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FLAVIANA FONTOURA ESPINOSA
DE FICÇÃO E DE HERÓIS: ROMANCES POLÍTICOS DE ERICO
VERISSIMO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
UFSM
SANTA MARIA, RS, BRASIL
2004
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DE FICÇÃO E DE HERÓIS:
ROMANCES POLÍTICOS DE ERICO VERISSIMO
por
Flaviana Fontoura Espinosa
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, área de concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM – RS), como requisito parcial
para obtenção do grau de
Mestre em Letras
Santa Maria – RS – Brasil
2004
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
A Comissão examinadora abaixo assinada aprova a Dissertação de Mestrado
em Letras
DE FICÇÃO E DE HERÓIS: ROMANCES POLÍTICOS DE
ERICO VERISSIMO
elaborada por
Flaviana Fontoura Espinosa
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras
Comissão Examinadora
______________________________________
Prof. Dr. Pedro Brum Santos
(Orientador)
________________________________________
Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves (UCS)
(1ºArgüidor)
________________________________________
Prof. Dr. Lawrence Flores Pereira (UFSM)
(2ºArgüidor)
Santa Maria, 24 de Setembro de 2004.
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iii
O homem é um ser que a tudo se habitua e esta é, a meu ver,
a melhor das suas qualidades.
(Dostoievski, F. In: Memórias da Casa dos Mortos)
iv
Ao Luís Heitor, pela beleza espe(ta)cular dos seus olhos,
e à Ladi, pela onipresença desde a origem.
v
AGRADECIMENTOS
Ao prof. Dr. Pedro Brum Santos, por ter assumido o risco de uma
orientação inesperada e também pela fleuma, competência e bom senso com
que conduziu esses dois anos de trabalho;
À profa. Dr. Amanda Eloína Scherer, pela minha admiração confessa à
sua dedicação a tudo que implica o ser professor;
À profa. Dr. Sílvia Carneiro Lobato Paraense, responsável primeira pelo
meu interesse em aprofundar o estudo da literatura;
Aos funcionários da Biblioteca Central, da Biblioteca Setorial do Centro
de Educação, da Biblioteca Setorial do CCSH e da Biblioteca da Faculdade
Palotina (FAPAS), pela diligência constante;
Aos colegas Thiago Cassol Pinto, Tatiana Zismann, Simone Oliveira,
Nídia Früh, Márcia Frohelich e, em especial, aos colegas Gilson Vedoin, pela
parceria intelectual e mundana,e Raquel Trentin, pela construção de uma
sólida e tranqüila amizade.
À CAPES, pelo apoio financeiro;
Transpondo o ambiente acadêmico, devo agradecer ainda:
Ao meu pai, José Cândido Silveira Espinosa, por estar na origem de
tudo; às minhas irmãs, Laís e Márcia Fontoura Espinosa, pelo respeito na
convivência.
A José Marcântonio Nunes, exemplo de tenacidade.
vi
À Elvira Kersting Machado, pelo incentivo, compreensão e presença
salvadora muitas vezes;
Às amigas de sempre e de todas as horas, Rozângela Dias Lampert,
Karla Fernandes Spall e Patrícia Silveira Teixeira. Orgulho-me muito da nossa
longa amizade.
vii
RESUMO
DE FICÇÃO E DE HERÓIS:
ROMANCES POLÍTICOS DE ERICO VERISSIMO
Autora: Flaviana Fontoura Espinosa
Orientador: Prof. Dr. Pedro Brum Santos
O legado literário de Erico Verissimo apresenta um momento de
privilégio às questões sociopolíticas contemporâneas. Os romances O Senhor
Embaixador (1965) e O Prisioneiro (1967), objetos de estudo do presente
trabalho, fazem parte desse momento. Para se entender as implicações
ideológicas e de representação da realidade, recortou-se duas personagens
exemplares que empreendem o que G. Lukács definiu como a busca dos
valores autênticos num mundo degradado. Tratam-se de Leonardo Gris e do
Tenente, respectivamente personagens das obras O Senhor Embaixador e O
Prisioneiro. A análise busca compreender em que medida a dimensão humana
é particularmente subjugada por forças tão poderosas quanto obscuras em
certos períodos históricos. A matéria narrativa dos romances possibilita, desde
a forma como está elaborada ficcionalmente, a sua relação com a história
recente da América Latina, caso de O Senhor Embaixador, e com a história
política brasileira, caso de O Prisioneiro. Assim, a opção por um fazer
literário de estatuto realista e a configuração de personagens representativas
do cerceamento da liberdade individual e social, de par com uma temática que
problematiza as questões sociopolíticas contemporâneas, tornam esses
romances de Erico Verissimo um meio de conhecimento e de penetração
viii
crítica, para usar os termos de Benedito Nunes, tal como se procura
demonstrar nesta dissertação.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Autora: Flaviana Fontoura Espinosa
Orientador: Prof. Dr. Pedro Brum Santos
Título: De Ficção e de Heróis: romances políticos de Erico Verissimo
Dissertação de Mestrado em Estudos Literários
Santa Maria, março de 2004.
ix
ABSTRACT
OF FICTION AND HEROES:
POLITICAL ROMANCES OF ERICO VERISSIMO
Author: Flaviana Fontoura Espinosa
Adviser: Pedro Brum Santos, Phd
The literary legacy of Erico Verissimo presents a moment of privilege
for the contemporary socio-political issues. The romances O Senhor
Embaixador (1965) and O Prisioneiro (1967), subjects of this study, are part
of this moment. In order to understand the implications of the ideologies and
the representation of reality in his work, two exemplary characters were
chosen: Leonardo Gris and Tenente, from O Senhor Embaixador and O
Prisioneiro, respectively. These characters undertake what G. Lukacs defined
as the search for the authentic values in a degraded world. This analysis seeks
to comprehend to what extent is the human dimension particularly subjugated
by forces that are as powerful as obscure in certain historical periods. The
narrative material of romances, since the fictional form which it is elaborated,
makes possible to relate them to the recent Latin America history, in the case
of O Senhor Embaixador, and to the Brazilian political history, in the case of
O Prisioneiro. Thus, the option for doing a literature of a realist statute and
the configuration of characters who are representatives of the individual and
social freedom, make the romances of Erico Verissimo a means of knowledge
and critical penetration, using the terms coined by Benedito Nunes, such as it
is sought to demonstrate in this dissertation.
x
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
POST-GRADUATION PROGRAM IN LINGUISTICS
Author: Flaviana Fontoura Espinosa
Adviser: Pedro Brum Santos, Phd
Title: Of Fiction and Heroes: political romances of Erico Verissimo
M.A. Dissertation in Literary Studies
Santa Maria, March 2004.
xi
SUMÁRIO
I - CONSIDERAÇÕES INICIAIS .........................................................01
II - O LUGAR E OS CAMINHOS DE UMA FICÇÃO.........................06
2.1 - O autor e seu legado.....................................................................06
2.2 - Os romances e suas especificidades.............................................10
III - A PERSONAGEM E SEU ESTATUTO FICCIONAL..................18
3.1 - A personagem: uma compreensão...............................................18
3.2 - Leonardo Gris: uma consciência que se estende.........................23
3.3 - O Tenente: um prisioneiro de si mesmo......................................31
IV - A FICÇÃO DE ERICO VERISSIMO E SEU CONTEÚDO
POLÍTICO.................................................................................................43
4.1 - A grande fábula latino-americana..............................................43
4.2 - A história da dominação recorrente...........................................56
4.3 - Dimensionando os sentidos: uma possibilidade dedutiva..........64
V - HERÓIS E FICÇÃO: QUANDO A CRÍTICA SOCIAL SE
RECONHECE NA LITERATURA.........................................................70
5.1 – A literatura como opção humanizadora.....................................70
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................76
BIBLIOGRAFIA........................................................................................80
1
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O mundo é frágil
E cheio de frêmitos
Como um aquário...
(...)
(Mário Quintana, Momento)
Escolheu-se, como objeto de pesquisa, dois romances do autor
gaúcho Erico Verissimo que talvez estejam entre os menos estudados.
Trata-se de O Senhor Embaixador e O Prisioneiro, publicados
respectivamente em 1965 e 1967.
Inicialmente aproximam-se os dois romances, na tentativa de
estabelecer o seu lugar no conjunto da obra do autor, bem como de
entender as especificidades de suas construções. Em seguida, recorta-se
uma personagem de cada um dos romances, com a finalidade de fazer-se
um estudo longitudinal da configuração de cada uma e de suas
implicações no espaço ficcional. A terceira parte privilegia o conteúdo
político das obras. Procura-se desvendar os recursos narrativos
encontrados na função de entrechos com conotação inequivocamente
sociopolítica. Finalmente, a quarta parte trata das posições críticas que
assumem as duas narrativas. Esse seria, grosso modo, o esquema de
organização do presente trabalho.
O realismo, enquanto estilo de época, traz uma nova ordem de
pensamento e, conseqüentemente, de representação. Embora esteja datado
historicamente e, portanto, circunscrito a um determinado período da
história da literatura, a concepção estética herdada do realismo repercute
2
muito além dessas fronteiras temporais. É o que se pode observar no fazer
literário de Erico Verissimo, especialmente no tocante aos romances em
questão.
Observa-se, nos dois romances do autor gaúcho, a preocupação em
estabelecer uma verdade baseada na observação e na descrição material
das suas condicionantes. O narrador em terceira pessoa é mantido à
distância, tem preservado seu ânimo inalterável e os dramas passam a ser
encenados, ou experienciados, pelas próprias personagens que os
dimensionam humana e universalmente. Esses, entre outros aspectos que
são analisados subseqüentemente, autorizam a leitura dos romances como
de estatuto realista, em função de que trazem consigo as prerrogativas de
composição do realismo enquanto tal.
Dentre as categorias estruturais da narrativa, opta-se pela da
personagem, pois o interesse reside no fato de que ela, a partir da sua
configuração, torna-se capaz de protagonizar dramas de sentido humano.
São esses “seres fictícios” que estão à frente dos fatos e sofrem os seus
efeitos. Acabam, as personagens, por representar os indivíduos e a sua
problemática que, no caso de O Senhor Embaixador e O Prisioneiro,
precipuamente é de ordem sociopolítica. Não se pode desconsiderar que
os romances trazem também conflitos existenciais, do campo da
subjetividade, mas, sem dúvida, é pelo viés sociopolítico que essas obras
atingem o seu melhor resultado.
3
Acompanhar a trajetória de Leonardo Gris, personagem de O
Senhor Embaixador, e do Tenente, personagem de O Prisioneiro, é um
dos propósitos do presente trabalho. Para tanto, lança-se mão de conceitos
e proposições que ajudam a elucidar as implicações da concepção dessas
personagens, enquanto “criaturas de papel” e enquanto possuidoras de
uma verdade que transcende o âmbito restrito do contexto ficcional.
Leonardo Gris surge como aquele que se coloca num dos extremos
da dicotomia política direita e esquerda, por exemplo. Professor
universitário, exilado, conforma o intelectual avesso a sistemas de
governo autoritários e discricionários. Essa nuance da personagem torna
possível sua associação com os indivíduos letrados que não deixaram de
levantar a bandeira da liberdade e da igualdade. É um caminho de mão
dupla, pois, na mesma medida que suas ações e pensamentos acham-se
condicionados pela necessidade da narrativa, sua problemática ecoa junto
àqueles que sofreram as limitações de um governo ditatorial. A sua
representação toma, assim, dimensões humanas.
Com o Tenente, ressalvadas as devidas diferenças, o processo é
semelhante. Essa personagem sofre com problemas de várias naturezas:
individual, social, familiar, moral, etc. Sua existência e seus dramas se
materializam verbalmente no espaço ficcional. Entretanto, configura-se
como uma oportunidade privilegiada para se pensar sobre o humano.
Acompanhar sua trajetória, portanto, dá indicações seguras de quão
vulnerável é o homem moderno e quão exposto ele se acha aos sistemas
de dominação, institucionalizados ou não.
4
Além das personagens, é na temática que se torna possível perceber
o conteúdo de crítica que os romances sustentam. Interessante, nesse
aspecto, atentar para o ano de publicação de cada um deles: 1965 – O
Senhor Embaixador e 1967 – O Prisioneiro. Anos complicados tanto
para a história política brasileira, quanto latino-americana. Com enredos
deslocados espacialmente, o que sugere uma possível estratégia para
burlar a censura, Erico Verissimo aborda questões sensíveis à história
recente do continente americano. O equilíbrio com que faz o amálgama
dos elementos factuais (história) com os da imagística (ficção) deixa
entrever uma literatura interessada, sim, nas questões contemporâneas,
mas também preocupada em preservar uma concepção estética que revela
consciência de seu lugar junto à historiografia da literatura brasileira, para
muito além de um imediatismo panfletário.
A idéia de “labirinto”, proposta pelo sociólogo Octavio Ianni
(1993), para tentar desvendar os meandros sociais e políticos da América
Latina, tem em O Senhor Embaixador a sua conformação ficcional. A
república hipotética de El Sacramento, da qual Leonardo Gris fora
exilado, com sua instabilidade política e seus políticos de segunda ordem,
configura-se como um verdadeiro labirinto: de quem são as vozes que
estão de fato no poder? Qual a natureza verdadeira dos governos que se
alternam? Há de fato diferenças entre eles? Muitas são as questões que
ficam sem resposta, ou muitas são as respostas que, quando surgem,
revelam-se obscuras ou falaciosas. Assim se comporta a república
5
caribenha de propriedade de Erico Verissimo e assim também pode-se
dizer que é um pouco da própria América Latina.
O romance O Prisioneiro, por sua vez, foi, durante
aproximadamente duas décadas, relacionado inequívoca e unicamente à
Guerra do Vietnam. Propõe-se aqui uma abordagem que de fato não é
inédita, todavia recente. Mais uma vez um espaço dimensionado
internacionalmente – um país oriental - pode ter sido o subterfúgio do
autor gaúcho para desviar a atenção da censura e, com isso, mover-se com
mais liberdade no campo da crítica social. Tal abordagem, no nível
conteudístico da obra, relaciona-a ao período de exceção que a sociedade
brasileira viveu desde o golpe militar de 1964.
As relações contextuais presumidas e possíveis tornam-se o fulcro
da narrativa política de Erico Verissimo. Essa narrativa converte-se,
assim, a partir de uma leitura não-ingênua, numa possibilidade efetiva de
desvelamento de algumas questões sociopolíticas ainda atuais nos dias de
hoje. A literatura mostra sua vitalidade, ajuda os leitores a compreender o
mundo circundante, o que os torna mais humanos.
6
II - O LUGAR E OS CAMINHOS DE UMA FICÇÃO
Há espíritos simplistas, que acham que têm uma explicação para tudo.
É que explicada a coisa, foi-se o mistério!
Principalmente esses que insistem em demonstrar os poemas, como se
quisessem desmascarar o poeta.
Eles me fazem lembrar aquelas pessoas “espertas” de certas
cidadezinhas do interior, as quais, indo assistir à função de um mágico,
puseram-se a bradar no meio do espetáculo:
“Isso é truque! Não pega! É truque! É truque!”
Mas, para alívio das almas compassivas, acrescento que o pobre
mágico sempre conseguiu escapar com vida por trás dos bastidores...
(Mário Quintana, Mágica & Mistério)
2.1 – O autor e seu legado
Erico Verissimo
1
inscreve-se, no cenário da literatura brasileira,
como um de seus grandes nomes. Com uma produção artística que
abrange período superior a 40 anos, o autor elege o romance como seu
gênero preferencial. Embora faça parte da estudada geração de 30 da
ficção brasileira, a qual inclui nomes como Jorge Amado e Graciliano
Ramos, de marcado recorte regionalista, distingue-se por iniciar o que
Flávio Loureiro Chaves (1981) definiu como uma longa investigação que
busca ver o homem na sua dinâmica social e o indivíduo na sua
humanidade.
2
Com isso traz à literatura sul-rio-grandense, já na década de
30, a sua mais profunda renovação, optando pelo estilo realista de
1
Erico Verissimo (Cruz Alta, RS, 1905 – Porto Alegre, 1975). Obras de ficção: Fantoches
(1923); Clarissa (1933); sica ao Longe (1935); Caminhos Cruzados (1935); Um Lugar
ao Sol (1936); Olhai os Lírios do Campo (1938); Saga (1940); As Mãos de Meu Filho
(1942); O Resto é Silêncio (1943); Noite (1954); O Tempo e o Vento, I. O Continente
(1949); O Tempo e o Vento, II. O Retrato (1951); O Tempo e o Vento, III. O Arquipélago
(1961); O Senhor Embaixador (1965); O Prisioneiro (1967); Incidente em Antares (1971);
Solo de Clarineta (memórias) 2vols(1973-1976). Fonte: BOSI, Alfredo. História Concisa da
Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999.
7
composição literária e universalizando os temas de que essa literatura
ocupara-se até então. Sua obra tematiza, pensando-a de maneira geral e
simplista, a convergência e a divergência entre ficção e história, as
tensões políticas da história recente e a crise da liberdade individual do
homem contemporâneo. Este último, ainda segundo Flávio Loureiro
Chaves (1981), constitui tema recorrente no mundo representado pelo
autor gaúcho.
A historiografia da literatura brasileira reserva a Erico Verissimo
um lugar privilegiado. Alfredo Bosi (1994), ao referir-se pela primeira
vez ao autor, menciona-o como herdeiro de uma modernidade
estilística
3
inaugurada por Lima Barreto. Tal modernidade estaria na
descida de tom com que a prosa de ficção passou a ser elaborada, a partir
da incursão de Lima Barreto, num movimento contrário ao academismo
tão presente na literatura brasileira dos primeiros decênios do século XX.
Erico Verissimo, na esteira do autor carioca, ao optar por uma linguagem
não-hermética e por representações de estatuto e conteúdo realistas,
permitindo que o cotidiano e, conseqüentemente, os problemas sociais
fizessem parte do seu universo ficcional, deixa evidente a vinculação da
sua literatura com o caráter humanizador da arte.
A obra de Erico Verissimo apresenta quatro momentos distintos,
embora seja possível perceber coerência e uma certa relação entre eles,
especialmente na questão da representação da vida, prerrogativa dos
2
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo e sociedade. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1981. p. 52
3
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999. p.319.
8
grandes escritores e de seus projetos literários. Mesmo que o legado do
autor não seja passível de uma organização rigorosa, num primeiro
momento, encontra-se o que a crítica costuma chamar de romance de
costumes urbanos e provincianos, uma vez que o espaço romanesco
preferencial é Porto Alegre e algumas “cidades” do interior do Rio
Grande do Sul, sendo o alvo primeiro de representação os valores da
classe média burguesa. Estão os títulos Clarissa, Música ao Longe e O
Resto é Silêncio, entre outros, incluídos nesse segmento, os quais tiveram
grande impacto junto ao público leitor e consagraram o nome de Erico
Verissimo entre os grandes ficcionistas da literatura brasileira desde as
décadas de 30 e 40 do século XX. Segue-se a publicação da monumental
obra em três tomos, que recebe o título geral de O Tempo e o Vento,
produto e clímax de um período dedicado ao romance histórico, mesmo
que o autor, com ela, tenha subvertido alguns dos pressupostos teóricos
dessa categoria romanesca. Chega-se então às produções que se voltam
para a problematização de questões sociopolíticas contemporâneas.
Fazem parte desse período os romances O Prisioneiro, O Senhor
Embaixador e Incidente em Antares. Após, registra-se o período
biográfico-memorialista, materializado em dois volumes intitulados Solo
de Clarineta (I e II), cuja segunda parte ficou inconclusa, quando da
morte do autor, sendo organizada e publicada postumamente pelo prof.
Flavio Loureiro Chaves. Evidentemente ficam fora dessa pretensa divisão
a obra de Erico Verissimo dedicada à literatura infantil, bem como as
publicações em periódicos durante os seus 40 anos de atividade como
escritor.
9
A escolha, para efeitos desse estudo, recai sobre dois romances
do autor, quais sejam: O Senhor Embaixador, cuja primeira edição saiu
no ano de 1965 e O Prisioneiro, que teve sua primeira publicação em
1967. O critério que justifica tal escolha é a preocupação em compreender
melhor as variáveis em torno do estatuto realista de narrar e seu corolário,
o qual, por sua vez, está consoante à tradição romanesca do século XIX,
aspectos que parecem evidentes nas duas obras.
Trata-se de uma ficção de cunho político-crítico, ficção
contestatória e de denúncia, que projeta e provoca, uma vez que acaba
por fazer com que a sociedade veja-se confrontada com questões relativas
às transformações na sua organização, e às conseqüentes implicações
dessas transformações na sua estrutura. O tom panfletário, verdadeiro
“buraco negro” de parte da narrativa social e/ou política, é superado em
função da organização estética e estilística dessas narrativas de Erico
Verissimo. Desde essa perspectiva, as obras O Senhor Embaixador e O
Prisioneiro tornam-se “palcos” privilegiados para discussão de alguns
dos mais graves problemas políticos da época do início da consolidação
da ditadura militar de 1964 no Brasil: a adoção da tortura, física ou
psicológica, como prática banal e corriqueira nas “entranhas do poder” e
o silenciar das vozes que ousam contestar o regime ditatorial que se
institui. Erico Verissimo, assim como o fizeram Machado de Assis e
Lima Barreto, ressalvadas as devidas diferenças, faz a crítica desde um
olhar “interior”, em outras palavras, ela emerge de dentro do próprio
contexto narrativo da ficção, algo que prevê a leitura atenta da
composição mesma desse tecido narrativo.
10
2.2 - Os romances e suas especificidades
O autor cria, nesses romances, universos ficcionais que, iluminados
objetivamente, não trazem novas soluções formais. A linguagem é de uma
precisão quase cirúrgica, isenta de experimentalismos. Nesse aspecto,
Erico Verissimo distancia-se de seus contemporâneos Guimarães Rosa e
Clarice Lispector, por exemplo. Aquele, ao aproximar sua linguagem do
mito, tem no mitopoético a sua solução romanesca; esta, especialmente
pela exacerbação da interioridade, cria, por suas constantes rupturas, um
estilo de narrar personalíssimo.
4
Erico Verissimo, diferentemente, assenta
sua narrativa mais exatamente nos códigos realistas, consagrados desde o
séc. XIX, tal como se percebe em O Prisioneiro e em O Senhor
Embaixador.
Existe, em ambos os textos, uma preocupação quase obsessiva
com a enumeração de ações no passado perfeito, confluindo para o
estabelecimento de experiências individuais, no nível das personagens,
definitivas e definidoras: as ações e ocorrências estão fixadas num lapso
de tempo delimitado e recuperável, aspecto caro ao estatuto de
composição realista.
4
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999. p.428
11
Na voz do narrador, quando assume a representação em O
Prisioneiro: O médico ergueu-se
, tirou um cigarro do maço que estava
em cima da escrivaninha, levou-o
à boca e acendeu-o.
5
Recurso estilístico repetido também pelo narrador onisciente de O
Senhor Embaixador: Parou
um instante, fechou os olhos, espalmou a
mão gorda e curta sobre o peito, à altura do coração.
6
Desde essas enumerações, tem-se a confirmação de uma conduta
narrativa que é a de fixar no tempo e no espaço a ação das personagens. É
como se eles estivessem presentes, agindo, ou atuando, na condição de
uma verossimilhança necessária à forma realista dos romances.
Ian Watt (1990) apresenta um estudo sobre a relação entre o
realismo e a forma do romance que, segundo ele, dá-se de maneira
inequívoca desde a origem deste gênero narrativo. O realismo seria,
portanto, o modo de representação que acompanha o romance desde a sua
moderna afirmação, no final do século XVII, até sua consagração como
gênero possível da nova organização social, marcada pela consolidação
da classe burguesa e do capitalismo no século XIX: o gênero [realista]
surgiu na era moderna, cuja orientação intelectual geral se afastou
decisivamente de sua herança clássica e medieval - rejeitando ou pelo
5
VERISSIMO, Erico. O Prisioneiro. São Paulo: Globo, 1997. p.189. As demais citações
referem-se a mesma edição e virão acompanhadas apenas pelo título da obra e número da
página.
6
VERISSIMO, Erico. O Senhor Embaixador. São Paulo: Globo, 1997. p. 65. As demais
citações referem-se à mesma edição e virão acompanhadas apenas pelo título da obra e
número da página.
12
menos tentando rejeitar os universais.
7
É o momento em que o cotidiano,
a realidade contemporânea apreendida pelo dado concreto da observação
e da experiência individual no nível das personagens configuradas, o
cotidiano entra como matéria essencial de representação literária.
Estabelece-se, na maneira de contar, no próprio discurso literário, um tipo
característico de correspondência entre vida e literatura obtida na prosa
de ficção desde os romances de Defoe e Richardson.
8
Assim a fidelidade
à experiência individual passa a ser o telos do romance realista.
Em Erico Verissimo pode-se perceber que a concepção do fazer
literário, enquanto estrutura e linguagem, está próxima da compreensão
que se tem historicamente do romance realista. Isso torna legítima a
referência à obra do autor como de “estatuto realista”, especialmente nos
casos de O Senhor Embaixador e O Prisioneiro.
Ao descrever as especificidades da literatura realista Ian Watt
(1990) afirma que
O conceito de particularidade realista na literatura é algo geral demais
para que se possa demonstrá-lo concretamente: tal demonstração
demanda que antes se estabeleça a relação entre a particularidade
realista e alguns aspectos específicos da técnica narrativa. Dois desses
aspectos são de especial importância para o romance: caracterização e
apresentação do ambiente,
certamente o romance se diferencia dos
outros gêneros e de formas anteriores da ficção pelo grau de atenção
que dispensa à individualização das personagens e à detalhada
apresentação de seu ambiente.
9
7
WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.14.
8
Idem.Ibidem.
9
WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Compainha das Letras, 1990. p.19.
13
Essa dupla perspectiva formal, a individualização das personagens
e a detalhada apresentação do ambiente, corresponde ao que seria o
modo narrativo pelo qual se organizam os romances em questão:
A luz do poente dava à fachada do Hotel du Vieux Monde, ali no
centro da cidade, à margem direita do rio, umas tintas alaranjadas,
laminando de ouro as vidraças de suas janelas. Era um prédio cor de
osso, de aspecto um tanto pesado. Tinha seis andares e uma porte
cochère, com um frontão grego, à entrada principal. O tempo e a
intempérie haviam reduzido a uma pálida tonalidade de jade as
venezianas, outrora vivamente verdes, de suas duzentas e cinqüenta
janelas. Na sacada central, no segundo piso, haviam já tremulado as
bandeiras de três nações conquistadoras. Agora uma quarta, a dos
aliados de além-mar, ali estava, tão enrolada, murcha e imóvel no ar
estagnado, que parecia a meio pau, como em homenagem a algum
morto ilustre
.
10
Na apresentação do hotel onde o Tenente está hospedado, o
narrador é fiel ao gosto pelo detalhe mínimo. Ele não só dá a posição
precisa do hotel, como também comenta sobre as condições e arquitetura
dele. Há uma conjugação de aspectos pictóricos, elementos da observação,
e aspectos impressionistas, da sensação. Isso dá ao leitor uma
possibilidade imagética a partir de um local meticulosamente detalhado.
Essa detalhada apresentação do ambiente também é recorrente no
modo narrativo de O Senhor Embaixador:
Contrastando com o esplendor do salão de festas, a sala de jantar que
lhe ficava contígua, em estilo do baixo Renascimento, era duma
sobriedade repousante. O pavimento era todo de ladrilhos – agora sem
tapetes – e viam-se, nas paredes, umas tapeçarias belgas inspiradas em
desenhos de Rafael. A mobília falava de um tempo em que a nostalgia
10
O Prisioneiro. p.189.
14
da Roma imperial e da Grécia clássica não se fizera ainda aguda entre
os artistas da Itália e seus mecenas. Don Alfonso Bustamante, porém,
achara de bom aviso quebrar a severidade do ambiente, mandando
estofar as cadeiras de alto respaldo com uma imitação de veludo
veneziano do século XV: alcachofras estilizadas em meio de
guirlandas bordadas a fio de ouro contra um fundo cor de vinho. A
mesa era de desenho simples, quase monástico, e em torno dela o
velho diplomata, em jantares que haviam marcado época em
Washington, costumava fazer sentarem-se mais de vinte convivas.
11
Ao descrever a sala de estar, o narrador a apresenta como herança
dos embaixadores antigos de Sacramento, sendo que o último fora D.
Alfonso Bustamante. Conhece-se a sala para também conhecer os
“indivíduos” que ali circularam antes da chegada de Gabriel Heliodoro, o
Senhor Embaixador. São alguns detalhes (mesa de desenho simples, por
exemplo) que dão a medida de um comportamento austero, reservado.
Com isso, tem-se acentuadas as oposições entre os comportamentos de D.
Alfonso Bustamante e Gabriel Heliodoro. Estilisticamente, o que se tem é
a descrição pormenorizada do espaço funcionando também para a
individualização das personagens que povoam a ficção de Erico
Verissimo.
Além da realização realista na apresentação detalhada, parece ser
na linguagem tanto no nível paradigmático da seleção, quanto
sintagmático da combinação, que Erico Verissimo aproxima seus textos
do que seria adjetivamente essa realização realista da literatura. Algumas
das composições encontradas, nessas obras do autor gaúcho, remetem ao
que Roland Barthes (1988) definiu como efeito de real.
11
O Senhor Embaixador p. 118.
15
É conhecida a passagem em que Roland Barthes (1968) discorre,
utilizando a prosa realista do escritor francês Gustav Flaubert como
exemplo, acerca do efeito de real: quando a linguagem é utilizada para
ancorar a ficção, numa relação precípua de verossimilhança, na realidade
observável, factual. Em romances cuja prerrogativa da ação e das
personagens constituem o cerne da estrutura, qual seria a função da
descrição e, por extensão, da alusão a elementos diretamente envolvidos
com a exterioridade da ficção?
A singularidade da descrição (ou do ‘pormenor inútil’) no tecido
narrativo, a sua solidão, designa uma questão da maior importância para
a análise estrutural das narrativas. É a seguinte questão: tudo, na
narrativa, seria significante, e senão, se subsistem no sintagma narrativo
algumas palavras insignificantes, qual é definitivamente se assim se
pode dizer, a significação dessa insignificância?.
12
Pois são esses pormenores inúteis que configuram o abandono pelo
realismo de um código retórico e suficiente por si mesmo. Cria-se uma
nova razão para descrever e essa razão está na implicação direta da
representação de uma realidade tangível, mesmo sendo ficcional e
encerrando, portanto, um paradoxo manifesto.Tais pormenores inúteis
materializam-se lingüisticamente em expressões, ou palavras, às quais
não será atribuído significado, ou conteúdo interpretativo. Na verdade,
elas não passarão de significantes insignificantes.
Tanto em O Senhor Embaixador, quanto em O Prisioneiro
encontram-se freqüentes e recorrentes alusões a determinados objetos,
12
BARTHES, Roland. “O Efeito de Real” In: ___. O Rumor da Língua. São Paulo:
Compainha das Letras,1990. p160.
16
gestos, entre outros elementos, que rompem a relação tripartida
pressuposta do signo lingüístico, pois a ‘representação’ pura e simples do
‘real’, a relação nua ‘daquilo que é’ (ou foi) aparece assim como uma
resistência ao sentido (...).
13
Uma carta de vinhos, uma mesa baixa, dois
degraus, abriu a porta do carro, garçom são exemplos de significantes
colocados a serviço estritamente desse efeito de real descrito por Barthes
(1968), já que não referem nenhum possível significado de natureza
interpretativa somente remetem a um referente. Estão na condição
primeira de garantir a verossimilhança necessária à prosa de estatuto
realista pela qual se configuram os romances.
Ainda nas palavras de Roland Barthes (1968):
(...) é a categoria do ‘real’(e não os seus conteúdos contingentes) que é
então significada; noutras palavras, a própria coerência do significado
em proveito só do referente torna-se significante mesmo do realismo:
produz-se um ‘efeito de real’, fundamento desse verossímil inconfesso
que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade.
14
A utilização desse recurso, descrito por R. Barthes, é bastante
freqüente na organização estética dos romances de estatuto realista e
conteúdo político de Erico Verissimo. A título de exemplo: Chamou a
secretária. Miss Kay entrou, de caderno estenográfico em punho, um
lápis amarelo enfiado nos cabelos oxigenados, entre a cabeça e a
orelha
.
15
Nesse fragmento, as referências a um caderno estenográfico e a
um lápis está a serviço do efeito de real, na medida em que servem para
13
Idem. p 162.
14
Idem. p 164.
15
O Senhor Embaixador. p.5.
17
compor a verossimilhança da personagem secretária, estão mesmo na
condição de atribuir um estatuto de realidade a ela.
A concepção de um modo de contar credor do romance realista
tradicional, um conteúdo político perceptível em ambos os enredos e uma
linguagem objetiva, isenta de hermetismos, constituem aspectos decisivos
que tornam possível a aproximação dos dois romances do escritor gaúcho.
18
III – A PERSONAGEM E SEU ESTATUTO FICCIONAL
No princípio era o Verbo. O verbo Ser. Conjugava-se apenas no
infinito. Ser, e nada mais.
Intransitivo absoluto.
Isto foi no princípio. Depois transigiu, e muito. Em vários momentos,
tempos e pessoas. Ah, nem queiras saber o que são as pessoas: eu, tu,
ele, nós, eles...
Principalmente eles!
E, ante essa dispersão lamentável, essa verdadeira explosão do SER
em seres, até hoje os anjos ingenuamente se interrogam por que
motivo, as referidas pessoas chamam a isso de CRIAÇÃO...
(Mário Quitana, A Grande Catástrofe)
3.1 A personagem: uma compreensão
Discussão que remonta às primeiras considerações teóricas acerca
da literatura, uma vez que já em Aristóteles encontram-se formulações a
respeito dessa categoria narrativa, a personagem tem seu conceito
circunstanciado historicamente. Se Aristóteles relegava sua importância
em favor da representação dramática das ações humanas, tem-se, em
Roland Barthes (1970), uma compreensão que se traduz pela colocação
da personagem como motivo e fundamento de todo discurso narrativo:
sem a atribuição das ações a um ser fictício, não seria possível a
existência de um contexto narrativo
16
. Como se pode observar, duas
posições teóricas, separadas por algo em torno de dois milênios, que dão
status diferenciado à categoria da personagem. Isso dá conta da movência
circunstancial e histórica com que são elaborados e utilizados alguns
conceitos metodológicos para a análise da narrativa, no caso específico, o
conceito de personagem.
16
BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
19
Ser fictício. Eis a expressão proposta por Antonio Candido (1968)
que, embora encerre um paradoxo como adverte o próprio autor, sintetiza
e define com muita propriedade um entendimento que se coloca objetiva
e relevantemente no centro da discussão. O autor, nesse estudo, tece
considerações de ordem teórica e empírica e diz ser impossível fazer da
personagem o centro de tudo num contexto literário, ou ainda recortá-la
definitivamente. É preciso que este ser de linguagem tenha preservada
sua função e relações com os demais elementos que organizam uma
narrativa, como o espaço e o tempo, por exemplo. Entretanto, posto isso,
Antonio Candido (1968) considera que:
(...) pode-se dizer que é o elemento [a personagem] mais atuante, mais
comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos
séculos XVIII, XIX e começo do XX; mas que só adquire pleno
significado no contexto, e que, portanto, ao fim de contas a construção
estrutural é o maior responsável pela força e eficácia do romance.
17
Pode-se, isto sim, simular o isolamento de determinada personagem
para então tentar a compreensão das várias relações, estabelecidas ao
longo da obra, as quais terminarão por configurar a sua existência no
espaço limitado pelo texto literário: evocar a materialidade de uma
personagem, tornar-lhe tangível a presença e sensível o movimento, fazê-
la dar três passos na rua, empurrar uma porta, adentrar um aposento,
pode ser o alfa e o ômega da arte romanesca.
18
Várias são as
17
ANTONIO CANDIDO et alii. Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 54.
18
CORMEAU, Nelly apud MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo:
Cultrix, 1978. p. 298.
20
condicionantes que garantem “vivacidade” às criaturas de papel
19
.
Entram em jogo aspectos que vão desde a sua posição em relação a outras
personagens até as implicações do seu próprio discurso. Este muitas vezes
eleito pelo escritor como recurso privilegiado para o desvendamento da
interioridade das suas criaturas. A organização particular de uma narrativa
é que garantirá, portanto, a própria “existência” da personagem, a sua
individualização, como uma unidade física e psicológica, criando os seus
referentes e abrindo as muitas possibilidades para sua interpretação e
analogia com a existência dos seres não ficcionais, enfim com o próprio
gênero humano. Nessa medida, o ser fictício, mais exatamente a sua
leitura cuidadosa, oportuniza reflexões consideráveis sobre a própria
condição do homem, sobre o seu devir e também sobre a sua situação
enquanto ser histórico.
Vários são os recursos à disposição dos escritores para materializar
suas criaturas ficcionais na conjuntura do romance moderno. Entre tantos,
pode-se citar a opção por: um narrador de 1ª ou 3ª pessoa, o que pode
estabelecer a inclusão ou não daquele que conta como personagem da
narrativa; uma descrição minuciosa ou sintética das características físicas
e/ou psicológicas da personagem; um predomínio de uma das formas do
discurso, se direto, indireto ou indireto livre; um privilégio maior ao
diálogo ou ao monólogo.
Erico Verissimo, por sua vez, no tocante aos romances O Senhor
Embaixador e O Prisioneiro privilegia, por um lado, a questão dialógica
19
Termo proposto por R. BARTHES.
21
- é no embate discursivo, em situações de confronto, que as personagens
ganham fôlego e passam a “existir” - e, por outro, a centralização da
narrativa na figura de um narrador de 3ª pessoa, concebido
demiurgicamente e que se mantém de ânimo inalterado ao longo da
fabulação, em conformidade com a tradição romanesca realista do século
XIX especialmente.
Na obra A Teoria do Romance, como o próprio título sugere,
Georg Lukács (2000) discute aspectos concernentes ao gênero narrativo,
dito romance, e formula o seguinte conceito para tal representação: O
romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem a intenção da
totalidade.
20
Na esteira dos pressupostos hegelianos, Lukács concebe,
portanto, o romance como a forma primeira e possível de representação
de uma nova ordem social que se estabelece, a burguesia. O mundo
moderno, marcado pelo domínio do romance, será também o período da
contradição, da representação de subjetividades e de problemáticas
essencialmente contraditórias no âmbito da literatura.
O teórico faz um estudo, de um certo modo descritivo e
comparativo, entre o período da epopéia e o do romance. Prevê, para este
último, uma contradição insofismável: diante de uma vida que se faz
problemática, o romance é uma forma que insiste em buscar a totalidade.
Isso acaba por configurar personagens que estão preocupadas em desvelar
o sentido oculto de todas as coisas, em compreender o lado não tangível
20
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: 2 Cidades, 2000. p.55.
22
da vida, enfim, entidades ficcionais que estão sempre em busca de algo,
nas palavras do autor. É o herói problemático que emerge à cena principal
do romance moderno: indivíduo que traz consigo as impossibilidades
unificadoras das soluções harmônicas.
Essa parece ser, em suma, a estrutura da configuração das
personagens Tenente e Leonardo Gris, seres fictícios que “vivem” no
universo narrativo respectivamente de O Prisioneiro e O Senhor
Embaixador. É o que se pode constatar quando se verifica o caso de
cada uma, considerando-se suas particularidades.
23
3.2 - Leonardo Gris: uma consciência que se estende
O Homem – eternamente escravo de suas paixões pessoais –
É absolutamente incapaz de imparcialidade.
Só Deus é imparcial
Só Ele é que pode, por exemplo,
Abençoar, ao mesmo tempo,
As bandeiras de dois exércitos inimigos que vão entrar em
luta...
(Mário Quintana, Da imparcialidade)
Romance publicado no ano de 1965, O Senhor Embaixador está
organizado em quatro partes numeradas e nomeadas que são, pela ordem:
As Credenciais (fragmentos 1 a 11), A Festa (fragmentos 12 a 17), O
Carrossel (fragmentos 18 a 34) e A Montanha (fragmentos 35 a 49).
Dessas, as três primeiras partes têm como cenário a capital americana,
Washington D.C., e a última passa-se na hipotética república insular
caribenha de Sacramento. As partes citadas podem ter assim resumido seu
conteúdo, na ordem: primeira, quando o apresentadas, cada uma por seu
turno ou em relação dialógica aos pares, todas as personagens da
narrativa; segunda, em consonância direta com o título (A Festa), narra o
episódio da cerimônia organizada para apresentação do novo embaixador
ao circuito diplomático da capital americana, na qual circulam as
personagens apresentadas anteriormente e momento da narrativa em que é
posta em dúvida a versão oficial dos fatos que constituem a história da
República caribenha; terceira, numa relação de sentido metafórica com o
título (O Carrossel), Gabriel Heliodoro, o Senhor Embaixador, já na
condição de representante oficial da diplomacia sacramentenha,
comporta-se como um sedutor, inescrupuloso, corrupto e licencioso,
24
configurando uma personagem próxima à caricatura. Também é nessa
terceira parte que ocorrem dois fatos cruciais para o desenrolar da
narrativa: o desaparecimento de Leonardo Gris e o pedido de demissão
apresentado por Pablo Ortega do cargo de secretário da embaixada da
República do Sacramento; quarta e última: início do movimento
revolucionário armado que visa a deposição do Presidente da República
do Sacramento, Juventino Carrera. Pablo Ortega reúne-se às fileiras e
torna-se um “indivíduo” de ação. Interessante observar, ainda quanto à
organização do romance, que a maior parte de seus fragmentos está
subdividida em unidades menores de tamanho e número irregulares.
Trata-se de uma obra em que Erico Verissimo configura uma
numerosa galeria de personagens. A favor ou contra o regime de governo
sacramentenho, à direita ou à esquerda dele, há representantes dos mais
variados segmentos sociais: imprensa, diplomacia, exército, estudantes,
donas-de-casa, entre outros. Nomeados, caracterizados com riqueza de
detalhes, como convém ao romance de estatuto realista, exercem os mais
diferentes papéis: da alienação absoluta à passionalidade política de
ordem revolucionária.
Leonardo Gris, nesse contexto narrativo, apresenta-se, ou é
apresentado, como um professor universitário vítima de expurgo político,
o que ocasiona um deslocamento espacial já no início da narrativa: ele
deixa seu país, Sacramento, e asila-se nos EUA. Independentemente da
sua condição de exilado, ele continua insuflando e discutindo a
possibilidade de um enfrentamento à ditadura que se instituiu no seu país
25
natal. Para tanto, estratégias narrativas são utilizadas na configuração
desse herói
21
, a fim de que ele possa posicionar-se e deixar expressa sua
inconformidade com o governo de Juventino Carrera. Numa relação de
verossimilhança com a prática política da intelectualidade, lato sensu, é
através do discurso contra o cerceamento da liberdade, quer individual ou
social, prerrogativa dos sistemas ditatoriais, que Leonardo Gris age
politicamente. Dentre as estratégias narrativas, destacam-se as cartas
endereçadas a jornais americanos de grande circulação, portadoras de
conteúdos que causam desconforto aos representantes oficiais da
República do Sacramento; uma longa conferência proferida em uma
universidade americana, durante a qual Leonardo Gris toca em vários
pontos nevrálgicos da relação imperial dos EUA com a América Latina
de um modo geral e, ainda, as conversas com seu interlocutor
preferencial, o jovem Pablo Ortega, personagem que vem a tornar-se o
continuador pragmático do ideário de liberdade propugnado por Leonardo
Gris. Este é o homem, ou mais precisamente o ser fictício, das idéias, da
consciência inquieta e inconformada; aquele, por sua vez, está
configurado como o homem de ação, que não vacila quando chega o
momento de “pegar em armas” para defender uma causa, mesmo que
acredite nela por insistência tão somente.
Em função dos recursos narrativos referidos anteriormente - cartas,
diálogos em discurso direto e a conferência - pode ser possível
21
O termo herói nesta e nas demais ocorrências refere-se à protagonista, de acordo com a
tipologia formal proposta por T. Todorov e O. Ducrot no Dicionário Enciclopédico das
Ciências da Linguagem. Desugna, genericamente portanto, o protagonista, ou personagem
principal (masc. ou fem.) da epopéia, da prosa de ficção (conto, novela, romance) e teatro.
26
estabelecer a existência de um centramento político, fato verificado
especialmente na personagem selecionada, irreconciliável com a
alienação e que coloca Leonardo Gris alinhado ao pensamento político de
esquerda, conforme o filósofo político italiano Norberto Bobbio (2001)
define tal pensamento. Segundo o autor, embora nenhuma distinção seja
perfeita e, portanto, todas sejam passíveis de contestação, a díade
antitética direita e esquerda forma o núcleo irredutível, ineliminável, e
como tal sempre ressurgente.
22
A partir dessa dicotomia direita e
esquerda, cujo uso e permanência o autor italiano defende e que tem esse
uso justificado para estabelecer a diferença entre um pensar e/ou um agir
político, Noberto Bobbio (2001) separa conceitualmente o homem de
esquerda e o homem de direita:
o homem de direita é aquele que se preocupa, acima de tudo, em
salvaguardar a ‘tradição’; o homem de esquerda, ao contrário, é aquele
que pretende, acima de qualquer coisa, ‘libertar’ seus semelhantes das
‘cadeias’ a eles impostas pelos privilégios de raça, casta, classe, etc.
23
Nas tantas vezes, ao longo da narrativa, que Leonardo Gris tem a
oportunidade de registrar a sua posição política, parece residir na
conferência, já referida anteriormente, o momento em que o professor
universitário exilado sistematiza e assume marcadamente sua
configuração de herói problemático e coloca-se à esquerda na díade
política citada. Nas suas palavras:
22
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política.
São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p.48.
23
Idem. p.97.
27
Estou porém decidido a não ceder a essa ‘tentação’. Vou fazer uma
conferência realista e portanto desagradável. Possivelmente hei de
parecer-vos agressivo e arrogante quando analisar a parte de
responsabilidade que cabe aos Estados Unidos pela situação
econômica, social e política da América Latina em geral e de meu país
em particular. Preparem-se, portanto, para cinqüenta minutos de
impaciência e irritação.
24
A tentação que a personagem, numa atitude ousada, renega diz
respeito ao discurso contemporizador, de exploração das diferenças,
especialmente do exotismo, que constitui o imaginário norte-americano
acerca da América Latina: espaço povoado por lendas, ritos, enfim
essencialmente folclórico e com uma fauna e flora diversificadas, sui
generis. Tudo isso vendido como espetáculo ingênuo e na condição de
marcar a diferença entre uma cultura desenvolvida e uma cultura de povo
primitivo. Leonardo Gris permeia suas colocações pelo tom criticamente
ácido e inconformado daqueles que vêem a realidade com um olhar não-
subserviente, com um olhar que prevê a liberdade como fim último dos
governos e, conseqüentemente, das suas instituições e dos seus
governados. Essa conferência está desenvolvida organicamente em
tópicos, como: a descrição das figuras do regime de Juventino Carrera; a
denúncia e o conhecimento das mazelas sociais do país caribenho, as
quais, por extensão, o são de qualquer país latino-americano –
prostituição, tráfico, relações perniciosas entre Igreja e governo, evasão
fiscal; a defesa das ações do governo do antecessor do atual ditador
sacramentenho, Doutor Moreno; a contextualização política e histórica da
relação dos EUA com a América Latina, concluindo que: a roda do
24
O Senhor Embaixador. p.206.
28
moinho dos interesses das compainhas americanas na América Latina,
continua a girar, movida agora por outras forças e táticas.
25
O professor
Leonardo Gris tem como principal interlocutor e admirador confesso a
personagem de Pablo Ortega que se torna, ao longo da narrativa, o
continuador pragmático do seu ideário de liberdade.
A personagem Leonardo Gris, cujo sobrenome, numa livre
interpretação, remete à cor cinza e a toda sua carga semântica de
obscuridade, obnubilação, mesmo que essa seja imposta pelo uso da
força, parece ser portador do destino inexorável daqueles que têm na
liberdade uma crença iniludível: o desaparecimento, o ocaso, o silêncio, a
assujeitação. Esse é o primeiro momento de uma ficção com posição
política marcadamente contestatória e denunciadora do apagamento
ideológico de que são vítimas aqueles que ousam desafiar o status quo.
Esse herói carrega consigo uma contradição manifesta, que pode
ser lida a partir do ponto de vista de dois personagens em especial: Pablo
Ortega e Jorge Molina. Leonardo Gris aparece como ser sacralizado por
aquele e, em forma espectral, como o motivo maior dos sentimentos de
culpa deste. Unindo as duas percepções, tem-se a medida da força de uma
personagem que, mesmo ausente, permanece em cena. Ausente como
“materialidade”, mas presente como consciência diluída na interioridade
de Pablo Ortega, que em seu nome resolve aderir à luta armada contra a
ditadura sacramentenha. Também na de Jorge Molina, que em conversas
fantasmáticas tem suas convicções e projetos violentamente criticados,
25
O Senhor Embaixador. p.215.
29
submetidos a uma lógica que não se dobra à subserviência e não admite a
dependência nem no nível individual, menos ainda no nível social.
Para o governo, enquanto instituição, Leonardo Gris aparece como
uma figura desconfortável, provocando diferentes reações evidenciadas
nos referentes que lhe são dirigidos pelos representantes do poder
sacramentenho. Na voz do próprio Juventino Carrera está referido como
crápula apátrida; Jorge Molina, o homem do regime que tem a
incumbência de neutralizar a ingerência política de Leonardo Gris,
alcunha-o de diabólico apátrida e o Senhor Embaixador também não é
indiferente a ele e assim o define: apátrida, traidor, mas inofensivo. O
termo apátrida, núcleo comum das três referências, tem seu sentido
estrito como aquele que perdeu ou está sem pátria. Na verdade, a relação
semântica que se estabelece através desse termo é uma relação evidente
de poder. Aqueles que estão no comando de uma nação, impondo-lhe um
regime de ditadura, investem-se de autoridade para negar o direito
elementar de qualquer indivíduo: ser reconhecido e estar em seu país de
origem, professando livremente suas idéias. Isso acontece pelo fato de
Leonardo Gris questionar a condução do regime instituído, que acabou
tendo na limitação da liberdade individual um dos seus mais eficientes
instrumentos de permanência no poder. Nessa conjuntura, não há
possibilidade daqueles que ousam discordar estarem na legalidade. Pelo
contrário, são necessariamente jogados na clandestinidade, perseguidos,
expulsos, mortos. Práticas todas exaustivamente descritas nas histórias
das ditaduras latino-americanas e, como não poderia deixar de sê-lo, na
do Brasil também. Em regimes ditatoriais, como a história da América
30
Latina bem registra, práticas comuns e recorrentes se instituem para
silenciar e tirar do circuito as vozes destoantes da apologia ou da
conivência com os atos dos governos de natureza autoritária.
Já na primeira cena em que aparece, Leonardo Gris conta, numa
conversa em um restaurante da capital americana, estar sendo seguido
diuturnamente por um indivíduo há duas semanas. Refere-se a ele como
sua sombra. Com efeito, a narrativa sugere, a partir do desaparecimento
injustificado de Leonardo Gris, que existe uma motivação política para
tal. Esse fato gera uma crise no centro do poder sacramentenho,
desestabiliza-o e culmina com a queda de Juventino Carrera, a prisão e o
fuzilamento de Gabriel Heliodoro, o Sr. Embaixador, e a ascensão ao
poder de Miguel Barrios. Instaura-se em Sacramento, tendo como figura
principal Miguel Barrios, um outro governo de fachada revolucionária,
mas que traz no seu âmago, ou na sua origem, a corrupção, a
desorganização, a luta de forças e a satisfação das vaidades individuais.
Leonardo Gris está configurado como aquela personagem mais
apto[a] a interpretar
26
o problema da falta de liberdade e torna-se a
própria expressão do inconformismo. Georg Lukács (1968) amplia a
compreensão dos destinos das personagens, desde uma experiência
pessoal e da expressão conceitual de uma fisionomia intelectual,
afirmando que: por certo, a possibilidade que tem o destino de manter-se
acima da pura individualidade, do mero particular, pode assumir as mais
26
LUKÁCS, Georg. “Fisionomia Intelectual da Personagem de Ficção”. In: Marxismo e
Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.174.
31
diversas formas da literatura.
27
Como associar o destino de Leonardo
Gris ao das vozes da esquerda, por extensão, latino-americanas? Desde a
superfície imediata da vida, representada pela personagem e
considerando-a envolvida nos grandes processos sociais, mesmo que no
âmbito estrito da ficção, a leitura da sua trajetória pode ser relacionada
legitimamente não só com o silêncio individual que lhe foi imposto, mas
com a “noite” que caiu sobre todos aqueles que se expressaram ou agiram
contra as ditaduras que grassaram na América Latina durante a segunda
metade do século XX.
27
Idem. Ibidem.
32
3.3 - O Tenente: um prisioneiro de si mesmo
Poderás ir até a esquina
comprar cigarros e voltar
ou mudar-te para a China
-só não podes sair de onde tu estás
.
(Mário Quintana, Liberdade Condicional)
Em uma leitura reducionista, pode-se afirmar que o romance O
Prisioneiro narra a noite que antecede a volta de um militar ao seu país
de origem e está organizado em 29 fragmentos de tamanho irregular. Tem
como protagonista o Tenente, terceiro na hierarquia militar e único
mestiço entre seus pares.
Pela voz de um narrador onisciente, inicia-se a narrativa do
romance O Prisioneiro com a descrição detalhada do espaço que lhe
servirá de cenário, simultaneamente à descrição dos seus habitantes e
também do momento conflagrado em que vivem. Embora haja referências
textuais a elementos da cultura oriental, como é o caso de sampana,
Cidade Proibida, bonzos, confucionista, a indeterminação prevalece na
construção espacial: aquela península do sudoeste da Ásia, uma cidade
asiática. Isso converge para que não o espaço, mas, sim, a atmosfera
ocupe o primeiro plano da narrativa. É a atmosfera, descrita com forte
base impressionista, que cumpre papel caracterizador de uma série de
eventos pelos quais passará o protagonista da obra.
Essa atmosfera está concebida reiteradamente como
sufocante, úmida, pastosa, densa, com cheiros pegajosos, doces e acres ao
33
mesmo tempo, o que estende seu sentido para uma certa confusão e
simultaneidade de sentimentos do próprio protagonista. No momento em
que é apresentado, o protagonista acha-se imerso num estado de torpor,
cuja causa sugerida pelo contexto da narrativa compreende, de um lado, a
dinâmica vertiginosa das suas lembranças - remotas ou recentes - e, de
outro, o clima, a atmosfera do lugar em que ele se encontra: algo
sufocante, limitador da vontade:
Fazia algum tempo que estava deitado em sua cama, completamente
despido, tentando vencer o torpor que o colava aos lençóis molhados
não só do suor do seu próprio corpo como também da umidade que
descia com a noite e entrava pela janela com os ruídos da rua.
Precisava levantar-se, tomar um banho, vestir-se...
28
Em seguida, vencida a lassidão inicial, o Tenente dirige-se ao
restaurante onde marcara um jantar com sua amiga, a professora. Mesmo
na rua, no ambiente externo, a sensação de opressão persiste na descrição
dessa atmosfera:
Depois da caminhada, curta mas mesmo assim penosa, do hotel ao
restaurante, através da atmosfera pesada e úmida, o Tenente sentia
agora, graças ao ar condicionado, uma promessa de bem-estar, ali no
interior do L’Oisseau de Paradis’.
29
O bem-estar do Tenente está condicionado ao artificialismo do
ambiente. O clima por si só traz-lhe desconforto e dá um pouco da
dimensão da sua contrariedade, da sua inadaptação.
28
O Prisioneiro. p.47.
29
O Prisioneiro. p.62.
34
Em alguns momentos da narrativa há uma espécie de
prolongamento da interioridade dessa personagem no espaço, mais
exatamente na atmosfera que está concebida, no mais das vezes, sob um
paradigma limítrofe ao da consciência:
As luzes da cidade estavam amortecidas. As pessoas que passavam na
calçada pareciam figuras de sonho. Um que outro automóvel ou velo-
taxi rodava ao longo da avenida. A lua parecia persegui-lo como um
implacável olho sem pálpebra.
30
Tais construções estílisticas recorrentes, que se tornam pontuais
para o desvelamento psicológico do Tenente, podem ser compreendidas
como um motivo livre, conforme a descrição feita pelo formalista russo
B.Tomachevski (1976). O autor, no início do século XX, definiu motivo
como a unidade temática que encontramos em diversas obras
31
. A partir
desse conceito genérico, categoriza os motivos em vários tipos, tais como,
motivo associado, livre, modificador, entre outros. O motivo livre é aquele
que mantém uma relação estreita com o tema do romance, concorrendo
para sua unidade, porém, pode ser excluído sem que seja anulada a
sucessão cronológica dos acontecimentos narrativos.
Esse parece ser o caso da função descritiva da atmosfera, do clima
em O Prisioneiro: sua reiteração prolonga e distende a opressão de que é
vítima o protagonista, potencializando-a e dramatizando-a.
30
O Prisioneiro. p.101.
31
TOMACHEVSKI, B. “Temática”In: Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto
Alegre: Globo, 1976. p.174.
35
Da mesma forma a lembrança, entendida como o ato involuntário
de lembrar fatos, pessoas, enfim, de trazê-los de volta ao consciente, tem
uma função capital na configuração humanizadora dessa personagem,
pois vai lhe conferir densidade e desvelar sua problemática interior, seus
conflitos, sua incompletude. Geralmente evocadas pelo sentido do olfato,
as lembranças surgem de maneira acumulativa e desordenada
temporalmente e fazem do Tenente uma consciência, no mais das vezes,
atormentada, verdadeiramente torturada pelos episódios, passados ou
recentes, que trazem a marca comum da intolerância e da fraqueza
humanas: lembranças havia que eram úlceras da memória.
32
Importante considerar que o Tenente não é um militar por
formação. Na verdade é um psicólogo que viu nessa guerra, travada entre
seu país e um hipotético país oriental, a possibilidade de fugir de sua
própria “guerra interior”, qual seja: o fato de ser um mestiço, filho de pai
negro e de mãe branca, num lugar onde negros e mestiços são
considerados apenas cidadãos de terceira classe. (Os cães e gatos de
estimação eram os de segunda).
33
Numa sociedade que chega a organizar-se para praticar a
intolerância e legitimar o preconceito racial, o Tenente, desde criança, é
espectador e portanto vítima indireta do ódio racial nela instalado:
(...) e espiava, por uma fresta de janela, o jardim de sua casa, onde
ardia sobre a relva uma grande cruz de fogo. Vultos brancos com altos
32
O Prisioneiro. p.60.
33
O Prisioneiro. p.75.
36
capuzes brancos moviam-se como espectros por entre as árvores. Seu
coração batia descompassado. Tinha ouvido falar naquela sociedade
secreta
34
que perseguia homens de cor. Conhecia histórias de arrepiar.
Costumavam despir os negros, besuntar-lhes os corpos de alcatrão e
depois fazê-los rolar sobre um monte de penas de aves. Sabia de outros
casos ainda mais terríveis – linchamentos, torturas, enforcamentos...’A
cruz de fogo no jardim’...
35
Aprende com isso a odiar sua própria raça e culpa-se por ser
incapaz de amar o pai. Na verdade, nutre por ele sentimentos como
vergonha, nojo, repulsa e revolta. A impossibilidade de aceitar a sua
condição racial faz com que ele se sinta um covarde, incapaz de reagir
frente às atrocidades cometidas contra o pai. Nesse sentido, a narrativa
traz, em flashback
36
, um episódio em que seu pai fora espancado e
humilhado, sendo que sua “culpa” era o fato de ser negro, e de como o
Tenente fugira e assistira à cena de longe, sem esboçar qualquer reação.
Pensava, isto sim, em proteger-se, em não se tornar uma vítima direta
daquela violência explícita, cujas bases estão assentadas na crença do
poder de uns sobre os outros.
É o preconceito racial agindo subliminarmente à sua consciência,
deixando “marcas” e impedindo-o de ter uma vivência harmônica e
equilibrada, quer quando em companhia dos seus pais, na escola, no
trabalho ou mesmo quando constitui a sua própria família. Emerge, na
34
Referência à sociedade secreta norte-americana Ku Klux Kan, fundada em 1865, de
orientação nacionalista radical, que combate a negros, judeus e católicos.
35
O Prisioneiro. p.52.
36
Pelo flashback, recurso literário que prevê a interrupção da seqüência cronológica,
interpolando ações, as lembranças – involuntárias e condicionadas, no mais das vezes, pelo
sentido do olfato – cumprem sua função de gatilho, ou seja, de circunstâncias que deflagra o
mecanismo da memória, atualiza-a.
37
conjuntura ficcional, um indivíduo atormentado ora pela culpa, ora pela
inércia. São as lembranças novamente, como dado objetivo, recorrente e
relacionado ao aspecto concreto da sensação – cheiros, odores - que
tornam a vida do Tenente algo insuportável. Nem mesmo a ilusão de uma
trégua em terras distantes se efetiva, pois a personagem, a semelhança do
homem, ao deslocar-se espacialmente, leva consigo inapelavelmente
também a sua problemática.
Benjamin Abdala Júnior (2002) ao tratar questões sobre hibridismo
cultural, embora o faça com o foco na conjuntura social brasileira, traz
uma formulação esclarecedora acerca da problemática encerrada no
conceito de mestiçagem:
(...) a mestiçagem pressupõe a existência de seu contrário, isto é, da
‘pureza’, isto é, da ausência de uma hibridez constitutiva. A ‘pureza’,
nesses termos, não faz parte, pois, da realidade. (...) Pureza racial (...) é
mitologia afim de ideologias autoritárias e totalitárias.
37
Considerando-se que historicamente, mesmo na origem das
civilizações pode-se dizer, grupos humanos estiveram à frente de grandes
movimentos migratórios, houve um constante cruzamento, mistura ou
entrelaçamento, de variadas raças, etnias ora dominadas, ora
dominadoras. Decorre disso uma impossibilidade concreta para que o
outro, no caso o branco, outorgue-se o direito à “pureza”, atitude que,
invariavelmente, serve como instrumento de opressão, como meio de
37
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Fronteiras Múltiplas, Identidades Plurais: um ensaio
sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002 –
(Série Livre Pensar; v.13) p.10.
38
colocar à margem da sociedade aquele que lhe é diferente. Está
configurado, em outros termos, o preconceito racial como conduta
ideológica que, sob a perspectiva apresentada, é também irracional, pois
não encontra respaldo em nenhum conhecimento científico, determinante
ou definitivo, que o justifique. Na verdade, forja-se todo um imaginário,
de base empírica, a orientar muitas dessas atitudes discriminatórias em
relação à raça.
O contexto narrativo reserva à escola um papel importante na
manutenção e prolongamento desse estigma discricionário. Há referência
a um episódio em que o filho do Tenente, criança ainda, é vítima do
preconceito à saída da escola: alvejado por uma pedra, tem seu rosto
ferido. Na compreensão do filósofo francês de orientação marxista, Louis
Althusser (1989), a escola inclui-se no que ele definiu como aparelhos
ideológicos do estado
38
, pois na mesma medida em que não conta com a
repressão de caráter explícito em suas instâncias, age efetuando um
controle subliminar à consciência dos indivíduos. Isso poderia justificar a
atitude dos colegas do filho do Tenente que, numa explosão incontrolável
de ódio racial, denunciam quão frágeis são os mecanismos da escola para
desenvolver um sentido de humanidade e respeito às diferenças naqueles
que estão sob seus auspícios. Importante não desconsiderar o papel da
família, que também está incluída, pelo filósofo francês, entre os
aparelhos ideológicos do estado, responsável última pelo
desenvolvimento humanitário do indivíduo.
38
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p.24.
39
O Tenente cumpre ordens do Major e do Coronel, ambos brancos e
com vidas afetivas desajustadas, o que deixa evidente a tese de que a
condição racial de per se não é garantia de totalidade, de harmonia, como
ele pretende que o seja. O protagonista, por sua vez, tem como seu
subordinado o Sargento, personagem descrita como rude, truculenta,
fisiológica e com grande poder de influência. Essa influência se faz sentir
sobremaneira e torna-se determinante para o desfecho da narrativa,
especialmente em função de o protagonista estar configurado como um
militar despreparado, atormentado por crises de consciência, chegando até
mesmo a identificar-se com o guerrilheiro - o prisioneiro de fato - a quem
fora incumbido de interrogar:
Agora o Tenente sentia contra o flanco as batidas do coração do
guerrilheiro. Houve como que um momento de comunhão. Ele pensou
de novo em K. e lhe veio uma súbita pena dela, do prisioneiro e de si
mesmo, e uma vontade quase irreprimível de chorar.
39
Nesse sistema hierárquico militar referido, tem-se a segunda face
da opressão de que é vítima o herói configurado por Erico Verissimo.
Horas antes de embarcar rumo ao encontro da família e também do
problema onipresente do racismo, o Tenente recebe ordem expressa de
interrogar um suspeito de ser um dos guerrilheiros responsáveis pela
explosão do Café Caravelle e que também seria o responsável por outra
tragédia anunciada: a explosão de uma escola nas próximas horas. Não há
como eximir-se da ordem. Despreparado para uma situação-limite como
essa, em que deverá descer aos porões e interrogar, utilizando para tanto
todos os meios que lhe parecerem necessários para obter a confissão do
40
Prisioneiro, o Tenente vive momentos de intensidade dramática, de
questionamentos éticos e acaba por subjugar-se à truculência de seu
subordinado, o Sargento. É deste que parte a iniciativa de usar a tortura
física e, fragilizado, no limite da sua integridade psicológica, o Tenente
acaba por avalizar tal método, não sem entrar em uma crise de
consciência sem volta, para a qual conflui vertiginosamente toda sua
problemática anterior, num jogo intrincado de culpa, medo, remorso,
vergonha e todo um paradigma marcadamente negativo.
O Tenente, ao presenciar e ter sob sua responsabilidade uma sessão
de tortura e a conseqüente morte do prisioneiro, acaba por perder sua
limítrofe integridade psicológica. Ele age como um desvairado e, num
estado de quase inconsciência, protagoniza dramaticamente sua tragédia
pessoal previamente anunciada por aquele que lhe é hostil, o porteiro
nativo oriental. Interessante observar que a primeira referência feita ao
Tenente dá-se de maneira indireta, mais exatamente pelo olhar de um
porteiro de hotel, nativo e dotado de poderes divinatórios. Este o
descreve, conjectura e vaticina sobre o destino do protagonista. O Tenente
anuncia-se então como uma personagem que, já na sua origem, nasce
marcada pelo estigma da tragédia.
Tem-se assim uma personagem que conduz sua ação para a
confirmação de um destino, como se fosse impossível ao homem
contemporâneo, o qual esse ser ficcional representa, escapar ou
prevalecer sobre a “engrenagem”, termo cunhado pelo próprio autor. É
39
O Prisioneiro. p.155
41
ela que sufoca, paralisa e faz perceber o destino do Homem, talvez da
Humanidade, como uma resultante de um jogo interminável de forças.
Como o Tenente, as demais personagens do romance O
Prisioneiro são inominadas, referidas genericamente pelo papel
profissional (ou funcional) que desempenham no contexto narrativo –
indício inconteste da dimensão universal que alcança sua temática.
Conforme Antonio Candido (1978), este parece ser o caso de uma
narrativa em que cada personagem deixará de ser apenas uma personagem
para transformar-se em paradigma, encarnar uma representação social
40
.
As personagens sem nomes próprios, por uma espécie de processo de
desindividuação, tornam-se emblemáticas e trazem a possibilidade de
pensá-las enquanto verdadeiros recortes metonímicos de uma situação
social que transcende as fronteiras da fabulação. Tais personagens de O
Prisioneiro gravitam em torno do protagonista, interagindo
dialogicamente, cada uma por seu turno, com ele, recurso expressivo para
o próprio desvendamento interior do protagonista. Quando lhe é dada voz
ativa, nos diálogos com as demais personagens, é que o Tenente consegue
potencializar o drama de que se julga vítima.
Ele tem como sua melhor amiga, e principal interlocutora, uma
professora voluntária que, embora tenha nascido nesse país da longínqua
península oriental, foi criada no exterior. Em jantar de despedida na
companhia da Professora, o qual ocorre na véspera do dia marcado para
seu retorno à América, o Tenente é levado a refletir sobre o papel da
40
CANDIDO, Antonio. Tese e Antítese.São Paulo: Editora Nacional, 1978.
42
nação, que está a defender, no destino dos povos. Trata-se de questão
histórica da ordem do dia, em que se vê esfacelada a divisão dicotômica
do mundo em dois grandes impérios, com uma evidente tentativa de
centralização em um único. Esse é mais um motivo de definição do perfil
de um herói angustiado e problemático ao deparar-se e expressar tal
realidade. Georg Lukács (1968), em seu artigo Fisionomia Intelectual da
Personagem de Ficção, define os diálogos protagonizados pelas
personagens da narrativa como indícios reveladores da sinceridade, uma
vez que o ato de ouvir constitui (...) uma parte das mútuas relações que
os homens estabelecem entre si.
41
É nessa relação que se pode ver
confirmada a configuração de um herói reflexivo e desarticulado com a
sua própria condição de representante de uma nação que se prevê
hegemônica, pois considera-se dona da verdade e do bom caminho.
Assim, a prosa ficcional de O Prisioneiro materializa um
indivíduo que nasce, cresce, sofre e vive sob o signo da negação, do medo
e da culpa. Ele nega obsessivamente sua condição de negro; tem pânico
de ser “reconhecido” pelo seu sangue, já que na aparência não herdou os
traços negróides do pai; convive com o sentimento de culpa por ter-se
sentido aliviado, mesmo que momentaneamente, quando da morte do pai
e ainda por legar a seu filho a continuação do sofrimento decorrente da
intolerância racial na sociedade em que vivem. Nos limites da narrativa, o
Tenente aparece ainda como um ser ficcional detentor de poder de vida e
morte sobre um indivíduo, poder esse concretizado pelo meio da tortura
41
LUKÁCS, Georg. “Fisionomia Intelectual da Personagem de Ficção”. In: Marxismo e
Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.198.
43
física, o que dimensiona sobremaneira o seu sofrimento até à última
conseqüência: o suicídio.
Por conseguinte, o herói desta narrativa pode ser compreendido
como o verdadeiro prisioneiro. Prisioneiro da sua própria consciência e
do seu próprio preconceito. Torna-se, dessa maneira, legítimo descrever
sua trajetória como um caminho ao obscuro. Sai de uma sociedade que
nunca o acolhera legitimamente; cumpre ordens numa sociedade
conflagrada por uma guerra de feição colonialista; desce aos porões ainda
cumprindo ordens e finalmente é acometido pela vertigem, a alucinação
que o faz reagir tardia e ineficazmente contra o preconceito, verdadeiro
gerador da sua condição efetiva de prisioneiro. Triplamente oprimido:
pelo sistema militar, que não lhe dá chance de escolha e o torna
inadvertidamente um torturador; pelo preconceito racial (de ordem social
e individual), que lhe torna a vida um tormento e desorganiza suas
emoções e também pelo clima, pela atmosfera do lugar onde se encontra.
Esse é o herói configurado pelo escritor gaúcho. Herói que problematiza
sua condição e acaba por protagonizar um drama de dimensões humanas
e humanizadoras.
44
IV – A FICÇÃO DE ERICO VERISSIMO E SEU CONTEÚDO
POLÍTICO
Em todos os aeródromos, em todos os estádios, no ponto
principal de todas as metrópoles, existe – quem é que não viu? –
aquele cartaz...
De modo que, se esta civilização desaparecer e seus dispersos e
bárbaros sobreviventes tiverem de recomeçar tudo desde o princípio –
até que um dia também tenham os seus próprios arqueólogos –, estes
hão de sempre encontrar, nos mais diversos pontos do mundo inteiro,
aquela mesma palavra.
E pensarão eles que Coca-Cola era o nome do nosso Deus
!
(Mário Quintana, O Supremo Castigo)
4.1 - A grande fábula latino-americana
Em entrevista publicada no Jornal do Comércio de Porto Alegre,
sob o título A reforma do caráter é a reforma mais urgente para
salvar o Brasil, Erico Verissimo, ao ser questionado sobre qual seria sua
próxima obra, responde: Vai chamar-se O Senhor Embaixador, e se passa
simultaneamente em Washington D.C. e em El Sacramento, república de
minha invenção e propriedade, simbólica de muitos países da América
Central.
42
A escolha dos cenários, um factual e outro ficcional, para a
composição da obra O Senhor Embaixador, cria um espaço privilegiado
para discussão das relações políticas entre a América Latina e os EUA.
De um lado, o poder hegemônico, intervencionista, representado por
42
BORDINI, Maria da Glória (Org.). A Liberdade de Escrever: entrevistas sobre literatura
e política.Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS/EDIPUCRS/Prefeitura Municipal de
Porto Alegre, 1997. Coleção Engenho e Arte. p.14.
45
Washington D.C. e , de outro, a república hipotética caribenha, El
Sacramento, marcada pela corrupção, tirania, privação da liberdade e
desigualdades sociais.
A república de El Sacramento, ou simplesmente Sacramento, es
concebida de forma semelhante, ou em paralelo, à realidade
historiográfica de grande parte dos países latino-americanos. Pode-se
perceber uma homologia entre a estrutura da sociedade desses países e o
conteúdo da representação romanesca em O Senhor Embaixador, o que
se dá em vários momentos.
Inicialmente tem-se, como uma espécie de advertência, na voz da
personagem Bill Godkin, um jornalista americano não coincidentemente
especialista em América Latina, a relativização da história enquanto
registro:
Isso a que chamamos fato não será uma espécie de iceberg, quero dizer,
uma coisa cuja parte visível corresponde apenas a um décimo de seu
todo? Porque a parte invisível do fato está submersa nas águas dum
turvo oceano de interesses políticos e econômicos, egoísmos e apetites
nacionais e individuais, isso para não falar nos outros motivos e
mistérios da natureza humana, mais profundos que os do mar.
43
A metáfora do iceberg, um todo que tem sua maior parte oculta e
portanto desconhecida, desdobra-se numa prática muito comum: a criação
de fatos políticos. Tais “fatos” servem tanto para derrubar, quanto para
legitimar governos. Nutrem-se de uma acomodação de interesses sempre
relacionada ao poder. No contexto da república caribenha de Sacramento,
há pelo menos duas situações em que fica evidente a relativização dos
43
O Senhor Embaixador. p.4.
46
fatos, nas quais emerge, na verdade, o nefasto iceberg de que falava Bill
Godkin.
Leonardo Gris em conversa com Pablo Ortega faz a seguinte
dedução:
É que se poupassem a vida de Moreno, homem respeitado, não só no
país como no estrangeiro, ficariam com uma batata quente nas mãos.
Se o fuzilassem às claras, a opinião mundial se ergueria contra eles
prejudicando-os tremendamente. Inventando a história do suicídio, os
facínoras não só se livraram do problema como tiveram elementos para
uma infâmia ainda maior: a mentira de que Moreno se suicidara porque
temia que se fizesse uma devassa na sua administração e se
descobrissem todos os “negócios ilícitos” que ele fizera em proveito
próprio. Compreende agora?
44
O fragmento trata da deposição do presidente Moreno pelo grupo de
Juventino Carrera, atual presidente de Sacramento. Diante do inelutável da
morte do opositor, Juventino Carrera e seus companheiros constroem um
fato político, na medida em que tudo é estrategicamente calculado para
que macule o menos possível o prestígio, a imagem daqueles que chegam
ao poder. Para tanto, a parte visível do iceberg deixará à mostra apenas o
que for conveniente aos olhos internos e externos, sem problemas éticos
em relação à manipulação ou omissão de informações.
Outro episódio ficcional exemplar desse tipo de manobra política,
tão ao gosto das oligarquias latino-americanas, tem como protagonista o
próprio embaixador, Gabriel Heliodoro:
44
O Senhor Embaixador. p.73.
47
Aí está a oportunidade que esperávamos. Vivanco fazia parte duma
conspiração esquerdista. O meu assassínio seria o sinal para
começarem os atos de terrorismo e sabotagem no Sacramento,
compreendes?
45
É interessante observar o grau de frieza que acompanha a criação
deste fato político, pois Gabriel Heliodoro, ao enunciar o conteúdo do
fragmento, está tomando café diante do corpo de Pancho Vivanco. Trata-
se de um crime passional sem a menor conotação política: Gabriel
Heliodoro era amante de Rosalía Vivanco, esposa de Pancho. Torcem-se
os fatos na medida da necessidade de um episódio que autorize o atual
governo de Sacramento a colocar sua mão de ferro sobre as instituições
sacramentenhas. Um funcionário da embaixada de Sacramento, no caso
Vivanco, que tenta matar o embaixador torna-se o “fato político” ideal
para tentar contornar uma situação de instabilidade política. Mais uma vez
a parte visível do iceberg traz consigo o que é do interesse político de um
grupo.
Para o sociólogo Octavio Ianni (1993) a nação latino-americana
caracteriza-se por uma instabilidade política crônica, reiterada,
recorrente. Uma instabilidade freqüentemente acompanhada de violência
e de alterações bruscas de diretrizes econômicas, sociais e políticas.
46
Pode-se, a partir dessa afirmação, colocar a história de Sacramento em
paralelo com a história das repúblicas latino-americanas, uma vez que a
instabilidade rouba a cena quando o assunto é América Latina, espaço de
45
O Senhor Embaixador. p.277.
46
IANNI, Octavio. O Labirinto Latino-Americano. Rio de Janeiro: Vozes, 1993. p. 16.
48
muitas peculiaridades. Ao longo de uma história política complicada, na
qual ditadores civis sucederam a ditadores militares, ou estes àqueles,
onde caudilhos e populistas fizeram escola, a democracia faz parte de um
período recente e ainda acha-se limitada e circunscrita a determinadas
regiões dessa vasta América.
Em Sacramento, são ditaduras que se sucedem, à exceção do
governo de Julio Moreno, com a particularidade de que se vêem como tal
quando chegam ao poder. Bill Godkin, ao comentar a chegada de
Juventino Carrera ao poder, analisa esse fenômeno político, estendendo-o
à América Latina:
Seguiu a regra geral latino-americana. Derrubou o tirano e acabou
tornando-se também um tirano. Sabe qual foi a primeira coisa que fez
depois que se aboletou no Palácio do Governo? Assinou um decreto,
promovendo-se a si mesmo a generalíssimo, à feição de Trujillo
47
, de
quem se tornou mais tarde amigo, compadre e aliado.
48
Toda a longa e acidentada história da república caribenha acha-se
narrada pela personagem Pablo Ortega. Este lê e revisa a dissertação da
estudante americana Glenda Doremus, que trata exatamente da história
política de Sacramento. Pablo Ortega demonstra ser um profundo
conhecedor do seu país, desde a sua mais remota origem até os dias atuais.
Porém, seu conhecimento entra em conflito com o registro oficial dos
fatos, do qual o trabalho de Glenda é credor. Decepcionada, frustrada,
indignada mesmo fica a estudante americana, já que seu trabalho está
muito longe do que Pablo coloca fria e racionalmente como a verdade dos
47
Referência a Rafael Leônidas Trujillo (1891-1961), general e político dominicano.
49
fatos. O episódio serve para mostrar a outra face da relativização da
história que está na base da tessitura narrativa da obra do escritor gaúcho.
Erico Verissimo em O Senhor Embaixador diminui, como recurso
narrativo, a distância entre o mundo construído e o mundo oferecido. De
acordo com Fábio Lucas (1989),
Muitos autores tentam impor à obra um mundo construído, isto é,
desvinculado dos fatores transitórios da época; outros,
deliberadamente agregam ao produto da imaginação o mundo
oferecido. Deixam aberta ao leitor uma “verdade explícita”, mais
diretamente franqueada às operações hermenêuticas.
49
O mundo oferecido figura na obra do autor gaúcho com muita
desenvoltura. São tomados da realidade factual cenários, personagens da
cena política latino-americana e episódios da história política latino-
americana. O aproveitamento desses elementos, aliado à referência a
artistas da música e das artes plásticas, faz com que a narrativa ganhe em
densidade, em verossimilhança. De uma certa maneira, contextualiza a
narrativa e confere um estatuto de realidade e uma aura de verdade à
ficção, por mais paradoxal que possa parecer tal afirmativa.
A personagem Bill Godkin, jornalista em fim de carreira
especialista em América Latina, ilustra com autoridade essa confluência
entre o mundo oferecido e o mundo construído. Numa oportunidade, ao
chegar ao seu apartamento, antes de ir para cama, decide ficar no living
48
O Senhor Embaixador. p.19.
49
LUCAS, Fábio. Do Barroco ao Moderno. São Paulo: Ática, 1989. p.167.
50
fumando seu cachimbo e observando suas coisas. Na voz do narrador
onisciente:
(...) Suas paredes estavam cheias de quadros com fotografias de
personalidades famosas que entrevistara durante suas três décadas de
vida jornalística. Tinha retratos autografados de Gómez da Venezuela,
Sandino, Cárdenas, Pérez Jiménez, Vargas, Ubico, Somoza, Santos
Dumont, Gabriela Mistral... Ergueu-se para examinar de perto, com
uma curiosidade particular, a ampliação que mandara fazer da
fotografia que em 1925 ele próprio tirara de Juventino Carrera cercado
de seu Estado-Maior, no alto da Serra da Caveira. Lá estavam os
barbudos bandoleiros, com seus chapéus de abas largas, cartucheiras a
tiracolo, facões e revólveres nos cintos.(...)
50
Nesse fragmento, observa-se a referência a várias figuras que
fizeram história na América Latina, como Gómez, Vargas entre outros,
também ao inventor brasileiro Santos Dumont e à poeta chilena Gabriela
Mistral. Ao lado dessas personalidades, figura Juventino Carrera habitante
inequívoco de Sacramento. De um lado, personagens do mundo oferecido,
figuras decalcadas da história, de outro, personagem e cenário que
pertencem unicamente ao mundo construído por Erico Verissimo. Quando
se desfaz a distância entre um e outro a narrativa ganha força dramática, e
acaba por transfigurar a história em ficção.
Além da questão da crônica instabilidade política da América
Latina referida anteriormente, com frágeis democracias quando as tem,
outro aspecto temático que pode ser observado, no contexto da narrativa
de O Senhor Embaixador, são as relações entre os Estados Unidos e a
América Latina. Fábio Lucas (1989) chama a atenção para o fato de que a
50
O Senhor Embaixador. p.85.
51
maior parte da narrativa passa-se em Washington D.C., embora a história
a ser contada seja a da república do Sacramento. Segundo o autor isso se
dá por uma impossibilidade não só de Sacramento, mas de todas as nações
latino-americanas, que ela representa ou simboliza, de resolverem
internamente seus problemas. Há uma dependência externa, mais
exatamente dos Estados Unidos, que acaba por deslocar o centro dinâmico
das resoluções para longe da sua origem.
Assim compreende tal relação o sociólogo Octavio Ianni (1993):
Na América Latina, as relações externas constituem uma determinão
essencial.(...) Uns falam em interdependência, parceria, associação,
etc. Outros se referem à subordinação, perda da soberania,
administração externa. Podem mudar as interpretações, mas todos
reconhecem a importância das relações externas na conformação
externa e interna tanto do Haiti como do México, do Paraguai como do
Brasil.
51
Para o bem ou para o mal, parece que se tornou inquestionável a
ingerência dos Estados Unidos nos assuntos da América Latina. Tem-se a
Segunda Guerra Mundial como o divisor de águas dessa relação. É desde
a década de quarenta do séc. XX, principalmente, que os Estados Unidos
investiram-se do direito de controlar e decidir o que é melhor para os
latino-americanos. Afinal a política americana para a América Latina está
alicerçada em dois aspectos principais: a ampliação de um mercado
consumidor e a manutenção do fornecimento de matérias-primas. Para
tanto vale invadir, como aconteceu no Panamá em 1989, derrubar
51
IANNI, Octavio. O Labirinto Latino-Americano. Rio de Janeiro: Vozes, 1993. p.59.
52
governos, como foi o caso do Brasil em 1964, entre muitos outros
episódios recentes da história da América Latina.
Ao perambular pelos cenários de Washington D.C., é novamente
Bill Godkin, em suas reflexões, que formula o paradoxo dessa relação
entre forças desiguais: Como poderia um estadista puritano compreender
a América Latina?
52
Essa pode ser uma representação ficcional a que o
acadêmico especialista em assuntos da América Latina, Lars Schoultz
(2000), chamou de “um poderoso mind set”.
Numa série de 19 ensaios sobre as relações da América Latina com
os Estados Unidos
53
, a medida comum entre todos é a defesa da existência
de uma espécie de estrutura mental (mind set) que, ao longo da história,
firmou-se e faz com que os americanos olhem a América Latina com
olhos negativos e do alto de uma superioridade com pretensões
hegemônicas. Tem sido assim ao longo de décadas e de sucessivos
governos. Esmagadoramente negativa na sua origem é a opinião dos
políticos americanos sobre a América Latina. Como exemplo, já no
distante governo de John Quincy Adams, nos primeiros decênios do
século XIX, um funcionário graduado emite a seguinte opinião sobre os
latino-americanos, transcrita por Lars Schoultz:
(...)
parece improvável que possa haver alguma outra região da terra
onde a natureza e o comportamento humano pudessem ter se
52
O Senhor Embaixador. p.8 (O estadista puritano a que o jornalista faz referência é Jhon
Foster Dulles, secretário de estado americano durante o governo de Eisenhower, tendo
exercido tenazmente oposição à expansão comunista).
53
SCHOULTZ, Lars. Estados Unidos: poder e submissão. Bauru/SP: EDUSC, 2000.
53
combinado para produzir um background mais infeliz e sem esperança
para a conduta da vida humana do que na América Latina.
54
Com opiniões tão desaconselháveis somando-se ao logo da história
americana, um estadista puritano coerentemente não poderá ter olhos
compreensíveis para a América Latina. Torna-se uma necessidade interna
que lhe seja impossível entender uma “terra de bárbaros, mestiços e
preguiçosos.”
Difícil uma narrativa de cunho político, como é o caso de O Senhor
Embaixador, não conformar um ideário. São várias as estratégias que o
autor utiliza para desvelar opiniões políticas, ora absolutamente
revolucionárias e contestadoras, ora convenientemente
contemporizadoras, rompendo com possíveis e frágeis maniqueísmos.
Uma dessas estratégias é a longa conferência, já mencionada
anteriormente, que profere na American University o professor Leonardo
Gris. Entre tantos temas tratados pela personagem, que vão desde a
relação perniciosa entre a igreja e a ditadura sacramentenha até a
corrupção em várias esferas do poder, a relação Estados Unidos e América
Latina também figura como um de seus temas. Segundo Leonardo Gris:
As boas intenções de vosso Governo e o vosso sacrifício como
pagadores de altos impostos são prejudicados pela ganância de
algumas companhias e grupos financeiros deste país que têm
investimentos na América Latina. Parece interessar ao vosso big
business que continuemos a ser banana republics, sem indústria
própria, eternos produtores de matérias-primas a baixo preço. Creio
que esses grupos de pressão americanos lograram convencer vosso
Governo de que seus interesses privados são os próprios interesses de
54
SCHOULTZ, Lars. Estados Unidos: poder e submissão. Bauru/SP:EDUSC, 2000. p.366.
54
todo o povo dos Estados Unidos, e como resultado disso conseguem
que esta grande nação empregue seu prestígio, sua força política e, se
necessário, sua força militar, para garantir, nos países
subdesenvolvidos da América Latina, a continuação dos privilégios
que esses trustes e monopólios ianques lá gozam e que – notem bem! –
as próprias leis dessa nação lhes negam aqui dentro.
55
O professor universitário exilado, no seu pronunciamento, exime o
povo americano da responsabilidade pela exploração dos países latino-
americanos. Entretanto, faz uma crítica severa ao poderio econômico,
representado pelas grandes empresas multinacionais, e ao governo que
“ingenuamente” avaliza as políticas exploratórias do capital. Nota-se aqui
um comportamento sereno e criterioso em relação à crítica formulada pela
personagem do prof. Leonardo Gris, pois uma vez que a mesma não se
acha generalizada a todas as instâncias da vida americana, ela ganha em
seriedade por atingir exatamente o ponto: o capital e seus detentores.
Portador de uma posição ainda mais contestatória emerge da
narrativa a figura de Orlando Gonzaga, brasileiro e funcionário da
embaixada do seu país. O jornalista Bill Godkin, seu amigo, num
momento de raro desalento, diz-lhe que para os padrões americanos ele
deve se considerar um fracassado, uma vez que não enriqueceu, nem
tornou-se famoso. Estando os dois amigos em um bar, Orlando Gonzaga
lhe responde: Mande para o diabo esses padrões, Bill. Quem são os
americanos para estabelecerem padrões absolutos para a humanidade?
Super-homens? Deuses?
56
55
O Senhor Embaixador. p. 216.
56
O Senhor Embaixador. p.13.
55
Há por parte de Orlando Gonzaga uma negativa veemente acerca da
hegemonia americana. Questiona a sua legitimidade e desqualifica os
americanos que, segundo ele, não teriam qualidades ou autoridade
suficientes para garantir tal pretensão. Observa-se aqui que o argumento,
espécie de índice de inconformidade, baseia-se numa postura
essencialmente passional, portanto, desprovida de uma lógica pelo menos
aparente.
Erico Verissimo consegue em O Senhor Embaixador, por meio de
várias estratégias narrativas, discutir muitos dos problemas que
historicamente estão presentes na América Latina. Faz isso especialmente
pela configuração das suas criaturas ficcionais, pois é pelo intermédio de
“homens” como Leonardo Gris, Pablo Ortega, Bill Godkin, por exemplo,
que se tem a problematização das questões políticas. Também é na voz
desses “homens” que a crítica atinge sua materialidade, torna-se verbo e
chega ao leitor. O Contador de Histórias faz a sua crítica ao status quo
desde um olhar interior, sem perder de vista a grandiosidade da
experiência humana, o que torna sua criação literária particular.
Em outra entrevista publicada na revista Manchete, n°1194, do Rio
de Janeiro, com o título de Erico Verissimo, A Liberdade de Escrever,
em 8 de março de 1975, o autor sintetiza a história do Sacramento:
Sacramento, onde o homem sofre e luta, aí está o assunto do escritor.
Essa é a condicionante do tempo da narrativa: viver na América Latina, na
segunda metade do século XX, significa exatamente sofrer e lutar. E é
56
isso que conforma a narrativa, pois as personagens sofrem com a opressão
de sucessivos governos ditatoriais e a luta pela liberdade é uma constante.
A historiadora Maria Lucia Barbosa (1995) traz a seguinte síntese
acerca do movimento histórico da América Latina:
Após Colombo (...) outros [conquistadores] se seguiram e foram
desenhando no grande painel da história os fatos que fizeram da
América Latina, em grande parte, o que ela é hoje: este amontoado de
espelhos partidos. Sociedades forjadas na coragem desmedida do
colonizador e na sua crueldade e intolerância, condicionadas desde
antigas eras por civilizações piramidais e teocráticas com seus altares
ritualísticos manchados de sangue, plasmadas no espírito da Contra-
Reforma, na cobiça e na aventura, feitas de contrastes e da audácia dos
conquistadores. Sociedades ainda em busca de si mesmas e do paraíso
perdido, tão parecidas entre si por serem fragmentos de um espelho
que se partiu.
57
Um espelho partido, Sacramento, no meio de tantos, qualquer país
da América Latina. Essa é uma das possibilidades que a obra O Senhor
Embaixador deixa latente: ler um pouco da história latino-americana
marcada por contrastes, fracassos, vitórias e fascínio. Uma narrativa que
não hesita em discutir questões sociopolíticas que estão na ordem do dia,
já que muitas delas ainda não encontraram solução na história recente
latino-americana. Erico Verissimo cria uma extensa galeria de
personagens, cria também um país de sua propriedade. Então cruza esses
elementos com “personagens reais”, com um cenário igualmente real.
Finalmente cria um enredo, uma fábula que vai ser a magistral síntese
desses dois aspectos que permaneceram separados até então: a história – a
57
BARBOSA, Maria Lucia V. América Latina: em busca do paraíso perdido. São Paulo:
Saraiva, 1995, p.17.
57
realidade - e a ficção – produto da criação. Disso resulta o político que vai
ser formado pela habilidade criteriosa do autor em conjugar história e
ficção.
58
4.2 - A História da Dominação Recorrente
Em seu estudo sobre a ficção brasileira pós-64, Malcolm Silverman
(1995) sistematiza boa parte da produção narrativa contemporânea. Entre
as diversas categorias criadas pelo autor americano para organizar essa
produção, ele inclui as obras O Senhor Embaixador e O Prisioneiro na
de romance realista político
58
. Isso estaria justificado em função de que
esses romances de Erico Verissimo tratam explícita e aprioristicamente de
questões sociopolíticas. Trata-se de uma ficção que se torna momento
exemplar para discussão e reflexão sobre importantes aspectos do
contexto político latino-americano, caso de O Senhor Embaixador, e
sobre questões que envolvem a guerra, a tortura e o neocolonialismo
especialmente, caso de O Prisioneiro. É a ficção ajudando a pensar a
realidade.
Ainda sobre o manifesto conteúdo político dos romances referidos,
vale reportar a resposta que o próprio autor, Erico Verissimo, deu à
pergunta de Adolfo Braga (1967):
Por que você mete a política nos seus livros? E por que não? A política
vive conosco, todos os dias, está nos jornais, na TV, no noticiário das
rádios, nos gestos de todos. A mesma coisa acontece com o sexo. Por
que não falar nesses dois assuntos que informam o dia-a-dia de todos?
Acho que política e sexo são duas coisas que merecem toda a nossa
58
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o Novo Romance Brasileiro. São Paulo/Porto Alegre:
Ed.UFSC/Editora da Universidade-UFRGS, 1995. p.201.
59
atenção e devem ser abordadas francamente, com a clareza com que a
gente as trata na intimidade.
59
Apreende-se da declaração do autor gaúcho o grau de importância e
o lugar que a política deve ocupar na vida dos indivíduos. Trazê-la para o
contexto da ficção naturaliza-se, portanto. Sendo assim, é através da forma
romanesca que Erico Verissimo faz uma espécie de quixotesca resistência
à perda gradual da liberdade que a história tem legado aos indivíduos.
Optando por um estilo mais concentrado, no qual os recursos
literários estão enxugados para que o efeito dramático potencialize-se, são
os diálogos que tomam a cena principal da obra O Prisioneiro. Nas cenas
criadas ao longo do romance, via de regra, são confrontadas duas
compreensões diferentes sobre os fenômenos políticos contemporâneos.
São situações dialógicas que deixam evidente ao leitor posturas
ideológicas conservadoras, radicais ou, por outro lado, em favor da
liberdade, do humano. É sob essa perspectiva dual, através do recurso dos
diálogos fundamentalmente, que Erico Verissimo conforma a discussão de
assuntos da ordem do dia, como a guerra, a tortura e o neocolonialismo.
No conjunto de personagens inominadas que habitam o romance O
Prisioneiro, são o Coronel e o Major os primeiros a protagonizarem um
extenso diálogo, que se estende ao longo de todo o terceiro fragmento do
romance, no qual posições políticas diametralmente opostas acham-se
expressas. O Coronel configura-se como o conservador, o defensor da
59
BORDINI, Maria da Glória (org.) A Liberdade de Escrever: entrevistas sobre literatura
e política. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS/EDIPUCRS/Prefeitura Municipal
de Porto Alegre, 1997. p.32.
60
validade da guerra em obediência a ordens superiores inquestionáveis e
definitivas. Já o Major, por sua vez, mesmo que timidamente, apresenta-se
como um pacifista, questiona e contesta a legitimidade e a ética de uma
guerra daquela natureza. Apesar de assumirem posições políticas distintas,
o desconforto ante aquela circunstância conflagrada acomete as duas
personagens. Na verdade, o que está dito é que ninguém, concordando ou
discordando das suas motivações, pode sentir-se à vontade quando se vê
envolvido num embate bélico, a despeito da posição em que se coloque.
No curso do diálogo referido, o Major cumpre o papel de
provocador. É a personagem que vai pôr em dúvida e questionar tanto os
meios, como a motivação e as estratégias da guerra. O coronel será levado
a afirmar e confirmar a necessidade americana, até mesmo “natural”, de
controlar boa parte do planeta. Nas suas palavras: Não aceito a idéia de
que sejamos dragões destruidores e sanguinários. Na minha opinião,
nosso país tem no mundo uma missão civilizadora.
60
Tal missão civilizadora que a personagem refere é o que se
convencionou chamar de imperialismo americano, na confluência entre
ficção e história. De onde surgiu e qual a motivação para um
comportamento de dominação que não reconhece fronteiras ou limites?
Noam Chomsky (1999) formula uma resposta bastante viável. Segundo
ele:
60
O Prisioneiro. p.27.
61
Durante a Segunda Guerra Mundial, grupos de Estudo do
Departamento de Estado e do Conselho de Relações Exteriores
desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que
eles denominaram a “Grande Área”, para que esta fosse subordinada às
necessidades da economia norte-americana. Estavam incluídos na
“Grande Área” o Hemisfério Ocidental, a Europa Ocidental, o Oriente,
o antigo império Britânico (que estava sendo desmantelado), as
incomparáveis fontes de energia do Oriente Médio (que estavam então
passando para as mãos americanas ao mesmo tempo em que
expulsávamos nossos rivais, França e Inglaterra), o resto do Terceiro
Mundo e, se possível, o mundo inteiro. Esses planos foram sendo
executados à medida que as oportunidades permitiam.
61
A criação dessa “Grande Área”, a serviço dos interesses
econômicos dos Estados Unidos, explica a força beligerante com a qual
este país vem tratando os países subdesenvolvidos especialmente no
período pós-II Guerra Mundial. Contabilizam-se uma série de invasões,
derrocadas de governos, conspirações e apoio político a ditaduras. Tudo a
fim de que esteja garantida a manutenção do vínculo comercial com o país
norte-americano e de que se controle um possível avanço do comunismo.
A narrativa de O Prisioneiro traz como entrecho uma guerra de
ocupação e de dominação econômica e ideológica, como tantas outras o
foram e continuam sendo protagonizadas pelos Estados Unidos. O país,
cenário da trama, está construído por indeterminações, mas preserva uma
relação estreita com a Guerra do Vietnã, fato histórico da década de 60 do
século XX. Tem-se em O Prisioneiro, que vale lembrar foi publicado pela
primeira vez em 1967, um tratamento quase simultâneo de determinados
fatos históricos ocorridos na década de 60. Uma das interrogações
suscitada por esse romance realista político, para usar a classificação
61
CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. 2ed. Brasília: Editora UnB, 1999,
p.15.
62
proposta por M. Silverman (1995), é exatamente essa: como e por que os
americanos outorgam-se o direito de intervir e impor a sua ordem?
Essa questão torna-se uma preocupação que permeia a consciência
de algumas personagens. Além do Major, já referido anteriormente, a
Professora configura-se como outra voz a enunciar o seu ceticismo em
relação à dominação americana em terras tão distantes e culturas tão
dissímeis. Em conversa reservada com seu amigo, o Tenente, a Professora
tem a oportunidade de expressar toda sua compreensão acerca do
fenômeno político que estão a vivenciar. Pela criação de um longo diálogo
que pode ser dividido em quatro momentos distintos, Erico Verissimo
às personagens nele envolvidas condições de se desvelarem enquanto
“seres humanos” e, por conseguinte, forja “criaturas políticas”.
As quatro partes de que se compõem o diálogo podem ser assim
sintetizadas: um primeiro momento em que as personagens chegam e
estão a observar o ambiente e a fazer pequenos gestos que as integram a
ele; um segundo em que são discutidas rigorosa e severamente as questões
ideológicas que estão ao fundo do conflito armado; um terceiro momento
em que a Professora conta ao Tenente seu passado, o qual traz a marca
indelével da tirania beligerante e, por fim, um quarto e último momento
em que é o Tenente que assume a narração e passa a contar à amiga todo
o seu passado e a opressão de que é vítima, moldada exatamente pelo seu
próprio preconceito. Vale registrar que, ao longo de todo o diálogo, o
Tenente reporta, ou tem reportado involuntariamente, lembranças de
situações próximas, como o suicídio da moça nativa que presenciara pela
63
manhã, ou distantes, como os sermões do pastor da sua infância. Aparece
novamente o recurso narrativo do flashback na função primeira de
dramatizar a condição psicológica atormentada do Tenente.
A Professora, enquanto uma das “criaturas políticas” criadas pelo
autor gaúcho, demonstra uma clareza e coerência de pensamento que a
tornam referência para a discussão do conteúdo político do romance O
Prisioneiro. Observe-se uma de suas colocações: Na minha opinião,
vocês se transformaram, talvez sem perceber, em modernos Inquisidores
que a ferro e a fogo querem impor aos ‘hereges’ a sua Salvação e o seu
Céu.
62
Aqui a Professora aproxima as pretensões hegemônicas dos
Estados Unidos ao episódio da Santa Inquisição Católica. Pondera,
entretanto, que isso ocorra talvez sem perceber, o que torna seu argumento
ainda mais definitivo. No campo semântico da religião refere-se aos
outros, que não os americanos, como hereges: aqueles que devem ser
salvos pelos detentores do Céu e da Salvação. Há uma sutil ironia e um
refinamento ilustrado na construção da crítica política enunciada pela
Professora, o que dá a essa personagem uma certa autoridade de quem
sabe do que está falando.
No decurso do diálogo entre os amigos, o Tenente e a Professora, o
conteúdo político do romance assume várias feições. Condena-se
sobretudo o imperialismo ianque, sendo que é sobre esse aspecto que
recaem as críticas mais incisivas. Duas personagens postas frente a frente,
sentadas à mesa de um restaurante. Uma dessas personagens é nativa, a
62
O Prisioneiro. p.66.
64
Professora, e altamente comprometida, mesmo em função do seu passado,
com o povo do local; a outra é um americano, o Tenente, confrontando as
idéias dela, pois mesmo não sendo um militar de carreira e não estar muito
convencido da legitimidade da guerra, é um americano e deve então, no
mínimo, tentar aprofundar as questões. Isso dá a chance ímpar para que a
Professora peremptoriamente expresse toda sua contradição com o
momento e o histórico dele. Situação semelhante a vivenciada pelo Major
em conversa com o seu superior o Coronel. Esses embates discursivos,
que fazem parte da estrutura literária da obra, são situações, conformando
cenas, que se traduzem em momentos possíveis de um enfrentamento das
questões sociopolíticas contemporâneas.
O cenário é o de um país desconhecido, hostil e incompreensível. A
guerra é fato posto e seu desdobramento parece projetá-la ad infinitum. O
Coronel, representante da autoridade militar, coloca-se na posição
“segura” de inimigo:
O que me exaspera nesses nativos, Major, é uma certa qualidade...a a
a... como é que vou dizer?... amorfa. Por mais cristão que procure ser,
não encontro para descrevê-los senão símiles zoológicos. Moluscos,
lombrigas, sanguessugas...Veja como se reproduzem. Às vezes tenho a
impressão de que com esse clima miserável, este calor pegajoso,
estamos todos boiando num caldo de cultura onde pululam micróbios e
protozoários... e que acabaremos irremediavelmente contaminados.
63
Nesse excerto tem-se os nativos comparados a moluscos, lombrigas
e sanguessugas. Noutra passagem o Sargento refere-se aos nativos como
ratos e cachorros. O Major questiona provocativamente se a força
63
O Prisioneiro. p.26.
65
americana não seria o (...) dragão que masca chicle, toma sorvete de
baunilha e defeca bombas incendiárias gelatinosas(...)
64
Essas várias
referências a animais, no contexto específico da guerra, remetem à idéia
de que a guerra animaliza os indivíduos. O episódio da tortura ilustra
exemplarmente: quando o indivíduo está reduzido à sua condição animal,
não há dignidade e a humilhação pela força e pelo poder torna-se maior
que a própria vida humana.
A tortura, no contexto da narrativa, vem construída em
conformidade com o imaginário que se tem da sua prática. Ocorre num
porão úmido e escuro e de forma velada. Em sessão previamente
arranjada participam a vítima, os torturadores e um médico, com a função
óbvia de assessorar os inquisidores. Espaço e momento adequados para
testar os limites do ser humano. Novamente é a perspectiva dual o recurso
para o enfrentamento ético de uma situação limite como essa. De um lado,
o Tenente, tentando usar de toda diplomacia e paciência para tentar
descobrir a informação que gerou a sessão, de outro, o Sargento, figura
embrutecida pela guerra e que tem na força o seu melhor argumento. Um
jogo de forças em que os meios sórdidos de que se vale uma guerra
acabam por prevalecer. Não há ocasião favorável para o homem quando o
assunto é uma guerra.
A crítica à prática da tortura, tão freqüente como instrumento
político à época da publicação de O Prisioneiro, revela-se em torno da
seqüência referida. É a partir de uma elaboração estética e estilística, ou
64
O Prisioneiro. p.27.
66
seja, fazendo literatura que Erico Verissimo prevê o seu engajamento ou
compromisso político-social. Uma “militância” que transcende o
partidário, mas que se reveste de um valor peculiar e inalienável.
Como diz uma de suas “criaturas de papel”, a Professora:
Seja para onde for. Mais tarde ou mais cedo você terá que tomar uma
posição. Nestes nossos tempos, a neutralidade não é possível. Não
existem mais esconderijos físicos ou psicológicos no mundo. É a hora
do compromisso.
65
4.3 - Dimensionando os sentidos: uma possibilidade dedutiva
Dois contextos narrativos. Duas personagens diferentes. Duas faces
de uma mesma conseqüência: a opressão. Se por um lado, a opressão está
condicionada à existência de um regime ditatorial, caso de O Senhor
Embaixador, por outro, ela se manifesta desde uma imposição
hierárquica e de uma experiência individual de caráter opressivo, caso de
O Prisioneiro. Por construções que podem ser aproximadas pelo seu
estatuto realista, Erico Verissimo dá vida a dois seres fictícios que vivem
experiências dramáticas e que, embora estejam dimensionadas
espacialmente, podem ser lidas também como representações de uma
condição social que se estabelece no Brasil à época da publicação dos
romances.
65
O Prisioneiro. p.184.
67
Em consonância com essa possibilidade de aproximação, Flávio
Loureiro Chaves (2001), ao comentar a publicação de O Senhor
Embaixador, afirma que:
(...) o verdadeiro tema transparece na perda da liberdade dentro de um
mundo sufocado pelos regimes autoritários. Não há como deixar de ver
aí uma alusão direta à situação brasileira onde, havia pouco, instalara-
se um governo ditatorial.
66
Por sua vez, Erico Verissimo em resposta à entrevista publicada em
jornal não identificado, do Rio de Janeiro, sob o título de Erico Verissimo
– O Prisioneiro em 24 de dezembro de 1967, diz o seguinte:
A dificuldade estaria em se eu quisesse fazer uma reportagem sobre a
Guerra do Vietnã, ou se quisesse entrar na cabeça de um vietcong. O
que importava era, fundamentalmente, conhecer os Estados Unidos, a
vida americana e isso eu conheço. O Vietnã é apenas um eventual
cenário.
67
Na verdade, a organização narrativa transcende a relação contextual
presumida. Dessa maneira, O Senhor Embaixador não é só um painel da
situação política da América Latina, nem O Prisioneiro reduz-se ao fato
histórico da Guerra do Vietnã. Nesse sentido, a discussão de temas
políticos, base do entrecho das duas obras, converge para a preocupação
do autor com uma realidade que, paulatinamente, vai tornando cada vez
mais difícil a garantia da liberdade individual no Brasil pós-64.
66
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: o escritor e seu tempo. Porto Alegre:
Editora da Universidade – UFRGS, 2001. p.183.
67
BORDINI, Maria da Gloria (Org.). A Liberdade de Escrever: entrevistas sobre literatura
e política. Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS/EDIPUCRS/Prefeitura Municipal
de Porto Alegre, 1997. p.31.
68
A compreensão crítica desse período pode ser melhor elaborada nos
dias atuais, já que a própria História tem se encarregado de esclarecê-lo.
Nesse campo, merece registro o grande projeto editorial intitulado Ilusões
Armadas. Nele, o jornalista Elio Gaspari, fiel depositário dos arquivos
pessoais do general Golbery do Couto e Silva, um dos mentores
intelectuais do golpe de 1964, pretende reconstituir um dos capítulos mais
obscuros da história recente do Brasil. De um total de cinco volumes
previstos, já se encontram à disposição os três primeiros
68
, que dão conta
do período que vai das articulações e ações políticas que redundaram no
golpe de 1964, até o governo de Ernesto Geisel (1979): trabalho de fôlego,
ampla e precisamente documentado.
Elio Gaspari afirma que existiu uma identidade, uma relação e um
conflito entre o regime instalado em 1964 e a manifestação mais crua da
essência repressiva que o Estado assumiu na sua obsessão
desmobilizadora da sociedade: a tortura.
69
Tendo-se em O Prisioneiro,
romance de 1967, quando então o regime ditatorial brasileiro contava com
três anos e processava-se a sua consolidação, a tortura como um de seus
temas, no seu nível de imposição física e também psicológica, parece
interessante pensar no deslocamento geográfico da sua discussão como
uma estratégia para desfocar e estabelecê-la no nível de uma angústia
geral dos indivíduos, da humanidade. Entretanto, esse contexto
68
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada . São Paulo: Companhia das Letras, 2002; A
Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; A Ditadura Derrotada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
69
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 129.
69
sociopolítico nacional e a própria gênese do regime de 64 podem autorizar
a leitura crítica da sociedade em que se acha o autor. Assim, o espaço
romanesco funcionaria tão somente como uma rubrica: é numa península
asiática - O Prisioneiro - ou na república caribenha de Sacramento - O
Senhor Embaixador - que se desenrola o enredo, onde vivem as
personagens, como poderia ser em qualquer outro lugar, até mesmo no
Brasil.
O jornalista Elio Gaspari, entre muitos outros aspectos de seu
trabalho, delega à ditadura militar brasileira a criação do termo e da figura
do cassado, termo depreciativo pelo qual se designaram, por mais de uma
década, as vítimas do regime.
70
O que seria a personagem Leonardo Gris,
criada por Erico Verissimo e recortada para efeitos desse estudo, que não
a encarnação ficcional de uma vítima do regime? São muitas as
“coincidências” quando se confronta a versão recente da história da
ditadura militar brasileira com a criação ficcional do autor gaúcho. A
posição que se toma é de que definitivamente não devem ser meras
coincidências. O romance O Senhor Embaixador, cujo cenário também
está dimensionado para o nível hipotético, guarda uma relação estreita
com a realidade das ditaduras latino-americanas sim, mas sem dúvida, e
talvez preferencialmente, com o contexto sociopolítico do qual ele
emerge: o ano seguinte à implantação de um regime ditatorial que
colocaria o Brasil sob vinte e um anos de controle obsessivo sobre tudo
que se falava, lia, ouvia, enfim, um período em que a liberdade de
expressão não passaria de uma ficção.
70
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
70
Em obra que reúne vários textos de vários autores sobre a
resistência à ditadura militar no Brasil, Marcelo Ridenti (1997) faz a
seguinte colocação: A contestação radical à ordem estabelecida no pós-64
não se restringia às organizações de esquerda; difundia-se socialmente
na música popular, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e na
literatura (...)
71
.
Para o autor, a contestação política do regime de 64 se deu para
além das organizações partidárias ou de guerrilha. Ela se exerceu também
no âmbito das artes, cada qual com suas especificidades. Erico Verissimo,
ou o Contador de Histórias, vai colocar-se em defesa da liberdade
irrestrita, o que confirma os romances em questão como credores desse
ideário.
Antonio Candido formula uma advertência ao ensaio Esquema de
Machado de Assis que pode ser transposta, pois dá conta de uma
condição análoga ao tratamento que se pretendeu dar à obra de Erico
Verissimo: não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem
uma galeria de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações
ficcionais que ele inventou.
72
É exatamente nesse nível que se pode, então,
assumir uma posição crítica a meio do caminho entre uma mera
reflexividade do contexto exterior e uma pretensa supremacia auto-
suficiente do contexto interior. É na organização estética que entram
71
RIDENTI, Marcelo. Versões e Ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 1997. p.16.
72
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A.Queiroz, 2000. p.3.
71
como matéria narrativa as condicionantes exteriores à obra. Podem, o
texto e contexto, fundirem-se numa interpretação dialeticamente
íntegra
73
, configurando uma leitura que prevê o interior da organização
artística, mas que também tenta estabelecer as relações possíveis com a
sua exterioridade.
Vale dizer então que o externo e o interno, na ficção de Erico
Verissimo, especificamente tratando-se dos romances O Senhor
Embaixador e O Prisioneiro, dialogam e se “olham” ao longo de toda
composição estética. Obviamente não numa relação reflexiva, mas numa
compreensão de literatura como tentativa de representação da vida, com
sua problemática, angústia, magia e uma gama enorme de significados
dependentes da disposição para sua leitura. Eis o caráter humanizador da
arte, da literatura enquanto tal, compromisso expresso e assumido pelo
próprio autor:
É preciso alertar a consciência do mundo e exigir-lhe ao menos alguma
coerência. Não me parece lógico condenar Pedro pelos mesmos crimes
que toleramos ou mesmo aplaudimos quando cometidos por Paulo.
Sempre repeli com horror aqueles que, sob o pretexto de nos salvarem
a alma, querem-nos os corpos. Não aceito a idéia totalitária de que os
fins justificam os meios. Odeio todas as formas de ditadura, inclusive
as chamadas benignas ou paternalistas. Detesto qualquer forma de
coação. A causa daqueles que lutam pela liberdade será sempre a
minha causa. Não aceito como são e válido nenhum regime político e
econômico que não tenha como base o respeito à pessoa humana.
74
73
Idem. p.4.
74
BORDINI, Maria da Glória. A Liberdade de Escrever: entrevistas sobre literatura e
política.Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS/EDIPUCRS/Prefeitura Municipal de
Porto Alegre, 1997.p. 100.
72
Esse é um fragmento de uma entrevista publicada na revista
Realidade, vol.6, n°71, de São Paulo, com o título A Liberdade Será
Sempre a Minha Causa. Um literato que se coloca tão incisivamente a
favor do homem e da liberdade conforma em seus últimos romances
cenários, tramas e personagens que representam a perda da liberdade.
Seres ficcionais, que fazem da opressão sua mais dramática experiência,
povoam tais narrativas de Erico Verissimo. Afinal, contextualmente, o que
está em jogo é um período de perda gradativa da liberdade e as
personagens especialmente, mas os romances na sua unidade, entram em
conformidade com o projeto intelectual do autor, com seu verdadeiro
telos: fazer uma sondagem do homem e, por extensão, da humanidade.
73
V – HERÓIS E FICÇÃO: QUANDO A CRÍTICA SOCIAL SE
RECONHECE NA LITERATURA
A coisa mais natural da vida é a morte;
A coisa mais absurda da vida é a própria vida.
(Mário Quintana)
5.1 – A literatura como opção humanizadora
Na tentativa de organizar a produção em prosa da literatura
brasileira posterior ao decênio de 30 dos novecentos, Alfredo Bosi (1994)
propõe um esquema que a divide em quatro tipos diferentes, quais sejam:
romances de tensão mínima, romances de tensão crítica, romances de
tensão interiorizada e romances de tensão transfigurada. Para tanto, utiliza
como fator determinante nessa classificação a representação do herói, ou
como ele mesmo coloca, do anti-herói romanesco, mais exatamente do
seu crescente grau de tensão com o mundo. O autor faz uma advertência
no sentido de que há modos diversos entre os autores de apreender o
ambiente e de ficcionalizar as ações.
Dentre os quatro tipos propostos, interessam os dois
primeiros pela possibilidade de relacioná-los aos escritos de Erico
Verissimo, abrangendo dois momentos diferentes da sua produção. Se,
num primeiro momento, pode-se aproximar a obra do autor gaúcho com o
que Alfredo Bosi (1994) chama de romances de tensão mínima, num
segundo momento, é sob a égide dos romances de tensão crítica que se
pode ampliar a compreensão da obra verissiana.
74
Embora haja a presença do conflito nos dois tipos de romance
concebidos por Alfredo Bosi (Op. Cit), no primeiro, de tensão mínima,
esse conflito configura-se em termos de oposição verbal, sentimental
quando muito: as personagens não se destacam visceralmente da
estrutura e da paisagem que as condicionam
75
Com entrechos datados e
precisamente localizados, no limite da prosa ficcional da crônica, fariam
parte desse primeiro tipo os romances de classe média, os quais coincidem
com o início da atividade literária de Erico Verissimo.
Coincidindo com a maturidade do escritor, tem-se uma nova
conformação narrativa, resultando então no que Alfredo Bosi (1994)
chamou de romances de tensão crítica. Neles, a permanência do conflito é
inconteste, mas assume nova feição. O herói, pedra angular da
classificação, passa a opor-se e a resistir agonicamente às pressões da
natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu
mal-estar permanente.
76
Nesses romances, muda o perfil do herói e
também dos fatos que compõem o contexto narrativo. Ainda segundo
Alfredo Bosi (Op. Cit.), desenvolvendo a idéia do romance de tensão
crítica, tem-se que: os fatos assumem significação menos “ingênua” e
servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz no
75
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
p.392.
76
Idem. p.392.
75
tecido da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral
e uma verdade histórica muito mais profunda.
77
Nessa perspectiva, as obras de Erico Verissimo, objetos do presente
trabalho, trazem uma nova verdade sobre o humano. Já não há mais a
possibilidade de uma convivência pacífica e indolor com o meio. Há, isto
sim, um confronto, uma tomada de posição, explícita ou não, que coloca
os heróis desses romances em constante desequilíbrio com o mundo que
os cerca. Com isso, os fatos, ou as ações, passam a ser representativos
desse desconforto, pressupondo a necessidade de uma leitura criteriosa e
atenta para o entendimento da amplitude da sua dimensão.
As obras O Senhor Embaixador e O Prisioneiro prevêem uma
relação entre pensamento e ficção que, no âmbito da literatura brasileira,
tem em Machado de Assis o seu precursor. As obras machadianas,
posteriores à fase inaugurada por Memórias Póstumas de Brás Cubas,
ao trazerem um conteúdo de crítica social latente, passam a exigir um
leitor que seja capaz de superar uma leitura ingênua. Esse aspecto - a
necessidade de uma leitura que transcenda a superfície narrativa imediata
- é o que pode aproximar obras distantes estilística, temporal e
espacialmente, como é o caso das obras de Erico Verissimo e de Machado
de Assis. Há uma espécie de tratamento universal para temas das relações
sociais e políticas nas obras desses autores, muito embora tratem-se de
estilos distintos de composição ficcional.
77
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. p.
393.
76
No capítulo da literatura de ênfase social, parece oportuno que
também se pense no nome de Lima Barreto. Tem-se então uma tríade que
pôs a nu algumas das mazelas não só do Brasil e de seu povo, mas da
humanidade de uma maneira geral. A propósito, Alfredo Bosi (1985) faz
a seguinte afirmação ao comentar a obra de Lima Barreto: Em uma
trajetória breve e intensa Lima Barreto compõe seus desejos romântico-
populares com a certeza crítica de que a raiz do mal está plantada em
outro solo, o solo universal da servidão humana.
78
O solo universal da servidão humana, no qual Lima Barreto teria
conformado pelo menos boa parte de sua obra segundo Alfredo Bosi (Op.
Cit.), também é profícuo para se pensar nos romances verissianos em
questão. Nessas representações de estatuto realista do autor gaúcho, o
“homem configurado acaba por ser submetido a uma condição de
servidão, em função de que prevalecem e se projetam forças contra as
quais individualmente esse homem nada pode. Trata-se da engrenagem,
termo cunhado por Erico Verissimo para referir-se a essas forças, que não
reconhece valores ou intenções e tem a mesma paga para todos aqueles
que ousam desafiá-la, contestá-la ou mesmo sobreviver a ela.
Pode-se dizer que o elemento político e social inerente à obra desses
três autores, quais sejam, Machado de Assis, Lima Barreto e Erico
Verissimo não é, de forma alguma, marginal ou fortuito. No caso
78
BOSI, Alfredo. O Nacional e suas Faces In: SIMÕES de PAULA, Eurípedes (Org.). São
Paulo: FFLCH/USP, 1983.
77
específico de Erico Verissimo, constitui o próprio cerne das obras O
Senhor Embaixador e O Prisioneiro. Nelas, o autor cria a oportunidade
de questionar a organização social vigente e avaliar suas implicações
nefastas para o indivíduo. Assim, a situação ficcional elaborada, a
temática escolhida e os heróis concebidos em ambos os romances
convergem para uma situação em que o tom de protesto parece evidente.
Entretanto, protestar, no campo específico das artes, pode vir a ser
um caminho tortuoso, pois facilmente abrem-se espaços tanto para o
sectarismo, quanto para o dogmatismo. Nesse particular vale registrar a
autoridade com que Erico Verissimo formula seu protesto. Seus romances,
como procurou demonstrar-se no presente trabalho, trazem equilíbrio
entre composição artística e conteúdo político: um existe em função do
outro e só assim a crítica se realiza, toma corpo e torna as obras do autor
gaúcho imunes ao tempo que as distancia.
O conteúdo político, desdobrado em suas personagens Leonardo
Gris e o Tenente, obedece a uma lógica que coloca em xeque o lugar do
humano. Fecha-se o círculo da crise da liberdade. Finais trágicos - o
desaparecimento e a morte - é o que elas encontram, convergindo para
uma espécie de impotência e fracasso frente aos problemas que tentaram
superar ao longo da narrativa. Uma vez que se considera a personagem
como representação do humano, os dramas experimentados por tais
personagens alimentam uma certa descrença em relação ao lugar do
homem na sociedade dita civilizada. Os romances políticos de Erico
Verissimo tornam-se, com isso, momentos privilegiados de reflexão sobre
78
as impossibilidades e impedimentos de uma determinada consciência
política, na verdade, expõem o flanco aberto da ausência de liberdade,
mesmo que os regimes de Estado insistam em se autointitularem
democráticos ou libertários.
A posição autoral, mesmo que sob a vigência de um governo
ditatorial e, portanto, autoritário em seu âmago, é de compromisso. O
autor gaúcho, ao publicar O Senhor Embaixador e O Prisioneiro,
assume responsabilidades face à sociedade e a seus leitores. Há um
repúdio das prerrogativas da arte pela arte.
Antonio Candido em conferência pronunciada na XXIV Reunião
Anual da SBPC (SP, 1972), sob o título A Literatura e a Formação do
Homem
79
, ao tratar das funções da literatura, coloca-as nos seguintes
termos: satisfazer a necessidade universal de fantasia e contribuir para a
formação da personalidade. Sob essa perspectiva, a literatura de cunho
político de Erico Verissimo na mesma medida em que supre essa
necessidade de fantasia, pois as situações ficcionais são credoras da
imaginação, também influencia o leitor na sua capacidade de compreender
e de se posicionar frente a alguns dos problemas históricos
contemporâneos.
79
Revista Ciência e Cultura, v.24, n.9, set. 1972.
79
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis:
Marinheiro do além, encontrarei nos portos
Caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos
E eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...
(Mário Quintana, Viagem Futura)
Pode-se afirmar que a habilidade criteriosa de Erico
Verissimo em conjugar elementos do mundo oferecido com elementos do
mundo construído, conforme proposição de Fábio Lucas (1987), é o
grande diferencial do autor na literatura política pós-64. Advém disso,
uma literatura de denúncia que não perde seu sentido estético, o que, por
fim, garante sua perenidade e o seu lugar na historiografia literária.
Publicados num período extremamente difícil da política
brasileira, os romances O Senhor Embaixador e O Prisioneiro
conseguem burlar os mecanismos institucionais de controle ideológico da
cultura. Mérito do autor, que chega à maturidade consagrado como um
grande romancista e como um intelectual de envergadura internacional.
O decênio de 60 do século XX, na conjuntura política brasileira e
também latino-americana, é marcado por ocasiões repetidas de golpes e
revoluções que parecem primar por tolher a liberdade dos indivíduos. O
cerceamento, ou a perda da liberdade individual, constitui o fio
subterrâneo que une os dois romances. Fato este facilmente observável
desde as duas personagens estudadas, resguardando suas particularidades.
80
Leonardo Gris configura-se como uma personagem paradigmática
dessa perda da liberdade. É obrigado a deixar seu país, por motivação
política, e, mesmo exilado, continua impedido de professar seu ideário
político. Tem sua voz calada, não sem antes pontuar a amigos próximos e
a um auditório lotado a sua descrença nos governos instituídos, pelos
mais diversos motivos, estabelecendo coerente e criteriosamente as
relações entre o poder e as desigualdades sociais. Essa conduta de
persistência e enfrentamento faz com Leonardo Gris represente,
ficcionalmente, toda uma geração de intelectuais latino-americanos que
foram obrigados a deixar o seu país, mas que continuaram embriagados
pelo sonho de um mundo em que as desigualdades e a falta de liberdade
não fossem a tônica.
O Tenente, por seu turno, também “vivencia” uma situação humana
em que a perda da liberdade emerge à cena principal. Tem sua vida
subjugada ora pelo preconceito racial, ora pela autoridade militar que não
tem medidas para seus fins. Uma personagem atormentada pelos seus
fantasmas, pela sua missão “civilizadora”, que termina por sucumbir a
essas forças que a fragilizam ao extremo da loucura.
Ao se observar o fim reservado a cada uma das personagens, fica a
impressão de uma certa descrença no caminho da humanidade. Isso
marca uma diferença entre o Erico Verissimo dos primeiros romances e o
dos últimos. Dois momentos de um projeto intelectual marcado pela
arguta observação do homem e do seu lugar na sociedade.
81
Domício Proença Filho (1982), ao comentar genericamente a
literatura, postula o seguinte: a arte literária é a que mais profundamente
revela o homem, atua no sentido de um conhecimento maior e de
aberturas para mudanças.
80
Essa conotação da literatura como reveladora
do homem tem em Erico Verissimo um grande momento. A partir das
personagens destacadas é possível entender-se as agruras e motivações de
feição marcadamente humanistas. Há uma ampliação da compreensão do
humano que não necessariamente repete as mesmas experiências das
personagens, mas nutre com elas uma relação de empatia, principalmente
em função de que estão postas no romance questões do tempo presente.
Ainda sobre o comentário de Domício Proença Filho (1982), o
conhecimento maior e as aberturas para mudança pressupõem por um
lado uma literatura comprometida com as questões individuais e sociais e,
por outro, um leitor que seja capaz de apreender e refletir tanto sobre seu
conteúdo e suas possíveis relações contextuais, quanto sobre a sua
conformação estética. Isso redundaria, na compreensão do autor, na
capacidade transformadora da literatura, especialmente quando essa
literatura mostra-se interessada nas questões contemporâneas, como é o
caso da literatura de cunho político de Erico Verissimo.
A contemporaneidade temática, nos termos aqui colocados, tem
uma implicação relativa à visão, ou concepção, do mundo. Trata-se de
uma abordagem que, como se afirmou, busca marcar sua desconfiança e,
80
PROENÇA FILHO, Domício (org). Livro do Seminário. São Paulo: LR Editores, 1982. p.
11.
82
mesmo, sua discordância com o status quo, termos aliás destacados por
Silviano Santiago (1982), quando se refere a produções desse tipo:
O testemunho ficcional que o recente romance brasileiro está dando e
pode continuar a dar é o de oferecer um olhar desconfiado aos grandes
sistemas hermenêuticos do saber, percebendo neles o ranço de um
intelectual autoritário, tão autoritário quanto as forças que permanecem
inquestionáveis no poder. Vislumbram eles, como pano de fundo para
as forças correntes de mando no mundo moderno, um pacto entre
ciência e ideologia. Não vamos acreditar que o romancista é um
ingênuo que deve enxergar os fatos concretos com a inocência de um
Adão. Deve ele – mundo do seu saber – poder questioná-lo e a si
próprio, quando se fizer necessário (...).
81
Em Erico Verissimo esse questionamento, como procurou-se
demonstrar no presente trabalho e cujas personagens Leonardo Gris e o
Tenente são exemplares, configura-se no elemento humanizador de uma
literatura interessada na dinâmica da humanidade. Temática do presente,
combinada com uma linguagem simples, quase uma escrita popular, estão
no centro da obra de recorte político do Contador de Histórias e
constituem a sua grande força crítica e renovadora.
81
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para Balanço”. In: PROENÇA FILHO, Domício (Org.) O
Livro do Seminário. São Paulo: LR Editores, 1982. p.100.
83
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