo, Electra é apenas
coadjuvante, sendo seu irmão Orestes, o personagem principal. A peça teatral é
intitulada Coéforas. Em Sófocles e Eurípides, Electra é o personagem central; a
peça carrega seu nome e há destaque dos sentimentos humanos e vingativos de
Electra. Ésquilo apresenta a vingança como uma ação religiosa
1
. Uso, como objeto
de análise, o texto de Sófocles por apresentar a intensidade trágica dos sentimentos
vingativos e de ódio à mãe em Electra. Apresento brevemente a tragédia.
Os poetas gregos restringiam-se a algumas histórias míticas, constantemente
representadas, dentre elas, a dos filhos de Agamêmnon, comandante supremo na
guerra de Tróia. Após dez anos ausente de casa, Agamêmnon retorna ao lar, sendo
recebido por sua esposa com um “cutelo de bronze” usado para assassiná-lo. Ela foi
ajudada pelo amante e também primo de Agamêmnon, Egisto. O pretexto do crime,
declarado por Clitemnestra e Egisto, foi a vingança. O crime deve-se ao fato de que
Agamêmnon, antes de partir para Tróia, sacrificara Ifigênia, uma das filhas do casal,
em prol de bons ventos para seus navios. Restaram Ifiânassa, Crisôtemis, Electra e
Orestes. Tal motivação – a vingança – é considerada por Electra apenas um
pretexto. Ela acusa a mãe de que a razão primeira do crime é o fato de Clitemnestra
e Egisto serem amantes e desejarem ser os soberanos do palácio.
Por ocasião do assassinato cometido contra Agamêmnon, Electra consegue
salvar seu irmão Orestes – ainda menino – da morte, enviando-o para longe.
Orestes era o único filho homem, sucessor natural de Agamêmnon, e, portanto, seu
vingador. Electra permanece com as irmãs, e com a mãe e com Egisto, aguardando
ansiosamente a volta de Orestes para vingar a morte do pai. A peça desenvolve-se
1
Ribeiro Jr., Wilson. Home Page “Grécia Antiga”; Aspectos da estética aristotélica na tragédia grega. URL:
http://warj.med.br/mit/mit07-7.asp
. Acesso em: 16 de setembro de 2004.
41
no momento do retorno de Orestes, tornado homem, chega a Micenas, cidade de
seu pai, acompanhado do preceptor – antigo criado de Agamêmnon – e do amigo
Pílates. O preceptor apresenta-se no palácio com a falsa notícia da morte de
Orestes. Passaram-se muitos anos e dificilmente alguém o reconheceria. Orestes
dirige-se ao túmulo do pai para oferecer uma mecha de seus cabelos. Electra
dialoga com o coro, expressando sua dor, seu ódio e imenso sofrimento. Encontra
Crisótemis, sua irmã, que está se dirigindo ao túmulo do pai, levando oferendas
enviadas por Clitemnestra, preocupada com um sonho, interpretado por ela
(Clitemnestra) como premonitório de uma vingança relativa ao crime que cometera.
A conversa de Electra com Crisótemis é intermediada pelo coro, devido às
diferenças de postura e sentimentos das duas irmãs diante da mesma tragédia – o
assassinato do pai. Electra mostra-se, o tempo todo, vingativa e consumida por um
intenso ódio. Crisótemis pede a Electra que seja sensata, razoável, para proteger-se
de males ainda piores (SÓFOCLES, 1958).
Segue-se um árduo diálogo entre Clitemnestra – que também se dirige ao
túmulo com oferendas – e Electra. O preceptor chega dando a notícia da morte de
Orestes a Clitemnestra e Electra. Clitemnestra revela o alívio que sente com a
notícia: agora está livre do medo da vingança do filho. Electra desespera-se, não
encontrando mais sentido para sua vida. Clitemnestra e o preceptor voltam ao
palácio. Electra manifesta sua dor com o coro; logo chega sua irmã, Crisótemis,
comentando com efusiva alegria o indício de que o irmão teria voltado: a mecha de
cabelo no túmulo do pai. Há um longo diálogo entre elas, no qual Electra tenta
convencer a irmã de planejarem a morte de Egisto. Crisótemis recusa tal proposta,
deixando Electra sozinha com sua sede de vingança.
Chega Orestes. Carrega seus falsos restos mortais, e os oferece a Electra.
Diante dos intensos e dolorosos lamentos de Electra, Orestes revela sua identidade.
O contentamento contamina os dois. Electra, Orestes e Pílates, dirigem-se ao
palácio para executar o plano do assassinato de Egisto e Clitemnestra. Orestes mata
primeiramente a mãe e depois Egisto, acompanhado pelas falas de júbilo de Electra,
pela vingança realizada.
O destino de Electra após a tragédia não é relatado no texto de Sófocles. Em
Ésquilo, Orestes é perseguido pelas Erínias, as quais apenas ele vê. Apresenta-se
ao tribunal de Atenas, sendo absolvido do matricídio cometido. Em Eurípides, os
42
deuses ordenam a Orestes, casar a irmã Electra com o amigo Pílates (RIBEIRO, W.,
2004).
Sobre o matricídio, Kristeva (2002) faz referência ao texto de Klein, no qual
ela analisa a tragédia de Orestes como metáfora da posição depressiva e do
processo de simbolização. O ato de matar a mãe é libertador, pois permite o acesso
à capacidade de simbolizar e pensar. Matar significa individualizar-se. Já que a mãe
não basta, é necessário o símbolo. Kristeva (2002, p. 155) escreve:
...o elogio kleiniano do matricídio é um arrazoado em prol do
salvamento da aptidão simbólica dos humanos. O simbolismo, que
seria próprio do homem, se apresenta a essa mãe da psicanálise
como um milagre incerto, sempre já ameaçado, e cuja sorte depende
muito da mãe, mas com a condição de que ‘eu’ possa ‘me’ privar
dela.
Os diálogos de Electra são ricos de manifestações de ódio e repúdio à mãe.
Electra não consegue individualizar-se; seu ressentimento a remete à mãe, unida
inseparavelmente pelo ódio/amor. Essa situação lembra a vingança obsessiva do
paranóico: o ato vingativo dá fim ao objeto e ao eu, representando a impossibilidade
de separação. Parece ser mais fácil reconhecer a dificuldade de diferenciação na
relação idílica entre mãe e filha, do que na de ódio. Contudo, são apenas duas
possibilidades de uma mesma questão.
André Green (2004), ao descrever o conceito de analidade primária, traz um
vértice de reflexão interessante para o tema aqui desenvolvido: ...“a analidade se
converte no suporte de uma destruição fria, desencarnada, ‘descorporizante’.
Pessoalmente a nomeio de ‘desobjetalizante’.”
1
Tal destruição desencarnada, assim
penso, aproxima-se da descrição trágica de Sófocles dos sentimentos de Electra em
relação à mãe.
Qual seria a especificidade do conceito de Green? O que se segue é o relato
de algumas características dos sujeitos descritos por ele, prisioneiros da analidade
primária. Um desses hipotéticos sujeitos poderia ser Electra, que, aqui, exemplifica-
os.
1
GREEN, André. Analidade primária. Relações com a organização obsessiva, 2004.
43
Os aspectos narrados a partir do conceito de analidade primária são diversos
dos descritos sobre a analidade clássica, formação mais tardia, portanto, secundária.
A analidade primária é marcada por uma fixação narcísica (narcisismo anal): “o
narcisismo desses sujeitos encontra-se ferido e despedaçado” (GREEN, 2004, p.
54). Green descreve a obstinação dessas pessoas esfoladas vivas, alicerçada por
rígidos princípios morais. Electra considera justo seu ódio e desejo de vingança. Em
momento algum da tragédia ela duvida de seus sentimentos. Ao dirigir-se a
Clitemnestra, fala:
Aponta-me a todos como desleal,
ou petulante, ou ainda impudente,
pois se sou bem dotada de tais qualidades, herdei-as de ti; não
desmereço teu sangue !
Corifeu
Vejo-a respirar rancor, mas já não cuida
de saber se está ou não com a justiça.
(SÓFOCLES, 1958, p. 26)
O coro, na voz de seu principal protagonista – o corifeu –, tenta trazer para o
diálogo de Electra com a mãe, um pouco de bom senso. Tentativa vã, desbancada
pela irracionalidade dos sentimentos e pela intensidade paranóica da certeza de
Electra de estar sendo justa.
Green (2004) relata que há nesses sujeitos uma “erotização inconsciente dos
conflitos”. No texto da tragédia, encontramos:
Por que te enamoras da desgraça?
...
Espero-o indefinidamente,
sem filhos, infeliz, errante, sem esposo,
desfeita em lágrimas,
esmagada por desgraças sucessivas...
...
Jamais me livrarei de minhas mágoas,
de meus soluços incessantes.
(SÓFOCLES, 1958, p. 6, 7 e 9)
44
Podemos compreender essa fala – impregnada de erotização –, a partir da
concepção de Klein (1932-a, p. 268) sobre o masoquismo feminino:
Assim, parece que a raiz mais profunda do masoquismo feminino é o
medo da mulher aos perigosos objetos internalizados, em especial o
pênis do pai; e seu masoquismo, em última instância, nada mais
seria que a inflexão dos instintos sádicos, que ficariam dirigidos para
dentro, contra esses objetos internalizados.
Posteriormente a Klein, Halberstadt-Freud (1998, p. 45) escreve que o
masoquismo feminino pode ser compreendido como algo derivado do ódio à mãe e
dos impulsos matricidas.
Retomando Green (2004), o conflito é algo que tenta dar fronteira ao eu:
“diferença adquirida no combate”. Tal prazer na batalha assemelha-se à paranóia,
principalmente pela “intensidade do funcionamento projetivo intermitente”. Não há,
porém, o sentimento de perseguição verdadeiro, nem a deformação da realidade,
mas “a convicção de não ser feito para a realidade tal como ela é”. A partir de
Electra, ilustro:
Terei de conformar-me com o meu destino:
ser escrava dos assassinos de Agamêmnon !
Bela perspectiva!...Mas enquanto viver
não retornarei ao convívio dessa gente !
Deixar-me-ei ficar assim, fora das portas,
E só, sem amigos, consumirei a vida.
Os assassinos, se os importuno, matem-me!
Se viver é um suplício, antes a morte!
(SÓFOCLES, 1958, p. 37)
A respeito do ódio, Green (2004, p. 56) escreve:
Com efeito, o amor toma aqui facilmente a forma de ódio e o ódio é
o sinal de um laço que ninguém pode desatar. O ódio sela um pacto
de fidelidade eterno ao objeto primário o qual pode ser substituído
por outros que, contudo nunca deixam esquecer o primeiro, apesar
das aparências.
45
Semelhante ódio é expresso por Electra quando se dirige à mãe:
Não me é lícito, sequer, dar-te conselhos;
irás dizer que falo mal de minha mãe,
mas eu te considero menos mãe que algoz,
tão grandes são os males que me fazes hoje
para maior satisfação do teu comparte.
O ódio à mãe está presente na fala de Electra durante todo o percurso da
tragédia, ou seja, a mãe é indissociável da filha, atada pelo ódio. Segundo Klein
[1963 (1985), p. 323]: ...“O motivo primário para o ódio de Electra é que
aparentemente ela não havia sido suficientemente amada por sua mãe e seu anseio
de ser por ela amada havia sido frustrado.”.
Green (2004, p. 60) constrói uma hipotética gênese para os sujeitos
aprisionados na analidade primária:
A de uma primeira relação de objeto fusional, extremamente intensa
e passional seguida de uma decepção incurável na fase anal pela
tomada de consciência do estado separado do objeto e onde o papel
do terceiro tornou-se traumático, este sendo representado pelo pai
ou pelo irmão caçula.
Se fizermos uso dessa gênese hipotética para Electra, podemos pensar que a
sua paixão pela mãe foi intensa, seguida por uma decepção insustentável. A mãe
ficou depositária de seu ódio e rancor, o pai e o irmão, objetos idealizados, portanto,
distantes e incestuosos na fantasia. Electra exemplifica a cisão entre a mãe má e o
pai idealizado (HALBERSTADT-FREUD, 1998, p. 49). O ódio poderia ter sido uma
saída, uma etapa (talvez) necessária à diferenciação mãe-filha, caso não tivesse se
cristalizado. A decepção teria sido intransponível? O diálogo de Electra com
Crisôtemis mostra como, para a irmã, foi possível transitar por uma gama maior de
sentimentos, que não a paralisaram:
Electra: Que volte sem demora! Não tenho receios.
Crisôtemis: Para sofreres ainda mais? Já não pensas?
Electra: Para ficar longe de toda essa gente!
Crisôtemis: Não cuidas, sequer, de tua vida presente?
Electra: Minha vida é uma grande maravilha...
Crisôtemis: Mas poderia ser, se fosses razoável.
46
Electra: Não me ensines a trair os meus amigos!
Crisôtemis: Ensino a ceder diante dos mais fortes.
Electra: Adula-os! Teus motes não são para mim!
Crisôtemis: Sei, mas prefiro não cair por teimosia.
Electra: Prefiro cair exaltando nosso pai!
Crisôtemis: Sou assim, e penso que ele me perdoa.
Para Crisôtemis, há o perdão pela humanidade dos pais e dela mesma; o
mundo pode ser um lugar de pertencimento, de convivência com as tragédias
humanas. Electra segue outros motes: da teimosia, dos ideais, de jamais perdoar a
mãe – uma traidora. Qual seria a imperdoável traição da mãe? Ser mulher, usufruir
de uma sexualidade independente da filha, escolher o outro, o estranho, o terceiro, o
pai. O mito representaria, entre outras coisas, o horror dos filhos (e em especial da
filha) diante da sexualidade da mãe, que impõe um terceiro, ferida narcísica na
infância de meninas e meninos? Parece-me que sim.
Destaco o lugar, oral e anal, de indiferenciação eu e não eu, no qual a
decepção de Electra parece ser intransitável. Green (2004, p. 60), ao propor o
conceito de analidade primária, descreve as características que justificam a
referência libidinal anal: negativismo, oposição, obstinação, redução das trocas
libidinais, combatividade, agressividade e desejo de controle, assim como, aquelas
características que justificam a primariedade: “a ligação com a oralidade da qual a
analidade se desprende mal... As marcas da relação oral (avidez afetiva,
dependência, etc.) infiltram de tal maneira a analidade que deveríamos falar em
oranalidade”. Green (2004, p. 60) diz de uma fragilidade do eu; o objeto é ou o
inimigo intrusivo, ou... “o alterego, cuja presença é indispensável ao sentimento de
existência”. Tais características também são marcantes em Electra: a necessidade
de combater a mãe para diferenciar-se dela; o desejo de estar perto do irmão, vivido
como distante e idealizado, assim como a lembrança do pai morto que dará sentido
à sua vida; a erotização do sofrimento, a sua tenacidade e combatividade evidentes.
A questão que move esta investigação impõe-se novamente: Haveria uma
especificidade da trajetória feminina? A menina parece ter uma maior dificuldade na
construção de sua identidade feminina separada de sua mãe, já que seu objeto
primário faz parte de uma relação entre semelhantes, portanto, com características
homoeróticas.
47
H. Deutsch
1
(1944-1945) diz que a menina nasce e continua a viver sob o
legado de um vínculo homoerótico; seu primeiro objeto de amor é do mesmo sexo.
Considerando que a constatação da diferença entre os sexos se dê a posteriori (por
volta de um ano e meio), tal constatação vai recair sobre o vínculo originário entre
mãe e filha, que tem como característica a similitude.
A percepção da semelhança entre elas (mãe e filha) acontece, sob o vértice
da filha, a partir da constatação da diferenciação entre os sexos. Porém, sob o
prisma da mãe, ela (mãe) vive uma relação com um bebê do mesmo sexo que o
seu; pode estar cuidando e apreciando (na melhor das hipóteses) o corpo feminino
de seu bebê. Contudo, se existe dificuldade ou impossibilidade no prazer entre
corpos femininos (mãe e bebê menina), esses impedimentos, inscritos no psiquismo
como “memórias em sensações”, podem ser o alicerce arcaico das disfunções
femininas
2
, manifestadas pela via somática e/ou psíquica.
Halberstadt-Freud (2001, p. 160) considera que a tragédia de Electra é uma
excelente metáfora para o complexo de Édipo feminino:
O laço ambivalente não resolvido com a mãe; a cisão entre o ódio
dela e a idealização do pai distante; uma forte força homossexual
subjacente; a inveja do irmão e o desejo de domesticá-lo; o risco de
perder tanto o pai como a mãe como objeto de desejo, e não receber
nada em troca, pois também se desistiu da sexualidade na barganha;
e também – por último, mas não menos importante – a força e
resistência feminina, e ser guiada por um superego incansável,
implacável e descomprometido.
Essa autora (2001) compreende que, por meio do ódio, Electra confessa seu
desejo inconsciente do amor materno, idéia essa, também presente na expressão
“pacto negro” de J. Godfrind (1994). Ou seja, por trás do ódio há um amor passional
pela mãe, amor nostálgico e violento. Esse amor passional aproxima-se da
descrição de Green (2004) sobre a hipotética gênese dos sujeitos da analidade
primária, tratada anteriormente neste texto.
1
Deutsch, H. The psychology of women, 1944-1945.
2
A frigidez feminina, na vida adulta, pode ser uma das resultantes da impossibilidade da mãe de ter uma
experiência de apreciação do seu bebê do sexo feminino. Nesses casos, podemos pensar na transmissão da
frigidez de mãe para filha.
48
J.Godfrind (1994) diz que a proximidade idílica entre mãe e filha, mais fácil e
comum de observarmos na vida cotidiana e na clínica, pode ser um contra-
investimento do ódio. Ambos, tanto a proximidade quanto o ódio, são proteções a
uma dependência emocional da mãe, que poderia ser vivida como desestruturante e
desorganizadora. Como já abordado, não importa se é cara (ódio) ou coroa
(aproximação idílica), a moeda é a mesma: a impossibilidade de se diferenciar da
mãe, pelo fato de, provavelmente existir uma “falha” no objeto. Dizendo de outra
maneira, não é possível, ou torna-se mais difícil, separar-se de uma mãe com quem
realmente (e prazerosamente) não estivemos juntos. J.Godfrind (1994) relata que as
mães de suas pacientes são descritas como insuficientes ou falhas em vários e
diferentes aspectos. A separação e a diferenciação entre mãe e filha, somente é
possível quando existiu uma “mãe suficientemente boa”, para dizer com Winnicott,
ou uma mãe com razoável capacidade de rêverie, para dizer com Bion.
Não se separar da mãe
1
, não cometer o matricídio simbólico
2
, é comprometer,
mesmo que parcialmente, a capacidade de pensar e a liberdade psíquica para as
realizações na vida. No caso feminino: as realizações como mulher, como mãe e
como profissional. Se a menina ata-se à mãe – pelo amor idílico (culto à mãe), ou
pela hostilidade aberta (Electra) –, há uma constituição frágil do eu, como escreve
Kristeva (2002, p. 151): “É preciso se desprender da mãe para pensar...”.
Cintra e Figueiredo (2004, p. 16) ao discutirem o conceito de analidade
primária dizem:
...quanto mais um objeto falta em suas funções constitutivas, mais
barulho faz, quanto mais ele se ausenta em suas funções, quando
necessitava estar presente, mais sua presença é ofuscante e
perturbadora, atraindo a atenção do clínico e do teórico.
1
A separação da mãe é sempre parcial.
2
Devemos considerar uma transição gradual ao matricídio simbólico, ou seja, uma gradação, já que não é
incomum encontrarmos mulheres que tem certo desempenho profissional e que estão impossibilitadas de uma
separação com a mãe. Em 1915, Freud faz um breve relato sobre Um caso de paranóia que contraria a teoria
psicanalítica da doença, já citado, no qual a filha estava com sérias dificuldades em separar-se da mãe por um
“superpoderoso complexo materno”. No entanto, exercia suas funções de funcionária.
49
A paixão – amor e ódio – se intensifica entre mãe e filha pela
semelhança/similitude; a tensão paradoxal entre o horror e a fascinação ao idêntico.
Terá sido esta a “cilada narcísica” de Electra e de Clitemnestra? Talvez sim.
Diante dessa articulação podemos pensar que houve uma falha, ou uma
insuficiência entre Electra e Clitemnestra, e que o “extra-ordinário”, o fora do comum,
o excesso, revela o que pode passar despercebido pelo ordinário – a hostilidade
entre mães e filhas, descrita por Freud (1933 [1932]). Quais seriam realmente as
funções organizadoras do psiquismo feminino, da agressividade e da hostilidade
entre mães e filhas?
A compreensão da hostilidade da filha em relação à mãe pode aqui encontrar
uma outra sustentação, como Freud (1933, p. 150) havia suspeitado: “As
verdadeiras origens da hostilidade restam por serem encontradas.” A origem da
hostilidade não parece ser o fato de a mãe não ter oferecido um pênis à sua filha,
mas o fato de não haver um pênis
1
entre elas, um corpo e um órgão masculino que
possam ser oferecidos como um apoio psíquico a uma diferenciação; um apoio
anatômico como proteção diante do risco fusional
2
.
A hostilidade parece ser esse apoio, não anatômico, mas subjetivo, que tem a
importante função de diferenciação quando não se fixa entre mãe e filha,
hostilidade essa já observada e bem descrita por Freud (1931 e 1933 [1932]). Além
da função de um apoio subjetivo para a diferenciação, a hostilidade – quando se fixa
– é o que restou do desejo onipotente de permanecer na fusão simbiótica com a
mãe; a separação com o objeto, a entrada do terceiro, é insustentável.
Electra e Clitemnestra, assim como Deméter e Perséfone, são metáforas
extra-ordinárias para compreendermos a trajetória bebê-menina-mulher e seus
riscos na formação de duplos: a cilada narcísica e a ilusão simbiótica.
1
O pênis paterno, compreendido como o objeto de desejo da mãe, é fundamental para o rompimento da célula
narcísica mãe-filha. O pai como um porto seguro para que se dê a separação entre mãe e filha, objeto de
discussão no item O pai no olhar da mãe.
2
Essa idéia será sustentada teoricamente no item a Feminilidade nas mulheres.
50
O império do mesmo: Ilusão simbiótica e cilada narcísica
A aproximação identificatória entre mãe e filha, eventualmente até o duplo,
praticamente não tem equivalente masculino.
(Jacques André, 2001)
As fronteiras entre mãe e filha são construídas por um intenso trabalho
psíquico. No entanto, são sempre parciais e momentâneas, feitas e refeitas ao longo
da vida de uma mulher. Sabemos que há momentos críticos: o adolescer de menina
em mulher, a sexualidade e a maternidade primigesta situações em que as
fronteiras se delineiam, ou não. Podem, também, sofrer desmoronamento. É por
meio dos excessos, da desmesura, que afiamos o olhar para aquilo que, de forma
comum, acontece. Por esta razão, abordo a hibris entre mãe e filha. Para a
compreensão desse fenômeno na relação (mãe-filha) emprego dois articuladores
teóricos: os conceitos de cilada narcísica (Éric Bidaud, 1998) e de ilusão simbiótica
(Halberstadt-Freud, 2001). O mito de Deméter e Perséfone e a tragédia de Electra,
já apresentados, ilustram esses dois conceitos.
O império do mesmo é o título do texto introdutório de um livro organizado por
Jacques André (2003):
Mères et filles. Lês Menaces de L´identique
1
. Introdução:
L´empire du même. Esse livro é fruto de um seminário – entre mães e filhas –
ministrado por J. André (2001 e 2002). Esclareço que esse autor não dá um estatuto
de conceito à expressão o “império do mesmo”; seria apenas uma forma – que não
deixa margem a dúvidas – de nomear um fenômeno observado entre mães e filhas.
Por esse motivo, faço uso desta bem nomeada expressão.
J. André (2003) expõe em sua introdução algumas questões importantes que
retomo brevemente, pois fazem uma ligação com o tema o desejo de um filho,
trabalhado por mim em outro texto
2
, trabalho esse que me conduziu a esta pesquisa
sobre a relação mãe e filha. Esse autor diz que o conflito psíquico da fusão e da
1
Agradeço ao Prof. Dr. Luís Cláudio Figueiredo pela indicação desse livro.
2
Ribeiro, Marina F. R. (2003)Psicanálise e infertilidade: Desafios contemporâneos”. Dissertação de Mestrado
publicada na coleção Clínica Psicanalítica: Infertilidade e reprodução assistida; desejando filhos na família
contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
51
diferenciação entre mãe e filha está sempre presente, tanto na gravidez quanto nas
situações de infertilidade (J. ANDRÉ, 2003, p. 14). Pergunta-se: como um ser
humano pode nascer de outro? Como um pode se transformar em dois? Nessa
proposição simples, está todo o mistério da origem. Quando uma mulher tem uma
filha, esse bebê é um outro que é o mesmo. Confusão, indiferenciação e duplicação
entre mãe e filha. Essa seria uma via narcísica de facilitação da transmissão de uma
problemática de mãe para filha (J. ANDRÉ, 2003, p. 19).
Os conceitos de cilada narcísica (BIDAUD, 1998) e ilusão simbiótica
(HALBERSTADT-FREUD, 2001) são compreendidos à luz da questão formulada por
J. André (2003, p. 21): será possível a história e a vida, não apenas como uma
simples reprodução, quando o mesmo engendra o mesmo?
Na clínica e na vida cotidiana
1
, podemos observar o império do mesmo entre
as seguintes duplas: mãe e filha, pai e filho, duas irmãs ou dois irmãos, gêmeos
idênticos ou não, mas geralmente do mesmo sexo. A semelhança, a proximidade e a
importância desses vínculos parecem ser vias de facilitação para a formação do que
também podemos designar como um duplo
2
.
Além do âmbito das relações familiares, podemos incluir como um fenômeno
que beira ao duplo, a relação entre duas amigas adolescentes – the best friend. A
melhor amiga na adolescência parece ser uma reedição da relação pré-edípica com
a mãe, e, também, um meio para se separar dela (da mãe). Podemos compreender
essa relação da melhor amiga como um fenômeno de transição. Essa intensa
amizade na adolescência é um fenômeno observado principalmente entre meninas.
As duplas partilham roupas, tomam banho juntas, dormem na mesma cama, andam
de mãos dadas ou abraçadas, e nada do que acontece com uma pode deixar de ser
relatado para a outra. Não é incomum dividirem o interesse pelo mesmo menino,
sendo que, nesse caso, quando uma das meninas começa a namorar esse menino,
inicialmente compartilhado, a dupla se desfaz com justificados ressentimentos
3
.
1
Muitas vezes, essas duplas são tão eficientes na sua função de proteção narcísica em relação às demandas da
vida, que apenas quando fracassam ou tornam-se sintomáticas é que chegam ao consultório.
2
Estou usando o império do mesmo e a formação de um duplo como expressões de um mesmo fenômeno. O
fenômeno do duplo foi abordado por Freud (1919, p. 293) no texto O estranho: “... o sujeito identifica-se com
outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self)
por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self)”.
3
Encontro em Freud – Fragmentos da análise de um caso de histeria, (1905[1901], p. 62) – o seguinte: “... Há
muito se sabe e já se tem assinalado que, na puberdade, com , tanto os meninos quanto as meninas, mesmo nos
casos normais, mostram claros indícios da existência de uma inclinação para pessoas do mesmo sexo. A amizade
52
O império do mesmo navega por águas narcísicas, nas quais a diferenciação,
a fronteira entre o eu e o outro, não são hóspedes bem-vindos. Assemelha-se à
identificação projetiva
1
pelo apagamento das fronteiras, tanto no seu caráter de
comunicação entre mentes, quanto no seu caráter mais patológico. A similitude da
relação mãe-filha parece gerar vias de facilitação para ciladas narcísicas, tais como
a formação de um duplo, que é o mesmo.
Freud (1920), ao analisar a psicogênese de uma escolha homossexual em
uma mulher, comenta que a filha se retira (da disputa das mulheres pela admiração
dos homens) em benefício da mãe. A filha deixa os homens para a mãe, e passa a
interessar-se por mulheres, achando que dessa maneira poderia ter o amor da mãe,
já que não mais seria sua rival. Para explicar a expressão “retirar-se em benefício de
alguém”, Freud (1920, p. 198) escreve uma interessante nota de rodapé, na qual
comenta ter conhecido, uma vez, dois irmãos gêmeos:
... Um deles era muito bem sucedido com as mulheres e tinha casos
sem conta com mulheres e moças. O outro, a princípio, seguiu o
mesmo caminho, mas lhe desagradou estar violando os terrenos do
irmão e, devido à semelhança entre ambos
, o possível equívoco de
ser tomado por ele em ocasiões íntimas; assim, saiu-se da
dificuldade tornando-se homossexual. Deixou as mulheres para o
irmão, retirando-se em benefício dele.
2
Na sequência Freud cita dois outros casos, entre pai e filho e entre irmãos
fraternos. Esse comentário de Freud lembrou-me uma paciente gêmea idêntica que
atendi. Quando ela começou a namorar, depois de algum tempo em análise, tinha a
fantasia angustiante de que o porteiro de seu prédio não saberia se o namorado era
dela, ou da irmã. Essa moça relatava situações de confusões identitárias
significativas, da ordem do horror: de relance, não distinguia sua voz da voz da irmã;
ao ver fotos precisava se lembrar da situação para conseguir saber se era ela, ou a
irmã. No início do nosso trabalho, não havia distinção entre as irmãs quanto a
roupas, quarto, conta bancária, etc. Não havia nenhum outro relacionamento
importante na vida dessa paciente, além da irmã. A análise inaugurou um espaço de
entusiástica por uma colega de escola, acompanhada de juras, beijos, promessas de correspondência eterna e toda
a sensibilidade do ciúme, é o precursor comum da primeira paixão intensa de uma moça por um homem. Em
circunstâncias favoráveis, a corrente homossexual amiúde seca por completo, mas, quando não se é feliz no amor
por um homem, ela torna a ser despertada pela libido nos anos posteriores e é aumentada em maior ou menor
intensidade.”
1
Bion (1950), em seu trabalho O gêmeo imaginário, descreve o uso maciço de identificações projetivas.
2
Grifo meu.
53
triangulação e, portanto, de individualidade, seguido por muitos outros, até culminar
no namorado.
Podemos pensar que, nesse caso, um mesmo território (um mesmo eu)
precisa dividir funções, áreas de atuação, etc., fazendo jus à lógica do duplo – um
eu, para dois. A expressão de Freud – retirar-se em benefício de alguém – parece
exemplificar a construção de um duplo. Faço essa compreensão a partir da nota
1
referida que Freud escreveu associada à análise da relação da sua paciente com a
mãe. O movimento psíquico é sempre paradoxal; retirar-se em benefício tanto
evidencia a existência de um duplo (um eu para dois), como é uma tentativa tênue
de diferenciação, já que o idêntico também é da ordem do horror, devido à perda de
fronteiras identitárias.
Parece que há uma suscetibilidade ao império do mesmo na relação mãe-
filha. Halberstadt-Freud (2001) desenvolve algumas idéias sobre a trajetória de
menina à mulher que considero significativas para a compreensão dessa
suscetibilidade. Há dois pontos problemáticos no desenvolvimento da feminilidade: a
separação entre mãe e filha e o desenvolvimento sexual da mulher. Os desafios e
tarefas femininas são dois: primeiro, a mulher deve separar-se, pelo menos
parcialmente, da imagem interna de sua mãe; segundo, deve descobrir seus
sentimentos sexuais e aceitar sua identidade sexual. A experiência sexual
suficientemente boa de uma mulher com um homem é indício de que uma
separação, mesmo que parcial, pôde ser elaborada. A impossibilidade de um
encontro com um homem implica uma dificuldade na separação mãe e filha. A
realização amorosa e sexual de uma mulher com um homem é dependente de um
afastamento da mãe, como podemos entrever no mito de Deméter e Perséfone. Na
tragédia de Electra, o apego odioso entre mãe e filha impossibilita a filha de buscar
um encontro amoroso com um homem.
A menina está duplamente vinculada à sua mãe: por sua inicial (e inaugural)
relação objetal homossexual e pela identificação com ela. Halberstadt-Freud (2001,
p.145) diz: “... O mesmo gênero, as semelhanças entre elas e a ausência de
diferença sexual oferecem amplas oportunidades para mãe e filha engajarem-se
numa identificação mútua sem separação,...”.
1
Destaco que Freud estava descrevendo o que podemos compreender, assim penso, como a busca de
diferenciação identitária entre a mãe e a filha.
54
Uma mãe insatisfeita narcisicamente toma a filha como extensão. Forma-se
um duplo, ou o império do mesmo, no qual a filha somente existe para realizar os
projetos narcísicos da mãe. Se a filha ousa recusar esse projeto de vida, sua
existência fora dessa extensão narcísica não é reconhecida pela mãe
1
. A separação
pode não ser psiquicamente suportável para a filha, que passa a sentir-se
responsável pelo bem-estar da mãe, mesmo que à custa do seu próprio. Nesses
casos, a separação pode ser vivida por ambas como uma traição, gerando culpas
muitas vezes intransitáveis, ou a propensão a relações masoquistas.
Halberstadt-Freud sustenta que o masoquismo feminino está vinculado aos
problemas de separação entre mãe e filha. Quando o vínculo mãe-filha é parasitário
e intrusivo, “estar sujeita à mãe pode ser transformado em uma fantasia de ser
violentada por homens... sendo que... as fantasias eróticas masoquistas das
mulheres referem-se, assim, à agressão reprimida à mãe...” (HALBERSTADT-
FREUD, 2001, p. 148). Quando uma filha é a extensão narcísica da mãe, a sua
independência e sexualidade, caso seja possível – nem sempre é –, acontece à
custa de muita dor psíquica para ambas.
Essa autora cunha o termo ilusão simbiótica
2
unidade idílica entre mães e
filhas para descrever a não resolução do vínculo com a mãe. O conceito é usado
por ela, para compreender as relações patológicas, o fracasso completo na
separação: ...“Simbiose, como ilusão, pressupõe que nem ódio, nem inveja, nem
agressão – nem mesmo diferença de opinião – podem ser tolerados entre os dois
membros do idílio.” (HALBERSTADT-FREUD, 2001, p. 159).
O malogro na separação entre mães e filhas pode ser transmitido de uma
geração a outra. Com um bebê do sexo feminino, a mãe revive mais intensamente
sua própria trajetória feminina. O par mãe-filha, que estava no palco na geração
anterior, é novamente atualizado; as violentas ambivalências podem durar gerações,
ou seja, não há história, apenas a reprodução do mesmo. Halberstadt-Freud (2001)
diz que essa transmissão geracional parece ocorrer mais facilmente ao longo da
linhagem feminina de descendência, devido à dupla vinculação da menina com sua
mãe.
1
A construção clínica, Liz: entre a ilha e o continente, mostra a filha funcionando psiquicamente como uma
extensão narcísica da mãe.
2
Simbiose: termo desenvolvido por Margareth Mahler para designar a ilusão/desilusão de que o bebê é um com
a mãe.
55
Paradoxalmente, as meninas precisam de suas mães para se separar delas.
Isso torna as filhas mais suscetíveis às demandas e insatisfações narcísicas das
mães, o que gera experiências traumáticas de aprisionamento aos ideais maternos.
A filha passa a ser a mulher que a mãe gostaria de ter sido; a filha é aprisionada no
projeto narcísico da mãe.
Outro autor que se aproxima dessa reflexão, no entanto, por uma trajetória
diferente
1
, é Éric Bidaud (1998). Bidaud, ao investigar o vínculo passional da
paciente anoréxica com sua mãe, revela dinâmicas psíquicas que pertencem à
trajetória do feminino nas mulheres. Utiliza o mito de Deméter e Perséfone para
descrever o modelo da mãe inconsolável, que não aceita a presença masculina na
vida de sua filha. Perséfone é o modelo da virgem que dispensa o homem e
permanece numa ligação intacta com a mãe. Designa esse vínculo mortífero, como
um laço demetriano: a mãe é ao mesmo tempo indispensável e inaceitável; há uma
redução de toda alteridade, de toda diferença. Há uma incapacidade de tolerar
distância e separação; o par mãe-filha se cola formando uma união tissular, uma
cilada narcísica. Tal vínculo lembra uniões homossexuais.
Destaco a proximidade dos conceitos: ilusão simbiótica (HALBERSTADT-
FREUD, 2001) e cilada narcísica (ÉRIC BIDAUD,1998). O império do mesmo entre
mãe e filha parece ser efeito de um tipo de queda na cilada narcísica e/ou na ilusão
simbiótica. A relação mãe e filha, por ter como especificidade, já de início, uma
relação entre iguais, parece ser propiciadora de uma via de facilitação à formação do
duplo.
Essa relação, que tem a característica de intensas identificações narcísicas, é
favorecedora de um vínculo sem fronteiras, sem alteridade e, claro, sem sexualidade
genital, como a tragédia de Electra e o mito de Deméter e Perséfone elucidam.
No mito, a filha tem a experiência da sexualidade a partir do rapto. A
separação entre Deméter e Perséfone propicia à filha, liberdade de transitar por dois
mundos diferentes – mãe e pai, assim como ter acesso a uma sexualidade feminina
genital. Na tragédia (versão de Eurípides), Electra casa-se com Pílates, melhor
amigo do irmão, após o matricídio. É preciso matar a mãe simbolicamente,
diferenciar-se, mesmo que em parte, para que um encontro amoroso com um
1
Podemos dizer mais freudiana.
56
homem aconteça. O que separa mãe e filha é a sexualidade da mulher, único
território não partilhável.
Penso que as questões abordadas tenham levantado alguns embates
conceituais. Considerando isso, parto para uma discussão teórica a respeito do
conceito de feminilidade na trajetória bebê-menina-mulher.
57
PARTE - II
A feminilidade nas mulheres, a trama dos conceitos.
O compromisso de um pesquisador, assim me parece, é pensar na
contribuição de alguns autores sobre determinada questão. Acredito ser essa
atitude, uma qualidade, e, também, um prazer e uma confirmação: constatar que
outros já se debruçaram sobre questões próximas. O psicanalista, hoje, tem diante
de si a complexa tarefa de articular conceitos que se assemelham e, também,
diferenciam-se, pois partem de arcabouços teóricos diversos. É menos complexo
permanecer dentro de uma filiação. No entanto, atravessar paradigmas, tendo como
norte a experiência clínica, sempre me pareceu uma experiência difícil e arriscada,
porém rica:
Ao falarmos em atravessamento de paradigmas, estamos
assinalando que algumas velhas separações e oposições, vigentes
no plano das teorias, são vigorosamente desfeitas e transpostas nas
novas perspectivas. Por exemplo, criam-se pensamentos e estilos
clínicos que fazem justiça à pulsão, e às relações de objeto; que
levam conta, de um lado, desamparo e dependência original, e, de
outro, desejo; que pensam em termos de conflito e de déficit; que
investigam as dimensões da fantasia, e do trauma, vale dizer, dão
atenção ao intrapsíquico e ao intersubjetivo. A partícula e no lugar do
ou aponta para o caráter complexo e paradoxal assumido pelas
teorizações e estilos que então se forjam, desconstruindo as velhas
oposições paradigmáticas. (FIGUEIREDO, 2009, p. 18).
Motivada pela investigação da especificidade da trajetória feminina, percorri
textos de autores diversos, e quanto mais aprofundava minhas leituras fui
percebendo que havia possibilidade de diálogo nas diferentes articulações teóricas.
Diante dessa constatação, levanto a possibilidade de estar diante de conceitos
que permitem, considerando alguns limites e especificidades, um colóquio:
identificação feminina primária, homossexualidade primária, posição feminina
primária, materno primário e feminino primário.
58
Com o intuito de estabelecer um diálogo, discuto esses conceitos, assim como
suas origens e desenvolvimentos. Antecipo que a articulação dos dois primeiros é
parcialmente contígua, devido ao fato de ambos os autores Paulo C. Ribeiro e
Jacqueline Godfrind partirem de referências comuns: as idéias de J. Laplanche e
J. André. A articulação do conceito de M. Klein fase da feminilidade com seu
desenvolvimento teórico no pensamento de Florence Guignard exige que se teça
com empenho a trama, já que representa um salto na filiação
1
teórica, possível
apenas por meio da explicitação de algumas diferenças.
O objetivo desta parte é, também, destrinçar e nomear uma complexa rede
conceitual que cerca o termo feminilidade em psicanálise, explicitando as escolhas
teóricas feitas. Ao mapear, estamos definindo fronteiras e evidenciando o território
que surge a partir do recorte. Pretendo discorrer sobre o percurso do bebê,
identificado como feminino
2
, em direção à feminilidade, alicerçando teoricamente a
especificidade da trajetória da feminilidade nas mulheres.
A partir do objetivo exposto, evidencia-se a seguinte complexidade: ao
abordar a feminilidade estamos, também, descrevendo processos constitutivos do
psiquismo. Pelo fato de esses conceitos estarem imbricados feminilidade e
constituição do eu , faz-se necessário o esclarecimento: a constituição do eu não é
o foco desta investigação, ou expressando de outra forma, essa diferenciação
presta-se para fins de articulação teórica, ou seja, para uma definição mais apurada
do objetivo do trabalho que é a averiguação de como se constitui a feminilidade nas
mulheres.
Nossos protagonistas são tanto a mente da mãe quanto a mente incipiente do
recém nato; a interação, continência e intrusão desse encontro e suas ressonâncias
na trajetória rumo à feminilidade nas mulheres. Considerando que, sob o prisma do
psiquismo da mãe – em suas facetas conscientes e inconscientes –, o sexo biológico
de seu bebê toca em sua (da mãe) trama identificatória, marcando de imponderáveis
formas o psiquismo emergente do bebê; marcas que farão parte da feminilidade.
Posto isso, vamos ao início, ou o que se supõe do princípio. Começo com o
conceito de identificação feminina primária...
1
Freud e Klein seriam o casal parental da psicanálise? Para alguns, sim.
2
Segundo Robert J. Stoller (1993), a identidade de gênero nuclear resulta de uma “força” biológica, da
designação do sexo no nascimento, da influência das atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo do
bebê e de fenômenos “bio-psíquicos”.
59
A identificação feminina primária: o pensamento de Paulo de Carvalho Ribeiro
A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço
emocional com outra pessoa.
(FREUD, 1921)
Este item objetiva não só apresentar o conceito de identificação feminina
primária, mas também empregá-lo como ferramenta teórica para pensar a
feminilidade e suas transformações de mães em filha. Paulo de Carvalho Ribeiro
(2000), em seu livro
1
O problema da identificação em Freud – recalcamento da
identificação feminina primária, faz uma rigorosa sustentação teórica do conceito.
Esse é um minucioso e vasto trabalho, no qual o autor defende a tese de uma
identificação feminina primária recalcada.
A partir desse conceito, esculpido por meio de uma longa investigação na
obra freudiana, concedi-me a licença de usufruir alguns posicionamentos finais de
sua trajetória.
Todavia, não é possível compreender o conceito de Paulo C. Ribeiro sem
abordar seus dois principais interlocutores. Em primeiro lugar, Freud e as
articulações teóricas que sustentam seu pensamento sobre identificação, algumas
das quais P. C. Ribeiro coloca em discussão; em segundo, a teoria da sedução
generalizada de J. Laplanche (1992). Também faz parte de sua argumentação, o
pensamento de Jacques André (1996) - As origens femininas da sexualidade – que,
de maneira similar a Paulo C. Ribeiro, utiliza a teoria da sedução generalizada para
desenvolver seus conceitos. Cabe esclarecer que a questão que me conduziu a
esses textos a pesquisa sobre a trajetória da feminilidade nas mulheres
diferencia-se do que parece ter mobilizado esses autores: a origem do sujeito
psíquico.
Pelo fato de haver, no conceito de identificação feminina primária,
imbricações teóricas, apresento brevemente um panorama da teoria da sedução
1
Esse livro é fruto, em grande parte, da tese de doutorado do autor, defendida na França em 1992, tendo como
orientador Jean Laplanche.
60
generalizada, na forma elaborada por J. Laplanche (1992), a partir das idéias de
Freud, Ferenczi e com a colaboração de Pontalis.
A teoria da sedução generalizada de J. Laplanche
O termo passividade primitiva antecede à feminilidade. É necessário um
tempo de história, mesmo que mínimo, para que possamos designar a feminilidade
de um bebê, e um outro tempo para que diferenciemos a feminilidade em bebês
meninos e meninas.
A situação originária (passividade originária) é o confronto entre o bebê
recém-nascido (linguagem da ternura) e o mundo adulto (linguagem da paixão). A
evidente defasagem entre os protagonistas (a criança e o adulto) é o terreno do
traumático, da confusão de línguas (FERENCZI, 1932)
1
.
André Green (2000, p. 52) articula essa idéia da seguinte forma: ...“Vê-se,
efectivamente, que a passividade – propus o termo “passivação” – da criança é
justamente a condição para que o “enxerto” sexual – linguagem da sensualidade,
segundo Ferenczi – pegue.”.
Tendo em vista essa passividade originária do bebê, voltemos à construção
conceitual da sedução generalizada. A entrada no mundo a partir da cesura do
nascimento tem o caráter de uma intrusão, Laplanche (1992, p. 100) diz: ...“para o
pequeno humano, o problema de abrir-se ao mundo é um falso problema; a única
problemática será, isto sim, a de se fechar, de fechar um si mesmo, ou um ego,
qualquer que seja, aliás, a periferia, a circunferência desse ego.”
Laplanche e Pontalis (1985) tentam salvar a teoria da sedução, relegada por
Freud “não acredito mais em minha neurótica” (FREUD, 1896, Carta 69,
endereçada a Fliess) , no que ela tem de mais profundo e interessante. Esses
autores retomam os textos freudianos entre 1895 e 1899, destacando que Freud
estava ocupado em demonstrar o estreito vínculo entre sexualidade, traumatismo e
1
“Vemos no seu artigo ‘Confusão de linguagem entre os adultos e a criança’ um verdadeiro prefácio da ‘teoria da
sedução generalizada’.” (LAPLANCHE, 1988, p. 115).
61
defesa, no caso o recalque, evidenciando que é da natureza da sexualidade ter um
efeito traumático (LAPLANCHE E PONTALIS, 1985, p. 27-31).
O sexual advém do adulto que dispensa cuidados com o corpo do bebê e
suas necessidades: ...“a sexualidade irrompe literalmente de fora para dentro,
penetrando por efração num mundo da infância, que se supõe inocente, onde ela se
enquista como um evento brutal sem provocar reação de defesa: o evento não é
patogênico per se.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1985, p. 29).
O trauma psíquico aconteceria em dois tempos. No primeiro, a sexualidade é
enquistada no psiquismo pelo adulto, do exterior (adulto) para o interior (criança),
permanecendo como um corpo estranho (exterior internalizado). No segundo tempo,
da puberdade, eclode do interior. O que está em jogo é a prematuridade do bebê
humano, sua passividade (ou “passivação”, como sugere GREEN, 2000) diante do
adulto sexualizado, e o excessivamente tarde da puberdade. Laplanche e Pontalis,
na compreensão bitemporal do trauma psíquico, estão acompanhando Freud.
Finalizam o texto, concluindo: ...“a sedução seria um mito, mito da origem da
sexualidade por introjeção, do desejo, da fantasia, da ‘linguagem’ adulta’.”
(LAPLANCHE E PONTALIS, 1985, p.35).
Laplanche (1992) retoma a teoria da sedução infantil, relegada por Freud.
Emprega a descrição freudiana da sedução precoce: a partir dos cuidados corporais
destinados ao bebê, por parte da mãe, ela desperta a pulsão sexual. Laplanche
considera que a sedução precoce, aprofunda e retoma a importância da sedução, no
que diz respeito ao seu caráter constitutivo do psiquismo
1
. Para exemplificar, cito
Freud (1905, p. 210) ao referir-se à sedução precoce:
...Talvez se queira contestar a identificação do amor sexual com os
sentimentos ternos e a estima da criança pelas pessoas que cuidam
dela, mas penso que uma investigação psicológica mais rigorosa
permitirá estabelecer essa identidade acima de qualquer dúvida. O
trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte
incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas
erógenas, ainda mais que essa pessoa — usualmente, a mãe —
contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria
vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro
que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente
legítimo. A mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse
esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está
1
Não se trata aqui da sedução por parte de um adulto perverso.
62
despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando a intensidade
posterior deste. Ela considera seu procedimento como um amor
“puro”, assexual, já que evita cuidadosamente levar aos genitais da
criança mais excitações do que as inevitáveis no cuidado com o
corpo. Mas a pulsão sexual, como bem sabemos, não é despertada
apenas pela excitação da zona genital; aquilo a que chamamos
ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre
as zonas genitais.
A partir desses dois níveis de sedução, a sedução infantil (geralmente o
protagonista é o pai), a sedução precoce (geralmente a protagonista é a mãe),
Laplanche (1992, p.137) articula o conceito de sedução originária, que seria o
terceiro e primordial nível de sedução: ...“A sedução originária é a essência última
das duas outras devido ao fato de que só ela introduz a dessimetria ‘atividade-
passividade’. Os cuidados ‘maternos’ ou o ataque ‘paterno’ só são sedutores porque
não são transparentes, mas opacos, veiculando o enigmático.”
O enigmático são todos os significantes, verbais, não verbais,
comportamentais, impregnados com a sexualidade adulta inconsciente, enigmas que
o bebê não tem como decodificar
1
. Para exemplificar, Laplanche (1992) refere-se ao
seio que amamenta e, é, concomitantemente, investido sexualmente pelo
inconsciente da mãe
2
. Também inspirado na cena da amamentação, Freud (1905,
p.170) escreve:
A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que
servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente
delas. Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair no
sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, há de dizer a si
mesmo que essa imagem persiste também como norma da
expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida.
Evidenciam-se, nos escritos freudianos, que a ternura e a sexualidade provêm
da mesma fonte, ou melhor, não há essa diferenciação. A textura, sensual e afetiva,
do encontro da mãe com seu bebê invadem e constituem as sensações sensuais do
bebê de ambos os sexos.
1
Decifra-me ou te devoro!
2
Green (2000, p.45) escreve: “No entanto, as mães menos defendidas confessam ter sentido um prazer de
natureza francamente sexual ao amamentar o seu filho. Poderá isto não ter efeitos no lactente?”.
63
Retomando, a teoria da sedução generalizada implica os três níveis da
sedução: a sedução originária e sua efetividade, a sedução precoce e a sedução
infantil. Laplanche descreve a dupla alteridade com que se depara o bebê: o adulto
que cuida e o inconsciente (desse adulto), também enigmático. Tal dupla alteridade
exige da criança um trabalho de traduzir e decifrar o enigmático, proveniente do
mundo adulto sexual e inconsciente
1
.
Considero importante finalizar esta breve apresentação da teoria da sedução
generalizada trazendo uma visão crítica e elogiosa do conceito laplancheano.
Figueiredo (1994, p. 303), em seu artigo intitulado A questão da alteridade na teoria
da sedução generalizada, faz a seguinte leitura da teoria da sedução generalizada:
Será que o positivismo de Laplanche faz justiça à sua intuição
teórico-clínica que concede aos enigmas uma função destacada na
subjetivação? Creio que não: falar em enigmas é já comprometer-se
com um ‘algo’ que deixou de ser e ainda não é. Há nos enigmas uma
falta a falta de sentido, a falta de função e um excesso uma
espécie de sobra irredutível e promissora.
Em outro texto, Figueiredo, acompanhado de Coelho Júnior (2004), retoma a
questão do enigmático e, portanto, traumático da sexualidade. Apresenta quatro
matrizes organizadoras da experiência da intersubjetividade, sendo que uma delas é
a intersubjetividade traumática, tendo nas teorizações de Freud, Ferenczi e
Laplanche, seu apoio:
Nas teorizações de S. Freud, S. Ferenczi e J. Laplanche
encontraremos remissões mais ou menos explícitas a esta
intersubjetividade traumática, concebida a partir da idéia de que o
outro me imporá a sua sexualidade como um forte impacto, não
passível de assimilação e incorporação simbólica. A sexualidade
inconsciente do outro aparece, assim, como simultaneamente
constitutiva e traumática (COELHO JÚNIOR E FIGUEIREDO, 2004,
p. 21).
A sexualidade é veiculada pelo outro (adulto) da sedução generalizada,
enigmática para ambos, por essa razão, traumática. No que tange a este trabalho,
1
Paulo de Carvalho Ribeiro (2000), nesse ponto, distancia-se de Laplanche, pois recusa a idéia de um bebê
tradutor.
64
podemos pensar que o traumático da sedução, com sua ternura sensualizada, está
naquilo que excede, que resta, que sobra entre a mãe e a filha. A sexualidade
feminina, de mãe em filha, é simultaneamente constitutiva e traumática.
O pensamento de Jacques André sobre passividade, sedução e feminilidade
Jacques André, seguindo o mesmo vestígio do abandono da neurótica, por
parte de Freud, levanta a hipótese de que a teoria da sedução talvez tenha sido
recalcada
1
e não abandonada, indo mais além: “o abandono/recalcamento da teoria
da sedução e a recusa da feminilidade estariam ligados.” (ANDRÉ, J., 1995, p.96).
Vamos acompanhar, brevemente, seu pensamento.
J. André (1995, p.98) vale-se, na sua argumentação, da teoria da sedução
generalizada de Laplanche, e da posição de passividade originária da criança diante
do adulto:
O momento inaugural da vida psicossexual situa-se, em relação ao
infans, em uma dupla alteridade: a do adulto e a do inconsciente no
adulto. Se, nesse “encontro”, trata-se menos de relação que de
sedução, é porque a criança, dada sua prematuridade, vê suas
capacidades de compreensão e elaboração ultrapassadas pelo que
lhe é assim ‘injetado’. A vida psicossexual não começa pelo ‘eu
introjeto’,..., mas por um ele implanta, ele intromete; e sem saber o
que faz. A criança é tomada pela tormenta do sexual muito além do
que sua ‘resposta’ auto-erótica lhe permite aplacar. A criança é
penetrada por efração.
Podemos lembrar aqui que o prazer da mãe com o corpo de seu bebê é uma
cena partilhada familiarmente e, também, publicamente
3
. Contudo, há um recalque
quanto ao caráter sensual dessa intensa paixão da mãe por seu bebê, observada
por Freud (1905). A dupla alteridade da mãe e do seu inconsciente parece
1
Laplanche (1988, p. 115), indiretamente, também levanta a hipótese do recalcamento quando escreve: ...“Se a
sedução como teoria sofre, para Freud, esta espécie de recalcamento e de desmembramento que lamentamos, por
outro lado, em compensação, o da ‘fatualidade’, um aprofundamento importante se esboça, com a introdução de
um segundo nível, que se pode chamar sedução precoce.”
3
A publicidade utiliza-se das intensas sensações evocadas por essa cena.
65
favorecer o traumático na inserção do bebê no mundo adulto sensualizado, ou seja,
a mãe constitui e traumatiza a um só tempo.
Outro aspecto a ser destacado é: por meio dos cuidados maternos, a
amamentação (o seio na boca), a higiene corporal (a cada troca de fralda), os
sussurros no ouvido, as mordidas, os beijos no corpo, os supositórios (quando
necessários), marcam zonas corporais, zonas erógenas. A esse respeito retomo
Laplanche (1985, p.31):
Zona de circulação, igualmente zona de cuidados, isto é, os cuidados
particulares e especiais da mãe. Essas zonas, pois, atraem as
primeiras manipulações erógenas por parte do adulto. Fato ainda
mais importante se introduzirmos no jogo a subjetividade do primeiro
parceiro, essas zonas focalizam as fantasias parentais, e, sobretudo,
as fantasias maternas, de tal forma que se poderia dizer, quase
como imagem real, que elas são os pontos pelos quais se introduz
na criança este corpo estranho interno que é propriamente, a
excitação sexual.
A humanização – e a concomitante sexualização (ou libidinização) do bebê
humano – é “inerentemente traumática”
1
; acontece a partir da sedução do adulto
que cuida, na passividade (ou “passivação”) do bebê, e implica uma dupla
alteridade: da mãe e de seu inconsciente. A maneira como a mãe experiencia sua
sexualidade, ou seja, aquilo que para ela (mãe) também é da ordem do enigmático,
marca o psiquismo emergente de seu bebê
2
.
Como se entrelaçaria a feminilidade com essas questões?
J. André (1995) articula o “ser penetrado feminino” e o “ser invadido originário”
da sedução. Postula que a feminilidade primitiva seria uma primeira representação
da passividade do bebê diante da sedução originária e, justamente por essa
proximidade, objeto do recalcamento mais profundo em ambos os sexos.
Retomando a questão: a sedução originária é uma experiência de efração; o adulto,
por meio dos cuidados e dos carinhos dispensados ao bebê, conjuntamente com os
significados inconscientes (portanto enigmáticos também para o adulto) dos seus
gestos sensualizados, invade e introduz no psicossoma da criança, o sexual. Dessa
1
“A sexualidade humana é inerentemente traumática.” (MCDOUGALL, 1995. p. IX)
2
Não podemos esquecer que o bebê, também, desperta sensações diversas na mãe, ou seja, é sempre uma via de
mão dupla.
66
forma, a efração da sedução originária pode ter como primeira
representação/elaboração o ser penetrado do feminino:
...o ser-penetrado, que qualifica a posição feminina, mantém com o
ser-efractado, que define a abertura da criança pequena para a vida
psicossexual, uma relação de superposição. Essa feminilidade
primária da criança pequena (inclusive o menino) pode ser
qualificada de pré-feminilidade, se quisermos, no sentido de que
ainda não é tomada e instaurada na diferença entre os sexos.
(J.
ANDRÉ, 1995, p. 131)
Parece ser esclarecedor o termo usado por J. André, “pré-feminilidade”, em
meninas e meninos, anterior à constatação da diferença entre os sexos. A
averiguação da diferença (entre os sexos) equaciona-se ao recalcamento
secundário, como veremos com Paulo C. Ribeiro.
Retomando o pensamento de J. André (1995, p.115), a passividade originária
do bebê articula-se à posição feminina:
Quando Freud escreveu, em 1897, que “o elemento essencial
recalcado é sempre o elemento feminino”, ou quando, muito depois,
fez da “recusa da feminilidade” um dos grandes entraves do
processo analítico, foi onde se aproximou mais de perto de uma
articulação entre a feminilidade e a alteridade, entre o feminino e o
outro no interior de nós. Nossa própria hipótese, assim, tende a nos
levar das origens da sexualidade feminina para a feminilidade das
origens da psicossexualidade.
O inconsciente, sua interioridade e a feminilidade, estão estreitamente
articulados no pensamento de J. André, possibilitando uma inversão original: as
origens femininas da sexualidade.
Se o primeiro movimento do bebê é delinear um si mesmo, um eu, o sentido
inverso: o apagamento dos limites e fronteiras, ou seja, a passividade seria a
situação mais angustiante para o eu, pois está associada ao seu desaparecimento.
No entanto, paradoxalmente, a passividade é condição do prazer feminino:
1
1
J. André (1995, p. 113), discute a feminilidade masoquista implicada na questão efração/penetração: ...“A dor
começa com o excesso de prazer, com a impotência do bebê para “metabolizar” a desproporção da fantasia.”.
67
Tudo o que é insuportável para o eu a passividade, a perda de
controle, o apagamento dos limites, a intrusão da penetração, o
abuso de poder, o desapontamento é precisamente o que contribui
para o gozo sexual. (...) A derrota, em todos os sentidos da palavra,
é condição do gozo feminino.
1
O prazer feminino, ou sua impossibilidade, a frigidez tão comum às mulheres,
talvez seja decorrente, entre outras coisas, das lesões narcísicas demandadas ao eu
pelo gozo feminino
2
. Todavia, há uma intrincada complexidade no que se refere ao
prazer feminino
3
.
Retomando, a partir das teses de J. André, já explicitadas
4
, Paulo de Carvalho
Ribeiro acrescenta um ingrediente fundamental: a identificação com a mãe.
A identificação com a mãe
...nós sustentamos que a identificação com a mãe é imprescindível para o surgimento da
feminilidade.
(PAULO C. RIBEIRO, 2000)
Paulo de Carvalho Ribeiro parte principalmente da postulação de J. André de
que a feminilidade primária é a primeira representação da passividade do bebê
diante do adulto sedutor, contudo, de maneira diversa (a J. André), atribui “... à
identificação uma função central na instauração da feminilidade primária de meninos
e meninas.” Escreve: “... nós sustentamos que a identificação com a mãe é
imprescindível para o surgimento da feminilidade.” (2000, p. 247).
1
Schaeffer, J. “Horror femine ou les déliaisons non-dangereuses.” In: Revue Française de Psychanalyse, v. LVII,
número especial do congresso, 1993, p. 1763. Apud J. André (1995, p. 114).
2
Clarice Lispector (1980) escreve no livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, sobre a experiência do
gozo sexual feminino: “Eu sou tua e tu és meu, e nós é um.”.
3
Tal complexidade será tratada, ainda que em parte, ao longo deste trabalho.
4
Há discordâncias teóricas entre J. André e Paulo C. Ribeiro, explicitadas no texto do último. Como não fazem
parte do tema abordado aqui , não foram objetos de discussão.
68
Esse autor faz uma diferenciação que considero esclarecedora: articula a
identificação feminina primária com os dois tempos do recalcamento secundário. A
questão da temporalidade, dos efeitos a posteriori na constituição psíquica é a
marca do pensamento freudiano (e, claro, laplancheano). Transcrevo o texto de
Paulo C. Ribeiro pela relevância da tese desenvolvida:
Nossa hipótese é a seguinte: o primeiro tempo do
recalcamento da feminilidade primária corresponde ao processo pelo
qual a criança é moldada de acordo com a feminilidade consciente e
inconsciente da mãe, sem que essa feminilidade, para a criança, se
oponha à diferença anatômica dos sexos ou com ela se relacione.
Penetrar e ser penetrado, ter e ser o objeto, coalescem, nesse
primeiro tempo, numa experiência única, na qual passivo e ativo,
masoquista e sádico não são pares de opostos, mas vivências
homogêneas de um gozo sem oposição. O segundo tempo coincide
com a descoberta da diferença anatômica dos sexos, sua incidência
sobre a diferença dos gêneros e o imperativo de se posicionar
perante essas diferenças. Esse é o momento em que a feminilidade
primária se sexualiza (nos dois sentidos do termo) e passa a ser
comparada, avaliada e medida a partir do padrão fálico.
(2000,
p.257).
A feminilidade primária ou pré-feminilidade (J. ANDRÉ, 1995) está aquém da
diferença anatômica entre os sexos, porém, a partir do momento no qual a
feminilidade sexualiza-se no segundo tempo do recalcamento secundário , suas
“raízes” são lançadas nesse solo comum aos dois sexos: a feminilidade primária.
Paulo C. Ribeiro defende a importância da identificação com a mãe na
feminilidade primária, alicerçando teoricamente o conceito de identificação a partir de
seu caráter inconsciente, passivo, penetrante e mimético
1
. É por meio dos cuidados
corporais com o bebê e suas sensações cinestésicas que se dá a identificação com
a feminilidade da mãe:
...Acima de tudo, há mimesis de uma relação a partir da qual o eu
incipiente da criança é modelado por algo que não é exatamente
nem o eu nem o corpo da mãe, mas a afetação desse corpo e desse
1
Sobre mimesis:Mimesis requer então uma potência de liberdade e criação, mas sua produção sempre estará
“reproduzindo” a liberdade de uma outra potência produtora.”. (RIBEIRO, P.C., 2000, p. 236). Conceito de J.
Derrida conforme citação de Ribeiro, P.C. “J. Derrida. Economimesis”. In: Mimesis: desarticulations. Paris:
Aubier-Flammarion, 1975.
69
eu pelo objeto-fonte da pulsão
1
que a presença da criança faz
ressoar. Mimesis, então, e não imitação, porque se trata de uma
relação entre duas produções de estados subjetivos e não entre duas
pessoas devidamente representadas no psiquismo uma da outra: a
criança é modelada ao ser identificada à potência modeladora que
ela própria involuntariamente induz no corpo e no psiquismo da mãe.
(2000, p. 274).
A complexidade da interação identificatória entre a mãe e o seu bebê está
bem descrita por Paulo C. Ribeiro. O encontro, entre a mãe e seu bebê, é marcado
pelo arcaico, pela inscrição corporal. A corporeidade e a primariedade desse
encontro estão em cena no momento da identificação feminina primária entre mães
e filhos.
A identificação feminina primária dá-se no primeiro tempo do recalcamento
secundário, ou seja, no momento anterior à constatação da diferença anatômica
entre os sexos; momento de um gozo sem oposição e sem diferenças.
Considerando essa característica temporal, passam a ser experienciados de
maneira única: penetrar e ser penetrado, ser ativo e passivo, ter e ser o objeto. É um
gozo entre a mãe e seu bebê, no entanto, sem a marca da diferença e da
individuação; há dois, mas não são experenciados como dois. O caráter sexuado,
cindido, de oposição, se dá a partir da diferença entre os sexos e conseguinte
constatação do desejo da mãe pelo pai, isto é, no segundo tempo do recalcamento
secundário (RIBEIRO, P.C., 2000, p. 279).
Finalizando sua argumentação sobre a identificação feminina primária, Paulo
C. Ribeiro escreve:
É, portanto, esse resto da relação mimética de penetração, resultante
do efeito de diferenciação e oposição gerado pela descoberta tanto
da diferença anatômica quanto do desejo da mãe pelo pai, que
denominamos identificação feminina primária e que é, na verdade, o
resto recalcado de um estado do eu primitivo. Concomitante ao
surgimento dessa identificação feminina primária recalcada, e em
oposição a ela, surgem as identificações masculinas e femininas,
responsáveis pelo aparecimento da identidade de gênero.
(2000,
p.281).
1
Sobre o objeto-fonte da pulsão, conceito laplancheano: “Ao concebermos o objeto-fonte da pulsão como um
“corpo” traspassado pela excitação e entregue a todo tipo de penetração, conferimos a esse conceito uma
dimensão de ligação e organização, sem, no entanto, deixar de assinalar que se trata de um corpo que hesita entre
a dispersão auto-erótica e a unificação narcísica.”. (RIBEIRO, P.C., 2000, p. 224).
70
O autor propõe uma compreensão metapsicológica esclarecedora de
questões complexas: nossas origens são femininas; o eu primitivo é identificado de
forma mimética com o feminino. A partir do segundo tempo do recalcamento
secundário estamos no âmbito das oposições, da sexuação e dos gêneros.
Continuando a usufruir do pensamento de Paulo C. Ribeiro, o autor descreve
as vicissitudes identificatórias de meninos e meninas. É a partir dessa articulação
que alicerço a hipótese levantada neste trabalho. Ele descreve três eixos da
identificação feminina na menina:
A constatação de pertencer ao mesmo sexo e ao mesmo
gênero que a mãe.
A descoberta da natureza orificial e penetrável da vagina.
Descoberta do pênis paterno como órgão penetrante, desejado
e valorizado pela mãe. (RIBERO, P. C., 2000, p.281).
No menino a identificação também ocorre em três eixos:
A constatação de pertencer a um gênero e sexo diferentes da
mãe.
A suspeição da natureza orificial e penetrável do órgão que,
nas mulheres ocupa o lugar do pênis.
A descoberta do desejo da mãe pelo órgão, que o identifica
com o pai. (RIBERO, P. C., 2000, p.281).
Os três eixos identificatórios no menino trazem algumas especificidades que
são abordadas, mesmo que sucintamente, no que se segue: o pênis como o órgão
que diferencia a mãe do filho pode ser um refúgio identificatório a partir do dado
anatômico e sua representação psíquica no inconsciente da dupla mãe/filho
1
. É claro
que a posse do pênis expõe o menino a outros desafios psíquicos, também,
descritos e fundamentados por Paulo C. Ribeiro. O autor escreve sobre o desejo de
castração do menino; desejo que intenciona uma volta a um estado não diferenciado
com a mãe: identificação feminina primária. A luta do menino pela desidentificação
2
1
Schaffer, J. (2006) corrobora essa idéia, escrevendo que a homossexualidade primária entre mãe e filha é mais
incestuosa. A posse do pênis (suporte da simbolização) no menino permite a ele se diferenciar da mãe.
http://www.spp.asso.fr
, acessado em 27.09.2006.
2
Greenson, R., 1993. Des-identificação em relação à mãe: sua especial importância para o menino.
71
com a mãe, também é árdua e repleta de desafios psíquicos. A conquista da
masculinidade e do prazer do órgão que o diferencia da mãe
1
é um extenso percurso
de menino a homem.
Greenson (1993, p. 263) comenta que o fato de a menina ter a mãe como
objeto de identificação – objeto tanto primário, quanto secundário – no seu processo
de vir a ser uma mulher, traria uma tranquilização no diz respeito a sua feminilidade.
Para o menino, seria um fator de insegurança, já que sua masculinidade seria
ameaçada pela identificação infantil primária com a mãe: ...“A capacidade de des-
identificação do menino determinará o êxito ou fracasso de sua identificação
posterior com o pai.”. O menino tem como desafio sua des-identificação à mãe e,
concomitante, contra-identificação ao pai. O menino também deseja ser uma mulher
como a mãe; desejo explicitado pelo fato de o travestismo ser predominantemente
masculino. Penso ser essa uma constatação da fantasia de um homem, de ser
mulher, mesmo que momentaneamente
2
. Greenson (1993, p. 265) diz que o temor
da homossexualidade nos homens neuróticos é o temor da perda da identidade de
gênero. Podemos refletir que esse temor é sustentado pelo desejo, que não se cala
jamais, de retorno a um estado de fusão e indiferenciação com a mãe.
Freud (1933 [1932]) escreve que a relação da mãe com seu filho é a mais
livre de ambiguidades, pois a mulher, como mãe de um menino, estaria finalmente
de posse de um pênis. A observação de Freud, de que a hostilidade entre uma mãe
e seu bebê menino é menor, talvez seja decorrente de uma possibilidade psíquica
da mãe
3
de apreciação da alteridade sexual que representa um filho do sexo
masculino. Uma mãe apaixonada por seu pequeno menino resguardados os
excessos favorece uma boa, ou suficiente, sustentação narcísica para a
identidade de um homem
4
.
Dizendo de outra maneira, um filho é um outro e não o mesmo para a mãe.
Além do fato de que o menino realmente possui o objeto do desejo da mãe: o pênis.
1
A primeira obrigação de um homem é não ser mulher.”. (ZIMMERMAN, E, 2000, p. 223.)
2
Exemplificando: o travestismo no carnaval, os drags queens e os crossdresser.
3
Uma possibilidade para algumas mães.
4
Encontro na biografia de Freud (JONES, 1989, p. 19) o seguinte: “Outro efeito do orgulho e amor maternos
pelo primeiro filho deixou uma impressão mais intensa, e até mesmo indelével, no jovem em crescimento. Mais
tarde ele (Freud) escreveu: ‘Um homem que foi incontestavelmente o preferido de sua mãe tem por toda a sua
vida o sentimento de um conquistador, essa confiança no sucesso que muitas vezes ocasiona o sucesso real’.
Essa autoconfiança, que era uma das principais características de Freud, raramente fraquejou, estando ele
indubitavelmente certo ao relacioná-la com a segurança do amor de sua mãe.”
72
Isso pode trazer um asseguramento narcísico imediato, ou seja, basta crescer e ter
um faz pipi igual ao do pai, como expressou o pequeno Hans (FREUD, 1909). De
maneira distinta, também podemos especular que quando existe a forte promessa
de um trono – quando se nasce príncipe deve-se naturalmente ser rei –, as
desilusões podem ser mais violentas, isso significa que também há uma
suscetibilidade narcísica na trajetória do menino ao tornar-se homem
1
. Outro
aspecto, que corrobora a observação de Freud de que a relação entre a mãe e o
filho é mais livre de ambiguidades, é o fato de que o menino terá como referência
identificatória, predominante, o pai
2
. O pai, assim me parece, é um relacionamento
que se inicia com os benefícios de um distanciamento parcial, e não de uma
indiferenciação na origem, como é com a mãe, tanto para bebês do sexo feminino,
quanto masculino. Se a mãe é o primeiro outro – sempre o feminino –, o pai é o
outro do outro
3
.
Greenson (1993) ao considerar o aspecto de que a menina e, posteriormente,
a mulher, podem ter uma maior segurança e tranqüilização quanto à feminilidade,
diferentemente do homem quanto à masculinidade
4
, escapa-lhe que o mesmo fator
também é, assim penso, um desafio na trajetória feminina. A constatação de
pertencer ao mesmo sexo e ao mesmo gênero da mãe é, justamente, o campo
propício a confusões identificatórias na representação psíquica inconsciente da
dupla mãe-filha. A cilada narcísica (BIDAUD, 1998), a ilusão simbiótica
(HALBERSTADT-FREUD, H. C., 2001) e o império do mesmo (J.ANDRÉ, 2003) são
articulações teórico-clínicas
5
, de diferentes psicanalistas, sobre a relação mãe e
filha, que podem ser pensados a partir de uma suscetibilidade maior ao risco de
indiferenciação ou fusão identitária nessa dupla.
Podemos ponderar, também, que sob o vértice do psiquismo da mãe, esperar
um bebê do sexo feminino pode ativar reações inconscientes precoces, tanto de
fusão, como de rivalidade. A partir dessa compreensão, temos como sustentar a
especificidade da feminilidade nas mulheres: para o bebê do sexo feminino, sua
similitude com a mãe favorece tanto uma aproximação amorosa, quanto uma
1
Meninos não choram e homens não podem fracassar.
2
Mesmo que sejam as identificações paternas e masculinas da mãe, essas questões são debatidas na parte quatro
deste texto.
3
Tema que é trabalhado no item O pai no olhar da mãe.
4
Questão que pode ser exemplificada pelas brincadeiras entre amigos quanto à incerteza da masculinidade.
5
Conceitos abordados no item O império do mesmo: ilusão simbiótica e cilada narcísica.
73
competitividade, que poderá impor um distanciamento prematuro (GODFRIND, J.
1990).
A hostilidade entre mães e filhas pode ser compreendida como o
representante do trabalho psíquico de se estabelecerem fronteiras identificatórias,
constantemente ameaçadas pelo fato de mãe e filha pertencerem ao mesmo gênero.
A hostilidade não seria somente tributária do fato de a mãe não ter oferecido um
pênis para sua filha, como Freud (1933 [1932]) expressou, mas seria decorrente do
desejo de possuir um refúgio, por meio de um apoio anatômico, para uma identidade
separada da mãe. Em outras palavras, poder amar a mãe sem se perder, poder
amar a filha sem se perder; a fronteira entre identidades que a anatomia como
representação psíquica pode favorecer
1
.
O desejo da mãe pelo pai – o pênis é o objeto parcial – pode ser uma
dolorosa e necessária ferida na díade mãe e bebê do sexo feminino. Ao contrário do
menino, a menina não possui o pênis. A inveja do pênis na mulher pode ser
compreendida da seguinte forma: a menina deseja possuir o objeto do desejo da
mãe pênis/ pai para satisfazê-la; a menina deseja oferecer à mãe o que ela
(mãe) busca no pai – o pênis. Sob esse aspecto, a menina não tem o
asseguramento narcísico da posse de um pênis, que o menino tem; a menina é
exposta a constatação de não ter o que a mãe procura
2
.
Cabe ressaltar, novamente, que tanto a conquista de uma identidade
masculina, quanto a da feminina, são complexas construções psíquicas. Os desafios
ou encruzilhadas é que parecem ser sutilmente diversos. Não há atalhos, nem
caminhos fáceis, apenas distintos.
Retomando, alicerçamos e justificamos a hipótese da especificidade da
trajetória feminina: a suscetibilidade ao risco fusional entre mãe e filha, o
consequente embasamento das fronteiras identificatórias da dupla e as defesas
edificadas diante de tal perigo, considerando a trajetória teórica de Paulo C. Ribeiro
(2000). Estamos no segundo tempo do recalcamento secundário, nos destinos
psíquicos possíveis a partir da constatação da diferença entre os sexos, momento da
1
Pode favorecer, ou não.
2
Quanto a descoberta da natureza orificial da vagina, isso tem uma série de para a trajetória de menina à
mulher, questão exposta no item A experiência com um corpo feminino.
74
identidade sexual e de gênero, que tem sua raiz comum aos dois sexos no
recalcamento da identificação feminina primária.
Apesar de estarmos teoricamente no momento dos destinos psíquicos
possíveis, a partir da constatação da diferença entre os sexos – no tempo psíquico
das oposições, dos gêneros –, é preciso enfatizar suas raízes no solo comum a
meninos e meninas: a identificação feminina primária. Talvez dessa maneira
possamos compreender melhor o conceito de homossexualidade primária, anterior
ao auto-erotismo, nas mulheres heterossexuais, que dialoga, penso, com o conceito
de identificação feminina primária.
A homossexualidade nomeada de primária evidenciaria o aspecto sensual da
identificação feminina primária? O termo homossexualidade seria pertinente para
descrever um tempo mental anterior à constatação da diferença entre os sexos?
Seriam dois conceitos diferentes abordando o mesmo fenômeno?
Tendo em mente essa discussão, vamos ao próximo item: as especificidades
do conceito de homossexualidade primária...
Homossexualidade primária e sua secundarização: o pensamento de
Jacqueline Godfrind
O uso do termo homossexualidade é geralmente associado à escolha como
objeto de amor na vida adulta, por alguém do mesmo sexo. É um termo carregado
de (pré)conceitos, dos mais diversos, o que justifica sua descrição neste trabalho.
Pretendo abordar a homossexualidade denominada primária e seu processo de
secundarização, seus destinos nas mulheres heterossexuais e sua importância na
constituição da feminilidade. Tenho como referência as seguintes questões: como se
dá, ou não, a elaboração, mesmo que parcial, do vínculo homossexual inconsciente
na relação mãe-filha
1
? Quais seriam possíveis desdobramentos desse intenso
investimento? Quais possíveis destinos sublimatórios da homossexualidade nas
1
A questão que intrigou Freud (1931 e 1933 [1932]) sobre como se dá a mudança de objeto
na menina, da mãe (ligação homo) para o pai (ligação hetero), permanece em discussão.
75
mulheres? Como se articulam os conceitos de homossexualidade primária e
secundária nas mulheres heterossexuais? Tais perguntas já foram formuladas pelos
autores apresentados, corroborando esta linha de pesquisa.
A dupla mãe-bebê do sexo feminino funda e inaugura a vida psíquica a partir da
semelhança, isto é, de uma relação homo, entre iguais, mesmo que esta
semelhança seja, no momento inicial da vida, uma referência psíquica apenas da
mãe. O bebê do sexo feminino, provavelmente, desperta na mãe, sensações
específicas, situação diferente quando o bebê é um menino. A mãe marca o corpo e
o psiquismo da menina com o que é “enigmático” (LAPLANCHE, 1992) também para
ela (mãe): a sexualidade inconsciente. A possibilidade de trânsito sensual com o
corpo feminino de seu bebê, ou seja, a capacidade de apreciar a feminilidade de sua
pequena menina, está em jogo E, também, sua experiência emocional inconsciente
com sua própria mãe e pai, isto é, o legado das identificações bissexuais da mãe.
1
Green (1991, p. 98) aborda essa questão da seguinte maneira:
Desta forma, para alguns esta ligação de homossexualidade dita
primária entre a menina e a mãe dará à criança do sexo feminino a
base do amor primário que prosseguirá por toda a vida,
fundamentada no reconhecimento recíproco a partir do mesmo. Este
pedestal afetivo terá como conseqüência facilitar a mudança do
objeto ulterior. Para outros, pelo contrário, o caráter narcísico deste
amor fundamentado nesta mutualidade criará ligações amorosas
muito difíceis de desfazer para realizar a troca de objeto e a
transferência das emoções amorosas do pai falóforo, ao qual o seio
materno fará temível concorrência. Não é possível entrar em todos
os detalhes desta interessante discussão. É também impossível
desconhecer a influência do sexo da criança no desejo da mãe e os
papéis da relação da mãe com sua própria mãe ou com seu próprio
pai, no inconsciente.
É justamente a interessante questão descrita por Green (1991) o que supre
esta investigação. Destaco que o autor faz uso do termo homossexualidade, dita
primária. As construções clínicas apresentadas neste trabalho e os textos
selecionados podem dar a impressão de que há uma ênfase no caráter narcísico,
fundamentado na mutualidade do amor entre mães e filhas. No entanto, também,
esses mesmos textos consideram que, se um pedestal afetivo suficientemente bom
1
Tema que é mais detidamente abordado no item Bissexualidade psíquica: conceito à vista.
76
e sensual não foi erigido na relação mãe e filha, podem ocorrer sérias dificuldades
no momento da mudança de objeto, da mãe para o pai. Dizendo de outra maneira, a
construção de um pedestal afetivo e sensual entre mãe e filha é condição para a
mudança de objeto sempre parcial , porém sob o risco da “cilada narcísica”.
De que maneira o conceito de homossexualidade primária de Godfrind colabora
para a compreensão da construção de um pedestal afetivo entre mãe e filha? A que
se refere esse conceito?
Jacqueline Godfrind é uma pesquisadora
1
do feminino arcaico. Sua tese é que
a feminilidade primária (ou primordial) não é idêntica em meninos e meninas. O que
pode ser chamado de “proto-sexual” depende das fantasias da mãe em relação ao
sexo de seu bebê. A questão não é somente se a mãe é “suficientemente boa”, mas
sim se é uma mãe “suficientemente boa sedutora”, ou seja, que investe (libidiniza)
fantasmaticamente o gênero ao qual o seu bebê pertence
2
.
Godfrind (1990, p. 83) considera que a importância do amor ao pai na
constituição da identidade masculina é um tema versado na literatura psicanalítica
com certa amplitude. Porém, o amor homossexual da menina à mãe, como
componente constitutivo da identidade feminina não patológica, parece ser pouco
referido na literatura objeto de um “recalque inexorável” (FREUD, 1933 [1932]).
Nos textos freudianos e kleinianos já trabalhados
3
, a intensidade e a importância da
relação entre mães e filhas para a identidade e a sexualidade feminina é abordada.
Entretanto, o aspecto sensual e erótico dessa relação não está evidente. Pode-se
apenas entrever neles, essas questões.
Diz Godfrind (1990, p. 84), que a ambiguidade do termo homossexualidade
feminina se deve a duas questões: primeiramente, a teoria falocêntrica
4
– ou do
monismo fálico – amplamente difundida na psicanálise; em segundo lugar, a
dificuldade com o tema (tudo faz crer) deve-se ao fato de haver uma continuidade da
relação primária com a mãe no encontro entre mulheres. Freud (1920, p. 195), ao
analisar um caso de homossexualismo em uma jovem mulher, escreve: “A análise
1
Resenha de Héléne Parat (2003), do livro de Godfrind (2001): Comment la féminité vient aux femmes.
2
Godfrind (2001) refere-se ao trabalho de J. Laplanche (objeto-fonte) e de J. André (passividade da feminilidade
primordial), autores já citados.
3
No item O apego à mãe: amor e ódio
4
Talvez essa supervalorização do pênis-falo (tanto nas mulheres, quanto nos homens) seja um recalque maciço
referente ao encontro amoroso entre mulheres, escreve Godfrind (1990).
77
da jovem revelou, sem sombra de dúvida, que a amada era uma substituta de sua
mãe.”.
A distinção entre homossexualidade primária e secundária, apesar de também
ser controversa
1
, pode nos auxiliar como um instrumento teórico na diferenciação de
questões tão intrincadas, ou melhor, sobrepostas como o Vaticano que foi
edificado sob as ruínas de um templo romano (uma analogia com a metáfora
freudiana, referida no início deste trabalho:a civilização mino-miceniana por detrás
da civilização da Grécia”).
Para Godfrind (1990, 1994 e 2001), a homossexualidade é determinante na
organização fantasmática da mulher; nos seus movimentos identificatórios, que
fundam uma identidade de gênero, e no prazer de ser mulher que será partilhado
com um homem. O amor da mãe se constitui, também, a partir do sexo biológico de
seu bebê. Para o bebê do sexo feminino, o amor da mãe é marcado pela similitude.
A filha perpetuará a feminilidade que, de maneira inconsciente, a mãe lhe transmite.
Como uma jóia de família que passa da avó para a mãe, da mãe para a filha, tendo
em mente uma situação favorável; ou uma “feminilidade mortífera”, em uma
condição desfavorável.
No pensamento de Godfrind (1990, 1994 e 2001), a noção de
homossexualidade primária é pertinente para descrever a intimidade corporal da
mãe com seu bebê menina. A doçura da pele, a delicadeza do gesto, a música da
voz, inscrevem-se no corpo do bebê menina como as raízes do prazer sensual.
Nesse diálogo corporal imprime-se a matriz da organização fantasmática da criança.
A homossexualidade primária é pré-edípica e anterior ao auto-erotismo; a
homossexualidade secundária é pertinente a uma organização edípica, ou seja,
designa o complexo de Édipo invertido ou negativo a mãe apreendida como
mulher sexuada. O termo homossexualidade primária evidencia o aspecto sensual
do amor primário à mãe, o que corrobora a aproximação feita neste trabalho
2
de que
a homossexualidade primária seria uma nomeação que evidencia o caráter erótico e
sensual da identificação feminina primária.
1
Denis, P. (1982 e 1984) postula que a sexualidade primária é endereçada a um objeto indiferenciado quanto ao
sexo, ou seja, anterior ao reconhecimento da diferença entre os sexos. Por outro lado, para Fréjaville (1982), o
momento fundador da identidade sexual repousa nas fantasias compartilhadas entre pais e filhos do mesmo sexo.
Apud Godfrind, 1990.
2
No item A trama, ou o que se trança a partir dos conceitos.
78
Godfrind (1990, p. 86) levanta a hipótese de haver uma bipolaridade
fundamental do investimento inconsciente materno em seu bebê menina: de um
lado, rivalidade precoce, instauradora da distância; de outro, a similitude com seus
riscos fusionais. As fantasias da mãe em relação ao seu corpo de mulher, sua
experiência sensual, imprimem ao corpo da filha qualidades erógenas. Essas
fantasias inconscientes partilhadas entre a mãe e seu bebê menina permeiam tanto
a proximidade, quanto o distanciamento, precoce.
Apoiando-se na fala de suas pacientes, Godfrind (1990, p. 88) escreve sobre a
intensa nostalgia da menina em relação ao amor da mãe: sempre desejado e jamais
possuído totalmente. Relata que a insaciabilidade das mulheres, a contínua
insatisfação, tem como força motriz a aspiração ao amor da mãe, e não a ausência
de um pênis
1
. As aproximações amorosas com a mãe, psíquicas e corporais, são
fundamentais no tornar-se mulher e determinam a qualidade do encontro, posterior,
com o homem. Manter-se na dialética da aproximação e do distanciamento com o
corpo e o psiquismo da mãe é um dos grandes desafios de menina à mulher.
Essa psicanalista comenta que a secundarização da homossexualidade
primária é vivida entre mulheres por meio de suas futilité des coquetteries de
femmes: cabelos, unhas, roupas... São receitas partilhadas entre mulheres de como
provocar a admiração dos homens. O pele a pele da mãe/mulher se faz pelo
processo de secundarização: vestimenta, maquiagem, esmalte de unha, escreve
poeticamente Godfrind (1990, p. 92). Ser mulher é assunto de mulheres/mães, no
entanto, usufruir um corpo sexuado de mulher é algo a ser partilhado com um
homem. O encontro homossexual primário e secundarizado (coquetteries) entre
mulheres é destinado ao partilhar prazeroso com um homem. Parafraseando
Godfrind (1990, p. 96): toda mulher terá de assumir a convicção profunda de que o
acesso à feminilidade passa por um encontro homossexual com a mãe.
Ultrapassando fronteiras, ou melhor, tornando-as permeáveis, passo para outra
filiação teórica, abordo a seguir conceitos kleinianos e seus desenvolvimentos atuais
para a compreensão da feminilidade nas mulheres.
1
Inveja do pênis (supervalorização do pênis no inconsciente masculino e feminino): o pênis é suscetível de
seduzir à mãe, de satisfazê-la (GODFRIND, 1990).
79
A posição feminina primária ou fase da feminilidade: o pensamento de M.Klein
Esta perspectiva do maternal arcaico, que satura o objeto primário de desejo tanto quanto de
angústia ilumina, de maneira dramática, a homossexualidade endógena da mulher. Melanie insiste
nisso não somente antes de Freud, mas também com muito mais força do que ele o faz em seus
artigos sobre a sexualidade feminina. De fato, Klein apresenta logo de início o conflito em vez da
osmose entre as duas protagonistas. Já sabíamos: a angústia e a culpa estão muito cedo presentes,
mas estão mais ainda entre filha e mãe.
(KRISTEVA, 2002)
Neste item retorno as contribuições importantes e inovadoras do pensamento
kleiniano: o conceito de fase da feminilidade e o de phantasia inconsciente. Retomo
o que já foi apresentado O apego à mãe: amor e ódio de uma maneira diversa.
A intenção é articular, com mais precisão, o que considero significativos aportes do
pensamento kleiniano para a compreensão da especificidade da trajetória feminina.
O conceito de fase da feminilidade consiste na identificação inicial e precoce
do bebê com a mãe; por volta dos seis meses, o infans se volta para o pai,
identificado com a mãe. Nesse momento há um primeiro esboço de que a mãe é um
outro, e de que o pai é o outro da mãe. Para Klein, o pênis é encontrado
primeiramente dentro da mãe. Para que haja uma identificação é preciso que
aconteça um delineamento depressivo eu-outro. Tanto meninas quanto meninos se
identificam com os atributos maternos/femininos e se voltam para o pai, identificados
com a feminilidade da mãe.
M. Klein (1932-b, p. 258) situa na fase da feminilidade o ponto de fixação para
a homossexualidade masculina: “Nesta fase, o menino tem uma fixação oral de
sucção ao pênis de seu pai, exatamente como a menina. Considero esta fixação a
base de sua verdadeira homossexualidade. Podemos pensar – considerando o fato
de Klein não expressar sua opinião sobre o assunto – que fazer uma escolha
homossexual na vida adulta, para mulher, não seria uma fixação, como o é para o
menino. Seria, sim, uma falha na identificação com a feminilidade da mãe. A mãe
não foi “suficientemente boa sedutora”
1
, isso pode favorecer, na menina, uma
escolha homossexual na vida adulta. Essa falha pode ter como decorrência uma
1
Expressão de Godfrind, como já dito.
80
busca infinda e nostálgica por esse contato primordial com a mãe (e sua
feminilidade), por meio do relacionamento com outras mulheres.
A falha fenda, brecha na identificação com a feminilidade da mãe pode
ocorrer por uma omissão ou lacuna na interação corporal da dupla. Para algumas
mães, o contato corporal (por exemplo, na amamentação) com um bebê do sexo
feminino pode apresentar sérias complicações, atingindo a impossibilidade, o que
pode não acontecer quando o bebê é do sexo masculino. Por outro lado, uma mãe
excessiva, entenda-se terna demais, quase incestuosa, pode promover outro tipo de
falha: a impossibilidade de a filha diferenciar-se, podendo ter como decorrência
dificuldades na sua realização como mulher.
Para os meninos, na fase da feminilidade, o que está em jogo é a
possibilidade de sublimação de seus componentes femininos. A boa elaboração
dessa fase, segundo Klein (1932-b, 268), propicia, na idade adulta, que um homem
possa apreciar os atributos femininos, sem precisar menosprezá-los. A depreciação
é defensiva em relação a uma mulher/mãe que se tornou, no psiquismo masculino,
ameaçadora (quando predominam os sentimentos de inveja e ódio). O contato com
o feminino, e sua interioridade parece propiciar nos homens qualidades psíquicas
surpreendentes, dentre essas, a capacidade de apreciar a feminilidade de uma
mulher.
Para a menina, essa identificação com a mãe na fase da feminilidade talvez
exerça uma força de atração em relação ao arcaico. A cada fase (menarca,
defloramento, primeira gestação e menopausa), a menina (e depois a mulher) é
remetida à identificação com a mãe. A identificação precoce pode revelar-se por
meio de manifestações físicas, ou pela repetição inconsciente da feminilidade da
mãe. Exemplificando: dificuldades para engravidar, para amamentar, tensões pré-
menstruais, dificuldades na relação sexual com um homem, podem ser expressões
da força de atração ao feminino arcaico; podem ser também compreendidas como
memórias em sensações, de mãe em filha.
Com o conceito de posição depressiva, Klein não retomou a fase da
feminilidade, que parece, penso, estar ligada a uma construção teórica da
feminilidade e da masculinidade. Considerando isso, se articularmos os dois
conceitos – fase da feminilidade e posição depressiva –, talvez tenhamos bons
81
frutos. Penso que, se estamos sempre no âmbito de um processo constante e
contínuo de construção e articulação entre um sujeito e um objeto, no qual a
alteridade é sempre incerta e depressiva, a feminilidade e a masculinidade dialogam
com essas questões. Um “eu feminino” forja-se, ao mesmo tempo, “eu + feminino”,
junção indissociável. Tendo sempre em vista que nossas origens são femininas (J.
ANDRÉ, 1996), o objeto primário é feminino, marcando a trajetória dos bebês de
ambos os sexos com sutis diferenças.
Tentando esclarecer o emaranhado conceitual e fenomenológico do tema
investigado, abordo também o conceito de phantasia inconsciente, sob o vértice da
especificidade deste trabalho: a phantasia inconsciente entre a mãe e seu bebê do
sexo feminino. Na identificação da menina com a feminilidade, estão em jogo as
qualidades da feminilidade da mãe, e as phantasias inconscientes dela (mãe) a
respeito de seu corpo feminino e do corpo de seu bebê menina.
O conceito de phantasia inconsciente é fundamental na obra kleiniana,
sucintamente compreendido como o representante psíquico da pulsão, transitando
entre o somático e o psíquico. Em artigo a respeito do assunto, Isaacs (1982, p.127)
faz um breve resumo de sua articulação conceitual:
...as fantasias são o conteúdo primário dos processos mentais
inconscientes; as fantasias inconscientes são, primordialmente,
sobre corpos, e representam os anseios instintivos em relação aos
objetos; os conceitos postulados por Freud de “realização
alucinatória de desejo” e de sua “identificação primária”, “introjeção”
e “projeção” constituem a base da vida de fantasia; as fantasias têm
efeitos psíquicos e corporais, por exemplo, nos sintomas de
conversão, qualidades físicas, caráter e personalidade, sintomas
neuróticos, inibições e sublimações.
Figueiredo (2006, p. 127) comenta as fantasias inconscientes:
...as phantasias inconscientes atestam o poder imaginativo do corpo
(o termo é nosso) ‘na direção de’ e ‘em resposta a’ ambientes e seus
objetos, bem como a transição destas produções fantasísticas,
estreitamente associadas aos acontecimentos e processos
somáticos, às operações mentais mais desenvolvidas.
A phantasia inconsciente é a matéria-prima do pensamento; refere-se ao
conteúdo primário do inconsciente. Kristeva (2002, p.163) descreve a phantasia
inconsciente como metáfora encarnada.
82
Estamos no âmbito do arcaico, das trocas corporais entre mãe e filha. A
sensualidade da dupla está sendo veiculada por meio das phantasias inconscientes
partilhadas. No entanto, como já visto neste texto, essa é uma dupla assimétrica,
devido à intrusão (sedução generalizada) do mundo adulto inconsciente no mundo
da ternura do infans. As phantasias inconscientes de caráter erótico, da mãe para
com seu bebê, marcam uma geografia sensual tanto no corpo da menina, quanto no
corpo do menino, e são o esteio no qual a posteriori se constrói a feminilidade e a
masculinidade, compreendidas aqui como composições identitárias extremamente
plásticas do psiquismo.
A fase da feminilidade para os bebês de ambos os sexos seria essa reserva
arcaica de phantasia inconsciente, partilhada com o corpo/psiquismo da mãe
1
,
havendo uma afetação mútua entre o bebê e a mãe na phantasia inconsciente da
dupla: mãe-bebê do sexo feminino e mãe-bebê do sexo masculino. Como nessas
duplas a corporeidade fala mais alto, o arcaico está em evidência. Ressalto, então, a
importância de considerar as phantasias inconscientes – principalmente aquelas de
caráter sensual, da mãe para com sua filha – como constitutivas da capacidade ou
da dificuldade, na vida adulta, no que tange a sexualidade feminina: o prazer ou o
desprazer de ser mulher
2
.
O conceito de fase da feminilidade teve um significativo desdobramento nas
construções teóricas de Florence Guignard, apresentadas a seguir.
O materno primário e o feminino primário: o pensamento de Florence Guignard
Florence Guignard (1987, 1997, 2000 e 2002), psicanalista francesa
contemporânea, propõe a distinção de dois espaços psíquicos nos quais se
organizam as configurações das identificações iniciais com a mãe.
Guignard (2000, p. 130) considera a hipótese da existência de dois tempos do
feminino, nos quais as identificações iniciais com o objeto primário se organizam. O
1
Articulação própria.
2
Discussão no item O prazer (ou o desprazer) de mãe para filha.
83
primeiro tempo é o do materno primário (entre dois e três meses de vida); o
segundo, é do feminino primário (por volta dos seis meses).
O espaço do materno primário constitui-se como o espaço interno dos
investimentos pulsionais das primeiras relações identificatórias com a mãe,
imprimindo violentamente o desconhecido do objeto na psique-soma da criança, e
vetorizando as pulsões em direção ao objeto. Guignard (2000, p. 15) qualifica o
desconhecido do objeto, como o “enigmático”
1
(LAPLANCHE), conceito já descrito
2
.
O espaço do feminino primário é aquele no qual se instala o que Klein
denominou fase da feminilidade ou posição feminina. A criança se identifica com o
desejo da mãe pelo pai; é a identificação ao desejo do outro (mãe) pelo outro (pai).
Acontece no limiar da posição depressiva, no fim da díade onipotente e narcísica
mãe-bebê, e perante a primeira triangulação edipiana – o Édipo precoce,
denominado por Klein. É o momento da des-idealização: o bebê não é tudo para a
mãe. A mãe deseja um outro, o pai, o terceiro ou seu representante. Guignard (2002,
p. 18) diz que, nesse momento, a filha deverá se identificar com aquela que a privou
de seu status onipotente de único objeto de amor da mãe maternal: a mãe sexual.
Guignard escreve (2000, p. 140):
Considero o ‘feminino primário’ o espaço psíquico que se desenvolve
em relação à primeira triangulação observável no ser humano. É o
lugar inicial do desejo do Outro-do-Outro, da ausência, do negativo,
do abandono recíproco e, por conseguinte, de toda a potencialidade
dos processos de luto. Do bom estabelecimento desse espaço vai
depender o equilíbrio econômico da bissexualidade psíquica em
relação com o sexo biológico do indivíduo.
A partir da organização do espaço psíquico do feminino primário, há um
aumento das identificações introjetivas. Constitui-se, de forma um pouco mais
delineada, um dentro e um fora, o eu, o outro, e o outro do outro. Guignard (2000,
p.140) considera que o núcleo do ego é constituído pelas identificações introjetivas,
e, se essas são inicialmente femininas, o destino de ego passa a se encontrar ligado
ao destino do feminino. Se as identificações são o que resta das paixões — “o que
1
Guignard usa como referência o enigmático (LAPLANCHE) e o estético (MELTZER).
2
Retomando a questão: a sedução originária é uma experiência de efração. O adulto, por meio dos cuidados e dos
carinhos dispensados ao bebê, conjuntamente com os significados inconscientes (enigmáticos também para o
adulto) dos seus gestos sensualizados, invade e introduz no psicossoma da criança, o sexual, portanto, a efração
da sedução originária pode ter como primeira representação/elaboração o ser penetrado do feminino.
84
resta depois que tudo foi esquecido” (NOZEK, 1997) —, nossas identificações
primárias são femininas.
As identificações introjetivas do materno primário e do feminino primário são
necessárias para o equilíbrio econômico da bissexualidade psíquica, tanto para o
menino, como para a menina. No entanto, em razão do destino de mulher e de mãe,
essas identificações serão ainda mais requisitadas no que se refere ao ego corporal
da menina. A hipótese de Guignard (2002, p. 25) é de que o investimento do
maternal e do feminino por uma mulher adulta e mãe funciona em báscula e sob o
signo da culpabilidade.
Apresentados os conceitos, espero que de maneira suficiente, sigo para um
diálogo textual, no qual intenciono que fique ainda mais claro do que trata essa
trama.
85
A trama, ou o que se trança a partir dos conceitos
Aspiro, neste item, a uma discussão que revele aproximações, diferenças e
limites entre os conceitos apresentados identificação feminina primária,
homossexualidade primária, fase da feminilidade e o materno e o feminino primário
sem intenções conclusivas.
Para uma visão panorâmica, faço três esquemas, considerando a
temporalidade psíquica na formação do psiquismo. Os conceitos que avizinho
parecem pertencer a momentos psíquicos semelhantes.
O primeiro tempo é originário, faz parte das fundações do psiquismo (anterior
ao sexto mês de vida):
Identificação feminina primária
1
(Paulo C. Ribeiro: “o objeto primordial de amor e
identificação é do sexo feminino”)
Homossexualidade primária (J. Godfrind: “anterior ao auto-erotismo; evidencia o
caráter sensual do amor primário à mãe”)
Materno primário (F.Guignard: “imprime violentamente o desconhecido do objeto o
enigmático no psique-soma da criança”)
O segundo implica uma operação psíquica não descrita nos conceitos do
primeiro esquema: um primeiro esboço da triangulação edipiana e um delineamento
eu-outro
2
, concomitante a uma referência, também primeira e ainda parcialmente
delineada, de objeto total (por volta dos seis meses de vida):
1
A identificação feminina primária passa a ter o estatuto de secundária a partir do tempo psíquico da oposição
dos sexos e das diferenças, ou seja, para além do sexto mês de vida, considerando que essa referência
cronológica é sempre relativa.
2
O delineamento eu-outro é decorrente de um processo que implica um primeiro luto da onipotência da díade
mãe-bebê.
86
Fase da feminilidade ou posição feminina (Klein: a criança se volta para o pai,
identificada com a mãe)
Feminino primário (F.Guignard: “o desejo pelo Outro-do-Outro”)
O terceiro esquema conceitual demanda uma organização edípica já
decorrente do reconhecimento da diferença entre os sexos e a diferença entre as
gerações; campo do objeto total (entre o primeiro e o terceiro ano de vida):
Homossexualidade secundária (J. Godfrind: organização edípica, designação do
complexo de Édipo invertido ou negativo).
Identificação feminina secundária (Paulo C. Ribeiro: “marcada pela diferença e
oposição dos sexos”).
Começo pela discussão do primeiro esquema, primeiramente por uma
aproximação entre identificação feminina primária e homossexualidade primária.
Faço também a contextualização dos conceitos na obra de Paulo C. Ribeiro e
Jaqueline Godfrind.
A produção teórica desses dois psicanalistas é consideravelmente distinta
assim como aquilo que parece tê-los mobilizado para o estudo dos conceitos. Os
textos de Godfrind (2001) se referem, principalmente, à maneira como a feminilidade
chega às mulheres
1
, com especial ênfase no vínculo da mãe com sua filha. Seu livro
(2001) é um conjunto de artigos escritos entre 1988 e 1996. No primeiro capítulo,
Godfrind (2001, p. 17) posiciona-se teoricamente no universo de conceitos
psicanalíticos sobre o feminino, a feminilidade e a sexualidade feminina. Ela
considera que sexualidade feminina é a expressão que melhor representa uma
concepção psicanalítica do funcionamento psicossexual da mulher; e que o termo
feminilidade inclui a sexualidade feminina. Essa autora usa a seguinte definição de
feminilidade: conjunto de características próprias às mulheres em oposição à
1
Possível tradução do título de seu livro: Comment la feminité vient aux femmes (GODFRIND, 2001).
87
masculinidade ou virilidade
1
. O feminino – comum aos dois sexos – é compreendido
como o termo que designa a posição primeira, a matriz das origens, o encontro
primordial com a mãe, a experiência de ausência de representação: o
irrepresentável, o domínio do arcaico, do recalque originário. Por fim, esclarece que
seu interesse está na pesquisa do intrapsíquico inconsciente da feminilidade.
O livro de Paulo C. Ribeiro (2000), como já dito, é um rigoroso trabalho de
leitura de alguns textos freudianos. Ele retoma a coerência dos conceitos a partir de
uma leitura daquilo que o texto freudiano revela e encobre, concomitantemente. De
certa forma, sustenta a genialidade e ousadia da obra de Freud, principalmente no
que se refere à identificação feminina primária. É um trabalho de lapidação
conceitual, fruto da sua tese de doutorado, dedicada à elaboração metapsicológica
do conceito de identificação feminina primária com importantes repercussões
clínicas para a compreensão dos fenômenos identificatórios arcaicos.
O conceito de identificação feminina primária aproxima-se, no registro clínico,
sob o ângulo que sustento, da homossexualidade primária. Levanto a conjectura de
que o termo homossexualidade primária seria uma apresentação conceitual (em
termos fenomenológicos) parcialmente diversa da identificação feminina primária.
Uma das diferenças, assim constato, estaria no fato de a homossexualidade primária
colocar em evidência o caráter sensual da identificação feminina primária.
Explicando melhor, o termo homossexualidade enfatiza o aspecto erótico e sensual
da relação primária com a mãe
2
.
Entretanto, o conceito de homossexualidade primária pode induzir equívoco
quanto à sua compreensão. Godfrind (2001, p. 31) faz apenas uma breve alusão à
distinção entre identificação primária e homossexualidade primária. Refere-se à
dificuldade de compreensão dos conceitos de identificação e investimento de objeto
na obra freudiana, questão discutida no texto de Paulo C. Ribeiro (2000)
3
. Godfrind
conclui que o termo usado por Freud – identificação primária – não é suficiente para
1
M. et J. Cournut, 1993, apud Godfrind, 2001.
2
O conceito de homossexualidade primária é também para Godfrind pertinente à dupla mãe-bebê do sexo
masculino, já que nesse momento o bebê está identificado primariamente à mãe. Interessante destacar, mesmo
não sendo o objetivo deste trabalho, que a homossexualidade secundária masculina também se articula com a
homossexualidade primária: não poder ter a mulher, mas ser a mulher, ou seja, estar identificado com a mãe e
sua feminilidade e escolher um homem como objeto erótico.
3
“A única forma, parece-nos, de desfazer ou, pelo menos, de compreender algo do imbróglio relativo às relações
entre a identificação e o investimento de objeto em Freud é procurar encontrar as raízes desse verdadeiro
atentado à coerência de seu pensamento.” (RIBEIRO, P. C., 2000, p. 55).
88
abarcar o que acontece entre a criança e a mãe, principalmente no que se refere à
filha e à mãe.
Godfrind (2001) explicitou que os motivos pelos quais se distanciou do termo
identificação primária foram os precisamente trabalhados na tese de Paulo C.
Ribeiro: as contradições e os impasses teóricos na obra freudiana, devido ao
recalcamento da identificação feminina primária, pelo próprio Freud. No entanto,
Godfrind não leu o texto de Paulo C. Ribeiro, apesar de partilharem o mesmo idioma,
o francês, e de uma filiação teórica semelhante: o pensamento de J. Laplanche e de
J. André. Digo isso porque penso que a elaboração conceitual feita por Paulo C.
Ribeiro de identificação feminina primária faz jus ao aspecto sexual
1
presente na
relação primária entre o bebê e a mãe. Ele não precisa lançar mão de outro
conceito, como faz Godfrind. Essa nomeação – homossexualidade primária – pode
sugerir compreensões distorcidas, pois se confunde com a posição invertida do
complexo de Édipo feminino – a homossexualidade denominada secundária, por
Godfrind (1990), e com a homossexualidade na vida adulta, como já visto. Outro
ponto a trazer dificuldades de compreensão é a expressão homossexualidade
primária não fazer jus à importância das identificações arcaicas. No entanto, o texto
de Godfrind, ao descrever a relação arcaica do bebê com a mãe faz, sim, jus a
essas identificações, principalmente as entre filha e mãe; é apenas a nominação do
conceito que não evidencia a importância das identificações arcaicas.
O conceito de identificação feminina primária está bem elaborado em termos
metapsicológicos, oferecendo uma sustentação teórica e clínica consistente, o que
não parece ter sido a proposta de Godfrind ao optar pelo conceito de
homossexualidade primária e secundária. Dizendo de uma outra maneira, Godfrind
parece não buscar ou sustentar o estatuto metapsicológico desses termos, e sim
articular uma experiência clínica significativa com a teoria disponível que melhor
representasse o vivido na transferência e na contratransferência com suas
pacientes
2
. Pensar, detidamente, sobre o estatuto desses conceitos implicaria na
feitura de um outro trabalho, mais voltado ao registro metapsicológico, que ao
clínico.
1
“... a feminilidade da mãe é transmitida para a criança pela imitação que ela (a mãe) faz do infantil, por meio da
tradução corporal (gestos, jeitos, toques sons, afetos) daquilo que o contato com a criança induz nela e que ela
não sabe que é um derivado de sua própria sexualidade recalcada.” (RIBEIRO, P. C., 2000, p. 273)
2
Escolha que é feita e explicitada no primeiro capítulo do livro dessa autora.
89
No primeiro capítulo de seu livro – Pour introduire I’identité au féminin
1
Godfrind (2001, p. 15) explicita algumas escolhas teóricas que fez dentro da vasta
literatura psicanalítica existente sobre a feminilidade, colocando-se como herdeira
das idéias de J. Chasseguet-Smirgel: “minha proposta se inscreve no fluxo contínuo
de seus escritos.”
2
. Explicita que compartilha do conceito de sedução originária de
J. Laplanche: a sexualidade é veiculada pelo outro (adulto) da sedução
generalizada, enigmática para ambos, por isso traumática, como já descrito.
A significativa contribuição de Godfrind, assim me parece, são os exemplos
clínicos do conceito de homossexualidade primária, principalmente no que se refere
à díade mãe e bebê do sexo feminino, assim como o aspecto sensual dessa dupla, e
a importância dessa experiência para a feminilidade de uma mulher. Uma mãe
“suficientemente boa sedutora” funda um desenvolvimento psicossexual harmonioso,
escreve Godrind (2001, p. 128).
Abordo, agora, o conceito de materno primário, que se avizinha dos conceitos
de homossexualidade primária e identificação feminina primária.
Retomando: F. Guignard (2000 e 2002), ao pesquisar as configurações
identificatórias iniciais com a mãe, postula dois tempos e dois espaços do feminino:
o materno primário e o feminino primário. Ao designar como enigmático, o que a
mãe imprime na psique-soma do bebê, expõe sua proximidade e concordância,
quanto a esse aspecto, com J. Laplanche. O enigmático é a sexualidade
inconsciente da mãe que transparece em seus gestos sensuais ao cuidar de seu
bebê. Sob esse aspecto, o conceito de o materno primário aproxima-se da
conceituação de identificação feminina primária.
Cintra e Figueiredo (2004, p. 69) fazem uma aproximação do pensamento
kleiniano (fundamento dos conceitos do materno primário e do feminino primário), no
que se refere à idéia das fantasias de penetrar o corpo da mãe, no Édipo precoce,
com a teorização de J. Laplanche e J. André – referências fundamentais para o
pensamento de P. C. Ribeiro –, que considero importante para compreensão da
trama conceitual deste texto:
1
Para introduzir a identidade ao feminino, seria uma tradução possível.
2
O pensamento de J. Chasseguet-Smirgel também é uma influência significativa nos trabalhos de Florence
Guignard.
90
...se considerarmos o processo de erotização e pensarmos o corpo
do bebê como tendo sido ‘penetrado’ pelo investimento materno – da
maneira como Jean Laplanche e Jacques André sugerem que ocorre
(teoria da sedução generalizada) –, não ficará tão estranho
imaginarmos que, na vida de fantasia, a questão de ‘penetrar e ser
penetrado’ pode se colocar muito antes de qualquer consciência
clara da existência de um órgão genital como o pênis e da diferença
entre os sexos, e pode ser remetida à experiência fundamental da
erotização materna, uma vez que, do ponto de vista da criança, ela já
foi ‘penetrada’, desde o início da vida, pelas excitações que os
cuidados maternos geram em seu corpo.
Considerando a constatação da diferença entre os sexos e entre as gerações
como uma passagem para um funcionamento psíquico diferenciado, verifico que o
materno primário e o feminino primário parecem pertencer à mesma temporalidade
psíquica que a identificação feminina primária. Explicando melhor: o materno
primário, o feminino primário (e, consequentemente, a posição feminina) e a
homossexualidade primária estão aquém do tempo marcado pela diferença e
oposição entre os sexos.
Quanto às possíveis diferenças entre homossexualidade primária e fase da
feminilidade, pude verificar, por um exame mais detalhado nos textos estudados, o
seguinte: ao usarmos como referência a temporalidade psíquica, no sentido de ser
anterior ou posterior na constituição do eu, a fase feminina (Klein) implica um
psiquismo sutilmente mais evoluído, se é que podemos falar assim em relação a um
bebê de seis meses. A homossexualidade primária é anterior ao auto-erotismo
1
; tem
como indicador uma posição libidinal e não uma relação de objeto. Esclareço:
homossexualidade primária e fase da feminilidade são conceitos pertencentes a
arcabouços teóricos diversos. Considerando essa diferença, quando nomeamos
uma posição libidinal auto-erótica, estamos diante de certa dispersão. A unificação
parcial do eu se dá a partir do narcisismo. A fase da feminilidade é concomitante à
posição depressiva, que tem como consequência um delineamento eu-outro, ou
seja, a experiência de um eu inicial, mas já com um esboço de contorno, não tão
disperso. Haveria aqui uma sutil diferença temporal entre um eu mais delineado e
depressivo para Klein, e um eu anterior ao auto-erotismo, ou seja, mais difuso, no
conceito de homossexualidade primária.
1
Auto-erotismo: ...“Sem referência a uma imagem do corpo unificada a um primeiro esboço do ego, tal como ele
(Freud) caracteriza o narcisismo.” (LAPLANCHE E PONTALIS, 1985, p.47)
91
Quanto à identificação feminina primária, parece também acontecer nas
cercanias do auto-erotismo, ou mais precisamente, entre a dispersão auto-erótica e
a unificação narcísica:
A identificação feminina primária funciona como uma formação
narcísica ainda hesitante entre a unificação e a dispersão, mas ainda
assim capaz de organizar parcialmente um auto-erotismo
inteiramente marcado pela ação traumática e invasiva da
sexualidade inconsciente do adulto sobre a criança (RIBEIRO, P. C.,
2000, p. 47).
Situando melhor, o primeiro tempo do recalcamento da identificação feminina
primária é o momento em que a criança é moldada a partir da feminilidade da mãe.
É o momento anterior à constatação da diferença anatômica entre os sexos; não há
oposição, mas vivências homogêneas. O segundo tempo do recalcamento da
identificação feminina primária afina-se com a constatação da diferença anatômica,
com o tempo das oposições e das diferenças. Paulo C. Ribeiro (2000, p. 285)
escreve ser a identificação feminina secundária marcada pela diferença e pela
oposição dos sexos.
Penso que o conceito de homossexualidade primária avizinha-se do conceito
de identificação feminina primária, e que o termo homossexualidade secundária
aproxima-se da identificação feminina secundária. No momento secundário, a
menina está identificada com a mãe, mas, a partir de uma configuração edípica.
O segundo esquema traz uma operação psíquica diversa – a situação edípica
precoce – que é um significativo articulador teórico e clínico na teoria kleiniana, o
que o diferencia do primeiro e do terceiro.
Para Klein, a situação edípica instala-se a partir da constatação da existência
de um outro (pênis/pai; objeto parcial e objeto total), o terceiro, que é objeto do
desejo da mãe. É justamente nesse momento que Klein articula o conceito de
posição feminina primária: identificado com a mãe, o bebê se volta para o pai.
Guignard – autora que se posiciona como uma leitora cuidadosa dos textos
kleinianos – considera que o espaço psíquico do feminino primário é o lugar onde se
92
instala a posição feminina ou fase da feminilidade. Concebe, a partir de Klein
1
, existir
um esboço de uma primeira triangulação – situação edípica precoce, sendo que o
pai (o pênis) é descoberto primeiramente na mãe –, identificação ao desejo do outro
pelo outro
2
.
No que se refere a esse ponto – a triangulação precoce –, Godfrind (2001, p.
28) considera a importância do pai, na mente da mãe, como uma presença que
instaura um espaço psíquico entre mãe e bebê. Aponto que, mesmo reconhecendo
as contribuições kleinianas para a compreensão da psicossexualidade feminina,
Godfrind não utiliza explicitamente, em seus textos, esses aportes teóricos
3
.
Na introdução de seu livro, Godfrind (2001, p. 30) refere-se aos termos
usados por Guignard: materno primário e feminino primário. Levanta a seguinte
objeção a essa diferenciação: a disposição para a maternidade é indissociável da
feminilidade
4
; ela prefere falar de um maternal feminino. Embora tenha considerado
esse comentário instigante, ao ler os textos de Guignard, compreendi-os de maneira
diversa. Penso ser, a diferenciação entre o materno primário e o feminino primário, a
apreensão de um espaço psíquico anterior à posição feminina ou fase da
feminilidade, isto é, uma expansão, assim me parece, do conceito kleiniano. Como
Guignard entende que o espaço do materno primário é o espaço da sedução
originária, a sexualidade inconsciente da mãe está presente desde o início. A e
sexual evidencia-se – mas já estava presente – no espaço psíquico do feminino
primário, concomitantemente à descoberta o outro do outro (o pai, ou o que o
representa). A identificação ao feminino da mãe introduz, na realidade, o sexual da
mãe no mundo psíquico do infans, escreve Guignard (2002, p.17).
Concluo, a partir dessa colocação, que a sexualidade inconsciente da mãe
está presente desde o início, porém se explicita com a descoberta pelo bebê de que
1
“Dando sequência ao ‘materno primário’, um segundo espaço psíquico se organiza, o qual denominei ‘feminino
primário’ em homenagem à importância, para a minha reflexão, da descoberta, por Melanie Klein (1932),
daquilo que ela denomina, em A Psicanálise de Crianças, a ‘fase feminina primária’. ”(GUIGNARD, 1997, p.
51).
2
“O importante não é o papel do objeto, não é o papel do sujeito, é simplesmente o fato de que não existimos
enquanto pessoa se não estivermos numa situação triangular. Foi por esta razão que trabalhei sobre o materno
primário e o feminino primário, dos quais falei nos dois livros que vocês talvez tenham lido e que estão
traduzidos. Penso que a fusão ainda existente na relação, no espaço do materno primário, já é triangulada, porque
o pai existe na cabeça da mãe.” (GUIGNARD, 2005, p. 377).
3
No campo das teorias das relações objetais, Winnicott parece ser uma referência teórica para Godfrind. No
entanto, faz o seguinte comentário que considero pertinente: Winnicott dessexualizou o universo precoce do
bebê.
4
Godfrind cita J. Chasseguet quando se refere a esse tema.
93
ele não é tudo para ela: o fim da ilusão onipotente; a mãe deseja o pai. Godfrind
(2001, p.30) comenta que compreendeu a colocação de Guignard da seguinte
forma: seria como se a sexualidade da mãe não estivesse presente desde o início,
mas fosse introduzida apenas no espaço do feminino primário, no momento em que
se volta para o pai, com o seu desejo de mulher
1
.
Essa diferenciação de dois espaços do feminino – o materno primário e o
feminino primário – tem o mérito de revelar uma questão delicada para as mulheres:
a articulação desses dois espaços psíquicos, cuja introjeção identificatória é
necessária tanto para a filha, quanto para o filho, no que se refere ao
estabelecimento de uma bissexualidade psíquica equilibrada. No entanto, para a
filha, há uma especificidade: o funcionamento em báscula
2
e sob o signo da
culpabilidade, entre o materno primário e o feminino primário. A realização, tanto da
feminilidade, quanto da maternidade, dependem de uma integração do feminino e do
materno no psiquismo de uma mulher (GUIGNARD, 2002, p.25)
3
.
A diferença nos conceitos apresentados parece estar na compreensão da
psicossexualidade humana. Para Klein (1932-a, p. 287), a sexualidade tem a função
de dominar a angústia e de reparar os objetos internos e externos:
...mesmo no que se refere ao indivíduo normal, o ato sexual,
juntamente com a motivação libidinal, ajuda-o a dominar a angústia.
As atividades genitais têm ainda uma outra força motivacional, que é
o anseio de reparar, por meio da copulação, o dano ocasionado com
as fantasias sádicas.
4
Assim, a sexualidade é compreendida, predominantemente, na sua função de
dominar a angústia e reparar
5
. A questão das identificações sexuais e do
1
“A ‘censura da mulher-amante’, cara a D.Brauschweig e M.Fain, clama por seus direitos na mulher-mãe,
sustentada pelo amor e pelo desejo sexual de seu companheiro” (GUIGNARD, 2000 p.139).
2
A imagem que pode exemplificar a báscula entre o feminino e o maternal é a figura do vaso ou das duas faces.
Se enxergarmos o vaso, não vemos as faces, e vice-versa. O vaso constitui as faces, e as faces constituem o vaso,
mas não podemos percebê-los concomitantemente, a não ser por uma alternância entre um e outro – uma
báscula.
3
Na pesquisa anterior que fiz sobre Infertildiade e reprodução assistida (RIBEIRO, 2004) foram recorrentes os
casos nos quais a impossibilidade ou dificuldade de gerar filhos tinha como decorrência uma insegurança
manifesta dos atrativos femininos dessas mulheres.
4
KLEIN (1932-b, p. 236). Traduções distintas.
5
“No decorrer deste trabalho deixei claro o ponto que sustento de que a pulsão de morte (impulsos destrutivos) é
o fator primário na gênese da ansiedade. Ficou, no entanto, também implícito, na minha exposição dos processos
que conduzem à ansiedade e à culpa, que o objeto primário contra o qual se dirigem os impulsos destrutivos é o
94
desenvolvimento sexual da criança está presente, principalmente, nos primeiros
textos da obra kleiniana (Psicanálise da criança). O conceito de fase da feminilidade
é formulado em 1928 e 1932. Apesar desse conceito fase da feminilidade ter
sido retomado sutilmente no texto de 1945 – O complexo de Édipo à luz das
ansiedades arcaicas –, o interesse de Klein, no terreno das identificações sexuais,
esmaeceu (HINSHELWOOD, 1992, p. 107).
Para P. C. Ribeiro e J. Godfrind, devido às vertentes teóricas que prevalecem
em ambos (Freud, J. Laplanche e J. André), a sexualidade está presente desde o
início, e em momento algum deixa de estar; ela é transformada.
Analisando a questão da dessexualização da libido, Paulo C. Ribeiro, em
algumas partes de Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921), reflete que
parece ter se tornado difícil para Freud sustentar a publicação revolucionária do
texto de 1905 – Três ensaios sobre a teoria sexual , no qual considera que a
sexualidade está presente desde o início da vida. Paulo C. Ribeiro (2000, p. 54)
escreve: “... a idéia de uma identificação situada fora do campo da sexualidade
deveria ser profundamente afastada.”
Apesar de a sexualidade ser um conceito de suma importância na psicanálise,
ainda é uma questão em aberto para os psicanalistas, sujeita a controvérsias e a
recalques teóricos (GREEN, 2000, p. 205). Freud (1921, p. 117) considera que o
sexual em psicanálise pode ser compreendido no sentido de Eros – a coesão de
tudo que é vivo –, apontando para o fato de Eros
2
e erótico serem termos mais
elegantes:
A psicanálise, portanto, dá a esses instintos amorosos o
nome de instintos sexuais, a potiori e em razão de sua origem. A
maioria das pessoas ‘instruídas’ encarou essa nomenclatura com um
insulto e fez sua vingança retribuindo à psicanálise a pecha de ‘pan-
sexualismo’. Qualquer pessoa que considere o sexo como algo
mortificante e humilhante para a natureza humana está livre para
objeto da libido, e que o que causa ansiedade e culpa é, portanto, a interação entre a agressividade e a libido – em
última análise, a fusão, assim como a polaridade, das duas pulsões.” (KLEIN, 1948 [1991], p. 63)
2
“... ao substituir a sexualidade pelo Eros, Freud efectuou uma verdadeira revolução no seu pensamento, uma
vez que Eros significa pulsão de amor e que um amor sem objecto – ainda que o objecto fosse ele próprio – é
inconcebível, Freud é o percursor da teoria das relações de objecto, com uma ligeira ressalva: o Eros implica que
se mantenha uma libido em busca de prazer. E se a vemos em busca de objeto, é na medida em que a função
deste será assegurar a junção entre o prazer e o amor... Desde aí se compreende que é o amor – a pulsão de amor
- que se sobrepõe à sexualidade, sem dela se dissociar.” (GREEN, 2000, p. 119 e 220)
95
empregar as expressões mais polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia
ter procedido assim desde o começo e me teria poupado muita
oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me apraz evitar fazer
concessões à pusilanimidade. Nunca se pode dizer até onde esse
caminho levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a
pouco, em substância também.
No entanto, com esses termos – Eros e erótico –, apesar de polidos, corre-se
o risco de se reduzir o alcance da importância da sexualidade, como o próprio Freud
expressou: a temeridade de perder a substância, ou seja, o principal.
Sexualidade é um conceito fundamental na psicanálise, embora renegado a
inúmeras incompreensões, devido à sua complexidade e à recusa do sexual pelos
próprios psicanalistas. André Green (2000) – As cadeias de Eros – fez o que
considero um resgate do sexual no âmago da teoria psicanalítica. Por isso, aproprio-
me de suas definições esclarecedoras:
Se o prazer é identificado desde a primeira infância, é possível
afirmar-se acerca da sexualidade que ela é o ‘prazer dos prazeres’
no sentido em que se disse que a proibição do incesto era a regra
das regras. É, de facto, o elo que une sexualidade e prazer que
forma o fundamento do sexual em psicanálise.
(GREEN, 2000, p.
30)
Se a proibição do incesto é a lei das leis, e a sexualidade é o prazer dos
prazeres, como escreve Green, não há nada no psiquismo humano que escape
dessas duas grandes forças. Por mais longe que possamos estar, são apenas
derivações daquilo que caracteriza o psiquismo, também em seus primórdios.
Dessa maneira, a sexualidade pode ser usada para fins de reparação, como
predominantemente
1
descreveu Klein, apesar de, assim penso, não se restringir a
essa função.
É a partir da referência de que a sexualidade está desde o início presente, e
nunca deixa de estar – por mais distantes que aparentemente estejamos dela –, que
1
KLEIN (1932) considera a motivação libidinal, mas dá maior ênfase aos impulsos sádicos e conseqüentes
tentativas reparatórias: “... Com a fantasia inconsciente, a teoria das pulsões deslocou-se ainda mais para o
segundo plano... porque as fantasias podem ser geradas, de maneira defensiva, reparativa e criativa, o aspecto
quantitativo das pulsões se perdeu.” (HINSHELWOOD, 1992, p. 365).
96
podemos compreender as identificações entre mães e filhas dentro de um registro
sensual. Tal articulação já se encontra presente em Freud (1921, p. 173):
A psicanálise, que ilumina as profundezas da vida mental, não tem
dificuldade em demonstrar que os vínculos sexuais dos primeiros
anos da infância também persistem, embora reprimidos e
inconscientes. Ela nos dá coragem para afirmar que sentimento
afetuoso, onde quer que o encontremos, constitui um sucessor de
uma vinculação de objeto completamente ‘sensual’ com a pessoa em
pauta ou, antes, como protótipo (ou Imago) dessa pessoa.
1
Para falar da psicossexualidade humana, Guignard (2002, p. 21) observa ser
necessário falar das transformações dos instintos em pulsões, sendo a expressão
primeira das pulsões – a fantasia, e particularmente as fantasias originárias.
Considero importante explicitar essa colocação de Guignard, pois, assim me parece,
essa psicanalista consegue usufruir com rigor, tanto do pensamento freudiano,
quanto do pensamento kleiniano. Para ela, a sexualidade está presente desde o
início, com toda a sua força pulsional
2
, deixando suas marcas na psique-soma do
infans. Guignard também reconhece a importância do legado kleiniano: o formidável
investimento nos conteúdos do corpo materno, a situação edípica precoce, a fase da
feminilidade, entre outros conceitos referendados por ela, e já expostos.
Termino esta articulação dos conceitos, apresentados para uma compreensão
mais apurada da transmissão da feminilidade de mãe em filha, com a expectativa de
que essa trama conceitual seja uma bússola, ainda que parcial, nesse diversificado
universo
3
teórico do feminino e da feminilidade.
Parto agora para reflexões nas quais predominam o registro da experiência
do prazer (ou do desprazer) entre mãe e filha.
1
Devo essa referência ao cuidadoso trabalho de leitura dos textos freudianos sobre identificação no livro de
Paulo de Carvalho Ribeiro (2000).
2
Guignard (2005), Intricação pulsional e funções do sadismo primário, constrói a idéia de uma genealogia das
pulsões. Inicialmente há a pulsão de vida e a pulsão de morte, a partir de uma primeira intricação, temos as
pulsões sexuais.
3
Ressalto que a apresentação dos conceitos e seus respectivos autores não esgotam esse complexo universo.
97
PARTE - III
O PRAZER (OU O DESPRAZER) DE MÃE EM FILHA
A homossexualidade secundária nas mulheres heterossexuais e seus avatares
Em todos nós, no decorrer da vida, a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e
femininos... E uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou inconsciente pode ser
detectada em todas as pessoas normais.
(Freud, 1920)
Separo este item dos anteriores por uma questão de precisão conceitual.
Apesar de McDougall (1997)
1
usar a expressão desejos homossexuais primários, a
autora, na minha compreensão, refere-se predominantemente ao complexo de Édipo
invertido, no qual a menina deseja a mãe em uma parceria erótica, tendo o pai como
rival. Esse momento é posterior à secundarização da homossexualidade primária.
Segundo McDougall (1997, p. XII), “a expressão ‘libido homossexual’ designaria
a parte dos impulsos libidinais que, na infância, está dirigida para o genitor de
mesmo sexo”. Para crianças, de ambos os sexos, os desejos homossexuais têm um
duplo objetivo, complementar e contraditório: possuir sexualmente o genitor de
mesmo sexo e, ao mesmo tempo, ser o genitor do sexo oposto. Tais desejos
existem em todas as crianças e permanecem no inconsciente dos adultos.
McDougall (1997) descreve a importância dos desejos homossexuais na mulher
heterossexual. Diz que “... a monossexualidade é, para homens e mulheres, uma
das principais feridas narcísicas da humanidade”, devido à bissexualidade psíquica.
Desejamos, no inconsciente, ter tanto as capacidades femininas por identificação à
mãe gerar bebês, ter seios, ser sensual e ter os atrativos do corpo feminino ,
quanto as masculinas, por identificação ao pai potência, desempenho, valor social,
1
MCDOUGALL, J. Os componentes homossexuais da sexualidade feminina. In: As múltiplas faces de Eros;
uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. 1997.
98
para citar apenas algumas. A questão da inveja, originalmente do pênis, passa a
pertencer aos dois sexos. O menino, e depois o homem, também invejam as
capacidades de uma mulher; invejam a potência feminina. Além disso, os meninos (e
homens) também sofrem de sua própria inveja do pênis, haja vista a comparação do
tamanho do pênis/potência do pequeno Hans (Freud, 1909), em relação ao do pai e
ao dos cavalos. A disputa de potência entre os homens talvez dispense exemplos.
A ligação homoerótica da menina com sua mãe é de difícil integração na
construção da identidade feminina. McDougall (1997, p. XII) pergunta-se,
acompanhando Freud: “Como é que ela (menina) se destaca da mãe e integra o
profundo vínculo erótico que partilhavam? Onde é investido, na vida adulta, esse
componente homossexual vital?” McDougall (1997, p. 15-16) levanta cinco
possibilidades para a integração da constelação edipiana homossexual da menina.
Considera, inclusive, o caráter idealista de tal proposição:
A estabilização da auto-imagem “a menina deixa de querer
ter a mulher a fim de ser a mulher”.
A intensificação do prazer erótico “é no ato sexual que
podemos recriar a ilusão de sermos dos dois sexos...”.
A intensificação dos sentimentos maternais “o relacionamento
das mulheres com seus filhos é também um tesouro de riquezas
homossexuais...”.
O emprego criativo das identificações homossexuais.
O enriquecimento das amizades do mesmo sexo.
Halberstadt-Freud (1988), psicanalista holandesa, vem corroborar a
compreensão, para a mulher, da importância do vínculo homossexual com a mãe.
Escreve que a menina está duplamente vinculada à sua mãe: por sua inicial relação
objetal homossexual e pela identificação à mãe – pertencem ao mesmo gênero. A
menina nasce e permanece sob o legado de um vínculo homoerótico
(HALBERSTADT-FREUD, 1998), como também escreveu H. Deutsch (1944).
A heterossexualidade apresenta-se como secundária, uma vez que “as
meninas permanecem ligadas às suas mães por toda a vida e podem em seus
parceiros renovar o que tiveram, desejaram ou perderam com elas”
99
(HALBERSTADT-FREUD, 2001, 164). As meninas permanecem ligadas às mães e
em suas fantasias inconscientes; continuam com seu objeto homossexual.
As idéias desenvolvidas por J. Godfrind, J. McDougall e Halberstadt-Freud
colaboram com a compreensão da especificidade da trajetória feminina.
Sob o prisma da mãe, o fato de gestar um bebê do sexo feminino, e cuidar
dele, reavivam, por um processo de identificação, sua própria trajetória bebê-
menina-mulher. A experiência sensual da mãe, a liberdade (ou não) de sentir prazer
com o corpo feminino da filha, constrói uma geografia sensual entre mãe e filha, que
será desfrutada, na vida adulta, com um homem.
A heterossexualidade nas mulheres vem sempre acompanhada de uma intensa
corrente homossexual subterrânea (HALBERSTADT-FREUD, 1998), originária do
prazer (ou desprazer) vivido entre mãe e filha.
A experiência com um corpo feminino
O relacionamento entre mãe e filha é a base de todos os relacionamentos amorosos ao longo
da vida. Através dos olhos e das mãos da mãe, a qualidade da intimidade e do carinho amoroso são
transmitidos de geração a geração. O amor mãe-filha é também o início do amor heterossexual e do
prazer sensual.
(KLOCKARS AND SIROLA, 2001)
A intenção deste item é pesquisar se há uma especificidade da experiência
psíquica no que se refere a peculiaridades de um corpo feminino: as sensações
características do órgão feminino e os possíveis destinos dessa vivência.
Considerando que anatomia não é destino, mas faz história:
Contesta-se muito, atualmente, a paráfrase de Napoleão utilizada por
Freud: ‘a anatomia é o destino’, insistindo-se com toda razão sobre o
papel das fantasias que têm o poder de se libertar das formas
100
anatômicas para atingir o gozo. Mas não podemos esquecer,
também, que a forma e a configuração do corpo, assim como a
conformação dos órgãos sexuais, induzem fantasias. Viu-se
raramente a metáfora do pênis evocar o vaso ou o recipiente e a da
vagina encontrar na espada ou na faca uma comparação que se
bastasse a si mesma. (GREEN, 1991 p. 103).
1
É a partir desta referência – das fantasias induzidas por corpos femininos –
que as idéia apresentadas são conduzidas. A experiência com o corpo de mulher da
mãe, e a dela (mãe) com o corpo de seu bebê do sexo feminino, fazem parte de uma
geografia de prazer ou desprazer de mãe em filha.
O corpo da mãe é um universo a ser explorado, impulso de conhecer que
gera sensações das mais variadas: o corpo da mãe, visto como o palco de todos os
processos e desenvolvimentos sexuais (KLEIN, 1928).
Seguindo as observações de Klein, McDougall (1997) destaca haver
diferenças de experiências corporais e suas representações psíquicas. Isso se deve
à visibilidade do pênis – e consequente facilidade de representação mental –, e a
invisibilidade da vagina e sua dificuldade de representação. O menino, por estar de
posse visual e táctil de seu órgão, tem uma tranquilização narcísica, que somente
virá para a menina na menarca, na presença dos seios e na promessa de gerar
filhos.
Outra singularidade do órgão feminino é favorecer confusões zonais: “... a
vagina está fadada a ser igualada, no inconsciente, ao ânus, à boca e à uretra e,
portanto, é passível de partilhar tanto os investimentos libidinais sádicos e
masoquistas, quanto as fantasias que essas zonas implicam” (McDOUGALL, 1997,
p. 7). Justamente pela característica de seu órgão sexual, e, pelo fato de pertencer
ao mesmo gênero da mãe, a menina parece estar mais suscetível aos significados
inconscientes que ela (mãe) imprime a seu corpo feminino. A qualidade da
experiência materna com o corpo feminino da filha é significativamente importante
na construção da feminilidade nas mulheres: “as comunicações não verbais
sensuais e, mais tarde, as comunicações verbais entre mães e filhas.”
1
Em outro texto, Green escreve (1988, p. 120): “Um homem não pode gerar filhos; uma mulher não pode
inseminar. Assim a anatomia realçaria o núcleo da realidade em torno do qual a fantasia é construída em direção
à verdade mais profunda. Sob estas condições, a anatomia decidiria que direção as catexias deveriam tomar: para
a descarga externa no menino, para a captação interna na menina. .... A idéia de destino sexual é uma que quase
transcende o nível pessoal: não temos opções quanto a ele. Porém não nos impede de criar a fantasia de que
podemos escolher nosso próprio destino sexual.”
101
(McDOUGALL, 1997, p.8). A autora destaca que as confusões de sensações
clitorianas, uretrais e vaginais têm importantes repercussões na sexualidade de
uma mulher.
Doris Bernstein (1998) aproxima-se das mesmas observações feitas por
McDougall (1997), investigando o papel da experiência corporal no desenvolvimento
psíquico da menina. Sua tese é:
...a tarefa de integração da genitália do indivíduo em sua imagem
corporal interage com outras tarefas de desenvolvimento, e algumas
das angústias que a menina experimenta, nessa época, são
resultados de suas lutas com a própria experiência corporal.
(BERNSTEIN, 1993, p. 197)
Qual é o impacto de um corpo feminino? Bernstein (1998) baliza-se por essa
questão, descrevendo três angústias genitais femininas inter-relacionadas:
Angústia de acesso: a menina não tem acesso visual ao próprio genital, o
acesso é tátil, sempre sexualizado.
Angústia de penetração: a vagina é uma abertura corporal onde não há
controle, como na boca e no ânus; dessa forma, outras aberturas podem ser
envolvidas no esforço para dominar
1
o genital.
Angústia de difusão
: a genitália feminina é de natureza difusa; ao ser tocada,
há difusão de sensações e estímulos para outras áreas anal e uretral.
Bernstein (1998) considera que a natureza desconcentrada do órgão sexual
feminino traz complicações para a menina; dificuldades de formar representações
mentais de seu corpo com fronteiras e definições claras. Essa autora considera que
a tarefa da mulher é compreender, integrar e localizar algo que está além da visão,
toque, foco e controle. A menina precisa de sua mãe para conhecer seu genital, e
para auxiliá-la a definir sensações difusas. Na adolescência, a menina necessita da
mãe para ajudá-la a dominar suas angústias genitais. E, ao mesmo tempo, o impulso
1
A autora usa “... a expressão ‘modos de domínio’ para descrever o empenho e a integração das tarefas de
desenvolvimento”. (BERNSTEIN, 1993 p. 215)
102
natural do desenvolvimento exige um afastamento, ou seja, as batalhas entre mães
e filhas são inerentes aos conflitos da transformação da menina em mulher.
Bernstein (1998, p. 208) conclui: “... a ambivalência e intensidade das
batalhas entre mãe e filha, a união e as brigas, são alimentadas por várias fontes,
muito antes que surja a rivalidade com o pai.”
McDougall (1997, p. 8) diz: o que traz ainda mais dificuldades entre mães e
filhas são os castigos fantasiados pela menina devido a seus devaneios eróticos de
tomar o lugar da mãe. A destruição do interior de seu corpo seus bebês
imaginários e a capacidade de tê-los , e, também, a própria morte seria um
castigo. Uma paciente relatou-me o seguinte sonho que ilustra essa questão:
Estou deitada no sofá da sala com meu namorado; está frio, levanto
e vou pegar um cobertor no armário do corredor. Quando fecho a
porta do armário, minha mãe esta lá com o uniforme do exército do
meu avô (ele foi para a guerra). Parecia um filme de terror. Fico
aterrorizada e volto para a sala; quem está lá agora é minha irmã.
Ela ainda não tinha visto minha mãe; ela vai ao corredor e também
leva um susto. Será que a nossa mãe enlouqueceu? De repente
minha mãe está com uma faca e esfaqueia a barriga da minha irmã.
Acordo tremendo de frio.
A mãe vestida com o uniforme do exército (do avô) é uma imagem sugestiva
do que Klein (1928 e 1932) escreveu sobre a fantasia da figura combinada dos pais
1
,
ou do pênis dentro da mãe. Dizendo de outra forma, ilustra a mãe onipotente que
contém tanto as qualidades femininas, quanto as masculinas; é homem e mulher ao
mesmo tempo. Ter a barriga esfaqueada pela mãe onipotente é a angústia feminina
por excelência; ter o ventre destruído por uma mãe má que não aceita o prazer da
filha com o pai (o terceiro) ou o seu sucessor, o namorado.
Podemos pensar que a experiência prazerosa, ou não, com um corpo
feminino, passa por um amálgama das fantasias inconscientes entre mãe e filha,
sobre o desfrutar do prazer de ser mulher. Se há inibições no usufruir um corpo
feminino por parte da mãe, essa imprimirá ao corpo de sua filha uma geografia de
vergonha e desprazer por ser mulher.
1
“A fantasia combinada dos pais é a de que os pais ou, antes, seus órgãos sexuais, acham-se entrelaçados em
permanente relação sexual. É a fantasia mais antiga e primitiva da situação edipiana” (HINSHELWOOD, 1991,
p. 338).
103
A dificuldade ou impossibilidade de uma mulher sentir-se amada por um
homem – decorrente da insuficiência amorosa entre mãe e filha – é elucidada, a
seguir, pela análise do filme Sonata de outono. O filme revela o desejo, expresso ou
não, por muitas mulheres, da mútua apreciação entre mães e filhas. Essa revelação,
no filme, se dá pelo fracasso, ou seja, quando a filha não se sente amada na relação
com a mãe, isso a incapacita para outras relações amorosas ao longo da vida.
Sonata de Outono
1
, a insustentável nostalgia da mãe
Um filme de arte, como uma obra aberta
2
, permite sempre leituras distintas,
únicas e talvez inesgotáveis. Sonata de Outono é considerado por muitos sejam
psicanalistas ou não um clássico quando se fala na relação entre mães e filhas.
Tem sido, então, objeto de reflexão para autores
3
interessados no tema.
Entrementes, a plasticidade do olhar é um trunfo também pertinente ao psicanalista,
por possibilitar liberdade de interpretação para um filme de tal envergadura. Em
outras palavras, é possível vértices de compreensão diversos e ainda não
explicitados por aqueles que também se dedicaram a análise do filme.
Ao usar o termo nostalgia no título desta parte do meu trabalho, tento
designar algo que não aconteceu no passado, não acontece no presente, porém é
sempre desejado. A nostalgia do prazer corporal e psíquico, da mútua apreciação
entre mãe e filha, é algo compartilhado entre as mulheres. Contudo, a precariedade
desse prazer quando a impossibilidade de um encontro minimamente satisfatório
1
Roteiro e direção do sueco Ingmar Bergman (1978), com Ingrid Bergman representando a mãe Charlotte e Liv
Ullman, a filha Eva.
2
“... uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é
também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isto redunde em alteração de sua
irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a
obra revive numa perspectiva original” (ECO, 1968, p. 40).
3
Cito dois livros nos quais o filme é objeto de reflexão: Mães-filhas, uma relação a três (ELIACHEFF &
HEINICH, 2004) e A relação mãe & filha (ZALCBERG, 2003). Localizei, também, uma dissertação de
mestrado: A concepção de melancolia em Freud e Stein: uma interpretação sobre Eva, personagem de Sonata de
Outono, de Bergman (MOREIRA, A.C.G., Psicologia Clínica, PUC-SP, 1992). Há, ainda, o texto A filha “não
suficientemente boa” (ALONSO, 2008).
104
prevalece pode ser desorganizadora da feminilidade na trajetória de menina à
mulher. No entanto, mesmo quando há encontros os possíveis , esses são
também da ordem da nostalgia, pois nunca será o sonhado, e, quanto mais precário
ou insatisfatório, mais ardentemente desejado é o encontro com a mãe. Essa é a
leitura específica que faço do filme Sonata de Outono; a análise dessa obra
contemporânea objetiva iluminar a teoria já desenvolvida neste trabalho
1
. Godfrind
(1994) será o principal interlocutor teórico para a compreensão da relação mãe e
filha no filme. Destacamos, novamente, que a constituição da feminilidade e do eu
estão intrinsecamente amalgamados um eu feminino – como mostra o filme.
A primeira cena já expressa a dor da precariedade do eu, decorrente de um
encontro restrito entre mãe e filha. O marido – Viktor – lê este trecho escrito em um
livro, cuja autoria é da esposa
3
:
Viktor (texto escrito de Eva): É preciso aprender a viver. Eu
pratico todo dia. Meu maior obstáculo é não saber quem eu sou. Eu
tateio cegamente. Se alguém me ama como sou posso ter finalmente
a coragem de olhar para mim mesma. Essa possibilidade é pouco
viável.
Viktor comenta:
-Gostaria de dizer que é amada plenamente, mas não consigo dizer
de uma maneira que acredite em mim. Não encontro as palavras
certas.
A dificuldade do marido em acessar e reparar os sentimentos amorosos de
Eva – sentir-se amada –, decorrentes de uma experiência amorosa insuficiente com
a mãe, evidencia-se na frase de Viktor. É ele (Victor) quem relata a história, como
um observador que pouco pode intervir, da mesma forma que o pai de Eva, que a
consolava quando a mãe partia para suas turnês como pianista. Ser amada parece
1
Apenas algumas cenas do filme serão abordadas e não o filme na sua íntegra.
3
As falas citadas foram copiadas da legenda em português do filme, tradução de Diran Copelle. Fiz esta escolha,
neste item, pelo fato de que as expressões usadas na tradução das legendas contêm pequenas variações, no
entanto as considero significativas, do roteiro escrito por Begman e traduzido por Jaime Bernardes, Ed. Nórdica,
1988. Quando uso o texto roteiro, principalmente no item Sonata de outono: um olhar masculino, faço a
referência ao livro.
105
significar ser apreciada e vista pela mãe; essa possibilidade é pouco viável diante de
uma sucessão familiar mãe-filha, na qual há falhas (ou melhor, fendas) quanto à
sofisticada, elaborada e edípica capacidade de amar.
Seguindo, vemos uma cena em que a filha, após sete anos sem ver a mãe,
envia um convite a ela para passar uma temporada em sua casa: vamos mimar
você, mamãe. A expressão denota inversão quem é a filha quem é a mãe? A filha
precisa mimar a mãe para que tenha a possibilidade de ser mimada. Assim, parece
ser necessário a ela (filha), reparar a mãe para que tenha condições de ser mãe. O
convite é feito em um momento de luto da mãe: acabara de perder seu segundo
marido. Teria sido essa uma situação favorável a um encontro? Afinal a filha estava
hospedando a mãe enlutada.
Ao longo do filme, Bergman revela que o luto é mútuo: Eva havia perdido seu
filho (afogado) quando ele estava com quatro anos. A avó não esteve presente nem
no nascimento, nem em sua breve vida, tampouco na morte do neto.
A ansiedade da chegada, para ambas, é intensa. A mãe que corre com o
carro e a filha que desce as escadas correndo: expectativa vinculada ao encontro
nostalgicamente sonhado, nunca vivido e fadado ao fracasso:
Charlotte: - Por que eu
estava com tanta pressa de chegar aqui.
O que eu estava esperando? O que desejava tão
desesperadamente?
Eva: - Por que então ela veio? O que ela esperava de um
encontro depois de sete anos? E o que eu esperava? Será que
a esperança da gente nunca morre? Sempre mãe e filha!
A decepção é imediata. Quanto mais frustrante em suas demandas amorosas
é a relação mãe-filha, mais idilicamente ela é sonhada, tanto pela filha quanto pela
mãe. A mãe deseja resgatar na filha, o desamor que viveu com sua própria mãe –
demanda impossível. Godfrind (1994) escreve que, nesses casos, a demanda de
amor, da mãe, é percebida como totalmente vampírica; e a filha pode se defender
por meio de um ódio protetor.
Após o primeiro encontro ansioso da mãe e da filha, as cenas que se seguem
mostram a intensa ambiguidade de sentimentos: ambas esperando ser
106
compreendidas e vistas. Bergman vai revelando de maneira sutil os aspectos
dramáticos da história, acrescentando fatos dolorosos, um a um. Eva comenta com
sua mãe que a irmã (Helena) está na casa. Charlotte desespera-se e diz que não
está preparada para encontrá-la. A irmã tem uma doença que paralisa os músculos
gradativamente. Seria uma paralisia histérica? O filme não revela, mas a sugere, já
que a paralisação se dá após a mãe ter se interessado pelo homem por quem a filha
se apaixonara.
É importante trazer esse dado da trama para refletirmos sobre a
impossibilidade de constituir-se corporal e psiquicamente – como um “eu feminino” –
diante da “falha” materna, ou dizendo de outra maneira, ante uma mãe que não teve
condições de ser minimamente suficiente. Quem cuida da irmã é Eva, que é também
“mãe” da irmã mais nova. Eva vai traduzindo a irmã para a mãe, já que Charlotte não
consegue entender o que Helena diz.
Durante o primeiro jantar da estada, Eva mostra o piano e a convida a tocar.
Charlotte inverte o convite e comenta que gostaria de ouvir a filha. As expressões
faciais das duas atrizes, captadas pela câmera de Bergman, dizem tudo sem que
uma palavra seja pronunciada: a decepção e a reprovação da mãe; a tristeza e a
vergonha da filha. Halberstat-Freud (2001, p. 146) escreve: “Uma mãe insatisfeita
narcisicamente pode facilmente fazer surgir uma experiência traumática em sua
filha. A menina, ansiando pelo amor e admiração da mãe, pode sentir-se uma falha
que ela atribui a si mesma mais do que à mãe. Pode sentir, por exemplo, que ‘devia
ter sido um menino’ – isto é, um objeto heterossexual – de maneira a satisfazer os
desejos da mãe.”.
Após a sequência de um jantar emocionalmente denso, o filme apresenta a
mãe tendo um pesadelo, no qual alguém com mãos femininas começa a acariciar
suas mãos, abordando-a por cima de seu corpo, como se fosse iniciar uma relação
sexual. Penso que esse pesadelo possa ser compreendido como o desejo e o horror
do contato prazeroso (físico e psíquico) entre mãe e filha. Essa possibilidade – de
um contato prazeroso – é violentamente recusada por Charlotte, provavelmente por
não ter recursos psíquicos para sustentar um encontro satisfatório com a filha.
Quando está só, em seu quarto, antes de dormir (parece ser este o resto diurno),
Charlotte lembra-se do contato corporal com a filha Helena com três anos, e
comenta: aquele corpo macio e atormentado. Um corpo que clama por ser amado
107
pela mãe, e justamente pela impossibilidade de que isso aconteça, um corpo que se
paralisa. Essa cena parece ser uma ilustração para o que foi nomeado
homossexualidade primária. Ou, utilizando outro conceito trabalhado, o sonho de
Charlotte ilustra o que poderíamos entender como uma apresentação erótica da
identificação feminina primária nas mulheres.
No roteiro publicado (BERGMAN, 1988, p. 71), a referência a Helena – filha
paralisada – como aquela que se joga em cima da mãe, no sonho, é explícita. No
filme, a presença de Helena é apenas sugerida pela mão feminina.
Charlotte acorda assustada com a imagem onírica e com a sensação
provocada nela. Levanta-se e dirige-se à sala. A filha ouve os passos da mãe e vai
ao seu encontro. Depois de um breve diálogo superficial, Charlotte pergunta à filha: -
Você gosta de mim? Ao que a filha responde: - Você é minha mãe. Charlotte: - É
uma maneira de responder.
Esse diálogo segue o pesadelo. Podemos refletir que essa associação seja
uma confirmação, em palavras, do que penso estar representado na cena onírica: o
desejo da mútua apreciação entre mãe e filha, e o terror que isso pode representar
quando não é uma situação possível de ser sustentada, mesmo que minimamente,
como no caso de Helena. Em outras palavras, para se constituir como um “eu
feminino”
1
é preciso uma experiência mínima, mas suficiente, de apreciação entre a
mãe e a filha.
Em razão dos anos sufocados pelo silêncio e pelo desencontro – e com a
colaboração de um drink –, Eva começa a desabafar com a mãe.
O tom da conversa é de acerto de contas. O que é dito por Eva para a mãe é
de uma expressividade ímpar
2
:
Eva: - Te amei, mamãe. Era uma questão de vida ou morte. Mas não
confiava nas suas palavras, não combinavam com seu olhar. Você
tem uma linda voz. Quando pequena eu a sentia no meu corpo
inteiro. Mas instintivamente eu sabia que você não estava
expressando seus sentimentos. Eu não entendia suas palavras. A
coisa mais horrível era quando você estava com raiva e sorria,
quando você estava cansada de mim e me chamava: minha querida
filhinha.
1
Mesmo que esse “eu feminino” se constitua de forma frágil e sintomática, como no caso de Helena.
2
Enfatizo que o roteiro foi escrito por um homem sensível à experiência feminina – Bergman.
108
Essa fala expressa sentimentos intensos entre mãe e filha: sentir a voz da
mãe ecoando no corpo; amar a mãe como uma questão de vida ou morte;
contradizer o sentido de suas palavras por meio do olhar – o duplo sentido que
enlouquece, tendo como uma das suas consequências, a impossibilidade de confiar
no objeto primário.
Eva: - Nada da minha verdadeira personalidade podia ser aceita ou
amada. Não tinha coragem de ser eu mesma, mesmo quando estava
sozinha, por que eu tinha ódio do que eu era. Ainda fico trêmula
quando penso naqueles anos.
A inautenticidade do amor da mãe parece gerar na filha sensações de ódio e
desespero em relação a si mesma. O olhar da mãe é internalizado e passa a ser
representado por um objeto interno que odeia o próprio eu e seus aspectos
femininos.
Eva: - Não me toquei que tinha ódio de você, pois estava certa que
nós nos amávamos. Por não poder odiá-la, meu ódio se transformou
num medo insano.
O apego à mãe pode ser um contra-investimento do ódio, e o ódio pode
encobrir um amor passional à mãe (Godfrind, 1994). Dizendo de outra maneira, tanto
o ódio quanto a proximidade idílica podem encobrir um amor violento à mãe.
Godfrind (1994) descreve como um pacto negro, a transmissão de uma feminilidade
mortífera entre mãe e filha: encoberto pelo ódio, há um amor nostálgico e violento.
Podemos entrever na frase da filha, tanto o amor idílico como o ódio:
- Não
me toquei que tinha ódio de você, pois estava certa que nós nos amávamos.
As pacientes que exemplificam o pacto negro, segundo Godfrind (1994),
descrevem terem convivido com mães imaturas, deprimidas, imprevisíveis,
irresponsáveis ou francamente psicóticas. Nessas mulheres, o ódio à mãe pode
tomar proporções terríveis, mesmo que encoberto na infância e adolescência, por
um contra-investimento que evoca uma proximidade idílica:
109
Eva: - Eu a amei, mas você me considerava repugnante, burra e um
fracasso. Você conseguiu me prejudicar pelo resto da vida, assim
como você foi prejudicada. Você atacou tudo que era sensível e
frágil.
As perdas parecem percorrer gerações de mães e filhas. A mãe atacou, na
filha e nela mesma, tudo o que era sensível e frágil. Podemos imaginar que, o
fizesse, talvez, para estruturar-se como pessoa, mesmo que de forma precária. A
maternidade poderia ter sido uma oportunidade para Charlotte entrar em contato
com o que foi traumático na sua própria história. No entanto, esse não foi um
caminho de elaboração possível para ela, apesar de ter se encantado com sua
pequena e amorosa menina. O amor de Charlotte pela filha parece ser engolfante e
vampírico. O ódio (tanto da mãe, quanto da filha, em diferentes momentos) parece
ser uma proteção a esse amor passional (Godfrind, 1994):
Eva: - Você fala do meu ódio. O seu ódio não era menor, seu ódio
não é menor. Eu era pequena, maleável e carinhosa. Você se
amarrou em mim porque quis o meu amor, assim como o amor de
todos. Eu estava totalmente à sua disposição. Tudo foi feito em nome
do amor. Pessoas como você são uma ameaça. Deveriam ser
internadas e tornadas inócuas.
Godfrind (1994) levanta a hipótese de que, atrás do ódio, há um amor
passional pela mãe – amor nostálgico e violento. Esse amor violento, pelo risco da
perda do “si mesmo”, provoca um recalcamento do amor à mãe e recorre a um ódio
protetor. Charlotte também deseja ardentemente reencontrar o amor da sua mãe, na
filha. Diante dessa demanda engolfante (e alienante), o ódio pode ser um
instrumento de distanciamento seguro, mesmo que a um custo alto. Godfrind (1994)
diz que o perigo em abandonar esse ódio salvador é de desintegração psíquica.
Eva: - Uma mãe e uma filha que terrível combinação de sentimentos,
confusões e destruições. Tudo é possível e é feito em nome do amor
e da solicitude.
As injúrias da mãe são passadas à filha. As falhas da mãe são pagas
pela filha. A infelicidade da mãe é a infelicidade da filha. É como se o
cordão umbilical nunca tivesse sido cortado. Mamãe será que é isso?
110
Será que a desventura da filha é o triunfo da mãe? Mamãe, minha
desgraça é seu prazer secreto?
O ódio, o prazer na desgraça da filha, parece ser uma proteção ao amor
passional por Eva. A filha (Eva) pode ser experenciada inconscientemente como
duplo da mãe de Charlotte. Ou seja, os lugares e as gerações invertem-se: a filha
transforma-se na mãe da mãe. Isso fica mais claro na seguinte fala de Charlotte: -
Acho que queria que você cuidasse de mim, me abraçasse e me consolasse. Eu era a
criança.
A relação com a filha desperta o que não foi vivido com a própria mãe (avó
de Eva), e essa demanda insaciável e impossível pode ser desestruturante, ou
propiciadora de uma organização psíquica frágil e/ou falsa:
Charlotte: - Lembro pouco da minha infância. Não me lembro de
meus pais terem me tocado, nem por carícias, nem por castigo. Eu
ignorava qualquer coisa relacionada ao amor, ternura, toques, calor.
Apenas através da música pude demonstrar meus sentimentos.
Charlotte apegou-se à música como único reduto no qual parecia ser
possível, de forma protegida, ter algum contato com seus sentimentos. Na música
ela podia inspirar-se. No entanto, por contraposição, na relação com sua família,
especialmente com suas filhas, predominava um ódio protetor e um distanciamento
psíquico. Essas proteções – barreiras de ódio – pareciam trazer alguma segurança
para uma mãe frágil psiquicamente:
Charlotte: - Às vezes, quando fico acordada à noite, me questiono
se realmente tenho vivido. Será que é assim para todo mundo? Acho
que queria que você cuidasse de mim, me abraçasse e me
consolasse. Eu era a criança. Ou será que algumas pessoas têm
mais talento do que outras para viver? Ou será que há pessoas que
nunca vivem, simplesmente existem. Então, o medo me pega e vejo
um retrato horrível de mim mesma. Eu nunca amadureci. Meu rosto e
meu corpo envelheceram, adquiri memórias e experiências, mas por
dentro, nunca nasci. Não me lembro de nenhum rosto, nem o meu
próprio. Às vezes tento lembrar o rosto de minha mãe, mas não
enxergo. Sei que era alta, morena, tinha olhos azuis, um nariz grande
e lábios grossos. Mas não consigo juntar os pedaços. Não consigo
vê-la. Do mesmo jeito, não consigo ver seu rosto ou de Helena ou de
Leonardo. Lembro-me quando dei à luz a você e a sua irmã, mas a
única coisa que sei da concepção é que dói. Mas como era a dor?
Não me lembro. Leonardo disse uma vez: o sentido da realidade é
111
uma questão de talento. Para a memória das pessoas falta esse
talento e talvez seja melhor assim.
Godfrind (1994) escreve que o trabalho de análise – com pacientes que
constituíram um pacto negro com suas mães – leva ao contato com a fragilidade e
os limites da mãe “real”, e que esse reconhecimento por parte da filha nem sempre é
suportável. Essa dificuldade de reconhecer e aceitar a fragilidade psíquica da mãe
pode ser um impedimento para a continuidade da análise.
Charlotte: - Sempre tive medo de você, não compreendo isso. Acho
que queria que você cuidasse de mim. Eu era a criança. Vi que você
me amava e eu queria amar você, mas tinha medo de suas
exigências. Não quis ser sua mãe, queria que você soubesse que eu
era tão indefesa quanto você.
Eva: - Isso é a verdade?
A filha precisa separar-se da mãe – desidentificar-se. Caso isso não
aconteça, sua existência fica em função de reparar a mãe. O processo de análise é
uma chance de romper a transmissão de uma feminilidade mortífera – o pacto negro
(Godfrind, 1994, p. 145).
Muitas vezes, porém, deixar que a esperança arrefeça parece não ser
possível. Como se desligar do que precariamente aconteceu? Será este um luto
passível de elaboração ao longo da vida? Bergman insinua, no final do filme, que a
esperança é abalada, mas não deixa de exercer seus efeitos nefastos e benignos. A
esperança de um dia sentir-se amada pela mãe pode estar sustentando todo o
edifício psíquico, mesmo que de forma precária e a um preço de ouro – a própria
vida, no que se refere à realização pessoal.
Eva: - Querida mamãe, percebi que fui injusta com você. Fiz
exigências a você, ao invés de carinho. Atormentei-te com ódio velho
e amargo que não é mais realidade. Quero pedir seu perdão. Não sei
se você vai receber esta carta, nem sei se vai ler esta carta. Talvez
seja tarde demais, mas espero que minha descoberta não tenha sido
em vão. Afinal existe algum tipo de misericórdia. Refiro-me à
oportunidade de cuidar uma do outra, de ajudar e de mostrar amor.
Nunca vou deixar você sair da minha vida de novo. Vou persistir, não
vou desistir, mesmo que seja tarde demais. Não acho que seja tarde
demais, não pode ser tarde demais.
112
A possibilidade de perdoar a mãe, de perceber que a mãe também foi
prejudicada é possível diante da experiência e da identificação com outra mulher – a
analista. Aceitar as qualidades psíquicas da analista é fazer o luto pela mãe que não
se teve, assim como, evidenciar e aceitar as falhas maternas. Processo nem sempre
possível, e, talvez, uma pedra no caminho das análises entre mulheres.
Seria o filme a descrição intimista de um processo analítico? Podemos
especular que esses diálogos poderiam fazer parte da busca pela verdade
emocional, intenção presente em uma análise, verdade especifica a cada um – “o
sentimento da verdade é uma marca de talento.” (Bergman, 1988, p. 103). Será
necessário o outono da maturidade para que situações dolorosas possam ser
revisitadas? As pacientes descritas por Godfrind (1994) são mulheres maduras,
profissionais, algumas já casadas e com filhos. Eva diz que fez o convite à mãe
porque achou que estaria adulta e madura o suficiente para abrir a porta da infância.
Entretanto “suas esperanças eram grandes demais,” (Bergman, 1988, p. 123).
Ao final, fica a nostalgia..., do que poderia ter sido, mas não foi; do que nunca
foi, nem nunca será.
113
PARTE – IV
No horizonte da díade mãe-filha: o terceiro
Sonata de outono: um olhar masculino
Retomo um dado simples, mas extremamente importante: Sonata de outono
é um texto-roteiro escrito
1
por um homem – Bergman (1988) –, e também, um filme.
Bergman relata, acompanha e divide sua perplexidade com maestria e sensibilidade,
diante dessa “terrível combinação de sentimentos entre uma mãe e uma filha.”
É esse olhar masculino, capaz de relevar um universo próprio ao feminino,
que coloco em evidência neste item. A competência de Bergman – nomear e
transformar em uma obra de arte, um conflito característico do feminino – deve ser
fruto da capacidade de integração de suas identificações: tanto masculinas, quanto
femininas; ou seja, ele é hábil o suficiente para transitar por universos interligados,
no entanto, distintos.
É o marido de Eva – Viktor – aquele que narra a dor entre a mãe e a filha. Na
abertura do filme, como já descrito, Viktor fala de maneira angustiada da sua
impossibilidade de encontrar as palavras certas e críveis para dizer que Eva é
amada. A possibilidade de ela sentir-se amada vai se revelando como um repertório
ausente. Seria “como procurar na escuridão” (BERGMAN, 1988, p.12), uma língua
que se aprende com o objeto primário.
É Viktor que atentamente ouve sua esposa ler a carta que vai enviar à mãe.
Eva parece buscar que sua adequação seja confirmada. É ele que escuta as
1
Como o item anterior – Sonata de outono, a insustentável nostalgia da mãe – contempla, predominantemente,
as falas e cenas do filme, neste utilizo o livro-roteiro.
114
confidências dela sobre a constatação do muro narcísico intransponível, assim
parece, entre Eva e a mãe:
Eva: Mãe estranha e incompreensível está aí, sem dúvida! (...) Acho
que minha mãe é totalmente fria, não tem sentimentos.
(...)
Eva: Será que a gente nunca vai deixar de ser mãe e filha?
Viktor: São poucas as que conseguem sê-lo. (BERGMAN,
1988, p. 37).
É um comentário sem dúvida intrigante: não é possível deixar de ser, e,
paradoxalmente, são poucas as que conseguem ser mãe e filha. Isso me leva a
pensar em uma relação que se inclina ao estranho lugar de não poder deixar de ser
e não poder ser: uma tensão paradoxal com poucas chances de desenlace para
algumas mães e filhas.
Viktor entra em cena com pontuais intermediações apaziguadoras da
potencialidade explosiva do relacionamento de Eva e Charlotte. A cena – na qual as
duas tocam os prelúdios de Chopin – termina com os ânimos exaltados:
Viktor: Achei a análise de Charlotte simplesmente sedutora, mas a
interpretação de Eva mais atraente. (BERGMAN, 1988, p.52)
Ele habilmente elogia, valoriza as duas, e não uma em detrimento da outra.
A semelhança entre Viktor e Josef (pai de Eva) é explicitada no seguinte
comentário sarcástico da mãe:
Charlotte: É um homem triste, o Viktor, arrepiantemente parecido
com Josef, embora mais insignificante... Vivem enchendo a paciência
um do outro, certamente! (BERGMAN, 1988, p.71).
Eva descreve o pai como alguém submisso à mãe; relata que o consolava
dizendo que a mãe ainda o amava. Tanto o pai quanto a filha idealizavam a mãe,
suas viagens e concertos em vários países:
115
Eva: Nós ficávamos ali sentados, feitos dois imponentes idiotas,
lendo suas cartas duas, três vezes, e achando que não podia existir
pessoa mais maravilhosa do que você. (BERGMAN, 1988,
p. 76).
Charlotte, assim me parece, estruturou-se psiquicamente por meio de uma
armadura narcísica quase intransponível; apenas a idealização favorece fragilmente
seus vínculos.
Eva (diz para a mãe):...eu te amava e vivia permanentemente
convencida de que você tinha razão e eu estava errada. (BERGMAN,
1988, p. 91).
O pai estava constantemente presente na infância de Eva. Filha e pai
consolavam-se pela ausência da mãe – de ambos, podemos especular. Talvez o pai
de Eva se identificasse com o sofrimento da filha, pela ausência da mãe, ou seja, ele
mesmo teria como referência materna uma ausência impregnada de idealização.
A criança está exposta à maneira como o casal parental se relaciona –
conscientemente e inconscientemente –, contexto emocional materno e paterno no
qual está completamente submersa
1
:
Eva: Tenho pensado tanto em vocês nos últimos tempos, mas a vida
em comum de vocês permanece para mim um enigma. (BERGMAN,
1988, p. 84).
Viktor e Josef se assemelham, pois ambos consolam Eva em sua dor de não
se sentir reconhecida e compreendida pela mãe. Eva descreve o modo como o pai a
consolava após a partida da mãe para uma turnê:
Eva: E então eu chorava nos joelhos de papai e ele ficava
completamente imóvel com a sua mão pequena e macia, na minha
cabeça. (...) Papai e eu compartilhávamos a solidão muito bem. Na
verdade, não tínhamos muito a dizer um ao outro. Mas tudo era
tranquilidade perto dele.
(BERGMAN, 1988, p. 82).
1
Isso se refere à bissexualidade psíquica do casal parental, conceito que será discutido no próximo item.
116
A distinção mais evidente não está entre Viktor e Josef (marido e pai), mas
nas características dos casais pertencentes a gerações diversas. Viktor e Eva são
amigos confidentes; respeitam e tratam um ao outro com cuidado e carinho: “Viktor é
meu melhor amigo. Não sei como seria a minha vida sem ele.” (BERGMAN, 1988, p.
63). Já no casal formado por Charlotte e Josef (pais de Eva), essas características
não parecem estar presentes, mas, sim, a idealização e a submissão.
Viktor está sempre atento a Eva, observando a sutiliza de seus estados
mentais:
Viktor: Às vezes fico aqui parado olhando pra minha mulher sem que
ela se aperceba da minha presença. Ela tem sofrido muito, muito
mesmo. (BERGMAN, 1988, p. 125).
Viktor parece aguardar, com esperança reservada, o momento no qual ele a
terá integralmente: instante no qual ele encontrará as palavras certas para dizer o
quanto a ama. Mas Eva, de maneira diversa da mãe, também está inacessível para
sentir-se amada e amar:
Eva: Eu disse a Viktor que não o amava. Você finge que ama. Essa
é a diferença. (BERGMAN, 1988, p. 74).
Aqui se evidencia o impedimento: provavelmente não seja uma questão de
encontrar as palavras certas, mas talvez um território que tende a ser mais
característico do objeto primário
1
. Expressando de outra forma, será que quando
existe uma lacuna tão profunda na constituição psíquica, devida, principalmente, a
uma insuficiência na relação inicial com a mãe, seja possível acessar esse território
arcaico e abandonado à escuridão? O filme não parece otimista em relação a essa
questão; ela permanece aberta para que o espectador ou leitor siga o rumo de seus
próprios pensamentos.
Josef parece ter sido um pai acolhedor e companheiro. No entanto, é alguém
impossibilitado de amar e de se sentir amado. A filha (Eva) era quem o consolava
1
O estatuto psíquico do pai como objeto e da mãe são diversos, discussão que será feita nos itens seguintes.
117
em relação ao desamor da mãe. Ambos não se sentiam amados por Charlotte, e se
confortavam mutuamente.
As características de conforto e acolhimento também estão presentes no
casamento de Eva, assim como a impossibilidade de amar. Podemos especular que
o relacionamento de Eva com Viktor é – considerando o doloroso limite da
impossibilidade de sentir-se amado/amada – suficientemente satisfatório enquanto
parceria possível entre os dois.
Viktor diz que Eva é amada, mas não consegue encontrar as palavras certas
para dizê-lo. Eva clama por alguém que a ame como ela é; talvez consiga encontrar-
se, ao sentir-se amada. O impasse está posto.
Prossigo com a discussão teórica de duas questões aludidas aqui: a primeira
é a bissexualidade psíquica do casal parental e suas marcas identificatórias no
psiquismo infantil, transpondo gerações. Com outras palavras: a experiência afetiva
de Eva com o casal parental, e a decorrente constituição de uma trama
identificatória, que faz parte tanto da constituição de um eu feminino, quanto da
escolha amorosa feita na vida adulta. A segunda, interligada à primeira, é o estatuto
diverso do pai como objeto e da mãe como objeto – discussão feita no item O pai no
olhar da mãe.
118
Bissexualidade psíquica: conceito à vista
(...) a bissexualidade! Com relação a esta questão você provavelmente tem razão. Eu
também estou me habituando a considerar todo ato sexual com um processo entre quatro
indivíduos.
(Freud, carta 113(a Fliess), 1899)
Considero que não se deve fazer teorias – elas devem cair de improviso em sua
casa, como hóspedes que não foram convidados, enquanto você está ocupado examinando
detalhes...
(Freud, carta a Ferenczi, 1915)
Para criar ‘filhos’ artísticos ou intelectuais, a pessoa deve assumir seu direito de ser tanto o
ventre fértil quanto o pênis fertilizador.
(J. McDougall, 1997)
Quando construímos uma casa, há uma série de adaptações e modificações
do projeto original. Não é incomum a experiência de surgirem, a partir da realização
da obra, espaços que não foram projetados, mas que se impõem; inevitavelmente é
preciso considerá-los. O conceito de bissexualidade parece ter esse estatuto: um
espaço psíquico a ser mais detidamente refletido a partir de algumas
especificidades.
O termo bissexualidade já está presente neste texto, no que se refere à
vertente da identificação da filha com a mãe, no vínculo sensual entre mãe e filha e
na duplicidade – positivo (heterossexual) e negativo (homossexual) – do complexo
de Édipo. Contudo, ainda não há um espaço de reflexão que aborde a questão da
integração
1
, ou não, da bissexualidade psíquica no psiquismo, com seus
indissociáveis e dialéticos vértices: a feminilidade e a masculinidade. Sendo assim,
privilegio, nesta vista ao conceito, o aspecto identificatório bissexual da criança em
relação ao casal parental, sua importância na construção da psicossexualidade
2
.
1
Considerando que toda integração psíquica é sempre parcial.
2
Não pertencendo à delimitação desta discussão: a questão do inato ou constitucional, e as controvérsias entre o
biológico e o psíquico. Faço essa escolha devido à amplitude desses dois aspectos que me levariam a percorrer
outras cearas.
119
Como já dito
1
, o conceito de bissexualidade é fruto do encontro e do
desencontro entre Freud e Fliess. Alguns fatores históricos parecem favorecer a
obscuridade na qual permaneceu. Provavelmente Fliess tenha falado sobre a
bissexualidade com seu então amigo Freud, pela primeira vez, em 1897
(Nuremberg). Em 1900, a amizade já estava estremecida por divergências; mesmo
assim, um ano depois, Freud propõe a Fliess um artigo para ser escrito pelos dois,
que poderia se chamar: A bissexualidade humana. Fliess ficaria com a parte
anatômica e biológica; Freud escreveria sobre os aspectos psíquicos. O artigo,
evidentemente, não foi escrito
2
.
Apesar de o termo aparecer constantemente na obra freudiana, não há um
artigo específico sobre bissexualidade. Haber
3
(1997, p. 51) considera que uma das
razões da obscuridade do conceito reside na dificuldade de Freud em abordar a
questão da feminilidade, e da psicossexualidade feminina. Considerando que a
bissexualidade psíquica é composta por duas vertentes dialéticas e indissociáveis –
feminilidade e masculinidade –, podemos supor que a parcial treva na qual
permaneceu a questão da feminilidade na obra freudiana, inevitavelmente também
tenha feito submergir o conceito de bissexualidade.
Paulo de Carvalho Ribeiro (2000, p. 53) trabalhou extensamente com a
hipótese do recalcamento da identificação feminina primária na obra freudiana:
...a impossibilidade de admitir a existência de uma
identificação feminina primária encontra-se na raiz dos impasses
teóricos que perpassam esse texto de Freud (Psicologia das massas
e análise do eu, 1921); e, mais à frente, também no mesmo texto
(2000, p. 111): Identificação feminina primária ou identificação com a
mãe são hipóteses que Freud nunca ousou formular, mas que
marcam seu pensamento pelas contorções e malabarismos
conceituais que seu recalcamento na teoria impõe.
1
No item O apego à mãe: amor e ódio.
2
Kamel, F., Quelques données fondamentales sur le concept de bisexualité psychique dans l’ oeuvre de Freud,
1997 p. 12. Dados obtidos no livro de Ernest Jones (1989, p. 317) que escreve: “Até mesmo propôs um ano
depois que eles escrevessem juntos um livro sobre a bissexualidade, tema favorito de Fliess; ele (Freud)
escreveria a parte clínica e Fliess a anatômica e biológica.” Há nesse mesmo livro (1989, p. 316) a seguinte frase
que confirma o interesse de Freud pela bissexualidade: “Todavia, quanto ao ponto principal, o da bissexualidade,
ele (Freud) manifestou sua adesão, que de fato foi permanente.”
3
Haber, M. identité, bisexualité psychique et narcissisme, 1997.
120
Como estamos em lócus psíquico próximo, no entanto, diverso, o conceito de
bissexualidade também permaneceu sob impasse e, assim me parece, com o
estigma de algo a ser recusado
1
. Com essa consideração, vamos entrever a
bissexualidade em alguns textos ao longo da obra freudiana, com a ajuda de
interlocutores. Retomo brevemente artigos que ainda não foram citados
2
, com o
intuito apenas de identificar a presença dispersa, porém constante, do conceito
dentro da obra.
Kamel
3
(1997, p. 13) destaca três trabalhos clínicos nos quais podemos
avistar a questão da bissexualidade: Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua
infância (1910), O presidente Shreber (1911) e A psicogênese de um caso de
homossexualismo numa mulher (1920).
Em Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910), Freud
escreve sobre a lógica fálica das teorias sexuais infantis, sobre a mãe fálica – a mãe
com pênis; aborda a equação seio-pênis, posteriormente trabalhada por M.Klein;
analisa a identificação de Leonardo com sua amada mãe, os possíveis
desdobramentos desse vínculo em suas escolhas posteriores, e, também, as
inibições afetivas na vida adulta. O autor faz uma reflexão sobre o enigmático sorriso
da Mona Lisa, que se tornou presente em todos os quadros pintados posteriormente:
É possível que nestas figuras Leonardo tenha negado a
infelicidade de sua vida erótica e que tenha triunfado sobre ela em
sua arte, proclamando os desejos do menino apaixonado pela sua
mãe, com um sentimento de realização nessa união bem-aventurada
das naturezas masculina e feminina. (FREUD, 1910, p. 108).
4
Freud finaliza essa análise – talvez tão inspirada quanto Leonardo ao pintar a
Mona Lisa –, descrevendo um sentimento de realização quando existe a integração
das naturezas masculina e feminina.
1
Isso talvez aconteça, entre outros motivos, devido aos destinos do relacionamento entre Freud e Fliess.
2
Os artigos já citados neste trabalho quanto à questão da bissexualidade são: Três ensaios sobre a sexualidade
(1905), o Ego e o Id (1923), A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920), Algumas
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, Sexualidade feminina (1931), Feminilidade (1932) e Esboço de
psicanálise (1938).
3
Kamel, F., 1997, p. 13.
4
Nesse mesmo texto (FREUD, 1910, p.91), na nota de rodapé 10, acrescentada em 1919, está escrito: “...
qualquer pessoa, por mais normal que seja, é capaz de fazer uma eleição do objeto homossexual, e mesmo já a
terá feito em alguma época de sua vida e, ou ainda a conserva em seu inconsciente, ou, então defende-se dela
com vigorosas contra-atitudes.”
121
A integração dessa natureza humana dúplice parece aproximar-se do que
McDougall (1997) diz: o direito de ser tanto o ventre fértil, como o pênis fertilizador
1
.
Essa integração – da bissexualidade psíquica – gera atos criativos
2
.
Em O presidente Shreber (1911, p. 79), Freud relata as fantasias bissexuais
de seu paciente, dentre essas, o seu delírio de transformar-se em mulher:
O Dr. Schreber pode ter formado uma fantasia de que, se
fosse mulher, trataria o assunto de ter filhos com mais sucesso; e
pode ter assim retornado à atitude feminina em relação ao pai que
apresentara nos primeiros anos de sua infância
3
.
Em A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920),
Freud vai debater o aspecto terapêutico da bissexualidade; no momento em que
ainda há uma hesitação na escolha do sexo (gênero) do objeto de amor, é possível
uma mudança. Freud relata que a característica da escolha do objeto de amor revela
uma composição sempre dúplice de aspectos femininos e masculinos entrelaçados,
satisfazendo tanto as tendências homossexuais como as heterossexuais
4
.
Podemos acrescentar a esses três casos clínicos um quarto: Fragmento da
análise de um caso de histeria (1901[1905], p. 64 e 65), no qual chega à
constatação do desejo inconsciente de Dora pelo amor da Senhora K:
Creio não estar errado, portanto, em supor que a seqüência
hipervalente de pensamentos de Dora, que a fazia ocupar-se das
relações entre seu pai e a Sra.K., destinava-se não apenas a
suprimir seu amor pelo Sr. K., que antes fora consciente, mas
também a ocultar o amor pela Sra.K., que era inconsciente num
sentido mais profundo. A seqüência hipervalente de pensamentos
era diretamente oposta a esta última corrente. Dora dizia a si mesma
incessantemente que seu pai a sacrificara a essa mulher, fazia
demonstrações ruidosas de que a invejava pela posse do pai e,
1
Epígrafe deste item.
2
“... os atos criativos podem ser conceituados como uma fusão dos elementos masculinos e femininos na
estrutura psíquica. A falta de integração de qualquer dos pólos dos desejos psicológicos bissexuais da infânica
pode prontamente causar a paralisia criativa. De maneira semelhante, qualquer acontecimento que ameace
subverter o delicado equilíbrio das fantasias bissexuais na mente inconsciente pode também precipitar a inibição
de todos os tipos de criação intelectual, científica e artística” (McDOUGALL, 1997, p. 124).
3
Complementando: A idéia de ser transformado em mulher foi a característica saliente e o germe mais
primitivo de seu sistema delirante. Mostrou também ser a única parte deste que persistiu após a cura e a única
que pôde permanecer em sua conduta na vida real, após haver-se restabelecido. (FREUD, 1911, p. 36)
4
Este caso clínico de Freud (1920) já foi citado no item O apego à mãe: amor e ódio.
122
dessa maneira, ocultava de si mesma o oposto: que invejava o pai
pelo amor da Sra. K. e que não perdoava à mulher amada a
desilusão que ela lhe causara com sua traição.
Entrevemos nesse texto de Freud o conceito de bissexualidade – pois não há
nenhuma menção direta – justamente quando ele descreve as correntes amorosas
dirigidas tanto ao Sr. K., quanto a Sra. K., sendo que a corrente homossexual
permanece oculta.
Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908, p. 170) é
outro artigo a ser destacado. Freud expressa que existe no ser humano uma
disposição bissexual, evidenciada nas fantasias histéricas. Escreve ao concluir seu
pensamento:
No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar
preparado para encontrar sintomas com significado bissexual. Assim
não ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não
diminuir, embora já tenhamos resolvido um dos seus significados
sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez insuspeito, que
pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso,
podemos observar como o paciente se utiliza, durante a análise de
um dos significados sexuais, da conveniente possibilidade de
constantemente passar suas associações para o campo do
significado oposto, tal como para uma trilha paralela.
Retomando as minhas intenções neste texto, o intuito dessa visão abrangente
do conceito de bissexualidade psíquica em alguns textos freudianos é identificar a
presença constante de um pensamento clínico e teórico no qual se fazem presentes
as identificações femininas e masculinas, como parte integrante da constituição tanto
do eu, quanto das escolhas objetais na vida adulta. Faz-se importante, também,
considerar a expressiva frase escrita por Freud no início do artigo sobre Leonardo da
Vinci (1910, p. 59): “... não existe ninguém tão grande que venha a ser desonrado
simplesmente por estar sujeito às leis que regem, igualmente, as atividades normais
e as patológicas.” Os casos analisados por Freud, mesmo estando no campo das
patologias, apenas evidenciam o que também acontece dentro de um parâmetro
médio de normalidade, se é que podemos expressar dessa maneira.
123
Tendo em vista este objetivo – discutir as identificações masculinas e
femininas –, destaco alguns pontos do artigo de 1923, O Eu e o Id
1
. Nesse texto,
Freud postula que na fase oral primitiva do indivíduo, não há como distinguir o
investimento objetal da identificação.
A identificação talvez seja uma condição necessária para a desistência do
objeto, escreve Freud (1923). Penso ser a identificação o que resta de uma condição
inicial de indiferenciação entre o eu e o objeto, momento no qual há apenas um
tênue esboço de um e de outro. A identificação parece pavimentar uma sustentação
psíquica inicial para que haja a experiência da perda, sendo que o objeto e o eu
somente existem a partir da perda. Se nos primórdios do psiquismo há um estado de
fusão, e, portanto, de indiferenciação, podemos falar de um eu e de um objeto a
partir de uma experiência de diferenciação. Essa experiência implica a perda da
fusão original, que nunca é total: o paraíso – a fusão total com o outro – é apenas
uma ilusão humana.
“A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão
de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história
primitiva do complexo de Édipo.” (Freud, 1921, p. 133). As identificações são marcas
de paixões
2
. São marcas do primeiro, intenso e primitivo amor pela mãe e pelo pai.
Partindo dessa constatação, podemos pensar o inconsciente biparental como uma
complexa rede de identificações bissexuais, femininas e masculinas.
Freud escreve (1923, p. 41):
...poderíamos supor que o caráter do Eu seja, na verdade,
um precipitado destes investimentos recolhidos dos objetos dos
quais se desistiu. Assim, poderíamos dizer que o Eu contém a
história dessas escolhas objetais. Devemos de antemão considerar
que deve haver uma escala de gradação na capacidade de
resistência do caráter de uma pessoa, tanto em rechaçar as
influências produzidas pela história de suas escolhas objetais
eróticas, quanto em, ao final, acolher [annimmt] essas influências.
1
Escritos sobre a psicologia do Inconsciente. Edição Brasileira, 2007. Coordenação da tradução: Luiz Alberto
Hans. Faço uso dessa tradução atual pela clareza e cuidado presente no texto.
2
Nosek, L. (1997).
124
Na sequência do texto Freud (1923) descreve as identificações que se
dirigem ao pai e a mãe e que reforçam a identificação primária. Freud (1923), relada
sobre uma identificação primária ao pai, postulado que se mostrará de difícil
sustentação. É demonstrado no texto de Paulo de Carvalho Ribeiro (2000) o modo
como Freud evitou a constatação da identificação feminina primária. É no artigo de
1938 – Esboço de Psicanálise – que Freud (1938, p. 217) relata a importância única
e sem paralelo de uma mãe: “primeiro e mais forte objeto amoroso e protótipo de
todas as relações amorosas posteriores – para ambos os sexos.”
1
Se a identificação feminina primária é o resto recalcado de um estado
primitivo do eu, as identificações masculinas e femininas surgem,
concomitantemente, e em oposição a ela (Ribeiro, P. C., 2000). Dizendo de outra
maneira, a identificação feminina primária é o terreno arcaico no qual se alicerça o
eu e suas identificações.
Considerando essa primariedade da mãe e seu inconsciente – já exposta,
penso que, amplamente neste trabalho –, resta pôr luz à composição identitária
bissexual inconsciente da mãe e do pai, como matéria prima da identificação da
criança com o casal parental, e parte da construção psíquica de uma identidade
sexual.
Ao consideramos o inconsciente biparental e suas identificações bissexuais
marcando de imponderáveis formas a construção de um “eu sexuado”, poderíamos
ampliar o número de pessoas envolvidas em um encontro amoroso: de quatro (como
escreveu Freud em 1899) para oito, ou, se considerarmos duas gerações, seriam
doze indivíduos. Em outras palavras, há um “polimorfismo sexual subjacente a toda
identidade sexual” (KRISTEVA, 2002, p. 17).
Freud (1923) fala de uma escala de gradação na capacidade, própria a cada
um, de rechaçar ou acolher os outros em nós. Talvez seja esse o trabalho psíquico
das identificações e suas características: múltiplas, complexas, sobrepostas e
interligadas. Uma trama identificatória singular, como uma digital – única.
É essa compreensão da bissexualidade psíquica – de uma trama
identificatória da feminilidade e da masculinidade, multiplamente vetorizada na
constituição psíquica – que enfatizo. A trama identificatória constituída na vida adulta
1
Já citado no item O apego à mãe: amor e ódio.
125
é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, demandando muitos anos para
ser composta. Há um longo percurso a ser trilhado para se alcançar a capacidade de
realização sexual genital; caminho próprio a cada um e extremamente plástico.
Compreendo que realização sexual genital é, também, uma boa metáfora para toda
e qualquer realização criativa e transformadora ao longo da vida.
Parto agora para outros autores que também refletiram sobre a
bissexualidade.
Godfrind (1997) escreveu um artigo com o alusivo título: A bissexualidade
psíquica; guerra e paz dos sexos
1
. Essa autora relata que é na construção de uma
identidade sexual que a bissexualidade encontra um campo privilegiado. A
identidade sexual é coexistente a identidade: ser é ser de seu sexo.
Godfrind (1997) fala de uma distinção entre bissexualidade psíquica primária
e secundária. A distinção entre primário e secundário no psiquismo já foi
apresentada nos conceitos, dessa mesma autora, de homossexualidade primária e
secundária. Retomando brevemente, o que é primário designa um momento de
formação do psiquismo no qual predominam os objetos parciais, momento anterior
ao auto-erotismo. O que é secundário designa a experiência com objetos totais, e a
presença do conflito edípico, em suas facetas identificatórias heterossexuais e
homossexuais. O processo de secundarização produz um efeito a posteriori no que
foi primário. Há um après-coups elaborativo da bissexualidade primária, no qual
acontece uma resignificação. A bissexualidade secundária está ligada às
identificações femininas e masculinas impregnadas com o conflito edípico.
A bissexualidade primária é compreendida por Godfrind (1997, p. 143) como
uma inscrição inaugural da cena primitiva, matriz dos movimentos inconscientes que
estão presentes no encontro entre os sexos.
Para McDougall (1997, p. XVI), a cena primária como conceito “engloba o
estoque total de saber inconsciente e a mitologia pessoal que a criança tem a
propósito das relações sexuais humanas, especialmente as dos pais”.
A criança é exposta desde o início às identificações bissexuais da mãe e do
pai. Caso prepondere no inconsciente parental, dificuldade em considerar e respeitar
o outro sexo – a alteridade sexual –, poderá predominar a guerra. Caso exista
1
La bisexualité psychique: guerre et paix des sexes, 1997.
126
reconhecimento e respeito pelas diferenças, poderá prevalecer a paz. Em outras
palavras, se no inconsciente do casal parental sobressair a fertilidade da união entre
os sexos, a criança estará exposta a um ambiente psíquico favorável para a
construção de um eu capaz de realizações satisfatórias, portanto parciais e
suficientes.
Cintra (2007) descreve a interiorização da figuras femininas e masculinas de
forma clara e elucidativa
1
:
Um ambiente humano pacífico e pais que puderam autorizar-
se um ao outro, favorecem a interiorização de figuras femininas e
masculinas que mantém entre si contato e diferenciação. Cria-se
uma tensão mínima que significa união, e ao mesmo tempo
separação e cada um dos pólos – o masculino e o feminino – pode
coexistir com o outro, sem anulação mútua. E, por outro lado, um
ambiente de desprezo, rivalidade, agressão e abandono vai
favorecer a interiorização de um mundo caótico onde os
personagens se atacam ou desprezam, e é muito freqüente que o
masculino se torne despótico e autoritário dirigindo-se contra o
feminino desprezado ou o inverso disto. As figuras de homem e
mulher se combinam de forma sadomasoquista
2
, criando uma figura
dos pais combinados
3
, onde não há nem diferenciação nem união.
A cena primária (Freud, 1918) e a figura dos pais combinados (Klein, 1923,
1928 e 1932) parecem ser, conforme Godfrind (1997), a primeira inscrição
fantasmática da bissexualidade psíquica. Podemos, também, pensar em uma
gradação entre polos mais ou menos tensos ou sadomasoquistas, dependendo do
que predomina na experiência inconsciente da criança com o casal parental,
considerando que a tensão e o conflito são característicos do psiquismo.
McDougall (1997, p. XXII) diz o seguinte sobre essa questão:
...quando os pais podem ser reconhecidos em sua
individualidade, em suas identidades sexuais separadas e em sua
complementaridade genital, a cena primária internalizada, em versão
1
Ressalvado o fato de que Cintra (2007) não está nesse texto abordando o conceito de bissexualidade psíquica.
2
Nota de Cintra (2007): “Freud descrevia uma fantasia universal na infância, dos pais em uma relação sexual
sadomsoquista.
3
Nota de Cintra (2007): “Melanie Klein, por sua vez deu a este tipo de fantasia o nome de “figura dos pais
combinados” que se torna muito ameaçadora e persecutória, pois eles formam uma espécie de “gangue” contra o
filho, que não pode mais contar com a proteção de um dos pais em momentos de agressividade do outro, ficando
à mercê da violência parental combinada contra ele. A criança sente que estão todos contra ela.”
127
transformada, torna-se uma aquisição psíquica que dá aos adultos-
crianças o direito ao seu lugar na constelação familiar, aos seus
corpos, à sua sexualidade.
Kristeva (2002, p. 149) expõe que é Klein que propõe o “primeiro modelo
psicanalítico da sexuação fundado no casal”. Os pais combinados ou acasalados é a
referência arcaica do casal parental, tanto na mente do bebê como no inconsciente
da mãe.
Klein (1963 [1991, p. 347]) escreve um seu último trabalho – Sobre o
sentimento de solidão – a respeito da bissexualidade psicológica. Penso ser
importante transcrevê-la pela clareza expressa neste parágrafo, sobre a importância
das identificações com a mãe e com o pai, sua integração ou não:
Sabemos que há um fator biológico na bissexualidade, mas
vou me ocupar, aqui, do aspecto psicológico. Nas mulheres, há
geralmente o desejo de ser homem, expresso – talvez da forma mais
clara – em termos da inveja do pênis; semelhantemente, encontra-se
nos homens a posição feminina, o desejo intenso de ter seios e dar à
luz crianças. Tais desejos estão ligados a uma identificação com
ambos os pais e são acompanhados por sentimentos de competição
e inveja, bem como por admiração aos bens cobiçados. Essas
identificações variam tanto em força como em qualidade,
dependendo do que for prevalente, admiração ou inveja. Parte do
desejo de integração, na criança pequena, é a premência por integrar
esses aspectos diferentes da personalidade. Além disso, o superego
faz a exigência conflitante de identificação com ambos os pais,
exigência instigada pela necessidade de fazer reparação por desejos
arcaicos de despojar cada um deles e que expressa o desejo de
conservá-los vivos internamente. Se o elemento de culpa for
predominante, dificultará a integração dessas identificações. Se, no
entanto, essas identificações forem satisfatoriamente realizadas, elas
se tornarão uma fonte de enriquecimento e uma base para o
desenvolvimento de uma variedade de dons e capacidades.
Essa bipolaridade – mãe e pai, feminilidade e masculinidade – é a
sustentação e o fundamento de todas as diferenças, das mais primitivas, às mais
evoluídas
(GODFRIND, 1997, p. 143). Se há um relativo e parcial trânsito psíquico
entre essas polaridades, é possível uma realização identitária sexuada satisfatória,
e, também, como expressou Klein, o desenvolvimento de uma variedade de dons e
capacidades.
128
Estamos em uma negociação constante, e comumente dolorosa, com as
diferenças: a diferença em relação ao outro, a diferença dos sexos e a diferença das
gerações. A constelação identificatória bissexual de um adulto é decorrente do
infindo trabalho de elaboração do complexo de Édipo, desse barro de que somos
feitos, e sempre seremos constituídos. Nesse sentido, a bissexualidade psíquica é
tributária das diferenças. Em outras palavras, há no encontro criativo e
transformador – qualquer que seja – um trânsito com suficiente fluidez entre
identificações femininas e masculinas, tendo como norte, ou assim se espera, o
reconhecimento das diferenças.
Kristeva (2002, p. 94) escreve sobre essa questão:
Vista à luz da posição depressiva, a tarefa da resolução do
Édipo aparece como devendo instituir de maneira estável, no centro
do ego, um bom seio (uma boa mãe), um bom pai e um bom casal
criador. Tarefa de introjeção de dois sexos, de dois outros, que se
realiza no sofrimento próprio da elaboração depressiva. A diferença
dos sexos é colocada no horizonte da posição depressiva, (...).
Godfrind (1997, p. 146) diz que, se existe uma integração suficientemente
identitária da masculinidade e da feminilidade, na qual há um reconhecimento
construtivo e harmonioso do outro sexo, há paz, porém sempre sob o risco da
guerra, ou seja, do combate e do denegrimento do outro sexo. O risco da guerra,
assim me parece, são aqueles momentos de não reconhecimento das diferenças,
nos quais a experiência da dessemelhança é ofensiva.
Para complementar e finalizar, eis o que fala Ogden (1992, p. 115)
1
sobre as
identificações bissexuais:
Quando se tem que fazer uma eleição entre a mãe e o pai
(entre masculinidade e feminilidade) não se chega a ser nem
masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na
feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela
outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925,
1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos.
1
Tradução livre.
129
Masculinidade e feminilidade, quando integrados no psiquismo, geram atos
criativos
1
, sejam intelectuais, científicos ou artísticos. Atos criativos são filhos
partenogenicamente criados a partir da possibilidade de identificação com a potência
feminina e a masculina, de maneira coexistente e dialética; um não existe sem o
outro
2
. A bissexualidade – compreendida como um transformador e articulador
psíquico – permite conectar
3
feminilidade e masculinidade; possibilita uma
construção única: a forma inusitada e extraordinária de ser um sujeito sexuado,
capaz de realizações.
Ser é ser do próprio sexo, considerando a amplitude e a singularidade
inimaginável do ser.
1
Gustave Flaubert (1857) ao ser interrogado sobre sua inspiração quanto à famosa personagem Madame de
Bovary respondeu: Madame de Bovary sou eu!. Essa frase tornou-se famosa para os estudiosos da literatura
como uma importante referência da capacidade de identificação de um autor na construção de seus personagens.
Será que a capacidade psíquica de Flaubert, de um livre trânsito quanto às suas identificações bissexuais,
promoveu o desabrochar da sua realização criativa? Provavelmente, ao escrever Madame de Bovary, Flaubert
tenha mergulhado em suas identificações femininas e emergido dessa criativa imersão livre e integrado o
suficiente na sua bissexualidade psíquica para responder: Madame de Bovary, sou eu.
2
Outro exemplo de integração da bissexualidade psíquica, assim me parece, é o de Bergman no filme Sonata de
outono.
3
Christian David em La bisexualité psychique, 1975, escreve: “Nossa bissexualidade nos permite conectar
masculinidade com feminilidade aproximadamente da mesma maneira como o objeto transicional realiza a
conexão entre dentro e fora, entre o que está presente e o que está ausente.” Tradução livre.
130
O pai no olhar da mãe
...a primeira relação objetal triangular se vive em uma relação entre duas pessoas; a
primeira relação heterossexual se desenvolve em uma relação que afeta a duas mulheres; o
pai como objeto libidinal é descoberto na mãe.
1
(Thomas H. Ogden, 1992)
O terceiro surge a partir da desilusão do uno.
No início tudo é ilusão onipotente; o bebê e a mãe são um mãe ambiente
como nomeou Winnicott , porém fadados à “outridade”. A desilusão é condição
humana. Deprimidos e desiludidos, iniciamos o primeiro esboço de um outro, ao
delinearmos esse primeiro outro a mãe, avista-se ao mesmo tempo o outro dentro
do outro – o pai.
Tenho como principais interlocutores para essa questão, Figueiredo (2006),
Godfrind (1990, 1997), Guignard (1997, 2002), M. Enriquez (2000) e Ogden (1992).
Esses autores aproximam-se no que se refere à temática da relação pré-edípica e
edípica, quando abordam a fantasia inconsciente (fantasmas parentais), subjacente
na mente dos pais, e seus efeitos no psiquismo infantil. Enfatizo, neste item, a
maneira como os fantasmas parentais repercutem na construção da identidade
sexual pela criança.
Comecemos por Ogden (1992)
2
, que, para pensar a mudança de objeto da
mãe para o pai, na menina, utiliza uma definição de fronteiras entre as relações
objetais pré-edípicas e edípicas. Diz que o estatuto psíquico da mãe e o do pai como
objetos são diferentes. Primeiramente, o pai é descoberto e investido como um
objeto interno da mãe; o pênis dentro da mãe (ou dentro do seio), como descreveu
Klein. O pai pré-edípico ainda não tem o estatuto de um objeto externo, mas faz
parte da onipotência do uno bebê-mãe. Torna-se, assim, compreensível a
precocidade da “situação edípica” por volta dos seis meses de vida, concomitante à
1
Tradução livre.
2
Ogden (1992), La relación edípica transicional en el desarrollo feminino.
131
posição depressiva e ao primeiro abalo na onipotência do bebê, como postula Klein
(1928).
A mãe e o pai edípicos são objetos externos. A desilusão, quando bem
dosada, faz seu sofisticado trabalho psíquico de corroborar a capacidade de se
comprometer com os objetos externos totais, situação que está no âmbito do
saudável amor edípico (OGDEN, 1992)
1
.
Ogden (1992) está questionando a Idéia de Freud de que há uma mudança
de objeto na menina (da mãe para o pai), e que essa mudança tem, como força
propulsora, uma desilusão com o sentido de fracasso e imperfeição – a ausência de
um pênis
2
. Ogden (1992, 96) discorda da força propulsora da desilusão:
Apenas um fundo de narcisismo são, que gere sentimentos
de esperança e de abertura diante do desconhecido, prepara o
caminho para que a menina corra o risco de enamorar-se do pai
como objeto externo, pessoa que se encontra fora do alcance de seu
controle onipotente.
3
O ressentimento em relação à mãe não é algo que dê sustentação a um
interesse genuíno e não defensivo em direção ao pai.
O pai, para a criança, antes de ser um objeto externo, é um objeto interno
da mãe pré-edípica, dentro da díade onipotente mãe-bebê. A entrada no complexo
de Édipo supõe uma “consciência de outridade”, ou reconhecimento da
“externalidade”. “O pai é o principal representante da outridade.” (OGDEN, 1992, p.
100).
Para se interessar pelo pai, é preciso que a menina viva uma relação
transicional com a mãe que tenha a função de introduzir a ”outridade”: a menina
enamora-se da mãe-como-pai e do pai-como-mãe. A menina se apaixona pela mãe
“que está comprometida em uma identificação inconsciente com seu próprio pai em
seu grupo interno de relações objetais edípicas.” (OGDEN, 1992 p.100). A menina
1
Para Ogden (1992) a capacidade de amar está em um terreno edípico. Podemos pensar em uma precisão
conceitual que poderia trazer um pequeno acréscimo de compreensão, assim como existe a denominação posição
pós-depressiva (BRITTON, R., 2003), será possível pensar em uma situação pós-edípica? Talvez sim.
2
O fato de Freud postular que apenas um órgão sexual é reconhecido por ambos os sexos – o pênis, alguns
autores convencionaram chamar de teoria falocêntrica ou do monismo sexual fálico (CHASSEGUET-
SMIRGEL, 1988).
3
Tradução livre.
132
primeiramente ama o pai contido na mãe, ou seja, a experiência edípica da mãe com
seu próprio pai.
Acrescento que na escolha do parceiro e futuro pai, estão em jogo as
identificações masculinas e femininas da mãe, favoráveis ou não a uma escolha
“suficientemente boa” de um companheiro.
Para Ogden (1992, p.101), “o papel da mãe como objeto transicional edípico
é permitir-se a si mesma ser amada como um homem (sua própria identificação
inconsciente com seu pai)”
1
. O complexo de Édipo e sua precocidade referem-se ao
pai que está contido inconscientemente na mente da mãe a partir de suas
identificações com seu próprio pai, ou seja, as identificações bissexuais da mãe: “É o
êxito da relação transicional edípica primária o que prepara o terreno para o ato de
valentia da menina de permitir-se a si mesma enamorar-se de seu verdadeiro pai.”
2
(OGDEN, 1992, p.102)
Tal ato de valentia pode ou não ser brindado com um pai/porto seguro. O
movimento em direção ao pai é uma evolução na direção da externalização das
relações objetais. Dessa forma, podemos compreender os “investimentos fálicos”
como investimentos no objeto exterior – pai, ou o que se externaliza – pênis.
Guignard (2002, p. 17) também teoriza sobre o estatuto diverso (como
objetos) do pai e da mãe. O pai será sempre um segundo objeto de investimento,
que não se forma ao mesmo tempo em que o primeiro. O pai - segundo objeto, não
poderá ser sobreposto ou redutível à história do primeiro objeto. É na elaboração da
posição depressiva que o bebê dirige seus investimentos pulsionais para o pai.
Segundo essa autora, o pai é experenciado diretamente como objeto total.
Guignard (1997, p.135) diz:
Gostaria, contudo, de lembrar que, uma vez que a formação
desse segundo objeto não ocorre no mesmo tempo psíquico que a
do primeiro, sua história psíquica na organização infantil, a meu ver,
nunca será superponível, nem redutível à do primeiro objeto, ainda
que comece a ser elaborada a partir dos investimentos efetuados
sobre este.
1
Tradução livre.
2
“... a mãe edípica nunca perde sua conexão com a vivência da mãe como objeto subjetivo.” (CHODOROW,
1978 apud OGDEN, 1992, p. 100). Tradução livre.
133
Essa autora designa que a hipótese de que o pai é experenciado desde o
início como um objeto total, é pessoal. A primeira constelação do objeto pai já seria
de objeto total (não-mãe), e não de objeto parcial. Apoiada em sua experiência
clínica, Guignard (1997, p.136) expõe que a criança funciona simultaneamente
dentro dos dois registros: de objeto parcial e de objeto total. No entanto, as
proporções das relações de objeto – parcial ou total – são diferentes em relação à
mãe ou ao pai. Vai mais além, dizendo que o pai somente é experenciado como
objeto parcial por uma via regressiva, uma confusão com o mamilo ou com as fezes.
A “mãe fálica” ou o “seio fálico” ilustram essa fantasia regressiva.
Para Figueiredo (2006, p. 142), “o ‘pai’ limita, permite e protege a relação
diádica e o narcisismo de origem”. O pai, esclarece o autor, pode ser algo que
represente essa função; o que legitima o terceiro é o fato de a mãe ter uma ligação
interessada e intensa por esse outro – um companheiro, o trabalho, a família, etc.
Podemos pensar que, se a mãe tem o lugar do terceiro legitimado em seu
psiquismo, isto seria um favorecedor para a desilusão do bebê e para a saída da
relação diádica inicial (onipotente e narcísica).
As relações narcísico-duais comportam frustrações e
conhecem limites. O ‘não mãe’ (a mãe má, o pai, o mundo) é
permanentemente o horizonte inevitável do objeto primário, e a
indiferenciação característica das relações narcísico-duais não é
nunca absoluta: uma diferenciação está desde sempre se
insinuando, mesmo que reduzida pelos mais eficientes cuidados e
adaptações do ambiente. (Figueiredo, 2006
, p. 138)
Considerando uma trajetória favorável, podemos pensar que a mãe
razoavelmente bem sucedida em sua função edípica transicional provavelmente teve
uma experiência edípica que deixou um balanço de sensações favoráveis, com
identificações bissexuais (masculinas e femininas) criativas. Uma mulher com essa
constituição psíquica escolherá, como parceiro e pai de sua filha, alguém próximo
dessa identificação – um homem “suficientemente bom”, que desempenhará, para
sua pequena menina, a importante função de apreciar sua feminilidade, seduzi-la e
134
deixar-se seduzir, porém, reconhecendo e aceitando a interdição na relação pai-
filha
1
.
Um ciclo assim favorável implica que o pai tenha tido com sua própria mãe um
bom desfecho da fase da feminilidade (Klein, 1928, 1932 e 1945): ter se identificado
com a mãe e ao mesmo tempo se separado na conquista de sua masculinidade, o
que o capacitou a ser um homem capaz de apreciar a feminilidade da mãe e de sua
pequena filha
2
.
Godfrind (1997) relata que uma filha precisa ser apreciada e amada pela mãe
e pelo pai: a cena primária/originária (Freud, 1918) ou o coito internalizado dos
pais/figura combinada dos pais (Klein, 1923, 1929 e 1932) podendo ser tanto uma
representação da criatividade e da vida, quanto da destruição e da mutilação.
Figueiredo (2006, p. 143) esclarece que apenas em uma “triangulação bem
instituída as relações de confiança podem emergir e se firmar”. Diz também que
“será a introjeção do casal como objeto bom e criativo que cria as condições para a
confiança em si, como primeiro, segundo ou terceiro, em uma relação amorosa e
cognitiva.”
É o pai que “salva” a menina do risco de destruição inerente à aproximação
homossexual primária entre mãe e filha, que rompe o “encantamento mortífero e o
efeito de inquietante estranheza que a reprodução do idêntico exerce sobre todos”
(M. Enriquez, 2000, p. 63). É preciso se liberar da mãe com o apoio do pai. É a
identificação com o pai/pênis que permite destacar a menina da adesividade ao
corpo oceânico da mãe (Godfrind, 1990).
Exemplifico, com o sonho de uma paciente grávida, a função paterna de
destacar, arrancar e separar:
Estou na maternidade e alguém rouba o meu bebê. Todos
estão à procura do bebê. De repente, percebo que foi o meu marido
que levou ele embora. Meu marido está brigando comigo porque
quer saber quem é o pai do bebê. Eu digo a ele que não sei; tenho a
impressão que o bebê não tem pai.
1
Isto é apenas uma especulação teórica, já que o psiquismo é extremamente plástico na sua constituição.
2
A boa resolução da fase da feminilidade no menino tem como consequência uma identificação saudável e
critativa do homem como o feminino.
135
O desejo de que o bebê seja somente da mãe é evidente; o pai é aquele que
rouba o bebê do “corpo oceânico” da mãe. A representação masculina associada ao
aspecto agressivo de roubo e violação é bem ilustrada nesse sonho. O pai é um
bem-vindo violador do “laço demetriano” entre a mãe e seu bebê.
Porém, “nem tudo são flores no incerto terreno da interdição paterna”, como
diz M. Enriquez (2000, p. 65):
O pai pode, na mais completa inocência, se deixar seduzir,
favorecendo a erotização excessiva de uma relação pai-filha, graças
à qual realizará um desejo incestuoso, apropriando-se de sua filha na
ausência da mãe. A histeria e certas formas de homossexualidade
serão uma resposta possível a esta sedução demasiada do pai, real
e na fantasia.
O fato de o pai não sustentar psiquicamente a apreciação em relação às
mulheres e defensivamente – esta pode ser uma maneira de se desprender da mãe
como objeto interno e salvaguardar a masculinidade, ainda que frágil – torna-se um
homem que deprecia a feminilidade
1
, isso impossibilita o saudável enamorar-se
edípico entre pai e filha. A menina, nessa situação, provavelmente se identificará
com um objeto perigoso e sem valor (M. ENRIQUEZ, 2000, p. 65). Um pai sádico ou
até incestuoso, contribuirá para a inscrição de uma imagem desvalorizada da
feminilidade em sua pequena filha
(GODFRIND, 1997, p. 138).
Também em relação ao pai, estamos diante de sua constelação identificatória
da masculinidade e da feminilidade – suas identificações bissexuais. Seus objetos
internos edípicos, seu êxito ou fracasso nesses desafios psíquicos inconscientes,
vão marcar seu relacionamento com sua filha e com a feminilidade dela.
Sobre o estatuto do objeto pai no psiquismo Green diz, em uma entrevista
concedida a Gregorio Kohon (1999, p. 56), no livro The Dead Mother, algo que
considero elucidativo:
Acredito na distinção feita por Freud: por um lado, um
relacionamento de presença, que implica um contato corpo a corpo,
o corpo da mãe, o protótipo de todos os relacionamentos amorosos
posteriores; e, por outro lado, o relacionamento com o pai como uma
1
“Homem, que de fato, treme diante da feminilidade.” (Godfrind, 1997, p. 138)
136
identificação que sempre envolve distância do objeto – a fascinação
pelo objeto, como ele é, como se apresenta, mas sem contato direto.
Eu penso que isso são as duas dimensões do desenvolvimento
psíquico, que devem sempre ser consideradas ao mesmo tempo.
1
Green, apoiando-se em Freud, destaca que o que distingui o objeto mãe do
objeto pai é uma questão de distância. Essa constatação ilumina a discussão feita
acima, a partir de outros autores, sobre o estatuto diverso da mãe e do pai no
psiquismo infantil.
Pai e mãe são as duas árvores frondosas na inacabável construção do nosso
jardim psíquico
2
. Resta-nos, então, nascer psicossexualmente, embalados por um
movimento que tenda ao favorável – a paz, a confiança, a criatividade – quanto às
identificações bissexuais do inconsciente parental. Contudo, isso não basta, é
preciso tornar-se criativamente herdeiro dessas identificações.
1
Tradução livre.
2
Chasseguet-Smirgel, As duas árvores do jardim, 1988. Título que parece ter sido inspirado no texto de Thomas
Mann, As duas árvores do Éden (1930), citado na epígrafe do livro. Expressão já usada nas Notas introdutórias.
137
PARTE - V
Construções clínicas
Apresento a seguir duas construções clínicas e as respectivas tramas
conceituais
1
que as acompanham. Os conceitos retomados aqui foram descritos e
debatidos anteriormente
2
. Se considerarmos a constituição do eu e da feminilidade
dentro de um gradiente – de um “eu feminino” inicialmente mais fragmentado para
um “eu feminino” mais unificado (portanto narcísico) –, o encadeamento da
apresentação é Zoe e, posteriormente Liz
3
, tendo em vista que o eu, em seu
processo de constituição, parte da fragmentação para a unificação
4
.
Ainda que situadas no final deste trabalho, as duas construções clínicas
edificaram-se contemporaneamente às partes teóricas. Alguns conceitos foram
buscados a partir da demanda clínica; outros foram mais bem compreendidos dentro
desse referencial. Destaco que as construções não são ilustrações dos conceitos
trabalhados, mas elas trazem experiências que rogam por nomeações, mesmo que
provisórias e parciais.
No que diz respeito às tramas conceituais em Zoe e Liz, ressalto a seguinte
característica: quando uma articulação teórico-clínica é feita, pode ficar a impressão
de estranheza, devido ao fato, assim penso, de que o clínico e o teórico são
universos interdependentes, no entanto, parcialmente diversos. Além do fato, de que
é um trabalho a posteriori, sempre uma construção especulativa do analista. Tal
edificação conceitual-clínica não esgota a riqueza e a diversidade da experiência.
Está aí o surpreendente e o instigante da clínica.
1
Agradeço ao Prof. Dr. Paulo de Carvalho Ribeiro que por ocasião do exame de qualificação sugeriu-me
trabalhar mais teoricamente as duas construções clínicas: Zoe e Liz.
2
Com exceção do fenômeno da mãe morta (Green, 1980) que será apresentado na trama de Zoe como uma
descrição clínica de uma identificação primária.
3
Essa diferenciação será debatida no item Entre Zoe e Liz.
4
Existe uma diferença entre as duas construções clínicas, justificada pela característica narcísica da construção
clínica Liz, que tem como decorrência certo empobrecimento dos vínculos.
138
Zoe, entre abismar e emergir
A menina constrói seu self mirando-se nos olhos da mãe e em interação com o corpo materno. Suas
primeiras experiências, suas impressões iniciais de um corpo feminino e da feminilidade são
totalmente dependentes da qualidade do relacionamento mãe-filha. Em termos psicanalíticos, a
primeira realidade de uma menina é o inconsciente da mãe.
1
(Klockars and Sirola, 2001)
Em Zoe
2
, a devastação da relação mãe e filha toca na fronteira da
impossibilidade de viver, no limite da loucura. Essa construção clínica evidencia que
a feminilidade se entrelaça com a constituição do eu. Quando o eu se constitui de
forma frágil, a feminilidade também o é. Zoe exemplifica como a filha imaginada e
fantasiada na mente da mãe promove ecos (repete e amplifica) no psiquismo da
filha. Esse fragmento clínico ilustra como a filiação feminina – neta, mãe e avó – são
tanto uma via de herança da impossibilidade de amar a si mesma e a filha, quanto
uma oportunidade de elaboração do que é errante ao longo das gerações o
desencontro entre mães e filhas, no qual não há vítimas nem algozes, apenas
tristeza e aridez.
Muitos anos já se passaram desde o início da análise de Zoe, que me
procurou após o suicídio de um ex-namorado com o qual ela se identificava. Sentia-
se culpada e responsável pela morte do rapaz. Os primeiros anos de trabalho
analítico tiveram como fruto uma estruturação razoável da vida de Zoe. No começo
da nossa trajetória, ela não conseguia manter atividades cotidianas; ausentava-se
do mundo, isolava-se. Era inundada por sentimentos de culpa decorrentes da
fantasia de que fazia mal às pessoas de que gostava; sentia-se como portadora de
uma peste – a tristeza e a morte. Por isso, deveria manter-se isolada para que não
acontecesse o contagio.
Desde muito pequena, Zoe sentia-se responsável pelo estado psíquico
depressivo da mãe. Sua vida esgotava-se na tarefa infrutífera de reparar a mente da
1
Tradução livre.
2
Zoe significa vida.
139
mãe para obter a sua salvaguarda. O paradoxo instala-se entre mãe e filha: salvar a
mãe para que a filha tenha a chance de ser resgatada. Seus namorados têm
também como característica um funcionamento mental extremamente frágil, análogo
ao da mãe. O término dos relacionamentos assemelha-se pelo seguinte impasse: ou
ela se afunda na loucura dos parceiros, ou salva sua pele separando-se deles.
Ao longo da trajetória analítica, Zoe foi constatando que essa era a grande
encruzilhada da sua vida: cuidar de si própria, ou sepultar-se na depressão materna.
A imagem onírica recorrente para a experiência de ruína psíquica da mãe e dos
namorados, com a qual Zoe sentia-se intimamente implicada, é a seguinte: ela está
dirigindo por uma estrada e, ao longo do caminho, veem-se pessoas mortas,
estilhaçadas por todos os lados.
Por muitos anos, a análise foi um lugar de sobrevivência de naufrágios
psíquicos intensos e recorrentes. Zoe tentou, das mais criativas maneiras, que eu
desistisse de desejá-la viva. Quase sucumbi, não apenas uma vez. Felizmente, a
vida prevaleceu. Os fatores que identifico como favoráveis são: a minha persistência
analítica, a imaginada tristeza de ter na memória, no afeto, uma paciente que
desistiu. Situações assim exigem um investimento intenso por parte do analista.
Um dado significativo é Zoe ser uma mulher bonita. No entanto, o que poderia
ser algo bom acarretou problemas. A transbordante sensualidade de Zoe, desde
menina, parece ter instigado a mãe, o pai e os irmãos a reações
surpreendentemente cruéis. Sustentar a beleza da filha, sem que isso representasse
uma ofensa narcísica para os frágeis, violentos e narcísicos pais, não era possível.
No ambiente familiar de Zoe prevalecia o isolamento e a brutalidade dos membros.
Sobre o relacionamento com o pai, Zoe relata que ele a invadia com um olhar
sexualizado: arrombava a privacidade da menina, da adolescente e da mulher, não
aceitando os limites da interdição e, consequentemente, da porta do quarto dela.
Não sabemos se a fantasia incestuosa do pai manteve-se restrita à imaginação, ou
se essa fronteira também foi transposta
1
. Contudo, tal diferenciação parece não
alterar suas sequelas: a dificuldade no relacionamento com os homens e sua baixa
auto-estima como mulher, nada lhe valia a beleza, muito pelo contrário, a beleza
sempre lhe trouxe agressões desmedidas. Era uma beleza a ser escondida e não
1
Encoberto pela protetora amnésia infantil.
140
revelada. O pai poderia ter sido um refúgio para o “pacto negro” com a mãe, mas
isso não aconteceu. A importância do pai para uma menina, como uma “segunda
chance”, um refúgio da ligação conflituosa com a mãe, aqui se evidência pela falta,
ou seja, a violência incestuosa do pai a remetia novamente para o laço fusional com
a mãe, em um ciclo fechado. Esse circuito sem saída e mortífero rompeu-se parcial
e precariamente na adolescência, com o início dos namoros. Considero, hoje, que a
busca por um relacionamento reparador com um homem foi um indicativo de uma
esperança de viver, prevalecendo ao “pacto mortífero” com a mãe. Entretanto, nessa
situação, o acaso não estava a seu favor: o primeiro namorado suicidou-se.
Durante um longo percurso juntas, a primordial função da análise foi manter
um desejo de vida, a construção de um espaço psíquico para Zoe sonhar-se viva;
alguém – a analista – a sonhava assim, viva. A capacidade
1
de a analista apreciar a
beleza da analisanda sem que isso representasse uma ofensa narcísica, mostrou-se
algo transformador. Essa experiência levou-a a usufruir sua natural sensualidade,
habilitando-a a lidar com os olhares em sua direção. Zoe que se escondia em roupas
neutras, passou a se sentir mais à vontade nas roupas femininas que a deixavam
ainda mais bela. Nos termos de Godfrind (1990, p. 95): “o encontro com uma
analista mulher alimenta, através das palavras, mas também na proximidade dos
corpos, uma experiência específica e estruturante.”.
O tempo passou, Zoe vingou. O acaso – quanto a essa situação – estava a
seu favor, pois efetivamente ela arriscou a vida. Zoe sofria de uma espécie de
atração fatal que a levou a vários embates com a morte. A morte significava para ela
apenas uma maneira de se desligar do que a angustiava, e uma forma de proteger
as pessoas amadas, pois acreditava que sua companhia era maléfica. O desejo de
morrer foi recorrente ao longo da infância e ao longo da análise.
Na meninice, Zoe chorou durante todos os seus anos escolares. Ficava
extremamente preocupada com sua mãe, quando não estavam próximas. A mãe de
Zoe tem crises depressivas; atualmente, vive sozinha convivendo com pouquíssimas
pessoas e com um número exagerado de bichos.
Mãe, morte e mulher, termos entrelaçados de forma sombria na vida de Zoe.
A mãe, quando engravidou de Zoe, desejou abortá-la. Esse desejo não seria tão
1
Essa capacidade não precisou ser expressa, Zoe percebia que sua beleza era apreciada.
141
devastador diante do fato de que tal “sonho de morte” ainda persiste até os dias
atuais. A mãe comentava para a sua pequena menina que mulheres grávidas
causavam-lhe horror, quando se deparava com qualquer gestante, Os sonhos de
Zoe, quaisquer que fossem, não podiam ser gestados diante de um projeto tão
mortífero: a vida não lhe pertencia. Encontraria o afeto da mãe apenas na morte
concreta ou simbólica – seu fracasso como pessoa e como mulher. A frase da filha
dirigida à mãe no filme Sonata de Outono de Bergman (1978) é pertinente nesse
caso: “Mamãe, será que é isso? Será que a desventura da filha é o triunfo da mãe?”
A impossibilidade da mútua apreciação - mãe e filha - pode erguer muralhas
defensivas grandiosas: “Mamãe, minha desgraça é seu prazer secreto?”
Zoe relatava que o contato com sua avó materna na infância também tinha
sido conturbado; não guardava dele boas lembranças. O relacionamento da mãe
com a avó também era árduo e violento. Adulta, passados quase dez anos que não
se encontrava com a avó, a vida oferece, a ambas, uma oportunidade. A avó,
fragilizada fisicamente pela idade e doenças, manifesta o desejo de encontrar Zoe.
Não foram apenas um, mas vários, emocionantes, vivos encontros. Um bálsamo
para a alma das duas: a avó para morrer bem; a neta para viver. Em um desses
autênticos encontros, a avó dá um leque de presente à neta para arejar a vida.
Recentemente, Zoe sonhou que a avó lhe dizia para levar esse leque, aos
importantes momentos de realização de seus projetos. Zoe deseja, desde menina,
ser artista, sonho adiado, mas recuperado intensamente. Nos encontros com a avó,
ela pôde compartilhar seus sonhos e a avó pôde ser acolhedora e estimulante para
a neta.
Zoe encontra-se nessa transição: está, enfim, gestando seus sonhos.
Entretanto, um telefonema interrompe ares tão favoráveis. Telefonou-me aos
prantos, náufraga de si mesma. Apenas ouviu minha voz, na secretária eletrônica,
deixou um recado: não estava bem, mas era possível aguardar seu horário, pois, o
simples fato de ouvir minha voz gravada parecia remetê-la ao nosso vínculo - existe
alguém vivo que a deseja viva. Compareceu no horário habitual. Inicia nosso
encontro relatando que “meteu os pés pelas mãos”; teve atitudes extremamente
desfavoráveis a si mesma, tanto profissionalmente, quanto pessoalmente, como há
tempos não acontecia. Descreveu-as, empurrando-se um pouco mais ladeira abaixo
em uma atitude extremamente autodepreciativa, até chegarmos ao tal telefonema,
142
ou melhor, ao tom, à “textura vincular” entre ela e a mãe. Disse que a mãe comentou
que já fazia alguns meses da morte da avó e que neste momento ela estava
cuidando dos ossos – no sentido literal – da família, transportando-os para um outro
sepulcro. Zoe sente-se mal com um assunto tão fúnebre. No entanto, começa a falar
de sua própria morte. Não gostaria de ser enterrada: quer ser cremada e que suas
cinzas sejam jogadas ao mar. A mãe deu asas à imaginação, e o assunto continuou
em mínimas especificações, deixando devastadoras impressões. A mãe imaginava-
se na situação, enterrando a própria filha. Tal constatação calou Zoe em um silêncio
mortífero, até ela ter conseguido formular uma libertadora questão: - Por que eu não
consigo me desligar disso. Esse é um problema dela e não meu! Em outras
palavras, a dificuldade de Zoe de desidentificar-se da fantasia materna.
O impasse, o desafio, está justamente aí, desligar-se do que nunca foi
vivamente, prazerosamente, vinculado. Será este um luto possível ou administrável
ao longo da vida? Desligar-se do que a mãe “real”, posteriormente internalizada,
sonhou para ela: vê-la morta ou fracassada na vida. Por terrível que seja, ainda é um
sonho, um desejo, não é a indiferença, provavelmente, ainda mais desestruturante.
Podemos expressar a situação entre Zoe e a mãe valendo-nos de um paradoxo: ela
foi libidinizada pelo desejo de morte da mãe.
Zoe diferenciou-se parcialmente da mãe. Afinal, o “sonho de morte” pertencia
à mãe e não a ela: a mãe sonha com a morte da filha, e, talvez, dela mesma.
Todavia algo próximo a essa atração mortífera insiste em aparecer no
relacionamento com o namorado. Em uma sessão recente, Zoe chega olhando para
baixo, contando, envergonhada, que tinha retomado um relacionamento com um
homem que, apesar das afinidades com ela, tinha pouco a lhe oferecer, além de
apresentar uma instabilidade psíquica considerável e também, em alguns
momentos, sonhar com a morte: - Não quero cair do cavalo, está me incomodando o
fato de ter me aproximado novamente, eu já estava distante.
A sensação, pelo fato de ela estar envergonhada, era de que ela receava
“levar uma bronca”. Apenas constato, sem nenhum comentário. Ela designava a
mim, a função materna, adquirida na análise, de proteger e cuidar, função de uma
mãe-analista que sonha com a vida. Suas associações foram seguindo a memória
do que ela tinha vivido com o namorado, e de como ele se assemelhava a um outro
de quem ela gostara muito. Ela o havia perdido pelo suicídio, situação dramática que
143
a mobilizara a buscar a terapia alguns anos atrás. Em meio a essas associações,
Zoe relata que sua mãe havia telefonado e que o relacionamento entre elas tinha se
tornado cordial, porém superficial. Não havia prazer naquele contato; era a ligação
possível com a mãe. Zoe deu-se conta das inúmeras vezes em que havia caído do
cavalo com sua mãe. Desistira de esperar o que não vinha, pois efetivamente a mãe
tinha pouco a oferecer. Subitamente percebeu que apesar de ter desistido da mãe o
desejo de morte ainda insistia em permanecer presente em relação ao namorado.
Com certeza ela iria, sim, cair do cavalo: seria expulsa bruscamente da parceria, por
uma queda.
A queda parece representar a depressão da mãe, o suicídio
1
do antigo
namorado e a desestruturação psíquica do atual. Evidencia-se que o que foi
insistentemente desejado com a mãe - uma parceria razoável para uma cavalgada
pela vida - é deslocado para o namorado. Como Freud (1932) havia escrito: o
sucessor dos conflitos com a mãe é o homem.
Durante o relato exposto acima, a mudança de Zoe a partir da minha
presença mental é nítida. Ela começa a falar com mais firmeza e a sensação de
estar envergonhada não está mais presente. A minha qualidade psíquica (não em
queda) parece funcionar como algo que facilita a integração; são “vitaminas” para o
pensamento, como Zoe se expressa. São referências identificatórias vividas comigo
para que uma escolha, “menos em queda”, seja feita, visto que uma das funções da
análise é apreender as qualidades psíquicas da mente do analista: - É uma pena...,
mas não posso estar aqui com você aos cinquenta anos falando que é uma pena. Aí
eu vou ficar choramingando que não tive uma família e filhos, já perdi muito tempo.
“Desligar-se”, não insistir no que “nunca foi, nem nunca será”, é um trabalho
árduo e nem sempre possível, mas as “vitaminas” analíticas parecem estar, com
avanços e retrocessos, produzindo efeitos.
A situação psíquica atual de Zoe pode ser representada pela cena do filme O
Piano
2
. A protagonista da história está retornando, de barco, à sua terra natal após
um casamento desastroso e violento. Carrega consigo, na frágil embarcação, seu
amado piano, companheiro de tantos momentos difíceis. O piano cai; ela submerge
amarrada a uma das cordas. Olhando seu piano cair, ela é tentada a sepultar-se no
1
O namorado suicidou-se em uma queda.
2
O Piano (The Piano) 1993, direção de Jane Campion.
144
fundo do mar junto a ele, mas, em um gesto que implica uma escolha entre abismar
e emergir desamarra-se e insurge para a vida. Esse movimento de ascender à
superfície, no caso de Zoe, somente é possível após um intenso trabalho de luto,
que consiste em desistir de reparar o frágil psiquismo da mãe, absorvido na
depressão, e se desidentificar dessa queda no abismo materno.
Dessa forma, o trabalho analítico permite assentir a uma identificação
feminina mais satisfatória atribuída transferencialmente à analista, processo que
implica também o luto pela precariedade do funcionamento mental da mãe
(Godfrind, 1994).
O processo analítico passa a ser um divisor de águas na vida de Zoe: uma
analista que a sonha viva, bem, exuberante na sua beleza e suficientemente
realizada com um homem; talvez até com uma família, uma filha que ela possa amar
como uma repercussão do amor a si mesma, conquistado com muito esforço dentro
de uma longa “cavalgada” com a analista.
As violências narcísicas sofridas na infância talvez fiquem, na melhor das
hipóteses, como pesadelos em noites conturbadas, estimulados por experiências de
realização e de prazer. Essa situação já vem ocorrendo: sempre que Zoe está se
sentindo satisfeita e conquistando coisas que ela deseja na vida, esse casal parental
invejoso e destrutivo que habita dentro dela vem assombrar seus sonhos.
Bion escreve sobre a meta final de uma análise: o melhor que se pode com o
que se é. Uma análise suficientemente bem sucedida, assim penso, é
descomprometida de ideais analíticos, que podem ser aprisionantes. Estendendo a
frase para o contexto deste trabalho: é o melhor que se pôde viver com os pais (o
inconsciente parental e sua trama identificatória) e com a própria história. Com o
reconhecimento desses limites, a análise tem sido um leque para Zoe arejar a vida.
145
A trama conceitual em Zoe: o pacto negro e a mãe morta
O que teço neste item é uma articulação conceitual a partir da construção
clínica Zoe um pouco mais extensa do que a já apresentada no item anterior. Utilizo
dois termos que são descrições de situações clínicas. O primeiro, forjado por
Godfrind (1994), o pacto negro, foi trabalhado na compreensão que faço do filme
Sonata de Outono. Retomo-o, inclusive, pelas aproximações do fenômeno clínico da
mãe morta, explicitadas ao longo deste texto.
O segundo, a mãe morta
1
, termo de André Green (1980 [1988]), faz jus a uma
breve exposição. Não que seja um elemento novo dentro deste trabalho, mas sim
uma especificidade clínica do que já foi amplamente trabalhado como identificação
feminina primária. O que abordo neste contexto é o que Green (1980 [1988])
denominou identificação primária com a mãe morta. Trago-o por um imperativo
conduzido pela construção clínica: o que parece ter acontecido com Zoe foi
justamente uma identificação primária com a mãe morta, ressalvadas algumas
especificidades.
Green (1980 [1988]) descreve esse fenômeno clínico como uma mãe
presente fisicamente, porém morta psiquicamente para seu bebê. A mãe está
cuidando de seu bebê. Aparentemente está tudo bem. No entanto, ela está
deprimida, desinteressada; cuida da criança quase que mecanicamente. A
depressão da mãe pode ser decorrente tanto de perdas evidentes, tais como a
perda de um ente querido, de perdas gestacionais ou até de um outro bebê, quanto
relacionadas a decepções que acabaram gerando um sofrimento narcísico. Qualquer
das possibilidades – perda evidente ou não – suscita uma ausência de interesse da
mãe em relação ao bebê; a mãe está imersa em tristeza. Green (1980 [1988]) relata
que houve uma mudança brusca na imago materna: de uma relação rica e feliz a
mãe passa para um estado de deprimido e desinteressado. O autor faz a seguinte
analogia: diante de uma civilização desaparecida, na qual apenas resquícios dão
1
Um dos artigos mais conhecidos de André Green é o da mãe morta, que teve grande influência no pensamento
psicanalítico. Um livro foi editado em homenagem aos setenta anos de Green com o mesmo nome: The Dead
Mother. The work of André Green. Editado por Gregório Kohon, 1999. Algumas referências a esse livro serão
feitas mais à frente.
146
indícios de sua existência, hipóteses são levantadas sobre o que a teria destruído:
um terremoto, um cataclismo, etc.
O acontecimento que gerou a mudança – de uma mãe viva para uma mãe
morta – é da ordem de uma catástrofe psíquica para a criança. Isso será ainda mais
grave se coincidir com o momento em que o infans descobre o terceiro, o pai. Essa
infeliz concomitância pode gerar uma triangulação defeituosa. Para lidar com essa
catástrofe psíquica, o Eu
1
incipiente tem primeiramente reações ativas: agitação,
insônia, terrores noturnos, etc. Tendo esgotado esse arsenal, o Eu, em um único
movimento, desinveste o objeto materno e se identifica com a mãe morta. Green
(1980, p. 257) relata um assassinato psíquico do objeto, porém sem ódio – um crime
branco. O resultado “é a constituição de um buraco na trama das relações objetais
com a mãe”.
Quanto à questão da identificação com a mãe, Green (1980, p. 257 e 258) diz
que a identificação em espelho, nesses casos, é quase obrigatória, ou seja, não há
alternativa:
De fato não há reparação verdadeira, mas mimetismo, cuja
finalidade, não podendo mais ter o objeto, é continuar a possuí-lo,
tornando-se não como ele, mas ele mesmo. Esta identificação,
condição de renúncia ao objeto e ao mesmo tempo de sua
conservação segundo o modo canibalístico, é desde o princípio
inconsciente.
Na sequência do texto, Green faz uma diferenciação metapsicológica
importante para compreendermos o que ele denominou complexo da mãe morta: a
partir do duplo movimento do Eu – desinvestir e identificar-se – o desinvestimento do
objeto se tornará posteriormente inconsciente, enquanto a identificação é desde o
princípio inconsciente, daí seu caráter alienante:
Nas relações de objeto posteriores, o sujeito, preso
na compulsão à repetição, porá ativamente em ação o
desinvestimento de um objeto passível de decepcionar, repetindo a
defesa antiga, mas, aquilo de que estará totalmente inconsciente é a
identificação com a mãe morta, a que ele se junta no revestimento
das marcas do trauma (GREEN, 1980, p. 258).
1
Quando uso “Eu” estou acompanhando a escrita de André Green.
147
Zoe exemplifica esse duplo movimento – desinvestir e identificar-se – que se
repete ao longo da vida. Ela vive várias vezes a situação de estar desinvestindo um
objeto decepcionante: seus namorados que estão imersos em conflitos pessoais
consideráveis e a deixam em “queda”. Green (1980, p. 262) diz que a queda é uma
experiência de desfalecimento psíquico. A identificação com a mãe morta também é
vivida novamente. Zoe, nesses momentos de separação, tem a sensação de que a
sua vida não tem sentido; um vazio a toma: talvez seja melhor e mais fácil morrer,
pois assim tudo cessaria. Durante esse processo de separação, no qual a solicitação
de sessões extras é grande, ela parece precisar de uma libidinização intensa. A
analista precisa sonhá-la viva, para que ela se mantenha viva.
Quando a tempestade passa, e se vislumbra a possibilidade de seu fim, o
analista vai poder respirar um pouco, assim como o analisando. No entanto, a vida
volta a ser ameaçada, a ficar sem ar, não há trégua. Um dos sintomas de Zoe é a
falta de ar. Green (1980, p. 265) faz a metáfora da hidra com mil cabeças: quando
uma das cabeças é cortada, temos a esperança de que o monstro tenha morrido,
mas outra cabeça aparece com toda a sua força destrutiva. Em Zoe, as cabeças de
hidra são os relacionamentos com os namorados. Quando ela consegue se separar
de um, outro aparece, tão destrutivo quanto o anterior, provocando devastações.
Dessa maneira, a sua fidelidade à mãe morta permanece. A mãe está incorporada
na figura dos namorados, e a cada decepção, Zoe vive novamente as marcas do
trauma.
Para ilustrar essa repetição que parece ser infinda, a analogia com o filme
Feitiço do tempo
1
(1993) é interessante. É pelas várias repetições que o
personagem vai compreendendo o que acontecia, e, a partir disso, podendo fazer
escolhas, que só foram possíveis depois de inúmeras vezes ele pisar na mesma
poça de água. E, apesar de conseguir fazer as escolhas mais importantes, algumas
repetições persistem. Uma representação autêntica e bem humorada do feitiço do
tempo no trauma inconsciente.
1
Título original: Grondhog Day, 1993. Direção de Harold Ramis. “Um repórter de metereologia parte para uma
pequena cidade a fim de cobrir um evento local, mas misteriosamente fica preso no tempo, repetindo sempre o
mesmo dia.” (www.adorocinema.com.br
, acesso em 04.08.09).
148
Zoe precisa repetir muitas vezes a situação traumática com a mãe, por meio
dos relacionamentos com os namorados, para conseguir fazer algumas escolhas,
mesmo que parciais.
Esse universo mortífero do complexo da mãe morta é representado no sonho
recorrente de Zoe, já referido acima: ela está dirigindo por uma estrada e, ao longo
do caminho, veêm-se pessoas mortas, estilhaçadas por todos os lados. Green
(1980, p. 276) escreve:
O objeto está “morto” (no sentido de não vivo, mesmo se não
tiver ocorrido nenhuma morte real); carrega por isto o Eu para um
universo deserto, mortífero. O luto branco da mãe induz o luto branco
da criança, enterrando uma parte de seu Eu na necrópole materna.
Nutrir a mãe morta significa então manter em segredo o mais antigo
amor pelo objeto primordial, sepultado pelo recalcamento primário da
separação mal sucedida entre os dois parceiros da fusão primária.
O amor pela mãe morta, como um vampiro, exige que o fluxo
sanguíneo da vida seja drenado para as profundezas da necrópole materna. Green
(1980 [1988]) descreve que são pessoas capazes de significativas realizações,
principalmente no plano intelectual. Podem até constituir família, mas não encontram
uma sensação de realização em nada do que fazem. A afetividade está hipotecada à
mãe morta.
Godfrind (1994) diz que a fidelidade à mãe hipoteca o encontro amoroso, a
sexualidade e a maternidade. O pacto negro com a mãe torna a realização da
feminilidade inacessível à filha. Zoe relata a sensação de que tem um balão inflado
dentro de si: está cheia, mas está vazia – está repleta de vazios.
Godfrind (1994) descreve suas pacientes de maneira próxima à descrição que
Green faz do complexo da mãe morta. São mulheres, profissionais, algumas
casadas e com filhos, mas não conseguem sentir a pulsação da vida. Essa autora
descreve mulheres, enquanto Green (1980, p. 261) nos fala de uma
“homossexualidade feminina nos dois sexos, pois para os meninos é a parte
149
feminina da personalidade que se expressa.”. Estamos no campo do que P. C.
Ribeiro (2000) denominou identificação feminina primária
1
.
Godfrind (1994) descreve um “núcleo” de perturbação da homossexualidade
primária
2
, um conflito particularmente dramático, o qual ela denomina pacto negro.
Essa autora relata mães deprimidas, imprevisíveis, imaturas, ou até francamente
psicóticas. Descreve um ódio salvador nessas mulheres, como uma proteção à
aproximação com a mãe, proximidade essa que poderia gerar uma experiência de
desintegração psíquica. Green (1980, p. 259) fala de um ódio secundário:
...a preservação de uma capacidade de superar o desespero
da perda do seio pela criação de um seio remendado, pedaço de
tecido cognitivo destinado a mascarar o buraco do desinvestimento,
enquanto que o ódio secundário e a excitação erótica formigam na
borda do abismo.
O ódio secundário e a excitação erótica mantêm o Eu fora do abismo, porém
sempre na sua borda. Lembro-me de Zoe ter me presenteado com um vaso de flores
que eram pimentinhas, quando precisei afastar-me por um período mais prolongado.
Estava ardida com o meu afastamento. Retomou o contato comigo quase dois anos
depois desse evento, quando o ardido arrefeceu. A violência apimentada dirigida à
analista é justamente aquela que a mãe originalmente não tinha esteio psíquico para
sustentar. Godfrind (1994) relata que é, justamente nos momentos de separação ou
de fim de análise, que esse ódio protetor de um amor intenso e mortífero eclode.
Esse ódio defensivo – violência de sobrevivente – é o que proporcionou a essas
mulheres uma organização psíquica, permitindo realizações pessoais, mesmo que
com um sabor empobrecido.
Green, assim como Godfrind, falam de uma nostalgia desse amor duplamente
perdido: “a morte na presença ou a ausência na vida”, diz Green (1980, p. 272).
Godfrind (1994) fala do vazio deixado pela presença da mãe.
1
Esse conceito é extensamente discutido no item: A identificação feminina primária: o pensamento de Paulo de
Carvalho Ribeiro.
2
Esse conceito também foi amplamente discutido no item: Homossexualidade primária e sua secundarização: o
pensamento de Jacqueline Godfrind. A aproximação entre os dois conceitos – identificação feminina primária e
homossexualidade primária – foi abordado no item: A trama, ou o que se trança a partir dos conceitos.
150
Como se separar do que não foi vivamente vinculado? Será esse um luto
possível? O eu se encontra em um paradoxo mortífero, nas bordas do abismo, da
queda, entre abismar e emergir. É nesse sentido que a feminilidade está
amalgamada com a constituição do eu; se o eu se constitui de forma frágil ou
lacunar, a feminilidade também é frágil e lacunar.
Green (1980, p. 270) escreve: “De fato, por trás do complexo da mãe morta,
por trás do luto branco da mãe, vislumbra-se a louca paixão de que ela é e continua
sendo objeto, que faz de seu luto uma experiência impossível”.
E Godfrind (1994, p. 137) diz: “atrás deste ódio selvagem, com tonalidades
absolutas e indefectíveis, há sempre um amor apaixonado pela mãe, amor
nostálgico tão violento que não pode eclodir...”.
Godfrind (1994), ao descrever a análise de pacientes que fizeram um pacto
negro com suas mães, relata que é, a partir de um movimento de desidentificação
com a mãe, que se torna possível emergir para lugares psíquicos mais arejados, não
mais a cripta (sem ar) erigida à mãe.
Esse movimento desidentificatório se faz, na análise, por um processo
doloroso e nem sempre bem sucedido. É a partir da qualidade de presença psíquica
e vivacidade – um psiquismo vivo e não morto – do analista, que pode se tornar
possível o doloroso luto por uma mãe morta psiquicamente. Separar-se da mãe
pode significar abandoná-la ao seu próprio inferno psíquico, o que também pode
gerar ódio ao analista propiciador dessa separação. É a qualidade psíquica do
analista que dá a dimensão do que não foi vivido com a mãe: uma presença viva,
para que uma ausência viva se estabeleça, e a separação se faça. Parece não ser
possível separar-se do que não aconteceu; esquecer-se de uma língua que não se
chegou a falar: a língua materna viva.
Quanto aos pais, Godfrind (1994) comenta que os de suas analisandas
pareciam ser inadequados, ausentes psiquicamente, por vezes perversos ou
incestuosos; incapazes de apreciar a feminilidade de suas filhas. Zoe relata um pai
incestuoso, que a olhava de uma maneira sexualizada. O desconforto com o pai a
remetia novamente ao laço negro com a mãe, e não favorecia uma separação entre
151
mãe e filha. A imagem de um casal parental e de uma cena primária sádica
1
é
recorrente em sonhos e fantasias de Zoe. Ela relata que está em um lugar deserto e
que um homem a persegue: está com muito medo porque provavelmente ele quer
estuprá-la. Inúmeras cenas de perseguição e violência aparecem recorrentemente
nos pesadelos de Zoe. Seu psiquismo está povoado de objetos estupradores,
marginais e assassinos.
Zoe elucida como o inconsciente da mãe em “estado de queda” marca a
constituição psíquica da filha e sua feminilidade; invade por efração, diria Jacques
André (1995)
2
. A libidinização se dá nas bordas do vazio, por isso o paradoxo: Zoe
foi libinizada pelo desejo de morte da mãe. Podemos pensar que para além da
identificação primária com a mãe morta, há em Zoe uma narcisização pelo desejo de
morte da mãe. Uma presença mortífera na mente da mãe, que paradoxalmente tem,
em parte, um efeito organizador: uma presença do desejo de morte no estado de
ausência psíquica da mãe. Se há um desinvestimento da mãe em relação à filha,
pelo seu (da mãe) estado psíquico em queda, há concomitantemente um
investimento pelo desejo de morte. Esse paradoxo em Zoe a protege de uma
ausência branca. Essa sutil característica em Zoe é parcialmente diferente da que
encontramos na descrição clínica do fenômeno da mãe morta, feita por Green
(1980).
Posto isto, apresento, brevemente, para complementar a discussão feita, um
texto do livro organizado por Gregório Kohon em homenagem aos setenta anos de
André Green, The Dead Mother (1999)
3
. O artigo é de Arnold H. Modell: The dead
mother syndrome and the reconstruction of trauma. Essa escolha foi feita pelo fato
de esse autor apresentar ideias que considero instigantes, ainda que discutíveis
dentro do universo teórico psicanalítico. Modell diz o seguinte: qualquer um que
tenha o complexo da mãe morta, não necessariamente vai desenvolver o que ele
chama de a síndrome da mãe morta. Considera que a ocorrência de mães
deprimidas é relativamente comum na infância de uma criança, e que poucas
desenvolvem um funcionamento patológico grave. Existe uma variabilidade
individual na resposta da criança a uma mãe indisponível psiquicamente.
1
Green (1980, p. 267) escreve: “A interpretação clássica da cena primária como cena sádica, mas onde o fato
essencial é que a mãe ou não goza, mas sofre, ou então goza apesar de si mesma, constrangida pela violência
paterna.”.
2
Questão apresentada no item O pensamento de Jacques André sobre passividade, sedução e feminilidade.
3
Agradeço essa referência à colega Tayla Candi.
152
A distinção que Modell (1999, p. 84) faz entre o complexo da mãe morta e a
síndrome é a seguinte: na síndrome há uma identificação primária total com a mãe
morta, que é uma das alternativas entre muitas, o que ilustra a variabilidade de
respostas individuais ao trauma. A identificação primária com a mãe morta é o
destino mais patológico. A variabilidade de resposta é devida às características
individuais e únicas de cada criança, por exemplo, as capacidades cognitivas e de
aceitar paradoxos
1
.
Modell (1999, p. 84) considera que mesmo diante de uma mãe deprimida e
emocionalmente indisponível, não necessariamente a criança fará uma identificação
total com ela. A criança poderá se identificar com diferenças e não similaridades,
seguindo o caminho das identificações por oposição à mãe. Nesse caso, a criança
não ficará perdida no psiquismo da mãe, mas construirá uma individualidade
baseada na separação, ou oposição. Por exemplo, em vez de incorporar o estado de
insensibilidade psíquica da mãe, a criança poderá desenvolver uma
hipersensibilidade compensatória, transformando-se em uma criança extremamente
atenta ao estado psíquico do outro. Hipersensibilidade à vida psíquica própria ou do
outro parece ser uma via compensatória para uma criança que foi exposta a uma
mãe psiquicamente morta
2
.
É importante considerar que as identificações nunca são únicas, mas, sim,
múltiplas e contraditórias (P. C. Ribeiro, 1993, p. 78). E, nesse momento inicial da
constituição do eu, as identificações são predominantemente miméticas ou
espelhadas. Uma identificação por oposição já implicaria um eu minimamente
unificado, capaz de se opor. Essa questão metapsicológica não é contemplada no
texto de Modell.
Como psicanalistas, assim penso, precisamos ser cautelosos quanto a
relações de causalidades simples e mesmo quanto às complexas, ou determinismos
psíquicos
3
. Mães suficientemente boas, talvez sejam raras. Mesmo a presença de
uma mãe predominantemente viva psiquicamente - apesar de ser o melhor berço
1
As características individuais também remetem, assim penso, à inveja primária (Klein) e a tolerância à
frustração (Bion).
2
Modell (1999, p. 84) suspeita que essa hipersensibilidade não seja algo incomum entre aqueles que escolheram
ser analistas.
3
Modell (1994, p. 81), citando um autor chamado Peter Wolff (1996), diz que a relação entre mães deprimidas
no período da infância e a psicopatologia na vida adulta é apenas uma analogia. Considero essa discussão ampla
e fora do alcance deste trabalho, mas importante fazer um breve comentário.
153
psíquico que alguém pode ter - não é peremptória de uma constituição psíquica
razoavelmente boa. Essa constituição é extremamente plástica e única. Está aí a
beleza e a monstruosidade do humano.
Por fim, a história sempre se constrói a posteriori. Green (1980, p. 281)
termina seu texto com uma otimista frase, a qual empresto para também finalizar
essa discussão:
A lição da mãe morta é que ela também tem de morrer um dia
para que uma outra seja amada. Mas esta morte deve ser lenta e
doce para que a lembrança de seu amor não pereça e nutra o amor
que generosamente ela oferecerá àquela que tomar o seu lugar.
Poucas análises chegam até esse lugar: arejado e vivo.
154
Liz, entre a ilha e o continente
...de mãe para filha, não existe jamais história, somente o retorno do mesmo.
(Jacques André, 2003)
Na primeira vez em que estive com Liz, recebi-a com sua mãe
1
. Enquanto a
mãe falava, permaneceu com a cabeça baixa, os olhos fixos na manta que cobre o
divã, cujas franjas penteava, separando-as uma a uma. Essa imagem anunciava-
me a trajetória analítica a ser percorrida – pentear e separar franjas entre mãe e
filha. Hoje me parece que a mãe esteve presente nesse primeiro encontro quase
que para delegar seu projeto pessoal:
– Transforme minha filha no que eu sonhei para ela: ser o que eu
não fui.
Essa demanda da mãe direcionada à filha já prenunciava a cilada narcísica
(BIDAUD, 1998) na qual estavam aprisionadas.
A mãe relatou-me os planos de viagem da filha. Liz queria viajar e manter-se
no exterior por um bom tempo. Exterior da mãe? Não era possível para Liz
permanecer na pátria mãe. Estranhei o relativo entusiasmo com que a mãe apoiava
tal projeto de exterioridade. Desse primeiro encontro, ficou a minha apreensão de
como seria encontrar Liz desacompanhada da mãe. LIz esboçou apenas um tímido
olhar ao sair da sala e um até logo quase inaudível. Diante da mãe, ela desaparecia.
Na segunda entrevista, sem a mãe, encontro outra Liz; tímida e com sede de
compreensão do que ela vivia na interioridade da relação com sua mãe. Revelou-me
de imediato que a mãe queria que ela viajasse para um país distante, terra natal da
família, com a intenção de apartá-la do namorado. O namoro já durava mais de um
ano, mas era inaceitável para a mãe. Tal estranho não poderia merecer a estima da
filha. Era melhor sustentar a distância da filha já que implicava a distância do
namorado, que com certeza seria esquecido.
1
A mãe permaneceu ao longo de inúmeras sessões, não mais na sua realidade concreta, mas como um
“personagem” na sessão. Não importava mais, dentro da sala de análise, a indistinguível composição de tal
personagem: o amálgama entre o intrapsíquico e o intersubjetivo.
155
A situação era reincidente. Insistia na mãe, a impossibilidade de aceitação de
um parceiro para a filha. A relação de Liz com a mãe lembra o mito de Deméter e
Perséfone, no qual a sexualidade da filha é vivida como uma traição à mãe. Liz
sentia-se muito confusa, pois sempre confiou no que a mãe falava; a mãe sempre
soube o que era melhor para ela. Relatou-me que na infância tinha a sensação de
que a mãe sabia absolutamente tudo do que acontecia com ela; a mãe estava
sempre com ela, Liz sentia-se segura assim. Aos poucos, foi estranhando a mãe não
saber exatamente tudo; passou, então, a relatar o seu dia. Ela desejava essa
sensação de uníssono com a mãe; contava tudo nos mínimos detalhes, nada podia
ficar sem ser partilhado com a mãe. Penso ser essa descrição ilustrativa do conceito
de ilusão simbiótica (HALBERSTADT-FREUD, 2001).
Um sintoma bulímico surgiu em Liz na adolescência após uma separação
momentânea da mãe nas férias. Liz passou um mês em uma cidade distante com
uma amiga e sua família. Ao retornar, os vômitos já estavam frequentes. Mãe e filha
assustaram-se com a situação e uniram-se novamente em função da saúde de Liz.
A semanal devido ao tratamento, tanto da mãe, quanto da filha, trouxeram
agradáveis tardes compartilhadas. Liz relata uma prazerosa sensação dessas
tardes, nas quais a mãe se dedicava a ela, ou talvez seja mais preciso dizer, a elas.
A paixão mãe-filha se expressa aqui com todo o seu sabor e terror demetriano
(BIDAUD, 1998).
Essa aproximação entre mãe e filha estruturou algo que tinha se esgarçado
com o turbilhão do início da adolescência, e apagou, parcialmente, o incêndio das
diferenças que já se delineavam entre elas. O transtorno bulímico de Liz cedeu
rapidamente, uma vez que já cumprira sua dúplice e paradoxal função manter
tanto uma indiferenciação, quanto uma diferenciação entre mãe e filha
1
. Sem mais
precisar vomitar conteúdos mentais tão indigestos (a mãe? a dificuldade de
diferenciar-se? ...), Liz passou, então, ao trabalho da elaboração do que era vivido.
Havia situações na vida dela – o namorado e a escolha profissional – que não
pertenciam à filha sonhada narcisicamente pela mãe. Não ser a realização do sonho
da mãe era um custo indigesto. Liz não imaginara ter de sustentar psiquicamente
1
É o sintoma bulímico que favorece a entrada de um terceiro na dupla, primeiramente o tratamento ambulatorial,
depois a analista.
156
essa situação. Pairava na densidade da relação, a ameaça de que a diferenciação
entre mãe e filha significaria o não reconhecimento da existência da filha.
Aquilo que era inegociável nos projetos sonhados pela mãe para sua filha
mostrou-se de uma violência narcísica intensa. A maldição revelou-se: caso Liz
viesse a se casar com alguém que não tivesse como origem a ilha natal da mãe (não
poderia ser do continente), nem o casamento nem seus frutos, os filhos, seriam
reconhecidos.
Essa não era a mãe sonhada pela filha. O violento desencontro fez Liz pensar
nas origens da mãe, no fato de o pai ser da mesma ilha. Lembrou-se até que
existiam casamentos arranjados na família. A irmã da mãe, que se casou com um
estrangeiro (brasileiro), era excluída e não tinha tido filhos, imagino que para não
corporificar em um filho a miscigenação tão amaldiçoada. A mãe de Liz tinha se
submetido à exigência da própria mãe (avó de Liz): casar-se com alguém da ilha.
Tal situação Ilustra a transmissão entre gerações na descendência feminina:
a mãe de Liz impõe à filha o que sua própria mãe impôs a ela; não há história,
apenas a repetição do mesmo. A mãe (Zilda) manifesta com seu descontentamento
com o próprio casamento, mesmo assim, infringe trajetória semelhante à filha. Em
uma determinada sessão, a analisanda fala que a mãe tinha comentado que nunca
se casaria com um homem de baixa estatura como o namorado de Liz. Fico
surpresa e pergunto qual era a estatura do pai, ao que ela me responde também
surpreendida por ter se dado conta da pequena diferença: dois centímetros a mais
que o meu namorado. Um conluio inconsciente parece se estabelecer entre elas; as
histórias não podem ser conectadas, pensadas. Nesse aspecto – possibilidade de
pensar –, a análise é possível no “fio da navalha”, sob o risco constante de
rompimento.
Liz oscilava entre a raiva e a preocupação com a mãe. A manifestação do
incômodo em relação a ela é uma conquista da análise; o prazer de estar em
uníssono transforma-se em raiva. A analista, ao reconhecer (sutilmente) as
diferenças entre filha e mãe, parece desempenhar a função paterna, do terceiro, tão
ausente psiquicamente na vida de Liz. A presença do terceiro, como um lugar
psíquico, na mente da analista, é nesses casos um instrumento importante do
trabalho.
157
Liz desejava que a mãe ampliasse seu continente para comportar as
diferenças entre elas, isso, porém, não parece ser possível. O delineamento de
fronteiras identitárias entre mãe e filha gera sentimentos persecutórios em ambas.
Liz relatou que a mãe a monitorava por satélite. Desejava estudar em um lugar
distante de São Paulo, fora da área de cobertura do satélite mãe, no entanto, nada
escapa a um satélite. Quanto mais incompreendida ela se sentia, mais distância
queria. Esse foi um momento interessante e delicado da sua análise; ela
compartilhava comigo – outra mulher – seus ressentimentos com a mãe. Eu me
preocupava/ocupava com ambas, já que essa corda esticada, tencionada, poderia
romper a análise.
Concomitantemente a esses relatos, Liz comparecia muitas vezes ao
consultório, acompanhada do seu namorado, que permanecia na sala de espera. Eu
o recebia na minha “casa” analítica e não me incomodava com sua presença,
apenas pensava no seu significado. Liz contou-me que a mãe nunca havia recebido
o namorado na sua casa; os telefonemas também eram proibidos: ele não podia
ocupar a linha. Liz não poderia ter outras ligações que a ocupassem a não ser
aquela com a mãe. Dispensável dizer que o meu conforto mental com a presença do
namorado na sala de espera teve um efeito terapêutico considerável, sem que uma
palavra fosse dita, apenas a vivência da situação. A experiência com a “mãe
analista” era de um continente que comportava o vínculo significativo com o
namorado. A analista comportava um terceiro na sala de espera.
No entanto, o laço demetriano (BIDAUD, 1998) culminou na proibição
explícita do namoro, o que acarretou restrições severas aos projetos de vida de Liz
que implicavam o investimento financeiro da mãe. A reação de Liz foi voltar a
vomitar; o desejo de ir para longe, de ir para o estrangeiro, intensificou-se.
Espantada, Liz se perguntou onde estaria aquela mãe das tardes partilhadas tão
prazerosamente. Seria a mesma? Parecia outra:
– A minha mãe sempre me elogia, admira a maneira como eu me
visto, sempre arrumada, de salto. Apresenta-me para as amigas com
orgulho. Será que por isso ninguém é bom para ser meu namorado!
158
Liz constata o ciúme materno, com tons de paranóia. A mãe a espiava para
saber se estava sendo traída. O constrangimento com a situação, e o sofrimento que
gerou, colaboraram para que Liz se diferenciasse, percebendo algo na mente da
mãe que lhe causava estranheza, como se a ilha se desprendesse do continente em
um ato de estranhamento
1
.
Ao longo de várias sessões, Liz pôde falar da mãe tentando compreender sua
vida, sua origem, sua história familiar. Olhava para a mãe como um outro
diferenciado de si. A mãe para a qual ela precisava relatar tudo que acontecia
parecia distante. Era preciso escolher o que falar para a mãe, o que ela poderia
compartilhar, o que não era compreensível ao universo materno, que já não se
confundia, não abarcava a totalidade do universo de Liz.
Destaca-se nessa trajetória analítica que, ao definir os contornos de sua
identidade, Liz optou por uma carreira profissional que encontrara a princípio
desaprovação intensa da mãe e da família. Essa reação fez com que ela
confirmasse para si mesma a escolha, definindo um território próprio dentro do seu
grupo familiar e, principalmente, diante da mãe que demorou a aceitar a opção
profissional da filha.
Como a análise acompanha o movimento de avanços e retrocessos da mente
(esperamos com um reservado otimismo que seja em uma espiral progressiva), Liz,
diante da dor e da angústia da perda do namorado, retorna à sua protetora adoração
materna – a mãe é sua “fã de carteirinha”, jamais abandonará o posto. Tudo é feito
em nome do amor, como também foi expresso por Eva no filme Sonata de Outono. A
mãe é adorada como um totem:
– Quando eu era pequena eu precisava contar tudo o que me
acontecia para a minha mãe, se eu não contasse algo de muito ruim
aconteceria, hoje preciso contar tudo que penso e sinto, fico ansiosa
para voltar para casa e ficar só com ela.
Recentemente, Liz chegou à sessão, dizendo-me que a mãe achava estar na
hora de parar a análise. Por isso, aquela seria a nossa penúltima sessão.
1
Lembremo-nos que quando o bebê, por volta do sexto mês, começa a estranhar outros adultos que não são a
mãe, ele está começando a reconhecer que ele e a mãe não são um.
159
Conversamos a respeito de como estava difícil falar (pensar) em nome dela. O
pensamento de Liz tinha voltado a ser um apêndice da mãe. E, apesar de
reconhecer isso na sessão comigo, ela sentia o universo materno quase como um
campo magnético que exercia uma atração irresistível.
– Parece que quando eu saio lá fora só existe a minha mãe.
Mãe e filha formam um dueto único no qual o vínculo comigo como analista
fica ameaçado e ameaçador. Tanto para a filha, quanto para a mãe, torna-se
inaceitável o lugar do terceiro nessa união tissular (BIDAUD, 1998). Assim como
existe apenas um sol, no universo de Liz, existe apenas a mãe e sua órbita
magnética. Halberstadt-Freud (2001, p. 158) diz: “... a mãe tenderá a continuar a
comportar-se como se fosse indispensável, muito depois de ter cessado de sê-lo.
Será incapaz de permitir a separação, o que implicaria em não ser a primeira na
mente da criança.”.
O esboço de uma ilha chamada Liz surgiu no horizonte de um percurso
analítico, sob o risco constante consentido e desejado da inundação materna.
160
A trama conceitual em Liz: ilusão simbiótica e cilada narcísica – o império do
mesmo
Na construção clínica de Liz, os conceitos já estão entremeados no próprio
texto. Penso que cabe apenas uma breve retomada, diferentemente da maneira
como foi feita a trama conceitual em Zoe; característica justificada pela questão
narcísica de Liz: o empobrecimento do vínculo com a analista.
A questão narcísica é o que impera em Liz. A dupla mãe e filha tem uma
estrutura na qual a diferenciação é território conquistado a duras penas. Situação
esta que lembra os diques da Holanda, constantemente monitorados para que o mar
(a mãe) não invada e inunde o que antes parecia ser terra firme, e que anteriormente
foi mar. Tal situação lembra a questão de J. André (2003): - Como o mesmo
engendra um outro?
Será a função da análise, para Liz, a construção e a manutenção de diques
psíquicos? Há uma força que insiste, pressiona os diques, para que tudo seja o
mesmo – o mar e a mãe
1
. Diante do império do mesmo (J. André, 2003), não há
história e não há sexualidade genital, possível apenas a partir do reconhecimento
das diferenças.
O dique pode ser uma boa representação da função paterna, tão frágil em Liz,
função essa a de separar e manter fronteiras; pentear e espaçar franjas entre mãe e
filha. E mesmo tendo a impressão de que terras foram conquistadas, diante da dor
psíquica e da frustração, os diques são rompidos e ficamos perante uma paisagem
na qual predomina a repetição, desolação do mesmo. E qualquer sombra de um
terceiro – a analista – precisa ser apagada.
Com os namorados, Liz parece buscar o uníssono ilusório vivido
primeiramente com a mãe – a ilusão simbiótica. Qualquer diferença desencanta. O
par precisa partilhar os mínimos detalhes do cotidiano, estar completamente inserido
nas atividades diárias. O homem é o sucessor do que foi sonhado, e parcialmente
vivido com a mãe. É, então, sonho de partilhar tudo, para que a impressão de serem
1
Apenas para lembra que mère (mãe) e mer (mar) em Francês tem pronúncia semelhante.
161
duas pessoas desapareça - um eu para dois. Imagino que a sexualidade dentro
desse império do mesmo permaneça inacessível, a ponto de ser um assunto
ausente em Liz. Existe a escolha de um namorado, mas não é um homem, é apenas
o herdeiro momentâneo da mãe. Em momentos de mudança de parceiro, a mãe está
sempre de prontidão no banco de reservas. Os namorados estão dentro de uma
sucessão de relacionamentos que se assemelham; o plural é mera ilusão, estamos
sempre diante do mesmo.
Quanto ao sintoma bulímico, podemos pensar em sua função paradoxal:
separar e manter um uníssono entre mãe e filha. Em Liz, os vômitos aparecem
quando ela está inundada pela mãe, e não consegue pensar com mente própria.
Cabe lembrar que a inundação é consentida e desejada por ela; o vômito é quase
um efeito colateral de algo desejado – ser um com a mãe. É, também, uma
sinalização de que os diques foram rompidos. Os vômitos desaparecem quando as
fronteiras são mantidas, mesmo que em parte e momentaneamente.
Mãe e filha partilham da paixão pelo mesmo e pela ausência de diferenças.
Temos a impressão de que uma história se constrói, mas talvez seja apenas a
reprodução do idêntico, com novas roupagens, de geração a geração.
162
Entre Zoe e Liz
A característica concisa da trama conceitual em Liz, abriu espaço para um
cotejamento conceitual e clínico das duas construções, expresso no que se segue.
Quanto à identificação feminina primária, podemos pensar que em Liz se
deu pela paixão por ser um com a mãe: universo narcísico unificado, no entanto,
fechado. Em Zoe, deu-se com uma mãe em “queda” psíquica, uma mãe morta
psiquicamente e indisponível. Tanto Zoe quanto Liz revivem com os namorados, o
que primeiramente foi uma experiência com a mãe.
Uma diferença entre Liz e Zoe parece ser o fato de que, para Liz, o que foi
vivido com a mãe é um estado mental no qual a unificação narcísica já produzia
efeitos estruturantes para um eu incipiente. Para Zoe, a experiência é de queda, de
desagregação, de ameaça e de desintegração do eu.
Os rígidos e fechados ideais narcísicos da mãe de Liz proporcionaram uma
experiência mais integrada, no entanto, tenho a impressão que menos passível de
transformação, justamente por sua austeridade narcísica. A desintegração de Zoe,
mesmo trazendo riscos de queda, apresenta-se mais receptiva a transformações.
O vínculo com a analista é frágil em Liz, na beira do abismo; rompe-se
facilmente. Já com Zoe, é intenso, significativo, exige a disponibilidade de oferecer a
mão – a mãe –, com toda força possível, para que ela não caia no abismo da
identificação com a mãe morta, ou talvez seja mais fidedigno dizer, sua identificação
com o desejo de morte da mãe.
Se a austeridade narcísica em Liz a estruturou, também promoveu um
aprisionamento. Se a falta dessa integração narcísica colocou Zoe em risco, por
outro lado, ofereceu uma capacidade de transformação menos presente em Liz.
A identificação como a marca da paixão
1
, com suas peculiares características
a cada dupla mãe e filha, evidencia-se nas duas construções. Marca que é o crivo
para as escolhas posteriores, constatação feita por Freud (1938, p. 217): a mãe
como o mais forte objeto amoroso e o protótipo das relações amorosas posteriores,
1
“As identificações se apresentam, marcas de relações, marcas de paixões.” (NOSEK, L., 1997).
163
para ambos os sexos. Essa primeira paixão sensual com a mãe é vivida novamente
na vida adulta com os namorados.
E o pai? O pai é experienciado primeiramente na mente da mãe, e
posteriormente, como um objeto já parcialmente integrado. O estatuto do pai como
objeto é diverso do estatuto da mãe como objeto
1
.
Para Liz, o pai
2
é alguém regrado, provedor, no entanto, sempre distante e
alheio às questões afetivas. É alguém que cumpre seu papel com distanciamento. O
pai de Liz tem ideais narcísicos impregnados de grandiosidade, a partir dos quais, a
filha, mesmo tendo conquistas profissionais consideráveis, não é objeto de
admiração, e sim de vergonha, pois tudo poderia ser melhor do que é.
Para Zoe, o pai é violento e sexualmente invasivo. A imagem psíquica
construída por ela, que expressa o que parece ter sido vivido com o pai, é: Zoe está
em um lugar deserto, caminha tranquilamente, de repente percebe que há um
homem atrás dela, começa a temer ser violentada, esquiva-se de várias maneiras
até conseguir se desvencilhar da situação.
Nas duas construções clínicas, o pai não era uma segunda chance, pelo
contrário, a frustração remetia a filha novamente à mãe. A experiência psíquica em
Zoe é de um pai que a enxergou como mulher e não conseguiu manter-se no limite
de uma relação sexualmente interditada. Em Liz, a experiência é de um pai que não
a vê, muito menos como mulher. A função do pai de apreciar a feminilidade, olhar
sua filha como mulher, reconhecendo a interdição dessa relação, não aconteceu em
Liz, aconteceu em Zoe, mas sem o reconhecimento da interdição.
A situação de Zoe com o pai é algo mais disruptivo e desintegrador, no
entanto proporcionou a ela um acesso a encontros sexuais e amorosos com os
homens. Em Liz, a sexualidade parece não existir.
Evidencia-se que a estrutura narcísica de Liz proporciona uma adequação
rígida a vários aspectos da vida. A fixidez dificulta lidar com o imprevisível das
emoções. Em Zoe, a falta de estrutura é ameaçadora; apesar disso, permite uma
maleabilidade que vem proporcionar várias transformações. Entre Zoe e Liz, há o
espaço entre um eu feminino que tende a desintegração e um eu feminino que tende
1
Discussão feita no item O pai no olhar da mãe.
2
O pai que está na mente de Liz e de Zoe.
164
a integração, o que traz o imponderável da flexibilidade a uma e os riscos da
austeridade a outra.
Entre Liz e Zoe há um profundo apego à mãe. Liz pelo encantamento
narcísico da unidade idílica mãe e filha; Zoe pela tentativa estóica de oferecer abrigo
– à mãe e a ela – em risco iminente de queda.
165
NO HORIZONTE SEM-FIM...
Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...
(João Guimarães Rosa, 1997)
166
O espaço de uma vida se dá entre a cesura do nascimento e a cesura da
morte. Contudo, há ecos históricos e psíquicos de uma vida, pelo menos
1
por duas
gerações que a antecedem e duas gerações que a sucedem.
O espaço de uma elaboração teórico-clínica não escapa a essa
temporalidade turvada quanto à delimitação de suas fronteiras. Iniciei esta trajetória
movida por questões que se abriram no fechamento do mestrado. Termino com a
prazerosa sensação de expansão do universo no qual mergulhei e emergi, com a
noção de que uma expansão leva a outra. E podemos apenas falar de uma parte,
daquela que nos cabe a cada momento.
Fazendo-me herdeira do meu quinhão, penso a separação entre mães e filhas
como um processo nas fronteiras do sem-fim. A linha do horizonte é apenas a
hipótese imaginária de um limite; nesse sentido, o feminino é azul
2
. É o mar no qual
a vida evoluiu em sua conjunção com o céu. Limite ilusório, pois no horizonte não é
possível distinguir os azuis – do mar e do céu, do eu e do outro. Ao contemplarmos
essa linha imaginária, temos tanto a experiência de entrega tranquilizadora, quanto
de angústia de dissolução.
Tendo esse horizonte como referência metafórica, trago, sucintamente,
alguns dos interlocutores que escolhi para esta trajetória, a fim de auxiliar-me no
desassossegado desejo de término, considerando que, em cada item desenvolvido,
já estão presentes, breves finalizações.
Halberstadt-Freud (2001) finda seu texto retomando a pergunta de Freud: O
que as mulheres querem? As meninas – e, posteriormente, as mulheres – pouco
expressam (ou não expressam) seu anseio em serem amadas por suas mães. Os
dois pólos da ambivalência são negados: tanto o ódio, quanto o profundo amor. O
ódio silenciado em relação à mãe resulta em culpa e pode se descarregar em
relações masoquistas com homens ou com a própria mãe. As mulheres
inconscientemente ainda desejam seu primeiro amor, a mãe. A elaboração desse
vínculo, primário e primordial para a mulher, faz-se necessária. O ódio e o profundo
amor pela mãe precisam ser elaborados: “... isso significa que tanto o tabu do amor
1
Pelo menos duas, podem ser três ou quatro, ou mais.
2
Expressão que surgiu durante a I Jornada do Feminino – Departamento Formação em Psicanálise, Inst. Sedes
Sapientiae, junho de 2008.
167
homossexual quanto o da agressão feminina precisam ser negociados”
(HALBERSTADT-FREUD, 2001, p. 166).
As identificações entre mães e filhas persistem ao longo da vida e são
marcadas por movimentos dialéticos progressivos e regressivos: “Simpática ou não,
a mãe como objeto interno de desejo e de identificação estará com a filha pelo resto
da vida” (HALBERSTADT-FREUD, 2001, p. 154). Como no mito de Deméter e
Perséfone, o culto às duas deusas permanece ao longo do tempo, na transição entre
as estações, para que os campos fertilizem. A fertilidade – entenda-se também a
criatividade – depende de um trânsito psíquico suficientemente bom entre o mundo
da mãe e o mundo do pai, entre masculinidade e feminilidade, ou seja, entre os
pólos indissociáveis e dialéticos da bissexualidade psíquica.
Para a menina ser uma mulher, ela corre o risco (pela identificação) constante
de afogamento – perda de fronteiras identitárias – no “corpo/psiquismo oceânico da
mãe” (GODFRIND, 1990). A agressividade, que pode se transformar em hostilidade
entre mães e filhas, tem a função de um salvamento parcial, pois separa e ata ao
mesmo tempo.
A intuição de Freud (1933[1932]) de que as verdadeiras origens da hostilidade
entre mães e filhas restam por serem encontradas, vem a propósito. A compreensão
das acusações da filha, dirigidas à mãe pela ausência do pênis, é, poderíamos dizer,
uma teoria tranquilizadora e organizadora. Há um pênis reclamado e invejado, entre
a mãe e a filha, que as protege de um risco de afogamento identitário. O pênis, o
pai, ou a função paterna, são como uma bóia salva-vidas, ou melhor, salva-eus.
Representa o movimento na direção do que se projeta para fora, o que lança o eu na
sua externalidade e representabilidade.
O binômio ter ou não ter um pênis parece oferecer uma representação que
organiza o psiquismo, diante da dolorosa experiência de perda do amor onipotente
do infans (ANDRÉ, J., 1996 p.131). O bebê menina, ao ver sua mãe interessada no
pai (ou o que o representa), pode pensar que a presença de um pênis é a garantia
de um amor sem limites. Se o bebê perde gradativamente a onipotência do amor
infantil, alguém possui essa prerrogativa, preferencialmente alguém com um pênis,
representando, dessa maneira, a dolorosa experiência da perda, pois não existe
nem o objeto e nem o eu, sem a experiência da perda.
168
Entre mães e filhas, a hostilidade talvez seja o eco distante da dor da perda
de um momento inicial de ilusão onipotente do amor. A vida psíquica se faz no
interjogo entre ilusão e desilusão; o terceiro é a desilusão da díade mãe e filha.
Desejado, bem-vindo, invejado, idealizado e odiado. Cena psíquica tão bem
representada na tragédia de Electra, aprisionada pela hostilidade. A hostilidade é o
que resta do voraz desejo de ser completamente amada pela mãe. Atada à
hostilidade, Electra não tem acesso à sua realização como mulher.
Expressando de maneira diversa, encontrei ao longo deste trabalho duas
funções e dois sentidos para a hostilidade entre mãe e filha. A primeira – função e
sentido – é a compreensão da hostilidade como o que resta do desejo onipotente de
ser um com a mãe. A nostalgia do que nunca foi, nem nunca será; como o poeta diz:
“uma só alma-corpo, um só, um!...” (GUIMARÃES ROSA, 1997, p. 132). A segunda
– função e sentido – é promover um distanciamento, e, dessa forma, garantir um
território próprio, uma individualidade. Da mesma forma que uma criança pequena
diz recorrentemente “não”, com a função de defender seu eu incipiente.
A hostilidade – exacerbada e protetora, entre mãe e filha – parece ser
favorecida por um terreno narcísico sutilmente mais escorregadio: o mesmo que
engendra o mesmo (ANDRÉ, J., 2003). Se os filhos são em parte projetos narcísicos
dos pais, entre os pares identificatórios – mãe e filha ou pai e filho –, esse
investimento narcísico necessário pode sofrer um tipo de descompensação, levando
a excessos ou a ausências, propiciadoras de formações psíquicas mais ou menos
patológicas, sendo que, na dupla mãe e filha, ainda há um elemento a mais: o fato
de a mãe ser o objeto de identificação tanto primário, quanto secundário.
Constatei, com Klein e Kristeva, que a ambiguidade e a culpa estão mais
presentes entre mãe e filha. A menina precisa se identificar com a mãe arcaica –
atacada e destruída pelas fantasias sádicas do bebê, sadismo esse expresso nas
falas de Electra, sem culpa. O amor dos primórdios é cruel e bárbaro, Melanie Klein
deixou-nos esse importante legado. Para reparar é necessário identificar-se com a
mãe destruída, e para consolidar as identificações é preciso desejar reparar
1
. O
sentimento de culpa nos humaniza, e também pode nos aprisionar.
1
Agradeço a sugestão feita pela Profa. Dra. Elisa Uchoa Cintra por ocasião do exame de qualificação.
169
A mãe, ao cuidar de sua menina, pode tanto ter a experiência de reparação e
identificação com sua própria mãe, quanto ficar aterrorizada pelas suas fantasias.
Essas fantasias inconscientes (phantasia) materna podem gerar ou potencializar
experiências de terror em seu bebê. Caso prevaleça uma insuficiência na
capacidade de rêverie da mãe, torna-se difícil ou impossível um encontro
satisfatório. Isso pode ser desorganizador da feminilidade na trajetória de menina à
mulher. Essa feminilidade mortífera de mãe em filha é desvelada em Zoe e em Eva
do filme Sonata de Outono.
A relação de uma mãe com seu bebê menino parte da constatação da
alteridade sexual que representa o filho
1
. Além disso, para o menino, existe uma
possibilidade minimamente mais arejada: a identificação secundária é com o pai,
experienciado desde o início como um objeto total; averiguação feita por Ogden
(1992) e Guignard (1997, 2002)
2
. E, também, explicitada por Green, de maneira
diversa, a partir de Freud: a diferenciação entre o objeto mãe e objeto pai é uma
questão de distância. A relação com a mãe será o protótipo de todas as relações
posteriores – um contato corpo a corpo; a relação com o pai implica, de imediato,
certo distanciamento, que permite a fascinação pelo objeto.
Dizendo de outra maneira, pude constatar que a relação com o pai tende a
ser menos sobrecarregada de ambiguidade e culpa, tanto para o menino, quanto
para a menina. O estatuto da mãe e do pai como objeto são diversos; isso implica
relações mais ou menos impregnadas pelas fantasias arcaicas. Se há um inevitável
corpo a corpo com a mãe, a relação com o pai tem o privilégio de um espaço mais
arejado.
A mãe ser o objeto primário em ambos os sexos levou-me a percorrer um
vasto campo teórico para a compreensão da constituição de um eu, no caso, de um
eu feminino. A parte central deste texto é o testemunho dessa trajetória, a qual foi
para mim um mapa de orientação. Espero que tenha serventia para outros que
1
Considerando que a mãe tem condições psíquicas para esta diferenciação, caso não tenha, há o risco de uma
relação fusional entre a mãe e seu bebê menino, com sérias conseqüências para a construção da masculidade.
2
A partir de Klein podemos entrever, assim penso, o estatuto do pai como objeto, mas, somente nos textos de
Ogden e Guignard há a explicitação desse estatuto. Cito Klein (1928, p. 225): “A partir da identificação inicial
com a mãe, que ocorre sob a forte preponderância do nível sádico-anal, a menina desenvolve o ódio e o ciúme,
criando um superego cruel calcado na imago da mãe. O superego que se forma no mesmo estágio a partir da
identificação com o pai também pode ser ameaçador e causar ansiedade, mas nunca parece atingir as mesmas
proporções daquele criado a partir da identificação com a mãe.”
170
desejarem embrenhar-se nesse território, a feminilidade, vasto de conceitos
imbricados.
Como pesquisadora, penso ser fundamental a concomitante aproximação e
explicitação da complexidade e diversidade conceitual presente no campo teórico da
psicanálise. Tive a intenção de promover um diálogo que permitisse tanto
justaposições, quanto evidenciar diferenças, muitas vezes encobertas por
nomeações semelhantes. Esse trabalho permitiu-me o exercício de diferenciação e
diálogo com conceitos pertencentes a arcabouços teóricos distintos: identificação
feminina primária e secundária, homossexualidade primária e secundária, fase da
feminilidade, o materno primário e o feminino primário.
A questão principal há uma especificidade na trajetória bebê-menina-
mulher? finaliza-se com uma confirmação e explicitação das nuances do que é
específico à trajetória feminina. Existe entre mãe e filha a particularidade da
semelhança, o mesmo que engendra o mesmo (ANDRÉ, J,, 2003)
1
, e os riscos
pontecializados pela similaridade: a cilada narcísica e a ilusão simbiótica.
Se nascemos psiquicamente em um campo de indiferenciação, a
diferenciação é fruto de um árduo processo psíquico. Nesse sentido, o
reconhecimento da diferença eu e outro, da diferença dos sexos e da diferenças das
gerações, é o ápice de uma longa trajetória. Considerando que uma vez conquistada
uma condição psíquica de diferenciação, ela é sempre passível de perda, no sentido
de que a elaboração das diferenças é um contínuo trabalho psíquico; não há trono
na vida psíquica. A expressão freudiana – sua majestade o bebê – é apenas uma
ilusão onipotente e necessária, para posteriormente sermos lançados à nossa
condição de destronados. A partir dessa posição, entendo que a alteridade – do
outro, do sexo e das gerações – é sempre incerta e depressiva.
Homens e mulheres, nossa origem é feminina. Essa origem traz
especificidades tanto a um quanto a outro. Ative-me preponderantemente à trajetória
bebê, menina e mulher. A menina está duplamente ligada à mãe, pela identificação
primária e como objeto de identificação no processo de vir a ser mulher e, também,
mãe. Esse laço – muito apertado – passa a ser desconfortável (HALBERSTADT-
FREUD, 2001).
1
É uma sutil diferença que esse pequeno notável – o pênis – evidencia e representa.
171
Halberstadt-Freud (2001) nos fala, no final do seu artigo, que a mãe deveria
ser tão íntima quanto distante. Podemos pensar em uma tensão paradoxal entre
proximidade e distância que carregamos ao longo da vida. Dentro disso, há um
contínuo processo de identificações e desidentificações – trama identificatória – que
solicita certo talento
1
, próprio a cada um, de compor em si suas heranças, de
apropriar-se da inescapável partilha entre mães e filhas. Deméter e Perséfone,
Electra e Clitemnestra, Eva e Charlotte, Liz e Zoe, dão testemunho dessa árdua e
nem sempre bem sucedida partilha.
Vimos, com Godfrind (1994), que para todas as filhas, o excesso de
proximidade com a mãe implica a necessidade de usar uma violência que as proteja
do risco de alienação, e que se expressa na hostilidade presente entre mães e
filhas. O destino da feminilidade estará sempre ligado à gestão adequada dessa
violência, que permite à filha se desprender de uma homossexualidade primária em
proveito de uma homossexualidade secundária estruturante.
Essa homossexualidade secundária acontece, como já visto, no partilhar das
amizades femininas, nas trocas tão características do universo feminino: as roupas,
os sapatos, a maquiagem, o cabelo... Uma mulher arruma-se para outra mulher,
uma mulher aprende a ser mulher com outra mulher. Penso ser esse prazeroso
partilhar que possibilita a realização da mulher com um homem. Nesse sentido, a
realização sexual da mulher é a expressão tanto da separação quanto da
identificação entre mãe e filha. A expressiva fala da paciente de Godfrind (1990)
exemplifica:
Eu queria conseguir maquiar meus olhos, eu olho seus olhos,
eu os invejo... Eu queria usar as cores que vestem seu olhar. Mas eu
não quero fazer isso contra você, nem por você, talvez como você,
mas, sobretudo, com você... Imaginar que você pudesse me ensinar
para eu fazer também.
A homossexualidade primária é uma sedução suficientemente boa, tendo
como protagonista a mãe. Em outras palavras, está em jogo a possibilidade da mãe
de apreciar sua própria sensualidade, e dessa forma poder entregar-se ao contanto
1
Freud (1923) fala do caráter de uma pessoa como a capacidade de acolher e/ou rechaçar as influências, frutos
das escolhas objetais.
172
pele a pele com um bebê menina. A mãe marca uma geografia inconsciente de
sensações prazerosas em sua filha. O prazer partilhado entre a mãe e seu bebê
menina é a sustentação das realizações sensuais da mulher adulta. A possibilidade
de realização da sexualidade feminina está intrinsecamente ligada aos prazeres
ternos e sensuais do princípio, entre mãe e filha. A realização de uma mulher implica
um movimento psíquico paradoxal (e inconsciente): ter acesso à ternura sensual do
corpo materno e, ao mesmo tempo, separar-se. A experiência sensual realizadora,
parcial e momentânea, como tudo, é o que diferencia a mãe da filha e
concomitantemente é um tributo ao que foi vivido entre elas. Em termos teóricos –
amplamente discutido – é a secundarização da homossexualidade primária
(GODFRIND, 1990).
Guignard (2002, p. 40) finaliza seu texto escrevendo que a identidade de uma
filha é uma sutil combinação de partilhas e clivagens em relação à mãe
1
. Entre mãe
e filha há o repartir, o partilhar e o compartilhar a feminilidade ao longo da vida.
Clivar: “propriedade que têm certos cristais de se fragmentar segundo determinados
planos, que sempre são faces possíveis do cristal” (AURÉLIO, 2006). São faces
possíveis do cristal – feminilidade, primária e secundária –, partilhadas de mãe em
filha.
Guignard (2002) considera que esses rearranjos não podem se efetuar de
outro modo que não seja de uma báscula entre o feminino e o maternal – quando
uma face aparece, a outra permanece oculta. A imagem que pode exemplificar a
báscula
2
entre o feminino e o maternal é a figura do vaso ou das duas faces. Se
enxergarmos o vaso, não vemos as faces, e vice-versa. O vaso constitui as faces, e
as faces constituem o vaso, mas não podemos percebê-los concomitantemente, a
não ser por uma alternância entre um e outro – uma báscula
3
. Por essa
característica, os rearranjos são frágeis e contêm uma potencialidade explosiva,
atributo de um terreno psíquico constituído de maneira instável, considerando-se
que essa talvez seja a maneira possível de compor-se.
1
Epígrafe deste trabalho.
2
Já descrito em nota de rodapé anterior.
3
A báscula entre o materno e o feminino também pode ser compreendida como a mãe do dia, maternal para o
seu bebê, e a mãe da noite – a mulher do pai (BOKANOWSKI, 2002, p 52).
173
Penso na constituição psíquica (e suas instabilidades) por uma imagem
metafórica: uma orquestra regida pelo acaso
1
. Se os inúmeros fatores integrantes do
psiquismo tenderem a uma sonoridade favorável – a música de fundo que rege o
funcionamento de cada um –, os momentos de desafino serão transpostos sem que
defesas monumentais sejam erguidas. Se tenderem ao desfavorável, os momentos
de desafino (e desafio) gerarão defesas extraordinárias, que por sua vez tornarão a
sonoridade ainda mais desfavorável. Alguns fatores: o inconsciente materno e sua
capacidade de rêverie; o inconsciente do casal parental transpassado pelos
baluartes sócio-culturais de seu tempo. Do lado do bebê, considerando a díade mãe-
bebê: tolerância à frustração, inveja primária, capacidades cognitivas, presença ou
ausência de intercorrências físicas no início da vida, ou situações potencialmente
traumáticas (morte ou doença grave de um dos genitores, ou familiar próximo à
criança, guerras, etc.). Como a máxima afinação dos inúmeros fatores integrantes
aproxima-se de uma utopia humana, penso que cada um desafina à sua maneira.
Entretanto, se essa sonoridade for passível de inspiração e não de desatino, o ritmo
promovido pode produzir encantamento pelo árduo e belo processo de viver
2
.
Essa imagem metafórica seria válida para compreendermos como a
feminilidade se transmite de mãe em filha? Penso que sim. A musicalidade do dueto
mãe e filha é regida tanto pelo acaso quanto pelas habilidades da dupla, passível de
inspiração e desatino, dialética e paradoxalmente.
A feminilidade de mãe em filha talvez seja como uma joia de família que pode
ser transformada e/ou manter-se intacta – as faces possíveis do cristal –, dentro de
um vasto gradiente de possibilidades e limites, de geração a geração.
De mãe em filha, entre o precioso e o tanático, entre a força e a
vulnerabilidade... é preciso talento.
1
“Ao mesmo tempo, estamos sempre demasiadamente prontos a esquecer que, de fato, o que influi em nossa
vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozóide com um óvulo – acaso
que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos
desejos e ilusões.” (FREUD, S., 1910, p. 124).
2
Mas talvez isto já pertença ao insurgir de outro trabalho, consequência inevitável da satisfação do término e do
desejo infindo de continuidade, até a cesura da morte.
174
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