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ROGÉRIO MIRANDA GOMES
AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO E A QUALIFICAÇÃO DO
TRABALHO EM SAÚDE
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação Área Educação e Trabalho,
Setor de Educação, Universidade
Federal do Paraná.
Orientadora: Profª. Dra. Lígia Regina
Klein.
CURITIBA
2006
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Aos trabalhadores, em especial aos da saúde, que,
cotidianamente, ao mesmo tempo em que
reproduzem o velho, mesmo sem terem consciência
disso, constroem o novo.
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AGRADECIMENTOS
À Profª. Lígia Klein, orientadora e companheira, pela exigência do rigor teórico e pela
confiança, que proporcionou com que estabelecesse comigo uma relação de “liberdade
vigiada”.
A todos os colegas e companheiros do Espaço Marx de Curitiba com quem venho
trilhando ao longo desses últimos cinco anos a difícil caminhada de tentar apreender
alguns rudimentos do materialismo dialético.
Ao Prof. Claus Germer, mestre e companheiro, cuja parcela de contribuição para a
construção de uma nova sociedade tem se dado através da dedicação de uma vida à
construção de sujeitos críticos.
À Profª Lilia Schraiber a quem, ao agradecer, agradeço a todos os mestres da saúde
coletiva e pública brasileiras, tanto do presente, como os “Merhys”, “Gastões”, quanto
do passado, como as “Donnangelos” e “Ricardos” que, com sua produção teórica e
militância prática iluminam o que de mais avançado no movimento sanitário
brasileiro.
A todos os companheiros, sanitaristas e demais trabalhadores da saúde no Paraná, com
quem venho trabalhando/militando nos últimos anos pela construção de práticas de
saúde mais humanas e emancipadoras.
4
“Los hombres sin historia son la historia
Grano a grano se formam largas playas
y luego viene el viento e las revuelve,
borrando las pisadas e los nombres
(...) pobre hombre de arena.”
Silvio Rodriguez
5
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................................7
ABSTRACT...............................................................................................................................8
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................9
2 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO – ASPECTOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS
...........................................................................................................17
2.1 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO NO PERÍODO PRÉ-CAPITALISTA.................24
2.2 O CAPITALISMO E A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO..........................................27
2.3 A COOPERAÇÃO SOB O CAPITALISMO E A QUALIFICAÇÃO DO
TRABALHO.......................................................................................................................31
2.4 A DIVISÃO MANUFATUREIRA E SEUS IMPACTOS SOBRE A QUALIFICAÇÃO
DO TRABALHO................................................................................................................35
2.5 OS IMPACTOS DA MAQUINARIA E DA GRANDE INDÚSTRIA SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO.................................................................................44
2.6 AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO SOB O CAPITALISMO ATUAL E
SEUS IMPACTOS SOBRE A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO...............................51
2.7 TENDÊNCIAS GERAIS DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO SOB O
CAPITALISMO..................................................................................................................57
3 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SERVIÇOS................................................65
3.1 TRABALHO EM SERVIÇOS: IMATERIAL?..................................................................69
3.2 TRABALHO EM SERVIÇOS: IMPRODUTIVO?............................................................73
3.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM
SERVIÇOS.........................................................................................................................78
4 O TRABALHO EM SAÚDE E AS RELAÇÕES SOCIAIS............................................81
4.1 O OBJETO DO TRABALHO EM SAÚDE: AS CONCEPÇÕES ACERCA DO CORPO;
DO NORMAL E PATOLÓGICO; DA SAÚDE E DA DOENÇA....................................82
4.2 O TRABALHO EM SAÚDE E AS NECESSIDADES HISTÓRICAS DO
CAPITALISMO..................................................................................................................89
5 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE SOB O CAPITALISMO..........100
5.1 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE ADVINDA DO
FEUDALISMO.................................................................................................................101
5.2 A PRIMEIRA FORMA DO TRABALHO EM SAÚDE SOB O CAPITALISMO.........106
6
5.3 OS IMPACTOS DA CONSTITUIÇÃO DO TRABALHO COLETIVO SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE..........................................................116
5.4 O PAPEL DA TECNOLOGIA E SEUS IMPACTOS SOBRE A QUALIFICAÇÃO DO
TRABALHO EM SAÚDE................................................................................................129
5.5 TENDÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM
SAÚDE SOB O CAPITALISMO ATUAL......................................................................140
5.5.1 O trabalhador coletivo em saúde e suas contradições....................................................141
5.5.2 Polêmicas acerca do papel da tecnologia no trabalho em saúde atual...........................148
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................189
7
RESUMO
A partir do século XVII, com a progressiva consolidação das relações sociais
capitalistas, começam a se manifestar novas ordens de determinação sobre a
configuração do trabalho em saúde. As necessidades postas pela sociabilidade
nascente acabam por impor ao trabalho em saúde transformações a fim de
corresponder às novas demandas, representadas, principalmente, pelo papel que passa
a caber ao corpo como suporte orgânico da força de trabalho. Logo, reconfigura-se o
trabalho em saúde que passa a ser permeado por diversas características concernentes
ao trabalho social sob essa sociedade, como: coletivização do processo produtivo;
progressiva fragmentação na forma de divisão técnica do trabalho; especialização
progressiva dos trabalhadores em campos parcelares de saberes e práticas; profundo
desenvolvimento tecnológico consubstancializado, seja em equipamentos, seja em
saberes e técnicas. Esses aspectos gerais, quando internamente ao trabalho em saúde,
apresentam-se sob formas particulares de maneira a corresponder às características
próprias da complexidade do trabalho em saúde e de seu objeto. Nessa dissertação
procedemos a uma análise acerca do impacto de todos esses elementos sobre o
processo histórico de qualificação do trabalho em saúde. Processo que, ao ser
influenciado pelas mudanças atuais no “mundo do trabalho”, apresenta-se
contraditoriamente, pois, ao mesmo tempo em que reproduz relações instituídas
proporciona o surgimento de formas “tensionadoras” dessas mesmas relações.
Palavras-chave: Qualificação do trabalho; trabalho em saúde; mudanças no “mundo do
trabalho”.
8
ABSTRACT
From the XVIIth century on, with the progressive consolidation of capitalistic social
relations, new types of determination on labor arrangements in health start to arise.
New needs set upon by the newborn sociability end up imposing transformations to
work in health, in order to answer to the utmost role now to be played by the body as
the organic support of labor power. Thus, work in health assumes several aspects
which are essential to social work in this society: collectivization of the production
process; progressive fragmentation in the technical division of labor; continuing
specialization of workers in partial realms of knowledge and of practices; sharp
technological development applied either to equipments or to knowledge and practice.
These main features, when applied to work in health, present themselves in specific
ways, in order to correspond to the complexity of the labor process in health and its
object. In this paper we present an analysis of the impact of all these elements on the
historical process of qualification of labor power in health. In the last decades, along
with the recent changes in the “laboring world“, this process shows a contradictory
form , for, at the same time as it adopts institutionalized labor relations, it allows the
uprising of “challenging” forms of these relations.
Key words: labor power qualification; work in health; changes in the “laboring
world”.
9
1 INTRODUÇÃO
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta
o movimento é que se move.
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
(PESSOA, 2006: 79)
Quando nos deparamos com algum artigo/elaboração cujo objeto central seja a
qualificação do trabalho, imediatamente uma primeira impressão sentida relaciona-se à
idéia de que nos encontramos frente a um trabalho que percorrerá o caminho sinuoso e
focal da análise acerca dos conteúdos e metodologias específicos do processo de
formação técnica referente a alguma forma particular de trabalho. Não é esse o
objetivo desse trabalho. Como o leitor poderá perceber, esse aspecto a formação
técnica refere-se a, apenas, uma dimensão do complexo processo ao qual estamos
nos referindo como qualificação do trabalho em saúde e não será aqui privilegiado por
nós. Em relação a essa dimensão um sem número de elaborações e publicações
acadêmicas e institucionais que se multiplicam cotidianamente com o objetivo de
orientar os diferentes processos formativos dos trabalhadores em saúde, seja nos
aparelhos formadores, seja nos próprios serviços, podendo o leitor encontrar algumas
sugestões em nossas referências bibliográficas.
Nossa tentativa com essa dissertação é outra. A qualificação do e para o
trabalho, a nosso ver, compreende um processo histórico bastante complexo e
multideterminado, cuja compreensão somente pode ser possível a partir de um
processo de investigação que propicie a apreensão desses aspectos e determinações em
suas mais diversas, e nem sempre visíveis, formas. As diferentes propostas de
formação técnica, com suas metodologias e conteúdos, não são mais do que produtos
desse processo. Não basta deter-se à análise desses produtos, pois, estes tendem a
ocultar o processo de sua produção.
10
Um processo de investigação pressupõe um método, uma forma de investigar,
compatível com o conteúdo que se deseja investigar e com os fins que se deseja
alcançar. Portanto, compreendemos forma e conteúdo como elementos de uma mesma
unidade, contraditórios é verdade, porém indissociáveis. Pensamos que o método até
hoje construído pelo pensamento humano que melhor propicia uma apreensão do real
em sua toda sua complexidade, transitoriedade e contraditoriedade consubstancializa-
se sob a forma do
materialismo dialético. Esse método propicia-nos a apreensão do
nosso objeto – a qualificação do trabalho em saúde – como expressão
particular de um
processo histórico mais amplo, determinado pelas relações sociais que os homens
estabelecem entre si na produção da sua existência. Cabe aqui uma ressalva
importante. Não pensamos, é fundamental ressaltar, o particular, como transposição ou
como reflexo ao plano microscópico de um universal cristalizado. Assim não
concordamos com as críticas, comuns aos trabalhos que utilizam esse método, de que,
no afã de identificar os “processos gerais” no trabalho em saúde, deixamos de perceber
suas “ricas e complexas particularidades”. As categorias de análise
singular/universal/particular são expressão do processo pelo qual os homens teorizam
o real. Isto é, o modo pelo qual constroem o conhecimento, através de processos
sucessivos de conformação de categorias abstratas a partir da identificação de
características universais nos diferentes fenômenos concretos
, singulares. Será a partir
desse
universal, obtido através de processos sucessivos de abstração, que será possível
adentrar o conhecimento dos fenômenos particulares. O
universal, portanto, em última
instância, “está” e “não está” no
particular. Elaborações que tentam apreender os
fenômenos através de métodos formalizadores do real, via de regra, confundem
categorias de análise com descrição aparencial das formas. Ainda hoje se repetem as
polêmicas acerca de se determinados “trabalhos específicos” passam pelos mesmos
processos de desenvolvimento descritos para o trabalho social sob o capitalismo. Ora,
nenhum trabalho particular passa “exatamente” pelos processos tais como descritos na
concepção universal do trabalho social sob o capitalismo. Mas é a compreensão dos
processos universais pelos quais passa o trabalho social sob o capitalismo que permite
compreender as apresentações dos diferentes trabalhos particulares. Hegel usava a
11
metáfora do bosque e das árvores para demonstrar esse movimento, dizia ele:
“Primeiramente queremos ter uma visão total de um bosque, para depois conhecer
demoradamente cada uma das árvores. Quem considera as árvores primeiro e somente
está pendente delas, não se conta de todo o bosque, se perde e se desnorteia dentro
dele” (HEGEL, 1983: 25).
Portanto, a fim de conseguirmos ter sucesso na apreensão de nossa “árvore” a
qualificação do trabalho em saúde partiremos de uma análise do “bosque”: a
qualificação do trabalho social sob o capitalismo.
Ainda em relação ao nosso método, essas categorias - singular, particular,
universal também nos auxiliam a compreender a relação entre sujeitos e sociedade.
A determinação da segunda sobre os primeiros e também seu inverso. Porém, segundo
esse método, a determinação dos sujeitos sobre a sociedade não se como ação de
indivíduos, mas de coletividades. E a coletividade, como sabemos, não se resume à
soma dos indivíduos, mas aos desdobramentos das relações complexas entre eles
estabelecidas e independentes de suas vontades individuais. Assim, embora os
processos históricos pelos quais passa o trabalho humano em suas mais diversas
apresentações sejam realizados pelos homens, o são na forma de coletividades, e não
de indivíduos, expressas nas relações históricas estabelecidas entre eles. Isso nos faz
identificar as transformações contínuas no “mundo do trabalho” como necessidades
históricas (necessidades da história feita pelos homens) postas para os mesmos no
permanente processo de produção de suas existências.
Esse método nos leva a compreender o trabalho, esse processo através do qual
os homens produzem sua existência, como integrante de um movimento contínuo,
constituído por múltiplas contradições; movimento que, ao mesmo tempo que resolve
algumas contradições no seu desenvolvimento, estabelece outras questões para a
humanidade. Portanto, o leitor poderá perceber que não guiará nossa análise o apego a
concepções valorativas acerca desse movimento, por entendermos as transformações
como, para além de “boas” ou “más”, necessárias sob certas relações instituídas ou
instituintes.
12
Para análise de nosso objeto recorreremos aos elementos do real de forma
duplamente mediada. Por um lado, a mediação imprescindível de nosso referencial
teórico-metodológico, como explicitamos. Por outro lado, não procederemos a um
estudo de base diretamente empírica. Recorreremos a obras de outros autores que
abordam ou apresentam interface com nosso objeto. Isso, porque pensamos que nossa
contribuição, nesse momento, não se dará no sentido de evidenciar mais fenômenos
concretos pertencentes ao movimento histórico de transformações pelas quais passa a
qualificação do trabalho em saúde. Pudemos perceber a existência de vários trabalhos
que apresentam essas evidências, trabalhos que procederam à extenuante e
importante coleta de dados do real acerca desse processo. Todavia, pensamos que a
maioria desses trabalhos evidencia mais um ou outro aspecto desse movimento.
Alguns, por exemplo, centram sua análise na constituição histórica de um trabalhador
da saúde (médicos, ou enfermeiros, ou dentistas etc.). Outros elegem como objeto de
sua análise a constituição do trabalhador coletivo, ou o papel da tecnologia no trabalho
em saúde. Enfim, constituem-se em diferentes olhares sobre um mesmo objeto, ou
apreensões fidedignas de alguns aspectos de um mesmo real, vários deles admitindo os
outros aspectos, mas concentrando-se em algum(s) específico. Nossa tentativa e
desafio, nessa dissertação, é demonstrar suas interconexões e interdependências no
complexo movimento que constitui historicamente a qualificação do trabalho em
saúde. Trata-se, portanto, de (re)interpretar dados obtidos, evidenciar-lhes novas
contradições e sentidos, não necessariamente negando aqueles evidenciados. Não
abstraímos a importância que o trabalho de coleta empírica de evidências apresenta
nos processos de pesquisa, fazê-lo seria demonstrar uma miopia negadora de toda a
concepção metodológica explicitada por nós ainda pouco. No entanto, pensamos,
que no caso de nosso objeto as diferenças e polêmicas entre as elaborações teóricas
encontram-se menos nessa parte da pesquisa (o trabalho de campo), e mais no
referencial teórico-metodológico que, conseqüentemente, por vezes, leva a conclusões
diversas sobre dados semelhantes. Utilizar-nos-emos, pois, das contribuições de vários
autores, principalmente aqueles que compartilham conosco do mesmo método de
interpretação da realidade, mas não somente, pois reconhecemos em autores com
13
outros referenciais teóricos, por vezes incompatíveis com os nossos, importantes
contribuições advindas de tentativas de apreensão do complexo objeto ao qual se
refere o trabalho em saúde. Reconhecer essas tentativas como importantes nos obriga,
portanto, a recorrer a elas, como representantes do acúmulo histórico da humanidade
nesse campo específico do conhecimento, a fim de nos subsidiarem em nossas futuras
elaborações.
Temos clareza dos riscos que tal empreitada enseja, entre eles, o principal
talvez seja o de, pela amplitude do objeto, incorrer em análises superficiais e
repetitivas. Todavia, temos claro que nosso principal objetivo com essa dissertação é
apreender e demonstrar a existência de um
movimento, aquele pelo qual se desenvolve
a qualificação do trabalho em saúde sob o modo de produção capitalista em sua fase
monopolista. Menos central para nós será aprofundar detalhadamente cada aspecto de
uma ou outra forma desse objeto ao longo do processo histórico, senão demonstrá-lo
em movimento, pois, a nosso ver, as formas são todas transitórias. Descrever as
diferentes formas, recorrendo a outros autores, não se constituirá em um fim em si
mesmo. Diferente disso, esse processo terá o objetivo de demonstrar o caráter
transitório e contraditório dessas formas evidenciando os mecanismos internos de suas
transformações. Deter-nos-emos pormenorizadamente na, não menos complexa, tarefa
de, através da análise desses mecanismos internos, tentar apreender possíveis
tendências desse movimento, que poderão nos expor características de seu
devir.
Entendemos também que essa dissertação não possui um fim em si mesmo, mas
carrega consigo uma tarefa futura, para além desse trabalho, de fundamental
importância, que é a necessidade de voltar a relacionar as elaborações advindas desse
estudo com o real de forma que, ao mesmo tempo em que as testamos, possamos
“realimentá-las”, repensá-las, para que possam adquirir, assim, a relevância social a
qual se propõem. assim poderá cumprir sua finalidade última: servir de
instrumento auxiliar de intervenção sobre o trabalho em saúde, por parte daqueles que
o realizam cotidianamente.
Esse trabalho se divide em quatro capítulos. O primeiro deles tem o objetivo de
expor mais pormenorizadamente nosso referencial teórico-metodológico e suas
14
principais categorias de análise. Entre essas categorias, damos especial importância à
exposição, para o leitor, da concepção que utilizamos acerca da qualificação do
trabalho. Ao mesmo tempo, evidenciamos o método em uso, ou seja, servindo de
instrumento para apreensão dos processos de transformações pelos quais passa a
qualificação do trabalho social sob o modo de produção capitalista até os dias atuais.
O segundo capítulo refere-se à aplicação dessas categorias de análise a uma
forma particular de trabalho social, o chamado “trabalho em serviços”, a fim de
compreender seu processo de qualificação sob as relações capitalistas. Não são isentas
de polêmicas as compreensões acerca desse processo e tentamos abordá-las em seus
principais aspectos como forma de irmos delineando algumas características
particulares que estarão presentes no caso do trabalho em saúde.
No terceiro capítulo, começamos a proceder a uma análise mais conceitual
acerca do trabalho em saúde, suas principais categorias e as relações que se
estabelecem entre o mesmo e as relações sociais. Compreendendo esse processo como
uma totalidade rica e complexa, fazemos um exercício de tentar apreender as raízes de
suas determinações mais fundamentais. Detemos-nos de forma mais pormenorizada na
análise acerca dos conceitos de normal, patológico e procuramos delinear o caráter
histórico do objeto do trabalho em saúde que, sob as relações capitalistas
consubstancializa-se na figura do corpo.
Ao quarto capítulo caberá o espaço para analisarmos como se conforma a
qualificação do trabalho em saúde à sociabilidade do capital. Inicialmente, analisamos
como a qualificação aparece sob as relações feudais a fim de demonstrar seu processo
de transformação sob o capitalismo. A partir daí procuramos analisar como o trabalho
em saúde sob o capital passa a adquirir características novas que o colocam no campo
do trabalho em geral sob o capitalismo. Esse processo é analisado em toda a sua
contraditoriedade, pois, se por um lado o trabalho em saúde passa a apresentar
características semelhantes ao trabalho em geral sob o capitalismo, por outro mantém
características próprias que lhe conferem peculiaridades que podem limitar o grau de
absorção pelo capital. É analisada a constituição do trabalho coletivo em saúde a partir
da consolidação dos espaços institucionais que passam a apresentarem-se como
15
unidades produtivas da assistência à saúde. Também constitui aspecto de análise o
impacto da progressiva incorporação tecnológica à área de saúde e suas conseqüências
sobre a organização do trabalho e a constituição do trabalhador coletivo. Por fim,
tentamos demonstrar a existência de várias contradições inerentes a esse processo e as
tentativas que surgem em experiências concretas de trabalho visando resolvê-las,
superá-las.
Por fim, são importantes mais algumas considerações acerca, não do método,
mas da metodologia. Ao nos dedicarmos a analisar a qualificação do trabalho em
saúde estamos nos referindo aos processos assistenciais em saúde, os serviços de saúde
propriamente ditos. Não incluímos como objeto de estudo, a análise de setores
produtivos outros que possuem relação, mesmo que estreita, com o trabalho
assistencial. É o caso dos processos produtivos de medicamentos e insumos da área de
saúde e também das indústrias produtoras de equipamentos nessa área. Como o leitor
poderá perceber, fizemos uma opção consciente de privilegiarmos os aspectos das
transformações do trabalho em saúde que ocorrem ou expressam-se na esfera da
produção interna dessas práticas. Por isso, embora tenhamos analisado, não nos
detivemos com minúcias no estudo, por exemplo, dos aspectos referentes ao comércio
dos serviços de saúde, sua relação com a oferta e a procura, além das diferentes formas
de vínculos trabalhistas a que estão sujeitos os trabalhadores da saúde com o processo
de proletarização. Embora façamos referência a transformações em nosso objeto sob o
modo capitalista de produção, dedicamo-nos à análise mais pormenorizada de uma
formação social particular, a brasileira, devido ao maior acesso a dados e produções
teóricas relativas a esse país. Também é importante ressaltar que a maioria de nossas
análises refere-se a elaborações e observações acerca dos serviços estatais de saúde,
embora nos dediquemos a analisar também os serviços privados. Isso por dois
motivos. O primeiro refere-se ao fato de que a constituição do trabalho coletivo em
saúde ganha uma dimensão maior e mais complexa com a constituição dos serviços
estatais. No caso do estado as diversas unidades produtivas ganham a dimensão de um
sistema planejado, o que aumenta muito sua complexidade. Diferentemente, os
serviços privados funcionam como empresas de capitalistas privados concorrendo em
16
um mercado anárquico e regulado por outras demandas que não as necessidades da
população. A nosso ver, o primeiro caso representa um salto qualitativo em relação ao
segundo, possibilitando transformações que no caso do segundo não são possíveis. O
segundo motivo refere-se mais a uma opção política do autor. Como entendemos que a
produção das práticas em saúde, quando existentes predominantemente sob a forma
mercadoria, tem o seu potencial muito restringido em relação à possibilidade de
servirem como instrumentos de auxílio à construção de “modos de andar a vida” mais
autônomos, mais emancipados, seja na esfera individual, seja na coletiva, preferimos
analisar prioritariamente e, consequentemente, propor intervenções em outro espaço,
qual seja, o estatal.
17
2 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO – ASPECTOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
(...) O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
(...) Como todo o real é espesso.
(MELO NETO, 1997: 83-84)
Temos visto no meio acadêmico em geral a difusão cada vez maior de idéias e
trabalhos (GORZ, 1987; OFFE, 1991; SOUZA SANTOS, 1994; CASTELLS, 1998;
DE MASI, 2000; LAZZARATO & NEGRI, 2001) cujo principal elemento é a crítica
ao
trabalho como categoria central e fundante de qualquer sociedade humana. Esses
trabalhos, em sua grande maioria, reconhecem a importância que o trabalho
“representou” para a humanidade até algumas décadas atrás, tanto no que se refere à
produção material quanto em relação ao papel determinante que exerceu nas formas de
relação entre os homens suas concepções, teorias, subjetividades etc. No entanto,
argumentam, em maior ou menor grau, que vivemos um momento histórico em que o
grande desenvolvimento tecnológico, associado a novas formas de relações entre os
homens, vem tornando o trabalho humano cada vez menos importante e determinante
em sua sociabilidade. Como conseqüência disso, aquelas categorias explicativas
advindas do “modo como os homens trabalham” como, por exemplo, classes sociais,
relações de produção, formas de propriedade, entre outras, estariam perdendo
capacidade explicativa em relação aos fenômenos da realidade. Em seu lugar estariam
ganhando importância outras categorias e conceitos – redes sociais, subjetividade,
informação, gênero, etnia, ócio - por apresentarem maior correspondência com as
constantes “transformações” do mundo contemporâneo. Para esses autores teria
havido uma mudança qualitativa do período histórico compreendido entre a revolução
industrial e algo em torno da década de 70/80 para o período pós-década de 80. Por
18
isso, ganham notoriedade expressões que remetem a essa mudança de período, como,
por exemplo, “pós-modernidade”, “pós-industrial”
1
, entre outras. Vários fatores são
elencados para evidenciar essa transformação, entre eles: uma maior automatização do
processo industrial; o surgimento de um modelo de acumulação flexível; uma
crescente liberação da força de trabalho; a comunicação e a inter-relação crescentes
entre diferentes etnias, povos; a constituição de formas atípicas de relações de trabalho
para além da contradição capital/trabalho; entre outros.
Não consiste em nosso objetivo nesse estudo discutir os vários aspectos citados
acima eles, por si só, justificariam várias outras dissertações - embora pensemos
serem fundamentais para uma melhor compreensão do período histórico em que
vivemos. Devemos, no entanto, responder a uma questão: em tempos de tantos “pós-”,
que, em última instância, significam “pós-trabalho”, como se justifica um esforço em
elaborar um estudo que tenha como objeto o processo de trabalho? Mais
especificamente um aspecto do processo de trabalho, a qualificação? Para responder a
essa questão, justificando dessa forma esse estudo, pensamos ser fundamental
explicitar qual a nossa compreensão acerca do trabalho humano e quais as
conseqüências que essa concepção enseja. Assim estaremos, a nosso ver, fornecendo
elementos que podem tornar a análise das questões apontadas acima mais rica e
constituída de um caráter de totalidade. Cabe, portanto, explicitarmos porque no
decorrer dessa dissertação fazemos da qualificação do trabalho – mais especificamente
do trabalho em saúde - nosso objeto de estudo.
Como explicitamos anteriormente, temos no
materialismo dialético o nosso
método-guia por entendermos ser este o que mais fidedignamente consegue nos dar
elementos para apreender o real em sua totalidade. Não significa que por termos um
método eficiente consigamos necessariamente apreender todas as “múltiplas
determinações” do real; significa, no entanto, que podemos desenvolver o potencial de
fazê-lo. Ao expor isso estamos demonstrando que estaremos recorrendo no decorrer da
1
São inúmeras as novas denominações dadas ao atual período histórico. Algumas delas são: sociedade
do tempo livre e/ou sociedade do conhecimento (MANSELL, 1996; MASI, 1999), sociedade pós-
industrial (BELL, 1973; GORZ, 1994), economia em rede (CASTELLS, 1998), sociedade da
informática e/ou da informação (SCHAFF, 1995; LOJKINE, 1995). (citados por POCHMANN, 2001).
19
discussão acerca do processo de trabalho às categorias marxianas acerca do trabalho e
da realidade social como auxílio à difícil tarefa de apreensão da qualificação do
trabalho em saúde em toda sua complexidade.
Pois bem, como nosso estudo acerca do trabalho passa necessariamente pela
análise da sociedade humana em seu desenvolvimento histórico, cabe, inicialmente,
definir aquele que para nós é o primeiro pressuposto da história humana. Estamos nos
referindo à existência concreta do ser humano enquanto tal. Para discutirmos
elementos da sociedade humana é necessário que o ser humano exista. E aqui surge a
primeira questão a ser resolvida pela humanidade. A existência do ser humano não é
dada; precisam os seres humanos produzir as condições da sua existência a partir do
que encontram na natureza. Por isso, para Marx e Engels (2002) os homens
produzindo os meios de produção da sua existência constituem o primeiro
Ato
Histórico
, ou seja, o primeiro ato da história da humanidade. Logo toda a construção
das sociedades humanas se edificará sobre essa necessidade fundante do ser: produzir
os meios de produção da sua existência. Para realizar esse ato fundamental o homem
precisa se valer daquilo que encontra disponível para tal, qual seja, a natureza. É a
partir da relação estabelecida com a natureza que os homens produzirão as condições
para a sua existência. Porém, no decorrer da história, os homens não conseguiram
realizar esse processo de maneira isolada, individual. Pelas suas próprias
características físicas limitadas, a associação entre os homens surge como necessidade
histórica para a realização desse
Ato Histórico. A esse processo de relação que os
homens estabelecem entre si e com a natureza a fim de produzirem sua existência
denominamos genericamente
trabalho. O trabalho diferencia-se das ações produzidas
por outros animais visando a sobrevivência, pois o homem, antes de executar uma
ação prática, elabora em sua mente o projeto a ser executado, planeja o ato. Em relação
a essa particularidade exclusiva da espécie humana, o caráter
teleológico do trabalho,
é amplamente conhecida essa clássica passagem do autor, onde diz que “o que
distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção
antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um
resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador.”(MARX,
20
2001: 211-212). Diferentemente, portanto, dos outros animais que agem por instinto e
subjugados à natureza o homem subjuga a natureza às suas necessidades.
Esse “produzir a existência” não deve ser apreendido como algo cristalizado,
definido. Pelo contrário, deve ser entendido como, além de pressuposto, produto da
história humana. Isso porque os homens ao se relacionarem entre si e com a natureza
para satisfazerem determinadas necessidades iniciais transformam essa natureza e a si
próprios. Essas transformações, por sua vez, determinam um outro homem, com outras
necessidades a serem satisfeitas. Se produzir a existência do homem primitivo
correspondia à produção de alimentos e proteção, produzir a existência do homem
atual envolve, além disso, a satisfação de um sem número de outras necessidades
sociais, culturais, subjetivas. Aqui encontramos os elementos que nos levam a refutar
várias das teses acima citadas, principalmente aquela que advoga um possível fim da
“sociedade do trabalho”. Ora, o trabalho assim compreendido, como processo de
produção da existência humana, como processo que proporciona a satisfação de
necessidades, é inerente e fundante de toda e qualquer sociedade humana. A essa
característica totalizante dessa atividade essencialmente humana, Lukács (1979)
definirá como o caráter
ontológico do trabalho. Não sendo possível, portanto, a
existência de uma “sociedade sem trabalho”. Os autores que advogam um possível
“fim do trabalho”, por não possuírem um método que lhes proporcione uma apreensão
da sociedade humana como processo histórico, prendem-se a um momento deste e o
universalizam. Confundem uma determinada forma de trabalho com “o trabalho”.
Veremos à frente que a base desse equívoco encontra-se na confusão entre duas
dimensões diferentes do trabalho: o trabalho como produtor de
valores de uso
(trabalho concreto) e o trabalho como produtor de valor (trabalho abstrato). Um é
constituinte e constituidor do humano, enquanto o outro é uma forma histórica do
trabalho, a forma como este se apresenta em sociedades onde os produtos do trabalho
adquirem a forma
mercadoria. Voltaremos a isso mais à frente.
Voltando à produção e reprodução da existência, veremos que os homens a
realizam com base em certas condições, quais sejam, as condições da natureza e os
meios possíveis de intervenção sobre a mesma. A primeira condição se refere àquilo
21
que os homens encontram “disponível” no meio natural. A segunda se refere aos
instrumentos que os homens produzem para intervir sobre a natureza, os meios de
trabalho. Esses meios referem-se aos instrumentos de trabalho, recursos tecnológicos,
ciência, saberes e tudo mais o que sirva de mediação entre homens e natureza com fins
a submetê-la a suas necessidades. Ao conjunto formado por homens, meios de
produção e condições da natureza, Marx (2001) denominou como
forças produtivas do
trabalho. Segundo ele, as próprias relações que os homens estabelecem entre si para
produzirem sua existência
relações sociais de produção acabam por serem
condicionadas pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas. Todavia, esse
condicionamento não se de forma unilateral. As relações de produção, por sua vez,
também acabam por influenciar o grau de desenvolvimento das forças produtivas.
Essas duas categorias estabelecem, assim, uma relação de determinação recíproca.
Relação que carrega dentro de si sempre uma tensão permanente, contraditória que,
por vezes, coloca em pólos antagônicos forças produtivas e relações de produção. Ao
nos referirmos a essas duas categorias, não podemos deixar de entendê-las como
abstrações, ou seja, representações ideais de aspectos da realidade. E, em última
instância, esses aspectos referem-se a conseqüências da ação humana. São os homens
os sujeitos históricos que desenvolvem as forças produtivas e estabelecem relações
sociais de produção. Por isso, pode-se dizer que “os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha
e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo
passado.”(MARX, s/d: 199). Isso é importante para evitarmos o equívoco de darmos a
essas relações uma autonomia que elas não têm. Os homens, portanto, são
determinados por certas relações existentes, porém, foram eles, como gênero, através
de gerações anteriores, que estabeleceram anteriormente estas mesmas relações e são
eles que as reproduzem cotidianamente.
Podemos ver que essa concepção acerca da história humana apresenta o homem
como um ser essencialmente prático, interventor sobre o mundo. É através de ações
práticas visando satisfazer suas necessidades que os homens estabelecem relações e
produzem a sociedade humana. Essa sociedade humana é produzida, portanto, como
22
resultado do trabalho. A própria percepção da realidade as idéias, os conhecimentos
– é apreendida a partir da ação prática dos homens sobre a natureza. Os conhecimentos
são produzidos a partir dos problemas colocados pela realidade prática e, uma vez
elaborados, contribuem para novas intervenções sobre essa mesma realidade,
transformando-a e, por sua vez, dando origem a novos conhecimentos. Esse é o
princípio da
práxis: teoria e prática conformam pólos indissociáveis de uma mesma
relação permanentemente “tensa” e, embora com o movimento ininterrupto apresente-
se um processo de determinação recíproca entre eles, seu princípio último de
determinação é material (VÁZQUEZ, 1986). Logo, as idéias, em última instância, são
interpretações acerca do mundo material e não o contrário.
O trabalho, dessa maneira, é simultaneamente ação prática e reflexão acerca da
realidade. E do ponto de vista do ato do trabalho, é sempre planejamento e execução,
trabalho manual e trabalho mental. Por mais que diferentes apresentações do trabalho
diferenciem-se com relação ao espaço que cada uma dessas dimensões manual e
intelectual ocupam, em qualquer trabalho ambas estão presentes. Veremos à frente
que não significa que essas duas dimensões devam estar necessariamente
consubstancializados no mesmo sujeito. Pelo contrário, o desenvolvimento da história
humana progressivamente estabeleceu uma relativa divisão entre os sujeitos
realizadores dessas duas práticas (LEFEBVRE, 1979).
Uma vez analisado o papel do trabalho na história humana, cabe inserir a
discussão acerca do que seria a qualificação para o trabalho. que do trabalho dos
homens depende sua existência, a qualificação para o trabalho adquire uma
importância central. Como vimos, a sociedade humana desenvolve-se a partir da eterna
luta dos homens para satisfazerem suas necessidades. É a partir dessa luta que eles
conhecem, dominam e transformam a natureza, extraindo daí as condições para
satisfação de suas necessidades. Também é a partir desse processo que os homens
desenvolvem instrumentos, técnicas, conhecimentos que permitem realizar mais
eficientemente suas tarefas. A esse processo, de constante aumento da capacidade dos
homens de satisfazerem suas necessidades, que depende fundamentalmente da
produtividade do trabalho denomina-se grau de desenvolvimento das forças
23
produtivas. A questão da qualificação do trabalho encontra-se diretamente relacionada
a esse processo, principalmente ao aspecto subjetivo dessa produtividade do trabalho,
ou seja, refere-se à adequação do trabalhador ao processo produtivo. “Em síntese, a
qualificação do e para o trabalho compreende a adequação ou preparo para atividade
prática ou função propriamente dita, tanto manual quanto intelectual, e decorre de
atividades voltadas à produção em geral, realizadas com diversas finalidades.”(SILVA,
2005: 22).
Essa adequação também se faz historicamente sendo dependente de múltiplos
fatores relacionados ao processo de produção e às formações sociais dele decorrentes.
A qualificação exigida para o trabalho de um artesão, por exemplo, não é a mesma
exigida para um trabalho industrial.
Alguns autores (MACHADO, 1994; SILVA, 2005) incluem nesse campo da
qualificação para o trabalho, além da qualificação técnica manual e intelectual um
componente superestrutural. Vejamos a que Marx se refere quando forja essa
categoria, a
superestrutura.
Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a
qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas
de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual em geral (MARX,1977: 24).
O grau de desenvolvimento das forças produtivas sob certas relações sociais de
produção, portanto, estabelece um princípio de determinação sobre a conformação de
toda a forma de sociabilidade correspondente. As instituições políticas, jurídicas, os
valores, a moral, a religião, as idéias, a filosofia refletem, em última instância essas
relações. Além de surgir como conseqüência das relações sociais de produção
hegemônicas, a superestrutura legitima essas mesmas relações e as reproduz. De
determinada a superestrutura passa a ser determinante. Passa a ser função da
superestrutura, legitimar a existência de certas formas de produzir, pois assim ela as
estará reproduzindo. Por isso, MARX (2002: 48) dirá que a ideologia corresponde às
“(...) relações materiais dominantes consideradas sob a forma de idéias (...)”. Portanto
24
torna-se fundamental, além de qualificar o trabalhador tecnicamente, qualificá-lo
“socialmente”. Esse socialmente deve ser entendido como o processo de provê-lo de
certa carga cultural, moral, ideológica que reflitam as relações sociais dominantes e as
legitimem. Portanto, para nós, o conceito de qualificação para o trabalho de forma
geral engloba um aspecto infraestrutural a qualificação técnica, tanto manual quanto
intelectual – e outro aspecto superestrutural – a qualificação ideológica, moral etc.
Posto isso, vejamos de maneira sintética como a qualificação para o trabalho
humano se apresentou historicamente nos diferentes “modos de produzir a existência”.
2.1 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO NO PERÍODO PRÉ-CAPITALISTA
A fim de analisarmos a qualificação do trabalho no período pré-capitalista
podemos didaticamente dividi-lo em duas fases: antes do advento da propriedade
privada e após. A primeira fase corresponde ao período histórico mais primitivo,
aquele das antigas sociedades comunais. O que caracteriza essa fase é a existência de
diversas apresentações diferentes de sociedades autônomas e isoladas. O que de
semelhante havia entre essas diferentes sociedades era a propriedade comum do
principal meio de produção a terra e o baixo grau de desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho. A baixa produtividade do trabalho impunha a necessidade da
participação no trabalho de cada membro da comunidade como condição de
sobrevivência da coletividade. O grau de desenvolvimento das forças produtivas
determinava a existência de relações sociais de produção comunais. Nesse período a
divisão social do trabalho se apresentava de maneira incipiente e baseada
principalmente em aspectos como o de idade e sexo. (ENGELS, s/d). Nessas
formações sociais a qualificação para o trabalho estava diretamente relacionada ao ato,
comum a todos, de trabalhar. Era através da atividade do trabalho que
todos os homens
se relacionavam com a natureza e entre si, produzindo conhecimentos relativos a esse
processo. Era também o processo de trabalho o lócus onde se transmitiam os
conhecimentos para as novas gerações. Por isso podemos dizer que nesse período a
25
qualificação para o trabalho acontecia no próprio trabalhar. (SAVIANI, 1994; SILVA,
2005).
O movimento progressivo de desenvolvimento das forças produtivas do
trabalho, além do estabelecimento cada vez maior de relações de troca entre diferentes
comunidades lançou as bases materiais para o surgimento da propriedade privada da
terra. Essa, por sua vez, estabelece o alicerce para o surgimento de uma classe ociosa
que, graças à produção de excedente por parte de seus escravos, pode se abster do
trabalho. Portanto, as primeiras sociedades baseadas na propriedade privada foram
sociedades escravistas (ENGELS, op. cit.). A partir do estabelecimento de diferentes
classes sociais a demanda por qualificação passa a ser diferenciada conforme a
inserção de cada sujeito nas relações de produção. Entre os escravos que passaram a
ser a classe produtora principal predominava a qualificação advinda e transmitida no
próprio processo de trabalho. Aprendia-se trabalhando. Com o surgimento de uma
classe ociosa, que por ser proprietária dos meios de produção não precisava trabalhar,
surge como necessidade a qualificação dessa classe para o lugar que passava a ocupar
na sociedade (SAVIANI, 1994). Liberta da atividade laborativa essa classe terá tempo
livre para se propor a funções dirigentes na nova sociedade, como a política, a
administração, a filosofia, a guerra. Portanto a qualificação para a classe proprietária
passará a englobar fundamentalmente a qualificação ligada à superestrutura político-
ideológica. Essa tarefa é fundamental para que a classe economicamente dominante se
mantenha como dominante também no plano político, ou seja, através da manutenção
das expressões ideais das relações de produção contribui-se para a reprodução dessas.
O progressivo aumento das populações somado à, cada vez maior, inter-relação
entre diferentes comunidades através da troca estabeleceu a relação entre ramos
diversos e fortaleceu a fixação dos sujeitos em diferentes ofícios a divisão social do
trabalho. O modo de produção que sucedeu ao escravismo, o feudalismo, possuiu
como base técnica do trabalho, por um lado, a atividade artesanal através da divisão
em diferentes ofícios e, por outro, o trabalho servil no campo. A qualificação para o
trabalho nesse período permanecia atrelada ao processo de trabalho, seja no campo,
seja no artesanato. A diferença é que, em relação ao artesanato, esse processo de
26
qualificação foi institucionalizado através do controle exercido pelas corporações de
ofício. Passou a haver uma série de requisitos que um sujeito deveria cumprir para
poder exercer determinado ofício. Entre eles, um período mínimo de aprendizagem, a
tutoria de um mestre de ofício e o cumprimento das regras da corporação. Podemos
dizer que é o primeiro momento em que o processo de qualificação passa a reconhecer
a figura de um mediador como autoridade de cunho institucional. O artesão como
representante desse período continua expressando em seu trabalho a síntese entre
trabalho técnico intelectual e manual. Planejamento e execução ainda são
indissociáveis no processo de trabalho. O artesão idealiza, planeja e executa cada etapa
do processo de trabalho, constituindo seu produto primeiro ideal depois materialmente.
Por isso mesmo consegue reconhecer no produto a objetivação de seu trabalho. O
artesão por ser proprietário dos meios também o é dos produtos do trabalho.
Alguns fatores contribuíram para que as relações feudais fossem superadas
pelas capitalistas. Entre eles, deve-se ressaltar que o aumento progressivo da
população, principalmente nas cidades, e a progressiva constituição de um mercado
mundial, através das colônias, fazem com que a demanda por mercadorias aumente,
passando a exigir uma produção maior tanto dos artesãos, quanto das propriedades
agrícolas.
O primeiro efeito desse aumento da demanda por mercadorias será um
incremento da produtividade agrícola, através da dissolução das relações servis e do
estabelecimento da produção capitalista no campo. Esse processo deu-se através da
crescente expropriação e expulsão dos camponeses lançando as bases para a
implantação do assalariamento pelos arrendatários capitalistas, além de liberar força de
trabalho para as manufaturas nascentes.
Outro mecanismo através do qual se estabelecem as relações capitalistas
refere-se ao processo de transformação de comerciantes em capitalistas. O
comerciante, que era o intermediário entre artesãos e consumidores e, algumas vezes,
se responsabilizava por realizar uma etapa final da fabricação das mercadorias, com o
tempo, em alguns casos, passa a adquirir os meios de produção e a colocar os artesãos
27
para trabalhar sob suas ordens nas manufaturas, extraindo sobretrabalho desse
processo.
É importante ressaltar que todo esse processo se deu de forma lenta, gradual e
extremamente heterogênea. As antigas relações sociais de produção (artesanato,
servidão) gradualmente tornam-se empecilhos ao desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho. Sob a pressão da necessidade de aumentar a produção, será
revolucionado todo o modo de produzir (MARX, 2001). Estão lançadas, assim, as
bases materiais sobre as quais se edificará o modo de produção capitalista.
2.2 O CAPITALISMO E A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO
Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista ou melhor, deu-a adiantado
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram.
(GULLAR, 1998: 61-62)
Inicialmente é preciso situar o capitalismo dentro do desenvolvimento da
história da humanidade como mais um modo de produção que tem como fundamento a
propriedade privada dos meios de produção. Nesse sentido se apresenta com
semelhanças em relação aos modos anteriores, ou seja, assim como o escravismo e o
feudalismo, o capitalismo é composto por diferentes classes sociais: aquela
proprietária e aquela não proprietária dos meios de produção. A primeira não trabalha
e vive da exploração do trabalho da segunda que, não tendo opção, trabalha para
produzir a sua existência e a do explorador. Portanto, de maneira genérica, os
diferentes modos de produção baseados na propriedade privada constituem-se em
diferentes modos de a classe proprietária explorar e viver do trabalho da classe não
proprietária. Situadas as semelhanças “de fundo” entre essas diferentes maneiras de
produzir da humanidade, cabe analisarmos as diferenças das duas formas anteriores em
relação ao capitalismo.
28
Um primeiro pressuposto fundamental para o estabelecimento de relações
capitalistas de produção foi a ampliação da separação entre os trabalhadores e os
meios de trabalho. Se nos modos de produção anteriores escravismo e feudalismo -
os produtores não detinham a propriedade dos meios de trabalho, ainda persistiam,
todavia, com uma vinculação muito grande aos mesmos. No caso do escravismo o
trabalhador estava posto em uma posição muito semelhante à de um meio de
produção; era vendido e comprado como o era uma ferramenta ou um animal de
tração. no caso do feudalismo, embora o servo não fosse um escravo, também
possuía uma autonomia restrita. Era negociado, na maioria das vezes, como mais um
componente das propriedades de terra. Os senhores feudais adquiriam feudos com
todos seus componentes – campos agrícolas, animais, ferramentas, servos. Apesar
disso, as relações de produção feudais constituíam os servos como “controladores” de
meios de produção. Alguns autores, entre eles Poulantzas (1975), detecta uma
diferença entre o que seriam relações de propriedade e de posse. As relações de
propriedade seriam as expressões jurídicas mais “profundas” da relação com os meios
de produção. Já a relação de posse seria a relação concreta de controle e uso direto dos
meios de trabalho. No caso dos servos, por exemplo, a propriedade jurídica de todos os
meios de produção pertencia à nobreza
2
, os senhores feudais, porém, dentro dos feudos
havia pequenas extensões de terras cuja posse pertencia aos servos. Eram estes que
exerciam, com relativa autonomia, o uso e o controle sobre as mesmas; Ao senhor
feudal interessava que ao final do processo de produção recebesse a sua parte, em
espécie. Com os artesãos, anteriormente ao surgimento do capitalista, essa relação de
posse coincidia com a relação de propriedade: os artesãos como produtores
independentes eram proprietários dos seus instrumentos de trabalho. Com o
capitalismo consolida-se e se aprofunda, progressivamente, o processo que distancia os
produtores dos meios de trabalho, tanto de sua propriedade (no caso dos artesãos)
quanto de sua posse (no caso dos camponeses). Assim, podemos ver que
2
As terras, em última instância, eram propriedades do rei que fazia concessões administrativas para os diferentes
representantes da nobreza.
29
O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos
meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente,
não se limita a manter essa dissociação mas a reproduz em escala cada vez maior. O
processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador
a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios
sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos.
(MARX, 2001; 828)
É necessário, em outras palavras, que o capital encontre o trabalhador livre.
Livre tanto dos meios de produção (que são propriedade do capitalista) quanto da
servidão para, assim, ser forçado a vender sua força de trabalho como condição para
adquirir os meios necessários à sua subsistência. A consolidação do modo de produção
capitalista significou a subordinação do campo à cidade, estabelecendo a hegemonia
da forma
mercadoria
3
. Isso se torna possível devido ao duplo caráter do trabalho que,
por um lado, é produtor de produtos que realizam necessidades (trabalho concreto
produtor de valores de uso) e, por outro, é simplesmente dispêndio de energia humana
(trabalho abstrato gerador de valor). Esse processo de expropriação do trabalhador de
seus meios de trabalho tem como conseqüência a transformação, tanto dos meios de
trabalho, quanto da força de trabalho em mercadoria.
Como as demais mercadorias, sob o capitalismo a força de trabalho possui um
valor que expressa o tempo de trabalho socialmente necessário para a sua
(re)produção. Como as relações sociais de produção capitalistas pressupõem o
trabalhador livre, não pode o capitalista ser proprietário do trabalhador. É a capacidade
de trabalho que ele compra, mas como não pode concomitantemente comprar o
suporte da força de trabalho o trabalhador lhe resta comprá-la por um tempo
determinado, alugá-la. Portanto, o capitalista compra a força de trabalho pelo seu
valor, qual seja, o valor necessário à sua (re)produção, por um tempo determinado. O
salário é para o trabalhador o valor referente à sua força de trabalho, o qual trocará
3
Não que nos modos de produção anteriores não houvesse mercadorias; pelo contrário, existem relatos
da existência de mercadorias em sociedades humanas bastante antigas, porém, nesses casos o valor de
troca existia em função do valor de uso, ou seja, a troca tinha a função de satisfazer as necessidades
humanas. Veja-se, por exemplo, essa citação: Toda propriedade tem duas funções particulares,
diferentes entre si: uma própria e direta, outra que não o é. Exemplo: o calçado pode ser posto nos pés
ou ser usado como um meio de troca; eis, pois, duas maneiras de se fazer uso dele.” (ARISTÓTELES,
1980: 19).
30
pelos bens necessários à sua reprodução alimentação, vestuário etc. Porém, a força
de trabalho não é uma mercadoria como outra qualquer, sua particularidade reside na
sua capacidade única de criar valor, visto que somente o trabalho humano pode criá-lo.
Assim, o capitalista paga pela força de trabalho o valor necessário à sua (re)produção,
mas não paga o que ela é capaz de produzir. Uma vez sob seu controle, o capitalista
colocará a força de trabalho a produzir. Do tempo de trabalho despendido pelo
trabalhador durante sua jornada, uma parte do valor gerado servirá para pagar os
custos de produção matéria-prima, instrumentos e máquinas, salários e a parte
restante constituirá a
mais-valia, o lucro do capitalista.
Se até o modo de produção feudal o que dirigia o processo de produção eram
as necessidades sociais consubstancializadas no
valor de uso, com o capitalismo o
processo de produção torna-se concomitantemente processo de produzir
mais-valia e
passa a ser “dirigido” pelo
valor de troca. Não se produz mais com o objetivo de
atender as necessidades sociais, se produz para extrair
mais-valia, e atender as
necessidades (por meio do valor de uso) torna-se um meio para realizar a mais-valia
(por meio do valor de troca). Diferentemente do modo de produção feudal e escravista
onde a exploração da classe produtora pela classe proprietária dos meios de produção
era suficiente para garantir uma vida ociosa e confortável a esta, no modo de produção
capitalista existe uma dinâmica que impõe aos capitalistas a constante perseguição da
acumulação crescente de seus capitais como condição de suas sobrevivências como
indivíduos pertencentes à classe dominante. Aqui o trabalho excedente não pode se
converter somente em consumo individual e entesouramento. Ele deve se transformar
em capital, que por definição terá o papel de continuar se expandindo. Isso se deve ao
fato de que, como o capitalismo é um modo de produção baseado em unidades
produtivas independentes e sem subordinação a um planejamento social, porém
fornecedoras para um mercado comum e limitado, essas unidades tornam-se
concorrentes. Logo, a concorrência inter-capitalista tornar-se-á um “motor” da busca
constante pela acumulação crescente do capital (valorização) e da busca incessante
pela cada vez maior produtividade do trabalho. Por isso, todo o processo de
31
consolidação, desenvolvimento e posterior crise estrutural do capitalismo, estará
relacionado a essa necessidade intrínseca do capital.
Esse processo de valorização encontra-se intrinsecamente ligado ao processo de
trabalho, visto que, sob o capitalismo, a produção de mercadorias é
concomitantemente produção de mais-valia, por meio do qual se valoriza o capital.
Veremos como ao longo do desenvolvimento do capitalismo o processo de trabalho
vem sofrendo sucessivas transformações no sentido de corresponder a essa tendência
inerente ao modo de produzir do capital.
A sociedade produtora de mercadorias em sua consolidação e desenvolvimento
passou por diferentes estágios que refletiram inclusive o grau de hegemonia das
relações sociais de produção capitalistas. Ao privilegiarmos o processo de trabalho
como recorte a partir do qual analisamos esse movimento, nos deparamos com três
fases principais: a cooperação simples, a manufatura e a indústria. Todas constituem
formas capitalistas de produção, de extração de mais-valia; diferenciam-se
basicamente, além do grau de produtividade do trabalho, pela forma e pelo grau em
que o processo de trabalho se subsume ao processo de valorização.
2.3 A COOPERAÇÃO SOB O CAPITALISMO E QUALIFICAÇÃO DO
TRABALHO
A cooperação simples consistiu na primeira forma de produção capitalista, ou
seja, produtora de mais-valia. Essa forma caracterizou-se, do ponto de vista do
processo de trabalho, por poucas mudanças nos instrumentos de trabalho e no modo de
produzir em relação à produção artesanal. A mesma oficina que antes era dirigida pelo
mestre-artesão agora o é pelo capitalista. Portanto, a primeira diferença é que agora o
proprietário dos meios de trabalho (oficina, ferramentas) e dirigente do processo de
produção um ex-mestre-artesão, um ex-comerciante ou um ex-arrendatário - está
liberto do trabalho manual e se dedica ao processo de pensar tecnicamente a
organização da produção. Por outro lado, todos os trabalhadores agora são desprovidos
dos meios para executar seu trabalho, o que os força a trabalhar em troca de um
32
salário. Cabe ressaltar que o processo de trabalho em si a produção da mercadoria -
continua a ser executado integralmente por cada trabalhador. É ele quem idealiza na
mente o produto final, define o método de trabalho e realiza toda a série de ações
necessárias à confecção do produto. No caso da produção de sapatos, por exemplo,
cada trabalhador era responsável por todas as fases do processo: primeiro cortava o
couro; depois lhe dava forma; após passava a cola, etc. Quais são então os aspectos
que fazem da cooperação simples um modo capitalista de produzir?
Inicialmente é preciso considerar que o grande diferencial em relação à
produção artesanal dá-se no aspecto
quantitativo. Sob condições de desenvolvimento
das forças produtivas, principalmente dos instrumentos de trabalho, ainda muito
limitadas tecnologicamente, a produtividade do trabalho é baixa. Consequentemente, o
trabalho de cada trabalhador é praticamente inteiramente necessário para mantê-lo. É
muito pequena a quantidade de sobretrabalho ou trabalho excedente gerada por cada
trabalhador sob essas condições. Ao reunir na mesma oficina um grande número de
artesãos, o capitalista executa dois movimentos: primeiro, consegue extrair uma
quantidade de sobretrabalho suficiente para liberá-lo da necessidade da atividade
laborativa, advinda da soma das pequenas quantidades de trabalho excedente gerada
por cada trabalhador. Enquanto o mestre-artesão mantinha sob sua tutela apenas alguns
aprendizes não conseguia ainda extrair sobretrabalho suficiente, mas agora que a
quantidade de trabalhadores aumenta, aumenta também a quantidade de trabalho
excedente gerada. O segundo movimento diz respeito à mudança advinda da reunião
de vários trabalhadores sob o comando do mesmo capital. Mesmo sem ter havido
inicialmente avanços tecnológicos ao nível dos instrumentos e do processo de trabalho
em si, na cooperação simples a produtividade do trabalho aumenta significativamente,
seja pela economia dos meios de produção, agora reunidos e racionalizados, seja pelo
processo de emulação desencadeado sobre os trabalhadores com sua unificação. A
quantidade transforma-se em qualidade. A simples reunião de maior número de
artesãos desprovidos de meios de trabalho na mesma oficina origem a um processo
de produção qualitativamente novo, pois agora se encontra subsumido ao processo de
33
valorização. Contudo, essa ampliação de produtividade do trabalho não aparece como
obra dos trabalhadores, visto que
Sendo pessoas independentes, os trabalhadores são indivíduos isolados que entram em relação
com o capital, mas não entre si. Sua cooperação começa no processo de trabalho, mas,
depois de entrar neste, deixam de pertencer a si mesmos. Incorporam-se então ao capital.
Quando cooperam, ao serem membros de um organismo que trabalha, representam apenas
uma forma especial de existência do capital. Por isso, a força produtiva que o trabalhador
desenvolve como trabalhador social é a produtividade do capital (MARX, 2001: 386).
Será esse aumento da produtividade do trabalho social que servirá de alicerce
para a consolidação das relações capitalistas de produção. Silva (2005) irá enfatizar
que aqui se estabelece a divisão entre trabalho intelectual e manual no processo de
trabalho
4
. Ou seja, os artesãos que anteriormente se dedicavam a pensar e executar o
processo de produção em toda sua integridade – planejamento do uso da matéria-prima
e meios de trabalho, o processo de trabalho em si, a venda do produto, entre outros
aspectos agora se restringem a produzir a mercadoria na quantidade e espécie que o
capitalista define. Pensamos que essa separação apresenta-se como movimento
contínuo e progressivo ao longo da consolidação do modo de produção capitalista
como componente da subsunção
5
do trabalho ao capital. Essa forma de organização da
produção, a cooperação simples, ainda coloca grandes limites à acumulação crescente
do capital. Um desses limites refere-se à vinculação inevitável do aumento da extração
de mais-valia ao aumento da jornada de trabalho. Assim, devido à base técnica
previamente estabelecida e herdada do artesanato, a
mais-valia absoluta constitui-se
na forma predominante de extração de mais valia na cooperação simples. Dessa forma,
o limite imposto ao aumento da extração de mais-valia está posto tanto pelos limites
físicos da jornada de trabalho quanto pela resistência dos trabalhadores. Será preciso
expropriar do trabalhador o conhecimento e, consequentemente, o controle acerca do
4
Enfatizamos que estamos nos referindo aqui à divisão internamente ao processo de trabalho e não à
divisão social do trabalho, na qual os homens passam a se restringir a um determinado ramo produtivo
e obter os outros produtos necessários através da troca com outros produtores independentes. Essa
última não é fruto do capitalismo, embora sob essas relações ela aprofunde a um nível jamais
alcançado na história da humanidade.
5
Analisaremos mais profundamente a categoria subsunção a seguir, ao discutirmos a divisão
manufatureira do trabalho.
34
processo de trabalho, dando um caráter científico ao saber aplicado na produção,
revolucionando, assim, as bases materiais do processo de trabalho. A divisão
manufatureira do trabalho e, depois, a maquinaria permitirão ao capital maior controle
e, consequentemente, maior grau de exploração sobre a força de trabalho.
(BRAVERMAN, 1987; ROMERO, 2005).
Antes, porém, de analisarmos o período da divisão manufatureira do trabalho é
importante ressaltar que no período em que domina a cooperação simples como forma
social hegemônica de apresentação do trabalho, a qualificação para o trabalho
encontra-se, pelas próprias bases materiais existentes, muito vinculada ao trabalho
artesanal. Embora destituídos da autonomia característica dos produtores
independentes, visto que agora são assalariados pelo capital, os trabalhadores
continuam qualificando-se através do contato direto com a prática integral do processo
de trabalho.
Saber e fazer continuam sob controle do mesmo sujeito sendo que, por
isso, continuam qualificando-se como trabalhadores integrais no que se refere à
qualificação técnica manual e intelectual. Os aspectos que foram expropriados de seu
fazer foram, principalmente, aqueles relativos à gerência da produção e à vinculação
da produção com a circulação de mercadorias, como compra de matéria-prima, venda
dos produtos, entre outros, que agora se encontram sob controle do capitalista ou de
algum artesão-chefe que o representa dentro da oficina.
35
2.4 A DIVISÃO MANUFATUREIRA E SEUS IMPACTOS SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO
(...) Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários
para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,
de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.
(MELO NETO, 1997: 319)
Devemos entender a manufatura, menos como uma forma social de produção
em si do que como um processo de transição do artesanato para o modo industrial de
produção de mercadorias. Segundo Marx (2001), o período em que predomina a
manufatura vai de meados do século XVI até fins do século XVIII e apresentou-se
como um momento de luta encarniçada contra os ofícios e artesãos. Ao mesmo tempo,
constitui-se no período em que o capital lança as bases materiais para a revolução do
processo de trabalho, primeiro da força de trabalho e depois dos instrumentos.
De forma geral, a divisão manufatureira do trabalho se caracteriza pela
parcelarização do processo de trabalho em várias etapas realizadas por trabalhadores
diferentes. No capítulo XII de
O Capital, Marx recupera as duas apresentações
diferentes de origem e forma da manufatura: a manufatura
heterogênea e a orgânica.
A primeira apresentação acontece pela reunião em um mesmo espaço de artesãos
especializados em diferentes ofícios; a soma dos produtos do trabalho dos diferentes
artesãos fornece a mercadoria final. O autor cita o exemplo da fabricação de uma
carruagem. Para ser produzida precisa de serralheiros, pintores, carpinteiros entre
outros. Sob o feudalismo, o carpinteiro trabalhava de forma independente e exercia sua
prática sobre a madeira da carruagem, da cadeira, da moradia, etc. Ao passar para uma
manufatura, esse trabalhador passa a se especializar cada vez mais na prática sobre as
partes de madeira pertencentes somente às carruagens. No início, na cooperação
simples, a fabricação de carruagens consistia numa combinação de ofícios
independentes. “Progressivamente, ela se transformou num sistema que divide a
36
produção de carruagens em suas diversas operações especializadas”(MARX, 2001:
391). O carpinteiro deixa de ser um trabalhador independente para se tornar um
trabalhador responsável por uma etapa do processo de produção de carruagens. A
manufatura
heterogênea é uma forma especial de manufatura devido à natureza de seu
objeto, ou seja, o elemento sobre o qual intervém o trabalhador impõe um processo de
produção específico. Os processos de produção em que domina essa forma de
manufatura serão mais dificilmente transformados em processos industriais. Isso se
deve ao fato de que essa relação externa do produto acabado com seus diferentes
elementos torna acidental a congregação dos diferentes trabalhadores parciais na
mesma oficina. “As operações parciais podem mesmo ser executadas como ofícios
independentes entre si.” (Idem; 398). Marx ressalta que essas operações tanto podem
ser reunidas em uma mesma manufatura quanto podem ser dispersamente produzidas
utilizando, inclusive formas de trabalho em domicílio. O capital pode reunir uma parte
das operações em uma oficina centralizada (principalmente aquelas de montagem final
do produto) e manter outras descentralizadas. Diversos fatores irão determinar
historicamente quais serão as conformações que esses processos de produção poderão
adquirir. Pensamos ser importante, no momento histórico em que vivemos, uma
retomada dos estudos acerca da manufatura
heterogênea, por dois motivos principais.
O primeiro é que estamos vivenciando no atual momento de desenvolvimento do
capitalismo um processo de mudanças na organização da produção industrial pautada,
além do maior desenvolvimento tecnológico, por retomadas pelo capital de formas
organizativas muito semelhantes àquelas citadas por ocasião da divisão manufatureira
do trabalho. O chamado “regime de acumulação flexível” ao mesmo tempo em que
contém avanços importantes do desenvolvimento tecnológico, reatualiza formas
pretéritas de exploração da força de trabalho em que volta a ganhar grande dimensão a
extração de mais-valia absoluta. (ANTUNES, 1995; HARVEY, 2004). É o caso do
trabalho a domicílio, por exemplo. Pensamos que a forma organizativa que permite
esse tipo de exploração é uma forma industrial com várias características da
manufatura heterogênea. O segundo motivo que nos faz pensar que um estudo mais
detalhado da manufatura heterogênea é fundamental encontra-se relacionado ao nosso
37
objeto de estudo: o trabalho em saúde. Pensamos, e tentaremos demonstrá-lo à frente,
que em muitos aspectos a organização do trabalho em saúde reproduz formas
organizativas semelhantes às da manufatura heterogênea. A própria forma de divisão
do trabalho inerente ao trabalho em saúde mantendo, em alguns casos, certa
independência entre diferentes etapas apresenta-se diferente da maioria dos
processos produtivos.
Outra origem e forma de manufatura é a
orgânica. Essa forma tem sua origem
na reunião em uma mesma oficina de vários trabalhadores que realizam o mesmo
ofício. Estes, em alguns casos com a ajuda de algum aprendiz, são responsáveis pela
produção integral de determinada mercadoria. A pressão do capital para aumentar o
número de mercadorias por intervalo de tempo faz com que, com o passar do tempo,
em vez de um trabalhador continuar realizando todas as etapas sucessivas do processo
de produção, estas sejam isoladas, separadas no espaço e passem a ser realizadas por
trabalhadores diferentes. Com essas experiências repetindo-se e demonstrando sua
eficiência e aumento de produtividade, passam a ser cristalizadas, assim como seus
realizadores. “A mercadoria deixa de ser produto individual de um artífice
independente que faz muitas coisas para se transformar no produto social de um
conjunto de artífices, cada um dos quais realiza, ininterruptamente, a mesma e única
tarefa parcial.” (MARX, 2001: 392).
Portanto, a manufatura, que havia unificado os artesãos apenas sob o mesmo
espaço, começa a unificar seus trabalhos em um único corpo coletivo. O processo de
unificar vários artesãos em um mesmo espaço, sob o mesmo capital, constitui a base
que propicia a homogeneização das diversas apresentações do mesmo processo de
trabalho. Uma vez unificado o processo de trabalho em uma única forma homogênea,
pode-se estudar as diferentes etapas do mesmo, seu encadeamento, tempos,
movimentos e ações necessárias para executá-las. Nesse corpo coletivo caberá a cada
trabalhador, não mais a produção integral do produto, mas uma tarefa particular,
parcelar. Não produzirão eles, por exemplo, isoladamente os sapatos; pelo contrário,
cada sapato será produzido por vários deles simultaneamente. Um primeiro
trabalhador cortará o couro, um segundo o esticará, um terceiro passará a cola... Até
38
que ao final do processo se tenha um sapato completo. Nenhum trabalhador produzirá
o sapato e
todos os trabalhadores produzirão o sapato.
Esse processo denominado divisão manufatureira do trabalho faz aprofundar
em escalas menores a existente pré-capitalista divisão social do trabalho. A
produção social que destituiu cada homem da possibilidade de produzir todos os bens
necessários a sua existência, sendo obrigado a se deter na produção de um ou poucos e
obter por meio do intercâmbio os outros produtos, agora é aprofundada a um nível
espetacular. Trabalhador nenhum passa a ser capaz de produzir isoladamente sequer
um produto. A produção de um único sapato passa a ser obra de um trabalhador
coletivo. Porém não é linear a continuidade entre a divisão social e manufatureira do
trabalho, não é um processo harmônico, contínuo. Existe uma diferença qualitativa
entre uma e outra. A divisão social do trabalho é aquela que o divide em diferentes
ofícios, cada trabalhador produz integralmente uma mercadoria, e adquire as demais
que necessita através do intercâmbio com outros produtores. Ou seja, cada trabalhador
é detentor do conhecimento e do controle acerca de um processo de trabalho. A
divisão manufatureira ao aprofundar a divisão social do trabalho, expropria do
trabalhador a possibilidade de produção independente de uma mercadoria. Não produz
mais ele uma mercadoria integralmente; essa tem de ser produto do trabalho de vários
trabalhadores. Esse passo, a divisão manufatureira do trabalho, propiciou um aumento
da produtividade do trabalho sem precedentes na história humana, pois, cada
trabalhador agora preso a uma tarefa única, parcelar, portanto mais simples, torna-se
um especialista nessa função. Logo, a exerce com uma destreza e perfeição até então
inconcebíveis para o antigo artesão. Não é nosso objetivo nesse trabalho analisar
pormenorizadamente as conseqüências que esse processo teve para o desenvolvimento
das forças produtivas e o estabelecimento e manutenção do capitalismo como modo de
produção hegemônico. Todavia, queremos apenas enfatizar um aspecto que pensamos
ser central para a análise que estamos fazendo. Após a divisão manufatureira do
trabalho, com a incorporação do caráter capitalista à cooperação, o trabalho de cada
ramo de produção passou a ser dividido em diferentes etapas executadas por
trabalhadores diferentes. O processo de trabalho, composto por um encadeamento de
39
diferentes etapas, passa a ser fragmentado e a ter cada das etapas parcelares isolada no
tempo e no espaço, e sob controle de diferentes agentes. Com cada etapa iniciando-se a
partir do resultado da etapa anterior, esse tipo de processo passa a apresentar diversas
conseqüências, entre elas, a mais importante para os capitalistas, uma maior
racionalização do processo de trabalho, levando a um aumento da produtividade do
trabalho. Mas, há também conseqüências sobre os trabalhadores, entre elas, uma
progressiva especialização dos sujeitos realizadores das etapas parcelares; sim, pois, se
os trabalhadores, ao contrário de executarem todas as etapas do processo, se fixam em
somente uma delas, tornam-se inevitavelmente especialistas nessa tarefa, executam-na
com uma destreza e habilidade inconcebíveis para o antigo artesão. Por outro lado, ao
se especializarem em uma única tarefa parcial, com o tempo deixarão de possuir o
domínio sobre o processo de trabalho em sua totalidade. Não serão produtores de
sapatos, mas cortadores de couro, passadores de cola etc. Possivelmente, não saberão
mais fabricar sapatos. Por isso, ao descrever esse processo contraditório, Marx (2001:
394) dirá que “a manufatura produz realmente a virtuosidade do trabalhador
mutilado”.
Outro aspecto que começa a se consolidar com a manufatura é a divisão entre
trabalho intelectual e manual. Se na cooperação simples o trabalhador, por manter-se o
trabalho de base artesanal, continuava dominando e executando integralmente o
processo de produção de determinada mercadoria, com a divisão manufatureira, e a
vinculação estrita do trabalhador manual a uma etapa do processo de produção,
começam a “separar-se planejamento e execução em sujeitos diferentes. Agora, o
controle do processo de produção, advindo do conhecimento acerca do processo de
trabalho, começa a ser materializado na figura do nascente trabalhador intelectual. A
unidade entre teoria e prática que anteriormente se materializava na figura do
trabalhador individual o artesão agora passa a se consubstancializar na figura do
trabalhador coletivo. Portanto, continua havendo unidade entre esses dois
componentes do trabalho no processo de produção, porém essa unidade começa a se
localizar em sujeitos diferentes. É importante ressaltar que essa restrição de diferentes
sujeitos a papéis diversos no processo produtivo acaba por cristalizar duas categorias
40
diferentes de trabalhadores: os trabalhadores manuais e os intelectuais. Sob as relações
capitalistas de produção, trabalho intelectual e manual conformam uma unidade de
opostos. Ao mesmo tempo em que são indissociáveis e complementares, estabelecem
entre si uma relação tensa na qual o trabalho manual encontra-se dominado, subjugado
pelo trabalho intelectual que tem a função de exercer o controle sistematização e
elaboração de conhecimentos, disciplinamento, gerência científica do processo de
produção.
As forças intelectuais da produção se desenvolvem num sentido, por ficarem inibidas em
relação a tudo que não se enquadre em sua unilateralidade. O que perdem os trabalhadores
parciais, concentra-se no capital que se confronta com eles. A divisão manufatureira do
trabalho opõe-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade
de outrem e como poder que os domina. Esse processo de dissociação começa com a
cooperação simples, em que o capitalista representa, diante do trabalhador isolado, a unidade e
a vontade do trabalhador coletivo. Esse processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o
trabalhador, reduzindo-o a uma fração de si mesmo, e completa-se na indústria moderna, que
faz da ciência uma força produtiva independente do trabalho, recrutando-a para servir ao
capital. (MARX, 2001: 416)
Assim, se dirá que o capitalismo, ao separar os trabalhadores em manuais e
intelectuais, não somente separou o conhecimento (a ciência) do produtor direto como
o transformou em algo hostil a este (BRAVERMAN, 1987; ROMERO, 2005).
Assim como a divisão do trabalho sofre uma mudança qualitativa com a
manufatura, também a qualificação do trabalho, como conseqüência desse processo,
sofrerá alterações profundas. Não mais caberá ao processo de qualificação a formação
de um trabalhador do tipo artesanal, vinculado a um ofício por toda a vida o qual
domina integralmente. Pelo contrário, com a divisão manufatureira do trabalho esse
tipo de trabalhador torna-se desnecessário e até empecilho à produção. Do ponto de
vista da qualificação técnica manual, será necessário menos tempo e recursos para a
formação de trabalhadores parcelares. Isso terá duas implicações práticas importantes
para os trabalhadores: primeiro com a diminuição do tempo necessário à (re)produção
do trabalhador no aspecto da qualificação diminui também o valor da força de
trabalho. Também, como conseqüência desse processo, não mais existe a fixação do
trabalhador em um único ofício por toda a vida, pois, as tarefas parcelares a serem
executadas podem ser aprendidas em poucos dias ou horas de treinamento. Portanto,
41
agora, por estarem desprovidos dos meios de produção e do conhecimento/controle de
seu trabalho, encontram-se inteiramente dependentes do capitalista para adquirirem os
meios necessários à sua existência. Isso fará com que a força de trabalho possua
características muito semelhantes às outras mercadorias, cuja concorrência no mercado
contribuirá para determinar a variação de seu preço em torno do valor.
Por outro lado, continuará havendo, nesse momento, a necessidade de uma
qualificação que propicie o conhecimento integral do processo de trabalho a fim de
dirigi-lo. Todavia, essa qualificação que no trabalho artesanal era voltada para o
conjunto dos trabalhadores, agora passa a ser direcionada para um setor específico
dessa classe: os trabalhadores intelectuais. Esses continuarão necessitando de uma
qualificação mais aprofundada acerca do processo de trabalho, alicerceada no
desenvolvimento científico e tecnológico. Desenvolvimento, aliás, que sofrerá um
grande impulso durante o período manufatureiro como conseqüência da pressão por
maior produtividade do trabalho. Nesse período, além da revolução na força de
trabalho, procede-se um grande processo de especialização do instrumental de trabalho
em correspondência à progressiva especialização dos trabalhadores parcelares e que
desenvolverá a base técnica necessária à constituição futura da maquinaria. É
importante ressaltar que entre os trabalhadores intelectuais existe uma progressiva
gradação de funções que evidenciam o nível de distanciamento do trabalho manual
diretores de chão de fábrica, engenheiros, gerentes de produção, etc às quais
corresponderão diferentes níveis de complexidade da qualificação (BRAVERMAN,
1987; SILVA, 2005). Portanto, no progressivo movimento de subsunção do trabalho
ao capital, podemos dizer que a manufatura marca o momento do início da separação
entre qualificação técnica manual e intelectual.
Outro aspecto que sofrerá transformações significativas será o da qualificação
superestrutural. A manufatura corresponde à primeira forma de organização da
produção com vistas à extração de sobretrabalho na forma de mais-valia; corresponde,
portanto, à primeira apresentação capitalista da produção social. Logo, é aqui o
momento em que se torna dominante o capital sobre o trabalho. Essa contradição
permanente será o fator condicionador da constituição da superestrutura jurídico-
42
política-ideológica sob o capitalismo. As diversas apresentações dessa superestrutura
exercerão o papel de reproduzir essa relação de dominação da forma mais eficiente
possível. A qualificação superestrutural, portanto, corresponderá a essas necessidades
postas pelas relações e pelo processo de produção sob o capital. Com a divisão
manufatureira do trabalho, e principalmente a partir do surgimento da indústria,
começa a haver por parte do capital a instituição de formas de qualificação
superestrutural para cada setor da força de trabalho. Aos trabalhadores intelectuais será
instituído um processo de internalização de valores e concepções da classe dominante,
processo que será facilitado pelas condições infraestruturais presentes de
distanciamento desses em relação aos trabalhadores manuais, tanto salarialmente como
do ponto de vista do controle sobre o processo de produção. Os trabalhadores
intelectuais já surgem, portanto, como agentes do capital dentro do processo produtivo.
Em relação aos trabalhadores manuais, terá o capital de iniciar também um intenso e
permanente processo de adequação às relações de produção, e para isso se valerá de
vários mecanismos de disciplinamento, internos e externos ao processo de trabalho.
Essa necessidade será evidenciada inicialmente durante a manufatura devido a
particularidades inerentes a essa forma histórica. A principal questão com o qual terá
de lidar o capital nesse período será a resistência manifestada pelos trabalhadores ao
processo de aprofundada divisão do trabalho. Devemos lembrar que o perfil do
trabalhador que “serviu” à manufatura era de dupla origem: de um lado os antigos
artesãos e aprendizes e, de outro, a maioria formada por trabalhadores expulsos do
campo. Nenhum dos dois tipos era o ideal para um processo de intensa divisão e
especialização do trabalho. Os antigos artesãos porque viam na manufatura um
processo de progressiva expropriação de seu controle e conhecimento acerca do
trabalho, que tinha como conseqüência a degradação de suas condições de vida. E os
antigos camponeses porque haviam trabalhado durante toda a vida de maneira menos
intensa, menos disciplinada e com menor nível de monotonia, visto que o trabalho
agrícola, pelo baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas nesse período,
apresenta-se ainda excessivamente condicionado pelos tempos e condições impostos
pela natureza. Portanto, a adequação desses dois tipos de trabalhadores ao trabalho na
43
manufatura será um processo que exigirá do capital um grande esforço que durará todo
o período manufatureiro. A essa luta em que o capital tenta dominar o trabalho
denomina-se
subsunção do trabalho ao capital. A categoria subsunção é de
importância ímpar para a compreensão da relação dialética entre processo de trabalho
e processo de valorização e foi profundamente trabalhada por Marx (1979) no
Capítulo VI inédito de O Capital. Nessa obra, o autor enfatiza o processo pelo qual o
capital não somente
subordina, mas também inclui o trabalho em sua dinâmica de
acumulação. Com a subsunção, o trabalho transforma-se em seu contrário, ou seja, em
capital. Trabalho sob a forma especificamente capitalista de produção passa a somente
existir como
capital variável. Esse processo de subordinação/inclusão apresenta-se de
maneira progressiva expressando ao nível do processo de produção a consolidação
progressiva das relações sociais capitalistas. O primeiro momento dessa subsunção é a
subsunção formal, a qual se pode definir como sendo o processo de vinculação do
processo de trabalho ao processo de valorização sob bases materiais ainda não
propriamente capitalistas (ROMERO, 2005). Em seu início o capitalismo ainda se
alicerçava em bases herdadas do feudalismo, pois, o processo de trabalho permanecia
subjugado à subjetividade do trabalhador. Embora o capitalista detivesse agora o
controle geral sobre o processo de produção de maneira mais ampla, continuava sendo
o trabalhador manual quem exercia o controle sobre o processo de trabalho em si. Dito
de outra maneira, esse processo de
subsunção formal do trabalho ao capital, ou seja, as
fases da cooperação simples e da manufatura, limitaram-se a expropriar as condições
objetivas (os meios de produção), não expropriando as condições subjetivas do
processo de trabalho (o saber operário). Isso fazia com que nesse período, embora o
processo de trabalho estivesse subsumido ao processo de valorização, o capital
ainda dependia do trabalho vivo para ditar o ritmo e a forma da produção. A
habilidade, destreza e velocidade do trabalhador eram os fatores determinantes da
produtividade do trabalho, ou seja, o processo de valorização continuava dependente
do trabalho vivo, o que colocava limites importantes à acumulação. Além disso, a
própria demanda posta para a produção social, estimulada pela manufatura, passava a
suplantar progressivamente a capacidade produtiva da mesma Por isso, pode-se dizer
44
que a própria manufatura trará em si o germe de sua superação. Dentre as muitas
oficinas que a manufatura criou, uma será especial: a manufatura de ferramentas.
Nessa manufatura serão produzidas, por artesãos, as primeiras máquinas e estas ao se
mostrarem eficientes e tornarem-se hegemônicas eliminarão o trabalho manual como
fundamento da produção. Somente com a maquinaria controlando o processo de
produção poder-se-á dizer que o trabalho encontra-se
realmente subsumido ao capital.
2.5 OS IMPACTOS DA MAQUINARIA E DA GRANDE INDÚSTRIA SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
Mal deve ser de operário;
ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
e máquina independente
de operação operária. (...)
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.
(MELO NETO, 1997: 319,321)
Após a mudança que a divisão manufatureira provocou no processo de trabalho,
principalmente em seu aspecto subjetivo (a força de trabalho), a grande revolução
desencadeada pela grande indústria teve como objeto os meios de trabalho. É com o
desenvolvimento da maquinaria que o capital consegue retirar do trabalhador o papel
central no processo de produção e, consequentemente, consolida-se a
subsunção real
do trabalho ao capital. Para entendermos melhor como se deu esse processo,
recorreremos seguidamente ao capítulo XIII do livro I de
O Capital, no qual Marx faz
uma profunda e elucidativa análise dessa transição.
Um primeiro aspecto abordado pelo autor e que é fundamental para a
compreensão desse nível de revolução provocado pela grande indústria é a distinção
entre ferramenta e maquinaria. Marx contesta a concepção simplista de que
45
ferramentas e máquinas correspondessem essencialmente ao mesmo objeto, separados
apenas pelo nível de desenvolvimento tecnológico, ou seja, rejeita a idéia segundo a
qual a máquina seria apenas uma ferramenta complexa, e a ferramenta uma máquina
simples. Contesta também a tese de que a diferença se encontra na força motriz: ou
seja, que a ferramenta seria movida pela força humana, enquanto que a máquina seria
movida de outras formas. Segundo ele, a distinção deve ser observada principalmente
no papel que uma e outra desenvolvem no processo produtivo. Embora ambas
representem historicamente diferentes formas de apresentação dos meios de trabalho,
ocorre uma mudança qualitativa na transformação da ferramenta em máquina.
Enquanto aquela cumpre o papel de instrumento a serviço do trabalhador para a
execução de determinadas tarefas, a máquina coloca o trabalhador a seu serviço para a
ação sobre o objeto de trabalho.
Das partes constituintes de toda maquinaria motor, transmissão e máquina
ferramenta - foi da máquina-ferramenta que partiu a revolução industrial do século
XVIII. Essa transformação consistiu basicamente na reunião de diversas ferramentas,
que eram utilizadas pelo artesão ou por uma série de trabalhadores em um determinado
processo de produção, que foram acopladas a um mecanismo único. Ou seja, na
maioria das vezes, as próprias ferramentas utilizadas pelo artesão ou pelo trabalhador
parcelar “passaram a ser utilizadas” pela máquina. “Quando a ferramenta propriamente
dita se transfere do homem para um mecanismo, a máquina toma o lugar da simples
ferramenta”. (MARX, 2001: 430). Esse mecanismo único, inicialmente, em muitos
casos, teve como força motriz o próprio homem, pois, a revolução industrial se
apodera primeiro das ferramentas, deixando para o trabalhador aquela função. Porém,
com o passar do tempo, a força humana como forma de propulsão mostra-se limitada
para a produção industrial e desenvolvem-se outras formas de propulsão mais potentes
e regulares como o vapor e, mais tarde, os combustíveis vários. É essa transformação,
dos instrumentos de trabalho do homem em ferramentas incorporadas a um aparelho
mecânico, que propiciará aos meios de trabalho a emancipação dos limites próprios da
organicidade humana. Um trabalhador somente podia operar um número reduzido de
instrumentos simultaneamente, com uma velocidade também limitada sendo que,
46
agora, uma máquina pode mover vários instrumentos simultaneamente e com
velocidades cada vez maiores.
A maquinaria surge através da superação da manufatura e, como representante
do novo, traz em sua forma elementos da forma antiga, superada. Isso fica evidente
no processo de produção, onde pode se constituir, de forma semelhante à manufatura,
uma espécie de “cooperação simples” de máquinas ou um sistema de “divisão de
trabalho”entre máquinas. O primeiro caso ocorre em indústrias em que cada máquina,
à semelhança do antigo artesão, realiza todas as etapas da produção de determinada
mercadoria e a ligação entre elas se restringe à força motriz única. O segundo caso
existe em indústrias em que cada máquina realiza algumas etapas do processo de
produção e transfere à máquina seguinte um produto inacabado a matéria-prima -
sobre o qual esta realizará outras etapas, e assim sucessivamente. Trata-se da divisão
manufatureira herdada e reproduzida, agora entre máquinas. A existência de máquinas
isoladas passa a ser progressivamente superada pelo sistema orgânico de máquinas-
ferramenta combinadas que recebem todos os seus movimentos de um autômato
central. Ao instalar-se em determinado ramo de produção, a maquinaria passa a
“tensionar” os demais ramos conexos direta e indiretamente a aumentarem sua
produtividade a fim de corresponderem à demanda posta pela produção industrial.
Assim, progressivamente, a indústria vai se apoderando de todos os ramos de produção
e revolucionando os meios de trabalho. De todos esses ramos dos quais se apoderou a
maquinaria, um teve um papel fundamental e decisivo para a consolidação da grande
indústria, qual seja, o ramo de produção de máquinas. Inicialmente os produtores de
máquinas-ferramenta eram artesãos ou trabalhadores da manufatura, pois foram eles
que, com sua habilidade e conhecimento, passaram a anexar suas próprias ferramentas
em um mecanismo único que passava a reproduzir os movimentos dos trabalhadores.
A manufatura, portanto, constitui-se em base técnica imediata da grande indústria. Isso
colocava entraves para o desenvolvimento industrial, pois a grande indústria
continuava, na produção de máquinas, dependente do trabalho artesanal de uma
reduzida e limitada categoria de trabalhadores. Não tardou a essa contradição chegar a
um limite, tendo a grande indústria, a partir do século XIX, de “erguer-se sobre seus
47
próprios pés” criando as indústrias de máquinas (MARX, 2001: 441). Esse movimento
progressivo e necessário, de domínio da maquinaria sobre os inúmeros processos de
produção, determinará, por sua vez, uma revolução e um progresso também sem
precedentes em outros setores da sociedade. Sejam aqueles diretamente ligados ao
processo produtivo, como os diferentes campos da ciência a mecânica, química,
entre outros sejam aqueles indiretamente ligados à produção como o transporte, a
comunicação, o comércio etc.
A revolução provocada pela grande indústria provocará transformações
importantes no processo de qualificação para o trabalho. Marx ressalta que o
surgimento da maquinaria e da grande indústria possibilitou a
subsunção real do
trabalho ao capital e essa nova correlação será, do ponto de vista concreto, a expressão
do novo papel que passa a caber ao trabalhador no processo de produção. Segundo
Romero (2005), a subsunção real, para Marx, fundamenta-se em duas características
fundamentais. A primeira delas refere-se à transformação dos instrumentos de trabalho
em máquinas, o que leva, como vimos, a uma
autonomização dos mesmos no processo
de produção. A segunda característica refere-se ao caráter científico dado à produção
através da divisão entre planejamento e execução, o que leva a um processo em que o
trabalho perde seu caráter de
auto-atividade. Essas características são expressões
teóricas de evidências concretas analisadas por Marx no processo de trabalho quando
da introdução da maquinaria. Ele expressa a gênese da mudança da qualificação
necessária para o trabalho na seguinte citação:
Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, serve à
máquina. Naqueles, procede dele o movimento do instrumental de trabalho; nesta, ele tem de
acompanhar o movimento do instrumental. Na manufatura, os trabalhadores são membros de
um mecanismo vivo. Na fábrica, eles se tornam complementos vivos de um mecanismo morto
que existe independente deles (MARX, 2001: 482).
Por constituir-se como sua base técnica imediata também é a manufatura que
fornece à indústria a base original da divisão e, consequentemente, da organização do
processo de produção. A cooperação entre os trabalhadores, que era determinada pela
divisão do processo de trabalho passa a ser condicionada pela divisão deles entre as
diferentes máquinas. A divisão do trabalho é substituída pela divisão em servir
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diferentes máquinas, sendo que, a cristalização em uma tarefa parcelar por toda a vida
é substituída pela tarefa de servir a uma única máquina.
Um primeiro aspecto importante, que cabe ser analisado, é o fato de que, com a
introdução da maquinaria, chega-se ao ápice de um movimento iniciado na transição
do artesanato para a manufatura que se caracteriza por uma
simplificação progressiva
das tarefas que cabem ao trabalho vivo. Com o artesanato, o trabalhador realizava
todas as etapas da produção da mercadoria, realizava o trabalho integralmente em toda
a sua complexidade. Com a divisão manufatureira, passa a realizar uma ou algumas
etapas desse mesmo processo, porém continua detendo em grande parte o controle
sobre esse, continuando em muitos casos a ditar seu ritmo. Com a introdução da
grande indústria, a máquina passa a consubstancializar a totalidade do processo de
produção, definindo seu ritmo e etapas e fazendo do trabalhador um seu instrumento.
Ao trabalhador, que inicialmente ainda completava algumas etapas do processo de
produção ou servia de força motriz, passa a caber o papel de vigiar, monitorar ou
alimentar o grande autômato. Portanto, as tarefas do trabalhador vão progressivamente
se tornando mais simples, reservando-se a complexidade representativa da totalidade
do processo de produção à ciência consubstancializada na maquinaria, no trabalho
morto. Essa
simplificação aparece como conseqüência da especialização progressiva
do trabalhador durante esse processo. Como vimos, o processo de perseguição do
aumento da produtividade por parte do capital vai fragmentando o processo de
trabalho e lhe dando maior racionalidade científica, fazendo com que o trabalhador
seja progressivamente destacado para tarefas cada vez mais específicas.
Portanto, podemos dizer que o processo de transição do artesanato para o modo
de produzir do capital apresenta duas características fundamentais que impactam
fortemente a questão da qualificação para o trabalho. São elas a especialização
progressiva do trabalho e do trabalhador e a simplificação do papel que passa a caber
ao trabalhador manual. Posto isso, cabe ainda destacar alguns aspectos dessa
qualificação para o trabalho sob a grande indústria. Se, por um lado, as tarefas que
passam a ser reservadas para o trabalhador manual tornam-se tecnicamente menos
complexas, por outro a configuração da indústria passa a exigir outras qualificações do
49
trabalhador. O fato, por exemplo, de não mais ser o trabalhador quem determina o
ritmo de produção, faz com que seja necessário um disciplinamento físico para
conseguir se adaptar ao ritmo imposto pela máquina, que exige grande concentração e
atenção constante. Além desse disciplinamento físico, faz-se necessário um processo
de disciplinamento psicológico a fim de suportar, mantendo bom desempenho
produtivo, um trabalho enfadonho, alienante, como é próprio da grande indústria.
Portanto, se diminui a necessidade de investimento, por parte do capital, em
qualificação técnica manual, ganha maior dimensão a característica superestrutural da
qualificação para o trabalho. Com relação à qualificação técnica manual, ainda que
esta diminua, continua sendo necessária. Na maioria das vezes, não é mais necessária
a destreza e habilidade etc. - como qualificação técnica prévia à entrada na atividade
laborativa, porém, ao desenvolver sua atividade, qualifica-se o trabalhador, agora
segundo as exigências da maquinaria e não mais da divisão do trabalho. Isso é de suma
importância para o capitalista, pois, à medida que diminui a necessidade de
qualificação técnica prévia, diminui o gasto com a formação da força de trabalho,
diminuindo assim o valor da mesma. Essa é a principal conseqüência da introdução da
maquinaria para o capitalista: a alteração da composição orgânica do capital, ou seja, a
diminuição do capital variável (trabalho vivo) em relação ao capital constante
(trabalho morto), levando à maior extração de
mais-valia relativa.
Outro aspecto fundamental que cabe destacar é a consolidação de uma categoria
de trabalhadores responsáveis pelo trabalho técnico intelectual. Desde a manufatura,
consolida-se o papel do controle, da gerência do processo produtivo a cargo,
inicialmente, do capitalista e de seus capatazes. Porém, mesmo com a divisão
manufatureira do trabalho, ainda não se consolida uma categoria de trabalhadores
responsáveis pelo planejamento técnico-científico do processo de trabalho nas
dimensões na grande indústria. É quando o saber acerca do trabalho é apropriado pelo
capital na forma de ciência consubstancializada na maquinaria - que surge a
necessidade de um corpo técnico-científico para “pensar” o processo produtivo e
controlar o trabalho morto. Compõem o grupo dos trabalhadores intelectuais
produtivos – aqueles ligados ao processo de produção de mercadorias e de mais-valia -
50
tanto esse corpo descrito como técnico-científico responsável por planejar o processo
de produção – administradores, executivos – quanto aqueles que realizam tarefas
diretamente relacionadas aos meios de trabalho engenheiros, técnicos e à força de
trabalho psicólogos, gerenciadores de recursos humanos e etc. Esse corpo de
trabalhadores, consolidado e hipertrofiado com a implantação da grande indústria,
também será permeado pela tendência progressiva à parcelarização e especialização,
que acompanham o desenvolvimento científico em seus diversos setores e ramos de
produção.
Dois equívocos interpretativos recorrentemente se apresentam quando se
adentra a discussão acerca da separação entre trabalho intelectual e manual. O
primeiro deles refere-se à idéia de que a separação entre trabalhadores intelectuais e
manuais seria a demonstração da possibilidade da dissociação entre teoria e prática no
processo de trabalho e de construção do conhecimento. Por mais contraditório que
pareça, a teoria e a prática continuam indissociáveis no processo de trabalho
capitalista. A prática, ou seja, o trabalho manual continua sendo a fonte a partir da qual
toda sistematização e produção do conhecimento se justificam, sendo que será para
resolver problemas concretos, práticos, colocados pela produção, que o corpo de
trabalhadores intelectuais, seja do interior das indústrias, seja dos laboratórios de
pesquisa, será recrutado pelo capital. As práticas exercidas pelos trabalhadores
manuais, por sua vez, são guiadas pela ciência consubstancializada, seja nas máquinas,
seja nas técnicas e práticas produtivas. Assim, sob o capital, teoria e prática constituem
uma unidade de opostos: ao mesmo tempo em que são indissociáveis, vivem sobre
tensão permanente.
O outro equívoco freqüente nesse tema refere-se à idéia segundo a qual, o
trabalho poderia ser “totalmente” manual ou “totalmente” intelectual. Essa
“purificação” nem mesmo os mais modernos recursos tecnológicos e gerenciais sob
domínio do capital foram capazes de realizar. Isso, porque é impossível conceber
qualquer tarefa manual, por mais simples e limitada, que não exija certa elaboração
cognitiva para ser realizada. O mesmo pode-se dizer acerca das tarefas intelectuais;
51
todas exigem práticas manuais, em diferentes níveis e gradações, para serem
realizadas. (GRAMSCI, 1987).
2.6 AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO SOB O CAPITALISMO
ATUAL E SEUS IMPACTOS SOBRE A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO
Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha
como se fosse o Novo.
Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém havia visto, e exalava
novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado. (...)
Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal
levava consigo o Novo e o exibia como Velho.
O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor
de seus membros.
(BRECHT, 2000: 217)
Muito se tem elaborado nas duas últimas décadas acerca das mudanças em
curso no “mundo do trabalho”. Consolida-se a tese que defende a existência de um
processo de transição, a partir da década de 70, do processo de produção organizado
hegemonicamente sob a forma Taylorista-Fordista para outra forma com várias
características “novas”. Esse processo, que vem sendo alvo de inúmeras elaborações
de diversos autores importantes do campo da sociologia do trabalho (CORIAT, 1994;
HIRATA, 1994; ANTUNES, 1995; GOUNET, 1999), teve várias denominações
reestruturação produtiva, regime pós-fordista, regime flexível, regime pós-industrial,
entre outros. As elaborações e conceitos, que inicialmente centravam-se nos impactos
advindos da incorporação da automação de base microeletrônica, a chamada
especialização flexível, passaram a incorporar diversas outras categorias às análises
das mudanças do trabalho sob o capitalismo atual. A partir disso consolida-se a tese da
transição do “regime de acumulação Toyotista-Fordista” para o “regime de
acumulação flexível”. Vejamos uma caracterização geral do que inclui essa definição
na obra de um dos autores que lhe dá uma dimensão mais ampla, para além das
mudanças tecnológicas.
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez
do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de
trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos
52
mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e
organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões de
desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por
exemplo, um vasto movimento no emprego do chamado “setor serviços”, bem como conjuntos
industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (HARVEY, 1992, p.
140)
.
O autor em sua obra apreende desse processo vários aspectos que, a nosso ver,
se, por um lado, adquirem maior dimensão com esse novo ciclo de acumulação do
capital, por outro não se constituem em elementos de rompimento com a tendência
geral do trabalho sob o modo de produção capitalista. Iremos ressaltar a seguir, de
maneira sintética, visto que essa análise pormenorizada não constitui objeto desse
trabalho, as principais características dessa atual fase do capitalismo monopolista. Um
primeiro aspecto enfatizado pelos autores citados, refutando análises apologéticas, é o
fato de que essas novas formas de organização do processo de trabalho (como o
chamado toyotismo) não se impuseram em todas as esferas do mundo do trabalho e, na
prática, coexistem, mais ou menos complementarmente, com as formas do tipo
Taylorista-Fordista.
Outro aspecto importante é o fato de que o conceito de flexibilidade deve ser
tomado, em grande medida, como relacionado à esfera das relações de trabalho. Existe
um movimento que tende a reduzir cada vez mais o número de trabalhadores ditos
“centrais”, também chamados de “aristocracia do trabalho”, aqueles predominantes no
regime Taylorista-Fordista, com vínculo formal de trabalho, vinculados diretamente à
grande indústria, com maior segurança no emprego, gozando de vantagens indiretas
etc; Como compensação tende a aumentar progressivamente o número de
trabalhadores “periféricos” que possuem como característica principal o fato de
possuírem relações de trabalho mais precarizadas, com vínculo temporário ou
subcontratados e com menores salários (ANTUNES, 1995).
Um terceiro aspecto refere-se ao grande avanço tecnológico através do
estabelecimento da automação de base microeletrônica, o que corrobora para a
tendência crescente de incorporação da composição orgânica do capital; Esse processo
tem duas conseqüências importantes. A primeira é o aumento do
desemprego
estrutural,
servindo de fomento para aumentar as formas precarizadas de trabalho. A
53
segunda característica é uma maior intensificação sobre a força de trabalho a partir do
substrato propiciado pelas novas tecnologias (KATZ, 1996).
Um quarto aspecto identificado é a entrada do capital em “nichos” até então
tidos como sem importância, como o caso do setor de “serviços” ou áreas tecnológicas
muito complexas e específicas (bioengenharia, química fina, etc.) com mercado
consumidor mais restrito, que passam a constituir-se como fonte de extração de mais
valia.
Um quinto aspecto bastante citado é o que refere à reconfiguração mundial dos
pólos industriais. Esse aspecto refere-se ao movimento que o capital executa na busca
por melhores condições para o processo de acumulação. Isso inclui, por exemplo,
processos de desindustrializações em países do capitalismo central com a migração das
transnacionais para países que ofereçam condições “mais atraentes”, como, por
exemplo: baixos níveis salariais; relações trabalhistas precarizadas; precária ou ausente
organização sindical; políticas fiscais incentivadoras, entre outras.
Um sexto aspecto também muito citado é o que se refere à globalização e à
ampliação do papel do sistema financeiro na vida social de maneira geral.
Para COGGIOLA (1996) essas mudanças nos processos produtivos refletem
mecanismos criados pelo capital como resposta à crise enfrentada a partir da década de
70. Crise com grande participação de componentes estruturais como a queda da taxa
de lucro e a competitividade inter-capitalista levada a níveis extremos. Portanto, as
novas apresentações do mundo do trabalho seriam novas na forma, porém velhas de
conteúdo, consistindo em novas formas encontradas pelo capital para aumentar a
extração de mais-valia a fim de sobreviver frente às crises e a concorrência. A busca
incessante de melhores mecanismos para essa extração faz com que o capital crie uma
estratégia com duas frentes simultâneas de atuação. Por um lado, com o
desenvolvimento tecnológico amplia extração de mais-valia relativa e, por outro, com
a precarização das condições de trabalho e a intensificação, volta a ampliar os níveis
de extração de mais-valia absoluta. Ademais, concordando que o capital sempre busca
novas estratégias para garantir a dinâmica permanente de acumulação, pensamos que
grande parte do que muitos autores têm caracterizado como manifestações novas desse
54
processo tendem a ser, em realidade, aprofundamento de tendências evidenciadas
por Marx e outros autores marxistas no final do século XIX e início do século XX
6
.
Com relação à qualificação para o trabalho, a tendência é o acompanhamento
desse movimento dual de constituição da força de trabalho sob o capitalismo e que
parece não ter se alterado significativamente com o
regime de acumulação flexível.
Esse movimento, analisado por Marx em
O Capital, consiste na tendência
progressiva de separação crescente entre trabalho intelectual e manual, com o primeiro
subjugando e dominando o segundo. Autores como KLEIN (2003) e SILVA (2005)
destacam com ênfase a idéia segundo a qual continua havendo uma simplificação
progressiva do trabalho manual, com a incorporação de novas tecnologias, com o
trabalho mais complexo tendendo a ser objeto de um grupo de trabalhadores cada vez
mais restrito. Essa incorporação tecnológica é o aspecto que mais impressiona,
entretanto, embora possa ter havido um salto qualitativo com a implantação da
automação de base microeletrônica, não se consubstancializa em rompimento com a
tendência progressiva de alteração da composição orgânica do capital.
Quando olhamos com mais atenção para aqueles trabalhadores ditos “centrais”,
em setores produtivos constituídos pela automação de base microeletrônica, alguns
autores ressaltam o surgimento de uma tendência chamada “polivalência” ou
“multifuncionalidade”
7
, que poderia estar em contradição com a tendência de
simplificação do trabalho manual. Ao fazer uma crítica a tal tese, Kuenzer esclarece
que esse movimento caracteriza-se, em realidade, pela
(...) ampliação da capacidade do trabalhador para aplicar novas tecnologias, sem que haja
mudança qualitativa desta capacidade. Ou seja, para enfrentar o caráter dinâmico do
desenvolvimento científico-tecnológico, o trabalhador passa a desempenhar diferentes tarefas
usando distintos conhecimentos, sem que isto signifique superar o caráter de parcialidade e
6
Vide, por exemplo, a análise de LENINE, de 1916, Imperialismo a fase superior do capitalismo.
Vários aspectos descritos por HARVEY como novos já se encontram descritos pelo autor. É o caso da
ampliação do capital financeiro, da migração de capitais (indústrias) pelo mundo, da concentração
monopolista, entre outros.
7
Todos esses termos são utilizados para tentar definir o mesmo fenômeno, o que demonstra o pouco consenso
em relação à sua interpretação. Dentre todos esses, um dos mais polêmicos é o de
multifuncionalidade pelo fato
de se questionar se há realmente diferentes funções postas para o trabalhador além daquela de monitoramento
(vigilância) da maquinaria. Nesse caso, estar-se-ia confundindo diferentes atos/práticas com diferentes funções.
Agrada-nos o termo
multiparcelar e o de especialização flexível por expressarem, a nosso ver, a
contraditoriedade desse fenômeno.
55
fragmentação destas práticas ou compreender a totalidade. A este comportamento no trabalho
corresponde a interdisciplinaridade na construção do conhecimento que nada mais é do que a
inter-relação entre conteúdos fragmentados, sem superar os limites da divisão e da
organização, segundo os princípios da lógica formal (KUENZER, 2002a: 10).
Portanto, a polivalência não se apresenta contraditoriamente ao processo de
simplificação do trabalho, pelo contrário, um trabalhador somente pode realizar vários
atos diferentes porque o avanço tecnológico simplificou a um nível extremo o trabalho
que o restou para executar. Significa, em última instância, portanto, ser capaz de
realizar não uma, mas várias ações mais simplificadas. Ao descrever esse processo na
indústria automobilística, Coriat demonstra como essa “desespecialização” está
relacionada ao aumento da intensidade do trabalho, pois
Este movimento de desespecialização dos operários profissionais e qualificados, para
transformá-los em trabalhadores multifuncionais, é de fato um movimento de racionalização
do trabalho no sentido clássico do termo. Trata-se aqui, também como na via taylorista
norte-americana -, de atacar o saber complexo do exercício dos operários qualificados, a fim
de atingir o objetivo de diminuir os seus poderes sobre a produção, e de aumentar a
intensidade do trabalho (CORIAT, 1994: 53).
Com a emergência do que seria esse “novo” regime de acumulação flexível e,
consequentemente, das novas apresentações do processo de trabalho, passam a
desenvolverem-se também novas teorias e compreensões acerca da qualificação para o
trabalho. O acompanhamento que as categorias teóricas do campo educativo fazem ao
movimento das mudanças do mundo do trabalho, a nosso ver, expressa a atualidade da
discussão acerca do princípio educativo do trabalho, ou seja, as formas como as
relações sociais de produção educam/qualificam os trabalhadores para o mundo do
trabalho e para a forma de sociabilidade existente (KUENZER, 1985; SAVIANI,
1994; GRAMSCI, 2000). O maior exemplo de um conceito ligado ao campo da
qualificação que (re)surge ou pelo menos se consolida com a emergência do regime de
acumulação flexível é a idéia de
competência. De uma maneira geral, costuma-se
definir o campo das competências como composto por aquelas capacidades do
trabalhador em mobilizar e articular conhecimentos - tácitos e científicos e
demonstrar determinadas habilidades de caráter comportamental responsabilidade,
capacidade de trabalho em equipe, iniciativa, lealdade etc. - com vistas a resolver
56
problemas colocados pela nova conformação dos processos de trabalho flexíveis
(HIRATA, 1994; FERRETTI, 1997; KUENZER, 2003; SILVA, 2005).
Apesar de não se apresentar isenta de divergências a compreensão de qual papel
representa o conceito de
competência quando se trata da qualificação para o trabalho,
parece haver certa convergência dos autores acima citados acerca de alguns aspectos
desse processo. O primeiro refere-se ao fato de que, se o conceito de competência até a
década de 70 esteve mais vinculado ao domínio de práticas manuais, portanto uma
qualificação mais infraestrutural (técnica), agora são aspectos comportamentais e
mesmo cognitivos que passam a ser valorizados. Por isso, Silva (2005) dirá que o
conceito de competências refere-se mais aos aspectos superestruturais da qualificação
e, portanto, não pode ser usado como sinônimo da mesma. Ferreti (1997) concorda
com esse conteúdo (disciplinador, comportamental) das competências e o compreende
como uma idéia contemporânea de qualificação sob a lógica da nova conformação do
capital, contribuindo para o processo de subordinação dos trabalhadores ao capital
através do velamento dos interesses antagônicos de classe. Kuenzer (2003), por sua
vez, enfatiza o aspecto contraditório das competências, pois, se por um lado, estas são
constituídas por um forte conteúdo disciplinador e precarizador dos processos de
trabalho, por outro lado, representam uma necessidade, posta por estes, de o
trabalhador dominar mais a articulação dos conhecimentos, através do
desenvolvimento cognitivo mais complexo.
Em síntese, nos parece que esses autores, quando analisam o conceito de
competência, relatam um movimento interessante da categoria qualificação nesse atual
ciclo de acumulação do capital monopolista. Um movimento que, ao mesmo tempo em
que substitui o trabalho vivo por trabalho morto, aumenta a precarização da força de
trabalho restante e a intensidade da exploração sobre a mesma. Como conseqüência
disso, faz-se cada vez mais necessário o conteúdo superestrutural da qualificação, seja
através do disciplinamento mais hostil, seja através do envolvimento e da cooptação
dos trabalhadores para o projeto do capital, seja através de novas habilidades
cognitivas necessárias à intensificação do trabalho. Esse último parece ser um
fenômeno em curso, de forma mais evidente, nos setores em que a automação de base
57
microeletrônica é hegemônica, e aqui é importante ressaltar que esses setores são
minoria dentro da produção social. A “polivalência” ou “multifuncionalidade” que
poderíamos chamar de “multiparcelaridade” passa a exigir do trabalhador algumas
habilidades antes desnecessárias, como, por exemplo, a capacidade de adaptação a
novas tarefas, mesmo que simplificadas, a fim de conseguir absorver maior carga de
trabalho.
2.7 TENDÊNCIAS GERAIS DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO SOB O
CAPITALISMO
Após analisarmos as transformações pelas quais passou e passa constantemente
o trabalho elemento ontológico da existência humana pudemos elencar aspectos
que ajudam a conformar a concepção acerca da qualificação para o trabalho que, em
nossa compreensão, melhor nos guia na apreensão desse movimento pelo qual passa o
trabalho nos diferentes momentos da história humana. Como vimos anteriormente, a
qualificação para o trabalho, para nós, pode ser definida como o processo pelo qual o
trabalhador torna-se apto para a realização de determinado trabalho que lhe é exigido
pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas sob certas relações sociais de
produção dominantes. Inscrevem-se no campo dessa definição abstrata de qualificação
diversos elementos objetivos e subjetivos relacionados às distintas apresentações
histórico-concretas do trabalho. De forma geral esses diversos elementos podem ser
agrupados naquilo que Silva (2005) define como dimensão
infraestrutural (ou técnica)
e dimensão
superestrutural (ou ideológica) da qualificação para o trabalho. A primeira
refere-se às capacidades mentais e manuais destreza, habilidade, coordenação e etc -
necessárias à realização de determinadas ações práticas que o processo de trabalho
internamente exige. A segunda refere-se a outros componentes não inerentes ao ato de
realização de determinado trabalho, mas que são fundamentais para a manutenção e
reprodução das relações socais de produção segundo as quais aquele trabalho é
condicionado. Diversos outros autores, embora não usem esses conceitos
infra e
superestrutura –, também compreendem o processo de qualificação como constituído
58
por essas duas dimensões, uma mais “técnica” e outra mais “comportamental”
(SAVIANI, 1994; FRIGOTTO, 1996; FERRETTI, 1997). No caso da dimensão
técnica podemos ainda destacar seus aspectos manuais e intelectuais, que se
relacionam àquelas atividades laborativas em que predominam, respectivamente,
práticas manuais ou intelectuais. A dimensão
superestrutural da qualificação, muitas
vezes desconsiderada, constitui-se de concepções, atitudes, valores, reproduzidas por
inúmeros processos e aparelhos – instituições como a família, religião, escola, a
indústria, entre outros subjugados à ordem econômico-política dominante e
internalizadas pelos indivíduos como universais. São normas e valores que visam a
adequação e o disciplinamento como forma de aceitação das relações de produção e de
trabalho como adequadas e imutáveis. Essa dimensão
superestrutural não se relaciona,
na maioria das vezes, com um determinado processo de trabalho específico; pelo
contrário, geralmente corresponde a uma qualificação voltada para os trabalhadores
como classe, independentemente da função específica que exerçam no processo de
trabalho, embora os diferentes processos concretos de trabalho exijam mais
intensamente alguns aspectos desse tipo de qualificação do que outros. Determinada
forma de trabalho pode exigir, por exemplo, um alto grau de disciplina psico-física
para seu exercício eficiente, enquanto outras formas podem exigir maior envolvimento
subjetivo, emocional com o projeto do capital. É importante ressaltar que essa
subdivisão, em
infra e superestrutural, têm caráter didático a fim de ressaltar uma e
outra dimensão da qualificação. Concretamente elas se apresentam de forma
indissociável e interdependente. Há aspectos da qualificação técnica, por exemplo, que
o trabalhador somente pode dominar caso tenha passado por um processo de
disciplinamento prévio. Por outro lado, aspectos do disciplinamento que somente
manifestam sua necessidade a partir do estabelecimento de um processo prático de
trabalho mediado por determinadas técnicas. Portanto, estar qualificado para o
trabalho, em nossa compreensão, envolve estar apto tecnicamente e ideologicamente
para o exercício do processo que é, simultaneamente, processo de trabalho e de
valorização. Como pudemos ver, o conteúdo de ambas as dimensões da qualificação
não são cristalizados, mas históricos. O conteúdo técnico necessário para um artesão
59
produzir um sapato durante o feudalismo é muito diferente daquele que necessita hoje
qualquer trabalhador parcelar de uma indústria de sapatos. Também o conteúdo
superestrutural é muito diverso no caso desse mesmo exemplo. É muito maior o grau
de disciplina necessário à realização de uma atividade parcelar, por isso monótona, e
ditada por um ritmo externo e intensamente desgastante, para citar um aspecto da
dimensão superestrutural da qualificação para o trabalho. Logo, embora as duas
dimensões da qualificação sempre existam, varia o conteúdo e a relação entre elas,
determinada pela historicidade própria do desenvolvimento da humanidade e de suas
formas de produzir a existência.
Quando centramos nossa análise acerca da qualificação para o trabalho no
modo de produção capitalista por constituir o lócus de nosso objeto podemos
perceber a manifestação de algumas tendências históricas apreendidas por Marx e
confirmadas por inúmeros estudos e elaborações de outros autores, como os
anteriormente citados nesse capítulo.
Uma primeira tendência refere-se, como conseqüência da concorrência inter-
capitalista e da busca permanente de maior produtividade, à substituição progressiva
da força de trabalho (capital variável) por maquinaria (capital constante), ou de
trabalho vivo por trabalho morto: o chamado aumento da
composição orgânica do
capital. Isso se deve ao fato de que o aumento da extração de mais-valia relativa
depende fundamentalmente da diminuição do tempo de trabalho necessário. Envolve,
portanto, diminuir o gasto com força de trabalho aumentando assim a
objetivação do
trabalho.
A substituição do trabalhador por máquinas historicamente tem-se realizado
através de um processo progressivo de parcelarização do processo de trabalho em
várias partes isoladas e mais simples tornando possível, assim, que tais práticas sejam
incorporadas a um sistema autômato. Portanto, outra tendência histórica - a
progressiva
divisão e simplificação do trabalho - possui suas bases materiais nessa
necessidade do capital de aumentar constantemente a objetivação no processo de
trabalho. Simplificando o trabalho, o capital diminui também o valor da força de
trabalho, pois diminui seus gastos com qualificação. Essa progressiva simplificação do
60
trabalho e o atrelamento do trabalhador a uma ou a algumas práticas parcelares acaba
por determinar uma progressiva
especialização do trabalhador em determinada etapa
do processo de produção, ou seja, o desenvolvimento da
unilateralidade do trabalho.
Esse trabalhador especializado pode posteriormente ser substituído por “máquinas
especializadas”.
Uma terceira tendência histórica, conseqüente à objetivação crescente do
trabalho é a ampliação relativa da parcela dos trabalhadores responsáveis pelo
trabalho intelectual controle, gerência e desenvolvimento tecnológico do processo
de produção. Esse aumento deve-se tanto à diminuição relativa dos trabalhadores
manuais quanto à criação de novos ramos de produção e ciência que exigem
“elaboradores” e gerenciadores eficientes.
Outra tendência histórica importante de ser ressaltada refere-se à crescente
intensificação do trabalho. O capital opera sempre em duas vias: por um lado aumenta
a extração de mais valia relativa – com a mecanização, simplificação do trabalho – por
outro não subestima a possibilidade de extrair mais-valia absoluta, através de
ampliação da jornada de trabalho, por exemplo. A intensificação também se apresenta
através do aumento do ritmo de trabalho, do acúmulo de tarefas, entre outros. Por isso
Marx dirá que a substituição dos trabalhadores por máquinas não garante uma
diminuição da labuta diária dos trabalhadores.
Por fim, uma tendência do capitalismo, não descrita por Marx devido à falta de
bases materiais para tal, é um fenômeno que apresenta seu ápice na fase imperialista
do capitalismo. Refere-se à tendência de “relocação” do trabalho na sociedade atual.
Se, por um lado, diminui relativamente e, às vezes, absolutamente o número de
trabalhadores empregados na produção de mercadorias ditas “materiais”, por outro
lado, tem-se uma ampliação absoluta e relativa do número de novo trabalhos e
trabalhadores em setores como o de serviços e o setor estatal, entre outros
(ANTUNES, 1995). Não nos deteremos pormenorizadamente nesse tema, pois ele será
objeto de nossa análise logo à frente.
Essas tendências do trabalho sob o modo de produzir do capital, a nosso ver,
encontram-se perfeitamente confirmadas na atual fase de desenvolvimento do
61
capitalismo, embora possam manifestar-se de diferentes formas. Questionamos grande
parte das elaborações contemporâneas ( GORZ, 1987; OFFE, 1991; CASTELLS,
1998; DE MASI, 2000; LAZZARATO & NEGRI, 2001) que vêem no capitalismo
atual, novas formas de produção e sociabilidade que rompam com essas tendências
inerentes ao processo de valorização. A objetivação do trabalho, por exemplo,
permanece em crescimento progressivo, agora maximizada pela automação e
informática além da mecânica, colocando o trabalho vivo, cada vez mais, subjugado e
sob controle do trabalho morto. A progressiva divisão e simplificação do trabalho
seguem formando trabalhadores parcelares e especializados. A chamada reestruturação
produtiva e suas apresentações, como o toyotismo, não demonstram romper com essas
tendências, pelo contrário, ampliam a intensidade de exploração sobre a força de
trabalho através: da vinculação dos trabalhadores a várias tarefas parcelares - a
chamada “polivalência” ou “multifuncionalidade”; da diminuição dos poros entre as
diferentes operações; através de novas formas de controle pautadas na cooptação e no
envolvimento dos trabalhadores; e através do resgate de formas de trabalho precário
como o trabalho a domicílio, por exemplo, além de formas de trabalho em que a
extração de mais-valia absoluta volta a ocupar lugar central (CORIAT, 1994;
ANTUNES, 1995).
Essas tendências gerais pelas quais vem passando o trabalho social durante o
desenvolvimento do modo de produção capitalista correspondem a expressões e
momentos indissociáveis de um movimento, qual seja o movimento de subsunção
do processo de trabalho ao processo de valorização, a subsunção do trabalho ao
capital. Esse movimento, como toda expressão do real, não se realiza de maneira
harmônica, linear, mecânica. Pelo contrário, é um movimento que apresenta fortes
contradições internas, que fazem com que a relação de unidade entre trabalho e capital
seja sempre uma relação tensa, em luta. Uma relação onde a resolução de cada
contradição através do surgimento de uma nova forma tende a trazer em si o germe
de sua superação. A cooperação simples, por exemplo, ao reunir os trabalhadores sob
comando de um único capital criou as bases para sua superação que se deu com o
surgimento de uma nova forma: a divisão manufatureira do trabalho. Esta, por sua vez,
62
ao dividir e simplificar ao extremo as etapas do processo de trabalho criou as bases
para sua superação, ou seja, tornou possível a objetivação do trabalho com a criação da
maquinaria. A grande indústria, por sua vez, resolveu a questão do controle do capital
sobre o trabalho elevando a subsunção deste àquele a um grau jamais imaginado. No
entanto estabeleceu outra contradição imanente a essa forma, qual seja, o processo de
diminuição progressiva do trabalho vivo, o qual, como sabemos, representa a única
fonte criadora de valor. O capital tenta resolver essa contradição através de diversas
formas como: a intensificação da exploração sobre o trabalho vivo remanescente; a
subsunção ao capital de outros processos de trabalho outrora improdutivos, como o
setor estatal; a destruição, cada vez mais permanente, de forças produtivas, entre
outros. Porém essas são todas tentativas paliativas que não resolvem essa contradição
inerente à produção do capitalismo industrial. Por outro lado, a subsunção do trabalho
ao capital não é um processo cristalizado. Tem o capital de recorrer constantemente a
elementos superestruturais, cada vez mais complexos e intensos, para garantir o
disciplinamento da força de trabalho e o processo de extração de sobretrabalho.
É importante ressaltar que essas são “tendências gerais” pelas quais vem
passando o trabalho durante o desenvolvimento do capitalismo. Como representações
abstratas, não se pode incorrer no equívoco de tentar transpô-las mecanicamente para
as situações concretas. As relações e processos histórico-concretos não são simples
apresentações das tendências gerais, pelo contrário, constituem-se em manifestações
do real, a partir do qual as leis gerais são elaboradas e sistematizadas através de
processos de abstrações sucessivas (GERMER, 2003). Portanto, ao estudarmos
diferentes processos de trabalhos concretos iremos nos deparar com características e
elementos que extrapolam as definições genéricas. Mesmo a apresentação de cada
tendência destas acima descritas apresenta inúmeras variações quando analisadas em
diferentes processos concretos. A progressiva divisão do trabalho, por exemplo, não se
apresenta no mesmo grau em todos os processos de trabalho. O grau de especialização
e simplificação do trabalho também se apresenta mais intenso em alguns setores e
menos em outros. setores mesmo em que predominam grande número de
elementos da divisão manufatureira do trabalho ou do artesanato. Dizer que existe um
63
movimento geral que subsume progressivamente o trabalho social, em suas mais
diversas apresentações, ao capital não significa dizer que esse movimento apresenta-se
de maneira homogênea, uniforme para todas as apresentações do trabalho. Veremos
adiante que a incompreensão dessas múltiplas possibilidades de apresentações
concretas do trabalho social irá levar muitos autores a propagar a não correspondência
dessas tendências gerais em alguns tipos específicos de trabalho. É o caso do trabalho
em serviços, que veremos a seguir.
Antes, porém, de passarmos a outro capítulo cabe ressaltar o caráter histórico e
socialmente determinado que a qualificação para o trabalho representa dentro do
campo teórico do materialismo dialético. Apreender esse caráter histórico significa
interpretar as diferentes apresentações da qualificação ao longo da história como
expressões das necessidades postas pelo desenvolvimento das forças produtivas do
trabalho humano sob determinadas relações sociais. Portanto, ser qualificado para o
trabalho, segundo essa leitura, significa ser capaz de executar eficientemente as
práticas manuais e ou mentais necessárias e requeridas por determinado processo
de trabalho (ou por etapas do mesmo) inserido em determinado período histórico.
Logo, segundo Silva (2005), para se conseguir apreender o movimento de determinado
aspecto do real em toda sua complexidade faz-se necessário evitar análises permeadas
por leituras de cunho valorativo. Um exemplo, segundo a autora, de uma leitura
permeada por aspectos valorativos é a tendência de vários autores, dentre eles,
BRAVERMAN (1987), não obstante sua valiosa contribuição para o compreensão do
capitalismo monopolista, em descreverem o processo progressivo de simplificação do
trabalho sob o capitalismo, descrito por Marx, como um processo de
desqualificação
do trabalhador. Na leitura da autora, com a qual temos acordo, o trabalhador parcelar
da manufatura e da indústria não pode ser considerado desqualificado; pelo contrário,
seu nível de qualificação responde perfeitamente às exigências desses processos
produtivos. Caso esse trabalhador da indústria tivesse de trabalhar sob o artesanato, de
fato apresentar-se-ia desqualificado para as exigências daquele processo de trabalho.
Mas o contrário também é verdadeiro. Ou não teve o capital de lutar incessantemente
contra a rebeldia e a baixa produtividade do artesão a fim de transformá-lo em
64
trabalhador parcelar, qualificando-o assim para a manufatura e a indústria? Isso não
significa negar as conseqüências da
unilateralidade, do trabalho alienado e degradante
sobre o desenvolvimento do gênero humano, negando assim a luta pela construção de
novas relações sociais no processo de produção da existência humana. Significa,
todavia, apreender esse processo como também determinado por condições materiais
necessárias ao desenvolvimento da humanidade em determinado período histórico.
Vejamos agora como se apresentam essas tendências da qualificação para o trabalho
sob o capitalismo em um setor mais “atípico”.
65
3 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SERVIÇOS
Todas as coisas de que falo são de carne
como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.
(GULLAR, 1998: 24)
Ao elegermos como objeto de análise o processo de transformações pelas quais
vem passando a qualificação do trabalho em saúde surge imediatamente à nossa frente
o conceito de “serviços”. A temática do chamado “trabalho em serviços” tem sido foco
de acaloradas polêmicas, principalmente, a partir da década de 70. De uma maneira
geral, essas polêmicas têm girado em torno de questões como: a dinâmica de
crescimento desse setor; as semelhanças e diferenças entre o trabalho em serviços e o
trabalho industrial; e, consequentemente, acerca de até em que nível o primeiro passa
pelos mesmos processos históricos que o segundo em relação a vários aspectos como
organização interna do processo de trabalho, possibilidade de autonomia dos
trabalhadores na execução e controle, relação entre trabalho manual e intelectual, entre
outros (MILLS, 1979; BRAVERMAN, 1987; OFFE, 1991; HARDT & NEGRI, 2001).
Pensamos que grande parte dessas divergências pode ser resumida em duas questões,
quais sejam: a questão da natureza tecnológica de alguns processos de trabalho
chamados “serviços”, o que coloca especificidades em seu operar e, postas estas
especificidades, como se dão seus processos de subsunção às relações sociais de
produção capitalistas.
Antes, porém, de adentrar esse campo obscuro das polêmicas e contradições
torna-se fundamental proceder a um inventário da gama de conceitos e categorias
pertencentes ao campo do chamado “trabalho em serviços” a fim de delinearmos
melhor o cenário de nosso debate. E aqui aparecem as dificuldades dos diferentes
autores para conseguirem chegar a definições comuns e coerentes acerca de um objeto
aparentemente comum. A maioria das definições relativas a esse objeto o trabalho
em serviços tenta buscar aspectos comuns presentes em várias apresentações
66
concretas de trabalho e usá-los como sustentáculo de um conceito universal. se
elencou como aspecto comum a todos os tipos de “trabalho em serviços”, por
exemplo, a sua pretensa
imaterialidade”(HARDT &NEGRI, 2001); ou localizaram-
no no campo do “trabalho intelectual”, recorrendo à já estudada divisão do processo de
trabalho (MILLS, 1979); ou, ainda, usaram como elemento central de sua definição,
sua inerente improdutividade (OFFE, 1991). Muitas vezes o conceito do que seria,
enfim, o “trabalho em serviços”, pela dificuldade em estabelecê-lo, esteve vinculado a
definições negativas. O “trabalho em serviços” seriam todas as formas de trabalho que
não se encaixassem na definição de trabalho industrial; ou que não pertencessem ao
setor primário (indústrias de extração e agricultura) nem ao setor secundário (indústria
de transformação). Claus Offe, talvez a principal referência nessa temática, por se
dedicar ao estudo do trabalho sob o capitalismo contemporâneo, em especial ao
chamado “trabalho em serviços”, julgou ter resolvido a questão quando propôs a
seguinte definição:
Na nossa abordagem, a identidade sociológica de todas as atividades de prestação de serviços
consiste em que todas elas têm a ver com a segurança, conservação, defesa, vigilância,
certificação de formas históricas de circulação e das condições funcionais de uma sociedade e
seus sistemas parciais. Sua característica distintiva é a ‘manutenção de algo’. Essa atividade de
manutenção pode perfeitamente dirigir-se a objetos físicos como nas atividades produtivas.
Como exemplos de tais serviços ‘materiais’ temos os trabalhos de conserto e limpeza, serviços
de saúde, e trabalhos de desenvolvimento técnico. No entanto, esses serviços materiais se
distinguem das atividades produtivas na medida em que são efetuados para a manutenção das
condições físico-técnicas da produção, e não
enquanto produção; sua relação com a produção
é, antes de mais nada, reflexiva. (OFFE, 1991; 18)
Como tentaremos demonstrar, todas essas tentativas de definições representam
apreensões, pelos respectivos autores, de aspectos parciais acerca do fenômeno
chamado “trabalho em serviços”. Apreendê-lo em sua totalidade e, principalmente,
não incorrer no equívoco de cristalizar um momento, visto que seu objeto continua em
constante transformação, parece ser o grande desafio. Algumas respostas para essas
dificuldades, a nosso ver, podem ser encontradas se nossa análise partir, não do
particular essa ou aquela forma concreta de trabalho mas do universal.
Compreender o fenômeno em sua universalidade, suas determinações e inter-relações
mais gerais, permite estabelecer um diálogo mais fidedigno com cada apresentação
67
particular desse no real. Procederemos agora, portanto, a um processo de breve síntese
dos aspectos acerca do trabalho que podem nos dar elementos preciosos para a
compreensão de nosso objeto. Fazemos questão de ressaltar, no entanto, que esse
exercício visa apenas fornecer subsídios para a compreensão do processo de
qualificação do trabalho em um setor específico do chamado “setor de serviços”: o
trabalho em saúde. Portanto, não faremos uma análise pormenorizada, o que sempre
impõe riscos de generalizações e de não abordagem de elementos importantes, devido
ao caráter resumido dessa opção.
Como vimos em capítulo anterior, o trabalho, em nossa compreensão, consiste
no processo através do qual os seres humanos relacionam-se entre si e com a natureza
visando a satisfação de suas necessidades. Como com o desenvolvimento da sociedade
humana surge progressivamente uma gama muito ampla de necessidades a serem
satisfeitas, tornou-se impossível para um indivíduo isoladamente a produção de todas
as condições para a satisfação das mesmas. Isso foi um impulso para que surgisse a
partir de certo estágio da história da humanidade a divisão social do trabalho, na qual
cada sujeito se especializa na produção de um tipo de produto diferente e adquire os
outros necessários à sua existência através do intercâmbio com outros produtores. As
diferentes apresentações do trabalho, em última instância, representam, portanto,
diferentes formas de satisfação de necessidades diversas da espécie humana em
períodos históricos determinados.
Sob o capitalismo essas mesmas categorias apresentam-se subordinadas a
certas relações que lhes dão nova qualidade. O modo de produção capitalista, assim
como outros modos de produção anteriores, é constituído por diferentes classes sociais
definidas a partir de sua relação com a propriedade dos meios de produção. Em todas
as sociedades de classes escravismo, feudalismo, capitalismo - a classe proprietária
dos meios de produção estabelece relações que lhe propiciam viver da exploração do
trabalho das classes não proprietárias. Sob o capitalismo esse processo se dá através da
universalização dos produtos do trabalho sob a forma mercadoria. É através da
produção de mercadorias que os capitalistas podem extrair sobretrabalho na forma de
mais-valia (ou mais valor). Portanto, sob o capitalismo o processo de trabalho
68
encontra-se subsumido ao processo de valorização (ou de extração de mais valor). Por
isso, Marx dirá que o trabalho se apresenta com duplo caráter; por um lado produtor de
produtos úteis que satisfazem necessidades (valor de uso), e, por outro, simplesmente
produtor de valor. O primeiro, o trabalho concreto, transparece nas diferentes
atividades produtivas que realizam os seres humanos marceneiro, sapateiro, etc. o
segundo, o trabalho abstrato, não se apresenta nas diferentes atividades, mas naquilo
que elas apresentam em comum: o fato de serem todas atividades laborativas, ou seja,
trabalho em geral. Esse duplo caráter do trabalho se transparece no duplo caráter da
mercadoria que é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor. É através da produção de
mercadorias que o capitalista consegue fazer com que a força de trabalho gere mais
valor que é ampliado continuamente na forma de capital. Pela primeira vez na história
da humanidade o caráter do trabalho de gerador de valor é sobreposto ao caráter de
gerador de produtos úteis, cuja função é satisfazer necessidades. Portanto produzir
valores de uso deixa de ser fim e passa a ser meio, meio de extração de mais valor. A
esse processo Marx (1979) denominou subsunção do trabalho ao capital. Logo, a
categoria “trabalho produtivo” em geral, sob o capital, passará a acompanhar esse
processo histórico de subsunção. “Trabalho produtivo”, sob o capitalismo, deixa de ser
a atividade produtora de produtos úteis (valores de uso) e se define pela capacidade do
trabalho de ser fonte de extração de mais-valia.
Como vimos, também em capítulo anterior, do ponto de vista do processo de
trabalho, esse processo de subsunção do trabalho ao capital se apresenta de maneira
progressiva à medida que o modo de produção capitalista surge e se consolida. Em um
primeiro momento, essa subsunção é apenas formal (ou parcial) a manufatura
porque, embora se extraia mais-valor, o componente subjetivo o trabalhador - ainda
é dominante no processo de produção; e, em um segundo momento, essa subsunção
torna-se real (ou total), através da implantação da indústria, quando a objetivação do
trabalho se intensifica e o trabalhador fica subordinado à maquinaria.
Relembramos esses elementos com a finalidade de ressaltar os aspectos gerais
do processo histórico de subsunção do trabalho social às relações sociais capitalistas
para podermos, assim, adentrar o mundo das polêmicas acerca do “trabalho em
69
serviços” mais instrumentalizados. Desde já, portanto, nos localizamos dentro do
campo teórico que compreende o “trabalho em serviços” como uma apresentação
particular de um fenômeno universal: o trabalho humano sob o capitalismo. Tentemos,
pois abordar os diferentes conceitos e categorias relacionadas a esse objeto tendo por
referência a concepção acima citada acerca do trabalho.
3.1 TRABALHO EM SERVIÇOS: IMATERIAL?
Um primeiro aspecto que merece abordagem é aquele que versa sobre a
possível “imaterialidade” do “trabalho em serviços” (HARDT & NEGRI, 2001). O
que muitos autores convencionaram chamar “imaterial” refere-se a atividades
laborativas cujos produtos não se consubstancializam em objetos “palpáveis”. No caso
da educação, por exemplo, o produto do trabalho – a socialização/transmissão de
determinado conjunto de saberes - não pode ser palpável, como o pode o produto do
trabalho de um sapateiro. Embora não haja grandes controvérsias até aqui, pensamos
que essa chamada “imaterialidade” deva ser relativizada. Isso porque, embora o
produto do trabalho do professor, por exemplo, não possa ser palpável, ele possui
determinações e repercussões bastante “materiais”. Podemos elencar pelo menos duas
repercussões “materiais” do trabalho do professor: a primeira refere-se à dimensão de
tornar acessíveis para os trabalhadores as técnicas e saberes necessários à realização de
determinado trabalho atividade material; a segunda refere-se à transmissão de
determinados valores, visões de mundo, que colaborarão para condicionar
determinadas formas de se relacionar em sociedade. A grande dificuldade em se
apreender essas formas de trabalho como materiais, a nosso ver, é expressão da não
apreensão das relações sociais como dotadas de materialidade. Citamos o caso do
trabalho em educação e, para complicarmos um pouco mais as análises daqueles que
tentam traçar uma linha mecânica de separação e exclusão entre material e imaterial,
poderíamos citar o caso do nosso objeto: o trabalho em saúde.
Uma primeira característica que “complexifica” a análise do trabalho em saúde,
em relação ao trabalho em educação e mesmo em relação a outros “trabalhos em
70
serviços” é o fato de seus produtos serem tanto de cunho “material” quanto
“imaterial”. Como veremos no capítulo seguinte, a apresentação do moderno trabalho
em saúde advém da unificação de práticas, outrora isoladas, em um corpo técnico-
científico único, representado hegemonicamente na figura do médico-artesão. Esse
processo, que se deu sob o capitalismo, foi responsável por unificar práticas
intelectuais e manuais em um mesmo processo de trabalho. Isso significa que essa
unificação de práticas foi responsável por transformar o trabalho em saúde em uma
forma de trabalho que possui em seu arcabouço tanto práticas manuais, quanto
intelectuais que, por sua vez, dão origem tanto a produtos “mais materiais” quanto a
produtos “menos materiais”. Ou seja, segundo a definição daqueles que julgam existir
um trabalho não material, o trabalho em saúde pode resultar tanto em um produto
“material” quanto em um produto “não material”. Peguemos um exemplo concreto que
pode ilustrar melhor o que estamos argumentando. O resultado de uma consulta clínica
de um psicólogo, por exemplo, não seria, via de regra, um produto material. Pelo
contrário, geralmente é caracterizado por um conjunto de conhecimentos/saberes que
se sistematizam em recomendações/normatizações transmitidas/socializadas pelo
produtor (o trabalhador) na sua relação com o consumidor. Essas normas socializadas
podem ter resultados os mais diversos no plano subjetivo sem, necessariamente, haver
uma relação com a constituição em um “objeto material” como definido pelos autores
defensores desse conceito. Por outro lado, se a etapa do processo de trabalho agora
analisado é uma intervenção cirúrgica, por exemplo, o seu resultado deve ser um
produto material; nesse caso tratar-se-á de uma alteração anatômica que pode ser
visível, palpável e poderá, inclusive, acompanhar o consumidor para o resto da vida.
Citamos esses casos concretos para demonstrar como, a nosso ver, esse critério
da suposta “(i)materialidade” não ajuda a definir o campo do chamado “trabalho em
serviços”. Mesmo que aceitássemos essa definição de material/imaterial, o que não é o
caso, ainda assim isso não contribuiria para chegarmos a uma definição sobre o
“trabalho em serviços” que nos instrumentalizasse em sua compreensão, visto que em
suas mais diversas apresentações existiriam tanto trabalhos cujos produtos seriam
“materiais”, quanto trabalhos cujos produtos seriam “imateriais”.
71
Segundo o método que nos guia nesse trabalho, qualquer apresentação
particular do processo de trabalho pode ser, por natureza, uma atividade
profundamente material (LESSA, 2002). O fato de alguns de seus produtos/resultados
poderem ser apreendidos por alguns sentidos humanos – tato, visão – e outros não, não
altera em nada o processo geral; ou seja, o fato de o trabalho ser uma atividade prática
cujo objetivo é prover as condições materiais da existência humana. Entendemos que,
embora o resultado de uma prática em saúde, por exemplo, possa não resultar
imediatamente em um produto “palpável” ou “visível”, sempre terá, em última
instância, um resultado material. Isso serve tanto para o plano mais evidente das
práticas normativas cujos resultados terão influência sobre o corpo uma orientação
nutricional terá conseqüências sobre a apresentação material do corpo quanto,
principalmente, para o papel superestrutural das práticas em saúde, como veremos
adiante. Reproduzir as idéias, valores e normas dominantes, não significa reproduzir
meras idéias. Visto que a ideologia não é um conjunto de simples idéias, mas relações
sociais (materiais) sob a forma de idéias (MARX & ENGELS, 2002: 48), são
expressões ideais de relações materiais, reproduzi-la significa reproduzir relações
materiais. Portanto, o trabalho em saúde, de um modo particular, e o “trabalho em
serviços”, de um modo geral, sempre tem como resultado/produto implicações
materiais, seja na forma de objetos, seja na forma de relações sociais (materiais).
Portanto, abandonemos o conceito de “(i)material” utilizado dessa forma
imprecisa e vejamos como podemos definir melhor essa “impalpabilidade” do
“trabalho em serviços”. Nisso Marx pode nos dar uma boa pista em seu
Capítulo VI
inédito de O Capital
. Ali o autor defende que “Serviço não é em geral mais do que
uma expressão para o valor de uso particular do trabalho, na medida em que este não é
útil como coisa mas como atividade.”(MARX, 1979; 118). Pensamos ser esta uma
definição mais fidedigna e coerente com o real. Uma
atividade, este é o produto útil
dos trabalhos ditos serviços, seja o trabalho em educação, saúde, transporte etc. É
como se processo e produto do trabalho, no caso dos “serviços”, confundissem-se,
pois, em última instância, a
atividade refere-se ao próprio trabalho em ato. O
consumidor consome o trabalho
em ato, e não o trabalho objetivado em um produto
72
destacável do processo produtivo. Essa particularidade fará com que as esferas de
produção e consumo sejam uma só, no caso desses trabalhos. Porém, fazemos questão
de ressaltar, uma
atividade, mesmo não sendo palpável como um objeto, pode ser
bastante material. O trabalho é a
atividade mais material que existe, pois, como vimos,
é o responsável pela produção da existência humana. No entanto, ele somente
apresenta-se apreensível pelos nossos sentidos em suas formas “materiais”,
transitórias, seja o agente, os meios ou o produto do trabalho. Não se apresenta como
tarefa fácil apreender o trabalho para além de suas diversas formas, apreendê-lo
essencialmente como esse
movimento constituidor da existência humana. Entendemos
o trabalho como esse movimento que, ora se apresenta mais subjetivado (na forma do
agente), ora mais objetivado (em produtos ou meios de trabalho), ora se apresenta
como produtor de “bens”, ora como produtor de “atos”. Prender-se a uma das formas e
cristalizá-la, com fins de análise, significa paralisar esse movimento e é no que
incorrem, por exemplo, os autores que se propõem a classificar um trabalho como
“material”, outro como “imaterial”... Relembrar Fernando Pessoa parece-nos
conveniente nesse momento:
(...) E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento (...)
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move.
(...) A borboleta é apenas borboleta (PESSOA, 2006: 79).
As formas são apenas formas, o trabalho, em essência, está para além delas.
Bem, toda essa digressão teve como objetivo demonstrar que o que muda do trabalho
produtor de “bens materiais” para o trabalho “em serviços” é somente a forma como se
apresentam seus produtos. Mas ambos, por serem trabalhos, constituem-se como parte
do movimento produtor da existência
material dos homens.
Veremos que o fato de seus produtos serem uma
atividade e não “uma coisa”
dará ao trabalho em serviços características peculiares em seus “modos de operar” e
em seu processo de subsunção ao capital, o que impactará de maneira especial seus
processos de qualificação.
73
3.2 TRABALHO EM SERVIÇOS: IMPRODUTIVO?
Vimos que um dos elementos que caracterizam o trabalho em serviços para
Offe é o seu caráter improdutivo. O autor refere que esses tipos de trabalho (...) são
efetuados para a manutenção das condições físico-técnicas da produção, e não
enquanto produção; sua relação com a produção é, antes de mais nada, reflexiva”
(OFFE, 1991; 18). Portanto, a fim de esclarecermos se o caráter improdutivo faz parte
das características que nos ajudam a definir o “trabalho em serviços”, vejamos mais de
perto essa categoria.
Antes que o leitor, inconscientemente, ao se deparar com a categoria trabalho
produtivo, possa incorrer em juízo valorativo e assim afastar o conceito do campo de
sua definição científica, vamos recorrer a Marx nessa elucidativa citação a fim de
iniciarmos o debate com o conteúdo bem delimitado:
Como o fim imediato e (o) produto por excelência da produção capitalista é a mais-valia,
temos que somente é produtivo aquele trabalho que (e é trabalhador produtivo aquele
possuidor da capacidade de trabalho que) diretamente produza mais-valia; por isso, aquele
trabalho que seja consumido diretamente no processo de produção com vista à valorização do
capital.
Do ponto de vista do processo de trabalho em geral, apresentava-se-nos como produtivo
aquele trabalho que se realizava num produto, mais concretamente numa mercadoria. Do
ponto de vista do processo capitalista de produção, junta-se uma determinação mais precisa: é
produtivo aquele trabalho que valoriza diretamente o capital, o que produza mais-valia(...)
(MARX, 1979: 108-109).
Portanto, não basta a definição geral de trabalho produtivo. O trabalho não
existe de maneira abstrata. Como qualquer abstração, faz-se necessário trazê-la para o
mundo concreto, das determinações materiais. E sob o capitalismo é acrescentada uma
característica à concepção geral de trabalho produtivo, qual seja, a capacidade de gerar
mais-valia. Não basta que o processo de trabalho produza uma mercadoria para ser
produtivo, é necessário que desse processo se extraia a mais-valia que irá participar da
acumulação do capital. Isso posto, estamos instrumentalizados para adentrarmos os
mais diferentes processos de trabalho a fim de buscarmos possíveis relações com a
acumulação do capital. Estamos liberados, inclusive, para analisarmos sob esse ângulo
algo até hoje muito polêmico, que são as diversas apresentações do trabalho em
74
serviços. Veremos à frente um fenômeno que aconteceu com o trabalho em saúde, mas
que pensamos não ser exclusividade deste; pelo contrário, pensamos que esse
fenômeno é expressão de um processo mais amplo pelo qual passou e passa o chamado
“trabalho em serviços” a partir de certo estágio de desenvolvimento do modo de
produção capitalista, seu estágio monopolista. Esse fenômeno se refere à subsunção
dessas apresentações do trabalho os serviços à dinâmica de valorização do capital.
Trabalhos que até o século XIX eram realizados por trabalhadores autônomos, de
maneira artesanal, geralmente com vínculo comercial ou filantrópico, passam a ser
transformados em processos coletivos de produção; passam a ser permeados por
elementos da divisão do trabalho, da cooperação e propiciam a consolidação de
capitalistas como proprietários de empresas de prestação de serviços. Esse processo
pode ser evidenciado no caso do trabalho em educação e saúde, por exemplo. É assim
que a partir de meados do século XX começam a surgir/multiplicar grandes grupos
privados que passam a investir seus capitais nos setores da educação, saúde, entre
outros. Uma fatia do mercado até então pouco explorada pelo capital e com grande
potencial de lucratividade. Hoje grande parte do trabalho em saúde, por exemplo,
encontra-se dentro do setor produtivo gerando lucros estratosféricos aos “capitalistas
da saúde” em uma dimensão comparável a grandes indústrias de “bens materiais”
(BRAGA & SILVA, 2001). Poderemos ver que tanto o trabalho em saúde quanto o
trabalho em educação
8
, até o século XIX eram realizados ou por trabalhadores
autônomos ou por assalariados pelo Estado; durante o feudalismo havia ainda o caráter
filantrópico dessas práticas sob controle da igreja. Esse processo em nada contribuía
para a acumulação do capital. Por outro lado, era evidente a tendência crescente de
transformação dos trabalhadores autônomos como os médicos-artesãos e
professores-artesãos em trabalhadores assalariados; porém, somente como
assalariados, ou do Estado ou de um pequeno capital comercial, e não industrial, ou
seja, produtor de mais valia. Não ocorria ainda a subsunção desses processos de
8
Para evidência do processo de trabalho em educação nesse processo de transição ao capitalismo
monopolista, pode-se consultar: ALVES, G. L. A produção da escola pública contemporânea;
PONCE, A. Educação e luta de classes e SÁ, N. P. O aprofundamento das relações capitalistas no
interior da escola.
75
trabalho ao processo de valorização do capital, embora, indiretamente, os primeiros
começassem a apresentar características de processos de trabalho subsumidos. Esse
processo faz parte daquilo que Mészaros (2001) definiu como instituição do
“sociometabolismo do capital”. Ou seja, a lógica instituída pelo capital passa a
dominar todos os aspectos da vida social inclusive para além do processo direto de
extração de mais-valia. A análise desse momento histórico, anterior à fase monopolista
do capitalismo, quando ainda não estava estabelecida a dinâmica do capital nessas
áreas do setor de serviços, levou Marx a afirmar que
Em suma, os trabalhos que se desfrutam como serviços não se transformam em produtos
separáveis dos trabalhadores e, portanto, existentes independentemente deles como
mercadorias autônomas e,
embora possam ser explorados de maneira diretamente
capitalista
, constituem grandezas insignificantes se os compararmos com a massa da produção
capitalista. Por isso, deve-se pôr de lado esses trabalhos e tratá-los somente a propósito do
trabalho assalariado que não é simultaneamente trabalho produtivo
(1979: 116).
Porém os tempos são outros; o modo de produção capitalista desenvolveu a tal
ponto as forças produtivas como jamais visto na história da humanidade e adentrou sua
fase monopolista
9
. É característica dessa fase do capitalismo o fato de o capital passar
a impor ao trabalho em suas mais diversas apresentações, inclusive o trabalho em
serviços, características muito semelhantes ao trabalho produtor de “bens materiais”,
seja nas formas de organizar a produção parcelarização do processo de trabalho;
separação entre planejamento e execução; incorporação cada vez maior de tecnologia -
seja nas características a que passa a ser submetida a força de trabalho
proletarização; especialização do trabalhador, entre outros. A partir desse período
histórico começam a se constituir grandes grupos capitalistas que passam a ver na
produção da saúde e da educação, por exemplo, uma possibilidade de extração de
mais-valia. O último refúgio para o trabalho em saúde e educação, fora do circuito
direto de acumulação do capital, passa a ser o setor estatal, embora seja importante
frisar que o processo de trabalho aqui não tenha ficado imune às características do
9
Alguns autores colocam o domínio do capital monopolista como apenas um, embora central, dos
aspectos do atual estágio do capitalismo, e preferem chamá-la de fase Imperialista. Ver Lenine, O
Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo in Lenine, V.I. Obras Escolhidas em VI tomos. Lisboa:
Edições Progresso-Moscovo e Edições Avante, 1984. Tomo 2.
76
trabalho subsumido ao capital; sejam elas, o estabelecimento da cooperação,
objetivação ou parcelarização do trabalho. Longe disso, possivelmente o setor estatal
tenha sido onde esse processo se deu de forma mais acentuada, embora se mantivesse
fora do âmbito direto da acumulação do capital. Porém, a apresentação das
características e dimensões do setor estatal é também determinada pelas fases de
acumulação pelas quais passa o capital. Uma dessas fases é aquela que vai até o
penúltimo quarto do século XX, período no qual o capital incumbiu o Estado por
grande parte da responsabilidade de garantir a reprodução da força de trabalho,
desonerando-se assim dessa tarefa. O auge dessa política deu-se com o Estado de
Bem-Estar Social europeu. No entanto, a partir da crise de acumulação iniciada na
década de 70 os Estados nacionais começam a abrir mão desse papel (COGGIOLA, O.
& KATZ, C, 1995). São vários os motivos e dentre eles podemos destacar dois como
centrais: em primeiro lugar a própria crise de acumulação do capitalismo levando a
uma crise fiscal dos Estados nacionais impossibilitando-os assim de manter políticas
públicas onerosas; e o fato de que o capital em virtude da crise começa a ter de lançar
mão de novas estratégias a fim de compensar a queda tendencial da taxa de lucro.
Entre essas estratégias, como vimos no primeiro capítulo, está a subsunção ao capital
de processos de trabalho até então improdutivos, como é o caso de várias formas do
trabalho em serviços (ANTUNES, 1995; HARVEY, 2004). Ou seja, a produção de
uma mercadoria por um produtor independente ou pelo setor estatal não contribui
diretamente para a acumulação do capital, porém se essa mesma mercadoria for
produzida por trabalhadores contratados por empresas capitalistas extrai-se mais valia
e adentra-se o ciclo do capital produtivo. Citamos aqui os exemplos dos trabalhos em
educação e saúde por serem mais próximos de nosso objeto de pesquisa, porém não
são os únicos. Mesmo serviços mais diretamente ligados à produção de “bens”, como
transporte, limpeza, vigilância, deixam de ser executados pelas próprias indústrias e
passam a ser terceirizados para empresas especializadas nesses serviços. Assim
constituem-se verdadeiras “indústrias dos serviços”; São indústrias por serem
propriedade privada de capitalistas, que empregam força de trabalho assalariada com a
finalidade de produzirem mercadorias na forma de serviços que serão vendidos aos
77
mais diversos consumidores, sejam eles individuais ou industriais; ao final desse
processo o capitalista extrai mais valor do que o inicialmente mobilizado para o
processo produtivo; mais valor que é advindo do sobretrabalho extraído dos
trabalhadores sob a forma de mais valia.
Portanto, procurar definir o trabalho em serviços como um processo fora da
esfera da produção, como faz Offe, não nos ajuda a compreender esse fenômeno em
toda a sua complexidade e historicidade. Qualquer forma de trabalho, seja produtora
de serviços ou de bens, pode ser produtiva ou improdutiva a depender da sua relação
com o processo direto de valorização do capital. Para o capital tanto faz se a produção
é de sapatos ou de aulas, o que importa é que desse processo se extraia mais valia, e é
isso que torna um trabalho produtivo ou improdutivo, sob as relações sociais
capitalistas. Todavia, é importante ressaltar que ao definir o trabalho em serviços como
possuidor dessa função “certificadora” das estruturas sociais e econômicas, o autor
consegue apreender um aspecto importante desse objeto, qual seja: o elemento
superestrutural pertencente a várias das ditas “práticas em serviços”. Ou seja, apreende
o papel fundamental que cumprem trabalhos como os do campo da educação e da
saúde na função de reprodução das relações sociais de produção ao nível
superestrutural, porém deixa de apreender o papel que podem ter essas apresentações
do trabalho no plano infraestrutural ou produtivo. A análise de Offe é um precioso
exemplo de como a captação de um momento e sua tentativa de cristalização em um
conceito naturalizado pode gerar equívocos na tentativa de apreensão de fenômenos do
real. O “trabalho em serviços”, de fato, apresentou-se hegemonicamente como
improdutivo em determinado momento histórico; porém, o movimento de
consolidação das relações sociais capitalistas transforma-o progressivamente em
trabalho produtivo.
Bem, se os critérios de “materialidade”, “produtividade” ou de predominância
manual/intelectual não são os elementos determinantes para se compreender os
processos produtivos constituintes do chamado “trabalho em serviços”, quais devem
ser os aspectos a serem examinados para nos fornecerem uma definição mais precisa
desses processos? Como compreendemos o “trabalho em serviços” como uma
78
apresentação particular de um universal consubstancializado na categoria do trabalho,
é importante ressaltar que se nos dedicarmos a examinar diversas manifestações
concretas desse, visualizaremos todos os componentes de um processo de trabalho em
geral, como: os meios de trabalho; o objeto do trabalho; e o próprio trabalho em ato.
Por motivos óbvios não nos dedicaremos aqui a examinar esses elementos em diversas
apresentações concretas de trabalho em serviços; isso será feito apenas no caso do
trabalho em saúde no capítulo seguinte. O que importa destacar aqui é que esses
elementos estarão sempre presentes, de maneiras sempre particulares nos mais
diversos tipos concretos de trabalho. Portanto, não devemos procurar a diferença entre
o “trabalho produtor de bens” e o “trabalho produtor de serviços” na ausência ou
existência de elementos diferentes no processo de produção. Pelo contrário, devemos
analisar como elementos comuns se apresentam de maneiras diversas, particulares.
Isso, a nosso ver, é o que diferencia uma ou outra apresentação histórico-concreta do
trabalho. Logo, vejamos as diferenças de apresentação de alguns elementos no caso do
“trabalho em serviços”.
3.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM
SERVIÇOS
Um primeiro elemento, citado, que diferencia o “trabalho em serviços” do
trabalho “produtor de bens” é que nos primeiros o produto do processo de produção se
apresenta na forma de uma
atividade, um serviço. Ao contrário de um produto
palpável, como um sapato ou uma camisa, o produto do trabalho do médico
consubstancializa-se em um
ato de restauração/conservação do corpo, por exemplo; O
produto do trabalho do professor consubstancializa-se em uma aula, que é um
ato de
transmissão/socialização do conhecimento; O produto do trabalho de uma indústria de
limpeza é o
ato de limpar; E assim sucessivamente.
Outro elemento que nos ajuda a definir determinado trabalho como pertencente
ao campo do chamado “trabalho em serviços” refere-se à indissociabilidade das
esferas da produção e consumo. Ocorrem as duas no mesmo espaço e
79
simultaneamente. A peculiaridade do processo de trabalho em serviços impossibilita
uma separação espacial nítida entre o processo e o produto dessa prática. Marx
discorreu sobre esse fato demonstrando como em determinados processos de trabalho
saúde e educação, por exemplo as esferas da produção e consumo são a mesma.
Dizer que as esferas da produção e consumo são uma só, significa dizer que elas
ocorrem ao mesmo tempo e no mesmo espaço. No caso das práticas em saúde, por
exemplo, o momento dessas esferas é o do encontro do produtor e do objeto de seu
trabalho e, ao mesmo tempo, é o momento do encontro do produtor e do consumidor
desse ato. Produz-se e se consome na mesma relação. Um produtor de sapatos, ao
contrário, pode produzir os pares em uma fábrica e nunca ter conhecimento de quem
irá consumi-los. O espaço e os sujeitos responsáveis pela produção e pelo consumo
estão espacialmente e temporalmente separados.
Essas duas características que, a nosso ver, definem um trabalho como
pertencente ao “setor de serviços” terão implicações importantes sobre a qualificação
dessa apresentação do trabalho. Uma primeira implicação importante é o fato de que
como o produto do “trabalho em serviços” é uma
atividade; e como é difícil separar
atividade e agente, o fator subjetivo do trabalho, ou seja, o trabalhador, apresenta-se
em uma posição muito mais “central” do que no trabalho produtor de bens. O trabalho
em ato apresenta-se como dominante nesse tipo de trabalho, pela sua própria
configuração material. Isso, por sua vez, terá conseqüências importantes sobre o
processo de desenvolvimento desse tipo de trabalho. O papel da tecnologia, por
exemplo, tenderá a se restringir a instrumentos acessórios do trabalho vivo, ficando em
segundo plano tecnologias na forma de maquinaria, que pela sua própria natureza
tendem a controlar o processo de trabalho e transformar o trabalhador em seu
acessório. As manifestações da tecnologia nesse tipo de trabalho dão-se,
hegemonicamente, na forma de saberes e técnicas direcionadoras dos modos de operar
o trabalho. Mesmo processos de parcelarização do trabalho tendem a apresentar-se de
maneira menos intensa nesses tipos de trabalho do que no trabalho produtor de bens.
Isso, consequentemente, colocará limites maiores a graus crescentes de subsunção
desses processos de trabalho ao processo de valorização do capital.
80
Consequentemente, a subsunção típica do “trabalho em serviços” parece ser a
subsunção formal, ou seja, a extração de mais valia em um processo de trabalho em
que o trabalho vivo ainda é hegemônico.
Essas características serão responsáveis por certa “inadequação” dos trabalhos
em serviços à dinâmica de acumulação capitalista sob a forma industrial. Isso, porque
as estratégias utilizadas a fim de subsumir progressivamente o processo de trabalho ao
processo de valorização não terão a mesma eficiência quando comparadas à produção
de “bens”. Terá o capital, por exemplo, de lidar com o fato de que, na maioria dos
trabalhos em serviços, o trabalho vivo mantém-se como dominante e controlador do
processo produtivo, sendo que o trabalho morto tende a se consubstancializar apenas
em instrumentos controlados pelo trabalhador, e não em maquinaria. Por outro lado,
ganha uma dimensão importante a interdependência entre os diferentes trabalhadores
parcelares constituidores do trabalhador coletivo, visto que a tecnologia, por sua
inserção limitada, apresenta-se com menor capacidade de funcionar como elemento
unificador do processo produtivo.
81
4 O TRABALHO EM SAÚDE E AS RELAÇÕES SOCIAIS
Pois bem, analisamos o conceito de “trabalho em serviços” e suas principais
características com a finalidade de apresentarmos o cenário no qual se encontra nosso
objeto de análise nessa dissertação: o trabalho em saúde e sua qualificação. É a esse,
portanto, que iremos nos dedicar a partir de agora em cada um de seus constituintes -
seu objeto e determinações; seu agente (o trabalhador individual e coletivo); e os
meios (saberes, tecnologias) e na interrelação entre eles, que acaba por constituí-lo
como um processo profundamente complexo e histórico.
Ao nos depararmos com a maioria das análises correntes sobre o trabalho em
saúde, podemos extrair alguns aspectos constituintes de uma concepção geral
hegemônica acerca desse processo. O principal elemento que podemos perceber dentro
dessa concepção é a alusão às práticas em saúde como encarnações de um conjunto
sistematizado de conhecimentos cientifica e tecnicamente estabelecidos à margem de
qualquer influência dos fatores econômicos, sociais ou históricos. As diversas
apresentações dos saberes e práticas em saúde tendem a ser analisados como parte
integrante de um mesmo desenvolvimento linear do conhecimento científico ao longo
da história humana. Um desenvolvimento naturalizado das práticas em saúde, como
ciência biológica, que está diretamente ligado à concepção naturalizante do objeto e
dos produtos dessa prática (NUNES, 2000). O objetivo genérico da terapêutica, por
exemplo, que se caracteriza pela instauração e restauração do normal, quando
questionado sobre o que é normal faz alusão direta às características
anatomofisiológicas ao nível do corpo. Ao fazer alusão à anatomofisiologia, a prática
em saúde ganha uma dimensão supra-histórica, científica, inquestionável. Afinal, para
essa racionalidade, o corpo humano “é”. Independentemente de períodos históricos,
modos de produção, o corpo humano é naturalmente um conjunto de sistemas formado
por órgãos, constituídos por sua vez pelas menores unidades anatomofisiológicas as
células. Ao naturalizar e restringir, sob a égide da cientificidade, o objeto da prática
em saúde ao corpo orgânico essa interpretação lança o alicerce sobre o qual edificará a
tese da cientificidade dos padrões de normalidade. O normal, portanto, passa a ser
82
científico, provado microscopicamente, se necessário, e baseado em leis naturais do
desenvolvimento (LUZ, 2004a).
Para demonstrarmos o caráter limitado e, em última instância, ideológico
dessas interpretações é necessário, acima de tudo, que recorramos à prática de trazer
essas categorias/conceitos para o lugar de onde saíram o real, e suas mais profundas
determinações. E o real não é somente constituído por células e órgãos. Pelo contrário,
o real é constituído por elementos, leis que extrapolam, questionam e, inclusive,
determinam as interpretações a seu respeito.
4.1 O OBJETO DO TRABALHO EM SAÚDE: AS CONCEPÇÕES ACERCA DO
CORPO; DO NORMAL E PATOLÓGICO; DA SAÚDE E DA DOENÇA
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
(PESSOA, 2006: 104-105)
Um primeiro passo fundamental para a compreensão de um dado processo de
trabalho é partir da compreensão de seu objeto, pois, através de suas determinações e
do papel que estas exercem, este revela o objetivo da prática analisada, possibilitando
o vislumbrar do processo. Quando discutimos, sob o capitalismo, o objeto do trabalho
em saúde o
corpo e a relação deste com as práticas em saúde, deparamo-nos com
uma tese hegemônica segundo a qual a representação do
corpo e o trabalho em saúde
são expressões de um desenvolvimento linear das ciências naturais. Desenvolvimento
este que seria dotado de neutralidade em relação aos modos de organização social nos
quais os homens se encontram inseridos. Alguns fatores colaboram para fortalecer essa
representação do trabalho em saúde e de seu objeto como neutros, a-históricos. Um
deles é o fato de o trabalho em saúde não ter surgido concomitantemente ao modo de
produção capitalista. Pelo contrário, a existência de indivíduos que se detiveram na
atividade de cura de enfermidades é conhecida nos registros das sociedades humanas
mais antigas. Isso ajuda a reforçar a idéia de um desenvolvimento linear de práticas e
83
funções que sempre existiram e que, portanto, não devem ser
influenciáveis/condicionáveis pelos diferentes modos de produção. Outro fator que
colabora para manutenção dessa imagem de neutralidade é a forma específica como se
configurou o exercício do trabalho em saúde sob o capitalismo. O espetacular
desenvolvimento das forças produtivas também se reflete na ciência médico-biológica
incorrendo em cada vez maior incorporação de tecnologia ao processo de trabalho em
saúde, reforçando a idéia de um caráter de neutralidade e cientificidade dessas práticas
(DONNANGELO, 1975). Procederemos a partir de agora a uma análise tendo por
referência não o que dizem as ciências, mas o que diz a vida real dos homens;
possivelmente encontremos elementos que nos ajudem a entender a historicidade do
trabalho em saúde.
Ao nos atermos ao objeto do trabalho em saúde como conhecemos hoje, nos
deparamos com o
corpo humano; e é sobre ele que devemos nos debruçar inicialmente
para compreender a conformação do trabalho em saúde e seus diferentes
determinantes. Ao olharmos para o
corpo, guiados pela racionalidade médica
hegemônica, uma primeira conotação que salta aos olhos é aquela relativa às
características anatomofisiológicas, ou seja, o
corpo como representação da unidade de
seus constituintes biológicos.
A partir disso, a concepção de
normalidade estaria diretamente relacionada à
manutenção da integridade estrutural e funcional das características biológicas naturais
do
corpo. Porém, concordamos com CANGUILHEM (1995: 188), quando afirma que
“O conceito de norma é um conceito original que não se deixa reduzir em fisiologia
mais que em qualquer outra parte a um conceito objetivamente determinável por
métodos científicos. Portanto, rigorosamente falando, não uma ciência biológica do
normal. Há uma ciência das situações e condições biológicas chamadas ‘normais’.”
As normas não podem ser estabelecidas pelo microscópio ou pela clínica, estes
são apenas instrumentos para expressão e legitimação das normas. A vida social
estabelece normas a serem cumpridas utilizando-se, entre outros meios, da ciência.
Portanto, cabe compreender o corpo para além dos elementos anatomofisiológicos,
84
para se conseguir identificar seus correspondentes padrões de normalidade sobre o
qual incidirá o trabalho em saúde.
Uma excelente elaboração acerca de como o corpo extrapola sua dimensão
biológica encontra-se descrita nos
Manuscritos Econômico-Filosóficos. Ali, Marx
demonstra como o corpo se encontra imerso no mar das determinações sociais. Aqui
entendida a esfera social em seu sentido mais amplo, como sendo aquela explicativa
das ações do homem sobre a natureza para a produção da sua existência material.
Vejamos o que nos diz o autor sobre os órgãos dos sentidos, aqueles mesmos formados
por justaposições anatomofisiológicas naturais...
O olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se transformou em
objeto humano, social, criado pelo homem para o homem. (...) A necessidade ou o prazer
perderam portanto o caráter egoísta e a natureza perdeu a sua mera utilidade, na medida em
que a sua utilização se tornou utilização humana.(...) Consequentemente, além dos órgãos
diretos, constituem-se
órgãos sociais, na forma da sociedade, por exemplo, a atividade em
direta associação com os outros se tornou um órgão da manifestação de vida e um modo da
assimilação da vida humana.(...). A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história
mundial anterior. (MARX, 2004: 142-144)
Mesmo as mais “ingênuas” estruturas biológicas os órgãos dos sentidos - não
escapam impunes à existência humana. Existência esta que ao ser social subverte o
corpo anatomofisiológico à utilidade que a sociabilidade exige. Essa sociabilidade,
inclusive, exige usos do corpo que extrapolam sua capacidade biológica, fazendo com
que o corpo seja expandido a fim de corresponder a esses usos. Essa “expansão” pode
se dar, por exemplo, pela criação de objetos que ampliem determinadas capacidades
humanas. O microscópio amplia a capacidade de visão a um nível inalcançável para as
estruturas anatomofisiológicas constituintes das retinas. Mas essa expansão pode se
dar também a partir de outros elementos, não necessariamente materiais. Veja-se, por
exemplo, o caso da cooperação. Os corpos anatomofisiológicos possuem uma
determinada capacidade de trabalho, porém quando colocados juntos a trabalhar sob
determinada forma de organização conseguem multiplicar várias vezes sua capacidade
inicial de realização da mesma tarefa, a partir da constituição de um corpo social.
O que pensamos ser fundamental ressaltar é que o corpo existe
concretamente como corpo humano inserido em determinadas relações que os seres
85
humanos estabelecem entre si e com a natureza a fim de garantir sua existência
material. É condicionado por essas relações “que o corpo se elabora e reelabora, de
maneira tal a só realizar-se, mesmo como estrutura anatômica e fisiológica, através das
qualificações ou determinações que adquire no plano da existência material e social.”
(DONNANGELO, 1979: 24-5).
Portanto, os critérios de normalidade estão necessariamente determinados pelo
uso atribuído ao corpo por essas relações e tomam a forma de normas, mas também de
saberes e práticas, consubstancializados no que alguns autores denominam como
normatividade social (CANGUILHEM, 1995). E o papel principal que cabe ao corpo
nesse processo de garantia da existência material dos homens é o de ser o elemento
fundamental que viabiliza a ação humana sobre a natureza. Portanto “o corpo se
dispõe, antes de mais nada, como agente de trabalho”(DONNANGELO, op. cit.: 25).
Como a representação do corpo e seus diversos padrões de
normalidade são
determinados pelo papel do corpo no trabalho, ou seja, na produção da vida material,
serão diferentes essas representações na dependência das diferentes formas de se
organizar essa produção. Além disso, dentro de um mesmo modo de organizar a
produção diferentes usos e significados atribuídos ao corpo, a depender de como se
dá a inserção dos corpos nos diferentes espaços da estrutura da produção social.
Podemos inclusive perceber como os diferentes modos de produção forjam concepções
e representações do corpo e de sua normalidade diferentes, justamente por inseri-lo no
processo de trabalho de maneira diferenciada.
Ao analisar, por exemplo, a compreensão/apreensão do corpo pelas diferentes
classes sociais sob o capitalismo, Boltanski pôde perceber que
O interesse e a atenção que os indivíduos concedem ao próprio corpo, ou seja, à sua aparência,
agradável ou desagradável e, por outro lado, às suas sensações físicas, de prazer ou desprazer,
cresce quando eles se elevam na hierarquia social (...) ou seja, quando diminui a resistência
física dos indivíduos, que não é outra senão a resistência que são capazes de opor ao próprio
corpo e sua força física, ou seja, o partido que podem tirar do corpo.
(BOLTANSKI, op. cit.:
135)
10
10
Recorreremos nesse tema específico – o corpo e sua inserção social – à algumas elaborações de Luc
Boltanki em sua obra “As classes sociais e o corpo” (vide referências bibliográficas), por entendermos
que o autor conseguiu reunir um dos mais ricos materiais empíricos acerca das representações dos
sujeitos acerca seu corpo. Embora Boltanski não tenha apreendido com tanta profundidade o papel das
86
Assim, ao analisarmos a sociedade capitalista, podemos perceber como para os
sujeitos advindos da classe trabalhadora a integridade do corpo está diretamente
relacionada à capacidade de se manter em condições de trabalhar. Essa valorização da
capacidade de trabalho – sendo esta, em última instância, representada pela força física
é muitas vezes compreendida como resultado da “inculcação ideológica” de valores
dominantes do culto ao trabalho. Ora, se compreendemos a ideologia como “expressão
ideal de relações materiais” é porque ao olharmos para esse exemplo podemos ver que
a concepção valorativa do corpo relacionada à capacidade de trabalho encontra
correspondência na realidade. O trabalhador entende o corpo sadio como aquele
apto para o trabalho porque, para ele, de fato o corpo serve para trabalhar; a sua
própria existência está na dependência desse trabalhar. Esse sistema de regras que
determinam os comportamentos físicos dos diferentes agentes sociais e que
BOLTANSKI (2004: 157) denominou como “cultura somática” nada mais é do que o
“(...) produto das condições objetivas que elas traduzem na ordem cultural, ou seja,
conforme o modo do dever-ser; são função, precisamente, do grau em que os
indivíduos tiram seus meios materiais de existência de sua atividade física, da venda
de mercadorias que são o produto dessa atividade, ou do emprego de sua força física e
de sua venda no mercado de trabalho.”. Assim é muito comum como esses sujeitos, ao
se depararem com o profissional de saúde, expressam verbalmente sua experiência
com a doença através da manifestação de “fraqueza”, de “falta de força”. É como se,
ao tentarem “encaixar” suas sensações nas classificações patológicas, recorressem a
doenças que se manifestam de maneira semelhante – veja-se o uso freqüente das
expressões como “anemia”, “queda de pressão”. As concepções acerca da saúde, da
doença e do corpo encontram raízes nas relações sociais existentes.
Mas como explicar esse movimento, que consegue fazer a racionalidade
médica, de transformação de um objeto tão complexo, um “modo de ser e estar” no
mundo ou um “modo de andar a vida”, em algo tão mais restrito quanto o corpo
anatomofisiológico? Bem, inicialmente é importante ressaltar que, segundo nosso
relações sociais de produção sobre as concepções de saúde/doença, as contribuições de sua obra
superam em muito seus limites.
87
método, não se apresenta todo esse “poder” por parte das ciências. Pensamos, pelo
contrário, que esse é um movimento mais profundo, na infraestrutura social, que
aspectos superestruturais como as diversas teorias científicas acabam por expressar e
reproduzir. Analisemos essa questão onde ela se apresenta de maneira mais
desenvolvida a sociedade capitalista e isso nos dará elementos para compreendê-la
em outros momentos onde a consubstancialização do objeto do trabalho em saúde na
forma do corpo não se apresentava com tamanha concretude. Pois bem, como
sabemos, uma das características da sociabilidade do capital é o fato de colocar o valor
de troca como o centro de suas atenções. Isso porque é através da hegemonização do
valor de troca sobre o valor de uso que a busca do lucro se coloca acima da satisfação
das necessidades dos seres humanos. Por isso é fundamental que tudo passe a
apresentar, além de valor de uso, valor de troca, constituindo-se assim em mercadoria.
Isso fez do modo de produção capitalista a
sociedade produtora de mercadorias.
Desde produtos inanimados até o mais animado de todos os produtos o trabalho
passam a se tornar mercadorias. Ora, surge uma “pequena” contradição, o trabalho
torna-se uma mercadoria, porém o trabalho não existe sozinho, “solto” no mundo. O
trabalho existe concretamente, ou como produto do trabalho, ou como capacidade de
trabalho. Nesse segundo caso, como conseqüência de se transformar a força de
trabalho em mercadoria, o capital inevitavelmente também acaba por
reificar o próprio
suporte da força de trabalho – o ser humano. É esse o alicerce que possibilita à
sociedade capitalista definir como objeto das práticas em saúde, não a vida humana em
toda sua complexidade, mas simplesmente “uma coisa” o corpo humano. E mais, o
corpo humano doente, pois é esse que se torna uma questão importante para essa
sociabilidade.
Ao analisarmos uma outra forma de sociabilidade, a feudal, por exemplo,
poderemos ver que as representações acerca das práticas em saúde diferenciam-se
como conseqüência da diferente forma de relação entre as classes no processo de
produção da existência. A ausência de um mercado mundial de consumo integrado
hegemonizador da forma
mercadoria fazia com que a pressão pela produtividade do
trabalho não se apresentasse de maneira tão intensa e, consequentemente, o grau de
88
desenvolvimento das forças produtivas encontrava-se infinitamente menos avançado.
Logo, embora o corpo também representasse o suporte orgânico da força de trabalho,
esse era submetido não através de relações hegemonicamente mercantis, mas de
vassalagem/servidão. A legitimidade dessa forma não se dava através da idéia de uma
sociedade de indivíduos livres, iguais e proprietários de diferentes mercadorias
alguns proprietários de meios de produção e outros de força de trabalho mas sim
através de relações “naturais” e determinadas pela “vontade divina”. Portanto, o corpo
apresentava-se, ideologicamente, menos como suporte orgânico para a força de
trabalho e mais como “morada da alma”. Podemos inferir daí a “menor” importância
dada ao corpo, que se refletia na baixa valorização das práticas de saúde e de seus
agentes nesse período. Dos sujeitos realizadores das práticas em saúde, como veremos,
o socialmente mais valorizado era o agente que intervinha sobre o corpo menos guiado
pela organicidade e mais pela metafísica, o
físico.
Portanto, pensamos que para se conseguir apreender o trabalho em saúde em
toda sua complexidade é fundamental conseguir compreender seu caráter
historicamente determinado sob pena de incorrer em legitimação de concepções
parciais e fragmentadas. Esse processo de legitimação de concepções parciais é o
modo através do qual as concepções representativas das relações sociais dominantes
ganham a dimensão de concepções gerais, universais, portanto ideológicas, tendendo,
assim, a serem naturalizadas através da supressão de seu caráter parcial e histórico. A
concepção hegemônica hoje do trabalho em saúde como reparador de alterações
anatomofisiológicas (doenças) ao nível do corpo, em relação a um normal
naturalizado, também é expressão de uma dada racionalidade intrinsecamente
interligada à consolidação do modo de produção capitalista. Uma racionalidade
científica, de inspiração positivista - que foi e é simultaneamente expressão e estímulo
ao desenvolvimento das forças produtivas do trabalho sob essas relações de produção.
Como sabemos, uma das principais características da doutrina positivista foi a ênfase
dada à captação dos fenômenos naturais através da experimentação e a posterior
extrapolação dessas leis aos fenômenos sociais procedendo, assim, a uma
naturalização do social. Por isso, autores como Augusto Comte transitarão tão
89
facilmente entre as ciências naturais e sociais, propondo “várias semelhanças” entre
elas (LUZ, 2004a). O trabalho em saúde através, principalmente, da medicina foi
agente ativo desse movimento, como veremos a seguir.
4.2 O TRABALHO EM SAÚDE E AS NECESSIDADES HISTÓRICAS DO
CAPITALISMO
Nos deixem sair
Somos além da conta
Nosso número se multiplica
quanto mais lutamos
por um centímetro de espaço
por uma tábua uma prancha (...)
Súbito somos
horrivelmente muitos
Pisoteamos
os pisoteados
massa bem tenra
Um pudim de pânico
que fede a medo (...)
(ENZENSBERGER, 2000: 48-49)
Para entendermos que papéis passam a assumir as práticas de saúde e seus
sujeitos com a transição para o modo de produção capitalista, é necessário
compreendermos como o nascimento de novas relações econômicas e sociais impõe a
formas antigas, novas configurações sociais. As práticas em saúde agora passarão a ser
centralizadas e colocadas sob controle hegemônico do Estado, passando a sofrer o que
Donnangelo caracterizou como um processo de extensão de sua interferência. A autora
define essa extensão como relacionada tanto à ampliação “do campo de normatividade
da medicina através da definição de novos princípios referentes ao significado da
saúde e da interferência médica na organização das populações e de suas condições
gerais de vida” quanto à ampliação do acesso ao cuidado médico (DONNANGELO,
1979: 33).
A análise do período que vai do final do século XV ao XVI como momento
privilegiado do nascimento e consolidação das novas relações necessárias ao capital
pode nos dar algumas pistas a respeito desse processo de reconfiguração das práticas
em saúde. Esse período, dito mercantilista, caracterizou-se, entre outros aspectos, por
90
constituir-se em um momento de acumulação primitiva do capital. Marx apreendeu
esse processo de acumulação primitiva para além da simples acumulação de capital
“inicial” para a constituição das indústrias capitalistas. Mais do que isso, a acumulação
primitiva representa o processo segundo o qual se constituem as condições necessárias
ao estabelecimento de relações sociais de produção capitalistas. As condições para o
estabelecimento dessas relações deram-se principalmente através: da expropriação dos
camponeses de suas terras, transformando os meios de produção em propriedade
privada de poucos proprietários; da transformação dos meios de trabalho em capital
(constante); e da privação da grande massa de trabalhadores dos meios necessários à
sua subsistência, o que os obrigará a vender sua força de trabalho (transformando-a em
mercadoria) aos capitalistas a fim de obtê-los. Esse processo será responsável por
prover os capitalistas de força de trabalho (capital variável) suficiente para as
manufaturas nascentes. Some-se a isso, o processo de entesouramento a partir da
extração de metais preciosos das colônias da América, Ásia e África, estabelecendo
uma política de balança comercial favorável que intensificava o grau de exploração
sobre as colônias, fazendo com que sua produção fosse voltada para o enriquecimento
das metrópoles e, ao mesmo tempo, constituía um mercado mundial demandador de
mercadorias que a baixa produtividade do artesanato e das relações servis não podia
atender (MARX, 2001).
Portanto, para o fomento do capitalismo foi necessário acumular capital na
forma de dinheiro/tesouros que subsidiassem a implantação das manufaturas e, mais
tarde, das indústrias; porém, além disso, foi fundamental criar uma massa de
trabalhadores expropriados dos meios de produção a terra que passassem a possuir
como única alternativa de sobrevivência a venda de sua força de trabalho para as
indústrias nascentes. Esse proletariado nascente também se constituiria no principal
agente consumidor das mercadorias produzidas pela indústria moderna. Além do papel
que caberia aos trabalhadores expropriados na esfera da produção, havia também a
necessidade de “braços livres” para a constituição dos exércitos nacionais, visto que
agora com o surgimento do Estado-Nação era necessário oferecer “proteção” a todo o
povo. O principal agente político e econômico capaz de cumprir com essas tarefas,
91
fundamentais para a consolidação do capitalismo, na ausência de uma burguesia forte,
consolidada como classe dominante, foi o Estado Absolutista. Um Estado
centralizado, mas ainda contraditório, pois, ao mesmo tempo em que a burguesia
começava a se tornar seu principal sustentáculo econômico, esta ainda estava se
constituindo como classe politicamente dominante. Esse Estado, portanto, apesar de
ser marcado ainda por uma disputa entre a burguesia ascendente e a nobreza
decadente, vai se constituir no principal instrumento consolidador das novas relações
de produção (POULANTZAS, 1985).
O fortalecimento desse Estado está relacionado ao papel que caberá a este
frente às necessidades postas pelo desenvolvimento dos processos produtivos
capitalistas e suas conseqüências. Uma dessas conseqüências refere-se às demandas
postas pela grande quantidade de trabalhadores agora
livres dos meios de produção e
fora da tutela dos senhores feudais. No que tange às necessidades do capitalismo
nascente em relação à força de trabalho, sobressai-se inicialmente o aspecto
quantitativo. Expropriar os camponeses da terra é um primeiro movimento e esse
processo inicia-se ainda sob as relações feudais, intensificando-se com o início do
capitalismo ainda sob a cooperação simples, no século XVI. Posto isso,
conseqüentemente, a partir do século XVIII, surge a necessidade de prover as
condições de reprodução dessa força de trabalho disponível e não necessariamente
ocupada nas manufaturas na mesma proporção em que são expulsos do campo. A
expropriação dos camponeses cria uma grande massa de trabalhadores pauperizados
que passa a servir de força de trabalho para a manufatura e mais tarde para a indústria
nascente. Progressivamente esses trabalhadores passam a constituir, juntamente com
artesãos e comerciantes, a população urbana
11
levando à mudança do centro
produtivo/social do campo para a cidade (SWEEZY, 1977).
Uma vez estabelecida nas cidades uma população urbana progressivamente
maior em relação ao período feudal, começa a haver uma pressão no sentido de
reorientar o espaço urbano para as novas necessidades postas. A grande massa de
11
Importante ressaltar que no início da constituição das manufaturas, grande parte destas localizava-se
fora das cidades, devido à dependência direta de recursos naturais para a produção. Maior
detalhamento em Marx, K.
O Capital, op. cit.
92
trabalhadores passa a colocar para a nova sociedade questões novas, a serem
resolvidas pelo Estado, como a da habitação, estrutura viária, acesso à alimentação e
etc. Some-se a isso o fato de que as condições de miséria da imensa maioria da
população conseqüentes ao processo de decadência do modo de produção feudal eram
agravadas pela existência de inúmeras epidemias (Sarampo, Tuberculose, Febre
tifóide, Difteria) que faziam com que as chances de sobreviver para os membros das
classes trabalhadoras, principalmente as crianças, fossem muito pequenas. Se as
epidemias representavam um grave problema durante a Idade Média, agora, com o
aumento da densidade populacional e a grande concentração de pessoas nas cidades,
sem infra-estrutura adequada, têm o seu poder destrutivo ampliado enormemente.
Dentre todos esses aspectos com que teve de se deparar o Estado, um nos interessa
sobremaneira, qual seja, a questão acerca da demanda por ações de cunho higiênico-
sanitário como requisito à manutenção da força de trabalho e, ao mesmo tempo, como
instrumento normalizador/disciplinador necessário às relações sociais em
consolidação.
Posta essa demanda, o Estado passará a atuar nas mais diferentes áreas do
conhecimento que possuíam relação com esse objetivo. É o momento em que
começam a surgir diversas formas de registros e estatísticas populacionais, implantam-
se programas de controle populacional; no campo teórico, as diversas doutrinas
políticas e econômicas passam a estudar e teorizar acerca da questão populacional
12
.
No caso da área de saúde, esse é o primeiro momento em que começam a se
configurar políticas e práticas estatais de grandes dimensões que passam a direcionar
as ações em saúde. Uma grande ênfase começou a ser dada à questão higiênico-
sanitária como critério direcionador dos rearranjos da vida privada e pública no meio
urbano (AROUCA, 1975; BERLINGUER, 1978; MERHRY, 1987). Vida privada e
pública, aliás, são conceitos que nesse período passam progressivamente a serem
unificados sob a lógica do controle da população pelo Estado. A própria dimensão do
12
Veja-se o surgimento de teorias como as de Malthus, em sua obra “Ensaio sobre o princípio da
população” de 1798. Os economistas clássicos, como Ricardo e Smith, também começam a incorporar
a categoria “população” com mais ênfase em suas análises. Veja-se “Riqueza das nações” de 1776, de
Adam Smith.
93
corpo, como ente privado, advinda do período feudal passa a ser superada pela
concepção de que o responsável pelo zelo de toda a sociedade é o Estado. Como a
sociedade sob o regime jurídico-político burguês é constituída por indivíduos, cabe ao
Estado o controle e a responsabilização pelas condições de vida e saúde desses
indivíduos. O controle sobre o corpo, portanto, deixando de ser privado para se tornar
estatal, é um dos aspectos de um controle que passa a atingir todos os aspectos da vida
dos indivíduos. Donnangelo, quando analisa como se deu esse processo em um país
específico, a Alemanha, conclui que a aplicação dessas práticas estatais
(...) marcaram acentuadamente a prática médica na Alemanha e implicaram, em fins do
século XVIII e princípios do século XIX, na implantação de um sistema complexo de
observação e registro de nascimentos, de mortes, da morbidade, da ocorrência de endemias e
epidemias, bem como na instauração de uma série de mecanismos de controle, pelo poder
político, da formação do médico, do exercício da prática médica, dos efeitos dessa prática
sobre o estado de saúde das populações. Implicaram, enfim, em um esquema de
disciplinarização da medicina pelo Estado e em uma correspondente função de controle
atribuída à medicina sobre a vida social. (DONNANGELO, 1979: 51).
Concomitantemente a esse processo de atendimento das necessidades impostas
pelo capital para viabilização das relações capitalistas emergentes, o Estado terá de
lidar com as reivindicações impostas por outros agentes que entravam em cena nesse
período. O principal deles era o proletariado nascente, mas também havia setores do
campesinato e da pequena burguesia que passaram a participar da configuração da
arena política nesse período revolucionário. As “massas”, embora sob comando da
burguesia, também tiveram um importante papel na derrubada do feudalismo e agora
aproveitavam, ainda que debilmente, a situação de instabilidade política que o
domínio burguês não estava plenamente consolidado no campo da política – para
colocar suas reivindicações. Por isso, essas questões acerca do rearranjo urbano, da
miséria e das condições higiênico-sanitárias comporão o quadro das insurgências
populares durante os séculos XVIII e XIX.
Obras como as de Donnangelo (1979) Mendes-Gonçalves (1994) e Ayres
(2002) analisam esse período demonstrando a relação entre o surgimento, pela
primeira vez, de concepções emancipadoras acerca da saúde vinculada aos seus
94
determinantes sociais e o surgimento de expressões e concepções políticas advindas
da classe trabalhadora.
A Revolução Francesa constitui-se em um exemplo extremamente ilustrativo
desse movimento. Se por um lado a burguesia lutava para hegemonizar a ideologia de
liberdade e igualdade política formais dos cidadãos através das relações jurídico-
políticas consubstancializadas pelo Estado-Nação, por outro lado, “os de baixo”
inseriam no campo político a discussão acerca da “questão social”. A principal
expressão política desse movimento por parte das massas se dava através do
Jacobinismo, cujo conteúdo era composto pelos ataques à riqueza e pelos apelos à
igualdade social. Esse movimento das massas despossuídas era movido pelas
condições miseráveis em que se encontravam o proletariado nascente e o campesinato
sobrevivente à queda do feudalismo. Como vimos anteriormente, as condições de vida
para essas classes e camadas sociais eram as piores possíveis nesse período. A
expropriação do campesinato dos meios de produção e a liberação de uma grande
massa de trabalhadores para as cidades a fim de servir de força de trabalho à indústria
nascente não foi acompanhada simultaneamente de condições estruturais que
garantissem, inclusive, a reprodução dessa força de trabalho. Portanto, a ideologia
Jacobina é fruto dessa situação de miserabilidade, de precárias condições de moradia,
trabalho, saúde, higiene, alimentação, em que se encontravam esses setores. Como
expressão política de várias camadas sociais em transformação, sendo a principal delas
a pequena-burguesia urbana, em um momento de instabilidade social, essas
concepções também eram em si muito “espontâneas” e se caracterizavam pela
insuficiência conceitual própria da limitação que as condições materiais impunham. É
assim que se deve compreender a elaboração de idéias e teses acerca da constituição de
uma “República Social” de caráter popular baseada na solidariedade e na felicidade.
Apesar disso, diversos autores localizam na atuação dessas camadas, expressa na
concepção jacobina, um importante componente na conformação de alguns princípios
e práticas do Estado capitalista moderno. Vejamos, por exemplo, os princípios do
“Bem-estar comum” e do direito do acesso universal aos fatores que propiciam esse
bem-estar; sejam eles os “direitos naturais” do homem entre os quais se inclui o
95
direito à alimentação, saúde, moradia. Segundo DONNANGELO (1979: 55), “Deve-se
mesmo admitir que a ideologia jacobina tenha sido fundamental na organização dessa
‘vontade coletiva’ nacional-popular que, baseada no irrompimento da grande massa do
‘povo’ na vida política, permitirá a constituição do Estado burguês na França”. O
Estado capitalista, portanto, deve a sua constituição a esse processo contraditório no
qual agiam outras forças, além da burguesia, e às quais ela teve de fazer concessões a
fim de incorporar todo o povo ao seu projeto societário. Essa conjuntura
revolucionária também será espaço para começarem a se consolidar, ainda que de
forma incipiente, as primeiras teorias e expressões políticas do proletariado, como
aquelas sob a forma do socialismo utópico. Esses movimentos por “reformas
profundas dentro da revolução”, inspirados pelas reivindicações de igualdade social
vão influenciar também o campo das práticas e concepções da saúde. Associadas às
propostas de reformas sociais, surgem, a partir do final do século XVIII e durante a
primeira metade do século XIX, diferentes propostas de reforma médica que passaram
a ser reunidas sob a denominação genérica de
medicina social. Essas concepções se
caracterizavam, por um lado, em incorrer a principal causa das enfermidades às
condições de vida e, por outro, em sugerir à medicina um papel de “organizador
social”. Os principais representantes desses movimentos foram Jules Guérin, na
França, e Rudolf Virchow e Salomon Neumann na Alemanha. Nas elaborações dos
três pensadores podemos identificar os princípios gerais dessa concepção: como existe
uma relação de causalidade evidente entre a vida social e as condições de saúde-
doença, a interferência para combater as enfermidades e promover a saúde deve se dar
tanto no campo médico quanto no campo social; é necessário também que a medicina
não se restrinja à interferência no nível do biológico devendo também ter a função de
agir sobre a realidade social no sentido de ajudar a corrigir possíveis distorções; como
cabe ao estado zelar pelo bem-estar dos cidadãos deve caber, portanto, a ele a função
de promoção das condições de saúde dos indivíduos (DONNANGELO, 1979;
MENDES-GONÇALVES, 1994).
A profundidade dessas propostas demonstra a correlação de forças sociais
presente na Europa nesse período. Se, por um lado, a burguesia lutava para transpor
96
sua hegemonia econômica para o campo político-ideológico e, dessa maneira, lançar
as bases definitivas da consolidação do modo de produção capitalista, por outro lado, o
proletariado (no século XVIII), inspirado pelas idéias dos socialistas utópicos,
ensaiava dirigir a massa de despossuídos no sentido de aprofundar o máximo possível
a revolução democrático-burguesa.
Portanto, a partir da segunda metade do século XVIII o desenvolvimento
progressivo das forças produtivas e a consolidação das relações capitalistas de
produção, se por um lado passaram a fazer com que a burguesia pisasse terreno mais
firme e tivesse bases materiais mais sólidas para estabelecer sua hegemonia no campo
político-ideológico; por outro lado esse mesmo desenvolvimento passava a cobrar da
classe proprietária que definitivamente se apropriasse do aparelho de Estado para
impor à sociedade européia as condições necessárias para um novo regime de
acumulação do capital: a fase da grande indústria. Dentre essas condições, uma central
era a reprodução da força de trabalho. Reproduzir a força de trabalho significa mantê-
la fisicamente em condições de trabalhar, mas significa também discipliná-la para o
trabalho. Foi o momento da repressão aos projetos contra-hegemônicos – vide os
exemplos da Comuna de Paris e da Revolução Alemã e de todas as suas
manifestações. As propostas emancipadoras reunidas no corpo da
Medicina Social e da
Reforma Médica também passam a ser superadas nesse período, tendo apenas seus
elementos menos contestadores incorporados à estrutura institucional do estado
capitalista.
São principalmente duas as diretrizes que conduzem as ações do Estado
capitalista a partir desse período no que se refere às práticas em saúde. A primeira
refere-se ao “controle da pobreza” e a segunda ao “sanitarismo do ambiente” que
incluía ações visando organizar/higienizar os espaços urbanos, enfrentando as grandes
epidemias e reconfigurando a assistência às massas pauperizadas (AROUCA, 1975). O
estado burguês havia aprendido que a falta de controle sobre esses fatores criou um
ambiente propício para o surgimento de insurgências populares de grande dimensão.
Insurgências que também se expressavam no campo da política, com o socialismo
97
utópico, e no campo das ciências com, por exemplo, a medicina social. Era necessário
estabelecer mecanismos mais sólidos de disciplinamento da classe trabalhadora.
Com relação à assistência à pobreza, essa não deve ser interpretada como
representação de políticas de garantia de direitos sociais; pelo contrário possuía um
caráter sempre repressivo e determinado pelas necessidades postas pelo mundo da
produção. A política de assistência à pobreza sob controle do Estado tem início com o
próprio capitalismo em sua fase de acumulação primitiva. Como vimos, um dos
elementos fundamentais dessa fase é a expropriação dos camponeses de suas terras a
fim de liberá-los para o trabalho na indústria nascente. Todavia, uma “questão” com
que teve de lidar o Estado burguês é o fato de não existir um emprego de trabalhadores
nas manufaturas em número correspondente ao de expulsos do campo. A palavra
“questão” aparece aqui entre aspas para que se evite juízo valorativo a seu respeito, a
fim de podermos apreender em suas raízes o processo correspondente ao que Marx
definiu como formação da
superpopulação relativa. Esse processo, que corresponde à
constituição de uma massa de trabalhadores expropriados em número maior do que as
vagas geradas no processo produtivo, apresenta-se intrínseco às relações sociais
capitalistas e garante um mecanismo de rebaixamento do preço da força de trabalho
pelo mecanismo de concorrência a partir da constituição de um exército industrial de
reserva. A conseqüência mais direta desse processo é que a pauperização tornou-se um
problema em toda a Europa e passou a representar um “perigo” para sociedade de
então. Desse período em diante, o Estado tem se ocupado de tratar a questão da
pobreza conforme as necessidades impostas pela dinâmica do capital, funcionando
como um “agente regulador” e disciplinador da oferta de força de trabalho. Durante o
feudalismo as atitudes em relação à pobreza, por parte da Igreja, eram mais
“protetoras” e “cuidadoras”. O número de pobres era pequeno, pois os trabalhadores
encontravam-se vinculados à terra e conseguiam garantir seu sustento. Aqueles, raros,
que não eram absorvidos pela “rede social” das comunas e feudos o eram pelas
atividades de cunho filantrópico religioso. A partir do século XVII, os programas de
assistência à pobreza que eram mais amplos e controlados pela igreja, passam ser
controlados pelo Estado e assim prosseguirão por vários séculos. A assistência e as
98
legislações que inicialmente eram mais amplas, passam a, tornar-se mais restritas a
partir do século XIX tendo como concepção a inserção dos sujeitos no trabalho através
de mecanismos de punição e detenção como condição para acesso ao auxílio
pecuniário. Portanto, a partir desse momento, com a necessidade crescente por força
de trabalho, o Estado passa a prestar a assistência de maneira mais restrita, apenas para
aqueles indivíduos considerados inválidos para o trabalho. O objetivo era obrigar os
trabalhadores a se incorporarem ao exército disponível para o capital, de maneira
inclusive a promover a concorrência entre os mesmos, diminuindo assim o preço da
força de trabalho
13
.
A segunda diretriz do Estado capitalista a partir do final século XVIII e início
do século XIX refere-se ao sanitarismo do ambiente e são essas ações que passam a
constituir a partir desse momento a saúde pública como campo oficial (a lei inglesa da
saúde pública é de 1875). Começam progressivamente a se constituírem aparatos
técnicos e administrativos, como mecanismos de registros de mortalidade, processos
de vacinação obrigatória, orientações de readequação do espaço urbano, com a
finalidade de organizar ações de impacto coletivo sobre as condições de saúde das
populações visando diminuir os níveis de mortalidade da população urbana. Assim
À medida que a urbanização, o aprofundamento da divisão social do trabalho, o aumento da
dependência entre as nações e entre as diversas esferas da atividade humana caracterizavam a
nova estrutura social como apresentando um grau mais complexo de socialização, as práticas
de saúde tornavam-se ‘sociais’, no sentido de colocarem para si objetos explicitamente sociais
como o meio, a cidade, a cultura, os comportamentos, os hábitos (MENDES-GONÇALVES,
1994: 73).
Como podemos ver, o processo de assistência à saúde no período pré-
monopolista do modo de produção capitalista foi determinado pelas necessidades das
relações sociais nascentes e concomitantemente ajudou a consolidá-las. Algo
inicialmente determinado torna-se determinante sem deixar de ser determinado. O
processo de trabalho em saúde institucionalizado, nesse momento, ficou
13
Um exemplo elucidativo de como foi tratada a questão da pobreza pelo capitalismo nascente se
encontra nos estudos acerca das legislações sobre a pobreza nos países europeus, dentre os quais a
Inglaterra com a “lei dos pobres” representa o caso mais didático. Uma análise mais pormenorizada é
feita por Donnangelo, M.C.F. op. cit.
99
hegemonicamente vinculado à questão do sanitarismo do ambiente e das ações
coletivas de controle da força de trabalho. Nesse período ainda não exerce papel
predominante a assistência médica individual e a organização de grandes instituições
com essa função. em um segundo momento, a partir do século XX, a dimensão que
se sobressairá será a relativa à medicalização individual. Vejamos agora como, a partir
desse momento, começou a se configurar
internamente o processo de trabalho em
saúde no campo da assistência individual. Se as práticas referentes ao controle do
ambiente e da coletividade constituem-se inicialmente no campo da
medicina social e
depois reduzem-se à
epidemiologia, o processo de normalização ao nível dos corpos
individuais deu-se hegemonicamente através da extensão do campo de atuação da
assistência médica individual. Por isso os autores acima citados defenderão a tese da
medicina como
disciplina social em oposição à concepção hegemônica da mesma
como disciplina do campo das ciências naturais.
Isso faz com que a maioria dos estudos acerca desse tema centre sua análise na
prática médica, sendo essa a prática unificadora da área de saúde nesse período
histórico, justamente por ser aquela que mais atendeu às necessidades das relações
sociais hegemônicas como instrumento normalizador nessa área. Porém, como
poderemos ver, uma das principais características do trabalho em saúde sob o
capitalismo monopolista será a incorporação de outros agentes a esse processo
assistencial, transformando-o em um trabalho coletivo.
100
5 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE SOB O CAPITALISMO
O que fizemos até agora nos capítulos anteriores analisar o desenvolvimento
do trabalho social sob o capitalismo e analisar a relação entre o objeto do trabalho em
saúde e as relações sociais de produção teve a função de servir de alicerce para
subsidiar a análise de nosso objeto nessa dissertação, qual seja: a análise da
qualificação do trabalho em saúde sob o atual estágio de desenvolvimento do
capitalismo, com o objetivo de apreender tendências e contradições do movimento que
realiza essa categoria sob esse modo de produção específico. Nosso campo de pesquisa
será constituído pela produção teórica dos autores, principalmente brasileiros, mais
conceituados e referenciados nessa área. Não obstante, além de recorrer aos mais
destacados, recorreremos também a elaborações de vários autores menos conhecidos
no campo da saúde coletiva que pensamos estarem contribuindo para esse difícil
processo de compreensão. Como entendemos o real como “síntese de múltiplas
determinações”, vemos muitas das diferenças interpretativas entre esses autores como
possíveis manifestações da apreensão de aspectos diferentes desse real pelos mesmos.
Diferentes interpretações podem significar olhares sobre diferentes aspectos de um
mesmo real, vivo, complexo porque em movimento contraditório. É com essa
compreensão que vamos propor algumas reflexões acerca de várias elaborações e
poderemos oferecer nossa “arma da crítica” para a análise da produção de alguns
autores. Pensamos, como Foucault (1984), que qualquer estudo sobre determinado
objeto ao tentar questionar, fazer “ranger” sua produção teórica mais aprofundada,
contribui para dar vida a essas obras e propicia uma melhor apreensão do real. Nosso
objetivo é compreender como as tendências gerais e as contradições pelas quais passa
o trabalho social sob o capitalismo contemporâneo se manifestam no caso concreto do
trabalho em saúde e em que medida suas peculiaridades encerram outras contradições
e tendências mais particulares. Centraremos nossa análise da qualificação do trabalho
em saúde no período atual do capitalismo, porém, antes de adentrarmos o plano da
reconfiguração interna das práticas em saúde sob o capitalismo, pensamos ser
importante fazer uma breve análise se como se apresentavam essas práticas e seus
101
executores no período feudal. Isso se faz necessário, a nosso ver, porque no plano do
real, diferentemente do que propagam as análises historiográficas, as transformações
não tendem a ocorrer nas datas oficiais. Pelo contrário, o que se costuma captar como
“momentos de mudança” tendem a ser, em realidade, momentos de “solução”, ou de
“saltos qualitativos” de transformações quevinham conformando-se, e até impondo-
se no movimento contraditório do real. O caso do trabalho em saúde é uma expressão
disso. O modo como se conformavam as práticas em saúde sob o modo de produção
feudal persistiram em grande parte nos primeiros séculos do capitalismo e até hoje
podemos sentir seus impactos sobre a organização do trabalho. Entender suas origens,
portanto, pode nos ajudar a apreender as contradições do processo de conformação do
trabalho em saúde à nova sociabilidade.
5.1 A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE ADVINDA DO
FEUDALISMO
Procederemos agora a uma breve análise acerca de como as práticas em saúde
se constituíram em um modo de produção anterior o feudal e quais suas
determinações a fim de subsidiar a compreensão de como se deu a adaptação dessas
práticas à sociabilidade do capital.
Diversos autores costumam centrar sua análise em dois aspectos que
consideram fundamentais para demonstrar a diferença do trabalho em saúde do
período feudal em relação ao capitalismo. O primeiro deles refere-se à extensão do
acesso aos serviços de saúde. Sob o feudalismo somente um grupo restrito de
indivíduos, geralmente advindos das classes dominantes, tinha a garantia da
manutenção da integridade do corpo através das práticas de saúde. Os curadores mais
respeitados os
físicos muitas vezes existiam como empregados, súditos da nobreza
e do clero, sendo que era sensivelmente menor o acesso das outras classes a esse
serviço. A essas, geralmente restavam os serviços oferecidos pelos “práticos”, como
barbeiros, parteiras, etc. Podemos identificar aqui como a ausência da necessidade, por
esse modo de produção, de fazer avançar o desenvolvimento das forças produtivas, o
102
que era representado basicamente pela quantidade de força de trabalho disponível,
determina a pouca importância dada ao corpo do camponês o trabalhador típico
desse período. É somente com a transição para o capitalismo, com a crescente
necessidade de força de trabalho disponível, que o capital irá se ocupar de prover
ações que visem à normalidade do corpo do trabalhador para as novas exigências que
se apresentam.
Alguns autores (DONNANGELO, 1975; NOGUEIRA, 1977; SCHRAIBER,
1989) ressaltam, como conseqüência dessa pouca ênfase dada à questão da reprodução
da força de trabalho por essas relações sociais, que se apresenta como característica
importante do trabalho em saúde no período feudal a inexistência de um corpo técnico
e um método de trabalho que unificasse as diversas práticas em saúde. Ao contrário, o
que se apresenta é uma variedade de práticas, relacionadas ao que hoje chamamos área
de saúde, dispersas na sociedade e sob domínio de diferentes sujeitos. Logo, outro
fator que diferenciaria as práticas em saúde do período feudal em relação ao período
capitalista seria a presença de uma diversificação da organização técnica e social
dessas práticas, diversificação que aparecia refletida na diversidade de seus agentes
realizadores. Importante ressaltar que a existência de diversos sujeitos realizadores das
práticas em saúde não deve ser tomada da maneira como compreendemos o trabalho
coletivo em saúde nos dias atuais. Não havia um objeto comum que unificasse as
diferentes práticas e sujeitos em seu operar, como vemos atualmente. Pode-se dividir
esses diferentes sujeitos em dois grupos tendo como referencial o conteúdo
diferenciado de suas qualificações: um grupo era composto pelos sujeitos de origem
erudito-religiosa e outro pelos “práticos” ou “leigos”; entre os primeiros destacam-se
os
físicos os médicos clínicos da época que passavam por formação em mosteiros
(a partir do século X, nas universidades) e atendiam principalmente os sujeitos das
classes dominantes, sendo remunerados diretamente pelo seu trabalho. No caso dos
“práticos” os principais agentes eram os cirurgiões, cirurgiões-dentistas, barbeiros,
boticários e parteiras. Ao contrário dos físicos, esses agentes eram oriundos das classes
pobres (campesinato, artesãos) e geralmente prestavam atendimento às mesmas.
Alguns desses agentes, como os cirurgiões, possuíam uma formação advinda das
103
corporações de ofício, exerciam seu trabalho de maneira artesanal e independente e
eram remunerados diretamente pelos consumidores de suas práticas. Outros, como no
caso das parteiras, exerciam um trabalho de cunho mais filantrópico-comunitário e a
formação se dava diretamente pela transmissão oral entre as diferentes gerações.
Dentre esses vários sujeitos dispersos realizadores das práticas que mais tarde seriam
reunidas no campo do trabalho em saúde, destacam-se dois agentes principais: aquele
de caráter mais erudito, filosófico-ideológico, que agia através de uma prática mais
discursiva os chamados físicos; e aqueles de caráter mais artesanal, com práticas
manuais, dentre os quais se destacam os cirurgiões. Os primeiros correspondiam ao
que mais tarde viria se configurar nos médicos-clínicos enquanto os segundos
correspondem, sob o capitalismo, aos futuros médicos-cirurgiões. Vejamos uma
elucidativa descrição desses dois agentes:
Por sua ação mecânica sobre o corpo humano, a cirurgia logo foi identificada a um tipo de
trabalho físico. A medicina interna, por outro lado, revestiu-se de um caráter operacional
menos nítido, sobretudo graças ao aparecimento do boticário, que tomou a si a tarefa de
manipular as ervas e preparar as poções medicamentosas. A noção de trabalho chegou a ser
apartada do exercício da medicina interna e suas qualidades de saber, filosófico ou prático,
foram mais reconhecidas e acentuadas. Desse modo condições peculiares à sociedade
medieval puderam fazer de seus praticantes figuras que se defrontavam antagonicamente: o
humilde artesão face ao douto prestigioso, o homem da técnica face ao filósofo. (NOGUEIRA,
1977: 25)
Assim, se por um lado, os cirurgiões se incumbiam de um trabalho
essencialmente manual, prático, com fortes repercussões corporais, - cuidavam de
ferimentos externos, conseqüências de acidentes, guerras - por outro os físicos
olhavam e agiam sobre o processo de adoecimento guiados por uma concepção
essencialmente filosófica e metafísica acerca da saúde e da doença, tendo como
principal instrumento da prática o discurso. A formação dos últimos acontecia nas
universidades, era de caráter erudito e apoiava-se no acesso às diversas áreas do
conhecimento, enquanto que o cirurgião se formava através do trabalho nas
corporações de ofício. Na hierarquia social o físico apresentava-se em uma posição
superior à do cirurgião, pois “assim como o clérigo, com quem frequentemente estava
associado, ele (o físico) era um intelectual orgânico da classe dominante. A primazia
104
do físico na organização social da medicina tem raiz em seu desempenho intelectual,
que contribuía para a reprodução, ao nível ideológico, das relações sociais prevalentes
no feudalismo” (Ibidem: 10-11). Podemos interpretar essa submissão do cirurgião ao
físico como reflexo da submissão de uma classe à outra e que também se expressava
na submissão do corpo à alma, aspecto central da ideologia dominante nesse modo de
produção.
Os outros trabalhadores que exerciam práticas de saúde também essencialmente
manuais como o cirurgião-dentista e o boticário apresentavam-se, do ponto de vista da
localização no contexto social, em uma posição muito semelhante à do cirurgião
. No
caso dos cirurgiões-dentistas, por exemplo, veremos que essa herança histórica terá
repercussões sobre a constituição da odontologia como profissão, sobre o
capitalismo, pois “Em relação à natureza do Trabalho, pode-se dizer que, ao contrário
da medicina, na atividade da odontologia predominaram, desde o início do seu
desenvolvimento, as tarefas manuais, voltadas para a extração e reposição dos dentes,
associando-se a uma função mais cosmética do que terapêutica, portanto, a uma
imagem de trabalho ‘artesanal’ e ‘comercial’ e, por isso mesmo, de baixa estima
social.” (CARVALHO, 2003: 32).
Os boticários foram os trabalhadores que progressivamente se apoderaram dos
saberes e práticas referentes à preparação de poções e plantas medicinais. A prescrição
do uso, porém, era atributo restrito aos físicos. Aos físicos, aliás, por serem os únicos
profissionais de saúde com reconhecimento por parte do Estado e da Igreja cabia o
papel de fiscalização e controle sobre os demais trabalhadores e suas práticas. Por
serem os únicos formados em Universidades e sob tutela da igreja, exerciam controle
sobre as corporações de ofício responsáveis pela formação e qualificação de vários
práticos, como os cirurgiões, cirurgiões-dentistas e boticários.
Os trabalhadores da enfermagem surgiram com a fixação de sujeitos,
geralmente mulheres, na função de ajudantes em hospitais e casas de caridade sob
controle da igreja. Geralmente eram freiras que passaram a ajudar os doentes como
atividade filantrópico-religiosa. Com o desenvolvimento dos hospitais, sob o
capitalismo, as “leigas” e “religiosas” serão substituídas por profissionais de
105
enfermagem que se constituirão essencialmente nos trabalhadores ajudantes do
trabalho médico (PEDUZZI, 1998; BRAGA, 2000). Todos esses trabalhadores, assim
como o cirurgião, encontravam-se submissos às determinações dos físicos. Porém, não
era essa hegemonicamente uma submissão do ponto de vista do processo de trabalho,
visto que as práticas existiam quase que independentemente. Os cirurgiões realizavam
amputações e outros procedimentos quando fosse necessário; assim como os
“cirurgiões-dentistas” extraíam dentes quando eram procurados ou assim como as
freiras tratavam dos doentes, realizavam partos etc. Os boticários eram os que se
encontravam mais “interligados” aos físicos, pois as “poções” que estes prescreviam
passaram a ser produzidas por aqueles. O poder do físico representado na sua
autoridade em relação aos outros era essencialmente o reflexo de uma relação de
classe. Um era advindo e servia diretamente aos interesses da classe dominante
enquanto os outros eram advindos das classes populares, principalmente dos artesãos e
do campesinato.
Do ponto de vista da qualificação do trabalho o que caracteriza essas práticas
existentes no período feudal é o fato de serem realizadas por produtores
independentes, de forma artesanal. Alguns desses trabalhadores não eram produtores
de mercadorias, visto que realizavam essas práticas com caráter filantrópico, religioso
ou comunitário. No entanto, outros tinham nessas práticas a sua fonte de sobrevivência
através da venda direta de seus serviços aos consumidores. De qualquer maneira,
produtores de mercadorias ou não, todos eram artesãos independentes. O trabalho
artesanal, como vimos em capítulo anterior, se caracteriza por estar totalmente sob
controle do trabalhador. Este é responsável e controla todo o processo de trabalho do
planejamento à execução, por isso vislumbra ao final do mesmo o produto como
objetivação de seu trabalho. Como vimos também, a condição fundamental que fez
com que o trabalho artesanal se tornasse a forma hegemônica durante o período feudal
era o fato de o trabalhador deter a propriedade dos meios necessários à realização de
seu trabalho. No caso do trabalho em saúde não era diferente. O antigo dentista, por
exemplo, era proprietário de seus instrumentos de trabalho alicates, brocas etc -, por
isso tinha total controle sobre seu trabalho e sobre os produtos do mesmo; vendendo-o
106
diretamente aos consumidores. A mesma coisa pode-se dizer dos boticários e dos
cirurgiões. Importante ressaltar que essa propriedade dos meios de trabalho pelos
produtores diretos era hegemônica nesse período, entre outros motivos, porque o baixo
grau de desenvolvimento das forças produtivas não propiciava nem exigia a existência
de grande instrumental tecnológico para a prática do trabalho em saúde. A tecnologia
consubstancializava-se basicamente no
saber necessário à realização do trabalho e, por
ser detentor desse saber, podia o trabalhador dominar integralmente o processo de
produção e de socialização dos produtos de suas práticas. O espaço dos atendimentos,
somente para citar um componente dos meios de trabalho, por exemplo, era
hegemonicamente o domicílio das próprias pessoas demandadoras dos serviços ou dos
agentes curadores.
Como vimos, será o desenvolvimento e consolidação das relações sociais de
produção capitalistas que colocarão a questão da reprodução da força de trabalho como
necessidade histórica fundamental. Essa forma de trabalho, pautada no ofício e no
artesanato, executada por produtores independentes, sem um método único que lhes
propiciasse o estabelecimento de um processo de trabalho social, coletivizado, não se
apresentava com capacidade produtiva de responder às demandas dessa nova forma de
sociabilidade.
5.2 A PRIMEIRA FORMA DO TRABALHO EM SAÚDE SOB O CAPITALISMO
Com a passagem para o modo de produção capitalista, portanto, também as
práticas em saúde passarão a sofrer alterações significativas para responder às
necessidades postas pela consolidação das novas relações sociais em nascimento.
Como pudemos perceber, uma manifestação, talvez o fundamento, desse
movimento que estamos analisando de mudança das práticas de saúde sob o
capitalismo está na mudança do caráter do objeto dessas práticas. Para a nascente
sociedade, alicerçada sobre a forma
mercadoria, uma mercadoria muito especial, a
única cujo valor de uso se caracteriza por ser a capacidade de gerar valor. É a
exploração dessa mercadoria, a
força de trabalho, sob a forma especificamente
107
capitalista - através da extração de mais valia - que se sustenta toda a sociedade
nascente. Pudemos daí compreender a centralidade que passa a adquirir a
preservação/recuperação do
corpo, como suporte orgânico da força de trabalho.
Com a transição para um modo de produção erigido sobre a exploração da força
de trabalho - força de trabalho que se revela em última instância como a “capacidade
do corpo em trabalhar” através da extração de mais valia, a manutenção e
recuperação do corpo tornam-se práticas fundamentais para a existência de toda a
estrutura social. Assim, o processo de trabalho assistencial em saúde passará por uma
reorganização de modo a poder assumir essa função central para a existência da
sociabilidade nascente.
Esse papel que passará a caber ao trabalho em saúde, como vimos, não se dará
somente no plano infra-estrutural - reprodução da força de trabalho de maneira estrita
mas também na superestrutura político-ideológica, como instrumento legitimador da
ordem social que se estabelece sobre a exploração da força de trabalho através do uso
dos corpos pelo capital (MERHY, 1987). Entender o processo de reprodução da força
de trabalho como um processo que extrapola a manutenção material/orgânica do corpo
é fundamental para se apreender o papel que caberá, na nova ordem, ao trabalho em
saúde. Para garantir a manutenção de relações de exploração é necessário, além de
manter íntegros os corpos dos trabalhadores, mantê-los também disciplinados para
esse papel na esfera da produção social da existência. Por isso, adquirem papel central
para o capital os aparelhos e processos de caráter ideológico que visam difundir e
consolidar as concepções/normas/valores legitimadores da ordem capitalista. Como
sabemos, em uma sociedade de classes elaboram-se diferentes representações e idéias,
determinadas, entre outros aspectos, pelas diferentes interpretações que os indivíduos
têm da realidade, a depender de sua localização em uma das classes. Sabemos também
que a classe dominante se mantém como dominante porque além de deter a
hegemonia no campo econômico, a mantém também no campo das idéias e da política.
Portanto, torna-se uma questão de sobrevivência para a burguesia a propagação de
suas idéias e interpretações do mundo como forma de legitimar as relações sociais
capitalistas.
108
Vimos também que os significados do corpo e de seus padrões de normalidade
não são homogêneos, compartilhados por todas as classes. Assim como não são
homogêneos os juízos valorativos referentes ao corpo e à sua manutenção. Porém, na
sociedade capitalista o principal papel da ideologia dominante consiste em velar para
os sujeitos existentes suas diferenças e antagonismos de classe, e apresentá-los como
indivíduos-cidadãos iguais, perante a estrutura jurídico-política, que encontram sua
unidade na idéia de Estado. A idéia, portanto, de igualdade social passa a ser
legitimada através da transformação das necessidades (“iguais para todos”) em direitos
naturais e iguais para todos os cidadãos. Aqui entra em cena a medicina que, segundo
MENDES-GONÇALVES (1979: 172-173) contribuiu para construir
(...) uma concepção geral da saúde e da doença e ter logrado fundamentar cientificamente
essa concepção fundada sobre a
individualidade intrínseca dos fenômenos que intervém,
isto é, uma concepção que ressalta a saúde e a doença como situações vitais que dizem
respeito ao homem indivíduo-biológico, independente de outras determinações, e indiferente
às características peculiares dos grupos sociais. Entenda-se bem: a medicina não procurou
negar pelo menos não sistematicamente a distribuição desigual da saúde e da doença na
sociedade capitalista, mas, ao ter concebido a saúde e a doença como fatos objetivamente
determináveis e ter inculcado essa concepção no conjunto da sociedade, transformou a saúde e
a doença em “benscuja desigual distribuição estratifica os seres humanos quantitativamente,
negando suas diferenças de qualidade: e isto se demonstra permanentemente no fato de que a
doença que é diagnosticada reduz o homem concreto que aporta à condição de ser humano
sem outras adjetivações senão essa que lhe é aposta pela medicina, individualizado e ao
mesmo tempo universalizado igualitariamente através do mal e da prática que a esse mal se
dirige (...) Em outros termos, através da reelaboração das concepções e das práticas de seu
campo de atribuições, os profissionais médicos lograram alinhá-las às características gerais da
ideologia dominante (igualdade essencial e entre os homens) e reservar para si mesmos, na
elaboração dessas concepções e no controle dessas práticas, o papel de únicos trabalhadores
qualificados, vinculando essa capacitação ao domínio de um determinado saber.
Portanto, segundo o autor, a extensão das práticas assistenciais em saúde, sob o
modo de produção capitalista, conformar-se-á reforçando a idéia do cuidado com o
corpo igualmente necessário e igualmente disponível. Isso, como sabemos, assim
como a concepção burguesa de educação pública universal, não ocorrerá exatamente
dessa maneira, visto que o acesso a tais “direitos universais” também serão
determinados pelas inserções de classe dos diferentes cidadãos.
109
Como conseqüência dessa nova dimensão que adquire, no plano das relações
sociais de produção, o objeto do trabalho em saúde, passa a haver uma redefinição de
seu processo interno de trabalho assistencial. Uma dessas redefinições diz respeito à
unificação dos saberes e práticas, outrora separados, em um campo delimitado e
estruturado do conhecimento a
clínica sob comando da medicina moderna. Uma
medicina que nasce demandada pelas novas relações sociais como elemento de
grande importância para garantir a (re)produção da força de trabalho também no plano
superestrutural, qual seja, o da
normalização social. Um aspecto desse movimento
consistiu na emancipação das ciências e suas apresentações tecnológicas, entre elas a
medicina, em relação à religião, sob a direção da teoria
positivista. O objeto das
práticas em saúde que se referenciava em uma forma de totalidade (Deus-Homem-
Natureza) passa a centrar sua visão no Homem como expressão do natural daí as
teorias de naturalização social como, por exemplo, a teoria da “história natural das
doenças”. Ao descrever esse momento, Luz (2004a) lembra que as noções e conceitos
presentes no saber médico antes do século XIX são as de racional, natural, social, vida,
saúde e doença, compatíveis com a renascença; sendo somente a partir desse século
que as noções de normalidade, patologia, equilíbrio e desvio se estabelecem, sob
influência de uma apreensão positiva da realidade.
Em um segundo momento, a ruptura se dá entre o próprio Homem e a Natureza.
O objeto deixa de ser o
Homem doente em sua relação com o meio para se tornar o
organismo patológico. Daí, a base para o estabelecimento da fragmentação do corpo
pela ciência em um conjunto cada vez menor de partes sistemas, órgãos, células,
moléculas. Somente conseguimos apreender esse movimento em toda sua dimensão se
entendemos o desenvolvimento da ciência e das teorias como também determinado
pelo processo de consolidação das relações sociais hegemônicas nesse caso as
relações capitalistas. Os valores consubstancializados na doutrina liberal são os valores
hegemônicos em nossa sociedade por corresponderem à forma como a classe
dominante apreende e reproduz as relações sociais hegemônicas. Podemos ver, por
exemplo, como a idéia de indivíduo apresenta-se como o valor máximo propagado em
nossa sociedade. Essa propagação tem suas raízes na forma de organização da
110
produção social da existência sob a forma capitalista, qual seja a produção controlada
por capitalistas isolados, individuais que produzem de forma autônoma sem precisar
responder às necessidades sociais e guiando-se exclusivamente pelo mercado.
Capitalistas que contratam indivíduos livres, proprietários de sua força de trabalho, e
“iguais” perante a lei, que se deparam individualmente com o proprietário dos meios
de produção no mercado. É por isso que o indivíduo se constituirá como núcleo social
sob o capitalismo, indivíduo cujo agrupamento não forma, segundo Sartre (2002), uma
comunidade, mas uma
serialidade, ou seja, uma reunião de vários indivíduos em um
mesmo espaço social, quando condicionado por relações capitalistas, não é capaz de
conformar um grupo com laços comunitários, solidários. São essas condições sociais
que propiciarão à moderna ciência isolar e fragmentar o
corpo individual com base em
sua constituição anatomofisiológica.
Portanto, a organização do processo de trabalho assistencial em saúde sob o
método da clínica é expressão no plano tecnológico de um rearranjo do objeto das
práticas em saúde no plano infraestrutural. A partir do momento em que o objeto das
práticas em saúde aparenta deixar de ser um certo “modo de
estar e ser” no mundo, ou
seja, deixa de ser a “vida” para se restringir à manutenção do corpo orgânico, o
processo de trabalho também precisa mudar. Sendo assim, para um objeto restrito ao
corpo orgânico é necessário um método capaz de apreender o objeto nessa dimensão
restrita, a anatomofisiológica. Segundo MENDES-GONÇALVES (1994: 66)
(...) uma das características mais importantes da concepção do objeto elaborada pela profissão
médica a clínica é a individualização do normal e do patológico ao nível do corpo do
homem indivíduo-biológico, que leva à ruptura das conexões sociais desse homem, e mesmo à
ruptura das conexões desse homem consigo mesmo. Em outros termos, foi elaborada uma
concepção da saúde que está inteiramente contida nos limites físicos, químicos e biológicos do
corpo humano, e essa concepção mostrou-se capaz de instrumentalizar tecnicamente (e
portanto ‘internamente’) o processo de trabalho, ao mesmo tempo em que o instrumentalizava
socialmente (e portanto ‘externamente’).
Esse método ou “modelo tecnológico” de operar o trabalho em saúde é a
moderna clínica. Os dois principais agentes da Idade Média o físico e o cirurgião
darão espaço a um novo agente: o médico. Agente este, que passará a centralizar as
práticas em saúde, agora sob a tutela do Estado, legitimado pelo caráter de
111
cientificidade e neutralidade que estas práticas passarão a adquirir sob o método
científico/positivista da clínica.
O nascimento da medicina moderna, como corpo institucional, pode ser
identificado com o momento de consolidação do Estado capitalista e seus aparelhos
ideológicos (ALTHUSSER, 1985). Através da incumbência de um corpo de
intelectuais detentores do saber acerca do corpo, que estão acima de questionamentos,
estabelece-se um padrão de normalidade determinado pelas necessidades do novo
modo de produção. E com a unificação das práticas médicas anteriores em um corpo
técnico-científico, estruturado sob controle do Estado esses padrões de normalidade
adquirem legitimação técnica suficiente para encobrir suas determinações de classe.
São por esses aspectos acima comentados, entre outros, que SCHRAIBER
(1989: 86) irá dizer que “(...) a medicina participará, e contribuirá, tão de perto na
constituição da ordem social capitalista, preservando-se seus agentes na situação de
autoridade e poder, na qualidade de intelectuais dominantes e orgânicos da ordem
social, a qual já detinha pelo menos parte dos agentes vinculados com a prática sobre o
corpo e a doença, na ordem social anterior.”. Porém, a autoridade e o poder exercido
pela medicina a partir de agora, ao contrário da ordem anterior, não terá como alicerce
a religião. Esta, como principal objeto de legitimação da ordem anterior, será o
principal adversário da nova classe dominante. Em oposição às “trevas”, as “luzes”;
contra a religião, a
razão. A ciência, sob direção da racionalidade positivista, passará a
ser o referencial que poderá propiciar legitimidade a relações, sujeitos e práticas (LUZ,
2004a). Os médicos não terão dificuldade em se adaptarem a essa nova condição. Pelo
contrário, seu poder e autoridade serão reforçados e ampliados. Se anteriormente a
medicina, na figura dos físicos, exercia a prática diagnóstica e terapêutica guiada pela
metafísica sendo, por isso, mediadora entre a divindade e os sujeitos agora ela é
aplicadora da ciência. Ora, nesse momento a ciência médica e o médico se confundem,
são indissociáveis. O acúmulo tecnológico é restrito e está integralmente sob domínio
do trabalhador. Vimos que é característica do trabalho artesanal o completo domínio
sobre os conhecimentos advindos do processo de trabalho. Nesse modo de operar, o
aspecto subjetivo o trabalho vivo é dominante sobre o trabalho objetivado o
112
trabalho morto. Veremos que os principais avanços tecnológicos do campo da saúde
instrumentos, equipamentos, medicamentos somente ocorrerá a partir da revolução
industrial. Portanto, no capitalismo a unificação das práticas de saúde em um sujeito
principal, o médico, retira-o do papel de mediador (entre Deus e Homem) para colocá-
lo, aparentemente, no papel determinante. Não mais imposição por parte da igreja
de normas e valores através da medicina; agora é a ciência, representada no próprio
médico, que impõe normas. Ora, concordamos com CANGUILHEM (1995: 185)
sobre o fato de que “não se ditam normas à vida, cientificamente”; a ciência exerce um
papel de legitimação das normas impostas pela vida social, contribuindo para a
adaptação dos sujeitos às mesmas. Aqui reside o aspecto propiciador do principal
papel superestrutural ideológico cumprido pelo trabalho médico: o de
normalização social. Sob o manto da neutralidade científica o médico passa a se
constituir em um agente central no papel de reprodução das relações sociais
dominantes. (COSTA, 1979).
Autores como Donnangelo (1975), Mendes-Gonçalves (1979) e Schraiber
(1989), ressaltam que essa unificação técnica dos principais sujeitos realizadores das
práticas em saúde durante o feudalismo sob o comando de um sujeito principal, agora
sob novas relações sociais, acontecerá, aparentemente de forma paradoxal em relação
a dois aspectos: o primeiro é que esse processo, de unificação, se consolidará somente
a partir do final do século XVIII e início do XIX; portanto ao final do regime de
acumulação pautado na manufatura e após as revoluções burguesas. Esse aspecto
possui relação com a discussão que fizemos anteriormente acerca da demanda posta
para o trabalho em saúde pelas novas relações sociais no período em que a
reestruturação urbana e a normalização social ganham grande dimensão. O segundo
aspecto interessante a ser ressaltado é que essa conformação do trabalho em saúde sob
o capitalismo dar-se-á inicialmente sob uma forma de trabalho pré-capitalista; ou seja,
é sob a forma artesanal de organização do trabalho que se constituirá o principal
elemento do moderno trabalho em saúde: a medicina.
Este traço, aparentemente curioso mas mais exatamente tradução da peculiaridade do trabalho
médico, chama a atenção pelo contraste com os demais trabalhos na sociedade, pois a
113
medicina manter-se-á ‘artesanal’ por quase um século e meio, tempo em que a dinâmica das
forças produtivas dos outros trabalhos sociais terão de muito ultrapassado até mesmo as
formas de trabalho cooperativo.
Nesse sentido um contraste que se instala entre as estruturações do todo e de uma de suas
partes: a cooperação é necessidade histórica peculiar ao capitalismo, ao passo que, para a
medicina do capitalismo, a autonomia no trabalho individualizado é que parece ter sido sua
necessidade histórica particular. (SCHRAIBER, 1993: 179).
Esta forma de organização artesanal que predominou no trabalho em saúde,
mais especificamente no trabalho médico, do século XIX até meados do século XX
apresenta, respeitando-se algumas peculiaridades, as mesmas características do
trabalho artesanal na produção material, quais sejam: a propriedade pelo trabalhador
dos meios de trabalho e, consequentemente, dos produtos de seu trabalho; o controle
pelo trabalhador da totalidade do processo de trabalho; e a existência do trabalhador no
mercado como produtor isolado, sendo produtor e vendedor de seu produto.
Se olharmos de maneira isolada para o trabalho médico pode parecer paradoxal
que esta unificação sob o capitalismo tenha ocorrido sob a forma artesanal. Todavia, se
olharmos com atenção para o movimento realizado pelo trabalho manual no processo
de transição para o capitalismo, veremos que a primeira forma de produção do capital
se sob a forma de trabalho herdada do feudalismo; qual seja, a forma artesanal. A
cooperação simples, como vimos, representa esse processo. O primeiro momento
desse processo é a unificação/centralização de diferentes artesãos sob um mesmo
capital. Cada um deles permanece produzindo seu produto por completo que agora
contratados por um capitalista que é o proprietário dos meios de trabalho:
instrumentos, oficina. Esse momento também é importante, segundo MARX (2001),
porque propicia o estabelecimento de uma homogeneização dos diferentes processos
de trabalho outrora realizados de maneira dispersa, tornando possível o uso comum,
em escala, dos meios de produção. Essa homogeneização é o que vai possibilitar um
completo conhecimento acerca do processo de trabalho seus movimentos, atos,
tempos – criando, assim, o alicerce para que o mesmo se torne fragmentável. A divisão
manufatureira do trabalho se instalará sobre essa base artesanal unificada. Essa
unificação será responsável também pela erradicação das formas artesanais isoladas e
114
pautadas no ofício, propiciando uma uniformização fundamental para o aumento da
produtividade do trabalho social.
No caso do trabalho assistencial em saúde dois elementos foram centrais para
essa homogeneização. O primeiro é essa unificação de seus dois principais agentes
físicos e cirurgiões – em um sujeito único e centralizador de todo o processo produtivo
– o médico. O segundo elemento, já citado, que contribui para essa homogeneização é
a reorganização do modo de operar sobre o corpo guiado pela tecnologia das doenças
consubstancializada na moderna
clínica. (FOUCAULT, 1994). A clínica passará a ser
o método de trabalho homogeneizador do objeto de todas as práticas em saúde,
estejam elas ou não sob controle direto do médico. O antigo campo de trabalho dos
físicos se consubstanciará na clinica médica; os cirurgiões exercerão a clínica
cirúrgica, os dentistas, a clínica odontológica. Inclusive as novas profissões que irão se
estruturar como profissões sob o capitalismo monopolista, como é o caso da
nutrição, psicologia, fisioterapia entre outros, se constituirão sob o método de trabalho
da clínica.
Como conseqüência dessa forma de apresentação artesanal do processo de
trabalho em saúde no que se refere ao seu sujeito principal o médico se constituirá
para este a representação do trabalho como prática liberal. Essa representação, por sua
vez, se refletirá na adoção de valores pautados na
autonomia individual
(DONNANGELO, 1975; SCHRAIBER, 1993). Esses valores que, nesse momento,
refletem relações materiais existentes, quando essas deixarem de existir passarão a
cumprir o papel apenas de justificativa ideológica para a manutenção de uma
“independência” não mais possível sob a sociabilidade do capital. Uma expressão
superestrutural (o ideal de autonomia) quando correspondente a uma dada
materialidade (o processo de trabalho artesanal) acaba por reforçar e inclusive
aumentar a produtividade dessa forma de trabalho. Quando, no entanto, a base material
transforma-se e sua expressão ideal não acompanha esse movimento com a mesma
velocidade, surgem contradições que terão impacto sobre o processo produtivo.
Veremos em um momento mais à frente como essas contradições manifestam-se.
115
Veremos adiante que essa configuração interna do processo de trabalho em
saúde não se apresentará de maneira estática, definitiva. O papel cumprido pelo
trabalho em saúde sob o capitalismo responde a uma necessidade histórica desse modo
de produção. Como é característica dessa sociedade o constante dinamismo expresso
na revolução e superação de formas de produzir através principalmente do
desenvolvimento das forças produtivas - sejam elas os instrumentos, o trabalhador ou
os meios de produzir as formas de apresentação dos diferentes processos de trabalho
não poderão se apresentar alheios a esse movimento. Os modos de produzir em saúde
também se encontram inseridos nessa dinâmica e, com isso, também passam por
transformações constantes. A própria centralização do trabalho em saúde
hegemonicamente em um sujeito único - o médico passará por tensões decorrentes
do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. A unificação das diversas
práticas e saberes foi fundamental para lhe dar um caráter de corpo técnico-científico-
institucional legitimado pela neutralidade que somente a racionalidade cientifica
permitiria. Além disso, essa centralização visava dar mais eficiência a essas práticas no
que concerne a sua função de manter os corpos íntegros. Naquele momento histórico a
resposta a essas necessidades postas deu-se através do movimento de unificação
técnica das práticas, que incluiu a unificação dos principais sujeitos realizadores dessas
práticas. Esse novo sujeito único torna-se, nesse momento, o suporte em torno do qual
se configura o corpo técnico responsável pelo ato de curar.
Bem, uma vez consolidado esse corpo único e lhe garantida a legitimidade
científica para que correspondesse às necessidades que as relações capitalistas
colocavam naquele período histórico, poderia o trabalho em saúde ser readaptado a
novas configurações que o capitalismo, em outro estágio, pudesse impor? Veremos
como essa fase que analisamos, do processo de trabalho em saúde em sua fase
artesanal da produção, sob controle do médico, passará a ser, concomitante e
progressivamente, permeado pelos elementos da cooperação e da divisão técnica do
trabalho em graus cada vez mais aprofundados.
116
5.3 OS IMPACTOS DA CONSTITUIÇÃO DO TRABALHO COLETIVO SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE
Após essa unificação de que tratamos, assim como no caso da produção
material, começa a se estabelecer progressivamente o trabalho coletivo em saúde.
Porém, esse processo, que ocorreu na manufatura nos séculos XVI a XVIII, no caso do
trabalho em saúde somente se dará a partir do final do século XIX (DONNANGELO,
1975; SCHRAIBER, 1993; PIRES, 1998). A constituição do trabalho coletivo em
saúde se através de três movimentos simultâneos. O primeiro movimento refere-se
ao processo de estabelecimento da cooperação e posterior parcelarização do trabalho
médico, ou seja, a divisão técnica do trabalho internamente ao campo de atuação da
medicina. Essa divisão técnica pode se dar com a divisão de funções entre diferentes
médicos (especialidades médicas) ou com a transferência de práticas outrora sob
controle médico para outros trabalhadores (nutricionistas, fisioterapeutas, etc). O
segundo movimento é o de profissionalização e anexação dos agentes responsáveis por
outras práticas de saúde que existiam de maneira relativamente independente - como é
o caso dos enfermeiros, farmacêuticos e cirurgiões-dentistas ao trabalho assistencial
sob o controle do médico. Um terceiro movimento, mais recente, deve-se à
constituição de novas práticas no campo do trabalho em saúde, incorporando, assim,
novos trabalhadores (assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos etc).
Vamos analisar mais pormenorizadamente cada um desses movimentos.
Com relação à divisão técnica do trabalho internamente ao campo das práticas
médicas, veremos que diversos autores demonstram como, com o advento da chamada
medicina tecnológica, o processo de produção da saúde passa a ser submetido a uma
fragmentação muito semelhante à da divisão manufatureira do trabalho
(DONNANGELO, 1975; SCHRAIBER, 1993). Um trabalho que outrora era realizado
por aquilo que poderíamos chamar
médico-artesão
14
passará a ser fragmentado e
14
Usamos esse termo em alusão aos autores acima citados além de alguns autores do campo da
educação que qualificam como professor-artesão o profissional responsável pelo ensino em período
pré-capitalismo monopolista, com características semelhantes ao trabalho médico nesse período. Ver,
117
realizado por diferentes trabalhadores, cada qual dominando um aspecto do processo
de produção da saúde. Esse processo, assim como na manufatura, foi precedido pelo
estabelecimento da cooperação no trabalho médico. Ou seja, os diversos médicos-
artesãos passaram a ser reunidos em um local comum de trabalho, propiciando o
alicerce para o estabelecimento progressivo da divisão técnica do trabalho. Esse
processo aconteceu paralelamente ao rearranjo das práticas em saúde e teve como
lócus o hospital.
Uma primeira evidência das novas qualificações é dada pelo fato referido de que, no hospital,
os distintos agentes do trabalho médico realizam conjuntamente seus trabalhos e estão
colocados de mesmo modo diante dessa prática coletiva, e assim colaboram no tratamento dos
mesmos casos. Nessa medida, os agentes do trabalho médico não estão dispostos segundo as
mesmas posições hierárquicas que diferenciavam as categorias das quais são provenientes,
reduzindo-se as diferenças entre seus trabalhos a uma questão de indicação terapêutica. A
forma de organização do trabalho no hospital se caracteriza como uma
cooperação dentro de
uma divisão técnica do trabalho. Além do que, estes distintos profissionais estão colocados de
modo igual diante de uma mesma forma de proceder, visto que promovem a reorganização da
prática hospitalar com base me procedimentos uniformes dessa prática: a intervenção
terapêutica individual com base na observação coletiva dos casos, no registro sistemático de
dados, no estudo individual e comparativo dos casos, no estudo do meio e na intervenção nele
(SCHRAIBER, 1989: 90).
Portanto, essa reunião em um mesmo espaço, como determinada e ao mesmo
tempo determinante do rearranjo das práticas em saúde, também serviu à função de
racionalização do uso dos meios de trabalho, constituindo, assim, a base técnica para o
estabelecimento do caráter coletivo do trabalho em saúde.
Nesse processo de estabelecimento da cooperação no trabalho médico
internamente ao hospital, ocorre o movimento que citamos de recrutamento para esse
espaço de outros trabalhadores do campo da saúde que exerciam suas práticas de
maneira dispersa. É o caso, por exemplo, dos enfermeiros e farmacêuticos. Com
relação aos primeiros, PIRES (1998) demonstra que a enfermagem, que ficava a cargo
de freiras-auxiliares, embora estivesse presente no hospital em sua forma feudal,
somente a partir de 1860 - período em que o hospital está se estabelecendo como lócus
da cooperação médica - se constitui oficialmente como profissão. Também os
por exemplo, Alves, G. L. A Produção da Escola Pública Contemporânea e Sá, N. P. O
aprofundamento das relações capitalistas no interior da escola
(ver referências bibliográficas).
118
boticários, devido à necessidade de manipulação/gerenciamento de medicamentos no
espaço hospitalar passam a compor o trabalho coletivo. Estes trabalhadores, aliás, com
o desenvolvimento dos meios diagnósticos (exames laboratoriais) terão mais tarde seu
campo de atuação expandido.
Entendemos que a unificação dos saberes e práticas em saúde em corpo técnico
único concentrado na figura do médico-artesão e seus ajudantes propiciou as bases
para que se estabelecesse um avanço tecnológico fantástico das ciências biológicas
direcionado pela racionalidade positivista. É a partir do estabelecimento do hospital
como espaço de cooperação dos diversos agentes, que se empreendem práticas e
experiências que serão responsáveis pela criação de diversos recursos tecnológicos.
Recursos tecnológicos aqui entendidos tanto como instrumentos materiais é o caso
das criações do raio X, do laringoscópio (1895), e do oftalmoscópio (1851) quanto
entendidos como tecnologia na forma de conhecimentos é o caso do
desenvolvimento de disciplinas como a patologia e fisiologia e de teorias como a dos
germes ( por Pasteur em 1878) e das infecções ( por koch em 1882) (CANGUILHEM,
1995; PIRES, 1998).
Esse desenvolvimento, por sua vez, vai dando ao trabalho em saúde, sob o
capitalismo, um caráter tecnológico infinitamente mais complexo do que aquele
apresentado durante o feudalismo no que se refere à apreensão dos aspectos
“orgânicos” do corpo. A diversidade de saberes, práticas e instrumentos de trabalho
passa a ser progressivamente maior e, consequentemente, o seu domínio completo por
um único sujeito passa a se tornar cada vez mais difícil. Dessa forma a unificação
(cooperação) estabelece condições para a racionalização e o desenvolvimento
progressivamente maior dos meios de trabalho que, por sua vez, lança as bases da
necessidade da divisão do processo de trabalho. A divisão progressiva do processo de
trabalho em etapas parcelares, por sua vez, será responsável por propiciar um aumento
da produtividade que também terá repercussões sobre os meios de trabalho,
aumentando a incorporação de tecnologia ao processo de trabalho em saúde. A divisão
do trabalho e o desenvolvimento tecnológico estabelecem entre si uma relação
dialética de determinação recíproca. Uma conseqüência direta desse processo, por
119
exemplo, é que passam a surgir diversas profissões diferentes e complementares
responsáveis por etapas diferentes do processo de produção das práticas de saúde
outrora concentrados em um único trabalhador médico. A maior expressão desse
movimento é o surgimento das várias especialidades médicas, mas não somente. Outra
expressão desse movimento de fragmentação do trabalho médico é a delegação de
práticas outrora exclusivas do profissional médico a outras categorias de trabalhadores.
É o caso do surgimento de profissões como a de Nutricionista e Fisioterapeuta, por
exemplo. Até o surgimento dessas profissões, a prática clínica referente às patologias e
desordens nutricionais estava sob controle do médico, seja ele clínico, nutrólogo ou
endocrinologista (VASCONCELOS, 2002). O mesmo pode-se dizer das práticas de
reabilitação fisioterápicas que estavam a cargo dos médicos fisiatras, ortopedistas,
cirurgiões e outros. Mesmo práticas menos manuais, como aquelas de caráter mais
subjetivo, menos orgânico, eram exercidas pelos médicos. Era comum os antigos
médicos com fortes vínculos com seus “pacientes” exercerem a função de terapeutas
também em relação a aspectos menos orgânicos como crises advindas de
relacionamentos interpessoais; isso porque a herança da cultura dos
físicos do
feudalismo ainda estava muito presente, o que fazia com que os médicos tivessem
acesso à questões da vida social e familiar dos indivíduos podendo, devido ao seu
respaldo científico, exercer práticas de normalização por meio do aconselhamento,
acolhimento. Também essas práticas, com a progressiva divisão técnica do trabalho,
passam a ser retiradas do campo de práticas médicas e colocadas sob o controle de
outros profissionais como psicólogos e assistentes sociais. Esse processo, não abole a
centralidade ocupada pelo modelo biomédico consubstancializado no profissional
médico, que, segundo CARAPINHEIRO (1993), mantém sua característica de
trabalhador “nuclear” em relação aos demais trabalhadores “periféricos”. Mas como se
deu esse processo? Seria uma peculiaridade do trabalho médico essa parcelarização e a
progressiva constituição de um trabalhador coletivo?
Para abordarmos essas questões, será necessário que recorramos ao primeiro
capítulo dessa dissertação, onde discutimos como o trabalho social, de uma maneira
geral, segue uma tendência, sob o modo de produção capitalista, de divisão técnica
120
progressiva. Como pudemos perceber, o que faz com que o trabalho do artesão seja
progressivamente parcelado é a necessidade do aumento de produtividade do trabalho.
Constata-se, pela prática, que, ao dividir o processo de trabalho e especializar cada
trabalhador em uma ou algumas funções parcelares, ocorre um aumento da
produtividade quando comparado a um processo artesanal onde cada trabalhador
realiza o processo produtivo por completo. No caso do trabalho em saúde não é
diferente: a partir do momento em que os médicos são inseridos em um processo de
cooperação dentro do hospital (um processo ainda muito semelhante a uma cooperação
simples) começam a se cristalizar divisões entre eles que outrora podiam nem existir
ou se existiam eram esporádicas. Um médico podia gostar ou exercer mais
eficientemente determinadas práticas, como as obstétricas, por exemplo; porém, como
produtor isolado, naquele momento, dificilmente conseguiria um número suficiente de
clientes demandadoras especificamente dessas práticas para lhe garantir a
sobrevivência. Todavia, a partir do momento em que esses trabalhadores se
estabelecem em um espaço institucional, onde os meios de trabalho são
compartilhados, capaz de atrair grande número de “pacientes”, os médicos podem
passar a se dedicar a diferentes funções. Com o tempo essas divisões demonstram suas
vantagens práticas e tendem a se cristalizar e, mais tarde, quando o processo prático de
trabalho já se encontra submetido a essa divisão técnica é que se criam mecanismos de
institucionalização das mesmas; como é o caso da institucionalização de novas
profissões ou especialidades, com mecanismos de certificação ou fiscalização, entre
outros.
Um médico ao se especializar em determinado campo parcelar do saber a
ortopedia, por exemplo torna-se muito mais eficiente nessas práticas do que um
médico que exerce as práticas terapêuticas ortopédicas como uma de suas várias
funções. A especialização, como diria MARX (2001) produz o “virtuosismo” do
trabalhador mutilado. Esse autor descreveu esse processo como uma tendência
inerente da qualificação do trabalho sob o modo de produção capitalista, qual seja, a de
simplificação progressiva do trabalho. O ortopedista somente realiza com maior
destreza, velocidade e eficiência seu trabalho porque este se encontra mais
121
simplificado em relação ao trabalho do médico-artesão. O campo de saberes e práticas
necessárias ao exercício da etapa do trabalho que cabe a um especialista passa a ser
progressivamente menor em relação àqueles necessários ao médico de caráter
artesanal. Portanto, o processo de
especialização é simultaneamente processo de
simplificação do trabalho.
É necessário, contudo, apreender o processo de parcelarização como um
movimento profundamente contraditório. Por um lado, é processo de simplificação do
trabalho, pois, ao separar um processo complexo em diferentes partes, restringindo
cada trabalhador à execução de uma das partes, este passa a realizar um trabalho mais
simples, que exige menos conteúdo técnico. Por outro lado, porém, ao realizar uma
etapa parcelar do trabalho, esse trabalhador tende a desenvolver uma extrema
habilidade, um virtuosismo nessas práticas antes impossível de ser alcançado sob o
trabalho complexo. É um trabalhador mais limitado, porém mais habilidoso. É essa
simplificação do campo de atuação, por sua vez, que vai tornar possível ao trabalhador
apropriar-se com muito mais profundidade de seu novo objeto a parcela
desenvolvendo, inclusive, novos conhecimentos, técnicas e instrumentos para melhor
exercer suas práticas. Isso fará com que esse novo campo parcelar passe a constituir-se
novamente de maneira mais complexa e passe a exigir nova parcelarização agora
internamente às práticas parcelares. Uma vez constituída a ortopedia, por exemplo,
como campo parcelar, essa passa a desenvolver tanto sua capacidade de intervenção
sobre seu objeto as doenças com implicações sobre o sistema osteomuscular que
esse adquire uma complexidade que passa a exigir nova parcelarização interna, nova
simplificação; agora é necessária a constituição da ortopedia de coluna, de joelho etc.
Mais tarde desenvolver-se-á a ortopedia especializada em algumas patologias
específicas da coluna. Por isso, dissemos que a divisão do trabalho e o
desenvolvimento tecnológico mantêm entre si uma relação dialética de determinação
recíproca. A parcelarização implica em desenvolvimento tecnológico (saberes,
técnicas) que, por sua vez exige nova parcelarização que, por sua vez, implicará em
novo grau de desenvolvimento tecnológico que... Por isso, SCHRAIBER (1993) dirá
que a parcelarização constitui para os trabalhadores parcelares novos objetos de
122
trabalho. O objeto do Pneumologista deixa de ser o corpo e passa a ser o sistema
respiratório. Isso contribui, inclusive, para não criar uma relação hierárquica muito
rígida entre os médicos, ao modo dos trabalhadores da produção fabril, que se
constituem em trabalhadores de objetos diferentes.
Contraditoriamente, também é essa progressiva simplificação do trabalho
médico, portanto, que torna possível a delegação de práticas outrora exclusivas dos
médicos para profissionais com conteúdo menos amplo de qualificação técnica. É o
caso da delegação das práticas referentes à clínica nutricional ao campo sob controle
dos nutricionistas; ou das práticas de reabilitação física aos fisioterapeutas, por
exemplo. As práticas pertencentes a esses campos de trabalho passam a constituir-se
como objeto de trabalho desses outros trabalhadores e os médicos, como vão perdendo
gradativamente o conhecimento acerca das mesmas, também vão perdendo o controle
sobre esse trabalho. Esse movimento contribuirá, a nosso ver, para constituir vários
dos outros trabalhadores da saúde de “paramédicos” em trabalhadores “nucleares”, ou
seja, trabalhadores que exercem certo controle sobre seu campo específico de práticas,
embora ainda subordinados ao trabalho médico. Como o movimento de
simplificação/especialização é progressivo, também essas profissões irão passar por
processos de divisão técnica, através da delegação pelos profissionais de nível superior
de práticas mais simples para ajudantes mais “técnicos”. Podemos comprovar esse
movimento na constituição de cada vez mais cursos técnicos nas diversas sub-áreas do
trabalho em saúde
15
. Além disso, as sub-especialidades também se constituirão nessas
áreas, com fisioterapeutas especializados em reabilitação pulmonar, ou ortopédica e
etc.
Os impactos desse processo sobre a qualificação do trabalhador da saúde fazer-
se-ão sentir em, pelo menos, dois aspectos principais. Um dos mais notórios será a
diferenciação da qualificação técnica necessária aos trabalhadores a partir do papel que
ocupem no processo produtivo. Os trabalhadores não médicos, por exemplo, para
executarem as práticas referentes ao seu campo parcelar de atuação, precisarão passar
15
Pode-se citar como exemplo as profissões de técnico em higiene dental (THD) que exerce práticas
outrora sob controle exclusivo do odontólogo; técnicos de enfermagem; técnicos em bioquímica;
técnicos em radiologia, entre outros.
123
por um processo de formação técnica menos extenso e complexo do que os médicos
que outrora concentravam essas práticas como algumas dentre as várias de seu campo
de atuação. Outro aspecto conseqüente à parcelarização/especialização sobre a
qualificação do trabalho somente pode ser apreendida a partir da compreensão de toda
a contraditoriedade inerente a esse processo universal quando analisado no caso
particular do trabalho em saúde. Como vimos no primeiro capítulo desse trabalho, o
pressuposto para que a especialização progressiva exija menor conteúdo técnico na
formação do trabalhador é que suas práticas sejam cada vez mais simplificadas e que o
saber acerca do trabalho consubstancialize-se no instrumental de trabalho. Assim, o
trabalhador não necessita ser qualificado a ponto de deter esse
saber, visto que suas
tarefas passam a ser mais simples e a máquina, que é quem “dirige” a produção, o
detém. No caso do trabalho em saúde, onde o trabalho vivo é predominante e a
maquinaria é exceção, a qualificação do trabalhador especializado passa a exigir ainda
grande conteúdo técnico. Parece ser uma particularidade dessa apresentação do
trabalho social, o trabalho em saúde, certa “simplificação complexificadora” do
trabalho. Ao se fragmentar determinados processos, seus campos parcelares portanto
simplificados - parecem adquirir uma complexidade antes não diferençável. Veja-se,
por exemplo, o caso da oftalmologia que enquanto era mais um dos vários campos sob
controle do médico-artesão possuía uma complexidade ínfima se comparada aos
tempos atuais onde se apresenta como um campo parcelar sob controle de um
trabalhador especializado.
Veremos à frente as características tecnológicas próprias do trabalho em saúde
que o fazem apresentar-se dessa maneira. Antes, porém, é importante relembrar o
quanto fatores superestruturais influenciam e podem acabar por constituir-se de
determinados em determinantes em relação ao “mundo do trabalho”. Expliquemos
melhor. Como sabemos, sob as relações sociais capitalistas, uma conseqüência direta
da diminuição do tempo de qualificação necessária à força de trabalho é a diminuição
de seu valor. Valor, que sob essas mesmas relações, materializa-se para o trabalhador
124
no seu salário
16
. Portanto, diminuir o tempo de qualificação necessário à formação de
determinado trabalhador significa, em última instância, diminuir seu salário. Isso
explica, em parte, as resistências de caráter corporativista com o sentido de restringir a
delegação de práticas médicas a outros grupos de trabalhadores, como forma de
manter o controle do médico sobre a totalidade do processo assistencial em saúde
17
.
Uma tentativa conservadora e de impedir uma tendência inexorável do trabalho
social sob o capitalismo: a parcelarização do processo de trabalho. Por mais que essas
tentativas sejam mais cedo ou mais tarde superadas materialmente por esse movimento
progressivo do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, elas acabam se
constituindo, enquanto subsistem como contensoras desse desenvolvimento, por vezes
predominando temporariamente sobre o mesmo. Caso o leitor visite países europeus
18
,
por exemplo, poderá evidenciar que em alguns deles até os dias atuais o odontólogo
existe como médico especialista, ou seja, é necessário que se qualifique como médico
e depois se aprofunde no campo parcelar referente às patologias da boca
(CARVALHO, 2003). Passa, portanto, por um processo de qualificação bastante
extenso para que possa exercer as práticas de odontólogo. Para exercer essas mesmas
práticas no Brasil, o odontólogo precisa passar por uma qualificação que representa
menos da metade do tempo de formação acadêmica desses outros países. Ou seja, essa
é uma típica demonstração do quanto aspectos superestruturais manutenção de
interesses corporativos, por exemplo – podem influenciar os aspectos referentes à
qualificação do trabalho. Poderíamos afirmar, sem dúvidas, que um ortopedista
especializado em joelho, ou seja, um trabalhador cujas práticas restringem-se a um
campo parcelar cujo objeto refere-se à restauração da integridade anatomofisiológica
de
um membro, precise possuir qualificação técnica que o propicie intervir sobre todo
16
Não pretendemos aqui entrar pormenorizadamente na questão do salário mas é importante lembrar
que outros fatores influenciam sua dimensão, ajudando a transmutar o valor da força de trabalho em
seu preço; como um desses fatores temos, por exemplo, a lei da oferta e da procura.
17
Vide a polêmica acerca do Ato Médico no Brasil, projeto elaborado pelo Conselho Federal de
Medicina que visa restringir formalmente os atos de diagnóstico e terapêutica como elementos
exclusivos ao campo do trabalho médico.
18
Carvalho (2003), nessa obra, faz um inventário do percurso da Odontologia no seu processo de
constituição como profissão independente da medicina, e mostra como ainda hoje subsistem em
diferentes países relações com graus diversos de autonomia entre as duas profissões.
125
o corpo? Não estamos evidenciando esse aspecto sob a forma de tese, pois não temos
elementos suficientes para defendê-la. Estamos apenas levantando questões que
permeiam nosso objeto, a qualificação do trabalho em saúde, e que demonstram sua
complexidade, complexidade nem sempre aparente. Pensamos, portanto, que essa idéia
da “simplificação complexificadora” não deve ser tomada isolada de seus
determinantes sócio-históricos.
Outra tendência inerente à conformação do trabalho social sob o capitalismo e
que também encontra sua expressão particular no trabalho em saúde é a progressiva
separação entre trabalho manual e intelectual. Cada vez mais se constituem campos
parcelares do trabalho em saúde compostos hegemonicamente por práticas manuais ou
intelectuais, sendo que esse processo também se apresenta como conseqüente à
progressiva divisão do trabalho. Dentro de cada um dos campos parcelares parece
haver uma tendência a constituírem-se trabalhadores “nucleares” que, embora também
realizem práticas manuais, acabam por hegemonizar práticas intelectuais relacionadas
ao conhecimento e gestão do processo produtivo, delegando práticas manuais mais
simplificadas para os trabalhadores ditos “periféricos”. Esse processo, que
CARAPINHEIRO (1993) apreendeu com bastante propriedade na relação entre
médicos e demais trabalhadores da saúde médicos como nucleares e demais como
periféricos –, pensamos que também ocorre, em menor proporção, internamente a cada
campo parcelar, inclusive não médico. Citamos, anteriormente, os exemplos da equipe
de enfermagem na qual o enfermeiro, por deter o conhecimento mais integral do
processo de trabalho, assume hegemonicamente a função de gestão além de práticas
manuais mais complexas, delegando para técnicos e auxiliares as práticas manuais
mais simplificadas. Semelhante situação ocorre nas relações entre
Farmacêutico/bioquímico e técnicos de laboratório, odontólogo e técnicos/auxiliares
de odontologia, entre outros.
No caso do trabalho médico, a divisão entre trabalho manual e intelectual
também se apresenta com algumas especificidades. Em uma primeira aproximação,
parece haver uma tendência a cristalizarem-se divisões entre aqueles que se
especializam em práticas “mais manuais” os inúmeros tipos de cirurgiões, os
126
manuseadores de determinados equipamentos diagnósticos ou terapêuticos, por
exemplo – e aqueles que se especializam em práticas “menos manuais”, os clínicos em
suas inúmeras especialidades cardiologistas, neurologistas, endocrinologistas.
Todavia, dentro do trabalho em saúde, o campo parcelar pertencente à medicina
apresenta-se, em sua maioria, constituído por trabalho mais complexo, que acaba por
exigir a indissociabilidade entre teoria e prática de modo mais presente. Isso não
impede que alguns médicos constituam-se como trabalhadores “mais manuais” e
outros como “mais intelectuais”, porém essa divisão tende a se dar de maneira menos
nítida.
ainda os casos de “novas” profissões anexadas ao processo assistencial em
saúde que o adentram com um campo de práticas definidas e que se apresentam
hegemonicamente como intelectuais, como a psicologia e a assistência social, ou
manuais, como as várias profissões técnicas que surgem no trabalho em saúde
(PEREIRA, 2003). Devemos ressaltar aqui, mais uma vez, nossa concepção exposta
no primeiro capítulo desse trabalho, segundo a qual os trabalhos constituem-se
“hegemonicamente” como manuais ou intelectuais, pois não se pode conceber
qualquer prática manual que não necessite de elaboração intelectual prévia ou
simultânea e vice-versa.
Pensamos ser fundamental compreender as apresentações pelas quais passou o
trabalho em saúde, a unificação inicial na figura médico-artesão e a fragmentação
posterior do processo produtivo, não como antagônicas, mas como momentos
diferentes do mesmo movimento de adaptação do trabalho em saúde às necessidades
do capitalismo. Podemos dizer que a produção da saúde sob as relações sociais
capitalistas torna-se um processo bastante complexo que passa a exigir diversos sub-
ramos de produção; sub-ramos estes que podem ser, e na maioria das vezes são,
executados por trabalhadores diferentes. Queremos dizer com isso que não existe, sob
o capitalismo, um trabalhador individual que produza a assistência à saúde, mas uma
série de trabalhadores diferentes, em etapas separadas e interdependentes do processo
de trabalho gerando, consequentemente, (semi)produtos diferentes. A unidade desses
diversos trabalhadores parcelares forma o trabalhador coletivo da saúde. Cada
127
trabalhador parcelar, como conseqüência desse processo, passa a qualificar-se cada vez
mais na apreensão de um fragmento do real que se encontra vinculado às suas práticas.
É esse processo de estabelecimento do trabalho coletivizado, por sua vez, que propicia
um avanço sem precedentes no desenvolvimento de novos saberes, técnicas e
instrumentos de trabalho, que auxiliam o trabalhador em seu papel de conhecimento e
intervenção sobre o corpo orgânico.
Resta ainda um aspecto a ser analisado acerca desse processo de coletivização
do trabalho em saúde, qual seja, aquele relativo à relação dos trabalhadores com os
meios de produção. Assim como na produção de “bens materiais”, a superação do
trabalho artesanal e a emergência do trabalho coletivo trazem consigo a tendência ao
despojamento dos trabalhadores da propriedade dos meios de trabalho. A progressiva
incorporação tecnológica e a necessidade de grande número de agentes para a
concretização do processo produtivo colocam para o trabalho em saúde a necessidade
de institucionalização em grandes e complexas unidades produtivas, principalmente na
forma do hospital. Com isso, os pequenos produtores tendem a desaparecer, ao mesmo
tempo em que se consolidam grandes unidades produtivas, sejam estatais ou privadas.
Por isso, constitui-se como característica marcante do trabalho em saúde sob o
capitalismo, a partir do século XX, a tendência progressiva à proletarização e a
consolidação do assalariamento como principal forma de relação de trabalho. No
entanto, DONNANGELO (1975) ressaltou como no caso do trabalho em saúde
acabam por subsistir mais longamente, em relação à produção industrial, os casos de
produtores independentes (mesmo parcelares), empregadores de si próprios e, por
vezes, de mais alguns trabalhadores.
Uma conseqüência importante do estabelecimento do trabalho coletivo e
parcelarizado em saúde que se consolida nesse atual momento do capitalismo
monopolista, em que se evidenciam diversas transformações sistematizadas sob a
definição de “reestruturação produtiva”, é a proliferação de inúmeras formas de
terceirização e precarização do trabalho (PIRES, 1998). A fragmentação do processo
assistencial em saúde em inúmeras parcelas a cargo de trabalhadores diferentes tem
possibilitado a separação das mesmas em espaços também diversos. O hospital, que a
128
partir do século XIX tornou-se o espaço que possibilitou a unificação e cooperação dos
diferentes trabalhadores, forjando as condições para a especialização e a fragmentação
dos processos produtivos, continua como unidade produtiva principal. Porém, nos dias
atuais, visualizam-se inúmeras formas de unidades produtivas em saúde, seguindo os
mais variados critérios para estabelecimento. Existem, por exemplo, clínicas restritas à
realização de um ou vários procedimentos diagnósticos, enquanto outras restringem-se
às outras etapas parcelares do processo produtivo, como as consultas clínicas ou
procedimentos terapêuticos etc. Os serviços, no caso dos sistemas públicos de saúde,
também passam a ser divididos e descentralizados com base em determinados critérios
de hierarquia do processo assistencial. No caso do
Sistema Único de Saúde - SUS, por
exemplo, classificam-se as unidades produtivas com base nas formas e graus de
tecnologia, e nas práticas assistenciais executadas em cada local, por exemplo. Além
disso, são cada vez mais freqüentes, no caso da iniciativa privada, mais de um capital
ocupar a mesma unidade produtiva, cada qual dominando parcelas diferentes do
processo produtivo. É o caso dos hospitais, cujo parte de exames complementares é
terceirizada para uma empresa, a parte de limpeza para outra e assim sucessivamente.
No caso do setor estatal brasileiro, essa tem sido uma via através da qual se procede à
privatização da assistência à saúde, ou seja, por meio da terceirização de etapas do
processo produtivo representantes do capital passam a adentrar esse setor.
Para os trabalhadores esse processo de fragmentação também tem
conseqüências importantes, sendo que a principal delas refere-se à pulverização das
possibilidades de organização unitária na luta por melhores condições salariais e de
trabalho. A fragmentação no plano tecnológico expressa-se também no plano da
representação sindical e política desse setor da classe trabalhadora. Com isso, a
tendência à precarização das relações trabalhistas é crescente.
129
5.4 O PAPEL DA TECNOLOGIA E SEUS IMPACTOS SOBRE A
QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE
Antigamente, se morria. (...)
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.
(LEMINSKI, 2002: 186 -187)
O conceito de tecnologia para os adeptos da teoria marxiana encontra-se no
campo da categoria de forças produtivas do trabalho. Dentro dessa categoria, Marx
inclui todos os constituintes do processo de trabalho: o objeto (sobre o qual se atua
com vistas a um fim), o agente e os meios de trabalho (tecnologias, instrumentos,
saberes). As mudanças referentes a qualquer desses elementos impacta o grau de
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, ou seja, altera o grau de
produtividade do trabalho. O que acontece na prática é que esses elementos
apresentam-se dialeticamente interligados, e as transformações em um deles acabam
por determinar transformações também nos outros. Por exemplo, à medida que mudam
os instrumentos de trabalho, mudam consequentemente os conteúdos da qualificação
do trabalhador para exercer o processo de trabalho; agora ele deve aprender a
manusear novos instrumentos. O contrário também ocorre, pois, à medida que o
trabalhador atua sobre seu objeto qualificando-se, progressivamente cria novas
técnicas e instrumentos de intervenção sobre o objeto de trabalho. Tendo analisado já o
objeto e o agente, centraremos agora nossa análise nos meios de trabalho.
Como vimos anteriormente, o homem é um ser essencialmente prático, e é
através de uma atividade essencialmente prática (o trabalho) que os homens entram em
contato e intervém sobre o mundo. É através dessa intervenção concreta sobre o
mundo que os homens o apreendem em seus diversos aspectos, e elaboram sobre essa
intervenção a fim de aprimorá-la. Logo, o conhecimento acerca do trabalho advém do
próprio trabalho. O
saber-fazer advém do fazer e porque é práxis, esse processo é
movimento contínuo (VÁZQUEZ, 1986). Ao elaborar sobre sua intervenção prática,
130
os homens repensam o seu agir no mundo e mudam suas práticas de modo a tornarem-
nas mais eficientes no atendimento de suas necessidades; essa mudança por sua vez
incorrerá em novas elaborações e assim sucessivamente. Esse processo de
transformação do
fazer em saber-fazer, que é o processo de construção do
conhecimento, ocorre através de movimentos de abstração que os homens realizam a
partir de sua relação com o mundo concreto (GERMER, 2003). Esse processo de
abstração pode se dar em níveis diversos a depender da distância em relação ao
concreto. À medida que a humanidade desenvolve-se, ela amplia enormemente seus
conhecimentos acerca do mundo, em todos seus aspectos constituintes, tornando
impossível sua apreensão integral por sujeitos individuais. Some-se a isso o fato de
que a preponderância de relações sociais de produção baseadas na propriedade privada
dos meios de trabalho e na divisão social do trabalho, faz com que cada trabalhador
restrinja seu campo de atividade a um aspecto do trabalho social. Esses processos
tornam possível que os conhecimentos elaborados acerca do trabalho, através de
abstrações sucessivas, tornem-se cada vez mais distantes do trabalhador direto. No
processo de trabalho esse movimento corresponde à separação entre trabalho
intelectual e manual que é progressivo no desenvolvimento da humanidade, mas que
alcança níveis mais avançados com o modo de produção capitalista. Esse
conhecimento pode retornar ao processo de trabalho prático, de forma a orientá-lo no
seu operar, seja objetivado na forma de uma ferramenta ou máquina, seja
consubstancializado em um conjunto de técnicas, um conjunto de “formas de operar” o
processo de trabalho (ROMERO, 2005). Portanto, nesse trabalho, denominaremos
como tecnologia ao conjunto de elementos (instrumentos, máquinas, técnicas, saberes)
elaborados a partir do processo prático de trabalho por meio de um processo de
mediação centralizado hegemonicamente pelo conhecimento científico e que tem a
função de servir de meios para execução do trabalho.
MENDES-GONÇALVES (1994) em sua clássica obra
Tecnologia e
Organização Social das Práticas em Saúde
foi um dos pioneiros no Brasil a analisar
esse conceito de tecnologia como “(...) significante dos nexos (a disposição)
estabelecidos entre os elementos (o objeto de trabalho, os instrumentos de trabalho, a
131
atividade de trabalho) de uma certa prática (a experiência médica), no seu nível
interno, e ao mesmo tempo em função das articulações sociais que a determinam”
(1994: 85). Nessa obra, o autor estuda dois modelos tecnológicos distintos – a
clínica e
a
epidemiologia constituintes do campo da saúde pública, ressaltando sua relação
com os determinantes sociais e históricos do trabalho em saúde. O autor, ao centrar sua
análise na tecnologia consubstancializada nas técnicas e saberes e demonstrar o
quanto podem ser direcionadores das práticas em saúde, cita, como exemplo, o caso da
clínica que, ao se consolidar no trabalho em saúde sob o capitalismo, acaba por servir
como o “guia” hegemônico pelo qual se deve “operar” em saúde. Primeiro, se obtém a
história clínica; a partir dos dados obtidos por essa abre-se uma chave com vários
caminhos a seguir; com a ajuda do método vai-se delimitando progressivamente
melhor os caminhos a seguir através da eliminação de outros. Todo esse trajeto
hipóteses, exames complementares, confirmação diagnóstica, definição de conduta
terapêutica e os atos que ele encerra encontram-se encadeados e representam um
modelo hegemônico de como operar o trabalho em saúde.
Posteriormente, Merhy, outro autor importante nessa temática, apreendendo esse
conceito de tecnologia irá propor uma classificação das diferentes apresentações dessa
categoria quando evidenciada internamente ao processo de trabalho em saúde.
Segundo o autor, pode-se classificá-las em
(...) leve (como no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo,
autonomização, acolhimento, gestão como uma forma de governar processos de trabalho),
leve-dura (como no caso de saberes bem estruturados que operam no processo de trabalho em
saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica, a epidemiologia, o taylorismo, o
fayolismo) e dura (como no caso de equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, normas,
estruturas organizacionais). (MERHY, 1997: 121)
Esse autor, assim como CAMPOS (1997), fará um inventário das apresentações
de recursos tecnológicos no trabalho em saúde no atual estágio do capitalismo, a partir
da classificação acima exposta. O autor ressalta o papel da tecnologia como
representação do trabalho morto e a sua tendência, sob as relações sociais capitalistas,
de “capturar” o trabalho vivo dominando-o e tirando-lhe o controle do processo
produtivo. Esses autores ressaltarão alguns elementos cada vez mais presentes no
132
trabalho em saúde, como as normatizações e protocolos, por exemplo, que
representam, segundo eles, tentativas de captura do trabalho vivo pelo trabalho morto.
Em contraposição salientarão a importância de fatores como a
autonomia e a
subjetividade no processo de trabalho como elementos norteadores de um trabalho em
saúde realmente vinculado com um projeto de “defesa da vida”.
É com base na realidade do grande desenvolvimento tecnológico
progressivamente incorporado ao trabalho em saúde a partir do século XX, que os
autores são suscitados a elaborarem teses importantes cujos objetos podem ser
resumidos na seguinte questão: quem ainda seria hegemônico no comando do trabalho
em saúde, o trabalho vivo, representado pelo trabalhador, ou o trabalho morto,
consubstanciado na tecnologia, saberes instituídos, modos de produzir em saúde? O
trabalho vivo na área de saúde ainda é capaz de comandar o trabalho morto e colocá-lo
a seu serviço ao contrário do que acontece nos setores de produção fabril? Quais as
implicações para um projeto assistencial que se proponha como objetivo a “defesa da
vida”, o fato de um ou outro componente do processo de trabalho ser predominante?
Pensamos ser importante, a fim de adentrarmos essa polêmica com mais
propriedade, fazer uma breve análise das diferentes formas de apresentação da
tecnologia no processo de trabalho. Para fins didáticos, e somente para isso, se
dividirmos as apresentações da tecnologia utilizando o critério de sua
“materialidade”
19
, de um lado teremos a tecnologia consubstancializada em
maquinaria e instrumentos de trabalho e, de outro, teremos aquela consubstancializada
em saberes e técnicas direcionadoras das práticas. Vejamos mais de perto como essas
duas apresentações da tecnologia aparecem no trabalho em saúde. Comecemos pelas
máquinas e instrumentos.
Quando tratamos do processo de incorporação da tecnologia “mais material” ao
trabalho, seja qual for o processo, faz-se necessário estabelecer uma distinção entre o
que é a tecnologia consubstancializada em instrumentos/ferramentas de trabalho e o
19
Utilizamos aqui o termo “materialidade” entre aspas para ressaltar seu caráter relativo e pouco
preciso conceitualmente uma vez que não se pode dizer que as tecnologias consubstancializadas em
saberes e técnicas não sejam tecnologias materiais. Portanto, o autor utiliza aqui esse termo,
reconhecendo seus limites, por não dispor de outra nomenclatura mais fidedigna para diferenciar essas
duas formas de tecnologia.
133
que é aquela consubstancializada em máquinas. Essa distinção, que muitas vezes
parece simples e desnecessária, se não realizada com cautela pode nos guiar a
conclusões questionáveis. A diferença central entre as duas apresentações da
tecnologia se refere basicamente ao grau de subordinação desta à força de trabalho. Os
instrumentos/ferramentas de trabalho, são meros acessórios da ação dos homens sobre
seus objetos de trabalho, seriam como que “prolongamentos dos órgãos físicos” dos
mesmos, portanto, subjugados ao seu comando. Esse é o caráter que possuem as
ferramentas durante toda a história da humanidade até o período manufatureiro. Após,
com a revolução industrial, a tecnologia ganha a dimensão de
maquinaria, e esta
possui como característica o fato de não ser mais subjugada à ação subjetiva do
trabalho; ou seja, os meios de trabalho passam a funcionar como autômatos. Nas
indústrias, quando o sistema de máquinas torna-se hegemônico, esses instrumentos é
que passam a ditar a dinâmica do processo de trabalho, colocando a força de trabalho
como seu acessório.
Na manufatura, a organização do processo de trabalho social é puramente subjetiva, uma
combinação de trabalhadores parciais. No sistema de máquinas, tem a indústria moderna o
organismo de produção inteiramente objetivo que o trabalhador encontra pronto e acabado
como condição material da produção. Na cooperação simples e mesmo na cooperação fundada
na divisão do trabalho, a supressão do trabalhador individualizado pelo trabalhador
coletivizado parece ainda ser algo mais ou menos contingente. A maquinaria, com exceções a
mencionar mais tarde, funciona por meio de trabalho diretamente coletivizado ou comum.
O caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se uma necessidade técnica imposta pela
natureza do próprio instrumental de trabalho (MARX, 2001; 442).
Quando trazemos essa discussão para o campo do trabalho em saúde temos a
tendência a categorizar a presença das diferentes tecnologias materiais, principalmente
as mais complexas, como máquinas. Todavia, se olharmos mais atentamente para as
mesmas, veremos que se constituem majoritariamente como ferramentas acessórias à
ação humana. Os mais diferentes recursos diagnósticos e terapêuticos não se
constituem em realizadores dos atos em saúde, mas tão somente facilitadores das ações
do trabalhador da saúde. Ao contrário das máquinas das grandes indústrias, que
produzem um produto e demandam o trabalho vivo para monitorá-las ou fiscalizá-las
nesse fim, os instrumentos do trabalho em saúde, em sua grande maioria, só funcionam
134
se guiados pela intencionalidade do trabalhador. As ferramentas do trabalho em saúde,
em sua maioria, continuam sendo “prolongamentos” dos órgãos humanos e não o
contrário. O oftalmoscópio, por exemplo, não faz mais do que ampliar a capacidade de
visão do trabalhador a um grau que somente com seus próprios recursos naturais (os
olhos) não conseguiria alcançar. É o trabalhador quem dirige o instrumento para os
fins de que necessita e extrai dessa experiência os aspectos que lhe interessam a fim de
lhe propiciar uma intervenção mais eficiente sobre o corpo. Não é o instrumento que
coloca o trabalhador a auxiliá-lo no cumprimento de um projeto previamente
estabelecido pela materialidade do instrumental de trabalho. O mesmo pode-se dizer
de um aparelho de ultra-som, que não faz mais do que ampliar a capacidade sensorial
do trabalhador – visão, tato – auxiliando-o no processo de intervenção sobre o corpo. É
necessário que esse instrumento seja manuseado a fim de ser utilizado como facilitador
da ação do trabalhador em sua apreensão do corpo anatomofisiológico. São em menor
número as expressões tecnológicas sob a forma de maquinaria no trabalho em saúde,
porém podemos vislumbrar que com o desenvolvimento tecnológico existe uma
tendência a se estabelecerem cada vez mais meios de trabalho sob a forma de
máquinas
20
. Os monitores cardio-respiratórios, por exemplo, ao contrário do
oftalmoscópio que funciona quando manipulado diretamente pelo trabalhador, esse
aparelho, uma vez programado, (posto a funcionar) realiza várias ações articuladas e
quase autonomamente de monitoramento de sinais vitais, dando o alarme ao
trabalhador quando ocorre alguma alteração dos mesmos. A função do trabalhador é
quase a de colocar a máquina para funcionar e vigiá-la; no transcorrer do seu processo
de funcionamento ela provê o trabalhador com várias informações necessárias ao
processo de assistência à saúde. Porém, mesmo nesse caso, o instrumento,
isoladamente, continua como auxiliar do trabalhador, subsidiando-o, assim, em uma
apreensão mais ampla acerca do corpo e sua organicidade. O salto qualitativo das
“ferramentas” para as “máquinas” fica patente na capacidade que os últimos possuem
20
Como outros exemplos de máquinas, podemos citar as bombas automáticas de infusão de
medicamentos ou alguns modelos de desfibriladores automáticos - “Ressuscitadores” que uma vez
instalados no corpo, fazem o diagnóstico do tipo de parada cardíaca – fibrilação atrial, entre outras – e
estabelecem a conduta terapêutica: descarregam, por exemplo, o choque com a tensão adequada para
cada caso.
135
de “liberar” o trabalhador de etapas do processo de trabalho. Esses mesmos monitores,
por exemplo, ao manterem constantemente informados os dados acerca da função
cardio-respiratória, liberam os trabalhadores desse papel. foi afirmado
anteriormente que a função da maquinaria sob o capitalismo não é a de diminuir o
trabalho do trabalhador, mas de aumentar a produtividade do trabalho. No caso do
trabalho em saúde, alguns autores (NOGUEIRA, 1987; PIRES, 1998) o confirmaram,
demonstrando como em serviços onde foram implementadas mudanças tecnológicas,
seja na forma de ferramentas seja na forma de máquinas, não houve substituição de
trabalhadores; pelo contrário, ao serem liberados de certas tarefas, os trabalhadores
passaram a assumir outras até então não presentes no processo produtivo. Logo,
podemos visualizar duas conseqüências importantes, advindas da incorporação de
equipamentos/máquinas ao processo de trabalho, para a qualificação do trabalho em
saúde. A primeira refere-se ao aumento da produtividade e à conseqüente
intensificação do trabalho, exigindo do trabalhador maior conteúdo superestrutural da
qualificação (disciplinamento) a fim de executar um trabalho mais intenso. E a
segunda refere-se à incorporação de outros conteúdos à qualificação técnica referentes
ao conhecimento acerca do manuseio dos novos equipamentos. Pensamos que, embora
máquinas estejam sendo progressivamente incorporadas cada vez em maior grau ao
trabalho em saúde, pela natureza tecnológica própria desse trabalho, não se visualizam
“sistemas de máquinas”, ou seja, um mecanismo autômato que coloque o trabalhador
como mais uma de suas “peças”. Se máquinas já existem como componentes do
processo de trabalho em saúde, o “sistema de máquinas”, pensamos, não existe sequer
em germe
21
. Porém, mesmo como instrumentos subordinados ao trabalhador, essas
formas de tecnologia passam a apresentar dimensão cada vez maior, interferindo
sobremaneira sobre o “modo de operar” o trabalho em saúde. SCHRAIBER (1993)
ressalta que o método da consulta clínica, por exemplo, passa a ser profundamente
21
Lembramos o leitor de que estamos considerando, para fins metodológicos, como “trabalho em
saúde” somente seu recorte assistencial. Não incluímos aqui as áreas industriais de produção de bens
(indústrias de equipamentos, indústria farmacêutica etc) que são utilizados pelos serviços de saúde.
Essas áreas apresentam geralmente as mesmas características tecnológicas de qualquer indústria
capitalista de produção de bens, não sendo objeto de nosso estudo.
136
transformado pela incorporação de novos meios diagnósticos e terapêuticos dando
origem à fase da medicina tecnológica.
Bem, mas dissemos em parágrafo anterior que a tecnologia consubstancializada
em máquinas e ferramentas é apenas uma das apresentações possíveis dos recursos
tecnológicos. E, no caso do trabalho em saúde, ao analisarmos sua limitada inserção,
em relação à indústria produtora de “bens”, podemos entender porque as elaborações
dos principais autores a tratarem desse tema são centradas em outra apresentação da
tecnologia: aquela consubstancializada em saberes, técnicas, ou seja, “formas de
operar” o trabalho em ato. Vejamos, mais de perto, esse tipo de tecnologia quando
presente no trabalho em saúde.
Vimos que existem diversas formas de apresentação desses recursos
tecnológicos, entre eles: estruturas organizacionais do trabalho, disciplinas científicas,
normatizações, técnicas de relações interpessoais etc. Dentre esses “modos de operar”
o trabalho, a moderna clínica, como expressão tecnológica das ciências centradas na
doença do corpo anatomofisiológico a patologia, anatomia, fisiologia consolida-se
como hegemônica no processo assistencial em saúde. Como vimos, as necessidades do
capitalismo em relação ao trabalho em saúde são de duas naturezas: a primeira refere-
se à necessidade de reprodução da força de trabalho e demandou maior intervenção do
Estado a partir do século XVIII; a segunda refere-se ao papel de
normalização social,
que ganha maior dimensão com a assistência individual a partir do século XIX. Pois
bem, o instrumento principal para a primeira tarefa não foi a medicina individual, mas
instrumentos para intervenção sobre a saúde coletiva. Era o momento de constituição
dos grandes centros industriais e surgiam como questões importantes as condições
higiênico-sanitárias relacionadas à reorganização do meio urbano, que eram objetos de
intervenção das diferentes apresentações da
medicina social ou coletiva. Uma vez
encarada essa fase estrutural de reconfiguração do meio urbano passa a apresentar-se
como necessidade histórica para o capital o papel de
normalização social, ou seja, a
necessidade de intensificar a incorporação pelos cidadãos dos valores e padrões de
normalidade social dominantes sob as relações sociais capitalistas (COSTA, 1979;
LUZ, 1982, 2004a; FOUCAULT, 1994). É a partir desse momento, e dessa tarefa, que
137
se consolida a medicina e seu método a clínica como instrumentos disciplinadores
do social, através da intervenção sobre corpos individuais. Por reproduzir relações
necessárias a determinado momento histórico, a medicina, através da clínica, supera
outras tecnologias na disputa pela hegemonia no comando do processo assistencial em
saúde. Entre essas tecnologias, superadas e renegadas a papel subordinado à clínica,
está a
epidemiologia, cujo objeto, por ser a saúde da coletividade, encara o processo
saúde-doença em dimensão social e tem no individual não seu objeto, mas uma
expressão dele em um plano particular (MENDES-GONÇALVES; SCHRAIBER;
NEMES, 1997).
Além da apresentação na forma de desdobramentos de disciplinas científicas
como a clínica, a epidemiologia, a psicanálise, o behivorismo, entre outros, as
tecnologias consubstancializadas em saberes/técnicas também podem se apresentar de
modo mais “organizacional” no trabalho em saúde. Essa apresentação ganha maior
dimensão e importância com a consolidação do trabalho em saúde sob a forma coletiva
e institucional. A partir do momento em que o trabalho em saúde começa a consolidar-
se como processo coletivo de produção de valores de uso, podendo adquirir ou não a
forma mercadoria, que devem responder a necessidades cada vez mais complexas
postas por uma sociedade crescente, ele começa a perder gradativamente a dimensão
de ofício, de trabalho artesanal. Posta essa sua nova configuração um processo de
produção sob as relações sociais capitalistas o trabalho em saúde passa a ser
progressivamente subordinado a uma dinâmica que apresenta vários aspectos em
comum com a produção de “bens materiais”. Um dos aspectos dessa dinâmica que
passam a permeá-lo é a busca constante pela maior
produtividade do trabalho. É
importante lembrar que essa dinâmica que inicialmente se restringe aos setores
produtivos, ou seja, os setores subsumidos diretamente ao processo de valorização,
com o desenvolvimento do sócio-metabolismo do capital passa a “contaminar”
também setores improdutivos, como é o caso do estatal (MÉSZAROS, 2002). Assim, o
trabalho em saúde, sob o capitalismo monopolista, passará a incorporar formas
organizativas, normatizações, “racionalizações” como modo de buscar essa maior
produtividade. Muitas delas advindas originalmente da produção industrial.
138
É importante ressaltar que embora os saberes e técnicas de origem científica
sejam os predominantes, não são os únicos a constituírem e direcionarem o modo de
trabalhar em saúde. Esses “modos de operar” o trabalho podem ter outras origens
como a prática cotidiana e as experiências acumuladas informalmente pelos
trabalhadores ao longo de sua vida laborativa, o chamado saber tácito, por exemplo
(SCHRAIBER, 1993; PEDUZZI, 1998; KUENZER, 2003). Todavia, com o
progressivo desenvolvimento tecnológico nessa área e a exclusão ou subordinação do
trabalho artesanal ao trabalho coletivizado, o saber tácito, que possuía papel central na
prática dos físicos e até dos médicos-artesãos, passa a se tornar elemento menos
necessário e presente no trabalho em saúde.
Os modelos tecnológicos de organização das práticas em saúde a clínica, a
epidemiologia, as diferentes concepções acerca da saúde e da doença, as diferentes
concepções de planejamento e organização do trabalho, entre outros vão em sua
constituição conformando-se majoritariamente sob a égide dos preceitos científicos. A
ciência passa a estabelecer o critério de legitimidade e a guiar as práticas de
diagnóstico e terapêutica, seja através de equipamentos, seja através de conhecimentos
e técnicas (DALMASO, 2000). Como é uma tendência inerente às relações sociais
capitalistas a separação entre o trabalhador e o
saber acerca do trabalho, tende a
diminuir a dimensão subjetiva o trabalhador no direcionamento do processo
produtivo enquanto aumenta a dimensão objetiva no trabalho a ciência e a
tecnologia.
Pensamos que o que faz com que a forma de tecnologia consubstancializada em
saberes e técnicas seja predominante no trabalho em saúde, em relação às máquinas e
equipamentos, seja a natureza de seu objeto. Ou seja, a complexidade que envolve o
ato de cuidar, restaurar ou manter a integridade funcional do corpo, mesmo que seja
somente em seu aspecto anatomofisiológico, impossibilita sua transferência para um
mecanismo formado por máquinas, a não ser em etapas bem delimitadas do processo
produtivo e sempre subordinadas ao trabalho vivo. Porém mesmo técnicas e “modos
de operar” o trabalho, segundo MERHY (1997) e CAMPOS (1997), passam a exercer
cada vez mais o papel de limitar a autonomia do trabalho vivo, contribuindo para
139
“mecanizar” o trabalho em saúde, fazendo com que sua eficiência tecnológica na
tarefa de “defesa da vida” fique comprometida. Essas apresentações tecnológicas,
como descrevem os autores, podem apresentar-se de maneira mais ou menos “rígida” a
depender do grau de “liberdade” posto para o trabalho vivo. Como exemplos de
mecanismos “enrrigecedores” do trabalho, os autores citam as tentativas de utilização
de preceitos da chamada
Organização Científica do Trabalho OCT - na
conformação de modos de organizar o trabalho assistencial em saúde. Manifestações
dessas tentativas seriam, por exemplo, o estabelecimento de rotinas, normatizações e
protocolos racionalizadores do processo produtivo em saúde que contribuiriam para o
cerceamento da autonomia dos trabalhadores e para o distanciamento entre
planejamento e execução no trabalho. Veremos à frente que esse processo não se
apresenta sem contradições e que estas também impactarão a qualificação do trabalho
em saúde.
Por enquanto, é necessário destacar que o impacto imediato da incorporação
tecnológica sobre a qualificação do trabalho expressa-se inicialmente: nos novos
atributos técnicos que os trabalhadores passam a ter de dominar, ou seja, nos
conhecimentos para manuseio de novos instrumentos e equipamentos; na substituição
e ou adequação de condutas e técnicas advindas do saber prático para condutas
legitimadas pelo conhecimento científico; na alteração das interconexões e da ordem
das etapas constituidoras dos processos assistenciais pela incorporação de novos
instrumentos diagnósticos e terapêuticos; na simplificação de determinados processos
assistenciais após incorporação de novos equipamentos, técnicas ou saberes.
140
5.5 TENDÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO
EM SAÚDE SOB O CAPITALISMO ATUAL
Uma vez analisado o movimento que realiza a qualificação do trabalho em
saúde desde o final do feudalismo até os dias atuais, podemos fazer uma tentativa de
apreender nesse processo algumas tendências que podem nos auxiliar a compreender
questões fundamentais postas a todos aqueles que direta ou indiretamente estão
envolvidos com os processos produtivos em saúde. Porém, isso não é suficiente. Ao
mesmo tempo em que analisamos algumas tendências pelas quais acreditamos passar a
qualificação do trabalho em saúde nessa fase monopolista do capitalismo, faz-se
necessário, a fim de se evitar apreensões parciais, evidenciar as contradições inerentes
a esse processo. Geralmente essas contradições tendem a ser vistas como
“inadequações”, “ruídos” ou “tensões” advindas de uma “ineficiente” organização e ou
execução do trabalho. Essa compreensão, em grande parte, advém de uma cristalização
no plano ideal de um modelo abstrato de trabalho em saúde. Ao contrastarmos o
modelo abstrato com o trabalho concretamente existente, tendemos a ver nas
diferenças, “imperfeições” da realização do projeto idealizado. Não percebemos o
concreto como o que de fato é, ou seja, o abstrato “sujo”, voltando a ser permeado
pelas múltiplas determinações do real. Logo, não abordaremos essas contradições sob
essa dimensão “purificante” do trabalho em saúde, pois este é, para nós,
necessariamente trabalho determinado por certas relações sociais e históricas. Não
como separar-se a técnica e o social na conformação do trabalho, inclusive do trabalho
em saúde; ambas encontram-se intrinsecamente interdependentes e determinados.
Ressaltamos também que essas tendências não possuem para nós estatuto de “leis
irrevogáveis”. Como pensamos o real em movimento, e contraditório, essas tendências
devem ser apreendidas como um
estar-sendo do trabalho em saúde; estar-sendo que
pode indicar um
dever-ser, porém jamais um será. Tentemos, pois, com o devido
cuidado a fim de evitar cristalizações do real, sistematizar algumas dessas tendências
do trabalho em saúde sob o capitalismo monopolista e evidenciar-lhe possíveis
contradições.
141
5.5.1 O TRABALHADOR COLETIVO EM SAÚDE E SUAS CONTRADIÇÕES
Apenas um corpo completo
e sem dividir-se em análise
será capaz do corpo a corpo
necessário a quem, sem desfalque,
queira prender todos os temas
que pode haver no corpo frase:
que ela, ainda sem se decompor,
revela então, em intensidade.
(MELO NETO, 1997: 283)
Uma primeira tendência que pudemos evidenciar em nossas análises é o
movimento ininterrupto e progressivo de constituição do trabalho em saúde sob a
forma coletiva, de modo cada vez mais amplo e complexo. Essa constituição se de
maneira a reproduzir tendências do trabalho social sob as relações sociais de produção
capitalistas, porém com algumas particularidades. O principal aspecto dessa
coletivização refere-se à parcelarização do processo de trabalho e à conseqüente
especialização progressiva dos trabalhadores nas práticas referentes à sua etapa
parcelar do processo produtivo. No caso do trabalho em saúde isso se deu com a
fragmentação do trabalho, outrora concentrado na figura do médico-artesão, em etapas
separadas e delegadas a diferentes trabalhadores; sejam eles médicos-especialistas,
sejam outros trabalhadores do campo da saúde como enfermeiros, nutricionistas,
fisioterapeutas, farmacêuticos etc. Esse processo inicialmente constitui os médicos
modernos como trabalhadores “nucleares” que cooperam entre si, em torno do qual se
localizam outros trabalhadores “periféricos”. Como a tendência à fragmentação é
inerente ao trabalho social sob essas relações históricas, ela não cessa nesse primeiro
movimento que constitui o trabalho coletivo em saúde; pelo contrário, cada novo
campo parcelar do processo produtivo da saúde tende a reproduzir a fragmentação. É o
caso do campo da enfermagem que constitui o enfermeiro como trabalhador nuclear
frente aos auxiliares/técnicos de enfermagem, por exemplo. A especialização
apresenta-se como conseqüência da fragmentação porque cada trabalhador ao ficar
restrito a determinada etapa parcelar do processo de trabalho passa a restringir-se e
especializar-se nas práticas concernentes a esse campo.
142
Pois bem, uma das mais evidenciadas contradições presentes no trabalho em
saúde a partir de sua constituição como trabalho coletivo sob o capitalismo
monopolista e que tem sido objeto de muitas elaborações (MENDES-GONÇALVES et
all, 1990; SCHRAIBER, 1993; MERHY, 1997; CAMPOS, 1997; PIRES, 1998;
PEDUZZI, 2001) advém de sua parcelarização “progressiva”, processo que produz
trabalhadores “profundamente” parcelares e especializados, e dos mecanismos
necessários à sua recomposição. Dizemos que essa parcelarização/especialização
“progressiva” é contraditória porque, se por um lado, esse processo produz
trabalhadores muito virtuosos em suas práticas parcelares, por outro, tende a tornar os
trabalhadores restritos ao conhecimento e controle de sua etapa parcelar. Isso tende a
criar uma grande dificuldade em proceder à “conexão” entre essas práticas
interdependentes, conexão esta fundamental para a constituição do trabalho coletivo de
forma produtiva. Essa dificuldade, é bom lembrarmos, não ocorre nas indústrias de
produção de “bens materiais”, pois as mesmas possuem no substrato material a
maquinaria o critério para a divisão e unificação do trabalho. Na indústria dominada
pela maquinaria a divisão do trabalho não é realizada tendo por base a divisão do
ofício em etapas parcelares, ou seja, a divisão manufatureira do trabalho. É o sistema
de máquinas que determina que tipos de trabalhadores são necessários e em que
momento do processo produtivo. No automatismo do sistema de máquinas a
cooperação é, acima de tudo, cooperação de máquinas, e os trabalhadores são meros
acessórios desse processo que lhes é externo. no trabalho em saúde predomina a
cooperação baseada na divisão do trabalho, muito semelhante à antiga divisão
manufatureira
22
. Mesmo sob essa fase – a manufatura – no caso da produção de “bens”
não se apresentava com tamanha intensidade essa contradição que visualizamos no
caso do trabalho em saúde. Isso se deve, como dissemos anteriormente, à
peculiaridade do objeto das práticas em saúde. Subdividir, para efeito do processo
22
Caso queiramos detalhar mais essa categoria, pensamos que a divisão do trabalho em saúde
apresenta características da divisão manufatureira clássica (
orgânica), mas, e isso a complexifica,
também apresenta setores produtivos com uma divisão semelhante à da manufatura
heterogênea; ou
seja, aquele tipo de trabalho onde o produto de cada etapa parcelar não se apresenta como matéria
prima da etapa seguinte. Cada produto é produzido de maneira relativamente autônoma e depois se
procede à unificação entre os fragmentos.
143
produtivo, a assistência à saúde em práticas sob controle de diferentes trabalhadores
tem como resultado, em última instância, a subdivisão no plano abstrato do objeto
dessas práticas, ou seja, o corpo, em diferentes fragmentos. Essa recomposição, por
sua vez, em um todo orgânico e coerente não tem sido tarefa simples.
Não trataremos aqui, pois já o fizemos em momento anterior desse trabalho, dos
fundamentos de tamanha complexidade por parte do objeto do trabalho em saúde, suas
múltiplas determinações pelas relações sociais, econômicas e históricas e o impacto
que as mesmas causam sobre a conformação das práticas em saúde. Como vimos, é
essa complexidade que, por sua vez, determina que o trabalho vivo seja predominante
no trabalho em saúde em relação ao trabalho morto consubstancializado na tecnologia,
em suas mais variadas apresentações. São peculiaridades de um trabalho cujo produto
socialmente útil consubstancializa-se, não em um “bem”, mas em uma
atividade, um
ato. O produto socialmente esperado e necessário do trabalho em saúde é um ato
restaurador e ou mantenedor do normal, normal que ao ser cientificamente traduzido
na forma da organicidade biológica tende a ocultar as determinações sociais dos
padrões de normalidade. Como a complexidade da relação entre o processo e o
produto do trabalho em saúde exige a presença do trabalho vivo como mediador
predominante, a tecnologia fica secundarizada ao papel de acessório do trabalhador.
Pois bem, com a divisão do processo de trabalho em etapas a cargo de diferentes
trabalhadores, trabalhadores especializados cujo conhecimento restringe-se à sua etapa
parcelar da produção, passa a ocorrer uma solução de continuidade entre as práticas,
que impacta de maneira importante a produtividade do trabalho assistencial em saúde.
Vimos que uma tendência importante do trabalho sob as relações sociais capitalistas
refere-se à parcelarização e a especialização/simplificação progressiva. Vimos também
que, no século XIX quando começa a constituir-se o trabalho em saúde centralizado
por um trabalhador que detinha o conhecimento e, consequentemente, o controle sobre
o processo de trabalho, essa contradição não estava posta, senão em germe. Isso
porque embora existissem trabalhadores responsáveis por etapas parcelares do
processo produtivo, este possuía na figura do médico-artesão o agente unificador das
práticas fragmentadas. Um trabalhador com uma qualificação cujo conteúdo técnico
144
lhe propiciava o conhecimento e controle de todo o processo produtivo. À medida,
entretanto, que a especialização progressiva absorve também esse agente, o
conhecimento do trabalho em saúde passa a não se encontrar mais sob controle de um
agente individual, mas sim do agente coletivo. Mas, como sabemos, a simples
reconstituição das partes não conforma o todo; a interdependência entre as diferentes
práticas do trabalho em saúde não conforma necessariamente um processo produtivo
orgânico, coerente. Daí, costumam surgir vários “ruídos”, “tensões” que servem de
subsídios a diversas elaborações teóricas acerca da “irracionalidade” e “desperdício”
no setor saúde, da “desqualificação” dos recursos humanos ou da “ineficiência” de
determinados instrumentos de gestão, entre outros (RIBEIRO; COSTA; SILVA, 2000;
AMANCIO, 2004; LIMA, 2005). Não estamos aqui querendo dizer que esses
elementos não constituam questões importantes e que não expressem aspectos
constituintes do trabalho em saúde. Pelo contrário, geralmente eles elencam aspectos
presentes na realidade cotidiana dos serviços; a questão posta é: será que não existe a
possibilidade de estarmos apreendendo aspectos parciais e deixando de analisar outros
aspectos constituintes do real? Senão, vejamos; será que o mesmo movimento que cria
essas contradições advindas da parcelarização/especialização no trabalho não poderá
desenvolver elementos que propiciem a reconstituição orgânica do trabalho parcelado?
Pensamos que sim e procuraremos demonstrá-lo, ou melhor, evidenciá-lo em trabalhos
de diferentes autores, cada qual à sua maneira apreendendo aspectos desse processo.
Um movimento que surge no processo de trabalho em saúde, como expressão
da tentativa de se reagrupar suas parcelas em um todo orgânico, refere-se à
constituição de campos de qualificação e práticas comuns a diferentes trabalhadores
parcelares. PEDUZZI (1998) pôde evidenciar como esse aspecto de “borramento” dos
limites nítidos entre as práticas concernentes a diferentes trabalhadores contribui para
a constituição de um processo assistencial em saúde mais garantidor da integralidade
da atenção. A autora, em seu relato, ressalta como isso se manifesta fortemente no
caso de alguns serviços de saúde mental, como os CAPS centros de atenção
psicossocial onde várias práticas outrora restritas a um corpo profissional específico
passam a ser apreendidas por outros trabalhadores. É o caso de algumas condutas
145
diagnósticas e terapêuticas, outrora concentradas na figura do psiquiatra, que passam a
ser realizadas por outros profissionais como psicólogos e enfermeiros. O inverso,
nesse caso, também ocorre, com psiquiatras passando a dominar e utilizar em suas
práticas aspectos das teorias do campo da psicologia. Isso faz com cada trabalhador
individual, embora exerça predominantemente as práticas concernentes ao seu campo
parcelar, adquira conhecimento acerca dos outros campos parcelares o que lhe propicia
a capacidade de apreensão do processo produtivo em sua quase totalidade. CAMPOS
(1997) diferencia aqui as práticas específicas de cada profissional, as quais denomina
como
núcleo de práticas e saberes, das práticas realizadas por todos os membros da
equipe, as quais denomina como
campo de práticas e saberes, ressaltando a
importância da existência dessas duas dimensões para um processo de assistência à
saúde de forma integral.
Em outros serviços de saúde também se pode perceber processos semelhantes.
O movimento que, a princípio, fez com que os médicos delegassem tarefas para outros
trabalhadores realizarem sob seu controle e supervisão, aprofunda-se de tal maneira
que algumas práticas já passam a constituir-se como pertencentes a mais de um campo
profissional. Um caso bastante consolidado é o da consulta clínica, por exemplo.
Um instrumental metodológico para organizar o processo diagnóstico e terapêutico
passa a ser utilizado por outros profissionais como o enfermeiro, o nutricionista, entre
outros trabalhadores da saúde. Ao dominarem o método de diagnosticar e tratar as
doenças, esses trabalhadores passam a dominar e praticar aspectos do diagnóstico e da
terapêutica, antes restritos ao controle médico. Com isso esses trabalhadores passam a
superar a posição de “paramédicos” e começam a se apropriar de aspectos mais
amplos do processo assistencial. Ao mesmo tempo em que os médicos começam a ter
seu papel central relativizado no trabalho em saúde, devido ao processo de
especialização progressiva, outros trabalhadores começam a dominar campos mais
amplos de saberes e práticas tornando-se capazes de apreender o processo produtivo
em uma dimensão mais próxima da totalidade.
Outro movimento aparentemente contraditório que podemos visualizar em
alguns espaços específicos do trabalho em saúde, e que expressa uma contraposição ao
146
processo de fragmentação do trabalho, são tentativas de se reconstruir a figura do
trabalhador centralizador da assistência à saúde, o médico-artesão. Esse processo tenta
realizar o movimento contrário, ou seja, o de reagrupar em um mesmo trabalhador
diferentes campos parcelares de práticas e saberes que se encontravam fragmentados
sob domínio de distintos trabalhadores especializados. Exemplo disso são os
resultados advindos de experiências que tentam, por exemplo, reconstituir na
contemporaneidade figuras como a do médico-artesão, na figura do médico de família.
Como a medicina artesanal várias décadas foi superada pela medicina tecnológica,
permeada pela parcelarização/especialização e pela incorporação crescente de
tecnologia, qualquer tentativa de retorno àquela forma não produz o esperado. O
processo assistencial em saúde que estava sob controle quase integral do médico foi
amplamente fragmentado e, cada um de seus campos parcelares delegados a
trabalhadores especializados. No atual momento histórico, as tentativas de recompor
um trabalhador, ao modo artesanal, tendem a produzir um trabalhador articulador de
diferentes campos parcelares; um especialista em vários campos parcelares, ou seja,
um médico que é ao mesmo tempo pediatra, clínico e ginecologista. É um generalista
com outra qualidade, pois é integrado ao processo produtivo na forma coletiva o que
impede o retorno a práticas artesanais. As tentativas de rompimento com a
unilateralidade sob essas relações sociais parecem não resgatar necessariamente o
caráter de totalidade sob a forma do trabalho artesanal, individual. Pelo contrário,
essas experiências vêm demonstrar que o controle sobre a totalidade do trabalho em
saúde não pode mais se dar na dimensão do trabalhador individual. Como pudemos ver
no primeiro capítulo desse trabalho, esse não é um processo pelo qual parece passar
somente o trabalho em saúde. No caso da produção de “bens materiais”, sob a
especialização flexível, vários autores advogam que se conforma como conceito
importante o de “multifuncionalidade” ou de “polivalência”, que está relacionado à
característica de um trabalhador assumir várias práticas parcelares (CORIAT, 1994;
KUENZER, 2002a). Preferimos, como argumentado em capítulo anterior,
denominar esses trabalhadores como “multiparcelares”, pois, a nosso ver, expressa
melhor esse movimento. Papel que, ao contrário de lhe propiciar a apreensão da
147
totalidade do processo produtivo, possui como propulsora a necessidade de
intensificação do trabalho. Não é nosso objetivo aqui fazer analogias mecânicas entre
esse dois processos de trabalho; queremos apenas ressaltar que determinados aspectos
particulares
podem ser expressão de um movimento mais amplo de diferentes formas
de trabalho nesse período histórico.
Essas experiências demonstram como o movimento de parcelarização do
trabalho e especialização dos trabalhadores cria contradições em seu desenvolvimento
que precisam ser resolvidas pelo processo produtivo. Embrionariamente, portanto, a
especialização estaria tendo como conseqüência o seu contrário, certa
“desespecialização”, expressa nesses exemplos de certa “relativização” da divisão
técnica do trabalho. Além disso, parece existirem casos em que a parcelarização coloca
a necessidade de se unificar campos parcelares em sujeitos únicos, conformando
exemplos de uma especialização “mais flexível”. Os aparelhos educacionais de
qualificação acabam mais cedo ou mais tarde por acompanhar esse processo. são
corriqueiros os cursos, especializações, residências com caráter interdisciplinar, ou
seja, que qualificam em determinada área técnica saúde mental, saúde da família,
saúde coletiva, entre outros trabalhadores de distintas áreas profissionais de maneira
homogênea. É importante ressaltar que não parece se tratar de processos distintos, mas
de um movimento que, ao mesmo tempo em que aprofunda a especialização (tanto
no campo médico, quanto nesses outros campos onde se visualiza cada vez mais
“especialistas” entre os enfermeiros, nutricionistas, odontólogos), parece produzir
contraditoriamente o seu contrário.
Até aqui citamos algumas contradições que impactam a qualificação do
trabalho em saúde essencialmente em seu aspecto subjetivo, ou seja, o aspecto
relacionado ao trabalhador individual e coletivo da saúde. São elas: a relação
parcelarização/recomposição do processo de trabalho; a relação
especialização/desespecialização; a relação trabalhador parcelar/multifuncional.
148
5.5.2 POLÊMICAS ACERCA DO PAPEL DA TECNOLOGIA NO TRABALHO EM
SAÚDE ATUAL
Quando lerem seus papéis
Pesquisando, dispostos ao assombro
Procurem o Velho e o Novo, pois nosso tempo
E o tempo de nossos filhos
É o tempo das lutas do Novo com o Velho. (...)
Mas como diz o povo: na mudança de lua
A lua nova segura a lua velha
Uma noite inteira nos braços (...)
(BRECHT, 2000: 253)
Outro aspecto permeado por contradições, e que impacta de maneira importante
a qualificação do trabalho em saúde, é aquele que se refere ao papel da tecnologia
nesse processo produtivo. Como pudemos analisar em capítulo anterior, o trabalho em
saúde diferencia-se do processo industrial produtor de “bens materiais” em relação à
tecnologia por não apresentar na maquinaria um elemento central da produção. A
tecnologia encontra nos saberes/técnicas/normatizações suas principais expressões,
sendo que os mesmos ocupam sempre o papel de acessórios do trabalhador em sua
ação sobre o objeto de trabalho. Objeto de trabalho que, pela sua complexa
peculiaridade, exige como elemento central do processo produtivo, o trabalho vivo.
Pois bem, como vimos, não deixam de apresentar polêmicas as interpretações
acerca do papel que pode cumprir a tecnologia no processo de trabalho em saúde.
uma corrente importante da produção teórica brasileira, capitaneada por Merhy e
Campos, por exemplo, que com muitas ressalvas a dimensão cada vez mais
importante que passam a ocupar elementos como as normatizações, protocolos e
organizações de caráter programático no processo de trabalho em saúde. Merhy
entende a tecnologia consubstancializada em saberes/técnicas/normatizações como
trabalho morto que, de forma muito semelhante à maquinaria, também exerce a
pressão permanente pela “captura” do trabalho vivo. No entanto, para o autor
(...) em um centro de saúde, diferentemente da fábrica que analisamos, não é possível obter-se
estratégias plenamente competentes que consigam ‘capturar’ plenamente o trabalho vivo,
realizador imediato de bens finais, e que ocorre tanto ao nível da prática médica, quanto ao de
qualquer outra prática de saúde. A ‘captura’ global do autogoverno nas práticas de saúde não é
149
muito difícil e restrita, mas impossível pela própria natureza tecnológica deste trabalho
(MERHY, 1997:98).
Nessa citação, podemos perceber como o autor apreende com bastante
propriedade a relação dialética entre trabalho vivo e trabalho morto sob as relações
sociais capitalistas. Ou seja, ambos tendem a conformar uma unidade de opostos onde
a luta de um para dominar o outro é tensa e permanente. Vimos no primeiro capítulo
desse trabalho que, no processo de surgimento e consolidação do modo de produção
capitalista, existe uma tendência a se constituir gradativamente uma inversão nas
posições de dominante e dominado pertencentes a essa relação. O trabalho vivo de
plenamente dominante na produção artesanal vai sendo subordinado progressivamente
a partir da cooperação simples e manufatura, até ser completamente dominado pela
maquinaria na grande indústria. Na manufatura o trabalho vivo ainda era dominante,
pois a tecnologia apresentava-se somente na forma de ferramentas/instrumentos de
trabalho e na forma de saberes/técnicas/normatizações pelas quais se operava o
trabalho. Esse instrumental de trabalho, seja na primeira, seja na segunda forma, estava
submetida ao controle e ao ritmo ditado pelo trabalho vivo. Além disso, o
conhecimento acerca do processo de trabalho estava sob controle exclusivo do
trabalhador, inicialmente do trabalhador individual e depois do trabalhador coletivo. O
conhecimento e o controle sobre o processo de trabalho ainda não havia se
consubstancializado em um meio material, externo ao trabalhador. É somente com a
maquinaria que isso se torna possível. Merhy acredita que tecnologias sob a forma de
normatizações ou estruturas organizacionais do trabalho podem exercer o mesmo
papel de controle e direção do processo de trabalho que a tecnologia
consubstancializada na maquinaria. Ou seja, podem subjugar o trabalho vivo e
“capturá-lo” com a mesma intensidade. Por isso, o autor, em sua proposta de
classificação, engloba as três formas de tecnologia máquinas, normatizações e
estruturas organizacionais naquilo que ele chama de “tecnologias duras”, em
oposição a outras formas de tecnologias classificadas como mais leves, como é o caso
de disciplinas científicas, técnicas de relações interpessoais etc. O conceito de
“dureza”, para o autor expressa o caráter de rigidez em “capturar” o trabalho vivo e
150
expropiar-lhe o controle do processo de trabalho. Em última instância, o autor
argumenta que existem estruturas organizacionais/normatizações tão rígidas, no limite
que impõem ao trabalhador de exercer qualquer autonomia na definição de seu
trabalho, que se pode compará-las a um sistema mecânico como o de máquinas, no
qual o trabalhador torna-se um acessório do autômato, a maquinaria. No caso do
trabalho em saúde, embora seja crescente a implantação de normatizações rígidas, essa
subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto não ocorre, segundo o autor, devido à
natureza tecnológica desse processo produtivo. Mas, independente de se tratar do
trabalho em saúde, será prudente colocarmos maquinaria e normatizações dentro da
mesma classificação em se tratando do grau que as mesmas podem exercer de controle
sobre o trabalho vivo? Pensamos que relembrar rapidamente a origem das
apresentações tecnológicas pode nos ajudar a responder essa questão.
Vimos como a construção do conhecimento se através de processos
sucessivos de abstrações advindas da atividade prática (trabalho); vimos também que
as elaborações teóricas podem estar mais ou menos “distanciadas” do processo prático,
porém jamais separadas; esse é o princípio da
práxis, teoria e prática conformam-se
sempre de maneira indissociável. Até a produção artesanal, o conhecimento e a
tecnologia, não se apresentavam como hostis para o trabalhador. E a causa disso não se
deve a uma suposta “liberdade” do trabalhador para fazer o seu trabalho como
quisesse. Pelo contrário, o artesão também utilizava um conjunto de técnicas que
historicamente foram cristalizadas, devido à eficiência que demonstraram em garantir
uma dada produtividade, em certo modo de organizar o processo de trabalho; havia
uma “rotina”, uma “norma”, uma “ordem” a seguir para se fabricar artesanalmente um
sapato, por exemplo. Tanto que as corporações de ofício nada mais eram do que
instrumentos de qualificação dos trabalhadores em “certo modo de produzir”. Todavia,
esse conjunto de técnicas, esse “modo de operar”, não se apresentava para o artesão
como algo hostil. Isso se deve ao fato de que
saber e fazer encontravam-se sob
domínio do trabalhador, nesse caso do trabalhador individual.
Com o modo de produção capitalista, e a divisão técnica do trabalho, teoria e
prática passam a se concentrar em trabalhadores diferentes, fazendo com que os
151
sujeitos envolvidos nesse processo percam a consciência da indissociabilidade dos dois
pólos. Isso contribui para que o trabalhador manual seja alienado em relação ao
conhecimento do processo de trabalho. Concomitantemente a isso, o
saber acerca do
trabalho, ao afastar-se do trabalhador manual, concentra-se em seu pólo oposto: o
trabalho intelectual. Porém, com a tendência à especialização progressiva e à
fragmentação do trabalho, mesmo a etapa intelectual do processo de trabalho vai sendo
parcelada e, em conseqüência disso o trabalhador intelectual também vai perdendo o
saber e o controle sobre o processo de trabalho como um todo. Esse é o momento em
que o
saber acerca do processo de trabalho passa a migrar dos trabalhadores
individuais para o trabalhador coletivo. Até esse momento, embora os trabalhadores
individuais não detenham mais o conhecimento e o controle integral sobre o processo
produtivo, o trabalhador coletivo os detém. Isso porque a dimensão subjetiva
trabalho vivo ainda é predominante no processo produtivo. Essa é a apresentação
presente na manufatura e, como vimos, esse domínio do trabalho vivo ainda coloca
empecilhos para a acumulação crescente do capital, tanto que Marx entende essa fase
como de
subsunção formal do trabalho ao capital. Ainda são os trabalhadores a
ditarem o ritmo e a forma de produzir. Não basta expropriar os meios de trabalho, é
somente quando o capital consegue expropriar dos trabalhadores o
saber e,
consequentemente, o controle acerca do trabalho que se conforma a
subsunção real.
Somente quando o saber consubstancializa-se na ciência e o controle em sua
expressão, a maquinaria, é que o trabalho morto subordina o vivo e a dimensão
objetiva a subjetiva. É aqui, quando o
saber dissocia-se do fazer que a tecnologia
começa a apresentar-se para o trabalhador como externa a ele e como “força hostil que
o domina” (MARX, 2001). Até o advento da maquinaria, a tecnologia resumia-se aos
instrumentos/ferramentas de trabalho e às técnicas e formas organizativas do trabalho.
O que direcionava o trabalhador em seus atos eram as “normatizações”, as “rotinas”,
“menos rígidas” no caso do artesanato, e “mais rígidas” no caso da manufatura. Porém,
mesmo com a rígida divisão técnica do trabalho e o controle despótico dos “capatazes”
de chão de fábrica a gerência da manufatura –, o trabalho vivo continuava
predominando sobre o trabalho morto e ditando o ritmo da produção. Muitas vezes
152
interpreta-se equivocadamente que a gerência científica do taylorismo-fordismo teria
sido a responsável por finalmente “dominar” o trabalho vivo, quando, na realidade, o
fator responsável por tal foi, de fato, a maquinaria. Não são poucos os relatos da dura
luta do capital na tentativa de subsumir o trabalho, desde a cooperação simples até a
maquinaria. De controle infraestrutural – a divisão técnica extrema – ao superestrutural
disciplinamento físico e ideológico, criação de controles e gerências mais eficazes
entre outros mecanismos (BRAVERMAN, 1987; ROMERO, 2005). Mas é com a
maquinaria que a produção torna-se “especificamente” capitalista. Fizemos questão de
fazer esse longo relato, que pode ter se apresentado como excessivamente repetitivo
para o leitor, com o objetivo de embasar a opinião segundo a qual não se pode
classificar como possuidoras do mesmo grau de capacidade de subordinação do
trabalho vivo, essas duas apresentações da tecnologia a maquinaria e as
normatizações ou formas organizativas do trabalho. A primeira é, de fato, a única
capaz de
realmente subsumir o trabalho ao modo capitalista de produzir. Isso significa
dizer que em processos produtivos, como é o caso do trabalho em saúde, em que, pela
natureza de seu objeto, a maquinaria, na forma de sistemas de máquinas, não consegue
tornar-se predominante, a dimensão subjetiva sempre será dominante. As outras
apresentações tecnológicas não conseguem cumprir o papel da maquinaria.
Posto isso, fazem-se necessários alguns aprofundamentos. Dizer que o trabalho
em saúde não pode ser subsumido
realmente ao capital não significa negar as
tentativas do capital nesse sentido. A prova de que elas existem são os vários modelos
de organização do trabalho e de recursos humanos transpostos da produção industrial
para o setor saúde, seja em empresas privadas, seja na esfera da produção estatal. Para
o capital constitui-se em grande problema o fato de vários trabalhos, como saúde e
educação, pertencentes ao chamado setor de serviços, pela natureza de seu objeto, não
poderem ser subsumidos
realmente à valorização. Ainda mais em um período em que
a exploração desses setores apresenta-se como um paleativo importante para as crises
advindas da produção industrial de outros ramos de produção
23
. Pensamos que não
23
Lembramos que uma das características dessa fase do capitalismo monopolista é o fato de o capital
recorrer a setores até então improdutivos, ou seja, não subsumidos à dinâmica de acumulação do
capital, como forma de “compensar” a queda tendencial da taxa de lucro nos setores predominantes da
153
seria exagero dizer que a grande maioria das chamadas “crises” do setor de serviços
(baixa produtividade; pouca racionalização; desperdício; burocracia excessiva) são
advindas dessa “inadequação” intrínseca. Como o setor estatal, embora não produza
mercadorias, tem sua dinâmica também determinada pelas relações capitalistas, seus
modos de produzir tendem a ser influenciados pela produção de “bens materiais”. Isso
faz com que muitas dessas crises, reflexos dessa inadequação apareçam também no
setor público. A partir daqui podemos ter vários desdobramentos possíveis dessas
“crises de inadequação”, a depender da lógica geral que direciona cada uma das
apresentações específicas do trabalho em saúde. Essas lógicas direcionadoras podem
ser, em última instância, resumidas em duas: a lógica privada de produção de
mercadorias-saúde; ou a lógica pública que não produz mercadorias, mas pode, ou
não, organizar o processo produtivo sob a dinâmica da produção de mercadorias.
Vejamos rapidamente os desdobramentos possíveis em cada uma delas.
No caso da produção privada, a lógica é a de produção de mercadorias sob a
forma de procedimentos ligados à assistência à saúde individual. Vende-se uma
consulta clínica, uma ecografia, uma cirurgia etc, sem que necessariamente esse
processo tenha impacto sobre as condições de saúde do consumidor. Evidentemente
para a realização do valor de troca é necessária a existência do valor de uso, portanto,
esse consumo deve de alguma maneira satisfazer necessidades do consumidor,
necessidades que, sabemos, podem ser estimuladas pelo próprio processo produtivo.
No caso desse processo produtivo, como a maquinaria não é dominante, o trabalho
vivo continua a ser o centro da produção e as “inadequações” acima citadas
apresentam-se intrinsecamente. O capital, em sua tentativa de aumentar a
produtividade, busca racionalizar ao máximo o processo produtivo e diminuir o
controle do trabalhador sobre a produção lançando mão, para isso, de inúmeros
instrumentos importados dos setores industriais, como diretrizes da
Organização
Científica do Trabalho -
OCT, da chamada Qualidade Total, entre outros. Um
exemplo é o caso do chamado Managed Care, analisado por MERHY (2000), como
produção. Para maiores aprofundamentos ver o primeiro capítulo desse trabalho em seu item “As
mudanças no mundo do trabalho sob o capitalismo atual e seus impactos sobre a qualificação do
trabalho”.
154
forma de racionalização pelo setor empresarial da saúde. Essa luta, nesse setor,
apresentar-se-á de maneira contínua e ininterrupta, como dissemos acima, sem que o
capital consiga subsumir
realmente o trabalho em saúde, o que lhe propiciaria ampliar
grandiosamente a valorização. Apresenta-se, portanto, como uma “luta eterna” que não
tende a apresentar “soluções” diferentes das citadas, como racionalizações pautadas
pela lógica do lucro, burocratizações excessivas, trabalhadores parcelares cada vez
mais alienados em relação à totalidade do processo produtivo.
No caso do setor público de saúde o processo é mais complexo. Existe uma
tendência progressiva de esse setor ser permeado pela mesma lógica da produção de
procedimentos-mercadorias de assistência individual presentes no setor privado
(CAMPOS, 1987, 1992; BRAGA & SILVA, 2001), embora o sistema de saúde estatal
não produza mercadorias. Nesse setor as crises advindas da “inadequação” devem
apresentar-se de maneira semelhante à do setor privado, mas, a nosso ver, com um
agravante. As formas de organização tecnológica criadas pelo processo produtivo
capitalista como a OCT, por exemplo, servem à lógica da acumulação do capital. E
sabemos como a concorrência inter-capitalista é o principal fator que impulsiona o
capital a perseguir a ampliação progressiva da produtividade do trabalho a fim de
garantir o processo de acumulação. Nos setores em que este fator impulsionador não
está presente o ímpeto pela busca da maior produtividade é sensivelmente menor,
mesmo com o uso desses mecanismos gerenciadores. Daí a origem de grande parte das
avaliações de improdutividade do setor público presentes, inclusive no senso comum:
ninguém produz mercadorias com tanta eficiência quanto os setores produtivos
capitalistas. Some-se a isso uma contradição mais profunda, aquela relacionada ao
papel do trabalho em saúde sob as relações sociais capitalistas. Lembremos que, sob as
relações capitalistas, o trabalho em saúde exerce um papel central: o de ser
componente do complexo e importante processo de reprodução da força de trabalho,
seja no plano infraestrutural manter os corpos íntegros para o trabalho seja no
plano superestrutural consolidar padrões de normalização social reprodutores das
relações sociais hegemônicas. Pois bem, será que essas expressões de “ineficiência” e
“baixa resolutividade” podem apresentar contradições com esse papel fundamental do
155
trabalho em saúde sob o capitalismo? Pensamos que não só essas contradições existem
como geram movimentos no sentido de suas superações. Várias transformações que
acontecem cotidianamente no processo de trabalho em saúde repetem-se e, ao
repetirem-se, podem estar demonstrando a existência de embriões de superação de
formas atualmente hegemônicas. Demonstramos como, a nosso ver, o processo de
constituição do trabalhador coletivo em saúde, pautado na parcelarização do trabalho e
na especialização dos trabalhadores, gera contradições que o processo produtivo
precisa resolver, contribuindo para que surjam experiências novas que impactam a
qualificação dos trabalhadores. Se em relação à constituição do trabalhador coletivo
surgem essas contradições, não poderiam elas surgirem também quando se trata da
relação com as tecnologias em saúde, incluídos instrumentos, técnicas, saberes e
formas organizativas do trabalho? Vejamos alguns exemplos que nos fazem tender a
responder essa questão afirmativamente.
Como vimos, uma necessidade posta para o trabalho em saúde, a partir da
parcelarização/especialização progressiva, é a de aprimorar os mecanismos de
interconexão entre os diferentes campos parcelares e suas práticas concernentes a fim
de constituir uma unidade do processo assistencial em saúde. Citamos algumas
experiências nesse sentido: processos produtivos relativizadores da divisão técnica do
trabalho; reconstituição de práticas fragmentadas sob controle de trabalhadores
multiparcelares, o que tende a provocar uma flexibilização da especialização;
socialização de práticas e saberes, outrora concentrados na figura do médico, com
outros trabalhadores “nucleares”. Quando analisamos o papel das diferentes formas de
tecnologia no trabalho em saúde também podemos apreender algumas contradições
que tendem a ser resolvidas pelo processo prático de trabalho de variadas maneiras,
algumas delas, a nosso ver, questionadoras das relações hegemônicas historicamente
instituídas nesse trabalho. Vejamos alguns exemplos.
Um primeiro elemento que começamos a visualizar com cada vez maior
freqüência nas diferentes apresentações concretas do trabalho em saúde refere-se a
tentativas de construção de novas formas de tecnologias de gestão, que rompem com
preceitos clássicos da OCT, quais sejam: separação rígida entre planejamento e
156
execução; rigidez em relação à divisão técnica do processo de trabalho; gerência
científica, entre outros. São experiências que vão desde estabelecimento de maior
democracia na relação entre gerentes e executores até verdadeiros exercícios de
autogestão do trabalho (CAMPOS, 1997, 2003; PEDUZZI, 1998; PIMENTA, 2000;
ONOCKO CAMPOS, 2003). Estes últimos particularmente nos interessam, pois
relatos dessas experiências tanto em nível de sistemas de saúde municipais quanto em
unidades produtivas diretas, ou seja, em serviços de assistência à saúde. Não faremos
aqui uma análise de experiências particulares, seus avanços e limites (os segundos
geralmente são muito maiores que os primeiros), os condicionantes políticos locais que
facilitaram suas emergências etc. Também não procederemos aqui à exortação de
experiências que, sob a égide de construir gestões “democráticas e participativas”,
criam mecanismos de cooptação de trabalhadores e usuários do sistema de saúde.
Queremos apenas ressaltar que quando, por exemplo, PEDUZZI (1998) relata a
existência de um serviço de saúde mental onde são discutidos e deliberados
coletivamente elementos como, a organização interna do serviço, os planos
terapêuticos para determinados casos clínicos, a relação do serviço com outros níveis
de gestão etc., pode-se visualizar manifestações de relações novas ao nível da
produção que, inclusive, chocam-se com as instituídas. Essas experiências colocam
elementos importantes como: a capacidade dos trabalhadores gerenciarem a produção;
e a possibilidade de apropriarem-se do controle da totalidade do processo produtivo
por meio do reconhecimento da interdependência entre as múltiplas parcelas do
trabalho. Isso pode contribuir para se tensionar alguns elementos responsáveis pelo
processo de alienação do trabalhador em relação ao seu trabalho sob relações sociais
antagônicas. Experiências como essas podem contribuir para que o trabalho seja
apreendido como mais “cheio de sentido”, para usar as palavras de ANTUNES (1995),
fazendo com que o nível de responsabilização, por parte dos trabalhadores, para com o
projeto assistencial coletivamente (re)construído e com os sujeitos demandadores dos
serviços ganhe outra dimensão. É importante lembrar que experiências de
autogestão
não significam, ou não deveriam significar, formas de retorno à “liberdade” dos
tempos do artesanato. Pelo contrário, a
autogestão do trabalho coletivo significa a
157
possibilidade de superação de formas atrasadas como a do artesanato (produção de
base individual) e da heterogestão (gestão capitalista do trabalho coletivo). Não
significa o retorno a uma nostálgica “autonomia” do trabalhador individual, mas sim a
subordinação das práticas individuais ao plano coletivamente construído, seja em
escala local, seja em escala social mais ampla. Discordamos de análises que vêem no
artesanato a única forma de trabalho desalienante e por isso criticam a restrição à
autonomia do trabalhador individual como intrinsecamente “desumanizante”
(CAMPOS, 1997). Não queremos dizer aqui que seria interessante a abolição da
possibilidade de os trabalhadores possuírem no cotidiano do trabalho diferentes
alternativas de executarem suas práticas a depender dos desafios postos por casos
particulares; não estamos nos referindo à interdição dessa “micro-autonomia”, mesmo
porque não acreditamos que isso seja possível no caso do trabalho em saúde, devido à
descrita natureza peculiar de seu objeto. Queremos apenas ressaltar que a superação
do ofício, através da constituição do trabalho social, coletivizado, elevou a capacidade
de apreensão e intervenção do Homem sobre o mundo a um ponto jamais alcançado
pela humanidade. É bem verdade que as mesmas relações sociais que catalisaram essa
transformação tornam-se empecilhos para a constituição de outras formas de produzir,
mais humanizantes, como a
autogestão. Porém, pensamos que as próprias contradições
geradas sob essas relações de produção pedem resoluções pelos processos produtivos
concretos. No caso do trabalho em saúde, as formas hegemônicas de gestão parecem
estar demonstrando seus limites em unir os trabalhadores em torno de um projeto
assistencial que tenha impacto sobre a condição de saúde da população. Em vista
disso, outras formas de gestão esboçam-se como tentativas de resolver essas
contradições. As experiências que tentam trabalhar com elementos da
autogestão
parecem inscrever-se nesse quadro. Não devem ser as únicas, mas parecem ser aquelas
que trazem elementos novos para o campo do trabalho em saúde. Outras surgem, mas
em sua maioria tendem a ser reapresentações de velhas formas com novas roupagens,
como gestões pautadas na OCT que incorporam elementos da chamada “qualidade
total” ou de “novas” técnicas de gerenciamento de recursos humanos pautadas em
ferramentas como “motivação”, “comprometimento” etc.
158
Seguindo nossa análise acerca das novas apresentações tecnológicas de
organização das práticas em saúde pensamos haver uma dessas formas que devemos
analisar mais profundamente, qual seja, aquela referente às normatizações, rotinas e
protocolos “direcionadores” das práticas assistenciais. Como dissemos antes,
autores que tendem a ver com muitas restrições o uso cada vez maior desses tipos de
instrumentos, por lhes incumbirem várias conseqüências negativas para o processo
produtivo em saúde, entre elas: a diminuição da autonomia dos trabalhadores em
decidirem dentre seu arsenal de saberes, os mais eficientes para cada caso particular; a
burocratização conseqüente à padronização excessiva; a baixa responsabilização dos
trabalhadores conseqüente a essa “objetivação” excessiva do processo de trabalho.
Concordamos que, sob as relações sociais e as formas hegemônicas de organização do
trabalho sob o capitalismo, essas apresentações tecnológicas tendem a se apresentar
com essas características. Aliás, no trabalho subsumido ao capital elas são criadas para
isso, como vimos anteriormente. detalhamos anteriormente porque não
concordamos com a classificação dessas normatizações como “tecnologias duras” à
maneira da maquinaria, portanto, não iremos repeti-la em sua totalidade. Apenas
relembremos o centro de nossa discordância. Ao contrário da fábrica, no caso do
trabalho em saúde o trabalhador continua dominando o
saber acerca de seu trabalho e
quando as normatizações constituem-se apenas em sistematizações desse saber em um
instrumento externo ao trabalhador, como é o caso dos protocolos terapêuticos, por
exemplo, não tendem a se constituírem relações de
estranhamento (LUKÁCS, 1979;
MARX, 1985). Constitui-se uma relação de externalidade, é verdade, própria da
objetivação do trabalho
24
. Aquilo que existia subjetivamente, na mente do
trabalhador, agora se encontra objetivado em um protocolo. Porém, o trabalhador
reconhece-o como sistematização e produto do trabalho, não lhe aparecendo como
estranho. Não se estabelece uma relação de estranhamento entre o trabalhador e essa
24
Aqui se encontra um rompimento de Marx com Hegel. Enquanto o segundo entendia que o processo
de trabalho era inevitavelmente processo de
objetivação e estranhamento, o primeiro entendia
somente a
objetivação como intrínseca ao trabalho humano. Para Marx o processo de estranhamento
era resultado do trabalho sob determinadas relações sociais, nas quais o trabalhador não detinha o
saber e o controle sobre o processo e o produto do trabalho. Para aprofundamento ver MARX, K.
“Manuscritos econômico-filosóficos”, Op. cit.
159
tecnologia (a normatização), pois as “recomendações” de “como trabalhar”não são
contraditórias com as compreensões do trabalhador acerca de “como se deve
trabalhar”. Por isso, visualizamos menores resistências dos médicos em seguirem
rotinas clínicas, por exemplo, que se tornaram cada vez mais presentes na prática
clínica durante o século XX (DALMASO, 2000). Todavia, existem outras
possibilidades. Uma delas é a relação que se estabelece entre trabalhadores e as
normatizações, quando os primeiros detêm apenas uma parte do saber
consubstancializado nas segundas. É o caso da relação dos trabalhadores de nível mais
técnico técnicos de enfermagem, de laboratório, de odontologia, entre outros com
protocolos organizadores de determinadas práticas coletivas de assistência das quais
eles realizam uma parcela, geralmente mais manual. Nesses casos, de fato a relação de
estranhamento pode se apresentar em variados graus, pois a parte do saber que o
trabalhador não detém encontra-se na tecnologia. Todavia, mesmo nesse caso, não se
pode comparar o grau desse
estranhamento com aquele que apresenta o trabalhador
fabril em relação à maquinaria. Devemos também relembrar o papel importante que
pode cumprir a tecnologia como reagrupadora das práticas parcelares, dando-lhe maior
produtividade. Caso não exista o protocolo, por exemplo, esses mesmos trabalhadores
irão realizar as práticas tendo como referência outros elementos como as
determinações de trabalhadores com maior conteúdo de qualificação (os
auxiliares/técnicos de enfermagem tendem a ser sempre “auxiliares” de enfermeiros,
de médicos...), ou as ordens dos gerentes despóticos. Outro exemplo importante,
bastante consolidado, é o do desenvolvimento de prontuários únicos para os usuários
dos serviços de saúde. Através de um local único de registro das diversas práticas
parcelares, os trabalhadores podem visualizar a interdependência entre elas e até se
apropriar em diferentes graus do conhecimento integral do processo produtivo. Em
algumas experiências, sob influência das normatizações, avança-se para o registro de
coletivos, como prontuários familiares, por exemplo. Contraditoriamente, portanto,
parece que essas apresentações tecnológicas, ao mesmo tempo em que se tornam
“direcionadoras” dos trabalhadores “mais periféricos”, parecem criar um espaço maior
de autonomia para os mesmos em relação aos trabalhadores ditos “nucleares”, ao
160
mesmo tempo em que evidencia o caráter de interdependência entre as práticas
parcelares.
Ainda em relação às normatizações, existem outras contradições, com raízes
mais antigas do que as acima citadas. Refere-se àqueles casos de organização do
processo de trabalho em saúde através de experiências de integração sanitária. Se é
verdade que existem programas cujo principal objetivo é a racionalização de serviços
de saúde centrada na assistência médica individual, é verdade também que, cada vez
mais, assiste-se à consolidação de
Ações Programáticas em Saúde, cujo papel é o de
“articular instrumentos de trabalho dirigidos a indivíduos, entre eles a assistência
médica individual, a instrumentos diretamente dirigidos a coletivos, objetivando
potencializar a efetividade epidemiológica de todos os instrumentos.”(NEMES, 2000:
54). Portanto, quem volta a surgir como ciência privilegiada para estabelecer critérios
e métodos sobre os quais se deve organizar as práticas assistenciais em saúde, por mais
contraditório que possa parecer, é a
epidemiologia. A mesma que viu a clínica, como
método explicativo e de intervenção sobre a doença dos corpos individuais,
consolidar-se como método hegemônico e dominante das práticas em saúde,
subordinando outras concepções e métodos de intervenção sobre a saúde-doença,
inclusive a própria
epidemiologia. Pois bem, assistimos ao momento em que o
desenvolvimento tecnológico consubstancializado em modernos equipamentos e
técnicas de intervenção sobre o corpo - desenvolvimento que somente pôde ser
alcançado pela consolidação da clínica como representante tecnológica no plano do
trabalho das ciências positivas como a patologia começa a transformar a clínica.
Vários autores analisaram o quanto o método clássico da clínica, constituído pela
consulta como unidade produtiva, vem sendo reconfigurado pela influência de novos
recursos diagnósticos e terapêuticos que passam inclusive a abolir etapas desse
método, como alguns elementos da clássica anamnese, do clássico exame físico ou da
relação médico-paciente (DONNANGELO, 1975; SCHRAIBER, 1993; DALMASO,
2000). Pensamos que não seria de todo equivocado dizer que a clínica, como
expressão da forma pela qual se desenvolve esse movimento, ao impulsioná-lo
colaborou para lançar as bases de sua própria superação futura. E nos parece que, ao
161
ser abalada em sua hegemonia, ela deixa mostrar “fissuras” pelos quais começam a
“respirar” outras concepções/métodos
25
que estiveram por muito tempo subordinados e
mesmo por ela “sufocados”. E a
epidemiologia é a que se apresenta com maior
legitimidade; legitimidade científica conquistada, como bem lembram MENDES-
GONÇALVES (1994) e AYRES (2002), à custa do abandono no passado de seu maior
potencial emancipador, em meio ao processo de subordinação à racionalidade médica
hegemônica, pois
Se a Medicina Social se propunha como prática política, a Epidemiologia, resguardada no
panteão das ciências, desdobrar-se-á em aplicações que aspiram ao estatuto de técnicas
puramente. Proporá não modificações no social diretamente, mas nos efeitos do social sobre
os indivíduos. Em vez de propor a modificação das condições que resultam em situações de
habitação e nutrição insalubres, por exemplo, proporá que os ‘hospedeiros’ sejam protegidos
através do isolamento das fontes de infecção, da correção das condições infra-estruturais da
habitação, da educação para melhor nutrição possível e para a higiene, etc., etc., etc.
(MENDES-GONÇALVES, 1994: 80).
Mas, apesar desse movimento histórico de acomodação ao instituído, a
epidemiologia continua apresentando-se como a única ciência a conceber e a tentar
apreender o processo saúde-doença em sua dimensão coletiva, mesmo quando
utilizada para instrumentalizar práticas individualizantes. Logo, vemos como avanço o
fato de existirem experiências que tentam trabalhar as práticas de saúde dentro de
programas ou projetos assistenciais direcionados, se não ainda hegemonicamente visto
que a clínica continua dominante, pelo menos com influência crescente da
epidemiologia.
Bem, retornando à relação tecnologia/trabalhador, podemos ver que no caso
desses programas e normatizações organizados com forte influência da
epidemiologia
pode-se apresentar o fenômeno do estranhamento pelos trabalhadores cujas práticas
sejam aquelas historicamente embasadas na racionalidade médica. Aí, de fato, o que se
sobressai é o estabelecimento de uma nova relação dos trabalhadores com métodos
25
Podemos visualizar nesse momento de crise da clínica tradicional a expressão de diversas
concepções e práticas não hegemônicas no campo da saúde e que, até pouco tempo, não encontravam
tanto espaço. É o caso das diversas apresentações de medicinas e terapias ditas “alternativas” como
homeopatia, fitoterapia, acupuntura, entre outras. Várias dessas, inclusive, se encontram em
processo avançado de “reconhecimento” pela ciência médica hegemônica.
162
cuja ciência orientadora não está sob seu domínio. O que se apresenta nessa forma de
relação tensa, a nosso ver, é mais do que uma simples reconfiguração tecnológica do
trabalho, mas uma expressão, ao nível das práticas, de uma disputa histórica entre duas
diferentes concepções acerca da saúde e da doença na sociedade. Por um lado, a
clínica, corrente hegemônica que se consolidou como o método direcionador da
medicina a partir da sua adequação às relações sociais capitalistas, por apreender o
processo saúde-doença como de caráter individual e naturalizante. E, por outro lado, a
epidemiologia, resultado da adequação de concepções emancipadoras à racionalidade
médica, como método de apreensão da saúde e da doença como processo coletivo.
Apesar de a clínica ainda ser hegemônica, parecem surgir “tensões” a essa hegemonia,
advindas da incapacidade que tem apresentado o trabalho em saúde organizado sob
suas diretrizes de impactar de forma significativa as condições de saúde da população.
Pensamos que essa incapacidade é apreendida tanto pela população através das
constantes manifestações de insatisfação em relação aos sistemas de saúde, quanto
pelos trabalhadores que a expressam através do desânimo cotidiano em relação aos
resultados de seus trabalhos. Evidentemente não estamos abstraindo os demais fatores
conformadores dessa insatisfação como, por exemplo, precárias condições de trabalho
e salariais. Mas estamos ressaltando que um fator importante para a satisfação do
trabalhador com seu trabalho é a visualização do impacto social de suas práticas.
Evidentemente que isso somente pode estar posto para o conjunto dos trabalhadores
sob outras relações sociais, não alienantes, onde o trabalhador reconheça no trabalho
não “um meio de vida”, mas o “fim último da existência”, o elemento que o liga ao
gênero humano. Mas também pensamos que existem trabalhos que produzem graus
diversos de
alienação, ou seja, graus diversos de estranhamento e de insatisfação do
trabalhador em relação à sua atividade e aos produtos da mesma (MÉSZÁROS, 2006).
No caso do trabalho em saúde, onde esfera de produção e consumo são unidas,
ocorrem no mesmo espaço/tempo, a alienação tende a apresentar-se em menor grau
quando comparada à produção de “bens materiais”. Pensamos que um dos fatores
responsáveis por ampliar o nível de alienação dos trabalhadores da saúde em relação
ao seu trabalho seja a não visualização em dimensão mais ampla dos impactos do
163
mesmo. A sensação descrita no cotidiano dos serviços, principalmente aqueles
responsáveis por uma assistência mais extensiva
26
ao conjunto da população, é a de
eternamente “dar murro em ponta de faca”. A questão não está em perceber o impacto
de algumas práticas que colaboram para tratar uma doença de determinada pessoa, isso
é perceptível. A questão está no reconhecimento de que a restrição do trabalho em
saúde a essa dimensão, não tem promovido um processo de produção de autonomia
das pessoas em seus “modos de andar a vida”, além de não estar apresentando impacto
significativo sobre as condições gerais de saúde da população. Pensamos que são essas
contradições, postas pelas limitações da clínica em responder aos problemas concretos
colocados pela realidade do trabalho em saúde, que abrem espaços para a estruturação
de serviços assistenciais em saúde não direcionados hegemonicamente pela lógica da
“consultação”. se conformam como conceitos “consensuais” as idéias de que os
serviços devem passar a abordar as questões da saúde e da doença de forma a unir
práticas de caráter preventivo àquelas tradicionais curativas; a importância de atuação
sobre coletivos com semelhante leque de determinantes de saúde-doença (idosos,
adolescentes, trabalhadores de determinado setor, “grupos de risco” etc.); em casos
mais avançados, preconiza-se o uso de indicadores epidemiológicos como
“direcionadores” das práticas e dos recursos em saúde. Enfim, são exemplos de que o
trabalho em saúde tem criado outros mecanismos para apreensão de como o social lhe
adentra, para além da dimensão individualizante e naturalizante presente na
abordagem restrita aos aspectos anatomofisiológicos do corpo, abordagem que se
através da clínica. No entanto, esse processo não se apresenta de forma harmoniosa
visto que
As ações programáticas de saúde não tratam do mesmo problema que a Medicina, no plano do
conhecimento e das técnicas, mas como tratam do mesmo problema no plano da realidade
social, encontram-se contraditoriamente opostas à Medicina, sempre que esta última for
apresentada como portadora única da verdade e das únicas soluções adequadas para aquele
mesmo problema. Sua efetivação como proposta depende, portanto, antes de mais nada, da
relativização daquele monopólio médico, o que é antes uma questão político-ideológica do
que científica (MENDES-GONÇALVES; SCHRAIBER; NEMES, 1990: 46).
26
Como os serviços de Atenção Básica do SUS, por exemplo.
164
Sempre é importante lembrar que outros fatores “tensionadores” das
normatizações/protocolos que não devem ser confundidos com o
estranhamento tal
como o caracterizamos. Entre esses fatores estão as tentativas de manutenção de
interesses corporativos dos médicos que aparecem sob a bandeira de defesa da
autonomia profissional. Autonomia
27
de base liberal, expressão da forma artesanal de
produção da medicina, muito superada pela medicina tecnológica
(DONNANGELO, 1975; SCHRAIBER, 1993). Medicina tecnológica que vem sendo
subordinada progressivamente ao trabalho coletivizado organizado sob influência de
outras ciências e métodos não necessariamente circunscritos à racionalidade médica.
Por isso devemos ter extrema precaução e analisarmos profundamente discursos e
concepções exaltadoras da ampliação da
autonomia do trabalhador sob o trabalho em
saúde nos tempos atuais. A
autonomia, que já constituiu elemento superestrutural
necessário à qualificação do médico, nos dias atuais tende a se constituir como
expressão ideológica que tenta conter as mudanças necessárias, e em curso, no
trabalho em saúde. Isso porque significa a tentativa de manutenção não mais possível
de uma condição de trabalhador artesanal, controlador individual do processo
assistencial em saúde através da hegemonia da racionalidade médica e através do
controle hierárquico sobre os demais trabalhadores da saúde. Possibilidade que o
desenvolvimento material do trabalho vem descartando a cada dia. Essa condição
contribuía para a manutenção de posto de elevada autoridade e valorização social,
aspectos importantes para dar legitimidade ao papel que exercem os médicos como
intelectuais legitimadores das relações sociais hegemônicas através do processo de
normalização social. Por isso, concordamos com ROCHA (2000: 125), quando diz que
“a medicina não é vítima unilateral neste processo social de transformações, mas por
efeito dessa mesma determinação estrutural se constitui ela própria em sujeito que
contribui para a recriação sob nova forma das estruturas... que a presidem”.
27
Referimo-nos aqui sobremaneira ao corporativismo dos médicos, porém é sabido que os apegos ao
ideal de profissão e a concorrência entre os trabalhadores sob as relações capitalistas dão margem para
a consolidação das mais diversas apresentações dos corporativismos. No caso da enfermagem, por
exemplo, que historicamente luta para terem legitimadas práticas que lhes foram delegadas pelo
trabalho médico, os enfermeiros, através de seus conselhos, criam mecanismos vários a fim de impedir
que técnicos de enfermagem possam ter legitimadas como de seu campo de atuação práticas que, com
a coletivização do trabalho, lhes foram delegadas pelos enfermeiros.
165
Concordamos com CAMPOS (1992) que existem aspectos, no que o autor
denomina como “forma neoliberal de produção de serviços de saúde”, que colaboram
para a manutenção do ideal de autonomia, porém pensamos que a dimensão e
importância dos mesmos diminuem progressivamente visto que, também no trabalho
em saúde, os pequenos produtores isolados tendem a ser absorvidos pelos grandes
monopólios. Pensamos que as “formas atípicas” de relação dos trabalhadores com os
meios de trabalho cooperativas, credenciamento de consultórios particulares
tendem, cada vez mais, a se constituírem em formas “veladas” de relações de
assalariamento.
Ainda em relação à tecnologia, pensamos ser importante ressaltar sua gênese e
função inicial. Os instrumentos e técnicas surgem de um processo contínuo de
intervenção prática do homem sobre seu objeto de trabalho. À medida que o homem
atua, melhor apreende seu objeto, elabora novos conhecimentos acerca do trabalho
(ciências, saberes) e transforma os “modos de operar” através da incorporação desses
novos saberes na figura de suas expressões “operativas”, quais sejam, as diversas
apresentações tecnológicas, sejam técnicas, sejam instrumentos de trabalho. Logo, a
função geral da tecnologia é a de facilitar/aprimorar a intervenção do homem no
processo de produção social da existência. Esse não é um processo surgido com o
modo de produção capitalista, sempre é importante lembrar. Pelo contrário, é
conseqüência da única atividade ontologicamente humana, o trabalho (LUKÁCS,
1979). Não como negar o espetacular avanço ocorrido na área de ciências tanto as
ditas “naturais”como a biologia, química, física, quanto as sociais como a filosofia,
história, sociologia etc., e o impacto que as mesmas exercem sobre o trabalho em
saúde. Hoje, sua capacidade de conhecimento e intervenção sobre seu objeto, mesmo
que se tente restringi-lo ao corpo anatomofisiológico individual, alcança níveis jamais
imaginados pela humanidade. A questão que se coloca é o fato de as relações sociais
capitalistas forjarem uma relação de antagonismo entre o ser humano e o mundo por
ele construído como em nenhuma sociedade anterior. Os produtos do trabalho
humano, entre eles a tecnologia, apresentam-se para o trabalhador como encarnação do
capital, que os domina, e não como objetivação de seu trabalho. É necessário, portanto,
166
diferenciar relações sociais de produção dominantes e apresentações tecnológicas
desenvolvidas pelo homem sob essas relações. Diferenciar não significa,
evidentemente, negar as relações de determinação recíproca entre essas duas
categorias que, como dissemos anteriormente, no plano social (não de uma forma
particular de trabalho) consubstancializa-se na relação entre grau de desenvolvimento
das
forças produtivas e relações sociais de produção. As segundas podem, a depender
do período histórico, exercer o papel de estímulo ou contensor sobre as primeiras.
Portanto, ao contrário de qualquer apologia a uma inexistente “neutralidade” da
ciência ou da tecnologia, queremos ressaltar o caráter histórico e determinado dessas
práticas (LOWY, 1987; KATZ, 1996). Para aqueles que pensam que, com o
desenvolvimento tecnológico, a tendência é a ciência apresentar-se cada vez como
mais “pura”, “liberta” de determinantes sociais e históricos, enfim, apresentar-se como
a encarnação da “verdade absoluta”, fizemos questão de citar um artigo publicado em
um dos principais veículos da imprensa escrita do país acerca da genética, uma ciência
que, como sabemos, representa o que há de mais moderno no conhecimento humano.
Um estudo conduzido desde 1991 por pesquisadores das holandesas Universidade de
Amsterdã e Universidade Vrije e da norte-americana Universidade de Chicago vem
observando a incidência de solidão em pares de gêmeos holandeses a fim de investigar a
possibilidade de predisposição genética ao sentimento. O trabalho define a solidão como "o
centro de uma constelação de estados socioemocionais, que incluem auto-estima, humor,
ansiedade, raiva, otimismo, medo ou negatividade, timidez, habilidades sociais, suporte social,
insatisfação e sociabilidade". De acordo com os dados, a hereditariedade do sentimento é de
48%.
Episódios de exclusão social, ostracismo, rejeição, separação e divórcio estão entre os
potenciais acentuadores da solidão, dizem os pesquisadores. O grupo estudado foi formado
por 8.387 gêmeos, sendo 3.280 homens e 5.107 mulheres. No que diz respeito às diferenças
entre os sexos, as mulheres se revelaram mais suscetíveis a manifestar a herança genética,
sentindo-se solitárias com mais freqüência do que os homens. A pesquisa aponta ainda que a
manifestação dessa predisposição genética a se sentir pode ser atenuada ao longo da vida
por influência do ambiente e que as contribuições do meio tendem a apresentar impacto de
maior dimensão sobre os adultos do que sobre as crianças.Por outro lado, a característica
hereditária pode ser acentuada na idade adulta quando o indivíduo tende a organizar sua vida
mais de acordo com o seu genótipo e menos de acordo com as demandas do meio, diz o
estudo” (Folha de São Paulo, 08/12/05).
Esse exemplo demonstra como a ciência “neutra” contribui para naturalizar
através da “biologização” do social, aspectos determinados pelas relações sociais.
167
Nesse momento histórico, sob um modo de produção que, através da defesa da
propriedade privada, consolidou o indivíduo como expressão ideal da humanidade,
assiste-se cada vez mais ao fenômeno que SARTRE (2002) denominou como
serialidade, ou seja, a incapacidade da união de indivíduos conformar uma
comunidade. O sentimento cada vez mais presente, principalmente nos grandes centros
urbanos, de, ao mesmo tempo, “estar entre milhões de pessoas” e “estar só”, tende a
ser expressão desse fenômeno de “não pertencimento” que acomete os indivíduos. Sob
determinadas relações sociais individualizantes, onde o trabalho social, que deveria ser
fator de reconhecimento dos sujeitos em seu gênero, torna-se fator de alienação, perde-
se a dimensão do vínculo com a espécie. Pois bem, como é possível advogar que esse
sentimento que é, em última instância, uma
relação social (eu somente posso sentir-
me
em relação a alguém ou a algum grupo) pode ser transmitido geneticamente?
Não deve, no entanto, causar espanto ao leitor esse tipo “operação”, visto que, como
vimos em capítulo anterior, esse é um dos papéis que cabe à racionalidade médica e ao
trabalho em saúde sob as relações sociais capitalistas: além da reprodução da força de
trabalho em seu aspecto infraestrutural (manter os corpos íntegros para o trabalho), a
reprodução no plano superestrutural, ou seja, o processo de
normalização social
através do qual o social é subsumido ao biológico, procedendo-se à naturalização do
mesmo. Essa sua função é que faz da medicina, não uma disciplina das ciências
naturais como ela se reivindica, mas uma disciplina do social (LUZ, 1982; 2004a).
Portanto, entender as ciências e a tecnologia como “boas” ou “ruins”, “corretas”
ou “incorretas”, não nos ajuda em apreendê-las como o que de fato são: necessárias
para a realização do trabalho sob certas relações sociais. A questão central relaciona-se
ao fato de que esse processo não se apresenta de maneira estática ou harmônica, pelo
contrário, é movimento contínuo. Novas apresentações tecnológicas, novas “formas de
trabalhar” surgem constantemente, em resposta às necessidades postas para o trabalho,
e podem entrar em contradição com relações estabelecidas. Não somente no plano
macro, mas também no plano das micro-realidades dos trabalhos concretos. Podemos
ver atualmente como desdobramentos desse desenvolvimento tecnológico progressivo
começam a conformar contradições com relações hegemônicas estabelecidas no
168
campo do trabalho em saúde. Um aspecto que chama a atenção, por exemplo, é o
potencial de estimulador da autonomia dos sujeitos demandadores das práticas em
saúde, que a tecnologia pode favorecer. Quando aspectos do
saber acerca da saúde e
da doença, que antes restringiam-se ao trabalhador, passam a ser objetivados, seja em
equipamentos, seja em sistematizações de saber, cresce a possibilidade de sujeitos não
trabalhadores da saúde apropriarem-se desses elementos, ainda que parcial e
fragmentadamente (SCHRAIBER, 1993). Veja-se, por exemplo, o caso dos exames
auto-explicativos, cujos laudos estão cada vez mais compreensíveis para os leigos. Ou
equipamentos vários, como os glicosímetros, que contribuem para que os próprios
diabéticos façam autonomamente o monitoramento de seu nível glicêmico, podendo
eles próprios reajustarem doses de fármacos, ou seja, decidirem condutas terapêuticas,
a depender dos dados analisados. Também é o caso do desenvolvimento da indústria
farmacêutica, visto que as apresentações dos fármacos encontram-se cada vez mais
padronizadas e com informações técnicas mais acessíveis aos usuários. Isso sem
falarmos na disponibilidade de informações acerca das doenças, seus diagnósticos e
terapêuticas, presentes em veículos de informação como a internet, a imprensa etc.
Tudo isso, pensamos, pode contribuir para o estabelecimento de uma relação menos
desigual e, consequentemente, menos autoritária entre trabalhadores da saúde e
sujeitos demandadores dessas práticas. Uma conseqüência direta do processo de
desenvolvimento da medicina sob a égide da racionalidade científica foi o progressivo
distanciamento dos saberes e práticas acerca do corpo da maioria da população. Se, até
o período feudal, fenômenos como nascimento, morte, doença, aconteciam no âmbito
comunitário, com a institucionalização da medicina essas práticas começam a ficar
restritas ao saber médico e cria-se um distanciamento cada vez maior entre as pessoas
e o saber acerca de seu corpo. Esse saber passa a ser propriedade dos trabalhadores da
saúde, principalmente o médico, criando uma relação de dependência e submissão do
restante da população em relação a esses sujeitos que, assim, consolidaram posição de
grande autoridade na sociedade. Essa condição, como vimos, alçou os médicos à
condição de intelectuais orgânicos da classe dominante, assim como seus
antepassados, os antigos
físicos no período feudal. Estabelece-se uma relação entre
169
médico e os setores populares como constituintes de diferentes classes sociais.
Pensamos que, em um outro nível do espiral, a questão da apropriação pelas pessoas
do saber acerca de seus corpos volta a apresentar-se, em graus limitados, como
possibilidade, ainda que distante. Exemplo disso é que, com o acesso maior a parcelas
do
saber acerca do corpo, aumenta a consciência da população sobre as possibilidades
de erros por trabalhadores da saúde levando a uma maior fiscalização e controle
público dessas práticas.
Outro elemento importante, conseqüência do movimento anterior, é que vemos
surgir no atual período histórico em relação ao trabalho em saúde a constante
referência à necessidade de desenvolvimento de novas formas de “vínculos” entre
trabalhadores e usuários dos sistemas de saúde. São muitas, e de concepções diversas,
as elaborações acerca dessa necessidade, mas, em geral, ressalta-se o fato de que a
“tecnologização” cada vez maior do trabalho em saúde estaria sendo responsável por
uma tendência a certa “impessoalidade” na relação entre trabalhadores e usuários.
Expressões disso são as, cada vez mais freqüentes, experiências e elaborações acerca
de novas tecnologias de relação entre trabalhadores e usuários (AYRES, 2004;
CECÌLIO & PUCCINI, 2004; CAMPOS, 2005). Entre a população também é
freqüente a referência a um tempo quando a relação entre trabalhadores da saúde,
principalmente médicos, e usuários dos serviços era mais “humana”, “conversava-se
mais” durante as consultas, etc. Pensamos que é preciso analisar essa questão em duas
dimensões. A primeira refere-se ao processo, em parte já descrito por nós, por meio do
qual as inovações tecnológicas, de diagnóstico e terapêutica, transformam a consulta
clínica tradicional. Um exame como a mamografia, por exemplo, consegue demonstrar
a existência de tumores de tamanho tão reduzido, a um grau que as mais habilidosas
mãos nunca serão capazes de diagnosticar. Logo, o exame manual da mama passa,
com o tempo a ser substituído pelo exame radiológico. Uma etapa da tradicional
consulta clínica é abolida, ou melhor, substituída por outra, sob controle de outros
trabalhadores parcelares. Assim também acontece com os recursos tecnológicos de
caráter “discursivo” ou “relacional”, como a clássica anamnese, a entrevista clínica.
Essa pode ser descrita como a mediação através da qual o trabalhador apreende seu
170
objeto – o corpo síntese de múltiplas determinações – e o adapta ao seu arsenal
técnico, basicamente de caráter biológico. A consulta clínica, com a anamnese,
constitui-se, portanto, no mecanismo através do qual o trabalhador “traduz” o corpo
social para a sua racionalidade anatomofisiológica (SCHRAIBER, 1993). Como a
doença, cada vez mais, é apreendida ao nível do órgão doente, toda aquela
aproximação necessária do corpo integral mediada pela coleta de dados e
representações do “paciente” torna-se supérflua. Os métodos guiam, cada vez mais
rápido, para o lócus exato de localização da lesão, ao nível do órgão e, das células. Os
“pacientes” também são “educados” por essas novas relações e procuram os
serviços de saúde com as “queixas direcionadas” pelas novas apresentações
tecnológicas.
Outra dimensão, a partir da qual se pode analisar esse processo de
“desumanização” do trabalho em saúde refere-se ao fato de que as pessoas procuram
os serviços de saúde como forma de atenuarem formas diversas de sofrimento. A
racionalidade médica através da clínica, e também dos demais recursos tecnológicos,
busca “traduzir” esse sofrimento em lesões orgânicas ao nível dos órgãos. O problema
é que embora essa racionalidade tente insistentemente reduzir o objeto do trabalho em
saúde ao corpo anatomofisiológico, as outras ordens de determinação insistem em se
mostrar. A moderna vida urbana, por exemplo, coloca para as pessoas variadas
necessidades, desde a procura da comentada “sensação de pertencimento” até a
busca de cura de lesões diretamente orgânicas. Ao se ouvir relatos de equipes de
algum serviço de saúde não faltarão descrições de casos de várias pessoas que “não
tem problema algum, mas estão todos os dias na unidade de saúde”. A lógica, muitas
vezes, com a qual o trabalho em saúde recebe essas pessoas é a do fornecimento de
produtos, ou seja, saúde significa acesso ao consumo individual de procedimentos-
saúde. Muitas vezes o que se diagnostica como “irracionalidade” dos processos
produtivos é, em realidade, o ápice dessa concepção. É o caso daqueles idosos que
adentram um serviço hospitalar com a finalidade de realizar um exame laboratorial ou
uma consulta clínica e acabam vinculados ao serviço pelo resto da vida. Na lógica da
produção de procedimentos, uma consulta gera vários outros procedimentos
171
interligados, muitas vezes sem um planejamento previamente definido. Qualquer nova
queixa demonstrada para o trabalhador parcelar significa a necessidade de
encaminhamento para outro especialista e assim sucessivamente (CAMPOS, 1997).
Como deve ser de conhecimento do leitor, o corpo orgânico é de uma riqueza e
complexidade insuperáveis. Exemplo disso é que qualquer queixa, sensação,
sofrimento, sem exceção, pode ser traduzida pela racionalidade médica na forma de
alguma alteração anatomofisiológica. Quando não encontra em seu arsenal uma
doença que possa representar alguma queixa nova, a medicina imediatamente “cria”
novos adendos à sua nosologia. Tudo na tentativa incessante de captar o mundo e
subsumi-lo, restringindo-o ao biológico. Mais uma vez faz-se necessário relembrar ao
leitor de que não negamos a fantástica contribuição das ciências biológicas para o
desenvolvimento de melhores técnicas para agir sobre o corpo. Estamos apenas
enfatizando que essa contribuição não consegue e nunca conseguirá abranger a
totalidade do objeto do trabalho em saúde. Outras ciências, do campo das ciências
(humanas, sociais, econômicas etc.) têm contribuições importantes para aprimorar a
compreensão acerca do sofrimento humano, a fim de melhor aliviá-lo. O problema é
que a maneira como a racionalidade médica historicamente hegemonizou esse espaço
excluiu a possibilidade dessas outras contribuições. Essa exclusão, sempre é
importante lembrar, é expressão do condicionamento do trabalho em saúde pelas
relações sociais capitalistas, naturalizantes do social. Pois bem, a questão é que o real,
agora, mais do que nunca, insiste em adentrar os serviços de saúde e, como
conseqüência, o processo de trabalho é tensionado a buscar soluções tecnológicas para
as necessidades colocadas. Hoje, busca-se, cada vez mais, subsídios em outras
concepções teóricas que possam orientar novas formas de apreender o sofrimento, que
são expressas tanto em elaborações teóricas quanto em experiências práticas. Essas
formas referem-se a tecnologias como a do
acolhimento, ou a diretrizes como a do
cuidado e da humanização (FRANCO; BUENO; MERHY, 1999; LUZ, 2004b;
AYRES, 2004; CECÍLIO; PUCINI, 2004; CAMPOS, 2005). Como dissemos, são
muito diversas as várias concepções a respeito de cada conceito desses acima citados.
Algumas têm caráter mais “racionalizador” do processo de trabalho (qualificação
172
infraestrutural ou técnica); outras possuem um caráter mais “sensibilizador” dos
trabalhadores no seu apreender o sofrimento (qualificação mais superestrutural). Não
detalharemos cada uma dessas propostas e elaborações. Queremos apenas destacar
que, aqui nessas apresentações, também se constitui uma arena de disputa entre
diferentes e, por vezes, antagônicas concepções. Por um lado, abre-se uma
possibilidade, com a deterioração progressiva do vínculo pautado no
autoritarismo/normativismo da racionalidade médica, de se construir novas relações
entre consumidores e produtores das práticas em saúde. Relações baseadas não mais
na supremacia do proprietário individual do
saber acerca do corpo, o que o torna,
simbolicamente, proprietário do corpo do
outro. Relações também não mais baseadas
na dominação de alguns sujeitos sobre outros, expressando relações de representantes
de classes antagônicas. Mas relações pautadas, na representação pelos trabalhadores
dos seus objetos como também sujeitos investidos socialmente na busca de certo grau
de autonomia nos seus “modos de andar a vida”. Representação que os levaria a
acolher o portador do sofrimento, não com atitude piedosa que, em última instância,
expressa o autoritarismo normatizador em relação ao submisso (o “paciente”), mas
com atitude solidária que, potencialmente, significa a compreensão do sofrimento
individual como expressão dos limites da relação da espécie com o mundo,
representada nos seus “modos
sociais de andar vida”.
Por outro lado, porém, esses conceitos
acolhimento, humanização podem
ser apreendidos e utilizados sob outra lógica, mais relacionada às necessidades postas
pelas relações sociais para o trabalho em saúde nos tempos atuais. Como vimos, as
tarefas postas para o trabalho em saúde sob as relações sociais capitalistas envolve a
reprodução da força de trabalho em sua dimensão infraestrutural (restaurar corpos para
o trabalho) e superestrutural (consolidação de padrões sociais de normalidade). Como
também pudemos constatar no capítulo primeiro, uma das características fundamentais
do capitalismo, em relação à força de trabalho, é a constituição de uma
superpopulação relativa crescente, como conseqüência da alteração da composição
orgânica do capital, ou seja, em decorrência do avanço tecnológico e da substituição
de trabalhadores por máquinas. Essa
superpopulação relativa cumpre um papel
173
importante para o capital, pois se constitui em elemento influenciador do preço da
força de trabalho, através do aumento da oferta da mesma disponível no mercado,
promovendo a concorrência entre os trabalhadores e baixando o nível dos salários.
Pois bem, uma conseqüência secundária
28
desse processo, para o capital, refere-se ao
fato de que se consolida uma massa crescente de pessoas permanentemente excluídas
do processo produtivo (desemprego estrutural), que passam a viver em condições cada
vez mais desumanas e inspiradoras de tensões com a ordem social. Isso, segundo
ALVES (2001), passa a colocar para o Estado capitalista, através da educação, de
serviços de saúde, entre outros, uma tarefa de fundamental importância para a
manutenção das relações sociais capitalistas, em sua fase imperialista: A necessidade
de manter em “níveis aceitáveis” as tensões sociais e políticas advindas desse processo
de miserabilização crescente desses setores da população. Essa digressão foi
necessária para demonstrar ao leitor que várias propostas de “humanização” do
atendimento à população por parte do estado, inclusive através dos serviços de saúde,
podem, não explicitamente, ter inspiração nessa necessidade. O autor ressalta a
constituição, nesse momento histórico, de cada vez maior número de políticas de
caráter comunitário através dos serviços estatais, seja através da extensão das
atividades sob responsabilidade da escola pública, seja através de práticas através das
quais o estado adentra os interstícios dos bairros populares, como o Programa Saúde
de Família e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Nesses casos, poderá se
reapresentar, sob nova forma, a relação constituída por aspectos como autoritarismo,
submissão e controle. Não é objetivo aqui desvalorizar essas experiências, nosso
objetivo sempre é o de lembrar o caráter contraditório da ação estatal e do trabalho em
saúde sob as relações sociais hegemônicas. Por isso, dissemos que aqui também se
apresenta uma disputa entre duas concepções diferentes acerca das novas formas de
relações que podem estabelecer trabalhadores e usuários dos sistemas de saúde.
Estabelecer uma relação solidária em relação ao sofrimento, ao mesmo tempo
problematizadora e estimuladora da autonomia dos sujeitos e grupos na construção
28
É importante lembrar que a principal conseqüência para o capital dessa alteração de sua composição
orgânica refere-se à tendência à diminuição progressiva da taxa de lucro.
174
permanente de novos “modos sociais de andar a vida” ou reproduzir relações históricas
subordinadoras dos sujeitos e de suas iniciativas em mudar suas condições de saúde e
existência. Eis as possibilidades postas para a superação da crise de “desumanização”
do setor saúde.
Como podemos ver, ao utilizarmos a classificação que MERHY (1997) propõe
para as tecnologias em saúde, não obstante nossas ressalvas feitas em relação à
classificação de normatizações como exemplos de tecnologia “dura”, constata-se a
evidência de transformações, em curso ou potenciais, em todas as formas tecnológicas
elencadas pelo autor.
No caso das tecnologias duras, as grandes transformações referem-se à cada vez
maior constituição de equipamentos sob a forma de máquinas que, ao apropriarem-se
de determinadas etapas do processo produtivo, liberam o trabalhador para o papel de
monitoramento e para assumir outras funções assistenciais. Ressalta-se, entretanto, a
ausência de evidências de embriões de sistemas de máquinas no trabalho em saúde.
Faz-se importante ainda, ressaltar que os equipamentos sob a forma de máquinas
constituem-se em minoria no trabalho em saúde, sendo a maioria ainda constituída por
instrumentos e ferramentas de trabalho também cada vez mais sofisticados e
influenciadores das transformações ocorridas nos “modos de operar” o trabalho.
No caso das tecnologias “leve-duras”, entre as quais se incluem as disciplinas
direcionadoras do processo de trabalho, como a clínica, a epidemiologia, a psicanálise
etc., também podemos evidenciar importantes transformações em curso. Entre elas
destacam-se dois movimentos interligados. Por um lado, a transformação pela qual
passa a clínica, sendo superada em sua forma clássica dando lugar a uma clínica
permeada pela fragmentação/especialização do trabalho e pela incorporação
tecnológica crescente. Por outro lado, com a diminuição da hegemonia da clínica em
direcionar o processo produtivo em sua totalidade surgem “poros” por meio dos quais
outras tecnologias buscam consolidar-se. É o caso, a nosso ver, do ressurgimento pelo
qual passa a
epidemiologia como ciência/tecnologia orientadora de formas de se
organizar o trabalho em saúde. Um exemplo é a consolidação de crescentes
experiências de normatizações e rotinas de trabalho, como as
Ações Programáticas em
175
Saúde, por meio das quais a epidemiologia procura contribuir para tornar a assistência
à saúde um processo mais comprometido com a alteração de condições de saúde em
dimensão coletiva, além da individual.
Por último, podemos evidenciar as transformações em curso naquele campo que
o autor caracteriza como de tecnologias “leves”. Aqui, surgem como necessidades
postas para o trabalho em saúde a criação, ou recriação, de novas formas de relação
entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde. As recentes experiências e
elaborações, e também a ausência delas, a respeito dessas tecnologias demonstram que
também aqui existe uma disputa pelos rumos que essas novas tecnologias podem
constituir-se. Também estão postos movimentos de contestação às formas tradicionais
de gestão dos processos produtivos em saúde, abrindo-se espaço para a expressão de
elaborações e experiências de caráter autogestionário.
Portanto, a tecnologia em saúde, como é própria da sua historicidade, encontra-
se em constante transformação, algumas vezes acompanhando tendências gerais do
trabalho sob o modo capitalista de produção de maneira evidente e, outras vezes,
expressando processos peculiares de adaptação a essas tendências nem sempre
evidentes. De qualquer maneira, esse processo sempre se apresenta de maneira
contraditória, “tensa”, expressando as múltiplas possibilidades do processo de trabalho
em resolver as questões práticas colocadas pelas necessidades sociais. Pretendemos
nessa análise evidenciar como alguns autores apreendem, cada um à sua forma,
elementos desse processo e defendemos a idéia segundo a qual eles fazem parte de um
mesmo movimento, qual seja, o constante “adaptar” do trabalho em saúde as questões
colocadas no plano social mais amplo. Apreender esse movimento como histórico
significa compreender esse momento do trabalho em saúde como um
estar sendo, que
pode denunciar um
dever ser, mas jamais um será. Como compreendemos o processo
de transformação do processo de trabalho como expressão da
práxis, a unidade
dialética teoria-prática, entendemos essa transformação como expressão da
necessidade do homem em resolver problemas práticos colocados em seu viver. Essas
possibilidades de resolução tendem a se apresentar, nos diferentes períodos históricos,
como uma gama de “possíveis caminhos a seguir”. Se a opção, muitas vezes, é
176
definida a priori a partir do instituído, outras vezes experimenta-se uma série de
opções até evidenciar-se a que melhor responde às necessidades práticas do trabalho.
Pode-se mesmo dizer que um grande componente do mecanismo tentativa-erro-
tentativa-acerto nos “novos caminhos” cotidianamente trilhados pelo trabalho humano.
Portanto, para nós, todas essas “possibilidades” ou “embriões” de mudanças no
trabalho em saúde que analisamos nessas páginas devem ser tomados nessa
perspectiva: de tentativas do processo de trabalho de resolver questões postas pelo
próprio trabalho em saúde em sua articulação com as relações sociais. Algumas
poderão se mostrar “eficientes” e serão incorporadas ao processo de trabalho, outras
não terão tanto sucesso e sucumbirão. Outras, embora respondam às necessidades
práticas colocadas pelo mundo do trabalho, entrarão em choque com relações sociais
em um plano mais amplo, impossibilitando sua implementação e universalização. Esse
é um típico exemplo de momentos na história em que as relações sociais de produção
instituídas podem conter o desenvolvimento das novas forças produtivas do trabalho
em ascensão. A máquina de tecer fitas, por exemplo, o chamado moinho de fitas, que
foi a precursora das máquinas de fiar e de tecer e, portanto, da Revolução Industrial do
século XVIII, foi inventada aproximadamente em 1580 na Alemanha, porém, as
resistências dos tecelões e das expressões políticas herdadas do antigo regime
barraram seu uso até 1765 (MARX, 2001). Quem pode dizer se esse não é o mesmo
caso das experiências de
autogestão na saúde, que questionam toda a forma
burocrática e autoritária com que o capitalismo gerencia sua produção, seja no setor
público ou privado? Ou o caso das organizações do processo de trabalho direcionadas
pela
epidemiologia, que tencionam a lógica do capital de produção de procedimentos
para o mercado anárquico? Muito possivelmente essas experiências, ou sucumbirão,
ou terão alguns de seus elementos incorporados, enquanto outros serão abortados do
processo produtivo. Por isso, não se deve ignorar a hipótese (a mais provável, em
nossa opinião) de constituírem-se processos de trabalho híbridos, que apresentam
aspectos do
novo entre o velho ainda predominante. A resolução das contradições,
sempre é importante lembrar, pode se dar através de uma síntese que nega alguns
aspectos e incorpora outros à nova forma. Algumas contradições persistirão de
177
maneira “tensa” e somente serão resolvidas mais adiante quando se apresentar, de
maneira inadiável, a necessidade de outro salto qualitativo. Essa digressão dialética
faz-se necessária a fim de, por um lado, relativizar o papel que podem cumprir os
atores concretos nesses processos de mudanças; e, por outro lado, enfatizar o quanto
esse papel é importante. Expliquemos-nos melhor. É preciso relativizar porque
mudanças que, sabemos, somente podem universalizar-se sob outras relações sociais
entre os homens. Mudanças que dependem de toda uma reconfiguração da forma de
sociabilidade estabelecida. Por outro lado, experimentar é fundamental porque aponta
perspectivas, pari “embriões” cujo desenvolvimento futuro poderá consolidar e
universalizar. Caso o moinho de fitas não tivesse sido objeto de tentativas de
implementação e aperfeiçoamentos a partir de 1580 provavelmente não tivesse seu uso
consolidado quase dois séculos depois. Importa, portanto, perceber o
novo enquanto
está embrionário a fim de tentar apreender o seu
devir. Esses dois movimentos
(relativizar e estimular o papel do atores concretos) são importantes para, por um lado,
não incorrer em supervalorização de fatores “subjetivos”, “focais” etc., e, por outro
lado, para não se prender a uma leitura “mecanicista” acerca do real, ignorando seu
movimento e suas contradições.
Assim como a tecnologia, a constituição do trabalhador coletivo em saúde
também acompanha esse movimento contraditório. Por um lado, aprofundando cada
vez mais a especialização e a fragmentação do trabalho, a divisão entre trabalho
manual e intelectual e, por outro, ensejando contradições advindas desse movimento,
que precisam ser resolvidas pelo processo produtivo. As experiências citadas de
“embriões” de “desespecialização”, por exemplo, podem ser tentativas de resolução
dessas contradições, cuja “eficiência” a história julgará. A relação entre tecnologia e
trabalhador coletivo, ou entre meios e agentes de trabalho, também se apresenta
permeada por inúmeras contradições. A tecnologia, por exemplo, ao mesmo tempo em
que contribui para a fragmentação e especialização do trabalho, pode representar meio
de unidade do processo de trabalho, recompositora das múltiplas parcelas, e
propiciadora do vínculo mediado entre agente e objeto.
178
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A qualificação do trabalho em saúde é, portanto, processo histórico de
adequação entre esses constituintes do trabalho trabalhador, meios e objeto e a
correspondência dessa conformação com as finalidades socialmente instituídas para o
trabalho em saúde. Estar qualificado para o trabalho em saúde, significa, em última
instância, corresponder às expectativas postas para o processo produtivo pelas relações
sociais de produção, sejam expectativas no plano da técnica, sejam no plano da
subjetividade. É sempre importante lembrar que o processo de qualificação para o
trabalho, ao contrário do que costumamos pensar, não se restringe aos aparelhos
formais de treinamento, como escolas técnicas e universidades. A dimensão
superestrutural da qualificação, que se refere à internalização de normas, valores e
relações sociais que, por sua vez, expressar-se-ão em padrões de comportamento e
disciplinamento em relação ao mundo da produção, é adquirida a partir dos mais
diversos mecanismos presentes na sociedade. Desde relações familiares até a escola,
passando pelas formas institucionais e não institucionais de convívio social, todas
essas esferas tendem a reproduzir, com suas diversas particularidades, os padrões
sociais de comportamento necessários a uma adaptação ao mundo do trabalho.
Inclusive os próprios serviços de saúde são parte desse processo, pois, ao reproduzirem
os padrões de normalidade aceitos socialmente e as representações sociais acerca do
corpo, do normal e do patológico, ajudam a conformar padrões de comportamento que
influenciarão a adaptação dos sujeitos ao mundo do trabalho, aí incluído o trabalho em
saúde.
A dimensão
infraestrutural da qualificação para o trabalho, por sua vez, que se
refere ao treinamento técnico (manual e intelectual) para o exercício de determinadas
atividades, tende a realizar-se em dois espaços: Nos aparelhos formadores, como
escolas técnicas e universidades, e no próprio processo produtivo. Os primeiros
tendem a centrar-se na dimensão teórica, no ensino dos saberes e técnicas necessários
à realização das práticas. Os segundos correspondem ao lugar da
práxis, onde agente
do trabalho e processo prático de produção encontram-se mediados pela teoria
179
adquirida. Aqui acontecerá o processo prático de qualificação, onde o trabalhador
deparar-se-á com problemas práticos do mundo da produção e terá de enfrentá-los,
seja recorrendo a saberes adquiridos externamente, seja recorrendo e (re)inventando
conhecimentos práticos próprios desse espaço.
No caso do trabalho em saúde, temos visto que o processo de qualificação
técnica ao realizar o movimento, típico do trabalho sob o capitalismo, de subordinação
do trabalho aos preceitos das ciências modernas e de definição de espaços
institucionais para difusão desses conhecimentos vinculou a qualificação técnica às
escolas formadoras (universitárias e técnicas). Esse foi um processo fundamental para
dar legitimidade social a essas práticas ao mesmo tempo em que deslegitimava as
demais práticas que não se subordinaram à racionalidade médica positivista, como
aquelas oriundas de saberes populares ou exercidas por “práticos” advindos de
períodos históricos anteriores. Porém, uma particularidade do trabalho em saúde, em
relação a outras apresentações de trabalho “mais intelectual”, refere-se à estreita
vinculação das instituições formadoras com os espaços produtivos. SCHRAIBER
(1989) ao analisar a educação médica, e pensamos que podemos extrapolar para os
demais trabalhos em saúde, ressalta a importância que teve a consolidação do hospital
nesse processo. A partir disso, o processo de qualificação técnica do trabalhador em
saúde passou a constituir-se do que a autora denominou como
momento-escola e
momento-hospital, referindo-se à formação mais teórica, nas escolas de saúde, e aos
momentos mais práticos nos serviços de saúde. Não obstante as modificações a que
esse processo tem sido submetido, pensamos que, em essência, a qualificação dos
trabalhadores da saúde continua seguindo esse método geral. As particularidades
referem-se principalmente aos diferentes conteúdos que cabem a um ou outro
trabalhador parcelar, particularidades que se expressam também nos tempos requeridos
e na divisão prioritária entre um ou outro dos
momentos-formação. Os trabalhadores
mais intelectuais (de cursos superiores), por exemplo, são submetidos a um processo
de formação teórica mais longo, enquanto que os de nível técnico tem sua formação
direcionada para a educação profissional, ou seja, maior dedicação aos treinamentos
em serviços.
180
O movimento de qualificação técnica tenderá a acompanhar, com maior ou
menor correspondência temporal, as transformações ocorridas ao nível do processo de
trabalho em saúde. Portanto, todos os aspectos por nós analisados ao longo dessa
dissertação constituição do trabalho coletivizado e parcelarizado; especialização do
trabalhador; impacto das diversas apresentações tecnológicas, entre outros assim
como suas contradições, irão impactar os processos educativos em saúde. Geralmente,
as transformações ocorridas no processo de trabalho, e suas contradições, não
apresentam reflexo imediato nos conteúdos e métodos utilizados nos aparelhos
formadores. Costuma haver uma distância entre esses dois mundos (acadêmico e do
trabalho), porém, quando as transformações consolidam-se e universalizam-se, a
academia é obrigada a acompanhá-las. Inclusive, pensamos que grande parte das novas
elaborações acadêmicas acerca das mudanças do trabalho em saúde reflete uma
apreensão dessas transformações em curso, ainda que em germe.
Um exemplo atual dessa interseção entre academia e trabalho parece ser a atual
“exaltação” da “pedagogia das competências” nas atuais propostas de reformas
curriculares, principalmente de cursos técnicos, mas também de cursos superiores.
Como vimos, a idéia de
competências surge na década de 70, muito vinculada à
aquisição de habilidades técnicas parcelares, e, com o advento de formas produtivas
mediadas pela microeletrônica, passa a ganhar uma dimensão de habilidades
cognitivas de articulação de tecnologias e conhecimentos teóricos e práticos, além de
enfatizar características mais comportamentais/disciplinares de adesão aos projetos
instituídos no trabalho.
Não é nossa intenção, como dissemos antes, adentrar o mundo das polêmicas
acerca das inúmeras propostas que cotidianamente apresentam-se em relação aos
currículos da área de saúde. Não obstante, pensamos ser oportuno tecer alguns
comentários acerca dessa proposta específica, visto que tem se tornado quase uma
“unanimidade” quando o assunto é educação e trabalho.
Um primeiro aspecto que queremos ressaltar é a pluralidade de concepções
acerca do que seria a chamada qualificação baseada em competências. Apresentam-se,
desde concepções mais voltadas ao treinamento de habilidades técnicas parcelares, que
181
são em menor número e parecem estar perdendo espaço, até concepções que
praticamente colocam a competência como sinônimo moderno de qualificação para o
trabalho, com toda a complexidade que a totalidade concernente a essa categoria
constitui. Uma primeira ressalva que pensamos ser importante fazer é que, assim como
KUENZER (2002b), compreendemos a categoria competência como advinda e
inerente ao processo de trabalho. Independente da idéia, dita taylorista-fordista, de
competência como treinamento de habilidades parcelares, ou de competência baseada
na articulação de tecnologias e saberes da “especialização flexível”, tratam-se
efetivamente de técnicas e “modos de operar” adquiridos nos processos de trabalho
concretos. Referem-se ao exercício prático no trabalho. As conseqüências de trazer
essa categoria do trabalho para a educação, no caso da área de saúde, tem sido a
formulação de diretrizes, como essa, que defendem que
A orientação dos currículos por competência, na área da saúde, implica a inserção dos
estudantes, desde o início do curso, em cenários da prática profissional com a realização de
atividades educacionais que promovam o desenvolvimento dos desempenhos (capacidades em
ação), segundo contexto e critérios. Nesse sentido, cabe ressaltar como aspectos de progressão
do estudante o desenvolvimento crescente de autonomia e domínio em relação às áreas de
competência. Essa inserção pressupõe uma estreita parceria entre a academia e os serviços de
saúde, uma vez que é pela reflexão e teorização a partir de situações da prática que se
estabelece o processo de ensino-aprendizagem (LIMA, 2005: 376).
Esse aspecto, no caso do trabalho em saúde, pode ser uma alternativa de
método para a organização dos treinamentos nos
momentos-serviços da qualificação,
porém, o processo de qualificação, principalmente do trabalho em saúde, não é
constituído somente por essa dimensão da qualificação. Exige-se, para o exercício das
práticas em saúde, a apreensão dos conhecimentos científicos produzidos pela
humanidade ao longo de sua história e sistematizados no corpo das ciências que
ajudam a compreender e intervir sobre o objeto do trabalho em saúde. Conhecimento
acerca do corpo, dos padrões de normalização, simultaneamente biológica e social,
definições acerca do patológico e suas nuances etc. Se a categoria competência refere-
se à articulação de saberes e tecnologias, é preciso, antes, dominar esses saberes e
tecnologias a fim de articulá-los. Se no caso da produção industrial de “bens materiais”
182
a tecnologia está consubstancializada em máquinas, no caso da produção da assistência
à saúde a tecnologia, como vimos, encontra-se hegemonicamente consubstancializada
em saberes científicos, que precisam ser apreendidos, sendo que o espaço prioritário
para isso não é o do trabalho, mas o da escola.
Entretanto, é preciso buscar as raízes que fazem com que a categoria
competência ganhe tantos adeptos no meio acadêmico da saúde. E aí, pensamos que a
parcelarização do trabalho, cada vez em estado mais avançado no trabalho em saúde,
contribuindo para a distinção entre trabalhadores intelectuais e manuais, pode ser
identificada como o substrato material da pedagogia das competências. Os
trabalhadores ditos de “nível técnico” tendem a restringir suas práticas a tarefas
manuais, supervisionadas pelos de “nível superior”. Se a lógica é formar trabalhadores
manuais parcelares, com saberes muito restritos, subordinados a trabalhadores “mais
nucleares”, um método que se proponha a centrar na formação prática em habilidades
parcelares pareceria representar uma alternativa adequada
29
. Porém, vimos como a
questão da interconexão das práticas parcelares é hoje, mais do que nunca, um
problema posto para o trabalho coletivo em saúde. Trabalho que não possui a
maquinaria como elemento unificador e tem de recorrer à riqueza e complexidade do
trabalhador coletivo e seus saberes como catalisadores dessa unificação. Pois bem essa
unificação somente pode dar-se caso os trabalhadores possuam pontos de interface,
sejam campos de domínio comum, sejam saberes/tecnologias-mestras direcionadoras
do processo de trabalho. Por exemplo, o exercício da gestão coletiva, como vimos,
pode ser um instrumento que ajude os trabalhadores parcelares a conhecerem, mesmo
de forma abstrata, o processo de trabalho em sua totalidade, facilitando, assim, a
integração entre as práticas parcelares. Ou as normatizações com base em um saber
comum, a
epidemiologia, por exemplo, pode constituir-se nesse fio condutor. Mas para
que isso seja possível é necessário que cada trabalhador possua um arsenal de saberes
que extrapole seu campo de práticas parcelares. Articular saberes envolve o domínio
29
Um demonstrativo disso é que o espaço onde a pedagogia das competências mais tem se
consolidado é o da educação profissional. Veja-se, por exemplo, o caso das propostas para o PROFAE
projeto de profissionalização dos trabalhadores da área de enfermagem, expostos na revista
Formação, do Ministério da Saúde, mormente os números 2 e 5 (ver referências bibliográficas).
183
dos mesmos, ainda que em níveis diferenciados. Isso exigiria, por exemplo, que os
trabalhadores de nível técnico possuíssem uma formação que privilegiasse o domínio
de alguns campos de saberes centrais para a articulação do trabalhador coletivo, para
além das habilidades manuais parcelares. Noções de epidemiologia, de gestão no
trabalho, de determinações sociais sobre os conceitos de corpo, normal, patológico.
Isso não são habilidades a serem adquiridas como competências no processo de
trabalho, mas conhecimentos que somente podem ser adquiridos a partir do
aprofundamento no mundo das ciências. E o espaço para essa abordagem não é aquele
do mundo do trabalho, do treinamento em serviços de saúde, é o espaço da escola, da
academia.
Mas não são somente as profissões de “nível técnico” que sofrem o assédio da
pedagogia das competências. O processo de parcelarização também atinge o trabalho
mais intelectual, como vimos, sendo a especialização médica um exemplo
emblemático. Pois bem, começam a surgir experiências de reforma curricular para
essas profissões, também baseadas, em diferentes graus, na teoria das competências.
No caso do curso de medicina isso se expressa, ainda que não explicitamente, na
proposta do PBL (Problem based learning) que foi implantada em algumas faculdades
do país e que tem como diretriz a utilização de “problemas práticos” como pontos de
partida para a reflexão teórica dos alunos e para a articulação das diversas disciplinas
(BERBEL, 1998). A idéia geral dessas propostas é direcionar os estudos para os
problemas mais práticos do trabalho, hipertrofiando a parte do curso relativa a essas
atividades em detrimento de carga “mais teórica”, como forma de estimular mais os
alunos a se interessarem pelos conteúdos. Como os médicos deixam progressivamente
de se constituírem como profissionais centralizadores do processo de trabalho em
saúde em sua totalidade, restam às propostas curriculares reduzirem a carga de
formação voltada para as ciências básicas, aquelas que propiciam uma apreensão
menos prática e mais científica (mais ampla) acerca do corpo. Em compensação, cabe
direcionar o processo de formação para atividades mais práticas, resolutivas de
problemas concretos, porque se entende que
184
Na abordagem dialógica de competência, a construção de significado pressupõe a
transferência da aprendizagem baseada nos conteúdos para uma aprendizagem baseada na
integração teoria-prática. É na reflexão e na teorização a partir das ações da prática
profissional, preferencialmente realizadas em situações reais do trabalho, que estudantes e
docentes constroem e desenvolvem capacidades (LIMA, 2005: 374).
Não estamos aqui questionando a importância de se aprender a resolver os
problemas práticos no processo de trabalho. Em última instância, é esse o fim último
do trabalho: resolver os problemas práticos postos para a vida dos homens. Trata-se
aqui de demonstrar como para resolver os problemas está sendo necessário um aporte
progressivamente menor de saberes científicos adquiridos, enquanto aumenta a
necessidade de treinamento prático em áreas parcelares. Decresce a necessidade do
saber acerca do trabalho enquanto predomina a formação voltada para o fazer. Não
configura novidade a medicina ser apreendida como atividade essencialmente prática,
terapêutica. Como vimos, o caráter relativamente contemplativo dos antigos
físicos em
relação à doença foi completamente abolido do trabalho médico moderno, guiado pela
racionalidade positivista. Esse foi um processo pelo qual passaram as ciências de uma
maneira geral, ou seja, as relações sociais capitalistas colocam como critério de
legitimidade para o
saber, sua interferência sobre as demandas práticas colocadas pela
produção. Foi preciso que as ciências perdessem seu caráter “contemplativo” e
adquirissem uma dimensão “produtiva” para o capital. As ciências vinculadas à saúde
e à doença também percorreram esse caminho, liberando as forças produtivas para
darem saltos fantásticos na capacidade de apreensão da organicidade humana. Logo, as
práticas em saúde a partir do século XX passaram a ser guiadas pelos preceitos
científicos acerca do corpo anatomofisiológico, fazendo com que os saberes outros
(como, por exemplo, o conteúdo “mais humanístico” presente na medicina até o
renascimento) fossem progressivamente secundarizados nesse processo. A
parcelarização, por sua vez, não aboliu a indissociabilidade entre
saber e fazer nas
práticas em saúde, embora a tenha restringido a campos parcelares. Um odontólogo,
embora domine um campo parcelar do trabalho em saúde, domina o conhecimento
científico acerca das patologias bucais como pressuposto para exercício das práticas
tecnológicas que opera cotidianamente. Se no trabalho industrial a ciência está na
185
maquinaria, no trabalho em saúde ela continua no trabalhador, individual (parcial) e
coletivo (integral). Os exaltadores da pedagogia das competências não negam essa
articulação teoria-prática, pelo contrário, enfatizam-na. A questão é que, a nosso ver,
incorrem em um equívoco ao confundirem processo de transmissão com processo de
construção do conhecimento. Um autor, por nós muito utilizado nessa dissertação, nos
ajudará uma última vez.
É mister, sem dúvida distinguir, formalmente, o método de exposição do método de pesquisa.
A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes
formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que entre elas. depois de
concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se
consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a
impressão de uma construção
a priori (MARX, 2001: 28).
Essa citação do autor é fundamental para diferenciar construção e transmissão
do conhecimento. No primeiro caso, da investigação do real que leva à construção do
conhecimento, parte-se da matéria, ou seja, da ação prática sobre o mundo,
dissecando-o em seus pormenores e descobrindo seus processos e interconexões. na
exposição, ou transmissão do processo conhecido, parte-se do pólo contrário. É a partir
das categorias teóricas elaboradas acerca do real que se lhe explica seu processo de
desenvolvimento. Portanto, é da teoria que se parte no processo de educação escolar.
Portando-a é que se torna possível intervir sobre o mundo de forma a transformá-lo e,
concomitantemente construir novos saberes, constituindo o movimento ininterrupto da
práxis. O processo de formação técnica para o trabalho é, fundamentalmente, processo
de transmissão de conhecimento já produzido. Quando a autora nos diz que “Na
abordagem dialógica de competências, a construção de significados pressupõe a
transferência da aprendizagem baseada nos
conteúdos para uma aprendizagem baseada
ma
interação teoria-prática.”(LIMA, 2005: 374. Grifos nossos) esquece-se que “os
conteúdos” se referem a sistematizações anteriores da relação teoria-prática. E que
para participar da interação “teoria-prática” é preciso dominar a teoria, e não se
domina a teoria no espaço dessa interação, pois esse espaço é o trabalho. O local para
se acessar a teoria é, principalmente, o espaço da escola. A cada movimento que os
aparelhos formadores fazem no sentido de abrirem mão desse papel, sob o pretexto de
186
“melhor integrarem-se ao mundo do trabalho”, a nosso ver, mais contribuem para o
afastamento da possibilidade de acesso aos conhecimentos científicos pelo conjunto
dos trabalhadores. Se no caso da produção dominada pela maquinaria isso não afeta o
processo de trabalho, receamos que no caso do trabalho em saúde não se possa dizer o
mesmo.
Bem, mas esse processo, sempre bom lembrar, somente encontra eco porque
corresponde a necessidades postas pelas relações sociais de produção hegemônicas.
Vimos como é tendência inerente ao modo de produção capitalista, o processo
progressivo de expropriação do
saber acerca do trabalho do conjunto dos
trabalhadores a fim de estabelecer pleno controle sobre o processo produtivo. No
entanto, também vimos como, no caso do trabalho em saúde, esse processo cria
contradições que ameaçam a efetividade do processo de “produzir assistência à saúde”.
As experiências que se propõem a solucionar algumas dessas contradições apresentam-
se, tanto do ponto de vista do capital, quanto do ponto de vista de projetos mais
comprometidos com ideais emancipadores. Pensamos, portanto, que os conhecimentos
construídos no trabalho, a partir da relação teoria-prática, sua maioria na forma de
saberes tácitos, devem ser objeto dos diferentes processos particulares de trabalho; não
sendo função dos centros formadores o de propiciá-lo, embora, no caso da qualificação
técnica do trabalho em saúde, esse processo inicie-se nos espaços de interação
escola-serviço. Logo, a nosso ver, deve caber aos aparelhos formadores centrarem sua
ação naquilo que o trabalhador dificilmente encontrará nos processos de trabalho: a
socialização da ciência produzida historicamente pela humanidade em cada campo
particular do trabalho.
Tentou-se nessa dissertação demonstrar a existência de um movimento. Essa
nem sempre é tarefa simples, pelo contrário, geralmente a dificuldade é de dupla
origem: primeiro, conseguir apreender o movimento e, depois, conseguir demonstrá-
lo. Demonstrá-lo significa dissecá-lo em seus múltiplos aspectos buscando a inter-
relação entre eles, elementos nem sempre de fácil acesso. Como dissemos no início,
187
somos adeptos de um método, método que, ao mesmo tempo em que tenta se afirmar,
vive em constante disputa com outros métodos advindos de diferentes concepções
acerca da realidade. Fazer essa disputa, entretanto, entre quais são as teorias mais
fidedignas em interpretar como a realidade existe, conserva-se, transforma-se, etc., não
é motivo de angústia. Esse processo, ao contrário, torna-se fonte permanente de prazer
e realização, sentimentos esses advindos da possibilidade que se vislumbra, ao
proceder tais incursões, de poder contribuir, na dimensão daquela gota de oceano, para
a compreensão e intervenção sobre nosso objeto. Mormente quando o objeto que se
apresenta para nós é algo de uma complexidade e importância tão grande para a
humanidade quanto a que possui o trabalho em saúde. Portanto, o processo de disputa
com outros métodos acerca da melhor interpretação e, consequentemente, da melhor
intervenção sobre o real é inerente ao processo do conhecimento e nos causa
gratificação. Não obstante, a disputa mais desgastante é a que se tem de fazer com
outras compreensões típicas do período histórico que vivemos que negam a existência
de métodos capazes de apreender o real em sua complexidade. Coerentemente com um
período em que se afirma o “fim da história”, a superação de teorias que se proponham
apreendedoras de totalidades, o surgimento de tantos “pós”, surgem diversas
concepções que negam a existência de determinações maiores dos processos sociais. A
realidade passa a ser, para essas teorias, por demais fragmentada, não somente
constituída por múltiplas determinações como destituída de hierarquia entre elas, sem
nexos apreensíveis e sem leis a serem compreendidas. O real passa a tornar-se algo
incognoscível, incapaz de apreensão, sem leis em seu desenvolvimento. As produções
teóricas passam a centrar-se em experiências “do cotidiano”, categoria muito
valorizada nesses tempos. Mas não como expressão
singular, que após o
conhecimento das leis do
universal poderão propiciar a apreensão da complexidade
inerente ao seu caráter
particular. O cotidiano, o singular, passa a representar o único
ponto passível de apreensão para essas concepções, quase como se criassem uma
interdição no processo de passagem do
concreto sensorial para o concreto pensado.
Por isso, optamos por uma investigação que não tivesse como objeto, novos “relatos
188
do cotidiano”, mas que se aproveitasse de relatos realizados como forma de tentar
apreender suas determinações, suas leis.
Tentamos mostrar como qualificar-se para o trabalho significa tornar-se apto
para execução de práticas determinadas por necessidades históricas dos homens, sob
certos “modos de existir”, certos modos de organizar a vida social. “Modos” que ao
serem constituídos constituem os homens que, por sua vez, os (re)constituem.
Tentamos mostrar também como esse processo não se apresenta linear e
harmonicamente, mas, pelo contrário, apresenta-se em movimento permanentemente
contraditório. Criando “tensões”, ao mesmo tempo em que reproduz o instituído.
A qualificação do trabalho em saúde apresenta-se, assim, como esse
estar-
sendo
“tenso”, contraditório, porém seguindo algumas tendências que nos ajudam a
apreender aspectos de seu
devir. Cabe optar quais tendências são importantes de serem
impulsionadas, mesmo que sua efetivação não esteja posta nos padrões de
temporalidade que nosso apego ao ser individual nos limita a vislumbrar, em razão da
incompreensão do gênero humano como histórico. Em meio a essa limitação, as
palavras de BRECHT (2000: 294) podem proporcionar um alento:
As novas eras não começam de uma vez
Meu avô já vivia no novo tempo
Meu neto viverá talvez ainda no velho.
A nova carne é comida com os velhos garfos.
189
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