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Flávia Miller Naethe Motta
De Crianças a Alunos: Transformações Sociais na Passagem da
Educação Infantil para o Ensino Fundamental
Tese de doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Departamento
de Educação da PUC-Rio como parte dos
requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Orientadora: Profa. Sonia Kramer
Rio de Janeiro
Março de 2010.
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FLÁVIA MILLER NAETHE MOTTA
De Crianças a Alunos: Transformações Sociais na Passagem da
Educação Infantil para o Ensino Fundamental
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação do Departamento de Educação do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª. Sonia Kramer
Orientadora
Departamento de Educação - PUC – Rio
Profª. Isabel Alice Oswald Monteiro Lelis
Departamento de Educação - PUC – Rio
Maria Fernanda Rezende Nunes
Departamento de Educação - PUC – Rio
Profª Maria Teresa de Assunção Freitas
Faculdade de Educação - UFJF
Profª. Eloisa Acires Candal Rocha
Centro das Ciências da Educação - UFSC
Prof. Paulo Carneiro de Andrade
Coordenado setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 19 de março de 2010.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
Flávia Miller Naethe Motta
Graduada em Psicologia pela Universidade Gama Filho
(1991), Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (2007) e Doutora em Educação
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Professora colaboradora do Curso de Especialização em
Educação Infantil da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro e Professora Assistente da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem experiência na área
de Educação, com ênfase na Educação Infantil.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Motta, Flávia Miller Naethe
De crianças a alunos : transformações sociais na
passsagem da educação infantil para o ensino
fundamental / Flávia Miller Naethe Motta ;
orientadora: Sonia Kramer. – 2010.
181 f. : il.(color.) ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2010.
Inclui bibliografia
1. Educação Teses. 2. Crianças. 3. Alunos. 4.
Transições entre a educação infantil e o ensino
fundamental. I. Kramer, Sonia. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Educação. III. Título.
AGRADECIMENTOS
- À Sonia Kramer, que acreditou num projeto de vida acadêmico quando
ele ainda mal se configurava como tal e que sempre soube “endurecer
sem perder a ternura;
- Aos membros da banca examinadora que possibilitaram a composição
da banca dos meus sonhos;
- A Maria Teresa Freitas que me ensinou a me apaixonar por Vigotski
mostrando na prática o que o autor quis dizer com mediação;
- A Eloisa Candau Rocha pelas sugestões valiosas no exame de
qualificação e pela sua forma calorosa de ser;
- A Isabel Alice Oswald Monteiro Lelis por suas sugestões sempre
pertinentes no que tange à cultura escolar;
- Aos professores do Departamento de Educação da PUC-Rio que tanto
contribuíram para estas reflexões;
- Ás participantes do Grupo de Pesquisa Crianças e Adultos em
Diferentes Contextos: a Infância, a Cultura Contemporânea e a
Educação, apoiado pelo CNPq e coordenado pela Profª. Sonia Kramer,
que compartilharam a construção de uma nova identidade
profissional/acadêmica;
- Ao Dr. Alexandre Paranhos Silva Velloso Neto, terapeuta, ombro
amigo, elemento fundamental em toda a reformulação vivenciada;
- A prefeitura do Município de Três Rios que tão bem acolheu essa
pesquisa;
- A Direção da Escola Municipal pela colaboração e transparência
durante o processo de pesquisa;
- Às professoras Márcia Cristina da Silva Carvalho, Cristiane Arbex
Lourenço e Sirlane Medina da Silva Mata que generosamente abriram
suas salas de aula à pesquisadora;
- À Maria Lúcia Mello e Souza Peixoto, pela paciência em fazer
traduções para o inglês;
- Ao Oscar Peixoto, melhor tio por afinidade que eu poderia ter
encontrado;
- Ao Jorge, meu companheiro cúmplice e solidário, que embarcou nesse
projeto de vida por inteiro, me apoiando sem reservas e amorosamente;
- Á Paula, Pedro e Carolina, meus filhos queridos que me deram a
experiência da maternidade;
- Aos meus pais, Pedro e Sarita, em memória, pelo desafio de me
superar sempre.
Resumo
Motta, Flávia Miller Naethe; Kramer, Sonia. De Crianças a Alunos:
Transformações Sociais na Passagem da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental. Rio de Janeiro, 2010. 181 p. Tese de Doutorado Departamento
de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A temática desta tese trata da passagem das crianças da Educação Infantil
para o Ensino Fundamental e da ação da cultura escolar sobre as culturas infantis,
transformando os agentes sociais crianças em agentes sociais alunos. A pesquisa
foi numa unidade da rede municipal do Município de Três Rios, Rio de Janeiro.
Os fundamentos teórico-metodológicos foram tecidos através de diálogos com os
conceitos elaborados especialmente por Bakhtin, Vigotski, Foucault, Certeau e
Sacristán. Cada um desses autores contribuiu de maneira específica para a análise
das questões levantadas. Os conceitos operaram em três planos: de um lado
tivemos a concepção de linguagem de Bakhtin, principal categoria de análise dos
dados do campo e Vigotski fornecendo subsídios para um pensamento dialético
em torno das culturas infantil e escolar tomadas como textos. Em outro plano,
consideramos Foucault e Certeau na análise das estratégias de poder e das ticas
de resistência encontradas nas práticas observadas e suas influências na
subjetivação dos sujeitos. Por fim, a sociologia da infância e o conceito de cultura
escolar permitiram explicitar elementos do campo colocando-os num contexto.
Para abordar as transições e as rupturas percebidas nesse processo, as
contribuições principais foram definidas a partir de Moss e Corsaro e Molinari.
Palavras-chave:
Crianças, alunos, transições entre a educação infantil e o ensino fundamental
Abstract
Motta, Flávia Miller Naethe; Kramer, Sonia From a Little Child to A Student:
Social Transformation in the Transition from Early Childhood Education for
Elementary School. Rio de Janeiro, 2010. 181 p. Tese de Doutorado
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The theme of this thesis deals with the transition of children from early
Childhood Education to Elementary School and with the action of school culture
over children's cultures, transforming children as social agents into students as
social agents. The research was carried out in a unit of the government
(municipal) schools in the city of Três Rios, Rio de Janeiro. The theoretic-
methodological fundaments have been created through dialogues with the
concepts elaborated especially by Bakhtin, Vigotski, Foucault, Certeau and
Sacristán. Each one of these authors contributed in a specific way for the analysis
of the questions raised here . The concepts have operated on three plans: on one
side we had the conception of language of Bakhtin, which is the main category of
analysis of the field data, and Vigotski supplying subsidies for a dialectical
thinking about school culture and children's cultures taken as texts. On another
level, we considered Foucault and Certeau's analysis of power strategies and
tactics of resistance found in the practices observed and their influence on the
subjectivation of the subjects. Finally, the sociology of childhood and the concept
of school culture allowed clarifying elements of the field by placing them in
context. To address the transition and the disruptions perceived in this process, the
major contributions were set from Moss, Corsaro and Molinari.
Key-Words:
Children, students, transitions from early Childhood Education for Elementary
School
SUMÁRIO
PP
1. Notas Iniciais 11
2. A Escola Municipal Joaquim Silva: Começando pelo Campo 22
2.1 Chegando a Três Rios 23
2.2 Dados Gerais Relativos à Educação Infantil no Município 25
2.3 Entrando na Escola 29
2.4 A Educação Infantil no 3º Período
2.4.1 Uma prática pedagógica sedutora
2.4.2 As interações com a pesquisadora
2.4.3 Questões de poder e de gênero no 3º período
34
35
38
41
2.5 O Primeiro Dia de Aula no 1º Ano do Ensino Fundamental 52
2.6 Mudando os Rumos da Pesquisa: Preservando o Essencial 62
3. Colocando as Tensões em Confronto: o Método Dialético como
Ponto de Partida para a Construção do Campo Teórico
64
3.1 Recorrendo à Dialética: Apropriações 65
3.2 Vigotski e o Método Dialético: Contribuições da Psicologia
Sóciocultural
3.2.1 A dialética em Vigotski
3.2.2 A subjetividade segundo a psicologia sociocultural
68
69
74
3.3 Bakhtin: Interações e Diálogos na Construção Discursiva
3.3.1. A dialogicidade e a construção da pesquisa
3.3.2 O sujeito bakhtiniano e a alteridade
79
80
84
3.4 Entrelaçando os Discursos: um Diálogo em Torno da Idéia de
Subjetividade
86
3.5 A Forma Escolar: o Processo e Sua Gênese 90
4. Entrecruzando Planos de Análise: Em Busca das Tensões que
Desvelam a Empiria
97
4.1 Foucault e Certeau: uma Analítica da Disciplina e da Resistência 98
4.2 Culturas Infantis e Cultura Escolar
4.2.1 Infância e cultura: as culturas infantis como recriação do
104
104
mundo
4.2.2 A cultura escolar como um texto
4.2.3 Sacristán: o currículo como dispositivo de poder e a invenção do
aluno
110
113
5. Entretecendo os Textos a Partir do Contexto 119
5.1 A Ação das Crianças: Expressão das Culturas de Pares
5.2 Os Corpos como Elementos da Fabricação de Alunos
5.3 A Disciplina em Exercício: Exames e Sanções
5.4 Desvelando Alguns Aspectos de Estar Escolarizado
5.5 Crianças e Alunos: O Cotidiano e as Táticas de Resistência
5.6 Sobre Transições e Rupturas
120
124
129
133
142
152
6. Considerações Finais
157
Referências Bibliográficas
165
QUADROS, GRÁFICOS E TABELAS
Tabela 1 – Distribuição de matrículas no pré-escolar
Tabela 2 – Cobertura de atendimento
Tabela 3 – Distribuição das crianças por cor e sexo declarados pelo
responsável
Tabela 4 – Profissões dos pais
Tabela 5 – Profissões das mães
Tabela 6 – Faixa de renda familiar mensal
Tabela 7 – Religião familiar declarada
Gráfico 1 - Matrículas totais no município de Três Rios
Gráfico 2 – Estabelecimentos de ensino no município de Três Rios
Gráfico 3 – Número de docentes no município de Três Rios
Gravura 1– Lucas escreve seu nome
Gravura 2 – Mapa da sala de aula do 3º período
Foto1 – A sala organizada em fileiras, professora à frente
Foto 2 – As transparências da escola
Foto 3– Mariana corrige Kauã (começo)
Foto 4 – Mariana corrige Kauã (meio)
Foto 5 – Mariana corrige Kauã (fim)
Foto 6 – Kauã conversa com Caio
Foto 7 – Renan, de pé ao lado de Lucas
Foto 8 – Caio faz a tarefa de pé
Foto 9– Júlio César começa a pescaria da borracha e apontador
Foto 10 – Júlio César continua a pescaria
Foto 11 - Kauã e o avião (começo)
Foto 12 – Kauã e o avião (meio)
Foto 13 – Kauã e o avião (final)
Foto 14 - Paulo passa a borracha para o irmão
Foto 15 – Paulo ajuda Kauã
Foto 16 – Kauã busca auxílio com Paulo
25
27
31
31
32
32
33
26
26
27
40
45
130
130
138
139
139
146
146
146
147
148
148
149
149
150
150
151
Anexos
172
1.
Notas Iniciais
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho.
Por motivo do ermo não fui um menino peralta.
Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem.
Manoel de Barros
1
A conclusão desta tese representa uma conquista num percurso de
transformação dos papéis sociais da própria autora: de psicóloga escolar à
pesquisadora, de profissional da educação básica privada à professora da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tais mudanças refletem a
passagem do tempo e as marcas por ele deixadas na história dos sujeitos que
aparecem neste texto. Nestes anos, as crianças pesquisadas também cresceram,
tornaram-se crianças mais velhas, alunas, pessoas cada vez mais ativas nas
comunidades que integram.
Trabalhei durante quatorze anos com Psicologia Escolar em um percurso
que conduziu à Educação Infantil. Os estudos realizados, nesse período, trataram
das questões que se apresentaram na prática: como estabelecer uma ação dialógica
na pré-escola? A observação de rodas de conversa trouxe dúvidas sobre se as
ações desenvolvidas permitiam a formação de sujeitos críticos e criativos.
2
A
análise desses temas foi fundamentada em teóricos que elegiam a linguagem como
categoria central do conhecimento humano. Bakhtin (2002) e seu conceito de
dialogismo, para quem o sujeito se constitui e é constituído na palavra. Vigotski
(2000), e a relação do sujeito com um outro, mostrando que a própria
subjetividade faz sentido quando inserida num contexto dado. A abordagem da
concepção de linguagem, com este referencial, teve por finalidade tecer os fios
que constituem a subjetividade humana, a partir do diálogo, que insere esses
sujeitos na cultura e na história.
1
BARROS, Manoel. Manoel por Manoel in Memórias inventadas: a terceira infância. o
Paulo: Planeta do Brasil, 2008.
2
Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação Infantil da PUC - Rio, 2004.
Orientadora Prof.ª Sonia Kramer.
12
Para a dissertação
3
, outras questões se apresentaram: a maior parte dos
atendimentos realizados numa escola particular de classe média e alta no Rio de
Janeiro tratava de problemas com o estabelecimento de limites. Os pais se
mostravam perdidos na ação disciplinar. As inquietações da prática foram
transformadas em pesquisa acadêmica, com objetivo de investigar o que
expressavam as crianças sobre a autoridade dos adultos, tanto no ambiente
familiar, quanto no escolar. A dissertação de mestrado foi desenvolvida como
parte integrante da pesquisa Crianças e adultos em diferentes contextos: a
infância, a cultura contemporânea e a educação realizada pelo grupo Infância,
Formação e Cultura (INFOC) da PUC Rio, no qual se insere também esta tese.
Parti da suposição de que o papel de autoridade do professor da Educação Infantil
ainda era exercido de forma mais plena, trazendo para a escola uma
responsabilidade antes diluída pelas instâncias por onde a criança circulava: a da
construção de modelos de identificação. Atribui esse papel aos professores diante
da constatação da diferença de comportamento das crianças no cumprimento das
regras sociais quando estavam no grupo da escola ou, em contextos variados, tais
como festas de aniversário, espaços de lazer, entre outros, junto aos pais.
Esta reflexão foi articulada à contemporaneidade e suas demandas como
um elemento profundamente modificador das relações das pessoas entre si e
consigo mesmas. As novas formas de vivenciar tempo e espaço provocaram
alterações nas subjetividades. O modelo flexível do mundo do trabalho, ao
diminuir as hierarquias, provocou novas demandas e muitas incertezas. Nesse
contexto as famílias perguntavam: “O que vocês fazem para que as crianças
fiquem tão comportadas?”
4
A pergunta que deu início à dissertação conduziu a
algumas respostas possíveis, mas não conclusivas. Abordar a discussão do amplo
para o específico permitiu um entendimento do contexto no qual as práticas de
autoridade se construíram.
Foi necessário olhar a família como uma instituição inserida na história e
sujeita às suas vicissitudes, levantando ainda outras questões: podemos tratar da
educação das crianças como projetos familiares individuais ou precisamos
3
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC - Rio, 2007.
Orientadora Prof.ª Sonia Kramer.
13
resgatar o que de coletivo nessa ação? É justo culpabilizar as famílias, ao
mesmo tempo em que elas não têm condições concretas de agir por uma ocupação
cada vez maior e real do tempo em atividades profissionais ou de formação? Viver
uma época de transformações tantas e tão rápidas implica na necessidade de
buscar explicações diferentes daquelas a que estamos habituados.
As reações das professoras ao excedente de funções que hoje lhe
competem se traduziam em mágoa pela necessidade de atuarem em esferas
anteriormente restritas ao ambiente privado familiar. Até que ponto o conflito
família X escola mascara outra dimensão que sequer entra em questão nas
atividades rotineiras? A quem compete a educação das crianças: à família? À
escola? Ao Estado? Ou ao esforço conjunto dessas instituições visando o bem-
estar das crianças?
Vários desdobramentos se colocaram como possíveis a partir das
perguntas formuladas na dissertação. Entretanto, a escuta mais rigorosa das falas
das crianças evidenciou que há muito a ser explorado na pesquisa de suas culturas.
A forma como se apropriam dos valores da sociedade fala muito das próprias
gerações envolvidas com essa moral, construindo em conjunto com maior ou
menor autoridade e responsabilidade a ética que vai se consolidar para essas
pessoas de pouca idade.
A pesquisa teve consequências a vel pessoal e profissional: vivi a
mudança para a cidade de Três Rios
5
, situada no Estado do Rio de Janeiro onde
pretendi, além de realizar os estudos do doutorado, exercer de maneira mais plena
o papel de adulto junto às minhas próprias crianças.
As ideias para o doutorado começaram a se estruturar: o pré-projeto
6
de
tese apresentado tinha como objetivo a análise das relações de poder travadas no
interior das brincadeiras entre as próprias crianças - as estratégias de negociação, a
escolha/definição dos papéis encenados, a concepção das regras que definem a
condução das atividades - ou seja, que relação as práticas de poder e hierarquia
internas à brincadeira estabelecem com a cultura mais ampla e o que fala da
sociedade esta forma específica de inserção da cultura da infância.
4
Pergunta frequente dos pais aos professores e coordenadores do colégio pesquisado.
5
As características do município de Três Rios serão apresentadas no capítulo 1.
14
A entrada em campo se deu logo no início do doutorado
7
e das
observações emergiram as questões que despontaram desde então. A proposta do
ingresso precoce no campo pretendeu possibilitar um estudo longitudinal, que se
estenderia pelos quatro anos de duração do doutorado, a partir de uma inspiração
etnográfica. Assim, a pesquisa teve início em agosto de 2007 e se deu de maneira
intensiva, através de uma ida semanal, com quatro horas de duração (interrompida
no período de rias) até maio de 2008. A partir daí, visando estabelecer um
distanciamento crítico, o acompanhamento do grupo passou a ser feito ao início de
cada semestre letivo, tendo se estendido até 2009, período em que a tese entrou na
sua fase de conclusão, adiantada em um ano pelo ingresso da pesquisadora na
UFRRJ como Professora Assistente.
Desde o início, o campo desconstruiu muitas questões e revelou outras que
acabaram se colocando como mais relevantes. Foi possível perceber uma
diversidade nas ações dos meninos e das meninas. Suas relações seguiam lógicas
próprias bastante marcadas pelas questões de gênero. Essa constatação levou à
necessidade de estudos específicos nessa área, de forma que a diversidade pudesse
ser contemplada na pesquisa. Nessa fase, entretanto, a pesquisa ainda se
configurava como um trabalho especificamente do campo da sociologia da
infância.
A passagem de ano e o ingresso das crianças no Ensino Fundamental
foram extremamente mobilizadores para as crianças e para a pesquisadora.
Transformaram as questões, os estudos, as pessoas. A escolarização se impôs aos
sujeitos. A princípio, parecia impossível integrá-la à pesquisa.
O estudo pareceu tomar novo rumo: focar a escola, seus processos e sua
ação assujeitadora das crianças aos papéis de alunos. Aparentemente, as crianças,
suas falas e brincadeiras deixaram de ser o alvo da atenção da pesquisadora.
Entretanto, aqui se revelou um dos aspectos que diferenciaram este trabalho dos
demais: em nenhum momento as ações das crianças foram colocadas em segundo
plano. Observá-las, enquanto crianças e alunos tornou-se o leitmotiv da pesquisa;
6
A seleção de candidatos ao programa de pós-graduação da PUC – Rio se dá através da análise do
projeto, memorial e currículo, além de prova escrita e entrevista.
7
A pesquisa estava integrada ao projeto maior do grupo de pesquisa INFOC Infância, formação
e cultura da PUC –Rio, sob coordenação da professora Sonia Kramer com apoio do CNPq e da
FAPERJ.
15
tratava-se, agora, de convidar a sociologia da infância a entrar em sala de aula e
perceber os agentes sociais em seus processos de transição.
Os fundamentos teórico-metodológicos foram tecidos através de diálogos
com os conceitos elaborados especialmente por Bakhtin, Vigotski, Foucault,
Certeau e Sacristán. Cada um desses autores contribuiu de maneira específica para
a análise das questões levantadas, o que poderá ser visto ao longo da tese. Os
conceitos operaram em três planos: de um lado tivemos a concepção de linguagem
de Bakhtin, principal categoria de análise dos dados do campo e Vigotski
fornecendo subsídios para um pensamento dialético em torno das culturas infantil
e escolar tomadas como textos. Em outro plano, consideramos Foucault e Certeau
na análise das estratégias de poder e das táticas de resistência encontradas nas
práticas observadas e suas influências na subjetivação dos sujeitos. Por fim, a
sociologia da infância e o conceito de cultura escolar permitiram explicitar
elementos do campo, especialmente as relações das crianças entre si e com as
práticas escolares, colocando-os num contexto.
A presente tese pretende estabelecer diálogos, para além das referências
teóricas principais, com os pesquisadores que permitam compreender as práticas
infantis e as institucionais, especialmente das escolas, na configuração das
categorias sociais da infância e do aluno. Pretende ainda que ao olhar o mundo a
partir do ponto de vista da criança (para) revelar contradições e dar novos
contornos à realidade” (Kramer, 2008, p. 171). Definamos então a maneira de
conceber a infância, etapa da história humana, que orientou este trabalho:
A criança não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará
(...). Reconhecemos o que é específico da infância: seu poder de
imaginação, a fantasia, a criação, a brincadeira entendida como
experiência de cultura. Crianças são cidadãs pessoas detentoras de
direitos, que produzem cultura e são nelas produzidas. (Kramer, 2007,
p. 15).
Com o início do campo, o principal elemento para recolhimento de dados
foi a própria pesquisadora. O diário de campo foi elemento fundamental nesse
processo, constituindo-se na memória do que foi vivenciado. Registros
fotográficos foram realizados com o objetivo de fixar em imagens o olhar,
permitindo uma volta à concretude do campo sempre que necessário.
16
O que a princípio era mero acessório revelou-se um instrumento capaz de
completar a experiência da pesquisadora no campo, configurando-se numa forma
específica de narrativa. A fotografia mostrou o que os olhos não captaram no
momento do acontecimento: o movimento, a dinâmica, as táticas das crianças.
Não por acaso, as fotografias relevantes para a tese foram tiradas após a passagem
das crianças para o Ensino Fundamental. Na Educação Infantil estávamos
crianças e pesquisadora ocupadas com as brincadeiras, os diálogos e as
interações.
A forma de tomar a criança como outro foi o reconhecimento da diferença
entre adultos e crianças sem a tentativa de encaixá-las numa instância
totalizadora: “... a responsabilização pelo outro significa o estabelecimento de
um diálogo que reconheça tanto as comunalidades como as diferenças”. O
conceito de simetria ética foi importante para essa questão, pois na prática implica
em “... que o pesquisador assuma como seu ponto de vista de partida que a
relação ética entre o pesquisador e seus informantes é a mesma, a despeito da
pesquisa estar sendo conduzida com adultos ou crianças.” (Borba, 2005, p.78).
Importante ainda é ressalvar que simetria ética não equivale à simetria social; as
relações desiguais entre adultos vão interferir na relação do pesquisador com os
sujeitos pesquisados, importa, no entanto, monitorar criticamente as diferenças a
partir da reflexividade, conceito que será desenvolvido como estratégia
metodológica nos capítulos a seguir.
A etapa seguinte foi a de estabelecer um distanciamento crítico que
favorecesse a exotopia da pesquisadora e seu retorno ao lugar de análise. Desse
momento, até o final da pesquisa, ficou definida a presença no campo a cada
início de semestre letivo, durante algumas horas ou dias, com o objetivo de avaliar
as transformações vividas pelos sujeitos nesse período.
As crianças, seus pais e professores foram informados da pesquisa e
autorizaram o uso de seus nomes verdadeiros e imagens, Entretanto, o que seria
um respeito á autoria poderia significar ao mesmo tempo exposição excessiva dos
agentes envolvidos no processo. Como opção, diante de tal fato, o nome da escola,
e de todos os agentes sociais foram substituídos por nomes fictícios, assim como
as fotos utilizadas foram aquelas que não os expunham diretamente.
17
Alguns cuidados metodológicos característicos de pesquisas com crianças
numa abordagem da sociologia da infância foram tomados. Corsaro (2005a,
2005b, 2001 e 1997) apresenta sugestões para a realização de pesquisas com
crianças pequenas que pretendam estudar a cultura de pares. A entrada no campo
é um momento particularmente sensível e a aceitação do pesquisador pelas
crianças pode demorar algum tempo, pois sua posição de adulto atípico
8
leva
tempo para ser assimilada pelo grupo. A ótica adultocêntrica deve ser deixada de
lado, o que nem sempre era muito fácil, pois tanto as crianças, quanto as
professoras estabeleciam demandas para a pesquisadora que implicavam em
assumir papel de autoridade. Sempre que isso era percebido, era evitado.
A participação nas brincadeiras ou mesmo na sala de aula foi outro aspecto
que mereceu atenção cuidadosa. Não cabia à pesquisadora a iniciativa de propor
brincadeiras, temas de conversas ou resolução de conflitos. Sempre que possível
uma atitude coadjuvante era assumida: não ser a líder nas brincadeiras, não
assumir os papéis de mãe ou professora, deixando que uma criança os
desempenhasse, não começar ou terminar brincadeiras. Várias vezes observei o
que se passava, mas, com alguma freqüência, depois de aceita pelo grupo, era
chamada atenção se me comportasse de maneira distinta do que era esperado das
crianças. Caso eu entrasse na fila dos meninos na hora de ir ou voltar do pátio,
logo uma criança me lembrava que eu era uma “menina”.
As observações foram realizadas em momentos de sala de aula, pátio,
refeitório, entrada e saída, festas comemorativas da escola e ensaios preparatórios
para uma festividade cívica (o desfile de alunos das escolas públicas em 7 de
setembro é uma tradição no município pesquisado).
Várias foram as entrevistas informais com as professoras e elas estão
relatadas no diário de campo. As crianças também travaram diálogos interessantes
com a pesquisadora que estão, da mesma forma, registrados. Os espaços, os
murais, os deslocamentos pela escola também foram objeto de análise. A
secretaria escolar permitiu acesso às fichas dos alunos e, no primeiro ano de
observação as profissões dos pais e sua renda em salários nimos foram
tabuladas.
8
Aquele que segundo Corsaro (2005a), não pretende assumir uma posição de mando ou liderança
18
O conceito de evento norteou o recorte das situações de campo analisadas.
Segundo Kramer,
na produção dos discursos, das práticas e interações, os lugares que as
pessoas ocupam e os significados que circulam interferem no
significado produzido. Ou seja, o contexto é importante para entender
o texto. Na enunciação, os lugares e as condições de onde são
proferidas as palavras e produzidas as interações produzem sentidos.
(2009, p. 18).
Logo ficou evidente que ao recortar os eventos, para relatá-los aqui, algo
escapava. No princípio não foi possível identificar o que ocorria, porém, com o
avanço da escrita, os próprios eventos e suas complexidades forneceram
informações preciosas. Inevitável uma recordação de duros treinamentos para a
prática psicanalítica: o exercício da atenção flutuante
9
parece ter criado uma
memória, recuperada, de maneira o intencional, quando a pesquisadora se viu
na situação de campo, observando eventos para o qual sabia que buscaria um
significado. Percebi então, que, para encontrar o sentido dos eventos, eles não
deveriam ser mutilados, focados, centrados na sua cena principal, pois que o que
dava uma unidade ao acontecimento era multiplicidade de ações que se
desenrolavam simultaneamente, dando visibilidade às táticas das crianças para
permanecerem crianças apesar dos constrangimentos impostos pela cultura
escolar. Peço paciência ao leitor se os eventos de campo parecerem longos, é neles
que está o conhecimento que buscamos. Impossível não relacionar a forma como
o campo se configurou para a pesquisadora com Benjamin quando trata da arte de
narrar:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde
quando as histórias não o mais conservadas. Ela se perde porque
ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o
ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o
que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta
as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de
narrá-las (1983, p. 205).
A decisão de pesquisar a passagem das crianças para o ensino fundamental
e sua escolarização levou à necessidade de buscar nas notas de campo o que
junto às crianças, mas reconhece que não pode se igualar a elas.
9
Nas “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise”, Freud recomenda ao analista:
“Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e
abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’”. Ou “Ele deve simplesmente escutar e não se
preocupar se está se lembrando de alguma coisa” (1996, p. 126)
19
Corsaro chamou de eventos primários (priming events) que dariam concretude a
um conceito abstrato da sociologia: a socialização antecipatória. A partir das
ações coletivas identificadas, Corsaro (2005b, p18) discute a importância desses
eventos, organizados pelos adultos, para a transição das crianças da pré-escola
para o ensino elementar na Itália. Como em um rito de passagem, foi interessante
identificar nas práticas observadas se houve a existência dos três momentos dos
quais fala Corsaro (2005b, p67): a separação, a liminaridade e a incorporação.
Quanto aos registros feitos após a passagem para o ensino fundamental,
uma atenção especial foi dada às novas regras, ordem e mecanismos de controle,
assim como aos deveres e ao desenvolvimento do pertencimento das crianças a
este novo segmento. Foram analisadas as rotinas para identificação das rupturas
ou continuidades (Corsaro, 2005b, p. 74 – 76).
O que será lido daqui por diante retrata o esforço de reconhecimento de
uma realidade que faz parte de uma etapa importante das vidas das crianças. As
transições escolares assumirão cada vez maior relevância diante da proposta de
obrigatoriedade de escolarização das crianças de 4 e 5 anos, aprovadas em
Proposta de Emenda Constitucional (PEC 277 A, 16/7/2009). Sem dúvida a
Educação Infantil, obrigação do estado, direito das crianças e opção das famílias
(Lei 9394-96), deveria ter se consolidado pelo viés da universalização da oferta,
ao invés da obrigatoriedade da matrícula. A obrigatoriedade da escolarização a
partir dos quatro anos promove uma grave cisão na Educação Infantil, que, mais
uma vez, se pensada nas duas fases que a compõem: creche e pré-escola. Na
medida em que a creche fica excluída desse processo - e o se trata aqui de
defender a sua obrigatoriedade! - temos uma diminuição da sua importância
perante os órgãos públicos que devem garantir seu financiamento.
A questão pode ser vista ainda pela ótica de que a existência de um direito,
previsto na Constituição desde 1988, não é suficiente para a sua garantia, o que o
faz valer é a sua demanda virar uma obrigação. Sem dúvida, aumentar a oferta de
pré-escolas tem um lado extremamente positivo e provavelmente vai beneficiar
crianças que hoje estão fora da escola. Os aspectos orçamentários presentes nesse
debate também merecem destaque. Segundo a PEC os recursos devem ser
alocados prioritariamente na nova faixa de obrigatoriedade (novo § 3º do art.
20
212), o que significa que, a nível municipal, a ampliação dos recursos pode se
dar pela pré-escola, uma vez que o Ensino Médio não é de sua competência. O
direito à creche, nesse contexto, parece ter deixado de ser exigível. De fato, a
obrigatoriedade da escolarização dos 4 aos 17 anos está posta. Trata-se agora de
discutir que escola é esta que será oferecida às crianças, lembrando ainda o quanto
é artificial essa divisão que separa em universos distintos crianças até 5 anos e 11
meses daquelas que já completaram 6 anos. O que está em jogo é o modelo de
educação a ser implantado nas escolas para as crianças até os 10 anos, fase em que
ainda se situam na infância. Aqui reside a relevância do tema desta tese.
Esse é o relato das transformações da Educação Infantil no país, das
crianças, da pesquisadora. Para apresentá-las, os capítulos seguintes estão
estruturados da seguinte forma: o capítulo 2 apresenta o município pesquisado,
traz seus dados relativos à escolarização com ênfase nas informações relativas à
Educação Infantil. O inicio da pesquisa e a entrada em campo compõem também
esse capítulo e o campo começa a ser analisado à luz das teorias escolhidas. Ao
final, o primeiro dia de aula no Ensino Fundamental e seu impacto sobre as
crianças e a pesquisadora, justifica a opção por outras questões e define os rumos
da tese.
Tal como numa construção, o capítulo 3 representa as estruturas e
fundamentos da obra. Propõe uma discussão essencialmente teórico-
metodológica e explicita a perspectiva adotada para abordagem das questões.
Vigotski e o método dialético e Bakhtin e seus estudos sobre a linguagem e a
construção discursiva são os elementos que sustentam o constructo teórico
desenvolvido. O conceito de subjetividade e a discussão sobre a gênese da forma
escolar são as aplicações iniciais do pensamento dialético para o entendimento do
processo de transformação das crianças em alunos.
O capítulo 4 apresenta um outro nível de análise teórica, o emboço e o
reboco da obra, as tensões estabelecidas entre Foucault e Certeau na analítica da
disciplina e da resistência e as culturas infantis e escolar em seus possíveis
diálogos revestem e regularizam a superfície e a proteção da edificação. Para tal,
as culturas infantis são vistas enquanto uma forma de recriação do mundo e a
21
cultura escolar é tomada como um texto, no qual o currículo contribui como um
dispositivo de construção da categoria social aluno.
Por fim, o capítulo 5 fornece os elementos de acabamento da obra, suas
cores, texturas, luzes, jardins e concreto. A ação das crianças como expressão da
cultura de pares revela sua ação permanente, mesmo quando se espera que estejam
empenhadas no exercício de ser alunos. É vista também a ação sobre os corpos
infantis conformando-os ao padrão desejado. Os exames e as sanções mostram a
ação da disciplina em exercício. Em seguida, aspectos que caracterizam a
escolarização, dentre os quais destaca-se a função da leitura e da escrita, são
apresentados como essenciais no processo descrito. O cotidiano, por sua vez,
mostra que as crianças não são sujeitos passivos dessa ação: elas reagem e recriam
os elementos que lhes são ofertados através das suas ticas de resistência. O
capítulo termina com um debate sobre as transições e rupturas observadas na
passagem da Educação Infantil ao Ensino Fundamental.
As considerações finais propõem uma discussão sobre a possibilidade de
diálogos entre os dois segmentos da Educação Básica pesquisados, sugere
questões para novas pesquisas e busca contribuir com reflexões para a ação
concreta dos envolvidos professores, gestores e instâncias políticas em busca
da qualidade desejada.
2.
A Escola Municipal Joaquim Silva: Começando pelo Campo
As meninas estão todas ao nosso redor, à exceção de Paula. Carmen
(a professora) pergunta a uma delas quem é essa moça que está
trazendo ela para a escola. Carolina explica que é a prima. Carolina
senta e começa a brincar com massa de modelar e diz que está
fazendo carne de porco, mas que é uma carne diferente.
Carmen: “Eu gosto de diferente!” e pergunta: “Carolina quem faz
essas tranças?”
Carolina: “Minha mãe.”
Carmen: “Ela é caprichosa.”
Giovana mostra as suas.
Carmen: “A sua mãe também faz cada penteado...” // Percebo que é,
de fato, um elogio. //
Carolina pede potinhos à Carmen que vai ao banheiro// um
grande cogumelo dentro de sala que descobri ser um banheiro// e
busca potinhos.
Júlia pede para ir beber água e chama Giovana. Carmen deixa.
Carolina continua em nossa mesa brincando de massinha e diz que é
farofa.
Carolina: “Será que vai estragar?”
Carmen: “É só colocar uma tampa e deixar na geladeira que a farofa
não estraga.”
// O tempo todo, Carmen transita entre fazer a sua colagem e
interagir com as crianças. // (9/8/2007, F1TR
10
).
Penso que essa marca entre a lógica infantil e a adulta, essa fronteira que
as separa, vai estar permanentemente sendo atravessada pelas crianças, pelas
professoras e pela pesquisadora, buscando, para além dos outros diálogos que
foram estabelecidos na tese, um encontro possível entre todos estes agentes.
Pode parecer pouco convencional começar uma tese através da
apresentação de seu campo. Porém foi exatamente assim que esta pesquisa teve
início. A entrada da pesquisadora na empiria se deu antes mesmo que as questões
de pesquisa estivessem formuladas. Essa característica reforçou a inspiração
etnográfica, mas, em nenhum momento se pretendeu um deslocamento deste
estudo para o campo antropológico, trata-se, o tempo todo, de uma pesquisa
educacional.
10
Para a pesquisa mais ampla, na qual esta se inseriu, foram criados códigos para as escolas, sendo
F relativo à escola de Ensino Fundamental com turmas de Educação Infantil e TR as iniciais do
Município de Três Rios.
23
De qualquer forma, foi pelo campo que tudo começou e as perguntas
foram se apresentando à medida que as observações avançavam. Inúmeras
discussões no grupo de pesquisa buscavam clarear a opção metodológica que se
configurava. As técnicas da etnografia foram extremamente úteis e se fizeram
presentes nas descrições densas, no registro quase compulsivo e no papel do
pesquisador como principal elemento de levantamento dos dados. Vale explicitar
que, para efeito de análise, foi efetuado um esforço de transitar entre a teoria e a
empiria em busca das categorias para compreensão das tensões que se
apresentavam. Entretanto este capítulo pretende levar o leitor à escola, apresentar
as crianças e as professoras, os espaços e as práticas. Deixemos então a discussão
metodológica um pouco mais para frente, refletindo o caminho percorrido pela
própria pesquisadora.
Neste capítulo tratamos, então, do campo da pesquisa, buscando dar
concretude aos agentes pesquisados através das informações sobre seus contextos
e realidades. O município de Três Rios é apresentado ao leitor, assim como as
primeiras incursões da pesquisadora na escola durante o primeiro ano da pesquisa,
momento no qual as crianças observadas encontravam-se no período da
Educação Infantil, classe que agrupava crianças entre 5 e 6 anos de idade, e que
antecedia, à época, a escolarização obrigatória.
2.1 Chegando a Três Rios
O município de Três Rios localiza-se na Região Centro Sul do Estado do
Rio de Janeiro. A população total do município é de 72.848 mil habitantes e sua
área total é de 325 Km² segundo o IBGE (2007). A densidade demográfica é de
204,65 hab/km². O município divide-se em dois distritos, o primeiro é o de Três
Rios (sede) e o segundo é o distrito de Bemposta. Sua altitude é de 269 metros. O
clima é classificado como mesotérmico com verão quente e chuvoso. Quanto aos
aspectos políticos, o prefeito de Três Rios, à época da pesquisa, foi eleito a partir
do apoio do prefeito anterior, que exercia seu segundo mandato, ambos do
PMDB. O poder legislativo era composto por uma Câmara Municipal com dez
vereadores e o colégio eleitoral tinha 56.097 eleitores. Em termos econômicos o
24
município caracterizava-se por atividades de indústria e comércio tendo como
produtos regionais: charque, leite beneficiado, beneficiamento da farinha de trigo,
café, aipim, hortaliças, tomate, embalagens de plástico, fabricação de cachaça,
biscoito, macarrão, jeans, panelas, telas e instrumentos musicais. O município
dispõe de três bibliotecas, sendo duas municipais e uma do Serviço Social do
Comércio SESC. Conta com um cinema e um teatro onde funciona o Grupo de
Amadores Teatrais Viriato Corrêa. Quanto às atividades musicais o Grêmio
Musical 1º de Maio e um coral municipal. Dispõe também de uma Casa de
Cultura e uma Casa de Ciência. O carnaval de Três Rios é divulgado pela
prefeitura como o melhor do interior do Estado do Rio de Janeiro. Nessa época a
cidade recebe um número significativo de turistas. Em junho ocorre a Procissão de
Corpus Christi que mobiliza a cidade como um todo. As ruas, neste dia, são
decoradas com flores e uma imensa variedade de materiais que são aplicados
artisticamente por artesão, pintores e decoradores do local, formando tapetes
ornamentais. No aniversário da cidade, em novembro, acontece a semana cultural
na praça central Praça São Sebastião com apresentação de shows com grupos
de balé, dança de salão, música popular, pinturas, gravuras, poesias, teatro, e
capoeira. O turismo de Três Rios conta com atividades de rafting no rio
Paraibuna, com 22 km de corredeiras que deságuam no único delta triplo da
América Latina, que se forma do encontro dos rios Paraibuna, Paraíba do Sul e
Piabanha.
A rede educacional de Três Rios conta com a Fundação de Apoio à Escola
Técnica do Rio de Janeiro FAETEC que oferece atendimento no município em
cursos concomitantes com o Ensino médio e cursos de Nível Superior. A
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro também tem um campi em
construção na cidade, atuando provisoriamente em prédios alugados. A Rede
particular de Educação Superior é composta pela UNICARIOCA e pela
Universidade Castelo Branco.
A pesquisa de campo aconteceu ocorreu nos anos de 2007 a 2009. A
Secretaria de Educação, as implementadoras de Educação Infantil, os diretores das
unidades escolares e os professores contatados nessa pesquisa mostraram-se
receptivos e acolhedores. Não houve dificuldades para o levantamento das
25
informações. Não foram encontradas outras pesquisas relativas à Educação
Infantil no município.
2.2 Dados Gerais Relativos à Educação Infantil no Município
O município de Três Rios expandiu o Ensino Fundamental para nove anos
em 2006. A idade de corte para ingresso na rie é estabelecida a partir de 31 de
março. Não foi possível levantar dados oficiais sobre a população de 0 a 5 anos,
porém, em entrevista, a Coordenadora de Educação Infantil
11
relatou que, em
termos percentuais, as crianças de 0 a 3 anos atendidas equivalem a 5% da
população desta faixa etária, enquanto as de 4 a 5 anos são 40% das crianças nesta
idade. O número de crianças atendidas na Educação Infantil em 2008 era de
2.392, sendo 121 em creches; 1.027 em escolas exclusivas de Educação Infantil; e
1.244 em turmas de Educação Infantil em escolas de Ensino Fundamental.
Os dados do IBGE contemplam apenas a faixa pré-escolar, deixando as
creches fora da contagem das matrículas. Temos então
Tabela 1 – Distribuição de matrículas no pré-escolar
Estabelecimentos Matrículas
Ensino pré-escolar – escola pública estadual 139
Ensino pré-escolar – escola pública federal 0
Ensino pré-escolar – escola pública municipal 2243
Ensino pré-escolar – escola pública privada 421
Ensino pré-escolar total 2.803
Fonte: IBGE Ano: 2008
Apesar da nomenclatura semelhante à de outros municípios, as faixas
etárias atendidas na Educação Infantil seguem critérios específicos. Assim, temos
que, nas 2 creches do município, uma atendia crianças de 1 ano a 2 anos e 11
meses, enquanto a outra atendia crianças de 0 a 3 anos. Já as escolas exclusivas
tinham crianças desde os 2 anos de idade até 6 anos. As turmas de Educação
Infantil nas escolas de Ensino Fundamental, por sua vez, cobriam a faixa etária de
3 até 5 anos.
As informações referentes ao número de matrículas incluindo as creches,
docentes e estabelecimentos, foram obtidas recorrendo aos dados do INEP,
11
A Secretaria de Educação dispunha de implementadoras para acompanhamento da Educação
Infantil. Dentre elas, nossa entrevistada que exercia a função de coordenadora informalmente.
26
sistematizados no Aplicativo Brasil Hoje
12
, fonte das demais informações gráficas
deste capítulo e que permite levantar dados com base no ano de 2005. Quanto ao
número de matrículas por etapa do ensino básico temos então:
Gráfico 1 – Matrículas totais no município de Três Rios
Fonte INEP 2005
Os estabelecimentos educacionais se distribuíam da seguinte forma:
Gráfico 2 – Estabelecimentos de ensino no município de Três Rios
Fonte INEP 2005
Segundo a Coordenadora de Educação Infantil do Município, de uma
maneira geral, a formação dos professores é a nível superior, embora o exigido
seja o curso normal. Para os demais funcionários é exigido o ensino fundamental
completo.
O número de docentes em atividade no Município e sua distribuição pelas
etapas de ensino era a seguinte:
12
O aplicativo Brasil Hoje se insere no Programa Melhoria da Educação no Município que
desenvolve ões voltadas à formação de gestores educacionais e é resultado de parceria entre a
Fundação Itaú Social (FIS), o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o Cenpec
(Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), contando com o apoio
da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).
27
Gráfico 3 – Número de docentes no município de Três Rios
Fonte INEP 2005
Os dados populacionais disponíveis referem-se à estimativa do IBGE de
2007, logo não permitem o cálculo de um percentual exato de atendimento, porém
possibilitam uma aproximação que uma idéia geral em termos percentuais.
Comparando os dados das diferentes fontes temos a seguinte distribuição e
cobertura de atendimento:
Tabela 2 – Cobertura de atendimento
População Matrículas % aproximado de
cobertura
0 – 3 anos 5276 152 2,9
4 – 5 anos 2766 3148 113,8
13
0 – 5 anos 8402 3300 39,3
Fontes: IBGE/DATASUS Ano: 2007 e INEP Ano: 2005
É interessante observar a distância entre as informações obtidas junto aos
órgãos e institutos oficiais e aquela levantada junto à Coordenação de Educação
Infantil, permitindo questionamentos sobre os dados que o considerados para a
elaboração das políticas públicas do município. Há uma discrepância relevante
entre o atendimento de 5% ou de 2,9% das crianças entre 0 e 3 anos e surpreende
que o atendimento na pré-escola já ultrapasse as fronteiras do município, como
indica uma cobertura de 113,8% da população, enquanto, segundo a Secretaria
esta seria apenas de 40%. O objetivo deste estudo não diz respeito aos dados
macro aqui observados, na verdade eles funcionam para dimensionar a realidade
pesquisada. Fica, entretanto constatada a necessidade de um estudo que efetue o
13
O número de matrículas superior ao de crianças geralmente deve-se ao atendimento de crianças
de municípios limítrofes, tais como Levy Gasparian e Paraíba do Sul.
28
cruzamento dos dados oficiais de maneira a fornecer elementos que alimentem a
gestão da educação no Município.
Em termos de formação, a Secretaria de Educação programava atividades
para formação em serviço dos profissionais de Educação Infantil do Município
através de encontros bimestrais, visando à implementação da proposta pedagógica
para Educação Infantil. Além disso, havia um subsídio financeiro mensal no valor
de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) entregue diretamente aos profissionais em
formação, para apoio no custeio de pós-graduação. O mesmo incentivo era dado
aos gestores e havia uma cobrança “informal” por cursos de gestão ou habilitação
específica. A Coordenadora de Educação Infantil relatou que não havia um
planejamento específico para os encontros realizados, pois o município estava no
início de um processo de discussão de uma proposta pedagógica para a Educação
Infantil. Não existiam projetos específicos para a formação cultural dos
professores e auxiliares.
Os documentos legais que regiam a formação dos profissionais de
Educação Infantil são: A Deliberação n.º 001/2007 CME/TR e O Projeto de
Revitalização Pedagógica para Educação Infantil. O material referente às creches
ainda não tinha sido elaborado, o Currículo Mínimo da Rede Municipal de Ensino
estava em re-elaboração.
Não havia políticas de expansão da Educação Infantil, especificamente
para as creches, entretanto, havia a previsão de aluguel de um imóvel para atender
a 100 crianças, além de duas outras creches, uma com verba aprovada pelo
município e outra prometida pela câmara dos vereadores, além disso, estava sendo
construída uma escola de ensino fundamental que incluiria turmas de Educação
Infantil.
As crianças de seis anos, como dito antes, estavam incluídas no Ensino
Fundamental. O trabalho realizado com elas era a alfabetização, tal como feito
anteriormente com as crianças de 7 anos. O Município contava com um Plano de
Carreira para os profissionais de educação. O critério de preenchimento de cargos
para as várias funções de gestão diretor, coordenador, supervisor era a
indicação política sem mandato, ou seja, prazo determinado para o período da
gestão. Para as funções de gestão era exigida a formação superior.
29
Embora na Deliberação estivesse proposta a exigência de curso normal
para o profissional de creche, no concurso público realizado em dezembro de
2007, foi pedida a formação de Ensino Fundamental completo. Já nas escolas de
Educação Infantil a formação superior era uma exigência que foi observada no
concurso. As contratações dos profissionais de educação foram feitas
especificamente para creches, pré-escolas e escolas de Ensino Fundamental.
Todas as creches do município são de responsabilidade da Secretaria de
Educação.
2.3 Entrando na Escola
A escola Municipal Joaquim Silva foi indicada pela Secretaria Municipal
de Educação de Três Rios para realização da pesquisa. As observações foram
realizadas no período compreendido entre 2007 e 2009. Nos dois anos iniciais,
era realizada semanalmente com a presença da pesquisadora desde a entrada até a
saída das crianças. No último ano, foram feitas algumas visitas para
acompanhamento das crianças. Entrevistas foram realizadas com a Coordenação
de Educação Infantil do Município e com as professoras, além de um questionário
aplicado, dentro da pesquisa EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DE
PROFISSIONAIS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: CONCEPÇÕES E
AÇÕES, do Grupo de Pesquisa INFOC – Infância, Formação e Cultura. O registro
fotográfico adquiriu status de estratégia metodológica complementar na medida
em que começou a revelar eventos que não tinham sido percebidos por uma
captação verbal da realidade; nesse ponto, a imagem se impôs e permitiu que
buscássemos formas outras de olhar o campo e construir conhecimento sobre ele,
pois, como afirmam Jobim e Souza e Lopes:
com a fotografia iniciamos um longo caminho na construção de novos
modos de escrita do mundo. Do mesmo modo que a escrita ortográfica
revelou uma maneira mais sistemática e conceitual de tomarmos
consciência da nossa cultura, a foto-grafia se constitui uma escrita
atual do homem, mediada por tecnologia criadora de uma narrativa
figurada. Além disso, podemos afirmar que as imagens constituem
hoje as narrativas do mundo contemporâneo, trazendo novos
elementos para buscarmos uma compreensão mais abrangente do
próprio conceito de narrativa. (2002, p.62)
30
Uma vez fornecida a moldura na qual se situa a pesquisa, convido o leitor
a entrar na escola e travar o primeiro contato com as crianças e os adultos que
possibilitaram a realização desta tese:
Cheguei à escola às 7h 30 min, dirigi-me à sala indicada pela moça
da secretaria e, aparentemente, todos tinham sido informados
pela implementadora (pessoa ligada à Coordenadora de Educação
Infantil do Município, que faz a ligação com as escolas) que eu
chegaria. Fui levada à sala da professora Carmen que disse: “Ah, a
estagiária!”. Corrigi, dizendo que era a pesquisadora e ela não mais
me chamou errado. A sala estava cheia de crianças brincando, era
um espaço amplo, e composto de mesas circulares e cadeiras ao seu
redor, eram uns cinco conjuntos desses. Carmen ofereceu a sua
mesa (igual a das crianças) para que eu colocasse meu material.
Explicou-me a rotina e continuou colando um retângulo rosa numa
folha branca.
Essa turma é composta por 8 meninas e 21 meninos entre cinco e
seis anos. É denominada 3º período e é a série que antecede a
alfabetização. O regime de distribuição de alunos é seriado e não
no município a aprovação automática (informações dadas pelas
professoras).
A rotina da turma é:
7h10 min – Chegada dos alunos e brincadeiras livres (às vezes a
turma é chamada para um café da manhã, mas não é sempre).
8h Roda de conversa – Verificação dos presentes e ausentes,
conteúdo pedagógico a ser trabalhado
8h 20 – Realização de trabalho
9h Saída para um espaço externo e realização de brincadeiras
orientadas. //Parece haver a preocupação com um trabalho
psicomotor.//
9h 45 – Almoço
10h 15 – Parque
11h – Saída das crianças.
Enquanto Carmen me explicava tudo, perguntei se se incomodava
que eu tomasse notas e ela disse que não. As meninas brincavam de
massa de modelar numa mesa e os meninos corriam e faziam
algazarra. (9/8/2007, F1TR).
A Escola Municipal Joaquim Silva era considerada uma escola modelo
pela Secretaria de Educação. Situava-se num bairro industrial do Município, um
pouco distante do centro. Ao seu redor havia uma indústria de beneficiamento de
carne, uma empresa de ônibus para transporte urbano e interestadual e uma
empresa de importação e exportação.
Essa era a turma com a qual eu me relacionaria nos próximos anos.
Busquei estar atenta às crianças para não correr o risco de que o movimento
institucional as encobrisse. De uma maneira geral, neste primeiro ano de
observação foi possível identificar algumas questões relacionadas às culturas
31
infantis, as relações de poder entre as crianças e à separação dos gêneros. Antes de
abordar as perguntas levantadas, vejamos os dados gerais relativos às crianças do
terceiro período.
Tabela 3 – Distribuição das crianças por cor e sexo declarados pelo responsável
Cor/sexo Meninos Meninas Total
Preto 5 1 6
Branco 7 5 12
Pardo 7 7 14
Amarelo 0 0 0
Indígena 0 0 0
Não declarada 1 0 1
Total 20 13 33
Fonte: Secretaria Escolar da EM Joaquim Silva. 2007
Percebe-se, na distribuição, uma freqüência maior de meninos e de
crianças declaradas como pardas pelos responsáveis. Era comum que as meninas
negras viessem para escola com penteados de tranças nagô ou rastafári. A tradição
das tranças veio da África, onde elas eram bem mais do que simples adornos para
a cabeça. A maneira de trançar os cabelos tinha vários significados: podia indicar
status social e a sinalizar que a pessoa em questão estava interessada em se
casar. No Brasil, as tranças estão ligadas ao mundo black, da música, da moda, e
fazem sucesso com negras e brancas
14
. Chamava atenção a maneira caprichosa
com a qual seus cabelos eram penteados, demonstrando uma identificação étnica
positiva.
Quanto à profissão dos pais, a maior parte deles exercia trabalhos com
pouca qualificação enquanto a maioria das mães não trabalhava fora. Cinco das
trinta e três crianças da turma tinham pai desconhecido, sendo criados pela mãe.
Tabela 4– Profissões dos pais
Profissão Quantidade
Pai desconhecido 5
Segurança 3
Pedreiro 3
Desossador 3
Não declarada 2
Garçom 2
Aposentado 2
Motorista 2
Auxiliar de produção 2
14
Entrevista de Cláudia da Silva grupo Ubuzima http://www.ubuzimacorpoealma.blogspot.com/
acesso em 25/6/2009.
32
Servente 2
Armador de estril 1
Pintor de automóveis 1
Caminhoneiro 1
Falecido 1
Chapa 1
Frentista 1
Balconista 1
Total 33
Fonte: Secretaria Escolar da EM Joaquim Silva. 2007
Tabela 5 - Profissões das mães
Do lar 22
Doméstica 2
Vendedora 2
Costureira 2
Manicure 1
Auxiliar de cozinha 1
Autônoma 1
Ajudante 1
Arrumadeira 1
Total 33
Fonte: Secretaria Escolar da EM Joaquim Silva. 2007
Havia, segundo a Secretária Escolar, preocupação dos pais em garantir a
presença dos filhos na escola como forma de manutenção da receita oriunda do
programa Bolsa Família
15
(PBF) que é um programa de transferência direta de
renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza (com
renda mensal por pessoa de R$ 69,01 a R$ 137,00) e extrema pobreza (com renda
mensal por pessoa de até R$ 69,00), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro
de 2004 e o Decreto n.º 5.209, de 17 de setembro de 2004. Dentre as
condicionalidades, uma refere-se à educação e exige das famílias freqüência
escolar mínima de 85% para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos e mínima
de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos. Com relação à renda familiar foi
verificada a seguinte distribuição:
Tabela 6 – Faixa de renda familiar mensal
Faixa em salários mínimos
16
Quantidade
Não declarada 5
Inferior a 1 3
Equivalente a1 17
Entre 1 e 2 5
Entre 2 e 3 1
Entre 3 e 4 2
Total 33
Fonte: Secretaria Escolar da EM Joaquim Silva. 2007
15
Informação obtida no site http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/, acesso em 25/6/2009.
16
Salário Mínimo vigente no país em 2007: R$ 380,00
33
A maior parte das crianças observadas pertencia a famílias cujo
rendimento se encontrava abaixo da média observada na tabela de rendimento
médio mensal de todos os trabalhos das pessoas de dez anos ou mais de idade,
ocupadas na semana de referência com rendimentos de trabalho por sexo, segundo
as grandes regiões, unidades da federação e regiões metropolitanas 2005 que
apontava para a região sudeste ganho mínimo de R$ 949,00 (novecentos e
quarenta e nove reais) à época.
17
A maioria das famílias das crianças do terceiro período declarava-se
católica, conforme a tabela abaixo:
Tabela 7 - Religião familiar declarada
Religião Declarada Quantidade
Católica 25
Evangélica 3
Não declarada 5
Total 33
Fonte: Secretaria Escolar da EM Joaquim Silva, 2007.
Em termos gerais, essas eram as características das famílias das crianças
observadas no primeiro ano da pesquisa. Durante a sua execução (2007 - 2009),
entretanto, houve modificações nas ocupações dos pais e no grupo de crianças.
Havia uma incidência de troca de escola ou de turno e, após o primeiro ano,
acontecia também a entrada das crianças repetentes do ano anterior e saída
daquelas que não obtiveram a aprovação na turma.
Muitas foram as experiências no primeiro ano de observação e decorreu
daí a primeira mudança nos planos de trabalho. O pré-projeto de tese apresentado
ao Programa de Pós-Graduação da PUC Rio tinha como objetivo entender as
relações de poder travadas no interior das brincadeiras entre as próprias crianças -
as estratégias de negociação, a escolha/definição dos papéis encenados, a
concepção das regras que definiam a condução das atividades, ou seja, que relação
as práticas de poder e hierarquia internas à brincadeira estabeleciam com a cultura
mais ampla e, o que falava da sociedade esta forma específica de inserção da
cultura da infância. Estar na empiria, entretanto, fez toda a diferença.
17
Tabela 3.13 da síntese dos indicadores sociais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
- PNAD acesso em 25/9/2009 ao site
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2007/default.shtm
34
2.4 A Educação Infantil: a Pesquisa no 3º Período
A pré-escola no município de Três Rios se organiza em três períodos: o
primeiro atende crianças de três anos, o segundo, crianças de quatro e o terceiro
período, objeto desta pesquisa, crianças de cinco anos, último ano antes do
ingresso no Ensino Fundamental.
Alguns conceitos foram fundamentais para a construção do objeto. A
noção de reflexividade, tomada de empréstimo à antropologia semiótica (Geertz,
1978 e 1985), auxilia a pensar na perspectiva do pesquisador. Sua subjetividade é
assumida como elemento de análise, mesmo que não se tenha a pretensão de
apreender as subjetividades dos envolvidos pesquisador ou sujeitos. A
reflexividade não deve ser tomada apenas no modo confessional os comentários
do pesquisador sobre como se sentia durante a pesquisa. Para a antropologia e,
neste caso, para esta pesquisa, a subjetividade deve ser entendida de maneira
peculiar; as emoções são fatos sociais, produto de uma educação sentimental que é
social e histórica.
Durkheim (1971) mostrou a dimensão social das emoções, em seus
estudos sobre os fenômenos religiosos. As sociedades, segundo ele, produzem
sentimentos coletivos, necessários para a manutenção do consenso social. Os
rituais, especialmente os de caráter religioso, teriam o papel de reafirmar os
sentimentos coletivos que dão unidade à sociedade.
Para Mauss, as emoções em suas expressões variadas compõem uma
linguagem, elementos de comunicação, logo aspectos eminentemente sociais.
Produto do emaranhado das dimensões biológicas, psicológicas e sociais:
comunicação humana através de símbolos, de sinais comuns,
permanentes, exteriores aos estados mentais individuais que
simplesmente o sucessivos, através de sinais de grupos de estados
considerados a seguir como realidades. (1974, p. 190).
Na interação com os sujeitos pesquisados, através da observação, foi
possível ao pesquisador, o estabelecimento da reflexividade, conceito que pode
ser aproximado ao da exotopia decorrente do excedente de visão de Bakhtin.
Bakhtin mostra que apenas ao outro é dado ver-me e que minha percepção
de mim mesmo só se torna possível pela mediação feita por ele, me dando
35
acabamento através de uma estética possibilitada pelo movimento de aproximar-se
e afastar-se retornando ao ponto inicial, modificado pela experiência de ter vivido
uma dada realidade pela ótica daquele a quem tento dar um acabamento. A
exotopia o se limita a um conceito espacial, ela é simultaneamente, uma
categoria temporal. O excedente de visão é possível dado o afastamento no
espaço e no tempo. Ele permite dar ao outro uma forma e um acabamento que
jamais podemos ter por conta própria. (Bakhtin, 2000, p. 43).
Uma vez feitas as ressalvas teóricas que norteavam as ações da
pesquisadora no campo, convido o leitor a conhecê-lo mais de perto, de dentro da
sala de aula.
Refletindo sobre as anotações no diário de campo durante o primeiro ano
da pesquisa foi possível identificar vários aspectos relativos às interações entre
adultos e crianças, às culturas infantis e às práticas pedagógicas. A ação da
professora pautava-se pelos elementos assinalados nos Parâmetros Nacionais de
Qualidade para Educação Infantil (BRASIL 2006) como componentes da história
das discussões a respeito do debate sobre a qualidade nesse segmento. Para
contextualizar o debate, o documento propõe contemplar:
1) a concepção de criança e de pedagogia da Educação Infantil; 2) o
debate sobre a qualidade da educação em geral e o debate específico
no campo da educação da criança de 0 até 6 anos; 3) os resultados de
pesquisas recentes; 4) a qualidade na perspectiva da legislação e da
atuação dos órgãos oficiais do país.. (BRASIL. 2006, p 13).
2.4.1 Uma prática pedagógica sedutora
Nos momentos inicias da pesquisa de campo fui surpreendida pela atuação
da professora da turma de período. Carmen revelou-se conhecedora de cada
uma das crianças de sua turma, de seus contextos familiares e sociais, bem como
exerceu suas funções de maneira sensível e ética. Foi importante esse
reconhecimento inicial, pois a admiração pôde permitir um direcionamento do
olhar da pesquisadora para as positividades do campo. Tal fato não deveria tomar
a forma de um véu que encobrisse as vicissitudes da realidade, mas foi uma teia
que enredou a pesquisadora no começo da pesquisa e capturou seu olhar,
desviando-o das crianças.
36
A concepção de infância presente, na maior parte das vezes, na atuação da
professora do período, revelava uma visão da criança como sujeito social,
produto da sua cultura e produtor da mesma. Havia um reconhecimento da história
de cada um e de sua identidade e as relações eram pautadas por esses aspectos.
Giovana se aproxima e diz para Carmen: “Meu tio comprou um DVD”.
Carmen: “Qual tio? O irmão da sua mãe ou o namorado dela?”
Giovana: “O meu tio Geraldo. Carmen: “Esse eu não conheço.”
(9/8/2007 F1TR).
Nos diálogos entre a professora e as crianças ficava evidente um respeito
mútuo pelo papel social de cada um. As crianças eram escutadas em suas falas e
as interações verbais se davam sem que o adulto considerasse uma incapacidade
infantil de entendimento do que está sendo abordado.
Renan se aproxima da Carmen e diz:
Meu pai tem um amigo polícia. Ele foi lá em casa.
Carmen: Por quê? Eu acho que sei... Ele não comprou uma moto?
Renan: Sim.
Carmen: E ele tem carteira?
Renan: Não.
Carmen: Ah, então tem que tomar cuidado... (23/8/2007 F1TR).
Ou ainda, na maneira clara e direta da professora ao abordar situações
cotidianas da realidade social daquelas crianças:
Na atividade da roda de conversa, Carmen pergunta: “Que dia é
hoje?” Richard acerta o 16 e sabe que o seguinte é 17, aniversário
do Antônio C. João diz: “Vai ter bolo, pipoca, refrigerante.” Carmen
responde: “Não sabemos, pois se a mãe dele estiver sem dinheiro,
não para fazer festa, mas isso não é o mais importante.”
(16/8/2007 F1TR).
O reconhecimento da função do lúdico e do papel da interação social na
constituição dos sujeitos se faz presente de forma que associa as dimensões
afetiva e cognitiva, sem ênfase maior numa ou na outra. A interação social é um
processo que se a partir de indivíduos com modos histórica e culturalmente
determinados de agir, pensar e sentir, sendo inviável dissociar as dimensões
cognitivas e afetivas dessas interações e os planos psíquico e fisiológico do
desenvolvimento decorrente (...). Nessa perspectiva, a interação social torna-se o
espaço de constituição e desenvolvimento da consciência do ser humano desde
que nasce. (BRASIL, 2006, p.14).
Os eventos do campo mostram a integração das diferentes dimensões do
sujeito nas práticas pedagógicas adotadas
37
Depois do almoço voltamos para a sala onde Carmen propôs uma
atividade interessante com saquinhos de pipoca, um dado e uma
história de um vento que desarrumou os sacos de pipoca do
pipoqueiro. Depois, mostrou a palavra pipoca num cartão, pediu que
as crianças identificassem (era igual ao que estava escrito no saco)
e sugeriu uma atividade cortando as sílabas e entregando cada uma
para uma criança (o pi” o “pó” e o ca”) em seguida, testou
arrumações diferentes na ordem das sílabas, fazendo as crianças
lerem o resultado de cada uma. (23/8/2007 F1TR).
A mediação de conflitos era outra função recorrente na prática pedagógica
daquela professora e se refletia em ações explícitas de por fim a agressões verbais
ou físicas entre as crianças.
Carmen começa a escrever as iniciais das meninas em baixo do
desenho de uma borboleta no quadro de giz. Um menino se queixa
que Júlia o chamou de burro. Carmen dirige-se a ela: “Ele tem
orelhas grandes? Tem rabão?” Júlia: “Não.” Carmen: “Então não é
burro, é criança.” (9/8/2007 F1TR).
A contenção das crianças eventualmente demandava uma ação firme do
adulto que, se não fosse cuidadosa, corria o risco de atravessar a fronteira que
separa a autoridade do autoritarismo.
Vamos para fora da sala, organizados em fila e eu dou a mão para
Lucas, o último da fila. Carmen pede minha ajuda para avisar quando
for a hora do almoço e começa uma brincadeira de “laranja da
china”. Carmen vai dando instruções para as duplas e fica ela mesma
com Lucas, que estava sem par. Fico observando. Ela manda colarem
os rostos, depois as costas, depois os joelhos, os bumbuns, os
cabelos (“Cuidado com os piolhos!”) manda andarem pela quadra.
Richard está aprontando, atrapalha os colegas, vários se queixam
dele. Carmen chama sua atenção, mas ele continua, ela o manda sair
da brincadeira e fica de mãos dadas com ele. (20/9/2007 F1TR).
Carmen nitidamente aplicou uma sanção ao Richard, contendo suas ações
que estavam prejudicando o restante do grupo. A punição, entretanto não pareceu
ter caráter excludente ou somente punitivo, pois ele permaneceu de mãos dadas
com a professora, por algum tempo, até ser incluído novamente na brincadeira.
O encantamento não poderia ser permanente, do contrário a pesquisa
ficaria comprometida. Assim, aos poucos, foi possível dirigir o olhar às crianças e
buscar nas suas práticas expressões das culturas infantis que motivaram as
questões iniciais da tese. Paulatinamente, apareceram no diário de campo,
anotações que revelavam o resgate da capacidade crítica.
Carmen explicou que hoje eles ensaiariam para o desfile de 7 de
setembro e que ela estava ensaiando também o “esquadrão do
bambolê”. Fomos para a quadra e Carmen deixou seu grupo junto ao
38
da professora do período e foi ensaiar as meninas que iriam à
frente com o bambolê.// Não pude deixar de pensar no quanto
Carmen busca visibilidade, ela se envolve em ensaios de outras
turmas e está sempre à frente de alguma atividade.// (30/8/2007
F1TR).
Enquanto eu observo uma brincadeira dos meninos, a professora do
período deixa uma menina do turno da tarde em nossa sala, pois
vai acontecer um ensaio reunindo os dois turnos. Carmen acolhe a
menina e diz “sua tia vai chegar”. Chama as meninas para sua
mesa para mostrar a cestinha com a qual vão dançar e quase
captura minha atenção. Me forço a voltar a olhar para a brincadeira
dos meninos. (23/8/2007 F1TR).
Percebi, então, uma tendência a me deixar capturar pelas ações da
professora, o que obrigou a um cuidado maior na pesquisa sob o risco de que as
crianças ficassem encobertas por este direcionamento do olhar. Pude perceber
ainda que a escolha desta turma, nesta instituição, por parte da Secretaria de
Educação apontava para uma percepção coincidente com a da pesquisadora sobre
aspectos de qualidade a Educação Infantil e na ação docente neste segmento.
2.4.2 As interações com a pesquisadora
A entrada no campo se deu a partir da proposta de William Corsaro na
qual o pesquisador deve se constituir num adulto atípico.
a entrada no campo é crucial na etnografia, uma vez que um de seus
objetivos centrais como método interpretativo é estabelecer o status de
membro e uma perspectiva ou ponto de vista de dentro (Rizzo et al.,
1992). A aceitação no mundo das crianças é particularmente
desafiadora por causa das diferenças óbvias entre adultos e crianças
em termos de maturidade comunicativa e cognitiva, poder (tanto real
como percebido) e tamanho físico (Corsaro, 2005, p. 444).
Neste artigo, Corsaro fornece pistas valiosas para o adulto que pretende
pesquisar crianças e suas culturas a partir das suas significações. De maneira
geral, as interações que os adultos estabelecem com as crianças partem da
premissa do controle do adulto. Tornar-se atípico é abrir mão desta posição e
adotar o que Corsaro denominou de estratégia de entrada reativa” (2005, p.
448). Na verdade, trata-se de simplesmente estar ali e esperar que as crianças
tomem a iniciativa de abordá-lo. Além do momento de entrada no campo, outro
aspecto a ser observado é a manutenção da postura não diretiva durante toda a
pesquisa. Essa atitude envolve alguns cuidados: não iniciar ou por fim às
39
brincadeiras, não exercer papéis de poder nas brincadeiras de faz-de-conta, seguir
as orientações dos líderes e se deixar participar.
Fui apresentada à turma pela professora durante a roda de conversa e falei
que estava estudando como as crianças brincavam e por isso, iria participar de
suas atividades, observando e anotando, uma vez por semana ao final do ano. A
princípio fui meio ignorada, as crianças não manifestaram muito interesse, embora
eventualmente olhassem para mim e para o meu caderno. Neste dia, além da
professora somente a Júlia me dirigiu a palavra, na verdade mais como forma de
estabelecer uma comunicação do que com algum interesse. Ela perguntou se eu
estava escrevendo e eu respondi que sim. Esse foi todo o diálogo da pesquisadora
com os seus sujeitos nesse primeiro encontro. Percebi ainda que havia uma certa
indiferença aparente à minha presença, o quê em conversas posteriores foi
explicitado pela professora como uma preocupação de que eu estivesse ali para
avaliá-la.
A merendeira abre a porta e chama a turma para o café. A figura
que estava sendo vista pelas crianças dá mais uma volta na rodinha
e nós vamos ao refeitório. Carmen manda fazerem fila por ordem
de tamanho.// Acho meio injusto, pois se o critério for sempre
esse, Júlia, que é baixinha, será sempre a primeira.// Todos,
inclusive a professora, tomam um mingau de milho. Ninguém me
oferece e eu fico quieta olhando. Rapidamente todos voltam para a
sala e para a rodinha. Eu vou atrás do grupo. (9/8/2007, F1TR).
Aos poucos, no entanto, começo a ser integrada ao grupo. Pesquisadores
cujos sujeitos de pesquisa são crianças sabem a importância que o caderno de
campo pode ter nessa relação. No segundo dia de observação, as meninas, através
da Júlia que era uma liderança incontestável, me incluem no seu diálogo:
Júlia (para a pesquisadora): “Escreve meu nome aí!”
Pesquisadora escreve: JÚLIA
Ela não olha se eu escrevi. Vira-se para Catarina e implica: “Está
com frio dona Sandra?”
Catarina responde: “Para!”
Júlia: “Não quer brincar comigo, não?” E pega um bolinho de papéis
que Carmen havia posto na mesa para a tarefa, dizendo: “É meu.”
Yasmin reage: “Não é nada!”
Júlia olha meu caderno e ordena: “Agora o da Catarina!”
Escrevo: CATARINA
Júlia pega os papeizinhos bege e arruma em sua folha formando
uma seqüência da mesma cor. Catarina ensina como fazer e começa
a arrumar o trabalho da colega. Carmen que estava explicando
percebe o movimento das duas. Carmen diz que, como a Júlia
40
acertou tão rápido, vai fazer outro. Júlia diz que não vai não.
(16/8/2007, F1TR).
Fica evidente que, nesse momento se trata de verificar até que ponto a
pesquisadora vai se submeter às ordens da líder. Em observações mais à frente o
caderno se revela um importante mediador da relação pesquisador-sujeito.
Encontrei as crianças já na sala de aula, sentei-me numa mesa
sozinha e Lucas se aproximou dizendo:
“Escreve carrinho!”
Atendi e mostrei a ele. Li a frase inicial onde descrevia o ocorrido
“Lucas pede...” Ele me corrigiu:
“Meu nome não é assim.” E pegou o meu caderno para escrever. Não
ficou satisfeito com o primeiro L e fez outro. Em seguida, Lucas
elogiou meu perfume e se afastou. (30/08/2007, F1TR).
Gravura 1: Lucas escreve seu nome
18
É freqüente a tentativa das crianças de fazer o pesquisador voltar ao papel
de adulto típico, exercendo a sua autoridade e pondo fim a conflitos. O cuidado
nessas situações é evitar a armadilha para não perder o seu lugar privilegiado de
observação:
Fui para a mesa das meninas, onde estavam Catarina, Carolina
Yasmin, Júlia, Vanessa e Thalita, elas brincavam com peças e
formavam figuras. De um lado, Catarina e Carolina, do outro, Júlia,
Yasmin e Vanessa. Thalita estava quieta, observando. Começou
uma disputa pelas peças e Catarina queria que eu interferisse para
pegar um quadrado. Júlia rapidamente respondeu:
“Não pode! Ela está só observando. Perguntei então para Catarina:
“Como você vai resolver?” Júlia não deixou ela responder, dizendo
antes: “Eu sei que tenho que dar porque ela é chorona.” Carolina
queixou-se: “Eu tentei fazer um negócio e a Catarina o deixou.”
Júlia tentou se justificar É a casinha do neném, não é tia?”
Pesquisadora: “Eu não sei, vocês que resolvem.” Carolina reforçou
sua posição contra o conflito: “Não sou eu, é a Catarina quem quer.”
Catarina, ignorando toda a negociação, afirmou: “Tia, ela bem não
quer me dar o quadrado!” Júlia, irritada, repetiu: “Ela não pode
resolver! Ela está só olhando!” (30/08/2007, F1TR).
Júlia se destaca pela capacidade de identificação dos papéis a serem
desempenhados e das expectativas que pode dirigir a cada um. Essa característica
18
Aqui o nome original foi preservado porém sem identificação pelo sobrenome.
41
lhe confere uma liderança inequívoca entre as meninas. O exercício do comando,
no entanto, se desenvolve entre tensões e é possível observar modificações nas
alianças estabelecidas em vista da obtenção de privilégios.
Aos poucos, a estratégia de entrada reativa e a postura de adulta atípica
começaram a surtir efeitos e as crianças expressaram isso em suas falas:
Carmen mandou que fizéssemos “estátua” para que ela pudesse
contar o número de crianças presentes. Contou duas vezes e
encontrou números diferentes. Resolveu contar colocando a mão na
cabeça.// Ela estava fixando a seqüência.// A cada criança, Carmen
colocava bem forte as mãos e sacudia a cabeça, todos riam. Chegou
ao número de 25 crianças e Júlio César mandou ela me contar.//
Acho que o Corsaro está me ajudando a virar a amiga grande.../ Fui
contada e sacudida também e nosso número virou 27, pois ela
também se incluiu. ( 20/9/2007, F1TR).
Outro aspecto importante para mostrar a aceitação do campo foi o convite
– em minha terceira ida - pelas crianças e pela Carmen para que eu participasse do
café da manhã e do almoço. Estranhamente, passou a parecer “natural” tomar leite
ou comer mingau às 8h e almoçar às 10h. As funcionárias da cozinha também
passaram a contar com a minha presença no refeitório nos dias de observação.
A consolidação do papel de pesquisadora como uma adulta distinta das
demais me pareceu clara quando, um mês e meio após o início da pesquisa,
ocorreu o seguinte evento:
Saí da sala para ir ao banheiro. Quando voltei, as crianças estavam
preparadas para ir ao teatro, sentados em rodinha, esperando a
ordem de Carmen para irem para fora. Elas não sabiam ainda o
que ia acontecer. Carmen fez um jogo de segredos e eu participei:
“Vocês não imaginam o que vai acontecer agora!” Eu disse que
sabia, pois fui fora. As crianças estavam ouriçadas com a
surpresa. Carmen explicou o que aconteceria e o comportamento
que queria deles na hora da peça. Assistimos a uma apresentação
sobre como agir no trânsito, Na hora de sair, primeiro as meninas,
depois os meninos, Lucas questionou porque eu não havia saído,
afinal eu era menina. // Me senti a própria “Corsara”! Virei uma
amiga grande!// (29/9/2007, F1TR).
2.4.3 Questões de poder e de gênero no 3º período
As primeiras anotações no diário de campo sinalizavam para uma
diferença relevante nas ações dos meninos e das meninas. Não seria possível
42
agrupá-las no contexto de comportamentos infantis sob o risco de incorrer em
generalizações que acabariam por esvaziar os conceitos de análise. O campo
sugeriu que as diferenças entre os comportamentos dos meninos e das meninas
eram construções sociais. Resultado: a constatação da necessidade de recorrer aos
estudos de gênero. Ferreira (2002) mostra que nas interações das crianças elas
constróem uma identidade partilhada o sentido de ser criança naquelas
condições concretas ao mesmo tempo em que estabelecem dimensões
particulares e estruturais específicas que as hierarquizam entre si em suas
experiências subjetivas. São elas: gênero, idade e classe social, formadores de
identidades particulares que as assemelham e unem e/ou diferenciam e separam
entre si.” (Grifo da autora, p. 113-114)
Relendo as notas do campo percebo que desde o primeiro encontro as
questões de gênero se faziam presentes, tanto na fala da professora quanto das
crianças. Custei um pouco a enxergar isso, pois me encontrava capturada na idéia
de relacionar criança” e poder de tal forma, que não enxergava as suas
concretudes (classe, etnia, gênero) nas quais tanto insiste a sociologia da infância.
Carmen me apresentou para as crianças através da escrita do meu
nome. Elas tentavam dizer as letras à medida que a professora ia
escrevendo em caixa alta: F L Á V I A. Ela confirmou o acento
agudo. Sentei no chão, na roda, me apresentei, falei que estudo,
pesquiso e observo como as crianças brincam. Carolina disse que eu
era “observadora”.
Carmen perguntou: “O que eu desenho hoje para as meninas?”
Meninas: “Boneca, flor...”
Carmen: “Eu desenhei isso essa semana... vou fazer uma
borboleta, tá?”
Meninas: ”Sim!”
Carmen: “E para os meninos?”
Meninos: “Homem aranha”
Carmen: “Eu não desenho tão bem. Vou fazer uma teia e uma
aranha, tá bom?” (9/8/2007, F1TR).
Historicamente, as feministas anglo-saxãs foram responsáveis pela
distinção entre sex e gender buscando afastar-se de um determinismo biológico
implícito nas idéias de sexo ou diferença sexual. O conceito serve assim como
uma ferramenta analítica que é, ao mesmo tempo, uma ferramenta política.”
(Louro, 1997, p. 21). O gênero passou a ser percebido como um elemento
constituinte da identidade dos sujeitos, tal como a etnia, a classe ou a
nacionalidade, transcendendo o mero desempenho de papéis.
43
um reconhecimento de que o gênero se constitui a partir de corpos
sexuados, não se trata de uma negação da biologia, mas do acréscimo da história
que produzirá determinadas construções sociais.
Os estudos que tratam de gênero precisam ainda evitar uma armadilha
perigosa: a oposição binária entre masculino e feminino e a lógica invariável de
dominação e submissão. Torna-se, portanto, necessária uma desconstrução da
polaridade rígida entre os gêneros e de uma suposta unidade interna a cada um.
Louro (1997, p. 32) apresenta outras oposições inscritas na mesma lógica:
público/privado, produção/reprodução, razão/sentimento, onde o primeiro termo
tem preponderância sobre o segundo. Ao analisar os dados do campo, é essencial
identificar as condições que estabeleceram os termos das polaridades e a
hierarquia nelas existente.
João começou uma brincadeira de ser um bicho feroz. Ele deitava
no chão e os demais vinham provocar, então o bicho feroz corria
para pegar aqueles que estavam o incomodando.
Luís falou para João: “Posso brincar?”
João o ignorou e disse para Rômulo: “Ah não Rômulo, ah não...”
E para Antônio: “Tá bom, você é bicho normal.”
João se deitou no chão e cedeu ao Rômulo: “Então tá, nós vamos
para casa.”
Luís se dirigiu para o Rômulo: “Rômulo me deixa brincar?”
//Como João aceitou Rômulo para seu “time” Luís buscou uma
aceitação do segundo no comando//
Rômulo nem hesitou: “Não.”
João mostrou quem mandava: “Ô Antônio, você tem que pegar a
gente!”
Antônio, aceitando a liderança, esclareceu: “O que eu tenho que
fazer mesmo?”
João e Rômulo responderam juntos: “Cutucar a gente!”
O jogo de aproximação/evitação começou. Ao ser perseguido,
Antônio subiu na mesa. João e Rômulo permaneceram no chão,
rugindo ameaçadoramente, de quatro, respeitando a área sobre a
mesa como segura.// Se desejassem, bastava levantar e pegar o
Antônio.// (23/8/2007, F1TR).
As relações de poder aparecem nas interações entre as crianças. É
frequente que, nas brincadeiras, as crianças demostrem liderança e exerçam sua
autoridade de maneira impositiva, autoritária, demonstrando uma forma peculiar
de entendimento dos valores da sociedade na qual estão inseridas. A dimensão de
poder exercida pelos meninos neste evento exige que se explicite a maneira como
tal conceito está sendo adotado. Foucault propõe a substituição de uma “teoria” do
44
poder pela sua “analítica”. Em sua forma mais abstrata, o conceito foucaultiano
não mantém nenhum contato com os conceitos de Estado, soberania, lei e
dominação. Ele consiste em relações de força, e não emana de um ponto central,
mas sim de instâncias periféricas. Além disso, está, ao mesmo tempo, em toda
parte, na relação de um ponto com outro, enfim multiplica-se e provém,
simultaneamente, de todos os lugares. Em síntese temos:
Poder como rede capilar que atravessa toda a sociedade;
Antes uma estratégia que um princípio ou atributo;
Interessam os seus efeitos: disposições, manobras, táticas, técnicas
fundamentais.
As manifestações de poder entre os meninos apontam para uma expressão
clara e explícita de seu exercício. Não há dúvidas sobre quem está no comando e o
que eles desejam ou não que aconteça na brincadeira. entre as meninas... O
exercício de exclusão e inclusão se dava de maneira ambígua, através de
mensagens que deixavam dúvida sobre a aceitação da menina no grupo ou não.
Catarina abriu a mochila e tirou um telefone de brinquedo de
dentro dela, ele fazia sons de toque e dizia uma mensagem em
inglês. Imediatamente, virou o centro das atenções das meninas.
Todas passaram a falar com ela com respeito. Thalita pediu: “Me
empresta?”
Mas foi ignorada. Catarina mostrou o telefone, colocou no ouvido
das colegas e no meu e deixou Júlia segurar. Carolina pediu: “Você
me empresta depois dela?”
Catarina percebeu que Thalita estava chateada e retomando o
telefone aproximou de seu ouvido, mas ela recusou. Catarina deu o
telefone para Vanessa. (30/8/2007, F1TR).
Nos eventos relatados a partir do campo no ano de 2007, enquanto as
crianças ainda estavam na Educação Infantil, alguns elementos se destacaram
como categorias de análise das relações estabelecidas entre elas.
Quanto à ocupação espacial das brincadeiras foi possível perceber que,
enquanto os meninos se “espalhavam” por toda a sala de aula, as meninas
estabeleciam uma base fixa para suas brincadeiras com limites espaciais bem
definidos, quase fronteiras territoriais. A distribuição espacial da sala permite que
se visualize essa ocupação, as meninas ficavam sempre na mesa 3, enquanto os
meninos ocupavam as demais mesas e o espaço entre elas:
45
Gravura 2 – Mapa da sala de aula do 3º período
Outro aspecto que se destacou no campo foi o tempo despendido na
organização da brincadeira– muito maior entre as meninas, ocupando quase toda a
duração da atividade livre. os meninos, planejam rapidamente o que vai ser
desempenhado e se dirigem à atividade.
Vanessa pegou a Barbie, quando Catarina viu, deu uma bronca:
“Deixa minha Barbie aí!”
Vanessa, ressentida, se afastou.
Vanessa aproximou-se de Giovana e as duas chamaram Thalita. Com
isso, Catarina ficou e Júlia também perdeu espaço. Rapidamente
ela reagiu: “Está dormindo? Está dormindo? Quer ver?”
Ninguém deu muita atenção. Júlia colocou a boneca sobre a mesa,
Thalita rapidamente a pegou. Júlia tomou de volta e reclamou:
“Você está desmontando!” Catarina resolve deixar sua Barbie com a
Vanessa. (29/9/2007, F1TR).
O exercício de poder entre as meninas se configura como um jogo para
qual elas demonstram preparo diferenciado; Catarina não manipula tão bem
quanto Júlia o oferecer e tomar que se faz necessário. Chama atenção também o
tempo que demora para a brincadeira começar. Ao final deste evento, é possível
perceber que Catarina aprende, durante a interação, estratégias que demonstram
um maior entendimento das regras do jogo.
A invasão da brincadeira do outro apareceu como um aspecto que
mostrava como a construção social dos meninos e das meninas se dão desde muito
cedo; eles sendo estimulados a ocuparem espaços, a se tornarem o centro das
atenções, a não desenvolverem um respeito profundo pelo espaço destinado aos
demais. As meninas, por sua vez, pareciam se conformar a uma geografia de
fronteiras bem mais limitadas e a uma postura de defesa de território, ao invés do
avanço para o espaço dos outros. Era muito comum que os meninos atravessassem
as outras brincadeiras, atrapalhando-as:
Mesa
1
Mesa3
Mesa4
Mesa5
banheiro
Mesa2
46
Rômulo e Kauã vieram ao centro da sala com uma corda de pular e
entraram no meio da nossa brincadeira. O objetivo passou a ser a
tampinha atravessar de um lado ao outro, por baixo da corda.
Antônio assumiu o lugar do Kauã que foi chamado pela professora
para arrumar um jogo que ele tinha deixado desarrumado. A
brincadeira se desorganizou e os dois grupos se misturaram. As
duas brincadeiras estavam atravessadas. João falou: Eu sou o
leopardo eu furo a garganta! E rugiu bem alto.
Wesley parecia aborrecido com a invasão do nosso espaço, Richard
se aproximou dele. Luís afastou o Renan, com quem brincava antes,
dizendo: Só eu e o Antônio estamos brincando, caraca! (20/9/2007,
F1TR).
Os comportamentos das meninas e dos meninos ainda diferiam bastante
com relação à maneira como lidavam com objetos que atraiam a atenção de seus
companheiros, conferindo-lhes algum status. Para os meninos, importava mostrar
o objeto, estabelecer comparações, caso outro menino tivesse objeto semelhante e
aí então, definir quem saía vencedor nessa disputa:
Na mesa que eu observava, começou uma comparação do tamanho do
lápis. Os meninos colocavam seus lápis de sobre a mesa e os
mediam. // Não pude deixar de pensar que os meninos estão sempre
comparando quem é o mais poderoso.//
Luís aproximou-se e perguntou ao João se ele tinha um lápis verde
com borracha igual ao do Júlio César. João respondeu que tinha.
(4/10/2007, F1TR).
Para as meninas, o padrão de disputa remetia a um objeto ausente, logo
produto da imaginação do interlocutor
Pedi licença às meninas e sentei-me com elas. Na mesa estavam
Júlia, Catarina, Vanessa, Carolina, Thalita, Ludmila e Giovana.. lia
e Catarina discutiam porque Júlia acusou a amiga de ter levado uma
boneca sua para casa. Catarina respondeu que tinha deixado na
escola. Júlia quis saber: Você mora aonde?
Júlia pegou sua boneca nova na caixa e o seu segundo vestido,
Thalita pediu para trocar, mas Júlia não deixou. Vanessa foi à outra
mesa buscar massa de modelar a pedido de Catarina, que brincava
com uma Barbie e retornou. Júlia ordenou para Ludmila: “Coloca!”
Ludmila surpresa perguntou: “O quê?”
Júlia: “O vestido!”
// Nesse momento havia uma divisão na mesa que agrupava de um
lado Júlia, Carolina e Ludmila e de outro, Catarina, Giovana e
Vanessa. Thalita estava, aparentemente, sem filiação a nenhum dos
dois grupos.//
Júlia retirou a caixa da boneca da sacola de supermercado onde
estava e começou um jogo de mostrá-la ao seu grupo.
Obviamente despertou o interesse de todas as meninas que
estavam na mesa. Júlia falou para Catarina: “Vai se meter?”
Catarina não se intimidou: “Estou vendo por ali!”
Júlia escondeu mais a caixa com a sacola plástica. Foi a vez da
Vanessa: “Estou vendo aqui.”
47
Júlia respondeu com rispidez: “Não deixa!”
Deu um murro na mesa e continuou: “É minha boneca! Guardando a
caixa no saco plástico.”
Catarina, Vanessa e Giovana estavam fascinadas pela caixa que não
podiam ver, mas não se deram por vencidas: “Estamos vendo porque
o plástico é transparente.”
Carolina pegou a sacola e deixou Ludmila ver. Júlia se levantou e foi
até a professora pedir que ela colocasse o vestido. O grupo de Júlia
Ludmila e Carolina - continuava a defender a caixa do olhar das
demais. O outro grupo resolveu, então reagir e escondeu a Barbie
atrás da mochila. Vanessa começou a contar vantagem, disse que
iria ganhar um celular, uma boneca, um computador, um batom e um
brilho. (20/9/2007, F1TR).
O comportamento das meninas, nessas ocasiões, referia-se a algo que não
podia ser visto naquele momento. Havia uma insinuação de propriedade de algo
de valor que despertava o interesse das demais. Pela quantidade de objetos que
Vanessa traz para o final do diálogo é possível estimar o quanto estava interessada
em ver a boneca da colega. O comportamento que prevalecia era, em certa
medida, sedutor, em oposição ao dos meninos que era de exposição.
Tal como para Ferreira (2002), ficou evidente que as crianças do terceiro
período traziam para a escola valores simbólicos de gênero:
que lhes estão previamente associados e/ou que lhes foram inscritos
pelas crianças nos usos sociais e reconceptualizações através das
rotinas do brincar saber o que brincar, onde brincar e a quê, como,
com quê e com quem brincar -, subscreve a ideia de que meninas e
meninos têm um conhecimento semelhante dos recursos disponíveis
para a expressão de identidades de género, que se organizam de modo
segregado e em torno do seu próprio género. (p. 115)
Esse conhecimento não significa que as crianças se apropriem dos
valores de gênero tal como os adultos. Assim, a autora distingue entre a adoção
de papéis de meninos ou meninas e a identidade de cada um. No primeiro caso
trata-se de desempenho de papéis arbitrariamente definidos, enquanto a
identidade iria além, daria sentido ao pertencimento relacionando múltiplas
dimensões. Ferreira propõe que a relação das crianças, neste aspecto, permite um
novo posicionamento analítico que desconstrói a polaridade decorrente de uma
lógica simplista baseada na oposição entre dois pólos: um dominante, um
dominado. A maneira peculiar das crianças ressignificarem os papéis de gênero
coloca em questão a unidade e a permanência da sua relação.
introduzindo de permeio as redes complexas de poder que, no seu
exercício, nas suas estratégias, nos seus efeitos, nas resistências que
48
desencadeia, não são constitutivas das hierarquias sociais entre
géneros, como podem, ao fracturá-las e dividi-las internamente,
surpreender as múltiplas formas que podem assumir as masculinidades
e as feminilidades... (2002, p. 116).
Ferreira desenvolve o conceito de posicionamento para compreender que
os modos possíveis das crianças construírem e assumirem o gênero, não são
consequência da influencia biológica concreta, nem de uma determinação social
abstrata mas se revelam em ações situadas. As crianças, nas suas próprias
experiências, ao interpretarem o mundo em termos de um conhecimento de
gênero são capazes de se posicionar de variados modos no seio de um conjunto
de discursos e práticas e desenvolver subjectividades, tanto em conformidade
como em oposição face aos modos pelos quais os outros também as posicionam.”
(2002, p. 117).
O reconhecimento das variações possíveis introduzidas pelas crianças vem
naquilo que Ferreira denomina as zonas de transgressão de gênero (2002, p. 120)
quando as fronteiras são ultrapassadas e se tornam áreas de conflito, permitindo
uma analise privilegiada das negociações de identidade que daí decorrem.
Podemos articular essas reflexões ao conceito de liminaridade, de Van Gennep,
que aplica-se a duas crianças desta empiria em especial: Júlio César e Paula. Os
dois transitavam com desenvoltura tanto pelo grupo de meninos quanto pelo de
meninas. Para este autor, o sujeito “transitante” é aquele que está de passagem de
um status ou lugar a outro: “Qualquer pessoa (…) que flutua entre dois mundos.
É esta situação que designo pelo nome de margem (…).” (1978, p. 36). Turner,
por sua vez, afirma:
Os atributos de liminaridade, (…) são necessariamente ambíguos…
esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede e
classificações que normalmente determinam a localização de estados e
posições num espaço cultural. (1974, p. 116).
Paula apresentava algumas características que a distinguiam das outras
meninas: não se queixava à professora sobre o comportamento dos demais, falava
pouco, não era chorona e colaborava com os meninos.
Em nossa mesa, André ofereceu mais massa de modelar para Paula,
ela aceitou, ele jogava pedaços para ela e depois os pegava de volta,
ela não reclamou. Os meninos, do outro grupo, deitaram-se nas
fileiras de cadeiras. Paula pegou uma cadeira de nossa mesa e
arranjou-a na ponta da fileira, dizendo: Aqui ó! // Embora
mostrasse interesse na brincadeira dos demais, continuava em seu
49
lugar, mostrando uma atitude de colaboração “desinteressada”.
(22/10/2007, F1TR).
Júlio César, por sua vez, conseguia acesso às brincadeiras dos dois grupos.
Neste evento é possível observar o motivo que o distinguia dos demais, sua
coragem ao lidar com insetos:
Júlio César encontrou uma cigarra, virada de barriga para cima,
perto do bebedouro e pegou o animal, Carolina e Vanessa hesitavam
entre o medo e o interesse, Rubens e Antônio também não estavam
confiantes para segurar o inseto nas mãos. Júlio César organizou
uma brincadeira de fazer a casinha da cigarra e todos começaram a
ajudar. Depois de um tempo a cigarra voou para a quadra e Sandra
proibiu as crianças de irem lá. (27/9/2007, F1TR).
As tensões entre as meninas e os meninos revelavam-se nas disputas por
brinquedos ou nas brincadeiras. Uma estratégia para livrar-se dos meninos era
questionar a sua masculinidade. De acordo com Barreto e Silvestri, pode-se dizer
que os meninos precisam constantemente reafirmar, não a sua masculinidade, mas
sim, seu distanciamento da feminilização, estado no qual as características do
“macho” se apresentam debilitadas:
Um homem, na nossa cultura ocidental globalizada é submetido a um
processo de socialização, durante o qual vai adquirindo as referências
de comportamento que moldam a conduta do masculino. Entretanto, a
condição de masculino, o status de homem macho, diferentemente, do
lugar do feminino, não é confirmado, em caráter definitivo. (2005, p
12).
O evento a seguir apresenta de forma exemplar o que as autoras apontam
em seu texto. Um menino tocar numa boneca nega sua masculinidade o só pela
dimensão do feminino, a oposição aqui estabelecida é também referida à
homossexualidade.
Thalita interessou-se pela tiara de massa de modelar que Catarina
fez para a Barbie, enquanto isso, Giovana e Carolina observavam a
brincadeira de luta dos meninos, sorrindo. A brincadeira dos
meninos ficou muito bruta e barulhenta. Giovana levantou-se e veio
contar um segredo para Thalita.. Os meninos pegaram o saco
plástico que envolvia a caixa da boneca da Júlia. Giovana jogou a
boneca e a caixa no chão, aproveitando que Júlia tinha saído e
quando ela voltou, disse que tinha sido o Rubens. Júlia pegou o saco,
mas João arrancou de sua mão dizendo: “Eu vi primeiro!” Júlia foi
queixar-se com a professora. Carmen deu o comando para irmos
para o pátio. Quando Richard passou pela mesa das meninas, colocou
a mão na boneca e Catarina ameaçou: “Vou contar para o seu pai!
Você está mexendo na boneca, isso é coisa de menina ou de
bichinha!” (4/10/2007, F1TR).
50
Relacionar o exercício de poder às práticas distintas dos gêneros traz uma
complicação conceitual que pode enriquecer os seus termos:
Os sujeitos que constituem a dicotomia o são de fato, apenas
homens e mulheres, mas homens e mulheres de várias classes, raças,
religiões, idades etc. e suas solidariedades e antagonismos podem
provocar os arranjos mais diversos, perturbando a noção simplista e
reduzida de homem dominante versus mulher dominada. (Louro,
1997, p. 33).
Levantamento na ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação, no Grupo de Trabalho 23 Gênero, sexualidade e
educação, explicita a concepção de gênero que norteia a sua produção:
O feminismo pós-estruturalista, aproximando-se de teorizações como
as desenvolvidas por Michel Foucault e Jaques Derrida, assume que
gênero remete a todas as formas de construção social, cultural e
lingüística implicadas com processos que diferenciam mulheres de
homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos,
distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero
e sexualidade. (Meyer, Ribeiro e Ribeiro, 2004, p.7).
O conceito de gênero é mais promissor do que o de papéis sexuais, na
medida em que vai além do determinismo biológico, ampliando a vinculação
inicial a uma variável binária arbitrariamente definida para uma percepção da sua
natureza relacional e contextual. Assumir esse ponto de vista traz como
conseqüência uma visão de identidade que próxima da definição de Stuart Hall:
o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Dentro de nós identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. (1997, p.13).
A identidade, sob este ponto de vista, não pode ser tomada como algo em
si mesma, já construída, ou em vias de fechar-se numa única forma. É composta,
na verdade, de processos identitários, marcados pelas questões de classe, gênero,
etnia, entre tantas que vão se colocando para o sujeito ao longo da vida. A
identidade não é idêntica a si mesma nem diacrônica, nem sincronicamente.
Remeter o debate para a escola implica em reconhecer o seu papel de
instituição formadora, estrategicamente situada na vida dos sujeitos para
introduzi-los na ordem social por meio do poder disciplinador. Evidentemente
outras instituições colaboram nesse processo, mas, para este trabalho, interessa
identificar o seu papel. Para Foucault (1984), a disciplina se organiza como uma
51
tecnologia que age sobre os corpos dos indivíduos, controlando-os e assujeitando
suas forças na produção de comportamentos. A escola desempenha papel crucial
nesse processo, pois, não é o palco onde essas experiências se realizam, como
também um agente que as confirma e produz. As aprendizagens são naturalizadas
de forma que os fatos sociais perdem a dimensão histórica de reconstrução
permanente.
O conceito da sexualidade pôde ser construído na idade moderna junto à
idéia de individualidade, que trouxe consigo a noção de subjetividade como sua
constituidora. Como objeto de estudo, a sexualidade emergiu no campo da
reprodução biológica e social das populações. Freud e a psicanálise iniciaram uma
forma de pensar a sexualidade estruturada à identidade que, segundo Abramovay
(2004, p.30) faz parte do imaginário popular da cultura ocidental até hoje em dia.
A segunda metade do século XX trouxe mudanças significativas
provocadas pelo desenvolvimento de métodos contraceptivos, desvinculando o ato
sexual da atividade reprodutiva, e dos movimentos sociais que:
questionavam as desigualdades resultantes das relações de poder
construídas a partir de materialidades de vida em relações sociais,
valores e representações simbólicas derivadas dos modelos de
normalidade sexual vigentes até então. (Abramovay, 2004, p.31).
As relações entre escola e sexualidade decorrem, em parte, do fato de que
as construções das identidades de gênero são fenômenos pertencentes ao
desenvolvimento, o que deslocaria para esse local uma premência em trabalhá-los.
Foucault (1984, p. 66 - 67), entretanto, apontava para a existência de duas
maneiras de apropriação da sexualidade: a ars erótica e a scientia sexualis. Na
primeira, a ênfase se centraria na questão do prazer e da subjetividade, enquanto
para a Segunda enfatiza o discurso científico e a preocupação com a reprodução.
A apropriação do discurso pedagógico sobre a sexualidade estaria extremamente
voltado para essa segunda via, com ênfase no controle e prevenção.
De qualquer forma, vemos com Louro que:
É indispensável admitir que a escola, como qualquer outra instância
social, é, queiramos ou não, um espaço sexualizado e generificado. Na
instituição escolar, estão presentes as concepções de gênero e sexuais
que, histórica e socialmente, constituem uma determinada sociedade.
A instituição, por outro lado, é uma ativa constituidora de identidades
de gênero sexuais. (1998, p.87 – 88).
52
A ação dos mais velhos na formação das identidades sexuais aparece
incorporada no discurso das crianças e em suas práticas, pois sabemos que as
culturas infantis são construídas pela apropriação que as crianças fazem do que a
cultura mais ampla lhes oferece através da sua reprodução ou reinterpretação. O
comportamento das crianças é regulado pelos adultos e pelos seus pares na
construção simbólica e cultural dos sujeitos e de seus corpos. Se às meninas se
dirige uma contenção, aos meninos parece haver uma permanente cobrança de
demonstrações de virilidade. O controle das emoções é relativo no caso das
meninas e bastante assertivo sobre a conduta dos meninos. Certamente essas
generalizações não são suficientes para o entendimento da complexidade das
relações existentes, porém, auxiliam a análise da formação dos sujeitos
masculinos e femininos.
Esse era o rumo que a pesquisa tomava ao final de 2007. Tudo indicava
que a tese se constituiria num estudo baseado na sociologia da infância que
focalizava as relações de poder entre meninos e meninas numa escola municipal
de Três Rios. Entretanto...
2.5 O Primeiro Dia de Aula no 1º Ano do Ensino Fundamental
O caderno de campo deveria ser mantido na esfera privada do estudo, à
qual somente a pesquisadora teria acesso e forneceria os dados da empiria para
realização das análises. A princípio, não caberia numa tese sua apresentação em
estado bruto. Gostaria, entretanto, de solicitar aos leitores a compreensão da
importancia de entrarem em sala junto com a pesquisadora na Escola Municipal
Joaquim Silva, no primeiro dia de aulas da turma na qual eram feitas as
observações a qual estava, no ano anterior, no terceiro período da Educação
Infantil. Convido a todos para dividir as surpresas e as perplexidades decorrentes
da passagem das crianças ao ano do Ensino Fundamental. Para que a leitura
deste trecho não se torne cansativa, excepcionalmente, será mantida a formatação
do texto e não será observada a diagramação utilizada para outros eventos do
campo. Embora fiel aos registros do caderno, o registro a seguir foi re-escrito para
apresentar maior coerência e coesão
53
Cheguei à escola às 6 h 46 min, ansiosa também por esse recomeço: como
seria o primeiro dia de aulas no 1º ano do Ensino Fundamental? Júlia chegou cedo
também, passou por mim e deu um sorriso.
Na hora da entrada houve certa confusão com as filas, pois a professora da
turma dos primeiros períodos chegaria atrasada. Acompanhamos a nova
professora e subimos para o segundo andar onde a arrumação da sala chamou
minha atenção: filas de carteiras, isoladas umas das outras, um abecedário na
parede e os numerais de 0 a 9. Percebi, ainda, várias crianças diferentes da turma
do ano passado.
A professora se apresentou. Seu nome era Lídia, em seguida perguntou às
crianças o que acharam da sala e disse:
- A tia vai passar deverzinho de casa... a tia trouxe lápis de cor para
quem não trouxe... a tia vai pedir para a mamãe trazer o material.
A fala sobre si mesma na terceira pessoa apontava para uma relação com
as crianças pautada numa infantilização, o que de certa forma contrariava as
expectativas do grupo que havia alcançado uma nova etapa da escolarização
básica e que no ano anterior referia-se às crianças mais velhas como detentoras
de um status diferenciado em relação às da Educação Infantil.
Lídia explicou que a cada dia escolheria um ajudante, perguntou quem
trouxera suco e pediu que João os recolhesse e levasse para a cozinha deixado-os
na geladeira. Apesar da turma ter 30 alunos, até esse momento havia 14. Aos
poucos chegaram algumas crianças da turma do ano passado. Richard começou a
mostrar um brinquedo para o Renan, mas o menino a minha frente o delatou para
a professora. Foi necessário arrumar as carteiras para que coubessem os 21 que
chegaram. A mãe do Dudu veio buscá-lo avisando que ele tinha passado para o
turno da tarde.
Wellington, aluno reprovado no ano anterior, cuja mãe conversara com
Lídia na entrada, dizendo que este ano estaria mais presente e qualquer coisa a
avisasse, pediu para ir ao banheiro. Lídia disse que não, pois esse ano seria
diferente, nada de passeios pelos corredores e contou para as crianças sobre a
troca de direção da escola: “A Tia Martinha foi para outra escola, agora quem
dirige o colégio é o tio José.”
54
Em seguida, todos se apresentaram, dizendo de onde vieram e eu também,
Lídia mostrou um mural de aniversários que fez e falou que contaria uma história,
sem muitas figuras, era para eles imaginarem. Tratava-se de dois personagens,
crianças, que não podiam estudar pois precisavam trabalhar para ajudar os pais,
até o dia em que ganharam um livro, um caderno e um lápis. Depois os pais
conseguiram um emprego na cidade e eles foram para a escola. A história
chamava-se “Uma viagem pelo mundo das letras”. A professora perguntou se eles
conheciam alguém que o estudava por que precisava trabalhar, alguém criança
como eles. Não havia ninguém. Nova pergunta: “Onde encontramos as letras?”
Um menino, cujo nome eu ainda não sabia, respondeu que quando
escrevíamos elas apareciam. Lídia, então insistiu: “Mas onde achamos elas
escritas?” Ela mesma respondeu: “No mercado, nas placas na embalagem dos
biscoitos... E números também, nós encontramos os preços no mercado.”
Júlia virou-se para mim e deu tchauzinho.
Lídia perguntou o que eles fizeram nas rias, vários responderam que
jogaram videogame. Algumas meninas disseram que não fizeram nada. Lídia
disse que trouxe um desenho da Aninha e do Zezinho, personagens da história
para eles colorirem, mandou pintarem bem bonito que ela colocaria no mural.
Aproximou-se de mim e disse que esse trabalho era para ver como as crianças
estavam, uma espécie de diagnóstico. Nesse momento, percebi um desconforto
que se traduzia numa má-vontade para com as práticas exercidas.
Diante do fato de que algumas crianças tinham lápis, outras não, a
professora disponibilizou lápis de cor e canetas coloridas para aqueles que não
trouxeram. Richard perguntou: “Tia, pode começar?”
Nesse momento me dei conta de cada criança trabalha absolutamente
sozinha e fiquei me perguntando onde estariam as brincadeiras?
Percebi que Luís estava com alguma dificuldade, pois se virou para copiar
o trabalho de Kátia. Como se tratava de colorir figuras supus que buscava se
certificar do que se esperava dele. Lídia avisou que as crianças deveriam trazer
caderno no dia seguinte, pois ela passaria “deverzinho”. João terminou e Lídia
elogiou o seu trabalho, sugeriu que quem quisesse contornar com “canetinha”
poderia fazê-lo
55
\\Nesse momento, me encontrava em pleno devaneio, as anotações do
caderno de campo demonstram isso: Que vontade de voltar para o período, não
encontro brincadeira aqui, só silêncio... Que saudades do Lucas, da Paula, do Júlio
César, será que saíram? Que sensação de descontinuidade. E o Antônio K.? Esse
aqui ao meu lado é o Antônio W. Escuto a professora chamando e paro de
devanear.//
Lídia mandou as crianças escreverem o nome no desenho que seria
colocado no mural. Olhando para as crianças, vi Denis contornando um dos
personagens do desenho. Em seguida parou, bocejou e ficou com o olhar perdido
ao longe. Na sala ecoa o som de vários bocejos. Novamente meu pensamento se
afastou do imediato da cena: O abecedário o inclui as letras do alfabeto
americano, como ficam os Wesleys, Williams, Kauãs e Kátias?
19
Entre tantas dúvidas, fiquei me perguntando se Lucas saberia escrever o
nome, afinal era o seu primeiro dia numa escola. Nesse momento fui interrompida
por uma batucada feita pelos meninos e prontamente repreendida por Lídia:
“Parou a batucada!”
Dirigi minha atenção ao Denis que parecia desmotivado, bocejava, não
fazia a atividade proposta, nada. Ele se levantou e foi à mesa da professora buscar
lápis de cor. A dinâmica da sala era permanente, muitas coisas aconteciam ao
mesmo tempo com as crianças, mas tratava-se nitidamente de uma atividade
marginal, paralela à proposta de trabalho da professora. Richard começou a
brincar com um helicóptero que trouxe de casa. João pediu para ir ao banheiro,
Lídia autorizou. Diante disso, Wellington fez uma nova tentativa: “Posso ir ao
banheiro, tia?”. Nova negativa: “Não, pois você gosta de passear.”
Lídia dirigiu-se novamente à turma dizendo que esse ano seria diferente já
que eles teriam aula de informática, educação física e iriam à biblioteca. De certa
forma, parecia um esforço de motivar as crianças com o que iriam encontrar na
escola naquele ano. Enquanto isso, Richard levantou-se e foi à mesa de Wesley
com o helicóptero. Lídia anunciou: “A tia está esperando todo mundo acabar para
fazer uma brincadeira.”
19
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que adotou o alfabeto de 26 letras assinado pelo
Brasil e demais países foi aprovado pelo decreto legislativo n.º 54 de 18 de abril de 1995, entrando
em vigor em janeiro de 2009 .
56
A brincadeira consistia em vir uma “fileira” de crianças de cada vez aa
mesa da professora e encontrar, entre as várias placas com os nomes dos alunos, o
próprio nome para em seguida escrevê-lo a folha que coloriram. Lídia explicou
que fez as placas do nome, de um lado com letra de máquina e outro com letra de
mão. Me perguntei se as crianças tinham conhecimento do que seria “letra de
máquina”, afinal, esse conceito me parecia anacrônico diante da multiplicidade
das fontes disponíveis em computadores.
Júlia seguiu a fila do João, que não era a da sua carteira e não identificou o
seu nome. Lídia ajudou: “Júlia, como é a primeira letrinha do seu nome?”
- Algumas crianças falaram “ju”. Júlia e, em seguida, Denis encontraram
seus nomes. Lídia organizou a turma em grupos de quatro ou cinco crianças,
juntei-me ao grupo de Denis, William, Andressa, Wellington e João. Wellington
pediu pela terceira vez para ir ao banheiro, Lídia aproximou-se dele e perguntou
se ele estava mesmo com vontade ou queria ir passear, acrescentando: ”Banheiro e
água serão na hora da merenda.”. Wellington aproveitou para emendar: “E o
parque...”
Lídia logo encerrou com nossas esperanças: Parque é uma vez por
semana e não é hoje!”
Para a atividade seguinte, Lídia distribuiu livros orientando que eles
lessem para depois contar ao grupo. Nesse momento, Júlia bocejou bem alto.
Denis me perguntou o nome da primeira letra de seu nome, respondi “D”, ele
falou para a professora: “Tia eu tenho “D” no meu nome.”
Enquanto William folheava rapidamente os livros, trocando-os; escutei
Wellington falando para João: “Esse é muito maneiro, tem uma porcona dando
mamá para os porquinhos.”
João dirigiu-se ao Luís em outro grupo e pediu: “Me empresta esse?”
Luís ignorou o pedido. Wellington estava lendo um livro do Rei Leão e
dizia: “Leão do mal, leão do bem.”
João corrigiu: “Isso aí é um macaco!”
João beliscou Wellington, num misto de brincadeira com agressão. Lídia
chamou a atenção dos dois. João procurava “leões bem fortes” no livro e mostrava
para o Wellington.
57
Escutei Júlia na outra mesa dedurando dois colegas através de uma
indagação: “O livrinho que a tia deu é para brincar de espada?”
Lembrei-me de quanto essa sua habilidade de dizer o que os adultos
queriam ouvir tinha sido um diferencial positivo a seu favor no ano passado,
conferindo-lhe status e prestígio.
João e Wellington brincavam de se chutar por baixo da mesa, William
acabou sendo atingido e ameaçou bater neles. Ao escutar a confusão, Lídia
ameaçou retirar Wellington do grupo. João provocava Wellington para que ele
reagisse e a professora brigasse. Ao pegar novamente o livro, Wellington mostrou
para o grupo o leão mais forte. Pela quarta vez, ele pediu para ir ao banheiro,
Lídia abaixou-se para falar com ele e enfim deixou que ele fosse, mas
recomendou que não ficasse passeando pela escola. William aproveitou e pegou o
livro do Rei Leão, procurando também o leão grandão. Júlia e William
levantaram-se e começaram a trocar os livros pelos grupos, acabaram ao invés
disso, indo guardá-los no armário. Rubens tirou uma moto de brinquedo de dentro
da mochila, João pediu: “Me empresta?” Rubens recusou-se e João avisou ao seu
grupo: “Quando o Rubens pedir para brincar, não deixa.”
As alianças começavam a se restabelecer e novos acordos deviam ser
selados diante do ingresso de crianças na turma. William, que a princípio não
tinha nada com isso, perguntou: “Qual Rubens?”. João propôs ao William
esconderem o nome do Wellington enquanto ele estava no banheiro. Enquanto
isso, Júlia falou:
- “Ô tia... cheirinho de almoço...” Lídia perguntou quem queria contar
uma “historinha”, das que tinham lido, Luís respondeu na lata:
- “Eu não sei contar nada ainda. Eu nem sei ler!”
Lídia mandou Richard guardar o helicóptero e disse que as crianças fariam
um dever de aula, para o qual deveriam manter a arrumação em grupos. Distribuiu
uma nova folha e escreveu a data no quadro para que todos copiassem. Denis
escrevia espelhando. João e Wellington começaram a medir o tamanho dos seus
lápis enquanto discutiam sobre qual era o maior. Liliane, William e Denis
entraram na competição, William reclamou de João: “Ah lá, ele está
aumentando!”
58
As crianças iam fazendo as tarefas propostas: achar letra do nome,
escrever o nome igual ao da placa, contar quantas letras tinha o nome, enquanto
continuavam medindo seus pis. João sempre acabava primeiro. Os apontadores
foram colocados atrás dos pis para que ficassem ainda maiores. William
escreveu o nome todo. Wellington brincou de fazer seu pé conversar com o pé dos
amigos. João começou a cantar a primeira sílaba do nome de William (“Wi, Wi,
Wi”) como Carmen fazia ano passado para ajudar a encontrar a placa do nome. Na
hora de colorir, percebi que William tinha dúvidas sobre as cores, mesmo as
primárias. Todos em meu grupo começaram a batucar. Um menino se aproximou
para fazer ponta no lápis e João, Wellington e William implicaram com ele. João
falou sobre um lobisomem. Os meninos começaram a rir, Denis que estava
concentrado na tarefa começou a rir também. Só Liliane estava quieta. Wellington
levou outra bronca, embora todos estivessem “bagunçando”. João o provocava
fazendo caretas, levantando as sobrancelhas e o chamando.
Lídia dirigiu-se a outro grupo e retirou um menino, afastando-o do grupo e
brigando muito com ele, dizendo que não ia permitir que ele atrapalhasse os
demais. Confesso que fiquei um pouco assustada com a intensidade da bronca.
Alheios a isso, Wellington e João cantavam e uivavam, enquanto William
começou a assoviar. Wellington perguntou ao João: “Quantos lápis você tem?”
João respondeu: “Seis.” Wellington duvidou: “Então mostra!”
João desconversou e chamou atenção para o Denis que estava atrasado na
tarefa em relação aos outros. Wellington começou a cantar:
- “Créu! Créu! Créu!
20
William pediu: “Velocidade 4!” Wellington atendeu: Créu! Créu! Créu!
Créu. William pediu de novo: “Velocidade 6!” Denis parou a tarefa para ver
Wellington cantando: “Créu! Créu! Créu! Créu! Créu! Créu!” Wellington
perguntou ao Denis: “Acabou?”
Como várias crianças acabaram, Lídia perguntou quem queria pintar a
Aninha da folha. João não gostou da idéia e começou a ver em nosso grupo quem
iria pintar. William começou a pintar o desenho e João o ridicularizou, William
20
O funk do creu tem em sua letra apenas a palavra “creu” acompanhada de movimentos que
imitam uma relação sexual, cada vez mais rápidos em função da “velocidade” anunciada.
59
parou de pintar. Apesar dos demais, Wellington pintou o desenho da boneca, abriu
o estojo e mostrou: “Olha minha cola hotweels.” (marca de carros de brinquedo)
Lídia pediu a Wellington que fosse a a “tia da cozinha” buscar e
vassoura. Aproximou-se de mim reclamando que tinha que fazer tudo, inclusive a
limpeza da sala, pois não houve ainda a contratação do pessoal para tal. Disse
ainda que havia mudado de estratégia com o Wellington em relação ao ano
passado. Solicitando sua colaboração sempre que possível.
William decidiu pintar a Aninha, João e Liliane não pintaram. Em seguida,
fomos para o refeitório, pois era hora da merenda. Percebi que Lídia não almoçou
com as crianças. Ninguém me convidou para almoçar também. As crianças foram
ao banheiro e beberam água, retornando logo para a sala. Algumas crianças
abriram os biscoitos logo após o almoço, Wellington ofereceu-se para ajudar
Denis com o refrigerante: “Quer ajuda colega?”
Júlia pegou a vassoura e a e começou a varrer a sala. Mais uma vez,
buscando agradar através de fazer algo que percebeu que estava incomodando a
professora, nesse momento, Lídia ia recolhendo os trabalhos e colando-os nos
cadernos das crianças, enquanto isso permitiu que os meninos brincassem com
seus brinquedos, mas recomendou: “Pique não pode!”
Percebi que as crianças estavam compartilhando mais os lanches trazidos
de casa do que no ano passado, talvez por terem almoçado antes... Lídia distribuiu
folhas para desenho livre para as crianças que desejassem. Denis me deu um
biscoito, aceitei. João perguntou para a professora: “Tia, de que a gente vai
brincar?”
Lídia propôs: “Carrinho, desenho.”
Renan tirou um potinho de filme fotográfico da mochila e distribuiu
moedas de pequeno valor entre os companheiros da sua mesa. Lídia aproximou-se
de mim e disse que tinham tirado o nosso recreio, ou seja, a ida ao parque com as
crianças, mas ordens eram ordens! Contou ainda que nessa turma havia onze
repetentes e que as idades variavam entre cinco e onze anos.
Os meninos de minha mesa pegaram suas mochilas de rodinhas e
brincavam de carrinho, apostaram corrida, brigavam entre as mochilas, logo veio
60
a bronca: “Puxa, a mãe de vocês gastou um dinheirão para comprar essas
mochilas e vocês vão quebrar?”
Nesse momento percebi que as crianças tinham perdido a noção do que se
pode ou não fazer em sala de aula. De certa forma, o contrato velado que rege as
relações numa instituição havia sido modificado e eles não conheciam os termos
que estavam agora em vigor.
Wellington foi posto de castigo numa cadeira na frente da sala, não vi o
que motivou isso. João pegou sua cola bastão e mostrou, Rubens colocou-a na
boca e disse: “Olha o charutão!”
Nós estávamos num pequeno grupo, sentados no chão, perto do armário,
quando a professora se aproximou, os meninos se afastaram. Lídia voltou a dizer
que eles deviam brincar de desenhar.
Dentre os códigos modificados, encontramos o desenhar que no ano
anterior pertencia à categoria trabalhos” e esse ano fora deslocado para a
categoria “brincadeiras” o que promovia um descompasso entre a proposta da
professora e os meninos.
Voltei para minha carteira e Júlia se aproximou, depois sentou-se para
desenhar perto do William. João levou uma bronca por estar correndo. Renan e
João deitaram no chão e brincaram que eram lobos. Teve início uma brincadeira
de aproximação-evitação típica (Corsaro, 2009, p 22) Rubens se aproximava, dava
palmadas nos lobos e saía correndo. A brincadeira era provocar o lobo e correr.
João gritou: “Está com Renan!” Lídia acabou com a brincadeira: “Agora a tia vai
dar papel e vocês vão desenhar! Vai ter um dia para brincar lá embaixo.”
Richard sentou-se em sua carteira quieto, mas não começou a desenhar.
Não pude evitar de considerar sua atitude um ato de resistência.
Wesley começou a brincar de fazer caretas, Lucas se aproximou assim
como Antônio. Eles faziam a careta e viravam para o ventilador. Neste momento o
coordenador Carlinhos veio em nossa sala e disse que daria um “recado do
coração”, conversou baixinho com a professora na porta e veio falar com a turma.
Não se apresentou, o disse sua função ou nome, apenas avisou que a direção
havia mudado, agora era outro diretor e que as coisas mudaram.
61
- Disciplina é tudo! Não pode sair 1 minuto antes do sinal. Só pode ir ao
banheiro em caso de extrema necessidade. Se descer a escada ou a
rampa correndo, vai voltar a aprender a descer direito, com muita
disciplina. Qualquer problema, a tia pode mandar a criança conversar
comigo, pois essa é a idade de colocá-los no eixo!
Vários pensamentos tomaram conta de mim e o que eu sentia era um misto
de desespero e desejo de voltar para a turma da Educação Infantil. Fiquei me
perguntando se as crianças estavam se sentindo da mesma forma.
Teve início um tempo de nada. Simplesmente esperávamos o sinal tocar. A
demora devia estar incomodando também à professora pois ela disse que a hora
não passava, e começou a varrer a sala. Para o dia seguinte, Lídia sugeriu que as
crianças trouxessem uma garrafa com água, para não sentirem sede. Observei que
as meninas maiores deitaram a cabeça na mesa, esperando o tempo passar. Esse
comportamento também o fazia parte do repertório de nossa turma no ano
anterior. Os alunos que vieram da Educação Infantil pareciam bem mais ativos e
apresentavam maior dificuldade em se adequar a essas novas regras que sequer
foram explicadas.
Lídia continuava distribuindo folhas para desenho, uma maneira de ocupar
as crianças nesse tempo ocioso. João recusou: “Não precisa não, tia.”
Rubens e Renan começaram a correr pela sala de novo, nova bronca!
Rubens transformou sua mochila em guitarra e começou a “tocar”. Logo a
brincadeira virou um pique cola, as mochilas eram uma espécie de escudo que não
permitia colar. Renan pegou os colegas. Lídia, mais uma vez, acabou com a
brincadeira. William e Renan se renderam e foram pegar um papel para desenhar.
João e Wellington dançavam a dança do créu.
Júlia estava apoiada na janela, olhando para fora e Lídia mandou ela sair.
Rubens avisou que ia embora de ônibus, precisava sair mais cedo. A professora
começou a conversar com as crianças, quis saber de que brincavam, que músicas
cantavam... João se animou, falou sobre a música das caveiras
21
, Lídia não
conhecia. Falou sobre a brincadeira de “meus pintinhos venham cá” Lídia disse
que depois iria combinar um dia que teria parque e, nesse dia, as crianças
21
Rock das caveiras, gravado por Bia Bedran de autores descohecidos.
62
poderiam trazer um brinquedo para brincar, uma vez por semana. João perguntou
esperançoso: “Amanhã?”
Lídia disse que ainda não sabia e que nós teríamos que rezar para não
chover, pois molharia a grama. Richard cantou a música do trem maluco.
Algumas crianças cantaram junto.
Lídia explicou que bateriam dois sinais e, então, poderíamos sair, essa foi
a única explicação referente às novas rotinas que as crianças teriam durante este
ano. Depois, pediu que no dia seguinte, as crianças voltassem bem animadas.
A pergunta de Rubens, entretanto, ficou sem resposta: “Por que amanhã
não pode brincar no parquinho?”
2.6 Mudando os Rumos da Pesquisa: Preservando o Essencial
Não tenho recordações do meu primeiro dia de aula no ensino
fundamental, talvez ele não tenha me marcado tanto como esta experiência
enquanto pesquisadora. Como ficou evidente, a passagem de ano e o início da
alfabetização, trouxeram incômodos que, pouco a pouco, se configuraram nas
questões motivaram por fim este estudo. O primeiro dia de aula foi uma
experiência única para a pesquisadora e para as crianças pesquisadas. As crianças
pareciam não saber o que poderia ou não ser feito. As carteiras arrumadas em
fileiras isoladas, voltadas para o quadro, a mesa da professora na frente da turma,
a presença de onze crianças reprovadas no ano anterior que se somaram ao grupo,
a ausência de um número significativo de crianças que compunham a turma do
ano anterior, o abecedário e os numerais fixos na parede, tudo isso já prenunciava
o início de um ano de trabalho diferente do que se tinha experimentado até então
na Educação Infantil. As crianças não podiam correr, ir ao banheiro, brincar de
pique, batucar, cantar ou olhar pela janela. Cada ação que fugia a estar
disciplinadamente sentadas em suas carteiras era repreendida pela professora.
Havia um descompasso nas ações daquelas que vieram da Educação Infantil e das
que eram repetentes ou vindas de outras escolas. Atitudes como abaixar a cabeça
na carteira para esperar o tempo passar não faziam parte do repertório do ano
anterior.
63
A partir deste ponto, o objetivo central transformou-se junto com a
realidade das crianças; tratava-se agora de analisar, nas práticas observadas, os
processos que indicam uma ação social que transforma crianças em alunos,
estabelecendo uma quase identidade entre as duas categorias. O trabalho assumiu
novas configurações, fomos em busca de perceber o campo na tensão da cultura
escolar com as culturas infantis. Entretanto, uma das marcas principais da
pesquisa se manteve: perceber os aspectos descritos a partir daquilo que as
crianças manifestavam em suas relações.
O produto deste esforço será apresentado a seguir. O terceiro capítulo traz
a construção do campo teórico, enquanto os demais buscam estabelecer as
relações entre a teoria e a empiria reestruturadas sob a nova ótica que se desenhou
a partir desse ponto.
3.
Colocando as Tensões em Confronto: o todo Dialético como
Ponto de Partida para a Construção do Campo Teórico
Toda palavra (todo signo) de um texto conduz
para fora dos limites desse texto.
A compreensão é o cotejo de um texto com
outros textos (...) Somente em seu ponto de contato
é que surge a luz que aclara para trás e para frente,
fazendo que o texto participe de um diálogo.
Bakhtin
22
Para analisar, nas práticas observadas, os processos que indicavam uma
ação social que transformava crianças em alunos, estabelecendo uma quase
identidade entre as duas categorias, foram observadas as interações no campo de
pesquisa a partir de uma perspectiva histórico-cultural, onde o espaço da
intersubjetividade permitiu compreender, através da mediação, a formação da
consciência de si (Vigotski, 2000). A hipótese é que a “consciência de si” para as
crianças se desenvolvesse vinculada à idéia de “consciência de si como aluno”,
estruturando sua subjetividade a partir daí. Esse processo, entretanto, parece se
desenrolar com tensões que se estabelecem nas relações entre as culturas escolares
e as estratégias de poder, bem como das culturas infantis e das táticas de
resistência
As perguntas centrais para as quais a tese buscou respostas foram:
i. Como se dão as ações e as práticas das instituições escolares que poderiam
ser tomadas como estratégias de poder voltadas para a conformação das
crianças em alunos?
ii. Ser criança e ser aluno: como os sujeitos da pesquisa vivenciam essas
categorias na Educação Infantil e no ensino fundamental?
iii. As culturas infantis apresentam táticas de resistência? É possível
identificar intencionalidade nelas? Em caso afirmativo, como elas se
propagam entre as crianças?
iv. Como as crianças incorporam os valores que vão se configurar no papel
social de aluno? Como constróem a identidade de si enquanto alunos? O
22
Bakhtin, 2002, p.113.
65
que dizem disso?
3.1 Recorrendo à Dialética: Apropriações
A escolha metodológica constrói a questão e decorre dela, dialeticamente.
“El objeto y el método de investigación mantienen uma reación muy estrecha”.
(Vigotski 1997, p. 47). Assim, para compreensão do campo, tornou-se necessária
a busca de unidades de análise que o o decompusessem em partes estanques,
sem relação e que não retratassem o todo. Confrontar as culturas infantis e escolar,
que se fazem presentes nas práticas e nas interações das crianças pareceu uma
proposta sob viável para um exercício dialético.
Assumir uma abordagem histórico–cultural implicou em trazer para o
debate a multiplicidade de vozes que construíram um discurso que possibilitou
abordar o tema em questão. Neste caso, foi essencial identificar o que falavam as
crianças, o que expressavam as instituições escolares através de suas práticas, o
que pensava a pesquisadora a partir dos elementos da questão e o que diziam os
teóricos chamados a contribuir na análise das práticas observadas. Amorim (2003,
p.12) fala da polifonia nas ciências humanas e do caráter conflitual e problemático
das pesquisas. O discurso como acontecimento torna-se unidade de análise pelo
confronto que adquirem os diferentes valores presentes para a produção de
sentido. Essa foi a concepção de ciências humanas que norteou este trabalho.
Freitas (2002, p. 24) destaca que nas ciências exatas cabe ao pesquisador
contemplar um objeto para conhecê-lo. Ao contrário das ciências humanas, não se
estabelece um diálogo entre pesquisador e objeto. A pesquisa, neste caso é
monológica. Fazer pesquisa em educação, assumindo o caráter histórico-cultural
do seu objeto tem exigido que o conhecimento seja tomado “como uma
construção que se realiza entre sujeitos”. (Freitas, 2003, p.26). O sujeito da
pesquisa em ciências humanas fala e, falando, produz sentidos. A pesquisa
adquire uma dimensão necessariamente dialógica na qual os textos produzidos
farão sentido num dado contexto. De uma orientação monológica, passa-se a
uma perspectiva dialógica.” (2002, p.24).
66
Para Vigotski o conhecimento é produto da inter-relação, logo a pesquisa
também se insere na mesma lógica, trata-se de um processo social que é
compartilhado entre aqueles que dela participam. O pesquisador se insere no
campo, transforma-o e é por ele transformado e essa interação constitui-se em
objeto de análise. O particular, na perspectiva sociocultural, é uma instância da
totalidade. Compreender os sujeitos envolvidos na situação é uma possibilidade
de interpretação do contexto. É importante tomar como princípio metodológico de
investigação da realidade social “a totalidade concreta: cada fenômeno é
compreendido como um momento do todo e desempenha a função de produtor e
de produto.” (Grifos da autora. Kramer, 2003, p. 34).
Não se trata de uma pesquisa que busque a comprovação de resultados, o
que se persegue é a compreensão dos fenômenos na sua complexidade e
historicidade. Pois como propõe Kramer, a partir de Benjamin:
Como através da teoria eu posso ter uma certa visibilidade do
concreto? Ou ainda, de que maneira pode a insignificância ser visível
na teoria sem ser sacrificada na sua diferença? Como pode totalidade e
particularidade coexistir vivamente? (2003, p. 42).
O conceito de mônada expressa essa relação entre o mínimo e a totalidade,
mundo em miniatura que, segundo Benjamin, possibilita o encontro do pensador
com a teoria concretizada no real. Assim:
Quando o pensamento ra, bruscamente, numa configuração
[Konstellation] saturada de tensões, ele lhes comunica um choque,
através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O
materialista histórico se aproxima de um objeto histórico quando o
confronta enquanto mônada. (1985. p. 231).
O estudo do ser humano precisa conjugar as duas perspectivas: a natural e
a cultural, foi isso que buscou Vigotski enquanto metodólogo:
Ao considerar que o estudo de situações fundamentalmente novas
exige inevitavelmente novos métodos de investigação e análise, olha
os problemas humanos na perspectiva da sua relação com a cultura e
como produto das interações sociais, percebendo como necessário um
reexame dos métodos de pesquisa. (...) propõe, assim, que os
fenômenos humanos sejam estudados em seu processo de
transformação e mudança, portanto, em seu aspecto histórico (Freitas,
2002, p. 27).
Mais do que os produtos, o pesquisador deve ir à busca da gênese das
questões, reconstruindo sua história em busca de uma integração entre os
fenômenos individuais observados e os processos sociais dos quais fazem parte. O
67
enfoque sociocultural abre a perspectiva de análise articulada entre o singular e a
totalidade. É isso que buscamos aqui.
A proposta na tese foi trabalhar as questões em três níveis de análise que
estão permanentemente se atravessando: no primeiro plano foco deste capítulo -
encontram-se Vigotski
23
e Bakhtin. A escolha teórico-metodológica apoiou-se no
método dialético e na concepção de linguagem. Vigotski contribuiu também com
a idéia de subjetividade fundada na interação entre o sujeito e o outro, através do
desenvolvimento de uma esfera cultural decorrente do fato de que os processos
intra-subjetivos aconteceram antes intersubjetivamente nas práticas sociais. Essas
proposições auxiliam no entendimento da construção da categoria de aluno como
um fenômeno que acontece tanto na história da sociedade quanto na história
individual de cada sujeito envolvendo dimensões sociais e culturais.
Bakhtin entende que a linguagem é social; ela é necessária para a
existência humana. Não é a experiência que organiza a expressão; a expressão
precede e organiza a experiência, dando-lhe forma e sentido. O discurso tem
sempre um significado e uma direção que são vivos; as palavras contêm valores e
forças ideológicas: aqui se situa a abordagem histórica da linguagem. Ao mesmo
tempo, a comunicação de significados implica numa relação; sempre nos
dirigimos ao outro, e o outro não tem apenas um papel passivo; o interlocutor
participa ao atribuir significado à enunciação, ele tem uma atitude responsiva. A
idéia de linguagem a cultura a sua perspectiva de significação assim “para
compreender o enunciado é preciso compreender o dito e o presumido, o dito e o
não-dito.” (Kramer, 2003, p. 78). Ter como categoria de análise a linguagem
significa considerar a polissemia e a entoação, pois
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis, etc... (Bakhtin, 2002, p. 95).
A língua é inseparável do fluxo da comunicação verbal, é algo que se
constitui continuamente na corrente na comunicação verbal. Dois enunciados
distantes um do outro no espaço e no tempo quando confrontados quanto ao seu
23
As grafias Vigotski ou Vygotsky o utilizadas de acordo com a referência bibliográfica citada.
A grafia com i é a escolhida por Paulo Bezerra, seu mais notório tradutor para o português das
obras do autor.
68
sentido podem revelar uma relação dialógica que é sempre uma relação de
sentido.
O texto de pesquisa retrata, como afirma Amorim, um desdobramento “...
dos lugares enunciativos ao infinito, seu enunciado dialógico merece bem ser
chamado de polifônico, pois uma multiplicidade de vozes pode ser ouvida no
mesmo lugar” (2002, p. 8). A polifonia do texto permite ouvir várias vozes: a do
destinatário suposto, a do destinatário real e a do sobredestinatário que permite
uma expansão espacial e temporal do texto. Do ponto de vista do objeto há
também o que escutar: Amorim destaca o fato de que tudo foi falado sob
alguma perspectiva. O discurso não é inaugural. O texto responde àqueles que o
antecederam naquela temática e se propõe a acrescentar algo de novo.
O objeto específico das Ciências Humanas é o discurso ou, num
sentido mais amplo, a matéria significante. O objeto é um sujeito
produtor de discurso e é com seu discurso que lida o pesquisador.
Discurso sobre discursos, as Ciências Humanas têm portanto essa
especificidade de ter um objeto não apenas falado, como em todas as
outras disciplinas, mas também um objeto falante. (2002, p.10).
Por fim, ainda a voz do autor que não se confunde com a do locutor (ou
da pesquisadora, neste caso), que é sempre um personagem entre tantos outros. O
autor, na realidade representa um lugar enunciativo, um conhecimento que se
expressa no encontro entre a forma e o conteúdo do texto. A possibilidade de
separação entre o autor e o locutor estabelece a possibilidade de análise.
Importa ainda destacar que, toda escrita é uma impossibilidade enquanto
transcrição real do sentido que o discurso apresenta na situação de campo. O que
se pode reencontrar é a significação. Amorim (2002, p.17) explicita a distinção
que Bakhtin estabelece entre significação e sentido. Este último é dialógico e da
ordem do acontecimento, portanto, irrepetível.
.
3.2 Vigotski e o Método Dialético: Contribuições da Psicologia Sóciocultural
As contribuições principais de Vigotski para este estudo são suas reflexões
a respeito do método e a concepção de consciência que constrói a partir da
dialética.
A dialética, como a concebia Vigotski, assume papel crucial na pesquisa
histórico-cultural, uma vez que supera uma maneira dualista de ver o homem. As
69
dimensões psicológica e social o articuladas de forma dinâmica num sujeito que
fala. O materialismo histórico permite que se veja o homem criando suas próprias
condições de existência e se libertando do determinismo do meio ambiente. O
homem se torna capaz de alterar a natureza e o faz através da atividade, conceitos
que Vigotski buscou em Marx. O sujeito humano transforma a natureza e, ao fazer
isso se transforma ele mesmo. Leontiev mostrou a influência de Marx no
desenvolvimento da psicologia de Vigotski:
A idéia de Vigotski era clara: os fundamentos teórico-metodológicos
da psicologia marxista deveriam começar a ser elaborados a partir da
análise psicológica da atividade prática, laborial do homem a partir de
posições marxistas. (1996, p. 438).
Para Leontiev a unidade de estudo era a atividade, diferentemente de
Vigotski que a situava no significado. Para este autor, a questão da mediação
semiótica era deixada de lado, o que despertou críticas dos autores vigotskianos,
pois esta escolha pode ser tomada como uma adaptação às exigências do regime
soviético. Atualmente, pode-se falar numa redescoberta de Leontiev no Brasil que,
junto com autores da terceira geração de vigotskianos, trabalham o conceito de
atividade, entendendo-a como produto da ação cultural, logo, sem negar sua
dimensão semiótica.
Para Vigotski, a questão da mediação logo se colocou como prioritária,
levando-o a distinguir dois níveis nos processos psíquicos do homem: o primeiro
relativo à razão em si mesma e o segundo, o processo psíquico complementado
pelo uso de instrumentos. Os primeiros seriam os processos psíquicos naturais, já
os segundos seriam tomados como culturais. A partir desta hipótese foi possível
uma nova relação entre as funções mentais superiores e as elementares: uma
estava vinculada aos processos naturais, enquanto a outra se relacionava aos
processos culturais. Os instrumentos psicológicos forneceram a base para a
psicologia marxista.
3.2.1 A dialética em Vigotski
Para aqueles que pretendem tomar Vigotski como referencia metodológica
no Brasil, Angel Pino é um autor de extrema importância. Em seu artigo “O social
e o cultural na obra de Vigotski” (2000b), ele busca analisar o significado que
70
estes termos têm para o autor a partir do conceito de história proposto no
Manuscrito de 1929 Vigotski, (2000a). Ele sugere que, se fosse possível sintetizar
as contribuições de Vigotski à compreensão do ser humano, seriam dois os eixos
básicos: de um lado o desenvolvimento como um processo histórico e de outro, o
psiquismo em sua natureza cultural. Ambos bastante relevantes para as questões
que pretendo abordar. A idéia de história aparece para Vigotski a partir da
abordagem materialista dialética, onde a realidade se concretiza num processo de
gênese e desenvolvimento. A natureza possui duas dimensões: uma ontológica e
outra histórica, e é nessa que o ser humano se insere.
Asi pues, la investigación histórica de la conducta no es algo que
complementa o ayuda el estúdio teórico, sino que constituye su
fundamento. (...) La conducta sólo puede ser comprendida como
historia de la conducta. Esta es la verdadera concepción dialéctica en
psicología. (Vigotski, 1997, p. 68).
Uma vez que, para Vigotski, toda função psicológica foi antes uma relação
entre duas pessoas, um vínculo intrínseco entre essas categorias, embora seja
necessário precisar o contexto histórico no qual são utilizados.
Discutir a natureza do social e a maneira como ele se torna
constitutivo de um ser cultural é, sem dúvida alguma, um detalhe
muito importante da obra de Vigotski, o qual merece uma atenção
especial. (Pino, 2000b, p. 47).
O papel da escolarização pode ser pensado então como fornecendo uma
contribuição significativa na configuração deste sujeito cultural. Nosso modelo de
educação básica propõe a permanência das crianças nas escolas durante pelo
menos doze anos de suas vidas. As relações sociais estabelecidas serão de
extrema importância para as suas subjetividades. Pino chega a identificar que,
para Vigotski, desenvolvimento humano e educação constituem dois aspectos de
uma mesma coisa:
...a educação não é um mero valor agregado à pessoa em formação.
Ela é constitutiva da pessoa. É o processo pelo qual, através da
medição social, o indivíduo internaliza a cultura e se constitui em ser
humano. (Pino, 2000a, p. 57, Grifos do autor).
A definição dos conceitos de social e cultural parte de um problema
inicial: eles não foram suficientemente especificados por Vigotski, o que obriga
seus leitores a um exercício de identificar o que expressavam. A solução desse
problema parece estar, segundo Pino, na nota sintética formulada no início do
71
manuscrito de 1929. Nela, Vigotski define o sentido de história em sua obra,
questão-chave para análise dos demais conceitos. Antes então de discorrer sobre
as categorias que dão título ao artigo, Pino esclarece:
É o caráter histórico que diferencia a concepção de
desenvolvimento humano de Vigotski das demais, conferindo-lha
caráter inovador (2000b, p. 48).
dois sentidos possíveis para história em Vigotski: uma
abordagem dialética geral das coisas e a própria história humana.
A concepção teórica por trás do arcabouço vigotskiano é o da dialética
materialista, que não se confunde com a dialética idealista hegeliana. Vigotski
apoia-se em Marx, para quem a história é a única ciência, pois toda a produção de
conhecimento, em qualquer área, é necessariamente produto das condições que a
produziram.
... dizer que a ciência é histórica (...) equivale a dizer que ela é produto
da atividade humana. (...) pode-se dizer que a ciência é a natureza
pensada pelo homem que, dessa maneira, passa a integrar a história
humana (grifo do autor) na forma de ciência da natureza. A natureza
em si mesma não tem história. (Pino, 2000b, p. 49).
O materialismo dialético é simultaneamente, método e teoria. O objeto do
conhecimento é o real, mas não o real em si e sim aquele transformado pela ação
humana. Essa noção aproxima-se da relação entre natureza e cultura, não como
um dualismo, mas como um processo de transformação que mantém uma na
outra. Essa é a história humana, “... a da passagem da ordem da natureza à ordem
da cultura.” (Pino, 2000b, p.51).
Tratando, então do sentido que adquire o termo social na obra de Vigotski,
Pino mostra que a primeira grande inovação está no fato do autor ter invertido a
ordem da psicologia clássica que buscava entender como os indivíduos se
adaptavam às práticas sociais, como se tivéssemos aqui fenômenos de natureza
diferente o individual e o social. Vigotski mostra que a questão deve ser
formulada de outra maneira, pois no ser humano ocorre aconversão das relações
sociais em funções mentais” (Vigotski, 1997, p. 106):
No lugar de nos perguntar como a criança se comporta no meio social
(...) devemos perguntar como o meio social age na criança para criar
nela as funções superiores de origem e naturezas sociais. (Vigotski,
1989, p. 61 apud Pino, 2000b, p. 52).
72
O cultural seria um gênero e o social uma espécie, assim o primeiro está
necessariamente contido no segundo, mas nem todo social é cultural. Entretanto, o
cultural transforma a natureza desse social, fazendo com que tome formas
diferenciadas de existência. Então “... o social é, ao mesmo tempo, condição e
resultado do aparecimento da cultura.” (Pino, 2000b, p. 53).
Quanto ao simbólico, Vigotski o toma como dimensão da cultura, pois tal
como o instrumento é uma invenção do homem. Pino chama atenção para o fato
de a distinção entre sinal e signo ter sido feita num texto de 1930 (1994) e ainda
não estar bem definida no Manuscrito, no qual Vigotski usa a expressão signo
indistintamente. Ao debruçar-se sobre o tema, entretanto, Vigotski detalha a
elaboração do conceito de signo mostrando as relações estruturais e genéticas
entre o uso de instrumentos e o uso dos símbolos. Vigotski queria comprovar que
“a emergência da atividade simbólica constituiu, tanto na história da espécie
quanto na história pessoal (...) o ponto de passagem do plano natural para o
plano cultural” (Pino, 2000b, p. 55-56). Podemos vislumbrar aqui o tema de
interesse do autor, posteriormente abordado no livro As Marcas do Humano
(2005).
Ao aprofundar-se nas diferenças entre sinal e signo, Vigotski mais uma
vez retoma a questão do natural e do cultural, pois o primeiro estaria associado às
condutas animais, enquanto o segundo seria uma invenção humana que, como os
instrumentos, teria uma função de intermediação entre o sujeito e os outros e dele
consigo mesmo. Assim como nos outros sistemas, os elementos mais simples
estariam contidos nos mais complexos e seriam sua condição, porém sofreriam a
ação transformadora dos segundos. Aqui a influência de Marx é bastante grande,
pois a história do homem é a história da sua transformação e da transformação da
natureza, a primeira através do signo, a segunda pelos instrumentos. Para Vigotski
... o evento determinante da história humana (...) é a criação dos
mediadores semióticos que operam nas relações dos homens com o
mundo físico e social. Instalando-se nos espaços dos sistemas de
sinalização natural, estes mediadores os tornam espaços
representacionais, de modo que emerge um mundo novo, o mundo
simbólico ou da significação. (Pino, 2000b, p.59).
Pino relaciona ainda o social às funções mentais superiores, outra relação
intrínseca e necessária que são o resultado das relações sociais internalizadas:
73
são as duas faces de uma moeda, de um lado as relações do sujeito com os outros,
de outro, sua relação consigo mesmo.
Pino revela então as conclusões a que chegou sobre o significado que o
termo social tem para Vigotski:
O social é uma categoria que se aplica às diferentes formas de
organização dos indivíduos animais ou humanos.
O social é um valor agregado ao biológico tanto para os homens
quanto para os animais e não é, por si só, capaz de produzi-lo.
O social humano é explicado pelos princípios que obedecem às leis
históricas que determinam as condições que propiciam sua
concretização.
ainda uma função do social extremamente importante para Vigotski: é
ele que permite a construção da subjetividade. O sentido de relações sociais é o
marxista, assim elas devem ser tomadas como decorrentes do modo de ser dos
homens e dos seus modos de produção. Para Vigotski a noção de consciência é
aquela que ao alterar o meio natural, altera-se a si mesma.
Percebe-se em Vigotski uma preocupação em encontrar um método de
pesquisa capaz de dar conta da dimensão histórica do desenvolvimento humano.
Para tal, ele propõe que se privilegiem as análises dos processos ao invés das dos
objetos. Isso requer a exposição dinâmica dos principais pontos da história dos
processos, especialmente os processos psicológicos. Não é a psicologia
experimental, mas a psicologia do desenvolvimento que fornece essa análise.
Focalizando o processo ela busca compreender mudanças, evoluções para revelar
a sua gênese ou suas bases dinâmico-causais. O desenvolvimento, então, para
Vigotski, deve ser visto como cultural, revelando-se como o processo pelo qual a
criança se apropria das significações que sua sociedade atribui às coisas, sem
esquecer que esse desenvolvimento vai acontecer dentro de suas condições reais
de existência. “Falar de desenvolvimento cultural da criança (...) é falar da
construção de uma história pessoal no interior da história social.” (Pino, 2005,
p.158).
A explicação metodológica de Vigotski na elaboração de uma psicologia
marxista se na busca da categoria de análise que permitisse a manutenção da
74
totalidade na parte analisada. A chave do problema está, para Vigotski, no
significado da palavra que traz em si a tensão dialética entre o pensamento e a
linguagem. Sua proposição é “substituir o método de decomposição em elementos
pelo método de análise que desmembra em unidades.” (2001, p.8).
O ser humano se constitui na relação que estabelece com o outro. Cabe
observar que a interação social é um processo no qual as dimensões cognitiva e
afetiva não podem ser dissociadas. Interagindo, as crianças não apenas apreendem
e se formam, ao mesmo tempo, criam e transformam o que as torna constituídas
na cultura e suas produtoras. Essa concepção implica em percebê-las como
sujeitos ativos que participam e intervêm na realidade ao seu redor. Suas ações
são suas maneiras de re-elaborar e recriar o mundo. Aos adultos cabe a importante
função de mediação. Jobim e Souza diz que para Vigotski:
... estudar a constituição da consciência na infância o se resume em
analisar o mundo interno em si mesmo, mas sim em resgatar o reflexo
do mundo externo no mundo interno, ou seja a interação da criança
com a realidade. (2001, p. 126).
Assim, esses processos, essencialmente humanos, que se manifestam na
infância, vão construir realidades individuais e históricas que se traduzem na
subjetividade de cada um. Como isso ocorre? Vigotski trouxe conceitos
importantes para esclarecer essa questão.
3.2.2 A subjetividade segundo a psicologia sociocultural
A constituição do sujeito é um tema caro às várias correntes da psicologia,
cada uma analisando a questão a partir de pressupostos teóricos que trazem, como
pano de fundo, aspectos epistemológicos próprios e, em certa medida, definidores
de tais teorias.
Vigotski se propôs a resolver a crise da psicologia de sua época, refém de
dualismos - mente/corpo, espírito/matéria, individual/social. – e elaborou uma
teoria que enfatizava o papel da realidade social na formação do sujeito, através
da ação do grupo social e de sua cultura, permeados pela história. Para Molon,
Vigotski construiu um novo olhar e
... acreditou que o eixo teórico-metodológico da psicologia,
necessariamente, passaria pelo reconhecimento e valoração do sujeito.
75
Criticou tanto as psicologias subjetivistas idealistas quanto as
psicologias objetivistas mecanicistas, defendendo a unidade entre a
psique e o comportamento, unidade mas não identidade, e a correlação
entre fenômeno subjetivo e fenômeno objetivo. (2003, p. 18).
O conceito de subjetividade que orientava a psicologia do final do século
XIX estava ligado às ideias liberais da época que privilegiavam uma interioridade
e a construção do indivíduo moderno. Tal visão, se por um lado privatizava a
subjetividade, por outro, conferia-lha uma abstração e um desvinculamento das
suas condições concretas. Restava à psicologia uma abstração o acessível em
oposição ao comportamento observável; foi aí que se perdeu o seu objeto: a
subjetividade. Vigotski evidencia essas contradições e propõe uma psicologia que
analisasse a constituição do sujeito inserido na sua história e sua cultura,
entendendo que sujeito e subjetividade são constituídos e constituintes nas e pelas
relações sociais.
O processo de apropriação dos significados sociais ocorre desde o
nascimento da criança. Para Vigotski, como o sujeito se constitui na relação, sua
consciência é simultaneamente a fonte dos signos e seu produto. Assim, o
desenvolvimento cognitivo do indivíduo se através de diferentes formas que
envolvem processos mentais distintos, como o de formação de conceitos que tem
início na infância e assume sua forma final na puberdade
A formação de conceitos envolve todas as funções mentais superiores e é
um processo mediado por signos, que constituem o meio para sua aquisição. Isto
é, no que se refere à formação de conceitos, o mediador é a palavra, ela é o meio
para centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e
simbolizá-los por meio de algum signo.
Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas o
modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma palavra
(...). O pensamento não é simplesmente expresso em palavras: é por
meio delas que ele passa a existir. (Freitas, 2002, p.94 – 95).
Tomando a interação como base, os conceitos aqui tratados são na verdade
fenômenos da linguagem e da significação que ocorrem em contextos concretos.
Vigotski elaborou um modelo para compreensão do processo de conhecimento
que rompeu com os binarismos. Para ele, a relação de conhecimento é produto da
interação entre o sujeito cognoscente, o sujeito mediador e o objeto de
conhecimento. O “modelo SSO” vem em resposta aos demais constructos sobre o
76
conhecimento que, ora silenciavam o sujeito (ensino como transmissão), ora
silenciavam o outro (ensino como construção). (Góes, 1997, p.13).
Esse processo pressupõe um sujeito, nem apenas receptivo, nem apenas
ativo, que vai elaborar os seus conhecimentos pela presença do outro, de forma
dialógica. As noções de pensamento por complexos e de pensamento por
conceitos verdadeiros mostram a construção progressiva do desenvolvimento
individual a partir do que o meio e o outro possibilitam.
Os conceitos de Vigotski se entrelaçam numa trama constitutiva de sua
teoria. A noção de mediação explicita o processo de pensamento presente em
situações de desafio quando o sujeito recorre a outros signos como “atividade
mediada”. A fala, para Vigotski, seria um dos signos mais importantes na
mediação do desenvolvimento. As manifestações de linguagem trariam uma
função organizadora que permitiria ao sujeito compreender o mundo através das
palavras Esse conceito apresenta duas dimensões: uma instrumental e outra
semiótica. Trata-se de um conceito central na perspectiva sociocultural, pois é
definido pelo contexto concreto dos sujeitos inseridos numa dada sociedade com
as suas práticas culturais. Assim, podemos afirmar que somos, também, o produto
dos processos mediacionais de nossa cultura. No desenvolvimento de sua teoria,
Vigotski procurou estabelecer um elemento que possibilitasse a relação entre o
que está nos ambientes das interações e os processos psicológicos, que fosse
equivalente à unidade de trabalho no fazer humano. As influências do marxismo
trouxeram para a teoria vigotskiana a idéia do “instrumento” como aquele que
media a ação humana em seu contato com a natureza. A essa mediação
instrumental se segue uma transformação do pensar, na atividade psicológica.
Vigotski concluiu que à palavra cabe essa dimensão instrumental. Temos então a
palavra tomada como signo que, ao ser enunciada, carrega consigo os significados
do contexto histórico de seu uso e do contexto da interação em que é utilizada
para comunicar e construir significações. A essa dimensão, Vigotski deu o nome
de mediação simbólica (ou semiótica), já que tem a palavra como elemento
mediador da transformação da consciência, enquanto reflexão e controle de si e
das atividades desenvolvidas.
77
O papel do outro para Vigotski é fundamental tanto na constituição do eu,
quanto no desenvolvimento e aprendizagens que o sujeito fará ao longo da vida. A
discussão sobre o sujeito que emerge desta concepção vai permear a discussão a
seguir. Qual é o grau de assujeitamento no discurso ou de autonomia na
linguagem que esse sujeito apresenta? Essa é uma tensão possível de ser
superada? Para Pino, uma ação do sujeito na apropriação das significações
produzidas em seu meio social:
... os processos de significação são aquilo que possibilita que a criança
se transforme sob a ação da cultura, ao mesmo tempo que esta adquire
a forma e a dimensão que lhe confere a criança, pois a partir do que a
sociedade lhes propõe (impõe?) adquirem o sentido que elas têm para
a criança. (2005, p.150).
Em síntese, a partir da discussão dos processos de mediação e
internalização, vamos tratar da produção desse sujeito que aprende e se
desenvolve, constituindo um eu a partir de outros eus, logo uma subjetividade
necessariamente dialógica. A concepção de sujeito que orienta as reflexões desta
tese baseia-se na compreensão de que as pessoas são construídas na linguagem. A
partir daí, a dimensão social assume importância vital para a construção da
subjetividade. O outro é constitutivo tanto do sujeito do inconsciente quanto da
consciência de cada um. Penso, com Bakhtin, que o discurso do outro tornado
palavra própria transforma-se no próprio discurso. Entender os processos que se
situam nesse espaço entre sujeitos a intersubjetividade pode se tornar
ferramenta preciosa para a compreensão das crianças sobre as quais a escola atua
para, progressivamente, transformá-las em alunos.
O papel da escola na formação da consciência de si do aluno é revelador
do processo que se estabelece ali, daí a importância de estudá-lo em seus
princípios, observando a transição, às vezes nem tão gradual da Educação Infantil
ao ensino fundamental. Estudar esse fenômeno historicamente, ou em seu
desenvolvimento, requer o duplo movimento de identificar na história a gênese da
cultura escolar e a construção do aluno, bem como identificar esse processo nas
pessoas concretas, crianças, sujeitos desta pesquisa.
A possibilidade de encontrar elementos de analise que possibilitem
equacionar as contradições parece estar no campo da linguagem. A transformação
da realidade intersubjetiva em intra-subjetiva é a solução dialética que conjuga
78
realidade externa e interna. A subjetividade como produto das mediações sociais,
através de um outro, via linguagem seria a síntese superadora, como afirma
Freitas (2001, p. 5), entre objetividade e subjetividade. O signo é o elemento
capaz de transitar nas duas dimensões, já que se constitui simultaneamente numa
construção subjetiva compartilhada através da atribuição de sentidos no
contexto e uma construção individual subjetiva que se pela internalização da
realidade externa na constituição da consciência e, portanto na atribuição de
sentidos próprios e pessoais.
Tomar a linguagem expressão da subjetividade construída culturalmente
- como unidade de análise permite a abordagem dialética da questão. A
subjetividade é produto, dentre outros aspectos, da consciência de si e dos papéis
que o sujeito desempenha, talvez nela possamos operar de maneira efetiva com o
método dialético proposto por Vigotski.
Para superar a concepção de sujeito abstrato podemos tomar a
individualidade como processo que se origina no social e que tem na sua
singularidade, a forma própria de relacionamento entre o sujeito e o outro
internalizado. A natureza cultural do homem, como propõe Vigotski revela uma
subjetividade – expressão da realidade de cada um – como reconstituição na
esfera do privado, da intersubjetividade que se dá no plano das relações eu - outro.
Para Pino (1996, p. 12) este seria o lugar das negociações dos mundos de
significações privado e público.
O desenvolvimento psicológico da criança é, dessa maneira, um fenômeno
cultural, que pressupõe uma apropriação dos significados atribuídos às coisas e às
ações, tal como visto no exemplo do apontar:
Inicialmente, esse gesto não é nada mais que do que uma tentativa
sem sucesso de pegar alguma coisa, um movimento dirigido para um
certo objeto, que desencadeia a atividade de aproximação. A criança
tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos,
esticadas em movimentos que lembram o pegar. (...) Quando a mãe
vem em ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica alguma
coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um
gesto para os outros. A tentativa malsucedida da criança engendra
uma reação, o do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa.
Consequentemente, o significado primário daquele movimento
malsucedido de pegar é estabelecido por outros. (Vigotski, 2000b,
p.63-64).
79
Através da mediação do outro, a criança vai se transformando de ser
biológico em ser cultural. Pino (2005) denomina esse processo de nascimento
cultural. Neste contexto, Vigotski enfatiza que a gênese da constituição humana é
histórico-cultural, tornando-se a cultura parte integrante da natureza humana e
categoria central de uma nova concepção de desenvolvimento psicológico.
A teoria de Vigotski não dilui o sujeito no outro ou nas relações sociais,
antes pelo contrário é justamente nessa relação que vai adquirir sua singularidade.
Ser constituído pelo outro é contar com ele para o próprio reconhecimento do eu.
A subjetividade manifesta-se, revela-se, converte-se, materializa-se e
objetiva-se no sujeito. Ela é processo que não se cristaliza, o se
torna condição nem estado estático e nem existe como algo em si,
abstrato e imutável. É permanentemente constituinte e constituída.
Está na interface do psicológico e das relações sociais. (MOLON,
2003, p 68).
A dimensão dialética da relação eu - outro, intra-subjetivo – intersubjetivo,
é o aspecto a ser preservado na análise da subjetividade, assegurando a sua
natureza histórica e cultural.
3.3 Bakhtin: Interações e Diálogos na Construção Discursiva
Tal como Vigotski na sua busca por uma psicologia marxista, Bakhtin
preocupava-se em encontrar uma formulação coerente com o marxismo que
superasse o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista no estudo da
linguagem. Bakhtin busca entender as relações entre sujeito e sociedade de
maneira dialética, porém elege como seu elemento de análise a filosofia da
linguagem. “... toda tomada de consciência implica discurso interior, entoação
interior e estilo interior...” (Bakhtin, 2002, p.114). Para ele, a subjetividade é,
também, um território social. A ideologia e a psicologia puderam ser articuladas
através da concepção de signo lingüístico como um signo social e ideológico que
possibilita que a consciência individual esteja relacionada à interação social.
Para Bakhtin, um signo não existe apenas como parte de uma realidade:
ele também reflete e refrata outra. Cada signo é simultaneamente um reflexo da
realidade e seu fragmento material, logo elemento do mundo exterior (2002, p.32).
A consciência se materializa nos signos, do contrário, é uma ficção. A palavra
é, então, material maleável e se expressa no corpo.
80
A proposta de Bakhtin é entender a linguagem em seu acontecimento,
opondo-se a Saussure, para quem interessava o estudo da língua. O objeto real e
material para entender o fenômeno da linguagem humana é o exercício da fala em
sociedade. A língua falada é o que se oferece para o estudo. A língua - objeto da
lingüística para Saussure não passaria de um modelo abstrato, construído a
partir da linguagem viva e real. As origens filosóficas explicam a divergência
entre os autores; enquanto Saussure produzia seu conhecimento num contexto
positivista que se preocupava com medidas e manipulação, Bakhtin construía seu
pensamento na Rússia leninista e stalinista, o que, de cara, se revelava um
problema: elaborar uma teoria marxista independente do marxismo oficial.
A opção de Bakhtin pelo movimento e pela transformação o leva analisar
um objeto que não se submete a uma forma imutável ou fixa. Se para Saussure
(2006) o signo era uma relação entre um significante (som, imagem acústica,
grafema) e um significado (conceito), para Bakhtin este último se configurava
como uma impossibilidade teórica, já que o signo terá tantas significações quantas
forem suas situações de uso. Assim, a unidade básica da linguagem não poderia
ser o signo, mas um enunciado concreto que não prescinde dos sujeitos reais do
discurso. Cada enunciado é único e irrepetível e é sempre um acontecimento que
demanda um outro de quem se supõe uma atitude responsiva. Este enunciado é a
unidade básica da teoria enunciativa de Bakhtin.
3.3.1. A dialogicidade e a construção da pesquisa
Nessa perspectiva, toda enunciação é um diálogo que faz parte de um
processo contínuo. O que é dito sempre responde a uma fala anterior e permitirá a
sua réplica. O discurso é parte componente de um diálogo que reflete a interação
de alguém que enuncia com um interlocutor num dado contexto.
... toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato
de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém
(...) a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.
(Bakhtin, 2002, p.113).
81
Faraco (2003, p.60) chama atenção para o fato de que, menos do que o
diálogo em si, interessa ao círculo bakhtiniano
24
as relações dialógicas que nele se
manifestam. Isso significa dizer que podem ser tomados como diálogos os mais
variados textos, discursos ou práticas, como eventos que estão sujeitos à ação de
forças dialógicas. Essa idéia será o fundamento para analisar os “discursos” da
cultura escolar e das culturas infantis, buscando identificar como eles dialogam
nas práticas observadas na escola. Essa aproximação vai de encontro às idéias
bakhtinianas sobre as relações dialógicas que são relações de sentidos entre
enunciados que tem como referência o todo da interação verbal Essas relações são
antes de tensão do que de acordo ou consenso. Assim, ao aproximarmos
enunciados que eventualmente não tenham se dirigido, a princípio, um ao outro,
ainda assim, eles, “acabam por estabelecer uma relação dialógica.” (Bakhtin,
1997, p.117). Isso ocorre porque os enunciados, e os valores que expressam, são a
unidade da interação social a ser analisada.
Assim, o diálogo no sentido amplo do termo (“o simpósio universal”
grifo do autor), deve ser entendido como um vasto espaço de luta
entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos). (Faraco,
2003, p. 67).
Todo enunciado é sempre uma resposta a um enunciado anterior. O locutor
se relaciona ao mesmo tempo com o objeto da enunciação e com outros
enunciados. uma busca implícita ou explícita por uma atitude responsiva do
outro. “Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade
constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver enunciado
(Bakhtin, 2000, p.325). Aquele para quem se dirige o discurso - o destinatário - é
parte ativa da cadeia discursiva, pois uma direção ao que é dito pela
expectativa da sua resposta. A forma que toma o enunciado está relacionada a
isso. O destinatário é chamado a se posicionar, pois o locutor espera dele uma
resposta.
24
Grupo de intelectuais russos que, junto com Bakhtin, dividem a possível autoria de alguns de
seus escritos. Entre os principais membros do círculo, destacavam-se Matvei Kagan, Pavel
Medvedev e Valentin Voloshinov. O grupo se dissolveu em 1929, devido a perseguições políticas,
que culminaram no desaparecimento de vários membros e no exílio de Bakhtin no interior da
Rússia.
82
... cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo
encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do
ouvinte (Bakhtin, 2000, p.291).
Para Bakhtin, o falante constitui sua subjetividade considerando o outro;
orienta sua fala a partir do interlocutor. Esse processo funciona como um espelho
em que o falante busca refletir-se. Quando o sujeito falante entra nessa corrente
ideológica constrói a sua visão de mundo e sua própria subjetividade. Assim, se
torna inviável pensar a existência humana fora do seu espaço de inter-relações,
entendendo a comunicação como objetivo primário da linguagem, anterior mesmo
à elaboração, que se torna possível, devido à sua mediação.
Bakhtin aponta também a existência de um sobredestinatário, outro
participante do diálogo, cuja responsividade não é presumida pelo locutor. Este
terceiro elemento possibilita que o discurso possa ressonar num momento
histórico diferente da enunciação. O sobredestinatário atua de forma invisível,
porém é dotado de uma compreensão responsiva e está situado acima dos
participantes do diálogo. A sua presença se deduz da possibilidade de diálogo
entre enunciados separados no espaço ou no tempo e que se revelam em relação
dialógica mediante uma confrontação de sentido.
Faraco, analisando este tema, mostra a tripla dimensão da dialogicidade:
“... todo dizer não pode deixar de se orientar para o dito (...) todo dizer é
orientado para a resposta (...) todo dizer é internamente dialogicizado.” (Faraco,
2003, p.58). Assim, poucas são as falas inaugurais, originadas em si mesmas ou
em uma idéia inédita. Não há, sob esta perspectiva, obra de todo original, de
autoria singular, não marcada por outras produções. Os discursos e produções são
formados pelas palavras que já foram ouvidas, pelo que já foi lido ou visto, enfim,
pela história que foi vivida. De uma forma geral, uma continuidade, quase
narrativa nos discursos, que respondem a uma palavra anterior.
A dialogia e a alteridade trazem conseqüências nos três planos: da vida, do
conhecimento e da arte. consequências éticas na pesquisa com crianças da
adoção deste referencial teórico:
História, sociedade e cultura vão se delineando como categorias
importantes para se reconceber a infância, e a própria infância passa a
ocupar esse outro lugar em uma concepção de história que se e se
quer crítica. Fica instaurada uma nova ruptura conceitual, no
entendimento da infância, que tem nítidas repercussões para a prática
83
de pesquisa. Nessa ruptura, a linguagem irá desempenhar papel
central. (Kramer, 2002, p.46).
O uso de imagens autorizadas, os nomes verdadeiros, a identificação da
escola pesquisada, todos esses aspectos devem ser analisados sob esse enfoque.
Há que se conceder autoria aos autores, voz às crianças que falam através do texto
de pesquisa, crédito às instituições que corajosamente abrem suas portas para a
produção de conhecimento, respeito aos professores que concordam em ser
observados. Porém, antes de mais nada, é essencial ter em conta a segurança e o
bem-estar dos sujeitos envolvidos. Sempre que uma pesquisa puder trazer alguma
espécie de risco ou dano as opções metodológicas devem ser revistas, a dimensão
ética deve estar sempre em primeiro plano.
O autor-contemplador é uma categoria que, tal como o sobredestinatário
do discurso, permite um acabamento estético para além do momento vivido.
Também o autor-contemplador necessita de distância - é a sua
exotopia que, ao fim e ao cabo, atualiza o objeto estético. Em páginas
instigantes Bakhtin desenvolve o esboço de uma classificação do
espectador como entidade estética, tomando como referência o teatro -
talvez porque, no teatro, seja didaticamente mais visível ainda o fato
de que é o olhar do espectador que cria o objeto, lhe dá uma unidade e
um acabamento que nenhum de seus atores, vivendo a peça,
isoladamente, é capaz de ter. (Tezza, 1995 s.p.).
O conceito de exotopia se torna um elemento constituinte da pesquisa em
ciências humanas. O pesquisador, tal como o autor-contemplador constrói seu
sujeito por aquilo que dele pode ver, passeia no seu lugar, tenta dar sentido ao
mundo de lá, buscando a lógica do sujeito observado. Depois, retorna ao seu
ponto de partida, não mais o mesmo, pois que transformado pela experiência
vivida, para então pronunciar um discurso que pretende dar significado ao que foi
experimentado. A exotopia, porém, não se limita a um conceito espacial, ela é
simultaneamente, uma categoria temporal. O excedente de visão é possível dado
o afastamento no espaço e no tempo. Ele permite dar ao outro uma forma e um
acabamento que jamais podemos ter por conta própria.
Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente,
nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por
nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse
outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que
ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as
partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar (...) o mundo ao
qual ele as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em
84
função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são
acessíveis a mim e inacessíveis a ele (...) (Bakhtin, 2000, p. 43).
3.3.2 O sujeito bakhtiniano e a alteridade
Para Bakhtin, a subjetividade é, também, um território social. A ideologia
e a psicologia puderam ser articuladas através da concepção de signo lingüístico
como um signo social e ideológico que possibilita que a consciência individual
esteja relacionada à interação social. Um signo não existe apenas como parte de
uma realidade: ele também reflete e refrata outra. Cada signo é simultaneamente
um reflexo da realidade e seu fragmento material, logo elemento do mundo
exterior (Bakhtin, 2002, p.32). A consciência se materializa nos signos, do
contrário, é uma ficção. A palavra é, então, material maleável e se expressa no
corpo.
Sobral destaca que o sujeito bakhtiniano é o resultado de uma negociação
entre sua sobreposição à sua inserção social e sua submissão ao ambiente
sociocultural. “Tanto um sujeito fonte do sentido, como um sujeito assujeitado.”
(2005, P.22). uma interminável referência ao outro que constitui o eu, que é
para ele, seu outro. A inserção no plano relacional sentido às subjetividades
construídas.
Essa concepção de sujeito traz em si as consequências éticas das decisões
tomadas na vida concreta, pois ele não se trata de um “fantoche das relações
sociais” (Sobral, 2005, p 24), mas de alguém capaz de organizar seus discursos e
de assumir uma atitude responsiva frente ao outro. Alteridade que se faz presente
também nas vozes que fundam a arena lingüística na qual se enfrentam. Aqui
temos a polifonia, o dialogismo, a pluralidade que fazem do sujeito humano um
objeto que se dá a conhecer pelos seus textos, seus discursos.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov, traz o conceito de
que o sujeito se constitui e é constituído na palavra. o existem pensamento e
linguagem inatos. A atividade mental do sujeito é profundamente marcada pelo
campo social, pois a palavra e o material semiótico, produzidos na interação, o
elementos determinantes para a organização do pensamento que, posteriormente,
retorna ao campo social. Em razão dessa sobredeterminação social e histórica, que
85
perpassa tanto os sujeitos quanto as palavras, a significação da palavra somente se
dará no acontecimento enunciativo que ultrapassa a significação registrada no
dicionário. Assim, a palavra é constitutiva tanto da consciência quanto do
desenvolvimento humano, cabendo à linguagem a responsabilidade pela
constituição dos sujeitos sociais.
A temática da alteridade em Bakhtin é reveladora das possibilidades de
produção de pesquisa em ciências humanas, ao mesmo tempo em que é tomada
como condição essencial da constituição do humano. A consciência de si depende
do outro para se estabelecer. O eu não se constitui isoladamente, ele existe em
relação dialética com aquilo que é outro, que lhe proporciona o acabamento.
Apenas ao outro é dado ver-me e, minha percepção de mim mesmo só se torna
possível pela sua mediação que fornece um acabamento através de uma estética
decorrente do movimento de aproximar-se e afastar-se retornando ao ponto inicial,
modificado pela experiência de ter vivido uma dada realidade pela ótica daquele a
quem tento dar um acabamento. Jobim e Souza define exotopia como:
o fato de uma consciência estar fora de outra, de uma consciência ver
a outra como um todo, o que ela o pode fazer consigo própria. (...)
Cada um de nós se encontra na fronteira do mundo que vê.. (Jobim e
Souza, 2003, p. 83).
Para Bakhtin, tal como para Vigotski, a consciência tem caráter social. Ela
se constroi nessa relação necessária entre o eu e o outro. Tomar consciência de si
é produto dessa relação que é internalizada através da linguagem do outro com
suas entonações e seus valores. A consciência, no entanto se funda num
esquecimento: o eu esquece que as palavras que lhe deram sentido foram
inicialmente as palavras dos outros internalizadas inicialmente como palavra
pessoal-alheia, em seguida como palavras-próprias
A palavra do outro torna-se anônima, familiar (numa forma
reestruturada, claro); a consciência se monologiza. Esquece-se
completamente a relação dialógica original com a palavra do outro:
esta relação parece incorporar-se, assimilar-se à palavra do outro
tornada familiar (tendo passado pela fase da palavra 'pessoal alheia').
A consciência criadora, durante a monologização, completa-se com
palavras anônimas. (...) Depois, a consciência monologizada, na sua
qualidade de todo único e singular, insere-se num novo diálogo (daí
em diante, com novas vozes do outro, externas). Com freqüência, a
consciência criadora monologizada, unifica e personaliza as palavras
do outro, tornadas vozes do outro anônimas... (Bakhtin, 2000 p. 406).
86
3.4 Entrelaçando os Discursos: um Diálogo em Torno da Idéia de
Subjetividade
As proposições bakhtinianas serão tomadas para pensarmos a constituição
da subjetividade do aluno, inserido num discurso que se configura como uma
“cultura escolar”. As culturas da infância assumem esse discurso como “palavras-
próprias”? Como se dá a tensão entre as palavras alheias e as palavras pessoais?
Quem é esse sujeito criança e aluno – que se constitui nas práticas
escolares?
É necessário um sujeito para haver enunciação. As diferentes concepções
que atravessaram a formulação da subjetividade ajudam a entender o quê e como
fala. É necessário um recuo ao sujeito cartesiano que marcou por muito tempo
essa concepção até sua desconstrução pela psicanálise e os questionamentos da
filosofia, para enfim chegarmos ao modelo de Vigotski que reconhece
dialeticamente a dimensão social e individual ali presentes.
A partir do modelo cartesiano que dividia o conhecimento do universo em
duas categorias de natureza distinta: o conhecimento objetivo, científico relativo
ao mundo dos objetos e o conhecimento intuitivo e reflexivo que permitia acesso
ao mundo dos sujeitos. Esta concepção gerou uma tensão entre a filosofia e a
ciência, de tal modo que, embora o sujeito tenha sido alçado à condição de acesso
à verdade, ele foi excluído, enquanto sujeito ativo, do campo da ciência, objetiva e
racionalmente comprovável, não cabendo a interferência da subjetividade. O
sujeito da consciência, fundado no cogito cartesiano, se estabeleceu como
pressuposto de um sujeito da interioridade e da racionalidade.
Ao desvelar o inconsciente, Freud promoveu a primeira grande ruptura
com esta concepção de sujeito ancorado na racionalidade e na interioridade. Freud
subverteu a noção tradicional de sujeito pensante e revelou a importância da lei
externa sobre o indivíduo. Ao ligar a lei (princípio de realidade) ao desejo
(princípio do prazer), a psicanálise desconstruiu o papel central atribuído à
consciência e produziu uma teoria de constituição do sujeito. Assim,
Formulou-se no discurso freudiano a concepção de que o sujeito é
necessariamente dialógico, isto é, uma modalidade de sujeito que se
constituiu apenas pelo outro e através do outro. O que implica
87
enunciar que não existe qualquer possibilidade de representar o sujeito
como uma mônada fechada, como uma interioridade absoluta, pois a
interioridade subjetiva remete sempre para a exterioridade do outro.
(Birman, 1994, p. 37).
A subjetividade, dessa maneira é produto de processos psíquicos
inconscientes formados por meio do registro de uma linguagem dialógica que se
processa na história, na medida em que o outro, como linguagem e como ser, é o
contraponto fundante do sujeito.
Freud contribuiu de maneira significativa para desconstruir a ilusão da
modernidade ancorada na imagem racionalista do sujeito e na idéia da relação
entre a liberdade do homem e o progresso da humanidade. A ciência moderna e
sua concepção de sujeito tornaram-se objetos de reflexões críticas como as de
Foucault (1977, p.32) sobre a idéia de que a ciência possibilitaria o progresso da
sociedade e sobre a ambigüidade presente na noção de sujeito da ciência moderna.
Foucault mostrou os desdobramentos do poder disciplinar que tinha como base a
regulação e a vigilância do indivíduo e do corpo e converteu a noção de sujeito
em fenômeno metodológico e substantivo ao propor que não tomemos a
subjetividade como um dado, mas, como uma construção histórico-discursiva,
como uma posição entre outras. Para ele, o lugar do sujeito não seria identitário e
racional e valeria a pena ver:
a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é
aquilo a partir do que a verdade se na história, mas de um sujeito
que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante
fundado e refundado pela história. (Foucault,1992, p.7).
Freud e Foucault trazem a idéia do sujeito como construção social e
histórica. A partir desse ponto e avançando em sua discussão teórica, vamos
esclarecer como a perspectiva sociocultural concebe a subjetividade, Freitas
recorre à constituição do indivíduo moderno e da psicologia como ciência: ali, a
experiência subjetiva era pensada como individual, privada e universal. Porém,
como visto, a modernidade trouxe consigo questionamentos a partir de suas
próprias contradições: “O século XIX consolidou a experiência da subjetividade
privatizada e, ao mesmo tempo, a crise dessa subjetividade.” (Freitas, 2001, p.4).
Como articular as esferas do individual campo do psicológico ou
subjetivo – e a do social, histórica e objetiva? Em busca da resposta a essa
questão, Freitas trata dessa temática a partir da perspectiva sociocultural. Para a
88
autora, como essas noções são construídas na história as suas contradições
também podem ser compreendidas nessa linha, especialmente aquela que nega a
relação entre objetividade e subjetividade. A subjetividade é constituída através de
mediações sociais, o que exige necessariamente um outro que se faz presente pela
linguagem. É nessa troca permanente que a subjetividade se constrói na interação
entre interno e externo, individual e social, no compartilhar dos significados.
Consubstancia-se na linguagem a síntese superadora entre objetividade e
subjetividade, pois o signo, produto social, criado por um grupo culturalmente
organizado, designa a realidade objetiva sendo ao mesmo tempo uma construção
subjetiva compartilhada por diferentes indivíduos através da atribuição de
significados e também uma construção subjetiva individual que se realiza pela
internalização (grifos da autora). A internalização é um processo de reconstrução
interna de uma atividade externa. Reconstrução essa que consiste na apropriação
do significado construído socialmente e transformado pelo sujeito num sentido
pessoal, portanto próprio. (Freitas, 2001, p.5).
Vimos com Vigotski (1998, p.4) que o processo de significação apresenta
uma dupla referência semântica: o significado e o sentido. O significado de uma
palavra é mais estável e preciso que é convencional e dicionarizado, enquanto
seu sentido é dinâmico, podendo ser modificado de acordo com o contexto,
produto que é da interação. Diferentes contextos apresentam diferentes sentidos
para uma mesma palavra. O sentido se constrói na dinâmica dialógica.
O sujeito é constituído pelas significações culturais produzidas a partir do
momento em que os sujeitos se relacionam produzindo sentidos. Assim, existe
significação quando ela ocorre para o sujeito e o sujeito penetra no mundo das
significações quando é reconhecido pelo outro. A relação social não é composta
apenas de dois elementos, ela é uma relação dialética entre o eu e o outro, e
implica num terceiro: o elemento semiótico que é constituinte da relação e é nela
constituído. O sujeito se constitui numa relação eu/outro onde esse outro é na
verdade um outro de si mesmo, se pudermos recorrer a um paralelo à
metalinguagem, pensaríamos numa “metaconsciência” onde o sujeito se pensa a
partir de um outro que é ao mesmo tempo ele mesmo.
89
Nas obras de Vigotski e Bakhtin a análise do sujeito transcende as ordens
do biológico e da abstração, direcionando-se ao sujeito que é constituído e é
constituinte de relações sociais. Neste sentido, o homem sintetiza o conjunto das
relações sociais e as constrói.
Pensar o homem pelo viés das relações sociais implica considerá-lo em
uma perspectiva da polissemia, ou seja, pensar na dinâmica, na tensão, na
dialética, na estabilidade instável, na semelhança diferente. A conversão das
relações sociais no sujeito social se faz por meio da diferenciação: o lugar de onde
o sujeito fala, olha, sente, faz, etc. é sempre diferente e partilhado. Essa diferença
acontece na linguagem, em um processo semiótico em que a linguagem é
polissêmica.
Neste sentido, o sujeito não é um mero signo, ele precisa do
reconhecimento do outro para se constituir enquanto sujeito em um processo
dialético. Ele é um ser significante, que fala, faz, pensa, sente, tem consciência do
que está acontecendo, refletindo todos os eventos da vida humana.
A subjetividade, nesta perspectiva, é produto de uma relação dialética,
processo permanentemente constituinte e constituído, es na interface do
psicológico e das relações sociais. Esta concepção de subjetividade contribui para
identificar e analisar as categorias que permitem a construção histórica do objeto
tanto na sua dimensão social quanto na história individual das crianças que
compõem o meu campo de pesquisa. Assim,
Os signos emergem e significam no interior de relações sociais, estão
entre seres socialmente organizados; não podem assim, ser concebidos
como resultantes de processos apenas fisiológicos e psicológicos de
um indivíduo isolado; ou determinados apenas por um sistema formal
abstrato. Para estudá-los é indispensável situá-los em processos
sociais globais que lhe dão significação. (Faraco, 2003, p 48).
As proposições bakhtinianas serão consideradas para pensarmos a
constituição da identidade do aluno, inserido num discurso que se configura como
uma cultura escolar”, ao mesmo tempo em que as culturas da infância assumem
esse discurso como palavras-próprias”. Será analisada a tensão entre as
palavras alheias (conformação de alunos) e as palavras pessoais (cultura de
pares), entendendo esse processo, para além da subjetivação individual, como
90
a constituição de um “discurso” que confere identidade cultural a um grupo:
os alunos, que passam a se reconhecer como tal.
Toda palavra (todo signo) de um texto conduz para fora dos limites
desse texto. A compreensão é o cotejo de um texto com outros textos
(...) Somente em seu ponto de contato é que surge a luz que aclara
para trás e para frente, fazendo que o texto participe de um diálogo.
(...) a palavra do outro se transforma, dialogicamente, para tornar-se
palavras pessoal-alheia com a ajuda de outras palavras do outro, e
depois, palavra pessoal (com, poder-se-ia dizer, a perda das aspas). A
palavra já tem, então, um caráter criativo (Bakhtin, 2000, p 404-405).
Geraldi (2003, p. 18-19) reconhece na escola o exemplo paradigmático das
técnicas modernas de governo descritas na análise foucaultiana, porém ressalta
que as identidades atribuídas não serão necessariamente as identidades
experienciadas, pois um espaço de deslizamento e emergência de transgressão
constituintes das subjetividades.
Esses são os fundamentos que orientam a tese, mas para avançarmos no
debate é necessário conceituar, inicialmente, o que é a forma escolar e o que
estamos tomando por culturas infantis e cultura escolar.
3.5 A Forma Escolar: o Processo e Sua Gênese
Buscar um estudo que à gênese da constituição do modo de ser aluno,
na abordagem pretendida, pressupõe uma construção histórica que relate o
movimento social que originou a escola tal como a concebemos hoje.
Desnaturalizar a escola, restituindo-lhe sua historicidade é o primeiro passo para o
estabelecimento dos diálogos que propomos aqui.
Vincent, Lahire e Thin (2001, p 12) ressaltam que, a despeito de uma
tendência da historiografia de estabelecer uma continuidade nas formas escolares
clássicas até os dias de hoje, é possível identificar o surgimento da forma escolar
nos séculos XVI e XVII na França. Para os autores, a aparição de uma forma
social está intrinsecamente relacionada a outras transformações.
É, portanto, a análise sócio-histórica da emergência da forma escolar,
do modo de socialização que ela instaura, das resistências encontradas
por tal modo, que permite definir essa forma, quer dizer, perceber sua
unidade (a da forma) ou, mais exatamente, pensar como unidade o
que, de outro modo, somente poderia ser enumerado como
características múltiplas. (2001, p.12).
91
Uma das características principais é inauguração de um modelo de relação
que pode ser chamada de pedagógica. A forma de aprender desvincula-se do
fazer, a relação mestre e aluno dissocia-se das demais, gerando resistências pela
retirada de poder envolvida no saber-fazer. A instauração de um lugar específico
para essa relação a separa das demais: a escola se configura como o espaço da
relação pedagógica que ensina conhecimentos desvinculados do fazer.
Simultaneamente, cria-se o tempo escolar como um tempo da vida, do ano e do
cotidiano. A existência da escola com espaços e tempos específicos aponta o
potencial socializador de suas práticas, dado que as orientações espaço-temporais
conferem identidade – modos de ser - ao sujeito humano.
Essas transformações vieram acompanhadas de uma ampliação da
escolarização (note-se que continuamos falando da França, o que, no entanto não
invalida a análise que pretendemos efetuar aqui). Para os autores, a escolarização
veio junto com a instalação de uma nova ordem urbana e uma redistribuição dos
poderes civis e religiosos. A escola é, mais do que uma conseqüência do processo,
parte relevante de sua consecução.
A inclusão em massa das crianças na escola pode ser tomada como uma
nova forma de sujeição desenvolvida por maneiras específicas de subjetivação. A
criança aprende, mas do que os conteúdos, “determinadas regras (...) constitutivas
da ordem escolar” (Vincent, Lahire e Thin 2001, p. 14). A forma escolar
transborda dos muros das escolas para as demais instituições. Para os autores, fica
evidente que o exercício de análise da sociogênese da forma escolar faz sentido
num conjunto de transformações sociais profundamente vinculadas às formas de
exercício de poder.
A passagem das sociedades oralizadas para as escriturais traz uma série de
fenômenos associados, as formas escolares se constituem como lugar específico
distinto das demais relações sociais. Elas pressupõem um saber objetivado,
desvinculado do fazer. A escrita torna-se elemento essencial nesse contexto, pois
garante a acumulação da cultura até então conservada no estado incorporado
(Vincent, Lahire e Thin, 2001, p 28). As escolas não o espaços profissionais ou
religiosos e os conteúdos ensinados lá, mesmo que dessas naturezas são
escolarizados, ou se quisermos, passam pela transposição didática de que nos fala
92
Chevallard (1991)
25
. A transmissão do saber se coloca como um problema até
então inédito, pois deve permitir aos alunos que recomponham um trabalho
passado, não necessariamente vivido por eles. Cada vez mais, as relações sociais
de aprendizagem dependem da escrituralização codificação dos saberes e das
práticas, (Vincent, Lahire e Thin, 2001, p. 29).
As prescrições escritas afetaram também os mestres que deviam cumprir
as regras, sem interpretá-las. A didática em sua origem lassaleana
26
o previa
espaço para a subjetividade do mestre:
O homem está o sujeito à frouxidão (...) que tem necessidade de
regras por escrito, mantendo-o em seu dever e impedindo-o de
introduzir alguma coisa de novo e, deste modo, destruir o que foi
sensatamente estabelecido. (J.B. La Salle, Conduites des écoles
chrétiennes. Introduction et notes comparatives avec l´edition princeps
de 1720. Procure générale, 1951, p. 5 apud Vincent, Lahire e Thin
2001, p.30).
A forma escolar de aprendizagem se opõe às formas orais e a escola se
configura como lugar de aprendizagem das formas de exercício de poder que se
impõem através de uma impessoalidade que afeta mestres e alunos. Com as
escolas mútuas sistematizadas pelos ingleses Bell (1753 – 1832) e Lancaster
(1778 – 1738) que, entre outras coisas, propunham o fim dos castigos físicos, veio
uma crítica ao adestramento a que eram submetidos os alunos e uma tentativa de
estabelecer uma nova relação com as regras que passam a ser “explicadas e
aceitas” e assim, a partir de uma autodisciplina o aluno mesmo se regularia
tomando como base a razão.
A questão do poder se coloca desde o princípio, articulada ao saber:
ao mesmo tempo em que se constroem saberes e relações com a
linguagem e com o mundo, certas modalidades da relação com o outro
se aprendem em forma de relações sociais específicas que
correspondem a modalidades do poder. (Vincent, Lahire e Thin, 2001,
p 35).
25
Idéia formulada originalmente pelo sociólogo Michel Verret, em 1975. retomada em 1980, pelo
matemático Yves Chevallard que a define como um instrumento eficiente para analisar o processo
através do qual o saber produzido pelos cientistas (o Saber Sábio) se transforma naquele que está
contido nos programas e livros didáticos (o Saber a Ensinar) e, principalmente, naquele que
realmente aparece nas salas de aula (o Saber Ensinado).
26
J. B. de La Salle pretendia que os professores seguissem as regras estritamente, sem nenhuma
variação, de forma a obter um resultado uniforme.
93
Canário (2002) aprofunda o estudo da forma escolar estabelecendo três
dimensões para análise da escola:
Uma invenção histórica, contemporânea da dupla revolução, industrial
e liberal, que baliza o inicio da modernidade e que introduziu três
novidades: o aparecimento de uma instancia educativa que separa o o
aprender do fazer; a criação de uma relação social inédita, a relação
pedagógica no quadro da classe, superando a relação dual entre o
mestre e o aluno; uma nova forma de socialização (escolar) que viria
progressivamente a se tornar hegemônica (...) a escola é uma forma, é
uma organização e é uma instituição (grifos do autor). (p. 143).
Enquanto forma, a escola traduz uma ruptura com os processos que
prevaleciam antes dela e trata-se de uma modalidade de aprendizagem que se
baseia na revelação, na cumulatividade e na exterioridade dos saberes. A forma
revelou-se numa dimensão pedagógica que progressivamente tornou-se
hegemônica enquanto maneira de ensino-aprendizagem e legou à escola um
monopólio da ação educacional ao mesmo tempo em que contaminava com seus
métodos as ações educativas não escolares.
A dimensão da organização possibilitou o estabelecimento da forma
escolar não mais baseada na relação dual mestre e aluno, mas na do professor com
sua classe, característica dos sistemas escolares modernos. Sua invisibilidade é
fruto da naturalização das formas de organizar os tempos, espaços e os
agrupamentos dos alunos que determinam ão dos agentes educacionais e limita
o pensamento crítico sobre as próprias práticas.
Por fim, a escola é uma instituição com valores e objetivos que
desempenha papel de unificação cultural, liguística e política fundamental na
construção dos Estados Modernos.
Para Canário (2002, p 145) a indistinção dos três níveis provoca um debate
confuso, pois os interlocutores eventualmente estão tratando de fenômenos de
níveis distintos num mesmo conceito.
Avançando na história da escola, temos uma época denominada por
Canário como a “idade do ouro” (2008, p. 74), um largo período entre a
Revolução Francesa e o fim da Primeira Grande Guerra, no qual se estabeleceu o
apogeu do capitalismo liberal. Esta referência da escola permanece, segundo o
autor, no imaginário coletivo como um contraponto às mazelas da escola atual.
Canário considera ainda que este período possa ser tomado como um “tempo de
94
certezas”, na medida em que correspondeu, a um momento de poucas tensões
entre a escola e a sociedade e dela internamente em suas distintas dimensões.
O período seguinte à Segunda Guerra Mundial apresentou um crescimento
da oferta educativa escolar, como conseqüência da combinação entre o aumento
da oferta em função das políticas públicas e o aumento da procura numa
verdadeira “corrida à escola” (Canário, 2008, p. 74). A democratização do acesso
à escola marca a passagem de uma escola elitista para uma escola de massas e a
sua entrada num “tempo de promessas”, marcado pela euforia e pelo otimismo
em relação à escola. As promessas a que se refere Canário são basicamente três:
desenvolvimento, mobilidade social e igualdade.
Em termos econômicos o que se assistiu na América do Norte, Europa e
leste Asiático nesse período foi um desenvolvimento sem precedentes. Nos
estados Unidos, prevalecia um modelo chamado de regulação fordista onde
ocorria uma produção em massa, com um consumo de massa, cuja manutenção se
por um regime salarial em que o crescimento dos salários acompanha em certa
proporção o crescimento dos ganhos de produtividade e num quadro de vínculos
trabalhistas estáveis e de, praticamente, pleno emprego. Os eventuais conflitos
sociais eram regulados por um Estado de Bem-Estar Social que assegura
mecanismos de distribuição a bens e serviços sociais. Para Canário houve uma
associação entre o desenvolvimento econômico e a elevação da escolaridade das
populações nessa época, gerando, nos países desenvolvidos a construção da escola
de massas. Esse modelo sofreu forte baque nos anos setenta, com a crise do
petróleo que marcou por um lado o fim das ilusões do progresso e de outro, uma
constatação da impossibilidade da escola a fazer juz às suas promessas.
A sociologia da reprodução” colocou em evidencia a função de
manutenção das desigualdades exercida pela escola, além disso, a expansão da
escolarização não se traduziu na ampliação do bem-estar aos países em
desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Canário aponta o paradoxo de que, ao
democratizar o acesso, tornando-se menos elitista a escola passa a ser vista como
aparelho ideológico do Estado que assegura a reprodução social das desigualdades
através de mecanismos de violência simbólica (2008, p.76).
95
Chega então a época denominada por canário como “tempo das
incertezas”. As mudanças, econômicas, políticas e sociais afetaram a relação dos
sujeitos com a escola e com o mercado de trabalho: passou-se de uma relação
marcada pela previsibilidade para uma relação em que predomina a incerteza.”
(Canário, 2008, p.76). Em termos econômicos, assistimos ao declínio dos Estados
Nacionais e ao deslocamento do poder para os grupos econômicos internacionais e
os organismos supranacionais. É a globalização da economia, que se traduz ainda
na progressiva liberalização dos mercados, que trouxe como consequência, uma
submissão das políticas estatais frente a uma economia capitalista que não
reconhece fronteiras. As alterações econômicas promoveram também
transformações políticas numa redefinição do papel do Estado.
O campo educacional é afetado por todas essas mudanças.
Está em causa a criação de uma nova ordem que altera e torna
obsoletos os sistemas educativos concebidos num quadro estritamente
nacional. As suas missões de reprodução de uma cultura e de uma
força de trabalho nacionais deixam de fazer sentido numa perspectiva
globalizada. A finalidade de construir uma coesão nacional cede,
progressivamente, o lugar à subordinação das políticas educativas a
critérios de natureza econômica (aumento da produtividade e da
competitividade) no quadro de um mercado único. (Canário, 2008,
p.77).
A ampliação da oferta escolar e a retração no mundo do emprego
promovem uma desvalorização dos diplomas escolares, que leva Canário a falar
da configuração de um “tempo de incertezas. O desequilíbrio entre diplomas e
empregos coloca em xeque o papel da escola.
Para Canário, então, haveria três facetas numa problematização da escola
atual: sua obsolescência na relação com o saber – cumulativo e revelado; sua falta
de sentido para os atores sociais que a freqüentam e a perda de legitimidade social
pela reprodução das desigualdades.
Os professores e os alunos o, em conjunto, prisioneiros dos
problemas e constrangimentos que decorrem do ficit de sentido das
situações escolares. A construção de uma outra relação com o saber,
por parte dos alunos, e de uma outra forma de viver a profissão, por
parte dos professores, têm de ser feitas a par. A escola erigiu
historicamente, como requisito prévio da aprendizagem, a
transformação das crianças e dos jovens em alunos. Construir a escola
do futuro supõe, pois, a adoção do procedimento inverso: transformar
os alunos em pessoas. (2008, p.80).
96
ainda a necessária distinção entre a Educação Infantil e o restante da
escolaridade básica em um contexto ocidental contemporâneo:
Enquanto a escola se coloca como o espaço privilegiado para o
domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de Educação
Infantil se põe sobretudo com fins de complementaridade à educação
da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e
como o objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da
aula; a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas
travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a
criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o momento em que entra na
escola). (Rocha, 2001, p. 31).
Para a autora torna-se possível, a partir destes aspectos, o estabelecimento
de diferenças entre a escola, a creche e a pré-escola, a partir da sua função social
definida pelo contexto social. Não se trata ainda, segundo Rocha de estabelecer
uma “diferenciação hierárquica ou qualitativa”. (opcit, p. 31).
Pretendo, ao final desta tese, ter contribuído, ainda que de forma limitada
ao meu campo de análise, para a desconstrução desses limites que impõem
constrangimento aos sujeitos envolvidos no dia-a-dia escolar, através da análise
crítica de sua gênese e de seus processos de manutenção que se revelam em
estratégias e táticas de poder.
O capítulo a seguir procurou fazer a articulação dos conceitos trabalhados
neste com a empiria, buscando analisar as ações dos sujeitos a partir deste
referencial.
4.
Entrecruzando Planos de Análise: em Busca das Tensões que
Desvelam a Empiria
As crianças são enviadas
primeiramente à escola não com a
intenção de que aprendam algo, mas
com a de habituá-las a permanecer
calmas e observar pontualmente o
que lhes é ordenado, para que mais
tarde não se deixem dominar por
seus caprichos.
26
Partindo da proposta bakhtiniana de estabelecer relações dialógicas
possíveis entre dois discursos, pretendo identificar nos textos escritos e falados e
nas práticas das culturas escolares e infantis o que é expresso a respeito do
processo que transforma crianças em alunos, tomando ambas categorias em sua
dimensão social, a primeira enquanto categoria geracional e a segunda como uma
das principais categorias identitárias para as pessoas de pouca idade.
Se, como pano de fundo da tese, temos Bakhtin e sua concepção de
linguagem e Vigotski através do recurso ao pensamento dialético, para avançar na
abordagem da empiria este capítulo recorre aos conceitos de Foucault, de Certeau,
da Sociologia da Infância (especialmente através de Corsaro e Sarmento) e de
Sacristán: as culturas infantil e escolar serão tomadas como textos que dialogam e
permitem identificar estratégias de poder e táticas de resistência nas práticas
observadas, assim como suas influências na subjetivação dos sujeitos.
A idéia de contrapor os “textos” produzidos pelas culturas infantis e
escolar apoia-se também no estudo das lógicas que movem os fazeres cotidianos,
tal como proposto por Certeau (1994) que, ao analisar as relações colonizadoras
espanholas (p.94) ou ainda a reação da sociedade às exigências de consumo, traz a
potência de ação daqueles tidos como mais fracos:
Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em
outro registro: Permaneciam outros no interior do sistema que
assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificavam-no sem
deixá-lo (...) Aquilo que se chama de vulgarização ou degradação de
uma cultura seria então um aspecto, caricaturado e parcial, da
26
Kant, 1991, p. 30 2.
98
revanche que as táticas utilizadoras tomam do poder dominador da
produção. (Grifos do autor, 1994, p 95).
Inegavelmente a escola desempenha um papel fundamental ao agir no
sentido de promover as individualizações disciplinares que engendram
subjetividades mais ou menos adequadas ao modelo de sociedade em que estão
inseridas. Foucault, ao tratar do poder disciplinar, fala da formação de corpos
dóceis (1997). Fica claro, no entanto que o conceito de docilidade não se iguala ao
de obediência, mas a uma maleabilidade que leva o sujeito a reconhecer a ação
disciplinar como natural e necessária. Veiga - Neto (2007, p.62), define o que
Foucault entende por poder: “uma ação sobre ações”, mas alerta que esse não é o
foco principal do filósofo, o poder interessa como operador que permite o
entendimento da subjetivação em suas redes.
Tratar das culturas escolares em sua dimensão de dispositivos pedagógicos
permite enxergá-las enquanto estratégias do poder disciplinar disseminado. Vê-las
como discurso, permite identificar a maneira como colocam em circulação os
poderes.
O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina,
expõe, debilita, permite barrá-lo. Da mesma forma o silencio e o
segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições: mas também
afrouxam seus laços. (Foucault, 1996, p. 96).
4.1 Foucault e Certeau: uma Analítica da Disciplina e da Resistência
uma relação evidente entre as idéias de Certeau e o conceito de poder
disciplinar desenvolvido por Foucault. É disso que vamos nos ocupar, por hora, na
tentativa de partir de um diálogo implícito para ampliá-lo até o nível das palavras
das crianças e professores da Escola Municipal Tancredo Neves.
Foucault, na sua fase genealógica, desenvolveu os conceitos de poder
disciplinar e biopoder. Para nosso estudo, interessa especialmente o primeiro,
considerando sua dimensão de aplicação ou da produção de seus efeitos através
das técnicas, dos instrumentos e das instituições.
A capacidade de circulação do poder mostra que ele é exercido
potencialmente por todos os sujeitos e que estes são, ao mesmo tempo, detentores
e destinatários do poder. “O poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles
99
(...) o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu” (Foucault, 1999, p. 35).
Nesse ponto, Certeau complementa o conceito ao tratar daquilo que não possui
visibilidade: a capacidade anônima de resistência presente na vida cotidiana. Para
ele, os sujeitos se apropriam e ressignificam os objetos de consumo culturais ou
materiais e este processo revela uma astúcia daqueles que compõem uma espécie
de “rede de uma antidisciplina” (Certeau, 1994, p. 42) manifesta através da
resistência ou da inércia.
Na Invenção do Cotidiano (1994), Certeau dialoga com Foucault, de
Vigiar e Punir (1977), mostrando as resistências que subvertem os instrumentos
do poder de seu próprio interior. Ao olhar para o cotidiano, Certeau revela as
“microresistências que fundam microliberdades” (Giard, 1994, p.19). Esse
recurso, escondido pelas estratégias de poder, é o que a ação das crianças vai
mostrar na sua relação com a disciplina escolar que funda subjetividades de
alunos, ao mesmo tempo que cria recursos para resistir a esse modelo de
subjetivação, abrindo espaço para a criação, o novo, o inesperado. Observar os
espaços sociais pequenos e cotidianos pode se revelar uma ferramenta de análise
das táticas de resistência a uma reprodução que uniformiza.
Foucault elege o poder a objeto de estudo a partir de algumas precauções
metodológicas. A primeira delas se traduz na concretude das instituições
analisadas. Não se trata de um poder central ou soberano, mas daquele que se
exerce milimetricamente nas instituições tocais como os conventos, os asilos ou as
prisões. Além disso, a preocupação com o seu exercício efetivo, como ele se
mostra na sua objetivação, ou na forma como produz efeitos. Foucault reconhece
a dinâmica do exercício de poder no fato de que ele transita entre os agentes
sociais, não permanecendo como propriedade de um grupo ou de outro. Interessa
o movimento que parte do pequeno para o maior, dos mecanismos específicos,
concretos para aqueles mais globais. Por fim, o poder é relacionado ao saber com
os seus mecanismos de produção e acúmulo.
Ora, se o poder consiste em relações de força, múltiplas e móveis,
desiguais e instáveis, é evidente que ele não pode emanar de um ponto
central, mas sim de instâncias periféricas, localizadas. Ao lado da
impossibilidade da centralidade, está a impossibilidade da unidade. O
poder está, ao mesmo tempo, em todos os pontos do suporte móvel
das correlações de força que o constitui; está em toda parte, na relação
100
de um ponto com outro, enfim multiplica-se e provém,
simultaneamente, de todos os lugares. (Pogrebinschi, 2004, p.188).
O conceito de disciplina em Foucault é aproximado ao de uma tecnologia
para o exercício do poder, ela “comporta todo um conjunto de instrumentos, de
técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou
uma anatomia do poder...” (Foucault 1977, p 177). Desta forma, a disciplina
transforma o esforço necessário para o assujeitamento num gasto mínimo
necessário de energia. Ela otimiza e potencializa as técnicas de poder. Para
Foucault, os dispositivos disciplinares seriam: a vigilância, levada ao seu ponto
máximo no panóptico de Benthan
27
, a sanção normalizadora, ou castigo
disciplinar e, por fim, o exame, que permite qualificar, classificar e punir,
tornando os indivíduos visíveis e assujeitados.
Gondra (2009) se propõe a uma releitura de Vigiar e Punir (1977) a partir
das aulas de Foucault no Collège de France em 1973 e publicadas no Brasil em
2006 com o tulo de o poder psiquiátrico”. Para ele, o poder disciplinar se
organiza a partir de três características:
Em primeiro lugar, teríamos uma apropriação total ou exaustiva dos
corpos, dos gestos, do tempo e do comportamento dos sujeitos. A
disciplina começa a ser o confisco geral do corpo, do tempo e da
vida.” (Gondra, 2009, p. 71).
O olhar permanente é a garantia de continuidade do poder disciplinar
até o ponto em que ela se internaliza, tal como um hábito e pode
funcionar de forma virtual. O papel dos exercícios, no adestramento
dos corpos, e da escrita, para registros dos comportamentos e
transmissão do saber acumulado sobre cada sujeito, tornam-se
relevantes.
um ordenamento hierárquico claro nos elementos componentes do
poder disciplinar.
27
Pan-óptico é um termo utilizado para designar um centro penitenciário ideal desenhado pelo
filósofo Jeremy Bentham em 1785. O conceito do desenho permite a um vigilante observar todos
os prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados.
101
Para Gondra, essa forma de conceber o poder e suas formas de
funcionamento implica em que os sistemas disciplinares apresentem como
características:
uma fixação espacial, a extração ótima do tempo, a aplicação e a
exploração das forças do corpo por uma regulamentação dos gestos,
das atitudes e da atenção, a constituição de uma vigilância constante e
de um poder punitivo imediato, enfim a organização de um poder
regulamenta que, em si (...) é anônimo, não individual, resultando
sempre em uma identificação das individualidades sujeitadas. (2009,
p. 72-73)
O conceito de biopoder vem somar-se ao do poder disciplinar,
complementando-o. De um lado, a ação sobre o sujeito, de outro, sobre as
populações. Para o sujeito, a sanção; para o coletivo, a regulamentação. O
biopoder não intervém no corpo do indivíduo, mas nos fenômenos coletivos
dizem respeito à população através de mecanismos que medem, prevêem e
calculam. Assim, para Foucault o poder e o saber guardam uma estreita ligação.
A função repressora deixa de ser o principal atributo do poder. Ele cria e
recria numa rede múltipla de inúmeras possibilidades. Neste ponto, podemos
convidar Certeau (1994) ao debate através de seus conceitos de estratégias e de
táticas, que podem funcionar como categorias analíticas para operar com as
práticas encontradas no campo, considerando a assimetria existente nas relações
entre adultos e crianças ou entre as diferentes culturas trazidas aqui para debate.
Certeau chama de estratégia:
o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder
(uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição cientifica)
pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser
circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as
relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. (Grifos do
autor, 1994, p. 99).
Para o autor, a tática se diferencia da estratégia pela ausência de uma
delimitação que lhe forneça autonomia, ela não possui um projeto global, “opera
golpe por golpe... o que ganha não se conserva... Em suma, a tática é a arte do
fraco” (Certeau, 1994, p. 100 – 101).
Enquanto o sistema disciplinar, tal como definido por Foucault, incide de
forma implacável sobre a vida do sujeito em todas as instituições pelas quais
transita sejam elas a família, a escola, o hospital, o exército ou as prisões, Certeau
102
chama atenção para os processos antidisciplinares, ou seja, as práticas dos sujeitos
comuns que podem rearranjar o que fôra imposto ao cotidiano pela racionalidade
técnica. Através de pequenas astúcias e táticas de resistência, o sujeito é capaz
recontextualizar elementos estabelecidos pelo poder que disciplina, estabelecendo
novos usos ou diferentes combinações. Certeau reconhece que essas práticas ou
táticas permanecem inscritas nos limites de um repertório preestabelecido, e que
às vezes, acabam por criar novas regras, mas ele exalta a importância delas na
geração de multiplicidade e diversidade nos espaços sociais, que tendem à
integração da diferença pela homogeneização disciplinar
Ao abordar o discurso, Foucault e Certeau trazem a dimensão espacial
como mefora: a linguagem é uma construção arquitetônica onde os sujeitos se
movimentam e interagem. Para Foucault, entretanto, o discurso é uma estratégia
de dominação:
suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade”
(1996, p.4)
Foucault se dedica às microfísicas do poder, garantia do controle e da
ordem, pois, para ele, o discurso não é um conjunto de signos, elementos
significantes que remetem a conteúdos e representações, mas um conjunto de
práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que
queremos nos apoderar. (1996, p.10).
Embora partindo de perspectiva diferente, Bakhtin contribui para nossa
reflexão sobre o discurso, pois, embora a linguagem seja constituidora do sujeito,
ela é também uma corrente contínua que se estabelece num fluxo permanente de
diálogos que relacionam o que está sendo dito ao que veio antes e ao que lhe
sucederá.
O enunciado sempre cria algo que, antes dele, não existia, algo novo e
irreprodutível, algo que está relacionado com um valor (...) Entretanto,
qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa dada (...) O
dado se transfigura no criado (BAKHTIN, 2000, p. 348).
Esse espaço de manobra previsto por Bakhtin na criação do novo a partir
do já dado pode significar a brecha por onde o sujeito ordinário de Certeau
103
reintroduz a possibilidade de ruptura ou subversão da ordem. Metaforicamente
podemos supor que o discurso em Foucault tende ao imobilismo, à fixação,
enquanto para Bakhtin e Certeau ele se movimenta no mundo concreto das ações
rotineiras diante da possibilidade de novas combinações ou enunciados, não
necessariamente falas inaugurais, mas um reordenamento daquilo que está posto.
A enunciação do narrador tendo integrado na sua composição uma
outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e
composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua
própria unidade sintática, estilística e composicional, embora
observando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia
primitiva do discurso de outrem, sem o que ele o poderia ser
completamente apreendido (BAKHTIN, 2002, p. 145).
Assim, enquanto Foucault preocupa-se em ancorar sua pesquisa no
discurso instituído, colocando as formas ordinárias de discurso fora do seu campo
de estudos, Certeau, por sua vez, fundamenta sua abordagem na linguagem do
cotidiano. Assim como Bakhtin, Certeau propõe que o significado está
necessariamente vinculado ao cotidiano da linguagem, e não apenas à sua
produção institucional.
Embora reconheça o jogo da estratégia, Certeau acredita que o controle da
história e das práticas cotidianas é, porém, uma ficção, pois a existência das
táticas torna o discurso um ato performativo, um lugar praticado, ou seja, um
lugar onde o sujeito dialoga e interfere no discurso institucional, tornando o
controle apontado por Foucault uma ficção.
Josgrilberg (2005) situa a posição de Certeau como oposta às antinomias
escrito/oral, parole/langue, enunciado/enunciação, pois a questão central está na
tensão entre a gramática que controla e a enunciação que a atualiza”. (p. 96).
Que essa digressão sobre a forma de entender e tratar o discurso não nos
desvirtue do aspecto fundamental: o que está em jogo para Certeau e Foucault são
as questões relativas ao poder, ainda que expressas através do discurso. O que os
afasta é a forma de conceber os micropoderes e as microrrelações. Se para Certeau
eles modificam os limites da dominação colocada pelo discurso do poder, para
Foucault eles alimentam essa dominação.
Como não se trata, nesta tese, de estabelecer uma filiação teórica a um ou
outro autor, fiquemos com o que eles nos proporcionam como ferramentas
analíticas: com Foucault prestemos atenção às estruturas do poder para identificar
104
o que nelas nos aprisiona . de Certeau vamos aproveitar a idéia das fraturas do
discurso do poder nas quais se insinua a possibilidade de mudança.
Antes de voltar ao campo para verificar como se manifestam o poder
disciplinar, a ação normalizadora, as sanções, os exames, as estratégias do poder e
as táticas de resistência é preciso um desvio no percurso para tratar das culturas
escolar e infantil sob a ótica que se acabou de delinear.
4.2 Culturas Infantis e Cultura Escolar
Vejamos a seguir as concepções de culturas infantis, especialmente
aquelas discutidas no âmbito da sociologia da infância, e as de cultura escolar para
que possamos pensá-las enquanto ticas ou estratégias na sua materialidade
expressa nos eventos registrados no diário de campo.
A opção por apresentar em primeiro lugar as culturas infantis segue a
lógica de que elas antecedem e, eventualmente, reproduzem interpretativamente
28
as culturas escolares.
4.2.1 Infância e cultura: as culturas infantis como recriação do mundo
O contexto atual difere bastante da época inaugural da sociologia da
infância (Sirota, 2001). Segundo Sarmento (2008), o debate que marcou a
constituição do campo parece estar sendo superado. As crianças, como objeto de
estudo sociológico, estão afirmadas enquanto campo do saber. A construção
social da infância, seu paradigma, hoje abriga até mesmo divergências. Sarmento
(2006) traça um mapa conceitual apresentando a sociologia da infância como uma
área da sociologia aplicada, ou ainda como um campo interdisciplinar de estudos
da infância onde entrariam em diálogo a antropologia, a psicologia, as ciências da
educação, a economia, a política, enfim uma ampla gama de saberes. Sarmento
destaca as diferenças entre as perspectivas estruturais, as interpretativas e as
críticas.
28
Conceito desenvolvido por William Corsaro no livro Friendship and peer culture in the early
years. 1985 onde discute que as crianças não apenas contribuem para sua própria socialização, mas
que criam e participam de suas próprias culturas de pares.
105
Para as perspectivas estruturais importa tomar a infância como categoria
geracional, ou seja, sujeitos que pertencem a uma mesma faixa etária ao mesmo
tempo e, por isso, sofrem as mesmas ações da estrutura social que estão inseridos
a agem sobre ela, ao mesmo tempo, apesar da sua possível diversidade. Os temas
privilegiados nessa perspectiva se centram nas áreas das histórias da infância, das
políticas publicas, demografia, economia, direito e cidadania.
As perspectivas interpretativas, por sua vez, embora partam do
pertencimento da criança à categoria social da infância, voltam seus estudos para
os processos de subjetivação criados por elas, nas interações com os adultos e com
os seus pares que as levam a recriar as culturas onde estão inseridas. O conceito
de reprodução interpretativa de Corsaro (1997) é central nessa abordagem.
Segundo Sarmento (2008, p.31), os temas privilegiados o a ação social das
crianças, suas interações, as culturas infantis, a sua participação nas instituições,
as relações entre as tecnologias de informação e as crianças e a cultura lúdica
(Brougère, 1998).
As perspectivas críticas, ou estudos de intervenção (Sarmento, 2008, p.32)
por fim, buscam a emancipação social da infância, pois a tomam como construção
histórica de um grupo que vive condições específicas de exclusão social. Os temas
abordados nessa perspectiva tratam da dominação cultural, patriarcal e de gênero,
assim como os maus-tratos à infância.
A despeito das diferenças conceituais, alguns aspectos podem ser
considerados confluentes na declinação plural da sociologia(s) da infância
(Sarmento, 2008, p. 25). Dentre eles destacam-se as idéias de que a infância deve
ser estudada a partir de seu próprio campo e da autonomia analítica de sua ação
social e não sob uma perspectiva adultocêntrica. Apesar de a infância ser
considerada uma categoria geracional, os aspectos que distinguem as várias
crianças como classe, gênero ou etnia, devem ser articulados em seu estudo. A
configuração sociológica da infância, entretanto, não pode prescindir do conceito
de geração, pois ele se refere a um grupo social intemporal, ao mesmo tempo em
que compreende um grupo de pessoas que viveram em condições históricas
semelhantes e desenvolveu com isso experiências particulares.
106
A consolidação da infância como categoria social se deu historicamente
pela negatividade, por aquilo que não podia falar ou fazer. A sociologia da
infância, por sua vez, veio reafirmar a competência infantil. Outro aspecto de
concordância diz respeito a tomar essa etapa da vida não como uma transição o
que todas as idades seriam - mas como um período em que os sujeitos seriam
atores sociais competentes que se expressariam na alteridade geracional. Sarmento
(2006) observa, nessa proposição, uma crítica à psicologia do desenvolvimento. A
sociologia da infância concorda quanto à necessidade de estudar as crianças como
categoria social mais afetada por condições estruturais como desigualdades
sociais, guerras ou ausência de políticas sociais.
As crianças são vistas como produtoras de cultura e exprimem através dela
suas percepções e interações com os pares ou os adultos. As culturas infantis
apresentam especificidades como os modos com que o lúdico e o faz-de-conta são
incorporados. Quanto às instituições voltadas para as crianças, observa-se a ação
que configura o ofício de criança, determinando padrões de “normalidade” para o
desempenho social. Os processos de socialização desenvolvidos nesses espaços
tentam se processar de maneira vertical.
Especialmente significativo no trabalho institucional é o papel da
escola e o trabalho pedagógico que "inventou o aluno" (...) e
"institucionalizou a infância" (...). Mas as instituições são também
preenchidas pela ação das crianças, seja de forma direta e participativa
seja de modo intersticial, isto é, seja através de um protagonismo
infantil (com ação influente), seja como modo de resistência, nos
espaços ocultos ou libertados da influência adulta - no decurso da qual
se realizam processos de socialização horizontal (comunicação
intrageracional), e se exprime a "ordem social das crianças".
(Sarmento, 2006, s.p.).
Prout (2004) faz críticas severas às fragilidades da sociologia da infância.
A principal diz respeito à manutenção das dicotomias da sociologia moderna:
estrutura e ão, natureza e cultura, ser e devir/em formação. O autor propõe que
os estudos concentrem-se no “terceiro excluído” dessas dicotomias.
Em sua análise, Prout ressalta que o surgimento da sociologia da infância é
contemporaneo das mudanças que caracterizariam a modernidade tardia que
trouxe sérias questões para as teorias sociais.
a Sociologia tentava manter-se a par de um complexo conjunto de
mudanças sociais anteriormente delineadas e que abalaram os
pressupostos modernos que lhe haviam servido de base durante quase
107
todo o século anterior. O problema era que a teoria social moderna
nunca havia proporcionado muito espaço à infância. A Sociologia da
Infância via-se, por essa razão, a braços com uma dupla missão: criar
espaço para a infância no discurso sociológico e confrontar a
complexidade e ambiguidade da infância enquanto fenômeno
contemporâneo e instável. (2004, p. 5-6)
Assim, num momento em que a sociologia precisava se reinventar para dar
conta dos fenômenos que analisava, a sociologia da infância entrava em cena
armada com os instrumentos que estavam sob re-elaboração nesse contexto. A
idéia de infância como estrutura e das crianças como atores sociais, por exemplo,
é herdeira de uma sociologia moderna que já se encontrava, naquele momento, em
movimento de aproximação à modernidade tardia e o consequente descentramento
dos sujeitos. Para superar as oposições dualistas, Prout recorre à teoria de
ator/rede
29
e à teoria da complexidade
30
para discutir as relações inter-geracionais
ou os estudos longitudinais das diferentes etapas da vida. Para ele, é necessário
que os estudos da infancia superem a oposição natureza/cultura, uma vez que o
social e o biológico tem implicações recíprocas em todos os níveis.
A dialética vigotskiana, a meu ver, antecipou essa discussão, superando-a
através do reconhecimento da relação entre os pólos aparentemente opostos das
dicotomias. A superação dialética permite, por exemplo, um reconhecimento da
natureza na cultura e vice-versa, mostrando sua mútua implicação e as mudanças
qualitativas decorrentes dessa relação. O sujeito se constrói como humano a partir
do uso que faz da linguagem o signo como ferramenta e altera suas
características biológicas como decorrência dessa construção. O cérebro humano
em suas conexões não pode ser pensado como resultante exclusivo de uma
dimensão ou de outra, ele é fruto do processo histórico de constituição da
humanidade.
29
A teoria ator-rede foi elaborada no campo de estudos da ciência e tecnologia. Seu objetivo é
atender ao princípio de simetria instaurado pela antropologia das ciências, defende a idéia de que,
se os seres humanos estabelecem uma rede social, não é apenas porque eles interagem com outros
seres humanos, mas com outros materiais também. uma multiplicidade de materiais
heterogêneos conectados em uma rede que tem múltiplas entradas, está sempre em movimento e
aberta a novos elementos que podem se associar de forma inédita e inesperada. Todos os
fenômenos são efeitos dessas redes que mesclam simetricamente pessoas e objetos, dados da
natureza e dados da sociedade, oferecendo-lhes igual tratamento.
30
A teoria da complexidade mostra que a realidade é não linear, caótica, catastrófica e difusa e
deve ser vista de forma não somente quantitativa, mas, principalmente, qualitativa. Entender um
fenômeno é compreendê-lo, não por suas partes, mas pelo seu contexto totalizante.
108
O olhar sobre as crianças na escola não será portanto direcionado por um
único campo de saber, pois como reconhece Prout:
Uma das implicações práticas imediatas daquilo que defendo é a
necessidade de intensificar a interdisciplinaridade dos estudos da
infância. O campo é significativamente interdisciplinar graças aos
contributos de áreas como a Sociologia, Geografia Humana,
Antropologia, História e outras. Existem, porém, áreas cujo diálogo
interdisciplinar é fraco. Uma delas é a Psicologia, a qual constituiu, de
alguma forma, o obstáculo maior em relação à Sociologia da Infância:
crianças enquanto indivíduos versus crianças enquanto social. (2004,
p.13)
A pesquisa sobre a infância no Brasil conta com um número expressivo de
produções recentes. Dentre estes, destaco alguns Delgado e Muller, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenam um grupo de pesquisa
chamado Crianças, Infâncias e Culturas CIC, cujas pesquisas contemplam a
diversidade e a alteridade dos grupos de crianças como temática central (2007,
2006, 2005), ressaltando as culturas em diferentes contextos de educação.
Problematiza a participação das crianças nas ruas e na cidade, em diferentes
instituições e nas análises históricas sobre as representações das infâncias. As
investigações sobre as culturas infantis e a construção de representações sobre as
infâncias, em diferentes contextos históricos, contribui para a descoberta das
múltiplas diferenciações e desigualdades que envolvem o termo infância e para a
variada forma do ser criança historicamente. A metodologia de pesquisa com
crianças recebeu contribuições significativas deste grupo.
O Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância
(NUPEIN) da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenado por Candal
Rocha conduz projetos de pesquisa que pretendem aprofundar o conhecimento
sobre as instituições que atuam na educação de crianças entre zero e seis anos,
suas práticas e organização, buscam também subsidiar a elaboração de políticas
para a área e participar de fóruns e associações (Cerisara, Rocha e Silva Filho,
2002). Outro aspecto considerado é o trabalho de formação de educadores nos
diversos níveis: graduação, pós-graduação e formação em serviço.
Gouvêa, na Universidade Federal de Minas Gerais, compõe o Grupo de
Estudos e Pesquisas em História da Educação, coordenado por Faria Filho, que
tem abordado os processos históricos da educação brasileira e, mais
109
especificamente em Minas Gerais, nos seus diversos momentos e espaços. As
pesquisas dão ênfase ao processo de constituição, consolidação e legitimação da
escola, em sua relação com demais instâncias sociais. Dentre as produções deste
grupo, destaco para o debate desta tese Faria Filho, Gonçalves e Vidal (2004) no
definição da cultura escolar como categoria de análise.
O grupo de pesquisa Linguagem, cultura e práticas educativas, sob a
coordenação de Goulart da Universidade Federal Fluminense, trabalha na
dimensão cultural das políticas e práticas educativas que envolvem a linguagem
oral e escrita, tanto na perspectiva do processo de ensino-aprendizagem, quanto da
formação de professores e do currículo, englobando a produção de linguagem na
alfabetização, no ensino fundamental (incluindo a educação de jovens e adultos) e
na Educação Infantil (Goulart, 2009a, 2009b, 2007). A pesquisa de Borba, no
doutorado (2005), contribuiu para a compreensão de como as crianças, na relações
entre si e nos espaços-tempos do brincar, constituem suas culturas da infância,
concebidas como formas de ação social sobre o mundo pelas quais se identificam
como um grupo de pares. A partir de uma perspectiva etnográfica, o estudo
acompanhou um grupo de crianças de quatro a seis anos, situado em uma unidade
municipal de Educação Infantil de Niterói.
O INFOC Infância, formação e cultura, coordenado por Kramer, no qual
se insere essa tese, desenvolve pesquisas na área da Educação Infantil tendo como
referencias principais Mikhail Bakhtin, Lev Vigotski e Walter Benjamin que
fornecem as bases teóricas para uma compreensão da educação, da infância e da
formação, fundamentadas na psicologia, na sociologia e na história. Nesta
abordagem, o conceito de infância se situa no centro da concepção de história de
Benjamin: a criança é sujeito da linguagem e da cultura e cognição; ética e
estética são alicerces para a compreensão das interações de crianças e adultos na
cultura contemporânea. Além desses autores, as contribuições da antropologia e
da sociologia da infância permitem compreender crianças e adultos e suas
interações no mundo contemporâneo. As pesquisas realizadas trataram de
alfabetização, leitura e escrita, políticas públicas de Educação Infantil e anos
iniciais do ensino fundamental, formação de seus profissionais, interações de
crianças e adultos na cultura contemporânea. A pesquisa atualmente em curso
110
“Educação Infantil e Formação de Profissionais no Estado do Rio de Janeiro:
concepções e ões” (Kramer, 2008) tem o objetivo de conhecer, numa
perspectiva macro, a situação da infância, das políticas de Educação Infantil e da
formação dos profissionais nos municípios do Estado do Rio de Janeiro e, numa
perspectiva micro, conhecer interações e práticas entre adultos e crianças em
creches, escolas de Educação Infantil e escolas de ensino fundamental em cinco
municípios do Estado do Rio de Janeiro que concentram grande população de
crianças na Educação Infantil.
4.2.2 A cultura escolar como um texto
A cultura escolar tornou-se categoria de análise e campo de investigação
dos estudos da educação brasileira a partir da emergência do debate sobre a
cultura em geral traduzida em práticas constitutivas da sociedade. A temática
sensibilizou pesquisadores de áreas distintas, desde lingüistas a historiadores e
sociólogos. O campo educacional entrou no debate trazendo para investigação a
cultura escolar. Faria Filho et alii (2004), a partir de um cuidadoso levantamento
do estado da arte, apontam o artigo de José Mário Pires Azanha, "Cultura escolar
brasileira: um programa de pesquisa", publicado em 1991 na Revista da USP,
como situado nesse campo. Partia de uma interrogação sobre a crise em educação
e propunha um inventário das práticas escolares, de maneira a realizar um
mapeamento cultural da escola, atento à sua constituição histórico-social. O texto
concedia destaque:
à função cultural da escola em face da diversidade da clientela, às
relações entre saber teórico e saber escolar e às conexões entre vida
escolar e reformas educativas. Demonstrava a proficuidade do
conceito na operacionalização de análises sobre a instituição escolar a
partir de diferentes vertentes do conhecimento pedagógico. (Faria
Filho et alli, 2004, p. 141).
Dominique Julia, em seu artigo: "A cultura escolar como objeto histórico",
traduzido para o português pela Revista Brasileira de História da Educação em
2001, definia a cultura escolar como:
um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e
condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
111
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas
ou simplesmente de socialização). (Julia, 2001, p. 10).
Julia expande os limites do conceito para extramuros, mostrando o quanto
a sociedade foi contaminada pelos modos de pensar e agir engendrados por
práticas escolares. E ainda, não deixava de fora das culturas escolares as culturas
infantis, senão vejamos:
Enfim, por cultura escolar é conveniente compreender também,
quando é possível, as culturas infantis (no sentido antropológico do
termo), que se desenvolvem nos pátios de recreio e o afastamento que
apresentam em relação às culturas familiares. (Julia, 2001, p.11).
A proposta do autor era contrapor à teoria da reprodução de Bourdieu e
Passeron, uma leitura das práticas cotidianas. O artigo propunha o estudo da
história das disciplinas escolares, constituída a partir de uma ampliação das fontes
tradicionais em direção à análise de textos normativos.
Para Chervel (1990), a escola produziria um saber específico com efeitos
sobre a sociedade e a cultura. A categoria disciplina escolar extrapolaria a sala de
aula e os conteúdos trabalhados nela, uma vez que ela determina um fenômeno de
aculturação de massas, tornando-se objeto da história cultural. As disciplinas
exercem então um papel duplo: formam não somente os indivíduos, mas também
uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da
sociedade global.
Forquin destacou a discussão sobre os conteúdos eleitos para compor as
disciplinas escolares; escolha que já revelava uma arbitrariedade decorrente de
fatores simultaneamente ideológicos, sociais e políticos. Interessou-se por
observar as relações entre o currículo oficial, o currículo real e o currículo
efetivamente aprendido. Analisou também o processo de transposição didática,
instrumento através do qual se transforma o conhecimento científico em
conhecimento escolar, para que possa ser ensinado pelos professores e aprendido
pelos alunos. Forquin hesitava, no entanto, entre tomar a cultura escolar como
uma cultura “segunda” (1992, p.33), derivada ou transposta ou pensá-la como
"verdadeiramente produtora ou criadora de configurações cognitivas e de habitus
originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura
escolar sui generis" (Forquin, 1992, p. 35).
112
António Viñao Frago conceitua a cultura escolar como as diferentes
práticas que ocorrem nas escolas envolvendo alunos, professores e funcionários,
assim como as normas de funcionamento e a teorias de conhecimento ensinadas.
Para ele, a cultura escolar é uma categoria que engloba tudo o que acontece no
interior da escola. “Alguien dirá: todo. Y sí, es cierto, la cultura escolar es toda la
vida escolar: hechos e ideas, mentes y cuerpos, objetos y conductas, modos de
pensar, decir y hacer”. (Viñao Frago, 1995, p. 69). em outro texto, Viñao
Frago se aproxima da idéia de conformação das subjetividades através dos
mecanismos escolares especialmente do espaço e do tempo fabricados pela escola
como mecanismos sociais que condicionam as significações e os modos de
educação. O espaço é visto como lugar e o tempo como um símbolo social
resultante de um longo processo de aprendizagem humana. Assim, o que qualifica
o espaço físico e o constitui como lugaro as formas de sua ocupação:
O “salto qualitativo” que leva do espaço ao lugar é, pois, uma
construção. O espaço se projeta ou se imagina; o lugar se constrói.
Constrói-se “a partir do fluir da vida” e a partir do espaço como
suporte; o espaço, portanto, está sempre disponível e disposto para
converter-se em lugar, para ser construído. (Viñao Frago, 1998, p.61).
Para Viñao Frago haveria tantas culturas escolares quantas instituições de
ensino, e sua função seria prover os sujeitos de modos de pensar e atuar pautados
em estratégias para serem desenvolvidas tanto nas aulas como fora delas de forma
integrada em suas vidas cotidianas. (2000, p.100). Em síntese, para o autor tratar-
se-ia de um conjunto de práticas, normas, idéias e procedimentos expressos em
modos de fazer e pensar o cotidiano da escola.
Pérez Gómez, apoiando-se em Sacristán (1995), por sua vez, afirma:
... considerar a escola como um espaço ecológico de cruzamento de
culturas, cuja responsabilidade específica, que a distingue de outras
instituições e instâncias de socialização e lhe confere sua própria
identidade e sua relativa autonomia, é a mediação reflexiva daqueles
influxos plurais que as diferentes culturas exercem de forma
permanente sobre as novas gerações, para facilitar seu
desenvolvimento educativo. (Pérez Gómez, 2001, p.17).
Fica evidente a preocupação do autor em encontrar na escola aquilo que
extrapola o currículo oficial. São várias culturas presentes no processo de
escolarização, e é esta multiplicidade que sentido e consistência ao que alunos
vivenciam na prática escolar. A escola faria uma “mediação reflexiva” entre: a
cultura crítica contida nas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas; a cultura
113
acadêmica, expressa pelo currículo; a cultura social, constituída pelos valores
hegemônicos sociedade; a cultura institucional, presente nas pressões cotidianas,
nos papéis, normas, ritos e rotinas; e, finalmente, a cultura que ele denomina
experiencial, que é aquela adquirida individualmente pelo aluno através da
experiência nos intercâmbios espontâneos com seu meio (Pérez Gómez, 2001,
p.17). Apesar de desmembrar o conceito de cultura escolar, Pérez Gómez não
deixa de estar referindo-se a ela, e ampliando a compreensão de seu conceito
quando trata do encontro das várias culturas apontadas no espaço escolar.
Para esta pesquisa, é interessante destacar que na cultura institucional, a
disciplina, a avaliação, as tradições, os costumes, acabam por reforçar as crenças e
valores ligados à vida social das pessoas que convivem na escola. Os estudantes
vivem em determinado contexto antes de iniciar sua escolarização e esta sua vida
é carregada de artefatos culturais, práticas e significados, recebendo influencias da
família e do seu meio. Esta configuração prévia dos alunos antes da escola e que
continua a ser elaborada de forma paralela ao espaço escolar é o que Pérez Gómez
(2001, p.205) vai chamar de cultura experiencial: a cultura do estudante é o
reflexo da cultura social de sua comunidade, mediatizada por sua experiência
biográfica, estreitamente vinculada ao contexto, o que não se dá de maneira
acrítica. Para ele, a escolarização é uma espécie de contraposição às vivências dos
estudantes, proporcionando uma visão crítica - ligada à cultura hegemônica, mas
nem por isso sua cópia fiel - da sociedade onde estão inseridos. (Pérez Gómez,
2001, p.205).
4.2.3 Sacristán: o currículo como dispositivo de poder e a invenção do aluno
Numa ou noutra abordagem um elemento está sempre presente quando o
objeto de estudo é a escola: o reconhecimento de uma cultura própria dessa
instituição. Cultura que a conforma de uma maneira muito particular, com uma
prática social própria e única cujos principais elementos constitutivos seriam os
atores (famílias, professores, gestores e alunos), os discursos e as linguagens
(modos de conversação e comunicação), as instituições (organização escolar e o
114
sistema educativo) e as práticas (pautas de comportamento que chegam a se
consolidar durante um tempo).
Diante do panorama apresentado fica claro que variações nas
concepções teóricas adotadas, mas, para tomarmos a categoria da cultura escolar
como elemento de análise, vamos considerar que a escola é uma instituição que
possui discursos e formas de ação construídas historicamente, como decorrência
dos confrontos e conflitos provocados pelo choque entre as determinações
externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e gestão,
nas suas práticas cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores.
Um dispositivo da cultura escolar que merece uma análise específica, por
suas conseqüências estruturais, é o currículo Para Sacristán (2000, p. 17) o
currículo deve ser visto como a expressão de um equilíbrio entre interesses que
atuam sobre o sistema educativo e é ele quem realiza os fins da educação no
ensino escolarizado. Sua proposta é tomá-lo como um artefato cultural que precisa
ser decifrado que é carregado de valores. Não é suficiente analisá-lo em sua
acepção mais direta como “seleção particular de cultura (...) conteúdos
intelectuais a serem aprendidos.” (2000, p. 18). Pois, os currículos
especialmente os da educação obrigatória – traduzem um projeto socializador
desempenhado pela escola.
A escola educa e socializa por mediação da estrutura de atividades que
organiza para desenvolver os currículos que têm encomendados –
função que cumpre através dos conteúdos e das formas destes e
também pelas práticas que se realizam dentro dela. (2000, p. 18)
Sacristán destaca a relevância que os contextos concretos adquirem para o
estudo do currículo, pois ele se molda:
dentro de um sistema escolar concreto, dirige-se a determinados
professores e alunos, serve-se de determinados meios,, cristaliza enfim
num contexto, que é o que acaba por lhe dar o significado real. Daí
que a única teoria possível que possa dar cota desses processos tenha
de ser do tipo crítico, pondo em evidencia as realidades que o
condicionam. ( 2000, p. 21)
Nessa concepção, o currículo extrapola o campo pedagógico e se insere no
campo das práticas políticas, administrativas, de criação intelectual, de avaliação
entre outras, pois, o significado ultimo do curriculo é dado pelos próprios
contextos em que se insere” (Sacristán, 2000, p. 22). O currículo é ainda o
115
mediador na relação entre professor e aluno, ele fixa seus lugares em relação á
transmissão do saber e define as identidades a partir dessa posição.
O autor destaca a função formadora do currículo que pretende refletir o
que seria o esquema socializador da escola. O currículo tem uma materialidade e é
essa dimensão que importa analisar é a do currículo em ação, sua práxis. Assim,
as tarefas escolares representam:
Ritos ou esquemas de comportamento que supõem um referencial de
conduta (...). Este caráter social das tarefas empresta-lhe um alto poder
socializador dos indivíduos, pois através delas se concretizam as
condições da escolaridade, do currículo e da organização social que
cada centro educativo é. (2000, p. 205).
Veiga – Neto (2002) propõe que o currículo deva ser problematizado
através das relações que mantém com as ressignificações do espaço e do tempo,
ou seja, o currículo foi engendrado para favorecer uma ordem e uma
representação fundadas em lógicas específicas de tempo e espaço. O autor lembra
que a palavra disciplina inicialmente tinha um único significado – discere pueris –
o que se dizia às crianças, na modernidade, entretanto, o termo pôde ser pensado
sob dois enfoques, um voltado para os saberes e outro para o controle dos corpos.
Veiga – Neto atribui ao currículo uma função disciplinar.
Se, por um lado, é o currículo que a sustentação epistemológica às
práticas espaciais e temporais que se efetivam continuamente na
escola, por outro lado, são as práticas que dão materialidade e razão de
ser ao currículo. (Veiga – Neto, 2002, p.172).
A disciplinaridade é o elemento articulador entre as práticas e o currículo,
através dela se dão as operações de docilização dos corpos infantis e a
organização dos saberes em conjuntos delimitados as disciplinas. Outro aspecto
essencial do currículo é sua função como “... dispositivo subjetivante, envolvido
na gênese do próprio sujeito moderno”. (Veiga – Neto, 2002, p.171)
Sacristán (2005) realiza uma importante análise da construção da categoria
social de aluno e de sua identificação à categoria geracional de infância através da
naturalização do processo:
Aceitamos como natural e como certo o que acontece e vem dado,
quando tudo é produto de uma trajetória que poderia ter tomado outro
rumo (...). O aluno, como a criança, o menor ou a infância, em geral,
são invenção dos adultos, categorias que construímos com discursos
que se relacionam com as práticas de estar e trabalhar com eles.
(Grifos do autor, 2005, p. 13).
116
As duas categorias foram construídas socialmente, ao mesmo tempo, de
forma que uma parece ser a condição natural da outra nas sociedades
escolarizadas. O autor ressalta, no entanto, a não universalização das categorias, o
que ocultaria mais do que esclareceria os processos a que estão submetidas: assim
como infâncias, alunos, no plural. A maneira de ser criança afetará a forma
como se é aluno e vice-versa (Sacristán, 2005, p. 22). Convém destacar, no
entanto, a naturalização da condição de aluno que conduz ao o questionamento
sobre o que significa estar nessa situação que, como bem lembra Sacristán “é
contigente e transitória”. (2005, p 13)
Para Sacristán, a forma como espaço e tempo o administrados em nossa
sociedade vai configurar uma dada forma de ser e estar no mundo. A escola e suas
práticas tem papel fundamental na estruturação desses eixos subjetivos. A própria
idade é um referente fundamental no eixo do tempo que é apropriado pelas
práticas escolares como elemento organizador.
Elevando a condição de aluno a uma categoria, o autor revela que ao seu
redor formou-se uma ordem social que se traduziu num jeito determinado de viver
o cotidiano que é naturalizado, portanto sem reconhecimento de sua historicidade.
Sacristán critica o tratamento dado ao aluno como objeto de conhecimento, uma
vez que foi repartido entre diversos saberes que não dialogavam entre si. A crítica
se dirige especialmente à psicologia (embora refira-se também à antropologia, à
sociologia, à medicina, entre outras) pois esta foi marcada pela tendência à:
primeiro “descrevê-lo, normalizá-lo, caracterizando-o; depois (...) regulá-lo
desmembrando-o de sua condição social e cultural (e também escolar)” (2005,
p.14)
O mais grave é a equivalência que se estabelece entre os conceitos de
criança e de aluno, como se a segunda pudesse conter a primeira, dando conta de
sua complexidade e fornecendo os elementos necessários ao estudo desta como
objeto do saber.
O modelo de pesquisa a ser seguido para o que Sacristán denomina de
“determinações do sujeito infantil (2005, p. 17) aproxima-se, em certa medida,
ao esforço desta tese, naquilo que o autor considera a “tripla atitude inquisitiva”
que implica no interesse pelas condições nas quais os sujeitos vivem,
117
especialmente na busca da forma como se originaram as práticas de relação entre
adultos e crianças na vida cotidiana e nas instituições, não desconsiderando que
essas práticas estão relacionadas a outras mais amplas. Por fim, é necessária uma
análise do discurso que permita identificar desde as crenças do senso comum até
os discursos científicos sobre as crianças interpretando os modelos representativos
desta etapa da vida.
Avaliando o desenvolvimento humano e sua influência sobre a forma
como concebemos a infância, Sacristán destaca o peso que o pensamento
evolutivo tem nessa questão. O processo também naturalizado pressupõe uma
sucessão de etapas que conduziriam o sujeito humano da incapacidade total à
plenitude adulta, pois, nessa perspectiva:
Tornar-se adulto é ter o poder de dispor de um corpo mais
desenvolvido, de falar, de escolher; Ter mais independência nas
formas de viver, maior utilidade social, mais liberdade, mais saber,
mais responsabilidade, etc. (2005, p. 46).
Sacristán endossa a tese foucaultiana sobre a determinação que os regimes
de verdade acabam por desempenhar nas crenças sobre o que é possível de ser
feito, pois ao mesmo tempo que falam sobre o que é o desenvolvimento,
produzem como efeito este mesmo modelo, desenvolvendo-nos – de maneira geral
- de forma evolutiva, transformando a esfera do privado em objeto da ciência.
Logo:
A criança, objeto científico da psicologia evolutiva – e por extensão o
aluno – é uma construção que ela faz dando-lhe uma determinada
identidade. (Grifos do autor, 2005, p. 47)
A aproximação entre as condições de aluno e de criança torna-se ainda
mais explícita se pensarmos na função da escola como aquela que vai desenvolver
as capacidades desse sujeito incompleto dirigindo-lhe rumo à plenitude adulta. Ser
aluno acaba sendo alçado a uma condicionalidade de ser sujeito.
Ao serem enviados para a escola as crianças aprendem que ser aluno é
ser estudante (aquele que estuda) ou aprendiz (aquele que aprende)” (Sacristán,
2005, p. 125) e isso deve ser expresso por comportamentos característicos dessa
categoria social. Sacristán reconhece, entretanto, um espaço de resistência das
crianças na cultura de pares. Ao serem segregadas do mundo adulto e
118
institucionalizadas na escola, nasce uma cultura, que corresponde ao nicho
ambiental dos iguais.
A experiência dividida em dois nichos é uma oportunidade para se
proteger do controle total dos pais e professores. Entre os ambientes
familiares e escolares, em que se pode se esconder, nasce um terceiro
que pode se tornar independente de ambos: o do grupo de iguais.
(2005, p. 58).
O pensamento de Sacristán aproxima-se ao de Certeau quando reconhece
que a institucionalização não garante o pleno controle sobre os sujeitos, antes
disso, ao contrário, ela mesma dará motivos para que seja um espaço de
resistência que reforçará (...) a comunidade dos iguais.” (2005, p. 58).
Aspectos como o a hierarquização das crianças pela adequação ao que se
espera delas, as regras, as normas, os rituais e as aprendizagens subjacentes ao
processo de escolarização serão observados na tese como elementos constituidores
da identidade de aluno, ao mesmo tempo, será analisada a maneira como as
crianças se apropriam dessas experiências. Pois, de acordo com Lelis vale
interrogar o
o sentido da escolarização, que é pessoal e coletiva, e que confere ao
aluno/ator a possibilidade de construir significados, efetuar escolhas,
mover-se no interior da escola mediante um saber fazer, pois a escola
não produz apenas qualificações e competências, ela contribui para
que os indivíduos tenham disposições e atitudes (2005, p.138).
5.
Entretecendo os Textos a Partir do Contexto
Passava os dias ali, quieto,
no meio das coisas miúdas.
E me encantei.
Manoel de Barros
33
A feitura deste capítulo trouxe uma dificuldade adicional à escrita: como
apresentar os achados do campo sem parecer que a pesquisa se constituía num
juízo de valor sobre as práticas das profissionais de ensino? Em vários eventos
apresentados aqui parece inevitável o convite para que o leitor julgue a ação das
professoras, como se a responsabilidade pelo processo educacional terminasse
nelas e não envolvesse os gestores e as políticas públicas voltadas a essa questão.
Não podemos perder de vista esta perspectiva que nos relembra, a todo momento,
que os sujeitos destes eventos encontram-se todos, em maior ou menor grau,
assujeitados por discursos que refletem uma cultura que naturaliza uma
escolarização destituída de um sentido ético.
O objetivo da tese era a conjugação entre teoria e empiria para que o seu
diálogo fosse tecendo o corpo de conhecimentos que ela se propõe a desvendar.
De uma maneira geral esse objetivo foi perseguido durante a escrita, mas a
inevitável diferença entre os campos do real e do saber em alguns momentos
terminou por prevalecer. Se os capítulos anteriores, especialmente os dois últimos,
foram essencialmente teóricos, este, bem como o capítulo 2, são voltados para o
campo e seus achados. Ainda assim, as categorias de análise construídas ao longo
do percurso pretendem possibilitar a síntese dialética entre as duas realidades.
Vigotski, como metodólogo escolhido para inspirar esse trabalho, mostra
que a tentativa de análise tradicional, aquela que decompõe o todo em partes
isoladas é inoperante para quem deseja conhecer uma dada realidade. O
pensamento dialético exige uma ação que:
desmembre a unidade complexa (...) em unidades várias, entendidas
estas como produtos da análise que, à diferença dos elementos, o
33
Manoel de Barros em entrevista a José Castello no Jornal da Poesia em
http://www.revista.agulha.nom.br/castel11.html acesso em 15/2/2010.
120
são momentos primários constituintes em relação a todo o fenômeno
estudado, mas apenas a alguns do seus elementos e propriedades
concretas, os quais (...) contém em sua forma primária e simples
aquelas propriedades do todo em função das quais se empreende a
análise ( 2001, p. 397-398).
Este capítulo aborda o campo através de uma analítica da disciplina e da
resistência, colocando em diálogo as culturas infantis e escolar. Busca ainda
analisar as transições e as rupturas vivenciadas na passagem da Educação Infantil
para o Ensino Fundamental e, por fim, estabelece os modelos de relação possíveis
entre esses dois segmentos da Educação Básica.
Uma vez apresentadas as ferramentas teóricas que serão utilizadas é
chegado o momento de fazê-las operar, de novo, na busca da construção de um
conhecimento que revele algo sobre como efetivamente as crianças vivenciam
essa transição da Educação Infantil ao Ensino Fundamental e caminham no
sentido de se reconhecerem enquanto alunas. Para tal serão vistas na empiria as
expressões das culturas de pares, as pressões das ações escolarizadoras e os efeitos
dessa tensão nas ações das crianças.
Mais uma vez peço ao leitor paciência com os eventos do campo que
pareçam longos. Sua inclusão da maneira mais completa é uma componente
importante para a análise dos dados.
5.1 A Ação das Crianças: Expressão das Culturas de Pares
Júlia e Vanessa começam a brincar de fazer cócegas uma na outra e
Júlia finge ter encontrado algo no bolso da jaqueta da colega.
Catarina e Carolina formam outra dupla. Júlia e Vanessa fingem
mascar chicletes e Júlia oferece: “Quer Catarina?”
Carolina, não caindo no truque, responde: “Eu sei que vocês estão
mordendo a língua.” A dupla se afasta.
Júlia, Vanessa e Yasmin ficaram brincando de mascar chicletes e
um carrinho passou a representá-lo. O jogo era colocar o carrinho
na mão da amiga fazendo de conta que estava dando chiclete. Júlia
insiste em reintroduzir Thalita, que estava chateada, na
brincadeira, puxa a sua mão e diz: “Abre a mão, é chiclete.”
Thalita recusa, mas já está com uma carinha mais satisfeita.
Carolina não querendo admitir que ela e Catarina perdiam alguma
coisa, insistiu: “Isso aí é carrinho que eu sei!”
De repente, ouvimos a ordem sob a forma de música: “Arrumar a
salinha...” E imediatamente as crianças responderam em coro: ....
para fazer a rodinha!” (30/8/2007, F1TR).
121
A capacidade de brincar a partir do faz-de-conta pressupõe a adesão dos
envolvidos ao projeto. Dessa forma torna-se possível o desempenho de papéis
onde cada qual tem uma idéia do que deve ser feito e dito. No evento acima,
identificamos uma controvérsia entre as meninas, divididas em dois grupos, e uma
relutância de Carolina e Catarina em participar do jogo. Para Corsaro, “a maior
parte dos jogos de papel entre dois e cinco anos é sobre expressão de poder”
(2009, p 35). Carolina e Catarina ao se recusarem a ceder aos desejos de Júlia
participando da brincadeira, utilizam seu poder de forma a desmanchá-la, afinal
desfazer o combinado implícito (havia um chiclete de faz-de-conta) é romper com
a sequência possível do jogo, alterando as relações de poder e submissão
necessárias ao exercício da liderança. De qualquer forma, essa é uma maneira das
crianças exercitarem diferentes maneiras de se relacionarem.
Os jogos de poder e a construção de regras compartilhadas são dois
aspectos de um processo que parecem permanentemente em conflito:
Na hora do parque, um grupo de meninos foi jogar futebol. Havia um
único gol, João se escalou para goleiro. A marca foi feita com
chinelos e Wellington tentou fazer um gol bem largo, João
reclamou.
Wellington: João me deixa ser goleiro uma vez?
João: Não!
Alguém gritou um palavrão. Lídia brigou com Paulo que defendeu-se
dizendo que não havia sido ele, mas o Kauã (que é seu irmão). Lídia
chamou o Kauã. Richard queixou-se: tia, o Kauã está querendo me
bater!
Rubens propôs: Vamos brincar de queimada?
João respondeu: Ô Rubens, depois você enche o saco para brincar
de olezinho.
Rubens foi sentar-se e André perguntou: Não vai brincar mais não?
Rubens: Não.
Luís convidou o Rubens: Vamos embora brincar de navio?
Porém, foi embora sem esperar resposta.
Caio e Wellington brigaram durante o jogo, Luís avisou à
professora, enquanto isso, Rubens (que havia voltado ao jogo)
empurrou Richard que começou a chorar. Denis arrumou a bola para
o jogo continuar, porém Caio passou e a carregou. Richard
continuava chorando.
Liliane entrou pelo meio do jogo, ficou parada lá, como se quisesse
participar, a bola era arremessada pelo parque todo. Antônio e
Edmundo disputavam a posse da bola. Caio pegou a dividida e João
deu a ordem: Chuta daí Caio!
Paulo pegou a bola com a mão. João se estressou com Caio: Pô Caio!
Caio se aproximou ameaçador, perguntando: Qual é o problema?
João recuou..
Wellington caiu e chutou o Renan que reclamou: Ai!
122
Wellington desculpou-se: Foi sem querer.
João pegou a bola e ninguém foi tirá-la dele Liliane sentou-se no
quiosque. Richard começou a chorar mais uma vez: o Wellington
enfiou o dedo no meu olho! André foi ajudá-lo.
Rubens tentou chutar a bola para o outro lado da cerca e Renan
reclamou: A gente ia ficar sem bola!
Caio era o único que se impunha ao João e cobrou o tiro de meta.
//Pareceu começar uma aliança dos dois//
Denis bateu na bola com a mão duas vezes e foi questionado por
Caio: com a mão?
Caio viu os colegas de sua turma do ano passado que desceram e
sorriu para eles. Rubens fez um gol e João retrucou: Não valeu!
Eles passaram na hora! O pênalti não é por sofrimento! Vai à m...
Não valeu, tinha que marcar na marca do pênalti. Richard deu uma
barrigada na bola e João foi até o meio do jogo buscar a bola. Caio
reclamou: João, você já é goleiro, não pode vir buscar a bola aqui no
meio!
João rebateu: Pode sim!
Richard não acertava uma bola. Queixou-se com Caio: Pô, você
chutou a bola e me chutou também!
Caio respondeu: Ô moleque não fiz nada contigo não. Vai pegar
rapaz!
Alguém gritou: falta!
João confirmou: Falta!
Renan pediu: João dá falta em mim também.
William parou a bola e cobrou, marcando: Golaço!
João: Não foi! Não foi gol não!
William voltou para o meio do campo depois desistiu e foi andar
sobre o muro.
Acabou nosso tempo de parque. Perguntei aos meninos qual foi o
placar e cada um disse valores diferentes. Para João a partida foi
de zero e completou orgulhoso: Eu fui o goleiro.
Outros disseram: 10 a 8, 50 a 3... (23/3/2008, F1TR).
A negociação de regras entre as próprias crianças é tarefa muito complexa
para uma partida só. As crianças que já exercem alguma liderança conseguem
impor suas decisões, estabelecendo uma “moral” própria para o jogo que não se
necessariamente compartilhada por todos os participantes. Durante esta
observação, cheguei a pensar que João tivesse trazido a bola de casa, o que não se
confirmou, a bola era da Educação Infantil e a professora a havia emprestado para
que o primeiro ano jogasse. Entretanto, a lógica infantil difere da do adulto num
aspecto relevante: a submissão de alguns se mais num nível aparente do que
real. Embora cedessem a alguns desejos de João, o grupo de meninos não
reconheceu seu placar e esboçou reação à sua tirania através de Caio, que, no
entanto, estabeleceu uma aliança com o der deixando os outros meninos sem
uma representação mais forte. De qualquer forma, a dizer pelos placares
123
divergentes, trataram-se de dois jogos simultâneos que ocorreram num mesmo
evento: o jogo pela ótica de João e pela ótica dos demais meninos.
Entre as meninas, por outro lado, era comum o exercício de uma
feminilidade associada às questões de estética:
Júlia falou que passaria o batom na Yasmin, mas passou em si
mesma. Vanessa cuidadosamente limpava o que ficou borrado na
boca de Júlia e falou: “Para de passar! A tia falou que não pode.”
Júlia tenta aproximar Vanessa de Yasmin: “Cheira aqui o cabelo
dela. Es cheiroso!” Olhando o trabalho com massa de Vanessa
exclamou ainda: “Que bonitinho!” Vanessa havia modelado um
regador e uma cesta. (F1TR 12/11/2007).
Os papéis são desempenhados de maneira estereotipada, revelando uma
visão do feminino associado a preocupações com a beleza, a maquiagem, o jeito
dócil de agradar à outra, enfim, um modelo de mulher fútil e “boazinha”, que
figurou por muito tempo no imaginário social.
Entre 2007 e 2009, os eventos observados na escola pesquisada não
apresentavam brincadeiras de jogos de papel, eventualmente elas apareciam
misturadas à brincadeira de aproximação-evitação, onde os meninos
desempenhavam papéis de animais ferozes, este era, porém, mais um código do
pique do que um exercício de papéis propriamente dito. As brincadeiras no
parque geralmente incluíam correr, jogar bola, brincar com os poucos
brinquedos existente um escorregador e uma gangorra. Não havia brinquedos
que pudessem funcionar como suporte da imaginação: bonecas, carros, panelas,
casa de bonecas, ou qualquer espécie de objeto que não fosse trazido pelas
crianças de casa. Estes, por sua escassez, geralmente geravam mais disputas do
que brincadeiras. O pouco tempo dedicado ao parque também não favorecia este
tipo de interação. Na Educação Infantil, as crianças frequentavam o parque
diariamente, desde que não estivesse chovendo, durante trinta a quarenta
minutos e nos anos do Ensino Fundamental, a ida se limitava a uma vez por
semana durante trinta minutos.
Se, como afirma Corsaro, “a cultura de pares é um conjunto estável de
atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e
compartilham na interação com os seus pares. (2009, p. 32), de que forma a
proposta pedagógica desta escola possibilita essa importante interação? Ao não
124
disponibilizar recursos materiais, espaciais e de tempo, para que as crianças
brinquem e interajam livremente, o que isso diz do papel da escola? O tempo
dedicado ao que é escolarizado recebe atenção, recursos (mesmo que parcos) e
valor. Aparentemente, na escola pesquisada se deseja ter alunos e o
necessariamente crianças.
5.2 Os Corpos como Elementos da Fabricação de Alunos
Uma semana após o início das aulas que marcou tão claramente a ruptura
nas práticas da educação Infantil e do Ensino Fundamental, a pesquisa continuou.
No segundo dia de observação no ano, percebi que as crianças estavam bem
mais ajustadas ao comportamento desejado nessa nova etapa. Havia um cartaz na
parede contendo os “Nossos combinados”, ou seja as regras definidas para o bom
funcionamento da turma. Não me pareceu ter sido elaborada pelas crianças, pois
trazia alguns conteúdos muito presentes nas falas dos adultos:
Brincar sem brigar.
Respeitar os professores e colegas.
Jogar lixo na lixeira.
Não correr ou andar pela escola (sic).
Esperar a vez de falar. (20/3/2008, F1TR)
Estava explicitado ali o que se esperava de cada um e, de certa forma, aos
poucos, as crianças já iam lidando com as novas regras de maneira mais eficaz:
Caio cutucou William que cutucou André para passar a mochila para
ele., isso foi feito escondido da professora. Percebi que as crianças
agora quando desejam falar com outra criança que não está na fila
seguinte, não chamam mais alto, mas pedem para a criança que está
entre elas para chamá-la. (7/04/2008, F1TR).
A forma de utilização do próprio corpo revelava uma aprendizagem; a sala
de aula, no Ensino Fundamental, era um espaço no qual os movimentos deviam
ser mais contidos, as vozes deveriam ser reguladas num volume mais baixo, os
movimentos não autorizados ou não participantes das ações escolarizadas
deveriam ser feitos de maneira rápida e sutil, preferencialmente quando a
professora não estivesse atenta aos envolvidos na comunicação. Percebe-se aqui
uma sujeição dos corpos infantis á lógica das culturas escolares que conformam
um tipo de subjetividade bem específica: a do aluno.
125
Com Foucault (1977, p. 133), vemos que o corpo é uma superfície que
sofre as ões das relações de poder e de suas tecnologias específicas. Como
dimensão material, o corpo preexiste ao sujeito, sendo o caminho necessário para
os processos subjetivantes que formariam um “ser”, produto e prisioneiro do
próprio corpo.
O exercício produzido sobre o corpo pelo poder disciplinar cria um
ambiente no qual outro cenário é imediatamente visto como anormal, fora da
norma. A disciplina explicita as regras, o corpo deve cumpri-las.
A pesquisadora estava no parque com as crianças sob cuidados da
professora do e períodos. Um aluno de sua turma ficou preso
entre as traves do balanço. Bastou um segundo que ela se descuidou
dele. Ela foi correndo socorrê-lo e depois me contou que ele é
problemático, assim como a irmã, mas não foi ainda ao neurologista,
disse ainda que ele anda na ponta dos pés. Em seguida, me mostrou
outro aluno de sua turma e disse que ele era um menino mau, para
quem ela fazia oração todos os dias e que ele brincava igual a bicho,
de baixo das mesas. Ele se aproximou e pediu para tirar o casaco. A
professora não tirou. (30/8/2007, F1TR).
Segundo Gondra (2009) o higienismo tornou-se uma ciência reguladora do
corpo prescrevendo as maneiras que deveriam ser o ambiente natural e a relação
dos corpos e das funções vitais. O corpo visto então sob as dimensões do corpo-
anatomia/fisiologia, corpo-neurologia e corpo-vontade.” (p.80). A escola tem
papel relevante na ação higienista, atuando, ainda que de maneira distinta, na
tripla dimensão.
A atividade partilhada é responsável por produzir significações que, ao
serem apropriadas, criam o plano do sujeito, ou seja, sua consciência. A
consciência de si se desenvolve mediante a internalização dos signos e através do
processo de significação, que traduz as condições de funcionamento da sociedade,
suas estruturas de relação e suas práticas sociais. A significação permite a
conversão de um fato natural em cultural que passa, dessa forma, do plano social
para o plano individual (Pino, 2000). O corpo ao sofrer a ação da significação
atribuída a ele pelas culturas escolares sujeita cada uma das crianças a um modelo
de normalidade que, introjetado, regulará suas ações e possibilitará a construção
de uma idéia de si, mais ou menos adequado ao projeto disciplinar. A consciência
reflete o mundo objetivo, sendo uma construção subjetiva, portanto peculiar, da
realidade. A formação e desenvolvimento do psiquismo humano se fazem com
126
base em uma crescente apropriação dos modos de pensar, sentir e agir
culturalmente elaborados.
A questão relativa à aprendizagem dos gêneros também se processa
através do corpo. No capítulo 2 vimos algumas especificidades do comportamento
de meninos e meninas como as diferentes formas de exercícios do poder, a
ocupação espacial das brincadeiras, a maneira de lidar com objetos que conferiam
algum prestígio ou status ao seu possuidor entre outras.
Chegou a hora do pátio. Descemos em filas separadas por nero e
Lídia organizou a brincadeira entre os meninos, participando com
eles de “o macaco mandou”, depois a brincadeira foi de chicotinho
queimado. As meninas ficaram num canto brincando de roda.
(7/04/2008, F1TR).
As filas por gênero eram uma rotina desde a Educação Infantil. Sempre
nos deslocávamos pela escola numa fileira de meninas e outra de meninos, cada
qual de um lado da professora. Entre as aprendizagens escolares estava também,
sem dúvida, a de como se constituir um sujeito masculino ou feminino. A
possibilidade da reprodução interpretativa, entretanto, inseria uma margem de
transformações nos papéis desempenhados.
Era dia de Cosme e Damião
34
e a escola estava vazia. A professora
deixou que as crianças brincassem no pátio. Juntei-me ao grupo que
era composto por Vanessa, Carolina, Júlio César, Rubens e Antônio.
Nesse momento, meninos e meninas interagiam , enchendo um balde
com terra., o que não era muito comum. Carolina mandava, definindo
o quê cada um faria. Rubens começou a querer virar o balde e lio
César não deixava. Primeiro ameaçou: Assim eu não mostro onde
tem mais areia!
Rubens pediu: Mostra?
Júlio César: Não.
Rubens avançou sobre o balde para virá-lo, Júlio César o recuperou
rapidamente dizendo: a Vanessa gostou daqui; ela que inventou a
brincadeira!
Enquanto isso, os outros três estavam próximos ao escorrega
juntando mais terra para o grupo.
Júlio César definiu: O fogão é aqui!
Rubens derrubou enfim o conteúdo do balde, Carolina contrariada
reclamou: Vai esvaziar tudo? Então vou lá com a Vanessa!
Rubens argumentou: Depois faz mais.
Júlio César propôs: Vamos fazer pudim de banana?
Rubens, no entanto, não queria brincar disso e a discussão durou
até que Rubens negociou, brincaria de comidinha, mas quem definia
34
Santos da Igreja Católica, reverenciados também pela Umbanda, cuja celebração inclui
distribuição de balas e doces para as crianças.
127
o cardápio era ele: Esbem, estou arrumando, estou fazendo um
brigadeirão.
Júlio César: Minha mãe faz um brigadeirão...
Júlio César subiu na tela de proteção do parque, enquanto Rubens e
Antônio colocavam terra no brigadeirão. Júlio César arranjou uma
linha de pipa que estava emaranhada na tela. As meninas se
aproximaram, trazendo mais terra em um saco de biscoito furado.
Antônio perguntou a elas: Vamos fazer uma casinha para o pudim?
Carolina propôs: Vamos arrumar a festa.
Antônio: Já sei! Parabéns para você.
Antônio pegou a terra do monte e jogou no saco furado, começou
uma briga. lio César se aproximou correndo e falando: Consegui
engaranchar!// ele estava falando da linha que ele conseguiu soltar
da tela.//
Antônio sugeriu: Então balança!
Júlio César foi comunicar sua conquista aos outros: Gente, gente!
Eu peguei! Ah arrebentou! Antônio foi atrás de Júlio César e propôs
que eles brinquem de homem aranha correndo atrás das meninas.
Júlio César tentava reorganizar o grupo em torno de um objetivo
comum: “Gente eu arrumei, vocês o querem brincar de jornada?”
(27/9/2007, F1TR).
Através do jogo de papéis também os estereótipos que revelam
expectativas de gênero são experimentados, desafiados e reconstruídos
socialmente na cultura de pares. Nesse evento, a possibilidade de interação entre
os meninos e as meninas foi reforçada pela baixa freqüência no dia. Interesses em
comum puderam ser compartilhados e até uma brincadeira mais associada aos
papéis femininos – a “comidinha” – pôde incluir meninos e meninas. Entretanto, a
colaboração parecia permanentemente em risco diante da possibilidade de um dos
integrantes do grupo geralmente um menino romper com o combinado,
entornando o conteúdo do balde, indo buscar outro objeto que despertou seu
interesse ou propondo uma outra brincadeira de aproximação-evitação.
Entretanto, não eram apenas os corpos infantis que estavam sujeitos às
exigências do poder disciplinar. Também as professoras eram cobradas quanto às
suas posturas e à altura de sua voz. De certa forma, o gritar em sala era entendido
como uma fraqueza no controle que a professora exercia sobre seus alunos,
devendo a todo custo ser evitado ou escondido. As crianças percebiam isso. Havia
uma combinação implícita de que as turmas não deveriam ser barulhentas. O
controle era sobre as crianças e as professoras e parecia estar disseminado por
todos os lugares. Desde a fala do Coordenador no primeiro dia de aula, não havia
dúvidas quanto à orientação: “disciplina é tudo!” (3/3/2008, F1TR).
128
Kauã começou a brincar de luta com Rubens, Lídia deu uma bronca
bem alta: “Kauã que brincadeira é essa?” Denis, diante do grito
fechou a porta da sala. (10/3/2008, F1TR).
A idéia de que o barulho não deveria estar presente na escola aparece em
vários momentos. Aprender a fazer silencio é um dos atributos do sujeito escolar.
Shophie deitou a cabeça na carteira enquanto Mariana coloria as
folhas. Edmundo, Júlia e Lucas começaram uma bagunça. Richard e
Renan iniciaram uma brincadeira de luta, mas rapidamente pararam.
Caio veio sentar-se ao meu lado, na última carteira, em seguida
levantou-se para conversar com William e Denis. Renan e Richard
sentaram no chão. Wellington deitou na cadeira. Renan e Richard
jogavam algo, me pareceu ser uma borracha. Richard voltou para a
carteira, fingiu comer algo e deu chute e umas palmadas de
brincadeira no Renan. A brincadeira começou a ficar mais
abrutalhada. William amassou a folha do Kauã, esse se queixou e
Denis disse que foi o Wellington. Lídia avisou que ele ficaria sem
parque. Richard e Renan atenderam ao chamado da professora para
“levarem o caderninho para a tia colar.” Caio balançava a carteira
como se estivesse numa cadeira de balanço. Enquanto Lídia colava a
folha no caderno, Richard fazia polichinelo na sua frente. Lídia
perguntou o que estava acontecendo e Richard voltou para o seu
lugar. (10/3/2008, F1TR).
É impressionante que toda essa atividade aconteça enquanto a sala de aula
parece calma. Não barulho excessivo e nem parece haver confusão. um
dinamismo incessante na sala, mas se alguém passar atrás da porta não terá idéia
do que ocorre ali.
Yasmin e Camilla conversavam o tempo todo em que Lídia não olhava.
Parecia que Yasmin ajudava à Camilla, não ficou claro para mim se
era com a atividade ou não. Depois de certo tempo, Yasmin não
disfarçava mais, sentou-se de costas para a professora. //Será que
Yasmin fez a tarefa?// Denis e Caio começaram a conversar
baixinho também. As crianças descobriram que se conversassem
baixinho não receberiam reprimendas. (10/3/2008, F1TR).
Mesmo quando percebido, o barulho alheio, especialmente se fosse
produzido por um adulto, deveria ficar sem registro:
Alguma professora grita com a turma em outra sala, Júlia
comentou: “Tem alguém gritando aí...” Lídia a repreendeu: “Júlia!”
(7/4/2008, F1TR)..
129
5.3 A Disciplina em Exercício: Exames e Sanções
Para que a disciplina tenha sucesso não é preciso muito: o olhar
hierárquico, o castigo normalizador e o exame. Isso compõe o poder disciplinar e
suas técnicas minuciosas, às vezes íntimas, mas com considerável importância.
Pequenas ações no cotidiano escolar revelam isso. Um olhar severo, uma chamada
de atenção, o apagador que bate no quadro, a falta de direito de ir ao parque,
enfim, um repertório variado de ações destinadas a punir aquilo que escapa ao
comportamento desejado. Segundo Foucault:
Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno
mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de
justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados suas formas
particulares de sanção, suas instancias de julgamento. (1977, p 171).
O efeito educativo da sanção se exerce tanto naquele que cometeu o delito,
quanto nos demais:
João perguntou: “O Wellington vai para o parque hoje?” Lídia
respondeu: “Não, ele vai pensar duas vezes antes de dar um soco no
nariz do amigo até tirar sangue, ainda mais um amigo pequeno como
o André.” (28/4/2008, F1TR).
Um sistema de recompensas é a contrapartida da punição e exerce os
mesmos efeitos. Importa assimilar que “é passível de pena o campo indefinido do
não-conforme” (Foucault, 1977, p 172). Uma dimensão moral atravessa todos os
comportamentos que serão considerados bons” e dignos de recompensa ou
“maus” e sujeitos à punição. Para Foucault, é possível estabelecer uma economia,
um balanço favorável ou não. Assim o que se classifica a partir daí não são as suas
ações mas o próprio sujeito.
A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos
os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia,
hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
(1977, p. 176)
A disposição do mobiliário em sala de aula contribui para o exercício do
controle. As carteiras, de maneira geral, são dispostas em filas, uma atrás da outra,
um espaço na frente reservado para a professora, as amplas janelas transparentes.
De uma forma geral, parece que as coisas estão dispostas na escola de forma a
criar uma rede de olhares que controlam uns aos outros: o professor controla sua
turma, o diretor controla a escola.
130
Foto 1: A sala organizada em fileiras, professora à frente.
Foto 2:As transparências da escola
A fila é um dos elementos cruciais do poder disciplinar, cada sujeito torna-
se uma unidade e cada unidade tem seu lugar determinado. Na entrada, cada
criança procura a fila de sua turma que se organiza de forma sequencial, dos mais
novos até os mais velhos. A cada ano, as crianças mudam de série e adquirem o
direito de passar para a fila ao lado. A fila acaba sendo o organizador que
distingue gênero, idade, tamanho, poder. As crianças aprendem, desde muito cedo
que estar na fila é fazer parte daquele universo, entretanto, ao mesmo tempo que
individualiza, a fila torna seus participantes dispensáveis, pois quando algum
deles falta, ela imediatamente se reconfigura através do deslocamento de suas
unidades. A fila faz, de cada criança, mais um aluno, num espaço serial. Para
atingir os resultados desejados a disciplina demanda que, além do espaço, o tempo
também seja controlado. Essa característica apareceu no campo durante todo o
tempo da pesquisa nas três diferentes turmas, com três professoras distintas:
131
Júlia se aproxima e pergunta à Carmen pela surpresa. Carmen diz
que mostrará na rodinha. Júlia insiste: “Agora!”. Carmen não cede:
“Não Júlia, vou mostrar na hora da rodinha!” (9/8/2007 F1TR)
Os achados de Barbosa (2006) ao estudar a rotina na Educação Infantil,
podem ser estendidos para uma reflexão que se aplique também ao Ensino
Fundamental. A institucionalização que se desenvolveu na modernidade,
demandava uma uniformização dos sujeitos para garantir os resultados desejados
com um menor dispêndio de energia. Assim submeter a todos aos mesmos
horários se traduzia na negação das necessidades individuais em nome de um
sujeito abstrato, genérico e necessário à configuração daquela época. A hoje,
entretanto, as crianças na escola devem sentir fome, vontade de ir ao banheiro, ter
disposição para fazer as tarefas ou desejar brincar nos mesmos horários.
Fomos para o refeitório e retornamos após a merenda para
recolher o material, que o horário de parque seria 15 min antes
da saída. (10/3/2008, F1TR).
Romeu pediu para ir ao banheiro. Ana Maria respondeu: Nem
pensar! Você já foi na hora do leite. (13/4/2009, F1TR).
A rotina escolar traz ainda, como consequência, grande quantidade de
tempo de espera resultante do término de uma atividade antes do horário
previsto para a seguinte e diante da impossibilidade da professora gerenciar o
tempo de sua turma da forma que achar mais conveniente. Esses tempos de nada
devem ser ocupados para que a falta de direcionamento não propicie uma
liberdade criadora que poderia se opor ao rígido controle.
Wellington pegou a vassoura e começou a varrer a sala. Lídia
mandou que as crianças juntassem as cadeiras em pares para
desenharem enquanto aguardávamos a hora de descer. (10/3/2008,
F1TR).
Era comum que as crianças que terminassem a atividade proposta ficassem
sem fazer nada até o restante da turma acabar.
Júlia observava o dever dos colegas que estavam sendo colados.
Sophie deitou a cabeça na carteira enquanto Mariana coloria as
folhas (10/3/2008, F1TR)
Como em tudo o mais, as crianças se apropriavam dessa construção
temporal, reproduzindo-a interpretativamente:
Renan: Você já fez sete anos?
132
Denis: Já.
Renan: Eu também vou fazer sete, depois vou passar para oito,
nove, dez, onze, depois noventa, noventa e um, noventa e dois...
(19/5/2008, F1TR).
As atividades que compõem a rotina escolar ficam permanentemente
submetidas ao horário que, na lógica disciplinar, vai garantir a qualidade do
tempo. A fala dos professores é profundamente marcada por esse aspecto:
tempo para estudar e tempo para brincar. Inevitável a lembrança da fala de uma
criança, de 4 anos, em pesquisa anterior (Motta, 2007, p.117 – 118):
Pesquisadora: As crianças brincam... e o adulto?
Lívia: O adulto não, ele tem que fazer coisa importante.
Pesquisadora: Brincar não é importante?
Lívia: Para as crianças é, mas para os adultos não.
Pesquisadora: Entendi. E quais são as coisas importantes que o
adulto faz?
Lívia: Eles tem que trabalhar, os pais... A minha mãe tem que fazer
muita coisa importante, ela tem que escrever o dia todo.
Pesquisadora: O dia todo?
Lívia: É...
Não como negar que o texto faz sentido em seu contexto, porém, se
inserido na corrente contínua do discurso e num exercício livre de estender o
pensamento de Lívia para a realidade da tese, cumpre perguntar se, em sendo a
escola lugar de trabalhar
35
, especialmente depois do ingresso no Ensino
Fundamental, ela não seria um espaço para excluir as crianças e introduzir os
alunos.
Quando o controle funciona, o necessidade de punição, para isso as
sanções normatizadoras são aplicadas sob a forma de micropenalidades que se
apresentam desde punições sutis até castigos que implicam em privação de
alguma atividade ou em humilhações:
A professora aproximou-se do Caio e deu uma grande bronca nele
por ele estar perdido no ditado, disse que deveria deixá-lo sem
saber. //Caio fica extremamente chateado quando chamam sua
atenção//. (7/4/2008, F1TR)
os exames fazem parte de um ritual que classifica, enquadra, promove
ou reprova em função dos resultados obtidos. Através deles, os sujeitos adquirem
uma visibilidade que individualiza e sanciona. Para Foucault, o exame permite ao
professor além de transmitir o que sabe, construir uma vasta gama de
133
conhecimento sobre seus alunos (1977, p. 179). Estabelece-se assim a ligação
saber-poder que marca definitivamente a sociedade disciplinar e que permite a
construção de um indivíduo documentado, descrito, comparado.
Carlos perguntou: “É hoje a prova?A professora respondeu que o
teste seria no dia seguinte e ia somar com a nota da prova. Lídia
começou a devolver os cadernos de aula e Carlos queixou-se: “Tia, a
Sophie me xingou!”. Sophie respondeu: “Só por que eu fiz o dever
de casa ele disse que os outros são burros”. (28/4/2008, F1TR).
Antes de me dirigir ao 2º ano, passei na sala da Carmen e da Lídia,
ambas me receberam afetuosamente. Lídia contou-me sobre as
reprovações, ressaltando que esse ano Júlia está muito mais
interessada. Os alunos reprovados no ano foram: Júlia, Mariana,
Denis, Lucas e André. (13/4/2009, F1TR).
5.4 Desvelando Alguns Aspectos de Estar Escolarizado
um discurso sobre o desenvolvimento infantil que é profundamente
determinista e naturaliza uma sucessão de etapas que se dariam à margem das
condições históricas dos sujeitos. Contra essa naturalização do processo de
desenvolvimento, Sacristán mostra os efeitos dos regimes de verdade foucautianos
que permitem graduar e rotular os indivíduos. A crítica se dirige-se à Psicologia
do desenvolvimento, pois “A criança, objeto científico da psicologia evolutiva
e por extensão o aluno é uma construção que ela faz, dando-lhe uma
determinada identidade.” (2005, p. 47).
Nessa arquitetura, o currículo cumpre importante ação diante suas
finalidades, tão diversas:
O ensino sim cria certos usos específicos, uma interação pessoal entre
professores e alunos, uma comunicação particular, alguns códigos de
comportamento profissional peculiares (...). Os próprios efeitos
educativos dependem da interação complexa de todos os aspectos que
se entrecruzam nas situações de ensino. (Sacristán, 2000, p.202-203).
Foi possível perceber, de maneira especialmente explícita no primeiro ano
do Ensino Fundamental, uma série de eventos relacionados ao que poderíamos, de
acordo com Moreira e Candau, denominar de currículo oculto, que:
35
O termo trabalhinho é muito utilizado para designar as atividades pedagógicas na Educação
Infantil
134
envolve, dominantemente, atitudes e valores transmitidos,
subliminarmente, pelas relações sociais e pelas rotinas do cotidiano
escolar. Fazem parte do currículo oculto, assim, rituais e práticas,
relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o
espaço e o tempo na escola, modos de distribuir os alunos por
grupamentos e turmas, mensagens implícitas nas falas dos(as)
professores(as) e nos livros didáticos. (2007, p. 18).
É possível articular o currículo oculto, ou as intencionalidades por trás das
práticas, com a idéia de subjetivação em Foucault e buscar nos discursos escolares
elementos para esta reflexão. Podemos pensar sobre o que ocorre na escola,
especialmente dos primeiros anos, como ações disciplinares de produção dos
sujeitos alunos. Para Veiga Neto, para que seja possível analisar o sujeito
pedagógico é preciso partir do fato de que ele não esteve sempre lá, ele foi
construído:
É preciso então tentar cercá-lo e examinar as camadas que o envolvem
e o constituem. Tais camadas são as muitas práticas discursivas e o
discursivas, os variados saberes, que uma vez descritos e
problematizados, poderão revelar que é esse sujeito, como ele chegou
a ser o que dizemos que ele é e como se engendrou historicamente
tudo isso que dizemos dele. (2007, p 112).
A Educação Infantil tem sua contribuição na subjetivação do aluno. Esta
entretanto pode se dar de forma mais ou menos harmônica com a proposta do
Ensino Fundamental. Na Escola observada, para a Educação Infantil geralmente
as atividades relacionadas à escrita partiam de uma história contada e não havia
cobranças relativas à sua correção ou sua disposição na folha. O evento a seguir
serve de contraponto ao que é proposto às crianças no Ensino Fundamental.
Depois de contar a história do rei que queria ser mais poderoso do
que Deus, Carmen encaminhou as crianças para as mesas, para
realizar uma atividade. Explicou o trabalho e foi escrevendo no
quadro, letra a letra, cantando o seu som, D I T A DO I L U S T R
A D O. Ela, entretanto, não leu o conjunto final!
As crianças deveriam desenhar dentro do quadrado a figura pedida
e escrever, “do seu jeito” o nome do objeto. O primeiro objeto era
uma bola, pronunciada com bastante ênfase no bbb e no llll. João
fez rapidamente o desenho e Rubens copiou o que o amigo fez. Os
meninos olhavam os trabalhos uns dos outros. Antônio escreveu
BARNOPITUCOU
, Rômulo escreveu
BALO
, com o B espelhado, João
fez
BOLAU.
A segunda palavra foi ovo. A escrita das crianças ficou assim:
Rubens:
MOVRA
Kauã:
MO
Dudu:
OPC
135
João:
OÃC
Carmen trocou Júlia de lugar com Rômulo e ela se aproximou com o
dever sem fazer. Carmen orientou e ela fez:
1º -
AO
2º -
OO
A terceira figura foi uma espada, Dudu escreveu
PIPA,
Júlia
colocou apenas uma letra, Dudu disse a ela que tinha que ter mais
letras.
A quarta solicitação foi um anel. Todos começaram com a letra
A
,
exceto Júlia que escreveu
EPIPA
(olhando a escrita do amigo). Por
fim, Carmen solicitou que desenhassem e escrevessem pipoca. Dudu
escreveu
PPA.
Terminada a tarefa, as crianças foram lanchar para
em seguida irem ao parque. (13/9/2007F1TR).
Uma das aprendizagens mais relevantes do primeiro ano parecia dizer
respeito ao uso apropriado do caderno, à noção exata de até que ponto da linha se
deve escrever antes de passar à seguinte, quantas linhas pular entre um exercício e
outro, quando mudar de página. Tais comportamentos eram ensinados com
persistência embora o conteúdo explícito da série se referisse à aquisição do
código da língua escrita.
Lídia pediu que as crianças trocassem os cadernos de casa pelos de
aula em sua mesa. Richard mostrou o biscoito que trouxe para o
lanche. A mãe de Camilla veio até à porta trazê-la. Wellington
estava orgulhoso por ser o ajudante do dia e levar os sucos para a
cozinha. Richard estava comentando um filme que passou na
televisão. Lídia falou que passaria um dever para lembrar as vogais .
Em seguida, percorreu as mesas para ver como as crianças faziam a
tarefa. Júlia recebeu um elogio: - “Que lindo!”
Caio e João não escreveram a maiúscula em duas linhas e Lídia os
corrigiu. Não adiantou João fazer referência a um acerto: Tia,
desenhei o elefante no “E”. Percebi que André Silva e Luís estavam
perdidos na tarefa. Richard começou a cantar funk. (23/3/2008,
F1TR).
A idéia da escrita que “fica linda” permite ainda algumas considerações:
qual é o seu propósito? Expressão de um conteúdo o parece ser seu principal
atributo, na medida que sua funcionalidade está em “lembrar as vogais”.
Aparentemente, a escrita é dissociada de sua função comunicativa, logo dialógica,
para assumir uma dimensão que estaria situada no campo da estética tal como o
propõe Bakhtin. Ao escrever, a criança permite à professora, seu outro, um
excedente de visão que revela sua adequação (letra mais ou menos bonita) a um
modelo de sujeito que esse outro espera encontrar.
136
Vimos com Bakhtin (2000) que o acabamento do eu vem de fora, através
da posição exotópica do outro, que emoldura o sujeito inserindo-o em um
contexto. O lugar de onde vejo o outro e de onde ele me é sempre social, o que
no caso da relação professor-aluno, se agrava pela posição de poder que ocupa
esse outro. Através do recurso ao exame, aos registros e às classificações que
acompanharão essa criança, a constituição subjetiva se dapela qualificação de
um aluno adjetivado. Trazendo esse conceito de acabamento, na verdade discutido
como atividade estética, Bakhtin apresenta seu entendimento sobre a
incompletude do ser humano, ou seja, a relação com a alteridade de natureza
constitutiva, não apenas na arte, mas também na vida. Mas, na vida, de maneira
distinta à da arte “ não nos interessa o todo do homem mas apenas alguns de seus
atos com os quais operamos na prática” e, o que é mais grave:
mesmo onde apresentamos definições acabadas de todo o
homem bondoso, mau, bom, egoísta, etc. –, essas definições
traduzem a posição prático-vital que assumimos em relação a
ele, não o definem tanto quanto fazem um certo prognóstico do
que se deve e não se deve esperar dele, ou, por último, trata-se
apenas de impressões fortuitas do todo, ou de uma
generalização empírica precária... (2000, p. 11)
Essa compreensão da relação entre o eu e o outro expressa a concepção
bakhtiniana da importância da alteridade na constituição do ser humano, contudo,
não se pode entendê-la enquanto uma identidade total ente o sujeito e o outro, pois
isso significaria a perda da individualidade do sujeito e do seu lugar próprio. Isso
talvez tenha permitido ao João o reconhecimento do próprio mérito: desenhou o
elefante no E.
Lídia passou para a tarefa seguinte: Pulem uma linha, embaixo da
figura coloquem o número três. Começou um ditado. A professora
pediu: coloquem o número 1. João estranhou: de novo? Lídia
tentou explicar: “é o 1 dentro do 3, onde vão colocar a palavrinha
que eu vou ditar.” (28/4/2008, F1TR).
A sequência dos deveres no caderno também suscitava dúvidas e era
necessária a construção de uma lógica de seriação muito própria à escola para dar
continuidade à tarefa até então desconhecida. Ao mesmo tempo que aprendia a
repartir o escrito em itens e subitens, João denunciava a ruptura entre a lógica do
cotidiano e a da escola, que deveria transformar conceitos espontâneos em
conceitos científicos a partir da mediação da professora. Nesse caso, ao contrário
137
do que aborda Vigotski (2001), a mediação o possibilitava a síntese dialética
necessária ao processo, pelo contrário, a explicação pautava-se na funcionalidade
de cumprir a ordem - onde vão colocar a palavrinha que eu vou ditar e não na
aproximação dos conceitos de diferente natureza.
Por outro lado, a sequenciação nas culturas infantis é elemento participante
de várias brincadeiras: a contagem para se esconderem, o placar de jogos, a
brincadeira de adedanha, entre outras. O subitem, no entanto, é elemento típico da
cultura escolar ou da escrita acadêmica, não pertencendo á realidade imediata das
crianças. Elementos aparentemente semelhantes afinal tratava-se de escrever o
algarismo 1 - referem-se portanto a ordens de discurso distintas, cada qual
produtora de uma escie de subjetivação.
Dentro da mesma escola, havia diferenças significativas nas práticas da
Educação Infantil e do Ensino Fundamental.
Carmen fez uma atividade com a música do “Pai Francisco”. Dividiu a
turma em dois grupos e, ora um era o “Pai Francisco” e outro o
“Senhor Delegado”, ora invertiam-se os papéis. Fui incluída na
brincadeira, participei de tudo que eles faziam.
Depois, Carmen pediu que as crianças escrevessem seus “nomes
novos” (com letra cursiva) e desenhassem os elementos da música
que tínhamos aprendido. Escreveu como título dessa atividade:
ILUSTRAR CANÇÂO PAI FRANCISCO, falando letra a letra
cantando. Algumas crianças escreviam seus nomes no lado oposto da
folha, mesmo assim, continuavam com a mesma folha, que não era
apagada ou substituída, apenas virada para o lado “correto”.
(20/9/2007, F1TR).
A maneira de lidar com o erro era distinta. Enquanto, na Educação Infantil,
ele fazia parte da história daquela aprendizagem, no 1º ano ele precisava ser
“apagado”, dissolvido enquanto processo que deixava de ter sua importância por
uma ênfase exagerada no produto: o acerto.
No evento a seguir vemos uma das crianças do primeiro ano, Mariana,
reproduzindo uma conduta habitual da professora: apagar o texto errado do aluno.
A reprodução interpretativa mostra a menina se apropriando da ação professoral,
ensinando ao colega como se fosse uma adulta.
Lídia passou a tarefa em aula”. Ela consistia em escrever palavras
com p e t tapete, pião, papai, pipa, tutu e no outro exercício, as
crianças deviam desenhar as palavras escritas. Por fim, havia um
trabalho de separar sílabas. Lídia começou a andar pelas carteiras
ajudando as crianças individualmente.
138
A professora ajudava Paulo a escrever a letra “p”: Desce para a
linha de baixo, volta pelo mesmo caminho...”
Lucas recebeu um elogio da Lídia: “Por que apagou? Estava bonito!”
Mariana acabou o dever
Liliane abriu um caderno embaixo da mesa e “colava” as palavras que
não sabia.
As crianças faziam fila para a professora corrigir a tarefa. Mariana
veio ajudar o Kauã. Assumiu um ar professoral, segurou a borracha
e ficava o corrigindo em seus erros, apagando o que considerava
inadequado.
Mariana segurou a mão do Kauã, como Lídia faz e ajudou ele a fazer
a letra “o”. Toda hora Mariana apagava o que Kauã fazia. // Me
lembrei de Penélope desfazendo à noite o que bordara de dia. //
Kauã tentou se rebelar, mas Mariana ficou firme na sua postura:
“Vamos embora, faz logo para dar tempo de fazer mais um dever!”
Mariana e Kauã continuavam o “embate”. Ela mostrava o mural e
dizia: “É o tatu, o t!”
Kauã: “É tatu?”
Mariana: “Não!”
Kauã segurou a borracha e Mariana vencida escreveu em sua folha.
(19/5/2008, F1TR).
Nesse momento o registro fotográfico ainda funcionava como recurso
metodológico complementar à escrita. Entretanto, o texto narrado, quando
ilustrado pelas imagens das crianças adquiriu maior concretude.
Foto 3 – Mariana corrige Kauã (começo)
139
Foto 4 – Mariana corrige Kauã (meio)
Foto 5 – Mariana corrige Kauã (fim)
Ao ter início o uso da escrita no caderno, não mais a colagem das folhas,
havia sempre no quadro branco a marca para pular a linha ou virar a página. Aos
poucos esse movimento de escrita ocidental da esquerda para a direita, de cima
para baixo, foi se fixando como comportamento esperado e conhecido dos alunos.
Antônio disse: “Tia, acabou a linha”. Lídia foi até ele mostrar como
fazer. Denis, apesar de estar repetindo o ano, não sabia usar o
caderno, colocou o dever ao lado do outro. (7/4/2008, F1TR).
Nesse início de ano, a professora circulava bastante entre as carteiras para
mostrar às crianças como escreverem em seus cadernos. Isso era verbalizado
tanto por ela como pelas crianças que perguntavam a todo momento quando
deviam pular linhas ou virar a página.
As crianças começam a trabalhar no caderno e João faz perguntas
para se assegurar de que está fazendo o correto: “Começa aqui?”
A professora respondeu: “Aonde a tia marcou.”
João reclamou: “Tia, a Ludmila está escrevendo!”
140
Júlia a defendeu: “Não está não! “
Lídia explicou: “Ela está adiantando, escrevendo o
em aula
”.
A professora desenhou linhas no quadro e escreveu “Em aula,
28/4/2008” e perguntou: “Hoje é que dia da semana, alguém sabe?”
Rubens e Denis responderam: “2ª feira.”
Denis queixou-se: “Tia, você não me deu o caderno.”
João, compenetrado na tarefa, perguntou: “Pula linha?”
Lídia ia orientando a tarefa e pediu que Edmundo escrevesse com
uma letra menor, pois “só o Edmundo estava ocupando uma linha
inteira.”.
A professora falou: “Estou esperando todos ficarem juntos porque
o nome do próximo dever é grande e eu quero fazer junto com
vocês.”
A professora enfim perguntou: “Escreveram o nome todo? Vamos
começar? Pulem a linha de novo e escrevam o número 1.”
Lídia andava pela sala, olhando as tarefas e elogiou o Luís. Ela
começou a ditar:
“Nº. 1 C. O. M. P...” Ela não falou a palavra inteira, foi dizendo letra
a letra., chamou atenção para o fato da letra p descer até a linha
de baixo. Várias crianças estavam bocejando, Shophie, Antônio,
Wellington...
Os meninos comentavam o jogo de ontem, Flamengo e Botafogo.
Lídia escreveu a palavra “complete” mas não leu para as crianças.
Caio provocou o João: “O Flamengo é mais time do que o Botafogo...”
Caio, perguntou: “João, qual o time que você torce para o Brasil?”
João não entendeu: “Heim?”
Lídia chamou atenção das crianças: “Caio depois a gente conversa” e
leu: “complete com a sílaba” explicando, complete com a sílaba...
Rubens perguntou: “Você não vai pular linha não?”
A professora explicou: “Só quando é um novo dever.”
João perguntou: “Pode continuar na mesma linha?”
Lídia: “Pode.” (28/4/2008, F1TR).
A subjetividade que se produz nesse contexto aproxima-se da fabricação
de um aluno. Note-se que, ao falar de uma produção da subjetividade, estamos
deixando de lado a perspectiva de que ela fosse pré-social, uma vez que se trata de
um processo social permanente que reflete o contexto sociocultural na qual se
constitui (Hardt & Negri, 2001, p.213).
Trazendo essa discussão para a escola, percebemos que ela está inserida de
forma ativa na produção das subjetividades. Ao mesmo tempo em que é
atravessada pelas determinações sócio-históricas, ela contribui para a
configuração do sujeito tanto pelas relações de poder entre professores e alunos,
quanto pela maneira de conceber a aprendizagem e transmitir o saber.
Para efeito de análise, todo enunciado deve ser situado igualmente nos
contextos sociais mais amplos e imediatos. Todo o enunciado se dirige a alguém,
portanto a dinâmica social que envolve locutor e interlocutor se manifestará na
141
enunciação. Na sala de aula, as crianças são capazes de utilizar tipos diferentes de
enunciados quando se dirigem ao professor e quando se dirigem aos seus colegas.
Tomando o evento anterior como um recorte representativo das situações
escolares é possível perceber que trata-se, simultaneamente, de um espaço de
construção de identidades pré-definidas através das práticas discursivas
carregadas de valores e espaço aberto à transgressão. As falas trazidas ali
participam do elo da corrente ininterrupta de comunicação portanto trazem
indícios de outras falas. É possível perceber que as criaas, ao dirigirem suas
falas á professora apresentam duas maneiras de fazê-lo: através de perguntas ou
de queixas sobre algo que escapara ao script definido.
Perguntas: Começa aqui?”, “Pula linha?”, “Você não vai pular linha não?”, “Pode continuar na
mesma linha?”
Queixas: Tia, a Ludmila está escrevendo!”, “Tia, você não me deu o caderno.”
Não espaço nesses diálogos para que as crianças expressem seus
interesses, suas questões ou ainda que estabeleçam um diálogo autêntico e não
uma confirmação de que estão fazendo o que se espera delas. A fala da criança
dirigida ao adulto na situação de aula mostra uma relação bastante assimétrica na
qual o adulto detém o conhecimento e poder.
Nesse mesmo evento, entretanto, quando falam entre si, as crianças
expressam o que pensam, o que lhes interessa e manifestam suas opiniões, seja na
defesa feita por Júlia de uma colega acusada de estar escrevendo - “Não está não!
ou ainda, na provocação de Caio ao João – “O Flamengo é mais time que o Botafogo.”
Para a sociedade disciplinar o controle dos corpos e a escola estão ligados:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação
de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais
obediente quanto é mais útil e, inversamente. (Foucault, 1977, p. 133).
Comportamentos típicos do sujeito aluno ficaram visíveis no primeiro dia
de aula do Ensino Fundamental. As crianças que o compunham a turma da
Educação Infantil do ano anterior possuíam em seu repertório de ações
apropriadas para o espaço escolar o levantar a mão para ser atendido pela
professora, o deitar a cabeça na carteira para esperar o tempo passar a noção exata
de que a sala de aula não comportava brincadeiras que significassem deslocar o
142
corpo pelo espaço, falar alto ou correr. A construção desse repertório se deu de
forma progressiva a partir da mudança do ano.
É fácil ver a analogia entre as operações disciplinares que visam à
docilização dos corpos – principalmente infantis, no caso da escola – e
as operações que visam à organização dos saberes. Em qualquer caso,
são operações de confinamento, quadriculamento, distribuição,
atribuição de funções, hierarquização. Em qualquer caso, trata-se
sempre de organizar economicamente o espaço e o tempo. De um lado
– no eixo do corpo –, o objetivo é maximizar a força útil do corpo e do
trabalho que dele se extrai, à custa da menor força política que sobre
ele se aplica. De outro lado no eixo dos saberes –, o objetivo é
maximizar a inteligibilidade, à custa da menor dispersão e
indeterminação dos saberes. (Veiga – Neto, 2002, p. 172).
As implicações para os sujeitos da aquisição desse código de conduta se
farão sentir ao longo da vida escolar ou pessoal. A ação disciplinar, portanto
avançava para o controle dos corpos, em busca de torná-los cada vez mais dóceis.
5.5 Crianças e Alunos: o Cotidiano e as Táticas de Resistência
Certeau pensa o cotidiano a partir do que ele apresenta enquanto
possibilidade de invenção. Corresponde a uma dimensão histórica na qual o
sujeito comum elabora práticas de interpretação do mundo construindo pequenas
resistências e pequenas liberdades com as quais subverte a racionalidade do poder.
Para o autor, os sujeitos encontram uma maneira sutil e silenciosa para criar
brechas na opressão, ou seja, na construção do cotidiano, as crianças não serão
meras reprodutoras de padrões socioculturais vigentes. “Esse modos de proceder
e essas astúcias de consumidores compõem, no limite, a rede de uma
antidisciplina...” (1994, p. 41-42).
Se as táticas se traduzem em maneiras de fazer, onde o “fraco” se apropria
dos elementos destinados a ele e cria uma nova sintaxe, vamos examiná-las nas
ações das crianças na escola. Para Certeau, a tática:
...só tem por lugar, o do outro. Ela se insinua , fragmentariamente
sem apreende-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distancia . Ela não
dispõe de base onde capitalizar seus preparar suas expansões e
assegurar uma independência (...) o que ela ganha não guarda. Tem
constantemente que jogar com os acontecimentos para transformá-los
em ocasiões. (1994, p. 46-47)
Ao mesmo tempo em que aprendiam a ser alunos, as crianças descobriam
seu poder de resistência. Várias foram as manifestações dessa potência. As
143
maneiras de fazer as atividades escolares se traduziam numa gama de
acontecimentos transformados em ocasiões:
A tarefa consistia em riscar no papel as letras a e circular as letras
e. Lídia cantava uma música para distinguir os sons do ‘e’, referindo-
se aos sons ê e é, pensei logo no som de i, que nem foi citado.
Durante a atividade a professora incentivava, elogiava e consertava
com as crianças o que estava incorreto. Em vários casos, fazia
junto, segurando a mão da criança.. Júlia parecia ter dificuldades
de fazer a tarefa, conversava, levantava. Fazia cara de exausta.
Júlia tentou outra estratégia, ela riscava todas as letras e ia
mostrar para a professora que a corrigia: - Não, essa é a letra t...
Com esse movimento, Júlia observava o dever dos colegas que
tinham terminado e que estavam sendo colados em seus cadernos.
(15/3/2008, F1TR)
Antes mesmo de dominar a leitura e a escrita, Júlia havia aprendido a
“colar” como tática de sobrevivência na escola. Assim como este, outros
exemplos revelam que as crianças não se submetem de maneira passiva ao que aos
códigos da cultura escolar, pelo contrário, se apropriam deles e os ressignificam
através da cultura de pares.
A professora viu algo que Caio estava fazendo e brigou: Caio está
fazendo gracinha? Está sem recreio!” Caio revoltado abaixou a
cabeça. Lídia continuou a atividade: “Pulem uma linha, vamos para o
número 4”. E pediu que escrevessem o alfabeto em letras
minúsculas. Não vi o que houve com o Caio, escutei a bronca da
professora, dizendo que ele estava sem recreio. Caio ficou
revoltado, sentou-se com a cabeça baixa, abraçou a cabeça com as
mãos. (28/4²008, F1TR)
É interessante observar que o ato que tem como função original comunicar
submissão deitar a cabeça e esperar silenciosamente a próxima atividade foi
utilizado por Caio para expressar a raiva que sentia naquele momento. Ficou
evidente para todos o que o menino sentia, no entanto, nada em seu
comportamento permitia que a professora o repreendesse de novo, o que seria
inevitável se a expressão da raiva se desse verbalmente ou por outro
comportamento típico de quem se zangou. Os gestos, nesse caso, tal como a
palavra, são polifônicos e permitem a inserção de dados de outro contexto num
texto, alterando sua significação. Isso foi possível porque, através da cultura de
pares, Caio reproduziu interpretativamente a ação de abaixar a cabeça e, de
maneira sabida, usou do próprio repertório gestual aprovado pela escola para
manifestar-se contrário ao que ocorria.
144
O próprio silêncio é um conceito particular dentro da escola. A dinâmica
na sala de aula é de movimentação permanente das crianças, embora a um
observador apressado, pudesse parecer que a aula transcorria dentro da
representação que fazemos dela: com a professora explicando a tarefa e as
crianças a executando de maneira ordeira. Na prática, o cotidiano revela uma série
de ações que ocorrem em paralelo e são invisíveis ao olhar- e inaudíveis aos
ouvidos de quem pretende ver somente a dimensão opressora da realidade. Os
próprios corpos se revelam menos dóceis do que imaginávamos e as crianças
circulam, autorizadas ou não, pelo espaço escolar:
Enquanto esperávamos para descer ao refeitório para beber o leite,
as crianças conversavam livremente, sem muito barulho, cada qual
em sua carteira. Havia apenas uma menina na sala hoje, a Isabela,
que fazia ponta em seus lápis próxima à lixeira.
João fez uma careta para Isabela quando ela estava discutindo algo
com Juliano. Fomos ao refeitório e, na volta, a professora escreveu
a lição no quadro. Isabela foi apontar o lápis de novo. Quando
terminou, Ana Maria sentou-se com Lucas e começou uma atividade
diferenciada com ele, enquanto os demais faziam a tarefa. Ela
retirou uns cartões com sílabas e pedia para ele juntá-las formando
palavras. Ela ficou um tempo razoável dando atenção individual ao
menino.
João e Juliano falavam o tempo todo. Agora Isabela também
participava da conversa. Juliano levantou e foi até João, depois
retornou ao seu lugar. Isabela foi fazer ponta pela terceira vez.
Enquanto isso, Wagner parecia fazer contorcionismo em sua
cadeira, indo parar embaixo da carteira. E...
Isabela foi apontar o lápis... quarta vez.
Kauã fazia movimentos de luta marcial em sua carteira. Renan que
ainda não havia terminado entrou na brincadeira do colega.
Caio me ofereceu uma bala. Agradeci.
Ana Maria percebeu que Renan não havia terminado o trabalho e
chamou sua atenção dizendo que ele já poderia ter terminado, mas
conversava tanto.
Caio se levantou e foi ao banheiro com permissão da professora.
Novamente João e Juliano estavam conversando muito. Ana Maria
repreendeu: “Eu já falei que não quero João dando confiança para
Juliano e Juliano para João para fazerem coisa errada.” E avisou
que assim que o Caio voltasse faria o ditado.
Kauã tirou uma caixa de lápis de cor da mochila enquanto Wagner
brincava com um bonequinho e Rubens e João conversavam baixinho.
Gabriel conversava com Kauã. se foi Isabela, pela quinta vez,
apontar o lápis.
Caio retornou e Ana Maria fez o ditado. (13/4/2009, F1TR).
Nesse evento é possível identificar uma variedade de pequenas ações e
movimentos que deixa clara a não submissão das crianças e sua potência. O corpo
145
não fica sentado na carteira, vai ao banheiro, levanta até o colega, se espreguiça,
faz contorcionismo, aponta lápis. As interações entre as crianças também não
cessam durante as atividades e, mesmo ações proibidas, como comer bala, podem
ocorrer sem serem notadas. Trata-se da calmaria mais agitada que já vi.
Enquanto Lídia chamava as crianças à sua mesa para olhar as
tarefas, Kauã perturbava Rubens que, a princípio, não queria
brincar. Conseguiu convencê-lo a fazer queda de braço. Caio
corrigiu Kauã, mostrando que a regra do jogo exige que os cotovelos
estejam apoiados na mesa. Caio passou a funcionar como juiz,
depois desafiou Kauã que havia ganhado e o venceu. (23/3/2008,
F1TR).
Mesmo envolvendo os adultos na sua função de repressão, as crianças
conseguem subverter a ordem e transformar em diversão o que poderia gerar tão
somente uma reprimenda.
Durante a aula, João e Luís brincavam com os lápis como se fossem
personagens. João dedurou: “Tia, a Giovana está chupando bala.”
Giovana escondeu a bala na boca e João mandou: “Abre a boca
toda!”
Giovana escondeu debaixo da língua.
João riu e disse: “Está lá!”
Luís riu também
João perguntou ao Luís: “Você viu Madagascar?”
Luís: “Sim.”
João imitou um bicho do filme e voltou-se para Giovana de novo:
“Deixa eu ver embaixo da língua?” (7/4/2008, F1TR).
A análise das fotografias revelou cenas e comportamentos não percebidos
nos registros escritos do campo, revelando nuances de ações que aos poucos se
tornavam invisíveis, pois que não eram os comportamentos esperados para alunos.
A fotografia permitia o congelamento de eventos que configuravam o contato
entre as crianças e dava visibilidade à mobilidade permanente dos corpos infantis
em sala de aula, suas atitudes de solidariedade, suas ações de reprodução
interpretativa entre outras.
146
Foto 6 – Kauã conversa com Caio
Foto 7 – Renan de pé ao lado de Lucas
Foto 8 – Caio faz a tarefa de pé
O movimento não reconhecido ou autorizado está o tempo todo presente
na sala de aula. De certa forma era como se houvesse um plano visível e legítimo:
147
a aula, elemento mais imaginário que real diante da complexidade da concretude
onde, em nenhum momento, as crianças deixavam de ser crianças para se
tornarem alunos, abstração redutora de sua condição social de sujeitos de pouca
idade.
Embora o brinquedo seja um suporte importante para a cultura lúdica
(Brougère) concordo com o autor quando diz que
A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que
permitem tornar o jogo possível. (...) consideramos efetivamente o
jogo como uma atividade de segundo grau, isto é, uma atividade que
supõe atribuir às significações de vida comum um outro sentido, o que
remete à idéia de fazer-deconta, de ruptura com as significações da
vida quotidiana. Dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo
número de referências que permitem interpretar como jogo atividades
que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas. (1998, p.4)
As crianças não ficam presas às funções dos objetos. Elas transformam os
objetos da cultura escolar em objetos das culturas infantis fazendo da escola, no
cotidiano, uma arena cultural, um espaço de encontro entra a cultura legitimada e
a não autorizada
Foto 9– Júlio César começa a pescaria da borracha e apontador
148
Foto 10 – Júlio César continua a brincar de pescaria
Pedaços de barbante, lápis, restos... Pois, como diz Benjamin, a criança
também escolhe os seus brinquedos por conta própria, não raramente entre
objetos que os adultos jogaram fora. As crianças fazem a história a partir do lixo
da história. (1984, p. 14). No evento fotográfico a seguir, Kauã brinca com seu
lápis, fazendo dele um avião:
Foto 11 – Kauã e o avião (início)
149
Foto 12 - – Kauã e o avião (meio)
Foto 13 – Kauã e o avião (final)
Foi possível identificar nas relações entre os irmãos que estudavam na
mesma sala alguns comportamentos de solidariedade e apoio. Interessante notar
que, para que esse encontro tivesse podido acontecer, o irmão mais velho havia
repetido o ano anterior, entretanto, essa condição não afetava seu prestígio e
posição junto ao irmão mais novo.
Paulo levantou-se e foi ajudar Kauã com a tarefa, escreveu para ele,
mostrou no caderno e, enquanto fazia isso, perdeu-se no ditado.
Paulo apagou o dever do irmão para que ele fizesse novamente. Lídia
reparou o menino ajudando o irmão, mas não interferiu, apenas
confirmou verbalmente: “Está ajudando seu irmão?” Paulo
“incorporou” o professor, apagou várias vezes o que o irmão fazia,
explicou, pegou na mão do irmão para escrever com ele. (7/4/2008,
F1TR).
Embora de forma discreta, era frequente que irmãos partilhassem materiais
escolares. Havia uma solidariedade expressa através de pequenas atitudes como o
150
empréstimos de lápis, borrachas, apontadores. As crianças cuidavam umas das
outras no dia-a-dia escolar.
Foto 14 – Paulo passa a borracha para o irmão
Foto 15 – Kauã busca auxílio com Paulo
Essa relação entre os irmãos perdurou por todas as observações. Havia
uma preocupação e um cuidado de Paulo com seu irmão, que permite colocar em
questão se o que ele fazia era uma maneira de por dentro do sistema escolar
evitar que Kauã passasse pelas mesmas dificuldades que ele havia passado no ano
anterior. O fato é que ambos foram promovidos ao segundo ano, enquanto a dupla
de irmãos Caio e André - que não desenvolveram ões solidárias tão evidentes -
não foi bem sucedida, André não foi aprovado.
A professora incentivava: “Vamos tentar fazer sozinhos, é
colocar a sílaba final”. As palavras eram: caneta, sorvete, gaveta,
pata, barata, tomate, alicate.
Lídia chamou atenção para o fato de que a escrita de sorvete é com
“e” e falamos “sorveti”, mas a letra usada é o e”. João conseguiu
fazer a tarefa bem rápido. Paulo explicava o dever para o irmão,
Kauã. Denis e Mariana me pediram ajuda e eu ajudei um pouco,
151
pedindo que depois vissem com a dia se estava correto. Kauã
entregou seu trabalho para o irmão corrigir, depois, foi para a fila
das crianças que iam mostrar o trabalho para a professora. Lídia, ao
ver o trabalho do Kauã perguntou: “O seu irmão ajudou?” Kauã
confirmou, em seguida voltou para a sua carteira e mostrou a
tarefa corrigida para o irmão, Paulo copiou ou corrigiu o dever e foi
para a fila. (7/4/2008, F1TR).
Foto 16 – Paulo ajuda Kauã
Apesar de ter logrado sucesso com sua tática, Paulo teve um preço a pagar
por suas ações: passou para o ano seguinte com dificuldades não resolvidas do ano
anterior.
As crianças faziam o trabalho e me olhavam eventualmente dando
sorrisos cúmplices. Paulo fazia as tarefas com dificuldades. Ana
Maria me contou que ele estava bem pior que o Kauã, seu irmão.
Caio deixou o lápis cair perto de mim, peguei para ele e ele
agradeceu. (13/4/2009, F1TR).
Ainda em relação às táticas das crianças para se rebelarem contra a cultura
escolar e suas exigências havia uma especialmente utilizada: o fazer nada, ou
melhor, fazer muitas coisas, desde que nenhuma delas fossem as tarefas escolares,
dedicar-se a um tempo tido como improdutivo na lógica adultocêntrica.
Kauã estava absolutamente disperso. Contou as crianças, brincava
com seu lápis. Avisou à Shophie que havia uma canetinha no chão.
William e Shophie não acreditaram em Kauã que pediu para Yasmin
confirmar se havia ou não. Diante da confirmação da colega, William
pegou a caneta e guardou na mochila. Kauã ficou danado: “Não é
assim! Não é sua!” William respondeu: “Nem sua!”
Kauã começou a rabiscar a carteira com o lápis. Depois contou para
Caio que William havia guardado a caneta na mochila. A conversa
era bem baixinha para não atrapalhar.
Kauã estava cantando baixinho, cruzou as pernas na cadeira.
Começou a fazer sons de carro de corrida. Caio pegou um papel de
bala e ficou brincando com ele nas mãos. Caio dedurou: “Tia, olha o
152
Caio comendo bala!”. Lídia o repreendeu: “Que coisa feia ficar
tomando conta da vida dos outros.” (19/5/2008, F1TR).
5.6 Sobre Transições e Rupturas
Um dos aspectos que mais se destacou na passagem da Educação Infantil
para o Ensino Fundamental foi a maneira abrupta com que deu a transição. Se
formos em busca dos eventos primários que, para Corsaro e Molinari seriam
ocasiões que antecipam transições iminentes na vida das crianças e têm como
objetivo prepará-las para a mudança, praticamente não os encontramos. Eles se
manifestariam em: celebrações, atividades, discursos ou oportunidades de
compartilhar informações, ou seja, seriam ações que apresentariam para o grupo
de crianças as novidades que estão por vir na etapa seguinte (Corsaro, 2005b).
Uma única atividade pode ser classificada como tal: os deveres de casa que no
final do terceiro período começaram a ser prescritos nas sextas-feiras.
A concepção de Educação Infantil no Município de Três Rios pode ser
depreendida através da análise dos documentos legais que orientam as ações nessa
etapa da Educação Básica. Dentre eles, a Deliberação n.º 001/2007 CME/TR
(anexo 1) que altera a Deliberação anterior onde são fixadas as normas para a
Educação Infantil no Sistema Municipal de Ensino no Município de Três Rios
para atender à Lei 11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Neste documento, o
Município apresenta a sua concepção de criança como orientadora da Proposta
Pedagógica e
reconhecida como cidadã, como pessoa em processo de
desenvolvimento, como sujeito ativo da construção do seu
conhecimento, como sujeito social e histórico, marcado pelo meio em
que se desenvolve e que também o marca. (Três Rios, 2007, p3).
A influência dessa forma de ver as crianças está presente nas práticas
observadas na turma durante o terceiro período da Educação Infantil. Quando
chegam no Ensino Fundamental, entretanto, as crianças são recebidas, em termos
de legislação pelos documentos oficiais nacionais - a LDB (Lei n.º 9.394, de
20/12/96) e o PNE (Lei n.º 10.172, de 9/1/01) – e, a nível municipal, pela
Deliberação 001/09 CME-TR, de 20 de março de 2009, que preocupa-se com a
Grade Curricular do Ensino Fundamental diurno da Rede Municipal de Ensino de
153
Três Rios (anexo2). O foco se desloca do olhar sobre o sujeito para a preocupação
com currículos, conteúdos e horas/aula.
Embora no artigo 9º, item XII da Deliberação n.º 001/2007 CME/TR esteja
expresso que a Instituição de Educação Infantil deve elaborar e executar sua
proposta considerando o “Processo de articulação da Educação Infantil com o
Ensino Fundamental.” (Três Rios, 2007, p.3), na prática essa articulação não
acontece. A Educação Infantil do município se orienta basicamente por projetos,
enquanto eles parecem desaparecer no Ensino Fundamental, cedendo espaço a
exercícios mimeografados e abordados numa perspectiva mais tradicional de
educação.
A própria concepção do corpo da criança adquire visões particulares de
acordo com o segmento no qual está inserida, pois no documento “Projeto de
Revitalização Pedagógica para a Educação Infantil uma ciranda de ação” de
Terra (mimeo, sem data), material que subsidia a prática da Educação Infantil no
município, o movimento insere-se no capítulo sobre conhecimento de mundo,
merecendo destaque em sua abordagem. Lá encontramos que:
O movimento é uma importante dimensão do desenvolvimento e da
cultura humana (...) é uma linguagem que permite às crianças agirem
sobre o meio físico e atuarem sobre o ambiente humano, mobilizando
as pessoas por meio de seu teor expressivo. (Terra, s.d., p.20)
As contradições se explicitam quando, para as crianças de até cinco anos e
onze meses o movimento é prática pedagógica valorizada e, ao completarem seis
anos e ingressarem no Ensino Fundamental a disciplina de Educação Física recebe
a classificação de “sempre presente” na grade curricular (anexo 3), porém não era
ministrada para as crianças do primeiro ano.
Na prática, o que viveram as crianças e, por consequência a pesquisadora,
foi uma transição que não incluiu a perspectiva dos ritos de passagem, como
descreve Van Gennep (1978), que deveriam trazer uma sequência que incluísse
"separação", "transição" e "incorporação” na saída da Educação Infantil e ingresso
no Ensino Fundamental. Por decorrência, o que Corsaro e Molinari (2005b)
identificam como uma “ponte” que liga espaços ou territórios deixou de ser
construída no contexto observado e o permitiu que as crianças alcançassem a
154
zona de liminaridade (Victor Turner, 1974, p. 95), um espaço-tempo novo, entre
duas posições definidas socialmente.
Esse foi o susto do primeiro dia de aulas no Ensino Fundamental, foi
também o mote para que as questões da tese sofressem a correção de rumo que
acabou por acontecer.
A temática da transição merece atenção especial nas práticas pedagógicas
da Educação Infantil. No documento Subsídios para Diretrizes Curriculares
Nacionais Específicas da Educação Básica
36
encontramos que:
Na elaboração de suas Propostas Pedagógicas as instituições de
Educação Infantil deverão prever estratégias para lidar com as
diversas transições vivenciadas pelas crianças. Essas transições
envolvem, desde a passagem entre o espaço privado da casa ao
publico da instituição, quando do ingresso da criança na creche, na
pré-escola ou na escola, ate aquelas que acontecem no âmbito do
próprio segmento: entre as diferentes faixas etárias; entre instituições,
no caso da passagem da creche a pré-escola; entre turnos e/ou entre
docentes, no caso das crianças que frequentam a instituição em turno
integral; e, num mesmo turno, entre os diferentes momentos que
compõem as rotinas diárias. (Brasil, 2009, p. 40).
Pela tensão que comporta cada transição, o documento sugere uma atenção
especial a alguns momentos específicos. Inicialmente, ao ingressar na creche é de
extrema importância a percepção de que a criança está ingressando num espaço
público e participando de forma mais ampla como um agente social. O papel do
professor enquanto mediador nesse momento é fundamental no estabelecimento
das relações da criança com outras crianças, adultos, objetos e a linguagem.
Na passagem para a Pré-Escola é importante observar que apresenta maior
domínio da linguagem oral, maior conhecimento do seu corpo e de seus
movimentos. Ao adulto compete ainda a mediação das relações sociais e com os
objetos do conhecimento. Nessa etapa as rotinas são estruturantes, porém não
devem engessar as possibilidades de criação.
Para a transição da Pré-Escola para o Ensino Fundamental, atenção
especial deve ser dada à brincadeira e suas exigências de espaço e tempo. Quanto
à natureza das atividades, devem ser privilegiadas as
de expansão em detrimento de atividades de contenção; as vivências
significativas em detrimento de exercícios de cópia e/ou repetição; a
construção da autonomia em detrimento das propostas pautadas na
passividade. (Brasil, 2009, p.41).
36
Documento elaborado com assessoria de Kramer.
155
Podemos perceber que, nas práticas observadas na escola pesquisada, não
houve um cuidado específico com a questão da transição. As propostas
pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Município de Três
Rios o dialogam entre si. Turmas alojadas num mesmo prédio escolar
vivenciam realidades extremamente diversas, manifestas nos olhinhos compridos
das crianças mais velhas que vinham beber água no pátio quando estava a
Educação Infantil:
A brincadeira é de laranja da china”. Carmen vai dando instruções
às duplas e faz ela mesma com Lucas que estava sem par. Fico
observando. Ela manda colarem os rostos, depois as costas, depois
os joelhos, os bumbuns, os cabelos (“Cuidado com os piolhos!”)
manda andarem pela quadra. Richard está aprontando, atrapalha os
colegas, vários se queixam dele. Carmen chama sua atenção, mas ele
continua, ela o manda sair da brincadeira e fica de mãos dadas com
ele. Percebo uma criança maior passando para ir ao bebedouro, ele
fica olhando com certa nostalgia para nossa turma e se demora um
bocado lá. (9/8/2007, F1TR).
Interessante registrar que, no segundo ano, várias das tensões do ano
inicial haviam se dissipado.
Ana Maria começou a falar com as crianças sobre a data: “Quinta-
feira foi dia 9, sexta, 10, sábado 11, domingo, 12. Hoje é...”
Crianças: “Treze.”
A professora marcou a data no calendário no mural. Chamaram a
turma para o leite. As crianças se levantaram e saíram, sem tumulto
ou confusão. A ida para o refeitório não era necessariamente em
fila, mas Isabela ia à direita da professora e os meninos à
esquerda. João me perguntou: “Ô Flávia, é verdade que um mês tem
30 dias?” Respondi que sim e ele falou que esse mês já estava
terminando. (13/4/2009, F1TR).
Havia uma liberdade maior em sala de aula em termos de movimentação
das crianças e, como a turma era composta por quinze alunos havia uma maior
facilidade em atendê-los individualmente.
Quando chegou a hora do almoço e nos dirigimos ao refeitório
novamente, Ana Maria me contou sobre os progressos do Caio. De
fato o menino estava com uma expressão mais relaxada, mais feliz.
Ela relatou que ele era muito esperto, havia perguntado, no
primeiro dia de aula se ela sabia que se a professora agredir o
aluno, vai presa. Ela respondeu que sabia e que ninguém, nem pai
nem mãe, podem agredir uma criança. Terminada a merenda, me
despedi. (13/4/2009, F1TR).
A que tipo de agressão Caio se referia? Não houve episódios de violência
na escola no ano anterior que eu tivesse presenciado. Calculei então que a
156
violência a que Caio fora exposto dizia respeito às práticas escolares do primeiro
ano, ano da alfabetização que ele precisou cumprir por duas vezes, violência que
“apagou” o brilho de Júlia, calando aos poucos aquela que era uma liderança ativa
na Educação Infantil e, cada vez mais calada, tornou-se aluna reprovada no ano
seguinte. A violência que fez Paulo, apenas um ano mais velho que Kauã
responsabilizar-se por ele tal qual um adulto. A mesma violência ainda que fez
com que a professora do primeiro ano se sentisse rejeitada e que pode ser
identificada nessa fala:
No refeitório, encontramos com as crianças do 1º ano. Lídia se
aproximou e me disse que sentia pena da mudança brusca da
Educação Infantil para o ensino fundamental, relatou o caso de uma
aluna que disse que não queria ser da sala dela, queria continuar
com a Carmen, e agora, sempre que contava histórias, sentava com
as crianças no chão em rodinha. (13/4/2009, F1TR).
Sugiro que o leitor leve em consideração esses dados da realidade para não
incorrer num julgamento apressado das ações das professoras. Na verdade
Carmen, Lídia e Ana Maria, além de personagens individuais, com histórias
próprias são também o retrato da rede municipal em que estão inseridas,
(re)produzindo em suas práticas, mais ou menos solitárias, a realidade das
extremidades dos segmentos da Educação sica, a qualidade da formação inicial
e continuada a que tiveram e têm acesso e principalmente a realidade da
descontinuidade entre as propostas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino
Fundamental. As questões tratadas na tese devem levar em consideração não a
realidade imediata, mas as políticas educacionais que as norteiam.
6.
Considerações Finais
E a experiência da compreensão será tão mais
profunda quanto sejamos
nela capazes de associar, jamais dicotomizar,
os conceitos emergentes da experiência
escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade.
Paulo Freire
37
Como estabelecer um diálogo entre os dois segmentos da Educação Básica
em questão?
Moss (2008) produz uma análise dos modelos de relação possíveis entre a
Pré-Escola e o Ensino Fundamental
38
que permite ampliar nossa discussão. Nesse
artigo, o autor identifica um crescimento da demanda por pré-escolas
considerando esse fenômeno como uma tendência global exacerbada pela idéia de
que a aprendizagem começa com o nascimento e que as experiências iniciais da
criança tem significativa relação com seu êxito escolar subsequente.
Na linha das pesquisas internacionais que apontam o retorno econômico
dos investimentos em educação, Moss refere-se a pesquisas de economistas que
confirmam a margem de retorno dos investimentos na Educação Infantil não
compulsória. Assim, destaca o autor, o é de se estranhar que ocorram esforços
no sentido de compreender as relações entre esses dois níveis educacionais (2008,
p 225). Logo percebe-se que uma tensão em jogo na medida que a relação em
foco traduz questões de poder ligadas às concepções de educação e de criança que
norteiam as práticas específicas de cada segmento.
Moss reconhece uma diversidade de possibilidades diante dos contextos
específicos de cada país, ainda assim, reconhece a possibilidade do
relacionamento entre as pré-escolas e as escolas se estruturarem a partir de quatro
possibilidades distintas.
Um primeiro modelo seria o da Pré-Escola preparatória no qual a relação
de poder o pende claramente para o lado da escola obrigatória, ou, no caso
37
FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. Estud. av. [online]. 2001, vol.15, n.42,
pp. 259-268.
38
Na realidade trata-se da análise das relações entre Pré-Escola e escola a partir da realidade dos
países ricos, componentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE).
158
brasileiro, para o Ensino Fundamental. A função da Educação Infantil, nesse
contexto, é preparar a criança para atender às exigências de conteúdo, de
comportamentos e de aptidões motoras exigidas no Ensino Fundamental,
especificamente nos requisitos para a aquisição do código de leitura e escrita. O
conceito central nesse caso é o de prontidão, que significa o grau de ajustamento
da criança ao sistema escolar assim concebido.
This relationship comes closest to the idea of schoolification’, with
its implications of ECEC services increasingly colonised by and
resourcing the compulsory school, to serve its needs and interests.
(Moss, 2008, p. 227, ECEC - early childhood education and care ou
Educação Infantil, numa aproximação livre).
Outra relação possível seria marcada pela ausência de diálogo, É um
modelo no qual as instituições não buscam convergências e atuam como se
fossem fins em si mesmas. A identidade de cada segmento se mais por
oposição à imagem do outro do que por suas características intrínsecas. Para Moss
(p. 228), essa ausência de diálogos não condiz com o Zeitgeist de um mundo que
valoriza as parcerias e não se inclui mais nos discursos políticos atuais, mas
persiste como fonte de tensão e desconfiança entre os agentes das diferentes
etapas da educação.
Haveria ainda uma alternativa que consistiria em preparar a escola de
Ensino Fundamental para receber a criança. Esse modelo se caracteriza pela
tentativa de continuidade. O Ensino Fundamental procura manter, nos anos
iniciais, práticas utilizadas na educação infantil que trazem resultados satisfatórios
para as crianças daquela faixa etária. É a escola que se adapta à criança enquanto
início às transformações necessárias para a sua proposta pedagógica. Segundo
Moss (2008, p. 229), para tal, são criadas condições de trabalho partilhado entre
os professores dos dois segmentos, de forma a evitar uma ruptura para as crianças
quando chegam ao primeiro ano.
Por fim, teríamos um relacionamento onde o que se propões é um espaço
compartilhado ou de encontro. Para Moss, (2008, p. 229) esse seria o modelo
ideal. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental são instituições com percursos
próprios e distintos que guardam tradições pedagógicas marcadas por suas
histórias. Assim, uma aproximação somente se faria possível a partir do
reconhecimento das experiências de cada uma que, colocadas em contato,
159
permitiriam construir novas formas de relação e práticas educativas que
assegurassem uma transição menos brusca de um nível a outro. Seria necessária
ainda a construção de uma cultura compartilhada, a partir da aproximação dos
conceitos de criança, de aprendizagem, de conhecimento e de educação.
Diante da constatação da antecipação da idade de ingresso à escola em
vários países, Moss aponta alguns aspectos que podem contribuir para a
construção de um sistema educacional mais integrado e menos opressor para as
crianças.
A dimensão do cuidado deve receber especial atenção nessa proposta.
Cuidado, nesse contexto, refere-se a uma postura de respeito às necessidades
integrais da criança, observando o conforto, a alimentação, a socialização as
necessidades de repouso, e ainda, respeitando as necessidades emocionais e
características individuais, a identidade racial, cultural e de gênero. A dimensão
do cuidado se inscreve numa esfera da ética que deve permear todos os níveis de
ensino independente da idade dos sujeitos envolvidos.
Voltar a ênfase para o cuidado não significa abrir mão da dimensão
educativa, presente no binômio educar-cuidar. Na realidade, a criança tem direito
ao conhecimento e ao reconhecimento de si mesma como um sujeito que integra
suas várias dimensões, ou ainda, como um ser bio-psico-social.
As ações possíveis para atingir esse fim são muitas. Corsaro e Molinari
(2005b) apontam várias: maior proximidade com as famílias, momentos de
integração entre as equipes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, visitas
ás escolas ou turmas nas quais estarão quando ingressarem no Ensino
Fundamental e conhecimento dos novos professores, adequação dos espaços da
escola, revisão de rotinas e horários, valorização da brincadeira como atividade
infantil por excelência, formações conjuntas para as equipes das duas etapas da
educação, suporte das secretarias de educação, entre tantas outras. O que não se
pode esquecer é que crianças de seis, sete ou mesmo de dez anos são ainda
crianças, estejam mais ou menos escolarizadas. Crianças e alunos e não mais
crianças ou alunos.
160
Evidentemente a Educação Infantil de Três Rios não representa o que é
feito no país, assim como seu Ensino Fundamental não dá conta da enormidade de
práticas existentes.
Se pensarmos, no entanto na relação dialética entre o micro e o macro
social, podemos trazer Três Rios para o centro da discussão e pensar sobre, o quê
desta história se reconstrói no dia-a-dia das transições escolares. Podemos ainda
questionar de que maneira nós, formadores de professores e pesquisadores,
produtores de conhecimento científico sobre o assunto temos lidado com essas
questões. Mas, para isso esqueceremos a Júlia, o Paulo, o Kauã, o Júlio César, o
João. Então, que essa história tenha valido a pena para todos nós.
Tudo que se conclui deixa saudades, lembranças e marcas, que daqui por
diante farão parte da história dos envolvidos. A escrita captura o momento, cria
uma narrativa, ao mesmo tempo ficcional e realista. A história do primeiro dia de
aula dessas crianças estará guardada para sempre.
Uma pesquisa que teve início com objetivos bem específicos e foi
“tomada” pelos dados da realidade que se impôs: esse é o retrato do que se passou
aqui. Foi relevante a mudança de rumos sofrida pela pesquisa, pois, graças a ela,
foi possível descortinar uma gama de ações invisíveis que acontecem a todos os
instantes em sala de aula.
O trabalho empreendido aqui permite algumas conclusões: dentre elas que:
As crianças, mesmo submetidas aos constrangimentos inerentes ao
papel de aluno, não deixam de exercer sua agência (agency)
enquanto grupo social.
As ações de solidariedade, as táticas de resistência que se
apropriam dos códigos permitidos para reproduzirem
interpretativamente o que percebem, os corpos permanentemente
em movimento, as comunicações escondidas dos adultos, a
invisibilidade que conferem a um movimento ininterrupto, tudo
isso nos leva a percebê-los bem mais potentes do que a ação
disciplinadora permitiria pensar.
As crianças aprendem a ser alunos sem deixarem de compor um
grupo social à parte, com características e cultura próprias.
161
De qualquer forma, algumas transformações são bem visíveis como:
O apagamento de lideranças que se destacavam por aspectos não
vinculados à cultura escolar, como a de Júlia,
O domínio de códigos que exigiam maior discrição entre as
comunicações ou maior contenção dos corpos infantis e
uma nítida separação entre trabalho e brincadeira como
características distintivas do mundo das crianças e dos alunos.
Diante teste fato, algumas considerações se impõem:
Para os professores:
Que trabalhem a transição entre a Educação Infantil e o Ensino
Fundamental através da construção das “pontes” que ligam esses dois
segmentos, especialmente a partir da continuidade nas atividades de
leitura e escrita que reconheçam a função social desta prática;
Que percebam as crianças em suas turmas na sua dimensão infantil,
não as reduzindo a um papel social componente da condição infantil;
Que reconheçam nas aprendizagens escolares a função de mediação
entre os conhecimentos espontâneos e os científicos para que
efetivamente contribuam para a construção das funções mentais
superiores;
Que reintroduzam a dimensão do corpo em sala de aula sem
dicotomizar pensamento e movimento.
Em termos de políticas públicas acredito que é chegada a hora de
efetivamente integrar a Educação Infantil na Educação Básica, ou seja,
buscar elos de ligação entre o que se propõe como trabalho de
qualidade para as crianças pequenas e para as crianças em idade
escolar.
É relevante ainda, uma ação de transição que reconheça os eventos
primários, introduzindo-os no dia-a-dia pré-escolar.
Por fim, a concepção de brincadeira e o reconhecimento da
importância da dimensão lúdica para as crianças deveria atravessar os
vários segmentos com um espaço garantido para sua existência
enquanto o quê caracteriza as várias infâncias.
162
O movimento e a expressão corporal deveriam ser olhados como
elementos formadores, tanto quanto a escrita, a leitura ou as operações
matemáticas, que, por sua vez, deveriam ser trabalhadas a partir de
suas funções sociais efetivas de forma a não desvincular os conteúdos
escolares da vida real.
Para que essas ações possam se tornar efetivas, que se investir na
formação permanente das professoras; sem políticas públicas voltadas
para esta questão torna-se difícil exigir delas uma ação mais reflexiva.
Finalmente, os Projetos Políticos Pedagógicos das unidades de ensino
precisariam contemplar as transições, reconhecendo sua importância
para a vida das crianças. Os PPPs deveriam se constituir em elemento
efetivamente norteador das práticas escolares, resguardando alguma
autonomia de ação para as escolas.
Acredito que algumas consequências decorram dos achados da tese; dentre
elas a necessidade de realização de mais pesquisas sobre as culturas infantis
dentro da escolarização formal. A sociologia da Infância, ao realizar a maior
parte de suas pesquisas na Educação Infantil deixa de legitimar a principal
questão posta aqui: crianças continuam sendo crianças após o ingresso na
escola. A dúvida sobre os limites da infância não pode obscurecer o fato de
que, mesmo no interior da sociologia escolar, um importante aspecto a ser
visto: crianças são um grupo geracional, com características e cultura próprias
e, como tal, merecem ser estudadas qualquer que seja o contexto no qual se
encontrem.. A tese deixa algumas pontas de novelo para serem desenroladas,
novas pesquisas devem buscar elucidar novas questões, dentre as quais sugiro:
De que maneira construir eventos primários na pré-escola sem
escolarizá-la excessivamente;
As estratégias familiares, ou mais especificamente infantis, expressas
nas ações de solidariedade entre irmãos;
Como abordar a leitura e a escrita para que possam ser elementos
facilitadores dessa transição;
De que maneira se a passagem das crianças entre o primeiro e o
segundo segmento do Ensino Fundamental;
163
De que maneira se a passagem das crianças/adolescentes entre
Ensino Fundamental e o Médio;
De que forma construir um modelo de avaliação mais adequado para
uma escola que contemple a dimensão infantil de seus alunos.
Certamente muitas outras questões não contempladas nesta tese. Esse
foi o esforço de construção de saber a partir de uma realidade concreta e seus
agentes. Essa foi a história que escrevemos juntos.
A princípio influenciada por uma visão um tanto maniqueísta, acreditei
que seria possível identificar os mocinhos e os vilões dessa história. Difícil o
leitor não se deixar seduzir por Carmen, a professora da Educação Infantil, tal
como a pesquisadora o foi. Suas práticas, sua concepção de infância, o
conhecimento sobre as famílias das crianças atendidas tudo vem de encontro a
uma concepção de Educação Infantil de qualidade pela qual os pesquisadores e os
movimentos sociais tanto lutam. Mais provável a decepção com Lídia, professora
honestamente empenhada em fazer as crianças adquirirem os códigos de leitura e
escrita, que, no entanto, representa uma prática escolar sobre a qual incidem as
críticas daqueles que crêem que a linguagem tem uma função de prática cultural
que ultrapassa em muito o que dela é feito na escola. Ana Maria, a professora do
segundo ano, por sua vez, já encontrou uma turma escolarizada, quase todas as
crianças lendo e escrevendo e a tensão entre as culturas infantis e escolar pôde ser
vivida de maneira mais amena.
Difícil não reconhecer o esforço de Paulo empenhado em levar Kauã, seu
irmão, adiante, poupando-o do que havia sofrido. Duro ver o brilho de Júlia se
apagando diante das barreiras que se mostravam intransponíveis naquele
momento. Inevitável a alegria de ver Caio superando as dificuldades e seguindo
adiante com uma fisionomia menos dura. Muito bom perceber o sucesso de João e
acreditar que ele pode se reverter em conquistas para a sua vida.
Cada um desses sujeitos deve ser visto numa dupla dimensão: de um lado
pessoas concretas, com suas agruras e suas bem-aventuranças; de outro,
personagens de uma história que não cessa de acontecer a cada ano, em cada
turma escolar.
164
Impossível não retomar aqui a idéia de ato ético ou responsivo de Bakhtin
que reconstrói a ligação entre a cultura e a vida. Pois,
Falar de ato é falar de um agir geral que engloba os atos particulares;
por isso, falar de ato é falar ao mesmo tempo de atos. O ato como
conceito é o aspecto geral do agir humano, enquanto os atos o seu
aspecto particular, concreto. Todos os atos têm em comum alguns
elementos: um sujeito que age, um lugar em que esse sujeito age e um
momento em que age. Isso se aplica tanto aos atos realizados na
presença de outros sujeitos como aos atos realizados sem a presença
de outros sujeitos, aos atos cognitivos que não tenham expressão
lingüística etc. Fazê-lo pressupõe, portanto, dois planos inter-
relacionados: um plano de generalidade, o dos atos em geral, e um
plano de particularidade, de cada ato particular. Como se sabe, a
generalidade e a particularidade são categorias filosóficas, e o filósofo
Bakhtin as considera em sua proposta de filosofia do ato; ele distingue
entre o conteúdo do ato, isto é, aquilo que o ato produz ao ser
realizado, ou seu produto, e o processo do ato, ou seja, as operações
que o sujeito realiza para produzir o ato. (Sobral, 2008, p.224).
7.
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Rios para atender a Lei 11.274, de 6 de fevereiro de 2006.
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ANEXOS
Anexo 1
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE TRÊS RIOS
CÂMARA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Deliberação nº 001/2007 CME/TR
Altera a Deliberação 004/2003 CME-
TR, que fixa normas para a Educação
Infantil no Sistema Municipal de
Ensino do Município de Três Rios,
para atender a Lei 11.274, de 06 de
fevereiro de 2006.
O CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS, Estado do
Rio de Janeiro, no uso de suas atribuições legais, tendo como base estudos das legislações de
Educação Infantil e considerando:
- a Deliberação 001/98 do CME Três Rios, que estabelece normas para o Sistema
Municipal de Educação de Três Rios;
- a LDB 9394/96, no que se refere a Educação Infantil;
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
172
- a Lei Federal nº 11.114, de 16 de maio de 2005, que altera artigos da LDB 9394/96 com o
objetivo de tornar obrigatório o início do ensino fundamental aos seis anos de idade;
- a Lei Federal 8069/90, do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
do Rio de Janeiro/ECA;
- o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil;
- os subsídios para o credenciamento e funcionamento das instituições de Educação Infantil
(Volumes I/II) do MEC, de 1998;
- a Resolução nº3, de 3 de agosto de 2005, do Conselho Nacional de Educação, que define
normas para a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração;
- a Deliberação 245/99 do CEE/RJ, que estabelece normas para o funcionamento de
instituições privadas de Educação Infantil que assistem crianças de 0 a 6 anos e onze
meses;
- a Lei 11.274, de 06/02/2006, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
dispondo da duração de 9 anos para o ensino fundamental;
- a Lei 11.114, de 16/05/2005, que altera a LDB com o objetivo de tornar obrigatório o
início do ensino fundamental aos seis anos de idade;
- o Parecer CNE/CEB 18/2005, que trata das orientações para a matrícula das crianças de
seis anos de idade no Ensino Fundamental obrigatório.
DELIBERA:
CAPÍTULO I
DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Art. - A Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, constitui direito da criança de
zero a cinco anos e onze meses, a que o Município e a família têm o dever de atender.
Art. - A autorização de funcionamento e a supervisão das instituições públicas e privadas de
Educação Infantil, que atuam na educação de crianças de zero a cinco anos e onze meses, serão
reguladas pelas normas desta Deliberação.
Parágrafo único: Entende-se por instituições privadas de Educação Infantil as enquadradas nas
categorias de particulares, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, nos termos do artigo 20 da
Lei nº 9394/96.
Art. 3º - A Educação Infantil será oferecida em:
I- Creches ou entidades equivalentes para crianças de zero a três anos e onze meses;
II- Pré-escola para crianças de quatro a cinco anos e onze meses.
§ 1º - Para fins desta Deliberação, entidades equivalentes a creches, às quais se refere o inciso
I deste artigo, são todas as responsáveis pela educação e cuidado de crianças de zero a três
anos e onze meses de idade, independentemente de denominação e regime de funcionamento.
§ - As instituições de Educação Infantil que mantêm, simultaneamente, o atendimento a
crianças de zero a três anos e onze meses em creche e de quatro a cinco anos e onze meses em
pré-escola, constituirão centros de Educação Infantil, com denominação própria, podendo
funcionar em horário integral ou parcial no mínimo de quatro horas.
173
§ 3º - As crianças com necessidades especiais serão preferencialmente atendidas na rede
regular de creches e pré-escolas, respeitando o direito a atendimento adequado em seus
diferentes aspectos, contando com serviço de apoio especializado.
CAPÍTULO II
DA FINALIDADE E DOS OBJETIVOS
Art. - A Educação Infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ão da família e da
comunidade.
Parágrafo único: A creche, assim como a pré-escola, é equipamento educacional e não apenas
assistencialista. Dadas as particularidades do desenvolvimento da criança de zero a cinco anos e
onze meses, a Educação Infantil cumpre assim duas funções indispensáveis e indissociáveis:
educar e cuidar.
Art. - A Educação Infantil tem como objetivos proporcionar condições adequadas para
promover o bem-estar da criança, seu desenvolvimento físico, motor, emocional, intelectual, moral
e social, a ampliação de suas experiências e estimular o interesse da criança pelo processo do
conhecimento do ser humano, da natureza e da sociedade.
CAPÍTULO III
DO REGIMENTO ESCOLAR E
DA PROPOSTA PEDAGÓGICA
Art. - O Regimento Escolar é documento normativo da instituição educacional, de sua inteira
responsabilidade, devendo ser registrado em cartório, não tendo validade os dispositivos que
contrariam a legislação vigente.
Art. - A Proposta Pedagógica é a base orientadora do trabalho da instituição e sua elaboração e
execução livre, deve ter a participação de toda a comunidade escolar. Deve estar apoiado ao
Regimento Escolar da instituição.
Art. 8º - A Proposta Pedagógica deve estar fundamentada numa concepção de criança como
cidadã, como pessoa em processo de desenvolvimento, como sujeito ativo da construção do seu
conhecimento, como sujeito social e histórico, marcado pelo meio em que se desenvolve e que
também o marca.
Parágrafo único: Na elaboração e execução da Proposta Pedagógica será assegurado à instituição
de Educação Infantil, na forma da Lei, o respeito aos princípios do pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas.
Art. - Compete à instituição de Educação Infantil elaborar e executar sua Proposta Pedagógica,
considerando:
I- fins e objetivos da proposta;
II- concepção de criança, de desenvolvimento infantil e de aprendizagem;
III- características da população a ser atendida e da comunidade na qual se insere;
IV- regime de funcionamento;
V- espaço físico, instalações e equipamentos;
VI- relação de recursos humanos, especificando cargos e funções, habilitação e níveis de
escolaridade;
VII- parâmetros de organização de grupos e relação professor/criança;
VIII- organização do cotidiano de trabalho junto às crianças;
IX- proposta de articulação da instituição com a família e a comunidade;
X- Processo de avaliação do desenvolvimento integral da criança;
XI- Processo de planejamento geral e avaliação institucional;
XII- Processo de articulação da Educação Infantil com o Ensino Fundamental.
174
§ - O regime de funcionamento das instituições de Educação Infantil atenderá às
necessidades da comunidade, podendo ser ininterrupto no ano civil, desde que respeitados os
direitos trabalhistas ou estatutários.
§ - O currículo da Educação Infantil deverá assegurar a formação básica comum,
respeitando as diretrizes curriculares nacionais, nos termos do artigo 9º da Lei nº 9394/96.
Art. 10 A avaliação na Educação Infantil será realizada mediante acompanhamento e registro do
desenvolvimento da criança, tomando como referência os objetivos estabelecidos para essa etapa
da educação, sem objetivo de promoção, mesmo para acesso ao Ensino Fundamental.
Art. 11 Os parâmetros para a organização de grupos decorrerão das especificidades da proposta
pedagógica, recomendada a seguinte relação professor/criança, bem como monitor/criança:
Maternal I - Crianças de 0 a 11 meses .................. 06 a 10 crianças/01 professor/01 monitor
Maternal II - Crianças de 1 a 1 ano e 11 meses .... 08 a 12 crianças/01 professor/01 monitor
Maternal III - Crianças de 2 a 2 anos e 11 meses . 12 a 16 crianças/01 professor/01 monitor
Jardim I - Crianças de 3 a 3 anos e 11 meses........ 20 a 25 crianças/01 professor
Jardim II – Crianças de 4 a 4 anos e 11 meses ..... 20 a 25 crianças/01 professor
Jardim III – Crianças de 5 a 5 anos e 11 meses .... 20 a 25 crianças/01 professor
Parágrafo único: A mantenedora deve garantir suporte através de monitores para atender as
necessidades básicas dos alunos de 3 a 5 anos e 11 meses.
CAPÍTULO IV
DOS RECURSOS HUMANOS
Art. 12 A direção da instituição de Educação Infantil será exercida por profissional formado em
curso de graduação em Pedagogia ou em nível de pós-graduação em Administração Escolar ou
Supervisão Escolar, com no mínimo 360 horas, em instituições de Educação Superior credenciada.
Parágrafo único: É admitido o exercício da direção de instituição de ensino privada de Educação
Básica, por profissional de educação com qualquer habilitação em Pedagogia e, na falta deste
profissional, qualquer licenciatura plena de áreas afins, desde que, neste caso,tenha, pelo menos,
cinco anos de comprovada experiência técnico-administrativa na área educacional.
Art. 13A admissão do docente que atuará na Educação Infantil será de profissional formado em
curso de nível superior em Educação (licenciatura de graduação plena), ou Normal Superior em
Educação Infantil, admitindo-se na falta dos profissionais acima referidos, como formação mínima
a oferecida em nível médio (modalidade Normal), com estágio específico em Educação Infantil.
Art. 14 A formação mínima para o monitor(a) que atuará nas creches deverá ser de Ensino
Médio (modalidade Normal).
Art. 15 Os mantenedores das instituições de Educação Infantil, principalmente nas creches,
deverão firmar parcerias com equipes multiprofissionais para atendimentos específicos às turmas
sob sua responsabilidade, tais como fonoaudiólogos, psicólogo, pediatra, nutricionista, assistente
social e outros.
CAPÍTULO V
DO ESPAÇO, DAS INSTALAÇÕES E DOS EQUIPAMENTOS
Art. 16 Os espaços serão projetados de acordo com a proposta pedagógica da instituição de
Educação Infantil, a fim de favorecer o desenvolvimento das crianças de zero a cinco anos e onze
meses, respeitadas as suas necessidades e capacidades.
Parágrafo único: Em se tratando de turmas de Educação Infantil, em escolas de Ensino
Fundamental e/ou Médio, alguns destes espaços deverão ser de uso exclusivo das crianças de zero
175
a cinco anos e onze meses, podendo outros serem compartilhados com os demais níveis de ensino,
desde que a ocupação se dê em horário diferenciado, respeitada a proposta pedagógica da escola.
Art. 17 Todo imóvel destinado à Educação Infantil pública ou privada, dependerá de aprovação
do órgão oficial competente.
§ - O prédio deverá adequar-se ao fim a que se destina e atender, no que couber, às
normas e especificações técnicas da legislação pertinente.
§ 2º - O imóvel deverá apresentar condições adequadas de localização, acesso, segurança,
salubridade, saneamento e higiene, inspeção e laudo do Corpo de Bombeiros e da vigilância
sanitária, em total conformidade com a legislação que rege a matéria.
Art. 18 Os espaços internos deverão atender às diferentes funções da instituição de Educação
Infantil e conter uma estrutura que contemple:
I- espaços para recepção;
II- salas para professores e para os serviços administrativo-pedagógicos e de apoio;
III- salas para atividades das crianças, com boa ventilação e iluminação, revestimento
com cores suaves e de fácil limpeza e manutenção e visão para o ambiente externo,
com mobiliário e equipamentos adequados;
IV- refeitório, instalações e equipamentos para o preparo de alimentos, que atendam às
exigências de nutrição, saúde, higiene e segurança, nos casos de oferecimento de
alimentação;
V- instalações sanitárias completas, suficientes e próprias para o uso das crianças e, em
separado, para uso dos adultos;
VI- berçário, se for o caso, provido de berços individuais, área livre para movimentação
das crianças, locais para amamentação e higienização, com balcão e pia, e espaço
para o banho de sol das crianças;
VII- área coberta para atividades externas compatível com a capacidade de atendimento,
por turno, da instituição;
VIII- Aparelhos fixos de recreação (opcionais) que atendam às normas de segurança do
fabricante e que devem ser objeto de conservação e manutenção periódica.
Parágrafo único: Recomenda-se que a área coberta mínima para as salas de atividades das
crianças seja de 1,50m
2
por criança atendida.
Art. 19 As áreas ao ar livre deverão possibilitar as atividades de expressão física, artísticas e de
lazer, contemplando, se possível, também áreas verdes.
CAPÍTULO VI
DA CRIAÇÃO E DA AUTORIZAÇÃO DE FUNCIONAMENTO
Art. 20 Entende-se por criação o ato próprio pelo qual o mantenedor formaliza a intenção de
criar e manter uma instituição de Educação Infantil e se compromete a sujeitar seu funcionamento
às normas do respectivo sistema de ensino.
§ - O ato de criação se efetiva para as instituições de Educação Infantil, mantidas pelo
poder público, por decreto governamental ou equivalente e, para as mantidas pela iniciativa
privada, por manifestação expressa do mantenedor em declaração própria, com firma reconhecida
em cartório.
§ - O ato de criação a que se refere este artigo não autoriza o funcionamento, que
depende da aprovação do Conselho Municipal de Educação de Três Rios.
Art. 21 – Entende-se por Autorização de Funcionamento o ato pelo qual o Conselho Municipal de
Educação de Três Rios emite parecer favorável ao funcionamento da instituição de educação
Infantil, enquanto atendidas as disposições legais pertinentes.
176
Art. 22 As instituições privadas de Educação Infantil, vinculadas ao Sistema Municipal de
Educação de Três Rios, deverão dar entrada no pedido de autorização no Conselho Municipal de
Educação de Três Rios, pelo menos 120 (cento e vinte) dias antes do início de suas atividades, e
deverá conter:
I- requerimento dirigido ao titular do órgão ao qual compete a autorização, subscrito
pelo representante legal da entidade mantenedora.
II- Cópia autenticada dos documentos de inscrição da mantenedora no Cadastro
Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ);
III- Prova de identidade e de residência da pessoa física mantenedora, ou dos sócios
proprietários da pessoa jurídica mantenedora da instituição, consistindo de cópias
legíveis e autenticadas da dula de identidade, do CIC/CPF, caso não mencionado
na cédula de identidade e de um dos seguintes comprovantes de residência, excluída
a possibilidade de aceitação de declaração de terceiros:
a) conta de prestação de serviços públicos em seu nome;
b) notificação, ou qualquer outro documento emitido em seu nome por órgão da
administração pública;
c) correspondência de instituição bancária ou de crédito, em seu nome;
d) contrato de locação em seu nome;
e) recibo de pagamento de condomínio em seu nome.
IV- documentação que possibilite verificar a capacidade de autofinanciamento e prova de
idoneidade econômico-financeira da entidade mantenedora e de seus cios,
consistindo de certidão negativa do cartório de distribuição pertinente,com validade
na data da apresentação do processo;
V- comprovação da propriedade do imóvel, contrato de locação ou cessão, por prazo não
inferior a dois anos;
VI- cópia legível da última alteração contratual, caso tenha havido, devidamente
registrada;
VII- planta baixa ou croqui dos espaços e das instalações;
VIII- relação do mobiliário, equipamentos, material didático-pedagógico e acervo
bibliográfico;
IX- relação dos recursos humanos, com especificação de suas funções e comprovação de
identidade (RG e CIC), habilitação e escolaridade;
X- previsão de matrícula com demonstrativo da organização de turmas;
XI- proposta pedagógica;
XII- projeto de capacitação permanente dos recursos humanos;
XIII- regimento (original e cópia) que expresse a organização pedagógica, administrativa e
disciplinar de educação Infantil, autenticado;
XIV- laudo da Inspeção Sanitária e Corpo de Bombeiros;
XV- alvará expedido pelo órgão próprio da Prefeitura Municipal.
Parágrafo único: A liberação do alvará pelo órgão da Prefeitura Municipal de Três Rios
dependerá do cumprimento de todas as exigências deste artigo.
Art. 23 Após dada a entrada no pedido de Autorização de Funcionamento, uma comissão de
Supervisores Educacionais da Rede Municipal de Educação de Três Rios será designada pela
Secretaria de Educação para verificação in loco das condições de funcionamento do
estabelecimento de ensino, expedindo um relatório de verificação, que será anexado ao processo.
Art. 24 A desativação das instituições de Educação Infantil, autorizadas a funcionar, poderá
ocorrer por decisão do mantenedor, em caráter temporário ou definitivo, devendo atender
legislação específica a ser definida pelo respectivo sistema de ensino.
CAPÍTULO VII
DA SUPERVISÃO
Art. 25 A supervisão, que compreende o acompanhamento do processo de autorização e a
avaliação sistemática do funcionamento das instituições de Educação Infantil, é de
responsabilidade do Sistema, a quem cabe velar pela observância das leis de ensino e das decisões
do Conselho de Educação, atendido o disposto nesta Deliberação.
177
Art. 26 Compete aos órgãos específicos do Sistema, definir e implementar procedimentos de
supervisão, avaliação e controle das instituições de Educação Infantil, na perspectiva de
aprimoramento da qualidade do processo educacional.
Art. 27 – À Supervisão, compete acompanhar e avaliar:
I- o cumprimento da legislação educacional;
II- a execução da proposta pedagógica;
III- condições de matrícula e permanência das crianças na creche, pré-escola ou centro de
Educação Infantil;
IV- o processo de melhoria da qualidade dos serviços prestados, considerando o previsto
na proposta pedagógica da instituição de Educação Infantil e o disposto na
regulamentação vigente;
V- a qualidade dos serviços físicos, instalações e equipamentos e a adequação às suas
finalidades;
VI- a regularidade dos registros de documentação e arquivo;
VII- a oferta e execução de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde nas instituições de educação infantil
mantidas pelo poder público.
Art. 28 À Supervisão Educacional cabe também propor às autoridades competentes o cessar
efeitos do ato de autorização da instituição, quando comprovadas irregularidades que
comprometam o seu funcionamento ou quando verificado o não cumprimento da proposta
pedagógica.
Parágrafo único: As irregularidades serão apuradas e, se necessário, serão aplicadas as seguintes
penalidades:
I- Comunicado através de correspondência, informando as irregularidades encontradas
e as providências a serem tomadas num prazo entre 30 a 90 dias, de acordo com a
gravidade da situação.
II- No caso da instituição o cumprir, no prazo determinado, as exigências, terá suas
atividades suspensas por, no máximo, 30 dias.
III- Após o término desta suspensão, a instituição terá suas atividades canceladas
definitivamente, pela Secretaria de Fazenda, conforme legislação vigente.
CAPÍTULO VIII
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 29 As instituições de Educação Infantil da rede pública e privada, em funcionamento na
data da publicação desta Deliberação, deverão integrar-se ao respectivo Sistema de Ensino, até
dezembro de 2004, de acordo com o art. 89 da Lei 9394-96.
§ 1º - Os órgãos executivos do sistema estimularão a antecipação da integração das
instituições de Educação Infantil ao Sistema de Ensino,em benefício da manutenção e da melhoria
do atendimento.
§ - A integração será acompanhada e verificada pela Supervisão, exercida pelo órgão
próprio do Sistema de Ensino, que encaminhará ao Conselho Municipal de Educação de Três Rios,
Parecer conclusivo, baseado em relatório, que comunique o estágio de adaptação às disposições
desta Deliberação.
§ - À vista do relatório a que se refere o § deste artigo, o Conselho Municipal de
Educação de Três Rios poderá conceder prorrogação do prazo para a instituição sob exame, pra
adequar-se às normas desta Deliberação.
Art. 30 Esta Deliberação entrará em vigor na data de sua publicação, revogada as disposições
em contrário.
CONCLUSÃO DA CÂMARA
178
O texto da presente Deliberação foi alvo de estudos e discussões entre os membros desta Câmara e
encaminhado para apreciação do Conselho Municipal de Educação.
Três Rios, 05 de novembro de 2007.
Maria de Fátima Martins de Almeida
Naila Valença Marques Monteiro
Wilson Luiz Gomes
CONCLUSÃO DO PLENÁRIO
A presente Deliberação foi aprovada por mais de 2/3 do Plenário, independendo, pois, de
homologação do Secretário Municipal de Educação, nos termos do Art. 12 da Lei 2070 de 20 de
dezembro de 1996.
Três Rios, 26 de novembro de 2007.
Nícia Maria Nasser Caldas
Presidenta do Conselho Municipal de Educação
Anexo 2
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
CÂMARA DE PLANEJAMENTO, LEGISLAÇÃO E NORMAS
ATOS DO CONSELHO
DELIBERAÇÃO 001/09 CME-TR, de 20 de março de 2009.
Altera a Grade Curricular do Ensino Fundamental diurno da Rede Municipal de Ensino de Três
Rios.
O Conselho Municipal de Educação de Três Rios no uso de suas atribuições legais e,
CONSIDERANDO que o Sistema Municipal de Educação de Três Rios deve garantir um padrão
mínimo de qualidade, no qual deve estar embasada a oferta de ensino;
CONSIDERANDO que o Conselho Municipal de Educação é responsável pela atribuição de
assessoramento ao Poder Público Municipal, que consiste, dentre outras, na formulação de
diretrizes educacionais, seu acompanhamento, organização e aperfeiçoamento do funcionamento
do Sistema Municipal de Educação;
CONSIDERANDO que os conteúdos das disciplinas de Geometria e Redação são parte integrante
das disciplinas de Matemática e Português, respectivamente;
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
179
CONSIDERANDO que a transferência de alunos do segundo segmento do Ensino Fundamental,
em regime de dependência nas disciplinas Geometria e Redação, dificulta suas matrículas em
outros sistemas de ensino;
CONSIDERANDO a deliberação do Plenário, tomada em sessão de 11 de março de 2009;
RESOLVE:
Art. 1º - Fica alterada a Grade Curricular para o Ensino Fundamental diurno do Sistema Municipal
de Ensino de Três Rios, conforme anexo I, a partir do ano de 2009.
Art. 2º - O registro de notas e presenças relativas às disciplinas de Geometria e
Redação deverão ser efetuados em pauta única, ou seja, nas pautas de Matemática
e Português, respectivamente;
Art - Das 06(seis) aulas semanais dedicadas à disciplina de Matemática, 01(uma) aula deverá
ser dedicada aos conteúdos de Geometria.
Art. - Das 06(seis) aulas semanais dedicadas à disciplina de Português, 01(uma) aula deverá ser
dedicada aos conteúdos de Redação.
Art. 5º - Ficam responsáveis pelo acompanhamento do trabalho desenvolvido nas
disciplinas de Geometria e Redação, os diretores das unidades escolares, os
profissionais que compõem a equipe de Orientação Pedagógica e Supervisão
Educacional.
Art. 6º - Esta Deliberação entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 7º - Ficam revogadas as disposições em contrário.
CONCLUSÃO DA CÂMARA
O texto da presente Deliberação foi alvo de estudos e discussões entre os membros da Câmara de
Planejamento, Legislação e Normas e encaminhado a apreciação dos demais membros do
Conselho Municipal de Educação.
Três Rios, 12 de março de 2009.
Wilson Fernandes (Presidente)
Eni Leite da Paz
Izabel Vidal Ribeiro Gonçalves
Maria de Fátima Martins de Almeida
CONCLUSÃO DO PLENÁRIO
A presente Deliberação foi aprovada pelo Conselho Municipal de Educação de Três Rios, por
unanimidade.
180
Três Rios, 1º de abril de 2009.
Nícia Maria Nasser Caldas - Presidenta do C.M.E
Adriana Silva Barrioli
Laila Odete Ferreira V. de Castro
Lucimar Vieira da Silva
Maria Conceição Santos Melo
Naila Valença Marques Monteiro
Neusa Maria Barbosa Vieira de Oliveira
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
GRADE CURRICULAR DO ENSINO FUNDAMENTAL DIURNO
SISTEMA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE TRÊS RIOS
CARGA HORÁRIA SEMANAL
ANOS DE ESCOLARIDADE
COMPONENTE
S
CURRICULARE
S
Português
X X X X X 6 6 6 6
Matemática
X X X X X 6 6 6 6
História
X X X X X 2 3 3 2
Geografia
X X X X X 2 2 2 3
Ciências Naturais
X X X X X 3 3 3 3
Educação Física
X X X X X 2 2 2 2
Ensino Religioso
X X X X X 1 1 1 1
Artes
X X X X X 1 1 1 1
Inglês
- - - - - 2 2 2 2
Orientação para o
Trabalho
X X X X X X X X X
Introdução à
Informática
X X X X X X X X X
TOTAL 20
20 20 20 20 25 26 26 26
181
CARGA HORÁRIA ANUAL
Por ano de escolaridade
TOTAL
GERAL
1ºao 5º
9º ao 9º ano
- 240
240
240
240
960
- 240
240
240
240
960
- 80
120
120
80
400
- 80
80
80
120
360
- 120
120
120
120
480
- 80
80
80
80
320
- 40
40
40
40
160
- 40
40
40
40
160
- 80
80
80
80
320
- -
-
-
-
-
- -
-
-
-
-
Observações:
Ano letivo de 200 dias de aula (1º e 2º turnos)
40 semanas (1º e 2º turnos)
800 horas aula de 50 minutos (1º e 2º turnos)
“X” significa sempre presente
Somente será permitida a organização do horário com 06 aulas, uma vez na semana.
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