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as artes possuem perceptos e afectos, as ciências possuem funções e prospectos, enquanto a
filosofia possui conceitos. Sendo que o conceito é a criação filosófica por excelência, e é nele
que a filosofia encontra aquilo que lhe é próprio e singular
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.
Para desdobrar a questão que versa sobre a natureza da filosofia, os autores dividem o
livro em duas partes: na primeira, eles procuram definir o que é um conceito e quais são os
componentes que lhe pertencem. Resumindo bastante, podemos dizer que um conceito é
formado por diversas componentes, que se situam num plano de imanência e este plano é
povoado por personagens conceituais. Na segunda parte, eles avaliam as relações entre a
filosofia, as ciências e as artes. Pois, embora sendo áreas que trabalham sobre conteúdos e
expressões diferenciadas, elas comutam uma pertença ao pensamento. Assim, elas apresentam
e expressam departamentos distintos do pensamento, linhas melódicas heterogêneas que soam
o concerto do pensamento. E se elas são imanentes ao pensamento, são também imanentes à
Vida, visto que o próprio pensamento é imanente à Vida
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.
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Acerca da singularidade e das relações entre estes domínios heterogêneos, há duas passagens esclarecedoras,
que mesmo sendo de um outro texto, nos permitem compreender esta ideia de forma precisa. Nelas, Deleuze diz:
“O que me interessa são as relações entre as artes, a ciência e a filosofia. Não há nenhum privilégio de uma
destas disciplinas sobre a outra. Cada uma delas é criadora. O verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o
verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis [perceptos] e o objeto da filosofia, criar conceitos. (...) é
preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e
que não cessam de interferir entre si. A filosofia não tem aí nenhum pseudoprimado de reflexão, e por
conseguinte nenhuma inferioridade de criação. Criar conceitos não é menos difícil que criar novas combinações
visuais, sonoras, ou criar funções científicas.” DELEUZE, G. “Os intercessores”. IN: Conversações, p. 154 e
156.
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Sobre o vitalismo, no pensamento de Deleuze, é preciso dizer que o tema pode ser encontrado em diversas
passagens. A filosofia do devir do desejo, conforme é apresentada em O Anti-Édipo e em Mil Platôs, não apenas
uma vez, coloca o desejo e as máquinas desejantes a serviço da Vida. Na filosofia da diferença e da repetição, o
vitalismo assumiu, do mesmo modo, um papel relevante. Nos escritos sobre Bergson, Deleuze produz uma
filosofia da diferença, acentuando três conceitos do pensamento bergsoniano: duração, memória e impulso vital.
Todavia, o bergsonismo não esgota a força do vitalismo na filosofia da diferença. Em Diferença e Repetição
também encontramos fortes referências ao tema da vida: “A tarefa da vida é fazer com que coexistam todas as
repetições num espaço em que se distribui a diferença”. IN: DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 17. De
modo que esta referência ao vitalismo será uma perspectiva constante para o pensamento deleuzeano. Num de
seus últimos trabalhos, “A imanência: uma Vida...”, de 1995, Deleuze reforça a vinculação ao vitalismo presente
em seu pensamento, quando propõe a vida como plano de imanência
e vice-versa: “diremos da pura imanência
que ela é UMA VIDA, e nada mais. Ela não é imanência à vida, mas a imanência não está em nada e é em si
mesma uma vida. Uma vida é a imanência de uma imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitudes
completas”. In: DELEUZE, G. “A imanência: uma Vida...”. Texto disponível no domínio:
http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br. Todavia, o tema do vitalismo não é uma exclusividade do
pensamento deleuzeano. De um modo mais abrangente, é a filosofia francesa do século XX que está constituída
ao redor do vitalismo. Se quisermos uma referência ainda mais antiga sobre o assunto, não podemos deixar de
mencionar a obra de Nietzsche. Na Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche, ao abordar o excesso de
história que enfraquece a vida, é enfático em dizer que a história e o pensamento devem servir à vida, dar mais
vida a vida. De modo que, segundo Nietzsche, um laço é estabelecido entre a vida e o pensamento, entre a vida e
a história, no intuito de assegurar a grande saúde. Voltando à França do século XX, uma menção indispensável
acerca do vitalismo, com certeza, é a obra do epistemólogo da biologia Georges Canguilhem. Publicado pela
primeira vez em 1943, seu trabalho O normal e o patológico foi original ao postular uma diferença de natureza